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Capítulo II Modalidades de documentários

O crítico e teórico norte-americano, Bill Nichols, chamou de modos de


representação aos padrões de estruturação de “textos” que discorrem sobre o mundo, a
realidade. Com relação a texto, deve-se subentender a “voz do documentário”. Durante a
interação entre todos os códigos, tudo aquilo que compõe o filme, diz-se algo. É a esse
discurso intangível que permeia as modalidades de documentários e cada filme
individualmente que Nichols denomina de “voz do documentário”1.
Nichols sublinha que as vozes individuais conduzem para uma teoria do cinema
autoral e as vozes compartilhadas conduzem para uma teoria do cinema de gênero2, onde
as modalidades correspondem aos sub-gêneros do gênero filme documentário. Dessa
maneira, nesta monografia nos serviremos de ambas, mas vamos nos ater em especial à
primeira, à teoria do cinema autoral, para falar de Rouch e da metodologia que ele
desenvolveu.
De certa forma, trabalhar com esses modos de representação a partir da tipologia
criada por Nichols pode colaborar para a pequena retrospectiva que elaboramos no capítulo
anterior. Dizemos isto por não esquecer que esses modos, cada um deles, reúnem
características de autores e, nesse sentido, características de épocas e de pensamentos
predominantes que marcaram um lugar na História e poderão ser sempre acessados através
dos documentários.
É preciso fazer esse percurso pelo interior de uma tipologia como a de Nichols não
só para compreender melhor os rumos que tomou o documentário ao longo do tempo,
experimentando formas sob influência do contexto histórico. Mas também é preciso situar
a obra de Jean Rouch em meio a todos esses acontecimentos para ressaltar sua importância
e destacar a herança que ela representa para cineastas de um modo geral.
Embora uma certa cronologia guie a organização desta exposição dos modos, isso
nunca implicará numa ordem seqüencial onde esteja implícito que um modo subseqüente é
uma evolução de um modo anterior ou ainda que substitui (no sentido de eliminar o outro)
um modo predominante. É bem verdade que cada modo surgiu como questionamento ou
para suprir deficiências de um modo anterior e isto é o que acaba por sugerir a cronologia
dos fatos para a conformação de uma história do documentário.

1
NICHOLS, The voice of documentary, p.248-249.
2
NICHOLS, Introduction ..., p. 99.

33
Tal qual ressalta Nichols, o que muda é o modo de representação, não a qualidade
da representação.3 Mesmo que esse argumento sobre a necessidade de evoluir prevaleça no
instante da transformação porque norteia e serve como justificativa para que a mudança de
fato ocorra.
Portanto, são as circunstâncias e o desejo de criar alternativas para representar o
mundo que contribuem para a conformação de novos modos representativos. Um novo
modo é apenas uma nova forma dominante de organizar um filme apresentado sob outra
proposta ideológica que explica a nossa relação com a realidade.
Diz-se que as características de um dado modo de representação funcionam como
formas dominantes em um filme particular porque o mesmo filme pode conter aspectos
que remetem a outros modos de representar. “Once established through a set of
conventions and paradigmatic films, a given mode remains available to all”4. A estrutura,
em geral, pode ser dada pelo modo dominante e isso não significa dizer que este vá
determinar todos os aspectos da organização do filme.
Com o intuito de oferecer alguns exemplos de filmes que se encaixam nas
modalidades a seguir, organizamos uma tabela5 a partir dos filmes citados pelo próprio Bill
Nichols no seu livro Introduction to Documentary.

1. Modo poético

O modo poético questiona algumas convenções tais como a edição contínua e a


localização em tempo e espaço específicos. Este modo tem a característica predominante
de representar a realidade de forma fragmentada, aplicar impressões subjetivas e atos
incoerentes, fazer associações soltas.
Também motivado pela possibilidade de formas alternativas de conhecimento, o
modo poético costuma reunir em si os filmes que apostam mais na construção do clima, no
tom e comoção. O elemento retórico não está em primeiro plano, como no caso do modo
de exposição. Porém, ambos preferem a construção de argumentos persuasivos, cada um à
sua forma, a apenas registrar e documentar o que ocorre no mundo.

3
NICHOLS, Introduction ..., p.101.
4
“Uma vez estabelecido através de um conjunto de convenções e filmes modelo, um dado modo permanece
disponível para todos” (NICHOLS, Introduction ..., p.100). Esta e todas as traduções que seguem em nota são
de minha autoria.
5
Cf. Anexo, p. 101.

