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DELEUZE E BECKETT:
A IMAGEM COMO ESGOTAMENTO DA PALAVRA
CATARINA POMBO N BAIS

Em Di[[érence et Répéfition, sabemos que Deleuze queria realizar o


programa de um pensamento sem imagens. Este programa continha, em
si mesmo, uma formulação paradoxal. Deleuze propunha uma nova
imagem do pensamento, que não é outra coisa senão a imagem de
um pensamento sem imagem. A própria fórmula parecia contraditória.
Era necessário abolir a imagem clássica do pensamento, ou seja, refutar
o pressuposto de que o pensamento é uma imagem, a actividade de
aceder a uma imagem, a uma representação qualquer. No entanto, esta
nova compreensão do pensamento tinha de se basear não num novo
conceito, mas numa nova imagem do pensamento. 11 O que era
necessário era uma nova imagem do pensamento que o pudesse
mostrar como um pensamento sem imagens. E no entanto, em
DiJérenre et Répétition, as descrições do que seria um pensamento
sem imagens foram dedicadas, não a desenhar imagens do
pensamento, mas a apresentar os conceitos de "ideia", "problema",
"síntese do tempo", "série disjuntiva". Todo o livro é uma viagem
IltDfliimenial através dos aspectos que, desde Platão e Aristóteles,
são reconhecidos como atributos fundamentais do acto de pensar,
tais como marcar a diferença, colocar problemas, actualizar as sínteses
do tempo, elaborar o espaço puro. Mas Deleuze não ofereceu nenhuma
imagem desta viagem. Não vimos nada desta nova forma de
pensamento. É claro que esta cegueira estava incluída no próprio
programa de Di[{érence et Répétition. Toda a batalha contra a "filosofia
da representação" negra obrigou Deleuze a pensar o pensamento sem
representar nada, a procurar uma imagem do pensamento que, como
pensamento sem imagem, não podia ser vista.
não era em si uma imagem.
Esta confissão atravessou toda a obra de Deleuze na década de
1970. Em L'Anti-Œdipe, em ifnJn, ou em kiffe Pfnrenux, não há
nenhuma teoria da imagem, nenhuma tentativa de elaborar uma
imagem de qualquer tipo de imagem "cultural" ou "social".

Ceniro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa.


ï00 ) DA CIVILIZAÇAO DA PAMVRA À CI\'ILIZAÇZO DA IMAGEM

Só no início dos anos 80 é que Deleuze regressa ao conceito de


imagem. Poder-se-ia dizer que o que fascinava Deleuze na experiência
do cinema era precisamente a possibilidade de produzir imagens de
pensamento e imagens de pensamento sem imagens. Numa entrevista
a propósito dos dois volumes de Cínèma, Deleuze diz: "Algo de
estranho me impressionou no cinema: a sua inesperada capacidade
de manifestar, não um comportamento, mas a vida espiritual (ao
mesmo tempo que um comportamento irritante). A vida espiritual não é
a fantasia, que sempre foi um beco sem saída para o cinema, mas
sim o domínio da decisão fria, do compromisso absoluto, da escolha
da existência (...). Em suma, o cinema não põe apenas o movimento na
imagem, põe-no também no espírito. A vida espiritual é o moiivement
do esprii -.
Com o cinema, Deleuze descobre imagens que mostram actividade
de pensamento, mas precisamente de um pensamento que nada tem a
ver com imagens. Como ele diz nesta entrevista, esta vida de
pensamento, a vida espiritual, não é uma vida feita de sonhos ou
fantasias, mas uma vida que decide, que se enraíza, que faz
escolhas sobre a existência. O entusiasmo de Deleuze pelas imagens,
sejam elas imagens-movimento ou imagens-tempo, é talvez a
expressão da descoberta de que existe uma forma de arte em que é
possível fazer não só imagens do pensamento, mas sobretudo imagens
de um pensamento sem imagens. Poder-se-ia mesmo dizer que esta
entliousiasine exprime também, antes de mais, o entliousiasmo de
alguém que acaba de ultrapassar os seus próprios impasses: os
impasses da teoria do sonho e da fantasia que, desde a Préseiitation-
-Masoch, Di[férence et fiépétftion e Logique du Sens, assombrou o conceito
de
do pensamento. De facto, Deleuze via o sonho e a fantasia como becos
sem saída no cinema, que só poderiam ser resolvidos por uma ontologia
das imagens e uma taxonomia dos signos ópticos, cinéticos e sonoros. Os
livros de Deleuze sobre a cineina são assim o momento da sua
reconciliação com o mundo das imagens, depois de ter abandonado a
teoria das imagens e do imaginário que o seu conceito de "phantasine"
oferecia nos anos 1960 e que teve um impacto negativo em toda a
sua crítica da imagem nos anos 1970. Foi apenas com o seu livro sobre
Francis Bacon (1981) e os dois volumes sobre a Cinéina (1983 e 1985)
que a imagem regressou, mas foi com Beckett que a imagem adquiriu
um estatuto privilegiado. O livro sobre Beckett é o momento de
apoteose da imagem. A imagem emerge através de
um processo de esgotamento da língua.
DELEUZE E BECItETT: O ïM/\GE COMO DEPUTAÇÃO DA lOl
PALAVRA

