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OS PROCESSOS DE DESMATERIALIZAÇÃO DO OBJETO ARTÍSTICO E A

DISSOLUÇÃO DOS LIMITES ENTRE ARTE E VIDA

THE DEMATERIALIZATION PROCESSES OF THE ARTISTIC OBJECT AND


THE BOUNDARY DISSOLUTION BETWEEN ART AND LIFE

RESUMO
O ensaio objetiva oferecer um percurso histórico através do qual se possa construir um dos
possíveis caminhos para narrar os processos de desmaterialização da arte, a partir do século
XIX. Pretende-se revisar alguns movimentos produzidos por artistas e teóricos que, através de
suas produções, ajudaram a consolidar e a pensar esse processo de desvalorização da
materialidade artística e a transformação de sua existência, desdobrando-se em múltiplos
suportes e procedimentos.

PALAVRAS-CHAVE
Arte; desmaterialização; arte pós-histórica; objeto

ABSTRACT
This essay aims to offer a historical path from which one may build one of the possible ways to
narrate the dematerialization processes of art from the 19th century onwards. It is intended to
review some movements produced by artists and theorists, who, throughout their productions,
helped to consolidate and think about this depreciation process of artistic materiality and the
transformation of its existence, being unfolded in multiple supports and procedures.

KEYWORDS
Art; dematerialization; post-historic art; object

Quando falamos sobre arte, especialmente com pessoas não diretamente ligadas aos
estudos que cercam a área, é bastante comum que as indagações e observações desse
nosso interlocutor1 venham com um rótulo. Ele é invisível, mas começa a criar
contornos na medida em que percebemos, por exemplo, que aquilo que nosso
interlocutor compreende como arte obrigatoriamente se apresenta na forma de um
objeto. Caso esse objeto seja antigo e tenha aval histórico, nosso interlocutor torna-se
dócil e feliz. A ideia de Arte, com A maiúsculo, devidamente rotulada é algo que traz
certa serenidade. Encontramos discretamente enunciados no rótulo que começa a tomar
forma uma prescrição forjada na Era Moderna: a obra de arte é um objeto pensado e

1
Arthur Danto em artigo publicado em 1964, intitulado ​O mundo da arte, utiliza-se de um artifício
literário ao evocar um personagem nomeado ​Testadura​, como seu interlocutor. No texto Danto dialoga
com o personagem com o objetivo de discutir o problema de definição, entendimento e sustentação da
arte contemporânea na era da desmaterialização, quando sua aparência confunde-se com objetos
cotidianos. O autor busca a todo momento convencer seu interlocutor da validade artística da arte que se
configura a partir do final dos anos 50.
construído pelo artista que a concretiza através do bom uso de uma técnica e da
materialidade de uma poética. Le voilà! Temos ARTE!

Mas e se resolvermos invocar para essa conversa algumas presenças marcantes na


trajetória da arte das últimas décadas, como Hélio Oiticica, Lygia Pape, Joseph Beuys,
Allan Kaprow, Mierle Ukeles? Talvez toda cortesia com a qual vínhamos sendo tratados
por nosso interlocutor dê lugar a um certo desdém, uma visível descrença e um súbito
desinteresse pela continuidade do diálogo. Isso porque esses artistas, a partir dos anos
60, começaram um processo de rompimento com aquilo que entendemos por estética
Moderna. A predominância da visualidade começa, a partir das proposições desses e de
outros agentes, a ceder espaço ao corpo e ao conceito. A arte se desdobra em múltiplos
processos e o objeto artístico como um fim talvez nem chegue a se concretizar.

A ideia de arte que se forja durante a Era Moderna prevê certo distanciamento entre a
obra e o seu produtor, entre a obra e o seu fruidor. Certo desejo de atribuir valores de
ciência para essa produção fizeram do processo artístico algo descolado do corpo
daqueles que viessem a fazer ou fruir arte. Métodos foram difundidos, apreendidos e
aplicados. Correntes representativas do projeto moderno previam que a Arte fosse a
nobre representante de elevados valores que levariam indubitavelmente a sociedade, ou
aqueles privilegiados que dela pudessem desfrutar, para um caminho sem volta, o do
progresso. Evolução é uma palavra imbricada até então nesse sistema produtor e fruidor
de Arte.

