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Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág. 57-65 n» 5,2“ Semestre 2003
O IMAGINÁRIO DA ARTE:
MITOS E RITOS NA CONTEMPORANEIDADE
muitas de suas funções. Há uma certa deixou de estar ao serviço da religião para
ambiguidade nessa vivência, uma vez que a obter relativa autonomia enquanto campo
maioria dos artistas assume a condição específico de conhecimento, pois eles
agnóstica da cultura ocidental correspondem a aspectos da psique humana,
contemporânea, alijando de seus trabalhos que transcendem condições culturais e
referências intencionais de cunho sacralizante. racionalismos.
A maioria deles, inclusive, assume posições Abordar o tema do sagrado no
bastante refratárias em relação a uma tradição imaginário da Arte contemporânea exige,
romântico-idealista que dá ao artista um entretanto, evitar dicotomias e oposições
estatuto de gênio e à obra uma imanência entre o sagrado e o profano, ou mesmo
mágica. Eles propõem atuações que passam considerações filosóficas generalizantes,
pelo questionamento do Sistema das Artes sendo preferível trabalhar com suas
e, principalmente, pela recusa em assumir a constituições sociais. É possível utilizar uma
religiosidade de seus tempos e espaços. concepção que valorize a capacidade da arte de
Entretanto, permanece presente nesse campo construir sentidos, instaurando nesse
uma abertura para o incompleto e o processo um campo de vivências condizente
inesperado, que mantém o mistério em com uma sociedade racional e materialista.
suspenso, não oferecendo respostas, mas Como observa um autor em exaustiva
questionamentos. análise desse tema em diferentes sociedades
A Arte abre-se à falta imanente ao 'as coisas sagradas são coisas sociais. Se os deuses,
ser humano, em sua impossibilidade de cada um na sua hora, saem do templo e se tomam
responder a questões como: De onde vim e profanos, nós vemos, por outro lado, as coisas
para onde vou? O que faço aqui? Através humanas, mas sociais, apátria, apropriedade, o
dela, os indivíduos tentam construir trabalho, apessoa humana, ali entrarem uma atrás
socialmente, em seu imaginário, formas de da outra. Por trás da idéia de separação, depureza
ocupação desse vazio primordial, ou de impureza, está o respeito, o amor, a repulsa e
trabalhando sempre em um espaço dinâmico a crença, sentimentos diferentes e fortes,
de fechamento e abertura. Nesse sentido, ela invocadores, capasçes de se traduzirem emgestos e
faz parte deste processo em que o homem pensamentos '(MAUSS, 1968, p 3). Quando o
moderno elabora sua relação com a perda do autor afirma que é concebido como sagrado
divino. Em um mundo laico como o atual, tudo que por um grupo qualifica a sociedade,
em que o ser humano deseja sempre, de ele está indicando, de certa maneira, o
alguma forma, a negação da morte, ele tenta caminho para a compreensão dessa
realizar esse gesto simbólico de tornar possibilidade de constituir sentidos,
presente o invisível através da imaginação, atribuindo significado a coisas e atos no
cuja função é, antes de tudo, uma função de universo simbólico da sociedade, que se
eufemização toda arte, da máscara sagrada à realiza na Arte. Por isso, também, ela é
ópera cômica, é antes de tudo empresa eirfemicapor facilmente presa de concepções idealistas e
se insurgir contra o apodrecimento da morte...a espiritualistas, que confundem essa sua
imaginação simbólica é dinamicamente negação especificidade com concepções religiosas
vital, negação do nada da morte e do diversas.
/^”(DURAND, 1988, pg.99). São A maneira como é construído o
processos que retornam constantemente, sagrado revela variações de uma cultura para
mesmo em uma sociedade em que a Arte outra e também se altera ao longo do tempo,
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ífii&i Maria Amclia Bulhões
em uma mesma sociedade. Assim, o sagrado nào retomam os mitos arcaicos em sua
no âmbito do imaginário da Arte nào tem especificidade, nem refazem homologamente
uma permanência em si, ou em seus objetos; rituais das antigas culturas, mas trabalham
o que era profano pode se sacralizar, e o que com seus possíveis usos psíquicos, enquanto
era religioso pode se tornar profano. mecanismos compensatórios. Walter
Observam-se alguns exemplos de processos Benjamim afirmou que a aceitação da
da sacralização, na atualidade, nas verdadeiras condição de finitude do indivíduo tem a
peregrinações que se fazem para visitar melancolia como decorrência; assim, as
museus de arte, bem como na atitude tentativas de ressacralização da arte são
respeitosa frente a quadros como a Mona formas de compensação dessa crença que foi
Lisa, por exemplo. Por outro lado, imagens perdida.
tradicionalmente integrantes de cultos e
rituais, como as máscaras africanas ou as Mitos e ritualizações na arte
madonas medievais, passaram a ter um uso contemporânea
decorativo em residências, sofrendo um
processo de dessacralizacao bastante No âmbito das artes visuais
evidente. A linha divisória entre sagrado e contemporâneas, percebe-se um movimento
profano tornou-se bastante frágil e mutante. pendular constante entre dessacralização e
Entretanto, em suas determinantes, pode ressacralização. Por um lado, há uma
sempre ser encontrado, como destacou compreensão da impossibilidade de um
Mauss, tudo aquilo que qualifica a sociedade, substituto divino, conduzindo uma reação
que lhe dá sentido e representabilidade, contra certa mitificação religiosa da Arte; e,
envolvendo sentimentos fortes de adesão. por outro, há tentativas de preenchimento
“Todos estes fenômenos tornam-se do vazio da sociedade atual por uma
compreensíveis se a arte for realmente a concepção artística que se reaproxime
religião encarnada em outra forma, porque a novamente das práticas religiosas. Algumas
religião é o lugar da disenção da heresia, da estratégias, entretanto, permitem reafirmar o
ortodoxia imposta, das lutas implacáveis e sagrado no imaginário das artes visuais
da intolerância profunda e total....Se existe como uma vivência irreligiosa de sagrado.