§l. As quatro formas d e esgotamento da língua

O esgotamento da linguagem, que Deleuze sublinha em Beckett, não


significa uma leitura pós-modernista que dita o fim da escrita. Isso
seria confundir o fim da escrita com a poética da lata. Pelo contrário, a
partir da obra de Beckett, Fieleuze pretende construir uma teoria da
linguagem que ponha fim às funções de designação e de manifestação,
mantendo a sua dimensão de significação. O traço central desta
teoria da linguagem do fim caracteriza-se por uma relação especial
entre o plano do enunciado e o plano da enunciação.
Segundo Deleuze, a linguagem esgota-se em três níveis
Em cada nível há uma linguagem específica: uma linguagem de
palavras, uma linguagem de vozes e uma linguagem de imagens.
Do mesmo modo, cada nível de linguagem corresponde a um tipo
de esgotamento do possível3. A singularidade poética de Beckett
residiria tanto na densidade, cénica e literária, do esgotamento destas
linguagens quase artificiais, como nas várias formas de experimentar
o possível. Importa sublinhar que este esgotamento da linguagem, que
habita toda a linguagem, não conduz a um para além da linguagem. O
limite das coisas, do mundo, das vozes dos Outros, do espaço, da
imagem, é um limite que só é feito pela linguagem. "O limite não está
fora da linguagem, está fora dela: é feito de visões e audições que
não são linguagem, mas que só a linguagem torna possíveis". É através
da linguagem que podemos aceder às visões e audições, às imagens
puras que se criam como efeito último do esgotamento da linguagem.
Como diz Deleuze em Critique et Clinique, "há também uma pintura e
uma música próprias da escrita, como efeitos de cores e sonoridades
que se elevam acima das palavras. É através das palavras, entre as
palavras, que vemos e ouvimos. Beckett falava de 'fazer buracos' na
linguagem para ver e ouvir 'o que se esconde por detrás'". Segundo
Deleuze, para Beckett, a linguagem é a percepção do mundo, mas um
mundo não-linguístico de cores e música, um mundo de imagens puras
que só pode ser percebido como dissipação de imagens: visões e
audições. É um mundo que ouvimos e vemos, mas apenas através
e por detrás.

• A teoria da imagem em L'Éptiisé não pode ser compreendida sem o regresso de


Deleuze a uma metafísica do possível que ele sempre rejeitou. Para uma análise mais
pormenorizada destas modulações do pensamento deleuziano, ver POMBO NABAlS,
Catzrina, "Siffes Deleuze. Philosophie et Littérature, Paris: Harmattan (no prelo).
• CC, p.9.
Ibid.
102 DA CIVILIZAÇÂO DA PALAVRA À CIVILIZAÇÂO DA IMAGENS

linguagem. Epiificando a linguagem, mas precisamente para mostrar o


mundo que está a emergir como o exterior de uma linguagem esgotada.
Em primeiro lugar, trata-se de tornar impossível uma linguística
da nomeação, esgotando a correspondência entre as palavras e a sua
designação. Na nomeação, que é sempre uma referência a mundos
possíveis, as coisas apresentam-se ao sujeito como séries realizáveis; pelo
contrário, quando o sujeito as nomeia de forma arbitrária,
indiferente, ou melhor, quando a nomeação foi abolida, então já
não há qualquer relação atribuível entre os nomes e as coisas. Os
nomes tornam-se átomos em séries disjuntivas que já não nomeiam
nada. O esgotamento da linguagem das designações é uma ausência de
lógica, onde toda a acção se torna sem causa ou finalidade. Mas a
renúncia a toda a designação não significa uma queda na
indiferenciação. O esgotamento não é passividade, mas acção. 11 é
uma acção de não, uma activação para o nada, uma actividade do
nada de toda a preferência. "Activamo-nos, mas para nada.
Estávamos cansados de alguma coisa, mas exaustos, de nada". Toda a
realização é uma escolha de possibilidades, uma disjunção exclusiva
("calço os sapatos para sair e os chinelos para ficar"). Tornar
significativo o possível significa esgotar esta escolha, o que significa
tornar a disjunção inclusiva ("sapatos, ficas, chinelos, sais"). A
combinatória, o simples jogo de permutações e disjunções, é o que
constitui a acção do esgotado. Ele activa-se para o nada, apenas
para a combinatória como vazio absoluto.
Segundo Deleuze, Beckett está a inventar uma linguagem artificial para
o palco,
onde os nomes não têm qualquer relação com as coisas e as frases
não representam nada. Nesta Lange I, a linguagem das coisas, há dois
modos de exaustão. Primeiro, a enumeração substitui a proposição. No
palco, as personagens de Beckett usam objectos caprichosos que nada
têm a ver com o que estão a fazer, ou apontam para objectos que não
correspondem ao que estão a dizer. A série de objectos torna-se
independente da série que os designa. A série de atributos também se
torna autónoma. Os nomes e os atributos tornam-se conjuntos aleatórios
de singularidades flutuantes. Numa segunda forma, como refere
Deleuze, Beckett leva esta linguagem das coisas ao seu limite
dissintáctico, uma linguagem em que nomes e atributos jogam com
estas possibilidades de acordo com regras a-gramaticais. As relações
combinatórias substituem as relações sintácticas.

° E, p.59.
DELEUZE ET BECit ETT; LIMAG E COMhie Sruiseu

A exaustão da linguagem é assim conseguida por um processo combinatório


vazio.
-Por outras palavras, um sistema combinatório que introduz uma nova forma
de ligação.
11 É preciso sublinhar que, segundo Deleuze, a combinatória em
Beckett não desempenha o papel de unidade das contradições, nem
é indiferenciada. Como disjunção incluída, é um conjunto de Nada. É
vazia, porque é um nada de possibilidade.
Ela esgota-se em si mesma e subsiste apenas como um vazio ou um
jogo de esgotamento. É uma actividade sincrética de nada.
"Combinamos todos os valores de uma situação, na condição de
renunciarmos a qualquer ordem de preferência e a qualquer
organização de objectivo, a qualquer sentido. (...) No entanto, não
caímos na indiferenciação ou na famosa unidade das contradições
(...). As disjunções permanecem, e mesmo a distinção entre os
termos é cada vez mais grosseira, mas os termos disjuntos
desvanecem-se na sua distância indecomponível, uma vez que não
servem para nada a não ser para permutar". O que conta é a
permutabilidade dos termos, o simples jogo da combinatória. Daí a
exaustão, porque o que temos de fazer é esgotar a combinatória,
esgotar todas as possibilidades de permutabilidade total, "acabar de
novo", num movimento de variação infinita em que temos sempre de
acabar de novo. O cansado esgota a possibilidade porque joga uma
combinatória como realizável. Mas a combinatória do esgotado é um
nada, um nada de possível.
Segundo Deleuze, Beckett deve inventar uma meta-linguagem
que estabeleça quer o léxico quer as estruturas combinatórias
desta linguagem de nomes que se tornaram autónomos das coisas. E
esta meta-linguagem tem um duplo efeito: cénico e literário. 11 assegura
o esgotamento da linguagem no enunciado, transformando cada
personagem numa repetição infinita de um mundo fechado e
inventando uma poética de substantivos à deriva. substantivos sem
âncoras, puros fluxos sonoros®. Esta primeira meta-linguagem, ou linguagem 1, é
uma linguagem "atómica, disjuntiva, cortada e amarrada, onde a
enumeração substitui as proposições e as relações combinatórias
substituem as relações sintácticas*. A relação entre coisas e
palavras é cortada. As coisas e os substantivos tornam-se átomos,
distintos uns dos outros.

