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A Herdeira
do Título

2017

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Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades,


e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas,
como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um
acréscimo de estima por si mesma,
e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante,
onde cada hora tinha o seu encanto diferente,
cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de
sensações!
(Eça de Queiroz, “O Primo Basílio”)

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Agradeço a todos que me apoiaram na jornada, especialmente minha família


paciente.

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Sumário
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21

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CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
FELIZES PARA SEMPRE...

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Prólogo

Londres, junho de 1814.

E la era linda. E Jonas tinha inveja de todos os nobres


que podiam tirá-la para dançar. Ela sorria para eles,
conversava com eles, flertava com eles. De modos
perfeitos, ela era muito boa para aqueles almofadinhas engomados e alisados.
Os idiotas sem assunto a divertiam, tocavam sua pele macia e a devolviam
à parede de solteiras. Por que eles não a convidavam para um passeio no
jardim?
O cantar da cotovia não se comparava à voz dela; uma voz que nunca
dissera o nome dele. Jonas era apenas um planeta orbitando ao redor da
moça, que brilhava muito mais do que todas as velas do salão juntas.
Ela falava baixo, ingênua e inexperiente, e regozijava-se em sua primeira
temporada.
O primeiro baile da primeira temporada. O tradicional baile do Duque de
Augusburg, que já estava velho demais para participar e deixara o filho, Sam,
com as responsabilidades de anfitrião.
Pensando nisso e se achando um tremendo idiota, ele só a admirava de
longe. Não era um romântico. Sempre fora prático, matemático, direto e,
mesmo assim, havia percebido que o vestido da moça tinha pequenos pontos
de brilho, que marcava os seios deixando-os no tamanho perfeito das mãos e
que era cor de champanhe.
Não bege, não amarelado. Champanhe.
Detalhista, convenceu-se de que esta era a qualidade que lhe permitia
perceber cada minúsculo movimento dela.
Sensato, sabia que só reparava nela; não fazia ideia da cor do vestido de
nenhuma das outras moçoilas do baile.
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Jonas queria, ardorosamente, poder tirá-la para dançar. Depois que


dançassem, a levaria ao jardim, falaria palavras doces e a beijaria lenta e
suavemente. Pediria para cortejá-la, a visitaria todos os dias com rosas
brancas, ofereceria o maior anel que achasse na loja e casaria com ela.
Depois, acordaria e voltaria ao trabalho, porque só em sonhos conseguiria
esta honra.
Era a primeira temporada dela e Jonas logo seria enviado para a América,
onde deveria duplicar o investimento que seu pai faria. Só então poderia
voltar para casa. Ele e Simon, seu irmão, embarcariam em navios diferentes
para aproveitar a reabertura do comércio com a ex-colônia. O primeiro a
voltar com o dinheiro duplicado, assumiria a vice-presidência do banco. Eles
não estavam particularmente animados, mas quando seu pai lançou o desafio,
foi inevitável. O velho senhor Marshall havia atiçado a rivalidade que sempre
existiu entre os gêmeos.
— A vantagem de não ser nobre é essa: eu posso escolher meu herdeiro
— ele disse, dois dias antes do baile, na tarde em que decidiu adiantar a
viagem deles em quase um ano.
Ele havia se conformado. Nunca poderia ter Christine e uma dança era
tudo que Jonas pedia. Uma dança de despedida. Ela certamente estaria
comprometida ainda naquela temporada. Não tinha como ser diferente.
A moça de longos cabelos cor de açúcar queimado era linda e já na
primeira vez em que ele a viu, ficou encantado. Na ocasião, quase um mês
antes, na Praça de Stonehurt, ela passeava com algumas outras damas,
seguida de perto por um séquito de jovens irritantes, exageradamente
solícitos e naturalmente futuros. Futuros Condes, futuros Viscondes, futuros
Duques...
Desde então, Jonas passou a admirá-la de longe. Às vezes, passava ao seu
lado, cumprimentava-a tocando na aba de sua cartola e seguia em frente,
como se fosse indiferente a ela. Era impossível ser indiferente a ela. Sem que
a moça percebesse, perdia-se nos próprios pensamentos enquanto ela seguia
seu caminho.
Ele a conhecia e sabia bem quando estava mais feliz, mais animada, mais
entediada, mais cansada. Ele reparava nela, desde a forma como Christine
piscava até a maneira como arrumava o cabelo.
Naquele dia de junho de 1814, observando-a do outro lado do salão no seu
primeiro baile, no dia de sua apresentação à sociedade, Flaubert estava
hipnotizado. Ele sequer conseguira dançar com outra dama.
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Será que ela sonhava com casamento?


Provavelmente. Elas sempre sonhavam com casamento. E sempre
sonhavam com casamentos nobres, convites para salões exclusivos e chás da
tarde. E, depois de casada, ele não poderia mais se aproximar dela, nem
mesmo esbarrar em seu braço na mesa de licores.
Seria indecoroso.
— Se você não convidar a moça, nunca vai dançar — sussurrou Simon em
seu ouvido, depois da terceira valsa exemplarmente partilhada com diferentes
damas. — Você precisa aproveitar esses últimos dias, meu irmão. Viajaremos
em breve. São apenas mais três bailes e, então, exílio nas Américas.
Aproveite! Leve a tal dama para o jardim, mostre-lhe as rosas da noite,
encante-a com aquele papo chato de lua e estrelas. Fale a idiotice que quiser,
mas consiga um beijo. Hoje. Ou vai passar os próximos meses me ouvindo
contar o quanto esses jardins me viram fazer só nesta temporada.
— Não há dama, Simon.
— Ora, ora, Flaubert, está me tirando por idiota? Eu sei que há uma dama
e vou descobrir quem é! Ou pensa que não reparei que você anda suspirando
como um bocó?
— Caia fora, Simon! Ela nunca aceitaria dançar comigo.
— Ela? Eu sabia! Existe uma ela específica? Quem é?
— Esqueça, Simon.
— Hummm... Deixe-me ver. Você olhava naquela direção — ponderou,
coçando o queixo. — Tem aquela germana maravilhosa de olhos verdes, neta
da Duquesa de Greenfield. Ela é a minha definição de pecado, aquele corpo
sinuoso... Deliciosa! — Arriscou, conferindo seu palpite no olhar do irmão.
— Não? Muito bem...
Jonas bufou, recusando a atitude do irmão com a cabeça. Mas Simon
continuou: — Tem a senhorita Julie de Sommè, mas é horrorosa com aquele
rosto estranho... É o nariz? A boca? O que diabos é estranho nela? —
Perguntou, retoricamente, para Flaubert. Simon sabia bem o que achava
estranho nela... — Bom, se for ela, eu te jogo de cara no chafariz! É?
— Esqueça isso, homem! Não há ninguém.
Agora, foi a vez de Simon bufar.
— Ora, Flaubert, não sou tolo, sabe? Mas, não nego que estou aliviado de
não ser Julie! — Levou a mão teatralmente ao peito. — Um irmão meu
atraído por aquele ouriço, só se fosse bastardo! Mas vamos lá... Do lado
delas, a filha do chapeleiro, mas acho que você não estaria aqui, como um
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porco rejeitado, se fosse ela. Aquela outra é lady Pamela, filha do Barão
Lyndon-Travers, mas sugiro manter-se longe dela. O último que se
aproximou foi levado para o hospital... A menina esgrima melhor que
Anthony Neusberg!
Jonas percebeu que fez o que de pior poderia ter feito: atiçou a curiosidade
de Simon. Agora, o maldito irmão ficaria em seu ouvido até descobrir a
identidade de Christine. E, quando descobrisse, iria chamá-la para dançar —
e ela aceitaria. Elas sempre aceitavam dançar com Simon e seu sorriso torto.
— Deixe para lá. Ela é nobre e nós somos...
— Homens? Ricos? Não é isso que elas querem? Dinheiro? Tudo se
resume a dinheiro, meu parvo irmão! No seu caso, ainda tem esses olhos
azuis — comentou desgostoso, apontando com o copo para o rosto do irmão.
— Toda mulher se derrete por esses malditos olhos de safira e essa sua cara
de criança abandonada. Só você não percebe o quanto elas se eriçam por você
nos corredores do banco.
— São apenas olhos e já me trouxeram problemas demais.
— Problemas? Não acredito que você ainda ache que aquela fofoca do
jornal fosse um problema. Eram elogios, seu imbecil! Seus olhos são dessa
porcaria de tom quase transparente que ninguém tem. Ninguém! Azuis cor de
anjo, eu ouvi uma dama dizer. E nem sei qual é a cor do olho de um maldito
anjo!
Jonas olhou de banda e, mais uma vez, bufou. Estava cansado daquele
assunto, cansado de ter olhos elogiados e desejados. Ele queria que ela o
visse. Ela e apenas ela. Queria aquele cheiro de doce por perto todos os dias,
queria aqueles cabelos na cama e os olhos dela revirando de prazer. Eram
castanhos; esta sim, a cor dos anjos.
Simon continuava divagando: — Se eu tivesse esses olhos, as moças
ficariam apaixonadas na mesma hora e minha vida seria muito mais fácil.
Mas quem é a dama?
— Christine Chasterbrok — falou, finalmente, em voz alta.
Imaginou que o assunto seria encerrado e que Simon voltaria às danças.
— A filha do Marquês? — Arqueou a sobrancelha e riu. — Esqueça,
Flaubert! Ela está apaixonada pelo Visconde de Linderpool.

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Capítulo 1

Mansão de Chasterbrok, maio de 1816.

O lugar precisava de reformas. Muitas reformas.


Tantas que talvez fosse melhor botar a velha casa
abaixo e construir outra nova, condizente com o
título do proprietário. Uma que fosse verdadeiramente habitável. Na família
desde a primeira geração de marqueses, em meados do século XIV,
sobrevivera a 6 marqueses indiferentes aos deveres no campo e seus filhos,
que preteriam a fazenda para usar apenas a casa da família na cidade. Cabia,
aos administradores nem sempre competentes, o trabalho de fazer o lugar
lucrar, recolher os impostos dos vassalos, zelar pelo patrimônio Chasterbrok.
Mas a 7ª. Marquesa era apaixonada por cavalos e, desde que casou com
seu pai, a Residência Chasterbrok da Praça de Creamstone, em Londres,
quase não fora mais usada.
Há 20 anos, a fazenda era o lar de Christine. Londres e suas Praças eram
frios demais para ela. Nem mesmo a sua primeira temporada, dois anos antes,
havia sido suficiente para mantê-la na cidade. Parte disso pode ser atribuída
ao desastroso encontro com a Rainha.
Na ocasião, Christine disse muitas besteiras. Estava feliz demais com
perspectiva de danças e bailes, visitando a cidade pela primeira e sendo
enaltecida por sua beleza. De frente para a governante, a moça elogiou a ex-
colônia americana, lamentou o fogo na Casa Branca e os tantos feridos nas
guerras, enalteceu a perspicácia de Napoleão... A Rainha Sofia, então,
bastante irritada, expulsou Christine dos salões de baile daquela temporada.
Baniu, por assim dizer. Em seu primeiro e último evento, o tradicional baile
do Ducado de Augusburg, o mais importante de todos, a abertura da
temporada de verão, encerrou suas chances de um bom casamento. Depois,
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Christine não voltou mais à cidade, sepultando qualquer possibilidade de


núpcias, boa ou ruim.
Christine havia adorado aquele baile. Dançou com muitos cavalheiros,
conversou animadamente com alguns, imaginou que seria cortejada por
muitos rapazes. Não houve um, todavia, que lhe fizesse sentir as borboletas
na barriga ou que a fizesse faiscar de forma diferente. Recebeu convites para
passear nos jardins, mas nenhum deles partiu de um nobre efetivamente
importante — ou divertido. Ela rejeitou todos.
Algumas matronas chegaram a fofocar sobre a possibilidade do Visconde
de Linderpool cortejá-la e ela mesma imaginou que iria, ainda que não o
achasse particularmente bonito e que ele não tivesse um título efetivamente
notável. Era simpático, alguns diriam, mas a verdade é que ele era apenas
agradável de conversar. Nada especial.
Ela queria alguém que fosse especial.
Depois que a Rainha a despachou de volta para a fazenda, soube que suas
amigas ficaram muito ocupadas dançando e passeando por Stonehurt para
sentir sua falta.
Beatrice Schwartz, a austríaca filha de um Barão insignificante de Paris e
neta da Duquesa de Greenfield, dançou com quem quis. Duas piscadelas com
as pestanas enormes e perfeitas e pronto: o rapaz escolhido a convidava. No
ano seguinte, a moça já estava casada. Na Prússia, mas isso pouco importava.
Felicia Simons, filha do chapeleiro, dançou com um ou dois homens em
todos os eventos, sendo o tal Visconde um deles. Casou com ele, meses
depois.
Lady Pamela Lyndon-Travers encantou o futuro Duque de Stansfield, que
lhe propôs casamento já no segundo baile. O rapaz faleceu, todavia, em
Waterloo.
Até Julie de Sommè havia dançado com alguns rapazes, ainda que não
tenha casado. Ao que Christine soubesse, a moça havia sido vítima do
engodo de um rapaz, que a levou para o jardim e comprometeu sua virtude.
Nunca mais ouviu falar dela, depois disso.
Dois anos depois, sentada à biblioteca fria e úmida, cercada por papéis e
contas, Christine continha o choro enquanto segurava o convite para a
abertura da temporada de 1816, o próximo baile do Ducado. Lembrava-se de
sua ingenuidade — e burrice. Como pôde comparecer à frente da Rainha com
tão pouca informação? Por que não lia os jornais que sua mãe sugeria?
Não importava mais...
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De frente para a pilha de correspondências, percebeu que não fazia mais


tanto esforço para conter o choro e que tinha perdido a capacidade de
lamuriar-se. Ali, com a pena na mão, teve a certeza de que suas lágrimas
haviam secado no exato momento em que descobriu que todas as
propriedades da família foram perdidas em mesas de carteado pelo pai e que
a fazenda era o único bem que sobrava.
Ainda.
Por pouco tempo.
A dívida já deveria ter sido cobrada e Christine não entendia porque os
representantes do banco postergavam o despejo, dela e do pai, daquele lugar.
Certamente tinha algo a ver com o luto particularmente mortal que engolia o
velho Marquês, que nem deixava mais a cama por conta da melancolia.
— Oh, mamãe, o que devo fazer? — Perguntou aos céus, de olhos
fechados e cansados, apoiando o rosto nas mãos na esperança de que algum
sinal a iluminasse. Qualquer sinal. — Por que você nos deixou, mamãe?
O mordomo bateu à porta para informar a Christine da chegada do
administrador.
— Mande-o entrar, César — disse, em tom baixo e contido, esfregando os
olhos para trazer lógica ao raciocínio.
Por 3 horas, o velho homem explicou o funcionamento da fazenda,
criticou os planos dela, reclamou das contas e da falta de ajuda no próprio
trabalho, justificou o motivo pelo qual os cavalos estavam sendo vendidos.
Os cavalos de sua mãe.
— Não temos dinheiro, senhorita, para criar bons baios. Esta é a verdade.
E o mercado exige baios.
— Nós temos alguns ainda, não temos? Podemos vendê-los e comprar
potros. Não podemos?
— Potros dão trabalho, são muito custosos e demoram a render. Não
temos tempo para criar um bom potro.
— Eu sei — confessou, desolada. — Mas e quanto às ovelhas e faisões?
— Não temos mais ovelhas. Restaram apenas um casal com seu filhote,
que servirão apenas para as refeições das próximas semanas.
— E os faisões? Também poderíamos abrir a fazenda para a caça de
cervos. Cobraríamos por cabeça abatida...
— Minha cara, seu pai é um Marquês e já está arruinado perante a
sociedade. Se cobrarmos pelas caças, todos na Câmara dos Lordes saberão de
sua situação. Ele pode, inclusive, perder o título.
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Ela levantou os olhos para ele, apertando-os em uma linha fina e


desafiadora.
— De que vale o título, meu caro Aaron, se vamos ter que morar nas
docas, em uma pequena casa ao lado de prostíbulos e toda sorte de perdição?
— Sempre será um título. Pode abrir portas se a senhorita voltar aos
bailes...
— Fora de questão! — Irritou-se. — Não vou voltar aos bailes. Já sou
vista como solteirona e isso, por si, já é humilhante demais. Estou velha
demais para bailes. Todo ano, novas moças são apresentadas e cortejadas. Por
que, me diga, exatamente por que alguém iria querer me cortejar?
— Senhorita, eu... — Ele disse, envergonhado. Queria dizer que ela ainda
era bonita demais, que certamente haveriam pretendentes, mas essa liberdade
não era permitida. Calou-se, então.
— Venda o maldito título! Se ele é tão valioso, quem sabe poderemos
pagar as dívidas e conseguir comer, não é?
Ele a olhou, derramando piedade sobre ela e aumentando ainda mais o
constrangimento da moça. Calado, engoliu em seco, até que ela continuou: —
Como estão os arrendatários?
— Não têm mais como pagar os impostos.
— Não foi o que perguntei, Aaron. Quero saber se eles ainda têm o que
comer.
— Poucas carnes, bastante farinha e batatas.
— E a escola?
— As crianças têm estudado na velha Igreja da fazenda. A escola da vila
está sem telhado.
— Muito bem — disse, soltando uma longa lufada de ar e coçando as
têmporas antes de prosseguir. — Minha responsabilidade, agora, é não
permitir que passem fome e frio.
— Mas aqui, na Mansão, a senhorita não tem mais lenha...
Ela soltou o ar e disse:
— Saia, Aaron. Preciso ficar sozinha.
— Senhorita, me perdoe, mas não posso permitir que passe frio...
— Tenho casacos e cabe a mim resolver o problema, não é mesmo? Sou a
filha do inválido jogador que se apresentava como Marquês — falou,
arrependendo-se na mesma hora. — Oh, meu Deus, veja isso! Começo a
sentir raiva de meu pai doente!
Olhando para os papéis sob a mesa, empurrou-os todos na direção da
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lareira apagada e úmida. Não havia sequer dinheiro para a lenha da noite. O
que faria quando chegasse o inverno?
Christine quase não tinha criados e, dos poucos que tinha, lamentava
dispensar o mordomo e a cozinheira, que serviam a família desde a infância
dela.
Respirou profundamente e levantou, decidida. Agora, teria que dispensar a
camareira.

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Capítulo 2

Londres, maio de 1816.

E les eram implacáveis. Negociadores natos, os gêmeos


Marshall haviam conseguido aumentar os
investimentos do pai em poucos meses, quando
enviados para a América dois anos antes. Não demorou muito tempo para que
eles percebessem o verdadeiro plano do patriarca: uni-los.
A verdade é que trabalhavam muito melhor juntos. A mistura de humor
com coerência, sagacidade e lógica, fazia deles os mais perspicazes
consultores de investimentos de toda Londres.
Retornaram da ex-colônia ricos e determinados, compraram a outra parte
do negócio e viraram sócios do pai no banco Marshall & Thompson,
renomeado para Marshall & Filhos.
Além disso, passadas as primeiras experiências periclitantes na
ambientação com os marinheiros, ficaram ainda mais fortes e sensatos,
aprenderam a lutar quando preciso e a renegociar uma luta, quando
necessário.
— Não creio que devêssemos ir à casa do Marquês ainda, meu pai. Ele
ainda está enlutado e, pelo que soube do administrador da fazenda, não sai da
cama desde o enterro da Marquesa.
— São negócios, Flaubert, e negócios não param para os caprichos de um
almofadinha. O dinheiro é o que faz o mundo girar. Aquela propriedade,
agora, pertence ao Marshall & Filhos e, bom, eu sou Marshall. Tenho
direitos. Ele perdeu, meu filho, e nós enriquecemos com a perda dos outros.
— Dê-lhe duas semanas mais. Em duas semanas, se ele não comparecer à
cidade, executamos a ordem.
— Ora, ora... Quem diria que o meu filho está tentando cultivar um
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coração. Puxou mesmo à sua mãe, não é, Flaubert? Muito bem. Irei após o
baile de Augusburg, em quinze dias.
— Pois bem. Deixe-me acompanhá-lo, então.
— Como queira, mas Simon irá também porque você voltou da América
muito sentimental. Agora, preste atenção em minhas palavras, garoto: esse
seu coração mole pode prejudicar seu julgamento e trazer prejuízos aos
cofres. Isso, eu não vou permitir! Os juros continuarão sendo aplicados —
assegurou com o dedo em riste.
— Não se trata de coração mole, senhor Marshall. O homem ficou viúvo
há pouco tempo, está doente e falido. Ir cobrar a dívida agora é atirar na água.
A propriedade será nossa, cedo ou tarde.
— Cedo. Será nossa o quanto antes, garoto. Agora vá. O Conde de
Letzburg está em Londres com a esposa e decidiu fazer uma aplicação para
ela. Quero aquela fortuna aplicada aqui. A mulher está grávida, é geniosa e
fala com um sotaque encantador. Se pudesse, iria eu mesmo vê-los. Dizem
que o homem é uma muralha...
E assim foi.
Naquela manhã, dirigiu-se à Residência Letzburg, recém adquirida, e
fechou um negócio de muitas libras. Deixou o local com uma impressão
clara: o Conde Vermelho assustava a todos com as cicatrizes, a barba e o
enorme cabelo loiro desarrumado, mas era a Condessa quem decidia tudo.
— As grávidas são leoas — disse o Conde, sorrindo para a esposa, — mas
minha Beatrice é uma fortaleza.
E era mesmo. A mulher entendia de dinheiro, negociava com astúcia e,
ainda assim, era delicada. Exceto para lidar com o marido.
— Meu marido é o Hölle Graz, senhor Flaubert. Eu preciso lidar com ele
como a maldita Condessa do Inferno ou jamais me respeitará.
À tarde, Flaubert, do alto de seu 1,80 metro, foi à Praça de Stonehurt onde
todos os nobres andavam em seus cavalos e admiravam o pôr do sol. Era o
momento de exibir seus animais, mostrar novos ternos, novos chapéus e
flertar com as filhas dos nobres, levando monóculos aos olhos e puxando
relógios de ouro dos bolsos.
O momento adequado para conseguir novos investidores.
A recente amizade com o Duque de Augusburg fizera os lucros subirem
mais 15%, o que era pouco, muito pouco perto dos 41% conseguidos com o
dono da ferrovia algumas semanas antes; poucos tinham tanto dinheiro para
investir no pós-guerra.
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Trotando suavemente, os amigos iam conversando: — Estou dizendo,


Flaubert, você precisa ir ao clube jogar — dizia o Duque. — Lá, com a visão
turva pelas belas pernas das moças e com os copos cheios do melhor whisky,
muitos bons negócios são feitos.
— Não tenho tanta certeza, Augusburg. E, para completar, sou péssimo
com cartas.
— É o único banqueiro que não conta cartas — retrucou o herdeiro do
Baronato de Neusberg, o melhor espadachim de Londres. Tirando Pamela
Lyndon-Travers.
Simpático e astuto, era visto pelas damas como um rosto comum. E a
estatura média de um corpo magro não lhe favoreciam. Para completar, não
havia a menor chance de se tornar o Barão de Neusberg tão cedo: seu pai
tinha uma saúde ímpar. Exímio jogador de cartas, destacava-se também na
caça e na corrida sobre cavalos.
— Não sou banqueiro, Anthony, sou negociador. Meu pai é. E contar
cartas não é exatamente uma postura honesta. Creio que vocês não esperam
desonestidade do administrador de seu dinheiro.
— Não seja dramático, meu caro. É apenas um jogo de cartas regado a
bebidas e mulheres — respondeu com uma careta.
— E eu — começou o Duque, — particularmente, ficaria mais tranquilo
se soubesse que meus investimentos estão nas mãos de um homem que conta
cartas. — Sorriu, piscando e exibindo seu olhar mais imponente, duramente
ensaiado à frente do espelho e perante seu pai.
O Duque era um rapaz bonito, na verdade, e Jonas sabia disso. As
mulheres o adoravam e isso tornou-se mais evidente quando começou a
deixar o bigode crescer — símbolo do Ducado. Desde a morte de seu pai, um
ano antes, ele passou a cultivar a penugem e penteá-la descaradamente em
público com um pente de osso de mamute especialmente comprado para isso
pelo primeiro Duque de Augusburg.
Mas Jonas tinha certeza de que o título atraía mais damas do que o adorno
em si.
— Essa penugem está ridícula, Augusburg — debochou Anthony,
arrancando risos descarados de Flaubert.
— Ridícula? Ele parece um bode de cabelos longos — devolveu a
zombaria.
— Todos os Duques de Augusburg cultivaram bigodes — respondeu,
penteando novamente as penugens do rosto. — E veja como as moças
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sorriem para mim?


— Elas não sorriem para você, imbecil. Elas estão rindo de você! —
Retrucou o futuro Barão.
— Cuidado, Neusberg. Eu sou um Duque e as damas me adoram! —
Esnobou.
As moças realmente sorriam e Jonas não sabia se era puro deboche ou
encantamento, mas a verdade é que nem ele nem Anthony se impressionavam
com o título ducal.
Naquele instante, quando ainda riam do pente, um coche com quatro
moças passou e todas, exceto uma, sorriram para o maldito homem do
bigode. Flaubert e os outros tocaram a aba dos chapéus e, levemente, fizeram
uma reverência para as cumprimentar. Então, ele reparou: a moça com olhar
distante era ela, Christine Chasterbrok. Longos cabelos dourados trançados
de lado, um delicado chapéu cor de rosa e o vestido de musselina leve que
favorecia seu busto deixavam-na linda, como ele lembrava.
Tudo o que ela fez foi um imperceptível movimento com a cabeça, um
quase nada que poderia ser considerado impróprio se não fosse acompanhado
do olhar fugidio e de lábios retos, inexpressivos.
Ele sentiu o coração parar. E depois voltar a bater aceleradamente. Achou
que não sentiria mais nada por ela. Achou que, depois de dois anos, ela seria
apenas a lembrança de uma moça ingênua dos salões de Londres.
Não imaginou que ela ainda fosse Christine.
Desde que voltara da América não a havia visto — em parte, ele mesmo a
evitava, porque já havia visitado a fazenda Chasterbrok com Simon mais de
uma vez para as inspeções do banco e nunca entrava na Mansão, sempre
arrumando desculpas e voltando para o vilarejo. Quando era obrigado a se
reunir com o administrador, o fazia sempre no salão da hospedaria Flor &
Espinho.
Dois anos depois do baile de Augusburg, a última vez que a viu, não havia
mais brilho ao redor dela. Algo havia se apagado e ele sabia o que era: a
incerteza do futuro.
— Veja, Flaubert, como elas me olham e sorriem! Estão loucas pelo
bigode.
— Nem todas, caro Duque — retrucou Anthony. — Acho que a filha do
Marquês nem notou que você estava aqui.
— Não vejo isso como uma coisa ruim, na verdade. Eu soube que o
Marquês de Chasterbrok finalmente teve o castigo que merecia: faliu. —
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Insinuou o Duque. — Preciso me casar e queria saber se ela é uma boa


escolha. Bom, se o dote dela será mantido, para ser mais exato. A fazenda
dela é limítrofe e não seria nada mal ampliar meu domínio. O que você acha,
Flaubert?
O rapaz trincou os dentes.
— Sabe que não posso discutir as finanças dos clientes, Augusburg.
Imagine se eu pudesse contar que seus ganhos anuais são menores do que os
declarados? E se todos soubessem que, ainda assim, você está financiando
um investimento nas Américas.
Anthony quis rir. A despeito de ser apenas o filho de um Barão, ele
mesmo era muito bom com investimentos — confiava nas opiniões de
Flaubert e havia colocado uma grande quantidade de dinheiro em um
estaleiro bem rentável.
— Duvido muito que tenha falido. Acho que está apenas escondido
naqueles confins com vergonha das derrotas no jogo — falou, finalmente,
Neusberg. — E a senhorita Christine já foi mais atraente, Augusburg. Há
outras escolhas para esquentar sua cama e encher seus bolsos. Veja, Lady
Julie de Sommè está um pouco mais formosa...
— Formosa? Ela é horrenda! — Retrucou o Duque. — Mas Pamela
Lyndon-Travers enviuvou e está com os cofres cheios...
— Ninguém ousa chegar perto dela, meu caro. Ela ainda é indomável! —
Disse Flaubert.
— Linda, não preciso lembrá-lo. E uma exímia espadachim! Quisera eu
ter a possibilidade de duelar com ela esportivamente — devaneou Neusberg,
espirando profundamente.
— Sei bem suas intenções, Anthony, e duelar não é uma delas — insinuou
o Duque.
— Cuidado, Augusburg, os melhores duelos são travados entre as pernas
de uma dama! — Respondeu.
Os rapazes riram, exceto Flaubert que se concentrou em acompanhar a
trajetória do coche — e admirar, um pouco mais, os cabelos de caramelo com
que tanto sonhara.
O Duque não notou, mas Anthony havia percebido que Flaubert apertou
um pouco demais as rédeas de sua montaria quando Augusburg mencionou
casamento. Também notou que o amigo havia trincado os dentes e retesado o
corpo. E, claro, Neusberg percebeu que ele não tirou os olhos da moça até o
coche perder-se de vista.
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Sim, Jonas ainda tinha sentimentos pela dama. Era hora de ajudá-lo.
Seguiram a cavalgada em silêncio, mas a visão dos olhos amendoados da
filha do Marquês tão entristecidos e apagados apertou o peito de Flaubert.
E, em duas semanas, ela não teria onde morar.

