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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ

FACULDADE DE ARTES DO PARANÁ

CAIO BARROS DE MOURA SOARES

O CINEMA SURREALISTA COMO INSTRUMENTO COLONIZADOR DO


INCOSCIENTE.

Miguel Pereira
2021
Caio Barros de Moura Soares

O CINEMA SURREALISTA COMO INSTRUMENTO COLONIZADOR DO


INCOSCIENTE.

Artigo apresentado às disciplinas de Pesquisa I


e História do Cinema I, do Bacharelado em
Cinema e Audiovisual da Unespar –
Universidade Estadual do Paraná.
Orientadora: Profª. Dra. Juslaine Abreu
Nogueira
Orientador: Prof. Dr. Fábio Luciano Francener
Pinheiro

Miguel Pereira
2021
O CINEMA SURREALISTA COMO INSTRUMENTO COLONIZADOR DO
INCOSCIENTE.1

Caio Barros de Moura Soares2

RESUMO: Através do presente artigo, busco analisar o desdobramento que o


Surrealismo sofreu, sendo adaptado para o pensamento mercadológico e sua
dinâmica publicitária. Com uma abordagem voltada para o cinema, coloco em diálogo
a denúncia ao Surrealismo feita por Hakim Bey com alguns conceitos teóricos da
psicologia analítica. Como objeto de estudo, analiso em objetos fílmicos publicitários
o funcionamento do surrealismo como ferramenta de propaganda.
Palavras-chave: Surrealismo. Cinema. Inconsciente. Publicidade. Propaganda.

ABSTRACT: Through this article, I seek to analyze the unfolding that Surrealism
suffered, being adapted to the market thinking and its advertising dynamics. With a
cinema-oriented approach, I put Hakim Bey's denunciation of Surrealism into dialogue
with some theoretical concepts of analytical psychology. As an object of study, I
analyze in advertising filmic objects the functioning of surrealism as a propaganda tool.
Keywords: Surrealism. Cinema. Unconscious. Publicity. Advertising.

O Surrealismo é um movimento artístico e literário pautado na valorização do


universo onírico e não à toa teve seu início logo depois de uma forte consolidação do
estudo psicanalítico, que a grosso modo introduz ao pensamento de sua época o
conceito de inconsciente na psique humana.
O cinema não demorou para aderir ao movimento, já que em cerca de 4 anos
após a publicação do Manifesto Surrealista por André Breton3, o filme “La Coquille et
le Clergyman”4 foi lançado, sendo considerado o marco inicial do Cinema Surrealista.
A narrativa audiovisual unida à proposta deste tipo de cinema se mostrou muito
potente, justamente pela facilidade que o cinema tem em representar de forma
mimética a experiência onírica.

1
Artigo apresentado às disciplinas de Pesquisa I e História do Cinema I, do Bacharelado em Cinema e
Audiovisual da Unespar – Universidade Estadual do Paraná, sob orientação da Profa. Dra. Juslaine Abreu
Nogueira e do Prof. Dr. Fábio Luciano Francener Pinheiro. Miguel Pereira, 2021.
2
Estudante do curso de Cinema e Audiovisual da Unespar – Universidade Estadual do Paraná.
3
Escritor francês, poeta e teórico do Surrealismo.
4
Dirigido por Germaine Dulac, o filme apresenta uma narrativa onírica, utilizando o automatismo psíquico
proposto pelo Surrealismo.
2

Para melhor compreensão deste artigo, é necessário ressaltar que é pela


experiência dos sonhos que o inconsciente se manifesta com mais frequência e com
menos ruídos externos, como afirma Sigmund Freud5:

