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A Praia

Foi num piscar de olhos, a claridade inundou o espaço, o vento


aqueceu milhares de abraços, o sal carregado na brisa mostrou a
transparência do mar, uma algazarra de maritacas chamando a
atenção para os amigos dividindo um latão, do outro lado jogavam
bola e na frente um reggae cheio de marola.

– Aff, uma praia destas e você olhando pra esse celular Marcelo! –
ela diz sorrindo meio irônica, sentando-se ao seu lado na canga
estendida sobre a areia.

– Calma Carla, só tava mostrando pro pessoal aqui no zoom...–


Marcelo ergue os olhos da tela quadriculada de rostos ainda
enclausurados – CARACA! Tá lindo demais! Nunca vi esse mar tão
azul! – disse num impulso entre o espanto e a admiração virando o
aparelho na tentativa de compartilhar o visual – Gente! Isso sempre
foi assim e a gente nunca notou?

– Cara, não viaja! Está lindo assim porque as pessoas pararam


de poluir, todo esse tempo sem barcos nem multidões, se
fossemos um povo esperto manteríamos assim, mas….

– Será?

Nas reticências de um nunca mais ou exclamações de um pra


sempre, na indiferença ou percepção, um ponto final é
necessário. E para que se inicie outra história, uma interrogação.

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Ella
Ela entrou na sala com a cabeça ainda quente das coisas do dia.
Demorava um tempinho pra descomprimir.
Era o tempo exato de ir até o bar, preparar o whisky com muito
gelo, sentar-se na poltrona da varanda, olhar pro mar e ver a noite
nascer...
Sempre fora fascinada pela Lua, desde criança, aquela imagem
redonda, brilhante, flutuando no céu. A Lua criava nela um
sentimento bom, quente, feliz.
A sua segunda paixão era o Mar, mas com ele a relação era um
pouco diferente, a final eles se viram pouco ao longo da vida. Moça
da cidade, cosmopolita, ela sempre teve pouco tempo pra ir até ele.
Só agora com a estabilidade conquistada que tinha realizado o
sonho de morar ali, de frente para a sua infinitude, e ela aproveitava
cada segundo que podia dessa vista.
Desde então tem sido praticamente um ritual, sorver a bebida
sentada na varanda, a princípio com os olhos fechados só sentindo
a maresia na brisa... Abrindo os olhos para ver o céu avermelhado
dando lugar ao azul escurecido do horizonte, algumas estrelas já
vindo, escutando o quebrar das ondas enquanto a noite sobe.
Sentindo o vento refrescante nas noites quentes ou enrolada num
edredom tremendo nas noites geladas, que ela adorava.
Olhar o mar, sentir seu cheiro, às vezes só ouvindo o silêncio.
Outras ouvindo música, Eagles, Heart , Deep Purple ou Pink Floyd,
dependia do tempo e do humor.
Enquanto espera a Lua nascer imagens lhe vem à cabeça, e ela vai
viajando nas situações, ora revividas, ora imaginadas, nessa hora
tudo acontece naquela cabeça insana, é sua técnica, é o que
mantém a sanidade, a criatividade e a inspiração.
Foram tantas histórias, aventuras quentes, momentos bons ou, às
vezes, tristes, que se as tivesse registrado poderia ter levado a vida
como escritora.
E assim, aos goles, o peso do dia vai saindo de seus ombros dando
lugar ao brilho da Lua e ao barulho do mar...

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Transcende
Já faz um tempo, resolveu dedicar-se ao ramo de atendimento e
entretenimento, como ela gostava de se referir eufemisticamente ao
seu trabalho, era puta. Por atendimentos, define os de todos os
tipos, sexual, psicológico, por vezes pedagógicos. Outras, a
maioria, só proporcionava momentos agradáveis aos que queriam
se divertir e precisavam de companhia.
E fazia isso com maestria, se pudesse traçar um paralelo, ela
gostava de se pensar como uma gueixa moderna. Inclusive essa
classe de mulheres e suas histórias atraíam muito sua admiração.
Lera livros, vira filmes, ficava fascinada com as vidas delas, presas
entre o glamour e a escravidão. Todas que conhecera eram
mulheres fortes e todas tiveram vidas horríveis, principalmente
depois da guerra quando a tradição se apagou. Algumas, poucas
conseguiam compraram a própria liberdade e a garantia de uma
velhice tranquila a custa de muito sofrimento.
Mulheres, tiradas de suas infâncias, vendidas, escravisadas,
obrigadas a uma rotina pesada dividida entre a educação, o
treinamento nas finas artes da dança e música, e o trabalho
doméstico. Cresciam entre a humilhação constante e um bizarro
jogo de poder, dinheiro e sexo.
Eram mulheres que, na sociedade fechada e machista do Japão pré
– guerra tinham, não só permissão como o dever de beber, rir, e
conversar com homens sobre todos os assuntos, entretê-los e fazê-
los esquecer que eram executivos sérios e cheios de regras sociais
a cumprir. Homens ricos, que compravam isso.
O que a fascinava era a ambiguidade desta figura, com um
potencial de idealização romântica que mulheres lindas, cheias de
poderes escusos e muito educadas vagando no submundo de uma
cultura opressora trasem e que, ao mesmo tempo, eram pessoas
fragilizadas, torturadas e escravizadas, presas numa vida onde não
havia beleza.
Bárbara, tinha nome de cigana, sangue italiano, fé de bruxa, e era
mineira, guerreira, filha de ogum com Iansã, como cantava Clara
Nunes. Nasceu sob um signo de fogo, na adolescência largou a

