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A crença no valor absoluto da originalidade (Fernandes 1986, 12). Segundo o autor, os artistas
não é mais do que uma ideia reguladora. Ela modernos quase sempre buscaram modelos antigos e
não deixa de ser importante, pois aponta para
um valor ainda significativo em nossa cultura. sobre eles fizeram “variações”, sem que por isso
Mas num mundo recoberto por camadas e
camadas de linguagem, no qual as práticas perdessem a originalidade. Bordwell (1996) identifica
cotidianas são em grande medida operações derivações similares no cinema.
com materiais culturais acumulados, apostar
na criação de obras absolutamente novas é,
no mínimo, duvidoso. Aliás, em épocas
anteriores ao romantismo, não havia esse tipo Em las películas de Godard, encontramos
de cobrança. É mais do que sabido que gran cantidad de intertextualidade – citas,
Shakespeare – para ficarmos num terreno alusiones, prestamos – así como lo que
acima de qualquer suspeita – tinha por prática Gérard Genette llama ‘hipertextualidad’, lá
partir de enredos de outros (Saraiva e Cannito derivación de um texto a partir de outro por
2004, 47). transformación (sátira, parodia) o imitación
(pastiche, remake) (Bordwell 1996, .312).
A concepção de que nada surge do nada (ex
A articulação entre novo e antigo, repetição e
nihilo) é apregoada por vertentes filosóficas orientais
variação, está na base do conceito de criatividade. Na
há séculos, muito antes da ideia de originalidade se
concepção de diversos autores “(Amabile 1996; Barron
firmar como um ideal e um indicativo de criatividade.
1988; Lubart 1994; MacKinnon 1962; Ochse 1990;
For the Hindus (1500-900 B.C.), Confucius (c. Sternberg e Lubart 1995)” (Lubart 2007, 16), o
551-479 B.C.), and the Taoists and Buddhists
creation was at most a kind of discovery or conceito de criatividade pode ser expresso como a
mimicry. […] The early Taoist and Buddhists capacidade de realizar uma produção que seja ao
emphasized natural cycles, harmony,
regularity, and balance, therefore 'the idea of mesmo tempo nova e adaptada ao contexto na qual
the creation of something ex nihilo (from
nothing) had no place in a universe of the yin ela se manifesta. Como objeto de estudo, a noção de
and yang' (Albert e Runco 1999, 18). criatividade tem sido deslocada do conceito de
originalidade e agregada à concepção de inovação,
A imitação torna o processo de criação isto é, tornar novo um modelo existente.
tributário ao que já foi criado, ao que veio antes.
Dionísio de Halicarnasso (séc. I a.C.) considerava a Por definição, uma produção nova é original e
imprevista quando se distingue pelo assunto
imitação (mimese) uma atividade que move o espírito ou pelo fato de outras pessoas não a terem
realizado. Ela pode, contudo, ser nova em
para o que lhe parece belo. Com o tempo, o conceito
diferentes graus: ela pode não apresentar um
de imitação confundiu-se com o sentido de cópia ou desvio mínimo por relatar as realizações
anteriores ou, ao contrário, revelar ser uma
plágio, e como tal tornou-se prática indesejada. inovação importante [...] Por outro lado, uma
produção não pode ser simplesmente uma
Contudo, Fernandes (1986) observa que a mimese é
resposta nova. Ela deve igualmente ser
antes uma etapa do processo de criação, o que talvez adaptada, ou seja, deve satisfazer diferentes
dificuldades ligadas às situações nas quais se
explique o motivo pelo qual aderimos à imitação, ainda encontram as pessoas. [...] A importância
relativa da novidade e da adaptação depende, Como os primeiros clichês da tipografia, os
assim, da natureza da tarefa proposta aos
sujeitos: por exemplo, o critério de adaptação clichês imagéticos podem ser considerados como
é mais fortemente valorizado dentro das matrizes utilizadas para a produção em série, mas são
produções criativas dos engenheiros do que
nas dos artistas (Lubart 2007, 16). também a própria cópia. Esse comportamento parece
similar ao dos replicadores. O biólogo evolucionista
Novidade e adaptação são aspectos ligados à
Richard Dawkins, na obra O gene egoísta, discorre
criatividade e variam conforme o contexto. Além disso,
sobre a dinâmica dos genes e seu caráter replicador.
