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O Divã do Pobre 1 Poderíamos falar


Psicanálise e cinema aqui de film viewing-
acts por simetria aos
speech-acts
estudados por J.
Os psicanalistas sempre desconfiaram um pouco do cinema: de Searle
preferência voltaram suas atenções a outras formas de expressão. O
2 "Oferecem-nos
inverso, no entanto, não é verdade; os apelos do cinema à belas imagens, mas
psicanálise foram inúmeros, a começar pela proposta de Mister para nos cevar: ao
Goldwin a Freud: 100.000 dólares para tratar dos amores célebres! mesmo tempo que
cremos nos estar
Esta dissimetria não se deve somente a questões de regalando,
responsabilidade; está ligada mais fundamentalmente ao fato de que absorvemos a
a psicanálise nada pode compreender dos processos inconscientes ideologia necessária à
reprodução das
postos em ação pelo cinema. Ela já tentou compreender as relações de produção.
analogias formais entre o sonho e o filme - para René Laforgue, Nos dissimular a
realidade histórica,
tratar-se-ia de uma espécie de sonho coletivo, para Lebovici, de um camuflam-na sob uma
sonho para fazer sonhar. Ela tentou assimilar a sintagmática fílmica verossimilhança
ao processo primário, mas jamais se aproximou - e não foi sem convencionada, que
não somente é
motivos - do que faz a especificidade do cinema: uma atividade de tolerável, mas é
modelação do imaginário social, irredutível aos modelos familiaristas fascinante; de forma
e edipianos, mesmo quando o cinema coloca-se deliberadamente ao que não tenhamos
nem mais a
seu serviço. Por mais que atualmente a psicanálise se empanturre necessidade de
de lingüística e de matemática, ela continua a repisar as mesmas sonhar, e nem mesmo
generalidades sobre o indivíduo e a família, enquanto que o cinema o direito, pois nossos
sonhos poderiam ser
está ligado ao conjunto do campo social e à história. Algo de não-conformistas.
importante se passa no cinema; ele é o local de investimentos de Nos dão sonhos
prontos que não
cargas libidinais fantásticas, por exemplo, daquelas que se perturbarão ninguém:
estabelecem ao redor destas espécies de complexos que constituem fantasmas sob
o faroeste racista, o nazismo e a resistência, o american way of life, medida, uma gentil
fantasmagoria que
etc. E é preciso admitir que Sófocles, em tudo isto, não tem mais nos põe em dia com
quase nada a ver! O cinema transformou-se numa gigantesca nosso inconsciente.
máquina de modelar a libido social, enquanto que a psicanálise Pois entende-se que
é preciso dar-lhe o
nunca foi mais que um pequeno artesanato reservado a elites devido, ao nosso
seletas. inconsciente, desde
que nos tornamos
suficientemente
Vamos ao cinema para suspender, por um certo tempo, os modos de sabidos para
