Você está na página 1de 4

Há poucas situações em que uma família grande e disfuncional se encontra.

Festas de aniversários
é uma delas; casamentos é outra e infelizmente, funerais também é uma dessas situações. A
atmosfera fúnebre e solene preenchia toda a sala e as cadeiras recostadas nas paredes estavam
repletas de parentes e amigos sentados. O corpo ainda não havia chegado e isso de alguma forma
fazia Ícaro alimentar algum pingo de esperança: Se o corpo não chegasse, se ele nunca nem vesse a
defunta, então talvez ela ainda estivesse viva e tudo isso não passaria de um infeliz episódio que
no futuro, todos ririam. De tempos em tempos viam lhe prestar os sentimentos, mas para sendo
sincero consigo mesmo, ele nem sequer ouvia. Assentia com a cabeça e apertava cada mão,
"aceitando" o conforto, mas sua cabeça estava tão imersa em um turbilhão de pensamentos de
forma tão intensa que as vozes não passavam de murmúrios nebulosos e aquela sala, uma
lembrança. Ele via em sua própria cabeça uma espécie uma caverna escura, cheia de corredores e
galerias, as quais ele poderia se jogar lá dentro e se perder facilmente. 
— Está na hora. — Uma voz dizia, atraindo sua momentânea atenção e o libertando daquele
transe. Seu pai, ali parado na sua frente, com o cabelo grisalho bagunçado e o olhar cansado,
esperava Ícaro se levantar. — O corpo chegou. Está na hora. — E as palavras o puseram de pé,
como se um balde de água fria. Nem sempre seus pensamentos eram escuros e tão fáceis de se
perder assim. Vendo entrarem com o caixão, se lembrou de que teve momentos em que desejou
estar morto e que antes mesmo desses pensamentos aparecerem, ele viveu um período em que sua
criatividade ia tão longe que era como um vasto oceano o qual ele podia navegar em uma pequena
embarcação que ele improvisou. Velejava tranquilamente, pescando ideias e pensamentos felizes
com um simples jogar de redes no fundo do mar. Mas já havia bons tempos que ele não pescava
nada. Já havia um bom tempo que o mar secara. Se Ícaro estivesse naquela pequena embarcação
que ele passou tanto tempo na sua infância neste exato momento, decerto estaria esperando que a
morte lhe alcançasse enquanto fritava lentamente pelo sol escaldante no deserto que aquele tão
azul mar havia se tornado.
"Tão nova", ele pensou, vendo aquele caixão sendo colocado no meio da sala. Alguns já
começavam a chorar aos berros e liberar o caminho. Ele ouvia seu irmão soluçar e seu pai contia as
lágrimas, apertando fortemente os olhos, ele não era alguém que costumava chorar. "Tão nova", ele
pensou, parando no meio do caminho sem conseguir olhar para quem estava no caixão. Lembrou
novamente da sua infância e quase conseguia sentir aquele cheiro de maresia, o balanço suave das
ondas no colchão e aquele sol brilhante, entrecortando as folhagens ou aparecendo após breves
períodos de nuvens durante sua tranquila viagem. Olhou ao redor e não via nada além de vultos
sem rosto em volta do caixão, despejando seus lamentos para uma pessoa que já não mais ouvia.
Sentindo o coração bater forte no peito, cortou em meio o atumultuado e se trancou no banheiro,
vomitando pesadamente nada além de bile na pia, fazia dias que não comia. Ligou a torneira,
enxaguou a boca e levantou o olhar para o espelho e viu ali o reflexo emagrecido, enegrecido e
esquecido de uma criatura frágil que se recusava a olhá-lo nos olhos, e virou-lhe as costas,
afundando o rosto nas mãos trêmulas. Se olhou no reflexo, mas o que estava ali não o olhou de
volta.
Não estava pronto ainda. Ele sabia disso, mas, sabia também que tinha de estar. Adiar o inevitável
não iria fazer ela voltar. O caixão ficaria ali por algumas horas ainda então, ele tinha tempo. Certo?
Recuperou o fôlego, abriu a porta e foi para o quintal da casa. Era um terreno de terra batida e
algum pouco gramado que crescia em meio às raízes do enorme pé de manga que ficava no canto
da propriedade. Alguns frutos deste já começava a aparecer na árvore, aliás. E Ícaro lembrou que
ela enquanto viva, gostava de tentar derrubar as mais madurinhas que não haviam caído ainda
tentando acertá-las com pedrinhas. O muro que cercava o terreno da casa já tinha algum tempo
que era discutido de reformar, mas nada nunca fora realmente feito. Tinha no máximo três pessoas
ali fora, além dele. Duas estavam conversando em um tom baixo enquanto dividiam um cigarro e a
outra, uma senhora de roupas brancas e um encaracolado cabelo grisalho, que mexia no pequeno
canteiro que sua mãe mantinha com algumas flores ali. Logo mais perto da gigantesca árvore, uma
casinha de cachorro pousava com a mais bela (E mais velhinha) cadelinha desse mundo, pelo
menos para Ícaro. Sua cabeça deitada sobre suas patas, olhava tristemente para a porta, amarrada
para que não entrasse. Pisando no barro, ele se aproximou da pequena casinha.

