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Logro e Louvação

Mercado de pulgas com os tapetes de Istambul. Cartão postal com as


fotocópias da cigana em meus lábios, reconfiguração do abajur dos dreads,
fluorescentes elos, cartas de taro do Cairo, jaqueta de couro de Paris,
marsupial rajado que debruça em minhas costas, atores de filme trash na
mesa de bilhar. O narguilé âmbar que causa calafrios em meu domingo pó,
cascos de garrafa de vinho seco, cereja, páscoa inflamada. Planeta planta
do estranhamento em uma birosca da Augusta. E sôo qual um bongô em
transe, uma prece monumento, uma vasta intuição dentro do metrô, do
manequim da vitrine, da linha pontilhada para uma além porta, uma além
compreensão e compenetração. O dia decresce em meus calcanhares qual
uma inundação que baixa, um vira-lata que desperta, um catador que me
tira um pedaço.Cortinas descalças, edifícios; doses cada vez mais doentias
de tudo, durmo no colírio, avantajada crônica da manquidão por
presenças, e uma cumeeira de plasticidades é chutada pela sola de meu
tênis retrô, afunilada pela minha caneta estadunidense; sou a última
pessoa na última fileira do ônibus. O porteiro em meu sensor ótico acena
após mais uma sessão de hidrantes e zunidos de automóveis. Helder numa
sacada, mosaicos de paralelepípedos bronzeados, canos que jorram a
enxurrada da cabeça quente da metrópole que apita qual um monopólio:
cortes nos relatos macilentos da manchete, camisa de força da televisão
domesticadora, noções de folder e abraço apertado imprevisto da
companheira brisa que corre para me tirar o ar e o calor do pescoço, dos
brônquios. E me sinto mais cigano que a cigana da fotocópia em meus
lábios.

Meu humor é uma página que faz aeróbicas, espessuras de cetim na


lanterna mnemônica, uma máscara de dramaturgia no eco do sol sobre a
linha laranja, um idioma litúrgico, um sino e um sinal. Junto às minhas
tralhas, meus cavaletes de alteridade, minhas lupas, pijamas, cds e balas
de café delineio uma transcendência com o indicador, um fim de semana
na varanda, mensagens no esqueleto do oásis, bocejos para minha lareira
imaginária, certezas da inutilidade do ir e vir, da opção de incorporar o
lunático, o sóbrio ou o sábio. A regra geral é provocação, mas sempre
acabo choramingando um amigo na agenda ou uma vertigem de ensaio ou
um reduto de banho de cachoeira, de cata-vento na noite, de rompimento
salutar com a baldeação; uma picareta ponta abrindo a mente, os bate
papos com a virtuosidade, os empecilhos, tempestades, ascetismos da dor
e o espezinhamento dos tornozelos. Insinuo um encobertamento das
coxas, um marasmo das partículas do teto, esparsas, que extinguem-me
os batimentos, as lótus flechas das mãos, um seio em mim, aéreo;
levitação do rádio relógio que me despertará de manhã. Rompo o painel, o
planetário das nebulosas, os organismos contidos nas aparelhagens até a
seringa antena do estopim de si, da telegrafia do amor bruto:
generosidade, fervura, placa com vocal dentro. Sobrecarga da cristaleira
pictórica, veneziana da janela grande. E estabeleço território no sofá-cama
da finitude. E as preponderâncias esbarram umas nas outras: guarda
chuva da adolescente lá fora, solicitude do garçom corcunda da cantina, a
rua em caquinhos sob uma roda gigante com seres entrelaçados numa
cabine, girando, tornando ao alto.