são balizas no estabelecimento de critérios de
Os replicadores têm por objetivo garantir a
julgamento de uma obra. Relativo ao processo de
sobrevivência do material ou da informação que
criação, Lubart (2007) destaca que o mesmo deve
armazenam. No caso dos genes, o objetivo é
também ser levado em consideração ao se julgar a
preservar o DNA. Já em 1976, quando o livro foi
criatividade, visto que uma obra criada por acaso,
publicado, Dawkins destinou um capítulo para tratar do
ainda que original e adaptada, pode não ser
que denominou “memes”, para ele, os novos
considerada criativa, uma vez que o ato criativo
replicadores. A palavra “meme” é uma adaptação do
presume um trabalho árduo e intencional. Ostrower
termo grego mimeme, cuja raiz encontra-se em
(2013), por sua vez, enxerga no acaso uma variável
mimese, que como dito anteriormente significa
importante da atividade laboral. Segundo a autora, não
imitação.
existe criação artística sem acaso.
meméticos) e aparecem de modo recorrente nas obras classificação conforme a instância na qual se
fílmicas, assim como existem gestos que se manifestam. Nas imagens fílmicas destaco a
consagraram como simbólicos [1] em razão da sua incidência de três tipos de clichês: são eles formais,
pregnância. Como exemplo podemos citar o gesto de presentes no âmbito da encenação; semânticos,
Scarlet O' Hara, interpretada por Vivien Leigh, no filme articulando a montagem e narrativos, organizando a
diante das adversidades que a acometiam, naquele Na acepção de Bordwell e Thompson (2013),
momento, que jamais passaria fome novamente. o termo mise-en-scène vem do francês e significa “por
Há certas imagens que de tão pregnantes, em cena” ou encenação. Todos os elementos que
emblemáticas e conhecidas remetem ao todo do filme, aparecem no quadro fílmico compõem a mise-en-
o que possibilita as citações cênicas, as paródias e o scène: cenário, iluminação, figurino e comportamento
comercial contemporâneo ou, como denomina Jullier e A imagem-clichê formal, como indica o nome,
Marie (2009), cinema pós-moderno. Tal cinema “é situa-se no âmbito da forma e replica elementos
modesto e se baseia na consciência de que tudo já foi abstratos, tais como gesto, cor, luz, texturas,
dito, e que é preciso retomar as antigas regras (o que enquadramentos e grafismos demandados pela
que pode ser renovado” (Jullier e Marie 2009,.214). Os autores chamam a atenção para a
Ainda segundo os autores, essa “consciência de vir presença do ator como um elemento gráfico na tela.
utilizar de todas as estéticas possíveis para “tudo interpretação é criado para ser filmada. A interpretação
“alusões e piscadelas” dirigidas ao espectador, no (aparência, gestos, expressões faciais) e som (voz,
sentido de estabelecer com ele certa cumplicidade. efeitos)” (Bordwell e Thompson 2013, 233).
Tarkovski oferece um exemplo de clichê formal Aumont (et al. 1995) cita Jean Mitry ao
na encenação do filme Terra (1930), do cineasta exemplificar que em um western, “um plano que
soviético Aleksandr Dovjenko. mostra, do alto de uma montanha, uma diligência
preparando-se para entrar em um desfiladeiro basta
No filme Terra, de Dovjenko, o protagonista é para evocar para o espectador, na ausência de
morto com um tiro pelo kulak,[fazendeiro] e,
para comunicar o disparo, a câmera se afasta qualquer outra indicação, uma emboscada próxima
da cena em que o protagonista cai morto; em armada pelos índios” (Aumont et al. 1995, 118). À
alguma parte dos campos vizinhos, cavalos
assustados erguem as cabeças, e a câmera presença de eventos presumidos e inferidos, os
volta em seguida para a cena do assassinato.
