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RESUMO
O ensaio objetiva oferecer um percurso histórico através do qual se possa construir um dos
possíveis caminhos para narrar os processos de desmaterialização da arte, a partir do século
XIX. Pretende-se revisar alguns movimentos produzidos por artistas e teóricos que, através de
suas produções, ajudaram a consolidar e a pensar esse processo de desvalorização da
materialidade artística e a transformação de sua existência, desdobrando-se em múltiplos
suportes e procedimentos.
PALAVRAS-CHAVE
Arte; desmaterialização; arte pós-histórica; objeto
ABSTRACT
This essay aims to offer a historical path from which one may build one of the possible ways to
narrate the dematerialization processes of art from the 19th century onwards. It is intended to
review some movements produced by artists and theorists, who, throughout their productions,
helped to consolidate and think about this depreciation process of artistic materiality and the
transformation of its existence, being unfolded in multiple supports and procedures.
KEYWORDS
Art; dematerialization; post-historic art; object
Quando falamos sobre arte, especialmente com pessoas não diretamente ligadas aos
estudos que cercam a área, é bastante comum que as indagações e observações desse
nosso interlocutor1 venham com um rótulo. Ele é invisível, mas começa a criar
contornos na medida em que percebemos, por exemplo, que aquilo que nosso
interlocutor compreende como arte obrigatoriamente se apresenta na forma de um
objeto. Caso esse objeto seja antigo e tenha aval histórico, nosso interlocutor torna-se
dócil e feliz. A ideia de Arte, com A maiúsculo, devidamente rotulada é algo que traz
certa serenidade. Encontramos discretamente enunciados no rótulo que começa a tomar
forma uma prescrição forjada na Era Moderna: a obra de arte é um objeto pensado e
1
Arthur Danto em artigo publicado em 1964, intitulado O mundo da arte, utiliza-se de um artifício
literário ao evocar um personagem nomeado Testadura, como seu interlocutor. No texto Danto dialoga
com o personagem com o objetivo de discutir o problema de definição, entendimento e sustentação da
arte contemporânea na era da desmaterialização, quando sua aparência confunde-se com objetos
cotidianos. O autor busca a todo momento convencer seu interlocutor da validade artística da arte que se
configura a partir do final dos anos 50.
construído pelo artista que a concretiza através do bom uso de uma técnica e da
materialidade de uma poética. Le voilà! Temos ARTE!
A ideia de arte que se forja durante a Era Moderna prevê certo distanciamento entre a
obra e o seu produtor, entre a obra e o seu fruidor. Certo desejo de atribuir valores de
ciência para essa produção fizeram do processo artístico algo descolado do corpo
daqueles que viessem a fazer ou fruir arte. Métodos foram difundidos, apreendidos e
aplicados. Correntes representativas do projeto moderno previam que a Arte fosse a
nobre representante de elevados valores que levariam indubitavelmente a sociedade, ou
aqueles privilegiados que dela pudessem desfrutar, para um caminho sem volta, o do
progresso. Evolução é uma palavra imbricada até então nesse sistema produtor e fruidor
de Arte.
2
A arte para Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) era entendida como uma forma particular de
manifestação do Espírito, como criação racional que se insere num percurso evolutivo cuja máxima
expressão seria desfazer-se da materialidade para reencontrar o Espírito. A arte e sua capacidade de
num processo de desmaterialização e desconstrução da imagem. As paisagens de
William Turner (1775-1851) colocam de certa forma o espectador dentro da tempestade,
criam uma construção visual que, para além de representar a natureza, dão materialidade
pictórica aos universos particulares desses artistas. A alma que, até então, era um
pedaço de Deus, ganha a companhia da subjetividade para animar o corpo do artista. Ele
se torna preenchido de sensações, sentimentos e valores que esperavam desde a
invenção do indivíduo, no século XV, para ocupar esse lugar.
