Você está na página 1de 16

Mais ingênuo que gênio, poderia acreditar em todas as conseqüências de ficar parado,

olhando para a janela e encarando o inalterável quadro de nuvens. Tinha muitos desejos,
mas não os saciava, arriscar quase sempre fora doloroso e crivara seus sentimentos de
dúvidas. Cancelou sua passagem de ônibus para a casa dos pais e se sentou no esvaziado
café da rodoviária, acendendo um cigarro e correndo distraidamente os olhos pelo cartaz
rasgado diante de sua mesa. Quando notou a aproximação do que poderia ser um atendente,
deixou franzir as sobrancelhas, passou as mãos pelo terno como que para desenrugar-lhe as
dobras, levantou-se e se foi. Eram ambientes dentro de ambientes, paredes que levavam a
mais paredes, portas, pessoas, gravuras, mesmices contínuas e asfixiantes. Pegou um ônibus
ao invés de um táxi e foi para casa ao invés de para o escritório. Desceu no primeiro ponto
que reconheceu e andou a passarela da calçada com ar pesado. O brilho branco revelava
fragmentos de um sol dormente, triste e só. Pousou a mala no chão, abriu-a e pegou o
molho de chaves. Dentro da sala tirou os sapatos e as meias; pôs o terno, o chapéu e a
gravata sobre o armário e se deitou no sofá, de bruços. Adormeceu e só acordou com a
ligação da secretária, alvoroçada, que falava de seus vários compromissos para aquela
tarde. Bateu o telefone. Colocou um disco e começou a perseguir seu apartamento com os
dedos. Quando fechava os olhos algumas pessoas se estampavam em suas pálpebras e
diziam coisas. Pegou um livro de uma das estantes em que se apoiou após cambalear. O
Coração das Trevas, soprou a poeira que o empanava e o colocou novamente no lugar de
onde havia tirado. Dirigiu-se para o aquário e deu a ração de seu peixinho dourado,
Caufield. Comeu ração para peixes, olhou dentro do relógio e viu quatro horas em seus
ponteiros finos. Deu mais ração para Caufield, comeu mais ração de peixe, acendeu um
cigarro. Deixou-o pela metade, dentro do aquário de Caufield. Os matizes mais íntegros se
dissolviam por trás das muralhas de sua Razão. Tudo que construíra desmoronava em cima
de si. Sentou-se no sofá, bocejando. Decidiu quebrar algumas grades, saindo e comprando
quadros e tintas. Na rua encontrou um homem que andava com o cachorro em uma coleira
de couro, um entregador de flores apressado e algumas centenas de homens e mulheres que
não notou de súbito. No caminho de volta para casa, entre pastas de tinta e telas, lembrou-
se que não comera nada o dia todo exceto um pouco da ração de Caufield. Comprou pães,
bifes e leite no mercado perto de sua casa. Finalmente a porta de sua casa se encostou na
ponta do seu nariz. Deixou todos os pacotes no chão, pegou o molho de chaves, abriu a
porta e entrou silenciosamente. Carregou os pacotes para a cozinha e os colocou em cima
da mesa, fumou um cigarro, bebeu uma garrafa de leite, colocou um pedaço de bife na
frigideira. Comeu com pão, queijo e tomate. Voltou, trancou a porta, pintou dois quadros,
escreveu um poema e ouviu música até quase amanhecer. Depois ficou nervoso e dormiu
num colchão no chão, encarando Caufield, que nadava na beira do aquário e agitava as
nadadeiras.

Acordou ás seis da manhã, abriu a pia e deixou que transbordasse água gelada, mergulhou
sua cabeça dentro até perder o fôlego. Tomou um banho rápido e se desnorteou pensando
na criação selvagem presente em todas as espécies e no paradigma unitário da
marginalização dos homens, como se uma cortina o separasse do resto dos seres com vida.
Enxugou-se enquanto refletia. O telefone tocou, atendeu e foi lacônico com a secretária.
Preparou torradas com os pães que sobraram e bebeu a outra garrafa de leite. Deu ração
para Caufield e vestiu seu paletó mais fosco. Arrumou alguns papéis dentro de sua maleta
de couro, penteou o cabelo sem esmero e foi para o escritório. Sua secretária o
cumprimentou, não prestou atenção. As pessoas falavam muito. A racionalidade derramava
sobre seu corpo o desprezo dos homens e dos objetos, e ele era como uma existência
forrada de espelhos que absorvia e refletia todo o desprezo de volta. Mas não falemos de
desprezo, talvez esse seja um sentimento diferente e mais complexo. Redigiu alguns
contratos, consultou alguns artigos, atendeu alguns clientes, bebeu alguns copos de uísque,
abriu algumas gavetas, fechou algumas gavetas e saiu tarde do escritório, sem almoçar.
Convidou a secretária para uma refeição em uma cantina italiana. Pagou a conta,
acompanhou a secretária até onde ela morava e foi para casa a pé, sem se despedir. Andava
sob luzes amarelas e contemplava a penumbra das árvores. Deitou-se na cama, fumou um
cigarro e adormeceu.

Era uma boa manhã para se barbear, barbeou-se, escovou os dentes, tomou banho. Preparou
um bife e o comeu mal-passado. Era sábado. Pegou a bíblia e leu trechos. Trabalhou a
manhã toda e na volta comprou um jornal, café, arroz, legumes, vinho e um disco de jazz.
Perdeu seu molho de chaves, foi à casa da secretária, ela abriu o escritório, ele achou as
chaves na gaveta. Comeram casquinhas de sorvete no caminho. Agradeceu a secretária.
Aspirou profundamente sem motivo, voltou para casa. Limpou o aquário de Caufield e lhe
deu ração. Leu o jornal inteiro, as colunas tinham conteúdo desinteressante, os quadrinhos
eram enfadonhos e as notícias se reprisavam. Achou tudo estúpido, prometeu para si que
jamais compraria um jornal novamente. Andou durante alguns minutos na varanda, olhando
o nada e sentindo os ventos. Depois entrou, bocejou, fez arroz com legumes e fritou um
bife, comeu tudo em um prato de porcelana; bebeu meia garrafa de vinho, colocou o disco
de jazz e cochilou no sofá. Acordou apenas de noite, a solidão o fez chorar, tomou banho,
vestiu sua melhor roupa casual, perfumou-se e foi para o cinema. Optou por um filme
romântico. Saiu do cinema confuso e pensativo, sorriu e acendeu um cigarro. Voltou para
casa de ônibus. Apagou todas as luzes, ouviu o disco de jazz e acabou com a garrafa de
vinho. Dormiu pesadamente e não sonhou.