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Todas as facetas do modo poético grifam uma peculiaridade conferida aos
fragmentos da realidade através dos estilos, estratégias que cada cineasta põe em prática
nos seus filmes. Talvez seja apropriado dizer que neste modo poético o estilo autoral fica
em evidência, já que é ele mesmo quem tece a narrativa, é ele a “voz” que reclama o seu
lugar e predomina.

2. Modo de exposição

O documentário de exposição marcou muito a década de 20, embora seja


contemporâneo à maioria dos programas televisivos e documentários sobre a natureza,
científicos ou as biografias que o tomam, hoje, como modelo. Os filmes nos quais
predomina o modo de exposição imprimem uma perspectiva mais retórica ou
argumentativa do que os do modo poético, dirigindo-se ao espectador de forma direta.
No modo de exposição a lógica informativa dada pela palavra falada destaca-se
dentre todas as características. Isto é, o comentário, a narração é quem organiza as imagens
conferindo-lhes o significado que se deseja através de uma narração autoritária, presunçosa
e didática. O comentário voice-of-God6 e o comentário do tipo voice-of-authority ou voz
off são muito utilizados neste modo de representação para organizar as imagens.
As imagens ora “suportam” o que é dito e funcionam como ilustrações, ora
servem como contraponto à narração. Não obstante, a todo momento as imagens
combinadas com as falas – e aqui devem ser incluídas as outras vozes utilizadas no filme,
como é o caso de entrevistas com depoimentos – demonstram o que se argumenta. Como
se a fala no lugar de autoridade e as imagens (indiscutivelmente do mundo real) fossem
provas, evidências para o argumento do filme.
O comentário é o argumento do filme e a voz do documentário por vezes pode
confundir-se com a voz do narrador. O texto expositório é construído, pensado para
dialogar diretamente com o espectador. A ênfase na impressão de objetividade e de
argumento estruturado dependem muito do narrador, já que a voz tem papel fundamental
neste tipo de filme.
A edição serve para manter a unidade do argumento, mais do que para dar ritmo
ao filme. Por isso dizemos que a edição está subordinada ao argumento. Pouca importância
têm o ritmo e a continuidade espaço-temporal durante a edição se comparados à unidade
argumentativa proposta.

6
O termo “Voz de Deus” é uma clara referência ao lugar de autoridade no qual a voz over se situa.

35
É imprescindível observar que com o uso da palavra falada as observações
generalistas, pois sucintas, são viabilizadas. Não se deve esquecer que a economia na
análise não é despropositada porque no pouco que se diz procura-se dizer tudo quanto é
necessário e suficiente para convencer a audiência do argumento proposto.
Isto explicaria, por exemplo, a razão pela qual filmes de exposição usam de forma
tão reincidente o senso comum. Porém, o senso comum variar historicamente retira o lugar
de autoridade de alguns filmes de exposição considerados clássicos exemplares da
persuasão. Com o tempo, essa persuasão perde força, uma vez que o argumento está
deslocado do contexto histórico no qual ele funcionava.

3. Modo de observação

No final dos anos 50 e princípio dos anos 60, o surgimento das tecnologias que
tornavam possível a mobilidade do cineasta e a gravação de imagem e som em sincronia
favoreceu o surgimento de uma nova modalidade de representação, o modo de observação.
Devido à facilidade de deslocamento viabilizada pela evolução tecnológica, este modo
serviu muito enquanto ferramenta de trabalho da etnografia. Muito oportunamente, o
cinegrafista podia lograr, com isso, um tipo de presença durante a sua filmagem que
consistia em ser quase que invisível, um presente ausente.
No modo de observação a intervenção ou a participação do cineasta pode ocorrer às
vezes, apesar destas práticas serem largamente rejeitadas nos protocolos concernentes a
esta forma de representar o mundo. A posição de observador dos acontecimentos é
preferida por acreditar que assim o espectador irá participar com mais autonomia, inferindo
sobre o que assiste. Muito mais do que pela simples identificação com os personagens, o
espectador assume um compromisso com o filme a partir da possibilidade que lhe é dada
de ser ele também um observador do mundo histórico representado ali.
A insatisfação com algumas características predominantes - em especial com a
qualidade moralizante do documentário de exposição – deslocou do lugar de destaque o
comentário ou a voice over, os intertítulos, as entrevistas, as reconstituições históricas, a
música ou qualquer efeito sonoro. Em contrapartida, o som sincronizado e as tomadas
longas são mais comuns, mas não há interação direta com os sujeitos filmados durante a
gravação.
Para realçar a impressão de tempo real, vivido, o cineasta apóia-se na edição. Ao
contrário do filme de exposição, a atividade dos indivíduos é priorizada e a edição serve