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Capítulo 3

entrou.
N o primeiro horário comercial do dia seguinte,
momento no qual o banco estava mais apinhado de
nobres querendo conferir seus rendimentos, ela

— Por gentileza, avise ao senhor Marshall que a senhorita Christine


Chasterbrok está aqui para vê-lo — disse a moça, entregando um pequeno
bilhete ao secretário.
Assim que ele se virou, Christine soltou o ar e aprumou o vestido,
alisando a saia. Percebeu que tremia e respirou profundamente algumas vezes
para tentar conter o embaraço.
Que lugar movimentado, pensou. Aquelas pessoas tinham mesmo dinheiro
para investir.
Será que poderiam investir em sua fazenda?
A oferta que faria ao banqueiro era, no mínimo, motivo para risadas.
Infelizmente, foi a única saída que conseguiu pensar. Sem esperanças, aceitou
o chá que lhe ofereceram e passou a prestar atenção no movimento das
portas. Respirou profundamente e amassou um papel na mão. Um filete de
suor escorreu de seu rosto e uma pequena mecha soltou de seu cabelo, sendo
imediatamente recolocada no lugar.
— Calma — cochichou para si mesma.
— Senhorita? O senhor Marshall não poderá recebê-la. Ele gostaria,
todavia, de agendar uma visita ao Marquês para a próxima semana.
Ela ficou de pé, empinando o peito e dizendo: — Meu pai não está na
cidade. Ele não tem se sentido bem e está acamado na fazenda...
— Podem reunir-se na fazenda, então. Apenas o Marquês será recebido
pelo senhor Marshall — afirmou.
— E se eu quiser fazer um investimento?
— A senhorita gostaria de fazer um investimento?
— Não... Quer dizer, digamos que eu queira e... — Soltou o ar,
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impaciente. — Ora, é uma suposição, homem! — Exaltou-se.


O secretário manteve-se imparcial, ainda que Christine pudesse jurar que
ele sorriu infimamente.
— Apenas seu pai, senhorita. Com sua licença — disse, encerrando o
assunto e deixando Christine sozinha com seus pensamentos.
Ela acompanhou os passos dele e sentou novamente na cadeira.
Não. Deixou-se cair na cadeira. Deselegantemente.
Homem desprezível este senhor Marshall, ela pensou. Deve parecer um
gnomo. Sorriu para si mesma, tentando animar-se.
Por que raios o maldito banqueiro não a havia atendido?
Sentiu o já costumeiro aperto no peito, mas inspirou profundamente,
ergueu a cabeça, levantou e partiu. Não choraria, porque lágrimas
simplesmente não mudariam nada.
Do outro lado do banco, Flaubert ouvia seu irmão contar vantagens, mas
quando Simon começou seu discurso sobre lucros e prejuízos, percentuais e
táticas para convencer maridos a criarem fundos para esposas, o rapaz avistou
Christine. Ela parecia nervosa, aflita, tamborilava na saia e apertava as mãos.
Linda. Como ela era linda...
O secretário de seu pai falou com ela brevemente e partiu.
— Então, o Visconde está fazendo um investimento para... — Dizia
Simon que, então, percebeu que o irmão olhava para outro lugar. — Flaubert,
está me ouvindo?
Não. Claro que não.
Ela sentou-se. Jogou-se na cadeira. A impressão clara de que Christine iria
chorar foi substituída por desespero. O que ele faria se ela chorasse?
Precisava garantir que ela não estava chorando...
Será que seu pai tinha executado a ordem na fazenda?
— Flaubert? Não está prestando atenção?
— Desculpe, Simon, conversamos depois. Preciso ir agora — despediu-
se, empurrou o irmão e correu para onde a moça estava sentada.
Quando se aproximava de Christine, notou um sorriso. Um lindo e
debochado sorriso de autocomiseração. E então, ela levantou-se e partiu.
Firme, decidida, resolvida. Uma guerreira. Falida, mas orgulhosa.
Como ele poderia ajudá-la?
Jonas Flaubert a seguiu até a rua e segurou seu braço.
O primeiro toque finalmente. O frenesi de sentir a pele dela sob a dele.
Quente, pulsante...
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— Senhorita? — Arriscou. E ela se virou. A visão do sacolejar dos


cabelos acompanhando o movimento suave do corpo o hipnotizou.
Meu Deus, ela era ainda mais linda de perto.
Olhos redondos cor de castanha no Natal, bochechas rosadas como doce
de morangos e lábios vermelhos, grossos e marcados como... Como... Como
nada que ele já tivesse visto!
Diabos, havia mesmo amolecido.
— Sim? — Ela perguntou.
A voz dela era um canto. Doce, delicada, musicalizada. Espantosamente
afinada.
Ela poderia cantar na ópera. Mas ele precisava dizer alguma coisa e não
sabia o quê. Por que, afinal, tinha ido atrás dela? Sim, lógico que ele queria
abraçá-la. E a mera possibilidade de ela chorar o destruía.
Claro que ele havia pensado mais do que poderia assumir em ir à casa dela
com rosas brancas e condolências após o enterro da Marquesa. Queria
ampará-la, consolá-la, fazê-la esquecer de tudo.
Um sentimento estranho começou a ser notado: proteção. E ele se
assustou.
— Pois não, senhor? — Ela insistiu.
E ele permaneceu em silêncio. O mais profundo, constrangedor e
embaraçante silêncio.
Fale, idiota! Qualquer coisa!
Flaubert nunca ficava sem palavras, mas Christine o havia desestabilizado
e se preparava para ir embora.
Ele precisava falar.
Qualquer coisa.
— Senhor?
Qualquer coisa!
— A senhorita deixou cair esta caneta — finalmente disse, oferecendo-lhe
a própria pena, que apertava nas mãos. Sim, era a melhor definição de
qualquer coisa. Era a frase mais vazia que poderia ter dito. O assunto nunca
se prolongaria. Ela iria embora e ele ficaria ali, imaginando o abraço que
nunca daria.
— É linda, mas não é minha. Obrigada — respondeu sorrindo e olhando
para o braço, que Flaubert ainda segurava. Inapropriadamente. Christine
arqueou uma sobrancelha e o encarou.
Meu Deus, ela era esplêndida quando sorria!
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A chuva pareceu sumir e Flaubert não se importava que, naquele


momento, seu terno já estivesse encharcado. Desde que ela fosse protegida
pela sombrinha, nada mais importava.
Tudo ao redor perdeu o sentido e ele percebeu, indiscutivelmente, que era
um idiota e que ela também saberia disso depois daquele instante.
O toque de sua mão nua naquele pequeno pedaço indecoroso do braço de
Christine lhe eriçou os pelos e fez seu corpo reagir. Mas quando sua mente ia
viajar para um quarto escuro, cama de dossel, lençol delicado e cabelos
amendoados espalhados pelo travesseiro, forçou-se a se apresentar: — Me
chamo Jonas. — E soltou o braço dela, um tanto desconcertado.
Na mesma hora, seu corpo sentiu a ausência, como se um pedaço de si
mesmo tivesse sido arrancado.
Flaubert suspirou. Agora, pelo menos, ela sabia seu nome.
— Foi bom conhecê-lo, senhor Jonas. Estranho, mas bom — disse,
sorrindo novamente e franzindo os olhos, cumprimentando-o com um breve
aceno de cabeça.
Christine partiu, deixando-o ali, paralisado, sendo engolido pela multidão.
— Ela é problema, Flaubert. Não arrume problema. É melhor você se
afastar e deixar que eu lide com a dívida do Marquês.
— Não se intrometa, Simon — disse. — E fique longe dela — ordenou,
com o dedo em riste, voltando para o banco.
Problema? Ela não é o problema. A dívida é.

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Capítulo 4

banco.
H ospedada na casa dos Viscondes de Linderpool, a
poucos metros da Praça Stonehurt, Christine
preparava-se para partir após a visita infrutífera ao

— Fique mais uns dias, Christine. Haverá o baile da Duquesa viúva e o


filho dela pode ser uma boa alternativa. Se ele se apaixonar por você... Ele
nunca teve realmente uma chance — disse Felicia, Viscondessa de
Linderpool.
— Sim, Christine! Eu e Ludwig vamos ao baile também... — Falou
Beatrice, a Condessa de Letzburg.
— Conseguiu, então, convencê-lo?
— Sim, mas não foi difícil. O Conde Vermelho faz o que eu peço, ainda
mais estando grávida — sorriu, alisando a enorme barriga. — Vocês
precisam ver como ele me enche de comida... Quero filho saudáveis, fica
repetindo — disse entre suspiros. — Mas vamos, Christine! Será como nos
velhos tempos. Lembra de nossa primeira temporada? Quem sabe agora você
não faz um nobre se apaixonar por você?
— Apaixonar? Como eu faria um homem se apaixonar em apenas um
baile?
— Ora, querida, Pamela conseguiu! Infelizmente, enviuvou, mas ela fez
Stansfield se apaixonar em um baile!
— Era a primeira temporada dela e eu não apareço em bailes há dois anos!
— Ora, querida, não seria a primeira vez que seus longos cílios fariam
sucesso. Você esteve esplêndida em nossa primeira temporada. Não fosse o
escândalo com a Rainha... Culpemos a Rainha! — Propôs a Viscondessa,
levantando a mão como se isso, realmente, fosse um grito de guerra.
— Primeira e única, Felicia. Aliás, primeiro e único baile. Não posso
chamar aquele fiasco de temporada. E seria a primeira vez que se
apaixonariam por mim. Nenhum deles foi me visitar depois daquele baile —
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falou, entristecida.
— A mim também não, Christine. E, veja, estou casada!
— Você foi forçada a casar, Beatrice — retrucou.
— Bom, isso é um detalhe. De mais a mais, hoje reconheço os motivos de
meu pai e até o agradeço por ter colocado Ludwig em meu caminho, o meu
Conde do Inferno — falou suspirando.
— Enfim, Beatrice, não são todas que têm a sua sorte. Ou a sua, Felicia —
apontou para a Viscondessa. — Vocês casaram após uma temporada com
homens que são apaixonados por vocês. Duvido que eu consiga isso.
As duas ficaram em silêncio mais alguns instantes e Christine, então,
voltou a falar: — Você acha que teria sido diferente, quero dizer, se eu
tivesse continuado a frequentar os bailes, você acha que eu teria casado?
— Claro que sim! Tenho certeza disso!
— E você acha que o Visconde ia mesmo... Desculpe, é impróprio.
— Somos amigas, Christine. Não é impróprio. Eu acho que ele a teria
cortejado, e não a mim.
— Não teria, Felicia — disse o Visconde, entrando pela sala de chá e
beijando carinhosamente o topo da cabeça da esposa. — Como vai,
Christine? Beatrice, está uma grávida esplêndida!
— Contenha-se, garoto — rosnou Ludwig, que entrou logo atrás.
— Tudo bem, Maurice. Como vai, Conde?
— Muito bem, obrigado. Vamos, Beatrice? — Ofereceu a mão à mulher
que ainda pediu, antes de sair: — Por favor, Christine, vamos ao baile.
Podemos nos divertir no baile, procurando um marido para você!
Quando o casal se retirou, Maurice voltou a falar: — Me desculpe a
honestidade, mas eu já era apaixonado pela Felicia naquela época. Eu ia todo
dia à chapelaria por um bom motivo. Certamente não eram os chapéus —
disse, sorrindo.
— Eu sei... Mas eu queria ter a esperança de... Será que eu me
apaixonaria? Será que alguém se apaixonaria por mim?
— Isso sim, com certeza. Você foi o assunto da temporada e sua partida
deixou uns bons rapazes abandonados pelos salões. Eu mesmo conheci uns
que dariam a unha para ter dançado com a senhorita. Estão todos casados,
agora, infelizmente. Não conheço essa nova leva de jovens solteiros, mas há
alguns Condes viúvos que podem se interessar...
— Já chega, Maurice! — Interveio Felicia, vendo que o marido começava
a deixar a amiga constrangida. — Ela não quer um Conde viúvo velho. E nós
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vamos pensar no futuro! O baile de Augusburg é no final desta semana e há


um mundo de bons partidos prontos para se apaixonar por este rosto perfeito.
— Meu pai precisa de mim, Felicia — disse Christine. — Tenho que
voltar para a fazenda e prepará-lo para a visita do senhor Marshall. Fazê-lo se
levantar. De mais a mais, já abusei muito da hospitalidade de vocês.
— Não tem problema, Christine — falou o Visconde. — Desde que vocês
não joguem mais carteado. Nunca vi Felicia perder tanto de alguém nas cartas
como perde para você. — Piscou para a esposa, sua cúmplice no crime de
entregar dinheiro para Christine sem que ela soubesse.
Christine sabia, todavia. E ela não precisava de mais essa dívida.
As dívidas de honra são as mais caras, dizia seu pai.
— Ótimo! Está decidido. Vamos à costureira hoje encomendar vestidos
novos!
Christine conformou-se, soltando o ar.
— Eu fico até o baile do Duque. Se ele não me tirar para uma dança, se
não houver possibilidade de fazer a corte, vou embora no dia seguinte.
— Muito bem!
— E não vou comprar nenhum vestido! Já tenho vestidos demais para
quem não vai a bailes...
— Tudo bem! Se você ficar, concordo com o que quiser.
— Prometa, Felicia. Prometa que não vai comprar nada!
— Ora, Christine, deixe disso... — Desconversou, claramente certa de que
iria à costureira naquela tarde encomendar um vestido. Um lindo vestido que
combinasse com os cabelos loiros e pele alva da amiga.
A Condessa partiu e Christine subiu para o quarto atenciosamente
decorado para ela. Um banho quente já a esperava. A camareira lavou seu
cabelo com essências e óleos, massageou delicadamente e acariciou as longas
madeixas com cuidado.
Como Christine sentia falta de alguém lhe acariciando os cabelos... Como
aquele gesto a lembrava de sua mãe. Ela inspirou profundamente e suspirou,
pedindo ajuda à camareira para vestir-se e preparar a cama. Depois de
repousar algumas horas, pediu que o jantar lhe fosse servido no quarto.
Junto à bandeja da refeição, Christine achou uma rosa branca. Sem
bilhete, sem assinatura.
— Você sabe quem deixou essa flor aqui? — Perguntou à moça, que
negou com a cabeça.
Naquele mesmo momento, a Viscondessa colocou a cabeça dentro do
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quarto.
— Viu? Você nem foi ao baile e já tem um admirador... Que excitante! —
Comemorou, batendo palmas.
Foi Felicia quem deixou a rosa, Christine pensou.

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Capítulo 5

N o dia do baile, logo cedo, um vestido azul foi


entregue na casa do Visconde de Linderpool,
endereçado a Christine, em uma enorme caixa
decorada. Presa à fita da tampa, outra delicada rosa branca. Ajustado
perfeitamente para seu corpo, o traje era maravilhoso, moderno, com a saia
repleta de bordados de flor. Junto a ele, outra caixa com um cordão de prata e
brincos combinando.
— Felicia, você exagerou. Sabe que não posso aceitar os presentes... Eu
tenho vestidos praticamente novos.
— Praticamente não é novo, é um usado lavado. E você precisa estar
perfeita e esse vestido é, simplesmente, magnífico. Que bom gosto! — Disse
a Viscondessa, franzindo os olhos e segurando o vestido à frente do corpo,
em um rodopio dançado. — Quisera eu poder usar um destes, mas acho que
ainda demora um pouco para essa barriga sumir.
Suspirou, alisando a barriga, e continuou: — Não fui eu quem comprou,
querida. Por outro lado, fico feliz por você. O tal admirador está disposto a
conquistá-la. Será o Duque?
— Felicia, não tenho um admirador. E você deve me tirar como tola se
acha que eu vou acreditar que não comprou esses presentes. Está é tentando
burlar a promessa que me fez de não comprar nada!
— Juro que não, minha amiga! Mas vamos começar a nos vestir. Este
vestido merece um penteado especial e sapatos de cetim! Precisamos deixar
esse colo bem a mostra para exibir o colar... — Christine via a mente de
Felicia trabalhar. — Posso emprestar um sapato maravilhoso azul!
Felicia seguiu falando animadamente e Christine a acompanhava sem
dizer qualquer palavra. Era uma das poucas amigas fiéis que ainda tinha.
Pontualmente às 16 horas, apertada em um espartilho que empurrava seus
seios para cima e deixava o colar repousar sobre eles de maneira, no mínimo,
indecente, Christine partiu na carruagem Linderpool. Penteados em um coque
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que alongava seu pescoço, os cabelos de Christine seguiam presos com a tiara
que fora de sua mãe. Ela se sentia bonita, mas não especial.
Ela queria ser especial.
Sentada de frente para o casal de amigos, percebeu o olhar reverencioso
que Maurice dava para a esposa e invejou quando ele acariciou os dedos de
Felicia por cima das luvas, beijando-os um a um. Lembrou-se de sua primeira
temporada, quando achou que o Visconde estava apaixonando-se por ela e,
ali, descobriu que não. Maurice nunca a olhou daquela forma.
Descobriu, então, que sempre quis que alguém a olhasse daquela forma e
que nenhum dos cavalheiros que a convidara para passear pelo jardim no
primeiro baile o tinha feito.
— Fico muito feliz por vocês terem encontrado um ao outro — disse.
— Ela não me encontrou — falou o Visconde que, travesso, completou:
— Eu a persegui.
— Ora, quem imaginaria que a filha do chapeleiro casaria com um belo
nobre...
— Eu imaginei — falou o rapaz, dando de ombros e sorrindo.
Seguiram a viagem em silêncio, ouvindo o batucar ritmado dos cascos, e a
moça enfim descobriu que não queria um Duque. Queria um amor.
Um amor que poderia estar naquele baile. Chegando de carruagem, talvez.
O amor que Jonas queria ser, sempre quis ser. E lá estava ele, no coche
dos Marshall, chegando ao baile pontualmente no horário determinado. Sem
títulos, não foi anunciado no topo da escada mas, de lá, Flaubert avistou
Christine.
— Não faça nada estúpido, Flaubert — sussurrou Simon.
Jonas bufou, virou e desceu, dirigindo-se direto para a mesa de bebidas e
servindo-se de um copo de whisky. Ou dois.
Ela o viu e sorriu, maneando a cabeça em elegante reverência e eriçando
todos os pelos do corpo de Jonas. Ficou feliz, então, de tê-la perseguido no
banco. Agora, ela sabia quem ele era. Agora, ela o cumprimentava.
Quando Jonas pensou em se aproximar, notou que Augusburg havia se
aproximado da moça com o Visconde de Linderpool, que logo os deixou
sozinhos após a apresentação.
Maldito, pensou Jonas.
— Senhorita Chasterbrok, é um prazer revê-la. Fico feliz que tenha
escolhido a minha casa para seu retorno aos salões de baile.
— Vossa Graça — disse Christine. — É sempre um evento prazeroso.
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— Como vai o senhor Marquês?


— Enclausurado, eu diria. Ainda sente a morte de mamãe.
— Lamento. Era um excelente parceiro de cartas — disse o Duque.
— Devia ser mesmo bem lucrativo jogar com ele — ironizou Christine,
deixando o rapaz bastante constrangido.
— Não foi que eu quis dizer, senhorita.
— Imagino que não.
— Ele voltará à Câmara? Temos algumas votações importantes esse
semestre...
— Creio que ainda demora um pouco.
Infelizmente, o assunto entre os dois não durou muito. Não houve assunto,
a bem da verdade. O Duque era parvo, esnobe e um tanto narcísico. Poucos
minutos depois, ele se desculpou e saiu, deixando Christine sozinha
novamente.
Sozinha e aliviada.
De longe, Flaubert terminava o quarto copo. Duplo. Com a visão um
pouco distorcida, notou quando o Duque saiu de perto da moça. Antes que
outro se aproximasse, caminhou firmemente até ela.
Convencido de que não tinha sido a bebida o que lhe deu coragem de
convidá-la para dançar, sequer percebeu quando o Visconde de Linderpool o
puxou pelo braço.
— Flaubert, vejo que o whisky lhe agradou.
— Sim — respondeu, um pouco enrolado, voltando o olhar para Christine
novamente.
— Eu gostaria de lhe falar. Percebi que o senhor caminhava na direção da
senhorita Chasterbrok.
— Sim.
— Christine, a senhorita Chasterbrok — corrigiu-se, — sonha com um
determinado tipo de casamento que, creio eu, você não possa dar. Ela quer
bailes da alta nobreza, chás na companhia da Rainha, convites para eventos
exclusivos e, convenhamos, você não pode lhe dar nada disso.
— Augusburg não é homem para ela, Maurice — afirmou, franzindo as
sobrancelhas e colocando as mãos nos bolsos da calça.
— Sim, eu sei. Mas o Conde Cosito pode ser uma boa opção. Ele é um
homem honesto e costuma ser simpático com as mulheres. Elas estão sempre
encantadas com ele.
— Cosito? O italiano?
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— Sim. Ele vai levá-la para passear e peço que você não fique no
caminho.
— Entendo.
— Ela não é mulher para você, Flaubert. É a filha de um Marquês e você,
bom, é o filho de um banqueiro. Não é nobre. Nós sabemos que a posição
dela está muito acima da sua. Você não é nada, por assim dizer, para uma
moça com a ascendência dela. Sangue nobre é um sangue mais puro, mais
completo.
— Me admira você falar isso, Maurice! — Disse a Viscondessa atrás do
marido.
— Felicia? Eu não quis dizer...
— Eu sei bem o que você quis dizer. Ele não é nada porque não é nobre.
Pois gostaria que lembrasse que, quando casamos, eu era a filha do
chapeleiro. Não tenho esse tal sangue nobre mais completo, Maurice.
— Você é só uma mulher, Felicia! Não importa se era filha do chapeleiro
ou de um Grão-Duque!
Ela arregalou os olhos, fuzilando o marido.
— Eu sou só uma mulher? Ora, ora... — Bufou. Virando-se para Flaubert,
que não sabia direito como intervir e nem mesmo achou que queria ajudar o
Visconde, disse: — Por gentileza, senhor Flaubert, me deixe a sós com meu
marido.
Jonas se escusou e se afastou, encaminhando-se para o jardim, onde ouviu
risadas. Christine e o Conde Cosito conversavam, encostados à varanda. Ela
sorria para ele, genuinamente divertido.
Flaubert virou-se para voltar ao salão e despedir-se de todos, mas algo o
prendia àquele lugar. Ele não podia sair. Queria vê-la ainda mais uma vez
com o vestido que comprara.

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Capítulo 6

Q uatro copos de whisky. Foi isso que lhe deu coragem, mas
nem mesmo isso lhe preparou par a mais absurda e infeliz
mudez que o assolou quando o Visconde o interceptou.
Flaubert odiou o jovem no exato momento em que se deu por vencido, no
momento em que perdeu os olhos da moça, no momento em que ela deixou o
salão com a mão apoiada no braço de um certo Conde italiano.
Quando percebeu que Jonas não ia convidá-la para dançar, Christine
suspirou desanimada. Sorte dela que o Conde Cosito a levou para um passeio.
Era um homem impressionante, o tal italiano. De sotaque melodioso e
recheado de expressões que ela não entendia, a fazia rir.
Mas ele também não a convidou para dançar. Do contrário, perguntou-lhe
sobre Lady Pamela. Queria saber tudo sobre a amiga. De que flor gostava,
sua música predileta, onde morava, se preferia o campo ou a cidade... Tudo.
Praticamente sem nada mais a perder, decidiu permanecer na varanda,
mesmo depois que o Conde havia voltado ao salão. Pôs-se a observar os
casais, suas malícias e indiscrições. De lá, podia ver muitos casais trocando
confidências entre as árvores. Moças tímidas e ingênuas, moças nem tão
ingênuas e aquelas que eram, na verdade, uma ameaça aos rapazes. Rapazes
que eram caça dotes e outros que eram caçadores de títulos. Ela quis ser uma
daquelas damas e queria ter a companhia de um belo jovem.
Lá, do alto da varanda, ela viu um rosto familiar, acompanhando Julie de
Sommè, e descendo as escadas para o jardim.
— Senhor Jonas? — Perguntou-se, franzindo os olhos e percebendo o
quanto aquela cena a deixara desanimada.
Jonas estava levando a senhorita de Sommè para o escuro verde da
mansão Augusburg.
Humilhações e mais humilhações. Era só a isso que se resumia sua vida na
maldita cidade. Queria ir embora daquele baile, daquele lugar, o mais rápido
possível. Naquele instante, de preferência, mas o Visconde estava fazendo
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contatos e, bem, ela não queria incomodá-lo mais ainda.


Era certo que nenhum homem a cortejaria. Christine já havia passado da
idade e a condição financeira do Marquês não deveria ser novidade para
ninguém.
— Senhorita? — Chamou uma voz atrás dela.
— Sim? — Respondeu, virando-se.
Deparou-se com o Visconde de Linderpool, que se aproximou mantendo
uma distância razoável.
— Christine, queria lhe pedir desculpas se alguma vez lhe dei a entender
que poderia haver algo mais entre nós. Eu sempre quis Felicia, mas sinto que
fui rude quando me perguntou, na minha casa, há alguns dias atrás.
— Já disse isso, Maurice.
— Sabe, há alguns nobres que seriam adequados para a senhorita.
— Por favor, Maurice, fique fora disso. Não quero um nobre adequado.
Quero um homem que me ame e me olhe como você olha Felicia, com paixão
e reverência.
— Isso não funciona assim.
— Então, não quero homem nenhum. Não preciso me conformar. Você
acha que não mereço ser feliz?
— A felicidade não é para todo mundo... — Respondeu, de imediato, sem
pensar direito.
Ela o olhou com assombro. Então, ele achava mesmo que ela não poderia
ser feliz?
— Já percebi. Talvez a minha felicidade esteja longe daqui. Talvez, eu
devesse ser feliz comigo mesmo. Para me conformar com qualquer homem,
me conformo comigo mesma.
— E você seria feliz com um homem comum, sem título?
— Você realmente me conhece muito pouco, Maurice. Já devia ter
entendido que títulos não são absolutamente nada para mim. Não quero um
Duque, um Marquês ou um Conde. Quero um homem de verdade, que me
ame, me respeite, me venere. Quero um homem que me desperte desejos,
sensações, que me faça viver — ela voltou os olhos para o jardim e continuou
a dizer: — Quero um homem que me leve para o jardim e diga carinhos ao pé
do meu ouvido. Se não for isso, não quero nada — encerrou, virando-se e
voltando para o salão. Da escadaria, disse: — Gostaria de ir embora, senhor
Visconde. Agora.
Ali perto, embaixo da varanda, enroscado no corpo sinuoso de Julie de
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Sommè, Simon ouviu tudo. Uma ideia foi tudo que bastou para resolver dois
problemas: a dívida do Marquês e os sentimentos do irmão.

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Capítulo 7

Mansão Chasterbrok, julho de 1816.

A imagem daqueles olhos penetrantemente azuis


apareceu em seus sonhos por vários dias após o baile.
Havia sido apenas um encontro na frente do Marshall
& Filhos, sob a chuva fina de Londres, e o homem mal havia falado. No
baile, ele a encarou e caminhou em sua direção, como um animal trôpego em
busca de alimento. Ela sentiu o peito acelerar e um calor estranho subir pelo
ventre, mas Jonas parou para conversar com o Visconde de Linderpool e não
a convidou para a valsa.
Em alguns sonhos, ele chegava a convidá-la. E depois da valsa silenciosa,
ele a levava para passear no jardim, segurava sua mão por sobre a luva, dizia-
lhe sentimentalidades e beijava-a, primeiro com paciência e sedução, depois
com sofreguidão e urgência. Nestes dias, Christine acordava ofegante. Por
vezes, até suada.
Queria vê-lo novamente, mas tinha problemas mais importantes para
resolver.
A semana passou e Christine não conseguiu pensar em uma solução para
as dívidas do pai. Andou pelos arrendamentos, contou as ovelhas três vezes,
leu sobre rotação de terra, refez as contas e tentou aprender como colocar
juros, mas não conseguiu pensar em nada que gerasse renda e quitasse as
dívidas — que ela notou, quando voltou de Londres, que haviam dobrado de
valor e quantidade.
Sentada à beira da cama, com a cabeça apoiada nos cotovelos, tentava
conversar com o velho Marquês.
— Por favor, papai! Eu preciso de você! O banco virá a qualquer
momento. Nosso prazo acabou e eu não sei o que fazer. Estive naquele
banco, mas o maldito senhor Marshall se recusou a me receber.
A morte da Marquesa, as bebidas, os jogos, as dívidas e a perda de todas
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as propriedades foram demais para ele. Fechou-se em seu próprio mundo e


abandonou Christine naquela selva de pedras.
— Senhorita? — Chamou-lhe o mordomo, anunciando a chegada dos
representantes do banco: — O senhor Marshall, do banco, está aqui
aguardando o Marquês.
Ela olhou novamente para o pai, pendeu a cabeça e suspirou resignada.
— Diga que falarei com ele. Diga que meu pai está dormindo...
— Pois não, senhorita — respondeu virando-se imediatamente.
— Vamos, papai, por favor! — Insistiu ela, apertando a mão inerte do
homem. — Acho que só a sua presença vai convencê-lo. O senhor sempre os
convence, a todos com quem conversa! Por que o senhor não quer mais
conversar?
O Marquês não falava. Seguia olhando para o vazio do teto até que o
mordomo voltou: — Senhorita? O senhor Marshall disse que só receberá o
Marquês e que, se o seu pai não descer, irá executar as dívidas e tomar a
fazenda.
— Como assim? Você disse que meu pai está dormindo?
— Sim, mas ele está irredutível.
Ora, gnomo maldito!
Levantou-se, inspirou profundamente e afirmou: — Bom, se ele quer o
papai, terá. Eu irei falar com o senhor Marshall. Seja o que Deus quiser! —
Falou, levantando-se com atitude e encaminhando-se para o quarto de vestir
do pai atrás de uma roupa, qualquer roupa, que lhe coubesse. — Sirva um chá
com biscoitos ao senhor Marshall e diga que o Marquês irá descer em breve.
E mande a cozinheira subir. Preciso de ajuda para prender o cabelo... Oh!
Meu cabelo! O que vou fazer para esconder todo esse cabelo?
O mordomo sugeriu, em tom satírico, tentando demovê-la da ideia: —
Posso encaminhá-los para o jardim... A senhorita pode usar um chapéu...
— Oh, César, que excelente ideia! Faça isso!
Ele arregalou os olhos. Ela ia mesmo seguir com o plano?
Algum tempo depois — pouco demais para Christine, longo demais para o
senhor Marshall, — vestida em terno, chapéu, óculos e gravata, ela estava
pândega.
Ridícula, por assim dizer.
— Não acho que ele irá acreditar, senhorita — disse a cozinheira.
— Ele tem que acreditar, Camille. Façamos assim, se começar a ir mal,
interrompa com qualquer desculpa. Preciso pelo menos tentar salvar a
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fazenda ou ganhar uns dias.