^ "Deleoze compõe os dois (o cansado e o exausto) numa tabulação teórica e


constrói, a partir das personagens das (Acções) de Beckett, o que é ao mesmo tempo uma
teoria da linguagem e uma teoria do processo artístico, da invenção da linguagem."
(Joubert, Claire, "La Question du Langage: Deleuze à l'épreuve de Beckett". Tlifiorie-
Liitéralure-
-Ense'tgnement, n.° 19, "Deleuze-Chantier", 2001, p,37).
104 ' DA CIVILiZAÇZO DA PALAVRA Z CIVILIxAÇAO D' IMAGE'"

e indecomponíveis em si mesmos. Na língua I, o com- binatório consiste


na interacção entre substantivos e coisas, que podem ser combinados,
mas como termos atómicos, sem qualquer ligação entre si. A língua 1
é, portanto, a primeira tentativa de esgotar a linguagem através das
palavras. Trata-se de esgotar a possibilidade da relação entre as
coisas e as palavras, ou seja, a possibilidade da enunciação do sujeito-
predicado Îype. Ao esgotar esta relação, esgotamos a lTletne
significante, a classificação linguística das coisas. As palavras e as
coisas tornam-se dois mundos paralelos, combináveis mas
independentes na sua atomicidade. "A partir de então, as palavras já
não propõem o possível para a realização, mas dão ao possível uma
realidade própria, que é precisamente esgotável"'0.
Em L'Épuisé, Deleuze dá vários exemplos deste tratamento de
Trata-se de levar a linguagem aos limites do inarticulado, do
incompreensível e do disparatado. Deleuze sublinha a repetição quase
obsessiva de Beckett, bem como as acreções e permutações de
termos. Fazendo buracos na linguagem, suprimindo palavras,
desenhando "linhas que peneiram a frase para reduzir constantemente a
superfície das palavras". Ou, como diz Deleuze em "Esquizofrenia e
Sociedade": "Como as sequências de Beckett: seixos-bolsos-boca; um
sapato-boca.
-um fogão de tubos-uma embalagem pequena, macia e indeterminada-
uma tampa
carimbo de bicicleta - meia muleta -.
O segundo nível de esgotamento da linguagem diz respeito à
dependência entre o enunciado e o locutor. Entre a voz que
escutamos e a acção que ela enuncia, há um hiato, uma
incompatibilidade. Beckett inventa, segundo Deleuze, uma segunda
língua artificial, que seria a língua 11, a língua das vozes, "que já não
procede com átomos combináveis, mas com fluxos misturáveis. As
vozes são as ondas ou fluxos que batem e distribuem os corpúsculos
linguísticos"'5. As vozes devem ser libertadas dos sujeitos que falam,
os sons devem poder tornar-se objectos sem dono. As vozes perdem
o seu carácter pessoal enquanto enunciados de

Ibid.
.
'° £, p.104.
'" £, p.106.
Schizophrenia and Society" in DRF, p. g.
°' £, p.6s.
DELEUZE E LTECKETT: A IMAGEM COMO EXPLORAÇÃO DE M l 105

e tornar-se um fluxo que não tem qualquer relação com o que está a
acontecer ou com a pessoa que o diz.
A língua 11 é construída com base na língua dos substantivos e tenta
para ir mais longe. O seu objectivo é esgotar as próprias palavras. Se a
língua 1 corta os átomos, continua a permitir combinações possíveis.
Mas a língua II, ao esgotar as próprias palavras, os átomos, os
"corpúsculos linguísticos", torna impossível o fluxo dessas
combinações possíveis. É uma língua que corta o fluxo dos átomos,
deixando apenas o silêncio. A língua 11 quer de facto acabar com as
vozes e alcançar o silêncio. A questão que a atormenta é: qual é a
última palavra e como reconhecê-la7 6.
Finalmente, o terceiro nível é a linguagem das imagens. Bem
É claro que as linguagens I e 11, a linguagem das coisas e a
linguagem dos mundos privados, têm os seus próprios domínios de
imagens. São mesmo sobrecodificadas por elas. As imagens visuais e
sonoras são intrínsecas à série de objectos e à série de vozes.
Nomear é sempre prefigurar a possibilidade de um objecto
correspondente. O mesmo acontece com as memórias evocadas na
voz de cada personagem. Têm uma profundidade melancólica, trazem
memórias privadas. A linguagem dos nomes e das vozes está ligada a
uma certa forma de imagem. Deleuze vê esta presença (de objectos ou
memórias) na linguagem como um trabalho da imaginação. Há uma
imaginação combinatória, uma imaginação serial na língua I, e há
uma imaginação narrativa, uma imaginação de histórias privadas, na
língua 11. A primeira está, como ele diz, "ligada à razão", a
segunda "ligada à memória". Aceder a imagens puras, a imagens
que não vêem nem objectos nem mundos privados possíveis, é libertar
a linguagem das imaginações, desencantar as palavras e as vozes das
séries prefiguradas de objectos e memórias. Os meses tornam-se
séries exaustivas que se combinam ao acaso, e as vozes deixam de
remeter para qualquer subjectividade e adquirem um estatuto
ontológico auto-nomeado, como memórias sem sujeito ou histórias
sem conteúdo. "Esta coisa vista, ou ouvida, chama-se Imagem,
visual ou sonora, na condição de se libertar dos grilhões em que as
outras duas linguagens a mantinham. Já não se trata de imaginar
toda uma série com a língua 1 (imaginação combinatória "entacliée de
raison"), nem de inventar histórias ou de inventar memórias com a
língua II (imaginação "entacliée de raison").

