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Figura 1: Duplo Elvis (1963). Fonte: banco Warburg, disponível em: http://warburg.chaa-
unicamp.com.br/artistas/view/724
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Resumo:
Este trabalho se propõe a analisar a obra de Andy Warhol como aglutinadora das
características mais conhecidas como pós-modernas em arte. Com base nos estudos
teóricos acerca do pós-modernismo e da Pop Art, sobretudo os trabalhos de Jean-
François Lyotard, Oscar de Gyldenfeldt, Fredric Jameson e David Harvey, busca-se
entender as antecipações que a arte de Andy Warhol realizou como atestado de sua
episteme — a do capitalismo tardio. Assim, o texto expõe a ruptura de paradigma na
arte de fins de século XX para princípios de XXI, quando os fatores de legitimação
saltaram para elementos externos ao objeto artístico.
Palavras-chave: História da Arte. Pós-modernismo. Pop Art. Andy Warhol
de seu centro, e o que parece dominar — a realidade banal de um garfo de bicicleta com
roda e um banquinho, por exemplo — eleva-se pela categoria de arte ao lugar do novo,
topos que exige outro olhar. Duchamp desafiava assim a leitura do espectador,
rompendo com a postura passiva e a interpretação retilínea da realidade. Se Duchamp
como que retirou as molduras da arte para produzir o quadro total, mais do que nunca o
espectador se via açulado à responsabilidade de leitor, para quem o significado restava
num limiar. O camino de Andy Warhol estava aberto.
Para Gyldenfeldt, a roda institui um paradigma novo, calcado, termo de Adorno,
na "falta de evidência", porque rompe com o limite entre o objeto artístico e o utilitário.
Quer pela ausência do estético, quer pela subordinação do estético à ideia, um novo
saber daí teria se emanado.
Vale o risco pensar (e não é novidade) a obra de Duchamp sob o viés
metalinguístico, de onde o que produziu pode ser interpretado como uma releitura de
todas as posturas artísticas. Nesse caso, Duchamp teria construído arte sobre a teoria da
arte, objetos que são manifestos e nos quais a matéria mesma é a linguagem, em seu
caso sobretudo a visual (embora tenha proposto, mais tarde, a arte tátil, inclusive
quando do envolvimento com a artista brasileira Maria Martins, de cujo seio reproduziu
a textura para o catálogo surrealista que organizou com Breton para a Maeght Galerie,
de Paris). Pela linguagem Duchamp desafiou a realidade, mostrando-a tão artística a
ponto de ser nula. Talvez que ele não tenha objetivado anular a arte, mas sim a
realidade, resgatando do mundo trivial sua característica imanentemente artística. O
malogro, nesse caso, se dá pelas vias de tudo o que até então vinha se chamando de
referente. A impostura de Duchamp tratava, pois, não de falsificar a moeda, mas o valor
a ela atribuído. O passo de Warhol foi o de o banqueiro: é ele quem vai produzir as
cédulas novas para a movimentação das novas concepções de arte.
Borges ilustra tal procedimento sem mencionar Warhol. Nem precisava. Em
Quando a ficção vive na ficção (1939), o argentino cita Velásquez e o famoso quadro
As meninas; detém-se no Quixote, em As mil e uma noites — “Em As Mil e Uma Noites,
Sherazade conta muitas histórias; uma dessas histórias por pouco não é a história de As
Mil e Uma Noites.” E chega a Hamlet:
que o maciço estilo exagerado dessa peça menor faz com que o drama
geral que a inclui pareça, por contraste, mais verdadeiro. Eu
acrescentaria que seu propósito essencial é oposto: fazer com que a
realidade pareça-nos irreal. (BORGES, 1939, p.505)
Daí advém a tese elaborada por Borges e ilustrada por Warhol — abalar a
realidade, não se aproximar dela. Uma obra de arte como leitura, num mergulho na
escuridão. Mais que propor interferências internas, pareceu interessar a Borges anuviar
a ótica do espectador. Os referentes de verdade, por isso, ficavam restritos à esfera da
linguagem, circunstanciais da dimensão da leitura, como se advertisse ao espectador que
não confiasse na realidade como ponto de apoio, porque a bengala servia ao terreno
apenas da arte. A rasura, nesse caso, lembra a técnica de Warhol: rasura que não deve
ser procurada senão na realidade externa.
Gyldenfeldt busca outra perspectiva, mas cujo sintoma é o mesmo. Para o
professor argentino, interessa encontrar o Ser da obra de arte, questionando, entre outros
aspectos, se qualquer coisa é arte, se em arte tudo está permitido ou se algo ainda exerce
legitimação, se o conceito basta, se um sujeito que produz algo aceito como arte é
mesmo artista, e, o que formulará mais tarde, na relação entre obra, artista, arte, quem
legitima o quê.
Fato é que, mais que apontar a mudança para arte moderna, seu texto inunda o
que alguns teóricos separam como pós-moderno, quando, por exemplo, Gyldenfeldt
afirma que o ready-made põe em questionamento a normalidade do mundo
hipertecnificado, repleto de utilitários inúteis. Para obter algumas respostas, o ponto de
apoio é Heidegger.