Respirou fundo, olhou para o pai novamente e perguntou: — O que o
senhor acha? Está bonito? — Rodopiou, fechou a porta e desceu.
Ao abrir a porta da varanda, todavia, não apenas um, mas três pares de
olhos a fitaram. E um deles era Jonas.
Eles se encararam. Ela arregalou os olhos, engoliu em seco e ele piscou
várias vezes. Azuis safira, como ela lembrava; e lembrava muito bem.
O que ela está fazendo?, Jonas pensou, mas resolveu ajudá-la.
— Marquês de Chasterbrok, como vai? — Cumprimentou.
— Eu... — Ela começou a dizer, logo percebendo que sua voz seria o
problema.
Notando o nervosismo da moça, Jonas falou novamente, levantando-se e
maneando a cabeça em reverência.
— Senhor, é um prazer revê-lo. Soube que não tem se sentido bem. A
garganta ainda lhe incomoda?
Ela estava muito engraçada com aquelas roupas e ele quis rir — não,
gargalhar. As calças eram largas, a casaca enorme e suas mãos finas e
delicadas estavam suadas demais. Os olhos, disfarçados em armações
masculinas que não escondiam aquela familiar cor de nozes, e o sorriso
perfeito eram inconfundíveis.
Mas ela esqueceu um detalhe: eles conheciam o Marquês.
— Garganta? — Perguntou o velho senhor Marshall.
— Sim, sim... A filha do Marquês, a adorável senhorita Christine, me
contou sobre a doença no baile de Augusburg.
— Contou? — Perguntou a moça, pigarreando para forçar a voz a
engrossar.
— Sim. Tivemos uma conversa muito agradável.
— Conversa? Achei que o senhor não tinha se aproximado dela no baile
— disse, rancorosa.
Ele apertou a boca, querendo enforcá-la e rir ao mesmo tempo.
— E como vai a senhorita de Sommè? — Falou Christine, novamente,
provocando-o.
— Julie de Sommè? Há tempos não a vejo...
Simon e o velho senhor Marshall admiravam o diálogo e perceberam que,
até aquele instante, os dois não haviam desviado os olhos um do outro. Simon
pigarreou, trazendo Christine de volta à realidade. Ela, finalmente, respondeu
à pergunta que serviria de disfarce para a voz.
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— Estou melhor, senhor Jonas, obrigado.


— Flaubert — disse Simon, interrompendo-a com um meio sorriso
constrangedor e presenteando-a com o melhor olhar Marshall: o intenso.
Gêmeos.
Idênticos, Christine pensou. Aquele rapaz era idêntico ao senhor Jonas,
exceto o porte, a elegância e os olhos negros, absolutamente diferentes do
azul angelical de Jonas.
— Ela está ótima. Tivemos uma conversa muito interessante no baile —
completou Simon.
— Quem? — Perguntou Christine, confusa.
— Julie de Sommè. Eu e a senhorita de Sommè tivemos um diálogo muito
produtivo no baile de Augusburg.
Ela arregalou os olhos com a indiscrição.
Então, era ele no jardim?
Forçou-se a dizer.
— Entendo.
O senhor Marshall, com seu jeito conspícuo, impôs uma voz grave e
assustadora, encerrando a frivolidade.
— Muito bem, rapazes, deixemos isso para depois. Não me importa de
que o Marquês chame Flaubert ou com quem Simon dialogou— marcou bem
as palavras, claramente cansado das rixas infantis dos filhos. — Então,
Marquês, vim lhe dizer que comprei todas as suas dívidas. Logo, todas agora
estão sujeitas aos juros bancários, como o senhor poderá comprovar quando
puder analisar os documentos que lhe trouxe. Portanto, senhor Marquês, lhe
pergunto: conseguiu o dinheiro?
— O senhor com-comprou as dívidas?
— Sim, senhor Marquês. Imagino que o senhor saiba que este é o
procedimento comum nos bancos.
Christine não deixou de notar a ênfase que o homem sempre dava ao
vocativo. Sentiu calafrios e pensou em desistir, mas seguiu com o jogo.
— Eu... — Pigarreou. — Eu tenho uma proposta.
Claro que, se a proposta era ridícula antes, agora era uma afronta à
inteligência do banqueiro. Mas a moça começou a falar. De tempos em
tempos, limpava a garganta e tentava engrossar a voz, certa de que estava
fazendo papel de idiota.
O plano para quitar a dívida da fazenda era uma piada e, de fato, Simon
riu quando ela parou de falar. Riu, não. Primeiro fingiu conter o riso. Depois
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colocou a mão na frente da boca. Enfim, gargalhou. Alto.


Jonas, entretanto, permaneceu sério, tentando apoiá-la, mas foi impossível
conter o chute nas pernas do irmão e a repreensão com o olhar.
— Acho que podemos fazer algumas adaptações, mas o plano não é de
todo ruim — interveio Flaubert.
— Como assim? O plano dela... Dele, do Marquês, quero dizer... —
Enrolou-se propositalmente Simon, mas prosseguiu: — Ah! Vocês me
entenderam! O plano é ridículo. Meu pai, seremos motivo de piada!
— Pai? — Perguntou Christine, esquecendo-se da voz.
Aparentemente, o senhor Marshall não ouviu.
— Cale-se, Simon! — Interveio Jonas, trincando os dentes. — O Marquês
certamente fará uma outra proposta. Uma proposta realista assim que analisar
os documentos que trouxemos.
Envergonhada, Christine olhou para o mordomo, que percebeu sua aflição
quase ao mesmo tempo que Jonas.
— Meu senhor, está na hora de seu tratamento da garganta — disse César.
Ela ainda não respirava nem piscava.
— Sim, sim, nós partiremos agora — falou Jonas, levantando-se. —
Deixaremos o senhor repousar.
— Não resolvi ainda o que vim fazer, Flaubert. Sente-se agora — ordenou
o pai.
— Meu pai, o Marquês precisa repousar e repensar sua proposta.
Voltaremos depois, não é melhor? — Insistiu o rapaz, cumprimentando
apressadamente o Marquês de mentira com um leve aceno e afastando-se em
direção ao coche, antes mesmo de seu pai levantar-se.
— Pois bem, volto aqui amanhã. Estarei na estalagem do vilarejo, Flor &
Espinho, mas devo retornar a Londres em dois dias. Então, meu caro
Marquês, nos encontraremos amanhã, certo?
— Amanhã? — Perguntou uma assustada Christine.
— Papai, ficarei na região analisando algumas fazendas e fazendo
relatórios. Posso fazer o mesmo aqui e aproveito para conversar novamente
com o Marquês — sugeriu Jonas, imediatamente notando o alívio no rosto de
Christine.
Não percebeu, todavia, o quanto ela estava desconcertada.
Envergonhada.
— Não sabia que você ia ficar, meu digníssimo irmão. Tenho certeza que
nosso pai gostaria que eu lhe fizesse companhia, certo? — Sugeriu Simon,
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olhando para Jonas com o mesmo rosto travesso que fazia quando queria
debochar do irmão. — De mais a mais, posso ajudar bastante nas negociações
com o Marquês. — Sorriu o rapaz, olhando para Christine e deixando-a ainda
mais embaraçada.
Jonas sussurrou imprecações e ouviu o pai concordar: — Pois bem, vou
aproveitar para visitar outros investidores na região. Mas quero vocês de
volta a Londres na próxima sexta-feira com a proposta séria ou com a
escritura da fazenda. Isso lhe dá mais três dias, Marquês. É mais do que
suficiente. E lembre-se que isso é uma concessão que estamos fazendo. Seu
prazo está esgotado há quase um mês.
Os três se viraram, após uma leve reverência absolutamente imprópria
para o título de Marquês, e partiram em direção à carruagem.
Jonas olhou para trás e viu quando Christine sentou, levou a mão ao peito
e suspirou aliviada. Ele quis voltar, mas achou que pioraria as coisas.
Lembrou, então, da expressão que ela fez e de seu tom ríspido de voz quando
ele disse que havia falado com ela no baile.
Ela ficou chateada porque ele não foi até ela?
Flaubert sorriu. Ela pareceu chateada.
— É uma moça corajosa — disse o velho Marshall, tirando-o dos
devaneios. — Ingênua e tola, mas corajosa. Veja lá se eu não ia perceber que
era uma mulher naquelas roupas... E ela é bem mais magra que o velho
Marquês...
— Ora, meu pai, dê-lhe o devido crédito. Tornou a visita bem engraçada e
Flaubert pareceu impressionado — debochava Simon, que virou para o irmão
e disse: — O que diabos foi aquilo de melhor proposta? Não tem nenhuma
proposta! Ele está falido. Falido! E ela não entende nada de negócios. Já eu?
Eu sou ótimo com negócios e tive uma ideia que pode ser bem interessante...
Simon discorreu sobre seu plano, que foi aceito pelo pai e pelo irmão.
Antes, entretanto, Jonas tentaria um último recurso: vender a propriedade por
um preço maior do que a dívida, garantindo que a sobra permitisse a
Christine sobreviver dignamente com o pai em Londres. Não adiantava
deixar a fazenda com eles. Ela não saberia administrar e certamente teria
problemas novamente.
— Muito bem, Flaubert. Vamos tentar seu plano. Se não funcionar, vamos
tentar o de Simon. Se nenhum dos dois funcionar, que é o que eu acho que
vai acontecer, quero a propriedade no meu nome.
— Flaubert, o príncipe encantado no cavalo branco, vai resgatar a
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donzela da torre do dragão Marshall! — Riu Simon, voltando a zombar do


irmão.
— Deixe-o, Simon — interveio o pai. — Preste atenção, Flaubert, não se
envolva com a filha de um maldito Marquês. Isso só lhe trará problemas
maiores do que achar investidores para o banco. E não estou falando da
dívida desse homem!
Ele olhou para fora do coche, perdendo a vista da varanda da mansão. Era
tarde demais, e todos sabiam disso. Os olhos de Christine o enfeitiçaram
desde a primeira vez que a viu, dois anos antes. Irremediavelmente
apaixonado. Absolutamente perdido.

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Capítulo 8

M ais tarde naquele mesmo dia, Christine resolveu


chamar o administrador de novo.
— Precisamos de outra solução, Aaron.
— Não há, senhorita. Precisamos vender a fazenda pelo melhor preço
possível, e tentar fazer sobre algo que lhe permita ter uma casa em algum
lugar.
— Muito bem, todos os arrendatários devem ser avisados. Alertados, por
assim dizer. Preciso que me informem, mesmo que apenas verbalmente, os
ganhos das propriedades. Eu já devia ter pedido isso antes, mas só pensei
nisso agora.
— Vou providenciar, senhorita.
Christine não queria se desfazer da fazenda, o lugar que vinha sendo o seu
lar há mais de 20 anos. O lugar onde sua mãe estava enterrada.
Ela suspirou e coçou a testa, desanimada.
— Até o final dessa semana, dificilmente terei vendido. Não sei nem para
quem vender, devo confessar... Eu precisaria ter muitas conexões para
entender quem compraria uma fazenda improdutiva — constatou. — Acho
que a fazenda realmente passará para o senhor Marshall, do banco. Vou
tentar negociar com ele pelo menos um pequeno imóvel na cidade. Apenas
César e Marianne irão comigo. Infelizmente, não tenho como pagar todos os
empregados com a renda do papai e as despesas. Ele sequer tem ido à
Câmara...
— Sim, senhorita — respondeu o homem, desanimado.
— Me perdoe, senhorita, mas o senhor Flaubert a aguarda na varanda.
Creio que seja um dos filhos do banqueiro — anunciou César.
— Flaubert? Jonas Flaubert? Mas ele só deveria voltar amanhã...
— Creio que ele tenha voltado antes. Mas não sei se é o senhor Jonas...
— Tudo bem, César. Mande-o entrar — disse.
Quando dispensou o administrador, levantou, alisou o vestido, apertou as
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bochechas para conferir-lhes cor, coçou as têmporas e aguardou.


— Boa noite, senhorita Christine. Perdoe a impropriedade da hora, mas
precisava falar-lhe. Fico feliz que tenha voltado aos vestidos — comentou,
passando imperceptivelmente os olhos pelo corpo todo dela e fazendo-a
sentir um calor subir pelo ventre.
Christine se aproximou dele. O vestido sacudia, produzia um barulho
delicado e impregnava o ambiente com um cheiro dela, todo dela, que havia
sentido de perto na porta do banco.
Flaubert achou que tinha se acostumado à presença dela.
Tolo!
— Me disse que se chamava Jonas. Por que, se todos o conhecem por
Flaubert?
— Gosto mais do meu primeiro nome — deu de ombros, como se
explicasse tudo.
Na verdade, ele sempre quis ouvir ela chamar seu nome.
Ela ficou em silêncio, encarando-o e passando as mãos pelos braços,
tentando esquentar-se — ou, então, afastar os calafrios que ele lhe causava.
— Veja bem, senhorita, eu vim ajudar. Preciso fazer uma avaliação da
fazenda para podermos pensar na melhor forma de...
— Ajuda? Pelo que entendi, você é o filho do banqueiro que tem o crédito
sobre meu pai. Aliás, pensando melhor — disse, levando a mão aos olhos, —
o banco chama-se Marshall & Filhos. Se você quer ajudar, perdoe a dívida!
— Não posso. O crédito é do meu pai apenas. Não é do banco.
— Então, você veio medir a propriedade, fazer contas e me expulsar. Eu
tenho arrendatários, sabia? Pessoas que dependem do meu pai.
— Seu pai não está disponível, senhorita, e pelo que ouvi dos
arrendatários, não estão sendo devidamente cuidados.
— Do que está falando? Já andou sondando meus arrendatários?
— Não, senhorita, eu... — Irritou-se consigo mesmo, passando a mão nos
cabelos já bagunçados. — Eu quero ajudar!
— Não quer! Saia daqui! Saia! Esta ainda é a minha casa!
— Senhorita, eu não...
— Saia daqui. Agora!
Flaubert percebeu que Christine apertou as mãos ao lado do corpo. Estava
irritada. Em silêncio, suspirou profundamente, coçou os olhos,
cumprimentou-a e partiu. Não conseguiria nada naquele dia e não suportava a
ideia de incomodá-la ainda mais; estava muito nervosa para qualquer
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conversa. Voltaria no dia seguinte.


Para ele, na verdade, o dia havia sido produtivo. Conversou e esteve por
perto de Christine mais de uma vez, sentiu o cheiro dela e a ouviu dizer seu
nome...
Para ela, o retorno de Jonas fez nascer uma ideia absolutamente louca. Ao
ver seu cavalo se afastar, ainda na janela da biblioteca, ela sorriu.
— Quero ver esses Marshalls tomarem minha fazenda se ela não tiver
nada! Onde já se viu, deixar uma dama sem sua residência! Homem abusado!
A ideia tinha tudo para dar errado — inclusive poderia prejudicar bastante
sua negociação de conseguir um pouco a mais pela fazenda e comprar um
pequeno imóvel em Londres. Mas, pelo menos, ela ia se divertir ao ver a cara
de espanto deles quando voltassem para mandá-la embora!
— Quando eles desistirem de Chasterbrok, vão ter que se conformar com
minha solução inicial. Quero ver se vão achar mesmo ridícula!
Christine tinha, ao mesmo tempo, tudo e nada a perder. A fazenda, que
não deveria significar nada para os outros, era a vida dela. E ela tinha que
fazer de tudo para não ter que se despedir.

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Capítulo 9

D o alto do telhado, Christine empunhou o martelo.


— Meu bom Deus, me perdoe — disse, olhando
para o céu, e descendo a ferramenta nas telhas até
que o forro da casa caísse na sala de chá sobre a mesa do primeiro Marquês.
— Oh! A mesa indiana! — Ela percebeu o que fizera, cobrindo a boca com a
mão e contendo um riso. — Paciência... Ele não está mais vivo para
reclamar!
Levantou-se e por pouco não desequilibrou e caiu também. Quando
chegou na sala, percebeu exatamente o estrago.
— Perfeito — ela disse, maneando a cabeça. — Lamentavelmente
perfeito.
Então, vestiu a touca e partiu para a varanda. Empunhou mais uma vez o
martelo e quebrou o gradil, suspirando e pedindo desculpas à falecida mãe a
cada farpa derrubada.
— Oh, mamãe, a sua fazenda... Me perdoe, mas eles querem tirá-la de
nós.
Voltou à sala, arrumou-se e sentou para esperar os filhos do banqueiro.
— Senhorita, o senhor... — Começou a dizer o mordomo.
— Mande-o entrar — ela o interrompeu, respondendo enquanto passava a
mão pelo cabelo e abria um sorriso triunfal.
— O que houve aqui? — César perguntou, de olhos arregalados, voltando
os olhos para o teto caído e para a pequena mesa estilhaçada.
— Caiu. Está velha, tem infiltrações e madeira apodrecida. Caiu… —
Respondeu, empinando o nariz, e então continuou: — Oh, e César? Sirva o
chá no jogo de porcelana da vovó, por favor.
— Mas está rachado, senhorita...
— Ótimo. Esse mesmo. E faça o mais aguado que puder. Eles precisam
saber que o banco não sairá ganhando. Eles precisam desistir de comprar
Chasterbrok.
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O mordomo saiu e, logo em seguida, voltou acompanhado.


— Senhorita, o Duque de Augusburg — anunciou, envergonhado.
Ela deu um pulo da cadeira.
— Quem? O Duque?
— Como vai, senhorita? Sinto ter vindo sem aviso — disse, penteando o
esquisito bigode.
À frente de Christine, estavam eles: o partido mais desejado da temporada
e seu bigode marcante — marcante e assustador. À frente do Duque, a mesa
de centro com pedaços do telhado. E ele, obviamente, olhou direto para lá.
— Vossa Graça, me desculpe, eu não... Me desculpe... — Christine estava
envergonhada e cobriu a boca com as mãos.
Bastante envergonhada.
O homem era grande, alto e forte. Não fosse a marca ducal ridiculamente
estampada no rosto, ele seria um homem lindo. Cabelos negros, muito bem
penteados para trás, a roupa perfeitamente engomada. Altivo, amedrontador e
com a levantada de sobrancelha mais sexy que ela já vira. Com lábios finos
demais, poderia ser um bom marido.
Felicia havia lhe dito que devia sentir calores quando visse o marido,
como se algo lhe subisse pelo ventre. Aquele era um homem a quem ela
poderia desejar, ainda que não sentisse calor nenhum naquele momento e seu
ventre estivesse mais estático do que outra coisa. Os olhos dele, castanhos
escuros, pareciam distantes e opacos, focalizados em outro lugar, pensando
em outra coisa.
Usando o banheiro?
Sentindo um cheiro ruim?
Fazendo contas?
Se era isso, ele nunca a cogitaria como esposa. Especialmente se soubesse
sobre seu dote. Seu dote que nunca poderia ser honrado. Pensando no que
deveria dizer para o rapaz, Christine apertou as mãos à frente do corpo. Não
tardou para o mordomo entrar com o chá aguado servido na porcelana
quebrada.
Tudo estava definitivamente perdido.
Mais uma vez ela arruinara as chances de um casamento.
O mordomo pressentiu seu desespero, mas ficou sem reação, estatelado na
porta da sala.
— Prezada senhorita Christine, este jogo de chá deverá ir para o sótão,
certo? — Perguntou Flaubert, entrando logo atrás do mordomo e arqueando a
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sobrancelha.
— Senhor Jonas? — Ela se espantou, engolindo em seco ao se ver
examinada pelos olhos mais maravilhosos que já tinha visto.
Sentiu um estranho arrepio e algo se mexendo dentro dela.
Ele tinha realmente olhos lindos...
— Então, eu estava justamente conversando com o senhor César sobre o
jogo de chá. — Ele balançou a cabeça em afirmativa, tentando fazê-la
concordar. — Sótão, certo?
— Sim, sim... — Ela entendeu o que ele havia feito e percebeu que ele a
estava ajudando. — Por favor, César, sótão. Peça à Marianne para servir-nos
um chá com aqueles biscoitos que fez.
O mordomo se virou e deixou o cômodo um pouco aliviado, mas a
madeira caída no chão não passou despercebida aos olhos arregalados de
Flaubert. O Duque aproveitou para mencionar: — Seu telhado está quebrado,
senhorita?
— Ratos — disse Christine.
— Infiltração — disse Jonas, ao mesmo tempo.
E o Duque arqueou a sobrancelha, quase tão espessas quanto o bigode.
Christine e Jonas se entreolharam, procurando o caminho livre da recém-
formada cumplicidade.
— Foi uma infiltração causada por um rato — disse ela, mentindo
descaradamente.
— Mas era apenas um rato e já foi exterminado — completou Jonas,
tentando amenizar o prejuízo.
— Entendo — disse o Duque, ainda tentando compreender o que fazia ali.
— Acho estranho ser apenas um. Esses bichos costumam andar em bando.
— Já mandei procurarem outros, senhor. Era apenas um mesmo — falou
Christine, buscando arduamente recuperar suas chances de núpcias.
— Meu caro Augusburg, me acompanha pela propriedade? Simon está
com os arrendatários. Podemos conversar sobre seus investimentos — propôs
Jonas.
— Investimentos? — Ela se assustou.
Então, ele não foi cortejá-la?
— Meu pai sabe disso? — Perguntou Christine irritadiça.
— Sim. Conversamos ontem à tarde, senhorita — provocou Jonas,
percebendo a raiva nos olhos dela e sentindo uma pontada de diversão com a
situação. — Eu vim avisá-la, mas não pudemos conversar à tarde...
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Ele sorriu e viu quando ela apertou os olhos e rangeu os dentes.


— Não sei se é um bom investimento, Flaubert. O rato, a madeira
quebrada na varanda, essa secular mesa quebrada... O Marquês deveria
juntar-se a nós, não acha, senhorita?
Jonas, que não tinha afastado os olhos dela, viu quando Christine
empalideceu. A cor daquelas lindas bochechas a abandonara e era possível
enxergar o cérebro dela pensando em uma solução.
A resposta não veio.
Ela deveria responder.
O silêncio tornou-se constrangedor. O constrangimento tornou-se
vergonha, que foi disfarçada pelo mordomo e sua bandeja recém-abastecida.
A vergonha, então, tornou-se alívio.
Jonas percebeu quando Christine soltou o ar e pegou uma xícara. O rapaz
também notou quando ela queimou a língua e fez uma careta. Era incrível
como a presença dela despertava a atenção dele — a atenção a tudo que ela
dizia, fazia ou insinuava.
Mas quando ela lambeu os lábios, outro sentimento por ela o surpreendeu
— o mais puro desejo. Visceral. Ele queria imensamente provar aquela boca.
Por Deus, ela é a filha do Marquês! Falido e recluso, mas ainda um
Marquês!
— Pois bem, Flaubert, vamos conversar lá fora. Com sua licença,
senhorita Chasterbrok — disse o Duque, com um breve movimento de
cabeça.
Sutil até demais, segundo Flaubert. Ela merecia a mais formal reverência.
Quando ele mesmo estava se preparando para se despedir, ouviu a moça
dizer: — Acompanharei vocês.
Christine imaginou que era a sua chance de conquistar o Duque, descobrir
o que o senhor Jonas estava armando e, bom, sair da casa para passear um
pouco. Passear? Aqueles homens queriam tirar sua fazenda e isso, ela não ia
deixar. Conquistar o Duque era o melhor caminho e...
— Como? — Assustou-a Jonas. — Não vai, não! — Determinou, sério,
fritando-a com aqueles glaciais olhos azuis.
— Seria um prazer — disse o Duque. — A dama deve conhecer recantos
acolhedores e reveladores desses prados e certamente será interessante
conhecê-los em sua companhia — comentou sorrindo e levantando a raiva
flamejante em Jonas.
Ele está jogando charme para ela? Cretino infeliz! Bastardo!
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Ela sorriu.
Ela sorriu! Sorriu para o maldito Duque do Bigode!
Jonas trincou os dentes. E então, ele olhou para Christine, que arqueou
uma sobrancelha. Ela o estava desafiando!
Sim, ele queria vender a fazenda e não tinha como negar que a companhia
dela era mais do que agradável. Mas percebeu que os planos dela eram
outros: ela queria casar.
Com Augusburg!

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Capítulo 10

D urante quase todo o resto da manhã, eles


caminharam pela fazenda. Christine falava com
amor de cada canto da propriedade, contava histórias
de sua infância, momentos de lazer da família. Seus olhos de quem tinha
lembranças demais daqueles prados brilhavam. À luz do sol eram castanhos
claros, quase amarelos. Nunca o Duque tinha visto aquela cor. E nem Jonas.
Quando notou como Augusburg olhava para a moça com interesse, Jonas
sentiu uma pontada no peito. Instantes depois, percebeu que o maldito Duque
lambeu os lábios encarando os seios da moça e uma mistura aguda de raiva
com ódio fez brotar a vontade de matar alguém. Alguém não: ele.
Arrancar cada pelo do maldito bigode.
Então, Flaubert achou que ia ter um ataque do coração e cair duro. Chegou
a levar, instintivamente, a mão ao peito. Tinha certeza que o amigo nem o
notaria no chão desfalecido, mas quis saber se Christine o ajudaria.
Será que ela o levaria para casa, chamaria o médico e ficaria ao lado dele,
cuidando e zelando?
Talvez ter um ataque não fosse uma má ideia, afinal...
— Ali, daquele ponto, é possível ver quase toda a propriedade — ouviu
ela dizer e sorrir para o Duque.
Estavam próximos demais.
Sim, fingir um ataque seria uma boa solução. Encerraria aquele erro e ele
poderia pensar em outro comprador para a fazenda...
Felizmente, voltaram a caminhar. Infelizmente, a mão dela repousava no
braço de Augusburg.
Sim, cair desfalecido acabaria com aquele teatro.
O Duque teria que ir embora. Ou será que ele ficaria para ajudar
Christine?
Não!
O ataque pareceu péssima ideia. O maldito Duque ia se aproximar ainda
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mais dela.
— A senhorita cavalga? — Perguntou Augusburg. — Adoraria levá-la em
um passeio à minha propriedade.
Cavalgar? O que o imbecil estava pensando? Agora era a hora do ataque.
Por que a dor no peito não o fazia desmaiar?
— Claro! Podemos cavalgar. E há muitos lugares aqui na propriedade que
só podem ser conhecidos no lombo de um cavalo. O alto da Colina
Nevershore, por exemplo, onde todos os Marqueses anteriores foram
enterrados... — Jonas viu as longas pestanas da moça sacolejarem para cima
e para baixo várias vezes.
Vezes até demais.
Lindos cílios; eram uma chuva dourada que caía apenas nos olhos dela.
Ele adorava olhar para Christine.
A dor no peito havia passado.
Excitação.
— Amanhã à tarde? — Propôs o Duque.
— Não! — Gritou Jonas, um tanto irritado demais.
— Não? — Espantaram-se Christine e o Duque.
— Não, quer dizer, amanhã não é um bom dia, Augusburg. Precisamos ir
ao vilarejo e...
— Vilarejo? Eu conheço o vilarejo, Flaubert. Craigh Manor é aqui perto,
esqueceu?
— Sua fazenda é aqui perto? — Ela perguntou, mas antes que o Duque
respondesse, Flaubert interrompeu: — Certamente a senhorita tem muitos
outros afazeres...
— Afazeres? Que afazeres uma linda dama pode ter? — Comentou o
imbecil Duque.
Idiota! Pensou Jonas, e sorriu vitorioso.
— Muitos, meu senhor — respondeu Christine, um pouco irritada demais.
O Duque era, decididamente, um parvo.
— Claro, senhorita — tentou corrigir-se Augusburg. — Mas uma dama
não deveria ter a agenda cheia. Certamente as Duquesas de Augusburg
podem dar-se ao luxo de cavalgar com um pretendente.
— Pre-pre-pretendente? — Gaguejaram Jonas e Christine.
Do que o cretino falava agora?
Ela sorriu e levou a mão delicada ao peito.
Se animou com a ideia.
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— Sim. Penso em pedir autorização ao senhor seu pai para cortejar a


senhorita. Preciso de uma esposa e, bom, quem melhor do que uma bela
donzela, filha de um Marquês? — Comentou, tentando parecer charmoso sem
ser grosseiro.
Inutilmente, claro.
O sorriso dela esmoreceu.
— Acho que devemos nos conhecer melhor — disse Christine. — Não
sou apenas uma bela donzela filha de um Marquês.
Isso, Christine! Não deixe o infeliz ganhar!
Jonas estava atônito demais para formular qualquer coisa que pudesse ser
verbalizada sem gerar um duelo.
— Sou a donzela que já leu mais livros do que todas as outras de sua
idade. A moça que entende de economia e dinheiro. A senhorita que está
solteira aos 20 anos e que perdeu sua primeira temporada por um erro que
nunca mais se permitirá cometer — concluiu, apertando as mãos ao lado do
corpo. — Sou muito mais coisas, muito mais do que a filha de um Marquês.
Ela estava irritada e Jonas, por mais que comemorasse o tiro que o Duque
acabara de dar no próprio pé, odiava ver Christine irritada. Precisava fazer
alguma coisa. Percebendo a alteração, conseguiu dizer: — Augusburg,
conforme conversamos, trouxe-lhe aqui para conhecer a fazenda e pensar em
investir.
— De fato, mas estou encantando pela dama. É muito bela e sabe se portar
como a esposa de um Duque — disse, segurando a mão de Christine entre as
suas e levando-as aos lábios em um toque delicado. — Além de ser
extremamente perspicaz e inteligente.
Ela corou e sorriu.
O maldito voltou a fazer pontos!
Jonas corou também, mas trincou os dentes.
Vou matar esse bastardo!
Ciúmes? O rapaz sentiu a força de mais um sentimento preencher seu
peito. Eram muitas novas sensações naquele dia — todas ligadas à Christine
que, sabe-se lá o porquê, mas ainda sorria para o Duque.
Jonas precisava fazer alguma coisa para acabar com aquilo. Augusburg
era cretino demais para segurar a luva de Christine.
— Não há mais dote! O Marquês está falido. — Disse, um pouco
desesperado.