' £, p.ô7.
10b DA CtVILIZAÇÂO DA PALAVRA à CIVILIZAÇÂO DA IMAGû/d

A imaginação combinatória e a imaginação mnemónica asfixiam a


imagem. Reduzem-na a objectos5 e a histórias. Como diz Deleuze, "é
muito difícil arrancar todas estas aderências da imagem para chegar
ao ponto 'Imaginação Morte Imaginez'"®.
Deleuze é muito explícito sobre o estatuto das faculdades em
a questão da imagem pura: não há lugar para a imaginação, nem
para a imaginação ligada à razão, nem para a imaginação
preenchida pela memória. A primeira, que caracteriza a linguagem l de
Beckett, é uma ima- ginação combinatória que deve imaginar toda a
série para a fazer corresponder às palavras e assim esgotar a série de
combinações. A segunda, que habita a linguagem 11, ou seja, a linguagem
dos Outros como mundos possíveis expressos em enunciados,
manifesta-se como um poder de ficcionar os conflitos entre
personagens, de inventar questões. Trata-se de uma imaginação que
não é uma faculdade da razão, mas uma faculdade da memória. Mas é
com base nestes dois modos de imaginação que habitam as línguas 1
e 11 que a imagem deve ser construída. Assim, a imagem nunca é o
produto da imaginação. Ela só surge quando todas as outras formas
de imaginação se esgotam.
É fácil perceber porque é que ele teve de esgotar as coisas com-
e, depois, esgotar as vozes por uma voz sem interioridade. É preciso
levar à exaustão os mundos possíveis inscritos nos nomes por uma
lógica assíncrona, e esgotar os mundos possíveis que cada Outro
exprime, secando as vozes, esvaziando-as de toda a expressão, de
toda a subjectividade. A imagem só pode ser feita quando as formas de
imaginação que estão ligadas aos nomes e às vozes tiverem sido
aniquiladas. A combinação das coisas e o Îarissement das vozes
preparam apenas um processo: matar a imaginação, libertar a
imagem.
É apenas quando se trata de fazer a imagem pura que a
necessidade de esgotar as palavras e as vozes se justifica
verdadeiramente. Era a única maneira de libertar a linguagem da
imaginação, de a libertar das falsas imagens, das imagens ainda
ancoradas nas coisas e nos mundos subjectivos. Purificar a linguagem
da sua função de designação, esgotando a relação entre as palavras e
as coisas, purificar a linguagem da sua função de manifestação,
esgotando a relação entre a voz e as memórias, tudo isto para purificar
a linguagem da imaginação e assim libertar a imagem pura. Para
além

^ £, pp.70-1.
DELEUZE E ß E C X E T T : O IMACE COMO EXPLORAÇÃO DO 51OT l 107

das línguas I e 11, que libertaram a língua do peso da imaginação,


abre-se a língua llI, a língua da língua'".
A imagem pura não é nem racional nem pessoal. Não é
não vê nem coisas organizadas por léxicos, nem vozes enłacliadas por
narrativas. A imagem pura é indefinida, é "ă l'état céleste"'°. A imagem
que Deleuze quer que Beckett crie é uma imagem espiritual. Deleuze
apresenta a imagem pura de um ponto de vista paradoxalmente
Rntien: a imagem define-se pela sua forma (tensão interna). "A
imagem não se define pela sublimidade do seu conteúdo, mas pela
sua forma, ou seja, pelo modo como é formada.
-dizer pela sua tensão interna", ou pela força que mobiliza (...) para
uma imagem pequena, alógica, amnésica, quase afásica, ora parada no
vazio, ora a tremer ao ar livre. A limagem não é um objecto, mas um
"processo". Do formalismo de Kant, Deleuze reteve apenas a dimensão
da forma. Mas é sobretudo a condição estética da forma, isto é, como,
por um lado, o resultado do fracasso das faculdades da imagem, como
realidade sem conteúdo, apresentação do facto de existir o
irrepresentável, e, por outro lado, como violência interna do campo
transcendental, como tensão entre as faculdades no seu processo de
representação daquilo que não pode aceder à representação. A imagem
que, segundo Deleuze, Beckett quer criar em palco é também
conseguida através de um devir sublime do jogo das faculdades. Uma
vez libertada da sua ancoragem nas coisas, a linguagem da razão, a
linguagem dos nomes e das afirmações, torna-se derivada.
O mesmo descalabro ocorre com a faculdade da memória.
Separada das vozes, desenraizada dos mundos possíveis dos Outros,
a memória desmorona-se. Sobre as ruínas da razão e da memória,
sobre as minas também da imaginação (quer a que duplica a
razão para ver os objectos, quer a que está ligada à memória),
surge a imagem. Ela

° "Linguagem dos limites entre as línguas, do que se encontra no interstício entre


as vozes, passando de uma para a outra e criando uma espécie de indistinguibilidade
entre uma e outra. Uma linguagem de imanência em que as presenças das vozes se
dilaceram. Mas é uma imanência que é mais limíte do que plana (...). Surge então um
espaço onde as coisas perderam as suas coordenadas e as suas aparências. Não mais
possibilidades de perseguições, como na linguagem [, não mais Outros, vozes e
mundos possíveis como na linguagem II. mas uma imanência sem sujeito, que é 'uma
vida eł nada mais', 'in-between-moment', a-subjectiva, para usar expressões do último
texto sobre a imanência. Imagens desconexas que atingem o impessoal" (Vinciguerra, L.,
"Peindre le Cri. Peindre la Promesse", Rue Descanes. "Deleuze. łmmaneuce et Vie",
n.° 20, Maio de 1998, p. łł 8).
2' '' p.72.
108 DA CIVILIZAÇfiO DA PALAVRA Ä CIV[L1ZAÇÂO DA ïMAGEI\4