— Ei, amigona... — Ele disse num tom de voz baixo, tomando cuidado para não a assustar. Ela
levantou as orelhas e olhou para ele e suspirou profundamente, abanando o rabo e até tentou
levantar-se, mas, logo se deitou novamente. Ícaro se agachou e fez carinho na cabeça dela, com
carinho e um sorriso singelo estampado no rosto. Desde que ele se entende por gente aquela
cachorrinha estava de companhia com ele. — Tá chegando sua hora também, não é? — Disse ele,
sentando-se na terra ao lado dela. Olhou para o céu e pensou "Essa morte constante das coisas é o
que mais dói." A noite estava serena e Ícaro olhando para a porta, decidiu dar uma caminhada.
Espairecer a cabeça e logo depois, voltar. Dar um tempo daquela atmosfera. Dar um tempo
daquela loucura. Dar um tempo de tudo... Se levantou e foi até a árvore, soltando a corda que
prendia a cachorra e então, a enrolando na mão. — Bora lá, Luna. Bora dar uma caminhadinha... —
E esperou calmamente até ela se levantar, abanando o rabo e bocejando, agora com um ânimo
quase renovado.

Ícaro contornou a casa evitando olhar as janelas e saiu pelo portão da frente, indo para a rua vazia.
Ele não tinha um rumo certo e sendo sincero consigo mesmo, ele não fazia ideia de para aonde iria.
Esperava que o frio e a escuridão da noite te consumissem enquanto ele fugia de tudo que
abandonaria. Que o frio amortecesse todos seus sentidos e a escuridão com seu abraço sombrio o
engolisse. Mas ele não estava fugindo de verdade, certo? Planejava voltar e lidar com aquilo logo.
Era só uma volta afinal. Com a mão livre, apalpou o bolso e tirou um maço de cigarro, tirando um
e o encaixando nos lábios, o acendendo. A primeira tragada queimou dentro dos seus pulmões e
instantaneamente ele convuncionou em uma tosse seca, tragando aquele veneno. Sentindo nojo de
si mesmo, recuperou o fôlego e voltou a tragar. Era seu primeiro cigarro.
É. Era só uma volta; mas porque ele sentia que isso não era tão verdade assim? Estava ali, na
calçada de uma praça sem fazer ideia de quando ou como chegara ali, mas tendo a consciência que
estava lá sob o céu noturno, tentando se ocupar em mais uma cruzada idiota. Fazendo um esforço
imenso pra não voltar para uma casa vazia e repleta de lembranças, repleta dela. Deu uma longa
tragada e soltou a fumaça, jogando o cigarro no chão e se sentando em um banquinho ali da praça
mesmo. Luna com algum esforço pulou pra cima do banco também e se deitou com a cabeça no
colo de Ícaro que instantaneamente começou a acariciar aquela coisinha que sempre te fizera
companhia até que a mesma dormisse. Claro que ele foi para ali pra não ter que conversar com
ninguém, mas caralho, ele queria conversar com alguém. Incrédulo consigo mesmo, ele riu pelo
nariz pela contradição e ironia daquilo tudo. Apalpou o bolso e tirou de lá o celular, procurando o
contato certo. Discou e esperou tocar por uns 20 segundos, antes de desligar e desistir.  Ficou ali
sentado com o celular na mão observando a rua pelo que pareceram horas.
Ícaro respirou fundo, olhando ao redor; a praça era bem sucateada. Apesar de ter lixeiras a cada
poucos metros, ainda assim havia lixo na beira da calçada e no gramado. Havia uma tábua do
encosto do banco que faltava e sobre as árvores que estavam plantadas na praça, os galhos mais
grossos estavam quebrados ao meio certamente pelo constante pendurar de crianças nestes. Ícaro
de repente percebeu que estava com frio e que a ventania estava aumentando e que, se ele estava
com frio, provavelmente Luna estava também. Até quis se levantar, mas sentiu aquele sentimento
subindo pela sua garganta, querendo sair e explodir pra ver se enfim, ficaria livre daquele
engasgar de emoções. A vontade era de gritar até perder suas forças. Gritar tão alto que o mundo
inteiro ouvisse e se compadecesse com o seu luto. Chorar tão forte que ele ficasse largado, exausto