Para o público, as cabeças erguidas dos autores chamam de efeito-gênero, sendo esses
cavalos constituem uma forma de percepção responsáveis pela manutenção do verossímil
do tiro. Quando se introduziu o som no
cinema, esse tipo de montagem deixou de ser necessário à coesão.
necessário. E não convém remontar às
brilhantes tomadas de Dovjenko para justificar
o entusiasmo com que se faz uso gratuito da Esse efeito-gênero tem dupla incidência. Em
montagem intercalada no cinema moderno. primeiro lugar, permite, pela permanência de
Faz-se com que alguém caia na água, e em um mesmo referente diegético e pela
seguida, por assim dizer, "Masha está recorrência de cenas ‘típicas’, consolidar o
olhando, à procura". Em geral, não há a menor verossímil de filme em filme. No western, o
necessidade de recorrer a tais expedientes; código de honra do herói ou a maneira de agir
tais tomadas parecem ser um remanescente dos índios parecem verossímeis porque, de
da poética do cinema mudo. Uma convenção um lado, são fixos (durante um certo período,
imposta pela necessidade passou a ser uma os filmes desse gênero conhecem apenas um
ideia preconcebida, um clichê (Tarkovski código de honra e um comportamento para os
1998, .81). índios) e, por outro, porque são ritualmente
repetidos, reconduzidos de filme em filme. [...]
O exemplo mostra que ao se render à O efeito-gênero permite, em seguida,
estabelecer um verossímil próprio de um
pregnância da imagem-clichê, o cineasta demostra gênero em particular. Cada gênero tem seu
verossímil: o do western não é o da comédia
obsolescência no uso da linguagem cinematográfica. musical ou o do filme policial (Aumont et al.
No nível da montagem dos planos fílmicos, 1995, 147).
desses clichês.
Vogler conclui que histórias construídas maior relevância, por parecer se tratar dos mais
segundo o modelo da Jornada do Herói são profundos temores e desejos humanos. Contudo,
fascinantes, porque tratam de questões universais, tais McLuhan considera ambos igualmente meios de
como: “Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou recuperação do passado. É possível notar um tom
quando morrer? O que é bem e o que é mal? Como provocador no texto, cujo objetivo parece ser o de
devo agir com o bem e o mal? Como será o amanhã? desmistificar a ideia de arquétipo, como no trecho em
Para onde foi o ontem? Será que tem alguém lá em que cita o crítico literário canadense Northrop Frye
cima?” (Vogler 2006, 49). (1912-1991): arquétipo é “um símbolo, de costume
A jornada do herói segue mais ou menos o uma imagem, que se repete com bastante frequência
seguinte modelo: o herói está no seu mundo, é na literatura a ponto de ser reconhecido como um
chamado à aventura, recusa o chamado, encontra o elemento da experiência literária de cada um como um
mentor, faz a travessia do primeiro limiar, passa por todo” (Frye apud Mcluhan e Watson 1973, 142).
testes, encontra aliados e inimigos, aproxima-se da McLuhan comenta a citação dizendo que esta é, em
“caverna oculta”, passa por provações, consegue particular, a definição de arquétipo mais “anti-Jung”,
“apanhar a espada sagrada”, faz o caminho de volta, justamente por “sugerir que os arquétipos são
enfrenta a morte e “renasce” e retorna com o “elixir”. artefatos humanos produzidos por muita repetição –
Como afirma Vogler (2006, 70) “uma compreensão em outras palavras, uma forma de clichê” (Mcluhan e
dessas forças é um dos elementos mais poderosos no Watson 1973,142).