O simbolismo onírico se estende muito além do âmbito dos sonhos; não é


peculiar aos sonhos, mas exerce uma influência dominante similar sobre a
representação nos contos de fadas, nos mitos e lendas, nos chistes e no
folclore. Permite-nos rastrear as íntimas ligações existentes entre os sonhos
e estas últimas produções. Não devemos supor que o simbolismo onírico seja
uma criação do trabalho do sonho; com toda a probabilidade, ele é uma
característica do pensar inconsciente que fornece ao trabalho do sonho o
material para a condensação, o deslocamento e a dramatização. (FREUD,
1900, p. 228)

Em seus estudos, Freud também observa que as estruturas psíquicas dos


desejos estão diretamente ligadas ao funcionamento do inconsciente e por isso
costumam ser expostas nos sonhos. Muitas vezes, no sonho são dramatizados os
desejos reprimidos pelo sonhador (FREUD, 1900, p.224).
Perspicaz, Hakim Bey 6percebe que a potência do Surrealismo esteve em
função do pensamento mercadológico desde sua origem e denuncia:

Todos os projetos para a “libertação dos desejos” (surrealismo), que


permanecem emaranhados na matriz do Trabalho, podem levar apenas ao
mercantilismo do desejo. O neolítico começa com o desejo por bens
(excedente da agricultura), caminha para a produção do desejo (indústria) e
termina com a implosão do desejo (propaganda). A libertação surrealista do
desejo, apenas dos seus feitos estéticos, não vai além de ser um subconjunto
da produção [...] (BEY, 1985, p.57).

Hakim percebe que uma vez o Surrealismo sendo configurado pela “libertação
dos desejos”, em um ambiente altamente contaminado pelos interesses de mercado
como era a sociedade capitalista na década de 20 e ainda é hoje, o Surrealismo
permite a mercantilização dos desejos de forma mais intensa. No mesmo raciocínio,
Hakim Bey observa que ao decorrer do tempo, a estética surrealista foi se tornando

5
Sigmund Freud foi um dos grandes nomes da psicologia analítica, contribuindo com várias obras, como “A
interpretação dos sonhos” datada de 1900.
6
Hakim Bey é um pseudônimo utilizado pelo historiador, filósofo e teórico Peter Lamborn Wilson.
3

uma escolha mais frequente pelos publicitários, por conta de seu caráter altamente
apelativo à natureza do inconsciente humano. (BEY, 1985, p.57).
A Coca-Cola é uma das muitas empresas que utilizam a estética surrealista
como estratégia publicitária. Em uma propaganda7 audiovisual lançada entre os anos
de 2006 e 2007 pela Coca-Cola nas redes de televisão de alguns países, podemos
observar com melhor clareza o funcionamento do surrealismo como ponte para o
inconsciente em função da construção de um desejo, que vem a ser introduzido no
espectador através de uma simulação do sonhar. No pequeno filme publicitário, a
narrativa audiovisual constrói uma imagem fantástica e onírica a respeito de como o
famoso refrigerante é produzido. Ao final, leva o espectador à conclusão de que
comprando o refrigerante, compra-se também toda a fantasia narrada pelo filme.
Analisarei mais a fundo esta mesma dinâmica em outro vídeo publicitário,
dirigido por David Lynch8 em 2000. Nesta campanha, Lynch dirigiu um vídeo9 de 1
minuto que fazia propaganda ao novo console de vídeo-game da Sony, o PlayStation
2.
O vídeo se inicia em preto e branco, narrando uma experiência onírica de
determinado protagonista. Ressalto que é no protagonista onde o espectador se
enxerga e projeta sua subjetividade.
O protagonista caminha por um corredor, onde tem determinadas visões
surreais. Logo no início, o protagonista é atingido no rosto por uma forte chama, que
não o fere. Em uma das visões, uma mulher aparece em uma janela e põe o dedo
indicador sobre a boca, dando uma ordem de silêncio ao protagonista. A seguir, o
personagem principal vê uma figura idêntica a ele mesmo, a qual faz um sinal positivo
com o polegar da mão. Em seguida, uma voz ecoa de forma distorcida, oriunda de um
autofalante, dizendo em inglês: “Nem acordados, nem dormindo. Onde nós
estamos?”. Logo depois, uma neblina toma conta do ambiente. Quando se esvai, o
protagonista se vê em um ambiente diferente, ainda sendo um corredor. Aparecem
sentadas à frente do personagem principal 3 figuras surreais. Uma delas, constituída
por um humanoide vestido de terno com a cabeça de um pato, diz ao protagonista:
“Bem-vindo ao Terceiro Lugar10”. A tela escurece totalmente, então surge a logomarca