(...) uma arte que não imita nem representa, mas, em consonância com as
teses iluministas opera diretamente sobre a natureza, modificando-a,
corrigindo-a, adaptando-a aos sentimentos humanos e às oportunidades de
vida social, isto é, colocando-a como ambiente da vida (ARGAN, 1992, p.12)
Ainda segundo Argan a visão de mundo Iluminista tornou possível a percepção de que
o homem não é um mero observador da paisagem, que pode facilmente distanciar-se
para representá-la, mas que ele é agente nessa natureza que pode ser compreendida
como uma realidade interiorizada, portanto, subjetiva. Considerando as colocações do
autor não seria um equívoco dizer que a imersão do artista na paisagem e o
imbricamento entre vida e arte, que sai aqui do plano da representação, tem seu marco
zero nesse período.
desmaterializar-se apresentam-se como um meio para alcançar essa evolução que se manifesta na
liberdade da existência da arte, tanto em relação aos seus fins, quanto em relação a seus meios.
medida, solitária. Mesmo atuando junto aos pares, como acontece nas vanguardas, o que
guia esse produtor de arte é o seu EU. Para isso, ele se utiliza dos antigos suportes,
entretanto, os códigos começam a sofrer mudanças significativas por decisões
individuais, segundo podemos perceber analisando a produção de Turner, Goya, Blake3,
artistas que imprimem em sua produção rupturas com a perspectiva renascentista e
modos bastante específicos de se relacionarem com a pintura. Os movimentos culturais
que compõem a modernidade são diversos em seus objetivos, mas em grande parte
ainda priorizam a visão, resultam numa obra final, com contornos bem determinados.
Por mais que uma pintura de Blake seja oriunda de um mergulho em sua imaginação e
subjetividade, ela é sustentada por uma materialidade, por um resultado formal que
prescinde de um suporte.
O ceticismo dadaísta faz pensar no papel da arte em um mundo arrasado pela guerra, o
Construtivismo russo e seu caráter socialista olham para a arte e questionam como ela
pode fazer sentido dentro de uma nova lógica de existência, as performances de Joseph
Beuys (1921-1986) apresentam uma revisão das utopias, em certa medida se pode dizer
que ele propõe uma utopia do pós-guerra, do pós-holocausto, cheia de culpa e
3
Joseph Mallord William Turner (1775-1851), Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1858) e
William Blake (1757-1827) foram artistas que criaram trajetórias e poéticas distintas em sua época, sendo
compreendidos atualmente como representantes do romantismo.
melancolia, que propõe uma integração com a Natureza e com o mundo espiritual em
busca de um novo modelo de socialismo humanista. Em Coiote:eu gosto da América e a
América gosta de mim de 1974, Beuys realiza uma performance na galeria René Block
de NY, entretanto, não vê uma única imagem americana, tampouco pisa no país. O
artista, a partir de uma ação exposta, evidencia a falta de reciprocidade na ação
comunicativa que percebia na relação entre América, principalmente EUA, na época
considerado um polo importante para a arte, e Europa.
A figura do artista ganha um corpo movente. Os gestos desse corpo de forma não
planejada constroem o trabalho, e ainda, para além disso, são o trabalho artístico. Esse
corpo que se move é resgatado pelo artista que o transforma em parte ativa da criação.
Numa dimensão ética, política e social a arte prescinde de ações que insiram os corpos,
tanto de artistas quanto de espectadores, nessa nova estética que começa a surgir no
pós-guerra. Uma estética que não fica satisfeita com o protagonismo da visão, mas que
deseja uma imersão completa, de todos os sentidos para tentar restabelecer, ou melhor,
para inventar, para desenhar uma nova sensibilidade para esses novos tempos. Ainda
sobre o trabalho de Pollock, Allan Kaprow (1927-2006) escreve dois anos após sua
morte:
Não penetramos numa pintura de Pollock por qualquer lugar (ou por cem
lugares). Parte alguma é toda parte, e nós imergimos e emergimos quando e
onde podemos. Essa descoberta levou às observações de que a sua arte dá a
impressão de desdobrar-se eternamente- uma intuição verdadeira, que sugere
o quanto Pollock ignorou o confinamento do campo retangular em favor de
um continuum, seguindo em todas as direções simultaneamente, para além
das dimensões literais de qualquer trabalho. (FERREIRA; COTRIM, 2009, p.
41)
Uma consciência da existência de um corpo inteiro que se insere na paisagem e não só a
observa invade a produção dos artistas a partir da segunda metade do século XX. A
virada fenomenológica dos anos 60 traz um corpus teórico absorvido pela leitura que
uma nova geração de artistas faz dos textos do filósofo Maurice Merleau-Ponty
(1908-1961), que possibilita uma mudança de paradigma para a arte e seus processos.