é então dada numa condição pura, sem lógica, sem memória, quase
sem palavras - "alógica. amnésica, quase afásica". Sem conteúdo,
sustentada apenas pelas suas forças internas, pelo seu estatuto de
ponto de tensão entre faculdades em catástrofe, a imagem existe
apenas num espaço vazio, num espaço definido pela sua relação
com o nada, pela sua abertura ao aberto. É, pois, neste sentido que
Deleuze pode apresentar a imagem como um "processo". Ela só
existe na medida em que foge, só na medida em que escapa às
faculdades que a sufocam, que a prendem às coisas, aos mundos
possíveis, às narrativas, em suma, à imaginação. É de facto uma
imagem sublime, ou melhor, o sublime do processo de fazer a
imagem. A tensão interior, a sublimidade da forma da imagem, exprime
os vectores de conflito entre as faculdades. Deleuze regressa ao tema
do sublime para sublinhar a sua condição de imagem sem conteúdo.
É um sublime da forma, enquanto configuração das forças que estão
em tensão no seio das faculdades. E porque é dinâmica, porque é um
conflito interno, a forma é a própria força que permite à imagem
libertar-se das faculdades. Deleuze propõe então a imagem (em vez da
imaginação entrelaçada com a memória ou a razão) como sendo em
si mesma indefinida, "ao mesmo tempo que é completamente
determinada"°°.
Deleuze retoma as dimensões não-representativas da teoria do
sublime. Tal como a impossibilidade de aparecer que caracteriza a
experiência sublime de Kani, a imagem pura não é mais do que um
aparecer vazio. Mas Deleuze vai mais longe. A violência que detectou
no jogo das faculdades, que obrigou o pensamento a pensar o que não
podia pensar, é agora utilizada para produzir a imagem sublime.
Deleuze vê esta violência como o processo que conduz à tensão
interna que constitui a forma da imagem. Deleuze pode agora dizer
que a imagem pura é apenas esta tensão interna, é apenas o que
ele apresenta como "energia potencial", uma energia que existe
apenas como uma iminência de rebentar. "Uma imagem, tal como
se encontra no vazio do espaço exterior, mas também para além das
palavras, das histórias e das memórias, acumula uma fantástica energia
potencial que ela desarruma ao dissipar-se. O que conta na imagem
não é o conteúdo pobre, mas a energia louca capturada, pronta a
explodir "2. O todo

" £, p.74.
E, p.76. Como mostra Tom Conley, Deleuze parece definir a imagem apenas em
termos de espaço: "Deleuze gîycs ihe uaiite image lo f/te inovement o{t/'esc
immanenl limiis (...). Assim que Deleuze descreve a imagem (...) /te dis in,guis/ier itr
eztensire qualities". Mas esta definição espacial da imagem está lá apenas para
explodir: 'î/te
DELEUZE E BECITETT: A DIMACE COMO EXPLORAÇÃO DA MDT

O processo de esgotamento revela-se como o dispositivo necessário


para produzir essa energia potencial, que se condensa na imagem
pura. E, no entanto, esta imagem pura não é nada em si mesma, não tem
conteúdo, não manifesta nada. Por sua vez, não é mais do que
energia, não é mais do que a captação de energia que extrai das
palavras, das vozes e do espaço. É um dispositivo vaidoso de coisas, de
memórias, de lugares de encontro colocados ao serviço de uma
realidade que é, ela própria, puramente imersiva, ao serviço de uma
imagem pura, de uma energia potencial cujo único objectivo é explodir
para se dissipar, detonando essa energia armazenada. Não é exagero,
portanto, afirmar que a imagem pura que Deleuze descobre nas peças
de Beckett é a sua última e derradeira formulação do sublime
kantiano. Porque se define, do ponto de vista do seu conteúdo, pela
sua não-representação, e, do ponto de vista da sua força, pela sua
energia potencial, pela sua tensão interna pronta a dissipar-se, a
imagem pura é o ponto focal de todas as faculdades, de todas as
possibilidades, de todas as potencialidades, de todos os poderes. É o
lugar onde o mundo inteiro conspira para se tornar espírito, o lugar
onde todas as coisas nomeadas, todas as memórias contadas, todos
os espaços percorridos tecem a sua própria dissipação ao serviço da
energia potencial pura.

§2 "Alargar o potencial do espaço

A imagem pura, produzida sobre as ruínas da imaginação, da


razão e da memória, carece, no entanto, de um projecto de existência.
Imaterial, não ancorada nas faculdades e sem relação com as palavras
e com os Outros, dissipa-se no próprio momento do seu aparecimento.
Segundo Deleuze, Beckett utiliza dispositivos cénicos para a tornar
presente, para lhe dar um sentido de existência. Paradoxalmente, a
imagem pura deve então ser inscrita nas camadas de linguagem das
quais foi arrancada por exaustão. Deleuze detecta em certas experiências
de silêncio, ou nas estranhas modulações de vozes que formam
narrativas iniper-sonais, sem intimidade, sem mundos privados
possíveis, o processo de recondução da imagem pura ao interior da
linguagem. "No entanto, é necessário

ff£tflS DfTnf2ffDfi o{ 'Subjectivity' está em causa menos o movimento no espaço do que


na invenção de um apagamento do espaço" (Conley, Tom, "The Filln Event. From
Internal to lnterslice", em The Brain is the 5creen, Deleuze and the Philosophy
o[Cinema. ed. por Gregory Flaxman, Minneapolis/Londres: University of Minnesota
Press, 2000. p.308).
110 DA Ct ViLiZAÇ5O DA PALXVRA I CIvlLIZAÇ5D DA IMA "EM

que a imagem pura se insere na linguagem, nos nomes e nas vozes.


E depois, por vezes, será em silêncio (...). Por vezes, é uma voz
plana muito particular (...) que descreve todos os elementos da
imagem que virá, mas que ainda não tem a forma"-4. As personagens
de Beckett falam então melancolicamente de memórias que não lhes
pertencem, ou calam-se perante visões que as atingem mas que
desconhecem. A imagem pura desce assim ao palco, inserindo-se nas
frases, deixando-se apanhar nas profundezas de narrativas falsamente
privadas. E, no entanto, a imagem escapa sempre à linguagem. À beira
da dissipação, deixa-se dizer em nomes e em vozes de correio para
garantir a sua exterioridade à linguagem.
Esta falta de pertença da imagem pura a uma linguagem em que ela,
por exemplo, não é uma imagem de referência.
Nas peças de Beckett, tal como na imagem pura, o espaço é o exterior
da linguagem. Nas peças de Beckett, tal como a imagem pura, o espaço
é o exterior da linguagem. Como refere Deleuze: "este fora da
linguagem não é apenas a imagem, mas a 'vastidão', o espaço"'5. Para
trabalhar sistematicamente com este duplo fora da linguagem, Beckett,
para além da linguagem I, a das palavras, e da linguagem II, a das
vozes e das narrativas, criou uma terceira e última linguagem cénica, a
da imagem, que inclui também o espaço. Trata-se de conduzir a
imagem à sua condição puramente espiritual através de um duplo
movimento espacial: primeiro a sua inscrição num espaço qualquer, e
depois, através do esgotamento do espaço, a sua existência mental
absoluta. A linguagem III é então a da imagem ainda desprovida de
forma e do espaço como vastidão ou espaço qualquer. Note-se que
"tal como a imagem tem de atingir o indefinido, estando completamente
determinada, o espaço tem de ser sempre um espaço qualquer,
desafectado, não afectado, mesmo que esteja geometricamente
determinado na sua totalidade "6.
Da mesma forma que precisamos de libertar a imagem das palavras e
das vozes, de
Para não confundir a imagem pura com a imaginação combinatória das
coisas, ou com a imaginação memética dos mundos possíveis das
memórias ancoradas nas vozes, a imagem deve agora ser libertada do
espaço. O processo de Beckett, segundo Deleuze, é sempre o mesmo: o
esgotamento. É preciso esgotar o espaço para libertar a imagem.