Era domingo. Fazia a faxina aos domingos. Levantou pigarreando, ligou o chuveiro e se
deitou no box. A água escorria pelo seu corpo sutilmente, queria escorrer com a água. O
corpo-humano é uma máquina muito sensível. Quantas lutas mais teria que enfrentar até ser
vencido? No fundo todos nós queremos ficar em paz, no silêncio... Sem tocar ninguém, sem
sentir absolutamente nada por ninguém que não seja ameno e bom. Quando se ergueu,
reparou que sua pele estava enrugada pelo tempo que ficara na água. Ensaboou-se com
lentidão e começou a assobiar involuntariamente, uma melodia triste. Achou-a
especialmente ridícula. Enxugou-se com os olhos fixos na pequena fenda que permitia o
acesso de ar e luz ao banheiro, e tinha apenas essa finalidade. Olhou-se no espelho, estava
velho. Os dias haviam passado, passado sobre ele. Sobre suas memórias, atos, visões,
gestos, pensamentos, cansaços, viagens. Sobre tudo que podia preencher seu âmago e sua
história. Muitos sóis erigidos, muitas palavras resmungadas. Arrependeu-se da aceitação
desses abstratos, das lágrimas que injetara em suas retinas, do sofrimento oco e das alegrias
logradas. Saiu da frente do espelho e voltou para seu quarto, tão seco quanto seu coração.
Vestiu-se e compreendeu conforto dentro de suas roupas informais, eram mais frescas e o
libertavam de uma maneira estranha. Ia começar a organizar as coisas mas desistiu, ficou
fumando e folheando alguns livros de filosofia velhos. Tudo naquela sala estava meio
velho... Menos Caufield. Deu a ração de Caufield e comeu um pouco dela. Queria irradiar o
efeito de rejuvenescer ou sua sensação. Era um tolo. Fez uma garrafa de café e a bebeu
inteira. Tinha que se ocupar de alguma forma. Cortou as unhas dos pés, depois as das mãos;
fez a faxina da casa, organizou seus livros e discos em ordem alfabética, pendurou os dois
quadros que havia pintado no porão (junto com os outros), irrigou o gramado da varanda,
ligou o rádio e comeu o que sobrara na geladeira, era apenas uma hora da tarde. Estava
sentado no sofá, admirando seus pés esticados na frente de suas pernas cruzadas e ouvindo
bobamente o barulho do ventilador e do rádio quando a campainha tocou. Abriu a porta, um
garoto vendendo chocolates. Fechou a porta e a trancou sem dizer nada. Comeu dois
chocolates. Desligou o rádio, leu trechos do livro do Neruda, fez uma careta de reprovação
para Caufield (que o olhava), desenhou um tigre num caderno de folhas de papel almaço e
cochilou. Acordou no meio de um sonho, sonhava que corria em círculos verticais e que
sua energia controlava a respiração das pessoas e a fluorescência das luzes. Sentiu a
camiseta empapada de suor e o peito palpitante. Tomou outro banho e arrumou-se para sair.
Não agüentava mais a atmosfera capenga dos cômodos de sua casa. Na rua observou o
crepúsculo alto durante alguns segundos, como se um ponto de afabilidade infestasse suas
concepções e lhe concebesse um ar mais leve e calmo e houvesse alguma constância no
mundo. Foi à uma lanchonete e comeu de modo taciturno. Pagou. Saiu. Ficou sobre a ponte
que ligava a ruptura entre a cidade. Os sussurros se ouviam em todas as partes da confusão
de escuridões, águas e automóveis que o cercavam abertamente. Um estrangeiro no fogo
azul da civilização, um estrangeiro imóvel. Comprou uma garrafa de conhaque, voltou para
casa e bebeu dois copos.

Quando acordou a consciência foi fustigada por náuseas e ele teve dores de cabeça. Engoliu
uma aspirina. Estava de pé, moribundo e com febre. Pisou em falso, havia rastros pelo chão
do quarto todo e pelas paredes. Seus membros mostravam-se inflexíveis e doloridos, era
como se fosse menos imponente que seus atos e, dominado por eles, adulterava-se e sofria
imensamente. Envergou a coluna e encarou a garrafa, em pé, sobre seu criado mudo;
Solene, translúcida e austera. Lembrou de um romance policial em que o personagem
principal esvaziava uma garrafa de uísque na pia. Não havia muito que fazer... Pegou-a e
arremessou na parede (só que não). Guardou junto com as outras. A pequena explosão de
estilhaços imaginada. Tomou um banho. Depois limpou o quarto com afinco, o relógio
marcava seis horas da manhã. Caufield nadava desanimado perto da superfície. Deu um
pouco de comida para ele e o viu come-la em poucos segundos. Deu mais, ele comeu.
Achou aquilo muito bonito. Trocou o roupão por uma roupa social, e, enquanto punha
alguns papéis na maleta de couro para que pudesse ir para o trabalho, encontrou o poema
escrito por ele na semana passada e o leu:

Apenas pontinhos no espaço/ portais de insignificância/atuando a tristeza perfeita/em


performances por palcos longínquos,intocáveis./Uma visão que ergue o chão e atravessa o
céu./máquinas que fazem paixões e prezam pela cabeça do homem moderno/ fazendo
balanços que agitam, pausam e esperam reações./Lendas nas calçadas dos fones
listradas e disformes/ saindo de linhas que formulam vontades mistas e planificam as faces
derrubadas em vazios./Sobre o teto dos ombros jovens/muitas celas prendem o infinito/ nos
cavaletes das definições,vultos devolvem o consciente.

Retalhou-o, dilacerou-o com a maior das fúrias. Caufield o olhava surpreso. Jogou os restos
de papel rasgado pela janela. Pegou a maleta, o molho de chaves e saiu. Na rua andava com
passos de cisne. Os carros apareciam zunindo timidamente, as lojas, escritórios e cafés
começavam a abrir aos poucos. Entrou num café, pediu uma xícara grande de cappuccino
com creme e um pão de queijo. Acomodou-se para organizar alguns processos, inventários
e contratos importantes do seu trabalho. Sua refeição foi servida, guardou os papéis e a
comeu. Pagou e foi gentil com a mulher do caixa. Encontrou uma velhinha passeando com
um cachorro de vestido, achou engraçado. Todas as segundas ia ao fórum, estava cansado
de andar. Chamou um táxi e seguiram para o fórum. Deixou alguns papéis no fórum,
defendeu alguns casos, um cliente, entrou no táxi e seguiram para seu escritório. Pagou e
entrou no escritório com respiração fadigada. Trabalhou muito. Esvaziou sua garrafa de
uísque no ralo do banheiro, depois se arrependeu. Almoçou dois pastéis, bebeu uma garrafa
de refrigerante e comeu um tablete de chocolate amargo. Trabalhou o resto da tarde,
recebeu o pagamento de alguns clientes e sentiu a satisfação do fim de um dia de trabalho.
Tinha que ir ao banco, mas não quis. Levou o dinheiro para casa e colocou-o no cofre,
receoso de que algo pudesse ocorrer. Tomou um banho de tempo médio, pediu uma pizza e
telefonou para os pais, desculpando-se por ter desistido de ir visitá-los na semana passada.
A pizza chegou, comeu metade dela e guardou o resto na geladeira. Bebeu alguns copos de
água e fumou um charuto na varanda, a noite transcorria tépida e a lua estava bastante alta e
grande. Foi para cama, meditava sobre o equilíbrio que buscamos em nossa personalidade e
espírito. Achava tudo isso uma negação. Teve sono e dormiu. Acordou no meio da noite
para ir ao banheiro e encontrou um pedaço de vidro no carpete da sala, jogou-o no lixo e
voltou para cama.