O Romantismo histórico no século XIX presenteia o processo artístico com valores


subjetivos. Nasce aí o sujeito, individualizado, atormentado e cheio de desejos de
criação. Esse artista romântico e romantizado percorre seu caminho num mergulho
solitário naquilo que descobre dentro de si, numa busca por produzir objetos artísticos.
Não mais fiéis a uma lógica regrada e dominante de criação, mas cientes do mundo
interior que os preenche e, de que nesse mundo tudo é matéria efervescente que só
precisa da mão, da mente e, talvez, do corpo sensível do artista para viabilizá-la como
objeto. Pensada a partir do paradigma hegeliano2, a pintura romântica começa a avançar

2
​A arte para ​Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) era entendida como uma forma particular de
manifestação do Espírito, como criação racional que se insere num percurso evolutivo cuja máxima
expressão seria desfazer-se da materialidade para reencontrar o Espírito. A arte e sua capacidade de
num processo de desmaterialização e desconstrução da imagem. As paisagens de
William Turner (1775-1851) colocam de certa forma o espectador dentro da tempestade,
criam uma construção visual que, para além de representar a natureza, dão materialidade
pictórica aos universos particulares desses artistas. A alma que, até então, era um
pedaço de Deus, ganha a companhia da subjetividade para animar o corpo do artista. Ele
se torna preenchido de sensações, sentimentos e valores que esperavam desde a
invenção do indivíduo, no século XV, para ocupar esse lugar.

Argan aponta que em meados do século XVIII o termo ​pitoresco já é empregado na


jardinagem. A expressão denotava uma qualidade singular aplicada às paisagens
naturais, buscava valorizar a irregularidade da natureza e uma particular interpretação
poética desse universo. O termo poderia ser empregado tanto à paisagem quanto à sua
representação. segundo o autor ​pitoresco​ poderia ser entendido como:

(...) uma arte que não imita nem representa, mas, em consonância com as
teses iluministas opera diretamente sobre a natureza, modificando-a,
corrigindo-a, adaptando-a aos sentimentos humanos e às oportunidades de
vida social, isto é, colocando-a como ambiente da vida (ARGAN, 1992, p.12)

Ainda segundo Argan a visão de mundo Iluminista tornou possível a percepção de que
o homem não é um mero observador da paisagem, que pode facilmente distanciar-se
para representá-la, mas que ele é agente nessa natureza que pode ser compreendida
como uma realidade interiorizada, portanto, subjetiva. Considerando as colocações do
autor não seria um equívoco dizer que a imersão do artista na paisagem e o
imbricamento entre vida e arte, que sai aqui do plano da representação, tem seu marco
zero nesse período.

Esse artista moderno começa a se constituir como uma entidade em transformação.


Mente, sentidos, subjetividade e autonomia, palavra chave na dinâmica social, política e
cultural da Modernidade, compõem esse novo sujeito. Munido de uma ampliação dos
códigos de construção da arte para além dos conhecimentos dados a priori pela tradição,
esse artista pode engendrar a arte a partir de si numa atitude autocentrada e, em certa

desmaterializar-se apresentam-se como um meio para alcançar essa evolução que se manifesta na
liberdade da existência da arte, tanto em relação aos seus fins, quanto em relação a seus meios.
medida, solitária. Mesmo atuando junto aos pares, como acontece nas vanguardas, o que
guia esse produtor de arte é o seu EU. Para isso, ele se utiliza dos antigos suportes,
entretanto, os códigos começam a sofrer mudanças significativas por decisões
individuais, segundo podemos perceber analisando a produção de Turner, Goya, Blake3,
artistas que imprimem em sua produção rupturas com a perspectiva renascentista e
modos bastante específicos de se relacionarem com a pintura. Os movimentos culturais
que compõem a modernidade são diversos em seus objetivos, mas em grande parte
ainda priorizam a visão, resultam numa obra final, com contornos bem determinados.
Por mais que uma pintura de Blake seja oriunda de um mergulho em sua imaginação e
subjetividade, ela é sustentada por uma materialidade, por um resultado formal que
prescinde de um suporte.

O início do século XX traz profundas cicatrizes para essa construção moderna.