Para além de rever os modos de produzir arte, os artistas começam a questionar os
limites do que seja arte e de qual o seu papel nesse novo contexto. A beleza dessa virada
foi a ampliação da leitura dos textos de Merleau-Ponty para uma compreensão sócio
política da experiência estética, que possibilitou aos artistas rever a relação com a arte,
proposta ao fruidor, como um modelo de relação com o outro e com a vida em
sociedade. Essa relação foi ampliada, bem mais recentemente, através de trabalhos de
cunho fenomenológico estendendo-se ao meio ambiente, como exemplo o trabalho
Sonic Pavilion (2008) de Doug Aitken construído em Inhotim, onde os sons produzidos
pela natureza a 200 metros de profundidade podem ser ouvidos como uma sinfonia
pelos espectadores.
Toda a atenção que antes, na Era Moderna, se voltava para um “produto”, um resultado
que poderia, sem nenhum problema, ser capitalizado, monetarizado, embalado,
embrulhado em fita ou depositado numa redoma ou pedestal dentro de galerias e
museus, se volta para proposições ativas, métodos, processos. Surgem nesse cenário
artistas que misturaram de forma quase indiscernível a arte com a vida. Gestos artísticos
que, embora ainda lançassem mão de uma materialidade concreta, conseguiram despir
suas produções da sacralidade que vestiam as grandes obras modernas. Allan Kaprow
em 1966, escreveu:
A artista norte americana Mierle Ukeles (1939), no início da década de 70, encontra
dentro de seu universo doméstico um potente mote para sua produção. Ukeles, ao
precisar assumir integralmente tarefas domésticas e o papel materno cobrado pela
sociedade da época - nada muito diferente dos dias atuais- é confrontada por uma série
de questões ocultas para o resto da sociedade, mas gritantes para aqueles que as
vivenciam, dentre elas a quase física invisibilidade dos sujeitos que executam tais
atividades, tanto na esfera pública, quanto na privada. A partir dessa consciência do
problema, a artista traz seu corpo e seu gesto que, de forma exaustiva executavam
dentro de quatro paredes as atividades domésticas, e às torna visíveis no espaço público
e expositivo. Em seu Manifesto para a arte de manutenção de 1969 Mierle chega a
escrever “meu trabalho será o trabalho!”. No gesto de Mierle não se produz um objeto,
se produz ação, repetição, interação. Uma artista que não expõe dentro do museu, mas
que se coloca como um agente de manutenção, uma “artista de manutenção” que limpa
aquele espaço, dando, a partir de sua imagem e corpo, visibilidade e destaque para as
tarefas que, embora essenciais, são histórica e socialmente ignoradas. Ukeles
desmaterializa seu trabalho, se desfaz da concretude, contudo, suas ações são
encorpadas de conceito e política. Ela não oferece um objeto para exposição e idolatria,
mas ideias para dissecar, movimentar pensamentos e produzir ecos.
Artistas como Lygia Clark (1920-1988), Lygia Pape (1927-2004) e Hélio Oiticica
(1937-1980) não estavam dispostos a abrir mão de certos limites que mantém a
singularidade do fazer artístico entre as demais formas de produção como algo que
preservava a autoria e defendia o direito dos artistas percorrerem trajetórias pessoais e
desenvolverem suas poéticas em prol de uma estética coletiva universalizante que
visava dissolver a arte na cidade, levada pelas mãos dos artistas do futuro: arquitetos,
urbanistas e designers. O projeto construtivo que passa a ser interrogado partia de uma
crença na extinção da concepção de arte como produto da sociedade burguesa, que
fortalecia simbolicamente a elite e abastecia a demanda de um mercado sofisticado que
ia despontando no cenário nacional daquele momento.
Os Parangolés de Hélio Oiticica, embora sejam “coisa”, objeto não guardam nessa
materialidade o sentido da proposição artística, o trabalho só se realiza plenamente com
a inserção de um corpo móvel, dançante, vivente. Os movimentos desse corpo e a
inserção dele no espaço são a realização plena do que propôs o artista. Temos então algo
físico que viabiliza a proposta, mas sem um espectador ativo e a mistura desse material
com a vida desse espectador não existe trabalho.
Nesse trabalho Oiticica ocupava uma parte considerável do espaço expositivo. Foi
projetado pelo artista um ambiente labiríntico onde era possível encontrar dois
Penetráveis, PN2 (1966) - Pureza É um Mito, e PN3 (1966-1967) - Imagético,
associados a palmeiras, araras vivas, areia. O trabalho inteiro era um convite à
brincadeira, ao jogo. O espectador que agora é um participante ativo penetrava num
cenário, recheado de teatralidade. As artes visuais formavam, ali, um híbrido com a
linguagem teatral. A última pá de terra sobre os anseios formalistas de que a produção
artística fosse recuar em relação ao experimentalismo fenomenológico desbravado
desde o início da década. Michael Archer pensando sobre a produção híbrida do período
questiona:
4
Experiências realizadas durante a década de 60 após a dissolução do grupo Neoconcreto que incluíram
proposições como Núcleos, Penetráveis, Bólides e Parangolés.
