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ATRAVESSAMENTOS E OUTROS DESTINOS: A PINTURA COMO RESTO

Flavia Corpas

“A pintura me atravessa”. Não tenho certeza de ter ouvido Daniel Senise dizer esta
frase. Mas também não duvido. Seus trabalhos, mesmo as instalações ou os objetos,
partem da pintura, das questões que a pintura coloca para este artista, mesmo quando
suas obras se concretizam sob diferentes suportes. Digo eu, então: a pintura o
atravessa.
Lembro, contudo, e disso tenho certeza, de que a respeito de Sansão, trabalho
montado no Parque Lage em 1984, ele afirmou: “uma instalação que parte da
pintura”. Não simplesmente porque Sansão era também uma pintura, mas porque a
pintura se fez instalação. Trata-se de uma obra que está no início de sua produção
artística, mas que já carregava consigo aquilo que Senise vem explorando como
artista: as vicissitudes da pintura.
2892, instalação montada em 2011, na Casa França Brasil. Lençóis recolhidos em
hospitais e motéis ocupam toda a extensão da galeria principal. Um trabalho
constituído de resíduos sobre tecido, como certa vez explicitou Senise.
É possível pensar a arte como uma operação com o resto, algo que a leitura de
proposições empreendidas tanto por teóricos da arte, como Hal Foster e Georges Didi-
Huberman, quanto pelo psicanalista Jacques Lacan, ao qual recorrem os dois autores
referidos, nos permite afirmar.
Poderíamos pensar o resto pela via imaginária, do sentido estabilizado, seu caráter
temático ou seu significado em uma obra. Mas aqui não é disso se trata. Senise vai
mais além, sua obra toma para si o resto mesmo, se faz dele. Isso que resta e que o
artista de alguma forma colhe é também um excesso. Há um excesso na vida, nas
coisas do mundo, no chão dos ateliês, que impressos sobre tecido escrevem as marcas
do que sobrou do espaço e do tempo, compondo e colorindo várias pinturas de Senise,
como as séries Biógrafo, Reino e Prodrome, dentre outras. Há um excesso nas mesas
de trabalho, cuja intervenção do artista ao longo do uso cotidiano é transfigurada por
uma nova interferência material e conceitual, dando origem a uma obra que é Quase
aqui (seu título), mas não ainda; real 1 que o quadrado branco central pintado não

1
O real aqui não está sendo usado como sinônimo de realidade, mas sim como uma noção específica
proposta por Lacan que poderia ser resumida pela ideia daquilo que é impossível de representar, mas
que não para de insistir no sujeito.
deixa de tentar preencher e de malograr, falhar. Há um a mais em um quadro que,
após muitos anos pendurado, é retirado da parede, deixando marcas, um resquício que
talvez diga respeito ao próprio evento que precipita sua retirada, a morte da mãe e o
desfazer de sua casa, mas que ao revelar seu vazio vira uma fotografia, material ou
inspiração para trabalhos futuros. Por fim, há um excesso nas sobras das silhuetas
recortadas de pessoas, expurgo do fazer de um artista das ruas, que Senise recolhe na
intenção, ainda não concluída, de que um dia encontre para elas algum lugar no
impossível de representar2.
Um resto que é excesso e, portanto, um a mais. Um excesso que se apresenta como
um vazio, que não deve ser pensado como um mero nada, mas sim em seu sentido
topológico, como furo. A arte, a pintura especificamente, se organiza em torno do
vazio, premissa apontada por Jacques Lacan em seu Seminário 7: a ética da
psicanálise 3 . Pensando este vazio como um furo, algo que encontraremos no
desenrolar do ensino de Lacan, podemos dizer que em torno do furo se faz a arte, uma
vez que é o próprio fazer da obra que engendra o furo no campo da linguagem.
Tratam-se de caminhos propostos pelo psicanalista francês, ao longo de seus
seminários, por meio do qual a arte e a psicanálise podem manter vivas suas
interlocuções, que no caso da segunda é parte mesma de sua origem.
Toda a problemática do resto pode ser pensada ainda a partir da questão da
representação, tão cara à arte e à pintura. Penso aqui na representação tradicional, mas
também em seu esgarçamento, o que confere ao conceito acepções mais amplas,
como sugerem, cada um a seu modo específico, Arthur Danto e Didi-Huberman, ou
mesmo um contrapondo a tal noção por meio daquilo que Jacques Rancière nomeou
como “regime estético”. Em todo caso, pensamos que aquilo que a questão da
representação e da imagem nos coloca, sejam tais imagens figurativas ou não, é que
elas não se prestam a abarcar, a agarrar integralmente, o que está em jogo em uma
obra. Didi-Huberman propõe que se pense, com Freud, a imagem como rasgo, um
processo que abre a representação. Algo escapa, há um resto nesta operação. Há um
limite.