comunicação habituais. O conjunto de elementos que constituem reivindicá-lo e
esta situação concorre para esta suspensão. Qualquer que seja o reivindicar por ele. O
cinema, hoje em dia,
caráter alienante do conteúdo de um filme ou de sua forma de põe à nossa
expressão, o que ele visa fundamentalmente é a produção de um disposição um
certo tipo de comportamento que, por falta de nome melhor, inconsciente a
domicílio
chamarei aqui de performance cinematográfica.1 É porque o cinema perfeitamente
é capaz de mobilizar a libido sobre este tipo de performance que ele ideologizado" (Mickel
Dufrenne, in Cinéma:
pode colocar-se a serviço daquilo que Mikel Dufrenne chamou de théories, lectures,
"inconsciente-a-domicílio"2. Consideradas sob o ângulo da repressão Klincksieck, 1973).
inconsciente, a performance cinematográfica e a performance
psicanalítica (o "ato analítico") talvez mereçam ser comparados. A 3 Com sua teoria do
pequeno objeto a,
psicanálise da belle époque deixou crer por muito tempo que se Lacan chegou a tratar
propunha a liberar as pulsões dandolhes a palavra; na verdade, ela os objetos parciais
só aceitou afrouxar as tenazes do discurso dominante na medida como entidades
lógico-matemáticas
direta em que pretendia dotar disciplinar, adaptar estas pulsões às ("Existe um matema
normas de um certo tipo de sociedade, melhor que jamais o havia da psicanálise").
feito a repressão ordinária. Afinal de contas, o discurso que se
divulga nas sessões de análise não é muito mais "liberado" que 4 Seria necessário
retomar aqui a análise
aquele que se experimenta nas sessões de cinema. A pretensa de Bettetini e de
liberdade de associação de idéias não passa de um logro que Casetti que
mascara uma programação, uma modelação secreta dos distinguem a noção
de iconicidade e a de
enunciados. Sobre a cena analítica, assim como sobre a tela, analogismo: a
entende-se que nenhuma produção semiótica de desejo deverá ter sintagmática fílmica,
incidência real. Tanto o cineminha da análise quanto a psicanálise de de alguma maneira,
"analogiza" os ícones,
massa do cinema prescrevem as passagens à ação, os acting-out. que são veiculados
Os psicanalistas, e em certa medida os cineastas, gostariam de ser pelo inconsciente. "La
Sémiologie des
considerados como criaturas fora do tempo e do espaço, como moyens de
criadores puros: neutros, apolíticos, irresponsáveis... E, em certo communication audio-
sentido, talvez tenham razão, já que de fato eles não têm realmente visuels et le problème
de l'analogie",
domínio sobre os processos de modelação dos quais são os Cinéma: théories,
agentes. O gabarito de leitura psicanalítica pertence hoje tanto ao lectures, Klincksieck,
analista quanto ao analisado. Ele gruda à pele de qualquer um - 1973)