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vidinha de interior da “família tradicional brasileira” e foi para a
cidade grande, São Paulo.
Foi vendedora, secretária, modelo, recepcionista, garçonete,
cozinheira, fez de um tudo, estudou, leu, aprendeu, se envolveu, se
prendeu, cansou disso tudo, decidiu que queria uma vida mais leve,
prazerosa, com mais diversão e menos stress.
Uma amiga ligou, uma proposta de trabalho, grana boa
– Mas qual é o trabalho?
– É só ir com os caras nesse jantar, tem que saber conversar e falar
inglês, é você amiga!
– Mas...
– Não tem mas, pensa na grana, é um jantar de negócios, os caras
nos pegam, a gente janta, fala uns lances inteligentões que eu sei
que você manja, e pronto! Voltamos pra casa com a grana do mês!
Esses gringos vão ficar até mês que vem, se curtirem a gente, tâmo
feita amiga!
– Ah tá, decerto que é assim tudo lindo e fácil né? Claro que eles
vão querer transar né? E aí? Tem que prestar o serviço completo?
E se eles forem desses doidos que espancam e jogam a gente no
Tietê?
– Calma mana, para de paranóia! Deixa eu te explicar. Claro que
tudo isso aí que você tá pensando existe, mas esse trabalho vem
de uma “agência”, é coisa garantida mesmo. Quanto ao pacote
completo, sim eles podem querer e é claro que aumenta nosso
cachê, mas o mais importante é que nós podemos decidir por não
querer fazer o trabalho sexual, tipo assim, se você não for com a
cara do sujeito, saca?
– hum… Tá … vou pensar e te falo depois.
Ponderou mais um pouco, mas pensou na sua conta bancária
negativa e aceitou. De lá pra cá, quase dez anos nessa lida, foram
muitas aventuras, alguns maus bocados, umas roubadas
homéricas, umas trepadas épicas, algumas paixões e poucos
amores. Estabeleceu-se e criou certas regras: não viajava a
trabalho, sempre podia recusar um cliente sem precisar
explicações, em caso de envolvimento emocional conversariam de
forma clara pra que não houvessem danos.

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Não é uma mulher de jogos, raríssimas vezes abriu exceções para
essas regras, e poucas se deu muito mal por quebrá-las, meter os
pés pelas mãos e confundir tudo, mas, quem nunca não é mesmo?
Este tinha sido um ano difícil, precisava de férias, descansar,
recarregar, aproveitou a calmaria de início de dezembro e resolveu
dar uma escapada.
Uma série de coincidências a levaram a um apartamentinho
escondido no Leme, uma semana de paz e sossego nesse ano
cheio de altos e baixos, curvas pra todos os lados, uma montanha-
russa que quase escapava da metáfora tamanha era sua
literalidade no descrever seus momentos recentes.
O Rio foi palco de muitas lembranças agradáveis, pensou ela
enquanto dava um gole de cerveja, sentada só num canto daquele
quiosque vazio. O funk tocando de fundo, a brisa forte ventando, o
bom e velho clima divertido dessa cidade. Essa malemolência
goxxtosa, esse sotaque cantado na malandragem.
Chega uma mensagem, ela olha e sorri. Uma enxurrada de
emoções a percorrem nessa fração de segundos. Um passado que,
mesmo sendo muito presente em sua vida, estava no passado há
alguns anos.
“Tá aqui vadia? Me fala onde que vou te ver agora.”
Ela ia mesmo falar com ele, inclusive na escolha do destino das
férias tinha levado em consideração o fato de ele morar na cidade.
Ele se antecipou, sempre ele, parecia que sentia seu cheiro.
Chegava a ser curiosa a ligação deles, ela gostava de chamar de
paixonite crônica, era irresistível, não importava o tempo e os
caminhos da vida, eles sempre davam um jeito de se ver,
mantinham contato, eram amigos, se ela acreditasse nessa
bobagem romântica patriarcal poderia dizer que era o amor da sua
vida, mas ela gostava de pensar num sentido mais transcendental,
encontros legais que temos com outras almas com as quais temos
muita afinidade, identificação e carinho e que podem se repetir
muitas vezes se nos reconhecermos ao longo das existências.
Raul, um carioca todo trabalhado na safadeza, sensual, charmoso,
gostoso e cheio de mistérios. Conheceram-se em São Paulo, numa
noite enlouquecida num dos inferninhos da Nestor Pestana, numa
época de vacas muito magras, se apaixonaram louca e
tórridamente, se apoiaram, se ergueram, tempos difíceis e

