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Índice

Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Catorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
EPÍLOGO
Sobre o autor
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Todos os direitos reservados.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9610/98 pelo artigo 184 do código
penal.
Esta é uma obra de ficção.

REVISÃO: Marina Tiago


CAPA E ILUSTRAÇÃO: Alini Laube

AVISOS:
Sexo explícito entre mulheres
Violência explícita
Tortura implícita
OBRA DESTINADA PARA PESSOAS MAIORES DE 18 ANOS
Prólogo
O vazio da noite

A BOCA DO LOBO.

Era esse o nome iluminado por luzes vermelhas em formato de semiesfera no alto da
lona. Logo abaixo, a placa de madeira pintada com cores bem delimitadas e marcadas
reproduziam a boca aberta de uma terrível fera negra, onde separavam os martírios da vida real e
o mistério inquebrável da fantasia. Atravessar a boca com os dentes afiados pintados com tinta
branca, ainda fresca, representava a entrada do show de entretenimento mais conhecido entre os
Solares e o Luares.
A estrutura formada por lonas douradas e vermelhas afinava-se em três pontas
triangulares que se estendiam para o céu da noite quente e lotada de estrelas quase verdes. Ao
final de cada ponta, uma bandeira amarela com a pintura do sol e da lua, uma ao lado da outra,
confirmava que o espetáculo estava na cidade mais populosa da região.
Bandeirinhas coloridas ligavam as barracas que circulavam as três grandes lonas, onde
a comida, as brincadeiras e as apresentações daquela noite eram dispostas para os convidados
que zanzavam felizes como formigas perdidas e desfocadas em meio a natureza. Os risos das
crianças Solares eram ouvidos para os deleites dos pais, assim como a distração de um domingo
noturno.
Uma criança segurava a mão de seus pais enquanto os puxavam em direção da grande
boca da fera solitária do lobo negro pintado na entrada da lona, que os levariam para
arquibancadas de madeira de três andares e um lindo picadeiro ao centro, era ali que o verdadeiro
entretenimento começaria logo mais. A jovem menina estava animada, saltando em pequenos
pulinhos enquanto ria com as bochechas coradas para encontrarem os seus assentos o mais
rápido possível.
O cheiro de comida, as cores, os personagens do circo, tudo estava extremamente vivo
e pulsante dentro da clareira que a floresta não mais abraçava. Era possível ver a iluminação
pulsante do lugar mágico através das árvores até a cidade principal, não muito longe dali. Claro
que eram necessários cavalos ou carroças para chegar até ali, a não ser que a pessoa fosse se
aventurar e quisesse andar alguns bons MUITOS minutos para atravessar a floresta com uma
estrada certamente precária, mas seja como for, não importava como iriam chegar lá, a vida
latejava em ritmo de felicidade naquele espaço de distração.
Entretanto, não eram todos que se divertiam ali, a escuridão velada dos olhos felizes
estava à espreita, não muitos passos de distância, nas trevas, à margem da floresta e da clareira,
escondia-se, presa em uma gaiola sobre rodas grandes de madeiras que rangiam a cada rolagem,
um ser… na realidade, uma mulher ou, aparentemente, o que restava dela. Em sua volta, barras
de ferro delimitavam seu pequeno mundo com pedaços de feno no chão. Umbra estava no canto
de sua medíocre morada, esperando para ser a próxima atração.
Ela olhava com certo interesse o calor que acontecia a frente, onde outros estavam
completamente alheios a sua vivência. Desejou saber como era esse sentimento de euforia que a
felicidade dava, achou que nunca fosse sentir aquilo, mas talvez ela não merecesse isso. Essa
felicidade que muitos diziam existir, mas que nunca de fato foi provada. Fazia muito tempo
desde a última vez que sorriu genuinamente e isso doía, doía tanto que às vezes chorava, sem
compreender ao certo porque estava fazendo isso.
Ainda que não acreditasse em si, Umbra era um ser excepcional. Uma mulher única,
mas que escondia segredos que nem ela ao certo sabia identificar.