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prioritariamente para dar sustento à continuidade espacial e temporal em detrimento de um
argumento.
É possível trabalhar com um modo participatório e filmar através do modo
observacional. Nichols chama a atenção para o fato de que os filmes de David MacDougall
foram muito bem sucedidos com essa prática.7
A prática consiste, em linhas gerais, de uma “entrevista mascarada”, tal qual
prefere grifar Nichols. O cineasta estabelece uma conversa prévia à filmagem da cena e,
nesse diálogo, deixa claro para os seus personagens quais são os assuntos que deverão ser
abordados. O cineasta limita-se a solicitar quais assuntos e o quê, dentro da temática
sugerida, deve ser abordado, sem a pretensão de manipular em momento algum.
O contrário a essa prática também ocorre como é o caso do filme de Leni
Riefenstal, Triumph des Willens (O triunfo da vontade, 1935). Trata-se de filmar eventos
com o objetivo de registrá-los historicamente. No exemplo citado, Riefenstal é responsável
pelo feito de haver registrado o desfile de Hitler em meio às tropas alemãs que iria enviar à
Segunda Guerra Mundial, pouco tempo depois.
O que difere esta prática daquela que caracteriza o típico filme de observação é o
fato de que a filmagem não acontece inadvertidamente, mas é, de maneira inversa,
desejada. O Partido Nacional Socialista Alemão ansiava ver um filme a seu respeito e foi
somente graças a isso que Leni Riefenstal realizou aquele filme, contando com todos os
recursos dos quais dispôs.
As posições físicas estratégicas colocadas à sua disposição resultaram na filmagem
de ângulos-chave extraordinários. Mesmo os muitos discursos que se perderam durante a
gravação por questões de falta de qualidade foram refeitos, em outro momento, apenas
com o intuito de serem pós-sincronizados para o filme.
E apesar de que o evento registrado tenha sido planejado para ser um espetáculo, o
filme de Riefenstal não deixa de reunir as características do modo observação. Desprovido
de narração, as imagens foram filmadas e montadas com o cuidado necessário para dar a
este filme a voz que ele deveria ter, logrando o argumento que o tornou possível desde o
primeiro momento.
Neste modo de representação temos interesse particular. Basta atentar para a
descoberta, na metodologia implicada no modo de observação, da possibilidade de
explorar o real com mais minúcia podendo descrevê-lo de forma tal a complementar o
trabalho da etnografia clássica. O filme é o instrumento que veio a conferir a essa primeira

7
NICHOLS, Introduction ..., p.113.

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fase da pesquisa antropológica um desenvolvimento pleno quando associado à descrição
escrita, recurso sempre útil ao pesquisador no momento de preencher as lacunas do registro
fílmico.
O modo de observação é considerado como o mais apropriado dentre os demais
para o empreendimento de estudos etnográficos. Claudine de France sugere, em textos que
revelam a sua preocupação com as metodologias de abordagens adotadas por etnólogos-
cineastas, algumas ponderações a respeito de soluções8 para os problemas encontrados
durante a realização de filmes com propósitos antropológicos.
Um detalhe que convém ressaltar é o de que nenhum cineasta pode optar pela mise
en scène. Nas palavras de Claudine de France, “alguns continuam a pensar, contra toda
evidência, que o filme etnográfico pode escapar à mise en scène, quando na verdade ela é
um dado inevitável de qualquer realização fílmica, mesmo documentária”.9
De France destaca os princípios regentes que podem ser admitidos enquanto
métodos e que orientam o antropólogo-cineasta durante o processo de feitura dos filmes de
observação ou “filmes exploratórios”, como prefere denominá-los a autora. O primeiro
princípio é o do conhecimento ou a descoberta do objeto observado. O destinatário do
filme confunde-se, portanto, com o pesquisador e o trabalho de pesquisa encontra sua
finalidade em si mesmo: a primeira finalidade de um pesquisador é a própria pesquisa.
O segundo princípio a que se refere a autora, a disponibilidade temporal, pode ser
considerado uma atitude metodológica do pesquisador, pois o tempo é um elemento-chave
que torna possível, ou não, o encontro do antropólogo-cineasta com os sujeitos a quem se
destina conhecer.
O princípio ou método da disponibilidade temporal significa, em outras palavras, o
tempo de que deve dispor o antropólogo-cineasta para acompanhar os sujeitos
investigados. O tempo de inserção em campo com a finalidade de observar e conhecer é
indeterminado, pois é imposto pelos sujeitos. Já o tempo de registro está submetido à lei da
descrição etnográfica10. Depois de ser aplicado na fase de inserção, o método da
disponibilidade temporal oscila entre a enquete audiovisual (realizada durante o registro) e
a enquete oral dos sujeitos (realizada após a análise das imagens registradas).

