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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


ESTÉTICA IV - FLF0503
Professor Ricardo Nascimento Fabbrini

Um olhar para a metrópole: Charles Baudelaire, Edgar Alan Poe e E.T.A. Hoffmann

Guilherme Gomes da Silva, nº USP 8046020

No presente trabalho1 será abordada a temática da metrópole na modernidade a


partir, principalmente, da literatura da época, analisando-se alguns poemas de
BAUDELAIRE e a sua crítica de arte e fazendo um paralelo com EDGAR ALLAN POE e
E.T.A. HOFFMANN.

Antes disso, porém, é necessário contextualizar a modernidade artística.


Conforme CAUQUELIN, a modernidade aponta para um conjunto de traços da sociedade e
da cultura que podem ser detectados em um determinado momento e em determinada
sociedade (com isso, poder-se-ia falar da modernidade do século XIX, assim como a
nossa modernidade atual). Por esse termo, assinala-se também uma adesão,
principalmente de artistas, intelectuais e formadores de opinião de uma determinada
época, buscando inovação em seu campo de atuação e criticando os valores
convencionais.2

1
Passagens utilizadas para reflexão:
2. “Assim ele vai, corre, procura. O que? Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse solitário
dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objetivo
mais elevado do que a de um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da
circunstância. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre
melhor palavra para exprimir a ideia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que está pode
conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório” – BAUDELAIRE, CHARLES. O pintor
da vida moderna. 5ª ed. Trad. de Tereza Cruz. Lisboa: Nova Vega, 2009, p. 21.
8. “A extraordinária relevância que ‘A janela de esquina do meu primo’ ocupa no conjunto da obra
hoffmanniana pode ser percebida ainda mediante dois outros aspectos que, ao lado dessa dimensão
corrosiva em que se relativizam as sentenças otimistas enunciadas pelo enfermo, também fazem ressaltar
a sua modernidade. Em primeiro lugar trata-se, conforme observou Walter Benjamin, de uma das mais
remotas manifestações da tematização literária da metrópole moderna, como se reitera alguns anos depois
na obra de dois admiradores do escritor alemão: o conto ambientado em Londres e em poemas de
Baudelaire sobre Paris (ou em seu Pintor da vida moderna, de 1863). Desse modo, pode-se considerar a
narrativa de Hoffmann como momento precursor de uma tradição que no século XX encontrará expressivos
marcos como Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, ou Manhattan Transfer, de Johns dps Passos.” –
MAZZARI, MARCUS VINICIUS. “Hoffmann e as primícias da arte de enxergar”. In: HOFFMANN, E.T.A.
A janela de esquina do meu primo. 1ª ed. Trad. de Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Cosac Naify, 2010,
p. 68.
2
Cf. Arte contemporânea – uma introdução. Trad. de Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes,
2005, pp. 25-27.

1
A noção de modernidade, em larga medida, ganha novos contornos com
BAUDELAIRE, que passa a ligar esse termo à moda, atribuindo a essa última um valor
específico de temporalidade efêmera e circunstancial. É nesse contexto que se deve
entender sua teoria dualista do Belo: em oposição à uma teoria do belo única e absoluta,
o belo seria formado pela unidade de dois componentes: um eterno e invariável e um
relativo e circunstancial (a moda, a moral, a paixão). O Belo, assim, estaria próximo a
uma promessa de felicidade, representando esse ideal variável e contingente. 3 Diante
dessa dualidade, caberia ao artista elevar esse elemento histórico e contingente a um
elemento duradouro e transcendente, ou seja, “extrair o eterno do transitório”.4

A marca do artista moderno é o gosto pela novidade, a recusa de um passado


tido como acadêmico e a sua posição ambivalente entre o efêmero e o substancial.5 Tais
características tem a sua razão de ser historicamente. A arte moderna é a expressão de
uma época caracterizada por profundas modificações sociais e econômicas na era
industrial.6

Tais modificações implicaram uma transformação do espaço de encontro das


pessoas. A peça central aqui é a metrópole. Dentre elas, destaca-se a Paris de
BAUDELAIRE, que passou por drásticas reformas empreendidas por Haussmann, com a
derrubada de casas, desalojamento de milhares de pessoas, ampliação das ruas e
realização de obras de urbanização (como a colocação de lâmpadas de gás, abertura de
redes de esgoto e criação de parques).7

Essas mudanças na cidade e o crescente êxodo rural geraram novos modos de


sociabilidade nunca visto. Se, por um lado, a cidade é marcada pela crescente exposição
de mercadorias nas vitrines e pelo antagonismo entre empregadores e trabalhadores,
credores e devedores, vendedores e compradores, personagens intermediários também
apareciam nessa cena, como o flâneur. Esse último somente tem lugar com o
aparecimento das galerias nas grandes cidades – galerias essas que, conforme BENJAMIN,
eram “caminhos cobertos de vidro, revestidos de mármores, através de blocos de casas, cujos

3
Cf. O pintor da vida moderna, cit., pp. 09-10.
4
Cf. O pintor da vida moderna, cit., p. 21.
5
Conforme HABERMAS, a busca por uma autofundamentação que se consome a si mesma é central na
modernidade. Nesse contexto, a consciência de tempo é modificada: o presente não pode mais ter sua
referência a uma posição rejeitada e ultrapassada do passado. A atualidade somente pode ser constituída
como um ponto de intersecção entre o tempo e a eternidade. Com isso, a modernidade não se livra do seu
caráter precário: ela aspira para um momento transitório, que quer ser reconhecido como um passado
autêntico de um presente futuro – Cf. O discurso filosófico da modernidade. 1ª ed. Trad. de Luiz S. Repa e
Rodnei Nascimento. São Paulo, Martins Fontes, 2000, pp. 14-15.
6
Cf. CAUQUELIN, ANNE. Arte Contemporânea, cit., p. 27.
7
Cf. CLARK. T.J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Trad. de
José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 77.

2
proprietários se uniram para tais especulações” e que representavam um mundo em que o
flâneur se sentia em casa, tal como o burguês se sentia em quatro paredes.8

Além disso, a arte moderna tem sua origem em um momento de ruptura com o
sistema estético acadêmico. Mudanças sociais e econômicas também influenciaram o
círculo até então fechado dos artistas, tornando-o mais complexo e com mais atores. De
maneira resumida, conforme CAUQUELIN, com a arte moderna tem-se a reivindicação
pelos artistas em Paris por um estatuto menos centralizador; ocorre uma abertura gradual
desse novo mercado de arte, com um número cada vez maior de artistas, e que passa a ser
regulado pela figura dos intermediários (os marchands e os críticos); passam a ocorrer
exposições à margem dos locais oficiais; os críticos profissionalizam-se e tornam-se
mediadores junto ao público e consumidores; eles fabricam, opinam, contribuem para
construção da imagem do artista e da obra de arte, e substituem os juris dos salões. Com
o tempo, essa crítica passa a teorizar as novas formas plásticas, conquistando certa
autonomia. A crítica, assim, tece um vínculo entre o mundo da arte e os aficionados da
arte e contribuiu, enfim, para formar a opinião pública, a imagem do artista moderno e a
futura vanguarda.9

Feita essa exposição a respeito do contexto existente na metade do século XIX,


é interessante notar que BAUDELAIRE está inserido nele de várias formas. Em seus textos,
nota-se tanto as transformações ocorridas no ambiente social da metrópole, como aquelas
ocorridas nos seu próprio meio artístico.

Como crítico de arte, BAUDELAIRE aponta maior interesse por obras originais
que retratassem o tempo presente, ao invés de se vangloriar exclusivamente grandes
artistas de renome do passado. Como ele mesmo escreveu: “nem tudo está em Rafael” e
“nem tudo está em Racine”, alguns “poetae minores têm coisas boas, sólidas e deliciosas”.10

Não é por acaso que, na pintura, BAUDELAIRE elege um pintor de menor renome
(CONSTANTIN GUYS) para considerá-lo como o “pintor da vida moderna”: ele não era
visto como um artista, mas como homem do mundo, ou seja, não como um especialista,
mas sim como aquele que “compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos
os seus costumes”.11

8
Cf. Charles Baudelaire: um lírico no auge do Capitalismo. (Obras Escolhidas III). 3ª ed., 2ª reimpressão.
Trad. de José Carlos M. Barbosa e Hemerson A. Baptista. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 35.
9
Cf. Arte contemporânea, cit., pp. 30-54.
10
O pintor da vida moderna, cit., p. 07.
11
O pintor da vida moderna, cit., p. 15.

3
Há aqui uma aproximação de GUYS com o “homem das multidões” do conto de
EDGAR ALLAN POE.12 De certa maneira, para BAUDELAIRE, os desenhos de GUYS eram os
melhores representantes da modernidade do tempo deles, pelo fato de o pintor mostrar-se
interessado pelo que era trivial e pela vida comum existente cidade: “há na vida trivial, na
metamorfose diária das coisas exteriores, um movimento rápido que ordena no artista uma
idêntica velocidade de execução”.13 GUYS era visto como o pintor que não se encontrava no
modelo estético prevalecente na época, limitada aos acadêmicos. Afinal, para aquele que
compreendia o mundo em que vivia, a conversa do artista acadêmico “limitada a um círculo
muito estreito torna-se rapidamente insuportável para o homem do mundo, o cidadão espiritual
do universo”14.

Entre o dândi e o flâneur, BAUDELAIRE considerava o gênio de GUYS muito mais


ligado a esse último, porque a multidão seria o domínio dele. BAUDELAIRE destaca
qualidades de um flâneur que estariam presentes no olhar atento do pintor: um observador
apaixonado, que toma a rua e a multidão como seu próprio lar; alguém que se situa no
centro do mundo (possivelmente fazendo referência à Paris) e ao mesmo tempo alguém
que está escondido desse mundo (em referência à solidão frente à multidão). Porém, mais
do que isso, BAUDELAIRE toma o pintor como alguém capaz de transmitir toda essa
diversidade apresentada pela multidão, como se fosse o espelho dela – “um caleidoscópio
dotado de consciência que, em cada um dos seus movimentos, representa a vida múltipla e a
graça móvel de todos os seus elementos.”15 Nesse contexto, GUYS tinha o olhar observador
das cidades, admirando as suas paisagens, como as belas carruagens, “os cavalos esbeltos,
o asseio resplandescente dos grooms, a destreza dos criados, o andar das mulheres ondulantes,
16
as crianças belas, felizes por estarem vivas e bem vestidas.” Todas essas imagens
proporcionadas pela vida na cidade moderna serão objeto do olhar atento do pintor que,
posteriormente, a partir da sua “percepção infantil” (isto é, não vinculada às formas de
percepção convencionais), serão retratadas nos quadros, com a acuidade que poucos
possuíam.17

12
BAUDELAIRE foi um grande leitor e tradutor dos contos de POE na França e sua obra foi fortemente
influenciada pelo escritor inglês. Conforme bem assinalado por BENJAMIN, a combinação de diversos
gêneros (como feito por Poe) foi adotada por BAUDELAIRE. Dentre as principais realizações de POE, o
destaque estava para o romance policial, gênero esse que, apesar de não estar explicitamente presente no
poeta francês (na medida em que seu caráter impulsivo não se identificava com a figura do detetive),
aparece em alguns poemas de “As flores do mal” - Cf. Obras escolhidas III, cit., pp. 40-41.
13
O pintor da vida moderna, cit. p. 11.
14
O pintor da vida moderna, cit., p. 15.
15
O pintor da vida moderna, cit., p. 18.
16
O pintor da vida moderna, cit., p. 19.
17
O pintor da vida moderna, cit., p. 20.

4
As críticas feitas ao pintor, por sua vez, indicam uma identificação desse artista
à figura do BAUDELAIRE (flâneur e poeta). A análise de alguns poemas dele permitem
traçar esse paralelo, que também pode ser realizado em relação a dois outros importantes
escritores aqui analisados.

Com efeito, sobre a temática da multidão e da solidão, elas andam juntas na


metrópole. O poeta BAUDELAIRE quer se sentir só, mas apenas na multidão.18 É nela,
solitário e de maneira anônima (com disfarce e máscara), que o poeta pode admirar o
efêmero do dia a dia e a singularidade de vida em uma cidade grande (o que é possibilitado
pelo ódio do domicílio e pela paixão à viagem). Essa é a mensagem transmitida no poema
em prosa “As massas”:

Não é dado a qualquer um tomar banho de multidão. Gozar a massa é uma


arte, e somente pode fazer, às custas do gênero humano, uma pândega de
vitalidade, aquele a quem uma fada tenha insuflado no berço o gosto pelo
disfarce e pela máscara, o ódio do domicílio e a paixão pela viagem.
Multidão, solidão: termos iguais e permutáveis para o poeta ativo e fecundo.
Quem não sabe povoar sua solidão, tampouco sabe estar em meio a uma
massa atarefada. [...]
O passeador solitário e pensativo goza de uma singular embriaguez desta
comunhão universal. O andarilho solitário e pensativo tira uma embriaguez
singular desta universal comunhão.19
Interessante notar que, conforme BENJAMIN, a massa em BAUDELAIRE não
representa qualquer classe social em específico, trata-se de um amontoado amorfo de
passantes, que aguardam o desejo do poeta flâneur de emprestar a sua alma para ela. A
multidão está, portanto, inserida no processo de criação do artista, com uma imagem
oculta que aguarda seu surgimento através do trabalho do poeta.20

Da mesma maneira, é possível traçar um paralelo entre o processo criativo do


artista e a multidão em E.T.A HOFFMANN e em EDGAR ALLAN POE.

Esse escritor alemão, com a fama muito mais ligada ao conto fantástico,21
também foi autor do conto realista “A janela de esquina do meu primo”, que retrata bem

18
Conforme análise de BENJAMIN, ao mesmo tempo que a multidão atraía BAUDELAIRE, como flâneur,
ele buscava no mesmo instante isolar-se dela: “Mistura-se a ela intimamente, para, inopinadamente,
arremessá-la no vazio com um olhar de desprezo.” – Obras escolhidas III, cit., p. 121.
19
Pequenos Poemas em Prosa [O Spleen de Paris]. Trad. de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra,
2007, pp. 69-70.
20
Cf. Obras escolhidas III, cit., p. 113.
21
Conforme MARIA CRISTINA BATALHA, os contos fantásticos de HOFFMANN influenciaram fortemente
a literatura francesa da época, servindo como meio de combate ao estatuto literário predominante e pela
renovação estética, em um ambiente marcado pela crise política e pelo marasmo da ficção francesa. Ao
mesmo tempo, porém, essa literatura fantástica acabou sendo alvo de paródias e de ironias pelos escritores
franceses, além de, em determinado momento, ter sinalizado uma espécie de saturação da literatura
romântica – Cf. “A importância de E. T. A. Hoffmann na cena romântica francesa”. In: Alea: Estudos
Neolatinos. Rio de Janeiro, volume 5, n° 2, dezembro/2003, pp. 257-271.

5
a figura da metrópole Berlin e da multidão de maneira semelhante a BAUDELAIRE e a
POE.22 Aliás, entre HOFFMANN e BAUDELAIRE, as analogias não ficam apenas na temática
de suas obras. Nele vemos também uma certa ambivalência entre a sua figura de origem
mais burguesa e sua vida boêmia e de aspecto desleixado, conforme bem retrata OTTO
MARIA CARPEAUX.23

Seja como for, voltando ao conto (autobiográfico) de HOFFMANN, nele é possível


destacar o modo como a multidão é transformada pelo narrador, tal como mencionado
acima. O primo que, em razão da doença, não consegue sair de casa, não faz outra coisa
a não ser olhar pela janela e observar com atenção as pessoas que estão presentes na feira.
O primo que vai visitá-lo, a princípio, vê a multidão como uma massa amorfa, mas não
enxerga devidamente. Cabe ao primo paralítico ensinar-lhe a olhar e, a partir da sua
imaginação, eles passam a conjecturar os diálogos entre as pessoas e a razão de elas terem
vindo para aquele lugar.24

A seu modo, o narrador de HOFFMANN aproxima-se também do narrador do


conto de POE. 25 Além de ambos serem pessoas convalescentes, eles tinham a capacidade
de ler a multidão e, de certa maneira, esses dois observadores personagens tinham aquela
característica do artista moderno, tal como mencionada por BAUDELAIRE. Ou seja, uma
vez que a cidade e a multidão impõem uma nova velocidade aos acontecimentos, incumbe
ao artista igual velocidade de execução. Com isso, se o artista moderno deve saber lidar
com a velocidade dos acontecimentos na metrópole, a multidão nela existente é

22
Em todo caso, é relevante apontar a crítica de BENJAMIN a respeito da retratação de Berlin a partir da
feira e do primeiro plano desenvolvido pelas mulheres no conto – cf. Obras escolhidas III, cit., p. 123.
Nesse contexto, talvez um melhor livro que retrate Berlin é o romance “Berlin Alexanderplatz” de ALFRED
DÖBLIN. Em DÖBLIN, porém, o relacionamento entre multidão e indivíduo é muito mais difícil. Socialmente
falando, vivia-se em Berlin os tempos nada fáceis do pós-Primeira Guerra Mundial, com elevadas taxas de
desemprego e ascensão do nazismo. Não havia espaço para formação do indivíduo. O personagem
principal, Franz Biberkopf, não se consegue adaptar à sociedade berlinense (isso é visível logo após ele
deixar a prisão de Tegel); ele estava fadado a ser um tolo ingênuo, a ser influenciado pelos outros, a fazer
bicos na rua e a viver no sofrimento. Nessa Berlin do início do século XX, talvez seja correto dizer que não
havia mais espaço para o flâneur.
23
“Foi o mais completo temperamento de artista em toda a história da literatura alemã – não lhe faltava
a boemia, com as bebedeiras intermináveis que alegava necessárias para obter as alucinações que depois
transformou em histórias de espectros. Esse artista completo foi burocrata do serviço público prussiano,
depois juiz: burocrata pontualíssimo e juiz íntegro. Essa ambiguidade, esse estar em casa em dois mundos,
é a fonte de sua imaginação poética. Teve sucesso enorme. Foi, em vida, um dos escritores mais lidos e
mais famosos da Europa, traduzido em numerosas línguas. Hoje já não é tão apreciado. Mas continua
sendo uma força literária viva, uma influência.” – A História Concisa da Literatura Alemã. São Paulo:
Faro Editorial, 2013, p. 95.
24
Cf. A janela de esquina do meu primo, cit., pp. 16-17.
25
Conforme BENJAMIN, o narrador-personagem em POE e o primo em HOFFMANN têm em comum o
fascínio pela multidão. A diferença estaria naquela diferença entre Londres e Berlin. No conto de
HOFFMANN, estaria se retratando um homem privado, sentado em uma sacada de um balcão nobre; em POE,
porém, um consumidor anônimo que estava em um café e se sente atraído pela multidão. Além disso, em
termos de dimensão, em HOFFMANN estariam fixados os limites estreitos, enquanto que, em POE, havia
uma vasta multidão a se perder de vista. Cf. Obras Escolhidas III, cit., p. 46.

6
paradoxalmente indescritível.26 Tudo que pode ser dito da e na multidão restringe-se
àquele piscar de olhos, é efêmero. Qualquer descrição não acompanha a velocidade da
sua mutação.

É em razão disso que a feira é retratada como “uma imagem fiel de uma vida
eternamente mutável”.27 Da mesma forma ocorre no conto de POE, escrito de maneira
circular e que começa e termina com a frase “es lässt sich nicht lesen” (não se deixa ler).
Tal frase indica que o trabalho do narrador-personagem é infindável, pois não é possível
perseguir indefinidamente o homem das multidões: “Segui-lo-ia em vão, pois nunca
chegaria a saber coisa alguma, nem dele nem das suas ações!”28

A multidão proporciona situações que não se repetem, como também se verifica


no encontro do poema “A uma passante”. Sua ocorrência é proporcionada e, ao mesmo
tempo, impossibilitada, pela multidão. Primeiro, o encontro inesperado em uma rua
movimentada: “A rua em torno era um frenético alarido./ Toda de luto, alta e sutil, dor
majestosa,/ Uma mulher passou, com sua mão suntuosa/ Erguendo e sacudindo a barra do
vestido.” Posteriormente, o desencontro inevitável: “Não mais hei de te ver senão na
eternidade?/ Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!/ Pois de ti já me fui, de mim tu já
fugiste.”29

Em todas essas cenas apontadas acima, a mesma constatação da vida frenética


da cidade moderna, que proporciona momentos únicos, irrepetíveis, mas que mesmo
assim estão disponíveis para o olhar atento do artista e do flâneur.

Como flâneur, ainda, BAUDELAIRE visitava as tavernas e perambulava pelas ruas


admirando a nova paisagem citadina, o que lhe proporcionava condições para retratar
principalmente a figuras decadentes dessa sociedade moderna, que somente eram
possíveis pela metrópole, que permitia os encontros e desencontros com esses tipos
variados de indivíduos.

A figura do trapeiro cambaleante e embriagado no subúrbio das cidades, como


retratado no poema “O vinho dos trapeiros”30 indica a situação de pauperização da classe

26
Conforme BENJAMIN, “em Baudelaire, a massa é de tal forma intrínseca que em vão buscamos nele a
sua descrição. Assim, seus mais importantes temas quase nunca são encontrados sob a forma descritiva”
e “A massa era o véu agitado através do qual Baudelaire via Paris” – Obras escolhidas III, cit., pp. 115 e
117.
27
HOFFMANN, E.T.A. A janela de esquina do meu primo, cit., p. 57.
28
Contos. São Paulo: Centaur, 2015, p. 311.
29
BAUDELAIRE, CHARLES. As flores do mal. Ed. Especial. Trad. de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012, XCIII.
30
“Muitas vezes, à luz de um lampião sonolento,/ Do qual a chama e o vidro estalam sob o vento,/ Num
antigo arrabalde, informe labirinto,/ Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,/ Vê-se um trapeiro
cambaleante, a fronte inquieta,/ Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,/ E, alheio aos guardas e

7
trabalhadora, vivendo em condições precárias, não restando outra coisa a não trabalhar
nas ruas e afogar suas mágoas nas tavernas das periferias. De cerca maneira, BAUDELAIRE,
conhecidamente frequentador das tavernas, aproxima-se da figura do trapeiro, pois,
conforme BENJAMIN, embora esse último não estivesse incluído no boêmia, cada um que
pertencia a essa vida boêmia poderia encontrar-se no trapeiro uma parte de si mesmo:
ambos estavam presentes em um protesto surdo contra a sociedade e podiam se simpatizar
com aqueles indivíduos que abalavam os alicerces dela.31

Semelhante identificação ocorre no poema “A uma mendiga ruiva”, no qual o


poeta enxerga uma equiparação àquela triste mulher: a moça que deixa ver tanto a pobreza
quanto a beleza é assemelhada ao poeta sem viço (exuberância).32

Figuras decadentes também são retratadas também no conto de POE, embora aqui
não pareça haver uma equiparação com o narrador. Trata-se de uma constatação de quem
anda na multidão e visualiza, à medida em que avança as horas do dia, uma modificação
das próprias personagens da massa: de homens de negócios, passa-se para o mendigo33 e
para as prostitutas de todas as idades.34

Por fim, como retrato da decadência da própria cidade, no poema “Crepúsculo


da tarde”, com o anoitecer, ela é vista como um atrativo para quem quisesse pagar o preço.
A noite traz consigo as almas devoradas por uma atroz agonia e que, em bares e bordéis,
buscam redenção. Longe de mostrar qualquer progresso advindo com a modernidade, o
anoitecer da metrópole é a abertura do caminho da perdição humana:

Desejam-te por certo, ó suave anoitecer,


Estes que sem mentir hão de poder dizer:
Nós trabalhamos hoje!
É a tarde que alivia
As almas que devora uma atroz agonia,
[...]
Vai forçando por tudo uma escondida estrada,
Tal como um inimigo a tentar a emboscada;
Move-se pelo bairro, o que o lodo consome,
E como um verme rouba ao homem o que come.
Ouve-se em cada canto a cozinha assobiar,

alcaguetes mais abjetos,/ Abrir seu coração em gloriosos projetos.” – Cf. As flores do mal. Ed. Especial.
Trad. de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
31
Cf. Obras escolhidas III, cit. p. 17.
32
“Moça de ruivo cabelo./ Cuja roupa em desmazelo/Deixa ver tanto a pobreza/ Quanto a beleza/ Para
mim, poeta sem viço, /Teu jovem corpo enfermiço,/Cheio de sardas e agruras,/Tem só doçura” –
BAUDELAIRE, CHARLES. Flores do mal, cit., LXXXVIII.
33
“empurrando pobres de melhor espécie a quem só o desespero lançara nas sombras da noite para
implorar a caridade.” – Contos, cit., p. 306.
34
“as raparigas honestas regressando de um labor prolongado a um lar sombrio e tremendo, mais tristes
que indignadas, diante das olhadelas dos atrevidos, cujo contacto direto não podiam mesmo evitar.” –
Contos, cit., p. 306.

8
O teatro estremecer, a orquestra ressonar;
Nas mesas dos cafés, sonoras de remoques,
Vão conversando as cortesãs com os escroques, [...]35
Em resumo, a solidão, a multidão, o flâneur, o trapeiro, a prostituta e outras
figuras retratadas na obra de BAUDELAIRE (e em certa medida em POE e HOFFMANN)
representam metaforicamente a metrópole, que é um dos símbolos da modernidade
estética. Um símbolo que faz alusão à necessidade de se atentar para a mudanças de seu
tempo, uma forma de revolta contra o que estava anteriormente instituído e uma
constatação de que o próprio presente é consumido por si mesmo (é efêmero).

A seu modo também (principalmente em BAUDELAIRE), esse retrato do centro


urbana, a partir de figuras que outrora não expressavam beleza (mas que, na modernidade,
são tomadas como objeto de apreciação estética) também é indicativo de mudanças
sociais que ocorriam na época e que eram antagônicas ao dito progresso decorrente da
industrialização e urbanização, como a submissão de tudo à lógica da mercadoria, a
pobreza, o vício e a agonia.

35
As flores do mal, cit., XCV.

9
BIBLIOGRAFIA

BATALHA, MARIA CRISTINA. “A importância de E. T. A. Hoffmann na cena romântica


francesa”. In: Alea: Estudos Neolatinos. Rio de Janeiro, volume 5, n° 2, dezembro/2003,
pp. 257-271.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
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Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.

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Escolhidas III). 3ª ed., 2ª reimpressão. Trad. de José Carlos M. Barbosa e Hemerson A.
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Trad. de Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

POE, EDGAR ALLAN. Contos. São Paulo: Centaur, 2015.

10

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