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Flavia Corpas*
Depois que Hubert Damisch, outro filósofo da arte também atravessado pela
psicanálise, recusou orientar suas pesquisas sobre Goya, Didi-Huberman passou
um tempo desocupado até que se deparou com “algumas fotografias enigmáticas
de mulheres de gestos estranhos” (Didi-Huberman, 2015, p. 397). Ainda que, em
determinadas imagens, fosse até possível encontrar alguma beleza, tratava-se de
uma beleza que não trazia alento, nenhuma elevação, “eram imagens
perturbadoras e até dolorosas de olhar” (loc. cit.). Ali estava Didi-Huberman
diante das imagens “das” histéricas “de” Charcot.
No instigante posfácio que compõe a versão brasileira deste livro, publicado trinta
e poucos anos depois de sua primeira edição, é possível sentir ainda os efeitos que
produziram no autor as imagens inventadas, e também por isso furadas, da
histeria. Nenhum alento, nenhuma elevação.
No Seminário 20, Lacan afirma que "sublime quer dizer o ponto mais elevado do
que está embaixo" (1972-1973/1985, p. 23). A partir disso, podemos ler o referido
posfácio, trabalho crítico a respeito da sublimação na psicanálise. "Será que a
sublimação eleva excessivamente, ou nos reduz ao que há de mais raso nas coisas,
ou até a seu subsolo pulsional?" (Didi-Huberman, 2015, p. 400).
Nos parece impossível não propor aqui uma articulação com os desdobramentos
que a questão da arte, e também da sublimação, foram assumindo no ensino de
Lacan até chegarmos em sua leitura de James Joyce, sobre a qual Jacques-Alain
Miller propõe a associação entre o conceito de sublimação e a ideia de escabelo
(Miller, 2007, p. 208). Um escabelo é um pequeno banco ou uma escadinha
doméstica. Mas Lacan (1975/2003) recorre a ele para abordar a singularidade da
obra de Joyce, em sua íntima relação com o uso que o escritor faz do próprio
sinthoma, aquilo que há de mais singular no sujeito, produzindo assim uma
literatura sem precedentes. É importante destacar que a palavra escabelo traz
consigo o belo, sob a forma de junção das letras que finalizam a palavra, e a ideia
de uma elevação, só que pequena, o que nos remete novamente ao sublime como
“o ponto mais elevado do que está embaixo".
Haveria um corte abrupto entre aquilo que trabalha Lacan no Seminário 7 sobre a
sublimação e o Seminário 23, em que ele não usa tal termo, mas no qual introduz
o escabelo? Mais do que ver continuidades ou rompimentos absolutos entre os
diferentes momentos do ensino de Lacan, é preciso alguma dialética (Miller,
2011, p. 10). Nos parece que o que trabalha Lacan a respeito da arte em seu
último ensino propõe uma dobra que nos permite retornar aos textos anteriores
para tirar novas consequências.
Freud que, segundo Lacan (1965/2003, p. 203), ficou de bico calado sobre a
sublimação, deixando assim aturdidos os analistas, por outro lado os advertiu
quanto ao fato de que a satisfação que a sublimação traz não é ilusória. Como
sabemos, trata-se de uma elaboração de Lacan sobre a obra de Marguerite Duras.
É nesse mesmo texto que o psicanalista francês afirma que a prática da letra
converge com o uso do inconsciente (Lacan, 1965/2003, p.200).
Não poderíamos ler, já nessa frase, algo que nos ajude a abordar a convergência
entre sinthoma e escabelo? E assim, acompanhados por Lacan, nos aproximar
daquela que foi a sua interrogação sobre a arte no Seminário 23 (1975-1976/2007,
p. 23), interrogação que, nos parece, sempre poderá ser relançada: “em que o
artifício pode visar expressamente o que se apresenta de início como sintoma? Em
que a arte, o artesanato, pode desfazer, se assim posso dizer, o que impõe do
sintoma? A saber, a verdade” (loc. cit.).
Referências bibliográficas
Miller, J-A. Nota passo a passo. In: LACAN, J. O Seminário 23: o sinthoma. Rio
de Janeiro: Zahar, 2007.