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DELEUZE E BECKETT:
A IMAGEM COMO ESGOTAMENTO DA PALAVRA
CATARINA POMBO N BAIS
° E, p.59.
DELEUZE ET BECit ETT; LIMAG E COMhie Sruiseu
Ibid.
.
'° £, p.104.
'" £, p.106.
Schizophrenia and Society" in DRF, p. g.
°' £, p.6s.
DELEUZE E LTECKETT: A IMAGEM COMO EXPLORAÇÃO DE M l 105
e tornar-se um fluxo que não tem qualquer relação com o que está a
acontecer ou com a pessoa que o diz.
A língua 11 é construída com base na língua dos substantivos e tenta
para ir mais longe. O seu objectivo é esgotar as próprias palavras. Se a
língua 1 corta os átomos, continua a permitir combinações possíveis.
Mas a língua II, ao esgotar as próprias palavras, os átomos, os
"corpúsculos linguísticos", torna impossível o fluxo dessas
combinações possíveis. É uma língua que corta o fluxo dos átomos,
deixando apenas o silêncio. A língua 11 quer de facto acabar com as
vozes e alcançar o silêncio. A questão que a atormenta é: qual é a
última palavra e como reconhecê-la7 6.
Finalmente, o terceiro nível é a linguagem das imagens. Bem
É claro que as linguagens I e 11, a linguagem das coisas e a
linguagem dos mundos privados, têm os seus próprios domínios de
imagens. São mesmo sobrecodificadas por elas. As imagens visuais e
sonoras são intrínsecas à série de objectos e à série de vozes.
Nomear é sempre prefigurar a possibilidade de um objecto
correspondente. O mesmo acontece com as memórias evocadas na
voz de cada personagem. Têm uma profundidade melancólica, trazem
memórias privadas. A linguagem dos nomes e das vozes está ligada a
uma certa forma de imagem. Deleuze vê esta presença (de objectos ou
memórias) na linguagem como um trabalho da imaginação. Há uma
imaginação combinatória, uma imaginação serial na língua I, e há
uma imaginação narrativa, uma imaginação de histórias privadas, na
língua 11. A primeira está, como ele diz, "ligada à razão", a
segunda "ligada à memória". Aceder a imagens puras, a imagens
que não vêem nem objectos nem mundos privados possíveis, é libertar
a linguagem das imaginações, desencantar as palavras e as vozes das
séries prefiguradas de objectos e memórias. Os meses tornam-se
séries exaustivas que se combinam ao acaso, e as vozes deixam de
remeter para qualquer subjectividade e adquirem um estatuto
ontológico auto-nomeado, como memórias sem sujeito ou histórias
sem conteúdo. "Esta coisa vista, ou ouvida, chama-se Imagem,
visual ou sonora, na condição de se libertar dos grilhões em que as
outras duas linguagens a mantinham. Já não se trata de imaginar
toda uma série com a língua 1 (imaginação combinatória "entacliée de
raison"), nem de inventar histórias ou de inventar memórias com a
língua II (imaginação "entacliée de raison").
' £, p.ô7.
10b DA CtVILIZAÇÂO DA PALAVRA à CIVILIZAÇÂO DA IMAGû/d
^ £, pp.70-1.
DELEUZE E ß E C X E T T : O IMACE COMO EXPLORAÇÃO DO 51OT l 107
é então dada numa condição pura, sem lógica, sem memória, quase
sem palavras - "alógica. amnésica, quase afásica". Sem conteúdo,
sustentada apenas pelas suas forças internas, pelo seu estatuto de
ponto de tensão entre faculdades em catástrofe, a imagem existe
apenas num espaço vazio, num espaço definido pela sua relação
com o nada, pela sua abertura ao aberto. É, pois, neste sentido que
Deleuze pode apresentar a imagem como um "processo". Ela só
existe na medida em que foge, só na medida em que escapa às
faculdades que a sufocam, que a prendem às coisas, aos mundos
possíveis, às narrativas, em suma, à imaginação. É de facto uma
imagem sublime, ou melhor, o sublime do processo de fazer a
imagem. A tensão interior, a sublimidade da forma da imagem, exprime
os vectores de conflito entre as faculdades. Deleuze regressa ao tema
do sublime para sublinhar a sua condição de imagem sem conteúdo.
É um sublime da forma, enquanto configuração das forças que estão
em tensão no seio das faculdades. E porque é dinâmica, porque é um
conflito interno, a forma é a própria força que permite à imagem
libertar-se das faculdades. Deleuze propõe então a imagem (em vez da
imaginação entrelaçada com a memória ou a razão) como sendo em
si mesma indefinida, "ao mesmo tempo que é completamente
determinada"°°.
Deleuze retoma as dimensões não-representativas da teoria do
sublime. Tal como a impossibilidade de aparecer que caracteriza a
experiência sublime de Kani, a imagem pura não é mais do que um
aparecer vazio. Mas Deleuze vai mais longe. A violência que detectou
no jogo das faculdades, que obrigou o pensamento a pensar o que não
podia pensar, é agora utilizada para produzir a imagem sublime.
Deleuze vê esta violência como o processo que conduz à tensão
interna que constitui a forma da imagem. Deleuze pode agora dizer
que a imagem pura é apenas esta tensão interna, é apenas o que
ele apresenta como "energia potencial", uma energia que existe
apenas como uma iminência de rebentar. "Uma imagem, tal como
se encontra no vazio do espaço exterior, mas também para além das
palavras, das histórias e das memórias, acumula uma fantástica energia
potencial que ela desarruma ao dissipar-se. O que conta na imagem
não é o conteúdo pobre, mas a energia louca capturada, pronta a
explodir "2. O todo
" £, p.74.