Despertou com a recordação de uma frase que havia lido em uma revista antiga,
“Fotografar é colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração”. Não apenas
fotografar, considerou. Não no campo de visão e de ação que conhecia. Não no espaço que
convergia estrelas e pensamentos com a mesma força, pelos gramados que germinavam
flores e cogumelos e exerciam o ciclo ininterrupto da vida e da morte. Quis entender os
detalhes das formas e aspectos. As luzes que defrontavam as sombras e todos os paralelos
que seguiam estradas retas e finas. Uma luminosidade lhe infundia o contraste das
paisagens, pássaros e panoramas penetravam pouco a pouco sua janela. Eram cenas
sensíveis que se dispersavam com o olhar e com as percepções e dilatações de sua mente.
Tomou banho e colocou as roupas com os sentidos alterados, era como se os vultos do
fantástico se contorcessem dentro de si e estraçalhassem os elementais que bisonhavam por
trás de todas as suas máscaras e sentimentos. Foi para o trabalho com passos que levitavam
pouco a pouco. Chovia e, embaixo de seu guarda-chuva negro, era uma espécie de senhor
do absurdo. As lentes diáfanas da vida e das circunstâncias o acossavam infatigavelmente.
Não comeu o desjejum, levava na mala os envelopes a serem depositados no banco. Eram
sete horas, o banco abriria às oito. Sentou-se no banco de praça que ficava diante do
estabelecimento financeiro no exato instante em que a chuva parou. Acendeu um cigarro,
admirava as crianças que iam para a escola, ingênuas, com seus pais ou avós; os mendigos
que abandonavam as sarjetas e norteavam para becos que zeravam as aparências e valores.
Idosos, automóveis incrivelmente brilhantes e murmurantes, cães, gatos, baratas.
Prolongou-se na imaginação opaca das secções entre insânia e fato. Uma lufada de vento
veio de encontro aos seus devaneios. O banco abrira, transeuntes entravam em suas salas. O
Centro estava em ebulição. As pessoas se escravizando pelos seus umbigos, suas morais e
idealismos. Pigarreou, envergou o corpo, sua coluna estalou. Entrou no banco, fez os
depósitos, passou a mão pelo relógio e viu as horas, chamou o primeiro táxi de boa feição
que encontrou. Acomodou-se na poltrona de felpudo, o motorista não parava de falar.
Pagou, atravessou a recepção do escritório como uma rajada de luz e se fechou em sua sala,
fechou-se dentro de seu cérebro. Foi chamado meia-hora depois, quando a campainha
anunciou seu primeiro cliente. Trabalhava para não ter que pensar. Continuava sorridente
para não ter que mensurar hipóteses difusas. Trabalhou o dia todo sem almoçar. Voltou
para casa, sentia-se oco. Esquentou a outra metade da pizza que guardara e a comeu.
Fumou um charuto no sofá olhando para o relógio, para o céu e para os móveis, absorto em
especulações fraturadas. Colocou um disco de música erudita em seu tocador e deu a ração
de Caufield, Caufield comia com apetite. Tomou outro banho. Voltou para o quarto e pegou
sua caixa de fotografias embaixo da cama. Eram fotos diversas. Da família reunida em uma
mesa repleta e feliz. De cães que teve quando criança. Das fases do ginásio em que só
pensava em sexo e maconha. Da sua graduação em direito. Seus primos, suas primas, seus
tios, seus avós. Todos separados, esparzidos no globo, gordos e felizes; com suas famílias,
seus projetos e suas realizações. Havia também um baralho em sua caixa. Fez uma mágica
para si, riu-se demoradamente de tudo. Guardou a caixa embaixo da cama, chorava em
silêncio. Chorava sem verter lágrimas. Apagou as luzes, levantou os lençóis e deitou-se sob
eles. Mas não dormiu de imediato, chovia torrencialmente e explodiam trovões do lado de
fora, atrás dos tapumes, das cortinas e dos sólidos muros e tetos. Os barulhos se estugaram
após algumas horas e sumiram. Agora podia dormir, dormiu. Acabava o concerto para
piano de Schumann. As únicas coisas que barulhavam, a essa altura, eram o grilo e a coruja.

Descerrou as pálpebras. Sentia uma estranha paz, a ausência das azáfamas que costumam
revestir o tempo das emoções urbanas. Não estava nem alegre nem triste, nem dividido por
nada. Havia certa ironia nessas constatações. Virou-se e procurou o relógio, eram sete
horas. Seu primeiro cliente só chegaria ás dez e meia. Tinha um bom espaço de tempo livre
até o trabalho. Fumou o último cigarro de seu maço. Tomou um banho genuíno, sem
nenhum ímpeto que lembrasse rapidez ou dever. Vestiu seu roupão, era ótimo usar um
roupão e chinelas. Sairia para comprar comida, sua dispensa estava vazia. Sua geladeira
tinha apenas garrafas de água, bebeu uma garrafa de água. Deitou no sofá, acariciando as
golas do roupão e fazendo uma contagem lenta para se erguer e sair. Ergueu-se, colocou
sua roupa formal e estranguladora e foi para o mercado próximo de sua casa. Comprou
todos os mantimentos que o apeteceram pelo feitio: Ovos, leite, café, açúcar, frutas,
legumes, bacon, sal, pães, bifes, manteiga e arroz. Também comprou um tablete de
chocolate amargo e dois maços de cigarro. No estacionamento do mercado lhe veio a idéia
de comprar um carro. Não gostava de dirigir mas, ao menos, evitaria a lotação grosseira dos
ônibus e a conversa irritante dos taxistas. Voltou para casa com os vários pacotes. Dispôs-
lhes na mesa da cozinha e organizou-os em seus respectivos armários e compartimentos da
geladeira. Depois fez café, fritou dois ovos, três pedaços de bacon e preparou algumas
torradas. Comeu seu café enquanto fazia cruzadinhas e ouvia o rádio. Lavou a louça
calmamente e olhou o relógio. Ainda era cedo, teve vontade de fazer algum exercício.
Trocou a roupa social por uma roupa casual e foi para o parque. Fez alguns alongamentos e
correu por dez minutos com alguns intervalos. A transpiração o fazia leve, queria transpirar
todo o veneno que ingerira durante toda a vida. Sentou num banco, acendeu um charuto e
tirou algumas volumosas baforadas vendo as borboletas que tatalavam por ali, ouvindo o
canto dos passarinhos e o sibilo discorrente das cigarras. Voltou para casa, tomou banho e
foi para o escritório. Por pouco não chegou atrasado.Viu alguns clientes, cuidou de alguns
processos e voltou para casa em seu horário de almoço. Cozinhou magnificamente, como
há muito não fazia. Preparou uma refeição completa; com bifes acebolados, batatas fritas,
legumes refogados, cozidos e uma travessa de arroz com alho. Comeu metade, guardou
metade para o jantar. Bebeu uma garrafa de leite. Fumou um cigarro. A secretária ligou
concomitante ao tempo que ele bateu o cigarro no cinzeiro, o cliente das duas horas havia
desmarcado a consulta. Isso lhe dava tempo para uma cesta até ás quatro, quando teria que
voltar para o escritório. Deu a ração de Caufield, escovou os dentes, ligou o ventilador,
deitou no sofá e colocou seu despertador para apitar ás três e quarenta. Cochilou num
átimo, da maneira que muitos raramente conseguem, apenas com o ato de deitar-se em
posição perfeita, desfrutar da lassidão de bonitas imagens por tempo nem curto nem
comprido depois se distrair por uma sonolência abstrata e apagar, resignadamente. Acordou
com os apitos do despertador, despertou realmente apenas alguns segundos após o término
da tirânica função do aparelho e arrumou-se por compaixão alheia. Estava abatido e
dilacerado por dentro (embora não tivesse sintomas de cansaço físico). Foi ao trabalho sem
vontade e trabalhou o resto do dia desanimadamente. Voltou direto para casa, de táxi,
deprimido. O motorista parecia estar mais insuportável do que o era costumeiramente,
estava inspirado... Provavelmente inspirado por sua tristeza, era um verdadeiro operário da
cólera. Pagou, saiu do carro e bateu a porta com força descomunal. Entrou, comeu tudo que
restara de seu dedicado almoço com voracidade. Fumou um cigarro; sua garganta latejava,
seus pulmões precisavam de oxigênio com muita regularidade. Tinha falta de ar, não tinha
nenhum amigo para ligar e conversar. Não conhecia ninguém que prestava, nenhum fiapo
de amor-próprio lhe era concedido. Estava exagerando. Desconfiava de tudo e de todos;
tratavam-no friamente, sem nenhum interesse por quaisquer de suas angústias. Há alguns
meses marcara um tratamento com um psicólogo e após a terceira consulta tivera vontade
de esmagá-lo a socos. Não era um homem perigoso, não tinha nada de notável... Nem
mesmo as qualidades mais nefandas, seu raciocínio tinha tempestades de fúria e raiva sem
direções, suas conclusões derramavam-se no mundo cegas e mudas. Sentia, dentro de si,
uma fogueira de nebulosidade e um quê de intangível. Vulnerável ao seu estado de espírito,
ao seu mais complexo estado de existência, e com o maço vazio, dormiu. Dormiu coberto
por um suor frio, após horas de insônia urdidas por conjecturas e conotações desvairadas.
Parecia poder espreitar as corujas erguendo suas asas escuras em céus sepulcrais. Sentir
com toda a asfixia dos sentidos o urro dos sanatórios suburbanos. Havia muita lama e suor
ao redor de suas olheiras, muitas paisagens desertas e semblantes de escárnio presentes na
espessura de suas falas e no convício com as ingratidões que havia compactuado...
Compreendia o murmúrio dos homens que se julgavam sem chances, penetrava a
infelicidade de cada filete de tinta esmaecida em suas paredes, fazia o roteiro das
metafísicas mais soturnas e solitárias. Cadenciava com a sombra das eras, com a ruína dos
gestos e com o anúncio dos transeuntes das ferrovias abandonadas. Grande parcela dos
lampejos supremos das imensidões sorumbáticas estava guardada consigo. Enfurnava suas
lentes anêmicas em rastejos sem rumo. Seus únicos companheiros eram os vícios, os logros
e as devastações nesse pesadelo. Cobriu-se melhor, virou-se algumas vezes na cama, suava.
Não foi uma boa noite.