" £, p.73.

*- £, p.74.
DELEUZE E BECKETT: K!MACE COMO ESGOTAMENTO DA tll
PALAVRA

Deleuze distingue três formas através das quais Beckett esgota o


espaço como processos intrínsecos ao próprio espaço. A primeira é
através da fragmentação do espaço (como se vê, por exemplo, em Tito). A
segunda é através de movimentos incompletos ou fragmentários, como
a passagem negra e escura que mostra apenas o vazio entre os seus
elementos (como em Fundo). A terceira é através da neutralização
do espaço, que, contra o fundo de uma voz murmurante que se
tornou neutra, branca, sem intenção ou ressonância, se torna um espaço
comum sem dimensões. Isto é especialmente verdade no caso de
Otto. E, como diz Deleuze, "é o último passo da despotencialização -
um passo duplo, uma vez que a voz iarita o possível ao mesmo
tempo que o espaço exténuer ses potentialités".

§S. A imagem sublime

Deleuze vê Beckett como um laboratório único para pensar o


estatuto estético da imagem nas artes do espectáculo. É verdade que o
teatro só existe na medida em que algo aparece, algo pode ser visto,
ouvido ou sentido. Mas, quase desde o seu início, o teatro tem
trabalhado na manifestação de uma outra coisa que não aparece aos
sentidos. Esta outra coisa está ligada a outras formas de experiência
ou a outras visões. Assim, há sempre uma imagem (masculina, ideal) a
pairar sobre o palco. E a condição estética do espectáculo é
precisamente esta relação entre a imagem visível e a imagem invisível.
Beckett perturba esta divisão entre o visível e o invisível no palco.
Através das diferentes camadas de visibilidade em palco, e através das
diferentes linguagens que inventou para as esgotar uma a uma,
procura imagens. Há imagens físicas dos actores, dos objectos em
palco, da iluminação e da música. Mas estas imagens estão lá para nos
mostrar personagens em flagrante delito que se preparam para fazer
outras imagens. E essas imagens já não pertencem ao domínio do
visível. São imagens que concentram, não coisas ou histórias, mas
energia. Estas últimas imagens que Beckett quer que vejamos não são
nem representativas nem invisíveis. Porque estas imagens existem
apenas no momento da sua dissipação, são imagens puras, sem
conteúdo, sem significado. Não são para serem vistas, imaginadas ou
contempladas num exercício de simbolização.

"S, p.90.
llZl DA CIVILIZAÇÂO DA PA LAVRA À ClVlLiZAÇÂO DA IMAGûM

Tornam-se existências puramente formais, como tensão


forças internas.
Neste método de esgotar todas as visibilidades para as absorver,
para as armazenar na imagem pura, Beckett adopta aquilo a que
Deleuze chama um regresso às teorias pós-cartesianas, segundo as
quais "existem agora dois mundos, um físico e um mental, um
corpóreo e um espiritual, um real e um possível®. A imagem pura situa-
se no mundo mental. Não porque seja o duplo subjectivo do mundo
físico, a sua representação para uma consciência. Ela sempre
pertenceu ao mundo mental na medida em que é um acontecimento
que se dá, não no mundo da realidade, mas no mundo da
possibilidade. Não tem nada a ver com a representação ou a evocação
de memórias. É a auto-presença de si mesmo, no mundo mental. Para
sublinhar esta autonomia da imagem pura em relação ao mundo físico,
ao mundo dos corpos, Deleuze apresenta a imagem como uma realidade
no domínio do espírito. Como diz, "a imagem é precisamente isto:
não uma representação de um objecto, mas um movimento no
mundo do espírito. A imagem é a vida espiritual"° .
Segundo Deleuze, nas suas peças para televisão, o que está em
causa na obra de Beckett é precisamente uma dissipação do
poder mimético da imagem. Beckett assume a televisão, o meio mais
dependente da imagem, mas para construir um novo teatro, um teatro
do espírito. "O que tem sido chamado de 'poema visual', um teatro
da mente que se propõe, não a desenrolar uma história, mas a criar
uma imagem (...). Segundo Bec-Kett, só a televisão satisfaz estes
requisitos. A questão que se coloca é: como é que se cria um teatro
da mente? Como utilizar as imagens de um ecrã para criar uma
imagem pura, uma imagem sem conteúdo, pura energia? É toda a
questão de uma estética do sublime que Beckett, de acordo com
Deleuze, retoma. Como podemos constituir como objecto de experiência
aquilo que não tem conteúdo, visual, sonoro, táctil ou outro, aquilo que
se dá apenas como a impossibilidade de aparecer?
Deleuze transforma o tema do irrepresentável no tema do
a auto-dissipação da imagem sublime. O movimento em direcção
ao sublime, ao elevado, ao caminho quase ascético, este
movimento que "eleva" a pessoa a um estado indefinido, é
semelhante ao movimento que