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Capítulo 11

C hristine arregalou os olhos e fuzilou Flaubert com as


duas gemas douradas que levava entre os cílios.
— Falido? — Perguntou o Duque, um tanto
incrédulo, mas certamente confirmando a informação que recebera algumas
semanas antes. — Como um dos homens mais ricos do reino pode estar
falido?
Na cabeça dele, poderia pagar metade pela propriedade e ainda casar com
a dama. Era o negócio perfeito, ainda que ele não visse exatamente nenhuma
graça na magricela. Exceto, talvez, os fartos seios.
— Cale-se, senhor Jonas! — Disse Christine.
Ele, na verdade, havia se arrependido no momento em que falou. A
propriedade seria desvalorizada e a venda não cobriria o débito do Marquês.
— Não é bem falido, Augusburg — começou a dizer, — mas precisa
quitar algumas dívidas com o banco.
— Pare com isso, senhor Jonas! O que está fazendo? — A raiva fumegava
nos olhos da moça, enquanto via que a chance de casar com um Duque, bem
charmoso por sinal, estava indo embora.
Jonas não sabia bem o que estava fazendo. Acabara de arruinar os
próprios planos e os dela, e muito provavelmente ela teria raiva dele para
sempre, mas foi obrigado a fazer alguma coisa para acabar com aquele flerte
ridículo. Pelo menos, agora ela não casaria com aquele almofadinha
presunçoso, ganancioso e esnobe.
— Senhor Jonas, acho que já falou demais. Não acha? Por favor, Vossa
Graça, me acompanhe de volta à casa para o almoço. Conversaremos melhor
lá. Quem sabe o papai já acordou e sente-se melhor, não é?
— Seria um prazer falar com ele ainda hoje, senhorita — disse
Augusburg, oferecendo o braço a ela sem muita convicção.
Na verdade, ele já não estava mais tão certo daquele negócio. Demorou
um tempo para que o Duque fizesse a matemática e percebesse que, se ele
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estava falido, nunca honraria o dote esplendoroso que tinha prometido em


nome dela. Ele poderia simplesmente comprar a fazenda por um preço muito
mais barato e arrumar outra noiva, que fosse de fato bonita e rica.
Mas, naquele instante, quis irritar Flaubert um pouco mais. Estava bem
engraçado...
— Sim, vamos — começou a dizer Jonas, caminhando atrás dos dois.
— Não — interrompeu-o Christine, mostrando-lhe a mão aberta para fazê-
lo parar de andar. — Eu e o Duque iremos. Por ora, vou pedir que selem seu
cavalo e o senhor pode partir.
— Mas eu...
— Passar bem, senhor Jonas.
— Adeus, Flaubert — disse o Duque, segurando a mão de Christine para
apoiá-la novamente em seu antebraço.
Ele a tocava demais.
Quando haviam se afastado o suficiente para Jonas não conseguir matá-lo,
o Duque se virou e, sem que Christine percebesse, sorriu, certo de que havia
conseguido irritar Jonas.
Maldito seja, Augusburg! Não vai magoar a moça! Nessa moça, você não
encosta!
No caminho para o celeiro, Flaubert tentava lembrar em que ponto seu
plano havia ido por água abaixo.
Sentimentos!
Malditos sentimentos. Como pôde se distrair tanto com os tais
sentimentos. Proteção, carinho, desejo, ciúmes... Ele poderia ter virado o jogo
a seu favor e afastado a possibilidade estapafúrdia de Christine casar com
aquele ameboide.
Como foi tão idiota? Cegou-se por ela.
Precisava colocar a cabeça em ordem. Tinha o crédito em mãos e o poder
de arruinar aquele casamento idiota. Augusburg era interesseiro demais e
jamais se casaria com uma moça sem nenhuma posse.
Mas será que o casamento era uma ideia tão ruim assim? O Duque
assumiria as dívidas do Marquesado e, bom, problema resolvido.
Sim, era isso!
Era uma ideia melhor do que barganhar um bom preço por uma fazenda
que, bem, pelo que ele tinha visto nas visitas anteriores, precisava de mãos
firmes para voltar a produzir.
De mais a mais, Christine estaria protegida pelo título. Seria uma
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Duquesa.
A Duquesa de Augusburg.
Duquesa Christine de Augusburg.
Seria a esposa de Augusburg.
Todo dia, o infeliz poderia olhar para aqueles cílios dourados à luz das
velas, ouvir seus gemidos mais íntimos, tocar sua pele sedosa, fazê-la sorrir e
receber carinhos dela.
Augusburg. Não Jonas.
Ela jamais seria a senhora Jonas Flaubert. Ele jamais a tocaria, jamais
teriam filhos, os sorrisos dela jamais seriam dele. Sem perceber, esporeava o
cavalo com vigor, como se estivesse em uma corrida por sua vida e não viu
quando o irmão se aproximou.
— Flaubert? Flaubert? Está cavalgando o cavalo do diabo, homem?
Diminua este trote antes que caia!
— Não me encha, Simon! — Gritou, sem diminuir a velocidade.
— Conseguiu vender a propriedade para Augusburg? Ele vai quitar a
dívida?
— Pelo que entendi, ele vai propor casamento à Christine.
— Christine? A senhorita Christine?
— Sim, você sabe quem é.
— Claro que eu sei. É a moça que você deseja há alguns anos, a que lhe
fez recusar-se a casar com a herdeira americana, a moça que...
Flaubert diminuiu o trote do cavalo e o irmão emparelhou as montarias.
— Muito bem, Simon, essa mesmo! Você sabe quem é.
— E você? Você sabe quem ela é ou esqueceu que é filha de um
Marquês? — Perguntou. — Enfim, preciso voltar à fazenda para falar com o
administrador sobre um dos arrendatários. Nos vemos na Flor & Espinho —
disse, fazendo a volta.
Não, claro que ele não havia esquecido. Era isso, exatamente isso que o
impedia de pedi-la em casamento e cortejá-la naquele exato momento. Era
por isso, exatamente por isso que Augusburg estava com ela. Não ele.

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Capítulo 12

N o caminho de volta à casa, Christine não conseguiu


prestar atenção em nada do que o Duque disse. Pelo
que se lembrava do baile, ele era um parvo narcisista
que alisava demais o bigode. Ela ouviu a voz dele ao longe, mesmo estando
ao seu lado.
Forçava-se a lembrar do que tinha acontecido nos instantes anteriores.
Lembrava de alguma de suas amigas ter comentado que o Duque buscava
uma esposa e sabia que tinha conversado algo a esse respeito com a
Viscondessa de Linderpool, que lhe disse, dentre muitas outras coisas, que
muitas vezes não ouvia o marido porque se distraía com a beleza dele.
Christine imaginou que fosse acontecer a mesma coisa com ela e seu
futuro cônjuge, mas ali, caminhando ao lado dele e sem ouvir nada do que ele
dizia, não era a beleza clássica, a voz aveludada e sensual ou as roupas
perfeitas — que mesmo depois de duas horas ao sol pareciam recém-
engomadas —que lhe roubavam a atenção.
Ele havia mencionado qualquer coisa de casamento depois de ouvir Jonas
falar sobre a falência de seu pai? Ela não lembrava.
Casar-se com aquele Duque? Não era estranho o Duque ter pensado
nisso, se nunca a havia tirado para dançar ou passear no jardim?
Não, claro que não!
Ele não teve a chance. Ela só havia ido em dois bailes e, por coincidência,
os dois bailes oferecidos pela família Augusburg. Bom, dinheiro não lhe
faltava. Ele poderia recuperar a fazenda sem nenhuma dificuldade. Ela e o pai
estariam a salvo.
Era essa a ideia, não? Casar com um nobre?
Finalmente ela casaria com um Duque? Um dos nobres mais importantes
do reino? Era com isso que ela tinha sonhado?
Então por que seu coração a incomodava? Por que lutava com tantas
dúvidas? Por que não conseguia prestar atenção no que o homem dizia?
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Por sorte, ele lembrou-se de um compromisso.


— Então, senhorita, voltarei em breve para falar com o Marquês — disse,
finalmente, quando chegaram na varanda.
E Christine percebeu um olhar malicioso. Ela engoliu em seco. Conhecia
bem aquele jeito perigoso de se aproximar. Já fazia tempo que não lhe
olhavam daquela forma tão lasciva.
— A senhorita é muito bonita. Muito mesmo — falou novamente,
passando as costas da mão pelo rosto de Christine. Sem a luva.
Naquele instante, ela pensou que deveria ter uma acompanhante que
pigarreasse, dissesse qualquer coisa e fizesse o Duque se afastar um pouco
mais.
Mas por que ele deveria se afastar? Um frio passou pela espinha de
Christine.
Ela deu um passo para trás. Instinto de sobrevivência.
Mas ele deu um passo para a frente. Instinto de caça.
— Não tenha medo. Eu sou um Duque.
Sim, ele era um Duque, mas aquilo tudo estava errado, de alguma forma
que ela não sabia bem explicar. Christine percebeu que, quanto mais ele se
aproximava, menos ela queria que a tocasse.
Só porque era um Duque, não poderia simplesmente beijar uma dama,
poderia?
Beijar? Algo como repulsa apertou o coração dela. Mas repulsa não era
algo que se deveria sentir pelo marido. Ou era?
— Me desculpe, Vossa Graça, mas acho que...
Ele a beijou. Um beijo suave, algo como lábios se tocando delicadamente
e acariciando-se. Ela sempre quis ser beijada.
Então por que estava se sentindo tão estranha?
Christine sentiu um toque em seu pescoço e percebeu que o beijo se
tornara um pouco mais apertado. A outra mão do Duque desceu por suas
costas e a trouxe mais para perto, até encostarem os corpos. Sentiu-se
incomodada. Não queria aquele toque. Achava-o impróprio demais e, naquele
instante, nada prazeroso. Era exageradamente molhado e ela quis limpar a
boca com o lenço.
O que estava errado com ela?
Christine nunca havia visto as amigas secarem a boca depois de um
beijo... E nenhuma delas jamais reclamou disso.
O beijo se aprofundou e Christine correspondeu como imaginou, sentindo
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a estranheza de ter a língua dele invadindo sua boca. Isso era beijar?
Então por que tudo que ela conseguia pensar era no incômodo daqueles
pelos do bigode dele, que espetavam-na e coçavam?
Não era ruim beijar. Mas o bolo de sua cozinheira era melhor. Nadar no
lago, andar a cavalo, adormecer na cadeira da biblioteca, ouvir o fogo da
lareira estalar, ler um romance, uma boa noite de sono embaixo de cobertas
grossas... Eram muitas as coisas melhores que um beijo.
Teria que fazer aquilo muitas vezes? E a suposição afirmativa fez com
que algo novo surgisse entre eles. Uma assincronia, um desconforto ou pior:
um simples nada. Era apenas incorreto.
Talvez, ela imaginou, talvez fosse apenas a estranheza de um primeiro
beijo.
Finalmente ele se afastou.
Finalmente?
— Está tudo bem, senhorita? — Ele perguntou, sorrindo e soltando-a.
Christine cambaleou e deu um passo para trás.
— Sim, sim... Eu fui pega de surpresa.
— Claro. Compreendo. Voltarei amanhã para falar com o senhor Marquês
— disse, se aproximando novamente.
Christine, por algum motivo, se afastou, sorriu e estendeu-lhe a mão para
que ele a beijasse. O rapaz não se fez de rogado: levou a mão aos lábios e
respirou suavemente sobre ela, elegante e nobre.
Quando ele entrou no coche, ela percebeu que seu peito se acalmou e
inspirou profundamente.
Alívio. O Duque se fora.
E por que mesmo ela deveria ficar aliviada com isso? Por que era tão
estranho ela estar feliz por ele ter ido?

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Capítulo 13

Monologar.
A ssim que o coche se afastou, Christine subiu ao quarto
do pai. Sentou-se à beira da cama e, como sempre
fazia, começou a conversar com ele.

— Papai, queria muito que você acordasse, conversasse comigo. Há um


rapaz... Ele é... Bom, ele veio aqui hoje e eu senti... Ele é um dos sócios do
banco, sabe? Filho do senhor Marshall. Não tem título, papai, isso seria um
problema? Ah, papai, a gente deve ao banco tanto dinheiro e eu temo que isso
seja estranho. A fazenda é tudo que nos resta e a gente vai perdê-la também.
Eu... eu não disse ontem porque fiquei com vergonha, mas o senhor nem se
mexe e eu não sei nem se me ouve...
Maneou a cabeça. O pai piscou e ela achou que ele diria alguma coisa.
— Oh, papai, fale comigo! Fale comigo! Um Duque também veio aqui.
Eu achei que ele ia me cortejar, depois achei que ia comprar a propriedade, e
aí ele começou a falar em casamento e eu...
Christine parou de falar, apertou as mãos no rosto e achou que ia chorar.
Mas ela não chorava mais.
Sentiu um carinho na cabeça e se assustou.
— Papai?
— Não, senhorita, sou eu — disse o mordomo. — Vim avisá-la que o
senhor Flaubert deseja vê-la.
— Flaubert? Aquele abusado! Como teve coragem de voltar depois de
tudo o que disse? Agora ele vai ouvir, porque eu tenho muito o que dizer a
ele — murmurou para si mesma. Percebendo o espanto do mordomo, virou-
se para ele: — Ele disse ao Duque que papai estava falido, você acredita?
Disse que não tinha mais dote! Para salvar o negócio dele, ele arruinou
minhas chances! Então, achei que o Duque desistiria do casamento, mas não.
Ele virá amanhã pedir ao papai para me cortejar.
Ambos voltaram-se para o Marquês.
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— Pedir ao seu pai? — Perguntou o mordomo, arqueando as


sobrancelhas.
— Resolveremos esse detalhe amanhã, César. Hoje, preciso ir falar com o
senhor Jonas.
Ela se sentia feliz ou talvez animada. Animada demais. E isto lhe causava
estranheza.
Será mesmo que isso era uma alegria para ela?
— Papai, preciso que você acorde e me ajude a falar com ele. Preciso que
ele veja que o senhor está bem e que eles não vão nos tirar a fazenda. Preciso,
papai... — Inspirou.
Claro que o pai nem se mexeria. Há mais de três meses ele não se mexia.
— Pois bem, papai. Você não quer me ajudar — lamentou.
— Vou dizer ao senhor Flaubert para voltar amanhã — disse o mordomo.
— Não, César! Eu preciso falar com ele. Preciso lhe dizer que vou casar
com o Duque e que tudo estará resolvido em breve. Sirva-lhe chá e bolo na
biblioteca. Temos bolo?
— Sim. Devo usar a louça rachada? — Ele sorriu, cúmplice.
— Não. — Ela devolveu-lhe o sorriso. — Use a prataria polida.
Meia hora depois, penteada, de rosto lavado e recomposta, ela desceu e
parou em frente à porta da biblioteca de seu pai. Inspirou profundamente e
entrou.
Encostado na janela, ele imaginava se a moça aceitaria sua proposta.
Assim que ouviu o barulho da porta, se virou.
— Senhor Simon? — Espantou-se.
E ele sorriu, maroto e um pouco de lado.
— Decepcionada, senhorita? — Ele perguntou.
— Não, eu só achei que fosse outra pessoa. Por que o senhor disse que se
chamava Flaubert?
— Repito: decepcionada, senhorita?
— Não — afirmou com veemência. — Mas gostaria de saber por que não
usou seu nome.
— Flaubert é meu nome também. Jonas ganhou o direito quando voltamos
da América — disse. E negou com a cabeça, abanando a mão em negativa, e
continuou: — Isso não importa — sorriu novamente, daquele jeito travesso
que Christine viu tantas vezes no dia anterior. — Fico feliz que tenha voltado
aos vestidos.
— Estranho. Ouvi isso do seu irmão ontem mesmo — comentou,
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franzindo os olhos. — Bom, devo supor que seja comum os gêmeos


repetirem as frases um do outro.
— Não somos siameses, senhorita. Pode ser apenas um sentimento
compartilhado de felicidade por vê-la em seus trajes femininos. Está linda —
disse, exalando um charme natural e inconsciente, como se a ele fosse
comum elogiar uma dama.
Ela não amoleceu; seguiu olhando para ele e tentou parecer o mais séria
possível: — Meu senhor, quem lhe ouve falar pode ser levado a crer que já
me viu sem roupas e, bem, isso pode ter consequências indesejadas para nós
dois — retrucou, caminhando para a mesa do pai e sentando-se.
Ele retesou o corpo, mas sorriu. Dificilmente alguma coisa o tirava do
sério, especialmente depois de descobrir a beleza peculiar da senhorita de
Sommè, encantadora e astuta. Afastou o pensamento e voltou a falar.
— Certo, não foi para isso que vim. Temos contas a fazer e, digamos —
parou para pensar, olhando para ela com intensidade, — eu sou o melhor para
lidar com a senhorita.
— E por que exatamente seria isso?
— Meu irmão está... Como posso dizer isso de forma adequada? —
Perguntou, sorrindo e insinuando algo que Christine não entendeu.
Ou entendeu e não quis acreditar.
— Não importa — ela falou, levantando a mão para impedi-lo de
continuar. — Sente-se para conversarmos. — Apontou a cadeira de visitas.
— Bom, já fiz muitos negócios com mulheres, mas nunca com uma que
fica confortável com os afazeres de um homem, na mesa de um homem,
envolvida em livros de contas.
— Não entendi o que quis dizer, mas não me importo com o que o senhor
já fez — falou irritada, ainda que não soubesse bem porque ele a irritava. —
Se bem me lembro, não fiquei exatamente confortável ontem no papel de
homem. Preciso fazer o papel de mulher e, veja, é o que estou fazendo. Sou
interessada no bom andamento deste negócio e tenho excelente raciocínio
lógico.
— Muito bem. Percebo que está mais eloquente hoje. Isso é ótimo.
Facilita bastante para mim.
Simon era muito feio. O nariz era grande demais, a boca era pequena
demais, a sobrancelha era única e o cabelo era claro demais. E isso só deixava
seus olhos ainda mais escuros e profundos. Um breu. Um abismo que não
desviava o olhar nem por um instante.
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Naquele instante, ela se pegou pensando como pôde confundir os irmãos


no jardim do baile do Duque. Por outro lado, eles eram parecidos, mas as
qualidades que deixavam Simon esquisito eram as mesmas que faziam Jonas
ser bonito. Mas ela precisava assumir que o homem era elegante. A roupa
tinha bom corte, os sapatos eram bem polidos e até um relógio de ouro lhe
brotava do bolso, deixando a corrente a mostra. Totalmente diferente do jeito
desleixado de Jonas.
Simon colocou os papeis que trazia sobre a mesa.
— Pelas minhas contas, para quitar o saldo devedor, ignorando sua
proposta ridícula de ontem, você precisaria entregar a fazenda de porteira
fechada, os três coches da família e o rendimento de dois anos de título do
seu pai. Considerando que ele sequer se digna a levantar da cama, mesmo
aceitando estes termos não receberíamos os proventos de nem um ano.
— Não foi a esse valor que chegaram minhas contas.
— A senhora calculou os juros?
— Eu tentei entender, mas...
— Então, este é precisamente o problema.
Ela suspirou, desanimada.
Colocando desta forma, o casamento com o Duque era realmente sua
única opção.
— Como ele chegou a toda essa dívida? — Quis saber. — Fico pensando
que devem ser dívidas antigas, porque não faz tanto tempo que mamãe
morreu.
— São antigas. Dívidas de anos. Algumas, a Marquesa sequer conhecia.
— Compreendo.
— Seu pai sempre jogou, senhorita. Era a sua mãe quem assegurava a
harmonia entre o que ele tinha para apostar e o que ele, de fato, apostava. E,
se a senhorita me permite uma observação, a falecida Marquesa era muito
boa com as contas. Ela era a responsável por manter as contas em dia e
assegurar que sempre haveria dinheiro para as contas da fazenda. É bem
verdade que ela nunca se preocupou com as outras propriedades, mas os
lucros do Marquesado eram obtidos aqui. Então, no fundo, ela não estava
errada. Sabe que ela nunca disse o valor real dos lucros da fazenda ao seu
pai? Sempre disse a metade do que poderia. E ele sempre perdeu mais do que
o dobro do que deveria. Ele assumiu aquela posição tradicional de deixar
tudo nas mãos de administradores e aproveitar os louros do título.
Christine suspirou.
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— Minha proposta ontem foi realmente tão ruim?


— Foi, mas meu pai parece ter se impressionado com sua coragem e
Flaubert está se esforçando para lhe ajudar. Meu irmão é um excelente
negociador, mas está fora de si, como eu disse a pouco.
— Não entendo...
— Não se incomode. A distância hierárquica pode ser um empecilho —
insinuou, arqueando a sobrancelha e aguardando a reação dela, ainda que já
soubesse bem o que ela pensava disso. Quis confirmar. — Não acha?
— Não sei que valor o título tem agora...
— Aí é que a senhorita se engana. Tem muito valor e eu vou lhe provar.

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Capítulo 14

D
mirabolante de Simon.
uas horas depois, muitas contas e discussões, um
bule de chá e duas levas de biscoitos e bolos,
Christine finalmente compreendeu o plano

— Então, senhorita, o que achou da minha proposta? — Quis saber o


rapaz.
— Acho, no mínimo, intrigante. Imaginei que ia tentar me convencer a
casar com o Duque de Augusburg.
— Augusburg? Não desejo esse casamento a nenhuma moça. Ele é
pedante demais e parece acreditar que é o próprio Rei. Acho que ele pensa
que é o mais rico do reino. É um idiota, na verdade.
Ela riu.
— E não é? — Ela quis saber.
— O Rei? Um idiota? — Simon sorriu. Ele tinha entendido bem o que ela
quis dizer.
— O mais rico do reino...
— Claro que não. Só o dono da ferrovia tem o dobro dele. Fora meu pai,
que é credor de toda a nobreza de Londres e mais uns bons valores na França.
Mas deixe o Duque com suas ilusões. É bom para os negócios alimentar o
ego dele. Não é o melhor investidor, mas tem seu valor.
— Então, tudo que preciso fazer é tirar meu pai da cama e fazê-lo voltar à
sanidade. E quem lhe garante que isso ocorrerá?
— É um risco do investimento, mas eu tenho outras ideias para o caso de
dar errado. A senhorita, todavia, se compromete a fazer tudo o que o médico
recomendar. Tudo. Se o seu pai não melhorar, a senhorita precisará casar. Se
não fizer, executo a dívida.
— Pois bem, mas por que a volta do meu pai lhe interessa tanto?
— Seu pai é um dos homens mais influentes da Câmara dos Lordes. Ele
tem contatos antigos e é um grande apoiador das reformas bancárias. Preciso
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que ele esteja lá, lúcido e são, para terminar o que começou. Aí sim,
perdoaremos a dívida.
— A tal lei vale mesmo a pena?
— Oh, sim. Os juros fixos são ruins para o banco e para os devedores.
Perdemos negócios com aqueles que os acham altos e deixamos de aumentá-
los para aqueles que os acham baixos.
— Que venha o médico!
— Ele virá ainda hoje. Imaginei que minha proposta lhe agradaria mais
que a ideia de casar com Augusburg. E, neste assunto, posso lhe fazer uma
pergunta?
— Sim...
— Nenhum homem jamais lhe conquistou? É tão difícil assim alcançar
seu coração?
Ela suspirou e coçou a testa.
— Não creio que haja uma lista a cumprir. A verdade é que não tive
muitas propostas...
— Eu soube do incidente com a Rainha.
— Incidente? Bondade sua... Eu era uma menina de 18 anos criada por
uma preceptora que parecia crer no lema: casamento ou morte. Me esforcei
para ser a melhor dama da sociedade, mas nunca pensei que precisaria ler
algo além de romances para isso.
— Compreendo. E se, digamos, um senhor que não fosse de título lhe
propusesse, lhe cortejasse?
— Não procuro títulos, senhor Simon. Para mim, títulos são apenas
papéis.
— E votos na Câmara! Não se esqueça!!! — Exclamou, piscando e
sorrindo para ela, que começava a tolerar a presença dele.
— Sejamos práticos: hoje, o dinheiro vale mais do que os tais votos.
— Ainda não, mas com a ajuda do Marquês, certamente valerá.
— Simon? O que você está fazendo aqui? — A voz de Jonas, um pouco
irritada demais, foi ouvida ecoando pela biblioteca.
Christine pôde, naquele momento, observar as diferenças entre os irmãos.
Um era elegante, aprumado e falava de forma firme. O outro, um pouco mais
desleixado. Ambos tinham cabelos extremamente claros, mas o de Simon era
perfeitamente penteado e o de Jonas... Bom, era perfeitamente desleixado;
sequer os penteava.
O jeito de Jonas o diferenciava do irmão, mas fisicamente, eram cópia um
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do outro. Ela se perguntou, então, por que não achou o senhor Jonas um
homem tão estranho quanto seu gêmeo.
Eram os olhos que a deixavam mais impressionada, todavia. Os de Simon
era ônix e Jonas, safiras hipnotizantes e reluzentes. E o mais incrível era que
tinham o mesmo jeito de olhar, uma mistura de desnudamento com análise.
Eles não olhavam: encaravam com a incrível habilidade de não piscar.
Ela notou a tensão entre eles, mas não sabia ao certo como intervir.
— Você deveria ter esperado eu vender a fazenda.
— Minha ideia era melhor. Não acha, senhorita?
— Eu devia ter percebido na hora que você viria falar com ela... Mas
demorei a voltar a mim — falou Flaubert, sem esperar uma resposta dela. —
Sua proposta envolve riscos muito grandes para ela. Um bom comprador
pode resolver a questão.
— Senhor Jonas, um bom comprador não quitaria nem a dívida, quanto
mais me deixaria o suficiente para uma pequena casa em Londres —
Christine falou.
Mas ele não olhou para ela. Christine pigarreou uma, duas, três vezes e
chegou a irritar-se por estar sendo ignorada. Até que Simon levantou,
abotoou o paletó e despediu-se, depositando um beijo na mão da moça.

— O médico virá mais tarde, senhorita — disse com um leve aceno. —


Então, Jonas, podemos ir agora. Já salvou a donzela do dragão.
—Eu preciso falar com a senhorita Christine.
— Garantirei que Augusburg não venha — disse, piscando para ela e,
voltando-se para Jonas, explicou-se: — A senhorita Christine precisa pensar
em algumas propostas.
— Propostas?
— Conversamos depois. Preciso ir agora — disse, cumprimentando
Christine e, abaixando a voz, cochichou para Jonas: — Tenho uma bela dama
me esperando em Londres. Vou partir ainda hoje.
Jonas deu um leve aceno com a cabeça, confirmando que entendeu o que
o irmão havia dito. Despediram-se e, quando Simon se retirou, Jonas
finalmente olhou para a moça.
— Peço desculpas pela entrada afoita, mas eu precisava vê-la novamente.
Lamento muito pelo que falei mais cedo, pela forma como agi. Sinto muito se
estraguei suas chances de casar com o Duque.
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— Realmente foi muito impertinente. Não entendi o seu desejo de arruinar


tudo, já que o trouxe aqui...
— Eu não o trouxe para cortejá-la — interrompeu, um pouco afoito
demais.
— Mas o senhor sabia que era uma possibilidade.
— Na verdade, achei que ele não faria isso.
— Claro. Por que alguém iria querer me cortejar? — Debochou de si
mesma.
Sem que ela esperasse uma resposta, Jonas respondeu: — Pelo contrário.
Me pergunto como alguém pode não cortejá-la.
Eles ficaram em silêncio, constrangidos e em silêncio, e Flaubert percebeu
que ela havia ruborizado.
— Seu irmão me trouxe uma proposta interessante — ela começou.
— É verdade?
— Sim. Eu devo fazer meu pai voltar à Câmara dos Lordes. Há um
projeto de lei que precisa ser aprovado e...
— A Lei Bancária. Meu pai precisa que seja aprovada para regularizar a
cobrança dos juros. Foi proposta do seu pai, na verdade...
— Bom, eu tenho um mês para fazer o médico dizer que meu pai está
melhorando. A alternativa é casar com o Duque de Augusburg...
— Casar com ele não é a alternativa, senhorita — ele disse, passando a
mão pelo cabelo desgrenhado e, depois, colocando-a no bolso. — Ele não é...
Bom, ele é um Duque, mas...
Ela pendeu a cabeça, esperando ele completar a frase. Franziu os olhos,
apertando-os, mas Jonas permaneceu em silêncio.
— O senhor está bem? — Perguntou. E notou que o coração acelerava. —
Terá um daqueles ataques de silêncio?

