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FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 [1973] (88


páginas).

Ricardo dos Santos Silva1

Nós somos, todos os dias, interpelados por imagens, textos, afirmações, enfim,
discursos de todos os tipos. E, na maioria das vezes, tomamos esses discursos como verdades
absolutas, transparentes. Talvez por hábito, talvez por descuido, costumamos não questioná-
los: eles nos vêm como a representação verossímil da realidade, e essa representação é, por
vezes, tida como a própria realidade.

É pelo viés da negação de uma realidade representada que Michel Foucault, em seu
livro Isto não é um cachimbo (1988 [1973]), desestabiliza aquilo que nos parecia
inquestionável e noz faz refletir a realidade como algo mediado por representações que não
podem ser tomadas como substitutivas dos objetos que representam.

A análise do filósofo francês, que viveu no século XX (1926-1984) e exerceu grande


influência sobre os intelectuais franceses e ainda exerce sobre os intelectuais contemporâneos,
por motivo de suas vastas e relevantes contribuições às ciências humanas, nasce de uma
homenagem ao pintor surrealista belga René Magritte (1898-1976), cujas obras são um grande
legado à história da arte. Foucault (1988 [1973]), por sua vez, deu sua contribuição ao estudo
da arte – ou, poderíamos dizer, da arte em geral – com as reflexões tecidas em Isto não é um
cachimbo acerca de obras desse pintor. Tais reflexões podem se aplicar a várias áreas de
estudo, sendo uma delas, por exemplo, a dos estudos literários, ao nos permitir pensar sobre
um conceito de grande relevo nesse campo, que é o conceito de representação.

Com o livro, Foucault (1988 [1973]) dá notáveis contribuições ao estudo da arte. Sua
discussão de divide em seis capítulos. No primeiro capítulo, “Eis dois cachimbos”, Foucault
(1988 [1973]) levanta incertezas acerca de duas pinturas de Magritte. No segundo capítulo,
“O caligrama desfeito”, o filósofo francês conjectura que a “diabrura” (FOUCAULT, 1988
[1973], p. 21) da pintura de Magritte consiste na desfacção de um caligrama. Essa operação,
contudo, é responsável pelos entrecruzamentos da escrita/texto e do desenho/figura. O
capítulo seguinte, “Klee, Kandinsky, Magritte”, apresenta-nos uma análise de Foucault (1988

1 Graduando do curso de Letras da UFAL Campus do Sertão. E-mail: kaiolunoo@hotmail.com


[1973]) sobre como os pintores Klee e Kandinsky romperam dois princípios que reinaram
sobre a pintura ocidental do século XV ao XX, e coloca Magritte como uma figura que se
distancia deles e, ao mesmo tempo, os complementa. No quarto capítulo do livro, intitulado
“O surdo trabalho das palavras”, Foucault (1988 [1973]) continua fazendo comparações entre
a obra de Klee e Magritte, e situa, com base na análise das obras deste, as relações tecidas
entre imagem e palavra. Em “Os sete selos da afirmação”, quinto capítulo do livro, Foucault
(1988 [1973]) discute os conceitos de semelhança e similitude a partir de obras de Magritte –
como Representação (1962) e Decalcomania (1966) – e percebe que, na pintura de Magritte,
se dá uma rede de similitudes, o que é reafirmado no último capítulo, “Pintar não é afirmar”.

Para compreender, brevemente, o que sejam a semelhança e a similitude, podemos


dizer que a semelhança é um elemento hierarquizador, que está na ordem de uma única
asserção, comportando uma referência primeira, a partir das qual outras cópias (gradualmente
mais fracas) podem ser feitas. A similitude, contudo, não é obediente a nenhuma hierarquia, e
se desenvolve em séries de afirmações sem começo nem fim, as quais, multiplicadas,
“dançam juntas, apoiando-se e caindo umas em cima das outras” (FOUCAULT, 1998 [1973],
p. 64).

Ao analisar a pintura de um cachimbo feita por Magritte em 1926 e, na própria pintura,


a presença do enunciado Ceci n'est pas une pipe (Isto não é um cachimbo) – que, como tal,
sem o aporte teórico foucaultiano, já nos causa um impacto imediato, a liquefação de um chão
no qual parecíamos pisar seguramente, a incerteza de uma verdade que parecia muito evidente
–, Foucault (1988 [1973]) nos ajuda a ponderar acerca das incertezas que a pintura surrealista
magritteana nos suscita. Essas incertezas, segundo Foucault (1988 [1973]), são multiplicadas
ao se analisar outra pintura de Magritte, desta vez de 1966, intitulada Les deux mystéres (Os
dois mistérios), a qual, não por acaso, representa não apenas um, mas dois cachimbos, desta
vez um cachimbo no interior de uma moldura, que parece ser um quadro escolar; abaixo dele,
a mesma negação: Ceci n'est pas une pipe, e, acima, um cachimbo maior.