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"Olhe, você fez um lapso" - ele se integra às estratégias 5 Metz propõe um


recenseamento das
intersubjetivas e mesmo aos códigos perceptivos: preferem-se matérias de
interpretações simbolicas como ameaças, "vêem-se" falos, retornos expressão postas em
ao seio materno, etc. A interpretação agora funciona tão ação no filme:
- o tecido fônico da
naturalmente que, para um psicanalista prevenido, a melhor e mais expressão que remete
segura delas ainda é o silêncio; um silêncio sistematicamente à linguagem falada (e
que poderíamos
batizado de pura escuta analítica. "Sobre a tela de meu silêncio, teus classificar entre as
anunciados assumirão seu próprio relevo". Cada qual com seu semiologias
cinema... Na verdade, o vazio da escuta responde aqui a um desejo significantes);
- o tecido sonoro mas
esvaziado de qualquer conteúdo, a um desejo de nada, a uma não fônico que remete
impotência radical, e nestas condições, não é de espantar que o à música instrumental
complexo de castração se tenha transformado no objetivo último da (semiologia
assignificante);
cura, e mesmo em sua referência constante, na pontuação de cada - o tecido visual e
uma de suas seqüências, no cursor que traz eternamente o desejo colorido que remete à
de volta a seu grau zero. O psicanalista, assim como o cineasta, é pintura (semiótica
mista, simbólica e
levado por seu objeto. O que se espera de um e de outro é a assignificante);
confecção de um certo tipo de droga que, apesar de - o tecido visual mas
não colorido que
tecnologicamente mais sofisticada que os "pitos" tradicionais, não remete à fotografia
deixa de ter por função transformar o modo de subjetivação dos que em preto e branco
a ela são afeitos: capta-se a energia de desejo para retorná-la contra (semiótica mista,
simbólica e
si própria, para anestesiá-la, para cortá-la do mundo exterior, de assignificante);
forma que ela cesse de ameaçar a organização e os valores do - os gestos e os
sistema social dominante. Mas o que gostaríamos de mostrar é que movimentos do corpo
humano, etc.
estas drogas não são da mesma natureza; globalmente, visam os (semiologia e
mesmos objetivos, mas a micropolítica do desejo que elas põem em simbólica). Langage
ação, as combinações semióticas sobre as quais elas se apoiam, et cinéma, Paris,
Larousse, 1972).
são totalmente diferentes.
6 O psicanalista fica
Talvez se imagine que estas críticas visam um certo tipo de um pouco na posição
psicanálise e que, na verdade, não digam respeito à corrente do espectador no
cinema: assiste ao
estruturalista, na medida em que esta não mais considera que a desenrolar de uma
interpretação deva deprender-se de paradigmas de conteúdo - como montagem que se
era o caso com a teoria clássica dos complexos parentais - mas sim fabrica em sua
intenção.
de um jogo de universais significantes, independentemente das
significações que eles possam engendrar. Mas será que podemos 7 Com a televisão, o
realmente crer na psicanálise estruturalista quando ela pretende ter efeito de
renunciado a modelar e tornar traduzíveis as produções de desejo? desterritorialização
parece atenuado, mas
O inconsciente dos freudianos ortodoxos se organizava como um talvez ele seja ainda
complexo cristalizando a libido sobra uma série de elementos mais sorrateiro:
heterogêneos: biológicos, familiares, sociais, éticos, etc. O complexo banhamo-nos num
mínimo de luz, a
de Édipo, por exemplo, à parte seus componentes traumáticos reais máquina está a nossa
ou imaginários, baseava-se na divisão de sexos e na de grupos frente, como um
amigável interlocutor,
etários. Considerava-se tratar-se aí de bases objetivas a partir das está-se em família,
quais a libido deveria se exprimir e se finalizar. Ainda hoje, uma vsita-se em carro de
interrogação política sobre estas "evidências" poderá parecer a luxo as profundezas
abissais do
muitos como completamente fora de propósito. No entanto, todo inconsciente, e logo
mundo conhece inúmeras situações em que a líbido recusa estas se passa à
"evidências", contorna a divisão de sexos, ignora as interdições publicidade e às
notícias do dia. A
ligadas à separação por grupos etários, confunde as pessoas como agressão é, de fato,
que por prazer, compõe a seu gosto as constelações de traços ainda mais violenta
faciais às quais se fixa, e até mesmo situações em que, que em outro meio,
nos dobramos
sistematicamente, tende a passar ao largo das oposições exclusivas completamente as
entre o sujeito e o objeto, e entre o Ego e o outro. Devemos coordenadas
considerar, por definição, que estas não passam de situações sociopolíticas, a um
tipo de moderação,
perversas, marginais ou patológicas, que precisam ser interpretadas sem o qual as
e adaptadas com referência às boas "normas"? É verdade que em sociedades industriais
capitalistas não
sua origem, o estruturalismo lacaniano ergueu-se contra um tal poderiam mais
realismo ingênuo, em particular nas questões que giravam em torno funcionar.
do narcisismo e da psicose, e que ele entendia romper radicalmente
com uma prática da cura inteiramente centrada sobre a remodelação
do Ego. Mas, ao desneutralizar o inconsciente, ao liberar seus
objetos de uma psicogênese muito restrita, ao "estruturá-los como
uma linguagem",3 ele não a levou também a romper suas amarras
personológicas e a se abrir ao campo social, aos fluxos cósmicos e
semióticos de qualquer natureza. Não se remetem mais as
produções de desejo a uma bateria de complexos em que tudo se
encaixa, mas continua-se a interpretar cada uma de suas conexões
a partir de uma única e mesma lógica do significante cujas chaves
seriam o falo e a castração. Renunciou-se à mecânica sumária das