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divertidos, seguiram seus rumos por diferentes estradas, sempre se
vendo, sempre dando aquele jeitinho.
Ela estava parada em pé junto à janela, fumava contemplando a
noite, olhou o relógio, suspirou – sempre atrasado – pensou em um
meio sorriso.
Ele abriu a porta em silêncio, olhou o ambiente em busca dela “ela
deve estar brava, demorei pra porra”, pensou, viu o vulto na janela
olhando pra fora, o quarto fracamente iluminado por um pequeno
abajur no canto, um blues tocando baixo na TV, a luz da cidade
iluminava seus contornos, “gostosa igual”, era o pensamento
quando ele tropeçou num sapato jogado no caminho, “droga,
caralho, ela ouviu”, olhou do chão pra ela rápido, queria ver seu
primeiro olhar, ela se virou, seu olhar era, era seu olhar, sorrindo,
ela veio em sua direção com um beijo, quente, suave, demorado, se
envolveram num abraço, muita coisa pra falar, muita coisa pra
sentir, muito tesão acumulado, andaram atracados os poucos
passos até a cama, as roupas se espalhando, respiração arfante,
seus corpos colados, transpirando, eles completamente entregues
ao desejo, bocas, mãos, cheiros, lambidas, ah... ninguém era como
ele nesse quesito, e a voz? Aquele sotaque que a fazia tremer,
aquela rouquidão sexy, sussurrada, chegou bem perto da orelha,
roçando a boca em sua nuca, a respiração forte, deu um cheiro no
pé do ouvido que a arrepiou inteira
– E aê sua goxxtosa, dixx pá mim, dixx pro seu goxtoso, tá cheia de
saudade? Tá pronta cachorra?
– Eu to sempre pronta pra você delícia – disse ela virando por cima
dele, aquele peitoral definido, abdômen saradinho, moreno de sol
com a marca do sungão que o deixava ainda mais gostoso, como
se isso fosse possível (!?)
– Tô com muita saudade de você gato, não dá pra gente ficar assim
tanto tempo sem se ver...
Ela deixou seu corpo cair sobre o dele, ele a envolvia com os
braços fortes, o diálogo cada vez mais entrecortado por gemidos, o
suor escorria entre seus corpos, tremendo, pulsando em gozo.
Ele a encaixou pelas costas, as mãos suaves a puxando, grudando
firme ao seu corpo, forte, compassado, intenso, eles saiam de si,
eram como dizia na música do Alceu, como dois animais, “Fudendo
feito bixo” pra usar uma expressão dele.