da Roda dos prazeres, tampouco penetrar um Núcleo, mas mesmo assim será
participante, pois precisará de uma sensibilidade diferente daquela solicitada por uma
obra puramente visual. Seus sentidos se aguçarão, a curiosidade entrará talvez numa
disputa com o receio e o medo. As proposições artísticas nascentes nesse período não
permitirão passividade, por mais que nosso observador/participante se esforce para
mantê-la. Ações coletivas, performances, uso de objetos do cotidiano, foram alguns
artifícios encontrados pelos artistas do pós-neoconcretismo para viabilizarem essas
proposições. Vestir um Parangolé de Oiticica é tornar-se parte do trabalho, é animá-lo.
Experimentar uma gota dos líquidos coloridos de Roda dos Prazeres (1968) de Lygia
Pape é concretizar a experiência artística, tornar-se parte da história da obra e da arte
daquele momento.
Com todas essas mudanças trazidas para o campo da arte com os processos de
desmaterialização que diversificaram-se e se ampliaram a partir da segunda metade do
século XX, os processos de registro que envolvem essa produção também foram
atravessados por outras áreas, outras vertentes que permitiram analisar o fenômeno
artístico pós-histórico sob a luz de olhares até então não experimentados nesse campo.
Sociologia, Estudos culturais, antropologia, permitindo assim atravessamentos que
buscam criar uma ou mais narrativas sob os diferentes aspectos que uma proposição
artística dessa complexidade permita.
O processo de desmaterialização da Arte não foi simples nem rápido. Das pinturas
românticas, onde a imagem se desmancha, até as performances, em que o gesto e o
corpo são a única materialidade de que o artista prescinde, se passaram quase dois
séculos. Gradualmente os historiadores e críticos foram sentindo cada vez mais
dificuldade de enquadrar tais produções nas grandes narrativas. A ponto de, alguns
deles, como Greenberg e o grupo de críticos formalistas associados a ele por exemplo,
negarem, publicamente, a validade da produção contemporânea como artística. Belting
parece encontrar uma maneira diplomática de encerrar um capítulo para abrir espaço
para que outros sejam escritos. Pondo fim à narrativa historicista da arte é possível criar
uma outra lógica de inscrição para o que se produz a partir do século XX.
Essa arte pós-histórica tem forte caráter político, sua matéria não se encerra em
problemas de representação ou especificidades do universo artístico, talvez uma das
características mais marcantes dessa produção nascente é seu caráter híbrido com
vocação para pensar e fazer pensar questões que fazem parte do existir dos indivíduos e
das sociedades. A principal característica apontada pelo termo “pós-histórica” é que
essa arte é produzida à margem das perspectivas historiográficas que marcaram a
produção anterior: desenvolvimento, superação, filiação e sucessão estilísticas. Por isso,
não se molda a uma narrativa de feitio historicista.
Crimp atenta para o fato de que, provavelmente, se Buren não tivesse se colocado
dentro do museu questões importantes que permeavam seu trabalho, como a crítica ao
espaço institucional não teriam vindo à tona. Ou seja, mesmo que a natureza desse lugar
comece a ser repensada, ele segue como um palco importante para trazer à luz certas
discussões, seja das relações inerentes a própria arte ou de suas relações sistêmicas e
com o mundo.
Oiticica, Kaprow, Pape, Beuys, Ukeles e tantos outros nomes são responsáveis por
trazer para as discussões sobre arte questões que transformaram as relações dela com o
mundo. Em certa medida talvez seja possível falar até de uma democratização do
discurso e da própria arte. Quando o foco se desloca de um objeto único, sacralizado,
que tem um espaço específico para ser exposto, para uma ação na qual o público pode
participar tanto quanto o artista, ou para fotografias, que são passíveis de reprodução e
trazem consigo uma narrativa que, mais importante do que o registro imagético, contam
de um processo poético, significa que a arte não tem mais um lugar. Mas que ela
dissolveu-se, está pelo mundo. Ela pode entrar pelas telas de quem se dispuser e
conhecê-la, está na rua e qualquer desavisado pode tropeçar em sua materialidade sem
necessariamente cometer um sacrilégio, mas possivelmente, tornando-se parte de sua
existência.
REFERÊNCIAS
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