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interpretações de conteúdo ("o guarda-chuva quer dizer... ") e das


fases de desenvolvimento (os famosos "retornos" à fase anal, etc.),
não se trata mais do pai e da mãe, fala-se agora no nome do pai, no
grande Outro, mas continua-se sempre distante da micropolítica do
desejo sobre a qual se baseia, por exemplo, a diferenciação dos
sexos, ou a alienação das crianças nos guetos do familiarismo. As
lutas de desejo não poderiam ser cincunscritas somente ao campo
do significante mesmo no caso de "pura" neurose significante, como
a neurose obsessiva - elas sempre extravasam para os campos
somáticos, sociais, econômicos, etc. E, a menos que se considere
que o significante encontra-se em tudo e em qualquer coisa, temos
que admitir que restringimos singularmente o papel do inconsciente
a ponto de considerá-lo apenas sob o ângulo dos encadeamentos de
significantes que ele põe em ação. "O inconsciente se estrutura
como uma linguagem". Claro! Mas por quem? Pela família, pela
escola, pela caserna, pela fábrica, pelo cinema e, nos casos
especiais, pela psiquiatria e pela psicanálise. Quando o
submetemos, quando chegamos a esmagar a "polivocidade" de seus
modos de expressão semióticos, quando o encadeamos a um certo
tipo de máquina semiológica, então sim, o inconsciente acaba por se
estruturar como uma limguagem! E se torna bem comportadinho. E
põe-se a falar a língua do sistema dominante. Não a língua
cotidiana, mas uma língua especial, sublimada, psicanalitizada. Não
somente ele resignou-se com sua alienação nos encadeamentos
significantes, como ainda pelos cada vez mais significantes! Ele não
quer mais nada com o resto do mundo e com os outros modos de
semiotização. Qualquer problema um pouco mais atormentador
encontrará nele, se não a sua solução, ao menos uma tranqüilizante
colocação em suspenso nos jogos do significante. O que resta, por
exemplo, neste nível do significante, da alienação milenar das
mulheres pelos homens? Para a língua dos lingüistas, vestígios
inocentes, como a inocente oposição do masculino e do feminino; e
para a dos psicanalistas, miragens ao redor da presença/ausência
do falo. A cada tipo de performance lingüística, a cada cotação do
"grau de gramaticalidade" de um enunciado, corresponde uma certa
situação de poder. A estrutura do significante jamais é
completamente redutível a uma pura lógica matemática, ela liga-se
sempre às diversas máquinas sociais repressivas. Uma teoria dos
universais, tanto na lingüística como na economia, na antropologia
ou na psicanálise, só conseguirá obstaculizar uma exploração real
do inconsciente, vale dizer, das constelações semióticas de qualquer
natureza, das conexões de fluxos de qualquer natureza, das
relações "de força e das restrições de qualquer natureza, que
constituem as combinações de desejo.

A psicanálise estruturalista certamente não poderá nos ensinar muito


mais sobre os mecanismos inconscientes que são postos em ação
pelo cinema, ao nível de sua organização sintagmática, do que a
psicanálise ortodoxa ao nível de seus conteúdos semânticos. Mas
talvez o próprio cinema pudesse ajudar-nos a compreender a
pragmática dos investimentos inconscientes no campo social. Com
efeito, o inconsciente, no cinema, não se manifesta da mesma forma
que sobre o divã: ele escapa parcialmente à ditadura do significante,
ele não é redutível a um fato de língua, ele não respeita mais (como
continua a fazê-lo a transferência psicanalítica), a dicotomia clássica
da comunicação entre o locutor e o ouvinte. (Aliás seria necessário
colocarmos a questão de saber se esta última é simplesmente posta
entre parêntesis, ou se nesta ocasião não se torna conveniente o
reexame das relações entre o discurso e a comunicação. Talvez,
afinal de contas, a comunicação entre um locutor e um ouvinte
discerníveis não seja mais que um caso particular, um caso limite, do
exercício do discurso. Talvez os efeitos de dessubjetivação e de
desindividualização da enunciação que são produzidos pelo cinema
ou por situações similares (drogas, sonhos, paixões, criações,
delírios, etc.) representem apenas casos excepcionais com relação
ao caso geral que se supõe ser o da comunicação intersubjetiva
"normal" e da consciência "racional" da relação sujeito-objeto. Aqui é
a própria idéia de um sujeito transcendental da enunciação que
deveria ser posta em questão e, correlativamente, a separação entre