baú de truques de um moderno contador de histórias”. Na obra Da imagem ao clichê, do clichê à
Truques esses, vale dizer, repetidamente utilizados no imagem, Rodrigo Guerón recupera um conceito de
cinema, este que há mais de um século tem fabricado clichê formulado pelo filósofo Gilles Deleuze, que pode
imagens que povoam o imaginário de muita gente. indicar uma outra compreensão do termo:
Para usar uma definição de Edgar Morin sobre
Temos esquemas para nos esquivarmos
o imaginário: “Entramos en el reino de lo imaginario quando é desagradável demais, para nos
cuando las aspiraciones, los deseos, y sus negativos, inspirar resignação quando nos é horrível, nos
fazer assimilar quando é belo demais.
los temores y terrores, llevan y modelan la imagen Notemos a este respeito que mesmo as
metáforas são esquivas sensório-motoras, e
para ordenar segun su lógica los sueños, mitos, nos inspiram algo a dizer quando já não se
religiones, creencias, literaturas, concretamente todas sabe o que dizer: são esquemas particulares,
de natureza afetiva. Ora, isso é um clichê. Um
las ficciones” (Morin 2001, 23). clichê é uma imagem sensório-motora da
coisa (Deleuze apud Guéron 2011, 14).
Assim como os clichês, as imagens
arquetípicas que povoam nosso imaginário ou Guéron (2011) sustenta que o clichê é parte
inconsciente coletivo se assemelham a estruturas fundamental da nossa experiência cotidiana do real,
replicadoras e pregnantes. O teórico canadense uma vez que a constitui, e apesar de aparecer no
Marshall McLuhan publicou, em 1973, a obra Do cinema de forma privilegiada, não é exclusividade do
clichê ao arquétipo, na qual analisa que o clichê cinema ou de outros mecanismos de produção de
passou a ser vinculado ao arcaico, enquanto o imagens. Entretanto, essa “imagem sensório-motora”
arquétipo, ao mágico, o que conferiu ao segundo uma
que nos acalenta e protege diante do mundo, também reflete que o clichê é uma imagem esquemática que
nos aprisiona. se assemelha a uma metáfora e pode condicionar
nosso comportamento, em função de seu caráter
Pretendemos mostrar que o clichê será uma moralizante. Guéron (1995) dedica-se a explorar o
espécie de imagem-lei ou imagem-moral:
imagem que vai funcionar como um índice conceito de clichê formulado por Deleuze, indicando
determinador e padronizador de valor. que o clichê ao funcionar como um índice
Mostraremos ainda que, como expressão da
moral, o clichê é também uma operação de determinador e padronizador de valor, impõe-se como
poder: poder que opera à medida que se
instala nos corpos, não só paralisando-os e um operador de poder.
atemorizando-os, mas fazendo-os perceber, As categorias elaboradas por Deleuze para
sentir, agir, desejar, imaginar e sonhar dentro
de determinados limites e direções (Guéron sedimentar o que denominava de imagem-tempo
2011, 25).
rompe com o cinema narrativo. Por essa via, a
proposição que faço de clichês narrativos seria em si
Para Guéron (2011) não é possível
mesma uma redundância, visto que a lógica narrativa,
compreender o cinema como uma potência do real
na perspectiva deleuziana, já é um clichê. Em
sem analisar a questão do clichê e não há imitação
oposição à representação indireta do tempo, próprio
(mimese) no cinema simplesmente porque o real não
do que Deleuze chama de imagem-movimento e suas
pode ser reproduzido em si mesmo, ele tem de ser
leis (ou clichês) de associação, contiguidade,
reinventado, recriado. “Os cineastas começam a
semelhança, contraste e oposição; o filósofo propõe
perceber que é saindo em busca do lugar-limite, onde
que na imagem-tempo é o movimento que se
os sentidos se fecham num mundo sem saída para
subordina ao tempo (pensamento). Decorreria daí a
forçá-los a se abrir em outras perspectivas, que os
possibilidade do cinema manejar imagens puras, não
clichês são desconstruídos” (Guéron 2011, 24).