2 Gostaria de frisar que tanto a fotografia aludida quanto as silhuetas são elementos avulsos, sobras,
coisas colhidas que afetam o artista e que possivelmente, algum dia, venham a indicar caminhos
possíveis para novos trabalhos. Não se tratam de obras ainda, segundo ressaltou o artista.
3 Lacan, J. (1959-1960). O Seminário 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1991.
Em A Pintura Encarnada4, Didi-Huberman afirma que há um fantasma na pintura,
algo que ele aborda através da noção do encarnado. Se o encarnado tem a ver com a
pele, a carne, a superfície, é tão somente em sua dialética, imprevisível e indiscreta,
com a profundidade. O autor se volta para o drama de um personagem criado por
Balzac, em A Obra-Prima Desconhecida 5. Tal conto é leitmotiv que o conduz em sua
reflexão. Didi-Huberman toma o encarnado a partir de algo além, que o personagem
já parece evidenciar, visto que ele mesmo, sem querer, denuncia um a mais. O
encarnado é entendido, então, como entremeio, como um estrutura de dobra, trança de
superfície e profundidade, que configura uma dialética do aparecimento (épiphasis) e
do desaparecimento (aphanisis). Mas no que se sustenta este movimento de
aparecimento e desaparecimento na imagem?
O autor recorre, então, a Lacan, e se propõe a pensar a relação sujeito/objeto, trazendo
para o universo da pintura um corpus teórico de outro campo, a psicanálise, mas que,
certamente, também lhe diz respeito. A divisão constitutiva do sujeito, fruto de tal
relação, tal como defende Lacan, é também o que define, segundo Didi-Huberman, o
que ele chama de “sujeito da pintura”. Da operação que instala o sujeito, tal como
pensado pela psicanálise, um resto se extrai, o que Lacan chamou de objeto a, objeto
causa do desejo, aquilo que vem no lugar do que não se pode representar, sendo assim
uma espécie de representante vazio ou furado, aquilo que vem no lugar de, e não uma
representação. Tal como o sujeito, aquele da definição dada pela psicanálise, o
“sujeito da pintura” se vê enodado em sua relação com este objeto.
Resto, vazio, furo, objeto a. Todos são termos a que recorremos como forma de dar
algum contorno ao irrepresentável de nossa experiência com o Outro, com a
linguagem. O que se coloca aqui é o fato de que o sujeito, e também o “sujeito da
pintura”, esbarra em um limite e com ele terá que se virar. E o fazer do artista – o que
inclui os diferentes procedimentos e soluções que ele possa encontrar até o resultado
final concretizado na obra – é uma forma de lidar com tudo isso, é o exercício com o
limite, este que é também o paradigma a partir do qual a arte trabalha. Como nos
lembra Didi-Huberman, ali mesmo onde se anuncia o limite da pintura, o encarnado