Samambaias penduradas, vidrinhos de oliva, saleiro e paliteiro, cadeira de


praia no terraço e mastigo um sanduíche de sardinhas, bebo chá de
camomila com leite e um torrão de açúcar. Chove. Os garis passam e
varrem as folhas secas, bitucas e papelão. Um avião passa com suas
turbinas. A copa venta. Leio a revistinha dos testemunhas de Jeová e dou
miolinhos de pão molhado para o gato. Não posso ir às minhas aulas tão
cedo. Repasso o material, a caixinha de giz, a maleta, os óculos. Visto meu
suéter, passo a pulseira do relógio e o adianto cinco minutos. Ando até a
estação, endireito a coluna, suspiro, tusso um pouco, chupo uma
guloseima de gengibre e limão, vejo a hora. Repasso a trigonometria e as
avaliações. Faço o sinal, passo a roleta, não tiro os olhos da janela e de
sua fita urbana. Os mestres discutem a inflação enquanto arrumo meu
diário. Meneio um bom dia e sigo em direção ao primeiro ano para lhes
aplicar a prova. Jogam bolinhas de papel amassadas uns nos outros, faço-
os catá-las do chão e arrumar suas carteiras. Berro e me obedecem. Hoje é
raro alguém se fazer ouvir, liderar. Júlio é o primeiro aluno a entregar a
folha de respostas, é um bom menino, quer prestar medicina. Sempre tira
dez, está amuado porque sua avó faleceu, mesmo assim tira dez. Dou uma
barra de chocolate para ele, está muito franzino. No meu horário de
almoço como uma coxinha. Parece que vão entrar em greve de novo, não
podem protelar, não têm plano de carreira nem motivação. Volto ao prédio
para me entediar depois do expediente. Simplesmente encho a banheira e
afundo, prendo a respiração, apenas me deixo encher. Vejo uma coruja no
poste. Dizem que dão mau agouro mas as acho bonitas. Não acredito como
as pessoas são idiotas, elas e suas superstições que não valem meia
pataca. Já parou de chover. Como frango com polenta e parmesão. Tomo
gelatina de abacaxi. Vou me deitar. Voltou a chover.

Fui ao parque Ibirapuera para tomar um ar. Alguns monges


desempregados praticavam ioga. Dou-me bem com os monges sejam eles
padres (embora não me confesse periodicamente ou comungue ou tenha a
crisma), sejam eles médiuns (embora já tenha um bocado de chão sem
tomar passes) sejam eles pagãos (embora tente praticar princípios bíblicos
como troca de leituras orais e atitudinais). Reflito, medito, esvazio meu
garrafão de água no banco ouvindo os pássaros assobiarem, grasnarem,
piarem e me bicar; transpirando com os atletas, bufando e os invejando da
idade, pele, disposição cívica; sendo pai, ou mãe, ou babá carregando
bebês que ninam ou os levando num berço sobre rodas sob as
transladações do algodão com toque violeta e anil, tenho binóculos para a
movimentação atômica sem os ter. Uma paz imprevisível me unge, uma
espécie-espécime de destaque na carne, de transição intransitiva qual a de
Mário de Andrade ao se desmembrar à Capital, através da ligação com o
pan, atravessar a miligrama lume de si sendo-a. Não há muita explicação
de fato para o jeep vivo por controle remoto que colide com meu tornozelo e
se vai tendo me arrancado o riso. Nem é esse o foco (que não passa de
obnublação acalcada). O itinerário do vetor se faz compreensão pela
harmonia do tufão, um cone bola de cristal sintetizado. Será esse o marco
zero da minha folga: uma supressão do óbvio mais singelo em liquefação?
Ou seria somente pista para o quanto fugimos da balbúrdia e nos
prendemos a ela, para o quanto atrasamos, suspiramos em vão, somos
gastos e custo moldados à tentativa de se auto-afirmar? E isso é se
dissolver e ser dois no exato instante em que o um é gerado do zero.

Desvio da multidão com sacolas de plástico e papelão, o calçadão é minhas


solas, vagões, carros-fortes, motonetas, painéis, falatório, bancas de
revista, feirantes de degraus, camelôs, farmácias e suas balanças, pierrôs
e columbinas, travestis, moicanos, tatuados, reggaeiros, terminais,
lotações, o relógio da prefeitura, o tempo soberano, as ignições, fachadas,
arranha-céus, lombadas, esquinas e faróis e meninos do farol. Lojas de
música, livrarias, teatros, espaços culturais, tabacarias, padocas, sem-
teto, executivos, advogados, vendedores, pastores, mecânicos, soldadores,
crianças. Entro na loteria e pago minhas dívidas; saio, dou uma corrida
até o próximo ponto, vôo, vou-me nas escadas ainda.