E, p.76. Como mostra Tom Conley, Deleuze parece definir a imagem apenas em
termos de espaço: "Deleuze gîycs ihe uaiite image lo f/te inovement o{t/'esc
immanenl limiis (...). Assim que Deleuze descreve a imagem (...) /te dis in,guis/ier itr
eztensire qualities". Mas esta definição espacial da imagem está lá apenas para
explodir: 'î/te
DELEUZE E BECITETT: A DIMACE COMO EXPLORAÇÃO DA MDT
" £, p.73.
*- £, p.74.
DELEUZE E BECKETT: K!MACE COMO ESGOTAMENTO DA tll
PALAVRA
"S, p.90.
llZl DA CIVILIZAÇÂO DA PA LAVRA À ClVlLiZAÇÂO DA IMAGûM
E, p.95.
"E, p.9b.
° E, p.99.
DELEUZE E BECKETT: A IMAGEM COMO EPUÍSMO DA PALAVRA 113
"S, pp.96-7.
2 "O silêncio é Iartga$e não prolongado, inieusivo, uinua/ (on/i. Ao procurar falar o
que
'ifência que surge na esteira das palavras. Os narradores de Beckett encarnam o
paradoxo aberto e generativo de uma linguagem em que a diferença entre a fala e o
silêncio se torna imperceptível". (Murphy, Timothy S., "Only Intensities subsist: Samuel
Beckett's Nahow Ort". in Deleuze arid Literature. ed. por Ian Buchanan e John Marks,
Edinburgh University Press, 2000, p.24S).
114 I DA C'VILIZAÇ4O DA rALAVRA CiV'LfZAcÄO DA IMAGEM
sans bourhe ou, como em Oh les benux jotirs. "rosto feminino sem
contorno". É um movimento espiritual que conduz à imagem
sublime, mas à sua dissipação, porque esta imagem é apenas o
processo que a conduz do seu aparecimento ao seu próprio
desaparecimento, do possível que se esgota, a um para além do
possível.
A imagem dissipa-se assim que aparece, porque é o limite de toda
a linguagem. Quando dizemos "eu fiz a imagem", é
que esta ilha é hm, se não há mais possível "**. A liminaridade é o
ponto último de esgotamento do possível. Segundo Deleuze, este
movimento escalar é um movimento de purificação, uma purificação
da esfera pessoal e do mundo do real, até ao mundo do possível, ou
seja, o mundo do possível.
-Por outras palavras, para o mundo da mente onde a imagem pura se vai
erguer e dissipar.
Tem de se despotencializar, ou seja, tem de se desvincular da sua
"imagem" dogmática, para atingir um nível superior: o espfit. E aqui
estamos para além do possível. "A imagem concentra uma energia
potencial que arrasta consigo no seu processo de auto-dissipação.
Ela anuncia que o fim do possível está próximo"'4. Este fim está
sempre presente, sem que ninguém o saiba, e ainda não aconteceu.
Toda a possibilidade já se esgotou antes de nascer.
Numa ordem progressiva, Deleuze conduziu-nos assim do
esgotamento da linguagem das coisas ao esgotamento das vozes, e
depois do esgotamento do espaço ao esgotamento da imagem. Assim,
Deleuze pode dizer,
^3 E, p.78.
*' £, p.98: "É a intensidade, numa imagem que é ela própria intensiva, que se
desvanece à medida que se estende; pois a intensidade dissipa-se na imagem
deYenan+.MŸssance etmor+cÔfncidenten cette image qu'on ne peut qu'répéter. A
experiência do possível como
(Zourabichvili, F., "Deleuze et le possible (de lnvo1ontarisme en Politique)" in Gilles
Deleuze. t/rte Vie Philosophique, e6. de Eric Alliez, Le Plessis- Paris.
-Robinson, 1998, p.344).
^' Quando Deleuze fala da energia louca de auto-dissipação da imagem, estará a
pensar no caos de Qu'est-ce que la philosophie! Fazer uma imagem é a mesma coisa que
fazer um conceitoî Ou será exactamente o contrário: fazer uma imagem é introduzir o
caos no real, fazer buracos e lacunas para poder ver visõesî "A imagem, em maior ou
menor grau, permanece inseparável do movimento pelo qual se dissipa a si própria-".
-se (...). A imagem visual é arrastada pela música, uma imagem sonora que corre para a
sua própria abolição. Ambas se precipitam para o fim, esgotadas todas as possibilidades"
(E, p.94). Vejamos o paralelismo desta afirmação em L'Épuisé com "Le cerveau est ù
l'écran": "Eu gostava de autores que exigiam a introdução do movimento no pensamento
(...). Como não encontrar o cinema, que introduzia o movimento "real" na imagem (...).
Passávamos directamente da filosofia ao cinema" (DRF, p.2G3). O mesmo movimento que
estilhaça o pensamento, o movimento do caos, entra também na imagem e quebra as
cadeias sensório-motoras.
DELEUZE E BECKETT: A IMAGEM COMO CONSCIÊNCIA DO MOTIVO { 115
Conclusão
"E, p.78.
" £, p.79.
116 | DA CIVILIZAÇÃO DAS PALAVRAS À CIVILIZAÇÃO DAS IMAGENS