8
As soluções aparecem sob a forma de metodologias adaptadas da antropologia ou desenvolvidas pela
antropologia fílmica.
9
DE FRANCE, Cinema e ..., p.9.
10
Descrição continuada consiste em restituir, de forma aproximada, o encadeamento dos gestos e operações e
em também apreender o pólo operatório da ação material. Para entender mais sobre a expressão pólo
operatório. Cf. DE FRANCE, Cinema e... passim.

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O terceiro princípio citado é, de fato, o princípio primeiro da etnografia – a
descrição. Este conforma a descrição de manifestações sensíveis e concretas da atividade
humana e também das representações mentais (mitos, crenças, opiniões, sentimentos), dos
processos sociais ou culturais (o progresso, os conflitos de poder ou valor).
O mostrável, aquilo disponível aos olhos, atrai o observador também porque ali
podem ser encontradas as dissimulações, o não visível. O invisível, por sua vez, o é por
razões estruturais (não se mostra porque não é sensível – como é o caso dos processos
sociais ou culturais) e circunstanciais (não se mostra apesar de sua sensibilidade – a
exemplo das representações mentais). Estes motivos levam a que, no filme de observação,
o antropólogo-cineasta tenha de fazer sobressair por meio de “leis de mise en scène”11 tudo
aquilo que corresponde ao “não mostrável estrutural”.
A repetição, grifa De France, é um procedimento exploratório do cotidiano. Este
visa a exaustão da observação direta aliada ao registro e exame repetido das imagens. A
investigação antropológica dá-se, afinal, a partir do filme e da experiência das filmagens.
O quarto e último princípio só é possível quando da utilização fílmica do não-
verbal em equilíbrio com a utilização fílmica da palavra. É preciso saber recorrer ao
procedimento descritivo com cautela, obedecendo ao princípio elementar que diz da
dispensabilidade das palavras quando as imagens dão conta dos fatos e gestos. O ato de
descrever pode recorrer à fala mas não se limita a ela, à narração (voz-de-Deus ou voz de
autoridade) ou dominante narrativa. Por fim, é preciso dizer que o equilíbrio faz-se
necessário porque a descrição fílmica (seja ela macro ou microdescritiva), verbal ou não-
verbal jamais poderá exaurir a realidade observada. A isto, a autora chama de margem de
imprecisão.12

4. Modo de participação

A metodologia utilizada neste modo de representação, a observação participativa


foi herdada das ciências sociais, da Antropologia. Antes, neste texto, falou-se na
observação-participativa de Flaherty, o pioneiro na prática de compartilhar o material
produzido com os seus sujeitos-personagens. É o que Rouch defende como feedback
necessário para que em “submetendo a própria pesquisa à análise, ainda durante a

11
A lei da exclusão (mostrar isto e não aquilo), a lei da saturação (mostrar isto e aquilo ao mesmo tempo).
Cf. DE FRANCE, Antropologia fílmica ..., p.31.
12
Id.

