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Super Romance 03
"Sonata for my love"
IRMA WALKER
Flores e jóias, foi tudo que ela recebeu por uma noite de amor!
Raine não conseguia desviar o olhar do homem que a socorrera na estrada e a
levara para aquele chalé aconchegante. Era o concertista Jonah Duncan, seu ídolo, o
mesmo que ela vira tocar piano com maestria, sentada no anonimato da platéia.
Vendo-o de perto, mal podia crer em sua sorte. Não resistiu quando ele a apertou
nos braços, não tentou impedi-lo de fazer amor. Jonah Duncan, ela não duvidava, era o
homem de sua vida.
Mas, três dias depois, um enorme buquê de rosas, um bracelete de safiras e um
bilhete, a fizera acordar de seu sonho: Jonah a dispensava, afastando-a para sempre!
Doação: Valeria
Digitalização:
Joyce
Revisão e
Formatação:
Cyntya
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Capítulo Um
Naquela manhã de junho, mês em que os dias normalmente eram nublados em San
Francisco, Raine seguia apressada pela calçada em direção ao escritório do advogado,
dizendo a si mesma que não podia haver maior ironia do que a cidade estar ensolarada
justamente quando ela se sentia tão triste.
Os transeuntes, em vez de cabisbaixos ou circunspectos, passeavam alegres pela
avenida, muitos deles ostentando sorrisos que indicavam satisfação por aquela rara
manhã de sol.
Foi com alívio que Raine entrou num prédio comercial antigo, cujo interior era
escuro e úmido.
"É assim que me sinto", pensou, desconsolada, enquanto a imagem do pai lhe
surgia à mente. Tímido, o velho demonstrava tão pouco suas emoções que não chegara
a possuir muitos amigos, embora tivesse sido o homem mais meigo e terno que ela
jamais conhecera.
"Oh, papai, sinto tanto sua falta".
Raine pegou o elevador e parou no terceiro andar, mas, antes de entrar pela
porta onde havia a placa com o nome do advogado, deteve-se para respirar fundo e se
recompor. O Sr. Partridge estivera no enterro, há duas semanas, e revê-lo lhe traria
dolorosas recordações. No entanto, de nada adiantava adiar o inevitável. Se havia algo
que aprendera em seus vinte e três anos de vida, era a enfrentar as más notícias de
cabeça erguida. Além disso, quanto mais cedo soubesse sobre as finanças do pai, tanto
melhor. Agora que o advogado liquidara as dívidas do velho Hunicutt, precisava ter o
valor exato da quantia que sobrara, uma vez que era desse dinheiro que seu futuro e o
do irmão iriam depender.
Assim que ela abriu a porta, a senhora de meia-idade que estava à mesa de
recepção foi logo se desculpando:
— Oh, srta. Hunicutt, vai precisar aguardar um pouquinho. O Sr. Partridge está
com um amigo, e o Sr. Johnson tem hora marcada antes da senhorita — disse,
indicando um homem bem vestido que estava sentado em uma das poltronas de couro
da sala de espera. Em seguida, com um sorriso nos lábios, completou: — Quero
parabenizá-la pela formatura. E também por ter ganhado o concurso de piano. Oh, seu
pai estava tão orgulhoso! Ele tinha certeza de que você venceria a competição do ano
que vem na Rússia... Como é mesmo o nome?
— Concurso Tchaikowsky, sra. Clark. — Raine engoliu o nó da garganta e mudou de
assunto: — Resolvi vir a pé do apartamento de meu irmão e mesmo assim ainda cheguei
cedo demais. Martin não podia me trazer porque está dando plantão no hospital.
Para seu alívio, a recepcionista não voltou a mencionar o nome de seu pai, de modo
que, após conversarem por alguns instantes, Raine pôde sentar-se. Pegou ao acaso uma
revista na mesinha de centro, embora não conseguisse ler, pois sua mente estava cheia
de preocupações.
Dentro de poucos minutos descobriria a verdade, e, se esta fosse tão ruim como
suspeitava, muitos sonhos cairiam por terra. Passou a mão pela testa, nervosa, dizendo
a si mesma que não seria o fim do mundo se não pudesse competir na Rússia no ano
seguinte. Afinal de contas, a viagem não estava acertada nem antes da morte do pai,
pois os gastos eram demasiados. Precisaria dedicar em média de dez a doze horas
diárias de estudo, contratar um professor especial para orientá-la nos exercícios e, o
mais caro, providenciar as passagens aéreas e a estada.
O mais realista seria desistir de uma vez daquele sonho e tentar conseguir um
emprego, talvez numa livraria. Quem sabe não economizaria o suficiente para algum
dia poder ir para a Rússia ou para qualquer outro país onde se realizasse alguma
competição importante, tão imprescindível na carreira de um pianista?
Já para Martin, aquele último ano de medicina era vital. Ele necessitava de
dinheiro para sustentar a família até terminar a residência. Glória não podia voltar a
trabalhar, pois a pequena Débora precisava de cuidados especiais. Desde que
descobriram que a filhinha era asmática, ela largara o emprego de enfermeira e, com a
ajuda do sogro, os três tinham se mantido razoavelmente bem.
Raine jamais se preocupara com dinheiro, recebendo com naturalidade o cheque
que o pai lhe enviava mensalmente. Não que fosse uma grande quantia, mas era o
suficiente para não precisar trabalhar e poder dedicar-se ao piano, preparando-se
com afinco para a carreira de concertista que pretendia seguir.
Durante as férias costumava ajudar o pai na loja de livros usados que ele possuía
na rua Powell, onde trabalhava com enorme prazer. Adorava aquelas brochuras antigas,
e sempre encontrava alguma preciosidade no meio do último lote arrematado pelo Sr.
Hunicutt. Nunca lhe ocorrera que aquele não fosse um bom negócio, até que, depois do
enterro do pai, ao verificar os livros de contabilidade, notara que a margem de lucros
era muito pequena. O velho livreiro devia ter feito enorme sacrifício para lhe enviar
aquela quantia todos os meses, nos vários anos em que a filha freqüentara a Juilliard
School.
"Descobri um pouco tarde para agradecer", pensou, sentindo-se arrependida.
O Sr. Partridge oferecera-se para cuidar da renda da livraria e dos móveis do
pequeno apartamento onde o velho Hunicutt morava. Após o pagamento de todas as
dívidas, quanto teria sobrado? O suficiente para sua viagem à Rússia e para sustentar
a família de Martin até ele se formar, ou...
Sentindo-se observada, Raine ergueu a vista para o cavalheiro que a sra. Clark
chamara de Sr. Johnson. O homem a olhava com intensidade. Ruborizada, voltou a
concentrar-se na revista, sabendo que ele continuava a examiná-la da cabeça aos pés.
Devido aos cabelos longos, muito loiros, e a seu corpo perfeito, era alvo constante dos
olhares masculinos. Procurando não chamar a atenção, costumava usar pouca
maquilagem e sempre prendia os cabelos num coque baixo, mas mesmo assim os
estranhos a mediam na rua com olhos devoradores.
Uma vez chegara a tingir os cabelos de castanho, pois sua beleza a prejudicava
nas aulas de música. Eram poucos os professores que a levavam realmente a sério, e só
a custo de muito esforço conseguira provar ser uma grande pianista em potencial.
Depois, resolvera deixar os cabelos da cor natural: era mais prático habituar-se aos
olhares insolentes do que enfrentar um cabeleireiro todos os meses.
Com grande alívio ouviu a porta do Sr. Partridge se abrir, e uma voz dizer:
— Venha jantar comigo em Mendocino algum dia, Arnold.
Raine sentiu o sangue lhe fugir das faces. Conhecia muito bem aquela voz! Vinha
diretamente do passado, de uma época que procurara esquecer durante os três
últimos anos.
O dono da voz apareceu, os ombros largos bloqueando a porta, e ela desejou
levantar-se e sair correndo. Mas era tarde demais. Afundada na poltrona, o coração
batendo acelerado, fixou os olhos no homem alto, de quase dois metros, cujo corpo
forte e musculoso não possuía um só grama supérfluo de peso. Seus cabelos negros
caíam em desalinho pela testa alta. Os olhos eram de um cinza tão profundo que,
quando o conhecera, pensara que fossem pretos. Moreno, esguio, tinha o rosto com os
maxilares proeminentes, boca grande e sensual. Naquele momento seus lábios estavam
curvados num sorriso que lhe amenizava as feições normalmente duras... Raine sentiu
um frio terrível no estômago.
Se tinha tanta certeza de haver superado a obsessão por Jonah Duncan, porque o
coração batia tão doloroso em seu peito? Por que não conseguia respirar direito e a
visão se turvava?
À medida que ele se movia para a sala de recepção, ela notou que havia marcas em
seu rosto; Jonah parecia bem mais velho, com uma leve sombra de tristeza nos olhos.
Talvez alguma mulher tivesse conseguido atingi-lo no coração... coisa que ela nem de
longe fizera três anos antes.
Por um segundo, que lhe pareceu uma eternidade, seus olhares se encontraram.
Mas a expressão dele não se modificou, deixando-a machucada como se tivesse
recebido uma bofetada. Fora tão insignificante para ele que nem era reconhecida!
Quando Jonah saiu, um aroma refrescante de loção pós-barba pairou no ar como
evidência de que ela não tinha sonhado. Só então se deu conta de que se agarrava
fortemente aos braços da poltrona e tentou relaxar, mas as lembranças que a
assaltaram foram mais fortes. Deixou-se ficar ali, fechando os olhos, enquanto o
passado, como um filme, ia se desenrolando a sua frente, confundindo o presente.
Capítulo Dois
Raine tinha vinte anos e cursava o segundo ano da Juilliard quando conheceu
Jonah Duncan. Mas, como todo amante da boa música, desde muito antes ela estava
familiarizada com o nome e o rosto daquele jovem concertista e compositor que era a
mais surpreendente revelação dos últimos anos. Intérprete maravilhoso, ele encantava
não só os críticos como também o público em geral. Carismático, envolvente, era capaz
de cativar a mais arredia platéia, e fora através dele que o piano erudito se
popularizara, a ponto de estádios e grandes auditórios se fazerem necessários para
seus concertos.
Como tantos outros estudantes de conservatório, Raine procurava não perder as
apresentações de Jonah. Na maioria das vezes sentava-se nos piores lugares dos
auditórios, pois não podia gastar muito com ingressos. Porém, quando ouvia as
interpretações sensíveis, as nuances delicadas, a vitalidade com que ele executava as
peças, sentia-se recompensada pelo sacrifício.
Sempre que possível, comprava fitas, escutava-as diversas vezes, fascinada pelo
talento único daquele pianista, cuja vida particular, cheia de mistérios, provocava
comentários picantes de muitas de suas colegas. Essas fofocas não diminuíam em nada
sua admiração por ele: não era o homem que a interessava, mas apenas o artista.
Assim, quando Raine soube que Jonah Duncan faria um concerto beneficente na
Universidade de Catskills, resolveu comparecer de qualquer maneira. Como não possuía
carro, aceitou a contragosto a carona de Jimmy Whitfield, um "filhinho de papai"
multimilionário, que tinha péssima reputação entre as estudantes da Juilliard, onde
entrara devido apenas à bela voz de barítono, pois era uma nulidade em teoria.
Raine já recusara diversos convites dele, consciente de que o interesse do rapaz
era puramente sexual. No entanto, estava tão ansiosa para assistir ao concerto que se
convenceu de que, sendo a primeira vez que os dois estariam saindo juntos, Jimmy não
ousaria muito. E, mesmo se insistisse, ela saberia como contornar a situação.
Puro engano! Depois da apresentação, durante a qual seu acompanhante esvaziara
uma garrafinha de uísque que levava no bolso interno do paletó, ele simplesmente
desviou o carro para uma estrada deserta, indiferente aos seus protestos. Estacionou
no acostamento e, certo de que ela não ofereceria resistência, tentou abraçá-la.
Depois de muita briga, Raine conseguiu abrir a porta do veículo e fugir para o mato,
escondendo-se num bosque de pinheiros até que o playboy desistiu de procurá-la e foi
embora.
Dessa maneira ela se viu andando por uma escura e sombria estrada secundária
numa noite fria de novembro, em algum lugar entre a Universidade de Catskills e a
cidade de Nova York. Caminhando às pressas pelo acostamento, decidiu que se
esconderia no mato cada vez que um carro se aproximasse. Era perigoso para uma
mulher circular em uma estrada deserta àquela hora da noite... Bem, não podia sentar
no asfalto e chorar. Precisava avançar o mais rápido possível até a próxima cidade e
comprar uma passagem de ônibus para Nova York... se é que tinha dinheiro suficiente
na bolsa. Mas deixaria para se preocupar com esses detalhes mais tarde.
Perdida em pensamentos, assustou-se quando um carro passou por ela em alta
velocidade, com os faróis altos. Deu um pulo tão grande para o lado que acabou por
cair em uma poça de água de chuva, molhando-se toda.
Soltou uma exclamação abafada. A água estava gelada! Quando tentou se
levantar, a perna bambeou, com uma pontada violenta de dor. Tinha torcido o
tornozelo, e não podia nem ficar de pé! E se tivesse quebrado algum osso? Resmungou
alto alguns palavrões que fariam seu pai lhe lavar a boca com água e sabão.
— Isso é modo de uma mocinha falar? — censurou uma voz grave, profunda, vinda
do alto da estrada.
Raine sentiu o sangue gelar. Forçou a vista para divisar o vulto negro de um
homem recortado contra a lua, e o coração lhe subiu à garganta. Deus do céu, teria
trocado um problema pequeno por um muito maior?
— Não tenha medo — tranqüilizou-a ele.
Uma lanterna foi acesa ao mesmo tempo e ela de imediato reconheceu o homem.
Há apenas algumas horas sonhara ao som que ele produzia com o teclado, deixara-se
levar pelo que aquelas mãos de artista tocavam, perdida, ao sabor da melodia, de corpo
e alma...
— Meu nome é Jonah Duncan... Desculpe-me por tê-la assustado dessa maneira.
Está machucada?
— Acho que... meu tornozelo...
— Bem, deixe-me dar uma olhada. Se precisar de um médico, posso levá-la.
Droga, não costumo correr tanto, é que estava com pressa...
Instantes depois a lanterna iluminou o rosto dela, deteve-se ali por algum tempo,
depois lhe percorreu o corpo encharcado. Resmungando baixinho, o pianista se
aproximou, tirando o casaco de lã grossa e agasalhando-a, antes de erguê-la nos
braços.
Raine foi invadida por sentimentos ambíguos: estava embaraçada por causar
tantos problemas, mas, ao mesmo tempo, reconfortava-se com o calor que o corpo dele
emanava, abrigando-a do frio. Sem saber por quê, sentia-se absurdamente feliz.
Estacionado no acostamento, com as portas abertas e a luz interna acesa, o
Mercedes dava uma sensação de aconchego em meio à escuridão da noite. Gentilmente
Jonah depositou-a no banco de trás e depois se curvou para tirar-lhe a bota
enlameada e examinar o tornozelo machucado.
Percorrendo-lhe o arco do pé, ele perguntou:
— Pode mexer os dedos?
— Mais ou menos.
— Não parece estar quebrado. Mesmo assim é melhor você não tentar andar até
um médico examiná-la.
— Não creio que seja necessário. Acho que foi mais um susto.
— Por falar nisso, o que estava fazendo sozinha na estrada a essa hora? Mora
aqui perto?
— Não, moro em Nova York. Estudo na Juilliard, e... assisti a seu recital esta
noite, mas infelizmente vim com a pessoa errada. Ele... bem, resolveu pegar esta
estradinha para se divertir um pouco, só que eu consegui fugir. Quando vi seu carro,
temi que Jimmy tivesse voltado, então...
— Então pulou dentro da vala. Compreendo. Escute, estamos longe da cidade e
você está encharcada até os ossos. Pedi emprestado o chalé de um amigo para o fim de
semana. Fica aqui pertinho. Acho melhor irmos lá para que você seque suas roupas, e
depois eu a levo para casa. Em que parte de Nova York você mora?
— Ao lado do Lincoln Center. Divido um apartamento com três colegas —
respondeu, animada com a perspectiva de passar algumas horas com Jonah Duncan.
"Só quero ver a cara delas depois, quando eu contar", pensou, excitada. "Jamais
acreditarão. Vou levar um autógrafo de prova".
O pianista deu a volta no carro para se sentar ao volante. À luz dos faróis, Raine
notou que sua camisa branca estava imunda de lama.
— Suas roupas estão arruinadas, sinto muito...
— Que bobagem! Roupas podem ser substituídas com facilidade. Ossos quebrados
são mais complicados.
Ao vê-lo sorrir, Raine se deu conta de que ele era um homem bonito e atraente.
Retribuiu o sorriso, sem compreender por que o concertista continuava a fitá-la.
Sentia-se horrível, com a testa, os cabelos e as roupas sujos de barro.
— Você é uma moça muito bonita...
Mal acabou de ouvir os elogios, ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas.
Estivera apavorada por andar à noite naquele lugar deserto, sofrera muita tensão, e
agora, vendo-se a salvo no interior confortável do carro, sentiu-se renascer. Teve
vontade de apoiar a cabeça no ombro largo e chorar, mas agiu de maneira diversa: deu
outro sorriso e desviou os olhos para a janela.
Jonah deu a partida e dali a pouco os dois conversavam com animação. Raine
sentia-se totalmente à vontade, pois ele lhe fazia perguntas sobre sua vida e
demonstrava interesse sincero enquanto a escutava.
—... então, depois que mamãe se formou pelo Conservatório Musical de Cincinnati,
teve uma estranha doença nas mãos. Foi o começo de uma artrite que só piorou com o
correr dos anos. Naquela época os médicos a aconselharam a tirar férias e, em San
Francisco, enquanto visitava alguns parentes, ela conheceu meu pai.
— Foi ela quem a encorajou a seguir a carreira de pianista?
— Exatamente. Desde muito cedo me ensinava a executar escalas, a ler notas.
Logo eu estava tocando pequenas peças. Mais tarde, ela contratou a melhor
professora da região para me dar aulas. Até a sua morte, quando eu tinha doze anos,
nunca perdeu a esperança de que a filha se tornaria uma grande concertista.
Raine fez uma pequena pausa, refletindo sobre o sacrifício que os pais tinham
feito por ela: os melhores professores de San Francisco, um piano meia cauda, uma
sala só para estudos...
Jonah concordou com um gesto de cabeça.
— A semente precisa ser lançada cedo, para poder criar raízes. E você tem que
contar com todas as vantagens, se espera fazer carreira como concertista, pois a
competição é muito acirrada. Está participou de alguma?
— Sim. Por isso consegui bolsa de estudos na Tuilliard...
Encabulada, resolveu calar-se. Esquecera que estava conversando com o mais
prestigiado pianista da atualidade; perto dele, não passava de uma aspirante...
— Não seja modesta — comentou Jonah, adivinhando seus pensamentos. — Se
ganhou uma bolsa para a Juilliard, deve ser muito talentosa. Mas a carreira de pianista
exige, além de talento, força de vontade e determinação. Enquanto você progride a
duras penas, os outros se deitam nos louros... Está disposta a seguir esse longo
caminho?
— Acho que...
— Acha! É melhor ter certeza antes de se comprometer com a música. Caso não
se entregue de corpo e alma, colocando tudo o mais em segundo plano, desista de uma
vez. Se tirar os olhos de seu objetivo por um instante sequer, alguém aparece e lhe
toma o lugar bem debaixo do seu nariz. Por isso, esteja segura do que realmente
deseja antes de sacrificar sua vida pessoal.
Raine ficou pensativa, estudando-lhe o perfil sutilmente iluminado. Sentira
amargura em sua voz, muita amargura. Por quê? Até aquele momento enxergara a
carreira de pianista sob idêntico ponto de vista, acreditando jamais ter se desviado
um milímetro da meta a que se propusera. No entanto, possuiria a determinação
necessária para chegar a fazer parte do seleto círculo de pessoas que viviam de fazer
concertos pelo mundo? Mal começara a competir... Talvez algum dia se arrependesse
por ter dedicado a vida a um objetivo fora de seu alcance.
Por sorte seu interlocutor mudou de assunto, perguntando sobre alguns
professores do conservatório. Ficaram conversando acerca das personalidades de
cada um, riram bastante contando casos pitorescos até que pouco depois paravam em
frente a um chalé rústico, construído com troncos de árvores.
— Aqui estamos. A casa é pequena, mas, além de aconchegante, fica isolada do
burburinho da multidão.
— Eu sinto muito por atrapalhar sua privacidade.
Ele jogou a cabeça para trás, rindo com tanta naturalidade que ela também
começou a rir.
— Ora, ora, você é um tipo de companhia que não me incomoda nem um pouco. As
fãs que ficam esvoaçando à minha volta como mariposas em torno de luz é que me
atormentam. Claro, isso faz parte do jogo, mas fico contente por você não ser uma
delas.
Lembrando-se da pilha de fitas que tinha no quarto, ela corou, embaraçada. Além
disso, costumava dormir escutando um concerto dele, e possuía um cartaz de um
programa pendurado na parede, ao lado da penteadeira! Bem, podia ser fã, mas não da
maneira a que Jonah se referira. Afinal, nunca o procurara para pedir autógrafos, ou
mesmo para conversar.
Foi surpreendida em seus devaneios quando, depois de ter aberto a porta, Jonah
deslizou o braço para debaixo dos seus joelhos, erguendo-a sem dificuldade. Ia
protestar, dizendo que conseguiria andar, mas as palavras lhe morreram nos lábios, ao
se sentir tão aninhada contra aquele peito forte. Ao aroma mentolado da loção pós-
barba, mesclava-se um outro: o cheiro inconfundível de homem, selvagem, adocicado...
Quando entraram na sala, olhou em volta com interesse. Depois da espartana
decoração do apartamento do pai, e da confusa mistura de estilos do lugar que dividia
com as amigas, aquilo lhe parecia um cenário de cinema. Um conjunto de poltronas e
sofá forrados de xadrez combinava com a textura rústica da parede. Um tapete
felpudo e macio cobria o chão de tábuas largas, da lareira de pedras até uma mesa
com cadeiras de cerejeira. Um aparador da mesma madeira completava a decoração.
Por uma porta aberta divisou uma cozinha moderna e bastante espaçosa. Quem
quer que fosse o proprietário do chalé, era uma pessoa de bom gosto, que não
dispensava comodidades.
Jonah depositou-a no sofá, e, quando ela tirou o casaco para limpar o barro do
forro, deteve-a com um gesto.
— Espere até eu acender o fogo. Depois lhe trago alguma coisa para usar
enquanto suas roupas lavam e secam. Vamos, cubra-se novamente.
A lenha crepitava convidativa na lareira quando Jonah lhe trouxe um robe azul-
marinho. Enquanto ela trocava de roupa, ouviu-o assobiar sob o chuveiro uma fuga de
Bach, e riu consigo mesma. Pendurou a calça jeans, a camisa e o suéter diante do fogo,
e depois amarrou bem o cinto do roupão. Mesmo seminua, vulnerável, não se sentia
amedrontada, até pelo contrário: era como se conhecesse Jonah desde a infância.
Minutos mais tarde ele voltou, usando jeans desbotados e um grosso suéter de lã.
— Se quiser tomar um banho quente, sinta-se à vontade. Vou colocar suas roupas
na máquina de lavar e depois na secadora.
— Tem tudo isso aqui?
— Claro. Meu amigo gosta da vida do campo, mas também aprecia os confortos da
vida moderna. Há um forno microondas na cozinha, e até uma cama d'água no quarto...
Assim tudo fica mais fácil, não acha? Então, vá tomar um banho. Depois preparamos
algo para jantar.
Enquanto ele desaparecia pelos fundos carregando as roupas sujas, Raine entrou
mancando no banheiro luxuoso. Em vez de tomar uma ducha rápida, preferiu desfrutar
da deliciosa água morna da banheira de mármore. Lavou os cabelos com xampu, e
depois os secou com um secador que encontrou num armário.
Hesitou um instante em frente ao espelho, tentada a deixar os cabelos soltos
pelos ombros, mas acabou prendendo-os no coque habitual.
Ao retornar à sala, Jonah encontrou-a sentada diante do fogo, com a perna
apoiada sobre uma almofada. Acomodando-se na beirada do sofá, ele se curvou para
examinar seu tornozelo. Flexionou-lhe o pé, depois, dedo por dedo, atento a se ela
sentia dor.
Raine o observava sem embaraço. Devido à foto que tinha no quarto, conhecia
cada linha daquele rosto, o nariz e a boca bem-feitos, as sobrancelhas grossas, os
olhos escuros e profundos, que sob a luz tremulante da lareira eram misteriosos,
impenetráveis. Seu corpo irradiava uma energia positiva, vibrante a cada gesto,
fazendo-a sentir vontade de tocá-lo...
— Assim ainda dói?
— Oh... não, quase não dói mais. E-eu... estou bem.
— Escute, não precisa ter medo de mim. Não costumo seduzir jovens,
especialmente quando estão em desvantagem.
— N-não sei do que está falando.
— Sabe, sim. Desde que vestiu esse roupão você ficou arredia. É natural que
imagine coisas estando semidespida num lugar isolado, na companhia de um
desconhecido, sobretudo depois da experiência que sofreu esta noite. Mesmo assim,
dou-lhe minha palavra de que, tão pronto suas roupas sequem, coloco-a no carro e a
levo de volta para a cidade.
— Não estou com medo de você.
"Tenho medo de mim mesma", completou mentalmente.
— Não? Pois devia estar. Você tem um rosto lindo. E, como não sou santo nem
masoquista, vai ser duro manter minha palavra ...
Dizendo isso, Jonah jogou a cabeça para trás, sorrindo, divertido. Fascinada,
Raine observava-lhe as feições morenas, até que seus olhos se encontraram.
Imediatamente ele parou de rir, assumindo uma expressão séria, enquanto se inclinava
para frente, encarando-à com intensidade.
— Se quer mesmo que eu cumpra minha promessa, pare de me olhar desse jeito.
Por via das dúvidas, não sou nenhum cavalheiro. Aliás, para chegar onde estou não
podia de jeito algum agir sempre certo. Mas que tal mudarmos de assunto?
— Sabe o que eu estou pensando?
— Comida?
— Acertou!
— Também estou morrendo de fome. Deixe que eu vou até a cozinha preparar
alguma coisa. Você fica aí sentadinha.
Porém, sentindo-se solitária, ela não conseguiu permanecer por muito tempo ali
na sala. Descalça, mancando um pouco, foi até a cozinha espiar, surpreendendo-se ao
vê-lo preparar uma belíssima omelete, daquelas que só os franceses sabem fazer.
— Onde aprendeu a cozinhar tão bem?
— A necessidade me obrigou. Mamãe abandonou marido e filho quando eu tinha
apenas cinco anos, por isso cozinho desde que consegui segurar uma colher de pau.
Minhas especialidades eram feijão em lata, hambúrgueres e batatas fritas. Aos
catorze anos, arrumei emprego num restaurante de beira de estrada, e, prestando
atenção no que o cozinheiro fazia, acabei por substituí-lo quando ele saiu. É assim que
se sobe na vida.
Novamente amargura na voz! "Por quê?", perguntou-se ela.
Entretanto, não teve tempo para pensar a respeito, pois logo foi servida de uma
generosa porção de omelete com torradas quentinhas. Avançou na comida com tal
apetite que ele acabou rindo.
Enquanto saboreavam o jantar, Raine lhe contou de suas façanhas culinárias,
quase sempre malsucedidas, e de como seu pai brevemente tentava comer tudo, sem
nunca reclamar. No final ela se rendera às evidências e deixara o velho Hunicutt
preparar as refeições, coisa que ele fazia com prazer.
Depois de lavarem os pratos, voltaram para a sala, cada um com uma xícara de
café fumegante.
— Como se interessou por música, Sr. Duncan?
— Jonah, por favor. Meu pai, apesar de ser motorista de táxi, sempre apreciou a
música erudita e, de uma forma ou outra, acabava arrumando o dinheiro para pagar
minhas aulas. Não tive os melhores professores, pelo contrário, e mais tarde fui
obrigado a desaprender alguns maus hábitos.
— Seu pai deve ser muito orgulhoso de você.
— Ele faleceu num desastre quando eu completei treze anos. Puseram-me num
orfanato, pois não tínhamos parentes próximos. Só que .eu queria continuar a estudar
música, e então fugi para Nova Jersey, arrumei aquele emprego no restaurante e
gastava quase todo o meu salário em aulas. Quando estava com dezesseis anos, um
grande professor de Nova York interessou-se por mim, Bruno Wolfheim. Foi ele quem
me fez perder alguns maus hábitos e conseguiu me colocar no conservatório, onde me
aperfeiçoei durante dois anos. Daí, venci uma competição e ganhei uma bolsa de
especialização na Juilliard. Nesse período não precisei trabalhar porque um dos
professores, entusiasmado, obteve para mim o patrocínio de um rico empresário, que
financiou inclusive minha ida à Rússia. Tirei o primeiro lugar no Concurso Tchaikowsky
e a partir de então se tornou mais fácil ser reconhecido pelo público e pela crítica.
Raine ficou calada, pensando nas horas que ele praticara, nos sacrifícios feitos,
sempre lutando contra problemas financeiros.
— E você, mocinha? Acha que tem energia suficiente para a luta?
— Não gosto que me chame de mocinha.
— Mas se nem mesmo sei o seu nome! Não, não me diga. Eu a chamarei de Carmen.
Se você fosse um soprano, daria uma perfeita Carmen. Quando compôs essa ópera,
Bizet devia ter em mente alguém do seu tipo: esbelta, com cabelos longos e escuros,
rosto de Madona e olhos que emitem faíscas quando é provocada. Ora, não precisa
ficar vermelha! Já percebi que é teimosa, briguenta... E espero que consiga seguir
adiante na carreira. Só uma minoria, uma pequena elite, consegue galgar os últimos
degraus da fama nessa área. Os demais terminam dando aulas ou em outra profissão.
A maioria das mulheres se casa, tem filhos, e passa o resto da vida imaginando como
seria se não tivessem desistido da carreira pelo amor.
— Esse foi o comentário mais machista que já ouvi!
— Machista? Bem, não há como negar que existe uma tendência a se levar mais a
sério um pianista homem do que uma pianista mulher. A razão disso deve estar no fato
de vocês poderem largar a carreira de uma hora para outra a fim de criar uma família.
— Pois eu não pretendo me casar. Não tenho tempo para distrações, e é por isso
que...
— É por isso que faz questão de se esconder.
— Não estou compreendendo.
— Convenhamos... Não há nada que você possa fazer para ocultar seu físico de
curvas perfeitas, seus olhos inesquecíveis. Mesmo sem batom, sua boca...
Ele parou de repente, olhando-a fixamente, e então estendeu o braço e tocou-lhe
os cabelos.
— Por que não deixa os cabelos caírem naturalmente, emoldurando esse rosto
lindo? Coque à moda antiga não a faz mais velha, sabia? Pelo contrário, lhe dá ares de
colegial.
Raine não conseguia desviar o olhar. Embora estivesse ciente do fogo que
crepitava na lareira, do aroma que o pinho exalava, de sua respiração entrecortada, o
calor daquela mão masculina em sua nuca a deixava tonta. De repente, sentiu vontade
de tocá-lo no pescoço, de beijá-lo, de fazer amor...
Assustada com os próprios pensamentos, quis levantar-se, mas, como por obra
diabólica do destino, o tornozelo machucado não agüentou seu peso e ela caiu... direto
nos braços de Jonah. À medida que os braços fortes se fechavam, abraçando-a, teve a
sensação de estar se afogando num redemoinho.
Seus lábios se encontraram. Foi um beijo tão gentil e delicado que, a princípio, ela
não teve coragem de se soltar. Depois, quando a pressão aumentou, entreabriu os
lábios, trêmula, recebendo a língua quente e sensual. Ele soltou um gemido, beijando-a
com mais sofreguidão, deixando-a fraca, indefesa, acariciando-lhe as costas.
Sem saber direito o que fazia, ela o abraçou também, passando as mãos em torno
da nuca morena, os dedos afagando aqueles cabelos escuros, ondulados.
Abrindo a gola do roupão com gestos ágeis, ele afundou o rosto no vale claro
entre seus seios. Foi como se um rastro de fogo lhe percorresse o corpo, e Raine,
descobrindo novas e deliciosas sensações, sentiu um desejo puro, quase animal, que
nunca experimentara antes. Suas inibições e defesas naturais tinham se evaporado;
Jonah era uma onda gigantesca, e ela, um barquinho sem timoneiro, uma casca de noz à
mercê das águas revoltas.
Mesmo quando os lábios másculos ousaram mais, mordiscando-lhe os bicos
rosados, umedecendo-os com a língua quente, não tentou resistir. E as mãos morenas,
fortes, exploravam seu corpo, provocando-a, despertando-a como mulher. Nada, nem
mesmo seu forte senso de autopreservação, deteria aquela excitação que estava
sentindo.
Jonah tirou-lhe o robe, jogando-o de lado, e empurrou-a gentilmente no sofá,
antes de começar a tirar as próprias roupas. Por um breve instante, Raine teve medo,
muito medo do que estava para fazer, mas depois, quando sentiu o corpo masculino ao
seu lado, esqueceu-se de tudo.
Pela primeira vez experimentava o delírio de ser acariciada por um homem, de
sentir sua virilidade vibrante... Os lábios fortes a percorriam pelos ombros, pescoço,
seios, iam descendo devagar, a língua desenhando arabescos sobre a pele aveludada,
explorando os mistérios de seu corpo, fazendo com que ela se conhecesse mais.
Esticou os braços para acariciá-lo nos cabelos, ansiosa por lhe demonstrar todo o
prazer que sentia, e como também lhe queria proporcionar o mesmo. Depois, viu-se
erguida pelos quadris, e, quando ele a penetrou, transformando-os num único ser, por
um instante sentiu dor, logo esquecida numa onda de prazer intenso e desconhecido.
Estava subindo em espiral, rumo a um pico qualquer, cada vez mais alto. O mundo
inteiro se condensou naquele momento, no sofá estreito, no corpo vibrante de Jonah
junto ao seu. E, quando chegou ao êxtase total, ela compreendeu que aquele instante e
aquele homem estavam marcados para sempre em seu coração. Não importava o
futuro: para sempre julgaria ver outros homens através de Jonah Duncan, através
daquele espaço de tempo em que se transformara de menina em mulher.
Capítulo Três
Assim que ela entrou na sala, o advogado se ergueu para cumprimentá-la com
gravidade. Conhecendo-o desde criança, Raine logo compreendeu que as coisas não iam
bem. Respirou fundo, disposta a enfrentar o pior.
— Por favor, Sr. Partridge, esclareça tudo o mais rápido possível. Sei que as
notícias não são boas.
O velho pigarreou de leve, limpando os óculos com um lenço.
— Bem... Seu pai tinha muitos empréstimos nos bancos, e não conseguiu pagá-los
dentro do prazo, pois a doença se agravava dia a dia, como você sabe.
— Não, eu não sabia de nada. Papai e meu irmão me esconderam a gravidade da
doença. Eu devia ter adivinhado que ele estava mal quando me avisou que não iria à
minha formatura porque precisava cuidar de negócios.
— Não se torture, Raine. Foi Earl quem preferiu se calar, para não prejudicá-la
nos estudos. Quando seu pai decidia alguma coisa, era teimoso como...
— Como eu.
— Bem, você tem defeitos e qualidades tanto de seu pai como de sua mãe. Graças
a Deus herdou dos dois o espírito de luta e o amor à arte.
— Ainda há muitas dívidas para saldar?