Sua pele quase cinza emitia um brilho prateado contra a luz da lua que toda a noite
estava presente nos céus. Não importa a fase que o satélite natural estava, a pele dela sempre
continha esse brilho. Era algo nunca visto por ela, não sabia se era a única, mas até então achava
que sim, pois no seu cerceado mundo nunca havia encontrado alguém com a mesma cor de sua
pele. Umbra não acreditava em seres únicos, ninguém era importante ou especial em seus olhos,
mas aqui estava ela presa dentro da gaiola por uma cor diferente de todo o resto.
O rosto magro devido à alimentação precária não mostrava a verdadeira beleza de
Umbra, já que as maçãs proeminentes em seu rosto saltavam levemente, dando-lhe uma
impressão de um ser ainda mais selvagem. Nos lábios, ligeiramente cheios, acumulavam-se dois
cortes recém feitos que tentavam cicatrizar sozinhos. Seu nariz era reto e as narinas pequenas, já
suas sobrancelhas eram finas e negras, seus olhos continham íris branca levemente acinzentada.
Poderia até ser considerada uma raridade a cor de seus olhos, mas eram sem vida, o brilho
natural do olhar que alguém poderia ter estava esvaindo-se de seu corpo longo e esguio. O cabelo
liso e longo, desgrenhado e sujo pela falta de banho, escorria até o seu quadril ancudo, que
dividia a mesma cor que sua íris. Umbra era uma raridade, uma mulher linda e única,
acumulando-se vinte e oito invernos em suas costas doloridas com hematomas e cicatrizes.
Umbra desejava sair dali e se livrar das amarras invisíveis e reais que a cercavam,
principalmente em volta de seu pescoço, a coleira de couro que machucava sua pele demarcando
que pertencia a alguém, esse alguém era a sua própria mãe. Umbra era o entretenimento principal
da Boca do Lobo. A mulher de cabelos brancos como a neve dolorosa do inverno que assolava
não apenas Solares, mas Luares também, não conseguia fugir. Era difícil, quase impossível,
quando se era condicionado a viver a vida inteira recebendo apenas o pior e acreditando
fielmente que apenas merecia o pior.
Era assim Umbra.
Chegou até mesmo a pensar, ainda quando era mais nova, que uma princesa iria a
salvar, igual quando lia em livros infantis, às vezes podia ter uma distração em sua infância
igualmente dolorida. Por vezes, durante a apresentação mandatória sobre o olhar raivoso de sua
mãe, Umbra olhava para espectadores dos Solares, onde via casais beijando-se, divertindo-se ou
se horrorizando com o que era apresentado. Mas gostava particularmente de olhar os casais
formados por mulheres. Algo lhe atraia, achava belos as peles alvas e os sorrisos de
cumplicidades que elas trocavam… Porém, foi apenas anos depois, que presenciou duas
mulheres, que se esgueiraram na parte exterior no fundo da lona após a apresentação, de dentro
de sua gaiola, ferida, escondida nas sombras, testemunhou uma delas se colocar em joelhos e
assim, beijando a outra intimamente, enquanto a língua passava pelo sexo encharcado. O corpo
adolescente de Umbra reagiu perante a imagem e depois do resmungo de prazer da mulher que
recebia a carícia pessoal, a jovem sentiu o seu próprio sexo responder ao estímulo visual. Após o
casal rir e continuarem a se beijar animadamente, alheias à presença de Umbra, a troca de juras
de amor a fizera mudar o seu estado de excitação para um formigamento fugaz e gostoso em seu
peito, pois desejou isso. Desejou cair nos braços de uma mulher que pudesse amá-la, entretanto,
depois de anos, aqui estava Umbra, presa. Sim, ela havia tido experiências com mulheres em sua
vida, algumas mulheres que passavam brevemente pelo circo, seja funcionária da parte de
organização ou que conseguiam apresentar pequenos e curtos números no picadeiro, mas logo
desembarcavam da Boca do Lobo. Umbra não tinha filtros para as mulheres que encontrava,
poderiam ser elas do reino dos Luares ou Solares. Eternos inimigos que se enfrentavam em uma
guerra completamente sem sentido.