mais preestabelecidas pela mente humana e
Os clichês podem ser desconstruídos? A esta representadas no cinema, mas originadas no e pelo
questão provocada pelo deleuziano Guéron (2011) cinema, como se o filme fosse a materialidade do
corrobora o próprio Deleuze (2005) dizendo que é “pensamento do cinema”.
preciso arrancar dos clichês uma verdadeira imagem, O chamado cinema moderno ou cinema novo
sem metáforas. Não desconsidero o caráter inspirador experimentou o rompimento com a linguagem
da visão de Deleuze, assim como a de Tarkovski, cinematográfica convencional, o que por vezes revelou
sobre o processo de criar, contudo, considero a um acentuado niilismo frente a todo e qualquer modo
pretensão de verdade uma mística que pode mais narrativo de cinema. A busca por “imagens puras e
limitar do que abrir os horizontes do artista. verdadeiras” norteou o processo criativo de diversos
cineastas, conferindo uma inflexão especial ao tema
Considerações finais
da originalidade. O que revelou ser esta uma
perspectiva essencialista e mais preocupada em
O clichê no cinema tem sido explorado por
encontrar a gênese do “mal” na linguagem, isto é, o
alguns teóricos e seu aspecto de repetição é o que
clichê. Ora, não se denuncia o artifício da linguagem,
mais encontra consenso. Na obra A Imagem-Tempo
valendo-se da própria linguagem para fazê-lo, daí a
(2005), lançada em 1985, o filósofo Gilles Deluze
negação do cinema como linguagem. A meu ver, tal no contexto da encenação, da montagem ou da
negação garante a coerência do argumento, apesar da estrutura dramática, a imagem-clichê é o dado
sua insuficiência de fato. aparente de uma operação mental que conjura o que é
Tarkovski (1998), por exemplo, parece não reconhecido e o transfigura em reconhecível.
admitir o artifício mesmo da criação de imagens, da A opção pelo termo pregnância para
fabulação, antes porém, confere ao artista a caracterizar um dos atributos do clichê, deve-se a uma
capacidade de revelar o “incriado” e, por isso, o belo e maior precisão no seu sentido, visto que denota o
verdadeiro da imagem. Se a premissa do cineasta poder que algo tem de impregnar a mente. Os clichês
russo evoca uma liberdade de criação sem limites, tão impregnam, não simplesmente permanecem. Admito
necessária ao artista, por vezes pode levar a efeito que parecem insondáveis os motivos pelos quais
contrário, ao pressupor a ausência de um repertório algumas imagens reverberam e deixam marcas
simbólico que medeia as relações humanas e dá indeléveis em nossa mente.
forma ao mundo por meio da linguagem. Destaco que
o signo não é algo que se sobrepõe ao objeto como Um cliché será pois um tropo [figura de
linguagem ou figura de estilo] tornado imagem.
um adereço, é antes um modo de acessar o objeto, E enquanto imagem, afirma-se como um todo
dotando-o de sentido e, portanto, trazendo-o para o uno. Imprime-se na retina das nossas mentes
como um dado instantâneo, sem dar espaço
mundo da linguagem. A imagem fílmica, a despeito da nem tempo a uma reflexão. Seduz e penetra
pela sua simplicidade. Tem uma perfeição que
pretensão de verdade de alguns cineastas, não é pois nos faz reféns da sua forma, com a mesma
o registro transparente do real, mas um recorte do força das formas elementares explicadas pela
teoria da Gestalt. Também no cinema e na
mundo que “ganha outra vida” no mundo da linguagem vida, a força do cliché está nessa psicologia
da forma simples, numa gestalt do
do cinema. pensamento. A forma impõe-se diante dos
Podemos pensar, e convém que seja assim, nossos olhos e do nosso cérebro como modo
de percepção e compreensão (Areal 2011, 8)
que a linguagem existe no plural e que sendo uma
convenção é passível de mudanças no tempo e em
O argumento de Tarkovski sobre o mérito da
contextos. Areal (2011) até sugere que os próprios
imagem artística por oposição ao clichê é de que “a
clichês sofrem variações e adaptações, tal qual as
verdadeira imagem artística fundamenta-se sempre
figuras de estilo (tropo) que reúnem em si “imagem,
numa ligação orgânica entre ideia e forma” (1998, 26)
ideia e emoção”.