Transforma-a de forma inalterável. É durante a primeira guerra que o Dadaísmo e sua
natureza contestadora irrompem o tecido da Arte Moderna causando mudanças naquilo
que de mais certo existia entre os artistas. A necessidade de fugir da insanidade de uma
guerra tornou esses agentes pessoas marcadas por um forte niilismo, num processo de
contestação e de negação do produzido até ali. A irracionalidade bélica virou fator
concreto para provar a ineficiência dos processos racionais que nortearam até então a
produção artística. Relativiza-se tudo nesse momento! Suporte, autoria, função. Desse
processo de negação e de rejeição nasce algo novo. Outra maneira de produzir e pensar
dentro desse universo. Antiarte! As guerras e revoluções seguem, ao longo dessa
primeira metade do século XX, estando entre as grandes responsáveis pela mudança de
paradigmas que acometem o sistema das artes.

O ceticismo dadaísta faz pensar no papel da arte em um mundo arrasado pela guerra, o
Construtivismo russo e seu caráter socialista olham para a arte e questionam como ela
pode fazer sentido dentro de uma nova lógica de existência, as performances de Joseph
Beuys (1921-1986) apresentam uma revisão das utopias, em certa medida se pode dizer
que ele propõe uma utopia do pós-guerra, do pós-holocausto, cheia de culpa e

3
​Joseph Mallord William Turner (1775-1851), Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1858) e
William Blake (1757-1827) foram artistas que criaram trajetórias e poéticas distintas em sua época, sendo
compreendidos atualmente como representantes do romantismo.
melancolia, que propõe uma integração com a Natureza e com o mundo espiritual em
busca de um novo modelo de socialismo humanista. Em ​Coiote:eu gosto da América e a
América gosta de mim de 1974, Beuys realiza uma performance na galeria René Block
de NY, entretanto, não vê uma única imagem americana, tampouco pisa no país. O
artista, a partir de uma ação exposta, evidencia a falta de reciprocidade na ação
comunicativa que percebia na relação entre América, principalmente EUA, na época
considerado um polo importante para a arte, e Europa.

Na década de 50, olhando para a produção do artista Jackson Pollock (1912-1956) o


processo de personificação do artista diante de seu trabalho parece ganhar outra
dimensão. Pollock embora trabalhando com materiais que não eram nenhuma novidade
para a arte moderna ressignifica a maneira como se relaciona com eles. O artista se
coloca em movimento, ele age mais do que observa. Rejeita esboços e planejamento,
fazendo da pintura uma extensão de suas ações, de seus movimentos, de sua vida.

A figura do artista ganha um corpo movente. Os gestos desse corpo de forma não
planejada constroem o trabalho, e ainda, para além disso, são o trabalho artístico. Esse
corpo que se move é resgatado pelo artista que o transforma em parte ativa da criação.
Numa dimensão ética, política e social a arte prescinde de ações que insiram os corpos,
tanto de artistas quanto de espectadores, nessa nova estética que começa a surgir no
pós-guerra. Uma estética que não fica satisfeita com o protagonismo da visão, mas que
deseja uma imersão completa, de todos os sentidos para tentar restabelecer, ou melhor,
para inventar, para desenhar uma nova sensibilidade para esses novos tempos. Ainda
sobre o trabalho de Pollock, Allan Kaprow (1927-2006) escreve dois anos após sua
morte:

Não penetramos numa pintura de Pollock por qualquer lugar (ou por cem
lugares). Parte alguma é toda parte, e nós imergimos e emergimos quando e
onde podemos. Essa descoberta levou às observações de que a sua arte dá a
impressão de desdobrar-se eternamente- uma intuição verdadeira, que sugere
o quanto Pollock ignorou o confinamento do campo retangular em favor de
um continuum, seguindo em todas as direções simultaneamente, para além
das dimensões literais de qualquer trabalho. (FERREIRA; COTRIM, 2009, p.
41)
Uma consciência da existência de um corpo inteiro que se insere na paisagem e não só a
observa invade a produção dos artistas a partir da segunda metade do século XX. A
virada fenomenológica dos anos 60 traz um corpus teórico absorvido pela leitura que
uma nova geração de artistas faz dos textos do filósofo Maurice Merleau-Ponty
(1908-1961), que possibilita uma mudança de paradigma para a arte e seus processos.
Para além de rever os modos de produzir arte, os artistas começam a questionar os
limites do que seja arte e de qual o seu papel nesse novo contexto. A beleza dessa virada
foi a ampliação da leitura dos textos de Merleau-Ponty para uma compreensão sócio
política da experiência estética, que possibilitou aos artistas rever a relação com a arte,
proposta ao fruidor, como um modelo de relação com o outro e com a vida em
sociedade. Essa relação foi ampliada, bem mais recentemente, através de trabalhos de
cunho fenomenológico estendendo-se ao meio ambiente, como exemplo o trabalho
Sonic Pavilion (2008) de Doug Aitken construído em Inhotim, onde os sons produzidos
pela natureza a 200 metros de profundidade podem ser ouvidos como uma sinfonia
pelos espectadores.