um direito fundamental à vida dotada de Duas delas serão aqui abordadas: a utilização
sentido, da qual a arte faça parte, nós não de mitos tradicionais e o estabelecimento de
poderemos evitar a eventualidade de que ritualizações. Essas duas estratégias estão
sensibilidades morais sejam ofendidas. A presentes em inúmeros trabalhos, mesmo
arte não seria este algo sério que ela é para quando a sacralização não é evidente nem
nós sem implicar em perigo e tampouco objetivada. Aparecem de forma
60 desagrado.”(DANTO, 1992, pg230) sutil, diluída, mesclada. Para a sua
A imagem poética retoma muitas identificação se faz necessária uma detalhada
vezes mitos que se encontram no acervo da análise.
memória cultural, oriundos de distintos A utilização de mitos se processa
tempos e diferentes regiões, e instaura com por meio de uma atualização simbólica, pois,
eles os rituais da Arte. Ritos que contam com na maioria dos casos, não há uma
o espaço consagrado dos museus e galerias e incorporação do pensamento mítico nos
com o tempo da exposição, para sua moldes clássicos, mas sim a incorporação de
consagração e reconhecimento social. Eles elementos míticos que podem dizer tanto
das questões do quotidiano, como daquelas percebe uma ascendência negra. Riscos sobre
questões que se ocultam no âmago do o desenho parecem propor na leitura das
espírito dos indivíduos. Mitos antigos e mãos não o futuro, mas as suas origens. A
tradicionais, oriundos de diferentes culturas, artista indaga sobre suas origens usando sua
são, algumas vezes, utilizados mão como documento de sua identidade. A
intencionalmente através de ressignificações. leitura das mãos, tão forte na cultura cigana, é
É o caso, por exemplo, da artista Eliane retomada não para dizer do futuro, mas para
Chiron, que utiliza o mito de Afrodite para contar de um passado muitas vezes
dizer de questões bastante contemporâneas esquecido, qual seja, as origens africanas nas
da feminilidade. Nesse caso, a antiga deusa colônias do novo mundo americano. De
renasce em sua obra, com alguns de seus forma semelhante, a mexicana Tatiana
atributos arcaicos, mas incorpora outros, Parcero reproduz igualmente a palma de sua
relativos às condições atuais das vivências mão, traçando sobre esta o mapa de seu
femininas. Anselm Kiefer, por seu turno, faz corpo. Imagens do exterior, de seu espaço
uso de mitos originais das culturas geográfico, são remetidas para o interior de
germânicas para tratar das reincidências sua mão, e torna-se impossível distinguir o
nacionalistas permanentes na sociedade que é interno ou externo. Para Tatiana “Con
alemã, e do antigo mito de Lilith pra expor estas imágenes intento ver a través de la
os medos e as incertezas da grande memória dei cuerpo aquello que traspasa los
metrópole paulista. Em ambos os casos, os limites de la piei.” Novamente, o mito da
mitos são utilizados como recursos leitura do destino nas mãos reaparece, desta \
conceituais para potencializar as idéias do vez para nos dizer não do futuro nem do
artista sobre a realidade de seu tempo, passado, mas de um mundo interior que se
reatualizando seus significados. quer descobrir.
Mas ocorre também o uso de mitos A mão também se mitifica nas
de uma forma indireta, pela incorporação de ações e produções do homofaber.; pois, de
figuras que, carregadas de simbologias, se certa forma, foi o fazer manual que
prestam muito bem a diferentes tipos de distinguiu o homem das demais espécies, na
elaborações poéticas. Esse é o caso, por aurora de sua humanização. Assim, o artista
exemplo, da mão humana, cuja imagem cubano Juan Elso fala desse fazer em seu
pode ser mitificada em suas significações. trabalho, quando trança com ramos de
As mãos podem ser mitificadas árvores a forma da mão. A mesma mão que
para dizer do futuro, quando, na trança a palha é a que está representada, em
quiromancia, se acredita prever o porvir do uma duplicação do sentido fabril que reforça.
indivíduo pelas linhas de sua palma, que Com critério semelhante, a brasileira Sonia
alguns especialistas decifram. Segundo essas Labouriau também enfatiza a gestualidade
crenças, as mãos possuem uma espécie de das mãos e sua capacidade criadora em
auto-inscrição do corpo, como se o tempo, “PássarosMigratórios?'. Através de quatro
cristalizado no destino, pudesse inscrever-se gestos, ela fabrica, com uma pasta de
nas linhas de sua palma. A norte-americana Urucum, pequenas figuras de pássaros. A
Whitfield Lovel retoma esse antigo mito de obra é constituída pelas fotos de sua
performance, pelas pequenas figuras criadas
ler as mãos de forma figurada, quando
reproduz a palma de sua mão e, sobre esta, com a pasta, e por um recipiente com a água
utilizada na dissolução de uma delas. A
coloca uma imagem feminina, na qual se
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11ITOS E RITOS NA CONTEMPORANEIDADE
2 Em sua obra Vida dos homens ilustres, DANTO, Arthur. Apès lafin de 1'A.rt
ele faz a apologia de personagens como , Paris, Seuil, 1992.
Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo,
estabelecendo bases para a diferenciação da
categoria dos artistas.
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