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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL — UFRGS


INSTITUTO DE ARTES — BACHARELADO EM HISTÓRIA DA
ARTE
História da Arte VI | Profa. Dra. Niúra Legramante Ribeiro
Altair Martins

Andy Warhol e a aglutinação do pós-moderno

Figura 1: Duplo Elvis (1963). Fonte: banco Warburg, disponível em: http://warburg.chaa-
unicamp.com.br/artistas/view/724
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Resumo:
Este trabalho se propõe a analisar a obra de Andy Warhol como aglutinadora das
características mais conhecidas como pós-modernas em arte. Com base nos estudos
teóricos acerca do pós-modernismo e da Pop Art, sobretudo os trabalhos de Jean-
François Lyotard, Oscar de Gyldenfeldt, Fredric Jameson e David Harvey, busca-se
entender as antecipações que a arte de Andy Warhol realizou como atestado de sua
episteme — a do capitalismo tardio. Assim, o texto expõe a ruptura de paradigma na
arte de fins de século XX para princípios de XXI, quando os fatores de legitimação
saltaram para elementos externos ao objeto artístico.
Palavras-chave: História da Arte. Pós-modernismo. Pop Art. Andy Warhol

Há uma troca essencial de paradigma para que compreendamos a obra de Andy


Warhol como confluência do pós-moderno: a arte passou a ser irrelevante do ponto de
vista material, e o seu conceito (o fenômeno circunstancial) alçou-se como única
condição significadora. Seja pelos pensamentos de Nelson Goodman (1984) ou de
Arthur Danto (1999), a questão parece semelhar o que assinala também Agamben no
ensaio Les jugements sur la poésie ont plus de valeur que la poésie (2013): “Na arte
contemporânea, é o juízo crítico que põe a nu a sua própria dilaceração e, assim
fazendo, suprime e torna supérfluo o seu próprio espaço” (AGAMBEN, 2013, p. 89).
Agamben refere-se aí a um longo processo, começado, segundo ele, em Kant, e
concluído na contemporaneidade, qual seja, o de que o conceito de belo substituiu a
beleza e, nesse sentido, a arte submeteu-se à sua sombra — o discurso que se faz sobre
ela.
No complexo texto ¿Cuándo hay arte?, o professor Oscar de Gyldenfeldt, no
revés da atitude de definir arte, prefere determinar o referente sob o qual a arte passou a
investir-se: "quando" e "por que" são seus delimitadores para pensar o paradigma das
"belas artes". Para isso, parte do que considera a primeira ruptura — Marcel Duchamp.
Há mesmo uma teoria nova de arte proposta por Duchamp: a intenção como
linguagem. Talvez seja essa a grande contribuição do francês para a história da arte, a
saber: que a estética, como linguagem em Agamben, só se realiza na situação de
discurso. De outro modo, é só objeto, como animais empalhados a serviço da
catalogação da História. Exemplificam sua postura inovadora a roda de bicicleta, porta-
garrafa (de 1913) e a fonte (1917, assinado por R. Mutt). Aí o espectador é deslocado
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de seu centro, e o que parece dominar — a realidade banal de um garfo de bicicleta com
roda e um banquinho, por exemplo — eleva-se pela categoria de arte ao lugar do novo,
topos que exige outro olhar. Duchamp desafiava assim a leitura do espectador,
rompendo com a postura passiva e a interpretação retilínea da realidade. Se Duchamp
como que retirou as molduras da arte para produzir o quadro total, mais do que nunca o
espectador se via açulado à responsabilidade de leitor, para quem o significado restava
num limiar. O camino de Andy Warhol estava aberto.
Para Gyldenfeldt, a roda institui um paradigma novo, calcado, termo de Adorno,
na "falta de evidência", porque rompe com o limite entre o objeto artístico e o utilitário.
Quer pela ausência do estético, quer pela subordinação do estético à ideia, um novo
saber daí teria se emanado.
Vale o risco pensar (e não é novidade) a obra de Duchamp sob o viés
metalinguístico, de onde o que produziu pode ser interpretado como uma releitura de
todas as posturas artísticas. Nesse caso, Duchamp teria construído arte sobre a teoria da
arte, objetos que são manifestos e nos quais a matéria mesma é a linguagem, em seu
caso sobretudo a visual (embora tenha proposto, mais tarde, a arte tátil, inclusive
quando do envolvimento com a artista brasileira Maria Martins, de cujo seio reproduziu
a textura para o catálogo surrealista que organizou com Breton para a Maeght Galerie,
de Paris). Pela linguagem Duchamp desafiou a realidade, mostrando-a tão artística a
ponto de ser nula. Talvez que ele não tenha objetivado anular a arte, mas sim a
realidade, resgatando do mundo trivial sua característica imanentemente artística. O
malogro, nesse caso, se dá pelas vias de tudo o que até então vinha se chamando de
referente. A impostura de Duchamp tratava, pois, não de falsificar a moeda, mas o valor
a ela atribuído. O passo de Warhol foi o de o banqueiro: é ele quem vai produzir as
cédulas novas para a movimentação das novas concepções de arte.
Borges ilustra tal procedimento sem mencionar Warhol. Nem precisava. Em
Quando a ficção vive na ficção (1939), o argentino cita Velásquez e o famoso quadro
As meninas; detém-se no Quixote, em As mil e uma noites — “Em As Mil e Uma Noites,
Sherazade conta muitas histórias; uma dessas histórias por pouco não é a história de As
Mil e Uma Noites.” E chega a Hamlet:

Shakespeare, no terceiro ato de Hamlet, ergue um palco dentro do


palco; o fato de a peça representada — o envenenamento de um rei —
de certo modo espelhar a principal basta para sugerir a possibilidade
de infinitas involuções. (Em um artigo de 1840, De Quincy observa
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que o maciço estilo exagerado dessa peça menor faz com que o drama
geral que a inclui pareça, por contraste, mais verdadeiro. Eu
acrescentaria que seu propósito essencial é oposto: fazer com que a
realidade pareça-nos irreal. (BORGES, 1939, p.505)

Daí advém a tese elaborada por Borges e ilustrada por Warhol — abalar a
realidade, não se aproximar dela. Uma obra de arte como leitura, num mergulho na
escuridão. Mais que propor interferências internas, pareceu interessar a Borges anuviar
a ótica do espectador. Os referentes de verdade, por isso, ficavam restritos à esfera da
linguagem, circunstanciais da dimensão da leitura, como se advertisse ao espectador que
não confiasse na realidade como ponto de apoio, porque a bengala servia ao terreno
apenas da arte. A rasura, nesse caso, lembra a técnica de Warhol: rasura que não deve
ser procurada senão na realidade externa.
Gyldenfeldt busca outra perspectiva, mas cujo sintoma é o mesmo. Para o
professor argentino, interessa encontrar o Ser da obra de arte, questionando, entre outros
aspectos, se qualquer coisa é arte, se em arte tudo está permitido ou se algo ainda exerce
legitimação, se o conceito basta, se um sujeito que produz algo aceito como arte é
mesmo artista, e, o que formulará mais tarde, na relação entre obra, artista, arte, quem
legitima o quê.
Fato é que, mais que apontar a mudança para arte moderna, seu texto inunda o
que alguns teóricos separam como pós-moderno, quando, por exemplo, Gyldenfeldt
afirma que o ready-made põe em questionamento a normalidade do mundo
hipertecnificado, repleto de utilitários inúteis. Para obter algumas respostas, o ponto de
apoio é Heidegger.
No texto A origem da obra de arte, Heidegger usa seu conceito de ser e tempo,
apontando que: a) o ser é uma ausência, é o reclamante de uma falta; b) o ser não é algo
dado, mas uma construção, uma possibilidade no tempo e no espaço (o Dasein); c) o ser
é o que faz que algo seja, portanto um projeto, portanto uma intenção; d) o ser é o que
vem a ser; e) o ser (e sobretudo o artístico) é o "fenômeno", é enquanto se manifesta,
mostra-se a si mesmo. O grande achado de Heidegger é o fato de que a obra de arte é
fora dela. A arte, nesse sentido, não é coisa, é alegoria (não significa em si, mas através
do que comunica) — daí que a obra é um significante polissêmico. Analisando a
essência dos outros objetos, os utilitários, Heidegger define que são úteis quando
desaparecem em sua função. Por isso a arte só pode ser inútil, já que se mostra.