7
Disponível no YouTube; https://www.youtube.com/watch?v=AOsbPouHGyo.
8
Produtor, roteirista e diretor norte-americano, conhecido por suas obras surrealistas.
9
Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Laf9vpJMDjA.
10
“O Terceiro Lugar” fez parte desta campanha publicitária como um slogan. Tudo indica que tenha sido
pensado a partir do fato de que o “PlayStation 2” era o terceiro vídeo-game produzido pela Sony.
4

do produto (PS2), pela primeira trazendo cor ao vídeo. Ao fundo, uma voz feminina
ecoa como se gritasse de longe: “PlayStation 2! Bem-vindo ao Terceiro Lugar”. Então,
o filme comercial termina.
O filme pode parecer não ter o menor sentido, mas seu sucesso como
campanha publicitária aponta que os elementos simbólicos representados foram
escolhidos estrategicamente para cumprir a função de introduzir o desejo pelo produto
no espectador. Com noções básicas a respeito da psicologia analítica e do
inconsciente humano, analiso o comercial e deduzo certo sentido a ele.
Em todo o filme, a narração se esforça para transmitir ao espectador que o
ambiente no qual o protagonista se encontra é acima de tudo seguro, embora seja
misterioso. Isso pode ser percebido logo no início, quando uma forte chama não
consegue ferir o rosto do protagonista. Também pode ser percebido quando o
protagonista vê a si mesmo, fazendo um sinal positivo com a mão, sugerindo que não
há motivos para preocupações. Essa noção de segurança, permite que o espectador
se projete no protagonista com mais facilidade, tendo em vista que no universo da
narrativa não existem perigos reais, que normalmente afastariam o espectador da
experiência.
Uma vez projetado no protagonista, o espectador fica mais suscetível à
sugestão implícita do desejo pelo produto, que dialoga diretamente com o
inconsciente. Agora, para entender a dedução a seguir, é necessário certo
conhecimento sobre a simbologia da voz no sonho, bem definida por Carl Jung11,
como cita Jolande Jacobi:

[...] Quando se ouve uma voz num sonho é uma ocorrência das mais
significativas. O Dr. Jung identifica o aparecimento de uma voz num sonho
como uma intervenção do self. Exprime um conhecimento que tem suas
raízes nos fundamentos coletivos da psique. O que é dito pela voz não pode
ser discutido (JACOBI, 1964. p.280).

A partir desta noção, deduzo que a imagem da mulher fazendo sinal de


“silêncio” ao protagonista é uma forma de preparar o personagem (e o espectador)
para a voz que vem a seguir, para que esta seja ouvida sem ser questionada e
interiorizada sem atritos. Então a primeira voz no filme é ouvida, de forma distorcida e

11
Grandioso psicanalista, responsável pelo estudo dos símbolos e arquétipos na psique humana.
5

reverberada, questionando o protagonista sobre o lugar onde ele se encontra. Esse