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o discurso e a língua ou a dependência dos diversos modos de


performances semióticas a uma pretensa competência semiológica
universal. O sujeito consciente de si mesmo, "mestre de si como do
univeirso", não deveria mais ser considerado como um mero caso
particular - o de uma espécie de loucura normal. A ilusão consiste
em crer que existe um sujeito, um sujeito único e autônomo
correspondendo a um indivíduo, quando o que está em jogo é
sempre uma multidão de modos de subjetivação e de semiotização.
É claro, não é por isto que o cinema escapa da contaminação pelas
significações do poder, longe disto! Mas as coisas com ele não se
passam da mesma forma que com a psicanálise ou com as técnicas
artísticas bem policiadas. O inconsciente no cinema manifesta-se a
partir de combinações semióticas irredutíveis a uma concatenação
sintagmática que o disciplinaria mecanicamente, que o estruturaria
segundo planos [de expressão e de conteúdo) rigorosamente
formalizados. O cinema é feito de elos semióticos assignificantes, de
intensidades, de movimento, de multipliicidade, que tendem
fundamentalmente a escapar ao esquadrinhamento significante, e
que se rodeiam apenas num segundo momento, pela sintagmática
fílmica que lhes fixa gêneros, que cristaliza sobre eles personagens
e estereótipos comportamentais de maneira a homogeneizá-los com
os campos semânticos dominantes.4 Este excesso da expressão
sobre o conteúdo marca certamente o limite de uma comparação
possível entre a repressão do inconsiciente no cinema e na
psicanálise. Um e outro seguem fundamentalmente a mesma
política, mas tanto o que está em jogo, quanto os meios, são
distintos. A clientela do psicanalista se presta por si própria à
empresa de redução significante, enquanto que o cinema deverá,
por um lado, manter-se em permanente escuta das mutações do
imaginário social, e por outro, mobilizar toda uma indústria, toda uma
série de poderes e de censuras, para atingir a proliferação
inconsciente que ele ameaça detonar. A linguagem no cinema não
funciona da mesma maneira que na psicanálise; ela não faz a lei, ela
é apenas mais um dentre outros meios, um instrumento dentro de
uma orquestração semiótica complexa. Os componentes semióticos
do filme se resvalam uns aos outros, sem jamais se fixarem e se
estabilizarem, por exemplo, numa sintaxe profunda dos conteúdos
latentes e dos sistemas transformacionais que chegariam na
superfície, a conteúdos manifestos. Significações racionais,
emotivas, sexuais - eu preferiria dizer intensidades - são
constantemente veiculadas no cinema pelos "traços de matéria de
expressão" heterogêneos (retomando a Christian Metz uma fórmula
que ele próprio forjou a partir de Hjelmslev). 'Os códigos se
emaranham sem que nenhum jamais consiga a preeminência sobre
os demais, sem constituir "substância" significante; passa-se, num
vaivém contínuo, de códigos perceptivos a códigos denotativos,
musicais, conotativos, retóricos, tecnológicos, econômicos;
sociológicos, etc.5 Umberto Eco já havia notado que o cinema não
se submete a um sistema de dupla articulação, e isto o havia
conduzido até a tentar encontrar-lhe uma terceira. Mas sem dúvida é
preferível seguir Metz que considera que o cinema escapa a todo
sistema de dupla articulação, e eu acrescentaria por minha vez, a
todo sistema elementar de codificação significativa. As significações
no cinema não se codificam diretamente numa máquina que
entrecruza eixos sintagmáticos e eixos paradigmáticos; mas derivam
sempre, num segundo momento, de restrições exteriores que as
modelam. Se o cinema mudo, por exemplo, pode exprimir de uma
maneira muito mais abrupta e autêntica do que o falado, as
intensidades de desejo em suas relações com o campo social, não é
porque ele fosse menos rico no plano da expressão, mas sim porque
o roteiro significante ainda não havia tomado posse da imagem, e
que, nestas condições, o capitalismo ainda não havia tirado dele
todo o proveito que poderia. As invenções sucessivas do cinema
falado, da cor, da televisão, etc., na medida em que enriqueciam as
possibilidades de expressão do desejo, levaram o poder a reforçar
seu controle sobre o cinema, e mesmo a servir-se dele como
instrumento privilegiado. É interessante, sob este ponto de vista,
constatar a que ponto a televisão não somente não absorveu o

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cinema, como ainda foi obrigada a sujeitar-se à fórmula do filme,


cuja potência, por conseqüência, nunca foi tão grande.