E, p.95.
"E, p.9b.
° E, p.99.
DELEUZE E BECKETT: A IMAGEM COMO EPUÍSMO DA PALAVRA 113

A tentativa de Kant de criar uma imagem das Ideias infinitas da razão


conduz as faculdades à catástrofe. Tal como na tradição do sublime,
Deleuze apresenta o processo de criação de uma imagem pura como uma
disciplina do espírito. Compreendemos porque é que Deleuze pode
dizer que, no momento último deste movimento do espírito, surge uma
imagem, uma "imagem sublime". E diz mesmo que, quando esta
imagem sublime aparece como tensão espiritual última, ela desaparece
imediatamente. Eis uma longa citação de Deleuze. "Não é fácil
fazer uma imagem. Não basta pensar em algo ou em alguém (...) É
preciso uma tensão espiritual obscura, uma segunda ou terceira
intenção, como diziam os autores da Idade Média, uma evocação
silenciosa que é também uma invocação e até uma convocação, e uma
revogação, pois eleva a coisa ou a pessoa ao estado indefinido de
mulher (...). Novecentas e noventa e oito vezes em mil, falha-se e
nada aparece. E quando se consegue, a imagem sublime invade o
ecrã, um rosto feminino sem contornos, e por vezes desaparece
imediatamente, "com o mesmo fôlego", e outras vezes detém-se antes
de desaparecer (...). E, como movimento espiritual, não se separa do
processo da sua própria des- parição, da sua dissipação, prematura ou
não. A imagem é um sopro, um sopro, mas expirante, em vias de se
extinguir. A imagem é aquilo que se extingue, que se consome, um
xiita. É pura intensidade, definida como tal pela sua altura, isto é, pelo
seu nível acima de zero, que só descreve ao cair". Deleuze não hesita
em retomar não só toda a gramática kanliana do sublime, mas também
todo o léxico da teologia negativa para falar desta aparição de algo "em
estado indefinido" que é a imagem. Para fazer a imagem, temos
de passar por uma imensa disciplina do não-dito, que vai da evocação
silenciosa à convocação e à revogação "2. O sublime pratica-se através
destas obscuras tensões espirituais. E, no entanto, o aparecimento
da imagem pura não está garantido. Raramente acontece. Só quando
se tem êxito - e Deleuze nunca explica em que é que o êxito pode
consistir. Por isso diz: "a imagem sublime invade o ecrã". E essa
imagem é sublime porque não tem forma, é um acontecimento como um
sorriso.

"S, pp.96-7.
2 "O silêncio é Iartga$e não prolongado, inieusivo, uinua/ (on/i. Ao procurar falar o

que
'ifência que surge na esteira das palavras. Os narradores de Beckett encarnam o
paradoxo aberto e generativo de uma linguagem em que a diferença entre a fala e o
silêncio se torna imperceptível". (Murphy, Timothy S., "Only Intensities subsist: Samuel
Beckett's Nahow Ort". in Deleuze arid Literature. ed. por Ian Buchanan e John Marks,
Edinburgh University Press, 2000, p.24S).
114 I DA C'VILIZAÇ4O DA rALAVRA CiV'LfZAcÄO DA IMAGEM

sans bourhe ou, como em Oh les benux jotirs. "rosto feminino sem
contorno". É um movimento espiritual que conduz à imagem
sublime, mas à sua dissipação, porque esta imagem é apenas o
processo que a conduz do seu aparecimento ao seu próprio
desaparecimento, do possível que se esgota, a um para além do
possível.
A imagem dissipa-se assim que aparece, porque é o limite de toda
a linguagem. Quando dizemos "eu fiz a imagem", é
que esta ilha é hm, se não há mais possível "**. A liminaridade é o
ponto último de esgotamento do possível. Segundo Deleuze, este
movimento escalar é um movimento de purificação, uma purificação
da esfera pessoal e do mundo do real, até ao mundo do possível, ou
seja, o mundo do possível.
-Por outras palavras, para o mundo da mente onde a imagem pura se vai
erguer e dissipar.
Tem de se despotencializar, ou seja, tem de se desvincular da sua
"imagem" dogmática, para atingir um nível superior: o espfit. E aqui
estamos para além do possível. "A imagem concentra uma energia
potencial que arrasta consigo no seu processo de auto-dissipação.
Ela anuncia que o fim do possível está próximo"'4. Este fim está
sempre presente, sem que ninguém o saiba, e ainda não aconteceu.
Toda a possibilidade já se esgotou antes de nascer.
Numa ordem progressiva, Deleuze conduziu-nos assim do
esgotamento da linguagem das coisas ao esgotamento das vozes, e
depois do esgotamento do espaço ao esgotamento da imagem. Assim,
Deleuze pode dizer,

^3 E, p.78.
*' £, p.98: "É a intensidade, numa imagem que é ela própria intensiva, que se
desvanece à medida que se estende; pois a intensidade dissipa-se na imagem
deYenan+.MŸssance etmor+cÔfncidenten cette image qu'on ne peut qu'répéter. A
experiência do possível como
(Zourabichvili, F., "Deleuze et le possible (de lnvo1ontarisme en Politique)" in Gilles
Deleuze. t/rte Vie Philosophique, e6. de Eric Alliez, Le Plessis- Paris.
-Robinson, 1998, p.344).
^' Quando Deleuze fala da energia louca de auto-dissipação da imagem, estará a
pensar no caos de Qu'est-ce que la philosophie! Fazer uma imagem é a mesma coisa que
fazer um conceitoî Ou será exactamente o contrário: fazer uma imagem é introduzir o
caos no real, fazer buracos e lacunas para poder ver visõesî "A imagem, em maior ou
menor grau, permanece inseparável do movimento pelo qual se dissipa a si própria-".
-se (...). A imagem visual é arrastada pela música, uma imagem sonora que corre para a
sua própria abolição. Ambas se precipitam para o fim, esgotadas todas as possibilidades"
(E, p.94). Vejamos o paralelismo desta afirmação em L'Épuisé com "Le cerveau est ù
l'écran": "Eu gostava de autores que exigiam a introdução do movimento no pensamento
(...). Como não encontrar o cinema, que introduzia o movimento "real" na imagem (...).
Passávamos directamente da filosofia ao cinema" (DRF, p.2G3). O mesmo movimento que
estilhaça o pensamento, o movimento do caos, entra também na imagem e quebra as
cadeias sensório-motoras.
DELEUZE E BECKETT: A IMAGEM COMO CONSCIÊNCIA DO MOTIVO { 115