39
realização do filme, os antropólogos-cineastas” se interroguem “sobre os fundamentos e as
modalidades de relação entre o filmador e o filmado”, como afirma Claudine de France.13
Agora, nos referimos à observação-participativa que abarca em si essa prática de
Flaherty, revista e ampliada dentro de circunstâncias e em razão da experiência adquirida
no campo da antropologia visual, no gênero documentário, no cinema como um todo.
Estamos falando, portanto, de uma modalidade de representação também denominada por
Bill Nichols de interativa.
O objetivo do modo participativo ou interativo é o de dar ao espectador a sensação de
como é, para o cineasta, estar numa dada situação. Ao espectador se oferece a
oportunidade de testemunhar o mundo histórico através da representação que o cineasta lhe
oferece.
Mais do que isso, o espectador pode assistir ao registro do encontro entre o cineasta e
seus sujeitos-personagens. Assiste-se a verdade de um encontro, de como esse encontro é
negociado e o que se revela enquanto ele perdura. Um encontro nunca antes evidenciado
diante da câmara.
Nas palavras de Claudine de France, “ao abandonar seu confortável anonimato, o
pesquisador-cineasta revela-se ao espectador tanto quanto revela as pessoas que filma”. E,
para lograr a transparência na relação de observação e de pesquisa, é preciso deslocar a
mise en scène da pesquisa do ser filmado para o observador. É quando o objeto da pesquisa
fica dividido entre o filmador e o filmado.14
Nichols ressalta que a antropologia sempre esteve associada a uma necessidade de
dividir-se entre envolver-se ou separar-se dos seus sujeitos, objetos de estudo. No modo de
participação, ao tornar evidente o envolvimento entre cineastas e sujeitos estudados, a
pergunta convidativa de Rouch – Será que entramos na crença do outro? – nos leva a uma
reflexão: na verdade, não é preciso crer no que o outro crê – esta é a separação entre
pesquisador e objeto de estudo.
O imprescindível está em acreditar que o outro crê e respeitá-lo em sua crença. Então
sim parecemos estar diante de uma maneira mais razoável de envolvimento que eximiria,
nessas condições, o pesquisador de uma provável culpa por falta de objetividade. “O
intimismo que tal procedimento comporta”, defende De France, expressa inclusive uma
certa maturidade da disciplina, da antropologia fílmica15.

13
Ibid.,p.25.
14
DE FRANCE, Antropologia fílmica ..., p.25.
15
DE FRANCE, Antropologia fílmica ..., p.26.

40
O modo de participação surgiu a partir de uma necessidade de interação mais direta
com os indivíduos filmados. Também do desejo de grifar imagens que evidenciem o
encontro do cineasta com as testemunhas, ou com os especialistas, numa clara referência
ao ato destemido de mostrar a verdade, desnudando-a com parcimônia diante dos olhos do
espectador. Como foi visto no capítulo anterior, a isto Jean Rouch e Edgar Morin
chamaram de Cinéma-Vérité.
Chronique d’un été (Crônica de um Verão, 1960) marca o início dessa experiência
nova de Cinema-Verdade na qual Rouch e Morin se aventuraram com grande êxito. No
filme, os temas polêmicos e provocadores evocados por Rouch e Morin em cena – a
respeito do holocausto, da discriminação racial contra negros e a guerra de independência
da Argélia contra a França (1954-1962) – não servem apenas para estabelecer um diálogo
entre os personagens. Esses temas são também parte da estratégia dos cineastas para dar
sustentação ao argumento do Cinema-Verdade, onde tudo se via, ouvia (o som
sincronizado era novidade) e dizia.
Com Chronique d’un été, Rouch e Morin fizeram do Cinéma-Vérité, não somente
um utilizador dos recursos técnicos, mas nesse sentido em que seus recursos eram uma
sorte de provocação à expressão livre (...)16. A história do cinema documentário herdou
deste modo de representação algumas táticas mais intervencionistas tais como a entrevista
para facilitar a interação do cineasta com os seus personagens. A nova técnica instaurou
uma nova linguagem visual. É o modelo que permite recontar histórias através de
testemunhas ou de especialistas, posteriormente adotado pelo formato televisivo e que é,
hoje, prática disseminada.

5. Modo reflexivo

No filme auto-reflexivo, é possível encontrar uma inflexão sobre os diversos


recursos retóricos17 desenvolvidos ao longo da história do documentário. Ali estão
problematizadas as limitações dos recursos retóricos, as convenções do documentário
enquanto mecanismos de produção de sentidos. Em muitos casos, os filmes reflexivos nos
alertam para o problema de representar os outros ao mesmo tempo em que utilizam
argumentos para defender a autenticidade da representação.

16
SERCEAU, La conception «rouchienne» du cinéma-verité. p. 115.
17
Recursos voltados para a produção do convencimento através do discurso narrativo fílmico.