No texto A origem da obra de arte, Heidegger usa seu conceito de ser e tempo,
apontando que: a) o ser é uma ausência, é o reclamante de uma falta; b) o ser não é algo
dado, mas uma construção, uma possibilidade no tempo e no espaço (o Dasein); c) o ser
é o que faz que algo seja, portanto um projeto, portanto uma intenção; d) o ser é o que
vem a ser; e) o ser (e sobretudo o artístico) é o "fenômeno", é enquanto se manifesta,
mostra-se a si mesmo. O grande achado de Heidegger é o fato de que a obra de arte é
fora dela. A arte, nesse sentido, não é coisa, é alegoria (não significa em si, mas através
do que comunica) — daí que a obra é um significante polissêmico. Analisando a
essência dos outros objetos, os utilitários, Heidegger define que são úteis quando
desaparecem em sua função. Por isso a arte só pode ser inútil, já que se mostra.
Gyldenfeldt ilustra os eixos de sua ideia com as de Heidegger, lendo obras de artistas
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contemporâneos, cuja finalidade é nula, porque tais obras não são meios. Ao contrário,
escondem o de mais precioso e sobretudo mostram que escondem, constituindo a coisa
inacabada e dispersa que é a arte pós-moderna. Essa dispersão como sintoma de nossa
época pode ser sentida nas relações intertextuais que configuram espaços cambiantes,
nem particulares nem públicos, e abertos. Nesse contexto, encontramo-nos no domínio
do significante, da performance, o que atesta a passagem de uma sociedade calcada no
valor de uso para o período do valor de troca.
A obra de arte teria, assim, perdido, desde Duchamp, sua capacidade de evocar
um mundo, preferindo, pela linguagem que lhe é própria, fundar mundos novos pelo
que representa e como representa. Outras hipóteses para a questão medular de
Gyldenfeldt aparecem nos textos de Arthur Danto e George Dickie. O primeiro,
avaliando o fim da arte, chegou à hipótese de que o que acabou foi a história da arte.
Parte, claramente, do fim dos relatos paradigmáticos de Lyotard, que, em O pós-
moderno, analisa a sociedade pós-industrial, informatizada e cibernética, considerando
como condição pós-moderna, numa simplificação extrema, a “incredulidade em relação
aos metarrelatos” (LYOTARD, 1979). Pondera que “o saber científico é uma espécie de
discurso” e define justamente a modernidade na relação que um discurso mantém com
seu metarrelato no intuito de legitimar-se:
Por isso a verdade pós-moderna só poderia, segundo sua lógica, ser terreno da
linguagem. Como a linguagem mostrou-se sempre flexível às transformações que
cercam o homem — como a velocidade dos meios de transporte e,
contemporaneamente, com a informática —, segue-se que a natureza do saber é também
processual.
Nessa observação, encontra-se que a experiência da pós-modernidade teria como
ponto de partida a perda de quaisquer crenças em visões totalizantes da história, cujas
aspirações a sistemas políticos e éticos de aplicação a toda humanidade já não se
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Uma ciência que não encontrou sua legitimidade não é uma ciência
verdadeira; ela cai no nível o mais baixo, o de ideologia ou de
instrumento de poder, se o discurso que deveria legitimá-la aparece
ele mesmo como dependente de um saber pré-científico, da mesma
categoria que um relato "vulgar". (LYOTARD, 1979, p.70)
ser fabricado pela mídia, também ele, como o novo artista empreendedor, podia
continuar a fabricá-lo extensivamente.
Da parte de Dickie e seu conceito de artifactualidade, o olhar da arte como
espetáculo também investe na noção de performance para afirmar a transformação de
um mictório industrial que Duchamp fez dobrar em objeto artístico através da mudança
radical de referente. Nesse caso, o contexto base, que antes era a natureza, foi
convertido, também ele, em cultura, a partir da colonização do inconsciente, conforme
Jameson atesta:
Por isso, a arte de Warhol não constituiu um estilo, mas uma dominância
cultural. Leio Gyldenfeldt poluído de uma análise que vê a arte como discurso e
encontro, conforme Roman Jakobson, um objeto que, num referente útil, é a imagem de
Elvis, e, em referente arte, uma reprodução da imagem de Elvis. Só posso chegar a um
paradoxo, cujo pai é Duchamp: talvez a arte seja inevitavelmente mentira pelo simples
fato de que não pode ser verdade, sob pena de perder o referente que a legitima.
Como não pensar em Warhol como aquele que aglutinou tudo isso, não só na sua
arte, mas no personagem-artista que se tornou? Ele foi três ao mesmo tempo (Anne
Cauquelin o vê como um simultâneo de simples publicitário, artista pop reconhecido e
empreendedor de negócios):
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte:
Autêntica editora, 2013.
DANTO, Arthur. Después del fin del arte. Barcelona: Paidós, 1999.
GYLDENFELDT, Oscar de. ¿Cuándo hay arte? In.: OLIVERAS, Elena. Cuestiones
del arte contemporáneo - 1a edição. Buenos Aires: Emecé editores, 2008.