— Absolutamente. Todos os empréstimos foram pagos, embora tenham levado
até o último centavo da venda da loja. Havia algumas coleções de livros que não faziam
parte do inventário, como a edição original encadernada de Faulkner e Lawrence, que
seu pai tinha comprado para investimento. Felizmente obtivemos com elas preço de
mercado, suficiente para pagar o resto das contas. É claro que ainda há a coleção
particular de raridades que Earl possuía. Pediu-me para não colocá-la à venda, mas...
bem... se conseguiria uma bela quantia com ela. Há alguns livros que são verdadeiros
tesouros.
— Não. Prefiro manter intacta a coleção particular de papai, e estou certa de que
meu irmão pensa da mesma maneira.
— Compreendo. A coleção representa muito da vida de seu pai: uma dedicação
total à estética e à arte, uma demonstração rara de sensibilidade e bom gosto. Eu
gostaria de saber que esses livros um dia pertencerão aos netos de Earl Hunicutt. "O
mundo dos livros é a mais notável criação do Homem"... Quem foi mesmo que disse
isso?
Raine não pôde deixar de sorrir para os olhos azuis que a fitavam por sobre os
óculos de aro fino. O Sr. Partridge possuía uma memória fenomenal. Aquilo era apenas
uma brincadeira que faziam desde que ela era bem pequena.
— Clarence Day, não foi?
— Claro, como pude esquecer? No entanto, não estou tão velho a ponto de não
saber que Voltaire disse um dia: "Livros raros transformam os homens ricos em sábios
e os sábios em ricos".
— Acho que essa frase é de sir William ReesMoog, Sr. Partridge.
— E não é que você tem razão? Você não mudou muito desde quando era uma
garotinha de rabo-de-cavalo que só largava o piano para se enfronhar em algum livro
da biblioteca... Era uma menina séria, inteligente, muito compenetrada. Seu pai se
orgulhava de você, e tenho certeza de que, se sua mãe fosse viva, se sentiria
recompensada pelos esforços de fazê-la se interessar por música. Mas... não está
pensando cm desistir do Concurso TchaiRowsky por causa das dificuldades
financeiras, está?
— Não... mas precisarei arranjar um meio para me manter enquanto estiver
treinando.
— Isso não será necessário, filha. Que falta de cabeça a minha! Esqueci de lhe
contar sobre o seguro!
— Seguro?
— Seu pai a deixou como beneficiária do seguro. Não é nenhuma fortuna, mas
deve ser o suficiente para sustentá-la até o concurso. Sei que precisará de oito horas
diárias de prática...
— E meu irmão? O seguro foi feito para nós dois!
— Não, não. Earl deixou para os dois a livraria, mas o seguro fez só em seu nome,
pois sabia que seu irmão, como médico, não teria dificuldades para se estabelecer. É
claro que ele nunca imaginou que a livraria viesse a dar prejuízo. Afinal, não contava
com os gastos com remédios e outras coisas mais.
— Outras coisas... como minha mesada de quatro anos.
— E também as despesas de seu irmão. Não se esqueça de que ele sustentou
Martin por quase sete anos. Mas, escute, o salário que ele recebe como residente
junto com o da esposa, como enfermeira especializada, não é mais do que suficiente
para os dois?
— A filhinha deles, Débora, precisa de cuidados constantes, por isso Glória não
está trabalhando. Os médicos dizem que ainda vai demorar até descobrirem a origem
da alergia da garota. Enquanto isso, Martin precisará de apoio financeiro por um ano,
pelo menos, até terminar a residência. Então deixarei o dinheiro do seguro para eles.
Estou certa de que encontrarei emprego em alguma biblioteca ou livraria
especializada.
O Sr. Partridge silenciou por alguns instantes, e quando voltou a falar mudou
completamente de assunto, pegando-a de surpresa.
— Raine, estou precisando de um conselho. Ofereceram-me a primeira edição de
The Big Sleep, de Raymond Chandler, por quinhentos dólares. Não costumo comprar
livros fora dos circuitos recomendados, mas esse livro apareceu e... Bem, é o que falta
para completar a minha coleção de Chandler. O homem deixou a brochura aqui para
inspeção. Será que você poderia me dar sua opinião?
— Claro, Sr. Partridge, não sou nenhuma expert, mas...
— Ora, Raine, não seja modesta. Seu pai me contou que lhe ensinou tudo o que
sabia sobre livros antigos, e confio no julgamento dele.
Sorrindo, ela aceitou p livro que o advogado tirara da gaveta. Depois da morte da
mãe, esforçara-se ao máximo para consolar o pai, ficando sempre ao seu lado e se
interessando para compreender o solitário hobby do velho livreiro, aprendendo a amá-
lo da mesma maneira. Não era uma especialista no assunto, mas com certeza poderia
emitir uma opinião mais ou menos correta.
Pegou o volume com cuidado, e o folheou página por página. Dez minutos depois
ergueu os olhos, preocupada.
— Há sinais evidentes de falsificação. Aqui há papéis de texturas diferentes,
indicando que o livro é uma mistura de dois ou três outros. Foi bem-feito, sem dúvida,
mas não tem valor para um colecionador. Se fosse genuíno, aliás, não valeria menos que
dois mil dólares. Sinto muito.
Sem parecer desapontado, o Sr. Partridge guardou a brochura com um sorriso
nos lábios.
— Eu achei mesmo que o preço estava baixo demais para uma primeira edição
autêntica. Você está a par dos preços do mercado, não?
— Bem, costumo ler publicações especializadas no assunto, pertenço ao Círculo
dos Livros Raros. Cheguei a fazer alguns negócios para papai durante a Feira de Livros
Antigos de Nova York.
O advogado continuava a sorrir, deixando-a desconfiada. Sabia que o Sr.
Partridge era um astuto colecionador de raridades bibliográficas e tudo levava a crer
que ele a pusera à prova para ver se ela reconheceria uma falsificação.
— O que está querendo me propor, Sr. Partridge?
— Humm, continua tão direta como na infância, não é mesmo, Raine? Estou com
uma idéia em mente e... Bem, estava querendo lhe fazer um pequeno teste.
— Do que se trata? Se são más notícias, é melhor dizer de uma vez.
— Pelo contrário, são ótimas notícias! Creio que poderei ajudá-la a conseguir um
emprego. É incrível, mas a oferta se encaixa perfeitamente com suas qualificações.
— Que tipo de oferta?
— Para começar, é um emprego temporário. Um de meus clientes está à procura
de alguém para catalogar uma enorme coleção de livros que herdou há alguns anos. Pelo
que sei, trata-se de uma biblioteca bastante eclética. O antigo dono, Grarion
Arlington, foi um dos últimos barões genuínos da Inglaterra. Era um velho excêntrico,
já ouviu falar dele?
— Não foi o homem que ofereceu ao Museu de Nova York uma coleção de mapas
antigos?
— Entre outras coisas. De qualquer forma, meu cliente pretende doar o que for
realmente valioso para o Museu, e também guardar alguns livros para sua biblioteca
particular. Como ele sabe que sou ligado ao ramo de livros antigos, confiou-me a tarefa
de contratar alguém à altura. Você passou no teste com nota dez. Se quiser, o
emprego é seu.
Quando o advogado informou o valor do contrato por três meses, ela prendeu a
respiração. Era dinheiro mais do que suficiente para cobrir suas despesas enquanto
treinasse para o Concurso Tchaikowsky, e ainda cobriria sua viagem para a Rússia!
— Então, Raine, aceita?
Como tinha perdido a voz, ela fez que sim com um gesto de cabeça tão vigoroso
que o velho caiu na risada. Minutos depois ele lhe entregou o contrato para assinar.
Mas, ao inclinar-se para lê-lo, o sangue lhe gelou nas veias. Com a boca seca, levou
alguns segundos para se recuperar.
— Sr. Partridge... seu cliente é Jonah Duncan!
— Oh, sim, esqueci de lhe dizer, mas não adianta se animar, filha. Não terá
oportunidade de vê-lo praticar.
— Não compreendo.
— Jonah se retirou do mundo da música. A morte da esposa, uma verdadeira
tragédia, deixou-o prostrado. Ele não toca mais piano, nem admite que se fale no
assunto. Isso significa que você terá que treinar em outro lugar. Mas tenho certeza
de que isso não será problema. Você disporá de muito tempo livre, e na certa
encontrará um bom piano na cidade de Mendocino.
— Mudei de idéia, Sr. Partridge. Foi muita gentileza me oferecer o emprego, mas
não posso trabalhar para... não posso aceitá-lo.
— Esse trabalho lhe cai como uma luva! Depois que os livros forem catalogados,
Jonah planeja trazer um perito de Nova York para dar a palavra final. Sua função
termina com a catalogação.
— Não posso explicar, é um problema pessoal. Agradeço-lhe imensamente e... por
favor, não mencione a Martin que sou a única beneficiada pelo seguro, está bem?
— Claro que não. Mas gostaria... bem, deve ter suas razões para não aceitar o
emprego. Apesar disso, vou deixá-lo em aberto por dois dias, antes de procurar outra
pessoa. Jonah estará fora da cidade e por isso não há pressa. Vá para casa e pense
bem no assunto; talvez mude de idéia e resolva aceitar.
Raine preferiu não protestar, deixando as coisas como estavam. Nada a faria
mudar de idéia. Só de pensar em ver Jonah novamente, sentia o estômago revirar.
Preferia um emprego de faxineira a aceitar trabalhar com o homem que destruíra
seus sonhos de adolescente.
O apartamento de três cômodos de Martin ficava no último andar de um pequeno
prédio no bairro de Mission. Quando Glória a convidou para entrar, Raine olhou em
torno, notando os pequenos enfeites que a cunhada colocara, esforçando-se para
transformar aquele cubículo num lar.
Só desconfiara de que o irmão e a família estavam em dificuldades financeiras
quando voltara para San Francisco a fim de assistir ao enterro do pai. Agora sabia que
as coisas definitivamente não iam bem para eles. Glória mudara muito naqueles três
anos de casamento. Embora ainda bonita, perdera muito peso. As roupas lhe sobravam,
e seus olhos pareciam embaçados, sem o antigo brilho.
— Martin ainda não chegou?
— Não, mas já está a caminho. — Os olhos ansiosos de Glória desmentiam a calma
que ela queria aparentar. — Espero que não traga más notícias. Só tivemos
desventuras desde que... desde que soubemos da doença da criança.
— Não, eu não trouxe problemas, pelo contrário. Vim avisar que temos dinheiro
suficiente para Martin terminar a residência.
— É mesmo?
A cunhada fechou os olhos, como se agradecesse a Deus. Naquele instante Raine
escutou um barulhinho e virou-se para ver o irmão entrar, com o rosto apreensivo.
Alto, moreno e bonito, Martin era mais comunicativo do que o pai e herdara dele a
dedicação à família.
— E como foram as coisas?
— Bem, maninho. Todas as contas e empréstimos estão pagos, e ainda sobrou o
suficiente para formá-lo num senhor doutor!
— Uau! — Martin tomou a esposa nos braços e rodopiou com ela pela sala. Depois
vermelho, sorriu para a irmã. — Talvez lhe pareça insensível de minha parte alegrar-
me tanto só duas semanas após a morte de papai, mas...
— Ele ficaria muito feliz de vê-lo assim.
— É verdade. Sempre desejou o melhor para nós... Quando você vencer o
Concurso Tchaikowsky, deve dedicar o prêmio a papai. A propósito, onde vai praticar
nos próximos meses? Seria bom tirar o piano do guarda-móveis e alugar um
apartamento aqui em San Francisco.
— Não há pressa, a próxima competição é só no ano que vem. Na verdade, estou
pensando em arrumar um emprego.
— Emprego? Como assim? O seguro que papai lhe deixou pode sustentá-la muito
bem enquanto treina para o concurso!
— O seguro? Você sabia...
— Claro que sim! Papai conversou comigo antes de fazer o testamento. Já que
minha mesada e as mensalidades da universidade eram maiores do que a quantia que
ele lhe mandava todos os meses, nada mais justo do que nomeá-la como única
beneficiária. Ele não podia fazer um seguro mais caro porque estava muito velho,
mas, ... hei, espere um pouco! O que você está tramando? Não vá me dizer que é do
dinheiro do seguro que está falando, é? Se for, esqueça. O dinheiro é todo seu. Sei o
que o Concurso Tchaikowsky representa para sua carreira.
— Não há pressa, Martin, acredite-me. Sou jovem ainda e...
— Quantas vezes escutei você e papai conversando sobre a importância de
enfrentar um concurso desses ainda jovem? Quando chegar o outro concurso, você
estará velha e haverá outros competidores mais novos na fila, ansiosos por arrebatar
o prêmio. Não, esqueça. Se estava pensando em fazer o sacrifício, pode desistir.
Sem fala, ela o encarou por alguns instantes. Com o canto dos olhos viu o rosto
desapontado da cunhada e compreendeu seu desespero. Não acabara de passar pela
mesma decepção ao descobrir que não poderia aceitar o emprego que o advogado lhe
oferecera? Forçando um sorriso, anunciou:
— Como sempre, Martin, está se adiantando e dizendo bobagem sem me deixar
explicar. A verdade é que estou com a sobrevivência assegurada sem o dinheiro do
seguro. O Sr. Partridge me arrumou um ótimo emprego: vou catalogar os livros da
coleção particular de Jonah Duncan.
— O pianista?!
— Ele mesmo. O salário é suficiente para me sustentar por muito tempo.
Imaginem se eu não ia aceitar a oferta, ainda mais trabalhando diretamente com um
homem tão influente! Se eu souber jogar as cartas direitinho, é capaz de ele me
apoiar na carreira. Isso vale mais do que vencer uma dúzia de concursos!
Capítulo Cinco
Naquela noite Raine se ofereceu para cuidar de Débora, até a garota dormir.
Martin, que estava fazendo horas extras no trabalho, tinha voltado para o hospital, e
Glória, sozinha, aceitou a ajuda de bom grado.
Depois de deixar a sobrinha confortavelmente aninhada no berço, Raine fixou o
olhar nos desenhos que decoravam o quartinho minúsculo, outro esforço da cunhada no
sentido de alegrar o ambiente. Perto dos sacrifícios que o casal fazia para viver com
decência, seus próprios problemas pareciam pequenos e sem importância. Não havia
mesmo saída a não ser enfrentar aquele emprego que lhe caíra do céu. Ainda que isso
significasse trabalhar para Jonah Duncan, pelo menos resolveria as dificuldades de
todos.
Depois que Glória se deitou, ela ligou para o Sr. Partridge, dizendo que mudara de
idéia e resolvera aceitar a vaga. Muito discreto, o advogado não lhe perguntou por que
ela recusara a oferta tão de repente naquela tarde, nem demonstrou surpresa. Apenas
lhe avisou para passar no escritório o mais rápido possível.
Na manhã seguinte, enquanto Raine assinava o contrato, o Sr. Partridge
informava que a cunhada de Jonah Duncan, que também morava na mansão Arlington, a
esperava dentro de dois ou três dias.
— Ela se chama Crystal Arlington. Cuida da casa, supervisiona os criados,
acompanha a educação do filho de Jonah, e também trabalha como sua secretária.
Depois que Jonah parou de dar concertos, comprou uma pequena fábrica de vinhos,
dando-se muito bem no ramo. Seus vinhos têm sido elogiados e acho que logo estarão
sendo distribuídos nacionalmente.
— Quanto anos tem a cunhada do Sr. Duncan?
— Vinte e poucos. É vários anos mais jovem do que a irmã. Aliás, sempre foi muito
dominada pela falecida. Elaine era uma mulher extremamente bonita, de personalidade
forte, e Crystal contentava-se em viver à sua sombra. Agora ,ela tem a mesma
devoção pelo cunhado e o sobrinho. É uma mocinha simpática, tenho certeza de que
vocês se darão bem.
— E onde fica a mansão Arlington?
— Vou lhe fazer um mapa agorinha. É uma casa antiga, de construção muito
original, e fica a poucos quilômetros da cidade de Mendocino, perto da costa.
Mais tarde, enquanto fazia as malas, Raine percebeu que preferia ter conversado
com Crystal Arlington diretamente, pára saber melhor sobre o guarda-roupa que
deveria levar. Teria de se vestir socialmente, quando houvesse visitas na casa?
Provavelmente não. Afinal, estaria lá apenas como contratada.
Tinha quase certeza de que Jonah não a reconheceria. Ele a fitara diretamente
nos olhos no escritório do Sr. Partridge e não demonstrara a menor emoção. Se ainda
se lembrasse daquela noite, pensaria que a garota com quem fizera amor era uma
moreninha. Por que relacionaria a estudante ingênua de cabelos escuros, a quem
seduzira e chamara de Carmen, com uma catalogadora de livros desembaraçada e
loira? Não, ele não a reconheceria. Além disso, Raine faria o impossível para não
encontrá-lo. Quando sua missão estivesse cumprida, aprontaria as malas e nunca mais
voltaria a Mendocino.
Naquela noite voltou a ter o mesmo pesadelo que a perseguira várias vezes três
anos atrás: Jonah estava fazendo amor com ela, acariciando-a com intensidade, e de
repente a empurrava para longe, gargalhando. Ela estendia os braços, desesperada,
mas o amante ia se distanciando aos poucos, até desaparecer numa névoa escura.
Quando acordou, seu travesseiro estava molhado de lágrimas.
Decidida a esquecer o pesadelo e aproveitar a viagem que tinha pela frente, pôs a
bagagem no porta-malas e, cantarolando baixinho, tomou o volante do velho carro de
seu pai. Partiu pela estrada costeira, mais longa, porém mais bonita do que a que ia
pelo interior. Por que não considerar aquele emprego como uma espécie de férias,
deixando os problemas para trás?
O carro reluzia à luz alegre da manhã, atravessando a ponte Golden Gate, depois
cruzando os bosques de Marin County. Ao alcançar Retaluma, abandonou a rodovia 101
e, por um atalho secundário, pegou a estrada sinuosa que margeava a costa. Dos lados
havia pequenos ranchos, chalés, plantações, uma vista muito agradável e acolhedora.
Mal acreditava que estava em plena Califórnia, pois a paisagem rural podia ser de
qualquer Estado do interior dos Estados Unidos.
Só mais adiante, quando a paisagem rústica era substituída por vales onde
vicejavam laranjeiras, é que dava para se perceber que se estava no extremo norte da
Califórnia, área de clima semitropical famosa por sua cultura cítrica.
Apesar de ter passado a infância em San Francisco, ela pouco conhecia o Estado.
Vivia tão mergulhada nos estudos de música e nos livros do pai que mal viajava.
Prometeu a si mesma que, enquanto estivesse trabalhando em Mendocino, aproveitaria
as horas de folga para conhecer melhor a região. Estando tão perto da costa, também,
iria para a praia sempre que possível.
Finalmente pôde avistar o oceano, e, várias vezes, diminuiu a marcha do carro
para observar a beleza selvagem que se desvendava depois de cada curva.
Em Denner, a cidadezinha portuária localizada na boca do rio Russian, parou para
almoçar e pediu peixe à moda da casa. Era um pouco caro, mas estava tão delicioso que
até se deu ao luxo de tomar uma taça de vinho branco. O garçom lhe disse que aquele
vinho, muito especial, vinha de uma adega da região. Seria de Jonah?
Quando pagou a conta, descobriu que seu humor se transformara. Embora as
paisagens se desenrolassem cada vez mais espetaculares e diferentes, a viagem lhe
parecia não ter fim. Arrependeu-se de ter escolhido aquela estrada, sinuosa e
comprida.
No final da tarde, cansada demais para continuar, fez uma parada na pequena
cidade de Little River, hospedando-se num hotel modesto. No dia seguinte, ficou lendo
até mais tarde na cama e depois tomou um farto café da manhã, dando tempo ao
tempo.
Quando voltou para a estrada, estava muito mais bem-disposta e relaxada. Foi
guiando devagar pelas curvas, apreciando a paisagem; de vez em quando checava o
mapa que o Sr. Partridge lhe fizera para ver se já tinha passado a entrada da mansão
Arlington.
Ficou arrepiada quando, depois de uma curva, encontrou uma tabuleta de madeira
que dizia: "Estrada Particular", Dali a pouco atravessava um caminho margeado por
altos eucaliptos. A casa surgiu tão de repente que ela instintivamente pôs o pé no
freio, detendo-se no meio da estrada. O advogado dissera que era uma construção
antiga, interessante, mas não a preparara para aquele quase castelo vitoriano, com
balcões, alpendres, janelas emolduradas por altos-relevos, e uma pequena torre a um
lado, envidraçada, com teto de chapéu de bruxa. A arquitetura misturava diversas
épocas, do medieval e barroco ao colonial.
De imediato teve a impressão de conhecer aquela casa de algum lugar. De onde?
De algum artigo de revista, talvez num livro especializado? Será que aquela mansão
grandiosa e imponente pertenceria a Jonah Duncan? Não, o mais provável é que
tivesse pegado uma entrada errada.
Antes de decidir se ia em frente ou voltava, a porta da entrada se abriu, dando
passagem a uma mulher esguia e altiva. Embora não pudesse vê-la direito devido à
distância, Raine tinha certeza de que, pela maneira empertigada com que ela andava,
não era empregada ou subordinada da mansão. Ligou o carro de novo e conduziu-o
vagarosamente pelo caminho de pedras. A mulher, parada no topo da escada, esperou-
a descer do veículo e aproximou-se.
— Você é a srta. Hunicutt?
— Sim, sou eu mesma, Raine Hunicutt. Srta. Arlington? O Sr. Partridge falou que
a senhorita estaria à minha espera.
— Na realidade, esperávamos que viesse ontem. Sofreu algum acidente?
— Não, eu estava cansada e resolvi passar a noite em Little River. Não sabia que
havia data marcada para a minha chegada, senão teria ligado.
— Pode me chamar de Crystal.
Embora a moça sorrisse, seus olhos pareciam desaprovadores. Raine sentiu-se
pouco à vontade, naquele tailleur clássico. Devia, ter posto uma roupa menos formal,
talvez um jeans mesmo...
— Siga-me, por favor. Luke guardará o carro e trará a bagagem para dentro.
Tilda lhe mostrará o quarto.
As salas pelas quais passavam eram de uma beleza incrível, com móveis antigos,
ricamente forrados, tapetes caros e objetos de muito bom gosto. Seria decoração da
elegante Elaine Duncan, ou era a mobília original daquela mansão magnífica?
— Devo avisá-la de que levamos uma vida muito calma por aqui — disse Crystal, de
repente. — O Sr. Duncan é bastante reservado, e raramente gosta de companhia. Por
isso, ordenei que suas refeições sejam servidas no quarto. Será mais fácil para você
também, já que seus horários não devem ser fixos. Vai poupar-lhe o problema de
interromper o trabalho para se vestir para o jantar.
Raine fez que sim com um gesto de cabeça, mas estava ressentida com a maneira
como aquela mulher a tratava, dando a impressão de que ela estivesse na casa de
favor, e não para cumprir um emprego remunerado.
Qual seria o relacionamento entre Jonah e Crystal? Seriam amantes, talvez?
Afinal, a moça era atraente, e ele não era do tipo que deixava passar uma
oportunidade...
Examinou-a com curiosidade, tentando enxergá-la sob a ótica masculina. Ela era
pequena, de constituição física miúda, com os cabelos castanho-escuros repartidos ao
meio. Com o rosto oval, olhos grandes e escuros, tinha uma expressão constante de
enfado. Embora vestisse roupas informais, certamente haveria uma etiqueta famosa
naquele conjunto de blusa e calça de lã.
Como se adivinhasse que estava sendo observada, Crystal virou a cabeça para
trás e sorriu de modo artificial. As duas estavam paradas numa sala de estar, onde
uma lareira de pedra ocupava quase que uma parede inteira. Nesse instante entrou
uma senhora baixa, atarracada, com cabelos escuros presos num coque discreto.
Cumprimentou Raine com um gesto de cabeça e esperou as instruções da patroa.
— Faça o favor de mostrar o quarto para a srta. Hunicutt, sim, Tilda? Você
preparou um dos quartos de hóspedes do terceiro andar, não foi?
— Sim, limpei-o do chão ao teto, como mandou. A moça ficará confortável ali,
mas, já que vai fazer as refeições no aposento, não seria mais conveniente ter pegado
um do segundo andar? Desde que a senhora mandou Marion embora, Luke e eu estamos
trabalhando demais.
— Tenho certeza de que vocês dois conseguem cuidar de tudo até eu encontrar
uma substituta para Marion. E desta vez contratarei alguém mais maduro, que não vá
todas as noites à cidade para... — Crystal se interrompeu, irritada, mas logo voltou à
mesma voz fria e indiferente, quando completou: — Logo encontrarei uma substituta.
Srta. Hunicutt, quando estiver pronta, Tilda lhe mostrará o lugar onde estão os livros.
O Sr. Duncan não voltou de Nova York ainda, mas imagino que você sabe o que deve
fazer.
— Sim, o Sr. Partridge me deu as instruções.
— O Sr. Partridge... Estranho ele não ter me avisado que você era tão...
Mais uma vez Crystal não completou a frase, deixando Raine furiosa. Enquanto
subia a larga escadaria em companhia de Tilda, ia considerando a aberta hostilidade
que a anfitriã lhe demonstrara. O advogado a descrevera como uma "mocinha
simpática". Simpática quando queria, pelo jeito! Por alguma razão a detestara logo à
primeira vista. Enfim...
Como se estivesse lendo seus pensamentos, a empregada, sem se virar para trás,
comentou:
— Crystal não suporta ter uma pessoa bonita como você por perto.
— Como assim?
— Foi por isso que ela despediu Marion. Não gosta de ter ninguém jovem por
perto.
— Não compreendo.
— Ela teme que Jonah se interesse por outra pessoa e se esqueça de Elaine.
Como se isso fosse possível! Mas Crystal sempre foi muito ciumenta. O que é dela é
dela e detesta mudanças.
— Pois não tem nada a temer de mim. Vim para fazer um serviço, e estarei
trabalhando praticamente o tempo todo. Duvido que me encontre com a família.
— Disso você pode estar certa. Jonah costuma se trancar no quarto ou então
passar o dia inteiro nas plantações. A mansão Arlington antigamente vivia cheia de
hóspedes e visitantes, mas desde que Elaine faleceu e que o menino se feriu...
— O filho dela também se feriu? Foi muito sério?
— Bastante complicado. Coitadinho, passou por maus bocados. E agora ainda tem
mais pela frente!
Antes que Raine pudesse lhe perguntar o que ela queria dizer com aquilo, a
empregada abriu uma porta no final do corredor, fazendo-lhe sinal para que entrasse.
O quarto, espaçoso e arejado, exibia uma cama de casal, coberta com uma colcha
rendada, vários móveis de cerejeira forrados com veludo cor de vinho e um tapete
tecido à mão que cobria quase todo o piso. Mas o mais engraçado, e bonito ao mesmo
tempo, era a alcova que abrigava a cama: uma parede em semicírculo, envidraçada, com
janelinhas estreitas. Raine sorriu, satisfeita, e Tilda lhe retribuiu o sorriso.
— Crystal tinha mandado preparar um outro quarto, mas este aqui é mais
aconchegante. Se você fosse um pouquinho mais alta conseguiria avistar o mar.
— Eu não sabia que estávamos tão perto da praia.
— Porque você veio pela estrada. Mas daqui há um caminho que passa por uns
montes até uma descida de pedra que vai dar no mar. Quando for passear por lá,
cuidado com os degraus. Às vezes ficam escorregadios por causa do limo.
— Que tal é a praia?
— O mar por aqui é muito perigoso. Jonah costuma ir nadar, sem se importar com
meus conselhos. Fico lhe dizendo que há correntes fortes, mas ele só ri. Diz que adora
mares raivosos. Bem, nunca aconteceu nada, graças a Deus. Outro dia o vi lutando
contra as ondas, e ele estava mesmo bem à vontade, como se tivesse nascido no mar.
Raine imaginou Jonah de cabelos molhados, os braços musculosos subindo e
entrando na água, e teve uma sensação de vazio tão grande que fechou os olhos.
— Está bem, srta. Hunicutt?
— Oh, sim, estou apenas um pouco cansada. Chame-me de Raine, por favor.
— É um nome muito bonito, mas pouco comum.
— Era assim que se chamava a bisavó de meu pai. Aliás, esse era o sobrenome, e
papai achou-o bonito para primeiro nome.
— De onde eu venho fazem muito disso! Trocam os sobrenomes antigos por nomes
de descendentes distantes...
— De onde você é, Tilda?
— De Oklahoma. Viemos para a Califórnia durante a depressão, e papai arrumou
emprego como jardineiro com os Arlington. Quando eu estava maiorzinha, fui
trabalhar na cozinha e nunca mais saí daqui. Quando me casei com Luke, papai já tinha
falecido, então meu marido ficou como jardineiro. O Sr. Granton, pai de Crystal, era
um patrão difícil, exigente. Quando Jonah e Elaine se mudaram para cá, pensei que ele
ia preferir contratar alguém mais moço, mas não: pediu-me para que ficássemos
cuidando da casa, e nós aceitamos. Não nos arrependemos.
— Jonah é um bom patrão?
— Se você trabalha direitinho, é muito generoso. — A governanta puxou a colcha,
dobrando-a em quatro aos pés da cama. — Seria mais fácil se você estivesse no
segundo andar, não acha? Bem, Crystal é assim mesmo, ninguém adivinha o que está
tramando. Se desejar alguma coisa, estou na cozinha. Há uma campainha no topo da
escada que toca direto para me chamar. O banheiro fica naquela porta à direita. Até
logo.
Raine foi examinar o toalete, curiosa. Era a primeira vez em sua vida que não
tinha de dividir o banheiro com ninguém, e sentiu-se tentada a tomar um belo banho
de chuveiro para relaxar.
Depois da ducha quente, reanimada, enxugou-se com uma toalha felpuda, grande o
suficiente para enrolar sua figura esbelta duas vezes.
Quando voltava para o quarto, a fim de escolher uma roupa na mala, teve a
impressão de que, pela fresta da porta, via alguém se movendo. Virou a cabeça e seus
olhos encontraram um par de olhinhos miúdos, escuros e tristonhos.
— Olá, como vai? — perguntou, abaixando-se para ver melhor o garoto. — Sou
Raine Hunicutt. Você deve ser o filho do Sr. Duncan. Qual é o seu nome?
O menino a encarou por alguns instantes e depois sumiu corredor afora, tão
rápido quanto tinha aparecido.
Capítulo Seis
Apesar de ter dormido bem a noite toda, no dia seguinte Raine acordou
deprimida e com dor de cabeça. Lembrava-se confusamente de um sonho angustiante,
no qual tentava agarrar alguma coisa que sempre lhe fugia das mãos no exato momento
era que ia pegá-la.
Permaneceu deitada por algum tempo, sem saber ao certo se era cedo demais
para se levantar e tomar café. Na noite anterior, antes de se deitar, fizera uma
análise dos últimos acontecimentos e convencera-se de que conseguiria trabalhar sem
que os problemas pessoais interferissem no andamento da catalogação.
Agora, recebendo a luz do sol que se filtrava pelas cortinas rendadas, sentia um
temor inexplicável. Viu-se frente a frente com um cotidiano desconhecido e perigoso.
Como reagiria ao se encontrar com Jonah? Ao vê-lo no escritório do Sr. Partridge,
fora como se os três longos anos que passara na solidão nunca tivessem existido. Ela,
que se julgara tão forte, tinha de admitir que ainda estava vulnerável aos encantos do
pianista.
Admitir, admitia, mas sentia muita raiva de si mesma. Não podia suportar a idéia
de ainda ansiar por gemer e entrar em êxtase nos braços de Jonah... Afinal de contas,
agora, mais madura e sofrida, compreendia que tudo o que ele fizera naquela noite,
cada palavra, cada gesto, tinham sido calculados friamente para seduzir uma ingênua e
inexperiente garota do interior.
Aquele homem não passava de um mulherengo, que se aproveitava da fama e do
charme pessoal para seduzir as mocinhas que se aglomeravam à sua volta como
mariposas fascinadas pela luz. Porque, então, continuava a sentir frio na barriga,
arrepio na pele, e secura na garganta cada vez que pensava em vê-lo?
Bom, sobre isso não tinha controle, não adiantava se lamentar. Pelo menos não
passaria pela humilhação de ser reconhecida por Jonah como uma de suas conquistas
fáceis. Com os cabelos de volta à cor natural, quase não se parecia com a adolescente
que ele conhecera há três anos. Depois dela devia ter havido tantas outras, que nem
precisaria se preocupar com o assunto. Afinal, ele não a fitara ao sair do escritório do
Sr. Partridge e...
Raine prendeu a respiração por um segundo, com uma nova idéia a lhe atormentar.
A sala de espera do escritório do advogado, com as paredes forradas de tecido e
cortinas escuras, era pouco iluminada, e Jonah tinha acabado de sair de uma sala bem
clara. Seria possível que simplesmente não a tivesse enxergado direito?
Esse pensamento lhe provocou um estremecimento, mas, decidida a não se
preocupar por antecipação, jogou as cobertas de lado e pulou da cama. Primeiro
precisava cuidar do essencial, isto é, tomar banho, vestir-se, descer para o café da
manhã. Preferia mil vezes ir à cozinha a esperar o café no quarto, principalmente
depois de ver a velha Tilda carregando com dificuldade a bandeja do jantar na noite
anterior.
Entrou debaixo do chuveiro, sentindo a ducha quente lhe cair como um bálsamo
sobre o corpo. Depois, maquiou-se discretamente, escovou os cabelos e prendeu-os na
nuca. Hesitou um instante antes de escolher as roupas, mas acabou vestindo jeans e
um suéter. Mais cedo ou mais tarde Jonah a veria nos mesmos trajes em que a
conhecera na noite do concerto. Pelo menos não precisaria se preocupar por dois dias,
pois Tilda lhe dissera que Jonah ainda ficaria fora até o fim da semana.
Após arrumar a cama e limpar o quarto, desceu para a cozinha, onde Tilda
trabalhava em frente ao fogão. A empregada pareceu surpresa.
— Ah, você costuma acordar cedo! Bem, terá de esperar um pouco para tomar o
café. Ainda estou fazendo os pãezinhos de canela. Crystal não come nada de manhã a
não ser doces... Não compreendo como consegue manter aquela forma! Mas você não
precisava ter descido para me avisar que estava acordada. Podia ter usado o
interfone, e eu lhe levaria o desjejum assim que pudesse.
— Oh, não, é ridículo que você tenha de subir aquelas escadas três vezes ao dia
quando posso muito bem comer aqui na cozinha.
Tilda olhou-a, pensativa, mas depois encolheu os ombros.
— Só não sei o que Crystal vai pensar disso. Admito que as escadas me parecem
mais íngremes a cada dia que passa. Agora, sente-se que eu lhe preparo um café num
instante.
— Não precisa, eu mesma preparo. Não costumo comer nada além de torradas
pela manhã. Para falar a verdade, quase sempre estou com tanta pressa que acabo
saindo sem desjejum. Por isso não se preocupe com...
— Ah, não, mocinha, desta vez eu dou as ordens. Vai precisar de uma bela
refeição antes de atacar aquela montanha de livros! Depois que eles foram entregues
do depósito, eu sugeri a Jonah que Luke poderia desempacotá-los, mas o patrão disse
que o catalogador provavelmente preferiria fazer ele mesmo o serviço. Não sei como
pôde afirmar isso, já que você é mulher...
— Fui contratada pelo advogado do Sr. Duncan, por isso duvido que ele saiba que
sou mulher.
— Ah, bom.
Tilda voltou a trabalhar a massa, com precisão e experiência, enrolando-a com
açúcar mascavo e canela. Curiosa, Raine foi espiar e não conteve uma exclamação de
prazer. O cheirinho da canela era tão agradável, tão perfumado!
— Gosta de cozinhar, srta. Hunicutt?
— Raine, me chame de Raine, por favor. A bem da verdade, não entendo muito de
culinária. Depois que mamãe faleceu, esforcei-me para aprender o trivial, mas depois,
quando fui para a universidade, vivia à base de comidas enlatadas. Sempre quis
aprender a cozinhar, e bem... Talvez agora tenha mais tempo.