na mesma direção é a assertiva de Areal para definir a
Na tentativa de tipificar os clichês, observo os
potência da figura original, isto é, aquela que não se
limites da classificação aqui proposta em vista da
degenerou pelo uso: “A forma da figura define o modo
impossibilidade de um delineamento preciso do “tipo”.
de pensamento, tanto como a ideia que transporta”
O que seria o específico de um clichê formal ou
(Areal 2011, 9).
semântico ou narrativo? A aposta de Areal (2011) de
Ainda que as formulações aqui expostas
que o clichê é um “embrião de signo” parece suficiente
sejam provisórias e carentes de uma confrontação
para definir essa imagem mental que se materializa
empírica mais sistemática, observo que a criação de
em imagens visuais e sonoras, e que, mais que outras
roteiros, além de demandarem o domínio técnico da
imagens, são pregnantes e replicantes. Ademais, seja
dramaturgia e o domínio formal da narrativa fílmica,
são poéticas mediadas por um repertório simbólico Areal, Leonor. Para uma teoria do clichê. 2011 Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa. Disponível em:
presente no imaginário, os quais são recuperados no <http://cjpmi.ifl.pt/2-areal> Acedido em 13.05.2014.
ato de fabular. As primeiras imagens do filme são
Aristóteles. Poética. 1996. São Paulo: Nova Cultura.
pensadas no roteiro. Entretanto, encerrado em Coleção: Os pensadores.
estruturas dramáticas lógicas e esquemáticas e em Aumont, Jacques. A imagem. 2005. Campinas: Papirus, 10ª
textos com regras de formatação rígidas, o roteiro ed.
nasce como uma bula, uma prescrição. É fato que o Aumont, Jacques; Marie, Michel. 2004. A análise do filme.
Lisboa: Texto e Grafia.
cinema narrativo não prescinde do roteiro, mas talvez
a recuperação do sentido de fabulação reserve um Aumont, Jacques; Bergala, Alain; Marie, Michel; Vernet,
Marc. 1995. A estética do filme. Tradução: Marina
lugar para o acaso, a espontaneidade, a Appenzeller. Campinas – SP: Papirus.
[2] O autor se refere ao Cinema Moderno, classificação que Dawkins, Richard. 1993. El gen egoísta : las bases
compreende o movimento surgido no período entre guerras biológicas de nuestra conducta. Salvat. PDF
e que se consolidou após a Segunda Guerra Mundial (1939 Disponível em: <http://www.biblioteca-
– 1945), cuja proposta buscou romper certos paradigmas medica.com.ar/2011/01/el-gen-egoista-las-bases-biologicas-
temáticos e estéticos, renovando a linguagem de.html> Acedido em 10 de agosto de 2013.
cinematográfica, tais como o Neo-realismo Italiano, a
Nouvelle Vague e o Cinema Novo Brasileiro (Xavier 2005; Deleuze, Gilles. 2005. A imagem-tempo. São Paulo:
Mascarello, 2006). Brasiliense.
[3] Areal observa que o clichê associa três polaridades Fernandes, Raul Miguel Rosado (ed.). 1986. Tradado da
triangularmente: forma, sentido e emoção (Areal 2011) imitação – Dionísio de Halicarnasso. Lisboa: Centro de
Estudos Clássicos das Universidades.
Albert, Robert S; Runco, Mark A. 2006. A history of research Guéron, Rodrigo. 2011. Da imagem ao clichê, do clichê à
on creativity. In: Sternberg, Robert. J. (Ed.) Handbook of imagem: Deleuze, cinema e pensamento. Rio de Janeiro:
creativity. New York: Cambridge University Press. Nau.
Lubart, Todd. 2007. Psicologia da criatividade. Porto Alegre:
Artmed.