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Didi-Huberman com Lacan ou

Sobre possibilidades entre arte e psicanálise hoje

Flavia Corpas*

Didi-Huberman, leitor de Freud e Lacan, mais também de tantos outros


importantes nomes para o campo da arte, publica seu primeiro livro, Invenção da
histeria, em 1982. Nele o filósofo e historiador da arte francês aborda, de maneira
original, Charcot e sua iconografia fotográfica da Salpêtrière.

Depois que Hubert Damisch, outro filósofo da arte também atravessado pela
psicanálise, recusou orientar suas pesquisas sobre Goya, Didi-Huberman passou
um tempo desocupado até que se deparou com “algumas fotografias enigmáticas
de mulheres de gestos estranhos” (Didi-Huberman, 2015, p. 397). Ainda que, em
determinadas imagens, fosse até possível encontrar alguma beleza, tratava-se de
uma beleza que não trazia alento, nenhuma elevação, “eram imagens
perturbadoras e até dolorosas de olhar” (loc. cit.). Ali estava Didi-Huberman
diante das imagens “das” histéricas “de” Charcot.

No instigante posfácio que compõe a versão brasileira deste livro, publicado trinta
e poucos anos depois de sua primeira edição, é possível sentir ainda os efeitos que
produziram no autor as imagens inventadas, e também por isso furadas, da
histeria. Nenhum alento, nenhuma elevação.

Ainda que Didi-Huberman se utilize e se aproxime mais explicitamente dos textos


de Freud, é notória sua leitura de Lacan, da qual gostaríamos de tirar algumas
consequências: Didi-Huberman, com Lacan, em seu encontro com Freud. E por
que não dizer, até mesmo, em um retorno a Freud? É que parece que neste diálogo
Didi-Huberman/Lacan podemos ler Freud novamente, de outra forma. Tudo isso
pode nos remeter, esta é nossa proposta, ao que Lacan trabalhou no final de seu
ensino a respeito da arte, da sublimação e da noção de sinthome.

No Seminário 20, Lacan afirma que "sublime quer dizer o ponto mais elevado do
que está embaixo" (1972-1973/1985, p. 23). A partir disso, podemos ler o referido
posfácio, trabalho crítico a respeito da sublimação na psicanálise. "Será que a
sublimação eleva excessivamente, ou nos reduz ao que há de mais raso nas coisas,
ou até a seu subsolo pulsional?" (Didi-Huberman, 2015, p. 400).

Didi-Huberman propõe que a crítica da sublimação implica em não buscar nela a


síntese, mas sim trabalhar a partir dos paradoxos, aporias e estranhezas, o que
pode reconstruir o próprio objeto da crítica.

Nos parece impossível não propor aqui uma articulação com os desdobramentos
que a questão da arte, e também da sublimação, foram assumindo no ensino de
Lacan até chegarmos em sua leitura de James Joyce, sobre a qual Jacques-Alain
Miller propõe a associação entre o conceito de sublimação e a ideia de escabelo
(Miller, 2007, p. 208). Um escabelo é um pequeno banco ou uma escadinha
doméstica. Mas Lacan (1975/2003) recorre a ele para abordar a singularidade da
obra de Joyce, em sua íntima relação com o uso que o escritor faz do próprio
sinthoma, aquilo que há de mais singular no sujeito, produzindo assim uma
literatura sem precedentes. É importante destacar que a palavra escabelo traz
consigo o belo, sob a forma de junção das letras que finalizam a palavra, e a ideia
de uma elevação, só que pequena, o que nos remete novamente ao sublime como
“o ponto mais elevado do que está embaixo".

Haveria um corte abrupto entre aquilo que trabalha Lacan no Seminário 7 sobre a
sublimação e o Seminário 23, em que ele não usa tal termo, mas no qual introduz
o escabelo? Mais do que ver continuidades ou rompimentos absolutos entre os
diferentes momentos do ensino de Lacan, é preciso alguma dialética (Miller,
2011, p. 10). Nos parece que o que trabalha Lacan a respeito da arte em seu
último ensino propõe uma dobra que nos permite retornar aos textos anteriores
para tirar novas consequências.

Outro ponto de encontro entre Didi-Huberman e Lacan pode ser descortinado


através da afirmativa do primeiro: sua "via real" para pensar as imagens da arte
nunca foi a da sublimação, mas sim a do sintoma (2015, p. 397). Como não ouvir
aqui os ecos do que nos diz Lacan em 1975, em uma das conferências que deu nos
Estados Unidos. “Explicar a arte pelo inconsciente parece-me o que há de mais
suspeito. No entanto é isto que os analistas fazem. Explicar a arte pelo sintoma me
parece mais sério” (Lacan, 1975, p. 38).

Se para Didi-Huberman e seu campo, o da arte, problematizar a sublimação cria


formas potentes de pensar as imagens, enquanto imagem-furo (Rivera, 2013, p.
151), o que dizer da importância de pensar a sublimação hoje para os
psicanalistas? Se a convergência entre sinthoma e escabelo, ou nas palavras de
Miller (2014, p. 05), o escabelo-sintoma, diz respeito não somente à arte, mas
também ao passe – dispositivo criado por Lacan no qual o analista transmite algo
de sua passagem de analisando a analista –, não teremos aqui reformuladas as
colocações, tanto de Freud quanto de Lacan, a respeito do que nos ensinam os
artistas aos analistas?

Freud que, segundo Lacan (1965/2003, p. 203), ficou de bico calado sobre a
sublimação, deixando assim aturdidos os analistas, por outro lado os advertiu
quanto ao fato de que a satisfação que a sublimação traz não é ilusória. Como
sabemos, trata-se de uma elaboração de Lacan sobre a obra de Marguerite Duras.
É nesse mesmo texto que o psicanalista francês afirma que a prática da letra
converge com o uso do inconsciente (Lacan, 1965/2003, p.200).

Não poderíamos ler, já nessa frase, algo que nos ajude a abordar a convergência
entre sinthoma e escabelo? E assim, acompanhados por Lacan, nos aproximar
daquela que foi a sua interrogação sobre a arte no Seminário 23 (1975-1976/2007,
p. 23), interrogação que, nos parece, sempre poderá ser relançada: “em que o
artifício pode visar expressamente o que se apresenta de início como sintoma? Em
que a arte, o artesanato, pode desfazer, se assim posso dizer, o que impõe do
sintoma? A saber, a verdade” (loc. cit.).

Referências bibliográficas

Didi-Huberman, G. (1982). Invenção da histeria: Charcot e a iconografia


fotográfica de Salpêtrière. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
Lacan, J. (1959-1960). O Seminário 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1991. 396 p.

_________. (1965). Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol


V. Stein. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 198-206.

_________. (1972-73). O Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar,


2008. 201p.

_________. (1975). Conferencias y charlas en universidades norte-


americanas. Inédito.

_________. (1975). Joyce, o sintoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro:


Zahar, 2003. p. 560-566.

_________. (1975-76). O Seminário 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar,


2007. 249p.

Miller, J-A. Nota passo a passo. In: LACAN, J. O Seminário 23: o sinthoma. Rio
de Janeiro: Zahar, 2007.

_________. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo


e gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

__________. O inconsciente e o corpo falante. Site da Associação Mundial de


Psicanálise. Acesso em 19 de julho de 2014.

Rivera, T. O avesso do imaginário. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 432p.

*Psicanalista e curadora de artes visuais, pesquisadora de Pós-doutorado junto ao


Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ e doutora em
Psicologia Clínica pela PUC/RJ. É professora no Museu de Arte Moderna de São
Paulo, onde leciona no curso Arte e Psicanálise.

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