Beckett resume os seus processos: "Lepuisé, c'est l'exhaustif, c'est le


tdri, c'est l'exlénué et c'est le dissipe"'-. A exaustão consiste em
todos estes processos: de precisão (exaustão dos nomes), de secura
ou atoinização (secagem das vozes), de fadiga absoluta, de ir até
ao limite (exaustão do espaço), e de consumo e desaparecimento
(dissipação da imagem). A exaustão é, pois, um processo de
atomização através da preci- são, de modo a levar o seu objecto ao
limite da sua força, até à dissipação na imagem pura. E as peças
televisivas de qualidade de Beckett são elas próprias, nas suas
combinações dos diferentes planos destas quatro dimensões, o
esgotamento cénico deste processo de esgotamento em palco. Como diz
Deleuze: "Ound será Espaço com silêncio e possivelmente música. 7No
du fantôme será Espaço com apresentação de voz e música. ...que
nunge... será Imagem com voz e poema. Nncfit und täume será Imagem
com silêncio, canto e música"°7.

Conclusão

O texto de L'Épuisé estabelece uma nova relação entre


pensamento e imagem. Deleuze chama "espírito" a esta dimensão do
pensamento enquanto criação de imagens. O Kesprit manifesta-se como
criação de imagens, mas estas imagens só existem sem conteúdo, são
formas puras em processo de auto-dissipação. É verdade que na ideia
da imagem pura descobrimos esta antiga luta contra a redução do
pensamento à imagem. Tal como em Di[[érence et Répétition, Deleuze
quer libertar o espírito da sua relação com a representação, procura
uma compreensão do pensamento que o apresente sem imagem. E, no
entanto, há algo radicalmente diferente entre o pensamento sem
imagem de Différence et Répé- tifion e um pensamento que cria
imagens puras em L'Épuisé.
Se o esgotamento dos nomes e o processo de des- voz
libertam a linguagem e o pensamento do peso das coisas e das
memórias, libertando o palco de todas as faculdades de representação
e, portanto, libertando o palco da imagem, a imagem é, no entanto, o
momento último, o objecto extremo do trabalho cénico. Como vimos, o
esgotamento das coisas, dos mundos interiores possíveis, bem como o
esgotamento do espaço, são os dispositivos necessários para fazer
não uma imagem das coisas, das situações ou dos gestos, mas em
todo o caso uma imagem. De facto, esta

"E, p.78.
" £, p.79.
116 | DA CIVILIZAÇÃO DAS PALAVRAS À CIVILIZAÇÃO DAS IMAGENS

Uma imagem, totalmente despojada de qualquer ancoragem nas


coisas, continua a ser uma imagem. Deleuze poderia ter escolhido
outro nome para esta realidade. Ele define este objecto que
conseguimos criar em palco, ainda que muito raramente, como
puramente espiritual. É criado a partir do zero, uma ficção absoluta. 11
assume a forma de tensão interior e o seu modo de existência é virtual.
Este produto da mente é energia potencial.
Foi apenas com L'Ëpuisé, como vimos, e depois com
A actividade da mente é apresentada como a criação de imagens.
O movimento da mente culmina com a criação de imagens puras na
auto-dissipação. Nos livros sobre cinema, há de facto imagens do
pensamento, mas o pensamento não é a actividade de produção de
imagens. Pelo contrário, as imagens são realidades autónomas que,
quer como imagens-movimento, quer como imagens-tempo,
introduzem o movimento e o tempo no pensamento. A imagem é
captada pelo pensamento, é introduzida nele e obriga-o a pensar. E a
actividade da mente que o cinema capta nestas imagens não tem nada
a ver com a criação de imagens. A mente que se exprime através
das imagens que vemos no ecrã é uma mente cuja actividade é a
decisão, a teimosia e a escolha.
O teatro de Beckett encena o movimento da mente no acto de
criação de imagens. A encenação é já uma mise en image no sentido
representativo. No teatro, tal como no cinema, também somos
confrontados com imagens. As primeiras são captadas por câmaras,
editadas, compostas e depois projectadas no ecrã. As imagens do
teatro são dadas em directo, a partir da simultaneidade do seu
aparecimento e da sua captação pelo olhar do espectador. No caso
das peças de Beckett que Deleuze analisa, há um excesso de
imagens. Em vez de serem teatrais, as imagens que Beckett encena
são cinematográficas, captadas antes de mais por um olhar plural por
detrás de câmaras fixas.
Mas são precisamente estas peças televisivas que Deleuze analisou. E
é para mostrar que o assunto central é fazer ver, através de imagens,
mentes que só estão preparadas para criar imagens. Em
Em L'Épuisé, Deleuze acompanha este acto de criação de imagens a
vários níveis. Por um lado, há as imagens em palco que o espírito do
espectador capta como o seu próprio movimento espiritual e, por outro,
as imagens das personagens exaustas cujo espírito procura fazer
imagens. Tal como nas suas análises do cinema, em L'Épuisé Deleuze é
capaz de fazer uma economia completa do espectador. Para Deleuze,
o olho do espectador existe apenas nas imagens do ecrã de uma
televisão que fixa os movimentos das personagens.
DELEUZE E EIECKETT: A IMAGEM COMO ESGOTAMENTO DA 117
PALAVRA

no cenário. As imagens no ecrã são, portanto, o próprio movimento da


mente, o Cérebro-Pensamento no ecrã e, ao mesmo tempo, o que estas
imagens nos deixam ver são mentes no processo de fazer imagens.
Com
Epuisé, em vez de uma imagem do pensamento sem imagens, tocamos
nas imagens do pensamento, que só existe na medida em que faz
imagens. Enquanto nos livros sobre cinema, o pensamento está no
ecrã, isto é, no ecrã.
-Por outras palavras, é o movimento e o tempo das imagens, mas na
análise das peças televisivas de Beckett, o espírito é antes algo
que se passa na cabeça de personagens exaustas. E este espírito
das personagens manifesta-se como a actividade de fazer imagens.
Mas, ao contrário do cinema, estas imagens não têm correspondência
material. Existem apenas nos processos da sua auÎodissipação como
energia potencial.

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