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Ele sorriu

— Ataques de silêncio?
— Sim. Quando nos falamos, o senhor às vezes se perde nos
pensamentos. Fez isso na rua, em frente ao banco, e fez novamente quando o
Duque estava andando pela propriedade.
Sim, ela havia reparado que ele não falou nada durante a visita de
Augusburg.
Quando Flaubert ia responder, não soube o que dizer. Achou que deveria
explicar para a moça o quão prazeroso poderia ser o som do silêncio. Deu um
passo na direção dela, que pensou que Jonas fosse tocá-la. Ele recolheu a mão
e olhou para os próprios pés, deixando-a confusa com a reação.
O coração de Christine se apertou. Assim como no baile, ela achou que ele
ia fazer alguma coisa e sentiu-se desapontada quando não fez.
Sem entender o que se passava no próprio peito, percebeu que era muito
diferente de tudo que já havia sentido. Certamente diferente do que sentiu
pelo Visconde de Linderpool alguns anos antes e muito diferente do
sentimento pelo Duque, algumas horas antes.
Naquele instante, um tipo de ímã a puxou em direção a ele. Jonas estava
perto demais e um perfume de cravo e canela envolveu-a.
Ela deu mais um passo e parou a poucos centímetros do rapaz. Não seria
seu primeiro beijo, mas ela iria mesmo beijá-lo? Ela não poderia fazer isso.
Ou poderia?
Era filha de um Marquês com a moral ilibada e ele? Ele era um
comerciante... Mas... E daí?
Muita coisa passou pela cabeça dela enquanto ele olhava para os pés.
Por que raios ele estava olhando para os pés?

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Capítulo 15

Q ue todo o mundo fosse para o inferno, mas ele não ia


permitir que Augusburg a conquistasse. Seria a pior
escolha para ela e, com certeza, o Duque a faria infeliz.
Mas não, não foi isso o que fez Flaubert beijar Christine. Foi o cheiro dela
e a proximidade. Foi a menção aos ataques e silêncios. Principalmente, foi a
vontade que havia dominado Jonas desde que a viu algumas semanas antes na
Praça de Stonehurt.
Mentira.
A vontade sempre existiu. Então, justificava-se pelos anos esperando
aquele momento.
A presença de Simon havia feito Jonas sentir calafrios. O que seu irmão
estaria aprontando agora? Ele o confrontara, no dia anterior, sobre sua lucidez
quando estava perto de Christine e, naquele momento, ele teve certeza de que
o irmão estava certo.
— Você arriscaria tudo por ela? Digo, se Augusburg propuser, você
lutaria pelo que sente? Você perderia seus contatos, suas ligações... —
Perguntou Simon e Jonas demorou um bom tempo antes de responder.
— Tudo. Eu largaria tudo pela chance de tê-la — asseverou.
Calafrios passaram por todo seu corpo quando viu a cena: seu irmão
sentado de frente para ela. Imaginou que Simon tinha ido cobrar a dívida e
forçar o casamento ou debochar da proposta dela no dia anterior. Mataria o
irmão se fosse esse o caso.
Embora ele soubesse que o irmão jamais faria isso.
Embora ele tivesse ouvido atentamente o plano de Simon de curar o
Marquês para aprovar a Lei Bancária.
Christine roubava sua sanidade. Ela era linda demais. Sua pose de
negociadora, séria, fazendo contas e usando um par enorme de óculos — que
certamente não lhe pertencia. Ele queria abraçá-la, sentar ao seu lado e
contestar as contas impecáveis do irmão, item a item.
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Antes que Simon saísse da sala, Jonas havia evitado o olhar de Christine.
Não podia perder a lucidez na frente do irmão. Mas a verdade é que o irmão
tinha feito uma proposta que poderia livrá-la de Augusburg e isso, só isso, já
fazia dele uma grande pessoa. Jonas não sabia bem qual era o interesse de
Simon naquilo tudo, mas tinha certeza que não era apenas pela Lei Bancária
— outros Duques já apoiavam o projeto e a presença do Marquês havia se
tornado dispensável.
Então, quais eram as verdadeiras intenções de Simon?
E se ela quisesse casar com Augusburg?
Ela não poderia casar com o Duque! O maldito não a merecia. Não que
Jonas achasse que o nobre fosse realmente propor casamento. Sem o dote de
fato duvidava, mas não arriscaria.
Ele a queria. A amava, e a constatação disso tornou a distância entre eles
ainda maior.
Mesmo que ele nunca fosse ter Christine, ele poderia sonhar que ela
tivesse um homem bom ao seu lado. Um homem como o maldito Conde
Cosito.
Afastou o pensamento quando percebeu que uma mecha do cabelo da
moça brincava sobre o pescoço e os óculos que a tornavam séria começavam
a atrapalhar sua perfeita visão dos lindos cílios dela. Ela precisava tirá-lo.
Ela não, ele. Jonas levou a mão para tirar o cabelo, mas desistiu. Era
indecoroso.
Então, ela se aproximou.
Um passo que permitiu a ele perceber a voz de Christine perto demais.
Não precisaria de copos de whisky desta vez. A voz e a proximidade já o
haviam desnorteado.
O sachê de cravo e canela que ele levava no bolso devia ter perdido o
aroma, porque o cheiro daquela mulher invadiu seu nariz. Uma inebriante
mistura que o atraía e distraía.
Ela deu mais um passo e parou a poucos centímetros. Ele estava a
centímetros da boca com a qual sempre sonhara.
Christine era filha de um Marquês. Que Deus o ajudasse, mas se ela não
se afastasse, ele perderia a cabeça. Sim, Jonas largaria tudo por ela — tudo
relativo a ele, nada relativo a ela.
Um silêncio sepulcral. Um massacrante silêncio que fazia a cabeça dele
girar. Sim, decididamente Simon tinha razão: todos os sentidos de Jonas
estavam alterados. Ele precisava ir embora.
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Que o mundo explodisse!


Ele ia.
Ia nada: ele a beijou.
Finalmente, depois de anos de espera, ele sentiu o toque de seus lábios
suaves e doces. Macios como ele imaginava, carnudos e suculentos.
Deliciosos.
Christine nunca havia sido beijada e a moça percebeu isso naquele exato
momento, no instante em que se surpreendeu com a perfeição do toque da
língua dele sobre os lábios dela. Um beijo que parecia melhor do que bolo
ou... Sabe-se lá. Ela só conseguia pensar em qualidades para aquele toque.
As mãos de Jonas a trouxeram mais para perto, puxando-a pela cintura e
encostando-a no corpo dele. Christine sentiu quando uma das mãos subiu e se
enroscou no seu cabelo, soltando o penteado e embrenhando-se por entre os
cachos. Uma pressão sutil que fez o beijo se aprofundar.
Uma onda de prazer tomou conta do corpo dela.
Firme e carinhosamente, o abraço pareceu envolvê-la, como se eles
tivessem sido feitos para ficar abraçados. Ela se sentiu acolhida pelos braços
dele. Estava segura.
Subindo seus próprios braços pelo peito dele, conseguiu sentir a rigidez
dos músculos e seu próprio corpo reagiu. Ele era forte. Um homem largo e
grande que parecia ainda maior quando a acalentava.
Ela abriu os olhos e percebeu-se perdida. Ele ainda a beijava e a
suavidade, de repente, deu lugar à urgência.
Necessidade, fome, desespero, desejo, luxúria, pecado.
A língua dele havia invadido a resistência dela e Christine não sabia o que
fazer. Nada era comparado com aquele momento e tudo o que a fazia desejar.
Algo dentro dela queimou e ela percebeu que o corpo reagiu, retesou,
umedeceu. Ela queria prolongar aquele beijo — um beijo de verdade e nada
parecido com o contato excruciante com os lábios do Duque, naquele mesmo
dia.
Christine começou a pensar que queria fazer Jonas sentir as mesmas
coisas, a mesma queimação que ela sentia, aquele mesmo gosto de proibido.
E decidiu parar de pensar. Tudo o que queria era ele.
Ela desconhecia a grande verdade: ele sentia tudo isso cada vez que a
olhava. Era o melhor pecado que ele já cometera e iria para o inferno com
certeza. Mas o fato era que ali, parado na biblioteca do Marquês de
Chasterbrok, ele não estava ligando para isso.
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Sentir o corpo dela contra o seu fazia com que ele não quisesse deixá-la
nunca mais. Encaixavam perfeitamente, eles eram realmente opostos. Ela era
nobreza, ele não; ela era linda, ele não; era ingênua, ele não. Christine era
perfeita. Jonas não.
Ela estava atraída pelo pecado. E ele era o próprio diabo.
Um barulho. Alguém pigarreou. O mordomo!
— Inferno! — Jonas sussurrou, soltando Christine e caminhando até a
janela, permanecendo de costas para César.
— Senhorita?
Meu bom Deus, César estava ali e havia visto aquele beijo inapropriado.
Christine sentiu vontade de sumir, mas manteve os dedos nos lábios, ainda
de costas para o criado, deleitando-se com a paixão do momento. Ele era o
mordomo da família Chasterbrok há mais anos do que ela poderia lembrar e
era muito apegado às tradições.
O que ele diria agora?
— Senhorita, o Duque de Augusburg enviou um mensageiro. Ele não
poderá vir encontrá-la. Deixou este envelope e agradeceu o convite — disse,
entregando a carta e deixando a porta da biblioteca convenientemente aberta.
Jonas ainda olhava pela janela, envergonhado demais para encará-la,
quando falou: — Me desculpe, senhorita, eu não devia... Fui um cretino...
— Por favor, não se desculpe — disse Christine, apoiando a carta na mesa
e levantando a mão para fazê-lo parar. Ele iria estragar o melhor momento de
sua vida em anos.
Jonas ficou parado, sem saber como agir. Então virou-se, soltou o ar e
disse: — Eu irei embora agora, senhorita. Já é de noite. A deixarei sozinha
para abrir a missiva.
O mordomo entrou novamente, com chá e biscoitos, anunciando que o
jantar seria servido em breve.
— Por favor, fique — sussurrou Christine. — Eu preciso, eu preciso de
você — falou, espantando-se com a própria súplica.
Jonas também se assustou e sentiu, por alguns instantes, que poderia ser
correspondido. Mas ela seguiu falando, tentando consertar-se: — Quer dizer,
eu preciso de alguém que me ajude a conversar com o médico.
Ele suspirou e perguntou:
— Ele virá ainda hoje? Não está tarde?
— Seu irmão disse que havia marcado com ele.
Ficaram em silêncio novamente.
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— Não vai abrir a carta? — Perguntou Jonas.


Não! Quero outro beijo! Pensaram ambos.
Christine pegou o envelope e abriu.
— Ele diz que que houve um problema na fazenda, mas ele gostaria de vir
aqui para conversar pessoalmente comigo, sem a presença do senhor e do
senhor Simon... — Murmurou com estranheza.

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Capítulo 16

O
Febre de raiva.
s dentes de Jonas trincaram, as mãos dele apertaram-
se ao lado do corpo e ele podia jurar, naquele
momento, que estava com febre.

— Eu vou matá-lo! — Falou Jonas. — Aquele esnobe! Eu vou matá-lo! O


que ele está pensando? Que pode ficar sozinho com a senhorita?
— Acalme-se! Matá-lo por quê? Acho que ele só quer negociar sem a
interveniência do banco — apaziguou Christine, um tanto feliz com a
demonstração de ciúmes.
— Claro que ele não desistiu! Mas você desistiu! — Gritou.
— Eu? Não posso me dar ao luxo de desistir de nada. Meu pai ainda está
na cama e ainda devemos ao banco — ela disse. — Ao seu banco.
— Mas nós acabamos de... Achei que você...
— Senhor Jonas, por favor, nada aconteceu — disse, levantando a mão
para tentar interromper o rompante do rapaz.
Queria acalmá-lo, fazê-lo entender que não estavam obrigatoriamente
comprometidos ainda que ela quisesse ardorosamente isso; e nem sabia
direito o porquê.
— Já fui beijada antes. Pelo Duque.
— O quê?
Idiota!
Por que ela havia dito aquilo? Agora, ele iria achar que ela era uma
mulher de fraco caráter!
— Quero dizer, ele me beijou antes de ir e...
— Ele fez o quê?
Ele está ficando mais nervoso.
— Senhor Jonas, o senhor não pode achar que estamos comprometidos...
— Augusburg tocou na senhorita inapropriadamente?
— Esqueça! Foi apenas um beijo.
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— Um beijo? Eu lhe dei um beijo. Isso não é nada?


O energúmeno Duque de Augusburg havia estragado o momento mais
aguardado da vida de Jonas, mesmo à distância, ao beijá-la antes dele.
Antes de qualquer um.
— O senhor? — Desviou os olhos, timidamente. — Bom, é diferente.
— Claro. Não sou um Duque — ele disse, rancoroso, e notou a mágoa nos
olhos dela.
— Senhorita? — Interrompeu, novamente, o mordomo e Christine ficou
pensando por que o homem não havia feito isso quando Augusburg a beijou.
O beijo de Jonas era muito melhor para ser considerado um primeiro beijo
do que aquela placidez molhada do Duque.
— O doutor Carl Sunt está aqui para vê-la — seguiu falando.
— Sim, César, mande entrar, por favor — falou e, virando-se para Jonas
— Por favor, falaremos sobre isso mais tarde.
— Eu compreendi perfeitamente, senhorita. Não sou um Duque.
— Não é nada disso!
— Vou embora agora. Com sua licença — disse, maneando a cabeça e
dirigindo-se para a porta.
— Não! — Disse Christine, um pouco nervosa demais, apertando as
mãos. — Me acompanhe para receber o médico, por favor? Como um
representante do banco, quero dizer.
Ele franziu as sobrancelhas, inspirou profundamente e concordou.
— Claro, senhorita. Como quiser.
Tudo o que ela pedisse, ele faria. Flaubert percebeu isso naquele instante,
quando não pôde negar aquele pedido estranho a ela.
E assim foi. O médico foi levado ao quarto do Marquês e Christine
esperou do lado de fora até o término do exame. Na saída, explicou-lhe: — O
estado do Marquês é crítico, senhorita. Ele precisa de sol todo dia pela
manhã, por duas horas. Deixarei os remédios que ele deve tomar e é
importante que se alimente muito bem. Pelo que seu mordomo me disse, ele
tem ficado muito tempo deitado. Deve ficar mais tempo sentado —
recomendou. — Do contrário, pode desenvolver pneumonia. Ele precisa ser
reintegrado aos assuntos da família, mesmo que não responda a nada do que é
dito. Fui orientado pelo senhor Simon a escrever relatórios semanais. Então,
voltarei na próxima semana.
Jonas permaneceu sério e calado. Quando o médico estava saindo, pediu
ao mordomo seu cavalo.
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— Preciso falar com o senhor — disse Christine.


— Outro momento, senhorita. Devo ir embora agora — afirmou, virando-
se novamente para sair depois de uma breve reverência.
— O senhor voltará?
— A senhorita está sem criados. Ajudarei o mordomo, mas não
atrapalharei o cortejo do Duque. — Virou-se e partiu, esporeando o cavalo
como o bom representante do inferno que era. Para long e dela.
Idiota!
Ele havia sido um idiota e sabia bem disso. Enquanto cavalgava, sua raiva
só aumentava. O Duque a havia beijado. O desejo de matar aquele nobre
engomado flamejava no peito de Jonas. Um duelo não seria a melhor saída.
Desafiar um nobre sempre causava problemas com a Coroa, mas Flaubert
poderia facilmente acabar com as finanças do Duque.
Christine preferia o Duque. E isso o fazia sentir ainda mais idiota.
Aqueles lábios, aquele beijo indecoroso, não representou nada para ela.
Eu já fui beijada, ela havia dito, com orgulho, como se o beijo com o qual
ele havia passado anos sonhando fosse nada além disso.
Ela enfiou a faca no peito dele.
Nunca poderá tê-la, Simon havia dito para ele alguns anos antes. E Jonas
manteve-se afastado até que não conseguiu mais resistir.
O rapaz cavalgou por quase toda a noite, parando em alguns momentos
para caminhar e deixar seu cavalo descansar.
Será que ela estava apaixonada por Augusburg?
Será que pensava nele como sua única saída?
Se ela se apaixonasse por Augusburg, Flaubert se afastaria, mas Jonas não
permitiria que ela se casasse para saldar as dívidas; garantiria que ela pudesse
escolher. Ele tomaria todas as providências para que ela pudesse apontar para
o homem que quisesse.
O plano de Simon parecia a melhor saída e ele faria de tudo para que o
Marquês voltasse a si.
Christine sabia bem o homem que queria. Jonas a havia feito sentir
paixão, uma paixão quente que a manteve aquecida durante aquela noite e
que a fez lamentar ter dito a ele que o Duque a havia beijado. Na verdade, o
Duque não havia beijado. Beijo foi o que Jonas lhe deu. Aquilo valia mais do
que bolo e cachoeira e ela faria de tudo para sentir aquilo novamente.
Tocando os lábios, a moça sorria, abraçada às colchas de sua cama.
De manhã, depois de revirar-se na cama sonhando com os olhos de Jonas,
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e o beijo de Jonas, tudo que Christine pôde fazer foi lamentar não estar
apresentável para recebê-lo quando ele chegasse. Apertou as bochechas,
tomou banho com leite fresco, lavou os cabelos com óleos perfumados e
colocou seu vestido mais bonito.
Quando desceu, todavia, ele não estava lá.
— O senhor Flaubert esteve aqui, César? — Perguntou ao mordomo.
— Sim, senhorita. Chegou muito cedo, ajudou o Marquês a sentar-se à
mesa para o café da manhã, conversou com ele sobre as dívidas e partiu para
o arado.
— Arado?
— Sim. Ele queria conversar com os arrendatários sobre lucro nas
produções, venda rotativa e outros assuntos que não pude entender. Disse que
retornará no fim da tarde para ajudar o Marquês com o banho. Pediu-me que
colocasse seu pai na varanda após o café e me assegurasse de que o Marquês
não sentisse frio.
O sorriso de Christine se desfez e ela caiu na cadeira ao lado do pai.
Comeu o que lhe foi posto à frente, mesmo sem fome, puxou assunto,
explicou o que estava acontecendo e sentiu-se tola pelo monólogo triste.
Quando o Marquês estava devidamente posicionado na varanda, amarrou
os cabelos dentro da touca e partiu para o celeiro, onde montou no baio da
mãe e partiu.
Do alto da Colina Azul, avistou o senhor Jonas no meio de seus
arrendatários, com uma enxada na mão e de mangas puxadas. Todos o
olhavam com interesse e ele parecia estar concentrado nas explicações que
dava. Tão concentrado que não a viu. Tão concentrado que ela não quis
atrapalhá-lo.
— Meu Deus, os braços dele são mesmo enormes — disse, fazendo a
volta com o cavalo.

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Capítulo 17

N
— Senhor Jonas?
a hora do almoço, Christine pediu ao mordomo que
preparasse uma cesta e voltou ao local onde viu
Jonas um pouco mais cedo. Desta vez, se aproximou.

— Bom dia, senhorita Christine, como vai? — Ele perguntou, sem olhar
para ela, limpando o suor da testa com as costas do braço e voltando a arar.
— Tudo bem, obrigada — respondeu, buscando o olhar dele. — Posso
falar-lhe?
— Estou trabalhando, senhorita.

— Apenas uns instantes. Por favor?


Ele parou, inspirou profundamente e, finalmente, a olhou.
— A senhorita não devia estar cavalgando a esta hora, especialmente sem
um chapéu. O sol está forte demais para sua pele... — Apoiou-se na enxada e
ela notou os botões da camisa abertos. Depois, passou a ferramenta para o
homem mais próximo e apontou para uma árvore folhosa. — Vamos. Há uma
sombra ali à frente onde podemos sentar.
Jonas prendeu o cavalo de Christine e ajudou-a a desmontar, evitando
mais contato do que o necessário e principalmente evitando encará-la.
— Gostaria de me desculpar por ontem — começaram a dizer juntos.
Ela sorriu, mas ele não e seguiu falando.
— Fui indecoroso e, por isso, peço desculpas. Imagino que a senhorita
esteja fragilizada pelo estado de saúde de seu pai e os problemas com as
dívidas, mas tudo se resolverá. Farei o possível para que tudo se resolva. O
tratamento de seu pai será bem sucedido, senhorita. E a senhorita poderá
casar, se quiser e com quem quiser.
Respirou, finalmente, e forçou os olhos a fitarem-na com serenidade.
— E se quem eu quero não me quiser?
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— Duvido muito que alguém não a queira — respondeu imediatamente,


encarando-a e fazendo-a sorrir.
— A mim ou ao meu dote? — Perguntou, devolvendo o olhar da forma
mais intensa que conseguiu.
Ele não respondeu. Christine levou a mão à boca, cobrindo-a como se
estivesse surpresa, e continuou: — Oh! Não tenho mais dote, como o senhor
fez questão de contar para o Duque — debochou, sorrindo. — E, sabe o que
acontece, senhor Jonas Flaubert, o valor aviltante oferecido pelo meu pai há
alguns meses atrás não foi suficiente para que eu recebesse propostas. Vê?
Não sou tão especial como o senhor supõe.
— Não são suposições, Christine — ousou, chamando-a pelo primeiro
nome. — São certezas que eu carrego comigo desde que a vi pela primeira
vez. Não falo pelos outros, que são ou cegos ou burros demais para não terem
lhe cortejado com vigor na sua primeira temporada. Falo por mim, que não
pude tirá-la para dançar na casa de Augusburg, porque não tenho um maldito
título para ser usado à frente do meu nome.
Ela o encarou.
— Você quis me chamar?
Jonas desconversou, desviando o olhar.
— A fama de jogador do senhor Marquês é antiga. Creio que todos
soubessem que ele não tinha como saldar o valor.
— Pelo jeito, o Duque não sabia.
— Augusburg é um boçal. Apenas mais um que frequentou Eton só pelo
uniforme.
Ela arregalou os olhos e soltou o ar, perdendo-se nos horizontes da
fazenda.
— Esta cesta é para mim?
– Oh, sim, sim. Me desculpe... — Ofereceu-lhe. — Estava pensando um
pouco mais cedo e não sei se conseguirei fazer isso.
— Fazer o quê?
— Cuidar do meu pai, gerenciar a fazenda e ainda receber a corte do
Duque.
Ele trincou os dentes, mas forçou-se a responder, fugindo dos olhos dela:
— Claro que conseguirá. A senhorita é bem forte e sabe disso.
— E seu não quiser ser forte? — Perguntou, se aproximando dele e
buscando novamente as safiras de seu rosto.
Quando os olhares se cruzaram, o coração de Jonas disparou e Christine
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sentiu o peito comprimir. Ele levou as costas das mãos ao rosto dela e
acariciou lenta e suavemente.
— Então, eu estarei ao seu lado.
Ela sorriu. Era só o que precisava saber, tudo o que queria ouvir.
Proteção. Ela precisava se sentir protegida. Aos 20 anos, havia perdido a mãe
para um acidente, o pai para a melancolia e as lágrimas para a necessidade de
seguir em frente. Ela precisava da tranquilidade que Jonas lhe dava. Precisava
do jeito como ele a olhava.
Precisava dele.
— E se eu não quiser que o Duque me faça a corte?
Ele sorriu.
— E por que você não ia querer que o Duque lhe fizesse a corte?
— Não sei. Talvez ele não seja a minha escolha...
Jonas sorriu travesso e pensou em beijá-la ali, na copa da árvore. Mas
percebeu que havia arrendatários demais ao redor e que um beijo poderia
macular a imagem de Christine.
— Por favor, senhorita, volte para a mansão. Irei até lá mais tarde e
podemos conversar sem a plateia — cochichou, apontando com os olhos para
os trabalhadores.
Ela anuiu, pegou a cesta e cavalgou de volta lentamente, sorrindo como há
muito tempo não sorria. Sentia-se feliz ao ver o esforço dos arrendatários,
mas sentia que não estava mais sozinha. Jonas estava lá.
De longe avistou um coche com o brasão ducal e, olhando para a varanda,
viu o Duque de Augusburg sentado ao lado do pai. Acelerou o trote do cavalo
até aproximar-se, e ouviu o Duque dizer: — Como vai, senhorita? Não sabia
que o Marquês estava tão adoecido. É uma lástima. É um homem culto,
influente que não pode mais resolver nada — comentou o Duque.
— Ele irá melhorar — ela disse, sorrindo ternamente para o pai. — Por
favor, vamos caminhar. Papai, já voltamos.
— É muito doce de sua parte falar com seu pai mesmo sabendo que ele
não vai responder.
— Recebemos um médico ontem que trouxe uma proposta nova de
tratamento.
— Um médico? — Perguntou Augusburg, alisando o bigode cultivado.
— Sim. O senhor Simon indicou.
— Simon? Marshall? Interessante... — Ponderou. — Imagino que a
senhorita não tenha se perguntado qual o interesse de Flaubert nisso tudo,
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perguntou?
— Algo sobre a Lei Bancária na Câmara dos Lordes.
Ele anuiu e Christine passou a ouvir o garboso Duque enaltecer suas
qualidades e criticar as de todos os outros que não possuíam títulos.
— A senhorita sabe, os burgueses acham que vão decidir alguma coisa.
Somos nós, os homens de berço, que devemos resolver o futuro do reino.
O assunto era enfadonho e tudo o que ela queria era que Augusburg fosse
embora. Sentia que ele se aproximava cada vez mais e receava que fosse lhe
beijar de novo.
Tinha medo que o fizesse.
Queria muito que não fizesse.
De volta à casa, Christine ofereceu um chá para o Duque, que se aboletou
na sala ao lado do Marquês e continuou contando as vantagens de sua
fazenda. Ela receava que Jonas voltasse e imaginou como seria o embate dos
dois. Queria desesperadamente que Augusburg partisse e, quando finalmente
ele se dignou a levantar, já havia passado toda a tarde.
Uma tarde bastante aborrecida.
Da porta da Mansão, ela viu o cavalo de Jonas se aproximar e sentiu que
as borboletas em sua barriga estavam em polvorosa.
De longe, o rapaz avistou uma nuvem esvoaçante cor-de-rosa. Seu cabelo
dourado ia se soltando do coque e parecia propositalmente disposto a
provocá-lo. Depois que conversaram, ele achou que deveria falar novamente
com ela, dizer o que sentia e oferecer-lhe tudo o que tinha.
Mas aí, avistou o Duque. O maldito Duque que não merecia nem um fio
brilhante daquela feiticeira. Como se tomado pelos Sete Demônios do
Apocalipse Eterno, esporou o cavalo, que disparou levantando poeira, grama
e sujeira.
Simon, que se juntara a ele no caminho da casa, riu da demonstração de
paixão de seu irmão.
— Acalme-se, Flaubert! Vai cair do cavalo e quebrar o pescoço! —
Gritou, sem prender as gargalhadas.
— Senhor Jonas? — Perguntou Christine assim que ele se aproximou,
oferecendo-lhe o mais largo sorriso.
Simon notou que ela sorriu para o irmão. Um enorme sorriso aberto que
ele ainda não tinha visto no rosto de nenhuma dama.
— Flaubert, por que não leva a senhorita Christine até a colina? Fui
informado de uma nova espécie de mato que você, certamente, vai saber
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explicar qual é e que só floresce, deixe-me ver — puxou o relógio — em dez


minutos.
— Eu e a senhorita estávamos conversando sobre o Marquês... —
Reclamou o Duque.
— Oh, mas veja, Augusburg, fiz um relatório sobre o investimento que
você fez nas ilhas do sul da França — falou Simon, novamente, empurrando
o Duque para acompanha-lo, disparando um discurso sobre vinhos, whiskies
e cerveja tão enlouquecidamente que o Duque sequer conseguiu se despedir.
Quando estavam longe o suficiente, virou-se para o irmão arregalando os
olhos e apontando a colina com a cabeça: — Então, Flaubert, vá.
A lógica de Simon sempre fora a mesma: fale muito e muito rápido para
que seu interlocutor não tenha chance de retrucar. E ele era muito bom nisso.
Enquanto Simon e Augusburg enfrentavam-se com olhares penetrantes e
perfurantes, Jonas e Christine exalavam outro tipo de tensão. Ele maneou a
cabeça e ela o acompanhou, virando-se para o Duque, que não a ouviu: —
Com sua licença, Vossa Graça — disse, dando o braço a Jonas e seguindo a
seu lado, com um sorriso deslumbrante no rosto.
Flaubert sorriu de volta e Simon percebeu que já tinha conseguido atingir
uma de suas metas: aproximar o irmão de Christine. Observou, entretanto,
que eles não foram à colina. De pé ao lado do cavalo, Jonas puxava as rédeas
e caminhava com Christine de volta à casa.
— Por que ele te chama de Flaubert? Ainda não entendi por que não te
chama de Jonas...
— Porque é meu nome — respondeu.
— Mas é o nome dele também...
— Mas eu sou quinze minutos mais velho — sorriu, piscando um dos
olhos.
— Claro.... Vocês são gêmeos. — Espantou-se, parando de frente para ele.
— Achei que gêmeos eram sempre iguais. Bom, eu sabia que existem
gêmeos de sexos diferentes, mas achei que fossem iguais em tudo...
— Temos algumas semelhanças, mas somos diferentes em muitos
sentidos — respondeu, em espécie de lamento.
— Você gostaria de ser igual a ele?
Jonas nunca havia pensado muito naquela questão, mas, em muitos
aspectos, queria ser igual ao irmão. Riso fácil, direto, objetivo, destemido...
— Acho que trabalhamos bem juntos. Nos entendemos em outro nível e
nos desentendemos neste mesmo nível.
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— Mas o senhor gostaria de ser igual a ele?


— A senhorita acha que alguém quer ter uma cópia? — Ele perguntou
sorrindo. — Não, não. Acho bom ser desta forma.
— Eu também acho — ela disse, timidamente, sorrindo e olhando-o de
lado.
Parados na varanda da Mansão, Jonas perguntou a ela: — Augusburg
conseguiu, então, conversar a sós com a senhorita. O que ele queria, afinal?
— Veio conversar com o papai sobre a minha corte.
Jonas franziu as sobrancelhas, voltando o olhar para o horizonte e
pensando em todas as técnicas de tortura que havia aprendido ao longo dos
anos.
O Duque ia sofrer. Lentamente.
Limitou-se a dizer:
— Entendo. E o que a senhorita achou disso?
— Entediante, cansativo, tedioso — respondeu, tocando o braço dele para
tentar chamar sua atenção.
Ele inspirou profundamente e a encarou por uns instantes, até que
finalmente falou: — A senhorita está muito bonita hoje. Corada, um tanto
suada... — Levou a mão ao pescoço dela e limpou uma gota de suor. — Acho
que não tive a oportunidade de dizer mais cedo.
Christine estava ainda mais ruborizada por estar perto dele do que pelo
sol, mas jamais assumiria. Ela desviou o olhar e sentiu o toque em suas
próprias mãos nuas. A intimidade do gesto a constrangia, mas Jonas não a
intimidava. Olhava-a com doçura, delicadeza e, sim, devoção. Despertava
nela um calor delicioso no peito e uma vontade de estar com ele maior do que
ela mesma.
Talvez... talvez isso se devesse ao fato de que ele não era um Duque.
Mas talvez, exatamente por isso eles nunca ficariam juntos.
Jonas aproximou os lábios da mão de Christine e beijou demoradamente,
fechando os olhos e inspirando todo o cheiro dela. E ela sentia o cheiro de
cravo e canela misturado ao suor dele. Fechou os olhos e permitiu-se sonhar
por alguns instantes.
— Creio que eu deva partir — ele disse, notando o dissabor na expressão
dela. — Vou ajudar seu pai com o banho e, depois, eu volto para a Flor &
Espinho.
— Vai voltar amanhã? — Ela perguntou abruptamente.
Ele suspirou.
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— Vou voltar todos os dias até você me mandar embora.


— Fique conosco... Temos muitos quartos e não é justo que o senhor
tenha que fazer a viagem para a estalagem...
Ele colocou o cabelo dela para trás da orelha, beijou a testa da moça e
entrou na casa.

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Capítulo 18

A ssim que Flaubert partiu, Christine e seu pai sentaram


para jantar. Visivelmente animada, a moça contou
todo o seu dia, discorreu sobre a fazenda e,
principalmente, elogiou Flaubert.
— Oh, papai, ele estava lá no meio dos seus arrendatários, ajudando-os e
ensinando-os a semear e alternar plantios. Ele trabalha no banco, papai, mas
estava com a camisa dobrada e alguns botões abertos. O cabelo todo
desgrenhado. Bom — disse, com um risinho tímido, —ele está sempre com o
cabelo bagunçado. Será que não penteia?
Alguns dias se passaram seguindo a mesma rotina. Ela estava feliz e
animada, ainda que não visse nenhuma mudança no comportamento do pai.
Simon e Augusburg voltaram para Londres e a ideia de o Duque cortejá-la
passou a ser uma lembrança.
Uma lembrança muito aborrecida, segundo Christine.
Em um domingo, enquanto ela ainda tagarelava na mesa de café da
manhã, o mordomo interrompeu-a: — Senhorita? O mensageiro do Visconde
de Linderpool deixou o convite para o baile da Viscondessa.
Baile? Ela não queria ir a nenhum baile. Sua vida não comportava mais
bailes... Junto ao convite, um bilhete: “Minha doce Christine, Havia
encomendado este vestido para você usar no baile do Duque de Augusburg,
mas quando vi o que você ganhou naquele dia, guardei este para outra
oportunidade. Descobriu de quem era? A senhora Vambert não quis me
contar quando estive no ateliê tentando descobrir. Deve ser um admirador
muito abastado.
Com todo amor, Felicia”
Ela teria que ir ao baile. Era o evento que Felicia havia planejado o ano
todo. O último baile antes do bebê nascer e ela tinha que ir.
Será que o senhor Jonas iria?
Se fosse, a tiraria para dançar?
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Se dançasse, a levaria para a varanda?


E se levasse, a beijaria novamente?
Christine esperava que sim. Apertou o convite no peito. Ela não queria se
sentir como uma adolescente apaixonada, mas tudo que ela fazia era para
tentar ficar perto dele.
César a olhava, desconfiado. Já havia visto a moça beijar Flaubert e
percebeu como ela estava animada com a presença dele na casa. Será que
estaria mesmo apaixonada? O mordomo reconhecia que o banqueiro era
esforçado e trabalhador; admirava-o por isso.
Jonas ficava mais cansado a cada dia. Nem quando foi para as Américas
ele teve que trabalhar tanto. A fazenda começava a prosperar, mas o Marquês
não apresentava mudanças. Ele fugia de Christine — e sofria cada vez que ela
se esforçava para se aproximar.
Medroso.
Não podia se aproximar dela, não podia comprometê-la. Ela precisava ter
o direito de escolha e ele não queria ser a escolha do desespero.
Ela visitava as famílias, levava mantimentos, ia à cidade e, inclusive,
havia começado a ensinar na escola recém reformada do vilarejo. As crianças
a adoravam e ela brilhava entre todos. Jonas estava cada vez mais fascinado
e, com o passar do tempo, passou a esquecer que ela era a herdeira do
Marquesado.
Religiosamente às 9 horas, chegava à fazenda, onde já era conhecido e
nem mais anunciado. Cuidava da higiene do Marquês, ajudava César a descê-
lo para o desjejum, visitava os arrendatários, conferia contas com Aaron. À
noite, voltava para a estalagem e dormia poucas horas.
Em uma tarde chuvosa de terça-feira, Jonas entrou na mansão e pediu que
César lhe servisse algo na biblioteca, enquanto seu cavalo não era trazido do
estábulo.
Quando terminou de comer, deixou a bandeja de lado e, sentou-se, ao pé
da lareira, ouvindo o estalar do fogo. Naquele momento, teve certeza de que
investir um pouco de dinheiro na fazenda tinha sido uma boa coisa. Com isso,
melhorias foram feitas e a propriedade voltou a lucrar — e a ter lenha para as
fogueiras da mansão.
E nem havia sido difícil convencer o administrador sobre seu
investimento... O problema era o mordomo. César era atento e leal.
Certamente contaria a Christine... Paciência. Investiu um pouco para que
lucrasse mais depois.
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Christine não voltara da escola e ele realmente estava muito cansado.


Olhando a chuva escorrer pela janela de um céu cinza e nublado, adormeceu.
Quando a moça chegou em casa, o Marquês já estava recolhido. Depois de
horas na estrada esperando o condutor desatolar o coche, sentia que precisava
de uma dose de bebida quente.
Entrou na biblioteca procurando se aquecer e percebeu que Jonas estava
dormindo. Caminhou até ele, puxou uma manta e o cobriu, mas não
conseguiu sair na mesma hora. Serviu-se de um copo de whisky e sentou à
mesa, acendendo uma vela e observando as contas do pagamento dos
arrendatários. A fazenda começava a render novamente e ela estava aliviada.
Ou quase, já que seu pai não apresentava nenhuma melhora. O médico já não
sabia mais o que fazer e, assim, ela pensava que perderia a fazenda em breve.
— Senhorita Christine?
— Me desculpe, senhor Jonas. Eu o acordei — cochichou. — Durma.
Parece cansado.
— Vou para a estalagem. Me perdoe, não imaginei que fosse adormecer...
— Não, por favor, fique. Converse comigo.
Ele pensou por um tempo, então fechou os botões da camisa e sentou em
frente a ela.
— Sobre o que gostaria de conversar?
— Aceita uma dose de whisky, um scotch?
— Não, agradeço. Eu bebi uma taça de vinho no jantar.
Eles ficaram em silêncio.
— Estou quase desistindo de tudo. — Ela disse, mexendo o líquido no
copo sem bebê-lo. — Quero dizer, não estou reclamando da sua ajuda, que
tem sido imprescindível. Só que não vejo melhora no papai. E o médico
também não. Ele virá amanhã e sei que dirá que devo desistir. E eu? Fico me
perguntando o que será de mim... Eu não tenho mais força para continuar a
lutar por ele...
— A fazenda está próspera novamente. A senhorita conseguiu muita
coisa.
— Com a sua ajuda, senhor Jonas. E meu acordo com Simon envolvia
especificamente a melhora do papai.
— Isso pode ser renegociado...
— A palavra de um homem é seu bem mais precioso, dizia papai — ela
mencionou, mas logo deu de ombros. — A dele não vale muito, mas ainda
posso garantir que a minha valha.
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Flaubert puxou o ar e engoliu em seco, então a olhou e pensou nas


inúmeras possibilidades de desfecho daquele acordo com Simon. Ela disse,
finalmente: — Acredita que não consigo mais chorar, desde a morte da minha
mãe? Que tipo de pessoa isso me faz?
— Uma pessoa forte.
— Não consigo chorar. Desde que ela morreu, não consigo mais chorar —
ela repetiu. — Sinto vergonha de ser fraca, de ter desistido. Como se as
coisas estivessem em suspenso e eu fosse uma nuvem vagando conforme o
vento.
Depois de um tempo em silêncio, ele inspirou, foi até a lareira, apagou o
fogo. Caminhou pela biblioteca, puxando as cortinas e parou ao lado de
Christine.
— O que está fazendo? — Ela perguntou, um tanto assustada e outro tanto
excitada.
Jonas abaixou-se e assoprou a última fonte de luz do cômodo. Segurou a
mão de Christine e a levantou, colocando o copo sobre a mesa. Puxou a moça
mais para perto e a abraçou, mantendo a cabeça dela apoiada em seu peito e
acariciando seus cabelos úmidos.
Sem dizer mais nenhuma palavra, Christine chorou.

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Capítulo 19

N a semana seguinte, o médico compareceu para a


visita semanal. Jonas estava lá e vestia roupas do
Marquês depois de um dia no campo, mas eram um
pouco largas demais. A cozinheira tentou deixá-las um pouco mais ajustadas,
mas linhas e agulhas não eram seu forte.
— O Marquês não apresentou melhora, senhorita. Ele está corado e parece
ter engordado, mas não interage, não responde e suas pupilas estão fixas.
— Não estamos evoluindo, então? — Perguntou Jonas.
— Não sabemos o que ele tem, mas o tratamento comum para melancolia
não funcionou. Podemos seguir com este tratamento ou começar com
medicações e chás, mas não é garantida a recuperação.
Christine permaneceu sentada escutando o médico sem dizer nada. Ela
sabia, no fundo ela sabia, que o pai não havia melhorado.
Quando o doutor saiu, ela virou-se para o Marquês e disse: — Você
desistiu, não é? Vai me abandonar de vez? Me deixar sozinha de vez? Você
desistiu e me deixou com os seus problemas! — Gritou e saiu correndo,
subindo as escadas e tropeçando em alguns degraus.
— Com sua licença, Marquês, vou atrás dela — disse Jonas ao apático
homem.
Jonas subiu pulando degraus e parou à porta do quarto dela. Estava muito
difícil estar por perto e não fazer nada. Bateu e, ao ouvi-la reclamar, entrou.
— Christine? — Disse com toda a intimidade que a convivência lhe
proporcionou.
Ela não se assustou. Havia se acostumado com a presença dele na fazenda
e começou a percebê-lo como alguém próximo. Próximo demais.
— Saia, Jonas, por favor, me deixe sozinha — respondeu, apontando para
as portas.
Ele entrou, fechou a porta atrás de si e encostou na parede, mantendo uma
distância razoável da moça. Algum tempo depois, quando o silêncio era
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insuportável demais, Christine enfim falou: — Eu terei que casar com o


Duque, não é?
Ele trincou o maxilar, apertou as mãos e caminhou até ela. Parando à sua
frente, puxou a mão de Christine, que sentiu o calor do contato naquele
instante.
— Não, Christine. Você não vai casar com ninguém por obrigação. Nós
vamos resolver isso.
— Não é sua responsabilidade, Jonas. Eu não sou, meu pai não é... E esse
foi o meu acordo com seu irmão, Jonas — observou, soltando a mão e
virando-se para a janela.
O entardecer nublado anunciava mais uma noite chuvosa. Jonas parou ao
lado dela e começou a dizer: — Eu vou resolver...
— Você não tem obrigação de nada. Já fez mais do que deveria, inclusive.
Eu agradeço muito a sua ajuda e preciso admitir que a fazenda voltou a ser
produtiva graças à sua intervenção — afirmou, finalmente voltando a olhar
para ele.
Jonas acariciou o rosto de moça e confessou: — Tudo isso é muito difícil
para mim, Christine.
— Eu posso imaginar. Alguém que realiza trabalhos de escritório, sempre
trajando vestes completas, deve mesmo estar tendo dificuldades ao sol. E o
contato com os arrendatários...
— Não é disso que falo — interrompeu, engolindo em seco e suspirando
profundamente. — A cada dia que passa é mais difícil ficar perto de você. A
cada dia que passa, o que eu sinto por você se torna mais... mais intenso. Eu a
desejo...
— Me deseja? — Interrompeu a moça, sentindo o coração disparar e o
calor começar a subir por seu corpo.
— Com tudo que eu sou, Christine.
Ela se perdeu naquela lagoa glacial dos olhos dele que,
surpreendentemente, a aquecia. Levou a mão ao rosto de Jonas, acariciou e
disse, suavemente: — Estou aqui.
O silêncio tornou o ar pesado. Christine não percebeu, naquele momento,
que suas palavras queriam dizer muito mais para ele. Jonas inspirou
profundamente, fechou os olhos e beijou a palma da mão dela. Eles estavam
perto demais do abismo da perdição e nenhum dos dois pensou em recuar.
Sem desviar o olhar do rosto de Jonas, Christine caminhou para trás até
encostar no armário, saindo da vista da janela, levou a mão ao próprio vestido
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e abriu lenta e timidamente as fitas do corpete. Os olhos dele, vidrados,


focaram nas curvas dos seios dela.
A leve camisa que a moça usava por baixo deixava à mostra as auréolas
negras de seus mamilos e Jonas lutou contra as reações do próprio corpo. A
pressão em suas calças era visível e a respiração entrecortada denunciava a
excitação. Christine não soube disfarçar a urgência que sentia pelo toque dele
e engoliu em seco ao perceber a ousadia do que estava fazendo.
Ele caminhou lentamente até ela, parando a poucos centímetros do corpo
da moça. Levou a mão à gola e escorreu a camisa lenta e suavemente pelo
ombro, percebendo o toque quente da pele em seus dedos e desnudando os
seios fartos.
O mero toque do tecido já havia deixado sua pele sensível e Christine
sentia-se entregue. Com as costas da mão, Jonas acompanhou as curvas,
passando pelos mamilos enrijecidos e soltando um rugido sensual que a fez
fechar os olhos. Ele lambeu os lábios e mordeu-os, deixando uma marca
branca de desejo.
A respiração de Jonas chegou muito perto do rosto dela, que ainda
deleitava-se com a suave carícia e sentia esquentar o ventre. O calor subia por
um lugar desconhecido e fazia a moça querer — implorar — um beijo dele.
Jonas aproximou os lábios do pescoço dela e passou a língua pelos
ombros da moça, fazendo todos os pelos de Christine se arrepiarem. Ela
começou a sentir-se umedecer e percebeu quando a respiração dele desceu até
o bico de seu peito. Ele se ajoelhou, reverenciando-a, lambeu e sugou o
mamilo, perdendo a si mesmo no gesto.
Quando ela finalmente abriu os olhos, ele a encarava, lambendo cada
mamilo, mordiscando, sugando e apertando com as mãos, sempre de olhos
abertos. Christine segurou-o pelo ombro e arqueou as costas, jogando a
cabeça para trás e empurrando seu quadril de encontro ao peito dele. Ela
estava úmida e apertava as pernas por baixo da saia uma na outra.
A moça voltou a olhar para ele e, sem perceber, mordeu os próprios
lábios, percebendo o efeito hipnotizante que causou nele. Jonas gemeu, ficou
de pé e tomou aquela boca deliciosa de novo, desta vez com fome, urgência,
calor. Mordeu e sugou os lábios como vinha fazendo nos seios. Sua língua,
então, pediu passagem por entre os dentes dela, invadindo-a e preenchendo-a.
As mãos de Jonas apertaram a bunda de Christine, pressionando sua
ereção contra o corpo dela e buscando prazer na fricção, sem deixar de beijá-
la ferozmente. Christine, não sabia bem o que fazer e retribuiu o movimento
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ritmado do corpo dele com a própria língua, enlouquecendo-o ainda mais.


Jonas a sentiu contorcer-se e a empurrou para a cama, deitando-se sobre
ela. Eles estavam quentes, urgentes e precisando um do outro.
Ela passou a mão pelas costas dele e parou na base de seu colete. Sem
parar de beijá-la, ele abriu os botões e tirou a peça. Ela segurou a camisa dele
e puxou, tirando-a pela cabeça e revelando o torço delineado dele — agora,
queimado pelo trabalho no arado.
Afastando-se, ela o olhou e percebeu que havia muito mais coisa entre
eles do que a espera. Eles se queriam e, talvez, se amassem. Será?
Jonas levou a mão à cintura de Christine e a puxou novamente para perto,
desceu a mão pelas pernas dela e subiu por baixo da saia, atingindo o ponto
mais íntimo da moça, que arqueou-se, aproximou-se ainda mais e se ofereceu
a ele. Quando a sentiu molhada, Jonas gemeu novamente e sugou com um
pouco mais de força o mamilo da moça, que agarrou-se as costas dele
buscando o alívio.
Quando ele parou, ela reclamou com um ressoar.
— Me diga, Christine, o que você quer de mim? — Perguntou com a voz
rouca e baixa.
Ela ficou em silêncio, limitando-se a respirar com aflição.
— Fale, senhorita, o que você deseja que eu faça?
Ele a queria.
Nua.
Devassa.
Satisfeita.
Queria dar-lhe prazer, um prazer relaxante que a fizesse sentir amor e
desejo, paixão e carinho.
— Eu não sei... Mas não pare, Jonas.
— Nunca.
Ele desceu beijando-a até que alcançou sua intimidade. Ali, quando ela já
havia perdido os sentidos, ele deleitou-se sugando o ponto delicado dela e
enfiando um dedo, entrando e saindo em movimentos rítmicos que
acompanhavam sua língua.
Christine sabia que aquilo não devia ser normal. Pelo que havia lido, o
homem deveria colocar outra coisa naquele lugar, mas ela não conseguia
pedir para ele parar. Ela queria mais.
Com a outra mão, fez o caminho pelas pernas de Christine, parando no
alto da coxa e trazendo-a mais para perto da boca, agarrando-a e dando
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suaves mordiscadas que a faziam sentir muito mais prazer.


Christine agarrou o cabelo dele e libertou toda a sua agonia naquele
momento de prazer, puxando-o e fazendo que Jonas a sugasse ainda com
mais força. Ela estremeceu e ameaçou gritar, mas mordeu os lábios e prendeu
os gritos, que se transformaram em gemidos sem sentido e murmúrios
reveladores.
Jonas a abraçou e puxou a cabeça dela até que encostasse em seu peito.
Beijou o topo da cabeça dela, cobrindo-a e aconchegando-a até que
adormecesse. Ouviu quando ela murmurou um agradecimento lânguido e
sorriu.
— Você é linda — cochichou no ouvido dela, que já dormia
profundamente. — E eu amo você — declarou-se, dando um beijo suave e
casto nos lábios dela e acomodando-a na cama.
Acalmou os próprios desejos contidos e partiu.

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Capítulo 20

O cavalo não galopava rápido o suficiente para que ele


se afastasse dela até uma distância segura. Ainda
sem o colete e com a camisa meio aberta, Jonas
fugia de seus pensamentos, das lembranças do sussurro e do gozo de
Christine.
Minha.
Tudo o que ele sabia é que ela era dele, que só ele poderia ouvir aqueles
gemidos e que só ele a faria sentir prazer. Nenhum outro, jamais, poderia
tocá-la.
Ele a queria de novo e de novo. E, sentindo o vento gelado em seu rosto,
teve ainda mais certeza de que iria querê-la para sempre.
Virgem.
Ele não a tinha deflorado. Ela merecia mais. Merecia um marido
enlouquecido na noite de núpcias, merecia que tudo fosse perfeito. Ela
merecia uma noite de amor vívido, apenas disso.
Jonas queria ter certeza de que ela não se arrependeria, que a noite não
seria apenas uma forma de esquecer o dia. Não na primeira vez.
Ele queria fazê-la sentir o alívio da paixão. Queria ser aquele que sempre
a confortaria.
Pecado. Inferno.
Ele não poderia tê-la novamente. Ele não era nobre e ela merecia todas as
proteções de um título nobiliárquico.
Idiota!
O que ele faria agora? Agora que provara o sabor de Christine, nunca mais
iria querer outro gosto em sua boca. Ele levou a mão aos lábios, depois
passou-a pelo cabelo e, agarrando as rédeas do cavalo até ficar com os nós
dos dedos brancos, esporeou o animal ao limite máximo.
Precisava chegar à estalagem e partir para a cidade. Iria naquele mesmo
dia. Para longe. Longe dela e longe de todo mal que ele poderia fazer se a
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visse novamente.
Como ele a esqueceria?
Christine acordou no dia seguinte sentindo-se depravada.
Meu Deus! O que eu fiz?
Havia perdido a lucidez nos braços de Jonas e sentira um prazer maior do
que qualquer outro que já sentira na vida. Chegou a duvidar que poderia ficar
melhor.
Onde ele está?
Sozinha, no meio da sua cama, seminua, Christine sentiu a falta do cheiro
dele e do calor de seu peito. Imaginou que ele teria saído de madrugada para
não comprometê-la, agora que tinha sido deflorada.
O que fiz?
Será que ele a pediria em casamento? Mas e a fazenda? Ela teria que casar
com alguém de posses, que quitasse as dívidas do pai e mantivesse-a em
segurança.
Não pode ser Jonas...
Uma lágrima surgiu no canto do seu olho. Ela queria Jonas.
— Pelo menos, senti o gosto do prazer uma vez. Se eu tiver que casar com
o Duque, pelo menos terei essa lembrança para me aquecer à noite.
Quando desceu para tomar o café da manhã, seu pai já estava a mesa,
devidamente banhado, sentado ao lado do mordomo que lhe servia.
— César, o senhor Jonas já desceu?
— Não o vi, senhora, mas o rapaz do estábulo disse que ele partiu de
madrugada.
Partiu? Depois de tudo que acontecera entre eles, depois de ter colocado
a boca em lugares proibidos e de ter visto sua nudez, ele partiu?
— Partiu para onde? Para o arado?
— Creio que não saiba informar, senhorita. O único que a viu sair foi o
cavalariço.
Subitamente, a falta de ar tomou conta dela. O que ela havia feito? Aquele
homem a usou e foi embora...
Ela precisava ficar sozinha.
— Vou caminhar, César — disse, sem esperar resposta, e saiu, selando um
cavalo e partindo em cavalgada pela fazenda.
Uma mulher deflorada. É isso que sou. Quem irá querer casar com uma
mulher deflorada pelo filho do banqueiro? O que eu fiz?
Arrependeu-se.
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Sentimentos de prazer extremo, êxtase. Tão intensos que talvez, muito


provavelmente, nenhum outro homem a faria sentir.
Não estava mais arrependida.
Todas as mulheres merecem sentir isso pelo menos uma vez na vida, e
Christine sabia que não era tão comum assim.
Talvez ele estivesse pela fazenda. Imaginou que ele teria saído para
trabalhar.
De madrugada.
Não!
Ele poderia ter ido buscar algo na estalagem. Era isso! Não se
desesperaria. Ainda não.
— Será que Felicia me esclareceria... Devo perguntar? Como um homem
descobre se a mulher foi deflorada? E se eu mentir? Ninguém nunca vai saber
a verdade...
E se ele contar para alguém? Ela estaria arruinada!
Um homem que parte sem se despedir depois de uma noite de amor não
era um homem de caráter. Ele poderia falar. Ou poderia usar isso para fazê-la
de amante!
Nunca! Nunca vou ser a amante!
Lembrou-se do baile e do fim-de-semana que se aproximava. Será que
Jonas iria?
O Duque! Será que o Duque iria?
Por que o Duque nunca mais apareceu nem mandou notícias?
O Duque. O Duque e seu beijo frio seriam a única opção para uma moça
deflorada. Ela precisava conquistar o Duque.

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Capítulo 21

Londres, agosto de 1816.

S entado à sala do pai, no banco, Jonas ouvia o sermão


de seu irmão, esfregando as têmporas e passando a
mão pelo cabelo revolto.
— Você é um idiota — disse Simon sem alterar a voz. — Um grande e
completo idiota. Imbecil. Burro. Nem sei mais do que te chamar. — Sorriu,
debochado.
— Eu sei, Simon! Eu sei!
— Por que você foi embora?
— Como assim?
— Você fez o mais difícil, que é se aproximar da filha de um Marquês.
Trabalhou que nem um escravo por semanas a fio, cuidou do pai dela, comeu
mal e ajudou a fazenda a voltar a ter algum lucro. Fez a menina se deixar
levar e foi embora? Você só pode ser bastardo! Não é meu irmão!
— Do que você está falando? Eu devia ter ficado? E depois o quê? Pedi-la
em casamento? Não foi você quem fez questão de dizer que ela é filha de um
Marquês?
Simon levou as mãos à cabeça e gritou, novamente: — Imbecil! Eu
perguntei se você colocaria tudo a perder pela filha de um Marquês, mas eu
só queria que você pensasse sobre o que sente por ela, se valeria a pena as
dificuldades que teria ou os investimentos que perderia por desposar uma
filha da nobreza. Você é um imbecil!
— Eu não posso oferecer a proteção que ela precisa. E eu não a deflorei.
Eu não posso tê-la.
— Escute a voz da razão: você vai ao baile de Linderpool, vai tirar a moça
para dançar e vai cortejá-la como o bom maldito bastardo que é. Vai levá-la
para o jardim e fazer ela lembrar do quanto é bom estar com você. Vai fazer
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ela esquecer que você não tem título. Ou melhor! Vai fazer ela perceber que é
melhor que você não tenha um título!
— Simon, foi você quem colocou a condição de casar com Augusburg se
o pai dela não melhorasse.
— Eu não disse para ela casar com Augusburg! Disse para ela casar.
— Estão falando da menina de Chasterbrok? — Perguntou o pai, entrando
com alguns papéis e uma xícara de café.
— Sim! Seu filho está apaixonado! — Debochou Simon.
— Cale-se, Simon! — Irritou-se Jonas.
— Eu já sabia, Flaubert. Não seja tolo. Achei que o encanto fosse passar
depois de umas semanas por lá, mas se não passou, paciência. O pai dela está
falido e o futuro noivo terá muito trabalho para saldar a dívida. Simon me
disse que a fazenda tem produzido, mas não pense que só porque é meu filho
que eu não cobrarei o que tenho direito — afirmou, sentando-se e sorrindo
para Simon, sem que Jonas visse.
— Meu pai, não posso casar com ela. É a filha de um maldito Marquês!
— Meu filho, estamos em 1816! Não seja tolo. Ser filha de um Marquês
não quer mais dizer grande coisa.
— Ela sonha com um casamento nobre...
— Você é igual à sua mãe. Romântico demais — declarou, coçando as
têmporas. — Isso não é necessariamente ruim, se você souber como agir. E
se não for tão idiota!
Eles ficaram em silêncio, até que o velho senhor Marshall voltou a falar:
— Agora, me escutem. Flaubert, você vai cortejar a menina da forma certa.
Não seja afoito e não faça nada para comprometer a moça. Ande! Saia daqui
e vá para casa fazer as malas. Você precisa ir para o fim-de-semana na casa
de Linderpool.
— Não vou ao baile. Augusburg pretende cortejá-la e ela quer casar com
um nobre.
— Não é uma boa escolha e ela disse a mim, pessoalmente, que não faz
questão de um nobre, que títulos não querem dizer nada— interveio Simon.
— Estive com Augusburg na França e ele é péssimo com dinheiro, além de
ser um cretino maldito do qual ainda vou tirar muito dinheiro. Sabe que
precisa ter, sabe gastar e sabe que casamentos com herdeiras são o melhor
caminho, mas a administração dele é pior do que a de uma criança. Mal sabe
fazer contas!
Os três riram.
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— Fico me perguntando o que eles aprendem em Eton. Se orgulham tanto


de ter frequentado, mas parece que só aprenderam a diferenciar whisky de
cerveja — debochou o pai.
— Augusburg voltou com você? — Perguntou Jonas.
— Não. Foi para o Loire visitar uns conhecidos. É um desocupado, logo
se vê.
— Pois bem, Jonas, você vai ao baile — afirmou o pai, chamando-o pelo
primeiro nome e fazendo os gêmeos trocarem olhares confusos. — Sim, sim,
chamei de Jonas. Estou falando como seu pai e estou lhe dando uma ordem,
meu filho. Vá no maldito baile do Visconde e volte de lá noivo da garota.
Aproveite para fazer contatos, porque se você vai mesmo passar à frente de
todos eles na corrida pela mão dela, vamos precisar de mais investidores.
Flaubert ainda estava relutante.
— Simon, preciso de você em Londres mais alguns dias. O Barão de
Lyndon-Travers vem ao banco com Lady Pamela. Depois que ela ficou viúva
do filho do Duque de Stansfield e não produziu herdeiros, o pai quer
assegurar um investimento para ela. Esses nobres são uns hipócritas mesmo
— constatou, coçando a cabeça. Acreditam que o Duque a fez sair da
residência onde morava com o marido? Enquanto o garoto era vivo, a moça
era tratada melhor do que a Rainha... — Suspirou, compadecido. — Então,
quero que você feche esse negócio. Depois, pode ir ao baile também.
Os três ainda discutiram algumas amenidades, confabularam sobre os
investimentos de outras pessoas e bolaram um plano para aprovar a Lei
Bancária, já que o Marquês não era mais uma opção a ser considerada.
Flaubert deixou Londres se sentindo confiante: iria, finalmente, cortejar
Christine.

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Capítulo 22
Fazenda Linderpool, agosto de 1816

A carruagem do Visconde de Linderpool chegou à


Mansão Chasterbrok logo após o almoço de uma
quinta-feira. A viagem levaria a tarde e a noite todas e
a cozinheira fizera questão de preparar uma cesta de bolos, biscoitos e frutas.
Christine estava ao mesmo tempo ansiosa e temerosa pelo que a esperava
nos próximos dias. A solução para seus problemas e sua ruína poderiam estar
bem à sua frente e ela precisaria descobrir qual porta estaria aberta.
— Papai, vou ao baile da Viscondessa. Ela pediu para eu ficar até o
nascimento do bebê, então pode ser que eu demore um pouco. César cuidará
do senhor. Eu... eu o amo, sabe? Queria muito que o senhor pudesse voltar a
ser o meu pai — disse, suspirando, e beijando a testa do apático Marquês.
Na carruagem, ela procurou pensar em tudo que poderia fazer e em saídas
para todas as possíveis situações. Ia fazendo uma lista na cabeça...
Queria casar?
Com quem queria casar?
Teria que casar?
Alguém a pediria em casamento?
Ela seria convidada para as atividades ao ar livre?
Seria convidada para os chás?
Jonas iria?
Como ela trataria Jonas?
Como Jonas o trataria?
Ele pediria sua caderneta para uma dança?
Ela aceitaria?
E se ele pedisse a caderneta de outra dama?
Christine ainda sonhava com amor, mas seu coração estava um pouco
magoado pelo sumiço de Jonas alguns dias antes. Ele a usou e partiu sem dar
notícias. Ela precisava se lembrar de não sentir nada quando o visse. Ela não
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se permitiria sentir.
Trancado no quarto providenciado pelo Visconde, Jonas sabia que ela
estava chegando quando avistou a carruagem no portão da fazenda de
Linderpool. Só faltava ela, dentre os convidados. Ela e o maldito Duque de
Augusburg, que ainda não voltara da França.
Felizmente.
Da janela, fechou os olhos e tocou os lábios, lembrando do cheiro e do
som que ela produziu ao sentir prazer.
A carruagem parou à porta da casa principal e ela desceu. Do alto, ele
avistou o chapéu e a silhueta curvilínea que ele agora conhecia mais do que
ninguém. Um fio de cabelo dourado havia se soltado da trança e os dedos
finos de Christine o colocaram atrás da orelha, levando Jonas a lembrar de
quando beijara aquele lóbulo.
Um vento balançou a saia dela e o furta-cor o hipnotizou. Ou pelo menos
ele quis acreditar que tinha sido o colorido da roupa que lhe chamara a
atenção e não o tornozelo de Christine por baixo da saia, que ficou à mostra
quando o vestido balançou.
Quando a moça entrou, Jonas quis descer e falar com ela, mas não sabia
exatamente o que dizer, como se aproximar, como se desculpar por ter ido
embora tão abruptamente. O quarto dela, situado em outra ala da casa,
mantinha a sanidade dele — ela, decididamente estava longe o suficiente.
Talvez, depois do almoço.
Direcionada para um dos maiores quartos do lugar, Christine sorriu ao
perceber que uma jovem criada a aguardava ao lado de uma banheira com
água quente e cheiro de rosas. Isso e mais a lareira acesa eram luxos que há
meses não tinha e que sempre sonhara voltar a ter.
Na mesa, uma bandeja com bolo, chá e um bilhete da amiga, convidando-
a para o almoço no solar. O armário, abastecido com vestidos novos, sapatos
e — claro — chapéus, completava os mimos providenciados pela
Viscondessa de Linderpool.
Sobre a cama, uma rosa branca, que ela pegou e cheirou, sorrindo ao
lembrar do gesto semelhante da amiga em Londres, no dia do baile do Duque.
Ela se arrumou, parou à porta do quarto e respirou. Era hora de descobrir
seu destino.
Jonas sabia que ela tinha sentido o mesmo prazer que ele. Mesmo não.
Jonas sentiu muito mais prazer do que ela e, parado à janela, imaginava
formas de fazê-la querer muito mais. Ele havia a tocado da forma mais íntima
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e fez isso da forma como sempre imaginara. Com os lábios.


Era uma tortura imaginar o gosto e não poder senti-lo, mas o pai e o irmão
o apoiavam na decisão de cortejá-la. Agora, ele precisava pensar na solução
para a dívida e reunir coragem para cortejar a filha de um Marquês. Cortejar
como ela merecia ser cortejada.
Christine precisava de um homem com dinheiro suficiente para quitar as
dívidas do pai. Um homem rico como um paxá. Um homem que tivesse tanto
dinheiro quanto o pai dele. Um homem como ele.
Não!
Certamente, ela havia sonhado com marido e filhos, fazendas e criadas,
convites para os mais exclusivos salões de baile. E ele não podia lhe dar nada
disso!
Minha!
Independentemente do que Simon e o pai disseram, Jonas sabia que
Christine fora criada para fazer um casamento nobre. Algum almofadinha
engomado. E ele não era nada disso!
Minha!
Ele queria que ela fosse feliz e sabia que, para isso, ela precisava realizar
seus sonhos.
Ela não podia ser dele, mas ele podia garantir que ela escolhesse quem
quisesse.
Ele iria vender sua própria fazenda para quitar a dívida.

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Capítulo 23

S entadas no solar, longe de todas as outras damas que já


haviam chegado à casa, Felicia e Christine
conversavam sobre intimidades.
— Me sinto totalmente deslocada em minha própria casa — reclamava
Felicia.
— Querida, a mãe de Maurice é sua sogra e acho que ela pretendia
exatamente o contrário. Acho que ela queria que você se sentisse
Viscondessa, como ela.
— Como, Christine, como? Todas aquelas mulheres me olham como se eu
ainda fosse a filha do chapeleiro.
— Bom, você ainda é — comentou, sorrindo. — Mas não é só isso, minha
amiga. Você é Felicia, esposa do Visconde de Linderpool, futura mamãe de
um bebê lindo e gordinho, minha melhor amiga. É esperta, especial, meiga,
gentil e linda.
— Obrigada — agradeceu, dando tapinhas na mão de Christine. — Mas
vamos falar de você, que tem a vida mais emocionante. Convidei alguns
Condes, dois Duques, inclusive Augusburg — disse, piscando, — alguns
Marqueses e Viscondes também. O salão vai estar cheio de nobres de todos
os tipos para você escolher. Feios, bonitos, baixos, altos, gordos, magros,
elegantes, olhos pretos, azuis, verdes, loiros, morenos... Fiz um cardápio
variado!
— Que horror, Felicia! Como você pode falar isso?
— É assim que eles falam da gente, não é? Então... Vamos inverter a
situação! Essa é a graça do baile de máscaras e das brincadeiras que eu
preparei!
— Felicia, preciso lhe falar uma coisa... Uma coisa que eu fiz e de que não
me arrependo. Ou me arrependo... Eu não sei.
— Diga logo, Christine! O que houve? — Perguntou a Viscondessa, de
olhos arregalados.
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— Sabe o senhor Flaubert, filho do banqueiro?


— Sei. É um rapaz muito bonito, não é? Ele está aqui, na fazenda.
— Aqui?
— Sim. Chegou algum tempo antes de você. Ele esteve em Chasterbrok
esses dias, não? Foi tudo bem?
— Ele me beijou.
— Beijou?
— E eu beijei ele também...
Felicia apertou os olhos e esperou a amiga continuar.
— Ele me beijou na cama...
— Na cama? Ele entrou no seu quarto quando você estava dormindo?
— Não... Eu tinha recebido uma notícia ruim e havia acabado de entrar no
quarto um pouco irritada. A gente vinha se aproximando, ele estava ajudando
na fazenda, me consolando, me apoiando... Foi como se abrisse o canal para
fluírem todas as lágrimas presas nesses últimos tempos.
— Sei, sei... Mas eu quero falar do beijo! Como foi?
— Maravilhoso, mas eu preciso te perguntar — disse, sem jeito. — É
comum que eles coloquem a boca lá?
— Onde?
— Lá, Felicia. Lá embaixo...
Felicia sorriu.
— Bom, não é comum...
— Oh! Eu sabia! Meu Deus! Que vergonha! O que eu fiz? — Cobriu o
rosto.
— Acalme-se. Não é comum, mas se o rapaz souber fazer, pode ser muito
bom. Muito, mas muito bom... — Corou.
— Foi. Eu senti coisas que nunca havia sentido antes... Uma aflição,
seguida de uma agonia... — Dizia, com um sorriso tímido nos lábios. —
Ansiedade e libertação.
A Viscondessa tombou a cabeça e apertou os olhos: — Minha querida
amiga, você está apaixonada?
— Ele foi embora depois. Mas, como vou casar agora que fui deflorada?
Não posso mentir para o meu noivo... Se eu tiver um noivo. E, se ele for
nobre, nunca vai entender que um homem comum me tocou tão... Tão
intimamente.
— Querida, preciso perguntar, houve alguma coisa além disso?
— Ele beijou meu corpo inteiro... Eu senti os músculos dele tensos.
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Felicia, não quero mais falar disso.


— Mas você precisa saber...
— Não preciso saber mais nada. Já passei alguns dias me torturando por
ter entregado a minha virtude a um homem que não é meu marido, torturando
porque não dei a devida atenção ao Duque de Augusburg e porque a dívida
do meu pai ainda está em aberto. Fiz um acordo com Simon e, se meu pai não
melhorasse no prazo de 30 dias, eu teria que casar e eu, bom, eu não consegui
fazê-lo reagir.
— Augusburg ainda não chegou na casa. Ouvi dizer que ele não havia
voltado da França, mas parece que até amanhã ele estará aqui. Quem sabe
você não tem uma segunda chance com ele.
— Quem sabe...
— Só lhe resta pensar se você definitivamente quer uma chance com ele.
Após o almoço, quando todos estavam reunidos para no jardim, a
Viscondessa pediu a palavra e, animadamente, falou: — Amanhã haverá uma
caçada! Não é excitante? Todos deverão descobrir onde está escondido o
primeiro sapato do bebê. É uma caixa de madeira colocada na mata aos pés
da minha árvore favorita. A primeira equipe que trouxer a caixa, ganhará.
— E o prêmio? — Ouviu-se uma voz no jardim.

— Oh, pensei em um prêmio muito interessante — respondeu, sorrindo


para o marido. — Quem achar a caixa, poderá escolher seu parceiro no baile
de máscaras à noite. Depois, o resto da equipe escolherá seus parceiros.
Houve burburinho e, no meio da bagunça, os olhares se cruzarem.
Christine e Jonas perderam-se um no outro por alguns instantes, até ele sorrir
e ela desviar os olhos.
— Maurice vai separar as equipes — continuou a Condessa. — E a caçada
começa logo após o desjejum de amanhã, no Solar do Vale!
O marido interrompeu:
— Acho que podemos dividir em damas e cavalheiros. Ficará mais
competitivo desta forma.
— E se todos quisermos a mesma dama? — Gritou, novamente, a tal voz.
— A dama escolherá — respondeu Maurice.
Do outro lado, em meio a algumas amigas, estava ela, linda como sempre.
Sorrindo como a menina de pouco mais de 20 anos que era, Flaubert queria
dizer a ela, que a dívida não seria mais um problema, mas sem a resposta de
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seu pai, não poderia arriscar.

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Capítulo 24

E nquanto as damas reuniram-se para o chá, os homens


foram com o Visconde em uma cavalgada pela
fazenda. Orgulhoso, ele queria mostrar o quão
produtivas suas plantações eram.
Sentado à mesa da biblioteca, Flaubert redigia o próprio contrato de
compra para enviar ao pai, selando todas as possibilidades de ter a proposta
negada. Enviaria o documento o mais rápido possível, colocando suas
condições para a aquisição da Fazenda Chasterbrok.
Tão logo terminou — o que não demorou muito tempo, considerando sua
prática de alguns anos, — enviou um mensageiro para a cidade. No dia
seguinte, um domingo, tudo estaria resolvido. Christine poderia escolher o
marido que quisesse e, depois daquela noite, ele iria embora para a América.
Precisava dançar com ela pelo menos uma vez.
Ainda ficou um tempo sentado apreciando um copo de whisky que não
esvaziava.
Será que reconheceria Christine no baile de máscaras?
Sempre.
— Flaubert, finalmente achei você...
— Augusburg, achei que só vinha amanhã. Como está?
— Bem, muito bem. Soube que minha noiva está aqui.
— Sua noiva?
— A senhorita Chasterbrok. Ou, devo dizer, a herdeira do Ducado de
Bordeaux?
— Herdeira?
— Sim, meu caro! — Sorriu o Duque. — Mas achei que vocês, malditos
Marshall, sempre soubessem de tudo! — Debochou.
— Pelo jeito nós, os malditos Marshall, não sabíamos disso. Ela não é sua
noiva, Vossa Graça.
— Ah, mas será em breve. Bordeaux é um dos Ducados mais ricos da
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França, para não dizer da Europa. E ela ainda não sabe, mas é a única
herdeira. Ela será Duquesa sem um Duque. Precisa de um Duque. Eu!
— E o que faz você acreditar que ela aceitará seu pedido?
— Oh, ela aceitará. Eu vou garantir que ela aceite... Ela já está inclinada a
aceitar minha proposta, porque, veja bem, sou um Duque.
— Não acho que esse argumento a convença.
— Aí, eu entro com outro plano. Vou me aproximar dela, fazê-la confiar
em mim e amanhã no baile, vou garantir que ela não tenha escolha — sorriu,
alisando o bigode.
— Seu maldito! — Gritou Flaubert com o punho cerrado e os olhos azuis
assumindo tons de vermelho.
Rindo, o Duque debochou.
— Você não achou que ia casar com ela, achou? Você é um nada, filho de
um banqueiro! Nunca poderia casar com a filha de um Marquês, uma futura
Duquesa. Ela tem que casar com um Duque. Comigo! E eu terei toda a
fortuna dos dois ducados. A dívida de Chasterbrok será nada perto de tudo
que eu terei. Depois, todas as noites, depois que eu beber meu mais caro
whisky, vou entrar no quarto dela, que vai estar esperando por mim ansiosa,
na cama, com aqueles seios fartos...
Ele não viu nada. Nem o whisky caindo, nem as pedras de gelo acertando
suas têmporas nem o copo estourando em sua cabeça. Flaubert não saiu da
biblioteca. Com as mãos nos bolsos, caminhou até o Duque.
— O engraçado é que, de tudo isso, o que eu mais me arrependo é de ter
desperdiçado um magnífico escocês.
— Seu maldito! Vou tirar todo o dinheiro do seu banco e fazê-lo
apodrecer!
— A papelada estará pronta na segunda — encerrou, deixando o Duque
amargar o rancor.
— Eu vou destruir você, Flaubert! Destruir você!
— Oh, meu caro, vamos ver... Isso, nós dois vamos ver.
— Vou arruinar a votação na Câmara dos Lordes. Eu sou o Duque de
Augusburg, muito mais influente e muito mais rico do que todos os
Condezinhos e Marquezinhos de Londres.
— Há quem discorde. Eu, inclusive, posso listar uns 10 nomes de homens
mais ricos que você. Acho que até mesmo algumas mulheres também o são
— encerrou, deixando a biblioteca com o coração apertado.
Horas mais tarde, a Viscondessa olhava para a sua mesa de jantar,
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perfeitamente organizada de acordo com os padrões nobiliárquicos. Pouco


antes dos convidados descerem para a refeição, parada ao lado do mordomo,
lembrou de como era ser chamada de filha do chapeleiro.
Lembrou, também, do que sua amiga havia lhe falado.
— Mude tudo —disse para o mordomo. — Quero Augusburg duas
cadeiras depois de mim, Flaubert ao lado de Christine, à minha frente,
Neusbert ao lado de Flaubert.... Eles parecem se dar bem e odeio discussão
nas refeições — ponderou. — Quero a senhorita Julie de Sommè entre
Augusburg e Cosito. Bom, o resto fica como está.
Confuso com a impropriedade da nova arrumação, mas feliz pela coragem
da Viscondessa, o mordomo imediatamente providenciou as alterações.
— Que coloquem a culpa no nome da filha do chapeleiro! — Disse,
saindo da sala e sorrindo, ainda nervosa.
Mas, ao lado de Flaubert, Christine não falou uma palavra durante toda a
refeição. Estava incomodada pela presença dele, mas principalmente pelo
silêncio que ele deixou quando partiu sorrateiramente da fazenda
Chasterbrok.
Depois de ter se deitado com ela.
Findo o jantar, quando todos tomavam um aperitivo ouvindo Neusberg
tocar uma peça suave ao piano, Augusburg se aproximou dela, olhando para
Jonas e sorrindo de lado, debochada e triunfalmente: — Senhorita Christine,
como vai?
— Vossa Graça — ela cumprimentou, fazendo uma reverência polida e
arregalando os olhos ao perceber o ferimento na testa do rapaz. —O que
houve?
Ela tocou o machucado e Flaubert reparou que ela parecia...
Compadecida?
Ela estava com pena daquele petrúfico bugólico? Bufou.
— Senhor Flaubert? — Ouviu a Viscondessa atrás de si. — Christine é
minha amiga mais querida e, se o senhor não pretende perder a vida, eu
sugiro que não a magoe.
— Perder a vida? — Ele riu.
Ela o estava ameaçando?
Era até engraçado. Ali, de frente para uma mulher bastante grávida,
Flaubert franziu as sobrancelhas e sentiu um pouco de medo. Ouvira dizer
que mulheres grávidas são leoas...
— Oh! O que eu disse? — Ela sorriu, colocando a mão enluvada na
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bochecha. — Eu quis dizer perder a erva-da-vida. Sabe, aquela minha flor


predileta que plantei ao lado do poço e coloquei o sapatinho do meu bebê?
— Erva-da-vida não é uma árvore.
— Ops... Acho que me enganei... — Piscou e saiu andando.
Jonas voltou a olhar para Christine e viu quando ela deixou o salão portas
afora acompanhada. Pelo Duque. Aquele maldito ia comprometê-la e Jonas
não poderia deixar isso acontecer.
Nunca. Ela não casaria com Augusburg nem que Flaubert fosse preso por
duquecídio.
Quando ia se virar para sair, reparou que a Viscondessa deixou o salão a
caminho do jardim, acompanhada pelo marido. Pouco tempo depois, entrou
acompanhada de Christine e sorriu para Jonas.
Uma aliada.
Uma forte aliada.

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Capítulo 25

L ogo após o desjejum, todos estavam animados para a


grande caçada aos sapatinhos do bebê. Organizados
em seus grupos, traçavam estratégias para descobrir
qual seria a árvore predileta que abrigava a tal caixa.
— Senhor Flaubert?
— Bom dia, Viscondessa, como está?
— Espero que se lembre qual é minha árvore predileta.
— Não posso ganhar, senhora. Sabe o que os nobres pensam de mim...
— Não me importo com o que pensam de você. Só me importo com
Christine e ela precisa acreditar que o senhor foi sincero com ela na fazenda
Chasterbrok.
Ele arregalou os olhos e perguntou: — O que ela contou para a senhora?
Ela sorriu.
— Não importa o que ela contou, nem tampouco o que aconteceu. O que
importa é o que o senhor vai fazer agora.
— Não posso fazer muita coisa.
— Claro que pode.
— Christine é filha de um Marquês e eu sou....
Flaubert sorriu, um pouco desconcertado, suspirou profundamente e disse:
— Agora, Christine poderá escolher quem quiser.
— A caçada se trata precisamente disso: escolhas. Erva-da-vida, meu caro
Flaubert. Erva-da-vida... — Disse, como se cantasse, e saiu de perto.
Mas quando a busca começou, Flaubert viu o Conde Cosito dizer alguma
gentileza próximo à Christine e notou que ela sorriu. Respirou profundamente
e caminhou em direção ao poço, no sentido contrário de seus parceiros. Ele
não poderia se dar ao luxo de escolher Christine, mas poderia impedir que
Augusburg ganhasse.
Achou a caixa, sentou-se no beiral e distraiu-se jogando pedras na água,
medindo o tempo que demoravam a cair.
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Ouviu, então, quando alguém se aproximou.


— Christine?
— Jonas? O que faz aqui? Não quer achar a caixa?
— Já achei.
— Oh! — Ela arregalou os olhos. — E não vai entrega-la a Maurice?
Ele olhou para a caixa, olhou para a moça e ficou de pé. Caminhou até ela
e estendeu-lhe o objeto: — Por que a senhorita mesmo não entrega?
— Eu? Mas foi o senhor quem achou. Não quer escolher sua parceira no
baile?
— Eu sei quem gostaria que fosse minha parceira, mas infelizmente não
sou apropriado para ela e acho que nunca poderei dançar uma música sequer
com ela.
— O senhor nunca dançou com ela?
— Não pude. Tentei, certa vez, depois de tomar quatro doses de whisky da
coragem, mas fui interrompido pelos conselhos de um conhecido. Algo sobre
a minha origem e a dela.
Ela sorriu.
— Jonas, por que você foi embora da fazenda?
Ele levou a mão ao rosto dela, aproximou-se bem devagar e depositou um
beijo suave no topo da cabeça da moça, inspirando o perfume de seu cabelo.
— Eu não podia ter feito aquilo, Christine. Eu sei que você sempre sonhou
com o casamento com um nobre, que abra portas para os melhores bailes e
títulos. Eu quero que você tenha exatamente o que sempre sonhou. Eu-eu não
sou o seu príncipe encantado. — Ele partiu, deixando-a sozinha com a caixa
na mão e olhos arregalados.
Jonas não sabia nada sobre os seus sonhos...
Ele afastou-se, apertou as têmporas e rugiu quando lembrou de Christine
com o Conde Cosito. Pensou se ela o escolheria, já que era um homem bem
apessoado e simpático. Se ela o escolhesse, talvez o seu sonho ainda se
realizasse...
Então, por que simplesmente Flaubert não ia embora? Por que era tão
difícil imaginá-la com qualquer outro homem? Por que o cheiro dela ainda
estava em seus pensamentos?
— Uma dança. Eu só quero mais uma dança — murmurou para si mesmo.
Pouco antes do horário determinado para o almoço, Jonas voltou ao
casarão.
— Senhor Flaubert? O Visconde o aguarda na biblioteca — disse o
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mordomo.
Certo de que Maurice lhe exigiria que fosse embora, Jonas coçou a testa,
passou a mão pelos cabelos e foi.
— Flaubert, que bom que chegou! Estávamos falando sobre a Lei
Bancária. Augusburg acredita que a liberdade de contratação irá apenas
causar mais dívidas. Gostaríamos de ouvir sua opinião.
— Vossa Graça pode ter razão. Não sei bem se a livre negociação é
interessante — disse, caminhando até a mesa de bebidas e servindo-se de
uma dose. — Aliás, como vai a cabeça, Augusburg?
O Duque apertou o próprio copo nas mãos e todos deram risos abafados.
— Acho que não deveriam aprovar, senhores. É péssimo para todos os
devedores, que perderão muito mais do que têm. É ruim até para o banco, que
perderá clientes endividados. Com apenas um comprador, que também é
vendedor, não haverá mercado.
— Um tanto extremo, não? Para isso, todos teríamos que perder tudo.
Tudo. E não seríamos tão idiotas — falou o futuro Barão de Neusberg.
Um burburinho se formou entre risadas. Certos de que poderiam usar suas
influências para baixar os juros das negociações, despediram-se e partiram
para o almoço.
Jonas e Neusberg ficaram para trás.
— Ouvi dizer que Augusburg vai destruir o banco — debochou Neusberg.
— Deixe ele tentar. Vai ser até engraçado.
— Você acha que eles aprovarão? Foi um jogo perigoso brincar com os
egos.
— Aguardemos.
— E a senhorita Chasterbrok? Você já sabia que ela ganhou o prêmio e
será a primeira a escolher seu parceiro?
— Sim.
— E quem será que as outras moças escolherão?
— Alguma moça especificamente, Neusberg?
— Lady Pamela... Ouvi dizer que o Conde Cosito a está cortejando e eu,
bom, gostaria que ela me escolhesse para seu parceiro na valsa.
— Cosito não está cortejando Christine?
— Não, meu caro. Ele está interessado em Lady Pamela.
Talvez ele ainda tivesse uma chance... Talvez.

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Capítulo 26

A reverência que ela fez em frente a ele foi perfeita.


Todo o salão estava em silêncio e o imponente Duque
de Augusburg, escondido sob uma máscara azul que
deixava em evidência o bigode ducal, sentia-se humilhado. Flaubert a olhava
incrédulo, estupefato com a coragem demonstrada e pela ousadia estúpida da
filha do Marquês.
— Conceder-me-ia esta dança, senhor Flaubert?
Atônito, ereto, mãos nos bolsos da calça, ele engoliu em seco. A
respiração acelerada e o coração turbilhando o impediam de responder. Jonas
usava uma máscara branca e levava, à mostra no bolso, a rosa que daria para
Christine pessoalmente no jardim.
Christine cobria parte do rosto com uma penugem cor-de-rosa, que
harmonizava com seu vestido floral delicado.
Simon, que chegara pouco antes do baile, o cutucou com o cotovelo,
tirando-o do transe sonhador e cochichando: — Responda, homem.
Então era verdade? Ela o estava convidando para dançar...
— Eu? — Perguntou, ainda sem ação.
— Ela ainda aguarda sua resposta, infeliz! Responda logo, todos estão
olhando — sussurrou Neusberg.
— Claro, senhorita Christine. Será uma honra poder dançar com a
senhorita.
Estendeu a mão e pegou a dela. Era ali, naquele instante, que Flaubert
queria congelar o tempo. Era aquela a dança que deveria durar para sempre.
Aquele momento, aqueles poucos minutos, que valeriam cada ano de espera.
A música baixa era perfeita, mas nenhuma sensação era mais completa do
que o toque da luva delicada que deixava passar o calor da mão de Christine.
Perdendo-se nos olhos dela, Flaubert aproximou seu corpo e, a poucos
centímetros, pôde sentir o perfume dela, seu hálito fresco, sua respiração
descompassada.
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Seu corpo inteiro estava tenso e reagia à presença dela, que percebeu e
sorriu para ele.
— Achei que ia recusar — ela cochichou, quando acordes um pouco mais
altos chegaram aos pés deles.
— Jamais recusaria qualquer coisa à senhorita.
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa — respondeu, arqueando as sobrancelhas.
Ela sorriu e mudou de assunto.
— E como vão os negócios do banco?
— Fluindo. E seu pai?
— Está na cama, igual a ontem e tenho quase certeza de que igual a
amanhã. Desisti de lutar por ele. Agora, vou ver o que a vida me apronta —
suspirou. — Seu irmão me procurou e pediu que eu fosse ao banco o quanto
antes. Acho que vai me despejar.
Ele sorriu.
— O senhor não saberia do que se trata, saberia?
— Não — mentiu. Queria muito que ela fosse surpreendida com a
escritura quando chegasse no banco.
Ela percebeu que ele mentia e apertou os olhos, mas ele não poderia dizer
que tinha comprado Chasterbrok para ela.
— Tem algo a me dizer, Jonas?
Ele prendeu o ar.
— Creio que não.
A música estava acabando e os lábios dela haviam prendido a atenção de
Jonas.
— A senhorita me acompanharia em um passeio pelo jardim?
Estava fresco o tempo, realmente agradável para um passeio pelo jardim.
— Gostaria de lhe perguntar novamente — ela começou a dizer,
quebrando o silêncio ao chegar no caramanchão e desamarrando a fita da
máscara, no que ele a acompanhou. — Quem sabe sua resposta agora não é
diferente.... Por que foi embora da fazenda daquele jeito?
— Eu... eu não podia ter deixado as coisas chegarem àquele ponto.
— Deixar? Se bem me lembro, eu deixei. Foi assim tão ruim? — Corou,
sentindo-se corar e desviando o olhar.
— Ruim? Christine, olhe para mim — ele chamou. Quando ela não virou,
ele tocou o rosto dela e insistiu. — Por favor...
Ela olhou, ainda sem graça, secando discretamente os olhos de uma ou
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duas lágrimas que quase escorreram.


— Você foi perfeita. Você é perfeita. Tudo em você é perfeito. Seu cheiro
— ele se aproximou — seu gosto — passou o polegar pelos lábios dela —
seu calor — puxou o rosto dela para que seus lábios se aproximassem, sem
tocar.
Infindáveis segundos depois, ela passou a língua pelos dentes e mordeu a
própria boca. Estava entregue. Flaubert a beijou e passou, suavemente, a
própria língua nos lábios de Christine.
— Não sei mais como resistir, Christine — murmurou ainda com os
lábios próximos ao dela.
— E por que você precisa resistir?
Próximos. Muito próximos.
Perdição.
Satisfação.
Realização.
— Senhorita Christine! — Gritou Augusburg. — Não se deixe enganar
por este homem!
Assombro.
Frustração.
Raiva.
— Augusburg, o que está fazendo aqui?
— Vim evitar que você seja malicioso e comprometa a herdeira do maior
Ducado da França.
— Do que está falando, Vossa Graça? Eu não sou herdeira de nada!
— Senhorita, não é o momento para... — Interrompeu-a Jonas.
— É verdade, senhorita. Ele não lhe falou? — Arqueou a sobrancelha,
desafiando Flaubert. — Claro que não! Ele pretende comprometê-la para
forçar o casamento e, assim, tomar conta de sua fortuna. A dívida do seu pai
é ínfima perto do que a senhorita tem para receber.
— Isso não foi confirmado ainda, Augusburg! — Irritou-se Flaubert,
apontando para o Duque com o indicador em riste.
Mas Christine se afastou.
— Confirmado? O senhor sabia, então? — Ela perguntou, levando as
mãos ao lábio em assombro e correndo de volta para o salão.
— Christine! — Gritou Jonas, mas ela não voltou.
Augusburg riu.
— Eu disse que ia consegui-la, Flaubert. Agora, é apenas uma questão de
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tempo e paciência para eu propor o casamento e evitar o desastre que você


mesmo causou. Com sua licença, vou consolar uma dama... — Fez uma leve
reverência e correu atrás de Christine.
— Seu imbecil! — Gritou Flaubert, mas foi contido pelos Condes que
acompanhavam o Duque.
De longe, ele viu a esvoaçante saia da moça entrar salão adentro — para
longe dele.

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Capítulo 27

F
escadas da Mansão.
laubert voltou para o salão assim que os nobres
afrouxaram as mãos. Voltou a tempo de ver Christine,
amparada pela Viscondessa de Linderpool, subir as

— O que você fez, Flaubert? — Perguntou o Visconde.


Mas Jonas não respondeu. Caminhou a passos firmes até o Duque e, sem
que todos esperassem, socou-o uma. Duas. Três vezes.
Quanto preparou a mão para o quarto soco, Simon o segurou e tirou do
salão.
— Vamos embora, Flaubert. Você não vai resolver nada se arrumar um
problema com ele!
Empurrando o irmão até o quarto, Simon tentava acalmá-lo. Inutilmente.
Flaubert espumava, rangia os dentes, urrava.
— Eu vou matar aquele desgraçado.
— Matar? Não seja tolo. Eu e você sabemos que a melhor forma de atingir
esses almofadinhas é no bolso. E eu sei bem como destruir Augusburg.
— Você sabia, Simon? — Perguntou, virando-se para o irmão.
— Sobre o Ducado? Sim. Mas a informação não está confirmada. Fiquei
sabendo pouco antes de viajar, quando um representante do Duque francês
apareceu no banco com alguns documentos e nosso pai ficou de analisar e
reunir-se com ele na segunda. Por isso pedi que ela fosse ao banco.
— Mas você acha que ela é mesmo herdeira?
— Acredito que sim, meu irmão.
— Pois bem. Ela não precisará casar com Augusburg se não quiser. Não
precisará casar com ninguém.
— Temo não ser tão simples, Flaubert. O Duque entrou no salão dizendo
que você a havia arruinado.
— É um bastardo maldito!
Andando pelo quarto, Jonas passava a mão pelo cabelo, coçava os olhos,
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levantava, sentava, voltava a andar...


— Eu preciso falar com ela, Simon.
— Não tem como, meu irmão. Hoje, acho melhor você se manter
afastado.
— Como vou me manter afastado? Eu a amo! Saber que ela está com
raiva de mim está me consumindo!
— Não seja tolo, Flaubert. Não adianta você ir à presença dela agora com
suas explicações, porque tudo vai parecer desculpas e sua declaração de amor
tão pura vai parecer teatral.
— Não é teatro! — Gritou.
— Eu sei, mas ninguém mais sabe.
— A Viscondessa! Talvez ela acredite em mim...
— Nesse momento, acho que não. Partiremos cedo amanhã e vamos
aguardar ela aparecer no banco. Enquanto isso, aquele seu pedido
estapafúrdio está para ser aprovado.
Jonas arqueou as sobrancelhas.
— Sim, sim... Eu sei! Encontrei seu mensageiro na estalagem e li seu
contrato. Você quer mesmo fazer isso? Quero dizer, se ela for rica, você não
precisa vender sua fazenda.
— Acho que agora, mais do que nunca, preciso fazer isso.
— O tiro pode ricochetear, Flaubert. Ela pode achar que você quer tirar
tudo dela — A propriedade vai estar no nome dela! Como eu estaria tirando
proveito? Vou vender uma das minhas propriedades, enorme e produtiva,
para que ela mantenha a dela, decadente e falida.
— Seja como for, sugiro não usar estas expressões.
Uma batida na porta os silenciou. O Visconde de Linderpool, então,
entrou no cômodo acompanhado de Neusberg.
—Christine foi para o quarto e eu exijo saber o que aconteceu no jardim
— afirmou Maurice.
— Exige? — Perguntou Jonas, se aproximando dele. O homem estava
nervoso e isso ficava claro pelo jeito pesado com que andava. — Você exige?
Maurice não cedeu. Nunca fora de temer nada e não seria o filho do
banqueiro quem lhe amedrontaria.
— Eu exijo, Flaubert. Você está na minha casa e, ao que me consta, a
honra de uma amiga está sendo questionada por um imbecil todo machucado
e irritantemente esnobe. Então, sim, eu exijo.
Simon tocou o ombro de Flaubert e puxou-o para longe.
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— Maurice — começou a dizer, — Flaubert e Christine estavam


passeando no jardim e Augusburg apareceu dizendo impropriedades. Flaubert
bateu-lhe um pouco e ele se vingou falando de Christine. Simples.
— Simples? E você acha que eu vou acreditar na palavra de vocês quando
tem outras três pessoas de origem nobre me dizendo o contrário?
— Que três pessoas? Os cães batedores de Augusburg? — Debochou,
arqueando a sobrancelha.
Todos se entreolharam e ninguém ousou discordar. Neusberg, o mais
sensato, sugeriu que o Visconde perguntasse diretamente à Christine, mas
antes que se retirassem do quarto, Jonas disse: — Augusburg descobriu que
Christine é herdeira de um Duque francês e fê-la acreditar que eu estava
usando-a para conseguir me apropriar da riqueza dela.
— E você sabia?
— Fiquei sabendo ontem.
— Então você está mesmo tentando se apropriar da riqueza dela...
— Claro que não, imbecil — aproximou-se de punhos cerrados. — Eu não
preciso de dinheiro. Já tenho mais do que o suficiente para cinco gerações e
seus péssimos administradores — asseverou.
Voltando-se para a janela, ele fitou o horizonte, colocando as mãos nos
bolsos.
— Ora, Maurice, só você não sabe que Flaubert sempre ficou abobalhado
perto dela. O homem mal falava quando a moça se aproximava — interveio
Neusberg.
— Augusburg descobriu sobre a herança de Christine quando esteve no
Loire. Por isso, demorou a voltar da França. Você sabia que se não houver
descendente homem, a mulher pode herdar o título naquele país? Pois então,
o velho Duque morreu há pouco mais de três meses e não haviam aberto o
testamento ainda. Quando abriram, há um mês, Flaubert já estava trabalhando
na Fazenda Chasterbrok, ao lado de Christine. Não tem como ele ter sabido
— afirmou Simon.
A lógica sensata de Simon foi o argumento para começar a convencer o
Visconde, que afirmou, coçando a testa e apertando os olhos: — Pois bem,
Augusburg é um homem execrável, de fato, mas ainda é um Duque. Eu vou
conversar com Felicia e com Christine amanhã, mas preciso que você vá
embora. A Viscondessa não pode ser submetida a este tipo de estresse.
Voltou-se para a porta. Jonas o chamou: — Maurice, você poderia
entregar esta rosa para Christine. Eu queria ter dado hoje, mas Augusburg
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interrompeu.
O Visconde anuiu e partiu, deixando Neusberg e os irmãos a sós.
— O que você vai fazer, Flaubert?
— Vou embora. O dono da casa me mandou embora. Então, eu irei.
— Para Londres? A votação da Câmara é no final desta semana. Será que
este escândalo compromete a votação?
— Provavelmente. Mas não há muito o que fazer...
O coche dos Marshall partiu no dia seguinte pela manhã. Flaubert, que
não havia dormido, deixou uma carta para Christine e uma nota para o casal
de Viscondes, desculpando-se quanto aos acontecimentos.

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Capítulo 28

E la se sentia uma idiota. Uma completa, absoluta e


notória idiota, seduzida pelo filho do banqueiro,
flagrada pelo Duque mais detestável do reino,
herdeira de uma tal fortuna de um parente que nunca viu e filha de um
Marquês falido. Não havia dúvida que seria motivo de chacota, novamente,
dentre os membros da alta sociedade.
E ela nem sabia se era isso que realmente a incomodava.
A noite mal dormida só aumentou a sua sensação de vazio e nem mesmo a
rosa branca trazida por Maurice a havia acalentado o coração.
— Flaubert pediu-me que lhe entregasse, Christine. Acho que você
deveria ouvir o que ele tem a dizer.
A frase do Visconde não lhe saía da cabeça, especialmente porque
conhecia bem a opinião do amigo sobre casamento entre pessoas de linhagem
diferente.
Linhagem?
E qual seria, afinal, a linhagem de Christine? De onde havia saído o
familiar na França?
No café da manhã, o Duque de Augusburg foi posicionado em uma mesa
circular longe, bem longe dela. Próximos, apenas Felicia, Maurice, o Conde
Cosito, Ladies Pamela e Julie de Sommè.
Mas Christine não escapou do ataque do Duque, que a cercou no corredor
da ala feminina e encostou-a na parede.
— Senhorita Christine, temos muito o que conversar, não acha? Afinal,
somos ambos Duques e podemos juntar nossas propriedades.
— Agradeço, mas não pretendo me casar — respondeu, empurrando-o
com a mão. — Por favor, preciso ir.
— Sua honra está comprometida, Vossa Graça, e eu posso recuperá-la.
Mesmo se debatendo para sair dos braços de Augusburg, Christine olhou-
o e expressou sua fúria em palavras: — Comprometida? Você me ajudará a
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recuperá-la? Minha honra só está comprometida porque você falou sandices


em um baile cheio de nobres.
— Ora, ora... Eu apenas contei o que vi! E a gente ainda tem tantos
assuntos para colocar em dia. Quero dizer, o beijo ardente que nós trocamos
em Chasterbrok, tenho certeza de que significou muito para a senhorita.
— Por favor, Vossa Graça, me largue — ela lutava para se soltar e sentia
que, a cada movimento, o aperto dele incomodava mais.
— Largue-a, Augusburg — ordenou Anthony Neusberg, que vinha pelo
corredor de braços dados com Lady Pamela.
— Saia daqui, Neusberg. Eu e a senhorita Christine estamos em um
momento íntimo.
— A meu ver, ela quer ir embora. Foi o que eu ouvi. E você, Anthony? —
Perguntou Lady Pamela, que soltou-se de Neusberg e caminhou lentamente
na direção do Duque, apertando as mãos à frente do corpo.
— Lady Pamela, não pretendo machucá-la. Afaste-se. Eu sei que
comprometi Christine, mas assumo a responsabilidade de casar-me com ela.
— É o quê? — Christine perguntou.
— Você viu alguma coisa comprometedora à honra de Christine,
Anthony? — Lady Pamela virou-se, novamente, para Neusberg, com tom
debochado.
— Na verdade, minha querida, a única coisa que eu vi foi a honra do
Duque ser comprometida. Afinal, um homem que cerca uma dama e força
sua presença a ela não é nobre.
— Tenho quase certeza de que a Rainha concorda com você, meu querido.
Assustada, Christine tentava acompanhar o diálogo.
— Por favor, não quero escândalos. Eu só quero ir embora — disse,
finalmente.
— Você pode ir, Christine. Eu e Anthony ainda temos alguns assuntos
com o senhor Duque.
— Não tenho nada a tratar com vocês — disse o homem, alisando o
maldito bigode e saindo de perto.
Assim que ele se afastou, Lady Pamela abraçou Christine.
— Minha querida, você está bem? Ainda bem que viemos por este
corredor... Não é, Anthony?
Finda a refeição, quando todos se preparavam para retornar às casas,
Christine despediu-se com a promessa de retornar em pouco tempo.
— Preciso ir à Londres resolver a questão da fazenda, mas eu volto antes
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desse bebezinho nascer, minha querida.


— Oh, Christine, espere! — Chamou Julie. — Eu poderia ir com você
para Londres? Estou sem acompanhante e, bom, meu coche está com a roda
ruim — falou, apontando para uma carruagem com duas rodas quebradas em
lugares estranhos.
Elas partiram.
Nos primeiros sacolejares da carruagem, Julie passou a carta de Flaubert
para as mãos de Christine.
— Ele me pediu para entregá-la.
— Não quero ler as desculpas dele...
— Eu entendo, mas — ameaçou dizer e calou-se.
Era melhor esperar mais um pouco. E assim fez por algumas horas. Mas
quando se aproximavam da primeira parada para o almoço, Julie começou a
dizer: — Christine, preciso falar.
— Não o defenda, Julie.
— Não farei defesa... Só apresentarei fatos, posso?
Christine apenas suspirou e voltou a olhar para a janela.
— Flaubert não sabia da herança. Simon e o pai só descobriram depois
que...

— Por que está me dizendo isso? — Interrompeu-a, forçando-se a olhar


para Julie, mesmo com os olhos marejados.
— O Duque de Augusburg é uma pessoa ruim, minha cara. Qualquer dia,
quando pudermos conversar, lhe explico o que ele me fez há dois anos, na
nossa primeira temporada. Por ora, preciso muito que você confie em mim.
Flaubert sempre foi apaixonado por você. Sempre.
— E por que ele não me contou sobre a herança quando descobriu?
— Vocês estiveram juntos e a sós para conversar sobre isso?
— Não... Só no jardim e...
— Christine, vou lhe contar uma coisa que me foi confidenciada. Mas é
por uma boa causa. Oh, meu bom Deus! Eu preciso contar. Que Simon não se
aborreça!
— Simon?
— Sim. Christine, por favor... Eu preciso contar, mas quero que você
escute até o final antes de me condenar. Se, depois que eu falar, você não
quiser mais falar comigo, tudo bem. Eu saio e mando um mensageiro chamar
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meu cocheiro. Mas... Oh, meu Senhor, me perdoe!


— Fale logo, criatura!
— Jonas comprou a fazenda e colocou em seu nome. Ele teve que vender
uma das fazendas que tem para saldar sua dívida. Ela já é sua, Christine. Ele
lhe deu.
— Me deu? — Christine perguntou, de olhos arregalados.
— Sim, minha querida. Eu estava com Simon quando ele encontrou o
mensageiro. Bom, nós estávamos indo para a casa do Visconde e paramos na
estalagem e... Oh, meu Deus, o que estou dizendo! Esqueça isso.
— Você e Simon?
Julie ruborizou.
— Por favor, não conte a ninguém. Me custou bastante tempo para apagar
a mácula que Augusburg deixou no meu nome.
— Eu entendo. Claro que não falarei nada...
Christine estava chocada. Seria para isso que fora chamada no banco?
Olhando para a carta nas mãos, decidiu ler: “Christine, eu não sei se você
é herdeira de alguma coisa ou apenas de uma dívida. Eu não sei se vou
poder olhar para você mais uma vez. Eu não sei muitas coisas. Mas carrego
comigo a certeza de que a amo. Perdoe-me por não ter lhe dito isso
pessoalmente — e este é o meu único arrependimento. Lutei contra todos os
meus sentimentos e contra a vontade insana de tê-la só para mim. Eu resisti
o quanto pude e me excedi quando não suportei mais. Por favor, me dê a
chance de explicar...
Uma última vez, deixe-me ouvi-la dizer meu nome.
Estarei no banco até a votação da Lei Bancária. Se você não
me procurar, saberei que não me perdoou e partirei, de vez, da
sua vida.
Mas, por favor, me procure.
Sempre seu,
Jonas”
Ela apertou a carta entre os dedos e Julie percebeu, naquele instante, que
Flaubert ainda teria uma chance de conquistar Christine. Olhando para fora
do coche, lamentou-se. Ela sabia que nunca teria essa mesma chance. Simon
era um homem do mundo.

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Capítulo 29
Londres, setembro de 1816

D esde o baile, Flaubert nunca mais vira Christine. A


barba havia crescido, as olheiras o abatiam e os
brilhantes olhos azul haviam se transformado em
bolhas de um azul oceânico, escuro e sombrio.
— Você tem certeza, Flaubert? — Perguntou o pai.
— Já assinei o documento. A fazenda é dela — respondeu.
— Mas ela agora é herdeira de um Ducado. Ela não precisa mais disso.
— E eu não preciso ter cinco fazendas. Chasterbrok é dela.
Interrompidos pelo secretário, que anunciou a chegada de Christine,
ambos se aprumaram. Diferente do pai, todavia, Jonas ficou de pé.
— Boa tarde — ela disse, sem olhar para ele.
— Christine, eu...
— Cale-se, Jonas. Quero conversar a sós com a senhorita — interrompeu
o senhor Marshall.
— Não, meu pai, eu preciso falar...
— Preciso de alguns minutos a sós com a senhorita. Saia, agora.
Flaubert olhou para ela, que ainda não havia lhe dirigido a palavra e fitava
um papel amassado na mão. Ela não havia ido vê-lo, afinal. Ele suspirou e
deixou a sala.
— Pois bem, senhorita — começou, apontando a cadeira.
— Eu gostaria de falar primeiro — afirmou Christine.
— Não. No meu banco, eu falo.
Ela se assustou com a impertinência — ou grosseria — do velho Marshall.
— Como queira — disse orgulhosa.
Como se dela fosse a decisão.
— Há muitos anos, minha senhora engravidou. Eram gêmeos e um nasceu
15 minutos antes do outro. Tinha olhos azuis claríssimos e uma seriedade
madura que destoava de sua idade. Perito em negociações, sagaz com as
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palavras, inteligente e lutador, se apaixonou por uma menina da nobreza.


— Eu não acho que...
— Cale-se! Eu ainda não terminei. Esse rapaz a admirava de longe, via os
engomadinhos a tirarem para dançar, passou a frequentar o Stonehurt em
horários inadequados aos negócios e a fechar os olhos quando ouvia a voz
dela. Um romântico apatetado que puxou à mãe — falou, coçando as
têmporas. — Incomodado com a situação, adiantei a ida dele para a América
e achei que tinha resolvido o problema. Eu não sabia quem era a tal moça e
pensei que, quando ele voltasse, ela já estaria casada. Me enganei.
Ela havia começado a respirar acelerada. Isso foi antes de ele viajar para a
América?
O homem continuou:
— Eu descobri quem era a moça no dia que coloquei os pés em
Chasterbrok e a vi nas roupas do Marquês. Flaubert, o mais sensato dos dois,
nunca embarcaria em um engodo daqueles. Mas notei que a senhorita havia
reagido à presença dele e quis deixar os acontecimentos por seu próprio
curso. Jonas se hospedou na Flor & Espinho e ficou por lá um bom tempo.
Soube, por Simon, que ele trabalhou o arado na sua fazenda, investiu dinheiro
para novos instrumentos e, então, o golpe de misericórdia na minha sanidade:
comprou a sua maldita fazenda e deu para você.
— Eu não sabia que...
— Não me importo com o que você sabia. Me importo com o que ele fez,
com tudo o que ele fez por você, e com o fato de você ter confiado na palavra
de um Duquezinho ambicioso e mau caráter que armou para cima dele. Meu
filho é um homem íntegro, que não lutou com todas as armas contra um
sentimento impróprio pela filha de um Marquês.
— Mas, senhor Marshall, eu...
— Não terminei, senhorita. — Levantou a mão, interrompendo-a. — A
sua dívida foi quitada — carimbou e assinou um papel, que jogou na frente
dela. — A senhorita é a proprietária de Chasterbrok, herdeira de um Duque
francês mais rico do que eu e livre para fazer o que quiser.
— Obrigada, senhor Marshall, mas eu...
— Uma única pergunta: você o ama?
Ela arregalou os olhos. Direto e frio. Sentado atrás de uma enorme mesa
de cedro com milhões de contratos em cima, o senhor Marshall, dono de
olhos azuis exatamente iguais aos de Jonas, a encarava.
— A pergunta é simples, senhorita: você o ama?
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— Eu-eu... Eu não sei.


— Flaubert vai entrar por aquela porta em pouco tempo. Conheço meus
filhos e sei que ele deve estar cavando um buraco no chão de tanto andar de
um lado para o outro, ansioso para se ajoelhar e pedir perdão por erros que
não cometeu só para vê-la olhar para ele mais uma vez. Eu vou sair, ele entrar
e vocês conversarão a sós. Então, eu quero que a senhorita pense bem na
resposta a essa pergunta. Quando a senhorita sair, eu vou entrar novamente e
perguntar uma única coisa a Flaubert. Dependendo da resposta dele, vou
enviá-lo para a América novamente, para gerir a filial do Marshall & Filhos.
— Eu-eu não sei o que responder, senhor Marshall.
— Pois então, pense — disse, saindo da sala e mandando o filho entrar.
Pensar em quê?
Christine sabia a resposta, cada pedacinho de seu corpo gritava a resposta.
Há quatro dias ela não o via e foram os dias mais longos de sua vida. Ela
quis, com todas as forças, lutar para esquecê-lo. Quis acreditar nas palavras
da carta. Quis duvidar. E ela duvidava até o momento em que o viu no banco.
Naquele momento, percebendo a tristeza dele, ela soube que não
conseguiria vencer a batalha contra seus sentimentos.
Nunca.
Ela o amava. Amava ardorosamente.
E ele tremia como um bambu no vento quando entrou na sala.
— Christine? Eu queria te pedir desculpas por...
Não deu tempo de terminar. Christine se jogou nos braços dele e o beijou
ardorosamente, abraçando-o com força e derramando lágrimas insistentes de
alívio e felicidade. Quando se afastou, disse, ainda próxima a ele: — Não me
peça desculpas. Só me ame..
— Eu amo, Christine. Eu sempre amei. Eu devia ter falado a verdade e...
Ela o beijou novamente.
— Eu tinha que ter contado que...
Mais um beijo.
— Eu queria te perguntar se...
E assim foi. Cada frase que ele começava, ela terminava com um beijo.
Muito tempo depois, o velho Marshall bateu à porta.
— E então, meu filho? Ela aceitou?
— Aceitei o quê?
— Eu não pedi, meu pai.
— Ora, ora... Vai enrolar agora? Pergunte logo antes que ela mude de
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ideia novamente!
Jonas se ajoelhou, segurou a mão de Christine e, finalmente, perguntou:
— Christine Chasterbrok, você me daria a honra de ser minha esposa?
— Oh! — Ela disse, levando a outra mão à boca e abanando os olhos
frivolamente. — Sim! Sim! Sim!
De pé, ele a beijou.
— Eu vou comprar o anel ainda hoje, Christine. Eu-eu achei que você não
vinha. Quero dizer, a Lei Bancária está em votação e...
— Aqui, rapaz — disse o pai, oferecendo-lhe um anel de safiras. — Eu
ando com esse anel no bolso desde que me convenci de que você voltaria do
baile da Viscondessa já noivo.
Naquela mesma noite, um jantar na casa dos Marshall celebrou o noivado.
O noivado e o nascimento do futuro Visconde de Linderpool, anunciado no
meio da sessão de votação da Lei Bancária, que foi interrompida naquele
momento.
No dia seguinte, Christine Chasterbrok, a Duquesa de Bordeaux, seguiu
em um coche novo para a casa da amiga, onde passaria o próximo mês
ajudando com o neném.
Jonas, entretanto, tomou outro rumo: a Fazenda Chasterbrok. Ainda não
tinha resolvido tudo por lá.

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Felizes para sempre...

Mansão Chasterbrok, dezembro de 1816.

O s convites foram enviados a todas as pessoas que


realmente importavam para o casal. Infelizmente,
alguns não puderam comparecer e, em um grupo de
menos de 30 pessoas, toda ausência foi sentida.
Christine vestia o longo nupcial mais caro que Londres já vira. Tudo o que
a moça quis, ela pôde comprar. Foram muitas e muitas provas até que a peça
ficasse a gosto e ela fez questão de colocar alguns detalhes que importariam
apenas a ela e a Jonas.
De mangas bufantes como bolos de algodão, decote profundo enfeitado
por bordados delicados em forma de rosas brancas, o colar e os brincos que
Flaubert a havia presenteado alguns meses antes e a tiara da mãe, ela era a
noiva mais estonteante que ele já havia visto.
Detalhista, Jonas repetiu para si mesmo. E tentou novamente convencer-
se de que era esta a qualidade que o fazia reparar na exata quantidade de
rosas que estavam bordadas no decote de Christine. Eram quatro. Uma para
cada flor que ele deixara anonimamente para ela.
Certo, a última não foi tão anônima assim. Mas não importava.
Ela entrou na Igreja de Chasterbrok dando passos ritmados de cinco
segundos. Cada segundo era o equivalente a uma hora, uma longa hora que
acompanhava o ribombar do coração dele. Cada pausa era a suspensão de
uma batida e a ansiedade pela próxima vez que o pé dela tocaria o chão.
Que Igreja enorme!
Sim, ela nunca chegava. Mas não importava. Ele havia esperado quase
três anos e esperaria outros mil para tê-la, finalmente sua, sob os lençóis. E
sobre eles.
O sorriso de Christine o havia hipnotizado. Flaubert nem piscava. E os
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olhos dela estavam tão cheios de lágrimas que a emoção alcançava a todos os
presentes. Ela estava muito feliz.
Quando as mãos do casal se tocaram, o órgão silenciou. Nada era ouvido
em todo o templo, exceto, talvez, pelo barulho surdo de madeira contra
madeira atrás dos bancos, que fez todos se virarem e se espantarem ao ver o
Marquês de Chasterbrok, de pé, apoiado em uma bengala e amparado por
Aaron e César.
Era o presente de casamento de Flaubert para Christine. Durante todo o
mês em que ela esteve em Londres organizando, com Julie, o próprio
casamento, o rapaz esteve na fazenda tentando de tudo para o futuro sogro
reagir.
— Papai? — Ela perguntou incrédula, apertando a mão de Jonas.
O velho homem não respondeu e a Igreja manteve-se em silêncio, atenta
aos passos cambaleantes do homem, que foi acomodado no primeiro banco,
ao lado dos pais de Flaubert.
Christine olhou para Jonas, que sorriu ternamente para ela e apontou com
a cabeça para o Marquês. Ela entendeu. Eles se entendiam com poucos
gestos.
Ela caminhou até o pai, segurou-lhe a mão e deu um beijo reverencioso.
Quando levantou os olhos, uma lágrima descia pela bochecha dele. Ela secou,
com a luva, abraçou-o com força e sentiu o retorno do carinho, o momento
delicado em que ele encostava a própria cabeça na dela.
— Obrigado — o Marquês balbuciou. Se para Christine ou para Jonas,
ninguém descobriu ainda, mas ambos sentiram-se agraciados pela primeira
palavra do homem.
De volta ao altar, Christine depositou um beijo casto na boca de Flaubert,
que sorriu enquanto todos ecoavam um suspiro tímido.
O padre, um pouco surpreso com o momento indecoroso, pigarreou e
prosseguiu com o ritual. De pé, ao lado de Jonas, estava Simon, que distraiu-
se por toda a cerimônia com o olhar fugidio de Julie, parada ao lado de
Christine.
O que diabos estava havendo?
Por que ela não olhava para ele?
A celebração, nos jardins da Mansão, contou com a presença de
arrendatários, Viscondes, Condes, Duques e outros tantos conhecidos, que
fizeram questão de conhecer a nova fazenda.
Enquanto dançava com a esposa, Jonas cochichou indecências no ouvido
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dela, coisas das quais ela nunca havia ouvido falar nem tampouco imaginar.
— E eu quero fazer isso tudo com você — sussurrou, tão próximo do
ouvido dela que as palavras ecoaram até a parte mais íntima dela.
— Felicia me disse que o que fizemos aqui na fazenda naquele dia, bom,
como eu vou dizer... — Ela corou.
— Sou seu marido e acabei de falar muita coisa para você. Pode dizer
qualquer coisa...
— Eu ainda sou pura, não é?
Ele sorriu. Depois riu. Depois gargalhou e a puxou para perto, beijando
demoradamente a testa dela antes de dizer.
— Sim, meu amor. Você é. — Beijou-lhe suavemente a ponta do nariz. —
Muito... Mas vamos resolver isso ainda hoje.
— Oh! Vamos?
Ela ruborizou.
— Jonas?
— Sim?
— Como é que se faz amor?
Ele suspirou. Havia mil formas de fazer amor e ele tinha pensado em
outras tantas para tentar com ela. O assunto deixou as calças de Flaubert
ainda mais incômodas. Há meses ele queria beijar Christine em lugares
impróprios e tomá-la finalmente para si, mas achou que deveria esperar um
pouco mais.
É certo que a distância que mantiveram um do outro facilitou um pouco a
espera e aumentou bastante a ansiedade. O coche de Christine, com o seu
próprio brasão ducal, estava enfeitado e a ânsia de Flaubert em responder à
pergunta dela foi tanta que ele sequer dançou com a própria mãe.
Ao fim da cerimônia, depois que o irmão e a esposa se retiraram, Simon
convidou Julie para um passeio até a colina. Enquanto caminhavam, fez
questão de perguntar: — Julie, o que está havendo?
— Estou grávida.

Fim.

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