Abriu as pálpebras, seu rosto estava amassado e não queria nada além de dormir. Nunca se
sentiu tão mal simplesmente por estar acordado, ter que acordar sempre era algo tão
sobrenatural quanto ter que dormir e não acordar novamente. Talvez não acordar nunca
mais fosse mais plausível para si. Estava exagerando. Muitas manhãs o afligiam
simplesmente por arrastarem-no de sua situação de letargo profundo e estático, arrastarem-
no ciclicamente à vida. Ás vezes a gente não está preparado. Ficou alguns minutos na cama
tateando o rosto e odiando as obrigações. Olhou para o relógio, marcava exatamente o
horário que se mostrava para ele todas as manhã, isso o deixou ainda mais desesperado.
Olhou para o calendário, relutante, era feriado. Podia voltar a dormir. Achou-se estúpido
por não ter observado o calendário antes de se deitar nem ter se lembrado das palavras da
secretária sobre a data. Era alguma espécie de feriado religioso, não lhe interessava em
absoluto. Pensou em como a humanidade era louvável, virou-se de bruços e voltou ao seu
estado vazio de torpor, com a efêmera satisfação do sarcasmo. Acordou e adormeceu várias
vezes... Até que, por mais que se empenhasse, não conseguisse mais dormir. Submisso à
natureza e à inutilidade das tentativas, levantou-se e passou vagarosamente os olhos por seu
quarto, a prateleira com as nove estantes e os mesmos livros e filmes de sempre. Não que
tivesse deixado de comprar livros e assistir filmes, mas poucos costumavam marcá-lo como
aqueles o haviam marcado em suas épocas. O criado-mudo ostentava seu aspecto de
madeira lisa e escura, sobre ele a mesma marca de cigarros, os mesmos charutos, o abajur
amarelo e sem brilho, os documentos com suas horríveis fotos três por quarto e o
despertador de prata, rigorosamente mudo. Embaixo, suas gavetas (enclausurando suas
fotografias, desenhos e textos). As quatro paredes, todas enegrecidas e, pregadas a elas,
duas telas surrealistas em molduras pretas que comprara de um antigo colega (não apenas
por apreço às suas obras, mas também por compaixão à sua precariedade econômica tão
bem aceita com a vida de artista). Entre as telas, ficavam suas cortinas crispadas e brancas e
suas janelas, emitindo o céu e a varanda... Dentro de seu armário guardava apenas itens de
seu vestuário pessoal e alguns cosméticos. Ao lado do armário, jaziam a escrivaninha com a
máquina de escrever, papéis, canetas, sua xícara de café branca e vazia e o cinzeiro; a
cadeira ficava logo atrás e a cama encostada à parede frontal. Além disso, apenas a porta
que dava para a sala, a luminária, sua solidão. Não colecionava nada, não queria mudanças
nem questionava a dinâmica de seu dormitório. A única porta dava para a sala, que dava
para o banheiro, que foi para onde ele seguiu após sua observação. Escovou os dentes,
tomou banho e vestiu-se. Depois foi para a sala e deu a ração de Caufield, lembrara que o
vendedor da loja de animais lhe falara que os peixes de aquário não costumavam viver por
mais que alguns meses. Olhou para Caufield e compreendeu que, por maior que fossem os
aquários, sempre seriam menores e mais rasos que os oceanos. E não soube se o
animalzinho estava triste ou feliz, decerto não estava nem triste nem feliz. A vida para ele
era demasiado simples para que pudesse sentir alguma coisa, a maior alteração que sua
rotina sofria eram as vistas da janela, dos climas, fenômenos meteorológicos, estações e o
horário em que fazia sua única refeição diária. A existência de Caufield era excessivamente
inútil e constante, teve pena de Caufield; teve pena de si, instantes depois. Olhou para
Caufield novamente, olhou ao seu redor. Não tinha pena de ninguém. Pegou um cigarro no
quarto e fez sua refeição: Três sanduíches com bife, ovos e bacon. Não era muito saudável
e os pães estavam com aspecto endurecido. Bebeu dois copos de leite e acendeu o cigarro,
foi para a varanda ver o crepúsculo. Era um daqueles dias que não transcorreriam, quando
tinha amigos eram dias mais fáceis. Não conservara os amigos... Tivera épocas com poucos
amigos, épocas com muitos amigos e épocas de um único amigo, assim como namoradas...
Também se afastara da família. Seu isolamento era, ao mesmo tempo, um alívio e uma
melancolia de flexibilidades eternas. Lia, escrevia, desenhava, fotografava, pintava, assistia
filmes, ouvia música e fazia tudo que gostava com mais paciência, mais serenidade e vigor.
Substituíra o espaço dos companheiros, namoradas e parentes pelo espaço do trabalho, dos
clientes e da irritação. Quando se aposentasse talvez viesse a ter mais alguns amigos e
grupos. Provavelmente sim... Mas o que são as probabilidades perto das vocações e vícios?
As estrelas saltitavam das órbitas. Teve vontade de sair, espairecer... Fotografar as pessoas,
a natureza e as ruas. Sentir os ecos das imagens no cérebro, seus reflexos na emoção e seu
contato na pele. Entender minimamente o conforto e ares dos homens, suas buscas.
Orientar-se com as mãos atadas às esferas comportamentais que delineiam e dão formato
aos pensamentos. Pegou sua velha máquina fotográfica e a pôs sobre a cama, despiu-se.
Colocou sua camiseta branca, seu chapéu preto, seu terno preto, sua gravata preta, sua calça
preta, suas meias pretas e seus sapatos pretos. Olhou-se no espelho do banheiro com a
máquina em mãos, queria passar totalmente desapercebido. Assim que gostava. Não
interferir em nada, como se apenas seus olhos estivessem nos lugares de suas fotografias.
Fumou um cigarro e saiu, sorrateiramente, dos cômodos da própria casa. Achou tolo e
desnecessário, notara Caufield atônito, mas logo achou que aquilo fosse um jogo de sua
imaginação. Saiu, voltou tarde, deixou os dois rolos de filme no porão. Revelaria-os pela
manhã, geralmente conseguia quatro ou cinco fotos que o agradavam. Subiu, despiu-se,
vestiu um pijama, bebeu uma garrafa de leite e pensava em sua pequena expedição,
recordava-a com precisão cirúrgica e se apetecia com sua pequena aventura... Saíra de sua
casa, pusera o molho de chave nos bolsos e começara a andar em paralelo com as pessoas,
movimentos e percepções. Seguia o breu, as trevas e a furtividade. Passou pelas praças
movimentadas, sempre via algum grupo de adolescentes belos e ágeis... Andando e falando
muito, tirava foto dos mais quietos. Era hábil, astuto. Nenhum deles percebia suas posições
perfeitas, o clique espontâneo e o flash certeiro que radiava de sua máquina. Depois se
cansou deles e começou a tirar fotografias de movimentos, houve um, em especial, que
sentira (ao mesmo tempo) imensamente próximo e longínquo... Viera da penumbra de uma
mulher de meia idade que passeava com os filhos, todos bebiam refrigerantes em copos
plásticos e o reflexo deles lhe parecera muito interessante. Depois confrontou algumas
exposições luminosas de árvores, bancos e riachos confrontando-se com as lamparinas dos
postes. Cansou das praças, procurou subúrbios... Sempre a pé, procurava a treva imóvel e
solitária, almejava ardentemente por seus fragmentos melancólicos e desbotados. Tirou
algumas fotografias de paredes, corredores desertos, umidade de lágrimas reluzentes
advindas do nada, escorrendo nas transições salientes da tez de marginais e prostitutas.
Andara muito, suas pernas doíam. Entrou num pequeno restaurante e bebeu um chope
preto, fumou lá fora e depois fotografou uma bela garçonete. Cabelos muito pretos, pele
pálida, olhos claros e imensos. Ela esboçou um sorriso, mas não disse nada. Ele pagou a
conta e apontou para um táxi. Aquelas ruas ficavam lotadas de táxis. Suas pernas estavam
dormentes. Gastou o resto do filme do segundo rolo enquanto tirava fotos através da janela
do táxi e escutava as histórias da vida do taxista. Pagou o valor que indicava o taxímetro e
lhe deu uma boa gorjeta, ficara comovido com sua estória. Era triste, mais triste que a
linguagem que ele usava para contá-la... Entrou com a máquina jazendo com carinho em
sua mão. Foi assim, pensou. Depois foi para cama, demorou para dormir. A aurora veio,
que deslumbre fascinante fazia em sua janela... Virou-se, pensando nela fixamente, deixou-
se vencer pelo cansaço, caiu na corrente sucessiva do filme infinito dos pensamentos.
Dormiu. Mais uma vez estava em seu tão admirado universo provisório de inconscientes
sutis, túneis brinquedo kamikazi.

