Você está na página 1de 9

Maria Amélia Bulhões

Doutora cm História Social pela


Universidade de São Paulo - USP.

mm mariaamcliabuIhocs@bol.com.br

0 IMAGINÁRIO DA ARTE: MITOS E RITOS NA


CONTEMPORANEIDADE1

“ O pensamento das religiões instituídas um conceito de Arte válido para todos os


pretende revelar o secreto. O pensamento da arte é tempos e lugares e, mais variáveis ainda, são
outro em relação ao enigma. Ela não é reveladora os objetos e experiências englobadas por esse
mas ativa. E o trabalho da arte que nos tempos e rótulo
espaços cambiantes pensa positivamente o real como Isso porque a Arte é, antes de tudo,
segredo ou como enigma. A arte é um pensamento um segmento específico das representações
irreligioso do sagrado.” simbólicas socialmente definidas como tal,
cujas origens, historicamente datadas,
Marc Le Bot remontam, ao alvorecer do mundo moder­
no, no século XIV, na Itália, quando
O imaginário da arte e sua constituição determinados pintores e escultores, por um
sistema de relações que os ligava aos mecenas
O imaginário social é constituído por e literatos, passaram a desfrutar de uma
um conjunto de idéias e atos que dão posição dentro da sociedade que os diferenci­
sentido à trajetória de uma comunidade. ava dos simples artesãos. Antes disso, não
Essas diversas práticas simbólicas que fazem havia essa segmentação, os pintores,
parte da própria existência do ser humano, escultores e todo dpo de artesão não
detinham nenhuma forma de poder de
universais e atemporais em sua condição de
autoria sobre suas obras, que eram valoriza­
exercício da psique, são, entretanto, determi­
das de maneira semelhante a todas as demais
nadas historicamente em suas manifestações.
espécies de fazeres manuais.
A pintura corporal utilizada pelos índios
Giorgio Vasari (1511-1574) pode ser
Kaoba, a decoração de um quarto, feita por
considerado o primeiro intelectual a defender
um jovem suburbano, ou ainda a produção
um estatuto diferenciado para um grupo de
de murais em metrôs, são alguns exemplos
produtores, estabelecendo as bases do ideal
dessas manifestações. Do imenso universo
de gênio criador.2 Uma institucionalização
de práticas simbólicas, porém, somente uma
mais rígida foi obtida com a criação da
pequena fatia é socialmente considerada
Academia Real de Pintura e Escultura (Paris,
artística. Embora alguns aspectos essenciais
1648), que legalizava a condição do artista,
possam permanecer, não se pode pensar em

Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág 57-65n° 5,2° Semestre 2003