e em estupor. Que ele parasse de sentir qualquer tipo de dor. Sim, a dor. Ele queria chorar até a dor
sumir completamente, mas não o fez. Mais uma vez, engoliu aqueles sentimentos todos e apertou
as mãos com força, cravando as unhas nas palmas das mãos até que a vontade se extinguisse e
então, guardou o celular no bolso novamente.
Com um carinho, acordou novamente Luna e a colocou no chão e lentamente, fizeram o caminho
inverso o qual haviam feito, voltando para casa. Luna até fez menção de correr atrás de um gato
que cruzava a rua, mas decidiu ficar só ereta e de pelo arrepiado, rosnando baixo. Era difícil definir
o que passava pela cabeça de Ícaro agora. Ele se sentia como um astronauta que havia caído de sua
nave e agora estava á deriva no espaço, flutuando. As coisas simplesmente acontecendo ao seu
redor e uma vida toda acontecendo no mundo, mas ele agora, sem poder algum para agir.
Simultaneamente, se sentia como um mergulhador. Se jogando para as profundezas daquele
oceano de lembranças e tirando sua máscara de oxigênio para que pudesse assim, se afogar nas
memórias. As coisas eram mais simples quando ele era mais jovem. As coisas eram mais simples
quando eles eram mais jovens. Sentiu a boca seca; queria beber. Beber até ficar doidão e poder
culpar a bebida pelas péssimas decisões.
Virou uma esquina mal iluminada e suja com Luna em seus calcanhares e viu sua casa com os
portões abertos ao fim da rua, ainda recebendo pessoas para o velório. Ainda não se sentia pronto,
então evitando fazer barulho ou olhar no rosto de quem estava do lado de fora, novamente
contornou a casa e se dirigiu ao quintal, prendendo novamente Luna e enchendo seu pote de ração
e água. E por fim, entrou na casa pela cozinha e de cara foi bombardeado com cheiro de café.
Havia algumas pessoas sentadas na mesa tomando xícaras do líquido a fim de se manterem
acordadas durante toda a madrugada que ainda se estenderia e Ícaro pode sentir o olhar delas
pousando nele assim que entrou. Ignorando completamente as pessoas que provavelmente
esperavam alguma ação dele, que ele saísse daquele estupor e de alguma forma agisse, ele foi para
o corredor que levava aos quartos.
Eram quatro ao total; o seu, o do seu irmão e na extremidade do corredor, o dela, e foi para essa
extremidade para que ele foi. Sua mão parou centímetros de distância da maçaneta, hesitante, mas
logo se fechou sob o metal frio e abriu a porta para o quarto escuro e estupidamente organizado,
como se ninguém houvesse dormido há dias lá e de fato, não havia. Seus dedos passaram sob a
cômoda empoeirada e seus olhos evitaram olhar para os retratos pendurados pelo quarto, se
dirigiu diretamente para a cama, onde se deitou sob o colchão frio. Seus dedos acariciaram o lençol
e dessa vez, ele não pôde evitar as lágrimas, ardendo os seus olhos, enfim saíram. Ele queria se
levantar dali e se poupar dessa tortura a qual estava se submetendo, mas sabia que sentir era
preciso. Ele queria se levantar, mas tinha aquele peso sob o seu peito que não permitia que ele
conseguisse, como se fosse uma criatura sentada em cima dele, sugando toda sua vontade de fazer
qualquer coisa que não ficar ali, deitado. E foi com um frio consumindo todo seu ser por dentro
que Ícaro percebeu que esse peso não era nada mais que seu coração, pesando toda a mágoa
reprimida. E foi ali, deitado que ele começou a se lembrar de todas as histórias que criaram juntos
e aventuras as quais participaram. Pensou que se tivesse um jeito de voltar as coisas para como
eram antes, ele voltaria e que só queria que toda aquela dor parasse. Afundava a cara no
travesseiro em meio aos berros chorosos. Se lembrou de cada risada que já haviam dado e foi ali,
absorto por memórias que em meio as lágrimas, pela primeira vez em dias, ele enfim dormiu.

Você também pode gostar