— Para se cozinhar bem precisa de bom senso, antes de tudo. É claro que um
manual também ajuda, mas se você souber "dar aquele toque a mais"... Onde você
estudou? Na Universidade de Sonoma?
— Não, na Juilliard, em Nova York.
— Juilliard? Essa é a universidade que Jonah cursou também, não é?
Raine mordeu o lábio, censurando-se por ter deixado escapar aquilo. Ficou em
silêncio por alguns instantes, pensando numa maneira de emendar o escorregão, mas a
governanta insistiu:
— Quer dizer que você é formada em música?
— Sim, sou...
— Então devo alertá-la de que, quando Jonah está em casa, não permite que nem
o rádio fique ligado. Tem sido assim desde que Elaine morreu. Ele tomou uma
verdadeira ojeriza por música, e não admite que ninguém toque ou cante em sua
presença.
— Compreendo, e pretendo agir de acordo. Talvez... talvez fosse melhor se você
não dissesse a ninguém que cursei a Juilliard, Tilda. Isso pode aborrecer o Sr. Duncan.
Não conheço o problema e...
— Ora, o problema é que Jonah se culpa pela morte da esposa, mas isso é ridículo.
Pensa que, se não estivesse no estrangeiro fazendo uma turnê, ela ainda estaria viva.
Imagine só! A presença dele não alteraria em nada a situação. Elaine sempre saía no
carro esporte, cantando pneus pelas curvas, correndo feito louca. Era muito
inconseqüente.
— Ele devia amá-la muitíssimo.
— Pois para mim isso é doença. Onde já se viu comportar-se dessa maneira depois
que a mulher morreu! Ele não falava com ninguém, não saía. Só fazia passeios pela
praia, o dia todo. Graças a Deus havia Michael para cuidar, senão não sei o que teria
acontecido. Nunca entendi o relacionamento dele com Elaine; ela vivia tendo ataques
histéricos, acusando-o de não ficar nunca em sua companhia, de não ser bom pai... Os
dois chegaram a se separar várias vezes. De qualquer forma, ele ficou muito abalado
com a morte da esposa. Desde então nunca mais chegou perto do piano.
— Mas agora ele está indo bem com o negócio de vinhos, não?
— Sim, os vinhos estão sendo um sucesso. Tudo o que o Sr. Jonah faz, faz bem-
feito, mas ele não me engana. Seu coração não está feliz. O que devia estar fazendo,
de verdade, era praticar piano e escrever suas sonatas. Quando o bom Deus nos dá um
talento, temos que desenvolvê-lo. Seja para cuidar de plantas, como Luke, ou para
fazer pão, como eu... De qualquer forma, não podemos desperdiçar nossos talentos.
Como que unindo o gesto à palavra, a mulher retornou ao trabalho, preparando
torradas, fritando ovos com bacon, misturando massa de panquecas. Raine a
observava, fascinada, mas seus pensamentos logo voaram para longe. A governanta
dissera que Jonah e a esposa tinham se separado algumas vezes. Naquela época em
que o conhecera, talvez? De acordo com o jornal que lera depois, Elaine estivera de
férias no México por um longo período. Quem sabe ela não teria ido embora após
alguma discussão, e Jonah se aproveitara da folga para conquistar aquela estudante
ingênua...
Nesse instante entrou na cozinha um senhor de cabelos brancos, com um chapéu
nas mãos, que lhe sorriu timidamente.
— Oh, Luke, esta é a srta... Esta é Raine. Sente-se também, o café está quase
pronto. Assim que eu tirar os pãezinhos do forno, vamos comer. De agora em diante
Raine vai nos acompanhar nas refeições. Não sei o que Crystal vai dizer disso, mas até
lá, será bem mais fácil para nós dois!
Vinte minutos depois Raine sentiu que tinha comido por três, de tão deliciosos
que estavam os pãezinhos, as panquecas, os ovos! Empurrou o prato com um suspiro de
satisfação.
— Tilda, você é um gênio da culinária! Esse foi o melhor café da manhã que já
comi em toda a minha vida. Não sei como temperou os ovos, mas estavam divinos!
A governanta sorriu, lisonjeada.
— Apenas salpiquei-os com um pouco de tomilho fresquinho, da horta de Luke. O
tempero é a alma da cozinha! No começo a gente estraga muitos pratos, mas, com o
tempo, vai sabendo escolhê-los.
— Tilda nasceu para cozinhar — disse Luke, sorrindo. — A família Duncat tem
muita sorte em dispor de uma governanta assim. Crystal jamais a elogiou, mas com
Jonah é diferente. Quando ele gosta de uma coisa elogia na hora, sem medo de que
Tilda lhe peça aumento de salário. E ele não é arrogante, nem nos trata com ares de
superioridade. Tenho certeza de que se dará bem no trabalho daqui, senhorita. Crystal
às vezes pode ser temperamental, mas isso é passageiro.
Raine tomou mais um gole de café, pela primeira vez sentindo-se à vontade
naquela casa.
— E o filho do Sr. Duncan, como é? Ainda não o conheci.
— Michael? Acho que não o verá muito — disse Tilda. — É um garoto triste, que
gosta de se isolar. Por isso não creio que vá atrapalhá-la nem um pouco no trabalho.
— Srta. Hunicutt? — falou Luke, pondo-se de pé.
— Sim?
— Se dispuser de uns quinze minutos antes de começar o trabalho, gostaria de
lhe mostrar o jardim. Sou orgulhoso de minhas rosas, e este ano elas estão enormes.
— Puxa, adoraria vê-las. Primeiro vou ajudar Tilda a lavar os pratos, depois...
— Nada disso, Raine, eu mesma lavo tudo. Luke, mostre-lhe a horta também. Não
há nada mais agradável do que o aroma dos temperos a essa hora da manhã, quando
ainda estão molhados do sereno.
Minutos depois Raine estava em meio a uma centena de roseiras, cada uma mais
exuberante que a outra. Deslumbrada, tocava-as delicadamente, enquanto o jardineiro,
cheio de si, ia lhe mostrando as diversas espécies. Era verdade o que Tilda lhe dissera,
Luke tinha nascido com talento para plantar.
— E esta vermelho-sangue, como se chama?
— Sete irmãs. É muito difícil de cultivá-la, é uma rosa enjoada, convencida...
Estas outras aqui, branquinhas, são do tipo Charlotte Armstrong. São mais simpáticas,
não dão trabalho.
Raine não pôde deixar de rir da maneira com que Luke se referia às flores, como
se elas fossem seres humanos.
A horta ficava atrás da casa, perto da cozinha. Todos os legumes eram plantados
em fileiras ordenadas, e às vezes ela precisava se abaixar para ver de que vegetal se
tratava, pois alguns só conhecia de supermercados. A um lado da horta estava o
canteiro das ervas, e, efetivamente, exalava aromas exóticos e diferentes.
— Aquilo ali, o que é?
— É o tomilho que a senhorita acabou de comer e apreciar; não conhecia?
— Luke, sou uma moça da cidade. Tomilho, só conhecia empacotado, no
supermercado!
— Aqui comemos tudo fresquinho, recém-colhido. É bem mais gostoso!
Dizendo isso, o jardineiro se curvou para colher uma cenourinha, lavou-a numa
torneira e entregou a Raine.
— Prove. Veja se não é melhor do que as que a senhorita come na cidade.
Enterrando os dentes na cenoura, Raine deliciou-se com seu sabor adocicado e
fresco. Fez que sim com um gesto de cabeça, devorando-a em dois bocados, e depois
seus olhos foram atraídos pelas vinhas que se estendiam pelos montes até o horizonte.
— Escute, Luke, o clima daqui não é úmido demais para uvas?
— Não neste vale, que é um dos cinturões de clima seco da Califórnia. As
montanhas da costa o protegem do vento forte e da neblina. Mesmo assim, só alguns
tipos de uva dão certo na região. A maioria dessas que você está vendo são riesling e
gewiirtztraminer, de origem alemã. Essas uvas dão um vinho branco excelente. — Luke
apontou para um moço moreno que estava lidando com uma videira a alguns metros dali.
— Aquele é José Ortega. Cuida dessa parte da vinha para Jonah e mora num
chalé perto da estrada com a esposa e os filhos. Fala inglês muito bem, apesar de ser
mexicano.
Naquele instante o homem se levantou, olhando na direção deles, e Raine acenou
alegremente, no que foi correspondida após um instante de hesitação. Um garotinho
corria por entre as vinhas, e a princípio ela pensou que fosse o mesmo que vira na
tarde anterior. Mas, à medida que o menino foi se aproximando, viu que era mais
moreninho, com olhos negros, vivos, e concluiu que devia ser um dos filhos de Ortega.
— Vejo que o pequeno Duncan tem amigos da mesma idade para brincar —
comentou. ,
— Michael quase não vê os filhos de Ortega. Crystal considera-os rudes para ele.
Antes que ela pudesse fazer mais perguntas, escutou ruído de passos no caminho
de pedras. Quando se virou, viu Crystal aproximando-se apressada. A moça examinou-a
de alto a baixo, de forma constrangedora, deu um sorriso gelado e disse ao jardineiro:
— Sei que você tem muito que fazer, Luke. Deixe que eu mesma mostre os
arredores à srta. Hunicutt.
O homem fez que sim com um gesto de cabeça e saiu em silêncio. Crystal
continuou, num tom cordial:
— Parece que Luke andou lhe mostrando o jardim. Por acaso ele lhe contou a
quantidade de prêmios que já ganhou com as rosas?
— Não me contou, mas compreendo perfeitamente por que ganhou esses prêmios
— respondeu Raine, de forma amistosa. — E a horta também é maravilhosa.
— Sim... embora às vezes eu ache mais prático ir até o supermercado comprar
alguma coisa. Entretanto, Luke é uma espécie de patrimônio da mansão Arlington, e
por isso desfruta de alguns privilégios. Venha, vou levá-la para o porão, onde os
caixotes estão depositados. Sei que está ansiosa para começar.
Caminharam em silêncio de volta a casa, mas, pouco antes de alcançarem o pátio
de pedra que havia nos fundos, Crystal se deteve e encarou a visitante, dizendo com
frieza:
— Espero que você não pense que está no mesmo... na mesma categoria que os
empregados domésticos, Raine. Tilda me contou que você insiste em comer na cozinha.
Imagino que ela andou reclamando por subir as escadas e posso compreender que, num
impulso de generosidade, você tenha se oferecido para comer com eles. Mas os
Cummings estão aqui para nos servir, lembre-se disso.
Raine mordeu os lábios para não dar uma resposta sarcástica, e, com todo o
cuidado, retrucou:
— É que não estou acostumada a comer sozinha, e gosto da companhia de Tilda e
do marido. Devo conversar a respeito com o Sr. Duncan quando ele voltar de viagem?
— Absolutamente. Por mim não tem importância.
Minutos depois as duas entravam num enorme porão de teto baixo, onde estavam
guardadas pilhas e pilhas de caixotes de madeira. Raine esperava uma grande coleção
de livros, mas se assustou com o número de volumes. Crystal soltou uma risada
simpática, comentando:
— Terrível, não é? Papai era um amontoador de livros, não podia passar sem
comprar tudo o que via... De vez em quando ele esvaziava algumas estantes da
biblioteca, enchia caixotes e enviava-os para um depósito da cidade. Tenho certeza de
que aí há muitas relíquias valiosas, mas a maioria deve ser lixo.
— Bem, logo descobriremos. E você, também coleciona livros?
— Deus do céu, longe de mim! Gosto de ler, mas, quando termino um livro, acabou.
Jogo-o fora ou dou de presente.
Para Raine, criada numa família de "livromaníacos", a simples idéia de jogar um
livro fora só porque já tinha sido lido era inconcebível, mas era melhor guardar essa
opinião para si mesma...
— Onde posso encontrar ferramentas para abrir esses caixotes? Também vou
precisar de um fichário, lápis preto e vermelho, um caderno, e outras coisas. Ah, um
par de luvas de borracha também, para proteger as mãos das farpas de madeira.
— Há várias ferramentas na casinha de samambaias, ao lado da horta. E o que
precisar de artigos de papelaria deve estar ali — disse Crystal, apontando para um
armário de aço perto da porta. — Qualquer outra coisa que necessitar, fale com Luke.
Até mais tarde.
— Até logo, e... obrigada pela ajuda!
Crystal, que já estava saindo, não se virou para sorrir ou comentar algo. Raine
viu-a desaparecer pelo corredor enquanto tentava formar uma impressão sobre aquela
estranha criatura. Sem dúvida, era uma pessoa complicada; passava da cordialidade à
frieza em questão de segundos. Por que não desejava que ela fizesse as refeições na
cozinha? Talvez para ela não conversar com os Cummings? Percebendo que não
encontraria resposta às suas indagações, Raine tratou de ir para a casinha das plantas
buscar as ferramentas.
Mais tarde, esforçando-se para abrir o primeiro caixote, perguntava-se sobre o
tipo de livros que encontraria durante as próximas semanas. Lixo, ou talvez algo único
e precioso? Afinal de contas, ali devia ter de tudo, até uma coleção de Incabula, livros
raros editados antes de 1501. Ou, quem sabe, uma preciosidade como a primeira
edição de Ventures into Verse, de H. L. Mencken.
Riu consigo mesma, pois estava sonhando alto demais. A maioria dos volumes
devia ser, como Crystal dissera, puro lixo. Colecionar livros era uma arte, e um
“amontoador de livros” , como ela descrevera o pai, dificilmente teria o know-how e a
experiência para julgar os livros que algum dia seriam valiosos. Afinal, primeiras
edições saem às dúzias todos os anos, e precisava-se de sorte e de um instinto
especial para saber distinguir entre livros bons e ruins.
De qualquer forma, ali havia material para ela se divertir por várias semanas.
Qualquer colecionador de livros ficaria encantado ante as possibilidades que aquela
verdadeira caça ao tesouro oferecia.
Meia hora depois, fez uma pausa para descansar as costas, pois já
desencaixotara vários livros. Tinha poucas razões para estar otimista em relação ao
conjunto. Até agora só encontrara obras infantis, todas da década de vinte, a maioria
de autores dos quais nunca ouvira falar, algumas enciclopédias da virada do século e
pelo menos vinte volumes de receitas, de obscuros editores regionais. Só alguns
westerns de Zane Grey, publicados antes de ele se tornar famoso, podiam ter algum
valor.
Olhou para a pilha de volumes e, desanimada, resolveu organizar um sistema de
eliminação por qualidade, de forma a livrar-se do peso morto o mais rápido possível.
Pegou o fichário e começou a listar os livros encontrados, pondo ao lado de cada um
seu possível valor. Depois, quando tivesse tudo anotado e mais ou menos avaliado, faria
uma lista detalhada dos livros valiosos ou interessantes para um colecionador.
Estava tentando decidir em quais categorias deveria dividir os livros quando
ouviu um barulho atrás de si. Ao se virar, viu Michael Duncan à porta, fitando-a com
interesse. Por um instante pensou que o garoto fosse fugir, mas desta vez ele ficou
firme, sem nada dizer.
— Olá! Veio ver o que estou fazendo?
O menino não respondeu, limitando-se a encará-la. Resolveu arriscar de novo:
— Meu nome é Raine. Você é o Michael?
Ainda em silêncio, o garoto entrou no porão e fechou a porta. Com um rápido
gesto das mãos, bateu com os indicadores nos dois ouvidos, sacudindo a cabeça de um
lado para o outro.
Raine prendeu a respiração, surpresa com a notícia. Michael Duncan era surdo...
Por que, dos Cummings até o Sr. Partridge, ninguém a avisara? Pensariam que ela já o
soubesse... ou, como a música, talvez aquele fosse um assunto proibido?
O garoto a observava de perto, atento à sua reação. Procurando não demonstrar
pena, Raine fez que sim com a cabeça, sorrindo, e ficou contente ao vê-lo relaxar e
sorrir timidamente. Num impulso para se comunicar com aquela criaturinha adorável,
ela pegou um lápis, um bloquinho de notas e escreveu:
"Você é Michael? Meu nome é Raine. Estou aqui para colocar em ordem os livros
de seu avô".
Ele pegou o recado, leu-o com atenção e depois, tomando a caneta, escreveu, com
letrinha redonda e grande: "Sou Michael. Você é muito bonita".
Raine imediatamente corou, enquanto o garoto pareceu mais à vontade para
escrever: "Posso ajudá-la?"
Resistindo à vontade de abraçá-lo, pois poderia assustá-lo, concordou balançando
a cabeça e mostrou-lhe que já tinha empilhado os livros por categorias, conforme o
assunto. A seguir os dois montaram um sistema bem eficiente: ela anotava o nome do
livro no fichário, verificava o assunto e depois apontava a pilha para onde ele deveria
ir. Michael, então, pegava o volume e o colocava no monte indicado.
A mente de Raine divagava dos livros para o garoto. Desde pequenina fora criada
escutando música. Como seria viver num mundo de silêncio, sem melodia para acalentar
a alma, sem o som da voz humana, sem o latido de um cãozinho, o murmúrio dos
ventos? Para ela, tendo a música como ponto de partida de sua vida, ser surdo era pior
do que ser cego...
Michael seria surdo-mudo de nascença, ou aquilo fora conseqüência do acidente
que lhe tirara a mãe? Se fosse assim, não era à toa que Jonah se retirara da vida
artística para se dedicar ao filho. Entretanto, considerando a maneira cruel com que
Jonah a tratara, por que ela acreditava que o pianista seria capaz de desistir da
carreira por amor ao filho? Estaria caindo numa armadilha ao imaginá-lo um homem
íntegro, de caráter, pelo menos em relação àquele garoto?
Bem, estava deixando a imaginação correr solta demais. Afinal, nem sabia se o
mal que afligia o menino era devido ao acidente.
Absorta, Raine nem percebeu a presença de uma terceira pessoa no porão. De
repente, estremeceu ao dar com os olhos perscrutadores e incisivos de Crystal
Arlington.
— Sinto muito se Michael a esteve aborrecendo, srta. Hunicutt. Farei o possível
para que ele fique fora de seu caminho de agora em diante.
— Ele não me atrapalha em nada! Na verdade, fico até contente em tê-lo por
perto. Está me ajudando bastante.
Crystal fez de conta que não a escutou. Com uma série de movimentos rápidos,
comunicou-se com a criança e, pela resposta agitada de Michael, Raine concluiu que o
menino estava protestando, mas, quando a tia lhe lançou um olhar severo, ele deixou o
livro que segurava cair no chão e, cabisbaixo, saiu do porão sem olhar para trás.
— Eu gostaria de saber usar essa linguagem de sinais.
— É difícil de aprender, srta. Hunicutt, e não creio que lhe seria útil, dado o
pouco tempo que ficará aqui. — O olhar de Crystal era enigmático, indecifrável. —
Michael não pode receber muito estímulo de estranhos. Seria melhor que o
desencorajasse das próximas vezes que ele vier aqui.
Antes que Raine pudesse responder que gostava da companhia do garoto, a
anfitriã lhe virava as costas e saía. Desconcertada, voltou para o trabalho, procurando
se desligar das perguntas que a atormentavam no fundo da mente. Mais tarde poderia
pensar nelas com calma.
Ao meio-dia fez uma pausa para almoçar frango com salada, que Tilda lhe trouxe
numa bandeja de prata. Em seguida voltou aos caixotes, na esperança de encontrar
algum tesouro escondido dentro de algum deles.
Sentiu-se recompensada duas horas depois, quando encontrou a primeira edição
de The Ressurrection, de John Gardner. Folheou-o com avidez, constatando que
estava em ótimo estado de conservação. Marcou o título na lista e depois colocou o
livro num caixote até então vazio, onde se lia: “Livros importantes”.
Ao retomar o trabalho, ficou encantada quando achou uma edição de Catcher in
the Rye, de Salinger.
— Dois coelhos de uma cajadada só! — disse alto, eufórica.
Marcado o volume na lista, colocou-o reverentemente ao lado do romance de John
Gardner. Voltou para o caixote, animada, mas dali em diante só encontrou primeiras
edições de obscuros escritores da década de quarenta.
Pegou a escadinha que estava utilizando e subiu até o topo de outra pilha de
caixotes que havia a um canto do porão. Por causa da má iluminação daquele ponto, e
também porque o teto estava muito próximo, não conseguiu ler o título do primeiro
livro. Exasperada, sussurrou, entre dentes:
— Droga!
Foi então que uma voz profunda, vinda diretamente do passado, lhe provocou um
choque pelo corpo inteiro.
— Isso é modo de uma mocinha falar?
Capítulo Sete
Ao ver Jonah sorrindo da porta, foi como se de repente o tempo tivesse voltado
três anos. E Raine teve de admitir que ainda era muito suscetível àquele homem.
A luz do corredor caía-lhe obliquamente sobre o rosto, realçando seu nariz e
escondendo os olhos. Ela sentiu o coração bater acelerado ao examinar a boca sensual,
o lábio superior firme, reto, e o inferior macio, mais cheio, que já a tinham acariciado
tanto... E as mãos belas, fortes, capazes de levá-la ao mais alto grau de prazer, e que
haviam lhe despertado a sensualidade...
Ali, no alto da escadinha de ferro, ela sentiu um desejo imenso de correr e
atirar-se naqueles braços fortes, esquecida de todo o sofrimento, de toda a angústia
que passara durante três longos anos. Mas não iria jamais ceder à fraqueza! As
cicatrizes que o pianista lhe deixara na alma ainda eram dolorosas, não podia se
esquecer de que ele seria capaz de destruí-la. Precisava ser forte o bastante para se
afastar daquela atração insuportável, que a envergonhava e a deixava temerosa de
sofrer mais desilusão, mais dor...
— Sou Jonah Duncan. Espero não tê-la assustado.
A voz, grave e profunda, era a mesma de quando o conhecera. Ele entrou no porão
com movimentos graciosos e precisos, observando os livros que tinham sido
desempacotados e empilhados. Seus olhos se detiveram no caixote que estava escrito
"Livros importantes".
— Fiquei surpreso quando Arnold Partridge me falou que tinha contratado uma
mulher para catalogar a coleção de meu sogro. Se está tendo dificuldades em abrir os
caixotes, posso lhe conseguir ajuda. Deve estar se sentindo exausta, srta... Hunicutt,
se não me engano?
— Sim, Raine Hunicutt. E prefiro desempacotar os livros eu mesma, não se
incomode.
Ficou surpresa com a calma e segurança de sua voz: não precisava sentir medo!
Ele jamais a reconheceria, não havia perigo. Trabalharia ali todos os dias, cumpriria
sua missão da melhor maneira possível, e depois iria embora para sempre.
Jonah foi andando em sua direção, e de repente tropeçou em alguns livros.
— Cuidado! Aqui mais parece uma corrida de obstáculos, não é? Estive
desencaixotando os livros e separando-os por categoria, por isso está essa confusão...
Sem responder, o pianista continuou se aproximando, até se postar diretamente
em frente à escadinha de ferro. Antes que ela pudesse se mover ou dizer alguma
coisa, foi segura pela cintura e transportada com firmeza para o chão. Em silêncio, ele
lhe segurou o rosto entre as mãos, fitando-a nos olhos. Imobilizada, com o coração
disparado, as pernas trêmulas, Raine se sentia indefesa e sem ação.
Gentilmente, ele a beijou, os lábios macios deixando-a em chamas, envolvendo-a
num fogo que há muito não sentia... Com a respiração entrecortada e ofegante, sentiu
as mãos fortes que a apertavam contra o corpo másculo, cada vez mais, até que o
beijo, que começara leve, transformou-se num movimento sensual e quente contra sua
boca.
Ela sabia que devia se soltar, mostrar-se ofendida, mas estava sendo traída por
seu próprio corpo. O coração lhe batia selvagemente, o sangue corria com força nas
veias, e o beijo se prolongava numa espiral ascendente, rumando ao infinito...
Não! Aquilo não podia estar acontecendo! Como aquele homem era arrogante, vil,
seguro de seu sucesso com as mulheres! Primeiro fingia se preocupar, oferecendo-lhe
ajuda para o trabalho; depois, simulava ajudá-la a descer da escada, só para poder
abraçá-la e beijá-la daquela maneira!
Pois bem, daquela vez ela não seria presa fácil de seus instintos. Era ela quem
ditaria as regras, e ser beijada pelo homem que a traíra não fazia parte desse jogo.
Empurrou-o violentamente, mas só conseguiu desgrudar a boca da dele, presa na
armadilha de seus braços.
— Tire as mãos de mim, por favor, Sr. Duncan — disse num tom gélido. — Não sei
como lhe ocorreu que eu aceitaria essa demonstração de machismo, mas isso não faz
parte do nosso contrato. Estou aqui para realizar um trabalho!
Os braços fortes a soltaram de imediato. Raine caminhou pela sala, seguida de
perto pelo pianista. À luz que vinha do corredor ele a fitou bem de perto, deixando-a
nervosa e insegura.
— Compreendo. Quer dizer que vamos fazer um joguinho, é isso?
— Não sei do que está falando, Sr. Duncan. Por alguma razão pensa que eu devia
estar exultante por ter tido a honra de ser beijada pelo senhor. Pois quero lhe deixar
claro, não estou! Agora, deixe-me voltar ao trabalho.
— Você não era tão esquiva quando nos conhecemos.
Raine sentiu o sangue gelar nas veias, os nervos lhe aflorarem à pele. Não, não
podia ter escutado corretamente! A muito custo, recuperou a voz:
— C-como assim?
— Você pode mudar a cor dos cabelos, mas não pode mudar outras coisas... —
Percorreu-a com os olhos, devagar, de alto a baixo, detendo-se nos seios que arfavam,
nos lábios trêmulos. — Então que loucura é essa, Carmen?
— Não me chame assim. Meu nome é Raine!
— Raine ou Carmen, você é a mesma garota com quem fiz amor em Nova York.
— Ora, estou surpresa por lembrar-se de mim.
— Você é difícil de se esquecer.
— Mesmo? Pena que eu não possa dizer o mesmo de você...
— Talvez eu lhe deva uma explicação sobre o bilhete que mandei.
— Bilhete? Que bilhete?
— Eu lhe enviei flores e um bilhete.
— Verdade? Bem, faz muito tempo... Mas eu me lembro de uma pulseira. Serviu
para pagar meu aluguel por alguns meses. Talvez deva agradecer pelo presente, que me
ajudou a esquecer meu desapontamento.
— Escute, Carmen, eu...
— Quando tivemos nossa pequena aventura eu esperava ganhar o apadrinhamento
de um famoso pianista, e foi por isso que resolvi corresponder às suas... fantasias.
Quando se começa a carreira de concertista, é importante ter o apoio de alguém,
como você mesmo disse naquela noite.
— Então me parece que não lhe devo desculpa alguma — disse ele contendo a
raiva. — Já que não a apadrinhei, penso que... não, por Deus! Aquela foi sua primeira
vez! Não tem sentido...
— Mas não foi difícil para mim enganá-lo, principalmente porque você se julga
irresistível. Fizemos uma ótima barganha: você teve uma noite de diversão, pensando
que havia seduzido uma virgem, e eu ganhei uma pulseira cara. Minha colega de quarto
riu a valer quando lhe contei que você caíra na minha história como um patinho... Ah,
sim, eu tinha brigado com meu namorado antes de você me atropelar na estrada, mas
no dia seguinte nós reatamos.
Jonah cerrou os dentes com força, demonstrando claramente que usava todo o
seu autocontrole para não explodir. Seus punhos estavam fechados, as narinas,
dilatadas.
— Se você não passa de uma oportunista, o que está fazendo aqui, trabalhando
honestamente? O que espera lucrar com esse emprego? Se pensava em me
chantagear, chegou atrasada. Agora sou viúvo, e faz tempo que me retirei da vida
pública. Portanto ninguém ligaria a mínima para a notícia de que passei uma noite me
divertindo com uma vagabunda. O que quer que esteja tramando, desista.
Raine corou ante o desprezo e a raiva que havia naquelas palavras, mas continuou
a encará-lo com toda a firmeza.
— Vim para cá por uma única razão: assumir um emprego para o qual sou
qualificada.
— Como catalogadora de livros? Essa é boa! De que forma conseguiu enganar o
Sr. Partridge? Não diga que usou seus truques sexuais para seduzir o pobre homem!
— Conheço o Sr. Partridge há muito tempo. Ele era amigo de papai, que possuía
uma loja de livros antigos. Desde criança eu costumava trabalhar lá durante as férias.
Sou perfeitamente qualificada para este emprego.
— E por que prefere se aborrecer com livros quando tem outros trunfos que lhe
trariam muito mais dinheiro, e dinheiro fácil? — perguntou ele, olhando-a
insultuosamente dos pés à cabeça.
Esforçando-se para controlar a vontade de esbofetear seu rosto sorridente,
Raine lhe lançou um olhar desdenhoso.
— Só uso meus... trunfos, quando o preço é bom. E este emprego é bastante
lucrativo, além de me dar oportunidade para fazer algo de que gosto. Não posso dizer
o mesmo das... outras coisas. Agora, se me dá licença...
— Não, não dou! Quero-a fora da minha casa, já! Arrume as malas e dê o fora.
Posso até lhe pagar a gasolina de volta, se quiser...
Raine engoliu em seco, enquanto pensamentos desesperados lhe atravessavam a
mente. Na ânsia de salvar o orgulho, fora longe demais. Sua situação financeira
continuava a mesma, precisava de qualquer maneira daquele emprego. Se voltasse para
San Francisco, Martin se recusaria a receber o dinheiro do seguro do pai. Além do
mais, ela não era culpada da situação: aceitara o emprego de boa fé. Jonah não tinha o
direito de despedi-la...
— Estarei pronta para partir, depois de receber a quantia estabelecida no
contrato.
— O quê? Por que deveria lhe pagar por um trabalho que não foi executado?
— Porque estou disposta a ficar e terminar a catalogação. Não posso sair
prejudicada só porque o meu patrão de repente mudou de idéia. Por isso, faça a
gentileza de preencher um cheque enquanto...
— Nem morto!
— Então sugiro que me deixe voltar ao trabalho.
— Há uma cláusula no contrato que me permite despedi-la caso seu trabalho seja
insatisfatório.
— Acha que ele está sendo insatisfatório? Como pode constatar, estive
trabalhando duro durante as últimas oito horas. Portanto não há motivo para me
despedir. Ou quer que eu me dirija ao Sr. Partridge e reclame que fui mandada embora
porque... porque sou mulher? O Sr. Partridge é um homem justo, que acredita em
igualdade de direitos e, além disso, é um advogado excepcional. O contrato que ele
redigiu protege a ambos. Se quiser me mandar embora sem justa causa, pode me
mandar. Mas não se iluda, pretendo processá-lo por quebra de contrato!
— Então é isso! Já que chantagem não funciona, encontrou outro meio de me
prensar contra a parede. Você tem uma mente diabólica! Pois bem, se quer pôr as mãos
nesse dinheiro, terá de merecê-lo centavo por centavo. Valerá a pena observá-la
trabalhando honestamente para recebê-lo. Pretendo vir aqui todos os dias verificar o
andamento do serviço, e, se você esmorecer, vai para o olho da rua. Aceita assim?
— Aceito! Vim para fazer um bom trabalho, por isso ficarei.
— Há ainda algumas regrinhas a seguir: não quero que você contamine minha
cunhada, que é uma pessoa ingênua, sem idéias cínicas como as suas. Fique longe dela, e
de meu filho também. Soube que o garoto passou a manhã ajudando-a. Eu o proibirei
de voltar ao porão de agora em diante, e espero que você acate minha ordem.
— Não pretendo corromper sua cunhada, nem seu filho.
— Pretendo vigiá-la de perto, srta. Hunicutt. Um passo fora da linha, e será
despedida no mesmo instante, pois o contrato ficará invalidado. Crystal me contou que
você prefere comer com os Cummings. Já que eles não têm obrigação nenhuma de
suportar sua companhia, espero que apareça na sala de jantar todas as noites, vestida
apropriadamente. Tem coisas melhores do que jeans para usar, não tem?
— Claro que tenho! Mas prefiro jantar com Tilda e Luke.
— Faça como eu mando, ou terá de ir embora!
— Muito bem. Só não como no quarto porque Tilda já tem trabalho demais para
fazer.
Jonah não respondeu, nem se moveu. De repente, agarrou-a pelos punhos,
prendendo-os com força, enquanto lhe tomava a boca possessivamente. Por mais que se
debatesse, Raine não tinha escapatória, pois ele era muito mais forte. Com as costas
esmagadas contra a pilha de caixotes, foi obrigada a se submeter ao beijo. Seu corpo
inteiro se aqueceu, e uma onda de desejo a invadiu.
"Oh, Deus, por que o único homem que desejo tem de ser Jonah Duncan?",
perguntava a si mesma, desesperada.
Descobriu que estava trêmula, com a pele em fogo, o coração disparado, mas seu
cérebro ainda a impulsionava a resistir.
Ignorando seus esforços, Jonah continuou a beijá-la selvagemente, a língua
invadindo sua boca macia e esquiva, provocando-a, até deixá-la sem fôlego. Soltando-
lhe os punhos delicados, começou a acariciá-la nos cabelos, nas costas, nos ombros.
Só quando ela sentiu as mãos fortes se apossarem de seus seios conseguiu
recuperar consciência suficiente para fugir, e recuou com tanta rapidez que quase
caiu sobre os caixotes.
— Quer dizer que nem tudo foi falso e premeditado, Carmen — disse ele, com os
olhos brilhantes de satisfação. — Você pode ser oportunista, vagabunda, mas tem os
instintos normais de uma mulher. Pensando bem, talvez seja recompensador tê-la
dentro de casa nas próximas semanas...
— Não ouse me tocar novamente! Se tentar fazê-lo, eu...
— Você o quê?
— Eu o levo à corte por estupro! Não estamos mais na Idade Média, temos
proteção legal contra homens da sua espécie!
— Verdade? E você será capaz de dizer que não me desejou, que honestamente
quis fugir de mim?
Raine corou, com raiva de si mesma, mas não teve coragem de mentir, e viu-o
sorrir com desprezo.
— Mas não se incomode, Carmen. Não gosto de artigos de segunda. Isto é, se não
me provocar.
— Não me chame de Carmen!
— Por que não? É o nome mais apropriado, mesmo que você tenha mudado a cor
dos cabelos. Daquela vez eu a chamei assim sem saber que você era uma mulher
venenosa, mas nunca é tarde para se descobrir às coisas... Continuarei a chamá-la do
mesmo modo.
Dito isso, virou as costas e saiu, deixando-a só e terrivelmente derrotada. Ela
sentiu uma vontade louca de gritar, de correr atrás daquele homem, num impulso tão
alheio à sua natureza normalmente cordata que pensou estar ficando louca.
— Outra coisa — disse Jonah, reaparecendo à porta. — Não vai poder tocar piano
nem falar de música nesta casa, senão será mandada embora. E isto está no contrato,
Carmen.
Capítulo Oito
Durante o resto daquela noite infindável, Raine tentou analisar suas emoções de
maneira racional. Enquanto permanecesse naquela casa, corria o sério risco de perder
o autocontrole e cair nas malhas de Jonah como um peixinho indefeso, para nunca mais
escapar.
Aquilo não podia ser amor. Tinha certeza. O amor pressupõe compromisso, um
pacto que envolve ternura, um compartilhar de experiências e de personalidades. O
que sentia em relação a Jonah era doentio, agressivo. Os dois tinham uma forte
atração um pelo outro, só isso. E ela não podia sucumbir jamais à própria fraqueza, do
contrário estaria perdida para sempre...