. ..Cultura,/ Maria Amclia Bulhões

artista como Boltanski, que observa um


diferenciando-o definitivamente do artesão,
paralelo completo entre o funcionamento da
que era controlado, então, pelo hierárquico
Arte e a maneira de ver e sentir a religião3,
regime das guildas. Entretanto, foi somente
como por um sociólogo como Pierre
na segunda metade do século XVIII que se
Bourdieu, que afirma existir no mundo
estabeleceram os três grandes discursos
legitimadores da Arte, configurando-se cada artístico uma oposição ao modo de vida
um deles com suas especificidades, mas cotidiana4. Para ambos, se evidencia uma
estreitamente interligados. Alexander separação semelhante à que se pode perceber
Baumgarten (1714-1762) criou a estética, entre o sagrado e o profano.
como ramo específico da filosofia a se dedicar O estabelecimento de um universo
às artes ou àquilo que ele denominava da Arte, à parte da realidade do dia-a-dia,
sublime. Johann Winckelmann (1717-1768), como um campo irreligioso do sagrado,
na esteira dos grandes movimentos de vivido por seus membros e reconhecido pela
revalorização da cultura greco-romana, sociedade como um todo, só é possível pela
inaugurou o conceito de História da Arte, adesão profunda que cada obra é capaz de
apoiando-se nos padrões estéticos desse criar no espectador. Isso porque ela diz da
período para estabelecer seus critérios individualidade do artista, mas diz também
valorativos. Finalmente, Denis Diderot da individualidade daquele que a contempla,
(1713-1784), com seus comentários sobre os ou a experimenta de alguma forma,
salões de belas-artes, deu inicio ao que, hoje, estabelecendo um tipo de vivência
se considera crítica de Arte, no sentido de compartilhada. Para realizar esta tarefa, de
avaliação da produção em desenvolvimento, estabelecer um novo campo de sagrado, a
aquela de seu tempo e de seu mundo. As imagem artística necessita realizar um trajeto
academias e os salões de belas-artes foram não linear, uma forma de desvio e de
instituições responsáveis pela definição de retorno. Diferentemente da imagem
critérios artísticos, bem como pela seleção publicitária, ela não pode evaporar o sentido
daqueles que mereciam integrar a categoria nem esvaziar a reflexão. Ao contrário, ela
dos artistas. A Estética, a História da Arte e a deve conduzir o espectador a ver e ao
Crítica de Arte garantiram legitimação para mesmo tempo tomar consciência de que algo
essa produção, enquadrando nos seus lhe escapa, dar-se conta de que é impossível
discursos tudo o que recebia seu reconheci­ captar-lhe todas as nuances5. Enquanto
mento. Assim, ao final do século XVIII, na categoria, a Arte talvez esteja ocupando na
Europa Ocidental, estava completamente sociedade contemporânea o lugar do divino,
instituído o primeiro modelo de Sistema de frente à secularização que se processou a
Arte, e, com ele, as condições de estabeleci- partir do século XVIII. Hegel já detectara o
mento dos principais conceitos que ainda se surgimento de uma “era estética” que
utilizam hoje. substituiría o que a Arte perdeu ao se afastar
Considera-se como imaginário da das religiões tradicionais.
Arte o conjunto de fatos materiais e mentais Assim, os artistas contemporâneos,
que constitui o espaço psicocultural, assim apesar de inúmeras rupturas propostas em
reconhecido pela cultura do ocidente. relação à sacralidade das instituições, retêm
Observa-se nesse imaginário, atualmente, em suas obras elementos que asseguram a
uma certa homologia com os sistemas
permanência do secreto e do abismai, em
religiosos. Isso é referido tanto por um
uma sociedade em que as religiões perderam

.Cultura,
Vi5 UíU
Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág. 57-65 n» 5,2“ Semestre 2003
O IMAGINÁRIO DA ARTE:
MITOS E RITOS NA CONTEMPORANEIDADE

muitas de suas funções. Há uma certa deixou de estar ao serviço da religião para
ambiguidade nessa vivência, uma vez que a obter relativa autonomia enquanto campo
maioria dos artistas assume a condição específico de conhecimento, pois eles
agnóstica da cultura ocidental correspondem a aspectos da psique humana,
contemporânea, alijando de seus trabalhos que transcendem condições culturais e
referências intencionais de cunho sacralizante. racionalismos.
A maioria deles, inclusive, assume posições Abordar o tema do sagrado no
bastante refratárias em relação a uma tradição imaginário da Arte contemporânea exige,
romântico-idealista que dá ao artista um entretanto, evitar dicotomias e oposições
estatuto de gênio e à obra uma imanência entre o sagrado e o profano, ou mesmo
mágica. Eles propõem atuações que passam considerações filosóficas generalizantes,
pelo questionamento do Sistema das Artes sendo preferível trabalhar com suas
e, principalmente, pela recusa em assumir a constituições sociais. É possível utilizar uma
religiosidade de seus tempos e espaços. concepção que valorize a capacidade da arte de
Entretanto, permanece presente nesse campo construir sentidos, instaurando nesse
uma abertura para o incompleto e o processo um campo de vivências condizente
inesperado, que mantém o mistério em com uma sociedade racional e materialista.
suspenso, não oferecendo respostas, mas Como observa um autor em exaustiva
questionamentos. análise desse tema em diferentes sociedades
A Arte abre-se à falta imanente ao 'as coisas sagradas são coisas sociais. Se os deuses,
ser humano, em sua impossibilidade de cada um na sua hora, saem do templo e se tomam
responder a questões como: De onde vim e profanos, nós vemos, por outro lado, as coisas
para onde vou? O que faço aqui? Através humanas, mas sociais, apátria, apropriedade, o
dela, os indivíduos tentam construir trabalho, apessoa humana, ali entrarem uma atrás
socialmente, em seu imaginário, formas de da outra. Por trás da idéia de separação, depureza
ocupação desse vazio primordial, ou de impureza, está o respeito, o amor, a repulsa e
trabalhando sempre em um espaço dinâmico a crença, sentimentos diferentes e fortes,
de fechamento e abertura. Nesse sentido, ela invocadores, capasçes de se traduzirem emgestos e
faz parte deste processo em que o homem pensamentos '(MAUSS, 1968, p 3). Quando o
moderno elabora sua relação com a perda do autor afirma que é concebido como sagrado
divino. Em um mundo laico como o atual, tudo que por um grupo qualifica a sociedade,
em que o ser humano deseja sempre, de ele está indicando, de certa maneira, o
alguma forma, a negação da morte, ele tenta caminho para a compreensão dessa
realizar esse gesto simbólico de tornar possibilidade de constituir sentidos,
presente o invisível através da imaginação, atribuindo significado a coisas e atos no
cuja função é, antes de tudo, uma função de universo simbólico da sociedade, que se
eufemização toda arte, da máscara sagrada à realiza na Arte. Por isso, também, ela é
ópera cômica, é antes de tudo empresa eirfemicapor facilmente presa de concepções idealistas e
se insurgir contra o apodrecimento da morte...a espiritualistas, que confundem essa sua
imaginação simbólica é dinamicamente negação especificidade com concepções religiosas
vital, negação do nada da morte e do diversas.
/^”(DURAND, 1988, pg.99). São A maneira como é construído o
processos que retornam constantemente, sagrado revela variações de uma cultura para
mesmo em uma sociedade em que a Arte outra e também se altera ao longo do tempo,

„ , .Cultura,
Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág. 57-65 n° 5,2° Semestre 2003
Visutü
ífii&i Maria Amclia Bulhões

em uma mesma sociedade. Assim, o sagrado nào retomam os mitos arcaicos em sua
no âmbito do imaginário da Arte nào tem especificidade, nem refazem homologamente
uma permanência em si, ou em seus objetos; rituais das antigas culturas, mas trabalham
o que era profano pode se sacralizar, e o que com seus possíveis usos psíquicos, enquanto
era religioso pode se tornar profano. mecanismos compensatórios. Walter
Observam-se alguns exemplos de processos Benjamim afirmou que a aceitação da
da sacralização, na atualidade, nas verdadeiras condição de finitude do indivíduo tem a
peregrinações que se fazem para visitar melancolia como decorrência; assim, as
museus de arte, bem como na atitude tentativas de ressacralização da arte são
respeitosa frente a quadros como a Mona formas de compensação dessa crença que foi
Lisa, por exemplo. Por outro lado, imagens perdida.
tradicionalmente integrantes de cultos e
rituais, como as máscaras africanas ou as Mitos e ritualizações na arte
madonas medievais, passaram a ter um uso contemporânea
decorativo em residências, sofrendo um
processo de dessacralizacao bastante No âmbito das artes visuais
evidente. A linha divisória entre sagrado e contemporâneas, percebe-se um movimento
profano tornou-se bastante frágil e mutante. pendular constante entre dessacralização e
Entretanto, em suas determinantes, pode ressacralização. Por um lado, há uma
sempre ser encontrado, como destacou compreensão da impossibilidade de um
Mauss, tudo aquilo que qualifica a sociedade, substituto divino, conduzindo uma reação
que lhe dá sentido e representabilidade, contra certa mitificação religiosa da Arte; e,
envolvendo sentimentos fortes de adesão. por outro, há tentativas de preenchimento
“Todos estes fenômenos tornam-se do vazio da sociedade atual por uma
compreensíveis se a arte for realmente a concepção artística que se reaproxime
religião encarnada em outra forma, porque a novamente das práticas religiosas. Algumas
religião é o lugar da disenção da heresia, da estratégias, entretanto, permitem reafirmar o
ortodoxia imposta, das lutas implacáveis e sagrado no imaginário das artes visuais
da intolerância profunda e total....Se existe como uma vivência irreligiosa de sagrado.
um direito fundamental à vida dotada de Duas delas serão aqui abordadas: a utilização
sentido, da qual a arte faça parte, nós não de mitos tradicionais e o estabelecimento de
poderemos evitar a eventualidade de que ritualizações. Essas duas estratégias estão
sensibilidades morais sejam ofendidas. A presentes em inúmeros trabalhos, mesmo
arte não seria este algo sério que ela é para quando a sacralização não é evidente nem
nós sem implicar em perigo e tampouco objetivada. Aparecem de forma
60 desagrado.”(DANTO, 1992, pg230) sutil, diluída, mesclada. Para a sua
A imagem poética retoma muitas identificação se faz necessária uma detalhada
vezes mitos que se encontram no acervo da análise.
memória cultural, oriundos de distintos A utilização de mitos se processa
tempos e diferentes regiões, e instaura com por meio de uma atualização simbólica, pois,
eles os rituais da Arte. Ritos que contam com na maioria dos casos, não há uma
o espaço consagrado dos museus e galerias e incorporação do pensamento mítico nos
com o tempo da exposição, para sua moldes clássicos, mas sim a incorporação de
consagração e reconhecimento social. Eles elementos míticos que podem dizer tanto

Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág. 57-65 n° 5,2“ Semestre 2003


O IMAGINÁRIO DA ARTE:
MITOS E RITOS NA CONTEMPORANEIDADE

das questões do quotidiano, como daquelas percebe uma ascendência negra. Riscos sobre
questões que se ocultam no âmago do o desenho parecem propor na leitura das
espírito dos indivíduos. Mitos antigos e mãos não o futuro, mas as suas origens. A
tradicionais, oriundos de diferentes culturas, artista indaga sobre suas origens usando sua
são, algumas vezes, utilizados mão como documento de sua identidade. A
intencionalmente através de ressignificações. leitura das mãos, tão forte na cultura cigana, é
É o caso, por exemplo, da artista Eliane retomada não para dizer do futuro, mas para
Chiron, que utiliza o mito de Afrodite para contar de um passado muitas vezes
dizer de questões bastante contemporâneas esquecido, qual seja, as origens africanas nas
da feminilidade. Nesse caso, a antiga deusa colônias do novo mundo americano. De
renasce em sua obra, com alguns de seus forma semelhante, a mexicana Tatiana
atributos arcaicos, mas incorpora outros, Parcero reproduz igualmente a palma de sua
relativos às condições atuais das vivências mão, traçando sobre esta o mapa de seu
femininas. Anselm Kiefer, por seu turno, faz corpo. Imagens do exterior, de seu espaço
uso de mitos originais das culturas geográfico, são remetidas para o interior de
germânicas para tratar das reincidências sua mão, e torna-se impossível distinguir o
nacionalistas permanentes na sociedade que é interno ou externo. Para Tatiana “Con
alemã, e do antigo mito de Lilith pra expor estas imágenes intento ver a través de la
os medos e as incertezas da grande memória dei cuerpo aquello que traspasa los
metrópole paulista. Em ambos os casos, os limites de la piei.” Novamente, o mito da
mitos são utilizados como recursos leitura do destino nas mãos reaparece, desta \
conceituais para potencializar as idéias do vez para nos dizer não do futuro nem do
artista sobre a realidade de seu tempo, passado, mas de um mundo interior que se
reatualizando seus significados. quer descobrir.
Mas ocorre também o uso de mitos A mão também se mitifica nas
de uma forma indireta, pela incorporação de ações e produções do homofaber.; pois, de
figuras que, carregadas de simbologias, se certa forma, foi o fazer manual que
prestam muito bem a diferentes tipos de distinguiu o homem das demais espécies, na
elaborações poéticas. Esse é o caso, por aurora de sua humanização. Assim, o artista
exemplo, da mão humana, cuja imagem cubano Juan Elso fala desse fazer em seu
pode ser mitificada em suas significações. trabalho, quando trança com ramos de
As mãos podem ser mitificadas árvores a forma da mão. A mesma mão que
para dizer do futuro, quando, na trança a palha é a que está representada, em
quiromancia, se acredita prever o porvir do uma duplicação do sentido fabril que reforça.
indivíduo pelas linhas de sua palma, que Com critério semelhante, a brasileira Sonia
alguns especialistas decifram. Segundo essas Labouriau também enfatiza a gestualidade
crenças, as mãos possuem uma espécie de das mãos e sua capacidade criadora em
auto-inscrição do corpo, como se o tempo, “PássarosMigratórios?'. Através de quatro
cristalizado no destino, pudesse inscrever-se gestos, ela fabrica, com uma pasta de
nas linhas de sua palma. A norte-americana Urucum, pequenas figuras de pássaros. A
Whitfield Lovel retoma esse antigo mito de obra é constituída pelas fotos de sua
performance, pelas pequenas figuras criadas
ler as mãos de forma figurada, quando
reproduz a palma de sua mão e, sobre esta, com a pasta, e por um recipiente com a água
utilizada na dissolução de uma delas. A
coloca uma imagem feminina, na qual se

Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág. 57-65 n° 5,2o Semestre 2003


„ ^Cultura./ Maria Amclia Bulhões
VlSVUAl
capacidade humana de criação é abordada em fórmulas vazias, que se repetem sem
uma construção artística ritualística em que o estabelecerem uma sacralidade. Segundo ele,
gesto e o pássaro se confundem. Laboriau, sào ritos sem mitos (PERNIOLA, 2000).
assim como Elso, reitera, de forma poética, o Sua generalização dessa abordagem ignora
mito da mão como fonte de criação6. que, na Arte, se processa um fenômeno
O que se evidencia claramente é que diverso, em que o ritual realiza uma figuração
as reelaborações artísticas que o homem do mito. Não ocorre, nesse caso, uma
moderno faz de sua relação com os mistérios gestualidade vazia de significações,
e enigmas, pode se efetivar por um meramente repetitiva de gestos ou formas de
deslocamento de significados, seja através da comportamento. Pelo contrário, ao dar um
retomada de mitos arcaicos, como fazem sentido ao mito da Arte, estabelece a sua
Chiron e Kiefer, seja pela reinterpretação de sacralidade.
mitos diluídos na passagem dos tempos, Encontram-se exemplos de
como realizam Lovel, Parcero, Elso e instauração do ritual na arte contemporânea
Laboriau. no uso reiterativo de formas ou objetos,
A ritualização enquanto estratégia de retomados de maneira a estabelecerem, pela
sacralização está inserida nas bases do repetição uma espécie de procissão visual na
Sistema das Artes, uma vez que ela ocorre qual o espectador é inserido, como faz
sempre em um lugar e tempo específico. A Roman Opalka com seus números
Arte é sempre pensada dentro de um espaço seqüenciados à exaustão. Não se realiza ali
específico, que pode ser a galeria, o museu ou somente uma repetição mecânica do gesto,
qualquer outro determinado para receber o mas um acompanhamento ritualistico da
objeto ou evento, que é feito como Arte, passagem do tempo, uma vez que o
difundido como Arte e recebido como tal. pigmento branco, agregado paulatinamente à
Assim, por exemplo, quando se realiza uma tinta, vai impondo o desaparecimento dos
exposição em um bar, este se transforma, é números, e a foto do artista feita no
ungido pela determinante artística do “lugar momento de conclusão de cada pintura, vai
da Arte”, e se sacraliza por essa determinação. documentando seu envelhecimento.
Mesmo quando os artistas buscam Também na realização de instalações, artistas
desacralizações, fugindo dos espaços como Irineu Garcia e Rimer Cardilho
tradicionais, os novos locais escolhidos são atualizam comportamentos rituais em que o
transmutados pelas tradições desse sistema uso repetitivo de elementos visuais como
de idéias. Também seu tempo é específico, o cascas de tatu, madeira e terra, tem funções
tempo do evento, da exposição, da festa, que vão bem além de uma estruturação
transforma o presente cotidiano, vulgar, em plástica da forma ou de efeitos visuais. Tanto
um ‘tempo da arte’, dedicado ao deleite as sete cruzes dispostas numa continuidade
estético. A instauração da obra, tendo como pelo primeiro, como as cascas de tatu,
base um pensamento ritual específico, amontoadas pelo segundo, marcam a
estabelece a sua relevância. Por isso, esse tipo presença da morte.
de pensamento é fundamental no Cardilho, em sua instalação Monte
imaginário da Arte. Criohy refaz a presença das antigas culturas
Mario Pemiola afirma que, nas indígenas que habitaram o Uruguai e que
sociedades contemporâneas, proliferam os foram dizimadas pelos colonizadores. Do
rituais; entretanto, esses se configuram como conjunto emana uma certa nostalgia e muita

- .Cultura,
VtSUíU
Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág. 57-65 n° 5,2o Semestre 2003
° IMAGINÁRIO DA ARTE:
11ITOS E RITOS NA CONTEMPORANEIDADE

dor, além de um sentimento de religiosidade pode ser capaz de atuar no estabelecimento


arcaica. Seu objetivo pode ser de caráter de rituais, agindo assim intensamente nos
meramente antropológico, mas o resultado
processos de instauração de uma sacralidade
foge ao seu controle: seu conjunto de que foge ao tradicional domínio das
elementos visuais ressignifica velhos relatos religiões. No caso dos dois artistas
míticos. De forma semelhante, Garcia, em comentados, Cardilho e Garcia, há em suas
sua instalação Missões, utiliza signos obras a figuração de mitos de orige m, no
fundadores do imaginário locai, como as caso as origens indígenas destruídas no
cruzes e a terra vermelha da região. Neles se processo de colonização dessa região. Nos
misturam referentes indígenas e católicos, rituais da instauração da Arte, eles
capazes de trazer à presença do espectador o evidenciam as marcas da ausência, por
holocausto daquelas populações, sem a eles exemplo, com as cascas de tatu, animal
retornar em termos reais. São símbolos que ameaçado de extinção; ou com a cruz, signo
funcionam muito mais a partir de uma de morte, mas também de ressurreição.
memória coletiva e difusa do que de um Eles, por outro lado, atualizam a presença
conhecimento histórico dos acontecimentos. ausente, seja no corpo traçado no chão, por
Opalka, Cardilho e Garcia utilizam Cardilho, seja no vídeo dos indígenas atuais,
elementos plásticos em figurações em suas difíceis condições de sobrevivência,
ritualísticas de relatos míticos, que fogem ao documentadas por Garcia. Vida e morte se
vazio dos rituais mecanicistas de outros cruzam nesses rituais, em que a Arte figura a
setores da vida social contemporânea. A destruição para afirmar a vida na criação
memória do tempo retorna nas artes poética.
plásticas ressignificada, figurando novos ritos A recorrente utilização de mitos e a
-os ritos da arte. O sagrado se reinstaura pelo configuração de ritos nas produções
uso dessas estratégias de ritualizações. Como artísticas contemporâneas podem ser
bem observou Julia Kristeva, “ao nível de consideradas como estratégias na realização
experiências problemáticas, como as de desejos, semelhantes àquelas que
instalações, é possível dar-se conta de que o estiveram implícitas nos inúmeros
artista arranja o conjunto dos objetos ao procedimentos mágicos das culturas
limite do suportável, trabalhando no sentido arcaicas7. Todavia, deve-se reconhecer que,
de atribuir uma significação ao não para tal, se faz necessária a existência de um
significável....a arte pode comunicar pelo tipo de consenso social que reconheça a
ritual, como por exemplo a dança, as cenas condição cerimonial da Arte, ultrapassando
religiosas, a literatura, estes estados suas funções de distinção social. A
insustentáveis da sensibilidade, da depressão possibilidade de partilhar socialmente os
e da psicose. Em algumas instalações, desejos de superação do vazio e da morte é
podem-se perceber ensaios de reinventar que permite aos artistas e espectadores
possibilidades de dar a conhecer aos outros construírem a magia da arte e a reconhecem
estes estados-limites, algo que anteriormente socialmente. Dentro de seus limites
simbólicos, ela apresenta uma possibilidade
era da ordem do insignificável e que, por
de ultrapassar o fim, ainda que seja o de um
uma nova sensibilidade, se torna
transmissível.” (KRISTEVA, 1996) tempo cronológico, pela permanência da
obra depois da morte física de seu criador.
Assim, a ‘instalação’ enquanto uma
nova categoria de produção das artes visuais, Para explicar o fato de que o fazer artístico é

Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág. 57-65 n° 5,2° Semestre 2003


.Cultura. Maria Amclia Bulhões
viSMÍA/l
3 Esta declaração, com ampla explanação da
considerado uma espécie de ato demiúrgico,
idéia, encontra-se no livro sobre o artista, de
portanto, não basta somente recorrer à
Lynn Gumpert, Christian Boltanski,
configuração do sistema das artes de forma
homóloga aos sistemas religiosos. É preciso publicado em Paris, em 1992, pela
levar em conta as especificidades da Flammarion
imaginação simbólica, na origem do trabalho
4 A idéia é desenvolvida pelo autor em
artístico.
O conjunto de instâncias inúmeras de suas obras, abordando o
responsável pelo que se faz como Arte, se vê campo artístico e a instauração de uma
e se divulga como tal constitui um âmbito ideologia da criação.
muito relevante do imaginário social
contemporâneo, uma vez que reserva, no 5 Sobre essa abordagem da imagem Georges
pensamento laico e racionalista desta Didi Huberman escreveu o livro, O que nós
sociedade, um espaço para a inquietude, a vemos o que nos olha, publicado em São
dúvida e a incerteza. A capacidade desse Paulo, em ....,pela....
domínio simbólico de trabalhar com um
conjunto de signos não redutível a um 6 Sobre este tema dos mitos pode ser lido o
significado específico, claro e esgotável, mas texto da autora Memórias da mão,
ao contrário, aberto ao enigma e ao mistério, publicado nos Cadernos da Pós-graduação,
constitui um aspecto fundamental. Aspecto da UNICANP, número 3 de 1999.
que ‘qualifica’ esse domínio da sociedade, DURAND, Gilbert.
colocando-o como espaço de tentativas, ao
mesmo tempo prazerosas e dolorosas, de 7Sigismund Freud, em sua obra Totem e
responder às dúvidas e aos desejos mais
Taboo, aponta a relação entre a arte a e a
profundos do ser humano, lidando com o
magia na realização dos desejos.
desconhecido de uma maneira poética. Sem
tentar desvendar os mistérios, ao explicitá-
los, mas manter o enigma em
suspenso,fermentando novas buscas” Referências Bibliográficas

NOTAS BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas


simbólicas.S.P.Perspectiva,! 982.
1 O presente texto originou-se do curso que
ministrei no Mestrado em Artes Visuais da BARTHES, Roland. Mitologias. São
EBA/UFBA, em Salvador, Bahia, integrado paulo,Difel, 1993
à disciplina Seminário sobre temas
selecionados: “Aspecto do Sagrado na BULHÕES, Maria Amélia. Memórias da mão
Visualidade Artística Contemporânea” no in Cadernos da Pós-graduação, Campinas,
segundo semestre de 2000. Instituto de Artes, Ano 3, V.3 N°2,1999

2 Em sua obra Vida dos homens ilustres, DANTO, Arthur. Apès lafin de 1'A.rt
ele faz a apologia de personagens como , Paris, Seuil, 1992.
Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo,
estabelecendo bases para a diferenciação da
categoria dos artistas.

- .Cultura,
VtSUíU
Salvador, EBA/UFBa, v. 1 pág. 57-65 n° 5
, 2° Semestre 2003
O IMAGINÁRIO DA ARTE:
MITOS E RITOS NA CONTEMPORANEIDADE

DURAND, Gilbert. imaginação simbólica.


Cultrix, São Paulo, 1988.

FREUD, Sigismund. Totem e Tabu


.Imago, Rio de Janeiro, 1974
HABER, Ali ci a .Mitologias de ausência em el
arte uruguayo de hoyilas instalaáoners de Rimer
Cardiloj Nelbia Romero. in Artes Plásticas
na América Latina Contemporânea.
BULHÔES-KERN, POA, EDURGS, 1992

IRINEU GARCIA, [textos de Icleia Cattani


e Luiz Felipe Noé] Museu de Arte do Rio
Grande do Sul, P. Alegre, 1999 (catálogo)
MAUSS, Marcei. Oeuvres-1 Lesfonctions
sociales du sacré. Paris,Minuit, 1968

PERNIOLA, Mario. Pensando o ritual


, São Paulo, Nobel, 2000

Salvador, EBA/UFBa, v. 1 Pá& 57-65 n° 5,2“ Semestre 2003

Você também pode gostar