questionamento é também feito pelo espectador, que quando ouve sua curiosidade
sendo representada no filme, cria ainda mais expectativas para saber a respeito do
lugar em que a narrativa acontece.
Em seguida, uma segunda voz oriunda da figura do pato afirma para o
protagonista que o mesmo está no “Terceiro Lugar”. Agora o espectador transfere sua
curiosidade potencializada para o Terceiro Lugar, querendo saber que lugar é este.
Ao final do filme, pela primeira vez é utilizada a cor, ao apresentar a logo do
vídeo-game (PS2) em tons de azul. Ao fundo, pode-se ouvir uma voz feminina gritando
“Play Station 2: o Terceiro Lugar”. Então, finalmente a curiosidade do espectador é
respondida e o mesmo associa o “Terceiro Lugar” com o universo intrínseco ao
produto, concluindo que a experiência narrada deve ser viabilizada através da compra
do determinado vídeo-game. O comercial faz ainda mais sentido levando em
consideração que o produto em questão revolucionou o mercado de vídeo-games,
sendo o primeiro console a funcionar também como leitor de DVD12. Então o
espectador também desenvolve o desejo pelo produto por conta desta característica,
potencializada pela direção do David Lynch que funciona no comercial como uma
“amostra grátis”.
Este filme analisado gerou um impacto tão grande nos espectadores que
alguns depoimentos podem ser lidos na sessão de comentários do vídeo oficial no
YouTube.

FIGURA 1 – COMENTÁRIOS ALEGANDO IMPACTO DO COMERCIAL EM


QUESTÃO.

12
Digital Versatile Disc.
6

Tradução: Meu deus. Aquele grito no final “PlayStation 2, o Terceiro Lugar!” está gravado no meu
cérebro desde que eu ouvi pela primeira vez incrivelmente nos anos 2000... Eu acho que nunca vou
esquecer. Incrível.

Tradução: Quem mais tem arrepios? Quando ouve “PlayStation 2! O Tereiro Lugar!”
FONTE: secção de comentários do YouTube no vídeo oficial “PlayStation 2 advert:
Welcome To The Third Space” (2021).

Conclui-se que, como aponta Hakim Bey, o Surrealismo definitivamente é


utilizado como estratégia de colonização do inconsciente, sobretudo no cinema,
onde a narrativa audiovisual intensifica a efetividade desta estratégia. Desta forma,
um produtor audiovisual pode, através do caráter surrealista, fazer com que
determinada propaganda se assemelhe a um sonho. Dada tal semelhança, o
inconsciente do espectador é sugerido a interpretar o objeto fílmico como um
produto de si próprio, quando na verdade não é. Assim, a propaganda pode
configurar o inconsciente do espectador, podendo introduzir neste o desejo pelo
produto a ser consumido.

REFERÊNCIAS

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (I). Volume IV. Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. ed. Áustria: Imago, 1996.

BEY, H. Caos: Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares. 1. ed. EUA, New
Jersey: Conrad, 2003.
7

JACOBI, J. et al. O Homem e Seus Símbolos: Concepção e organização de Carl.


G. Jung. 6. ed. Editora Nova Fronteira, 1964.
8
9
10
11

REFERÊNCIAS

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Dudley Nichols, Hagar Wilde, Robert McGowan. Estados Unidos: Rko Radio
Pictures, 1938. (102 min.), son., P&B.

MILDRED Pierce. Direção de Michael Curtiz. Produção de Jerry Wald. Roteiro:


Ranald Macdougall. Estados Unidos: Warner Bros., 1945. (111 min.), son., P&B.

MULVEY, L. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Screen, v. 16, n. 3, 1 set. 1975.

NOW, Voyager. Direção de Irving Rapper. Produção de Hal B. Wallis. Roteiro: Casey
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REBOLLO, J. G. ANTROPOLOGÍA, VISUALIDAD Y REFRACCIÓN: UNA


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BAJO EL CÓDIGO HAYS (1940-1968) / ANTHROPOLOGY, VISUALITY AND
REFRACTION: AN APPROACH ON GENDER REPRESENTATIONS IN
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SHERMAN, Zoë S.. Love triumphs : the production code, sex, and the screwball
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son., P&B.

VAUGHN, S. Morality and Entertainment: The Origins of the Motion Picture


Production Code. The Journal of American History, v. 77, n. 1, jun. 1990.

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