Levantou da cama, depois foi para a mesa, esticou os braços e as mãos e bateu com os
dedos na mesa. Voltou ao quarto, sentou-se à escrivaninha e escreveu, num impulso mais
agudo que um corte. Num impulso frenético, escreveu:

“porque eu só queria ficar no telefone com alguém, alguém... absolutamente em silêncio,


escutando a respiração. sem a dor das palavras que não somem. é bom assim. quase. você
pode imaginar tudo... tudo. Deve imaginar tudo. talvez menos que tudo, mais que tudo...
nem se convencer disso. castelos ocos, que não poderá ver, vão aparecer perdendo-se aqui,
exatamente aqui, nas obrigações... Sem sono? É incrível como tudo nos leva ao passado,
o passado recente... o passado de muito tempo vai sumir, vai sumir, não tem nenhum
controle ... nenhuma emoção e tanto medo de palpitar! tanto medo de se precipitar e cair.
vaga, vaga em repouso... num balanço de linhas que não somem sim. e marco tudo em
minha máquina de escrever tão morta, tão viva Tenho uma angústia ritmos e relatos que por
si mesmos se confundem e fazem tanto amor e tão profundíssimas feridas, feridas, feridas
uma lente que nos separa as distâncias tênues e brutais e muita fumaça muita fumaça eu era
alguém até ontem, até um conhecimento constante das coisas e dos mundos e de suas
alterações.”

Olhou para suas palavras, seus escritos não pareciam nada, nem queria que parecesse... Não
que venerasse isso ou não fizesse questão do que guardava em sua mente. Cada vez mais
distante de sua mente. Confuso, confuso foi para o banheiro e tomou banho. Desceu a
escadaria que levava ao porão com a toalha na cintura e os pés ainda molhados. Pôs luvas.
Revelou as fotos em seu ampliador e as deixou secar. Subiu com passos mortos, que
galopavam involuntariamente, vestiu-se e saiu para o trabalho. Volta: Entrou em casa,
sempre a mesma porta para a mesma função. Os mesmos contornos e as mesmas picuinhas,
os mesmos detalhes e contornos desinteressantes postos sob a mesma tabu de devaneios. O
espaço e o tempo eram curtos, o espaço e o tempo traiam e eram vagos. Tateavam e se
perdiam. Desceu ao porão sem comer, era noite e não comera durante todo o dia, isso se
demonstrava supérfluo, considerou. Mas, vazio por dentro pode compreender muitos
aspectos perdidos entre si. Entre os quadros tortos da parede e as fotos rejeitadas pela
estética de seus olhos sensíveis (ou insensíveis?) ou niilistas. Marcava os pontos pelos
relentos das euforias e tinha que se concentrar cada vez mais frequentemente em algo para
se afastar da depressão profunda, das melancolias quase doces e imperceptíveis que podiam
virar redutos de uma tristeza incompreendida e incompreensível. Uma tristeza cítrica.
Envergou um olho e viu uma foto de soslaio, num lapso de charme pouco reduzido à
curiosidade. Categoricamente abrandou seu olhar para todas as fotografias... Enfileiradas no
varal, dispostas categoricamente para sua avaliação e prismas de firmação. Seus raios de
equívoco podiam ser despejados com precisão cirúrgica inobservável, isso o afligia e
desesperava. Cada olhar seu parecia um olhar de dúvida, cada tato de arte perpassado de
seus olhos para suas imagens lhe pareciam repuxos. Escolheu algumas fotos, levou-as para
cima, abriu a gaveta, botou-as ali, fechou a gaveta e a trancou. Pôs a chave embaixo do
travesseiro (como de costume). Rompeu dentro de si uma coragem invejável, uma cisma
doutrinadora de bradar abrandar tresloucar. Expressar-se tentar, comunicar-se todo a custo
de, sob todas e quaisquer hipóteses possíveis. Ficou mudo e, mudo, adivinhou-se também
cego e imutável. As paredes olhava, as tão fundas e tão rasas paredes de seu quarto. Queria
submergir, subtrair-se àquelas paredes concretas e insofismáveis. Não podia triturar seus
neurônios simplesmente forçando-os, nem resolver suas noções ridículas prolongando-as e
abatendo-as fisicamente. Através dessa fria harmonia, andou até a cozinha e preparou uma
pequena refeição enquanto fumava, comeu-a, bebeu dois copos de água, lavou toda a louça
acumulada pelos dias de negligência e ócio, voltou para seu quarto, deitou-se sem se despir
e dormiu. Dormiu, pois já havia pensado demais no futuro e em si mesmo. Enfatizara
exageradamente a ânsia e o desnutrido que moviam mínimos esqueletos na lagarta e no ato
do desabrochar. Condenara suas coordenações físico-motoras e segregara seus mártires de
seus poetas. Ninguém podia dormir com tais, contudo também não podia deixar de pensá-
los, delineá-los, trafegá-los e acatá-los. Em toda sua abstração do mármore de seus
problemas. Estivera perto de resolver todas suas questões, incógnitas e buracos e se
deliciou com eles. Ao menos havia apagado a luz, a casa toda estava apagada. Um mundo
que estivera aceso por muito tempo, era injusto ficar apagado por apenas oito horas... Oito
horas que não recompunham seus tédios e aspirações de ininteligível. Tampouco lhe
traziam felicidade; uma sensação tão hermética e tão segura, mas breve. Tão efêmera
quanto às vitórias que sentimos esporadicamente e, por mais que absorvamos, expiram-se e
dissolvem ante nossos corpos. Tão efêmeras quanto as taças de vinho que enchemos e
parecem que durarão junto com as conversas, sorrisos e aconchegos humanos. Tempo que
jamais conseguiria sob os tecidos de quadros resolutos e cenas estipuladas. Estipuladas?