4 Didi-Huberman, G. (1985). A pintura encarnada. São Paulo: Escuta, 2012.


5 Balzac, H. (1831). A obra-prima desconhecida, op. cit.
como resto, também se expõem os paradigmas nos quais a pintura, efetivamente,
trabalha.
O resto insiste na produção artística de Senise. Os procedimentos adotados pelo
artista, manipulações com os restos, nos permitem propor tal ideia. Me parece que
Senise parte do resto, limite e paradigma de sua pintura, para fazer pintura, sendo isso
também o que orienta o fazer de seus objetos e de suas instalações que são, como
afirmamos, atravessadas pela pintura.
Nos chama atenção, no conto escolhido por Didi-Huberman, o fato de Frenhofer, o
pintor atormentado e personagem principal, ter observado que algo essencial faltava à
pintura de Porbus, outro personagem-pintor do conto. Algo estava ausente, ainda que
a obra de Porbus pudesse ser considerada, em seu meio, uma obra-prima. Faltavam a
ela os efeitos, o sangue, a vida! Havia um resto ali enunciado. “A missão da arte não é
copiar a natureza, mas expressá-la! Não és um vil copista, mas um poeta”, exclama
Frenhofer enlouquecido. Se a oposição entre copiar e expressar ou copista e poeta já
nos remete à questão, amplamente debatida, da representação, isso não significa que
ela aqui se esgote ou mesmo se resolva circunscrita às problemáticas da pintura na
modernidade. Tudo isso, nos lembra Didi-Huberman, é uma “questão infernal”, que
não nos dá descanso. Tão debatida quanto antiga, trata-se de uma problemática
inerente à própria pintura e que atravessa o tempo.
E como, nos dias de hoje, ler a exclamação de Frenhorfer? Ao se debruçar sobre as
questões abertas pelo conto, que perpassam toda a história da pintura, Didi-Huberman
nos convida a pensar a problemática da imagem e da pintura na contemporaneidade.
Extraindo do texto as vicissitudes da relação sujeito/objeto, o autor aborda a instigante
questão do olhar, já evocada por Merleau-Ponty e Lacan, cuja tese central poderia ser
resumida por meio do título de um outro livro seu, dedicado também a esta mesma
reflexão: “o que vemos, o que nos olha”. Aquilo que vemos na pintura, na verdade,
nos olha. É toda a subversão do sujeito e, sobretudo, a dialética do desejo 6 que Didi-
Huberman convoca aqui.
Penso agora no objeto La pintura española, em que Senise, numa referência ao
quadro As meninas, de Velázquez, acentua a questão do olhar já invocada pelo pintor
espanhol: ao mirarmos no pequeno buraco aberto por Senise em uma robusta

6
A subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960) é o título de um texto
de Lacan, fundamental para a questão que estamos abordando. O texto foi publicado em Lacan, J.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
publicação, um livro mesmo que se encontra pendurado, tal como um quadro em uma
parede, vemos nosso próprio olhar na obra, através de um espelho, a nos espreitar.
Algo resta da relação sujeito/objeto. Um objeto que é causa do desejo. E isso insiste,
na história da arte e também na história da obra de certos pintores. O artista, afirma
Didi-Huberman, estaria dividido entre a arbitragem, que busca o arremate da obra, a
obra ideal, que capturaria aquilo que resta de irrepresentável, e a partilha, que
perpetua a divisão do “sujeito da pintura”. O saber do artista seria, assim, o saber
como dúvida, como desejo e, certas vezes, como dilaceração. Seria operar pela
divisão entre a arbitragem e a partilha, que comporta diversas saídas. O que não
significa que o artista possa alcançar o ideal a partir disso que se sabe, visto que tal
saber é, paradoxalmente, um “saber que não se sabe”. Mas este “saber que não se
sabe” não é algo do qual simplesmente não se tenha consciência. Ele é da ordem do
inconsciente, que não é o não sabido, mas sim o inconsciente estruturado como
linguagem, como propõe Lacan. Trata-se, como ressaltou o psicanalista francês, de
um “saber fazer com”, um saber fazer por meio da própria obra, saber fazer algo com
o resto, como nos ensina Senise.
Mas lidar com restos não garante a Senise alcançar o arremate último da pintura:
vencer, anular, fazer sumir os impasses e limites da pintura e da sua própria pintura.
Se assim fosse, o artista não pintaria mais, sua pintura não avançaria para outros
suportes. Lidar desta forma com os restos não significa que Senise os tenha
arrematado definitivamente. Seu olhar é desejante. Sua obra o olha. Caso contrário,
não veríamos hoje os diferentes destinos da pintura de Daniel Senise e eu não me
arriscaria a dizer agora, para finalizar este ensaio, que no caso deste artista a própria
pintura poderia ser pensada como resto.

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