E se fosse embora da mansão Arlington? Suspirou fundo, compreendendo que
estava sendo vítima da armadilha que ela mesma montara. É claro que podia fazer as
malas e desaparecer, mas isso custaria caro a três pessoas que amava muito e às quais
devia uma obrigação. Por outro lado, se mentisse a Martin, dizendo que já concluíra o
trabalho e que recebera dinheiro suficiente para sustentá-la até o concurso, ele
desconfiaria, pois nem o mais experiente catalogador de livros daria cabo de uma
coleção antiga em três dias. Não, precisava pensar em outra saída... Quem sabe, não
seria uma solução ficar em alguma pensão por duas ou três semanas, depois voltar a
San Francisco e arrumar um emprego escondido?
A idéia era boa, mas na prática não funcionava: o dinheiro de que dispunha jamais
permitiria essa extravagância. Além disso Martin poderia a qualquer momento ligar
para a mansão Arlington, ou mesmo aparecer com Glória e a filhinha em Mendocino
num fim de semana em que tivesse folga... Se ele a surpreendesse mentindo, seus
planos iriam por água abaixo. Teimoso como seu irmão era, nunca aceitaria o dinheiro
do seguro, e então voltava tudo à estaca zero.
É... não havia escolha. Teria que ir até o fim, qualquer que fosse o sacrifício que
isso custasse. Depois do que aconteceu na cozinha, Jonah a trataria com desprezo, ou
pior, com indiferença! Restava-lhe ficar longe dele o máximo possível, retornando ao
quarto tão pronto o jantar terminasse, e passar todas as horas disponíveis
trabalhando, para tentar cumprir o contrato na metade do tempo planejado.
Mas faria alguns intervalos, durante os quais ocuparia a mente praticando piano.
Afinal, agachar-se e levantar-se o tempo todo era uma atividade extenuante, que não
suportaria por mais de oito horas diárias. Uma vez que Jonah e Crystal passavam o dia
inteiro fora, nunca ficariam sabendo se ela treinasse duas horas em Mendocino com
um piano alugado.
Havia outra coisa que queria fazer: na primeira oportunidade iria à biblioteca
pública da cidade, retirar um livro sobre linguagem de sinais, para começar a se
comunicar melhor com Michael...
Mais tranqüila depois de tomar essas decisões, Raine conseguiu finalmente
dormir, e no dia seguinte acordou cedinho, antes do despertador tocar. Foi até a
janela para fechá-la, pois a brisa da manhã estava bastante fria, e deteve-se,
admirando a paisagem imersa na bruma úmida que envolvia os montes cinzentos e as
árvores.
Ao contemplar a horta, um movimento na neblina lhe chamou a atenção. Apertou
os olhos para enxergar melhor a silhueta alta que atravessou os jardins em direção à
porteira dos fundos.
Seria Luke, acordando cedo para algum trabalho? Não, o jardineiro era bem mais
baixo que aquele homem. Devia ser Jonah, naturalmente. Com a boca Seca, o coração
acelerado, viu-o abrir a porteira e sair. Estaria indo para a praia praticar cooper? Ou,
quem sabe, iria nadar, apesar do frio?
Encolhendo os ombros, Raine virou-se para o quarto e resolveu fazer a cama
antes de se vestir. Escolheu um jeans e camisa xadrez de lã, e pouco depois desceu
para a cozinha.
Tilda ainda não se levantara e só apareceu depois de ela ter feito o café.
Enquanto tomava o desjejum, explicou à mulher que preferia continuar a jantar na
companhia deles, mas infelizmente Jonah exigira sua presença na sala de jantar todas
as noites. A empregada fez que sim com um gesto de cabeça, acrescentando:
— Eu suspeitava que Jonah mudaria as instruções de Crystal assim que chegasse,
mas achei melhor ficar calada.
Mais tarde, quando estava no porão cuidando de um novo caixote de livros, Raine
escutou o ruído do carro em que Crystal e Jonah saíram para a fábrica de vinhos. Sua
vista se turvou por um momento, mas piscou com força para afastar aquela súbita
depressão. Que diferença fazia se ele estava em casa ou em qualquer outro lugar?
Anotou o livro que tinha nas mãos, uma pequena edição de poemas financiada pelo
próprio autor, e colocou-a na pilha destinada a ser jogada fora posteriormente. Sentiu
uma pontada de dor por aquele escritor obscuro que, nos meados do século, escrevera
poesias cheio de esperanças, mas que agora se perdera no tempo e nunca mais ninguém
falara em seu nome. Como alguém dissera um dia, tanto um poema ruim quanto um bom
exigiam trabalho para serem escritos. Aquele moço não fora reconhecido para a
posteridade, no entanto, quem podia garantir que seus versos eram medíocres?
Num impulso, Raine voltou a tirar o livro da pilha, guardando-o para ler mais
tarde. Por mais sentimentalista que pudesse parecer, faria essa homenagem póstuma
àquele jovem poeta anônimo.
Mal acabava de guardar a brochura, quando bateram de leve à porta. Era Michael,
que sorriu com timidez, sem saber se seria bem-vindo ou não. Raine hesitou,
lembrando-se dos avisos de Jonah para não estimular a amizade do garoto, mas depois
se zangou consigo mesma e convidou-o a entrar. Mandá-lo embora sem uma razão seria
muito mais perturbador para o menino do que lhe permitir ficar. Além do mais, com a
ajuda dele conseguiria ir mais rápido no trabalho.
Durante a hora seguinte os dois se ocuparam com, alguns caixotes, e às vezes ela
nem precisava apontar para a pilha certa que Michael ia direto lá, como se lesse sua
mente. Na certa ele estava acostumado a interpretar a expressão das pessoas.
Vivamente impressionada, Raine sorria com carinho para ele, demonstrando que ficava
contente em tê-lo como companhia.
Ao percebê-lo interessado por um livro de caricaturas e charges políticas,
sentou-se ao seu lado num caixote e começou a folhear as páginas. Apontou para um
desenho grotesco e hilariante, e na mesma hora o garoto soltou uma risada gostosa,
que ecoou pelas paredes e lhe encheu os ouvidos.
“Se ele consegue emitir esses sons, por que não fala?”, pensou, intrigada.
Precisava com urgência aprender algo sobre a surdez! Assim que fosse a Mendocino,
repararia essa lacuna na biblioteca.
À hora do almoço, quando desceu com as refeições, Tilda exultou ao ver a
expressão animada de Michael.
— Esse menino se desinibiu bastante desde que você chegou, Raine. Sabe de uma
coisa, acho que exageram com essa história de não perturbá-lo. “Calma!” Isso não é
natural para um garoto dessa idade! Esses médicos não são sabe-tudo!
— Ainda há pouco ele riu alto com tanta vontade que... Bem, se não o conhecesse
eu era capaz de pensar que até consegue escutar um pouco.
— Não sei... Crystal o leva ao médico uma vez por mês, mas nunca foi
diagnosticada nenhuma melhora. No começo diziam que a surdez não seria permanente.
A verdade é que faz dois anos que ele está na mesma.
— Entendo.
Tilda serviu limonada gelada em dois copos grandes, depois arrumou os talheres
para a salada enquanto dizia:
— Ele não articulou uma só palavra desde o acidente, e aparentemente não há
nenhuma razão para isso, salvo o choque emocional. Logo nos primeiros meses os
médicos tentaram todos os meios para fazê-lo falar. O garoto acabou ficando tão
nervoso que acharam melhor não forçá-lo. Agora, mesmo recuperando a audição, ele
será obrigado a aprender os sons.
Raine olhou para Michael, que, absorto, folheava um livro infantil cheio de
ilustrações coloridas.
— Eu gostaria de saber o alfabeto dos surdos-mudos.
— Não é muito difícil, Raine. Eu e Luke aprendemos com o professor do garoto.
— Vocês foram muito atenciosos.
— Atenciosos? Ora, não fizemos mais do que a obrigação. Conhecemos o guri
desde que nasceu, gostamos muito dele. Se você está mesmo interessada em aprender
sinais, tenho certeza de que o reverendo Turlock a ajudará. Por que não conversa com
ele depois do almoço, quando vier para dar aula?
— Seria ótimo!
— Mas quero avisá-la de uma coisa! Crystal não aprovará seu procedimento; é
capaz até de se zangar. Ela não quer que o garoto se comunique muito com as pessoas.
Teme que ele fique “perturbado”, como costuma dizer. Assim, se você aprender o
alfabeto, trate de guardar segredo. Michael não contará nada; ele é especialmente
calado com a tia.
— Não compreendo por quê...
— Nem precisa compreender. Apenas pense no que eu disse — cortou Tilda
bruscamente, saindo logo em seguida.
Raine encolheu os ombros, resignada. Iria acatar o conselho da governanta e
calar-se sobre o aprendizado do alfabeto.
Antes de se sentar à mesinha improvisada, feita de caixotes, pegou o bloco e
escreveu um recado para o garoto:
“Gostaria de conhecer seu professor”.
“Está bem. Ele é muito legal”, respondeu Michael com sua letrinha redonda. “Vai
chegar daqui a pouco.”
Ela fez que sim com um gesto de cabeça. Depois de ambos lavarem as mãos,
sentaram-se para comer. Os sanduíches e a salada estavam apetitosos, e um sorria
para o outro em mútuo entendimento. Após levarem os pratos vazios para a cozinha,
Michael a conduziu até uma saleta forrada de livros que ficava no térreo, perto do hall
de entrada.
Um homem estava de pé ao lado de uma estante, e virou-se ao ouvi-los chegar.
Raine esperava ver um velho, ou pelo menos um senhor de meia-idade, mas o reverendo
Turlock, para sua surpresa, era vários anos mais jovem do que Jonah.
Alto, de cabelos loiros, olhos cinzentos, ele tinha um rosto mais agradável que
bonito. Quando afagou a cabeça de Michael, sorrindo para ambos, Raine lembrou-se de
algo que o pai sempre lhe dizia: “Cuidado com as pessoas cujo sorriso não se espalha
pelo rosto”. Bem, estava diante de um exemplo oposto: quando o reverendo sorria,
seus olhos brilhavam junto.
— Então Michael tem uma nova amiga — comentou ele, com voz de tenor,
melodiosa e profunda.
Depois de apresentar-se, Raine revelou seu desejo de aprender o alfabeto dos
surdos-mudos.
— O senhor teria tempo para me ensinar, reverendo? Evidentemente estou
disposta ao que for necessário.
— Por favor, chame-me de Tim. “Reverendo” me faz sentir como um velhinho de
barbas brancas. Ficarei contente em ensiná-la, mas não lhe cobrarei nada. Será um
prazer ver Michael comunicando-se com alguém diferente. Não é difícil aprender os
sinais; o mais complicado é aplicá-los nas diferentes nuances, e isso vem com o tempo.
Todo mundo deveria aprender a linguagem dos surdos-mudos, pois há tanta gente
marginalizada por causa disso! Ninguém se importa em estudá-la, exceto quando tem
alguma pessoa próxima que seja deficiente.
— E quando começaremos, rev... digo, Tim?
— Hoje posso lhe dar uma carteia com as posições básicas, para você estudar.
Não costumo vir às quartas-feiras, mas poderíamos começar depois de amanhã à
tarde, pode ser?
— Está ótimo! E, já que não quer pagamento, talvez eu possa contribuir com...
bem, há fundos para a sua igreja?
— Oh, sim, minha igreja, que é bastante pequena, vive de donativos. Você está
convidada a nos visitar no domingo para ver como trabalhamos.
O reverendo lhe contou sobre as inovações que introduzira desde que chegara
àquela paróquia, e depois lhe fez perguntas sobre seu trabalho. Durante alguns
minutos bateram um papo agradável sobre livros e raridades, e em seguida, com a
carteia de alfabeto surdo-mudo nas mãos, Raine os deixou para voltar ao serviço.
O porão lhe pareceu vazio e sem vida quando entrou, fazendo-a censurar-se no
mesmo instante. Afinal, não podia permitir que Michael se tornasse importante demais
em sua vida, nem ela na dele. Fariam amizade, mas era prudente ser comedida, não só
em benefício dele, como também no de si mesma.
O jantar daquela noite foi um suplício. Jonah se manteve em silêncio quase que o
tempo todo, provocando olhares curiosos da cunhada. Apenas Michael estava sereno,
alheio à tensão ao redor da mesa. De vez em quando parava de comer para fazer sinais
ao pai, ignorando por completo a tia. Houve um instante em que sorriu e piscou um olho
para Raine, como se os dois dividissem algum segredo.
Crystal notou o gesto cúmplice, e seus olhos se apertaram em desaprovação.
Contudo, sua voz soou adocicada quando disse:
— Espero que meu sobrinho não a esteja aborrecendo novamente, Raine.
— Michael esteve ocupado com Tim... com o reverendo Turlock a maior parte do
dia.
— Então você conheceu Tim Turlock?
— Sim. Ele me pareceu muito simpático.
— Mas é uma pessoa imatura, apesar de ser padre. Sobre o que vocês
conversaram? Acho-o tão... irritante.
Raine arregalou os olhos, não escondendo a surpresa.
— Ele foi gentil comigo. Conversamos bastante sobre livros. Tim é um
colecionador amador, que gosta muito de ler.
— Mesmo? Pois eu o considero aborrecido. E não acredito que ele tenha dinheiro
para colecionar qualquer coisa.
— Para um verdadeiro colecionador, o valor monetário dos livros tem pouca
importância, exceto quando prejudica a própria coleção. Lembro-me de um senhor que
estava colecionando a obra de Zane Grey. A maioria dos livros, embora difíceis de
encontrar, tinha preço baixo no mercado. Quando comentei com papai que, se o velho
vendesse apenas um dos volumes realmente valiosos, conseguiria o restante
facilmente, ele me disse que eu não compreendia a alma do colecionador, o que era
verdade. Adoro livros, mas é o conteúdo que me atrai, não a raridade ou o seu preço.
— Esse homem não devia ser um cliente muito lucrativo para seu pai — comentou
Jonah, pela primeira vez dirigindo-se diretamente a ela naquela noite.
— Papai não se importava com o lucro. Era um homem especial, muito generoso.
Há pouca gente desse tipo hoje em dia. E não sei por quê, tenho a impressão de que o
reverendo Turlock é assim também. Sua mulher e filhos têm muita sorte.
— Ele não é casado — disse Crystal com frieza. — Não diga que a convidou para ir
até a paróquia conhecer sua coleção de livros?
Naquele instante Michael derrubou o copo d'água sobre a toalha, desviando a
atenção de todos e encerrando a conversa, para alívio de Raine.
Na tarde seguinte, depois de confirmar com Tim a primeira aula, Raine foi de
carro para Mendocino.
Embora tivesse passado pela cidadezinha a caminho da mansão Arlington, só a
vira a distância. Da auto-estrada não notara nada de especial, mas agora, enquanto
guiava por entre as ruas estreitas, era imediatamente cativada pela simplicidade das
casas, com cercas que variavam do ferro batido em arabescos à prosaica madeirinha
pintada. Já ouvira dizer que Mendocino era uma “cidade amontoada”, ou um
"amontoado de casas" sem critério, mas logo compreendeu que justamente nisso
residia seu encanto. As casas variavam de imponentes mansões vitorianas a chalés de
todos os tamanhos e gostos, cada um de uma década diferente.
Na verdade, havia algumas casinhas tão bonitas, tão bem cuidadas, que dava até
vontade de descer do carro, tocar a campainha e oferecer-se para entrar. Os donos
certamente a receberiam de braços abertos!
Rindo dos próprios pensamentos, Raine pegou a rua principal, onde de um lado
havia um gramado enorme que ia dar no mar. Coma ainda era cedo, decidiu parar numa
lojinha para dar uma espiada. Terminou comprando uma coleção de conchinhas para
Michael, uma boneca de pano para a sobrinha e, num impulso, um belo lenço de cabeça
para Tilda.
Perguntou ao rapaz que a atendera o caminho para a biblioteca pública, e o moço
se empenhou tanto na explicação, com tantos detalhes, que suspeitou que ele queria
mesmo era um pretexto para conversar. Depois de muito agradecer e sorrir, conseguiu
sair de volta para o sol.
Minutos mais tarde estava examinando as espartanas estantes da biblioteca, que
era bastante modesta. Não encontrou nenhum livro sobre surdez, mas havia um, que
lhe pareceu interessante, sobre a região de Mendocino. Dando o nome do reverendo
Turlock como referência, assinou um cartão e pôde retirar o volume.
Seguindo as instruções de Tim, logo avistou a torre da igreja e para lá se dirigiu.
Ele a descrevera como “uma caixa de biscoitos com um cone de sorvete invertido em
cima”. Sorrindo, Raine teve de admitir que a comparação estava certa! A residência do
reverendo ficava ao lado, e instantes depois ela estacionava junto da calçada.
Embora a casa fosse antiga, dos anos vinte, estava recém-pintada de branco e
azul, com trepadeiras floridas pendendo do teto, diversos vasos no terraço e um
jardim muito bem cuidado.
Tim não demorou a abrir a porta.
— Acertou o lugar, viu que fácil? Seja bem-vinda, Raine, entre.
A sala de estar era simples, mas os sólidos móveis de carvalho, a alta estante
repleta de livros, os antigos e confortáveis sofás e poltronas criavam um ambiente de
aconchego e paz.
Ali, também, a profusão de vasos e flores denunciava a mão experiente de
alguém. Gerânios, samambaias e outras plantas decoravam o ambiente, deixando-o
alegre e convidativo. Raine olhava em torno, sorridente, constatando que, embora Tim
se encaixasse perfeitamente bem naquele ambiente despretensioso, também não
parecia deslocado numa casa sofisticada como a mansão Arlington. Ele parecia do tipo
que se adaptava a qualquer lugar.
— Devo avisá-la que minha tia andou preparando irresistíveis biscoitos de coco.
Ela se sentirá insultada se você não devorar no mínimo três! Preciso correr um
quilômetro extra por dia para perder o peso que ela me obriga a comer!
Raine sorriu ao vê-lo bater na barriga com ar desolado. Como o pastor não a
olhava como homem, e talvez porque lhe lembrava um pouco o irmão, tinha a sensação
de que o conhecia há muitos anos.
— Sua tia mora com você?
— Exato. É minha única parenta viva, e uma excelente pessoa, mesmo quando
tenta me arranjar casamento com alguma filha de suas amigas. Por isso, se quando a
conhecer ela tiver uma expressão predatória no olhar, não fique assustada! Pensei em
inventar que você era casada e tinha cinco filhos, mas não ia dar certo!
Ela riu novamente, sentando-se ao lado da mesa, onde um livro aberto, biografia
de um famoso maestro contemporâneo, chamou-lhe a atenção.
— Você se interessa por biografia?
— Para falar a verdade, o assunto do livro é que me fascina. Gosto muito de
música, inclusive toco um pouco.
— Piano?
— Não, oboé. Quer dizer, tento tocar...
— É mesmo? Eu também sou formada em música, pela Juilliard.
— Deixe que eu adivinho... Piano?
— Você devia ser detetive! Ou sabe ler a mente das pessoas?
— Bem, bastou eu me deter nas evidências. Você se senta ereta, com joelhos
juntinhos... E também tem um leve achatamento nas pontas dos dedos.
Raine imediatamente olhou para as mãos, desconcertada, e só quando ele desatou
a rir foi que percebeu que tudo não passara de uma brincadeira.
— Ora, caí como um patinho! Mas ainda não compreendi como descobriu que eu
era pianista.
— Muito simples: foi o primeiro instrumento que você pensou que eu tocava.
— Hum! Você tem jeito para psicólogo.
— Foi o que comecei a estudar, mas depois descobri minha verdadeira vocação e
mudei para Teologia.
— É incrível que tenha escolhido ser pastor!
— Oh, sim, tenho amigos que até hoje sacodem a cabeça, inconformados!
— Pois me dá a impressão de que você está muito bem na sua profissão, Tim.
— E estou, graças a Deus!
— Escute, já que você conhece todas as pessoas de Mendocino, talvez possa me
ajudar num problema.
— É só pedir.
— Eu não queria ficar longe do piano por muito tempo, pois pretendo participar
de um concurso no ano que vem. Música é assunto proibido na mansão Arlington, e...
— Não precisa dizer mais nada, conheço os exageros de Jonah Duncan. Creio que
eu mesmo posso ajudá-la, quer ver? Siga-me.
O reverendo a conduziu até uma bem iluminada sala de jantar, onde havia um
piano de armário entre duas janelas. Apesar de antigo, o instrumento era muito bem
conservado.
— Está às suas ordens, Raine. É um veterano de cinco décadas de ensaio de coros
para a igreja e atualmente não o utilizado mais. Um de nossos fiéis doou um órgão à
paróquia, por isso o piano veio parar aqui. Minha tia de vez em quando o usa. Toda vez
que você vier a Mendocino, pode tocá-lo.
— Ótimo. Vou alugá-lo.
— Sem pagamento... pelo menos em dinheiro.
— Não estou compreendendo.
— O pagamento será seu contínuo interesse em Michael, que ultimamente vinha
se tornando cada vez mais retraído. Notei que ele estava mudado ontem, e tenho
certeza de que a melhora aconteceu por sua causa. Continue a ser sua amiga, e
aprenda logo a linguagem de sinais. O garoto precisa se comunicar com o máximo de
pessoas possível para, quando o pai finalmente decidir deixá-lo freqüentar a escola,
não ter dificuldade em se relacionar com os colegas.
— Está combinado, apesar de que eu me tornaria amiga dele de qualquer maneira.
Michael é encantador...
— Tem razão. É um menino maravilhoso, sensível, que sabe conquistar os outros.
Mas devo lhe avisar que sou persona non grata a Crystal, porque andei externando
algumas opiniões. Acho que Michael devia estar na escola, aprendendo a conviver com o
mundo em vez de ficar super protegido na mansão. Estamos com um grupo que vai
abrir uma escola de deficientes aqui em Mendocino, de modo que ele nem precisaria
viajar para longe de casa. Cometi o erro de tentar convencer Crystal de matriculá-lo
nessa escola, mas ela me mandou embora, nem quis considerar a idéia.
— No entanto ela ama o sobrinho, tenho certeza. Deve desejar o melhor para ele!
— Ou o que ela pensa que é melhor... Crystal é uma moça imatura, confusa, muito
defensiva. Se você tivesse conhecido sua família, compreenderia o que digo. Elaine, a
irmã mais velha, era uma das mulheres mais bonitas que já vi. Granton Arlington, o pai
delas, a idolatrava, dando pouca atenção à filha caçula. Porém, no final de sua vida,
quando ficou enfermo, foi Crystal quem cuidou dele e se manteve ao seu lado. Com a
morte do velho, ela transferiu toda a lealdade para a irmã, que a tratava como
empregada. Agora está apavorada com a idéia de que alguém ou alguma coisa lhe tire o
lugar que ocupa na mansão Arlington. Por isso comporta-se de maneira tão estranha.
Sob a aparência de altivez e antipatia há uma criança assustada.
— Você parece conhecê-la bem, Tim.
— Vivi em Mendocino a maior parte de minha vida. Crystal estudava aqui até o pai
mandá-la para um colégio na capital. Depois que ela voltou, chegamos a sair juntos
algumas vezes. Houve um tempo em que pensei... Bem, não precisa ficar ouvindo minhas
histórias, Raine. Isto é só um aviso de um veterano. Todo cuidado é pouco no sentido
de não se envolver emocionalmente com a família. Crystal tem mania de enxergar as
coisas como quer, e não como elas realmente são. Quanto a Jonah... fechou seu
coração desde a morte de Elaine.
Tim virou as costas e correu os dedos pelo teclado amarelado do piano, antes de
comentar:
— Não é lá um grande instrumento, mas tenho certeza de que preencherá suas
necessidades.
— Claro!
Na meia hora seguinte ele lhe explicou detalhes do alfabeto de sinais e a fez
praticar algumas palavras e frases. Emprestou-lhe um livro apropriado e depois se
desculpou, dizendo que precisava sair para fazer visitas de caridade.
Assim que a porta se fechou atrás dele, Raine sentou-se ao piano, mas não tocou
de imediato, a mente perturbada com uma série de perguntas sem resposta. Tim devia
ter sido íntimo de Crystal para conhecê-la tão bem. De mais a mais, havia uma certa
tristeza em seus olhos enquanto falava sobre ela: seria, talvez, a sombra de um amor
não correspondido? Afinal, além de atraente, Crystal às vezes era carinhosa. Quem
sabe, ele não teria se apaixonado...
Raine balançou a cabeça, tentando afastar esses pensamentos. Não podia haver
maior perda de tempo do que ficar tecendo considerações sobre a vida de dois quase
desconhecidos... Pousando os dedos sobre o teclado, teve a grata surpresa de
constatar que o piano, apesar de ser de qualidade inferior aos que estava acostumada,
possuía um som límpido e afinado. Como não trouxera partitura, dedilhou algumas
peças de Bach, que sabia de cor. Em seguida, para soltar os dedos enrijecidos pela
falta de prática e pelo trabalho duro dos últimos dias, começou uma difícil sonata de
Beethoven, que se caracteriza por algumas passagens mais complicadas, que exigiam
atenção e destreza. As notas staccato da melodia pareciam combinar à perfeição com
suas emoções caóticas, e aos poucos ela foi relaxando e interpretando de corpo e
alma, entregando-se por completo à música.
Quando voltou à realidade, percebeu que estava executando o tema de amor de
Tristão e Isolda, um lamento pungente de paixão não correspondida. Imediatamente
parou de tocar, embora a melodia bela e dissonante continuasse a ecoar em seus
ouvidos, trazendo consigo uma onda de tristeza a lhe invadir a alma.
“Como o amor, um sentimento tão bonito, pode produzir tanta dor e desilusão?”,
perguntou-se, com os olhos marejados de lágrimas.
Naquele instante a porta se abriu e uma senhora miúda, de cabelos cinzentos,
irrompeu pela sala com uma bandeja de prata. Examinou Raine com visível curiosidade,
antes de sorrir aprovadoramente, como se a visitante tivesse passado num teste.
— Muito prazer, sou Louise Bodine, mas pode me chamar de tia Louise como todo
o mundo. Você não imagina como é agradável escutar esse piano sendo tocado bem! Eu
mal consigo dedilhar algumas pecinhas antigas, do meu tempo... Agora que você parou,
achei que gostaria de tomar um chá com biscoitos. Ou prefere um cafezinho?
— Chá seria maravilhoso — respondeu Raine, sorrindo. Embora já estivesse
ficando tarde, convenceu-se de que não poderia fazer desfeita com aquela senhora
tão cheia de vida e alegre, que foi logo lhe falando sobre as virtudes do seu incrível
sobrinho. A boa mulher chegou inclusive a lhe mostrar um álbum de fotografias, onde
Tim aparecia desde o berço até adulto. Depois de saborear vários biscoitos de coco,
elogiando-os com sinceridade, Raine contou a tia Louise algumas passagens de sua vida,
mencionando a forma como aprendera a catalogar livros. A velha não se cansava de
fazer perguntas, e admirou-se ao saber que ela iria participar do Concurso
Tchaikowsky no ano seguinte.
Finalmente Raine conseguiu se levantar e despedir-se. Somente às seis horas
chegou à mansão Arlington. Estacionou seu carro ao lado do Porsche reluzente de
Crystal, na garagem, e correu para o interior da casa. Quando passava diante da porta
entreaberta da biblioteca, Jonah a chamou. Relutante, ela entrou na sala, deparando
com o anfitrião, acompanhado pela cunhada, ambos com copos de xerez nas mãos.
— Parece que você hoje tirou algumas horas de folga — falou Jonah, com um
toque de censura na voz.
— Eu precisava de um intervalo, por isso fui até Mendocino passear e fazer
algumas compras.
— Fazer compras em Mendocino? — perguntou Crystal, incrédula. — Lá não há
nada para se comprar! Em Fort Briggs sim, tem um grande magazine e um
supermercado.
— Eu queria apenas um bichinho de pano para minha sobrinha.
— Imagino que Tim soube indicar onde achar os melhores brinquedos para
crianças...
— O reverendo Turlock?
— Oh, tenho certeza de que a essas alturas o está chamando de Tim, Raine.
— Só não estou compreendendo aonde você quer chegar — replicou ela, mal
contendo a raiva.
— Na volta para casa, paramos num depósito de ferragens em Mendocino, e vimos
seu carro estacionado em frente à paróquia... Sua vida particular não é da nossa conta,
é claro. Para falar a verdade, eu só estava brincando.
“Ou me testando para ver se eu mentia”, pensou Raine, consciente do olhar
crítico de Jonah, que observava a cena.
— Eu tinha um problema pessoal para tratar com Tim. Já que ele é pastor e está
acostumado a dar conselhos, nada mais natural do que ter ido procurá-lo.
— Claro, claro. E por acaso foi capaz de ajudá-la?
As faces vermelhas, como se estivesse com raiva, Crystal estreitou os olhos,
deixando-a intrigada. Afinal, o que havia entre ela e Tim? Ou melhor, o que ocorrera
entre os dois antes da discussão em que o mandara embora da casa?
De repente Raine se deu conta de que a estava encarando fixamente, sem nada
dizer. Sacudiu a cabeça, sorrindo, e assegurou:
— Sim, claro, ele me ajudou bastante. Agora, se me dão licença, gostaria de subir
para o quarto.
Quando já estava nas escadas foi que se lembrou de que planejara começar a
fazer as refeições no quarto. Agora era tarde demais para inventar uma enxaqueca.
Deixaria para usar esse pretexto no dia seguinte.
Depois de dar uma olhada rápida no guarda-roupa, escolheu uma saia rodada de
veludo com uma blusa bufante de seda azul-clara. Era um conjunto sóbrio, elegante,
que lhe caía muito bem. Prendeu os cabelos num coque baixo, passou um pouco de
brilho nos lábios, evitando mais maquilagem. Aquela roupa, aliada ao penteado
tradicional, dava-lhe o ar de secretária eficiente, encorajando-a a descer e a
enfrentar o jantar.
Porém, ao contrário do que esperava, Crystal mostrou-se amigável e simpática.
Estava usando um vestido espetacular, drapeado nos ombros, que realçava à perfeição
sua silhueta franzina. Parecia uma princesa com aqueles brilhantes nas orelhas e nos
dedos graciosos.
Quando ela a observava, Raine forçava-se a conter o impulso ridículo de esconder
as mãos. O trabalho duro que vinha fazendo lhe quebrara várias unhas, e no final fora
obrigada a aparar todas bem rente. Alguns cortes e um arranhão com curativo
completavam o desastre. Enquanto passava manteiga no pão, notou que Jonah também
a examinava. Sentiu um desejo irracional de subir para o quarto, colocar seu vestido
mais sexy, soltar os cabelos e pintar os lábios de vermelho-vivo, num ato de desafio.
Sorriu consigo mesma diante dessa idéia absurda e continuou a comer normalmente.
Crystal não cessava de puxar assunto, embora de maneira sutil, porém muito
convincente, lhe deixasse claro que a considerava uma empregada, jamais como
convidada da casa. Ainda que falasse educadamente, parecia querer vê-la diminuída na
frente do cunhado. Raine não conseguia entender seu comportamento. Quem seria a
verdadeira Crystal: a tia amorosa e dedicada que embalara Michael depois do
pesadelo, ou essa mulher que destilava veneno pelas entrelinhas?
Quando Jonah introduziu-se na conversa, surpreendentemente havia deixado a
ironia de lado mostrando-se interessado e cativante como na noite longínqua em que o
conhecera. Discutiram sobre livros, e ele demonstrou um domínio completo em relação
ao tema. Era de admirar que fosse um homem tão culto, quando a maioria dos grandes
músicos só sabia falar de partituras e de seus próprios instrumentos, como Raine
havia constatado enquanto freqüentara a Juilliard.
A descoberta dessa nova faceta de Jonah fez com que por alguns momentos ela
esquecesse a tensão que existia entre eles e discutisse calorosamente o último prêmio
Nobel de literatura.
— Já encontrou algo de mais interessante na coleção de papai, Raine? —
perguntou Crystal, de repente.
— Bem, seu pai costumava juntar primeiras edições sem muito critério, por isso
há de tudo lá embaixo. Alguns livros são bastante antigos, mas não têm valor, enquanto
outros, mais recentes, são raridades para um colecionador. E ainda falta abrir um
caixote com exemplares assinados que... Preciso examiná-los melhor, mas tenho a
impressão de que podem valer muito dinheiro.
— Haverá alguma coisa de interesse para o museu?
— Não sei ainda. Como disse, preciso verificar mais detalhadamente. Mas é bem
possível.
Crystal inclinou-se para frente, os olhos azuis brilhando de curiosidade.
— Quais são os títulos desses livros?
Raine ia citar alguns nomes, mas hesitou, lembrando-se de Michael. O garoto
adorava folheá-los e Jonah seria capaz de proibi-lo de descer ao porão se soubesse da
existência dessas raridades.
— Talvez seja melhor eu confirmar primeiro se eles são, mesmo tão valiosos, não
acha?
— Ora, Raine... Felizmente você foi bem recomendada, senão suas evasivas
soariam estranhas! Daria até para pensar que... Bem, deixa para lá.
As faces ruborizadas, com vontade de chorar, Raine se segurou para não mostrar
raiva. O que Crystal quisera insinuar com aquelas palavras? O pior era o olhar cortante
e frio de Jonah, que a inibia de dar uma resposta à altura.
— Logo, logo lhe passarei todas as informações, Crystal. Há uma caixa com vários
livros de Jack London, autografados e de primeira edição. São obras valiosas, embora
eu desconheça seu preço real no mercado. Consultei alguns catálogos e uma lista de
raridades que papai me deixou, mas ainda preciso conversar com alguém ligado ao
ramo, para uma avaliação mais precisa.
— Interessante — comentou Jonah, erguendo uma sobrancelha. — Guardei um ou
dois exemplares para Michael, pois ele adora histórias de aventura.
O garoto, que naquele momento comia um pedaço de torta de chocolate, percebeu
o movimento dos lábios do pai, pronunciando seu nome e lhe fez uma pergunta com
gestos.
O rosto de Jonah se descontraiu, tornando-se mais meigo, enquanto ele
respondia utilizando a linguagem dos sinais. Observando suas mãos morenas, firmes,
uma velha lembrança se reacendeu no coração de Raine. Com quanta experiência e
delicadeza aquelas mesmas mãos haviam desvendado os segredos do seu corpo,
despertando-a para os prazeres do amor... Sentiu o rosto corar e num gesto
involuntário levou a taça de vinho aos lábios, temendo que ele adivinhasse seus
pensamentos.
Naquele momento Crystal ergueu-se, oferecendo o braço ao sobrinho.
— Vou jogar uma partida de gamão com Michael antes de ele fazer a lição de
casa. Voltarei daqui a pouco para tomar um licor com você na biblioteca, Jonah.
Nas duas semanas que se seguiram, Raine amontoou tantas atividades que à noite,
ao se deitar, mal punha a cabeça no travesseiro e caía imediatamente no sono.
Pretendia não só acabar logo com o levantamento dos livros, como também evitar
qualquer brecha de tempo livre para devaneios. Se mantivesse a mente ocupada, não
teria preocupações com que se afligir.
Ao contrário do que esperava, Jonah tratava-a cordialmente à hora do jantar,
puxando conversa sobre livros, vinhos, e, quando descobriu que ela se interessava por
casas antigas, contou-lhe histórias pitorescas sobre a origem da mansão Arlington.
Crystal, por sua vez, depois daquela conversa no quarto de Elaine, em que a
aconselhara a não se envolver emocionalmente com o cunhado, deixara de lado a
hostilidade e a tratava como hóspede. Mesmo assim, Raine fazia o possível para não
encontrá-la.
Passava as manhãs e finais de tarde trabalhando no porão, e ia a Mendocino logo
após o almoço para uma sessão de duas horas no piano de Tim Turlock. Aquele curto
espaço de tempo era altamente insatisfatório; servia apenas para manter seus dedos
desenferrujados. Além disso, acabava tocando peças mais fáceis para alegrar tia
Louise, que era admiradora da música de Chopin.
Uma vez, sem perceber, começou a dedilhar uma sonata de Jonah, mas, assim que
se deu conta do que estava fazendo, voltou a Chopin.
“Ora, estive tocando essa peça porque ela é bonita e a sei de cor”, consolou-se,
tentando se convencer de que fora um engano natural. Mas não adiantava mentir a si
mesma. Jonah continuava presente em seus pensamentos, atormentando-a, e levando-a
mais uma vez a se perguntar se não cometera um erro fatal aceitando aquele emprego.
Não estaria brincando com fogo, arriscando-se à dor maior do que seu coração poderia
suportar?
Tinha virado rotina tomar chá com tia Louise depois do exercício de piano, e
todos os dias havia biscoitos ou bolinhos feitos especialmente para ela. Às vezes, Tim
as acompanhava no chá, e então orientava Raine na prática do alfabeto surdo-mudo. A
cada dia ela achava a linguagem de sinais mais interessante e absorvente. Aos poucos
ia adquirindo velocidade e já dominava quase todas as posições básicas ajudada por
sua excelente memória, treinada em anos de decorar partituras.
Sempre que o reverendo a elogiava, sentia-se recompensada, ciente de que o
elogio era merecido. Ainda não havia se comunicado com Michael através daquela
linguagem, não só porque preferia adquirir mais prática, como também porque estava
guardando segredo para lhe fazer uma surpresa no dia de seu nono aniversário, que
estava próximo.
À medida que o tempo passava, ia se descontraindo e entregando-se com prazer à
rotina diária. Michael buscava sua companhia com freqüência cada vez maior, mas só
quando o pai e a tia estavam fora. De manhã, quando Raine chegava no porão,
costumava trabalhar sozinha a primeira meia hora. Depois que escutava o ronco do
motor do Mercedes de Jonah se distanciar, sabia que o garoto apareceria para
oferecer ajuda.
Durante uma ou duas horas os dois trabalhavam tranqüilamente; então, quando
ela insistia em que ele descansasse, Michael se enrolava num cobertor a um canto da
sala e ficava lendo histórias infantis. Nas manhãs em que tinha aula com Tim, vinha
almoçar no porão, ali permanecendo até Raine sair para Mendocino. No entanto,
voltava a ajudá-la no final da tarde.
Quando ela o mandava tomar um pouco de sol e ir brincar no jardim, o garoto
obedecia, mas dali a uma hora retornava, tão tímido e inseguro que ela nunca tivera
coragem de dispensá-lo uma segunda vez.
Certa vez ele a ajudava a abrir um caixote, quando, sem pensar, ela passou a mão
por sua testa, ajeitando um cachinho moreno para trás. Michael olhou-a com
gravidade, mas logo, com toda a naturalidade, retribuiu-lhe o gesto.
Raine sentiu uma vontade incontrolável de tomá-lo nos braços e apertá-lo com
força, mas algum sentimento de preservação a deteve. Estava se tomando importante
demais na vida do menino, e não seria justo deixá-lo se envolver ainda mais. Como
Jonah lhe dissera, Michael já sofrera muitas perdas em seu curto período de vida. Por
isso abaixou a cabeça e voltou ao trabalho, decidida a nunca mais tocá-lo.
Um dia, em sua terceira semana de trabalho na mansão, voltou de Mendocino uma
hora mais tarde do que o habitual, pois resolvera passar pela biblioteca para devolver
o livro e dar uma espiada nas estantes. Acabava de chegar em casa, quando viu Tilda
saindo de um dos quartos que davam para o grande hall de entrada.
A governanta, que não notou sua presença, seguiu em direção à cozinha. Raine
deteve-se frente à porta de madeira entalhada, que estava entreaberta. Pela patina
que recobria sua cor escura, adivinhou que aquela peça era muito antiga, talvez
anterior à própria mansão. Lembrou-se de que Jonah lhe contara que o pai de Granton
Arlington colecionava tesouros do mundo inteiro para incorporar a casa. Aquela porta,
com entalhes elaborados de instrumentos musicais — violinos, violoncelos, harpas —,
devia ter pertencido a algum castelo da Idade Média.
Incapaz de resistir à tentação, empurrou de leve a porta, que se abriu com
facilidade. Embora as quatro janelas estivessem fechadas, mergulhando o lugar na
penumbra, logo percebeu que se tratava de uma sala de música. O teto, como em todo
o resto da casa, era altíssimo, enfeitado com guirlandas em alto-relevo, e as paredes
apresentavam forro de madeira. Havia panos brancos, fantasmagóricos à luz difusa
que vinha pela porta, cobrindo vários instrumentos musicais, entre estes uma harpa e
um pequeno órgão.
Um raio dourado do sol poente penetrava por uma fresta da janela, caindo sobre
um majestoso piano de cauda, que, ao contrário dos outros instrumentos, estava
descoberto, embora ao lado dele houvesse um pano dobrado. Seria Tilda quem havia
tirado o guarda-pó dali? E se ela saíra sem fechar a porta, era porque pretendia
voltar?
Após alguns instantes de hesitação, Raine atravessou o aposento nas pontas dos
pés, como se de repente pudesse perturbar o sono de algum guardião invisível daquela
sala de música. Esperava encontrar o piano trancado, mas, surpreendentemente, a
tampa obedeceu ao seu toque, erguendo-se com facilidade. As teclas de marfim
brilharam suavemente enquanto corria os dedos por elas. O timbre do instrumento era
encorpado, cristalino, fazendo jus ao nome escrito na tampa: Steinway!
Sentou-se no banquinho e fixou o teclado, pensativa. Por que Jonah deixara na
casa aquelas lembranças de sua antiga vida, em vez de guardá-las num depósito
qualquer ou doá-las a um conservatório? Será que algum dia ele retomaria sua
carreira?
Refletia sobre isso, quando notou uma partitura amarelada pelo tempo em cima
de uma estante. Leu o título escrito à caneta-tinteiro e involuntariamente retesou os
músculos, reconhecendo a letra firme e redonda de Jonah: “Sonata para o meu amor”.
Sentiu um nó na garganta enquanto virava as páginas e registrava a melodia na
mente, traduzindo nota por nota. Ao chegar no final, percebeu que a sonata não estava
terminada, ou talvez a última parte tivesse sido perdida. Só assim se justificava que
aquela peça lhe fosse desconhecida: afinal, era familiarizada com toda a obra dele!
Sem consciência do que estava fazendo, seus dedos deslizaram sobre o teclado e
começaram a executar a música. O tema era melodioso, com uma sucessão dinâmica de
acordes maiores, bem ao estilo de Jonah, mas ao mesmo tempo tinha um tom poético,
lírico, tão bonito que lhe tocou fundo no coração. Inesperadamente sua vista se turvou
e teve que parar de tocar, pois não enxergava mais as notas.
Há quanto tempo àquela partitura estava esquecida sobre a estante? E por que
Jonah nunca a terminara? Que pena, o mundo perdera o privilégio de ouvir suas
composições novas, de vê-lo tocar... Se as coisas fossem diferentes, se ela tivesse
alguma influência sobre ele, tentaria convencê-lo a retornar ao palco e a voltar a
compor aquelas melodias maravilhosas que só um gênio da música poderia.
— Oh, Raine! Você não devia ter entrado! O Sr. Duncan não permite ninguém aqui.
Tilda tinha acabado de chegar, trazendo um aspirador de pó e um balde com
utensílios de limpeza. Raine levantou-se do banquinho com ar de criança que fez
alguma traquinagem.
— Vi você saindo daqui, então vim dar uma olhada. Se ele não permite ninguém,
como é que...
— Bem, não vou deixar que as traças e o tempo arruínem com esse piano
magnífico quando um pouquinho de cera resolve o problema, não é mesmo? Esta sala é
forrada de propósito, para impedir a umidade de entrar, mas mesmo assim venho aqui
e abro as janelas em dias ensolarados para dar uma arejada, apesar de Jonah tê-la
trancado e jogado a chave fora.
— Quando foi isso?
— Logo depois da morte de Elaine. Se quiser minha opinião, acho um crime que
uma preciosidade como esse piano e aquela harpa sejam abandonados desse jeito.
Nunca mais foram usados, imagine! No entanto, faço o que posso: limpo a sala
regularmente, passo cera no piano, lustro tudo direitinho. Houve vezes em que chamei
um afinador, quando não tinha mais ninguém em casa.
— E você não tem medo de que o afinador fale alguma coisa?
— De maneira alguma! O velho é meu amigo, conheço-o há muitos anos... Sabe
Raine, escutei-a tocar enquanto vinha para cá. Estava lindo! Já ouvi essa música antes,
não me lembro quando.
— É uma das sonatas do Sr. Duncan, aquela ali, da estante.
— Ah! Por isso que a conhecia! Toda vez que eu entrava aqui para limpar a sala e
via essa partitura solta, me perguntava se não era essa música que ele estava
compondo quando recebeu a notícia da morte da esposa.
— Ele estava aqui no dia?
— Jonah estava viajando pelo Leste numa turnê, e arrumou um intervalo para
visitar a esposa e o filho aqui na Califórnia, sem saber que ela e Michael tinham ido
embora. Nunca descobrimos para onde Elaine ia naquela noite, mas o acidente
aconteceu na velha rodovia costeira, em curva fechada. Quando Jonah chegou em casa
e soube que ela havia saído levando o garoto... Bem, ficou muito preocupado. Então
desceu para esta sala, como sempre fazia quando algo o aborrecia, e ainda estava
tocando quando o chamei para atender ao telefone. Era a polícia rodoviária...
— Meu Deus, que horror!
— Nunca vi um homem tão transtornado! Saiu de casa correndo feito louco,
direto para o hospital de Fort Bragg. Depois do enterro, ficou aqui dentro mais de uma
hora, sozinho. Quando finalmente saiu, trancou a porta e jogou a chave fora.
— E como você entra?
— Peguei a chave no lixo, o que podia fazer? Eu disse a Luke que não era certo
deixar o piano do velho Granton apodrecer, e meu marido concordou. O velho Arlington
amava o piano, apesar de não saber tocar muito bem. Mas sempre promovia noitadas
musicais, convidava jovens promissores para fazerem audições, e ainda pagava os
estudos de alguns. Chegou a mandar gente para a Europa, como fez com Jonah. Acho
que agi certo em preservar o piano, não acha?
— É... creio que sim.
— Pois então! O Sr. Blake, o afinador, disse que seria ótimo se alguém tocasse
nele regularmente, para manter a mecânica ativa. Ele considera um desperdício que um
instrumento tão bom e tão caro fique aí às moscas.
— Escute Tilda, tenho estado praticando na casa do reverendo Turlock, mas por
que não posso estudar aqui mesmo de hoje em diante? Se Jonah e Crystal ficam fora
durante o dia, quem vai saber?
— Essa idéia tinha me ocorrido, Raine, mas...
— Eu ganharia tempo e perderia peso! Os biscoitos da tia Louise estão me dando
uns quilinhos extras!
A governanta fingiu considerar a idéia, mas era óbvio que seu coração já dissera
sim.
— Concordo que você não deve engordar! Não quero ir contra as ordens de Jonah,
mas se você encontrou por acaso a chave da sala de música na gaveta do armário da
cozinha, aquele perto da janela, não é minha culpa, é? E não vai precisar se preocupar:
Luke não dirá uma palavra nem a Jonah nem a Crystal, mesmo que não aprove sua
atitude.
— Então está combinado. O piano de armário da paróquia é razoável, mas... o
melhor que pode ser dito dele é que tem oitenta e oito teclas! Apesar disso, se não
fosse pelo reverendo, talvez eu não encontrasse outro na cidade.
— Tim é uma pessoa muito boa, conheço-o desde garoto. Foi uma pena que ele e
Crystal tenham rompido. Estavam indo tão bem...
— Crystal estava noiva de Tim Turlock?!
— Ainda não tinha sido anunciado oficialmente, mas o casamento estava marcado.
Depois, houve aquela discussão terrível, e num piscar de olhos tudo acabou. Tim,
coitado, perdeu o controle. Eu nunca o vira tão alterado; ele normalmente é comedido.
Crystal, por sua vez, é uma menina difícil, como já sabemos. Ela pensava que, depois do
casamento, eles ficariam na mansão Arlington com Jonah e o garoto. O reverendo
ficou furioso. Disse que jamais viveria na casa de outro homem. Gritaram muito um
com o outro, e quando Tim afirmou que ela mimava Michael demais, que não dava o
mínimo de liberdade à criança, foi a gota d'água. Crystal mandou-o embora, jurando
que nunca mais queria vê-lo. Depois passou uma semana vagando pela casa como um
fantasma, mas não voltou atrás, apesar de o garoto continuar a ter aulas com o
reverendo. Ele também não a procurou mais. Bom, já conversamos demais. Agora vou
trabalhar.
Com expressão sombria, Tilda ligou o aspirador e começou a limpar a sala,
enquanto Raine subia pensativa para o quarto a fim de trocar de roupa. Não teria feito
uma bobagem ao desafiar as ordens de Jonah? E ainda mais: com o piano dele! Estava
flertando com o perigo...
É claro que economizaria bastante tempo, pois não teria de voltar a Mendocino
todos os dias, isso sem mencionar a meia hora de chá com biscoitos que passava com a
tia Louise. Já aprendera com Tim tudo o que precisava sobre o alfabeto surdo-mudo,
necessitando apenas de prática. Estudaria um pouco sozinha no quarto. Como agora
disporia de mais tempo, ficaria mais uma hora e meia catalogando livros no porão.
Quanto à possibilidade de ser apanhada em flagrante na sala de música, a governanta
certamente concordaria em avisá-la caso o patrão ou Crystal aparecessem
inesperadamente.
Começando no dia seguinte, Raine ainda trabalhou duas horas depois do almoço
para em seguida entrar na sala de música. Embora se sentisse um pouco culpada, a
consciência lhe dizia que não estava agindo errado. Afinal de contas, não prejudicava
ninguém, e o piano necessitava de uso...
No entanto, apesar daquele Steinway ser mil vezes superior ao piano da paróquia,
utilizá-lo para os estudos revelou-lhe algo que ela vislumbrava e temia, mas que ainda
não confirmara. Agora que podia se entregar totalmente à música, sem se incomodar
com os desejos de tia Louise nem com a má qualidade do instrumento, percebia que
precisava de alguém que a supervisionasse, uma pessoa qualificada que avaliasse seus
progressos. Sozinha, tinha a impressão de que não avançava, que sua técnica
estacionara.
Passara a vida toda tocando sob a orientação de algum professor e, embora
confiasse em sua habilidade, tinha a estranha sensação de que alguma coisa lhe faltava
na execução das peças. Vencera duas competições, e fora bastante elogiada pela
técnica e interpretação, mas precisaria de muito mais para vencer o Concurso
Tchaikowsky.
Mas não havia nada que pudesse fazer no momento, O melhor era praticar vários
exercícios, dominar cada frase das sonatas e concertos que utilizava para estudo,
repetindo-os quantas vezes fosse necessário para se aperfeiçoar. Depois, quando
voltasse a San Francisco, contrataria o melhor professor que pudesse pagar...
Enquanto estava na sala de música, várias vezes teve a impressão de que era
observada, mas atribuía isso aos nervos excitados e à própria consciência. Um dia,
porém, assim que começou a praticar, viu com o rabo dos olhos o guarda-pó da harpa
se mexer. De iniciou pensou que fosse algum camundongo, até que enxergou um par de
sapatinhos conhecidos. Levantou-se silenciosamente e puxou o pano da harpa. Michael,
que estava agachado ali atrás, deu um pulo tão grande que ela imediatamente falou, na
linguagem de sinais:
“Tudo bem, não estou brava”.
Perplexo, o menino encarou-a durante alguns instantes, mas logo abriu o rosto
num sorriso largo.
“Obrigado, srta. Raine.”
Ela sorriu consigo mesma, satisfeita por ver seus esforços recompensados.
Conseguira penetrar no mundo dele e a partir de agora poderiam se comunicar bem.
Michael, ansioso, começou a fazer sinais com tanta rapidez que ela protestou:
“Calma, calma, está rápido demais”.
“Onde você aprendeu o alfabeto?” — perguntou ele, mais devagar.
“O reverendo Turlock me ensinou, mas você terá de ser paciente, Michael. Ainda
demoro em formar as frases.”
“Vou ajudá-la. Agora você é minha amiga?”
Com um nó na garganta, Raine lhe estendeu a mão, antes de declarar, comovida:
“Amigos para sempre”.
“Vai ficar morando aqui?”
“Vim só fazer um trabalho para seu pai, Michael. Quando tiver terminado, devo ir
embora. Mas escreverei muitas cartas e, se seu pai concordar, virei visitá-lo de vez
em quando.” — Ao ver sua expressão de desapontamento, mudou de assunto no mesmo
instante. — “Há quanto tempo você tem me observado ...”
Parou, perplexa, sem terminar a frase. Como é que Michael a descobrira naquela
sala? Sempre fechara a porta depois de entrar e, como ele não podia escutá-la...
“Como sabia que eu estava aqui, Michael?”
“Vi você entrando um dia, e me escondi atrás da harpa no dia seguinte.”
Raine examinou-o por alguns instantes, enquanto ele olhava para suas mãos,
depois para os próprios pés, constrangido. Parecia tão evasivo que ela teve certeza de
que estava escondendo alguma coisa. Tocou-lhe o braço para chamar sua atenção e
perguntou:
“É possível que você escute um pouquinho, Michael?”
O menino arregalou os olhos, chocado, movendo as mãos e os dedos com tal
rapidez que ela não conseguia compreendê-lo. Mas captou o suficiente para entender
que ele negava veementemente que pudesse escutar. Preferiu não insistir no assunto,
ao reparar no quanto o menino ficava agitado. Censurou-se com severidade, dizendo a
si mesma que suas suspeitas eram ridículas. Se o garoto estivesse mesmo ouvindo
alguma coisa, por que manteria segredo? Pelo que Tilda contara, os melhores médicos
da região o atendiam. Como ele iria enganá-los?
Se Michael ficava agachado na sala de música era simplesmente porque não tinha
amigos. O pai e a tia passavam o dia inteiro fora; Tilda cuidava da casa, e Luke, do
jardim. Solitário, ele via nela a única pessoa que lhe dava atenção ultimamente. Podia
ser também que percebesse as vibrações do piano, e estivesse intrigado. Afinal, ela
lera em algum lugar que os surdos podiam dançar usando vibrações da música... Oh,
Deus, lá estava ela fantasiando de novo!
Começava a ficar tarde, hora de trancar a porta e devolver a chave à gaveta da
cozinha. Mas, antes de fazê-lo, precisava explicar a Michael a necessidade de manter
segredo daquilo para o pai e a tia. Pensava na melhor forma de dizer isso, quando de
repente lhe ocorreu uma idéia bastante negativa: não estaria induzindo o garoto a
mentir? Portanto era preferível calar-se e torcer para que o assunto nunca fosse
mencionado. Michael segurou-a pelo braço, perguntando:
“Vamos guardar segredo que você sabe a linguagem de sinais?”
Raine suspirou, desapontada. Evidentemente ele compreendia que Crystal se
zangaria se soubesse que ela aprendera o alfabeto surdo-mudo. Talvez, então,
percebesse que Jonah ficaria furioso se tomasse conhecimento de que o piano estava
sendo utilizado...
“Podemos manter segredo, Michael, mas não devemos mentir. Se alguém
perguntar, teremos que dizer a verdade.”
“Está bem” — respondeu o menino, relutante. — “Você me leva à praia amanhã
para procurar bolas de vidro? Houve uma tempestade no Japão há algumas semanas, e
sempre aparecem por aqui bolas de pesca trazidas pelo mar. Papai prometeu me levar,
mas está tão ocupado!”
“Vamos, sim.”
Sabendo que Crystal e Jonah poderiam voltar da fábrica a qualquer instante,
Raine fechou o piano e cobriu-o com o guarda-pó. Quando se virou para a porta, o
garoto já tinha sumido. Enquanto guardava a chave na cozinha, muitos pensamentos lhe
passavam pela mente. Michael teria herdado o talento do pai, e depois abandonado o
piano, devido à surdez? Talvez fosse por isso que Jonah banira a música de sua vida.
Ou fora motivado pela dor da perda da esposa? Mas, se ele a amava tanto quanto
parecia, como podia ter feito amor de modo tão espontâneo com uma estranha?
Sem dúvida, os homens possuíam padrões de comportamento diferentes dos das
mulheres. Alguém tão charmoso como Jonah, idolatrado e perseguido por fãs, devia
sofrer tentações grandes demais para resistir. Entretanto, no caso dela, nada disso
valia. Não era uma fã ardorosa, nem o procurara deliberadamente. Naquela noite em
que lhe dera carona mostrara-se grata, confiante, e pagara caro por isso.
Agora, três anos mais velha, e muito mais madura, não permitiria que a atração
natural que sentia por Jonah lhe fugisse do controle. Só porque descobrira que ele não
era o vilão que imaginara, não podia facilitar as coisas. Afinal de contas, o fato de ter
sofrido com a morte da esposa e com a desventura de Michael não o eximia da culpa
de ter se aproveitado da situação.
Raine também sofrera muito, e ainda arcava com as conseqüências daquela noite
de amor. Por isso precisava proteger-se contra a tentação e jamais permitir que
Jonah a tocasse ou a beijasse...
Capítulo Doze
O quarto ainda estava às escuras quando uma batidinha à porta, tímida porém
persistente, acordou-a. Por um instante, ainda tonta de sono, Raine não se moveu, mas
a batida continuou até ela se lembrar de que prometera levar Michael para passear na
praia. Soltando um gemido inconformado, levantou-se para abrir a porta.
Michael, bem desperto e ansioso, vestia jeans e suéter, mas não se preocupara
com detalhes tais como pentear os cabelos ou amarrar o tênis. Com gestos rápidos,
informou-a de que o dia já estava clareando:
“Temos que ir bem cedinho, senão alguém chega primeiro e pega as bolas”.
Raine fez que sim, balançando a cabeça, e pediu-lhe que a esperasse fora do
quarto enquanto se trocava. No banheiro, lavou o rosto com água fria, escovou os
dentes, passou um pente pelos cabelos e prendeu-os num rabo-de-cavalo. Vestiu jeans
e uma malha grossa, sem pôr sutiã. Ao lembrar-se do vento gelado que soprava do mar,
pegou um boné de marinheiro, seguindo então para o hall, onde Michael a aguardava,
impaciente.
Segurou-o pela mão e desceram a escada para o térreo. Ele estava tão ansioso
para ir à praia que Raine achou melhor deixar o café da manhã para a volta. Assim que
saíram da casa, ela olhou para os montes recortados contra o horizonte ainda
cinzento, sentindo-se gratificada por ter concordado com aquela excursão. A manhã
estava fresca, brilhante, prometendo um dia belíssimo, daqueles em que tudo pode
acontecer.
“Quem sabe? Talvez tenhamos sorte e encontremos mesmo uma dessas bolas
japonesas”, pensou com alegria.
A oeste, em direção à praia, o céu ainda estava um pouco escuro, mas raios
dourados atingiam o leste, anunciando o nascer do sol. O ar frio, limpíssimo, trazia
consigo o odor das rosas mesclado à maresia.
Pássaros cantavam ao longe, e logo cortavam os ares numa revoada de asas
coloridas. De repente, Raine se deu conta de que andava de cabeça erguida,
deliciando-se com o vento gelado que lhe fustigava o rosto, com o aroma penetrante da
maresia. Respirou fundo, contente.
Ultimamente estivera muito fechada, confinada a quatro paredes, razão pela qual
de vez em quando se sentia inquieta. A partir de agora, introduziria em sua rotina uma
caminhada diária bem cedinho, fosse pelo campo, fosse pela praia. E sempre que
possível levaria Michael consigo, proporcionando-lhe companhia, coisa que o pai,
ocupado demais, parecia não poder lhe oferecer.
Depois de contornarem o vinhedo atrás da casa, se depararam com um monte que
protegia a mansão do vento forte proveniente da costa. Embora ali não houvesse
árvores, a terra era coberta de verde: musgo, grama rasteira, alguns arbustos. Aquela
vegetação recebia a umidade da neblina e do vento costeiro.
Quando Raine parou para contemplar um arbusto cheio de flores graciosas, em
forma de sino, Michael cutucou no cotovelo e informou:
“É chinês”.
“Como você sabe?”
“Papai me ensinou. Ele sabe o nome das flores, dos pássaros e dos bichinhos que
moram nas poças de água que há nas pedras da costa.”
— Seu pai é um homem surpreendente — murmurou ela em voz alta,
inconscientemente. Depois gesticulou com as mãos: “Quando ele lhe ensina tudo isso?”
“Nós passeamos bastante, ou melhor, passeávamos. Ultimamente ele anda muito
ocupado com a fábrica de vinhos, não sei por quê.”
Ao vê-lo curvar os ombros, Raine teve vontade de abraçá-lo; no entanto, limitou-
se a fazer que sim com um gesto de cabeça e continuou a caminhar. A picada devia ser
pouco usada, pois tinha aspecto de abandono, com gramas e raízes atrapalhando o
caminho.
Será que Crystal ia à praia de vez em quando, ou, habituada à paisagem, achava o
passeio aborrecido? Tanto ela quanto Luke haviam dito que Jonah costumava nadar
com freqüência. Seria ele a única pessoa a trilhar aquele caminho?
Percebendo que estava com a testa franzida, Raine sacudiu a cabeça com força,
zangada. Era a última vez que pensaria em Jonah naquele dia. Devia, isto sim,
aproveitar aquele intervalo no trabalho e desfrutar da beleza da manhã, esquecer-se
das preocupações e, o mais importante, fazer com que o passeio fosse agradável para
Michael.
No topo do monte pararam para recuperar o fôlego e admirar a extensão azul-
esverdeada do mar que brilhava a luz matinal. Em forma de meia-lua, a praia era bem
maior do que imaginara. Enormes rochedos cinzentos, onde as ondas quebravam com
violência, protegiam dos dois lados a estreita faixa de areia, que mais parecia um oásis
perdido num deserto árido. Plantas e pedaços de madeira espalhavam-se pela praia,
deixados pela ressaca da noite anterior.
Os dois desceram os degraus íngremes que iam dar ao lado da faixa de areia, num
platô de pedra. Os degraus eram largos e o corrimão de ferro, estava em ótimas
condições. Por isso, Raine deixou que o garoto se apressasse à sua frente sem lhe
oferecer a mão, coisa que provavelmente o ofenderia. Afinal, como ele lhe dissera dias
atrás, orgulhoso, iria completar nove anos! Já era um homenzinho.
Minutos depois alcançaram a rocha e, sem a proteção do morro, o vento atingiu-
os em cheio, deixando-os com as faces rosadas. Raine sentiu uma energia tão grande
dentro de si que teve vontade de sair correndo pela praia, perder-se na alegria dos
movimentos, rir...
Parece que conseguiu comunicar seu estado de espírito para Michael, que jogou a
cabeça para trás numa risada gostosa. A seguir desceram apressados através do platô,
em direção à praia. O tempo todo ela estava atenta ao mar, temendo que uma daquelas
ondas perigosas e súbitas os alcançasse; assim, foi Michael quem primeiro viu a bola de
vidro flutuando na maré rasa.
Puxando-a pelo braço, ele apontou para o objeto resplandecente, começando a
correr. Excitada, Raine seguiu-o de perto, pouco se importando com o vento e com o
frio. Quando viram que o globo, de trinta centímetros de diâmetro, estava intacto e
ainda tinha um resto de rede, abraçaram-se, pulando de contentamento. Entraram na
água, molhando as pernas até os joelhos, e trouxeram a bola para a praia. Examinaram-
na como se fosse um troféu, uma dádiva dos deuses, e depois caíram sentados na
areia, sorrindo, cúmplices, um para o outro.
Deitando-se com a cabeça apoiada nos braços cruzados, Raine fitou o infinito
com o coração cheio de alegria. Que maravilha estar viva, naquele mundo encantado,
sem preocupações nem medos! Os versos de um poeta que amava a Califórnia lhe
vieram à mente, e ela os recitou em voz alta:
— Fitando os limites de granito e espuma, as marcas do mar, senti atrás de mim
montanhas e planícies, a imensidão do continente ...
— E à frente a massa azul do oceano — completou a voz profunda de Jonah
Duncan. — Então você conhece Robinson Jeffers! Fico surpreso, devo admitir.
Foi como se um balde de água fria lhe destruísse a alegria. Raine sentou-se de
imediato, encarando os olhos escuros e maliciosos. Sentiu um frio lhe percorrer a
espinha, e de repente lembrou que estava com uma aparência horrível, os pés
molhados, os cabelos em desalinho.
— Por que não deveria conhecer Jeffers? Afinal, sou californiana nata, não
sabia?
— Sabia, sim... Estive observando você e Michael. É difícil associar a mulher fria
e calculista que conheço com essa ninfa etérea que vi correndo pela praia, pulando de
alegria por causa de uma bola de vidro.
— E qual é o problema? Pelo que me consta, essas bóias são valiosas.
— Ora, não venha com falsidade. Você parecia se divertir bastante. Ou está
tentando me amaciar através desse interesse súbito por meu filho? Pois bem, deixe-
me avisá-la de que...
Ele teve de se interromper porque nesse instante o garoto o chamou,
gesticulando excitadamente para a bóia. Depois de examiná-la, Jonah fez alguns
sinais, dizendo que, como aquela bola era a mais bonita que já tinham encontrado, ela
merecia um lugar de honra no pátio interno da casa.
Michael agarrou-se à mão forte do pai, erguendo para ele os olhos escuros. Raine
observava-os com sentimentos ambíguos: estava feliz pelo garoto, que dividia com o
pai um momento de triunfo, mas também se sentia triste pela manhã arruinada. Agora
precisaria ficar de guarda para defender-se das ironias e frases picantes de Jonah.
— Vou nadar um pouco — disse ele de repente. — É melhor vocês se sentarem
atrás daquela marca do mar. A maré está subindo, e a forma côncava da prainha faz
com que as ondas se agigantem de um momento para outro. Se permanecerem aqui
podem se encharcar.
Protegendo os olhos da luz da manhã, Raine viu-o jogar de lado o roupão,
revelando o minúsculo short branco que contrastava com a pele morena das coxas. Seu
corpo musculoso parecia feito de bronze sob os raios dourados do sol. Ela se lembrou
da noite em que tinham feito amor: a pele dele, macia e rija de encontro a seu corpo; a
sensação de segurança naqueles braços; a felicidade ao pensar que conseguira excitá-
lo tanto... Mal sabia que qualquer uma serviria, desde que satisfizesse seus desejos...
Com a lembrança dolorida daqueles momentos, desviou os olhos e virou a cabeça
de lado.
— O que houve, Raine? Nunca viu um homem de calção de banho antes?
— Ora, Jonah, não seja tolo!
— Bem, espere-me até eu voltar para conversarmos.
— Preciso ir trabalhar.
— Por quê? Está esquecida de que eu sou o patrão?
Sem esperar resposta, correu para a água e mergulhou. Uma onda ergueu-o alto
e, passada a rebentação, ele nadou vigorosamente para longe da terra.
Michael o observava com visível admiração e orgulho. Como ele idolatrava o pai!
Será que Jonah não se dava conta de que o garoto estava carente de afeto? Ele
precisava de sua companhia muito mais do que naqueles poucos minutos durante o
jantar!
“Você e seu pai saem bastante?” — perguntou na linguagem de sinais.
“Não muito, ultimamente. Mas ele prometeu levar-me para ver os gigantes e os
pigmeus.”
“Gigantes e pigmeus?”
“É. E os gêiseres também. Sabia que há gêiseres de verdade aqui perto?”
“Sim, mas nunca os vi. E você?”
“Também não, mas papai vai me levar algum dia.”
“Claro... Agora, me mostre as poças que se formam nos recifes. Quero aprender
os nomes dos bichinhos e plantas de lá.”
“Vamos!”
De mãos dadas, dirigiram-se para o outro lado da praia, escalando as rochas com
alguma dificuldade. Ali havia pequenas piscinas naturais, muito limpas, que tinham suas
águas constantemente recicladas com o subir e descer da maré. Deitados de bruços na
pedra escura, ficaram observando, maravilhados, a quantidade enorme de moluscos e
plantas coloridas que ali viviam.
“Parece um pequeno mundo” — comentou Raine com as mãos, encantada.
Michael fez que sim, enquanto apontava para um caramujo que, arrastando sua
casinha amarela e negra, acomodava-se ao lado de um belo coral púrpura. Depois,
mostrou uma estrela-do-mar cor de laranja, que ondulava sob as franjas verdes de um
musgo. A cada peixinho colorido que passava, ele dava o nome, excitado, e mais uma
vez Raine se viu forçada a revisar sua opinião de Jonah como pai.
Estavam agachados ao lado de uma reentrância de pedra, observando siris
pequeninos, quando Jonah se juntou a eles.
Michael levantou-se para lhe dar o roupão, que o pai vestiu de bom grado,
ofegante e alegre.
— Sinto-me humano novamente — comentou.
— Mesmo? — perguntou Raine quase automaticamente, recriminando-se logo em
seguida.
— Quer dizer que não me considera humano, Carmen? Engraçado, você devia
saber isso melhor que as outras pessoas...
— Pare de me chamar com esse nome ridículo! Senão, vou chamá-lo de muitas
coisas também...
— Por exemplo?
— Adúltero, mulherengo, sedutor de...
— Três anos atrás não ouvi reclamações. Aliás, tive a impressão de que você
estava ansiosa para fazer amor comigo.
— Eu não sabia que você era casado.
— Faria alguma diferença? Onde arranjou tantos escrúpulos, Raine?
— Não interessa! Agora, que tal pararmos com esse joguinho? Você é o que é, eu
sou o que sou, nenhum de nós é perfeito. Mas, se algum dia eu tiver um filho, jamais o
negligenciarei.
— De que diabos está falando?
— De Michael, é lógico! Por acaso já o levou para nadar alguma vez? Com que
freqüência saem para fazer piqueniques? Será que não podia tirar um dia de folga para
mostrar-lhe os pigmeus e os gigantes, seja lá o que isso for, como lhe prometeu? É
claro que pode dizer que isso não é da minha conta, mas...
— Tem toda razão: não é da sua conta mesmo. Apesar disso, para seu governo,
aqui é perigoso demais para a natação. Só me arrisco porque sou bom nadador, mas não
seria capaz de trazer Michael comigo. Aliás, tampouco é seguro que você nade.
— Por quê? Sou ótima nadadora. Só não participei das olimpíadas universitárias
porque precisava reservar meu tempo livre para o estudo de música.
— Sua habilidade em piscinas não a prepara para um mar traiçoeiro como o desta
praia. Quanto a Michael, mesmo à beira da água existe o perigo de alguma onda mais
forte arrastá-lo para o mar, e é por essa razão que sempre venho sozinho. Não posso
me arriscar a deixá-lo desacompanhado na praia.
— Tudo bem, aceito suas explicações. Mas acha certo o garoto ficar confinado à
mansão? Quando foi a última vez que saiu para passear fora da propriedade? Ele é um
menino esperto, em pleno crescimento, com a mente cheia de perguntas. Precisa do
estímulo de outras pessoas, de coisas novas.
— E você, Raine Hunicutt, está se excedendo de novo! Jonah pôs as mãos na
cintura num gesto tão ameaçador que ela se levantou de um salto, assustada. Mesmo
sabendo que na presença do menino nada aconteceria, deu um passo atrás. Em seguida,
recuperando o orgulho, ergueu a cabeça, encarou-o em desafio e estava para lhe
responder com palavras ácidas quando Michael se colocou entre os dois.
Com a expressão preocupada, ele puxou o braço do pai com tanta aflição que
Jonah perdeu o equilíbrio, caindo sobre um banco de areia. Depois de um longo
instante de tensão, durante o qual até as ondas pareciam ter silenciado, Michael, que
estava aterrorizado, viu-o soltar uma gargalhada, e então também soltou uma risada,
jogando-se ao seu lado na areia.
Jonah estendeu o braço, enlaçando o filho pela cintura, os dois rolaram pela
areia, rindo e simulando uma luta livre. Quando se separaram, ofegantes, pareciam ter
a mesma idade.
Raine, sentindo-se como uma intrusa, controlou-se para não limpar a roupa de
Michael quando este se pôs de pé, o rosto afogueado, os olhos brilhantes. Viu as mãos
morenas de Jonah se movimentarem tão rapidamente que mal compreendeu algumas
palavras: “café”, “Tilda”, “agora”.
O garoto fez que sim com um gesto vigoroso de cabeça e saiu saltitando pela
praia, em direção ao morro.
— O que você disse a ele, Jonah?
— Mandei-o ir até em casa pedir a Tilda que prepare uma cesta de piquenique. Já
que você reclama que não passo muito tempo com meu filho, tomaremos o café da
manhã aqui. Você está convidada, também, apesar da sua língua venenosa.
— Isso para não falar da sua!
— Ora, ora, Carmen...
— Não me chame desse nome!
— Sabia que quando está zangada seus lábios soltam faíscas?
— Eles não soltam faíscas coisa nenhuma! Não são fios elétricos!
— Soltam, sim. E seu pescoço fica vermelho como um camarão.
Percebendo que ele estava disposto a divertir-se às suas custas, Raine teve
ímpetos de esganá-lo.
— Hum! Vejo que está zangada de novo. Olhe só as faíscas, o pescoço...
— Cale a boca! Eu gostaria de...
— Gostaria do quê? De me beijar? De fazer amor comigo? Lembra-se de como foi
bom? Pouco importa quais tenham sido seus motivos, Carmen, você sentiu algo naquela
noite. Tenho certeza.
— Ah, é? Então sua memória deve ser fantástica, pois eu não lembro mais o que
aconteceu naquela noite. Aliás, até vir para cá, não tinha voltado a pensar em você.
— Muito interessante! Sabia que seu lábio inferior treme quando você mente?
— Sabia que eu gostaria de mudar de assunto, se não se importa?
— Claro que eu me importo! O que fizemos foi especial, muito especial. Estou
começando a me arrepender por ter tomado a decisão de deixá-la em paz. Creio que
cometi um engano... Mas, se seu preço não for alto demais, não há razão para não
consumarmos nossas relações.
Insultada, ela apanhou um punhado de areia molhada e atirou nele. Com um
movimento rápido Jonah conseguiu livrar o rosto, mas seu roupão ficou todo sujo. Ao
ver seu sorriso sumir, Raine compreendeu que tinha cometido um erro. Virou-se para
fugir, mas foi agarrada antes que pudesse dar um passo.
Jonah a segurou pelos braços, e um instante depois a forçou a deitar-se de corpo
inteiro sobre ele. Sua respiração quente fazia algumas mechas loiras que haviam
escapado do quepe bailarem no ar. E, estando seus corpos grudados, ela percebeu
exatamente quando a raiva dele transformou-se numa outra emoção.
Uma chama se acendeu em seus olhos escuros e, embora continuasse a se
debater, ela sentia que um fogo a consumia, deixando-a vulnerável ao contato com
aquelas coxas musculosas sob seu corpo trêmulo. Seus seios, pressionados contra o
peito forte, enrijeceram-se como se estivessem sendo acariciados. Nervosa, temendo
que ele percebesse sua excitação e tirasse proveito disso, redobrou os esforços para
se soltar.
— Me largue!
— Não até eu te dar o troco por aquele punhado de areia. Você andou me
provocando demais nesses últimos tempos, querida.
Num movimento rápido, ele rolou o corpo, prendendo-a contra o chão, deixando-a
indefesa. Forçou-a a erguer os braços, segurando-lhe os pulsos com uma das mãos,
enquanto que com a outra a acariciava sensualmente. Com a ponta da língua delineou-
lhe a boca bem-feita.
— Qualquer homem enlouqueceria só de olhar para esses lábios — declarou, com
voz rouca.
Depois disso beijou-a de modo voraz, quase violento, como se quisesse atingi-la
no fundo da alma. Quando finalmente ergueu a cabeça, tinha os olhos brilhantes de
desejo.
Raine sentiu um zumbido nos ouvidos; estava prestes a se entregar àquele
momento de paixão. Como se adivinhasse que não encontraria mais resistência, ele
soltou seus pulsos, arrancou-lhe o quepe, jogando-o longe, e desmanchou o rabo-de-
cavalo. Com dedos ansiosos, espalhou os cabelos loiros pela areia, maravilhado, e
tocou-os com os lábios.
— Há tempos que venho ansiando por esse momento — murmurou ao seu ouvido,
arrepiando-a dos pés à cabeça.
Ao sentir o suéter ser puxado e os seios ficarem expostos, ela quis reagir,
gritar, mas de sua garganta só saiu uma exclamação de prazer. Os lábios másculos se
fecharam sobre um mamilo rosado, amoldando-o com ternura, num doce delírio que a
deixou num tormento sem fim, num desejo que precisava ser saciado.
Sabia que se continuassem àquelas carícias, ela fatalmente sucumbiria, pois seu
corpo pedia mais, queria a consumação do ato de amor. Mas, afinal, o que importava
caso se entregasse ao prazer?
Os lábios dele moveram-se sobre a pele sedosa do ventre, desenhando pequenos
círculos em volta do umbigo. Suas mãos abriram o zíper do jeans, depois puxaram o
tecido para baixo juntamente com a calcinha rendada.
Raine quis protestar, mas foi silenciada por outro beijo selvagem, devastador,
enquanto a mão morena a tocava em seu ponto mais íntimo, fazendo com que uma
torrente de desejo lhe percorresse o corpo.
Jonah deslizou as mãos até seus quadris, pressionando-os contra as coxas
musculosas, e de repente ela sentiu o coração esfriar de medo. Por que estava
permitindo que as carícias prosseguissem? Se o deixasse possuí-la novamente, jamais
ficaria livre da paixão por aquele homem. E não podia fingir ignorar o que ele pensava a
seu respeito. Conseguiria viver sabendo que se entregara mais uma vez a alguém que só
lhe dedicava desprezo?
Uma idéia lhe veio à mente para salvá-la:
— Michael... Ele deve chegar a qualquer momento!
Jonah parou no mesmo instante e rolou para o lado, sentando-se com o rosto
entre as mãos. Seus olhos estavam sem brilho quando finalmente a encarou.
— Tem razão. Perdi o controle, coisa fácil de acontecer quando estou com você.
Mas temos um negócio a tratar, só nós dois, e então não seremos mais interrompidos.
Furiosa com a dureza daquelas palavras, Raine puxou o suéter e fechou o zíper.
Não conseguindo encontrar o cordão do rabo-de-cavalo, prendeu os cabelos de
qualquer jeito sob o quepe, sem se importar com a aparência. Respirou fundo para
adquirir voz e coragem antes de dizer:
— Está enganado, não temos negócios a tratar. Receio que você não possa pagar
meu preço.
— Do que está falando, Carmen?
— Aceitei o emprego que o Sr. Partridge me ofereceu, na esperança de conseguir
convencer você a me tomar como aluna — disse, esperando que a mentira soasse
convincente.
— Aluna?!
— Sim. Mas, já que você está decidido a nunca mais voltar a tocar nem a falar de
música, creio ter escolhido o professor errado, não acha? Então, cumprirei meu
contrato e usarei o dinheiro para pagar alguém que realmente me oriente nos
exercícios para o Concurso Tchaikowsky.
Raine conseguiu permear as palavras de tanta frieza e segurança que não teve
dúvidas de que ele acreditaria quando seus olhos a encararam com expressão de
pedra.
— Muito bem, Carmen, faça seu trabalho o mais rápido possível e depois suma
daqui. Mas lembre-se de uma coisa: se brincar com fogo, é capaz de se queimar.
Capítulo Treze
Raine atirou-se ao trabalho assim que voltou para a mansão Arlington, embora o
café e o croissant que engolira as pressas lhe pesassem no estômago e não
conseguisse se concentrar em nada. As imagens do que acontecera na praia dançavam
a sua frente, bloqueando-lhe a visão dos livros e das listas. Por mais que tentasse
prestar atenção ao que fazia, parecia ainda sentir os lábios de Jonah sobre os seus, as
mãos firmes que a acariciaram, o desejo nos olhos escuros.
Surpreendeu-se ao notar que estava no meio do porão, de pé, sonhando acordada
com o fichário nos braços. Zangada consigo mesma, sacudiu a cabeça e voltou ao
trabalho.
Logo depois de ter começado a selecionar os livros, descobrira que uma divisão
tradicional não cabia naquele caso, dado o número e a diversidade de volumes; por isso,
providenciara um sistema simples, mas muito funcional.
Pedira a Luke que fizesse várias prateleiras de madeira, e distribuíra-os
conforme o caso: numa estante, colocara os livros sobre os quais não chegara a uma
conclusão certa; estes seriam examinados eventualmente pelo especialista de Nova
York. Nas outras, enfileirava aqueles que não possuíam valor comercial ou histórico,
anotava-os com cuidado, e depois os devolvia a caixotes numerados, deixando-os
prontos para serem doados a alguma instituição de caridade ou à biblioteca local.
Os livros que considerava de interesse para o Museu de Nova York, guardava-os
numa outra caixa. Em uma prateleira à parte, separava os volumes que julgava
recomendáveis a Michael, quando ele fosse mais velho. Era Jonah, evidentemente,
quem decidiria se os manteria ou não, mas esperava persuadi-lo de que, apesar de
alguns daqueles livros terem um respeitável valor comercial, seu filho seria
beneficiado se os conhecesse.
Michael a imitava no modo de segurar cada livro: reverentemente, folheando-os
com cuidado, às vezes deixando-se levar pelo mundo das palavras e das idéias. Uma
vez que teria uma vida calma, retirada, havia melhor companhia do que os livros?
Entretanto, como ela desejava mais, muito mais para aquele menino! Queria-o cercado
de amigos, com os quais aprendesse a alegria do dar e do receber dos relacionamentos
humanos.
Com a impressão de que estava confinada àquele porão há muito tempo, Raine
resolveu subir para almoçar com os Cumming. Uma boa dose de bom humor de Tilda e
da companhia simpática de Luke lhe fariam bem. Estava lavando as mãos no tanque
quando Michael apareceu, saltitante. Ao lhe perguntar se ele também queria
acompanhá-la no almoço, a resposta positiva veio tão vigorosa que ela não pôde deixar
de soltar uma risada, no que foi imediatamente seguida pelo garoto. Felizes, deram-se
as mãos e subiram para a cozinha.
Sentado à mesa de carvalho onde Tilda servira sopa de cebolas com sanduíches,
Michael lhe descrevia com tanto entusiasmo a bola japonesa que encontrara na praia
que até se esqueceu de comer. Foi um gesto severo da governanta, que apontou para o
prato cheio, que fez com que ele começasse a refeição.
Depois do almoço, Raine sentia-se mais bem-disposta e, com o coração leve,
seguiu para a sala de música, onde devia cumprir duas horas diárias de exercício. No
entanto, assim que pousou as mãos no teclado, seus pensamentos voltaram para Jonah.
Oh, céus, que poder aquele homem exercia sobre ela, que fascínio a encantava e
subjugava tanto? Seus dedos percorriam as escalas distraidamente, cometendo erros
elementares, com os quais não se preocupava há muitos anos. Exasperada, apoiou a
cabeça nos braços, resolvida a descansar um pouco. Quem sabe não seria melhor subir
e se deitar...
Um leve toque em seu ombro a sobressaltou. Virou-se e sorriu para Michael, que
lhe perguntou através de sinais:
“Esta doente, Raine?”
“Só um pouco cansada.”
“Não trabalhe tanto para terminar a catalogação. Quero que você fique aqui
muito tempo.”
“Preciso terminar o serviço logo, senão seu pai pensará que sou preguiçosa...”
O menino suspirou fundo, desapontado, e foi deitar-se no cantinho de almofadas.
Uma raiva surda tomou conta dela: Michael era tão pequeno, tão vulnerável! Se fosse
seu filho, oh, como o amaria e lhe daria o carinho merecido.
De repente, como se a raiva a tivesse desbloqueado, sentiu que seus dedos
voltavam à antiga forma, e conseguiu executar bem a peça de Beethoven que estava
praticando. Quando resolveu voltar para o porão, Michael acompanhou-a, e ali ficou
por mais de duas horas, só indo embora depois de ela insistir em que ele devia brincar
um pouco no jardim.
“Luke não lhe prometeu que faria uma casinha de passarinhos?”
“Prometeu. Mas por que você não vem comigo, Raine?”
“Tenho que adiantar o serviço. Vá, divirta-se. Aposto como Luke vai caprichar na
casinha.”
Mais animado, o garoto se retirou, e ela voltou a concentrar-se no catálogo.
Estava examinando o índice de um livro de poesias quando a voz límpida e aguda de
Crystal perguntou:
— Não vem jantar hoje? São quase sete horas!
— Já? Desculpe-me, não vi o tempo passar. Vou me trocar e chego daqui a pouco.
— Não se apresse. Tilda se atrasou. Parece que errou na receita de um suflê. —
Crystal passeou por entre as pilhas de caixotes e estantes, torcendo o nariz. — Não
sei como você agüenta esse tipo de trabalho. Parece a maneira mais aborrecida de se
ganhar a vida.
— Pelo contrário, é fascinante. Durante anos ajudei papai na livraria. No começo
eu ia porque detestava voltar da escola para o apartamento vazio, mas depois fui
tomando gosto pelos livros, descobrindo seus mistérios, e no final ia lá por livre e
espontânea vontade.
— Seu pai a criou sozinho? Onde estava sua mãe? Eram divorciados?
— Mamãe morreu quando eu tinha doze anos. Papai fez de tudo para se dedicar a
mim e a meu irmão, mas era difícil para ele. Precisava ganhar a vida e... Bem, ele não
era uma pessoa comunicativa, por isso não demonstrava muito afeto.
— Você disse “era”. Ele é falecido?
— Morreu há algumas semanas.
— Oh, sinto muito... Pelo menos você o teve até a adolescência. Eu era muito nova
quando vim para cá cuidar de meu pai. Quando ele morreu, Elaine casou-se e veio
morar aqui. Jonah ficava tanto tempo fora em suas turnês que ela precisava de
companhia. É como se Michael fosse meu próprio filho, compreende?
— Sei... Ele é um garoto adorável.
— Muito!
— É... sobre Michael... Aconteceu uma coisa outro dia que me fez pensar que ele
talvez esteja melhorando...
— Isso é impossível! Como já lhe disse, os médicos são pessimistas quanto a ele
recobrar a audição, mesmo parcial. Seria um erro interpelá-lo a respeito, só o
embaraçaria mais!
A convicção com que Crystal falou fez Raine achar melhor deixar o assunto de
lado. Ia responder com uma evasiva, quando a morena exclamou:
— Oh, meus velhos livros! E eu que pensei que Tilda os tivesse jogado fora
durante alguma limpeza! Muito... muito obrigada por separá-los.
— Achei que você gostaria de tê-los.
— É verdade. Será que Michael se interessaria por eles? Eu tinha onze anos
quando papai os trouxe para mim, mas a capacidade de apreensão de Michael é bem
avançada, não acha?
— Tim Turlock disse que ele já lê como alguém três anos mais velho.
— Tim Turlock? Por que ele falaria essas coisas de Michael com você?
— Oh, não conversamos muito. Apenas comentei que o menino parecia interessado
em livros mais adultos, e o reverendo me contou que tinha feito um teste com ele e se
surpreendera com o resultado.
— Por acaso Michael tem descido aqui ultimamente?
— De vez em quando ele traz a lição de casa para fazer aqui embaixo.
— A umidade é ruim para ele. Gostaria que o mandasse para cima da próxima vez
que ele aparecer.
Meia hora mais tarde, sentada à mesa, Raine mal conseguia saborear o rosbife
que Tilda preparara, pois, tendo Jonah à f rente, fitando-a com ironia, sua garganta se
fechava e não aceitava comida. Tentava disfarçar o embaraço bebericando o vinho, um
chardonnay delicioso, feito ali mesmo.
A conversa foi iniciada por Jonah, que se virou para a cunhada e disse:
— Você irá sozinha para a cidade amanhã entregar aquele relatório, Crystal.
Estarei muito ocupado.
— Ocupado? Mas não há nada marcado em sua agenda!
— Acabei de marcar. Recentemente alguém me mostrou, com alguma razão, que
tenho negligenciado meu filho. De acordo com a previsão do tempo, amanhã fará um
belo e ensolarado dia. Parece uma boa hora para levar Michael àquele passeio que lhe
prometi há semanas.
— Então vou adiar a entrega do relatório para ir com vocês.
— Não, este será um passeio de pai e filho. Tias não são permitidas.
Excitado, Michael quase derrubou o copo de leite, e mais uma vez Raine se
perguntou se o garoto não podia mesmo escutar nada. Ou ele teria lido os lábios do pai
e descoberto que estavam falando dele? Mais tarde questionaria Tim para saber se o
menino havia aprendido leitura-labial. Por meio de sinais, Jonah convidou o filho para a
excursão, Michael ficou tão contente, tão sinceramente feliz, que Raine foi obrigada a
desviar os olhos e piscar para conter as lágrimas, Quando voltou a cabeça, porém,
descobriu que Jonah a encarava fixamente. Confusa, pegou a colher e tentou
concentrar-se no delicioso suflê de chocolate.
Terminado o jantar, levantou-se e saiu, com a desculpa de que queria trabalhar
mais um pouco, listando uma coleção de livros de culinária que acabara de encontrar.
Após vestir o jeans desbotado e a camisa xadrez de trabalho, desceu para o porão.
Porém, ao pegar o fichário para fazer as anotações, percebeu que não tinha o menor
ânimo para continuar trabalhando. Então, correu os dedos pela estante em que
marcara “Colecionáveis”, procurando alguma coisa para ler antes de dormir.
— Você toca esses livros da mesma maneira que algumas mulheres tocam um
homem — disse Jonah, assustando-a.
Ela se virou rápido, as faces afogueadas, os olhos arregalados. Por que ele
sempre a pegava desprevenida? Seria de propósito? Foi observada por um instante, e
por fim ele continuou:
— Qual é sua ascendência, Raine? Pela pele bronzeada e os olhos escuros, diria
que é italiana ou espanhola. Você não devia tingir os cabelos. Fica linda, atraente, mas
não é necessário. Você chama a atenção de qualquer jeito.
— A cor de meus cabelos é natural!
— Como assim? Vai dizer que não era morena quando a conheci?
— Isso porque naquele ano, e só naquele ano, tingi meus cabelos de castanho.
— Puxa, essa me pegou de surpresa. Com esses cabelos, tão graciosos, por que
resolveu tingi-los?
— Não lhe devo explicações, mas... tudo bem. Era meu primeiro ano na Juilliard...
O pessoal de lá gosta de pôr rótulos pela aparência, quando se é diferente. As moças
me consideravam caçadora de homens, os rapazes me julgavam fácil para suas
cantadas, e os professores... Bem, esses me tratavam com pouco-caso. Por isso resolvi
escurecer os cabelos. Depois, mais amadurecida, decidi assumir o que era e mandar os
outros para o inferno. Se se enganavam, problema deles, não meu. Voltei à cor natural.
— Deve ter causado sensação no conservatório.
— Causou, mas consegui marcar um ponto. Depois disso a maioria dos colegas e
professores passou a me aceitar como eu era.
— E de quem você herdou essa cor maravilhosa?
— De uma mãe italiana e pai inglês. Meu irmão tem a mesma cor de cabelo, mas o
dele ninguém suspeita que é tingido, pois seus cílios e sobrancelhas são bem claros
também.
— Seu irmão, é mais velho ou mais novo?
— Quatro anos mais velho.
— Sendo apenas dois, vocês devem ser muito unidos.
— Bem... não tão unidos quanto eu gostaria. Amamos um ao outro, claro, mas não
temos muita coisa em comum. Também estivemos muito tempo separados nos últimos
anos.
— E também é ambicioso, não hesita em pisar nos outros para vencer na vida?
Raine fechou o livro que tinha nas mãos, furiosa, jogando-o sobre a mesa
improvisada de caixotes.
— Não pretendo ouvir insultos!
— Calma, calma! Por que considera isso um insulto? Antes, parecia orgulhosa de
sua ambição.
— Não sei se sou orgulhosa ou não, sou o que sou...
— Ai, isso é letra de música! — Raine não conteve o riso.
— Detesto usar frases feitas para encerrar uma conversa, mas essa saiu
naturalmente!
— Você devia rir com mais freqüência, fica muito bonita. Mas continua a ser séria
como há três anos, não é?
— Para falar a verdade, rio a valer quando alguma coisa realmente me diverte.
Aqui na mansão Arlington ainda não encontrei nada que mexesse com a minha veia
cômica.
— Escute, não vamos discutir. Vim aqui com uma proposta. Michael diz que a
excursão de amanhã será um fracasso se você não for. Está ansioso para lhe mostrar
as maravilhas da região, e você não teve folga desde que começou. Que tal passar o dia
conosco?
— Sei que você prefere ficar a sós com Michael.
— Tenho certeza de que ele passaria o dia me dizendo o quão maravilhosa a srta.
Raine é. Além disso, será divertido mostrar-lhe os gigantes e os anões.
— Não vai me contar o que são?
— Desculpe-me, mas, se quiser saber, terá de ir conosco.
Raine silenciou, indecisa entre duas idéias diferentes. Em benefício de sua paz de
espírito, não deveria aceitar passar o dia em companhia de Jonah. Por outro lado, um
passeio a pé na região era uma proposta deveras tentadora. E, no final das contas,
Michael estaria junto. Não haveria perigo.
— Está bem, já que Michael faz questão.
— E se eu lhe dissesse que também acho uma excelente proposta levá-la
conosco?
— Eu imaginaria que você estivesse tramando alguma perfídia, da mesma maneira
que pensa isso de mim.
— Hei, calma, você não me dá chance!
— E devo dar?
— Por que não deixamos a animosidade de lado, pelo menos amanhã, por Michael?
Somos três pessoas que estão indo fazer um passeio durante um dia inteiro: um dia de
trégua, sem brigas, sem recriminações. Combinado?
Raine concordou com um sorriso, mas, depois que Jonah saiu, ficou olhando para a
porta, perguntando-se se não teria cometido outro erro, deixando-se envolver em mais
problemas... e mais dores de cabeça.
Capítulo Quatorze
Era mais de meia-noite quando Raine finalmente se deitou. Tensa, não conseguiu
conciliar o sono, rolando de um lado para o outro da cama, enquanto tentava esquecer o
sofrimento e fazer planos para o futuro. Um futuro que agora lhe parecia vazio e sem
sentido. Ao nascer do dia, levantou-se cambaleante, sentindo-se dez anos mais velha.
Foi então que viu a bandeja sobre a mesinha, com as duas canecas cheias de
chocolate, e as lágrimas lhe turvaram a vista mais uma vez. Abraçando a si mesma,
como para livrar-se do frio que tinha na alma, sentou-se na cadeira de balanço, até que
o pranto cessou e se sentiu esvaziada de sentimentos.
Movida pelo orgulho, fizera tanta questão de mostrar a Jonah que o caso deles
não tivera importância, que montara aquela encenação, fingindo ter vindo para a
mansão Arlington com o intuito de coagi-lo a orientá-la para o Concurso Tchaikowsky.
Fora tão convincente que ele acreditara em suas palavras, e talvez por isso a repelira
depois de terem feito amor.
Por que não? Aquele comportamento afugentaria qualquer homem íntegro! Isso
mesmo: por mais que quisesse pensar o contrário, naquelas poucas semanas descobrira
que Jonah nada tinha de desprezível ou de mau-caráter. Apesar de rude, arrogante,
mostrava-se dono de um grande coração. Afinal, por amor à esposa e ao filho, fora
capaz de sacrificar sua carreira.
Sim, ele era tolerante e compreensivo, e ela destruíra todas as chances que
poderia ter para dividir a vida com ele. Voltara ao ponto de partida de três anos atrás,
apaixonada por um homem que a queria mas que não a amava. Só que desta vez não
tinha o escudo do ódio para proteger-se...
Se houvesse contado desde o início o quanto sofrera ao receber aquele bilhete
com as flores e a pulseira, e que, em seu desespero, jogara tudo no lixo, as coisas
seriam diferentes?
Perda de tempo preocupar-se com essa pergunta: já não havia possibilidade de
desfazer a imagem de mulher inescrupulosa e calculista que ela mesma criara. Era fato
que ele a desejava. No entanto, isso não era suficiente. Oh, não! Queria o amor de
Jonah, não apenas sua paixão. Como se contentar com pouco quando seus sentimentos
mal cabiam no peito?
“Era melhor quando eu pensava que o odiava”, refletiu, sentindo ardor sob as
pálpebras, mas sabendo-se incapaz de chorar: suas lágrimas tinham secado, só lhe
restando um imenso vazio. Foi para o banheiro, lavou o rosto com água fria, depois
tomou um banho demorado, como se assim pudesse escapar da dor e do sentimento de
perda que a atormentavam.
Desceu para a cozinha pela escada dos fundos, na tentativa de evitar o encontro
com Michael logo cedo. Como poderia encarar aqueles olhos meigos e questionadores
depois de ter passado parte da noite na cama com seu pai?
Por sorte Luke e Tilda não pareciam inclinados a conversar, e tomaram o café da
manhã em silêncio. A governanta de vez em quando a olhava de soslaio, fazendo-a
perguntar-se se os Cumming suspeitavam do que havia entre ela e Jonah. Nenhum dos
dois comentou sua falta de apetite, quando, depois de afastar para o lado o prato de
ovos com bacon, contentou-se em mordiscar alguns biscoitos.
Mal acabava de tomar o café quando o telefone da cozinha tocou. Tilda apressou-
se em atender e voltou dizendo:
— É para você, Raine, uma voz de homem. Se achar melhor, pegue a ligação no
hall. Assim poderá conversar mais à vontade.
— Sim, obrigada.
Com o coração aos saltos, correu para a entrada. Quem poderia ligar àquela
hora... seria Jonah? Talvez ele tivesse ido mais cedo para a fábrica, e depois decidido
conversar com ela...
— Alô, Raine? Aqui é Martin!
— Martin! Como vai? Está tudo bem?
— Às mil maravilhas! Onde você estava ontem? Liguei várias vezes, mas não
obtive resposta.
— Parece que todos tinham saído ontem. Você está em San Francisco?
— Não, em Mendocino! Consegui dois dias de folga, vim com Glória passear um
pouco. A irmã dela ficou tomando conta de Débora, não foi ótimo? Nós queríamos
convidar você para jantar ontem à noite, mas não conseguimos...
— Eu não estava em casa.
— Então que tal almoçar conosco? O restaurante do hotel onde estamos tem uma
excelente comida, e o preço é a medida exata para o bolso de um residente
esfomeado! À tarde voltaremos a San Francisco, mas seria maravilhoso vê-la por
algumas horas.
— Ótima idéia, Martin! Como eu mesma decido meus horários aqui no emprego,
poderíamos nos encontrar no hotel lá pelas onze horas. Assim passaremos mais tempo
juntos,
— Perfeito! Estamos no Hotel Sequóia, logo à entrada da auto-estrada, no quarto
22.
— Sequóia, quarto 22. Combinado, estarei aí às onze.
Raine desligou o telefone, sentindo-se mais alegre. Havia pessoas que se
preocupavam com ela e que a amavam! E o encontro com o irmão e a cunhada lhe daria
mais força para enfrentar Jonah na hora do jantar. Como ele se comportaria? De
maneira distante, falando apenas de negócios, como ela sugerira, ou... Bem, pelo menos
na presença de Crystal e Michael na certa seria educado.
— Quer dizer que você conseguiu ser incluída no passeio de pai e filho de ontem!
Ao ouvir a voz de Crystal, Raine voltou-se para encontrá-la parada na escada,
bela é adorável num vestido simples, sem mangas, que realçava o bronzeado dos
braços.
— Michael quis que eu fosse junto.
— E acha que foi idéia dele, não? Espero que essa excursão não lhe dê falsas
ilusões sobre seu verdadeiro papel nesta casa. Não gostaria de vê-la sofrendo depois.
Há coisas que você não compreende.
— Então as explique para que eu compreenda.
— Venha. Há algo que quero lhe mostrar. Talvez assim você...
Sem terminar a frase, Crystal virou as costas e tornou a subir os degraus.
Intrigada, Raine resolveu segui-la, resistindo ao impulso de fugir. O que enxergara
naqueles olhos azuis, entediados? Medo, talvez? Não era raiva, nem ódio.
Parando em frente à porta ao lado do quarto de Elaine, Crystal disse:
— Este é o quarto de Jonah. Ele se mudou para cá depois que minha irmã morreu,
porque não suportava dormir na suíte principal.
— Acho que não devíamos...
— Se quer compreender Jonah, acompanhe-me. — Mordendo o lábio, Raine
assentiu com um gesto de cabeça.
Sim, queria entender aquele homem enigmático, ainda que isso significasse mais
dor. Um minuto depois estava no interior do aposento, que era espaçoso, tinha janelas
altas, chão de madeira encerada e altos-relevos nos tetos. A mobília, antiga, de estilo
vitoriano, estava muito bem conservada, dando a impressão de fazer parte da mansão
Arlington original.
Raine examinou o elaborado entalhe de cabeceira alta da cama, achando que tudo
ali combinava com Jonah. Ele detestava imitações, e era natural que escolhesse móveis
sóbrios e autênticos em vez de coisas mais modernas. Depois de relancear os olhos
pelo ambiente, virou-se para Crystal, que a observava em silêncio.
— Então, o que você queria me mostrar?
A moça foi até a mesinha-de-cabeceira e acendeu um abajur de porcelana
chinesa, que iluminou um porta-retrato de prata.
— Era isso o que eu queria que você visse. Acho que assim vai perceber que na
mansão Arlington não há espaço para você.
Prendendo a respiração, Raine contemplou os olhos brilhantes e belos de Elaine,
que a fitavam da moldura. Ela estava vestida de noiva; seus lábios, sensuais e cheios,
exibiam um sorriso triunfante.
Sentiu uma vontade insana de sair correndo, fugir daquela imagem, e só não o fez
para não demonstrar fraqueza a Crystal, que estava atenta aos seus mínimos gestos.
— Entendeu? Qualquer mulher que tente ocupar o lugar de Elaine só vai se
machucar. Jonah mantém essa foto na cabeceira da cama, não permite que ninguém a
toque. E todos os dias coloca nesse vaso flores frescas em sua homenagem.
Raine olhou o buquê de rosas escuras dentro de um lindo vaso, ao lado da
fotografia, enquanto a moça, embevecida, continuava:
— O rosto de Elaine é a última coisa que Jonah vê antes de dormir, e a primeira
depois que acorda. É lógico que, sendo um homem normal, ele tem seus pequenos casos,
que nunca duram muito. Eu o repreendi uma vez por machucar suas pretendentes, mas
ele me respondeu que só se envolvia com mulheres maduras, dispostas a não levarem o
assunto a sério. Disse também que, quando percebia existir um interesse de
aprofundamento da relação, ele imediatamente rompia.
A atmosfera do quarto de repente ficou sufocante, com o perfume das rosas
incomodando-a como da outra vez em que entrara no quarto de Elaine, mas Raine não
conseguia fugir. A curiosidade, um desejo mais forte que sua vontade, mantinha-a ali,
escutando as palavras de Crystal:
— Muitos homens viviam atrás de Elaine, mas foi Jonah que ela escolheu. E, claro,
ele a escolheu também. Sempre a amou, sempre a amará. Por sinal, hoje é o aniversário
de sua morte, Jonah e Michael foram visitá-la no cemitério. Ele faz questão de que o
garoto também não a esqueça. Por isso não voltará a se casar, compreende? Tenho
pena das mulheres que levam a sério suas atenções...
Por fim Raine conseguiu romper com a imobilidade, desculpar-se e sair. Minutos
depois estava no porão, sentada num caixote, o rosto enterrado entre as mãos. Mas
logo em seguida levantou-se, ergueu a cabeça e voltou ao trabalho. Miraculosamente,
ficou tão absorvida que quando olhou para o relógio já eram dez e meia da manhã.
Correu para o quarto, escolheu um vestido de verão bem descontraído e meia
hora mais tarde chegava ao hotel Sequóia. Quando Martin abriu a porta do aposento,
foi logo lhe pedindo desculpas pelo atraso.
— Ora, mana, não se preocupe. Parece que você não conhece Glória! Ela ainda está
embaixo do chuveiro!
Depois de beijá-la afetuosamente, ele pôs o braço em torno de seus ombros,
conduzindo-a para o interior do quarto.
— Sabe, Raine, até há bem pouco tempo eu não tinha descoberto como é
maravilhoso ter uma irmã adorável como você.
— Provavelmente por culpa minha. Sempre estive ocupada com a música...
— E eu com meus tubos de ensaio! Bem, já que demos certo, não devemos culpar
nossos pais por nos exigirem tanto para a vida, concorda?
— Como assim, Martin?
— Eles sempre esperaram muito de nós. Às vezes era duro corresponder às
expectativas que faziam.
— Sim, eles se orgulhavam de nós, mas...
— Claro, mas também esperavam que fôssemos o que nunca puderam ser. Eu devia
ser o doutor da família porque papai sempre quis estudar medicina e não teve
condições, e você, bem, era a compensação que mamãe tinha por sua carreira
interrompida. Por sorte as expectativas coincidiram com nossos interesses, ou
seríamos muito infelizes. Já pensou se eu desmaiasse ao ver sangue, ou se você não
tivesse ouvido musical?
Raine nunca tinha pensado nisso antes, e foi como se uma luz se acendesse em
seu cérebro. Sempre soubera que a mãe a encorajara a tocar piano porque sua
carreira fora dramaticamente interrompida, mas nem de longe suspeitava que Martin
fora empurrado para a medicina pelo pai. No entanto, as evidências eram mais do que
óbvias: os jogos de química que o irmão ganhava nos aniversários, as aulas extras de
matemática e biologia, o melhor curso preparatório para os exames da faculdade...
— Não são todos os pais do mundo que compram microscópios de mil dólares para
os filhos de onze anos? — perguntou, rindo, e Martin abraçou-a de novo.
— Não estou reclamando. O que quero saber é se você realmente deseja seguir a
carreira de concertista, maninha.
— Claro que sim! Não sei o que faria sem a música.
— Sinto o mesmo em relação à medicina, e é a isso que pretendo me dedicar pelo
resto da vida. Graças a Deus e ao seu emprego, tudo está dando certo. Por falar nisso,
que tal trabalhar para a estrela maior do mundo da música? Discutem muito sobre
Bach e Mozart?
— Não. Jonah Duncan abandonou a carreira, e raramente o vejo.
— Que pena! Eu cheguei a imaginar que ele se interessaria por você e se tornaria
seu mentor, ou sei lá o nome que vocês usam para a música.
— Pois se enganou, Martin. Termino o trabalho dentro de alguns dias, e duvido
que no mês que vem ele ainda se lembre do meu nome.
Glória, de rosto animado, saiu do banheiro muito bonita num vestido branco e
preto. As duas se abraçaram efusivamente, como velhas amigas, antes de seguirem
para o simpático restaurante do hotel. Ali ficaram mais de uma hora conversando,
principalmente sobre a pequena Débora, que estava tomando um novo medicamento
cujos efeitos eram bastante promissores.
Depois do minguado café da manhã que tomara, Raine descobriu que estava
morrendo de fome e, descontraída com a companhia dos parentes, comeu com enorme
apetite.
Porém, na volta para a mansão Arlington, foi ficando triste novamente. Dentro de
poucas horas estaria sentada frente a Jonah na mesa de jantar. O que deveria
esperar? Hostilidade, frieza, ou ele teria esquecido o incidente? Segundo Crystal,
seus romances acabavam quando a mulher demonstrava interesse em aprofundar a
relação; Raine teria mostrado seu amor nos braços dele, na noite anterior? O que vira
em seus olhos depois do ato fora medo. Medo de quê? Talvez de que ela lhe exigisse
coisas demais, tornando-se um estorvo? Bem, se fosse por isso, ele agora estaria
sossegado, uma vez que ela deixara claro que dali em diante só queria tratar de
negócios.
Voltou para o porão, mas a tarde se arrastava, interminável. Quando se descobriu
anotando os mesmos livros pela segunda vez, desistiu de continuar e subiu para tomar
uma xícara de café. Acabava de chegar ao hall de entrada quando ouviu um barulho de
carro, e, pela janela, viu o Mercedes afastando-se com Jonah e Crystal.
Isso significava que ele retornara do cemitério e saía para o trabalho,
provavelmente ansioso por recuperar o tempo perdido no dia anterior. Dessa forma a
casa estava vazia, e ela podia praticar um pouco de piano.
Minutos mais tarde esquentava os dedos no teclado, exercitando escalas simples,
quando Michael entrou na sala. Sorriu com simpatia, preferindo não lhe perguntar
sobre a visita ao cemitério. No entanto, se havia ficado deprimido, era óbvio que ele já
se recuperara, pois, entusiasmado, começou a comentar sobre o passeio da véspera.
Raine teve de interrompê-lo, assinalando que depois conversariam, uma vez que
precisava estudar um pouco.
O garoto acomodou-se nas almofadas, abraçando os joelhos, atento a cada
movimento seu. Uma hora depois, quando Raine parou, ele se levantou de imediato, foi
até o piano, parecendo fascinado pelas teclas de marfim.
“Lembra-se de ver seu pai tocar, Michael?”
“Lembro, sim. A música ainda soa na minha cabeça.”
Comovida, conteve-se para não abraçá-lo, e pensou na dor que inevitavelmente ele
enfrentaria na vida, ao ser diferente, marcado e marginalizado pelos outros. Seria
assim que Jonah se sentia a cada vez que o olhava? Era por isso que relutava tanto em
mandá-lo para uma escola, em deixá-lo viver fora da propriedade? Ele estava
completamente equivocado com esse comportamento, claro, mas Raine podia
compreender seus sentimentos.
Michael baixou a cabeça, constrangido por seu olhar, e tocou uma tecla. Ficou
estático como se tentasse captar o som, depois dedilhou outras notas, parecendo tão
contente que Raine teve certeza de que ele podia sentir as vibrações no ar. Mostrou-
lhe a seqüência do “Parabéns a você”, que ele aprendeu com facilidade, repetindo a
melodia algumas vezes.
“Por que papai não gosta mais de música?”
“Não sei, querido... Olhe, ainda é cedo, quer ir dar um passeio na praia?”
A resposta dele foi um abraço tão eufórico que quase caíram do banquinho. De
mãos dadas, passaram pela cozinha para avisar Tilda que iam sair e então seguiram
caminho, sentindo o sol nas faces e, dali a pouco, a areia macia sob os pés. Estavam
procurando búzios quando alguém os chamou de cima do morro.
Era Rico Ortega, o filho de José, que, sorrindo, desceu pela trilha com incrível
rapidez, juntando-se a eles para procurar conchinhas.
Michael, que a princípio se intimidou, logo sorria também. O pequeno Ortega o
tocava no braço quando queria lhe chamar a atenção para mostrar alguma gaivota ou
barco no horizonte. Os três correram à beira-mar, alegres, soltando gritinhos quando
as ondas lhes molhavam os pés. Ao se cansarem, foram até os recifes para observar as
criaturas que se moviam nas pequenas piscinas naturais.
Por meio de sinais, Michael perguntou a Raine o nome de um caranguejo mais
escuro que os demais, ao que ela respondeu que infelizmente não sabia. Foi o
suficiente para que o garoto se assanhasse e quisesse aprender também alguns sinais,
ali mesmo. Não se fazendo de rogada, ela lhe ensinou algumas letras e palavras mais
usadas. As mãozinhas morenas, um pouco desajeitadas, imitavam os gestos com
dificuldade, e Michael ria dos esforços do amiguinho.
Minutos mais tarde, Rico lhe deu o troco, colocando um pequeno caranguejo em
suas costas. Michael retribuiu espirrando água, e, rindo, numa confusão de pernas e
braços, os dois rolaram pela areia, antes de ficarem se jogando água, para ver quem
conseguia molhar mais o outro.
Quando pararam, ofegantes e contentes, o sol caía no horizonte. Raine chamou-os
para ir embora. Rico a fez prometer que continuaria a lhe dar lições do alfabeto
surdo-mudo, e, depois de dar a mão ao novo amigo, foi embora assobiando.
Seguindo pelo caminho que ia dar na casa, ela envolveu Michael com seu suéter,
pois o vento soprava frio àquela hora, atravessando o tecido molhado de sua camisa.
Sentiu o coração bater mais forte ao ver o carro de Jonah, mas manteve o mesmo
passo.
Assim que entraram na cozinha, Tilda largou as batatas que descascava, jogou as
mãos para o alto e pegou Michael para um banho quente e troca de roupa. Um tanto
pesarosa, Raine se serviu de café da garrafa térmica e foi até a janela, para apreciar
as luzes do crepúsculo sobre a horta e as vinhas. Não tinha a menor vontade de se
aprontar para o jantar.
“Talvez seja hoje o dia ideal para a minha dor de cabeça”, pensou. Escutou um
som atrás de si e virou-se, esperando encontrar Tilda ou Luke, mas era Jonah que
tinha entrado.
— Quer fazer o favor de vir até a biblioteca? Quero discutir um assunto com
você.
Enquanto atravessava o hall, ela involuntariamente levou a mão ao pescoço, onde a
veia traiçoeira começava a pulsar mais forte, refletindo sua ansiedade. Quase caiu das
pernas ao entrar no salão e deparar com Crystal acomodada em uma das poltronas de
couro. Os dois a fitaram em silêncio hostil.
— Algo errado? — perguntou, tentando quebrar a tensão.
— Quando a contratei para trabalhar aqui, foi com a compreensão tácita de que
você teria uma conduta respeitável. Considero sua atitude altamente condenável, na
medida em que deu assunto para as más-línguas.
— Do que está falando? Não faço idéia sobre o que...
— Ora, vamos, Raine — interrompeu Crystal, sarcástica. — Você foi pega em
flagrante. De nada adianta mentir.
— Se não sei do que estão me acusando, como posso me defender?
— Estou falando da exibição que você deu no Hotel Sequóia esta tarde. — Jonah
torceu os lábios, com desprezo. — Se tinha necessidade de encontrar seu amante em
plena luz do dia, podia ao menos ser mais discreta.
— Jonah tem razão, você passou dos limites. Ficar seminua em frente à janela
enquanto seu amigo... a acariciava, foi muito vulgar!
Raine respirou fundo, ainda não entendendo o significado de tudo.
— Podem me dizer quando isso aconteceu?
Com o mesmo ar de desprezo e sarcasmo, Jonah continuou:
— Você sabe tão bem quanto eu... A menos que tenha feito isso mais de uma vez.
De qualquer forma, foi um belo pretexto para as fofocas. Amanhã todo mundo estará
comentando na Cidade que uma empregada da mansão Arlington teve um encontro
suspeito no Sequóia, no meio da tarde.
— Pode ficar sossegado, pois nada disso aconteceu.
— Não seja cínica, Raine — acusou Crystal, com os olhos azuis faiscando. — Ouvi
você marcar o encontro com seu... amigo às onze horas no hotel. Vai negar que se
encontrou com um homem lá?
— Certamente que não, embora não seja da sua conta. Estive com Martin no
Sequóia, pois tinha combinado almoçar com ele.
— Ah, vai bancar a inocente? Se foi um simples almoço, como explica o fato de
estar semidespida na frente da janela do quarto 22, com as cortinas abertas, sendo...
foi assim que uma conhecida minha, amiga do proprietário do hotel, me falou, sendo
acariciada por um homem?
Apesar da raiva, Raine sorriu consigo mesma. Então Glória e Martin tinham
prolongado a estada para um romancezinho de despedida. “Bom para eles”, pensou.
— Temo que não esteja levando o caso a sério, Raine. — A voz de Jonah
interrompeu seus pensamentos como um balde de água fria. — Sua vida não me
interessa, mas o que você faz em público numa comunidade provinciana como a de
Mendocino tem repercussões negativas para nós. Sugiro que seja mais discreta no
futuro.
— Quer dizer que antes mesmo de me ouvir já tirou suas conclusões! Bem, não lhe
devo nenhuma explicação, mas vou dá-la de qualquer maneira.
— Não estou interessado em...
— Então por que se deu ao trabalho de me chamar para esse diálogo ridículo? Eu
digo que está interessado, sim, e vai ter que me escutar. Está me devendo isso por...
por ter dado ouvido às palavras maldosas de uma mulher maliciosa.
— O quê?! — exclamou Crystal, possessa, mas Raine nem se dignou a olhá-la.
— O hóspede daquele quarto onde estive realmente às onze horas da manhã era
meu irmão, Martin Hunicutt. E a mulher que ele acariciava em frente à janela às duas
da tarde era minha cunhada, Glória. Se quiser, pode ligar para o hotel e confirmar os
nomes. E, no futuro, trate de instruir sua cunhada a não se meter onde não é chamada.
Ficar escutando conversas alheias ao telefone é o que eu chamaria de vulgar.
Com o canto dos olhos viu o rosto consternado de Crystal, e virou a cabeça para
lhe lançar um olhar de desafio, sem esconder o sarcasmo. Vermelha de ódio, a moça
levantou-se da poltrona e deu um passo em sua direção, ameaçadora.
De repente um grito cortou o silêncio, e em seguida a figura miúda e frágil de
Michael irrompeu pela sala como um vendaval. Agarrando-se à cintura de Raine, ele
disse, alto e em bom som:
— Não bata em Raine, não bata em Raine, tia Crystal!
Foi como se o tempo tivesse parado. A respiração presa, o sangue gelado, Raine
estava chocada demais para reagir, mas, quando viu o garoto chorar, passou a mão por
seus cabelos, condoída.
Jonah atravessou a sala com passos mecânicos, pegou o filho pelos ombros e
virou-o para si.
— Está me escutando, Michael?
O menino, visivelmente assustado, abaixou a cabeça e nada disse.
— Diga a verdade, meu filho. Não vou ficar zangado.
— Eu... posso ouvir bastante bem, papai.
— Há quanto tempo... Quando aconteceu?
— Começou há alguns meses, um pouquinho de cada vez.
— Então por que não me disse nada?
— A tia Crystal falou... Ela disse que você iria embora se eu contasse, que você só
ficava em casa porque eu era surdo.
— E você acreditou?
— Ela não ia mentir. Tia Crystal me ama mais do que tudo no mundo. Mas quer que
você também fique conosco. Por isso tive que ficar fingindo, só que não gosto de
mentir, papai. — Tocou o peito com a mãozinha morena. — Dói aqui.
Jonah fechou os olhos e respirou fundo antes de virar-se para a cunhada, que,
pálida, observava a cena.
— Por quê, Crystal? O que há por trás dessa... loucura? Alguma espécie de
vingança?
A moça deixou-se cair de volta na poltrona, escondendo o rosto entre as mãos.
Parecia tão desesperada que, apesar da raiva, Raine se compadeceu.
— Não... não foi intencional, Jonah. Quando notei que Michael começava a
melhorar, apenas quis... quis dar um pouco de tempo à situação, mantendo as coisas
como estavam. Tudo vinha correndo bem: você tinha comprado a fábrica, parecia
contente, e Michael sentia-se feliz por tê-lo em casa todos os dias. Eu não suportava a
idéia de ver você partir para alguma turnê e de novo deixá-lo sozinho. Então pedi que
ele fingisse que nada tinha mudado até... até eu poder decidir alguma coisa. Só mais
tarde percebi que estava presa numa armadilha. Fiquei com medo de ser mandada
embora se lhe dissesse a verdade. E para onde eu iria? O que faria?
— E não se preocupou por estar negando a Michael uma vida normal?
— Vida normal? Com você fora de casa o tempo todo? Com a mãe morta e vendo o
pai de vez em quando? Eu estava protegendo um direito dele!
— Será que é só isso? Você tem tanto medo assim de ficar sozinha?
— Admito que não quero que as coisas mudem. E acho que você pode entender por
quê, Jonah. Tudo o mais foi tirado de mim. Tenho o direito a alguma segurança, a
alguma felicidade.
— Você pode fazer o que quiser com sua vida, ir para qualquer lugar, casar-se,
seguir uma carreira, formar uma família... Não precisa se apegar ao passado, que não
foi generoso com você, aliás, se pensar bem e for honesta consigo mesma. Acho que
foi uma má idéia convidá-la para morar comigo e com Michael. Seus valores estão
confusos Crystal, e talvez seja melhor você se submeter a um tratamento profissional
para enxergar melhor a realidade.
— Está insinuando que estou louca porque desejei um lar para seu filho?
— Você mostrou esse lar sobre bases falsas, mentindo e envolvendo o garoto a
quem devia proteger. Talvez seja melhor você partir e encontrar seu próprio caminho
em vez de ficar agarrada à memória de sua irmã.
— Não! Por favor, não me mande embora! Pense em Michael...
— É hora de deixar de usar Michael e a mim como suas muletas, Crystal. Por isso
mesmo quero que arrume as malas e trate de ajeitar sua vida em outro lugar.
Desesperada, a cunhada começou a chorar convulsivamente, e Raine percebeu que
se ficasse ali mais um minuto acabaria por chorar também.
Passou o braço em torno dos ombros de Michael, pensando em levá-lo para fora
da biblioteca, mas o garoto correu em direção da tia, ansioso por consolá-la.
— Não chore, tia Crystal!
Raine soltou um gemido abafado, que chamou a atenção de Jonah.
— É melhor você sair, Raine. Vamos resolver a situação em família.
Ela assentiu com um gesto de cabeça. Por mais envolvida que estivesse com
Jonah, Michael ou Crystal, não passava de uma estranha naquela casa.
Capítulo Dezesseis
No porão frio e escuro, apesar dos raios dourados do sol poente, Raine tentava
se concentrar no trabalho, mas era impossível afastar da mente as cenas da
biblioteca: a centelha de esperança nos olhos de Jonah quando percebeu que o filho
podia escutar e falar; a raiva incontrolável que demonstrara em relação à cunhada
segundos depois...
Pobre Crystal! Cometera um terrível equívoco e agora fora afastada da mansão e
do sobrinho. Talvez Jonah devesse ser mais condescendente, compreendê-la... Não!
Não podia julgá-lo com acerto porque, afinal, Michael não era seu filho. Jamais
conseguiria avaliar o sofrimento de um pai, ao descobrir que durante meses tratara o
próprio filho como anormal, privando-o de uma vida saudável, negando-lhe a felicidade.
Raine sacudiu a cabeça, nervosa, e abriu um novo caixote para catalogação.
Anotava o vigésimo livro quando percebeu que os estava separando numa categoria
errada. Exasperada, voltou atrás e arrumou tudo certinho, continuando com mais
atenção.
Esvaziando o caixote, foi lavar o rosto e as mãos, subindo automaticamente para
a cozinha. A governanta estava sentada à mesa, com o rosto inchado e o nariz
vermelho.
— O que foi, Tilda?
— Oh, Crystal e Jonah... Tiveram uma briga feia na biblioteca, e ele saiu feito um
furacão, Deus sabe para onde. E Crystal arrumou as malas e também foi embora.
Chorava e gritava sem parar, quase não entendi o que estava dizendo. Falou que nunca
mais voltaria.
— Sinto muito.
— Talvez seja melhor assim... Crystal precisava mesmo sair desta casa e viver sua
própria vida. Mas vou sentir sua falta. Luke e eu gostamos dela, pois fomos nós que a
criamos. Era uma garotinha graciosa, embora o pai quase não lhe desse atenção, por
culpá-la pela morte da esposa. Elaine mandava e desmandava nela como bem entendia,
e a pobre obedecia, calada. Vivia à sombra da irmã, implorando carinho. Mas foi
Crystal quem cuidou do pai quando este adoeceu, e era ela quem cuidava de Elaine
quando...
— Quando o quê, Tilda?
— Er... Bem, ela... bebia um bocado.
— A sra. Duncan?
— Sim, vou dizer logo, era alcoólatra. Elaine bebia e não havia quem a
controlasse. Cometia todo tipo de loucura.
— Como guiar em alta velocidade?
— Isso mesmo. Na noite do acidente, ela saiu daqui bêbada. Deve ter sido por
causa do telefonema de Jonah, que ligou do aeroporto avisando que tinha chegado.
Não sei se discutiram, mas ela estava possessa quando desligou o telefone. Gritou
conosco, disse para irmos embora, e então nós fomos para o quarto. Se adivinhássemos
que ela ia pegar o carro, teríamos escondido a chave, como costumávamos fazer
nesses casos. Não sabíamos que tinha levado o garoto até... até a polícia telefonar.
Jonah entrou em desespero quando soube disso, e ficou se recriminando por ter ligado
do aeroporto, em vez de esperar até chegar em casa para falar com ela...
— E por isso culpou-se pelo acidente.
— Sim, nunca se livrou desse sentimento de culpa. Não sei se conseguirá, pois o
garoto é uma lembrança constante da tragédia. Por isso ele se puniu da pior maneira,
privando-se da música... Na minha opinião, é uma forma de se autoflagelar. Quanto a
Michael, não sei o que será dele sem Crystal. Não tem amigos, vai se isolar ainda mais.
— Oh, não, Tilda, isso agora vai mudar. Tenho uma ótima notícia para você!
Michael falou conosco há pouco, na biblioteca. Contou que estava escutando muito
bem.
O rosto da velha se iluminou, seus olhos se umedeceram. Passou a mão pelos
cabelos grisalhos, pensativa.
— Bem que eu tinha desconfiado... Mas toda vez que dizia a Crystal que ele podia
estar melhorando, ela ficava zangada e não me deixava continuar.
— Crystal sabia da verdade, mas não queria que as coisas mudassem aqui na
mansão.
— Será que ela foi embora para sempre?
Raine lembrou-se da determinação de Jonah ao mandar a cunhada arrumar as
malas, e fez que sim com um gesto de cabeça, preferindo não falar. Tilda suspirou
pesadamente, antes de prosseguir:
— Sempre temi que isso fosse acontecer um dia. Mas talvez seja o melhor
caminho para todos. Pela primeira vez na vida, Crystal precisará encarar o mundo
sozinha. Agora é nadar ou afundar. Jonah e Michael, por sua vez, terão mais chance de
se conhecerem, e quem sabe um dia a receberão de braços abertos, como amigos. — A
chaleira assobiou no fogo e ela se levantou para preparar um chá. — Quando fui ao
quarto de Michael para ver por que ele não tinha descido para jantar, encontrei-o
dormindo. Deixei um sanduíche no criado-mudo caso ele acorde com fome. Posso lhe
preparar alguma coisa também. Uma omelete, talvez?
— Obrigada, Tilda. Hoje tive um almoço excepcional, estou sem fome. Só vou
querer um copo de leite. Por que você não toma o chá e depois vai se deitar? Precisa
descansar.
— É, a idade pesa muito nessas horas difíceis.
Mais para acalmar a governanta do que por fome, Raine tomou um copo grande de
leite e comeu um pedaço de bolo. Depois, abriu a gaveta do armário e pegou a chave da
sala de música, sentindo-se inquieta demais para ir dormir.
Os raios prateados da lua cheia entravam pelas janelas, deixando a sala tão bem
iluminada que nem se incomodou em acender a luz. Sentou-se ao piano e correu os
dedos pelo teclado, começando a executar a peça favorita de seu pai, Clair de Lune, de
Debussy. A melodia tomou conta do ambiente, de seu coração, transportando-a para o
mundo da fantasia.
Pareceu-lhe natural que minutos depois Michael, a figura miúda tal e qual um
fantasminha nas sombras, viesse ao seu encontro. Sem dizer uma só palavra, ele se
acomodou ao lado do banquinho, com a cabeça em seu colo e ali ficou, quietinho,
enlevado, caindo em sono profundo logo em seguida.
Os últimos acordes ainda ecoavam na sala quando as luzes se acenderam. Jonah
voltara. Tinha as feições cansadas, os ombros curvados para frente, e Raine sentiu
vontade de confortá-lo, de abraçá-lo com carinho.
— Quero conversar com você, Raine.
— Se espera desculpas por eu estar usando o piano... tudo bem, entrei aqui sem
permissão. Mas acho que você foi muito rude com Crystal esta tarde. Ela ama Michael
acima de tudo, e...
— Não é sobre ela, mas sim sobre você que quero falar agora. Creio que lhe devo
bastante por ter conduzido a situação de maneira que a verdade fosse revelada. Por
mais fria e calculista que seja, sei que também ama Michael. Em primeiro lugar, quero
lhe pedir desculpas em relação ao episódio com seu irmão. Reconheço que tirei
conclusões apressadas. Se bem que, considerando que você não faz segredo de seus
hábitos sexuais, o que minha cunhada me contou não era implausível. Em segundo
lugar... Bem, já que me aproveitei de sua generosidade ontem à noite, decidi que devo
pagar seu preço.
— Do... do que você está falando?
— Você pediu meu apoio em sua carreira, não foi? Faz dois anos que saí do
circuito musical, mas ainda tenho contatos. E tenho certeza de que posso ser um bom
professor. Pretendo prepará-la para participar de um concurso.
— O quê?
— Não para o Tchaikowsky, naturalmente. Seria muito investimento de tempo de
minha parte. Mas o concurso Gracey Memorial acontecerá no próximo mês em San
Francisco. O prêmio é um ano de aprendizado com Joseph Dubbois, incluindo bolsa e
uma pequena turnê pelos Estados Unidos. Dubbois tem fama de saber desenvolver
jovens talentos. Se você souber aproveitar as oportunidades, no ano seguinte irá para
Moscou.
— Mas como...
— Antes de você tomar qualquer decisão, quero que saiba como ficam as coisas
entre nós. Depois da competição do Gracey Memorial, estamos quites, entendido?
Outra coisa: só levarei minha proposta adiante depois de ouvi-la tocar. Não sei nem se
você é treinável, e recuso-me a perder tempo se o seu talento não foi igual à sua...
audácia.
— Mas já venci concursos antes!
— O que para mim não quer dizer absolutamente nada. Se aceitar minha oferta,
precisará ainda me convencer de que seu talento merece tutela. Devo avisá-la de que
não me impressiono facilmente com os recém-formados da Juilliard, que tocam como
robôs. — Apontou para o armário incrustado de madrepérola onde as partituras
estavam guardadas. — Escolha alguma peça para tocar assim que eu voltar, depois de
colocar Michael na cama.
Sem mais uma palavra, tomou o filho nos braços e saiu. Raine escondeu o rosto
entre as mãos. Se recusasse a proposta, terminaria a catalogação e iria embora dentro
de alguns dias, para nunca mais rever Jonah. Por outro lado, ficando mais algum tempo,
havia a esperança, a remota possibilidade de conseguir mudar sua imagem perante ele.
Além disso, Michael devia estar se sentindo muito só, pois acabara de perder uma
pessoa querida. Se ela fosse embora também, aumentaria sua solidão.
Por último, havia o próprio Jonah. Prometera a si mesma que o convenceria a
retomar a música, e é lógico que, lidando com o piano, ele voltaria a compor.
Portanto, eram três motivos para aceitar a oferta. Mas continuava na dúvida.
Tinha medo, muito medo de conviver com Jonah, suportando seu desprezo... Antes,
porém, que pudesse tomar qualquer decisão, ele estava de volta.
— Então, o que vai tocar?
— A Sonata em fá menor, de Beethoven.
— A Appassionatal? Tem certeza de que dará conta do recado?
— Tenho!
“Será?”, perguntou-se, olhando para o primeiro compasso da partitura. Aquela
sonata era uma peça complicada, cujos acordes fortes exigiam muita rapidez nos
dedos. E os exercícios que ela fizera nas últimas semanas eram insuficientes para lhe
propiciar a agilidade necessária. Ergueu os olhos para Jonah, na intenção de dizer que
mudara de idéia, e que preferia tocar Cenas da Floresta, de Schumann, com a qual
vencera uma competição. No entanto, ao ver sua expressão maliciosa, voltou atrás.
Tocaria a sonata, nem que errasse tudo!
De início muito nervosa, seus dedos se moviam sem qualquer flexibilidade. À
medida que a melodia se desenvolvia, foi melhorando a técnica, executando cada frase,
cada movimento o mais perfeito possível. Terminada a sonata, ofegante, pousou as
mãos no colo e virou a cabeça para Jonah.
— Você toca como um autómato. Onde está o fogo, o sentimento que separa um
tocador de piano de um verdadeiro concertista? Se você executasse a música como
faz amor, estaria pronta para competir aqui e agora. Sua técnica é perfeita, mas sem
personalidade. Que droga de ensino lhe deram na Juilliard?
— Escute, não tenho que ficar ouvindo...
— Tem e vai, a não ser que queira arrumar as malas e ir embora agora mesmo.
— Está ficando especialista em expulsar gente de casa, hein? — Por um longo
instante ele a encarou, zangado, mas depois passou a mão pela testa, como se quisesse
afastar uma lembrança desagradável. Seus olhos escuros ficaram mais vulneráveis, os
ombros voltaram a pesar.
— Não foi fácil mandar Crystal embora, mas não havia possibilidade dela
continuar aqui. A única esperança que lhe resta de reconstruir a vida é ficar longe do
refúgio que encontrou em Michael e em mim. E você tinha razão quando disse que eu
não deveria reclamar como acabei de fazer. Mesmo assim, quero que saiba onde está
pisando, Raine. Se eu me decidir a treiná-la, terá de concordar com tudo o que eu
ordenar, sem desculpas, evasivas ou preguiça. Você precisa aprender muito ainda. Ou
seria desaprender? — Fez uma pausa e logo continuou: — Sim, terá de desaprender a
enfatizar a técnica em sacrifício do sentimento e da individualidade. Eu não a
qualificaria como uma boa pianista se não a tivesse escutado tocando aquela peça de
Debussy. Pode ser que tenha errado alguns acordes, esbarrado em algumas notas, mas,
com que sentimento a executou! Nela, percebi personalidade e força. Se aprender a
transformar sua interiorização em melodia, aí, sim, será uma excelente concertista.
Por isso vou aceitar o desafio e tomá-la como aluna, desde que você concorde com
minhas regras ao pé da letra. Negócio fechado?
— Negócio fechado.
— Pois então se prepare para o mês mais extenuante de sua vida. Vai se sentar
nesse banquinho até as costas doerem, os dedos ficarem duros como pedras. Depois
disso, sentirá a música na alma, não no cérebro, e se transformará em uma verdadeira
musicista. Se tentar me enganar com algum truquezinho barato, cessamos com os
ensaios e mando-a de volta para casa. Por outro lado, se obedecer a minhas ordens...
farei de você uma concertista.
Capítulo Dezessete
Na manhã seguinte Jonah partiu com Michael para San Francisco, onde ficaria
alguns dias para um check-up completo do garoto numa clínica especializada. Assim,
Raine aproveitou o tempo concluindo a catalogação e preparando-se psicologicamente
para o difícil período que precisaria enfrentar.
Não temia que a opinião de Jonah a seu respeito fosse interferir nas aulas; pelo
contrário, sabia que ele levava muito a sério os assuntos profissionais, e daria o
melhor de si para ajudá-la. O que a deixava insegura era sua própria reação emocional.
Passaria horas ao lado dele sem poder tocá-lo, conviveriam tardes inteiras juntos...
Três dias depois, pai e filho retornaram com notícias tão boas que
momentaneamente ela se esqueceu dos problemas.
— Os médicos da Clínica Hardesty, onde Michael originalmente foi tratado,
concluíram que ele recuperou quase toda a capacidade de audição. Quando Crystal
percebeu o que vinha acontecendo, tirou o garoto de lá, dizendo que continuaria o
tratamento com um médico local porque era mais perto.
— Então ele terá melhora completa?
— Bem, recomendaram terapia e apoio psicológico por algum tempo, caso ele
tenha algum trauma latente do desastre, e também devido à pressão que passou nos
últimos meses. Mas é um garoto perfeitamente normal.
— Que maravilha!
— Ele começará a freqüentar a escola de Mendocino no outono. Quando eu
voltava de San Francisco, passei na casa de Tim Turlock para lhe contar as novidades,
e ele sugeriu que Michael participasse de programas de verão para garotos de sua
idade. É recreação o tempo todo, natação, futebol, vôlei, e deve ajudá-lo a adaptar-se
à convivência com os coleguinhas. Considero uma idéia excelente.
— Claro. Tim enxerga longe!
— Pelo que entendi, vocês andaram se encontrando bastante; ele tem uma ótima
impressão de você. Espero que não o desiluda algum dia.
— Não pretendo!
Disse isso com tanta veemência que Michael, ocupado em montar um quebra-
cabeça, ergueu os olhos em sua direção. Raine sorriu para tranqüilizá-lo, e o menino
saiu dizendo que ia ver seu bosque de sequóias.
— Estou certa de que Michael se dará bem com os colegas. Ele é sensível, meigo,
e tem muito jeito para conquistar as pessoas.
— É parecido com o avô. Papai morreu sem um centavo, mas ao seu enterro
compareceu uma pequena multidão.
— Então a vida dele foi um sucesso! Meu pai era pouco comunicativo, porém tinha
bons amigos também.
— Vocês eram muito próximos?
— Não muito. Só cheguei a compreendê-lo bem quando já estava crescida. O
mesmo ocorreu com meu irmão. E, por ironia, após a morte de papai é que começamos a
nos aproximar mais.
— Você ainda tem sorte por contar com um irmão. Fui filho único e, com exceção
de Michael, não me resta nenhum parente.
— Tivemos vivências parecidas.
— Superficialmente, talvez, Mas a maneira pela qual enxergamos a vida é bem
diferente.
— Está querendo dizer que você é honrado e eu não? Ora, Jonah, eu não era
casada quando... quando fizemos amor na primeira vez!
— Está me julgando mal, Raine. Naquela noite eu me considerava solteiro. Elaine
partira com outro homem, levando Michael consigo. Estava tentando o divórcio no
México, quando o sujeito mudou de idéia, e então ela voltou para Nova York.
Raine crispou as mãos na poltrona, sentindo o sangue gelar nas veias. Jonah não
traíra a esposa deliberadamente...
— E quanto a você, Raine? Não estava fazendo amor com um homem casado?
— Como ia saber que você era casado?!
— Não sabia? Bem, não importa. O fato é que eu pensava estar divorciado, pois
de outra forma... Esta conversa está ficando cansativa. Vamos mudar de assunto.
Quero-a aqui embaixo amanhã bem cedo. Você vai fazer uma hora de exercícios todos
os dias antes do café da manhã, seja correndo, nadando, andando de bicicleta...
No dia seguinte Raine descobriu o que era viver sob o controle de um tirano.
Imaginara que suas relações seriam pelo menos cordiais, mas logo constatou que tinha
se enganado. Assim que se sentaram ao piano, teve de tocar escalas e mais escalas, só
como aquecimento. Quando ele colocou a Appassionata à sua frente e anunciou que ela
concorreria em San Francisco tocando aquela sonata de Beethoven, sufocou o
protesto que lhe veio aos lábios.
Apesar de seus melhores esforços, não demorou a se convencer de que não havia
modo de agradar a Jonah. Se tentava alcançar o estado emocional que ele exigia,
ignorando a técnica, escutava-o perguntar, sarcástico, se pretendia mudar a melodia
de Beethoven; por outro lado, quando tocava com precisão, ele a acusava de agir feito
um robô.
— Um pianista só toca as notas certas, mas não é uma máquina. Você é a
intérprete, as mãos do compositor. Através de você deve fluir a alma, a essência da
música criada por Beethoven. Precisa sentir o que ele sentiu ao escrever a sonata... O
que ele estava pensando, que emoção queria transmitir à humanidade.
Jonah curvou-se para olhar de perto a partitura, e, aspirando o perfume
almiscarado da loção pós-barba, mesclado ao aroma da colônia de limão, Raine sentiu o
coração pular como um animal selvagem. A tormenta aumentou quando ele segurou seus
dedos e massageou-os por alguns minutos.
— Vamos, relaxe esses dedos, esqueça de metade do que aprendeu e in-ter-pre-
te.
Ela tentou executar a música, mas estava com a mente tão dispersa que os
primeiros acordes não saíram bem.
— Não e não! Está dormindo? Esse acorde tem de ser mezzo-piano! Está bem,
suas mãos são pequenas, mas os dedos são fortes, as palmas, largas. Por que então
toca como se as teclas fossem feitas de cascas de ovos? Se não consegue fazer nem
um mezzo-piano, o que acontecerá num acorde fortíssimo?
— Não sou você! Só porque não consigo martelar esses acordes...
— Chega! Lembre-se do nosso trato, e não dê nenhuma desculpa furada! Ou você
tenta tocar com mais força, ou eu saio da sala agora mesmo. Comece de novo. Desta
vez não quero ouvir uma mocinha tocando bonitinho; quero uma mulher no teclado, uma
mulher com fogo e paixão. Se não sentir nada disso, procure fingir que está fazendo
amor com uma pessoa para depois convencê-la a ajudar você a subir na carreira...
Cega de raiva, Raine mal enxergava a partitura. Engolindo as poucas e boas que
lhe chegavam aos lábios, passou essa energia para as mãos, deixando que a música
traduzisse sua raiva e frustração. Logo, como sempre acontecia quando permitia que a
emoção fluísse, soltou-se na melodia. Perdida numa tempestade de notas, viu-se
transportada para um outro plano, distante das preocupações e dos sentimentos de
ódio-amor que nutria por Jonah...
Quando terminou o primeiro movimento, ofegante, resolveu parar, consciente de
que nunca tocara tão bem em toda a sua vida.
— Está um pouco melhor. Agora, repita o primeiro movimento com os dedos mais
firmes. E pare de bater nos pedais como um jogador de futebol.
Trémula de ódio, ela apertou os lábios e tocou tudo de novo, desta vez só com o
cérebro, enviando ordens para as mãos executarem cada nota exatamente como a
partitura mandava. Como sempre, Jonah reclamou que seus dedos estavam tensos
demais e mandou-a exercitar estudos de Bach.
Os dias seguintes foram um verdadeiro tormento. Se estava feliz por tê-lo ao
lado, sentindo seu cheiro másculo, ouvindo sua voz, também precisava conviver com sua
indiferença, seu profissionalismo exacerbado. Diante disso, não lhe restava
alternativa a não ser entregar-se de corpo e alma à rigorosa rotina que lhe fora
imposta.
As sessões de piano tomavam-lhe o dia inteiro, interrompidas apenas para o
almoço, uma hora de exercício de manhã e outra no final da tarde, antes do jantar.
Até suas refeições eram supervisionadas, pois Jonah fazia questão de que ela tivesse
uma dieta balanceada, rica em verduras e frutas... sem sobremesa. Tendo particular
preferência por doces, era um verdadeiro suplício ver pai e filho deliciando-se com as
tortas, enquanto mordiscava uma maçã ou pêra.
De vez em quando dava uma escapada e aceitava alguns biscoitos que a boa
governanta lhe dava disfarçadamente antes de se deitar, mas não conseguia comê-los
com prazer, sentindo a consciência culpada! Mesmo trancada no quarto, tinha a
impressão de estar sendo espreitada por um par de olhos cinzentos e cheios de
repreensão.
Após o jantar, ainda praticava uma hora de piano, e de memorização de partitura.
Nos concursos, era praxe tocar a música que seria julgada e em seguida executar
outra, de preferência de autor diferente, para confirmar a técnica e a interpretação
diante dos jurados. Jonah escolhera a Rapsódia sobre um tema de Paganini, de
Rachmaninoff, apesar de ela preferir algo menos tradicional.
— Não, Raine. Conheço John Graussmeyer, um dos três juizes da competição
Gracey, e ele é um conservador da linha dura, a ponto de considerar Stravinsky um
vanguardista! É claro que os outros juizes podem votar contra, mas aquela velha
raposa sempre consegue fazer as coisas à sua maneira. O tema sobre Paganini é o mais
adequado, contanto que você o domine bem. Se preferir, pode escolher algum de
Chopin. É receita certa para ganhar aplausos da platéia... mas não será um desafio.
— Pois eu vou aceitar o desafio!
— Ótimo!
Disposta a provar que era uma musicista competente, Raine resolveu aprender e
dominar aquela rapsódia em tempo recorde, de modo a deixar claro que possuía talento
e levava a sério sua carreira. Assim, entregou-se de corpo e alma à árdua tarefa de
memorização de Rachmaninoff.
Só conseguia descontrair nos intervalos, quando saía com Michael. Sempre
aproveitava uma hora depois do almoço para acompanhá-lo até a praia, sentar-se nas
pedras, observar os recifes e nadar. Embora o garoto se ressentisse com a ausência
da tia, estava tão excitado com o mundo novo que descobria nos cursos de verão que
contagiava os outros com seu entusiasmo. Ainda que gratificada com isso, Raine
também ficava triste ao saber que, quando partisse, Michael já não sentiria tanto a
sua falta.
Logo estava de volta ao piano, lutando contra o tempo, contra as mãos que de
repente resolviam tensionar, contra a partitura que às vezes lhe parecia
extremamente difícil. Jonah a avisara de que passaria por uma fase em que teria ódio
da música, e era verdade. Tinha vontade de jogar tudo para o alto e conformar-se em
dar aulas em algum obscuro conservatório do interior...
E assim continuava, suportando as exigências dos exercícios, as repetições
infindáveis, as horas intermináveis de memorização. Se não conseguia o amor de
Jonah, lutava com todas as forças para pelo menos obter seu respeito.
Então, à medida que os dias se passavam, algo foi mudando dentro de si. Como um
corredor de longa distância que deve conquistar um estado de exaustão antes de
vencer a corrida, Raine alcançou um estágio no qual não havia mais para onde
progredir; bastava dar o último passo e vencer. A música fluía do instrumento como
mágica, sem que para isso tivesse de comandar as mãos ou os pés nem se preocupar
com a partitura.
Tinha consciência de que finalmente chegara ao objetivo pelo qual lutara a vida
toda: era uma intérprete, uma verdadeira concertista. E, por ironia do destino, fora
conduzida a esse ponto pelo homem que amava.
Jonah não fazia nenhum comentário sobre seu progresso; pelo contrário,
obrigava-a a tocar cada vez mais, dizendo que ela precisava redobrar os esforços se
quisesse se classificar entre os finalistas da competição.
Um dia, Tilda veio falar com ela furtivamente:
— O Sr. Duncan ficou tão bravo com Crystal que ela não tem coragem de
procurá-lo. Estivemos visitando-a, Luke e eu. Emagreceu quase cinco quilos e não come!
Deve estar solitária, também. Quando perguntei se tinha ligado para o reverendo
Turlock, respondeu que na certa o pastor não a receberia.
— Onde ela está?
— No Hotel Mendocino. Coitada, está tão arrependida!
— Acho que vou telefonar para ela.
— É muito gentil de sua parte, Raine. Tenho certeza de que ela ficará contente.
Mais do que isso, Crystal mostrou-se eufórica e sinceramente comovida ao ouvir a
voz de Raine naquela tarde.
— Oh, Raine, que bom que você ligou! Queria lhe pedir desculpas pela maneira
como a tratei, eu... eu estava tão confusa... Tinha medo de que Jonah se interessasse
seriamente por você e eu perdesse meu lugar na casa. Sabe, estava ocupada demais em
destruir a vida dos outros...
— Ora, Crystal, não fique se culpando. O que passou, passou. Vamos conversar
melhor sobre isso amanhã, concorda? Assim lhe darei notícias de Michael. A que horas
posso visitá-la no hotel?
— Por que não vem às sete da noite? Encontramo-nos no restaurante.
— Perfeito. Precisamos fazer reserva?
Depois de tudo combinado, Raine desligou o telefone, pensativa. Crystal parecia
mesmo solitária, e ela compreendia bem aquele sentimento. Quando fora para a
Juilliard, levara muito tempo até fazer a primeira amizade. Mas lá, pelo menos, tinha
os estudos, as aulas. Sozinha num quarto de hotel, Crystal só podia ficar deprimida.
Foi então que teve uma idéia e, impulsivamente, tirou o fone do gancho e discou
para Tim Turlock.
— Tim? Aqui é Raine. Será que você tem tempo para conversarmos um pouco?
— Sempre tenho tempo para você, Raine. Faz tempo que não a vejo! Como está
Michael?
— Está muito bem, freqüentando o curso de férias, divertindo-se a valer... Tim,
por acaso você viu Crystal depois que ela saiu da mansão Arlington?
A voz do reverendo mostrou reserva quando ele respondeu, após uma pausa:
— Não. Estive pensando em procurá-la, em ligar para o hotel, mas... Bem, acho que
ela não quer mais me ver. Quando nos separamos, dissemos um bocado de verdades um
ao outro. Foi muito doloroso.
— Mas você quer vê-la?
— Creio que sim. Preocupo-me com ela, que é uma pessoa maravilhosa, com muito
para dar. É uma pena não ter construído sua própria vida, com um lar, um marido,
filhos... De qualquer forma, o modo pelo qual foi criada não lhe permitiu desenvolver
sua potencialidade. Eu gostaria muito de ajudá-la, mas não sei como.
— Acho que posso ajudar você a ajudá-la — brincou Raine. — Vou jantar com ela
amanhã às sete da noite. Por que não me encontra no hotel uma hora mais cedo? Assim
conversaremos um pouco, discutiremos um meio de você jantar conosco e depois...
veremos o que acontece.
— Ótimo! Encontro-a as seis, então.
Na noite seguinte, Raine vestiu-se com capricho, escolhendo um vestido de seda
que ainda não usara porque lhe parecia formal demais para jantar em casa. O tom azul
do tecido acentuava o dourado de seus cabelos, enquanto os saltos altos deixavam
suas pernas esguias e bem torneadas. Avisara a Tilda que não ficaria para o jantar,
porém, prudentemente, evitara falar com Jonah.
Escolheu sair pela cozinha com intenção de não encontrá-lo, mas deu de cara com
ele sentado à mesa de carvalho tomando um café.
— Vai passear? Ou essa elegância toda é para mim?
— Vou jantar no Hotel Mendocino.
— Hummm. Seu horário é dez horas, não esqueça.
— Horário? Do que está falando? Faz muitos anos que ninguém controla minha
vida social.
— Não me importo à mínima com sua vida social, mas tenho interesse na sua
saúde. Portanto, nada de bebidas alcoólicas nem comidas pesadas, pois não quero vê-la
com enxaqueca amanhã cedo. Divirta-se.
Embora soltando faíscas pelos olhos, Raine achou melhor calar-se, em vez de
enfrentar uma discussão. Chegou ao hotel um pouco atrasada, encontrando-se com Tim
no hall de entrada. Ele esbanjava elegância num blazer de tweed e camisa esporte, e
apertou sua mão com afeto.
Sentaram-se à mesa e pediram vinho branco.
— Não temos muito tempo, Tim, por isso vou direto ao assunto. Você me falou
uma vez de uma escola para deficientes que estava montando. Como anda o projeto?
— Apesar das dificuldades, conseguimos reformar uma antiga creche, e vamos
iniciar as aulas com quinze crianças. O maior problema agora é encontrar professores;
temos pouco dinheiro, e não posso pedir mais dos pais dos alunos, pois foram eles que
fizeram os donativos para a construção do prédio.
— Pois está se esquecendo de uma ótima professora. Crystal sabe como lidar com
crianças, e já teve experiência anterior. Com todo amor que tem dentro de si...
— Concordo que seria um presente dos deuses, mas há um grande problema nessa
história. Se eu lhe oferecesse o emprego, ela iria pensar... Bem, que mais uma vez
quero interferir em sua vida. Além do mais, estava pensando em voluntários, pois
temos pouco dinheiro para pagar salários.
— Crystal recebe uma bela quantia mensal pela herança do pai. O que ela precisa
é sentir-se útil!
— Isso é verdade... E agora, como fazemos?
— Sugiro que você nos encontre por “acidente” daqui a meia hora, e toque no
assunto...
Tim deu-lhe um beijo estalado no rosto, e despediu-se logo em seguida. Pensativa,
Raine tomava um gole de vinho quando Crystal apareceu. Estava bem mais magra, tinha
olheiras profundas, mas se esforçou para sorrir e cumprimentá-la.
— Oh, Raine, sei que não mereço sua amizade, mas... gostaria de ser sua amiga.
Fui rude com você porque tinha tanto medo de...
— Eu sei, eu sei. Se eu também fosse enumerar os erros que cometi na vida,
ficaríamos aqui a noite inteira.
Como Crystal permaneceu com expressão chorosa, resolveu mudar de assunto,
levando a conversa para as aventuras de Michael. Pouco depois a voz de tenor de Tim
as interrompeu:
— Que coincidência! Minhas duas melhores amigas jantando juntas.
Raine sorriu, cúmplice, mas falou com toda a naturalidade:
— Olá, Tim. Por que não se senta conosco?
Crystal, vermelha como um pimentão, não disse uma palavra. Baixou os olhos e
deixou que os dois conversassem, para aflição de Raine, que, depois de alguns
instantes, conseguiu introduzir o assunto da escola para deficientes. Só então a moça
ergueu a cabeça, ouvindo atentamente o que Tim dizia:
— Pois é, Raine, nosso maior problema agora é encontrar professores. As mães
dos alunos vão se revezar na cozinha e na manutenção da escola, mas precisamos de
gente qualificada para lidar diretamente com as crianças. Alguém que saiba o alfabeto
surdo-mudo, por exemplo, pois há quatro deficientes de audição.
— Deve haver muitos voluntários para isso — comentou Crystal, timidamente.
— Mas tem que ser gente dedicada, Crystal. Muitas pessoas se oferecem como
voluntárias, mas pegam o serviço como se fossem um hobby, e depois desistem. Não
queremos alguém que passe dois ou três meses na escola e depois deixe as crianças.
Isso só as prejudicaria.
A morena o encarou com firmeza, os olhos brilhantes e esperançosos.
— Aceitaria alguém como eu para o trabalho?
— Você?! Pense bem, Crystal, é um compromisso sério, e não há salário...
— Não quero pagamento. E já trabalhei com crianças deficientes quando estive
na universidade, lembra-se?
Nos quinze minutos que se seguiram, Tim deixou-se convencer, e dali a pouco os
dois faziam planos para a recreação das crianças, com nova cor nas faces.
Usando os estudos de piano como desculpa, Raine despediu-se antes da
sobremesa, saindo do hotel com a sensação de que tinha feito uma boa ação.
Capítulo Dezoito
Da janela do Hotel Fairmont, Raine observava o tráfego pesado das ruas de San
Francisco, enquanto a neblina da noite começava a envolver a baía, mais à distância.
Tinha chegado há três dias, dois dos quais passados à procura de um vestido
apropriado para usar no Concurso, além das horas normais de estudo e ensaio com a
orquestra.
Agora, enquanto as luzes da cidade se acendiam e a noite caía como um manto de
veludo sobre o cais, pesava-lhe a tristeza de saber que, terminada a competição, era
provável que nunca mais se encontrasse com Jonah. Afinal, esse foi o trato, e ele
cumpriu sua parte muito bem. A melhor maneira de lhe demonstrar gratidão era
ganhar o primeiro lugar, tarefa difícil, mas que tinha condições de conseguir.
Afastou-se da janela com um suspiro, mirando-se no espelho da penteadeira. O
vestido que Jonah escolhera não podia ter sido mais belo e adequado. De crepe de
seda, com corte simples, cor de champanhe, tinha como único enfeite minúsculas
pérolas bordadas perto do decote redondo. O tecido lhe delineava o corpo, dando-lhe
um porte elegante.
— Você precisa usar todos os trunfos, Raine — dissera Jonah, quando ela
protestara ante o preço do vestido. — E esse é meu presente de despedida. O vestido
lhe caiu muito bem, e fará um belo contraste com o tom escuro da orquestra, A cor
champanhe não tem a falta de originalidade dos tons pastel. Mesmo assim, não se
esqueça de uma coisa: ao sentar-se atrás do piano, é o seu talento que conta. O resto
não passa de confeito no bolo.
“Bem, pelo menos o confeito ficou bonito”, pensou, melancólica.
Uma batida à porta fez com que Raine olhasse para o pequeno relógio de
cabeceira. Ainda era cedo para descer e encontrar Jonah no horário combinado.
Então, quem seria?
Foi abrir a porta e surpreendeu-se ao vê-lo, incrivelmente bonito, num terno
escuro de corte impecável. Enquanto entrava, ele estendeu-lhe uma caixinha de veludo
com um sorriso enigmático nos lábios.
— Isto é para você. Um presente merecido por seu trabalho. Tenho certeza de
que ficará muito bonito com seu vestido.
Com as mãos trêmulas, Raine abriu o estojo e soltou uma exclamação admirada.
Era um colar de ouro, onde se pendurava, em forma de lágrima, uma única pérola,
grande, e na certa bastante valiosa.
— Deixe-me colocá-lo, Raine.
— Oh, Jonah, eu... não sei como lhe agradecer. É lindo!
— Uma recompensa por sua aplicação. Você me surpreendeu.
— Por quê?
— Eu não sabia que suas ambições eram baseadas num talento genuíno e na
vontade de trabalhar duro. Pensei que quisesse o sucesso sem ter que pagar seus
tributos. Peço-lhe desculpas por isso.
— Obrigada.
Seus olhos se encontraram no espelho, e por um instante mágico se fundiram e se
compreenderam num acordo mútuo. Parecia que todas as barreiras tinham caído, e o
coração de Raine bateu mais forte, esperançoso... Mas logo em seguida Jonah se
afastou, dizendo:
— Quando chegarmos ao Teatro Gracey, quero que você fale somente o
necessário. Não desperdice energia em conversas que não acrescentam nada. Você
ficará no Salão Verde, juntamente com os outros concorrentes, à espera de sua vez.
Seja educada, mas não alimente fofocas ou mexericos inconseqüentes.
— Está falando como se eu fosse um caso de vida ou morte.
— Uma competição é uma competição. Se não mantiver sua energia intacta,
fluindo dentro de você, não conseguirá vencer.
O talento conta, claro, mas há algo mais, uma febre de vencer, que só alguns
competidores têm.
— E sem dúvida você tinha essa “febre de vencer”?
— Oh, sim. Sempre tive mais do que os outros. Essa era a grande diferença e o
meu maior trunfo. É claro que tinha talento, também, mas no caso...
— Tinha?
— Perdi o interesse em continuar a tocar.
“Mentiroso”, pensou ela, enquanto buscava o xale de seda e a bolsa que
complementavam o conjunto. Percebia claramente que Jonah ainda amava a música e
que adoraria voltar a pisar num palco... No entanto, estava dominado por algo mais
forte, uma paixão mais avassaladora: o amor que nutria pela esposa falecida. Ele
continuava a se culpar por sua morte, razão pela qual não tocara, desde o enterro de
Elaine, nem concluíra aquela sonata linda, maravilhosa.
A sala onde os competidores ficavam à espera, tradicionalmente chamada de
Salão Verde, era na verdade cinzenta e feia. Embora houvesse cadeiras e poltronas,
Raine estava nervosa demais para se sentar e, evitando os olhares dos outros
concorrentes, andava devagar de um lado para outro. Dois dos seis competidores já
haviam se apresentado, e agora estavam conversando a um canto. Eram rapazes,
ambos mais novos do que ela, e pareciam seguros de si.
Fechando os ouvidos à conversa deles, procurou concentrar-se no concerto que
estava sendo tocado pelo terceiro concorrente, Lars Bjoborg, um sueco que fora
criança-prodígio e era aluno dos melhores professores europeus. O jovem loiro
executava a música com perfeição, fazendo-a sentir um frio insuportável no estômago.
Desejou nunca ter sido a última sorteada. Aquela espera era uma verdadeira
tortura. Mas tinha a vantagem de, depois de se apresentar, não precisar esperar para
saber o resultado do júri. Se ganhasse receberia a orientação do melhor professor
norte-americano e ganharia bolsa de estudos até o Concurso Tchaikowsky do próximo
ano.
Enquanto escutava o último movimento do concerto, ocorreu-lhe que, apesar da
execução sem reparos do jovem sueco, faltava-lhe justamente aquela “alma” que Jonah
tanto insistira em que ela compreendesse e dominasse. Lembrando-se dos anos da
Juilliard, pensou em quantas vezes se esforçara para atingir a técnica perfeita, a fim
de agradar os professores, e se esquecera de que a música era, antes de tudo, emoção
pura, convertida ao som por magia e gênio do homem.
Agora não era mais aquela garota ingênua e sonhadora que com tanto empenho se
dedicara a tocar piano. Jonah fizera dela uma mulher consciente de suas paixões e, ao
mesmo tempo, de seu talento. Será que conseguiria transmitir ao público todas aquelas
emoções em sua interpretação?
Pelos aplausos frenéticos da audiência, compreendeu que Bjoborg era o favorito
da noite. Os juizes se deixariam influenciar pela platéia? Jonah lhe dissera que, por
mais experientes ou imparciais que fossem, não escapavam do perigo de desviarem um
pouco o critério devido ao entusiasmo do público.
Cedendo à tentação, aproximou-se do palco e, da coxia, viu o jovem agradecendo
os aplausos, a testa molhada de suor, os olhos brilhantes. Além dele, à frente da
platéia que delirava em ovações, os rostos impassíveis dos três juizes, dois homens e
uma mulher. Observou-os curvarem-se para fazer anotações, desejando enxergá-los
como seres humanos por trás da máscara de profissionalismo que estavam usando.
Ainda estava lá quando entrou o quarto competidor, um menino de quatorze anos
que aparentava doze, de tão franzino. Começou a tocar Bach com agilidade e técnica
impressionantes, mas logo ela ficou tranqüila. Era um garoto talentoso, sem dúvida,
mas não amadurecido o suficiente para a competição.
Mais tarde, a quinta concorrente, uma chinesa de seus vinte e poucos anos, surgiu
mostrando muita calma e autoconfiança. Quando os primeiros acordes de um noturno
de Chopin soaram pelo teatro, Raine recomeçou a andar de um lado para o outro,
nervosa. Chopin sempre agradava às platéias, e, pela maneira com que a moça tocava,
valorizando o romantismo da peça, era claro que tinha escolhido exatamente o caminho
oposto ao do sueco Bjoborg para chegar ao coração do público e dos jurados. Jonah
teria cometido um erro ao escolher a pureza de Beethoven? Bem, era tarde demais
para se preocupar com isso.
Percebeu que respirava com dificuldade, que as mãos estavam molhadas de suor e
o rosto parecia pegar fogo. Sentia uma vontade louca de correr para o palco, retirar a
chinesa do piano e começar a executar sua peça. Seria aquela febre de vencer à qual
Jonah se referira, ou era puro nervosismo? Fechou os olhos, transtornada, apoiando-
se à parede.
— Está passando bem, mocinha?
Jonah a encarava, com os olhos insondáveis. Reprimindo o impulso de atirar-se em
seus braços, forçou um sorriso.
— Tudo em ordem, patrão.
— Você tem o talento nas veias, não se esqueça. Suba lá e prove que é uma
verdadeira musicista.
Beijou-a na testa com delicadeza, e depois, da mesma maneira mágica como
surgira, sumiu na escuridão, deixando-a paralisada. Ainda sob o impacto daquele beijo,
voltou para a sala de espera, e de repente descobriu que já não tinha medo. Apesar de
sentir a tensão crescer dentro de si, era de uma maneira construtiva e relaxante, ao
mesmo tempo.
Finalmente foi chamada para o palco. Prendendo a respiração, ergueu a cabeça e,
após contar até cinco, soltou-a num longo suspiro. A luz dos holofotes a transportou
para um mundo irreal, fantástico, onde era soberana e dona de si. Curvou-se as três
vezes exigidas pelo protocolo: uma para os juizes, outra para a platéia e a terceira
para o maestro, embora a orquestra não a acompanhasse na primeira peça.
Seus olhos procuraram inconscientemente por Jonah nas primeiras fileiras e, à
luz ofuscante que a cegava, distinguiu a cabeça morena bem à sua frente. O
nervosismo desapareceu no mesmo instante, e só então sentou-se ao piano.
Seus dedos, fortes e firmes, começaram a dançar no teclado, formando os
primeiros acordes da Appassionata. O uso de partitura era permitido na competição,
mas a dispensara, pois trazia aquela sonata nas veias, no cérebro, e um virador de
páginas só lhe tiraria a concentração.
Aquele era o ponto culminante de toda uma vida de trabalho, de esforços, o
resultado final de anos de sofrimento mental e às vezes físico. Por instinto, sabia que
nunca tocara tão bem, e que Jonah a envolvera, massacrara e por fim conseguira fazê-
la ultrapassar o limite que separa o técnico perfeito do músico perfeito, cérebro e
coração unidos num único resultado, fluente, a tradução fiel da verdadeira vida... Ela e
a música se dissolveram nos últimos acordes, transformados em energia que vibrava
pelo teatro em silêncio.
Silêncio estupefato por alguns segundos, depois os aplausos começaram,
incharam, subiram aos píncaros, ficaram tumultuados, e ela virou a cabeça para a
audiência. A platéia estava de pé, concedendo-lhe uma rara homenagem. Dirigiu o olhar
para onde Jonah se sentava e viu-o também de pé, sorrindo e aplaudindo. Uma onda de
esperança lhe aqueceu a alma, ergueu-a para cima, fez com que flutuasse... De repente
nada mais lhe interessava a não ser provar que não era a mulher mesquinha e vulgar
que ele julgava, e que o amava não só fisicamente, mas de todo o coração.
Uma idéia lhe surgiu à mente com tanta precisão e transparência que respirou
fundo, aliviada. Claro! Havia um modo de mostrar a Jonah que o amava mais que tudo
no mundo, inclusive sua carreira e sua música. Ele sabia o quanto lhe custara estudar
para o concurso, como ela trabalhara duro para chegar até ali. Se deliberadamente
jogasse para o alto a chance de ganhar, talvez... Sim, ele acreditaria em seu amor.
Não se permitiu tempo para medir as conseqüências de seu ato. Enquanto os
aplausos ainda recrudesciam pela audiência, levantou-se e foi dizer algumas palavras
ao ouvido do maestro. O homem, obviamente irritado, voltou-se para a orquestra e
ordenou que todos guardassem a partitura de Rachmaninoff. Ao mesmo tempo, um
murmúrio intrigado correu pelo público.
Raine virou-se de frente para a platéia e, embora se dirigisse aos juizes, estava
falando à única pessoa do mundo que lhe importava.
— Não tocarei a variação de Rachmaninoff — anunciou com voz firme. — Em vez
da rapsódia, executarei uma sonata, ainda não publicada nem concluída, que foi
composta por um amigo. Chama-se Sonata Para o Meu Amor.
Imediatamente o diz-que-diz tomou conta da audiência, e Raine viu o olhar
desaprovador dos juizes, “aqueles sujeitos convencionais”, como Jonah os chamara.
Voltou para o piano e começou a tocar sem fazer antes nenhum protocolo.
O tempo parou. Perdeu consciência da platéia, dos jurados, até mesmo de Jonah.
Só existiam o piano, a música e ela, o elo de ligação entre o instrumento e a melodia,
os três formando um único ser. A sonata fora escrita por um homem que perdera a
mulher amada, e era assim que ela, vítima do mesmo sofrimento, a executava: de
coração, do fundo da alma.
Quando chegou ao final abrupto e inacabado, parou. As últimas notas ainda
ressoavam no auditório, e, de cabeça baixa, tentava recobrar a energia que lhe fora
sugada durante a execução.
De início, o som foi como o de um gemido surdo, abafado, ou como o ruído das
ondas quebrando nas pedras atrás da mansão Arlington. Depois, percebeu que eram
aplausos, aplausos frenéticos como nunca escutara em toda a sua vida. Levantou-se da
banqueta e encarou a platéia, arregalando os olhos incrédulos ao notar que desta vez
até mesmo os juizes estavam de pé.
No entanto, a poltrona de Jonah estava vazia. Ele se fora!
A decisão do júri foi um anticlímax. Ela fizera o não-convencional, o imperdoável,
mudando o programa em plena competição, escolhendo uma peça inacabada de um
compositor desconhecido. Mas, como Jonah tão bem lhe apontara, eram antes de tudo
seres humanos, e acabaram lhe dando o primeiro lugar.
Minutos depois ela era envolvida pela multidão que tentava abraçá-la, mas sorria
como um autómato, movia-se como um robô. A vitória não lhe importava mais. Jonah
não estava lá para lhe dar os parabéns. Fora embora sem ao menos um adeus.
Capítulo Dezenove
Raine saiu de seu apartamento para a rua, e o vento gelado a obrigou a apertar o
casaco de lã contra si. A tarde fria e cinzenta refletia seu estado de espírito. Há duas
semanas que só conhecia a tristeza e a desolação, perambulando pela cidade como um
autómato. Quanto tempo levaria para sarar seu coração despedaçado? Um ano? Dez?
Uma vida inteira?
Embora o dinheiro recebido pela catalogação fosse mais do que suficiente para
sustentá-la até o começo das aulas com Joseph Dubbois, no outono, tinha arrumado um
emprego de meio período numa escola de dança, onde também estudava piano. À noite,
depois de três horas de prática, voltava para o pequeno apartamento, preparava uma
refeição e depois via tevê ou lia alguma coisa.
De vez em quando aceitava os convites de Martin e Glória para jantar, passando
noites agradáveis na companhia da sobrinha. Um dia fora a um concerto com o filho da
dona da escola de dança, e depois jantara com o rapaz num restaurante sofisticado.
Tudo muito normal, muito fútil, mas não podia ter pena de si mesma: devia
concentrar-se para o Concurso Tchaikowsky do ano seguinte, vencê-lo e resolver sua
vida de uma vez. Teria atingido seu objetivo, poderia viajar como concertista, ser
internacionalmente conhecida...
Por enquanto o problema consistia em conseguir passar de um dia para o outro
sem se entregar ao desespero. O emprego que arrumara não era dos piores: tocava
durante as aulas de bale, divertindo-se com as alunas que aprendiam a dançar ao som
do piano. No entanto, por mais que ocupasse seu tempo, a melancolia não a abandonava.
Pensara até em procurar um analista, mas de que adiantaria? “Doutor, por favor, quero
uma pílula para curar o mal do amor...” Não, não havia médico que pudesse ajudá-la.
Sorrindo com amargura, Raine estacionou o velho Ford de seu pai ao lado do
grande edifício onde ficava a escola de bale. Subiu as escadas rapidamente para o
segundo andar, onde as alunas do curso intermediário tinham aulas. Foi recebida por
um coro animado de cumprimentos, mas, ao olhar em torno, não viu a professora.
— Onde está a sra. Norton?
Esther Jaminson, uma garota de dez anos, morena, de olhos vivazes, adiantou-se
para responder.
— Ela não vem, srta. Hunicutt. Telefonou avisando que está com gripe.
— E por que vocês estão aqui?
— Fizemos uma votação e decidimos ficar para ouvi-la praticar piano.
— Gostam de ficar ouvindo escalas? — brincou Raine, sorrindo.
— Oh, não! Queremos ver a senhorita tocar alguma coisa bonita, como na semana
passada, no aniversário da sra. Norton.
— Quer dizer que minha opinião não conta! Devo me sentar e tocar de qualquer
jeito?
— Oh, sabemos que você não se importa, srta. Hunicutt. Vai tocar para nós, não
vai?
— Muito bem, aceito a proposta. O que querem ouvir? Alguma preferência?
Riu diante do coro animado de vozes que respondeu à sua pergunta, cada menina
pedindo uma música, a maioria baladas românticas. As garotas se acomodaram no
carpete e ficaram quietinhas ouvindo as músicas, aplaudindo depois de cada audição e
pedindo outras. Raine estava tão entretida que nem notou haver começado a sonata de
Jonah. Quando percebeu o que estava fazendo, interrompeu-se imediatamente.
— Oh, srta. Hunicutt, estava tão bonito... — protestaram algumas vozes. — Por
que não continua?
— Essa música não tem final.
— A srta. Hunicutt está enganada, mocinhas. — A voz, vibrante e máscula,
dolorosamente familiar, soou às suas costas. — A música tem um final feliz, se ela
assim o quiser...
O susto de Raine foi tão grande que, ao virar-se, quase caiu no chão. Foi
amparada por aqueles braços fortes, tão conhecidos, enquanto sua voz lhe sussurrava
ao ouvido:
— Eu devia deixá-la cair pelo menos uma vez!
Jonah parecia divertir-se, porém sua expressão estava carregada, tristonha, os
olhos fundos... Mas os lábios se curvaram num sorriso cheio de ternura e promessas,
fazendo com que seu coração disparasse, esperançoso.
Ele se sentou ao banco, passou o braço esquerdo pelos seus ombros, e com a mão
direita continuou a sonata. Hesitante a princípio, depois mais confiante, Raine fez o
contraponto com a mão esquerda, o tempo todo perturbada pelo contato da coxa
musculosa contra a sua, pelo subir e descer ofegante do peito forte.
Terminado o primeiro movimento, Jonah virou-se para as meninas que,
fascinadas, fitavam-no.
— Muito bem, mocinhas, o concerto acabou. Agora quero ter uma conversinha
particular com a srta. Hunicutt.
— Tudo bem, srta. Hunicutt? — ousou perguntar Esther, duvidosa.
— Sim. O Sr. Duncan é um velho amigo.
Sussurrando baixinho e trocando olhares cúmplices, as garotas se levantaram e
saíram. Suas risadas ecoaram pelas escadas durante alguns segundos, até sumirem por
completo.
Jonah cruzou a sala e trancou a porta à chave.
— O que está fazendo, Jonah?
— Não quero ser interrompido. — Voltou para o banco, o rosto sério e
compenetrado. — Eu devia ter feito isso na noite em que você me seguiu até
Mendocino.
Antes que ela pudesse responder, estava sendo beijada e abraçada. No começo,
surpresa demais para reagir, ficou rígida, de olhos arregalados. Depois, uma onda de
felicidade a invadiu, fazendo com que correspondesse com intensidade e ternura.
Apertou-se contra o corpo musculoso, odiando as roupas pesadas que separavam suas
peles, desejando mais contato, mais calor.
Com um gemido abafado, Jonah afastou-se o suficiente para lhe tirar o casaco e
a malha, e a seguir desabotoou o sutiã rendado, jogando-o longe. Afundou a cabeça
entre seus seios, murmurando:
— Não sabe quantas vezes sonhei com isso, Raine...
— E eu...
Suas mãos trêmulas, porém determinadas, abriram o zíper da jaqueta de lã,
desabotoaram a camisa clara, deixando-a cair. Também afundou o rosto no peito largo,
aspirando aquele odor masculino que a perseguia nos sonhos. Só se afastou um pouco
para desafivelar o cinto de couro e enfiar as mãos dentro da calça, ansiosa por tocá-
lo, por senti-lo vibrar.
— Oh, Raine, está me enlouquecendo!
Os olhos fixos nela, Jonah foi despido por completo e acariciado devagar,
sensualmente, as mãos delicadas lhe proporcionando prazeres inesquecíveis, traçando
círculos por seu ventre rijo, pelas coxas, tocando-o, explorando-o.
Depois, ele também a despiu com gestos lentos, beijando-a na pele exposta à
medida que ia lhe tirando o jeans, a calcinha, os sapatos e meias. De olhos fechados,
Raine sentia-se rodopiar numa espiral ascendente, desejando-o cada vez mais.
Quando a urgência do desejo se tornou insuportável, atirou-se em seus braços,
pressionando os seios contra o peito peludo, e os quadris de encontro ao corpo
musculoso e bronzeado. Então Jonah carregou-a nos braços e depositou-a sobre um
dos tapetes.
O mundo se dissolveu numa nuvem de fumaça, e nada mais existia exceto o
prazer que ela sentia, sendo beijada e acariciada pela língua quente e experiente. As
mãos morenas a massageavam com delicadeza, fazendo-a gemer de prazer.
Aquele doce tormento transformou-se em quase dor, quando ele acomodou o
corpo sobre o seu, fitando-a bem fundo por alguns segundos, os olhos escuros acesos
como duas brasas. Devagar, foi descendo entre o berço daquelas coxas bem
torneadas, penetrando-a, encontrando-se com a maciez morna e quente de mulher que
a parceira lhe oferecia.
Raine parecia flutuar sobre ondas altas, intermináveis, e os dois, unidos no
mesmo movimento, tornaram-se um único e vibrante ser, completos, plenos.
Ali deixaram-se ficar, arfantes, um sentindo o coração do outro, acariciando-se
com extrema delicadeza.
— Você também sentiu como se o mundo tivesse parado alguns segundos, Raine?
— Ou como se nós dois tivéssemos abandonado o mundo por alguns segundos...
— Meu Deus, como te amo, Raine. Te amo mais do que a própria vida. Naquela
noite da competição, eu devia ter ficado até o fim para lhe dizer o que estava
sentindo. Quando a vi tocando, visualizei o final da sonata e tive a terrível necessidade
de tocá-la, vê-la acabada. Era como se tivesse descoberto a solução de todos os meus
problemas, compreende? Oh, minha Raine, minha doce Raine...
— Pensei que você não me amasse.
— Sempre te amei, desde aquela noite em Catskills, quando você surgiu como uma
ninfa no meio da estrada. Achei que tinha encontrado minha chance de felicidade.
Louco de amor, naquele mesmo dia em que a deixei no apartamento encontrei Elaine de
volta em casa, dizendo-me que desistira do divórcio. Eu lhe disse então que era tarde
demais. Ela ficou histérica, e usou a arma de sempre: Michael. Ameaçou sumir com o
garoto, provocar um escândalo que não só arruinaria minha carreira como também
marcaria meu filho para sempre. E, quando me acusou de ter outra mulher, fui idiota o
bastante para admitir a verdade. Imediatamente ela falou que descobriria quem era e
que a jogaria na lama. Eu não podia permitir que isso acontecesse, por isso lhe mandei
aquele bilhete lacônico, para que você nunca mais me procurasse.
— Aquilo quase me destruiu, Jonah.
— Eu sei, agora eu sei... Deus, como a magoei! Mas você é meu único amor, sempre
foi, sempre será. Nunca amei Elaine. Fui fascinado por sua beleza. Logo descobri o
erro que cometera, mas não havia caminho de volta. Sabe, meu amor, escrevi aquela
sonata para você.
— Oh, Jonah! — Trêmula de emoção, Raine o abraçou com força. — E eu que
sempre pensei...
— Srta. Hunicutt, está tudo bem? — disse alguém, batendo à porta. — Srta.
Hunicutt!
Como duas crianças flagradas numa brincadeira, os dois começaram a rir,
enquanto pegavam as roupas e se vestiam rapidamente, um ajudando o outro com os
botões e zíperes,
— Quero que você seja minha esposa, Raine. A mãe de meus filhos. Minha, para
sempre.
— Para sempre...
Alheios às batidas insistentes na porta, ficaram abraçados por um longo tempo,
beijando-se apaixonadamente, selando para sempre suas vidas, vivendo a felicidade de
um futuro cheio de promessas e alegrias.
Fim
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