Era assim, não tinha princípios nem iniciativas. Queria simplesmente uma coletânea
regulada com todos os sons, imagens, palavras e expressões que transtornavam em sua
mente de forma difusa, intranquila... Queria-a para que pudesse organizá-la solidamente e
imprimir uma conclusão própria para as circunstâncias e decursos a que estava exposto e
aprisionado. Não havia nenhum ponto fixo em que pudesse se agarrar...
O fumo, a bebida e os remédios o acompanhavam desde muito tempo e as escapatórias
pareciam, agora, apenas um conjunto de erros; outrossim, seu despertador sempre estava
ali, seu trabalho sempre o aguardava e o dia precisava ser tragado por mais denso e
venenoso que fosse. Como um sonâmbulo, andou até o banheiro, escovou os dentes, tomou
banho e vestiu suas vestes. Arrumou sua maleta de papéis, deu a ração de Caufield, fumou
um cigarro e saiu; mesmo havendo muito tempo até que o escritório fosse aberto. Pensava
em suas fotografias e sua presença indireta nas paisagens, presença de mero observador
apaixonado. Observador que não saberia definir o amor conciso pelas gravuras escolhidas
nem o espírito proporcionado pelas captações, sensibilidade oculta. Os fundamentos
estéticos eram vagos e relativos... Rotativos. Quase a ponto de chegar à visão humana, a
ponto de contê-la. Olhando para o adiante não sentia nada, tampouco para baixo, para
frente e para trás, os focos se distorciam e se limitavam a simples impressões. O suprimível
era decadente sob a ótica de suas meditações, a vida só era sustentada pois se baseava no
insuprimível. Os ventos vinham fortes de encontro ao seu rosto, não sabia se esse vento o
recompunha. Resolveu que nenhum dos dois casos lhe eram desfavoráveis. Recompor-se
por razões bobas era a evidência do seu ridículo, mesmo que tudo lhe parecesse bobo e
nossas máximas esperanças sejam frutos de sementes e porquê. A natureza lhe parecia
inconseqüente; se realmente fosse, era-o para sacio próprio. Tentava a inércia incorpórea, a
profunda razoabilidade de suas faltas em conjunto com seus rigores néscios, vulgares e
instintivos. Sua sabedoria não ia muito além dos métodos maciços e das concepções de
procedência incerta, esse além era o ímpeto que o tornava insociável a um passo de. Não
vangloriações em contraponto. Uma filosofia intransitiva para um humor intransitivo. O
vento estava forte, chegou à porta do escritório com alguns minutos de antecedência.
Esticou as pernas e o sutil estalo dos ossos em união ao conforto instantâneo agradou-o
indescritivelmente. Fazia frio, mas por dentro de seu casaco e roupas formais esse frio tinha
ares prazerosos. Abriu a maleta e pegou um papel e uma caneta preta: Era a elaboração de
um contrato imobiliário, virou esse papel e escreveu algumas linhas tortas. O horário de seu
trabalho chegou junto das últimas letras e resquícios de fôlego e paciência para escrever.
Levantou-se obedientemente com a maleta já arrumada, pegou o molho de chaves no bolso
de seu casaco e abriu a porta principal. A secretária chegaria em quinze minutos, sua
infatigável rotina recomeçaria em meia-hora. Ficou minguado pelo silêncio súbito que
penetrou seu peito assim que fechou a porta. Passou pela recepção como um fantasma
vagaroso e entrou em seu escritório, arrumou sua mesa e começou a trabalhar em seus
trabalhos com algum zelo. Não o zelo dos trabalhadores assíduos, o zelo dos homens
serenos que não têm nada mais que fazer em determinados momentos senão seus trabalhos.
Trabalhou até as sete horas da noite sem comer nada, apenas engajado em causas e justiças
alheias. Em compensação, seu maço de cigarros estava vazio. A secretária já havia ido
embora, o ar do escritório estava pesado. Abriu a janela e deixou um pouco de vento fazer
esvoaçar seus cabelos para trás e refrescar suas faces. Ficou ali durante algum tempo,
apenas respirando e ouvindo seus pensamentos. Agia na maioria das vezes de forma pueril,
entrementes conseguira bastante convicção com a idade e a arrogância. Começou a garoar,
uma garoa que foi aumentando e se tornou chuva e depois, tempestade. Fechou a janela e se
sentou na poltrona, deixando que um suspiro aliciante se escapasse de seus dentes selados.
Iria adormecer se ficasse naquela posição por mais alguns instantes, levantou-se e encheu
um copo de café. Café já gelado e com gosto de argh. O maço, vazio. As fugas, impróprias.
Pegou o cartão e ligou para o taxista. Fechou os olhos, uma celeuma se difundia dentro de
sua cabeça. Escutou um zunido surgindo de longe e se acercando de seus sentidos. Um
carro parou na porta de seu escritório, a tempestade caía de maneira corrente e ganhava
fluxo, ganhava as calçadas e toda a sujeira e espécies de lixo; lavava toda a cidade. Vestiu
seu casaco apressadamente, arrumou sua maleta e abriu seu guarda-chuva preto. Fechou a
porta e a trancou com as mãos trêmulas e frenéticas, como se ela nunca fosse se fechar
novamente. O homem do táxi buzinou. Finalmente conseguiu trancar a porta, correu com os
pés entre as grandes poças de água. Entrou no veículo e bateu a porta com força. Pediu para
que ele fosse para um bom restaurante. Quando o taxista perguntou o nome do restaurante
que desejava, não soube precisar. O motorista sugeriu alguns, escolheu o mais discreto.
Pagou o taxista e pediu o risoto de frutos marinhos e uma taça de vinho branco. Também
pediu um maço de cigarros. Comeu com apetite, pediu um copo de água e degustou o
vinho... Depois quis uma xícara de café com creme e bebeu-a enquanto fumava o primeiro
cigarro. Pediu a conta, pagou e foi para fora. A tempestade havia parado e um céu estrelado
empanava o teto noturno. Voltou a pé para casa, entrou e notou Caufield nadando
comodamente no aquário. Achou que aquilo fosse para cumprimentá-lo, sentiu-se narcisista
e achou que pensasse uma grande tolice afinal não é raro que peixes nadem.
Caulfield era um bom animal. Não julgava, nem reclamava e ficava o tempo todo ali
disposto a ser visto, uma existência modelo. Uma existência sem rumo que estava presa
exclusivamente às suas conveniências. Não era capaz de demonstrar carinho tampouco
afeição, muito embora também não demonstrasse rancor, mágoa e descontentamento. Não
fazia barulho nem tinha muitas necessidades, seu apetite não era monstruoso, seus hábitos
não atingiam absurdos e sua paz era digna de inveja. Nadava pelos cantos ás vezes e
quando se cansava, mantinha-se imóvel encostado nas bordas ou no solo de seu
homeopático universo. Devia ser um exímio observador e descobridor de detalhes, pois
tudo que fazia era encarar, mexer a pequena silhueta pelo aquário e comer. Crescera
bastante rápido, sua coloração ficara gradualmente brilhante e suas tonalidades de laranja
eram bonitas no contraste dado pela água e sua transparência oscilante. Talvez fosse
desesperador viver ali depois de conhecer oceanos amplos, fazer expedições e ver cardumes
coloridos, a mutação constante de espécies e lugares passando em fluxos seqüenciais de
adaptação até a sonhada estabilidade e em seguida a morte (que é o que resta após a
realização de todos os sentimentos, mágoas, visões e experiências possíveis). A morte em
seu desfecho ora súbito, ora paulatino. Todas as fantasias e desafios são absolutamente
irrealizáveis numa só vida... Talvez a vida possa ser opulenta e verossímil se concentrada
extremamente em algo, mesmo assim muito vagamente. Mas Caufield não tivera esse tipo
de vida, nascera em cativeiro. Vira poucas pessoas, poucas espécies e, relativamente,
poucas coisas. Passara por três ou quatro ambientes diferentes e desde então se acostumara
com seu ostensivo aquário, sobre um móvel límpido e plano, com uma vista para a janela
que, ás vezes, mostrava o céu. Olhou bastante para Caufield, para seus olhos sem pálpebras
e atentos. Entrou numa espécie de transe hipnótica, depois foi para o quarto e se despiu,
deitou-se na cama, no quarto escuro. Não saberia elucidar as imagens de suas idéias... As
especulações feitas na solidão são mais lancinantes que as feitas em grupo, fúteis e
banalizadoras. Abandonam-nos a esmo de nossos próprios lampejos reflexivos, e nos
deixam sem ter onde se apoiar senão em nós mesmos e acabamos por cair e se ferir. As
esfinges surgem esporadicamente e se inclinam com rispidez dentro de nós (como
alicerces). E, de súbito, nada vale mais nada, nossa infensa atmosfera mental circunda-se e
rompe. Nossa película corporal é sensível e se rasga e não há coisa alguma que possamos
fazer. O desespero vem no acaso. Expressar-se nos devasta. E se expressar nem é tão
difícil, ás vezes é nosso único ombro para se debruçar e chorar como anjinhos, e que
magnífica maneira de atenuar o que nos inflama interiormente! Vôos de borboletas e afagos
frescos na alma ou simplesmente a anestesia de uma febre insondável de tentativas nulas e
espectrais de emendar os materiais estraçalhados de nosso egoísmo, insano e carente.
Depositar o peso negro de nós mesmos em recordações estarrecedoras, que assustam e
serão massacradas pelas atividades cíclicas e mortificantes do futuro. Paralisados num
único e leve sopro do momento. E o momento é tão vasto e impressionista... Vemo-nos sem
sentido e as lanternas, antes vívidas em nosso crânio, se apagam. Desaparecem. Quis fechar
os olhos mas eles relutavam. Após alguns minutos os fechou com firmeza e dormiu um
sono pobre.