41
Este modo comporta em si a idéia dos documentários que trazem questões. O modo
reflexivo adveio de uma necessidade de tornar mais visíveis as convenções de
representação, direcionando a atenção do espectador tanto para o que se narra quanto para
os efeitos daquilo que é narrado.
Trata-se do documentário-argumento que, ao trazer questionamentos de um modo
especial e próprio, torna-se lugar de debate das práticas vigentes e anteriores mais
comumente adotadas na produção de documentários. O documentário-argumento retoma
no seu interior aqueles problemas que outros realizadores costumam enfrentar e os deixam
explícitos para o espectador.
No modo reflexivo, o cineasta não está apenas preocupado com o que negocia em
seus encontros com os personagens, mas sobretudo com a sua audiência no sentido de
deixar claro os problemas, as dificuldades de representar o mundo. Desafiando técnicas e
convenções, os documentários reflexivos depõem contra modos de representação já
assimilados e, com essa atitude, buscam provocar o espectador despertando nele uma
forma mais questionadora e consciente em sua relação com os documentários.
Certamente Robert Flaherty em Nanook of the North, não estava preocupado com
isso, por exemplo. O controle do autor é imperceptível para uma audiência desavisada.
Raros são os momentos em que percebemos a presença manipuladora18 da câmara de
Flaherty, levados que somos por suas estratégias ilusionistas a acreditar na realidade
apresentada.
O mérito do cineasta é, em parte, esse mesmo: convencer a audiência. Flaherty
estava muito mais concentrado na tarefa de reconstruir antigos hábitos culturais da
comunidade dos Inuit, não importando que, para isso, tivesse de edificar cenários
improvisados no gelo, dirigir seus personagens para encenar situações e, por fim, deixar
tudo isso bem claro para o seu espectador.
Isto que não fez Flaherty é o metacomentário, através do qual o cineasta tenta
persuadir o seu espectador explicando a razão de ter optado por aquela (e não outra) forma
de apresentação do argumento sobre seu objeto. No metacomentário encontra-se respaldo,
talvez porque, tal qual afirma Claudine de France, “somente a palavra tem condições de
atenuar os efeitos da não-transparência metodológica daquilo que foi filmado”.19 Estes
elementos são facilmente identificados nos filmes de Arthur Howes Nuba Conversations
(Conversando com os Nubas, Arthur Howes & Amy Hardie,1999) e Benjamin and his

18
Esta palavra deve ser interpretada com o mesmo cuidado com que se utiliza aqui. Manipular no sentido de
ter controle sobre, sem intenção de deturpar.
19
DE FRANCE, Antropologia fílmica..., p.26.

42
brother: the lost boys (2002). Neste último, Howes não hesita em fazer uso do
metacomentário ou comentário diferido20 para esclarecer os procedimentos adotados frente
ao desenrolar da história que conta.
Os filmes de Jorge Furtado também são bons exemplos do cinema documentário
auto-reflexivo. Se a paródia e a ironia são recursos utilizados com freqüência no
documentário auto-reflexivo, não são os únicos e nem os mais significativos. Na obra de
Furtado, eles aparecem destacados, mas refletem uma marca de estilo do próprio diretor,
mais do que um protocolo a ser seguido por qualquer documentarista interessado em
problematizar os modos de representar a realidade.
Silvio Da-Rin chega a fazer uma crítica a esse gênero perseguido por Furtado,
especialmente no mais citado, Ilha das Flores (1989) e em A Matadeira (1994). Para o
autor, o gênero encaixa-se numa “crise auto-reflexiva da representação”21 onde
realizadores utilizam as convenções do documentário para criticá-las. Reflete o “quadro de
uma estética pós-moderna, marcada pela profusão de referências a gêneros, pela falta de
profundidade histórica e pela adoção da ironia como um viés crítico difuso, que tem como
alvo privilegiado os grandes sistemas de valores políticos e morais”22.
Não há porque apresentar um modelo definitivo de técnicas e métodos, do ponto de
vista de uma ética documentarista objetiva já que, mesmo conhecendo esses critérios
normativos, é impossível representar a realidade objetivamente. Inclusive, conhecer os
critérios normativos pode contribuir para um forjamento mais sofisticado da realidade que
se deseja apresentar.
Furtado comprova essa possibilidade quando, em A Matadeira, mostra a
possibilidade de argumentar sobre a perspectiva de quem conta a história sendo
convincente e bastando, para isso, recorrer a métodos narrativos clássicos, como os
defendidos por teóricos e cineastas, a exemplo de Sergei Eisenstein, Béla Balázs, Siegfried
Kracauer, André Bazin, Jean Mitry, Christian Metz e Henri Agel, entre outros. É apenas o
tom irônico utilizado por Furtado na condução do filme que nos alerta para a crítica
subjacente ao massacre de Canudos, tema da narrativa.