Ela também experimentou a violência, bebidas, comidas, costumes, a quentura de um
carinho, e riu por algumas vezes, contudo, o número de castigos e apresentações pisoteava
qualquer chance de ser feliz. Dentro das possibilidades de qualquer mínima felicidade
apresentada para ela, Umbra rejeitava. A dor era conhecida, um costume vivido constantemente,
a felicidade e o sentimento prazeroso da vida era algo não permeável para ela, desconhecido, era
perigoso e, sinceramente, não estava pronta para ser largada para trás depois de começar a amar.
Foi assim que a esperança de Umbra deteriorou-se aos poucos e hoje o brilho no olhar
era ausente no calor da noite perante a vida, que em apenas a alguns metros ocorria com grande
felicidade.
Umbra era uma verdadeira incógnita, não sabia de onde vinha ou pertencia, ou até
mesmo quem era ela. Suas lembranças sempre envolviam a lona, chicotes, cheiro de comida
engordurada e risadas não pertencentes a ela. Tudo o que sabia era que Umbra não cabia ali. Sua
vida inteira era uma mentira, nem a mulher que chamava de mãe era a sua mãe verdadeiramente.
Era apenas um alguém que a mantinha viva para usufruir de suas apresentações e em troca lhe
dar um punhado de comida, trapos para vestir e às vezes um ou outro divertimento. O
açoitamento chegava, assim como as palavras rudes e doloridas. Umbra sempre preferiu a ponta
do chicote contra as suas costas aos sons proferidos por sua mãe ao xingá-la. O único momento
de leve carinho que desfrutou em sua vida foi entre as coxas ou braços macios de uma mulher.
Ninguém era igual a ela e por ser única, isso a fazia ser admirada ou amedrontadora,
mas não respeitada, tratavam-na como uma atração. Umbra era uma mulher que continha uma
pele estranha, uma habilidade única e poderosa, mas nada disso fazia diferença, pois muitas
vezes, sequer acreditavam no que ela realmente era. Truque ilusório, mas muito bem-feito, era o
que diziam.
Porém, mesmo sem esperança sobrevoando sua mente, Umbra ainda tinha uma
pequena chama fraca, frágil e tremulante que estava prestes a apagar, mas o desejo de achar
quem ela era ainda atormentava o seu ser. Contudo, presa, nada iria mudar e esperar uma
“princesa” em um cavalo alado muito menos. Entretanto, Umbra não tinha ideia de como sair de
uma situação na qual sequer um dia experimentou algo diferente. Talvez, um dia, ela conseguiria
ter essas respostas. Porque, por enquanto, Umbra era apenas um pedaço de entretenimento e ela
precisava mudar isso.
Quando respirou fundo, envolveu as mãos de dedos longos e cinzas nas barras de ferro,
arrastando o seu corpo para frente e a luz da noite finalmente penetrou seu lindo rosto ferido e
magro. Ela iria sair dali.
Afinal, Umbra era um ser excepcional. Uma mulher única.
E, talvez hoje, tudo iria mudar.
Capítulo Um
As garras foram expostas

O cabelo desgrenhado branco e a máscara cobriam a face de hematomas contra a pele


cinza quase prateada, formando um lindo contraste entre as duas cores. Afinal de contas, era real
quando diziam que há coisas dolorosas que são belas. Como uma rosa prestes a murchar,
deixando seus espinhos ainda mais proeminentes contra a magnitude das pétalas vermelhas. Isso
significava que uma rosa morrendo não era medonha, apenas diferente, selvagem, e era isso que
Umbra representava. Seu rosto era coberto pela máscara com formato de uma fera, de cor
vermelha e preta, onde apenas seus lábios, queixo, mandíbulas e bochechas eram visíveis. Todo
o seu corpo estava coberto por uma túnica, onde era impossível ver sua linda cor, ou até mesmo
identificar quem era Umbra. O circo sempre quis manter a distração sobre sua identidade,
poderiam querer-lhe, roubá-la, ou qualquer coisa entre a grande margem de possibilidades, mas
no final das contas, ela não tinha ideia se existia ou não um real motivo para isso.
Os holofotes em volta de sua cabeça, junto a borda das lonas que antecederam para
fechá-la em triângulos, iluminavam a vestimenta negra e profunda de Umbra. Seus olhos de íris
branca tentavam não fitar a luz excessiva, porém, mesmo encarando os seus pés sobre a
plataforma redonda vermelha e dourada, podia ouvir com sua apurada audição os murmúrios
secretos dos espectadores a observando ao redor das arquibancadas.