Fui comer porçõezinhas de mandioca e bolinhos de bacalhau na Vila


Madalena, os botequins e seus néons, arlequins e noivas, os
estacionamentos complicados, atulhados; venho de condução para tomar
chope na confraternização da escola. Debatemos sobre o temperamento
beija-flor do funcionário público, a impessoalidade dos subsídios ralos, o
pau para toda obra que estamos nos tornando em nossos cargos, agindo
paternalmente, maternalmente em prospecções em classe, sendo
verdadeiros sabres luminosos do conhecimento, escutando e tendo
ouvidos, esgoelando e tendo linguajar, fazendo operações lógicas tentando
não perder o raciocínio. Estamos em oito. Oito garças alimentando os
filhotes. Oito filtros enciclopédicos. Oito jogadores de basquete tentando
virar o placar com um expulso. Oito filósofos atenienses. As sete cores do
arco-íris e o dourado. As sete notas musicais e a sintonia. Oito atores
tentando não improvisar o papel. A periodização da história e os dias,
meses e anos entre livros e corredores. Os oito movimentos literários mais
batutas. O oito horizontal, físico, universo formulado. Na hora da conta,
faço questão: deixa que eu pago um oitavo, doze e meio porcento, parafuso
apertado; enfatizando que matemáticos são justos, inteligentes e chatos
além de modestos.

É inacreditável a astúcia, a ousadia, a tacada na cabeça com taco de


beisebol sequencial que você tem que suportar para aturar o inferninho
das sibilâncias, complexos de alheamento da virtude, da privacidade do
outro, a carência da fragilidade do corpo, vaso de vidro, pureza crivada de
balas, ostentação do banal, polichinelo da mesma fita. Então você diz
chega! Lasque-se! E lê a bíblia no carnaval. Conforma-se. Larga os
embrulhos de presente e é livre para ir.

As engrenagens fazem a usina de sentimentos, os resquícios do


caleidoscópio, bicicletas de saturno, bancos de praça enluarados,
orvalhinhos, vagalumes: palmeiras, roseiras, pisca-piscas, pólen, garoa,
polaroids da gangorra pendendo no vazio. Sou um carregador de
papeladas, ideias, formação, contramãos, diretivos, túneis com girassol:
aquarelas do mirante e das folhagens. Vou descarregado de esmeraldas e
suspiros. De relógio e estratosfera, de rotas e rostos, do contínuo, de
esparadrapos e pílulas smile. Potes de mel e geléia de framboesa à venda,
doces de leite, goiabada, coco; os armazéns se estruturam ao dispor de
bocas, alianças de confeiteiros, pasteleiros, dosagens, temperos, folhas,
pamonha, ameixas, figos, damascos, pescados. Tudo isso no Mercadão.

A respiração, os olhos úmidos, a alergia, o farol, o moinho, a baía, os


pontilhões, as cadeias de acontecimentos nos reservam aviso de encontrar
o destino, de cortar o cadafalso, de se levantar e vencer as trevas, o
desespero, a enfermidade, o pecado que nos põe à prova todo santo dia,
quebrar as algemas, erguer os pés e pisar de manhã, saber que a primeira
imagem de nosso dia, travessia do sono, é a contenda, a solução e o
descortinar da mente e das missões. Quando vamos ao trabalho após lavar
o rosto, quando dizemos o bom dia que o nosso colega precisa ouvir,
quando tomamos o café da manhã fresquinho, quando ouvimos os
passarinhos, o trem, o jornal temos por nota que a existência aqui de
nossas pegadas é curta, denotadora do intrínseco da cruz pequenina que
carregamos, saliente de nossas relações com a terra e o vínculo, o ar e o
imaginário, a água e o tempo, o fogo e as energias dentro de nós.
Sondando trilhas de calcário e grama, engrandecidos pela capa de chuva
ou pelo sentido de não estarmos a esmo, sós, enevoados. Somos o que
avançamos sem atravessar qualquer um ao nosso lado. A senda, a senha,
o vernáculo são apenas registros da não peremptoriedade do cosmo, a
agulha fagulha da casa, do campo, das rixas e montes que corremos e
temos por vento nos pêlos, pensamentos, coração e estrada. E, por ganho,
temos o amanhã.

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