O cinema comercial portanto, não é simplesmente uma droga a


baixo preço. Sua ação inconsciente é profunda, talvez mais que a de
qualquer meio de expressão. A seu lado, a psicanálise pouco
representa! O efeito de dessubjetivação na análise não consegue
abolir, como o faz parcialmente o cinema, a individualização
personológica da enunciação. Na psicanálise, falamos o discurso da
análise; dizemos a alguém o que acreditamos que ele gostaria de
ouvir, nos alienamos buscando-nos fazer valer frente a ele. No
cinema, não temos mais a palavra, fala-se em seu lugar; dirigem-nos
o discurso que a indústria cinematográfica imagina que gostaríamos
de ouvir;6 uma máquina nos trata como uma máquina, e o essencial
não é o que ela nos diz, mas esta espécie de vertigem de abolição
que nos provoca o fato de assim sermos maquinados. Como as
pessoas estão desagregadas, e como as coisas se passam sem
testemunho, não temos vergonha de nos abandonarmos assim. O
importante aqui, mais uma vez, não é a semântica ou a sintaxe do
filme, mas as componentes pragmáticas da performance
cinematográfica. Pagamos por um lugar no divã para nos fazermos
invadir pela presença silenciosa de um outro - se possível alguém
distinto, alguém de classe nitidamente superior à nossa - enquanto
que pagamos por um lugar no cinema para nos fazermos invadir por
qualquer pessoa, e para nos deixarmos levar em qualquer espécie
de aventura, em encontros em princípio sem amanhã. Em princípio!
Porque na verdade, a modelação que resulta desta vertigem a baixo
preço não se dá sem deixar vestígios: o inconsciente, se revê
habitado por índios, cowboys, tiras, gangsters, belmondos e marilyn
monroes... É como o tabaco ou a cocaína, só se consegue dar-se
conta de seus efeitos se é que se consegue - quando já se está
complenamente viciado. E esta droga, hoje em dia, é administrada
em doses maciças às crianças, antes mesmo do aprendizado da
linguagem.

Mas a vantagem da cura psicanalítica não é justamente evitar tal


promiscuidade? A interpretação e a transferência não tem por função
crivar e selecionar o bom do meu inconsciente? Não somos
dirigidos, não trabalhamos com um filtro? Infelizmente este filtro
talvez seja ainda mais alienante que qualquer psicanálise selvagem!
Ao sair do cinema, somos obrigados a acordar e a frear mais ou
menos nosso próprio cineminha - toda a realidade social se ocupa
disto - mas a sessão de psicanálise tornou-se interminável,
transborda sobre todo o resto da vida. Geralmente, a performance
cinematográfica é vivida como nada mais que uma simples
distração, enquanto que a cura analítica - e isto se aplica inclusive
aos neuróticos - tornou-se como que uma espécie de promoção
social: ela se faz acompanhar do sentimento de que estamos nos
transformando em algo como um especialista do inconsciente, um
especialista freqüentemente tão poluidor para o ambiente quanto os
outros especialistas do que quer que seja; como os do cinema, por
exemplo! A alienação pela psicanálise advém do fato de que o modo
particular de subjetivação que ela produz organiza-se ao redor de
um sujeito-para-um-outro, um sujeito personológico, superadaptado,
super-treinado nas práticas significantes do sistema. A projeção
cinematográfica, ao contrário, desterritorializa as coordenadas
perceptivas e dêicticas.7 Sem o suporte da presença de um outro, a
subjetivação tende a tornar-se de tipo alucinatório, não se concentra
mais sobre um sujeito, atomiza-se numa multiplicidade de pólos,
mesmo quando se fixa num único personagem. Não se trata,
propriamente falando, nem mais do sujeito de enunciação, já que o
que é emitido por estes pólos não é somente um discurso, mas são
intensidades de toda natureza, constelações de traços faciais,
cristalizações de afetos... Mas as papilas semióticas do inconsciente
nem bem tiveram tempo de ser incitadas, e já o filme ocupa-se em
condicioná-las à massa semiológica do sistema (exemplo: "o objeto
de amor, repitam comigo, sempre equivale a uma propriedade
privada"). O inconsciente, após ter sido posto a nu, torna-se como
um território ocupado. Até mesmo os antigos deuses do familiarismo
são sacudidos, eliminados ou assimilados. É que sua existência
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estava ligada a um certo tipo de territorialização da pessoa, e a uma