As grades continuavam em sua volta, todavia, desta vez, elas se encaixavam dentro do
picadeiro com o contato direto com a terra batida e quente do solo. Não tinha como ela sair dali,
além disso, a coleira do seu pescoço a lembrava disso.
Ela ouviu passos atrás de si, mas sequer se esforçou para levantar o olhar. Conhecia
muito bem as solas da bota encardida de sua mãe.
— Senhoras e Senhores, vos apresento o nosso último e inesquecível número. — A voz
estrondosa e forte de sua mãe soava atrás dela. O chicote chocou contra o chão e uma risada foi
dada por ela. — A raridade entre nós, ou uma estranha e rara disformia, vocês que julgarão.
Umbra já estava acostumada com as palavras desagradáveis de sua mãe. Um alguém
que lhe criou e deu comida. Uma mulher completamente diferente de si, não apenas sua
personalidade, mas sua aparência também.
Luriel era o nome de sua mãe, uma mulher baixa de quase setenta anos, com cabelos
ruivos e brancos. Seu único olho verde era rápido e ainda funcionava bem, já o esquerdo não
mais existia e era coberto por um tapa-olho dourado. A ausência da visão de Luriel foi causada
por Umbra ainda criança, quando pela primeira vez, suas garras resolveram de fato funcionar.
Hoje, bem treinada e com inúmeros açoitamentos em seu corpo, Umbra nunca mais tentou.
Porém, quando sentiu a primeira chicotada em suas costas por razão nenhuma, titubeou
levemente, mordendo o lábio inferior quase dolorosamente para não dar o desfrute de demonstrar
qualquer tipo de linha de dor.
— Ande! — Luriel exigiu com a voz em um tom baixo e extremamente ameaçador. E,
mais uma vez, a chicotada bateu contra o tecido da roupa negra que usava. — Ou ficará sem
comida.
Mas Umbra continuou a não se mexer, apenas levantou os olhos e seu olhar viajou
rapidamente pelas arquibancadas. Estando em um território Solares, havia apenas pessoas deste
reino. Luares não poderiam andar livremente no território dos Solares, ao menos se um
passaporte fosse concedido, mas algumas pessoas tinham passagens concebidas sem toda a
burocracia para os cidadãos comuns, como comerciantes, diplomatas, políticos e, vejam só, —
circenses. Como a maioria da caravana dos personagens era composta por Luares, os
espectadores sempre esperavam grandes performances e, às vezes, por que não um pouco de
ruindade. Ainda mais, a raridade que Umbra representava.
Então, as vaias nasceram e assim, objetos foram jogados no picadeiro. De algum jeito,
bastante mirabolante, ou o atacador realmente tinha uma mira de invejar, uma pedra esgueirou-se
entre as grades, acertando precisamente a testa de Umbra. Desta vez, ela vacilou e foi ao chão.
Pessoas começaram a se levantar e uma aturdida Luriel começou a ficar desesperada,
tentando mantê-los ali de qualquer forma.
— Levante, sua inútil!
E Luriel levantou o braço mais uma vez, rodando o chicote, na tentativa de acertar sua
filha.
Umbra mirou os olhos brancos para mãe, sentindo uma viscosidade agoniante
escorrendo pela sua face, como um rio descendo uma colina, mas ninguém reparou, já que seu
rosto ainda estava coberto pela máscara selvagem. O cheiro metálico invadiu os seus sentidos e
ela sabia que estava ferida.
Quando o chicote fez menção de acertar seu corpo, Umbra pegou a ponta do objeto
com a mão, enrolando-o algumas vezes em seu punho. Sua mãe tentou puxá-lo de volta,
olhando-a duramente, ainda mais furiosa do que antes.
— Como ousa me desafiar?!
Por uma onda de afoiteza, Umbra se levantou e puxou o chicote para si, Luriel veio
junto. Ela agarrou os braços da mãe e antes que a mulher pudesse fazer qualquer coisa, os
caninos superiores e inferiores de Umbra se estenderam. Assim, afundou as presas entre o
pescoço e o ombro de Luriel, arrancando-lhe o pedaço de pele e carne, expondo a musculatura,
as fibras e o sangue que, automaticamente, jorrou por ali.