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Se esparramaram na cama exaustos.
– Nossa! – Raul disse com as mãos sobre o rosto minado de suor –
forte isso...
Ela respirou profundamente.
– Sempre é... – e se esticou por cima dele para alcançar um cigarro
na mesinha.
– Tô numa ressaca, enfiei meu pé na jaca ontem, tava boladasso
com umas paradas aí, inclusive nem posso ficar muito tempo –
levantou, esvaziou meia garrafa de água e olhou o celular.
Ela o observava divertidamente enquanto fumava, meio
estabanado, enrolado, querendo falar, mas ao mesmo tempo sem
saber o que dizer.
– Desculpa Bá – ele disse olhando com aquele jeito de criança que
fez travessura – é que... cê sabe... tenho que ir, mas eu volto, essa
semana consigo um dia com mais folga e comigo mais inteiro que
hoje tô estragadasso – bebeu o resto da água que tinha na garrafa,
apalpou os bolsos – Ó só, será que dava pra você me arrumar
algum pro taxi? Acabei de ver que to sem nada aqui, vim na pressa,
saca? – deu um sorrisinho maroto, e ela se lembrou de uma
piadinha que ele fez num de seus primeiros encontros, onde indo
embora pediu dois reais pra inteirar o do cigarro, ela deu e ele:
“nunca fiz um programa tão barato”. Riu na ocasião e agora.
– Eu sei Raul, sou de boa, cê sabe... – ela disse passando os
braços pelo seu pescoço – é sempre bom te ver, mesmo sendo
rapidinho – o beijou, pegou uma grana na carteira, e o entregou –
Ainda bem que eu tenho desconto de cliente vip agora que você tá
caro. - Eles riram, outro beijo, ele se foi.
Ela aumentou o som, e foi dançando nua até a geladeira, pegou
uma cerveja.
“como é bom isso! Essa sensação de ser um ser fluido, leve,
divertido, gostoso...”
Ela pensou enquanto ria e rodopiava pela sala, cantava como se
Aretha fosse, cheia de respeito, e entre goles, reboladas e tragos,
olhou-se no espelho, mandou um beijinho e uma piscada e
continuou dançando.

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Transe

Não podia. Aquele resultado não podia ser verdadeiro. Ela


continuava olhando aquele pedaço de papel, atônita, sabendo que
era verdade, ela já sabia o resultado bem antes de fazer o exame,
só que aquilo ali era a confirmação do inacreditável...

O filme da sua vida, ou melhor, do fim da sua vida sendo projetado


naquele simples POSITIVO. Ela simplesmente não podia ser mãe
naquele momento, ou melhor, não queria ser mãe nunca!
Nunca quis.
Essa era a única certeza além da morte que tinha desde que se
entendeu por gente.
Alguma coisa tinha que ser feita imediatamente, decisões teriam
que ser tomadas rápido, mas ela não conseguia nem mesmo parar
de olhar aquelas letrinhas... Parecia que estava mesmo olhando
para sua sentença. O mundo como conhecia, quer dizer, que estava
começando a conhecer estava se tornando outro com o passar dos
minutos. O relógio estava rindo dela naquele momento, ela podia
jurar que ouvira uma gargalhada.

O pânico inicial passava, ela precisava sair daquele hospital, um


milhão de coisas passando pela sua cabeça, tinha que falar com
aquele filho da puta e já tinha a certeza de que daquele mato não
sairia nada.

Muitas convicções vão parar no lixo com uma situação dessas, é


nessa hora de verdade que você vai pensar naquele discurso antes
tido como fundamental, e ver que é hipócrita, tendencioso e
ignorante. A vida a ser salva era a sua, no caso, e nisto só você tem
o direito de decidir, opinar e realizar. Dizia para si com vozes que
ecoavam em sua cabeça.

Olhando pela janela do ônibus, não era o trânsito enlouquecido da


cidade que ela via, sua visão estava longe, já tentava visualizar as
opções de futuro prováveis. Tudo era muito difícil...

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A vida ia seguindo, só que para ela minutos eram meses e dias
poderiam ser segundos. A confusão e a insensatez, combinadas
com muito azar causaram nela um trauma que anos mais tarde
ainda seria difícil relembrar o episódio, cenas soltas que lhe
voltavam à mente de tempos em tempos sempre tirando seu
balanço.

Tudo era bizarro, aterrador e insolúvel. A ida ao médico, a amiga


que apareceu ali, segurou a barra e nunca mais fez parte de sua
vida, a falta de grana, o desespero, o cotidiano disfarçado.

A solução veio então espontânea, no meio da noite por meio de


cólicas fortíssimas seguidas de hemorragia, que usou como
disfarce, contando que era sua menstruação, que durou dias. O
mais difícil foi enfrentar tudo em segredo, não tinha com quem falar,
suas falas sempre seriam usadas contra ela própria, condenada por
uma sociedade que entendia seu corpo, seu útero como
propriedade de um estado omisso, patriarcal, cruel.

Tudo acabou bem, sem contravenções feitas, com a saúde perfeita.

Sobraram novas convicções, novas lutas e ideologias. Sobrou o


entendimento da vida vista do ângulo que realmente interessa, o
ângulo de quem sofre e é julgada, e que é muito pouco pensado
nesta sociedade que infelizmente ainda é machista e
preconceituosa.

Sobrou uma mulher com a vida inteira pela frente, que, mesmo
nesta ficção com final feliz, conseguiu entender o privilégio que teve
comparando sua situação com a de milhares de outras mulheres
que morrem diariamente.
Uma mulher que juntou seus pedaços e teve a possibilidade de
reconstruir-se, transformando a dor em caminho.

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Sobre a raiva e outros instintos
Saí, bati a porta atrás de mim e saí.
No bolso só uns trocados, meu caderno, um maço de cigarros e a
chave. Precisava andar, deixar passar essa cegueira, essa fumaça
que me turva os sentidos, olhar pro nada, gastar energia, andar.
Sem rumo, sem horizonte, andar, andar, um cigarro inteiro se foi,
alguns quilômetros, o suor já minava na testa, outro cigarro, o véu
insano começa a sair da vista.
Olhei em volta, a praça, procurei uma sombra pra sentar, sentir
esse vento de chuva que chegaria logo, as nuvens negras agora
pareciam sair da minha cabeça e povoar o céu, vento forte levanta
poeira, a terra castanha como seus olhos...
Um dia que começou tranquilo, um domingo qualquer, fazia pouco
tínhamos nos conhecido, fazia pouco dividíamos a cama, a casa,
um pouco da vida.
Era pra ter sido só uma transa, era pra ter sido só um caso, era pra
ter sido uma louca aventura, virou uma coisa meio assim freelancer,
sem acordo, sem conversar sobre, só um tesão louco, uma amizade
sólida, a necessidade, e tudo foi se desenrolando suave, como
aquela manhã de domingo que você saiu prevendo que voltaria só
no dia seguinte.
À tarde, voltei do almoço, o moço, outro, com quem ainda tinha um
casinho, avisa que vem visitar, prognósticos de uma noite
casualmente agradável. Conversas, cervejas, alguém tentando abrir
a porta por fora, ouço barulho, “droga! O Carlos voltou antes”,
pensei.
Ele desceu daquele ônibus como quem chega do inferno, aquele
dia precisava acabar, queria chegar, dar um cheiro nela, relaxar,
esquecer tudo aquilo.
Andava rápido, os metros pareciam maiores, a cabeça zunindo
como num frisson de loló, queria chegar, subiu pelo elevador
impaciente, a chave travada, “ela pelo menos está em casa”,
pensou, não queria ficar sozinho.
... Acho que ali ele percebeu o quão sem rumo estava, a porta
trancada por dentro, aberta com um sorriso que o bloqueava na
entrada.
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_ Tenho visita... – o sorriso amarelo foi morrendo no encontro com
seus olhos
O sossego temporário, o porto ainda que pouco seguro, de novo o
expulsava.
Tinha que sair dali, correr, sem rumo nem chão, apoio ou perdão,
seus medos, todos, o perseguindo e ele fraco demais pra resistir,
sem saber aonde ir, queria sumir...
_ você não faz ideia do que eu passei hoje, tudo o que eu tive que
ouvir... – a fala que sumia se escondendo na sombra que tomava
seus olhos, eu via decepção e desamparo ali estampados.
Foi esse olhar, um flash de segundos, e tudo o que estava ao meu
redor sumiu, o cara gostoso me esperando no sofá sumiu junto com
a paixãozinha que senti por ele um dia, um flash de segundos, um
reflexo no seu olho, ali do outro lado da porta, claramente o lado
errado, segundos seculares me evidenciando o óbvio, eu já
desconfiava sem querer admitir, mas agora não tinha mais jeito de
negar, um flash de segundos, e eu descobri que te amava.
A percepção me atingiu como um soco no estômago, logo eu, a
Malu, tão segura, tão madura, tão consciente, de repente sugada
num torvelinho emocional, precisando ser racional, como quem
saca um drama shakespeariano no contexto de um folhetim barato.
Muito com que lidar, pouco tempo, tentando manter a calma, você
saindo desarvorado, corredor, elevador, saguão, e eu atrás
tentando em vão te acalmar.
_Espera, ele vai embora, não tinha como adivinhar que você vinha
hoje...
_Preciso andar, me deixa...
Empurrou meu braço e saiu portão afora e eu, eu fiquei presa, de
meias, do lado de fora do prédio.
A vida, ela sempre dá um jeito de tirar uma com a minha cara.
...Preciso pensar claro, despachei o bofe, vou atrás de você, meu
coração apertado de perceber seu olhar, não queria ver você se
sentir assim, nunca, um medo insano que me gela a espinha, me
aprisionando por instantes na espiral da posse, da perda, um
momento de quase pânico, a insegurança do terreno insólito, tinha
muito que processar enquanto andava pelas ruas escuras à sua

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procura, meu mundo girando, calma, preciso ficar calma, preciso
ficar calma...
_Senta aqui no sofá, vou te fazer um chá.
_Vou embora amanhã – falou num murmúrio me observando pelas
beiradas dos olhos.
_tsc, não precisa ser assim, você sabe, te convidei pra ficar aqui e
pra ficar o tempo que precisar. Calma, não é hora de decidir isso,
toma o chá, é de frutas vermelhas, vai te acalmar.
_Eu te atrapalho aqui, a casa é sua pra receber quem quiser, vou
procurar outro lugar.
_Carlos, tudo isso que você tá falando é verdade, mas antes de
tudo eu te respeito, te respeito muito mesmo, e estou bastante
chateada com essa confusão toda...
As lágrimas caiam discretas do canto dos seus olhos que mal me
olhavam, o nó que me apertava a garganta, quero te tocar, não
consigo, eu queria te entender melhor, você é uma muralha
intransponível, eu costurava restos, fiapos, percebendo aos poucos
em você receios que vejo também em mim.
_Relaxa, solta o que te machuca, não precisa falar, só deixa sair –
compartilhávamos um choro sentido, minha mão no seu peito
sentindo sua angústia, o abraço em conchinha tentando ser um
alento.
_Eu sinto muita raiva... – foi sua ultima frase antes do sono, saiu
num sussurro fino, cheio de dor
Gotas grossas anunciando a tempestade me lembram de correr
para um abrigo, saio do devaneio pensando justamente nisso: a
raiva.
A explosão, a caminhada furiosa, a mente turva, confusão, uma
lembrança perdida no tempo.
Corro, me abrigo sob a marquise do teatro ainda fechado, as
arvores densas na praça, a chuva forte fustigando seus caules
cascudos, a cortina densa de água que corre na enxurrada levando
tudo, penso nos mitos primordiais, lendas antigas, parábolas do
cotidiano, imagens pictóricas representando instintos, busco
associações, os deuses que dançam no fogo, fadas e faunos
selvagens se regalando no mundo dos prazeres, prazeres que

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assustam incautos, o sentimento básico, que domina e explode a
razão, a imagem mística travestida, seja de medo, dor, paixão,
tesão, amor, ou raiva, escurecendo a visão como forma de proteção
como a translucides agradável de óculos escuros em dias de sol.
Queria estar de óculos escuros agora, mas não cabem óculos
escuros sob a chuva torrencial, assim como não cabia nossa
brincadeira de casinha num enredo com personagens tão
complexos.
Fui navegar no mar pirata, aquele de roteiro simples, escolhi
mergulhar, imergir, gostei do mar profundo e revolto, gostei de
passar pela turbulência e aprender a nadar até a praia, cheguei pra
pisar na terra firme.
Enxergar sem máscara, sem véu, ou melhor, olhar sob o véu
figurado pra ver a magia do instinto em sua ação crua.
É curioso perceber me perdendo nesses pensamentos aleatórios,
um acesso de raiva que me levou pro passado, a tempestade que
me trouxe de volta e me largou aqui, sentada sob a marquise,
escrevendo memórias e divagações num caderninho surrado,
esperando a chuva passar.

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Essa noite eu sonhei com você
Essa noite eu sonhei com você, sonhei comigo, onde tudo era
branco, e me refletia no nada, no meu fundo, onde te guardei, no
centro, uma redoma de vidro encapsulando uma rosa. Havia um
martelo na sua mão, que era a minha mão, que precisa quebrar o
vidro, libertar a flor, pra ela poder morrer. Quebrou, murchou, secou,
virou cinza, voou pelo universo.
O vidro que quebra é a pena maior pela tentativa de aprisionar. Os
cacos que dilaceram nossos pedaços são um quebra-cabeça de
memórias, o medo, profundo que se esconde por trás do desejo, de
gritar, de quebrar, de soltar ao vento tudo o que nos mata aos
poucos, aquilo que usamos como castigo, a punição que
merecemos por não ser aquilo que projetamos nem aquilo que
projetaram na nossa vida, aquilo que nos torna o que rejeitamos.
O pó que voa liberto no vento é a essência que se renova, é
molécula nova, pra fundir novos elementos, purificar outras almas,
nossas almas, como semente no redemoinho, planta em broto, é
húmus que aduba a terra viva, que gera.
A luz que explode no fim é o começo, o clarão que cega e joga na
escuridão do duelo entre o velho e o novo, aquele que morre
matando o algoz, aquele que sufoca na busca do ar, te manda
voltar ao centro, onde somos apenas átomos que se encontram
numa nova história, lava quente que jorra com fúria, destrói, esfria,
procria.
O martelo que quebra o círculo vicioso, o conforto que espera no
final conhecido, repete a forma, recria o contexto, onde me vejo no
espelho, e te reconheço na imagem, sem forças pra quebrar,
deixando por eras tudo no mesmo.
A heroína que levanta o martelo, que ruge no vento, e estraçalha no
trovão, é a menina amedrontada de toda a história mal-contada.
Pensativa, intrigada nas imagens que na lembrança se
transformavam em análise. Paisagens, a simbologia inconsciente,
mensagens subliminares, desenhos de um possível destino.
Percebo num instante que sou poeira espalhada no vácuo, de longe
seus olhos, meus olhos, me veem rodopiando no redemoinho
gravitacional, bailando, feito gaivotas em revoada, cardume no mar,
dançando, mirando o horizonte de eventos, mergulhando no buraco

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negro em busca de conhecer as sombras, as minhas, as suas, as
outras.
Te vejo, difuso, reflexo no espelho d’água, fotografia borrada,
ondulada, distorcida pelas gotas da chuva, ou do choro. Sua mão
me pede companhia, me leva na fala tranqüila, narra seus
temporais. O que te atormenta e me inunda, comove e apavora,
aproxima e separa, deságua em torvelinho, escorre pelo ralo.
Me vejo, confusa, em meio à névoa, andando em busca de pistas,
intrigada com falsos enigmas, imagem curiosa, te olho embriagada,
no topo desta montanha nevada, de ar rarefeito, completando meus
pulmões com gelo, pedras batendo no vidro, gota na borda do copo,
os olhos cheios de duvida, lágrima correndo pro queixo.
Em meio ao branco, te encontrei no escuro. No meu vazio, te
encontrei aprisionado, me vi cansada. Enquanto você tateava
procurando os óculos, me sentei a fiar o tempo. À beira do fogo,
perto da janela, confortável e quente, me sentindo carente,
querendo o frio lá de fora, num instinto insano de admirar a dor,
mascarando-a de vida. Arrumando desculpas para mim mesma,
forjando-me indefesa, em busca da redenção imaginária,
tendências num recorrente pesadelo.
Seu peito inflado, irado, jato de fogo expirado incendeia, a casa
arde ao meu entorno e me sinto satisfeita, gargalhando na boca do
inferno, rodando na ciranda enlouquecida, nesta realidade
distorcida, que uso como justificativa, roda ciranda, roda, roda
ensandecida, me leva a viver outra vida, a mesma de sempre,
porém, de outra forma está vestido. É você quem minha mão
segura, estou agora percebendo abismada, o fiorde gelado onde
dançava, espelho de gelo refletindo seus olhos, que atônita encaro
como que atingida por um raio. Descarga elétrica que dilacera, o
raio na mão da heroína que berra no alto, espatifa o gelo
espalhando o granizo.
Os mesmos olhos no reflexo da alma, chame você de opção ou
karma, escolha ou destino, o fio da roca, a ponta da caneta, a
eterna busca do sentido. O encontro com o indivíduo, o início de
outra estrada.
O torvelinho emocional, ilustrado por água e gelo, neve e fogo, a
dificuldade de encontrar as respostas, distinguir entre a piada e a
questão, perguntas de encontro ao não. Percebendo a
responsabilidade da desilusão no criador da expectativa, a

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necessidade da ruptura na construção do circulo de fogo, na chuva
de granizo, a dança no topo do fiorde gelado, o limite sendo
testado, o confronto com o ser espelhado.
A roca fiando o tempo, espaços que vão e vem, a dança em ciranda
rodando, imagens ancestrais, sensações difusas, confusões
infantis, discussões fúteis.
Travestidos de nós mesmos seguimos alucinações opostas, me
vejo em uma perseguição insana, na rejeição imaginária, da história
mal-contada, recebo a descarga, choque, retrata o final escrito em
palavras sem nexo, sabotadas na forja sombria do pavor. Cada um
de um lado do espelho gelado.
Enquanto a madrugada avança, caminho pela pradaria, admirando
a estrada que seguia colina acima, me sentindo tranqüila. Sento-me
no gramado, percebo você ao lado, olhos fixos no horizonte, o vento
sacudindo os cabelos, os cachos me cobrem os olhos, seus olhos,
olhando o abismo.
Nas mãos da heroína o raio fez-se em roupa, que agora me dás de
presente. Vestido rodado de saia colorida, meia de renda e sandália
florida. Te vejo sorrindo, me chamando pro baile, descalços na
areia, dançamos em torno da fogueira. Barulho de onda que corre
na veia, baque virado que mexe com o sangue, meus olhos
fechados admirando o céu estrelado, flutuo no ritmo da água
salgada que escorre pelo seu pescoço. Estrelas cadentes, palavras
cantantes, paixão fulminante.
Desfruto do desejo estonteante, bebendo poesia e comendo drama,
me fartando de fantasia. Me procuro em sua risada, nas perguntas
não faladas, fascinada nesta aura encantada, escutando sua voz
reverberar no fio, na tela, no sofá, dormindo acordada, entorpecida,
embriagada, minha visão embaçada com a claridade da alvorada,
sentindo a ressaca latejando nas têmporas e a angustia vomitando
o estômago.
Este sonho, me levando por caminhos lisérgicos, desenhando
arquétipos como um brinquedo lúdico, mostrando na paisagem aos
pés da colina, desenhando uma pantomima, que eu assistia
sozinha.
Memórias de encontros, em outras vidas, em outros sonhos, em
algum lugar, como naquela rua escura, na porta do bar. Quando eu
andava passeando meu cão, que te dei de presente desde então.
Ou de quando te encontrei em outro planeta, e conversamos a tarde
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inteira, e você me contou suas tristezas. Ou quando não entendi o
presente viajando no futuro distante, esquecendo o agora que
importa, foi quando, sem querer fechei a porta, e pensei que você
perdera a chave.
Ansiedade que me dispara o peito e saio desenfreada, querendo
pular etapas, inventar atalhos, mudando rumos, atropelando pedras,
cega, surda, segui por um tempo confusa, nos sons
incompreensíveis, fugindo de mim mesma, andando atrás de um
falso norte, cabeça quente no sol forte, na sombra da árvore
descanso meu passo.
De um lado o caminho truncado, do outro o portal infinito, em frente
o espelho do destino. Eu vejo a heroína, o martelo que espatifa a
redoma, o raio que quebra o gelo, lagrima que borra a imagem.
Vejo você, que sou eu, me olhando, seus olhos enigmáticos,
fraquejo encarando o chão. Como o eco de sua voz distante,
chorando, dizendo não saber o porquê da fuga. Como meu sussurro
ao pé do ouvido, covarde e desmilinguido, palavras voaram
enquanto eu corria, escondendo o medo da resposta.
Corremos um pra cada lado, caindo nos alçapões disfarçados,
abrindo gavetas antigas, pavor no secar das feridas. Da repetição a
fonte vem na seqüência, a fala que pede o fim da fuga, a razão no
entender da consciência, seu pedido de ajuda.
No mesmo lugar, em lugares diferentes, circundados por faces
estranhas, apavorantes distorções do entendimento. A garrafa que
flutua no mar por eras, trazendo a charada que me devora, que te
devora. No escuro engatinho em busca do meu olhar, seu olhar que
procura as lentes, para admirar o horizonte, onde a figura de luz te
chama, me chama, esconde-se ao olho nu.
Encaro o portal no alto da montanha com a certeza de que a
heroína escolheu a ferramenta certa, em seu rosto, que é meu
rosto, vejo os óculos que mostram a imagem que falta, a minha
alma.
Me parece, agora, que chegou o fim da história, que o conto que
esta conta aumentará alguns pontos, e a heroína trás pra sempre
consigo seu olhar refletido, na poeira da rosa, nos cacos de vidro,
no bloco de gelo, no seio do fogo, sentado ao meu lado na beira do
mato.
Um tremor nas pálpebras, um bocejar intenso, um piscar indeciso,
corpo preguiçoso, sentindo no abraço o afeto, despertando
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lentamente, no ritmo de sua respiração quente, arrepio na nuca que
corre pelo corpo.
- Bom dia – te escuto murmurando
Virando o corpo, me ajeitando em seus braços, procurando seus
olhos, encontrando sua boca. Te cheiro gostoso, me estico
enroscando, sorrindo e pensando nas imagens marcantes que
trouxe de meus mundos inconscientes.
- que foi? – me pergunta querendo saber do pensamento que me
faz graça.
Com um beijo estalado respondo safada.
- essa noite, eu sonhei com você.

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