Essa pintura, como a primeira, força-nos a refletir e a desnaturalizar nossas certezas, e


a leitura que Foucault (1988 [1973]) faz, baseado, fundamentalmente, muito mais em
questionamentos do que em afirmações (e mesmo as afirmações não figuram completamente
como certezas) nos desarma por completo de um ponto fixo, o que a própria pintura não
apresenta: nada nela é o que parece. Dessa forma, fica-nos a sensação de um mistério
permanente na ausência mesmo da menor certeza.
Apesar da complexa construção do pensamento foucaultiano nessa obra, o que se
reflete na própria sintaxe do texto e na linguagem utilizada, e que pede a quem está lendo
conhecimentos básicos acerca de signos linguísticos, imagem e discurso, leituras repetidas do
texto podem ajudar a deixar mais claro o pensamento do autor, que possui, não obstante seus
questionamentos filosóficos que emergem, necessariamente, no texto, a curtos intervalos, um
estilo conciso e coerente.

Além disso, embora seja uma obra sobre arte e filosofia que parece se voltar, mais
especialmente, a estudantes e especialistas dessas áreas de conhecimento, acreditamos que o
texto, salvo certo esforço de leitura, pode ser acessado por um público mais amplo, que dele
pode tirar valiosas reflexões acerca do mistério envolvido na arte – mais especialmente, na
arte surrealista de Magritte, que, como um “pintor pensador”, segundo define Bernardo (2016,
s/p), desautomatiza nosso pensamento acerca das certezas que cultivamos em relação à
aparência de verdade e transparência das imagens que, como já dito, nos interpelam
cotidianamente.

Buscando, assim, a partir das reflexões de Foucault (1988 [1973]), operar uma leitura
acerca de como a sexualidade é vista em nossa sociedade e, dessa forma, representada de uma
determinada forma, tomamos como aporte para essa leitura Santos Filho (2012), que, com
base em pensadores como o próprio Foucault (1988), além de Bozon (2004) e Giddens (1993),
defende que os comportamentos e identidades sexuais são contextuais e históricos e que há
havido uma mudança nos relacionamentos e comportamentos sexuais contemporaneamente.
Da mesma forma, podemos refletir, a partir de Borba (2015 [2006]), que aquelxs que se
insurgem contra as normas sociais tanto de gênero quanto de sexualidade são considerados
sujeitos abjetos. Nos termos de Bauman (1998), seriam os estranhos, dissidentes do mapa
cognitivo e moral – e, diríamos também, sexual – do mundo.

Se pensarmos essa mapa moral e sexual pelo viés da inteligibilidade de gênero


tratada também por Santos Filho (2017), compreendemos que os sujeitos – em diálogo com a
semelhança foucaultiana, que institui e afirma um modelo único – deveriam se comportar de
formas consideradas masculinas ou femininas, em um coerente acordo com a configuração
morfológica de seus corpos, e esses comportamentos se estenderiam, de igual maneira, às
práticas sexuais, constituindo a heterossexualidade, esse modelo hierarquizante, o qual
negaria a possibilidade de existência de outras representações da sexualidade.
Preferimos pensar essas outras representações da sexualidade por meio do conceito
de devir (DELEUZE, 1997), a partir do qual compreendemos a sexualidade como algo sempre
inacabado e sempre em processo, como algo que não está pronto e, desse modo, não pode ser
afirmado, não se encontrando, portanto, no campo das semelhanças apontadas por Foucault
(1988 [1973]), mas das similitudes. Sob esse ponto de vista, a heterossexualidade não pode
ser tomada como a única sexualidade verdadeira, nem como a única realidade possível para os
sujeitos. A sexualidade em devir é sempre a sua própria negação e a negação de uma única
imagem da sexualidade que antes parecia única e irrevogável.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zugmunt. A criação e anulação dos estranhos. In:______. O mal-estar da pós-
modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 (pp. 27-48).
BERNARDO, Gustavo. Desde quando um cachimbo não é um cachimbo? Revista
Eletrônica do Vestibular UERJ. Ano 9, n. 25, 2016. Disponível em:
<http://revista.dses.uerj.br/coluna/c
oluna.php?seq_coluna=80> Acesso em: 06 out 2018.
BORBA, Rodrigo. Linguística Queer: uma perspectiva pós-identitária para os estudos da
linguagem. Entrelinhas, v. 9, n. 1, jan./jun. 2015 (pp. 91-107).
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In:______. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34,
1997 (pp. 11-16).
SANTOS FILHO, Ismar Inácio dos. A construção discursiva de masculinidades bissexuais:
um estudo em linguística queer (Tese de Doutorado, UFPE). Recife: O Autor, 2012.
______. Linguística Queer: na luta discursiva, como/sobre prática de ressignificação. In:
SILVA, Danillo da C. P.; MELO, Iran Ferreira de; CASTRO, Lorena G. F. De (Org.).
Questões de linguagem e sociedade. Aracaju: Criação, 2017 (pp. 153-184).

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