20
O comentário diferido é introduzido durante a montagem e não durante a própria filmagem (comentário
imediato). Cf. DE FRANCE, Antropologia fílmica..., p.26.
21
DA-RIN, loc. cit., p.86.
22
Id.

43
6. Modo performativo

Assim como ocorre em outros modos de representação, o modo performativo


também traz questões sobre o conhecimento, mas com uma diferença. Neste modo de
representação defende-se que o conhecimento incorporado, isto é, a experiência individual,
pode permitir uma compreensão de processos mais amplos numa sociedade, tal qual
explica Nichols: “The expressive dimension may be anchored to particular individuals, but
it extends to embrace a social, or shared, form of subjective response.” 23
Valendo-se de uma forma mais subjetiva de representação, o modo performativo
utiliza estruturas narrativas não convencionais e técnicas expressivas mais utilizadas na
ficção. O presente e o imaginário aparecem combinados aí e a perspectiva pessoal (às
vezes a do próprio cineasta, nos casos de filmes autobiográficos) é sublinhada. A música,
a câmara subjetiva24, os flashbacks e as imagens congeladas são também usados com
freqüência no modo performativo.
Ao quebrar certas convenções experimentando novas formas de estruturar
narrativas e utilizando técnicas ficcionais, o modo performativo parece assemelhar-se ao
modo poético. Mas antes que essa confusão se instaure, é preciso dizer que o modo poético
empreende essas transformações pelo simples desejo de experimentá-las e de provar
alternativas dentro do que considera opções estéticas preferíveis na realização de um
documentário e exposição de um argumento.
O modo performativo está menos preocupado com a forma, embora se sirva
dessas “alternativas” estruturais e estéticas para questionar as maneiras de alcançar o
conhecimento. Nesse sentido é que o modo performativo dá destaque às experiências de
indivíduos e ao conhecimento alcançado por cada um deles.
Consiste em um conhecimento que poderá ser compartilhado por outros uma vez
entendida a possibilidade de encontrar em vivências isoladas, aspectos comuns à de
indivíduos dentro da sociedade. Por mais específica que seja uma experiência, haverá ali
aspectos identificados como similares aos de outras pessoas. Essa identificação é, por
vezes, o elemento-chave para o engajamento do espectador com o filme.
O modo performativo admite uma complexidade no nosso conhecimento do
mundo e é por isso que enfatiza as dimensões subjetivas e afetivas no interior do filme. O
ato de enfatizar essas dimensões apela para uma maior sensibilização do espectador e, ao

23
“A dimensão expressiva pode estar ancorada a indivíduos específicos, mas se estende para abarcar uma
forma social ou compartilhada de resposta subjetiva”. (NICHOLS, Introduction..., p.133).
24
O espectador vê o que o personagem vê.

44
mesmo tempo, busca estimular um engajamento maior por parte de quem assiste um tema
se desenrolar sob o ponto de vista daquele que compartilha sua experiência. Ou nas
palavras de Nichols, “Performative documentary restores a sense of magnitude to the
local, specific, and embodied. It animates the personal so that it may become our port of
entry to the political.” 25
Por fim, devemos dizer que cada filme realizado segue um objetivo distinto. Se
levarmos isto em consideração, será sempre com maior facilidade que compreenderemos
porque as abordagens são tão variadas, assumem diferentes graus de importância e só
funcionam se aplicadas no interior das disciplinas (etnografia, antropologia fílmica) ou
atividades (jornalística, por exemplo) e observadas as finalidades (às vezes comerciais) que
as orientam.
É preciso observar que há filmes que exploram mais de um modo de representação.
Isso demonstra como essa tipologia de Bill Nichols não é rígida, mas, ao contrário, atesta
os diferentes modos de abordagem fílmica. A classificação anseia uma ordem, organização
que facilite a compreensão da flexibilidade, por assim dizer, do gênero documentário. Os
filmes jamais estão limitados a um modo de representação. O cineasta apenas escolhe por
explorar mais um do que outro no interior da narrativa, sem abrir mão por completo de
todos os modos que dispõe.

25
“O documentário performativo restaura um senso de magnitude ao local, específico e incorporado.
Estimula o pessoal para que este se transforme na nossa porta de entrada para o político”. (NICHOLS,
Introduction..., p. 137).

45

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