Acordou, um papel estava ao lado de sua cama, no criado mudo; reconheceu sua caligrafia.

“As horas transcorrendo, ternas e provisórias/ Noites caindo em dias indefesos/ Bafejos
ácidos, roendo os abismos e tutanos/ Enquanto a tormenta se insinua como um balanço
e há éter nesses olhos translúcidos.

As poças de água virão me abraçar / E como estados despertos poderei aceitá-las


Assim como em meu peito, um casaco e uma medalha / saberão defender das fumaças que
sobem e absorvem barreiras e silêncio.

O Lugar ficará estático e errôneo / transparecendo o que fora acatado por buscas
desintegradas / Retendo, como trevas, as fuligens abstratas / dos nossos paraísos
insuficientemente trágicos e repletos de folhas secas.

Retórico nas alçadas de acordes e mosaicos de luz e ruína / Fazendo as cidades galerias de
ventos / Fazendo as idades sempre de fugas / E quando tudo acaba, continua, continua...
Como esse olhar dissesse o absoluto.

Terrenos planos estendendo mais conflitos / Tateáveis e sedentos, cabines de passos /


Pétalas desagregadas - um azul cegante e fugaz / Cordas de couro negro, paredes se
aproximando e sumindo como a vida e o som.

Esfregou as mãos nos olhos aborrecidos... Era o papel que havia escrito na manhã passada,
no último degrau do escritório, enquanto a neblina não desaparecia e seus olhos eram como
dois cavaletes sem quadros nem molduras, de cores frias, com dois cones de h(in)pnose no
meio. Largou o papel, foi ao banheiro. Seu rosto nunca esteve tão cinza e pálido, seu cabelo
tinha uma cor de areia mórbida e caía em fios finos e fracos, uma franja sobre suas olheiras
e rugas, sua face sumia em linhas oblíquas, profundas e tenebrosas, pareciam abismos
horizontais dispersos nos campos cobertos por neve de um cemitério inacabável sob a
abóbada deformada de seu rosto. Pôs a mão na pele e sentiu as curvas desfeitas, depois
levantou do travesseiro. Estava suado, não soube definir desde que ponto no andamento de
seus atos estivera sonhando. Os semiaros da sobrancelha franziram de curiosidade, roçou a
mão na testa... Parecia estar febril. Levantou como num veredicto, teria várias audiências
no fórum nesse dia e não poderia continuar protelando. Teria de ir, escolhera a profissão,
escolhera os clientes. Alguns queriam acompanha-lo nesse dia.Inclinou-se de forma
indiferente e desligou o despertador que só a essa altura percebera que tocava de maneira
incessante. Arrastou o corpo ao box, sentou-se no piso e deixou as cachoeiras de água
gelada caírem nas costas e na nuca dispendiosamente. Tomou um banho demorado, saiu do
banheiro, fechou a porta e vestiu o melhor terno. Preparou todos os papéis, organizou-os
por ordem de horário nas maletas, tomou o café da manhã com os poucos mantimentos que
achou no armário, chamou um táxi, ouviu o barulho de buzinas do lado de fora, era o táxi
que pedira, entrou nele e seguiu para o fórum. Era um bom taxista, mexeu os lábios apenas
para perguntar o local a seguir e para anunciar a quantia. Desceu do táxi e encontrou seu
primeiro cliente já de prontidão, na porta. Quantos projetos pendentes! Todos seus projetos
pareciam grandiosos mas nenhum era posto em prática. E pareciam projetos grandiosos por
pouco tempo, pensar neles os simplificava... Quando encarava as coisas já feitas só lhe
sobravam as lentes frívolas de prazeres dúbios. Estáticas a ponto de se inquirir se
compensaram a própria realização. A maioria delas feitas por capricho, talvez tudo que lhe
restara das emoções sensíveis emanasse desse capricho. Era-lhe impossível fixar-se apenas
na morte, a morte sucessiva de suas ocupações. O falível de suas habilidades, a fundação
exclusiva de seu ser numa razão ausente. Nem tudo era tão óbvio quanto na forma falada de
convencer, mesmo assim evidenciava-se confuso o teor dessa afirmação. Tudo era tão
relativo quanto no conceito de caos. A certeza humana se distorcia facilmente, seus
complexos refletiam lacunas e breus. Alguns momentos demonstravam-se densos e
preciosos, podia vê-los num estágio latente de reciprocidade. Nuvens pesadas não podiam
poluir seu eufemismo de suportar, isoladamente, todos os seus atos pelo resto da vida.
Olhou para o cliente e o acompanhou de forma resignada para dentro do fórum. Caminhava
para dentro do castelo dos julgamentos. O castelo construído com os tijolos de leis
burocráticas e processuais que poderiam ser resumidas em duas normas simples: “Não
prejudique o outro nem você. Não prejudique o que é público”. Até onde aquilo era
lucrativo? Os infernos se atiçavam nas culminâncias dos homens, quis argumentar e
esquecer, não pôde... Algumas batidas de martelo depois e se livrou do dia que parecia
despencar às carreiras em cima de seu corpo ou, pelo menos, assim pensou. Regressou à
sua casa de ônibus, sua cabeça estava a ponto de explodir. Tentou acomodar-se com a
verdade de que, financeiramente, vivera um bom dia. Depois se questionou sobre o fator
financeiro e sua influência direta na vida humana e ficou decepcionado. Abriu a porta de
casa e abandonou a maleta no chão, passou por Caufield sem olhá-lo, entrou no banheiro e
tomou um banho quente e demorado. Saiu do chuveiro, penteou o cabelo para trás com
creme, barbeou-se, vestiu um suéter e uma calça cáqui, pegou dinheiro no cofre que
mantinha em sua casa e saiu. Precisava de algum alívio, ver alguém de modo
descompromissado, enxergar um pouco de luz no fundo da alma que desse algum sentido.
Por mínimo que fosse, algum sentido. Chamou um táxi e indicou o caminho para um bar
que tocava jazz, um bar que não ia desde a época de sua juventude com namoradinhas e
amigos. Era uma tentativa de nostalgia que achou, de início, vergonhosa. Mas as bandas
eram boas, então não tinha muito a perder. No lugar estava o mesmo segurança dos velhos
tempos, um gordo com roupas pretas e grossas. Cumprimentou-o mas ele pareceu não
reconhecê-lo. Entrou no lugar, escuro como de costume... Apenas iluminado por lânguidas
luzes, azuis e vermelhas e laranjas e verdes. Sentou-se ao balcão, um pianista tocava um
solo meloso. Pediu uma dose dupla de Bourbon e acendeu um charuto, o último charuto
que lhe sobrara. Uma mulher sentou ao seu lado e começou a conversar. Falava bastante e
olhava para ele de quando em quando. Depois saiu e se afastou com expressão aborrecida.
Esquecera de responder à ela, esquecera de ouvi-la; a triste obrigação das conversas. A
triste determinação dos rituais de sociabilidade. Tentava calcular o infinito mas ele não
existia. As horas passaram rápido com a música, o álcool e a harmonia. Amava, amava
absurdamente um oásis. O ar no fundo do peito, um amor que não poderia desprender de si.
Mais sentimentos como aquele, percorrer mais valentias silente; embalar-se como um corpo
que pertence a algo, um quadro maior e de aceitação radiante e austera. Não podia ser
coincidência, seus últimos suspiros entorper-se-iam crédulos e risonhos. Um sono tão
bondoso para um ser insone, mágico e de uma realidade palpável, uma nitidez impregnante
e bela. Livre realidade dos loucos, que têm e vêem tudo com retinas desconexas e
ofuscantes. Sobre uma paranóia quase invisível, agregada a cada fala, cada ínfima
constatação! Seu abrigo de carne parecia o suficiente, até mais... A relação entre a
humanidade e a natureza era excepcional, cada metafísica com capacidade de
discernimento agia de maneira peculiar. Enfatizava uma regularidade próxima ao comum
conquistado, à vulnerabilidade imaginária e construtiva, contudo, por mais que tentasse se
desapegar de suas superstições mais pessoais e simbólicas, elas suscitavam instintivamente,
suscitavam por sempre estarem (mesmo que de modo parcial e vago) alertas, contínuas. O
passado era como um vulto imenso habi(li)tando o presente, estava ali. De modo que o
tornava impossível de ser resgatado pelo senso curioso, estava ali. Sem poder ser alterado
ou redefinido apenas com as teorias e perspicácias adquiridas pelos relâmpagos turbulentos
do fluxo da racionalidade. Ai ai o coração e suas válvulas, bobinas e esteiras. Seco ou
molhado; persistente, vivo.