certa semiologia da significação. As conjunções semióticas do
cinema passam através das pessoas e da linguagem da
comunicação "normal", a que usamos em família, na escola ou no
trabalho; ela desterritorializa todas as representações. Mesmo
quando parecem dar a palavra a um personagem "normal", a um
homem, a uma mulher ou a uma criança, trata-se sempre de uma
reconstituição, de um marionete, de um modelo fantasma, de um
"invasor" que está pronto a grudar-se ao inconsciente para tomar-lhe
o controle. Não levamos ao cinema, como o fazemos na psicanálise,
nossas lembranças da infância, nosso papai e nossa mamãe; antes,
é quando os reencontramos na saída que não podemos mais nos
impedir de aplicar-lhes as produções de inconsciente
cinematográfico. O teatrinho edipiano do familiarismo não resiste às
injeções destas cápsulas de narratividade que constitui o filme. Todo
mundo já viveu a experiência do quanto o trabalho do filme pode se
seguir diretamente no do sonho - e, no que me tange, notei que a
interação era mais forte quanto pior eu tivesse achado o filme. Isto
não quer dizer que o cinema não seja, ele também, familiarista,
edipiano e reacionário; que não trabalhe na mesma direção
fundamental que a psicanálise; mas ele não é da mesma maneira;
ele não se contenta em assentar as produções de desejo sobre os
encadeamentos significantes; ele conduz uma psicanálise de massa,
ele busca adaptar as pessoas não mais aos modelos em desuso,
arcaicos, do freudismo, mas aos que se implicam pela produção
capitalista (ou socialista-burocrática). E isto, repitamos, mesmo
quando eles reconstituem os modelos dos bons velhos tempos da
família tradicional. Se os meios "analíticos" do cinema são mais
ricos, mais perigosos, porque mais fascinantes, que os da
psicanálise, imaginamos, em contrapartida, que também poderia
abrir-se a outras práticas. Um cinema de combate pode vir a existir,
ao passo que não vislumbramos, no atual estado de coisas, a
possibilidade de uma psicanálise revolucionária. Paradoxalmente, o
inconsciente psicanalítico, ou o inconsciente literário aliás eles
derivam um do outro - é sempre um inconsciente de segunda mão.
O discurso da análise constitui-se em torno dos mitos analíticos: os
mitos individuais devem se enquadrar nestes mitos-referência. Os
mitos do cinema não dispõem deste sistema meta-mito, e a gama de
meios semióticos que põem em ação entra em conexão direta com
os processos de semiotização do espectador. Em uma palavra, a
linguagem do cinema e dos media audiovisuais é viva, enquanto que
a da psicanálise, não fala há tanto tempo quanto qualquer língua
morta. Do cinema podemos esperar o melhor e o pior, ao passo que
da psicanálise não se pode mais esperar grande coisa! Nas piores
condições comerciais, ainda se podem produzir bons filmes, filmes
que modifiquem as combinações de desejo, que destruam
estereótipos, que nos abram o futuro, enquanto que, já há muito
tempo, não existem mais boas sessões de psicanálise, nem boas
descobertas, nem bons livros psicanalíticos.

Félix Guattari

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