Gyldenfeldt ilustra os eixos de sua ideia com as de Heidegger, lendo obras de artistas
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contemporâneos, cuja finalidade é nula, porque tais obras não são meios. Ao contrário,
escondem o de mais precioso e sobretudo mostram que escondem, constituindo a coisa
inacabada e dispersa que é a arte pós-moderna. Essa dispersão como sintoma de nossa
época pode ser sentida nas relações intertextuais que configuram espaços cambiantes,
nem particulares nem públicos, e abertos. Nesse contexto, encontramo-nos no domínio
do significante, da performance, o que atesta a passagem de uma sociedade calcada no
valor de uso para o período do valor de troca.
A obra de arte teria, assim, perdido, desde Duchamp, sua capacidade de evocar
um mundo, preferindo, pela linguagem que lhe é própria, fundar mundos novos pelo
que representa e como representa. Outras hipóteses para a questão medular de
Gyldenfeldt aparecem nos textos de Arthur Danto e George Dickie. O primeiro,
avaliando o fim da arte, chegou à hipótese de que o que acabou foi a história da arte.
Parte, claramente, do fim dos relatos paradigmáticos de Lyotard, que, em O pós-
moderno, analisa a sociedade pós-industrial, informatizada e cibernética, considerando
como condição pós-moderna, numa simplificação extrema, a “incredulidade em relação
aos metarrelatos” (LYOTARD, 1979). Pondera que “o saber científico é uma espécie de
discurso” e define justamente a modernidade na relação que um discurso mantém com
seu metarrelato no intuito de legitimar-se:

A questão da legitimação encontra-se, desde Platão,


indissoluvelmente associada à da legitimação do legislador. Nesta
perspectiva, o direito de decidir sobre o que é verdadeiro não é
independente do direito de decidir sobre o que é justo, mesmo se os
enunciados submetidos respectivamente a esta e àquela autoridade
forem de natureza diferente. É que existe um entrosamento entre o
gênero de linguagem que se chama ciência e o que se denomina ética
e política: um e outro procedem de uma mesma perspectiva ou, se se
preferir, de ·uma mesma "opção", e esta chama-se Ocidente.
(LYOTARD, 1979, p.13)

Por isso a verdade pós-moderna só poderia, segundo sua lógica, ser terreno da
linguagem. Como a linguagem mostrou-se sempre flexível às transformações que
cercam o homem — como a velocidade dos meios de transporte e,
contemporaneamente, com a informática —, segue-se que a natureza do saber é também
processual.
Nessa observação, encontra-se que a experiência da pós-modernidade teria como
ponto de partida a perda de quaisquer crenças em visões totalizantes da história, cujas
aspirações a sistemas políticos e éticos de aplicação a toda humanidade já não se
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sustentavam. Para Lyotard, isso demonstra a devolução do sublime à esfera do