Pagou suas doses, perscrutou todas essas questões no caminho de volta para casa, trajeto
que fez a pé. Tomou um banho frio, deitou-se, cobriu-se com a manta de lã e ficou imóvel
até que a dor de cabeça fosse substituída pela janela do silêncio, abrindo-se e fechando-se,
abrindo-se e fechando-se...

Acordou com aquela velha sensação de fraqueza. A respiração ruidosa, o corpo na


temperatura morna e pegajosa da preguiça. Esticou o braço para o criado mudo e tateou os
objetos até encontrar o maço de cigarros, vazio. Praguejou e levantou, estalando todos os
ossos do corpo. Afastou o cabelo molhado dos olhos e procurou o relógio. Ótimo, estava
atrasado, mais que de costume inclusive. Arrastou-se até o banheiro e ligou o chuveiro sem
pressa. Todo jorro de água gelada começou a despencar sobre seu corpo. Passou as mãos no
rosto de maneira frenética numa razão abstrata de dissipar seu panorama embaçado. Não
quis tomar café. Pôs qualquer terno limpo, o chapéu e saiu sem olhar para nada além da
porta. Sua vida parecia uma seqüência de portas mal escolhidas. Um caminhar eterno por
corredores sinuosos, sinuosos devido a sua estranha monotonia. Havia sempre o sentido
maior, raramente distante de seu ponto morto de frustrações. Esse sentido ele não podia
alcançar, mas sabia que também estaria vazio. Chovia torrencialmente, as gotas eram
pesadas e constantes. Teve que correr até o ponto de ônibus. Em um momento da corrida
sua maleta se espatifou no chão e abriu. Tentou recolher os papéis com movimentos
céleres, mesmo assim a maioria umedeceu totalmente. Seguiu andando o restante da
calçada. Sentou-se no banco ao lado de um rapaz que usava uma grande jaqueta preta e
fumava um cigarro mentolado. O rapaz lhe ofereceu um cigarro, recusou instantaneamente.
Um ônibus parou e o rapaz subiu. Os ônibus sempre circulavam por mapas definidos e
concretos, aceitando qualquer criatura como passageiro. Governados por um alguém maior
que eles próprios. No escritório pode cuidar de vários casos e esvaziar uma garrafa térmica
de café em poucas horas - apenas no intervalo de atendimento entre os clientes. Chegou o
horário do almoço, foi ao supermercado e comprou um pacote de bolachas. Foi para casa e
sentou na varanda. Acabou com os biscoitos. Nenhum ruído a mais quando parou de
mastigar. Tudo passava mudo, de maneira lenta e sensível. Mas não deveria ser assim...
Pois nunca havia sido. Tão deprimente ficar embaixo daquele imenso céu nublado, voejado
apenas por pássaros esquivos. Tão deprimente ver a viagem melancólica da atmosfera
cercada por muros e cercas. Sem consciência de aventura, ocupações e escrúpulos. Apenas
aquele tédio insuportável e desiludido. O vento ficava forte, o tempo frio. Um frio falso,
imaginário. Sentia-se dentro de uma gaiola cinzenta, dentro de uma janela que dava num
infinito deserto de incompreensões. Pressionou as mãos no colo, aquele estranho barulho
que despertava uma sensação suave de prazer. Bolinara uma ruptura tão grande entre a vida
e a própria vida. A vida não era mais a mesma e, estranhamente, jamais poderia ser. Olhou
para o relógio de pulso. Aprumou-se, um manuseio forçado com a cabeça e o regresso ao
trabalho. Até as seis; sem pausas, sem clemência. Voltou para casa correndo sem motivo.
Uma estranha sombra perpassava a janela e se projetava no aquário. Aquela esfera de água
parecia maior, não cabia mais na sala. Caufield boiava de barriga para cima, inerte. Deu um
passo para trás. A mínima presença de vida dentro daquela casa morrera. Não tinha vontade
de chorar. Tampou o aquário com uma toalha. Tomou um banho rápido, arrumou-se com
desmazelo e saiu. Não podia mais respirar aquela atmosfera devastadora. Na rua, não soube
aonde ir. Um carro passou tocando The Beatles alto.

Sábado, a mesa do café, vazia. Cogitava algumas questões do isolamento. Ainda


enumeraria as chances quando decidiu se virar e ver. Lembrou-se de todos que passaram
por sua vida. Eram todos muito deslocados, escolhera aquelas pessoas e tinha plena
consciência de sua escolha. Outras não seriam melhores, talvez dessem apenas a sensação
de refúgios diferentes. Refúgios ou encontros?

Depois ficou a bater os dedos na mesa num ritmo incerto e desconcertante. Atrás de
montanhas brancas, onde subia muita águia, o senhor da razão passava lentamente, com
passos pesados. Estraçalhando folhas secas e traços oblíquos. Pedras, ausência, medos
escurecidos em si mesmos e largados a deriva de vendavais. A vã sabedoria do neutro
prosseguia, prosseguia... Numa viravolta de vidro e vazios. Encontrando o estado das
noites. O afago das esfinges. Encontrando o próprio corpo despedaçado dentro de um
espelho. Esvaecia no céu espirros de um tempo quente, quântico. Que não tinha permissão
de voltar já que chegara. O fenômeno das expressões diminuídas e coloridas. Procurou rir-
se por alguns tenros segundos. Sem agitação, sem introspecções arrastou-se até a varanda.
Cavou um buraco no meio da pouca grama que conservava. Quando acabou estava com o
rosto corado pelo sol matutino, entrou. Pegou o aquário, um pedaço de papel e um lápis
verde. Colocou o aquário dentro da cova. Rabiscou no papel:-

A solidão não é tão triste assim.


Por um segundo,
eu só queria acreditar.
Um suspiro amargo
Passarinhos andando no instante
O vento obscurecido de forma tênue
Incessante estrela, constatar.
Entropia e glória,
Derrota e paz
Selada a morte, da leveza da pluma
Na capa do compromisso de viver: pesado como uma bigorna, leve como um floco de neve
Destruindo e criando
Destruindo e criando pelas mãos do mesmo alfaiate, a mesma cadência, objetos e seres
que se confundem.

Penetrou as cortinas e ficou. Ninguém viu, ninguém vê. Grande acontecimento. Qualquer
herói para guia-lo, o semblante secreto de impossível. Um anjo? O quarto de mímica.
Claridade. Uma fração de lucidez, uma só fração perfurando o tempo. Depois o retorno
arrependido. Há muita tristeza e felicidade andorinha para todos, a mágoa e o riso e o
abraço. E, sentado na frente da lareira, vendo o aquário no outro lado da sala - seu papel
estava definido. Marcou um ponto, dois pontos, um traço. Fim. Fixou a audição, desistiu. O
fogo crepitando, estalidos. Um cão começou a latir. Ruídos de lata e carros. Luzinhas
sorrateiras na janela. Flutuando, flutuando... Dentro do roupão ficava fácil relaxar, dormir.
Dois minutos ali, a boa posição do parque das almas. Dois planos distintos de silhuetas.
Estátuas desbotadas de sonho.

Saiu de casa. Andou, andou. Encontrou um amigo no banco de uma praça. Estava fresco,
azul celeste e brisa verde água. Ficaram conversando por meia hora, uma hora. Estava se
sentindo melhor, de fato se sentia melhor. Os transeuntes passavam. Que sol bem
desenhado no horizonte e nenhum compromisso, agenda, deixa.

Você também pode gostar