Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Natureza III
2022.2
para 25/12/2022
pedro_guimaraes@id.uff.br
“Em que tempo de vigília vivamos, a arte não peca. Desde tempos imemoriais sua moral
bordejou o abismo da consciência e a voragem da linguagem”.
“Ao contrário, por emoldurar o sublime, o monstruoso, o benéfico, o nefando, a arte injetou na
criação a turbulência anímica, metabolizou a existência, minimizou e magnificou as ações
negativas. Enquanto impunha ao espírito do criador a semente da inquietude, da
inconformidade, da perenidade do verbo”.
RESUMO: Esse trabalho tem por objetivo concatenar a reflexão deleuziana sobre
imagem-movimento — em particular o desdobramento da imagem-afecção, com a
prática cinematográfica. Usa-se para tal tarefa o filme Gritos e Sussurros de Ingmar
Bergman.
1
Permito-me — reconhecendo-me como um néscio aprediz — a realizar uma homenagem muitíssimo
especial a egrégia Nélida Piñon, personagem virgiliana que me conduziu pelas íngremes regiões infernais
e purgatoriais da leitura literária até me conduzir aos átrios do paraíso dos leitores — alvissaras.
1
ABSTRACT: This work aims to link Deleuzian reflection on movement-image — in
particular the development of the affection-image, with cinematographic practice. The
film Whispers and Screams by Ingmar Bergman is used for this task.
Giles Deleuze, sem dúvida, foi um dos filósofos que mais contribuiu para uma
filosofia criativa, uma filosofia-arte. Em seu ofício Deleuze nunca se arrogou a
pretensão de ser um filósofo que inventasse a roda, sua produção — assim como a de
qualquer outro filósofo que se repute com seriedade — foi legatária de uma longínqua
tradição de pensamentos que remontam aos gregos e adiante; não obstante a noção de
ser herdeiro não se tornou um impeditivo para que sua atividade filosófica não
produzisse suas próprias leituras criativas dos múltiplos aspectos da realidade. Deleuze
retomou, comentou e acrescentou sua própria contribuição aos conceitos e obras de
inúmeros filósofos — Nietzsche, Focault, Bergson, Heidegger — algo que evidencia
sua prodigalidade como intelectual criativo que não se limita aos funestos comentários
repetitivos e engessados de obras clássicas — como bem definiu Roberto Machado “seu
pensamento não se restringe à consideração do texto filosófico: fazer filosofia é muito
mais do que repetir ou repensar os filósofos”. (MACHADO, 2012, p.9)
DELEUZE E O CINEMA
2
mesmo tempo estrutura a sua própria arte. O cineasta, nessa concepção, é o artesão que
esculpe os fragmentos imagéticos captados por meio de suas lentes, os manipula,
reorganiza e tece a sua própria obra; essas imagens que o cineasta utiliza como sua
forma de comunicação será postulada por Deleuze em dois conceitos distintos: o de
imagem-movimento e imagem-tempo. E a esse empreendimento Deleuze dedica duas
de suas principais obras filosóficas: Cinema I: A Imagem-Movimento e Cinema II: A
Imagem-Tempo nas quais retoma as noções metafísicas de Henri Bergson sobre
percepção, imagem, tempo e espaço.
IMAGEM-MOVIMENTO: IMAGEM-AFECÇÃO
IMAGEM-AFECÇÃO
3
significação, podendo ser divididas na definição de imagem-afecção como rosto e
primeiro plano e imagem-afecção como qualidades, potências e espaços. (DELEUZE,
1989, p. 102,119) Aqui nos interessa a imagem-afecção como rosto e primeiro plano
dada a circunscrição da empresa ora lavrada.
Deleuze dirá que o primeiro plano — tudo que está posto na frente da
espacialização do plano geral — é o rosto, mas longe de nós esgotar a proficuidade
dessa definição remetendo a designação de rosto ao antropomorfismo a qual geralmente
remetemos. Rosto aqui é um conceito amplos, o conceito de rosticidade dos elementos
que salta à plano primo e possuem suas próprias características, algo que pode ser uma
composição facial humana ou não. Deleuze dará um exemplo para além forma humana
de rosto com o relógio apresentado no primeiro plano em uma película que carrega dois
polos: “os ponteiros animados por micromovimentos” e “mostrador como superfície
receptora imóvel”, tendo a definição de Bergson sobre a expressões dos afetos por
parâmetro que postula a definição de afeto soba condição de “uma tendência motora
sobre um nervo sensível” Deleuze evidencia que cada vez que identificamos esses dois
polos em algo nós podemos seguramente afirmar que tal coisa foi “rostificada” —
considerando o conceito de rosto como algo que expressa os afetos. (DELEUZE, 1989,
101-102). Imagem-afecção, nesses termos, remete a qualquer rosto que exerça sua
rosticidade — baseada nos dois polos — nas expressões dos afetos; um exemplo
clássico de como isso pode se dá é a dramatização dos movimentos das mãos no filme
“Mãos de Bresson” do cineasta coreano Kogonada; a representação do rosto humano
está totalmente ausente no filme, mas mesmo assim se pode captar os afetos expressos
através dos movimentos das mãos envolvidas na narrativa. Tendo essas premissas, em
resumo, expostas pontualmente, podemos avançar para uma análise de um dos aspectos
da imagem-afecção utilizada por Ingmar Bergman em sua película.
Gritos e Sussurros é um dos filmes do Bergman onde ele mais analise de forma
profunda os mais diversos afetos humanos em suas expressões mais vívidas e assaz
intensas por meio dos dilemas vividos pelos personagens. A narrativa gira entorno de
uma moribunda mulher que agoniza em um leito infeliz e é assistida por suas irmãs
4
mais próximas; em relações complexas, contraditórias, ambíguas, ora conflitivas as
personagens se veem permeadas pelos dilemas circunstanciais que acabam por
atravessar a todos expondo suas idiossincrasias. Tirando alguns aspectos flagrantemente
visíveis aos espectadores, a maior parte dos afetos subjacentes nas personagens é
expresso através de imagens-afecções com sucessivos closes de rosto que possuem o
objetivo de provocar no leitor a necessidade imperativa de se lê — ou ao menos tentar
— os movimentos de tendência motora sobre os nervos sensíveis do rosto dos
personagens — muito da narrativa e das percepções que busca provocar só são
perceptíveis se o espectador se ater às imagens-afecções, elas dizem o que as imagens-
movimentos como um todo não comunicam explicitamente.
5
indicam a passagem gradual do tempo de vida e de dor de Agnes que estar por se
esgotar — aqui, conforme já definimos, o relógio transmite os afetos ligados à
apreensão do medo da morte ou, ainda, a contagem sofrida das horas e minutos para a
morte, o relógio é dotado de caraterísticas da rostidade; em segundo lugar temos os
closes individuais de cada personagem que intercalam os sucessivos cortes das
montagem que focalizam os sentimentos dos retratados de maneira forte e muito
incisiva. Evidenciando o segundo exemplo nós podemos destacar o close no rosto de
Karin entre os minutos 21:40 e 22:07 que corre logo após o leitor do filme presenciar
um série de afagos entre a personagem e seu amente o Dr.David (Erland Josephson),
segue-se um corte com um close-up do rosto de Karin iluminado do lado esquerdo
(espectador) e na escuridão do lado direito — isso evidencia a dupla vida que leva a
personagem, tendo uma de suas faces na escuridão das alcovas em seu romance
proibido, nessa cena a irmã da doente olha fixamente para frente com a boca aberta em
um tom de sobressalto sobre sua própria condição.
6
BIBLIOGRAFIA: