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Crônica de uns dias de verão

Crônica de uns dias de verão

O ano é lá pelo idos de dois mil e qualquer coisa. Não é necessário


precisar a data. Apenas importa que foram quatro noites e três dias de verão.
Dias de calor e de amor intenso.

A cidade, não lembro o nome com exatidão. Na incerteza, melhor dizer


apenas que se tratava de uma cidadezinha do interior. Uma cidade daquelas que
tem uma praça, uma igreja, a prefeitura, mais dúzia de ruas principais. E a casa
dele.

Também aqui não precisamos saber o nome dele. Porque esta história,
com a diferença de alguns dias ou algumas horas, pode muito bem servir a um
sem número de eles. E ele morava lá, nessa cidade, em uma casa de três
quartos e varanda, com sala, banheiros e cozinha. Tinha até uma lareira. A casa
era boa, ampla, arejada. Tinha um jardim gramado na frente e era logo ali, quase
ao lado da prefeitura. Atrás da casa, ficava um gramado ainda mais amplo com
uma quadra de vôlei improvisada. A casa ficava bem no centro da cidadezinha,
mas tinha seu espaço privativo, escondida em meio as árvores que lhe faziam o
contorno.

Também não recordo nem o nome da rua, nem o número da casa. Mas,
sem qualquer sombra de dúvida, se fosse agora até lá, saberia chegar nela. A
cor já não deve ser a mesma, logo, nem precisa ser citada. Tinha um canil e dois
cachorros. Pondero que aquilo tudo de grama dava muito trabalho para ser
cuidado. Um dia inteiro para cortar, varrer e, com o zelo dele, fazer os contornos
da grama onde ela beijava a calçada.

Tudo ali era cuidado. Desde as pessoas até as estruturas. Era um


sossego que descansava a alma. À noite, nada de ruas barulhentas, com motos
de entregadores de pizzas a trabalhadores cansados e famintos. Não. À noite
era possível ver os vaga-lumes no quintal e ouvir o lamurio das cigarras. O galo
da vizinhança era meio destemperado e cantava quase o dia todo. Quiçá tivesse
síndrome de cuco. Só não reparei se cantava pontualmente, de hora em hora.

Adriana Soczek Sampaio


Crônica de uns dias de verão

O silêncio era reparador. Não era um silêncio incomodativo, daquele que


faz a gente se sentir desassossegado. Não. Era um silêncio que trazia calmaria
e provocava um mergulho introspectivo. Quem quebrava esse silêncio eram
eles. A risada dele misturada às gargalhadas dela, que lhe roubava fazendo
cócegas. Ele se divertia com isso e ela lhe lançava olhares encantados. E
quando, por fim, caíam no sono, cansados da rotina extenuante de serem felizes,
dormiam embalados pela brisa que insistia em se esgueirar por entre a cortina,
depois de passar furtivamente pela janela entreaberta.

Os dias amanheciam com preguiça e seus corpos se rendiam a fazer amor


logo ao despertar. Tudo começava quando abriam os olhos e o olhar dela se
perdia no dele. Ambos se rendiam aos desejos carnais e à paixão das almas. O
corpo dele sobre o dela, fundidos numa conexão que se sobrepunha à pele.
Enquanto estavam assim, tornavam-se um. Um observador externo não poderia
delimitar onde um acabava e o outro se iniciava.

Após o exercício matinal, perguntava ela se não seria essa a melhor


maneira de começar o dia. Ele sorria em anuência velada, sem palavras. O dito
pelo que não precisava ser dito. Logo após o amor, o banho a dois. E, após o
banho, o ritual do preparo do café da manhã. Para ela, o gosto de café com
pouco açúcar: perder o sono, mas sem perder a doçura. Depois do café, ela
insistia em lavar a pouca louça usada, na intenção de repartir também os fazeres
diários que a convivência exige.

Esse tempo em que ela esteve ali, corriam perigo. A estadia dela nesta
casa lhe era facultada pelos riscos que a paixão permite aos amantes. Dentro de
casa, tudo lhes era permitido. Também o foi no espaço em que a natureza lhes
ofereceu proteção. Aos olhos dos transeuntes, nada de anormal se passava
naquela casa. Tudo corria naturalmente, como sempre houvera de ser.

No entanto, somente dois amantes sabem as coisas que se faz quando


se está a sós e ao abrigo dos olhares e comentários alheios. A estes tudo se
lhes é permitido. Ou quase tudo. O que é consenso e faz bem à alma.

Quatro noites e três dias. Esse era o tempo de o amor ali ser. Por isso o
tempo era esgotado, não em horas, mas em sorrisos e beijos trocados. Por isso
a intensidade dos momentos vividos. O apego não era apenas de pele, envolvia

Adriana Soczek Sampaio


Crônica de uns dias de verão

os sentimentos e a alma. Não apenas faziam amor, mas compartilhavam sua


história, gostos e preferências. Muito ainda era desconhecido e, aos poucos, se
desvelavam ao outro. Sem pudores. Com sinceridade.

Assim como a intensidade dela o assustava, a sinceridade dele a fazia se


resguardar. Ela não insistia e nem pedia além do que ele podia dar. Mas
provocava, porque fazia parte do seu papel, comentava ela. E as provocações
dela o faziam ir além, ultrapassar barreiras e se deixar entregue aos perigos que
aquela relação significava.

Ela era livre. Livre de espírito. Sentia-se liberta de amarras e, por isso,
decidiu ficar. Ele não estava livre, não na mesma proporção, mas escolheu se
entregar à loucura que aquilo tudo significava. Como um furacão, ela chegou e
mudou muitas coisas na vida dele. Algumas certezas foram desestabilizadas e
ele, que tinha as rédeas da sua vida nas mãos, sentiu-se soltando-as, não por
completo, mas a ponto de cometer o que, tempos atrás, classificaria como
desatino.

As tardes se faziam quentes e, entre filmes e abraços, colocaram um


lençol no gramado do quintal e se sentaram à sombra de alguns pinheiros. A
conversa fluía solta, o riso era fácil, os olhares por vezes se perdiam um no outro.
A cumplicidade ali vivida não seria esquecida, mesmo anos depois, disso tinham
certeza. Não teria dia, depois disso, em que ele fosse cortar a grama e sua mente
não evocasse a memória dela ali, deitada com seu vestido curto, sorrindo para
ele.

Naquele espaço, perceberam que ao amor, não se coloca limites. E


mesmo sabendo que, por entre galhos de cedros e troncos de cerejeiras,
poderiam vir a ser alvo de olhares curiosos, em silêncio, fizeram amor ao ar livre.
O sol e o céu foram testemunhas mudas da paixão extravasada e vivida pelo
corpo deles, que permaneceram ainda um tempo enroscados um no outro, no
descanso necessário para acalmar os batimentos cardíacos.

Após retomarem o fôlego, entregavam-se às atividades rotineiras a que


todos os pares são impostas – preparar as refeições, lavar a louça, organizar a
bagunça que eles mesmos faziam. Mas nunca era um peso. Ao menos não

Adriana Soczek Sampaio


Crônica de uns dias de verão

naqueles dias e noites de verão. Entre eles tudo era acordo, era leve e seguia
um ritmo que só se permite a quem está apaixonado.

Não havia vícios, não havia cobranças, não havia espaço para o tédio da
rotina. Até porque não havia tédio já que tudo se fazia novo. O espaço era de
descobertas e de se permitir. De se permitir ir além do moralmente imposto, do
conscientemente seguro, aventurando-se por terras desconhecidas e por
sentimentos inusitados.

O tempo, no entanto, não desacelera o passo, nem mesmo para impedir


aos amantes que se furtem da convivência em par. O tempo é implacável e os
segundos não se dobram à paixão alheia. E assim, o relógio, incansável na sua
dança repetitiva e sinistra de roubar aos que se apaixonam a oportunidade de
ficar um pouco mais, marcou o horário exato em que ela deveria deixar aquela
casa na qual, por quatro noites e três dias, eles viveram intensamente o que
havia a viver.

Para fugir aos olhares curiosos e desavisados da vizinhança, ela partiu


ainda de madrugada, na madrugada da quarta noite. Tinha que ser assim para
poder ser. Não havia como ter sido diferente. Colocou suas coisas no carro, deu
um beijo nele e partiu. Voltou para sua casa, distante uns bons quilômetros da
dele, sem saber ao certo quando se veriam e, ainda mais, quando poderiam
dividir dias e noites sob o mesmo teto. Assim se faz a vida, de incertezas atrozes
e de certezas fugazes.

Adriana Soczek Sampaio

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