Toda a atenção que antes, na Era Moderna, se voltava para um “produto”, um resultado
que poderia, sem nenhum problema, ser capitalizado, monetarizado, embalado,
embrulhado em fita ou depositado numa redoma ou pedestal dentro de galerias e
museus, se volta para proposições ativas, métodos, processos. Surgem nesse cenário
artistas que misturaram de forma quase indiscernível a arte com a vida. Gestos artísticos
que, embora ainda lançassem mão de uma materialidade concreta, conseguiram despir
suas produções da sacralidade que vestiam as grandes obras modernas. Allan Kaprow
em 1966, escreveu:

Toda a história da arte e da estética encontra-se em estantes. Para seu


pluralismo de valores, adicione a indefinição atual dos limites que dividem as
artes, e da divisão entre arte e vida... Não apenas a arte se tornou vida, mas a
vida se recusa a ser ela mesma (Manifesto, 1966).

Kaprow que ainda no final da década de 50 idealizou ​18 Happenings in 6 Parts​,


viabiliza uma maneira de pensar e produzir arte que se poderia chamar de colaborativa.
O público compõe e determina as ações. Depende dele definir o rumo que as
proposições seguirão. Abre-se um universo até então inexplorado e imprevisível. A arte
pode então despir-se do material e tornar-se acontecimento? Essa questão norteia o
pensamento e a poética de muitos artistas desde então.

A artista norte americana Mierle Ukeles (1939), no início da década de 70, encontra
dentro de seu universo doméstico um potente mote para sua produção. Ukeles, ao
precisar assumir integralmente tarefas domésticas e o papel materno cobrado pela
sociedade da época - nada muito diferente dos dias atuais- é confrontada por uma série
de questões ocultas para o resto da sociedade, mas gritantes para aqueles que as
vivenciam, dentre elas a quase física invisibilidade dos sujeitos que executam tais
atividades, tanto na esfera pública, quanto na privada. A partir dessa consciência do
problema, a artista traz seu corpo e seu gesto que, de forma exaustiva executavam
dentro de quatro paredes as atividades domésticas, e às torna visíveis no espaço público
e expositivo. Em seu ​Manifesto para a arte de manutenção de 1969 Mierle chega a
escrever “meu trabalho será o trabalho!”. No gesto de Mierle não se produz um objeto,
se produz ação, repetição, interação. Uma artista que não expõe dentro do museu, mas
que se coloca como um agente de manutenção, uma “artista de manutenção” que limpa
aquele espaço, dando, a partir de sua imagem e corpo, visibilidade e destaque para as
tarefas que, embora essenciais, são histórica e socialmente ignoradas. Ukeles
desmaterializa seu trabalho, se desfaz da concretude, contudo, suas ações são
encorpadas de conceito e política. Ela não oferece um objeto para exposição e idolatria,
mas ideias para dissecar, movimentar pensamentos e produzir ecos.

Esse processo de transformação da matéria do objeto artístico até uma


desmaterialização completa também desenvolve-se no Brasil, mais especificamente no
Rio de Janeiro e em São Paulo, onde vivia-se os reflexos deixados pela Primeira Bienal
de São Paulo (1951), abrindo caminho para que no ano seguinte fossem criados os
grupos de arte concreta em ambos os estados. Mergulhávamos, aqui, num período de
racionalismo severo trazido pelo Concretismo, movimento norteado pelo objetivo de
dissolver o artístico e suas práticas na universalidade do tecido urbano. Até 1957,
quando acontece a Exposição Nacional de Arte Concreta dois grupos desenvolvem seus
trabalhos nesse sentido, o grupo Frente, no RJ, e o grupo Ruptura, em SP. Entretanto, a
exposição serve como uma maneira de trazer à superfície as diferenças de objetivos que
permeavam a poética dos artistas de cada grupo. Essa percepção acaba gerando uma
dissidência. Surge, do grupo carioca, os Neoconcretos, ao final década.

Artistas como Lygia Clark (1920-1988), Lygia Pape (1927-2004) e Hélio Oiticica
(1937-1980) não estavam dispostos a abrir mão de certos limites que mantém a
singularidade do fazer artístico entre as demais formas de produção como algo que
preservava a autoria e defendia o direito dos artistas percorrerem trajetórias pessoais e
desenvolverem suas poéticas em prol de uma estética coletiva universalizante que
visava dissolver a arte na cidade, levada pelas mãos dos artistas do futuro: arquitetos,
urbanistas e designers. O projeto construtivo que passa a ser interrogado partia de uma
crença na extinção da concepção de arte como produto da sociedade burguesa, que
fortalecia simbolicamente a elite e abastecia a demanda de um mercado sofisticado que
ia despontando no cenário nacional daquele momento.

O grupo Neoconcreto ressignificou a relação com a produção artística ampliando sua


percepção da arte para além da corporeidade objetual, a arte nesse contexto
concretizava-se na relação do material apropriado com o espaço e com o participante.
Ele é carnal, por mais que o sentido e a completude da produção transcendam essa
fisicalidade. Os artistas em seu ​Manifesto Neoconcreto​ de 1959 escreveram:

Acreditamos que a obra de arte supera o mecanicismo material sobre o qual


repousa (...) por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva)
e por criar para si uma significação tácita (M. Ponty) que emerge nela pela
primeira vez. (Trecho do Manifesto Neoconcreto, 1959)

As experiências dos artistas neoconcretos seguem ecoando na produção artística


nacional mesmo após a dissolução do grupo um ano depois de sua formação.
Encontramos ao longo da década de 60 uma série de proposições artísticas que, além de
estarem fortemente imbricadas com a trajetória pessoal de cada propositor,
proporcionam uma dissolução dos contornos daquilo que era compreendido até então
como objeto artístico. Lygia Pape por exemplo, em seu trabalho ​Roda dos prazeres
(1968) propõe um jogo com os sentidos do participante. Paladar, olfato e visão são
ludibriados pelos sabores, cheiros e cores colocados no chão em vasilhas dispostas em
forma circular. Embora exista ali certa qualidade estética no que se refere à imagem, o
que se destaca é o jogo, a ação, a experimentação que o fruidor/participante precisa
encarar para ter uma vivência completa do trabalho. Do corpo que se joga no chão aos
sentidos que se põe atentos, tudo ali é brincadeira, mas também é uma chamada para
uma autoconsciência corporal e sensível. O espectador amplia sua participação, ele age,
experimenta, vive a proposição e percebe corporeamente suas relações espaciais. Esse
processo de desmaterialização ativo na década de 60 é bastante peculiar, pois, ainda,
necessita da matéria para efetivar-se na ação.

Os ​Parangolés de Hélio Oiticica, embora sejam “coisa”, objeto não guardam nessa
materialidade o sentido da proposição artística, o trabalho só se realiza plenamente com
a inserção de um corpo móvel, dançante, vivente. Os movimentos desse corpo e a
inserção dele no espaço são a realização plena do que propôs o artista. Temos então algo
físico que viabiliza a proposta, mas sem um espectador ativo e a mistura desse material
com a vida desse espectador não existe trabalho.

Essa mudança de paradigma norteador da arte e de seu papel culmina em território


nacional, em 1967, numa importante e histórica exposição organizada pelo artista Hélio
Oiticica. ​Nova Objetividade Brasileira que, possivelmente, estava em sincronia com
outras mostras internacionais e nacionais que arriscavam propor a desmaterialização do
objeto artístico. Antes dela, ​Opinião 65 aconteceu no Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro e nela o próprio Oiticica apresenta seus míticos ​Parangolés ao público, estes
estavam expostos como objetos. Entretanto, Oiticica leva consigo para essa
apresentação nada convencional parte da bateria da Mangueira e alguns passistas que
deram vida e movimento à proposta. Não entraram, o museu não estava preparado para
a quebra de protocolo, mas trouxeram para os jardins do MAM aqueles que estavam
dispostos a participar da festa. Em meio à aridez e ao mal estar deixados pelo golpe de
1964, a exposição surge como um convite à ousadia e à transgressão. Convida o
espectador a tornar-se ativo, convida o cidadão a mover seu corpo e a levantar sua voz.
A crítica à curadoria foi feita assim, devolvendo às capas expostas sua verdadeira
função poética, a de fazer acontecer arte na vida, na experiência embriagante da dança e
da interação coletiva.
O cenário político e social permeado pela descrença e pelo medo, associados aos textos
de Merleau-Ponty que se tornaram matéria de estudos dos artistas brasileiros,
principalmente daqueles que começavam a repensar questões relativas às relações
espaciais entre obra e fruidor, adubaram o contexto para o surgimento de trabalhos
potentes para problematizar tais relações. A já citada exposição de 67, ​Nova
Objetividade Brasileira,​ traz alguns trabalhos nesse sentido, mas um é digno de
destaque, a instalação ​Tropicália​.

Nesse trabalho Oiticica ocupava uma parte considerável do espaço expositivo. Foi
projetado pelo artista um ambiente labiríntico onde era possível encontrar dois
Penetráveis, PN2 (1966) - Pureza É um Mito, e PN3 (1966-1967) - Imagético,
associados a palmeiras, araras vivas, areia. O trabalho inteiro era um convite à
brincadeira, ao jogo. O espectador que agora é um participante ativo penetrava num
cenário, recheado de teatralidade. As artes visuais formavam, ali, um híbrido com a
linguagem teatral. A última pá de terra sobre os anseios formalistas de que a produção
artística fosse recuar em relação ao experimentalismo fenomenológico desbravado
desde o início da década. Michael Archer pensando sobre a produção híbrida do período
questiona:

A obra de arte tinha forma substancial ou era um conjunto de ideias de como


perceber o mundo? Era um objeto singular ou algo mais difuso, que ocupava
um espaço muito maior? A arte devia ser encontrada dentro ou fora da
galeria? (ARCHER, 2001, p. 62)

Em ​Tropicália esses e outros questionamentos eram ativados, nada permitia uma


observação passiva. O contato tátil com a terra, o corpo colocado em movimento entre
seus espaços, explorando, descobrindo novos caminhos a cada passo. A audição que se
colocava atenta entre o canto das araras, o som da natureza vindo das caixas de som e as
vozes vindas da TV que passava um telejornal da época de dentro de um dos
Penetráveis. Os cheiros oferecidos por cada material que trazia consigo pedaços do
mundo, sem falar na visão que a cada passo recebia novos estímulos e percebia
diferentes imagens configurando-se.
​ iticica criou uma relação de
Com seu ​Programa de Antiarte Ambiental4 O
indiscernimento entre arte e vida. Recriou caminhos, ofereceu possibilidades de uma
outra existência que se configura dentro da arte que se insere na vida. As relações
constantes entre natureza e cultura trazidas pela instalação são um recorte de realidade
que, ao ser isolada ali, num espaço expositivo, se configura em arte, mas permanece
vida. Segue gerando experiência e se tornando memória. As relações oferecidas pelo
artista propositor provavelmente desencadearam uma infinidade de relações, vivências e
pensamentos naqueles que a vivenciaram, mas cabe citar uma bastante explícita que,
sem nenhuma sutileza estampava o interior de um dos Penetráveis: “A pureza é um
mito”! A pureza tão sonhada pelos formalistas, dentre eles destaque para o crítico
Clement Greenberg (1909-1994) escreve o ensaio ​Pintura Modernista (​ 1960) onde
defende que ao purificar seus padrões, ao rejeitar a profundidade em favor de uma
límpida planaridade a arte encontraria sua “qualidade” e “independência”. Arthur
Danto em referência a esse texto chega a enunciar que esse anseio pela pureza
apresentado a partir de uma “limpeza conceitual” quando transposto para nossos dias é
“só uma opção, e praticamente fora de moda” (DANTO, 2015, p.20).

Com ​Tropicália Hélio Oiticica oferece ao público de arte na década de 60 uma


materialização potente para dar a ver e sentir que, ao menos no que se refere a produção
artística, ele e seus pares deixavam a mitologia para trás em busca de um mergulho
profundo na mais sensorial objetividade.

Os ​Núcleos de Oiticica levam a proposição artística para o espaço. Existe uma


propagação dos limites alcançados pela arte. Ela penetra o espaço do espectador que
ganha o estatuto de participante. Artista propositor e espectador participante
encontram-se não mais diante da obra, mas dentro de uma proposição. Aquela ação
esboçada no gesto pictórico de Pollock ganha outras dimensões na medida em que sai
do atelier do artista e se expande para o espaço expositivo. Agora não é mais apenas o
corpo do artista que se move, que se agita pelos efeitos da materialidade pictórica. Nos
anos 60, qualquer corpo que se proponha a ter contato com essas proposições é agente
ativo. O espectador pode inclusive não vestir o ​Parangolé,​ não experimentar os sabores

4
Experiências realizadas durante a década de 60 após a dissolução do grupo Neoconcreto que incluíram
proposições como ​Núcleos​, ​Penetráveis​, ​Bólides​ e ​Parangolés.​
da ​Roda dos prazeres,​ tampouco penetrar um ​Núcleo,​ mas mesmo assim será
participante, pois precisará de uma sensibilidade diferente daquela solicitada por uma
obra puramente visual. Seus sentidos se aguçarão, a curiosidade entrará talvez numa
disputa com o receio e o medo. As proposições artísticas nascentes nesse período não
permitirão passividade, por mais que nosso observador/participante se esforce para
mantê-la. Ações coletivas, performances, uso de objetos do cotidiano, foram alguns
artifícios encontrados pelos artistas do pós-neoconcretismo para viabilizarem essas
proposições. Vestir um ​Parangolé de Oiticica é tornar-se parte do trabalho, é animá-lo.
Experimentar uma gota dos líquidos coloridos de ​Roda dos Prazeres (1968) de Lygia
Pape é concretizar a experiência artística, tornar-se parte da história da obra e da arte
daquele momento.

Com todas essas mudanças trazidas para o campo da arte com os processos de
desmaterialização que diversificaram-se e se ampliaram a partir da segunda metade do
século XX, os processos de registro que envolvem essa produção também foram
atravessados por outras áreas, outras vertentes que permitiram analisar o fenômeno
artístico pós-histórico sob a luz de olhares até então não experimentados nesse campo.
Sociologia, Estudos culturais, antropologia, permitindo assim atravessamentos que
buscam criar uma ou mais narrativas sob os diferentes aspectos que uma proposição
artística dessa complexidade permita.

Nossa existência alcança um tempo em que a arte adquiriu espaços institucionais,


correntes teóricas e uma historicização que deu conta de criar narrativas das quais
dificilmente conseguimos nos desvencilhar ao olhar para seu percurso. Esse processo de
historizar o campo da arte deixou de fora uma série de experiências e possibilidades ao
longo de séculos. Hans Belting em seu livro ​O fim da História da Arte ​(2003) propõe
um uso assertivo do termo “história da arte”, segundo ele tentar classificar a produção
desmaterializada que tem seu auge nos anos 70 como uma continuidade daquela história
evolutiva poderia levar ao esvaziamento do seu conceito e, talvez, tirar o sentido
atribuído até então àquelas narrativas. Belting anuncia assim, o término da história da
arte e o nascimento da arte pós-histórica. O autor evita o termo contemporâneo para
classificar aquela produção por acreditar que a questão temporal por ele exposta pode
rapidamente não dar conta da produção que vem sendo gestada desde os anos 60.

O processo de desmaterialização da Arte não foi simples nem rápido. Das pinturas
românticas, onde a imagem se desmancha, até as performances, em que o gesto e o
corpo são a única materialidade de que o artista prescinde, se passaram quase dois
séculos. Gradualmente os historiadores e críticos foram sentindo cada vez mais
dificuldade de enquadrar tais produções nas grandes narrativas. A ponto de, alguns
deles, como Greenberg e o grupo de críticos formalistas associados a ele por exemplo,
negarem, publicamente, a validade da produção contemporânea como artística. Belting
parece encontrar uma maneira diplomática de encerrar um capítulo para abrir espaço
para que outros sejam escritos. Pondo fim à narrativa historicista da arte é possível criar
uma outra lógica de inscrição para o que se produz a partir do século XX.

Essa arte pós-histórica tem forte caráter político, sua matéria não se encerra em
problemas de representação ou especificidades do universo artístico, talvez uma das
características mais marcantes dessa produção nascente é seu caráter híbrido com
vocação para pensar e fazer pensar questões que fazem parte do existir dos indivíduos e
das sociedades. A principal característica apontada pelo termo “pós-histórica” é que
essa arte é produzida à margem das perspectivas historiográficas que marcaram a
produção anterior: desenvolvimento, superação, filiação e sucessão estilísticas. Por isso,
não se molda a uma narrativa de feitio historicista.

Reinventada a natureza da arte nesse processo de perda de matéria e valorização do


conceito, criadas narrativas que deem conta de dedicar um espaço a essas experiências
nos discursos sobre arte, o “lugar da arte” não consegue passar incólume por essa
transformação. O museu, que nasceu com uma vocação enciclopédica e colecionista
ligada ao Iluminismo, mas que alcança o ​status (aqui, se aplica) de um templo de pureza
e resguardo para a arte moderna, tem agora sua função colocada em debate.
Desmaterializada a arte, despojada de um corpo permanente que é substituído por uma
encarnação efêmera, como conservar esse resultado? Como poderia o museu manter sua
função original, poderia?
Douglas Crimp em seu livro ​Sobre as ruínas do museu (2005) narra um fato que pode
auxiliar a pensar essa busca por uma nova existência que o museu precisa empreender a
partir da década de 80. Segundo ele Barbara Rose em uma mordaz crítica à exposição
ocorrida no Museu de arte moderna de Nova York (MoMA) em 1974, intitulada ​Oito
artistas contemporâneos,​ aponta o forte caráter político das obras em detrimento de sua
força formal e estética. Rose dedica-se especialmente à obra de Daniel Buren, os painéis
listrados. Chama sua atenção o fato de o artista questionar o ​status e a pertinência atual
do papel do museu, mas aceitar expor seu trabalho de cunho ideológico dentro de um
dos espaços expositivos mais importantes da época.

Crimp atenta para o fato de que, provavelmente, se Buren não tivesse se colocado
dentro do museu questões importantes que permeavam seu trabalho, como a crítica ao
espaço institucional não teriam vindo à tona. Ou seja, mesmo que a natureza desse lugar
comece a ser repensada, ele segue como um palco importante para trazer à luz certas
discussões, seja das relações inerentes a própria arte ou de suas relações sistêmicas e
com o mundo.

O museu que emerge diante da arte pós-histórica precisa impreterivelmente, despojar-se


de suas pretensões de pureza adquiridas para ser o lar da arte moderna. Ele se torna um
personagem importante para a disseminação dos inúmeros, conflituosos e inconstantes
vieses poéticos que o momento permite surgir. Surge talvez, a possibilidade de o espaço
transformar-se num potente mediador para as discussões travadas dentro do universo
artístico, perdendo assim, gradualmente, sua tendência purista e arquivista.

Oiticica, Kaprow, Pape, Beuys, Ukeles e tantos outros nomes são responsáveis por
trazer para as discussões sobre arte questões que transformaram as relações dela com o
mundo. Em certa medida talvez seja possível falar até de uma democratização do
discurso e da própria arte. Quando o foco se desloca de um objeto único, sacralizado,
que tem um espaço específico para ser exposto, para uma ação na qual o público pode
participar tanto quanto o artista, ou para fotografias, que são passíveis de reprodução e
trazem consigo uma narrativa que, mais importante do que o registro imagético, contam
de um processo poético, significa que a arte não tem mais um lugar. Mas que ela
dissolveu-se, está pelo mundo. Ela pode entrar pelas telas de quem se dispuser e
conhecê-la, está na rua e qualquer desavisado pode tropeçar em sua materialidade sem
necessariamente cometer um sacrilégio, mas possivelmente, tornando-se parte de sua
existência.

Essa arte desmaterializada e desprovida de “carne” é de uma potência imensurável, ela


não se limita a contornos e suportes para fazer despertar o corpo de seu
espectador/participante/fruidor. Ela é ideia que ecoa sem barreiras físicas, no corpo e/ou
no pensamento de quem se permite tocar por ela e realizá-la na experiência, que
facilmente se atualiza, pois seus materiais (quando existem) são ordinários e acessíveis,
mas seu alcance e força não cessam enquanto houverem interessados em colocar-se em
jogo!

REFERÊNCIAS

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