indivíduo: sem mencionar o fato de que a lei do mercado passou a imperar sobre a lei da
estética, ampara-se nas questões do cânone moderno, por exemplo, (diga-se, a lei das
metafísicas, cujo discurso visava, desde o iluminismo, a fortalecer o próprio discurso),
para afirmar que a verdade, fosse estética ou científica, teria passado, irreversivelmente
à esfera da performance. Nada mais claro que a obra de Warhol para celebrar esses
sintomas: que nos sirvam os vídeos em que come hambúrguer sem que isso signifique
nada no decorrer da diegese “artística”. Então, lamentar-se sobre "a perda do sentido"
na pós-modernidade, pondera ainda Lyotard, seria deplorar que o saber não seja mais
principalmente narrativo. O saber narrativo autoriza-se a si mesmo pela pragmática de
sua transmissão sem recorrer à argumentação e à administração de provas. Não é
imanente a si mesmo.
Assim, a erosão da nostalgia dos relatos não teria levado a humanidade à
barbárie, como se preconizava. Antes, deslocou para interação coletiva, sobremaneira a
natureza da linguagem, o valor de verdade, dividindo-o nos múltiplos jogos práticos da
comunicação. A ciência materialista, desse modo, acabou esmaecida, porque
impossibilitada de encontrar uma legitimação que não fosse imanente ao seu próprio
jogo de linguagem:

Uma ciência que não encontrou sua legitimidade não é uma ciência
verdadeira; ela cai no nível o mais baixo, o de ideologia ou de
instrumento de poder, se o discurso que deveria legitimá-la aparece
ele mesmo como dependente de um saber pré-científico, da mesma
categoria que um relato "vulgar". (LYOTARD, 1979, p.70)

Como a linguagem mostrou-se sempre flexível às transformações que cercam o


homem — a velocidade dos meios de transporte e, contemporaneamente, a informática
—, segue-se que a natureza da arte é também processual, e a verdade, seja estética seja
científica, passou, irreversivelmente, à esfera da performance.
A consequência maior observada por Danto é o grande pluralismo, um ecletismo
estético a afirmar um período pós-histórico da arte, agora sem marcos, sem sequência,
sob domínio do significante. Os Elvis de Andy Warhol (figura 1) são prova, pois a
releitura possível, que conduz ao novo, é fruto de uma estratégia de deslocamento
histórico e contextual: um texto, fora do sistema, é outro texto (o significante
permanece, mas o significado não). Andy Warhol foi capaz de perceber que, após Elvis
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ser fabricado pela mídia, também ele, como o novo artista empreendedor, podia
continuar a fabricá-lo extensivamente.
Da parte de Dickie e seu conceito de artifactualidade, o olhar da arte como
espetáculo também investe na noção de performance para afirmar a transformação de
um mictório industrial que Duchamp fez dobrar em objeto artístico através da mudança
radical de referente. Nesse caso, o contexto base, que antes era a natureza, foi
convertido, também ele, em cultura, a partir da colonização do inconsciente, conforme
Jameson atesta:

O pós-modernismo é o que se tem quando o processo de


modernização está completo e a natureza se foi para sempre. É um
mundo mais completamente humano que o anterior, mas é um mundo
no qual a ‘cultura’ se tornou uma verdadeira ‘segunda natureza’.
(JAMESON, 1997, p.13)

Por isso, a arte de Warhol não constituiu um estilo, mas uma dominância
cultural. Leio Gyldenfeldt poluído de uma análise que vê a arte como discurso e
encontro, conforme Roman Jakobson, um objeto que, num referente útil, é a imagem de
Elvis, e, em referente arte, uma reprodução da imagem de Elvis. Só posso chegar a um
paradoxo, cujo pai é Duchamp: talvez a arte seja inevitavelmente mentira pelo simples
fato de que não pode ser verdade, sob pena de perder o referente que a legitima.
Como não pensar em Warhol como aquele que aglutinou tudo isso, não só na sua
arte, mas no personagem-artista que se tornou? Ele foi três ao mesmo tempo (Anne
Cauquelin o vê como um simultâneo de simples publicitário, artista pop reconhecido e
empreendedor de negócios):

Como Duchamp, Warhol abandona a estética, deixa seu ofício de


desenhista, renuncia ao estilo, à habilidade manual e se dedica à Arte
— esfera que se dissocia das questões de gosto, de belo e de único. Os
objetos que mostrará serão banais, kitsch, de mau gosto. Serão objetos
de consumo usual: garrafas de Coca-Cola, fotos publicadas em jornais
e rearranjadas. Em suma, duplicatas, remade. Exatamente como
Duchamp, trata-se de mostrar o que já existe, mas, ao ready-made
‘acrescentado’ de Duchamp, que permanece único e quase impossível
de ser encontrado, Warhol opõe a repetição em série, a saturação das
imagens e o paradoxo de uma despersonalização hiperpersonalizada.
(CAUQUELIN, 2005, p.109-110)

Duchamp é o primeiro embreante de Cauquelin para a arte contemporânea, diga-


se, e, dele, as questões ampliadas de Warhol parecem ter perdido ainda mais significado
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em detrimento das forças dos significantes, reforçando a supremacia do contexto ou do


meio. Por isso Warhol foi, acima de tudo, um comunicador, escolhendo como objeto
artístico os elementos reconhecidos do referente público. Assim, seu conhecimento,
como possível sócio do pós-moderno, dirige-se à lacuna, ao constelar e desconhecido,
cuja legitimação requer um sistema aberto e parece ser da ordem da diferença — a
paralogia —, que vem substituir o equívoco, como destaca Lyotard, da “melhor
performance”. É que o único conhecimento legítimo da pós-modernidade não é o que
cerca a ideia, mas o que a pluraliza. Trata-se, no substrato de uma argumentação que
sugere o desgaste da grande narrativa marxista, um princípio que ficará subentendido
em Jameson (1991), na falta de termo específico, como “antidialético” (aqui pensado no
sentido materialista).
Jameson define o pós-modernismo como um período de autorreferência, quando
“o sintoma diz mais que a doença”, e, nesse caso, entende que o nome parece
amalgamar as diferenças e criar uma lógica. Mas não aceita que o presente seja visto
como “historicamente original” e sim “uma mera repetição do mesmo em nova
embalagem” (JAMESON, 1991, p. 16). Partindo da ideia de Jameson, Warhol poderia
ser um dos sintomas da “reconciliação” entre o cultural e o econômico, e esse fenômeno
— a cultura, como elemento imbricado à economia — já seria um fenômeno pós-
moderno. Assim, as serigrafias em que expõe em série os rostos mais conhecidos do
planeta indicam que um dos caminhos possíveis da arte seria admitir-se fora da
especialidade, como coisa comum, reproduzidno no significante o espelho de seu
mundo. O outro seria a abstração, que não é outra coisa que o significante abdicando de
seu significado. Partimos dos elementos constitutivos do pós-moderno de Jameson:

Uma nova falta de profundidade, que se vê prolongada tanto na


“teoria” contemporânea quanto em toda essa cultura de imagem e do
simulacro; um consequente enfraquecimento da historicidade tanto em
nossas relações com a história pública quanto em nossas novas formas
de temporalidade privada, cuja estrutura “esquizofrênica” (seguindo
Lacan) vai determinar novos tipos de sintaxe e de relação sintagmática
nas formas mais temporais de arte; um novo tipo de matiz emocional
básico — a que denominarei de “intensidades” —, que pode ser mais
bem entendido se nos voltarmos para as categorias mais antigas do
sublime; a profunda relação constitutiva de tudo isso com a nova
tecnologia, que é uma das figuras de um novo sistema econômico
mundial; e, após um breve relato das mutações pós-modernas na
experiência vivenciada no espaço das construções, algumas reflexões
sobre a missão da arte política no novo e desconcertante espaço
mundial do capitalismo tardio ou multinacional. (JAMESON, 1997,
p.32)
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São quatro, em resumo, as características do sintoma pós-moderno de Jameson:


1) a imagem sem profundidade, ou o simulacro de Baudrillard; 2) a esquizofrenia ou
fim da historicidade (“tudo ao mesmo tempo agora”); 3) a intensidade vazia (da
superficialidade e do pastiche); 4) a relação simbiótica da arte com a tecnologia. Há
ainda o desejo de Jameson de encontrar uma “missão política” para a arte desses
tempos, algo com o qual não me ocuparei aqui.
Partindo do fim, e usando para isso a obra Duplo Elvis (figura 1), de 1963, o que
podemos ler do legado de Warhol? Quanto à relação simbiótica entre e tecnologia, o
deboche frente àquilo que Benjamin (2017) assinalou como risco moderno para a arte, a
“sua reprodutibilidade técnica”. Bem pensado, o que Warhol introduz é o fenômeno da
reprodução, ou antes, a imagem de reprodução das próprias imagens como elemento
inerente à arte. O que ele fazia era antes solapar o único, o original, em detrimento das
séries. Quanto à intensidade vazia, ela está ali nos dois Elvis, no seu figurino
fotografado sem que se exija da imagem algo além dela mesma. Se é uma obra de arte,
Warhol eliminou o estilo. E essa tautologia da coisa como coisa investida como arte
parece esvaziar a imagem, porque suga sua profundidade (Elvis deixa de ser Elvis e se
torna ícone — já não envelhece nem corre risco de ver seu sentido arranhado). As ações
de Elvis já não são dele: são pastiches de todas as ações do cinema, são gêneros cuja
forma é previsível e esgota-se nela mesma. Se Warhol fez isso com as figuras mais
expressivas da mídia, ocorreu que a imagem resultante transformou-se em mera
superfície. Talvez aí esteja o ponto: o Elvis simulacro não deve nada ao Elvis músico ou
ator; antes, parece devorá-lo, mostrando o esvaziamento do significado e a supremacia
do significante, quando as coisas passam a valer pelo próprio valor estabelecido pela
mídia. Trata-se de uma imagem de Elvis, e ela se basta como representação da
sociedade de consumo. A imagem chapada circula, e essa circulação é, no dizer de
Anne Cauquelin, o negócio a que arte passou a se destinar. Nesse caso, Warhol foi um
agente:

Comecei minha carreira como artista comercial e quero terminá-la


como business-artist [...] Eu queria ser um homem de negócios da arte
ou um artista-homem de negócios [...] Ganhar dinheiro é uma arte,
trabalhar é uma arte e fazer bons negócios é a melhor das Artes.
(WARHOL apud CAUQUELIN, 2005, p.117)
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O domínio do significante “vazio”, que se aplica aos Elvis infinitos de Warhol,


teve tradução excelente nas ideias de Jean Baudrillard (1991) acerca do “simulacro”.
Partindo de um “ceticismo radical”, Baudrillard expõe três níveis de simulação — a
cópia óbvia da realidade (com suposta equivalência entre signo e a realidade, caso aqui
analisado), a cópia que confunde realidade e representação (com clivagem entre o signo
e a realidade, nesse caso ao nível da fotografia, do vídeos objetos expostos por Warhol)
e o “simulacro”, categoria textual de realidade na qual o vínculo com o “original” não se
faz mais necessário. A imagem do Elvis, nesse sentido, torna-se um Elvis autônomo.
Logo, o espaço da realidade passa por um estágio de deformação, de mascaramento e,
por fim, de desapropriação. Aí a descrição de Baudrillard permite pensar a espacialidade
como textualidade, quando os níveis de “real” passam a depender da perfomance de
seus significantes, cujos significados perdidos são na verdade outros significantes em
processo especular. Perde-se a profundidade, e o discurso, metonímico, estabelece
relação entre cópias. A partir daí chega-se ao que Baudrillard define como quarto
estágio, o “crime perfeito” de nossos dias: assassinaram a realidade e ninguém sabe
quem foi o assassino. No caso, o signo falso não encontra o referente que lhe reclame a
autenticidade: Elvis perde sua autonomia, e se estabelece o regime da hiper-realidade,
quando as imagens artificialmente produzidas, ao mesmo tempo em que expressam a
nostalgia da realidade, encontram legitimação apenas textual.
Mas resta o Elvis a serviço da esquizofrenia. Ela é, em Jameson, uma
desordem de linguagem, um distúrbio do relacionamento entre significantes
vazios. É porque a linguagem possui passado e futuro, porque o significado se dá
também na história, que o fenômeno do Elvis esvaziado parece ilustrar um eterno
presente, um presente que se basta porque apaga o espaço.
O geógrafo David Harvey (1992) investe na tese da aniquilação do espaço
através do tempo, explicada pelo fluxo da história e de um projeto de dominação da
natureza começado no Iluminismo. A modernidade, nessa sequência, teria inaugurado o
tempo público universal e também o espaço móvel, dominado pelo tempo — o espaço
dos navios e dos contêineres. Com o domínio do tempo, o mundo ficou menor, e a
portabilidade resultou num modo de apreensão do tempo, o que assinala a condição pós-
moderna da compressão do espaço-tempo:

À medida que o espaço parece encolher numa “aldeia global” de


telecomunicações e numa “espaçonave terra” de interdependências
ecológicas e econômicas — para usar apenas duas imagens
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conhecidas e corriqueiras —, e que os horizontes temporais se


reduzem a um ponto em que só existe o presente (o mundo
esquizofrênico), temos de aprender a lidar com um avassalador
sentido de compressão dos nossos mundos espacial e temporal.
(HARVEY, 1992, p.219)

A questão nova é que Harvey vê como condição para a conquista do espaço


justamente a produção de novos espaços, numa destruição criativa. O resultado é um
espaço de instabilidade, à mercê do giro de capital que, da necessidade de cambiar
valores, precisa imprimir ao espaço um valor móvel. Nesse sentido, o espaço continua a
ser entendido como mercadoria, com a diferença de que não se trata, como na
modernidade, de um espaço de conquista, mas, pela saturação decorrente do
bombardeio de estímulos sensoriais, de descarte:

No domínio da produção de mercadorias, o efeito primário foi a


ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade (alimentos e refeições
instantâneos e rápidos e outras comodidades) e da descartabilidade
(xícaras, pratos, talheres, embalagens, guardanapos, roupas, etc.). A
dinâmica de uma sociedade “do descarte”, como a apelidaram
escritores como Alvin Toffler (1970), começou a ficar evidente
durante os anos 60. (HARVEY, 1992, p. 258)

A colagem parece ser o retrato de um espaço de empório: a cultura do mundo


inteiro aglutinada num único lugar, constituindo simulacros de tempo e de espaço, como
faz Warhol: constrói figurinhas de um álbum. Pela repetição massiva das imagens,
demonstra que realidade é algo facilmente esquecido. Como afirma Harvey: “A
informação excessiva, afirma-se, é uma das melhores induções ao esquecimento”.
(HARVEY, 1992, p.315)
O Elvis parece estar além do sentido, materializado numa imagem
reprodutível, que assume o seu lugar enquanto realidade. A reprodução o
intensifica e, se ele desaparece e torna-se ininteligível, o que lhe resta é seu
significante vazio, a mera imagem. Ou a sombra apontada por Agamben.
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Referências
AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte:
Autêntica editora, 2013.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira.


Lisboa: Relógio d’água, 1991.

BENJAMIN, Walther. Estética e sociologia da arte. Trad. João Barrento. Belo


Horizonte: Autêntica, 2017.

BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea — uma introdução. Trad. Rejane


Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DANTO, Arthur. Después del fin del arte. Barcelona: Paidós, 1999.

GOODMAN, Nelson. Ways of worldmaking. Indianapolis, Indiana: Hackett Publishing


Company, 1984.

GYLDENFELDT, Oscar de. ¿Cuándo hay arte? In.: OLIVERAS, Elena. Cuestiones
del arte contemporáneo - 1a edição. Buenos Aires: Emecé editores, 2008.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança


cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições
Loyola, 1992.

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. Maria da Conceição Costa.


Lisboa: Ed.Edições 70, 2005.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad.


Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1997.

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Trad. Ricardo Correia Barbosa. 2ª ed. Rio


de Janeiro: José Olympio, 1986.
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