Luriel gritou com a dor alucinante que esvaia pelo seu corpo, fazendo-a cair no chão. O
picadeiro sangrava misturado a areia e a poeira que se levantavam pela movimentação que a
plateia e elas faziam.
Nesse momento, alguns personagens do circo, entre eles dois palhaços, um trapezista, e
três homens que trabalhavam na manutenção se aproximaram da grande gaiola. Todos eles
empunhavam facas, garfos gigantes e martelos. Umbra hesitou um pouco e soltou alguns passos
para trás, até ficar quase completamente encurralada no canto de duas grades.
Uma das paredes da gaiola se abriu e os homens adentraram no espaço, atrás deles,
duas mulheres correram até Luriel para ajudá-la, pois os gritos de sua mãe não mais ecoavam
pelas lonas coloridas e felizes. Umbra não deu muita atenção para os espectadores em sua volta,
estava focada demais nas armas se aproximando de si e aceitar que acabara de arrancar um
pedaço de Luriel. O sangue dela estava em suas mãos, boca, queixo, escorrendo pela mandíbula
e pescoço, transpassado pela coleira, que parecia apertar ainda mais sua carne.
A plateia estava tensa, muitos já estavam fora da lona em direção às suas casas, quando
viram o terror acontecendo. Tudo bem, eles poderiam até gostar de ver um pouco de sofrimento,
ainda mais quando se tratava de Luares sofrendo, mas aquilo já era demais. Outros, bem…
outros queriam continuar ali e ver o verdadeiro espetáculo começando. Afinal, não era esse o
número principal?
As duas mulheres pegaram Luriel e um dos homens se aproximou mais de Umbra,
chutando de sua frente a pequena plataforma redonda vermelha e dourada.
— O que você fez?! Está maluca! — Gollidu falou entre os dentes de ouro que
colecionava em sua boca.
O próprio homem arrancou os dentes verdadeiros para colocar os brilhantes no lugar.
Queria mostrar o poder que tinha, o prestígio que carregava tendo todas essas pessoas
trabalhando para si. Ah, sim, Gollidu era o pai de Umbra, e por mais que a mulher se
amedrontasse perante a sua presença, nada se comparava ao terror que sentia por sua mãe. Seu
pai nunca a havia batido ou tocado, mas a ameaçava constantemente, palavras poderiam doer
mais do que o que Luriel fazia com ela.
Umbra o olhou com os olhos brancos arregalados, pressionando as costas machucadas
contra os cantos das grades quentes do picadeiro.
— Pai… eu… — A voz adulta de Umbra saia de sua garganta de maneira rouca e
hesitante, como uma garotinha assustada pelo escuro. — Eu não tinha a intenção de… — Com
vergonha, escondeu a boca com as mãos, a fim de proteger seus caninos que se projetavam tanto
na parte inferior quanto superior da arcada dentária.
— Mocinha… você irá sofrer as consequências… — E assim que Gollidu falou, uma
corda fora enrolada em seu pescoço coberto pela coleira de couro.
Umbra sentiu dificuldade de respirar, sua garganta se fechava a cada vez que puxavam
mais a corda que fora enfiada entre as barras de ferro.
Seu rosto estava ficando vermelho e seu corpo se debatia para sair dali. Mas parecia
que sua força estava indo embora de seus poros, como se ele estivesse desistindo de lutar,
verdadeiramente cansado e desesperançoso. Porém, tudo mudou quando ouviu a voz de seu
único amigo de todo o circo.
Victorie!
— Umbra!! — O jovem Luares gritou.
Assim como Umbra, Victorie tinha uma habilidade especial. Era algo que os Luares
dividiam entre si, habilidades extraordinárias, mas consideradas simplórias para derrotar os
Solares. Umbra não tinha certeza se fazia parte dos Luares, já que sua habilidade era diferente de
todas que já havia conhecido. Diferente dos Luares, os Solares não continham qualquer tipo de
poder heterogêneo, eles eram mais fortes fisicamente, tanto as fêmeas quanto os machos,
continham um poder militar vasto e isso era um tanto assustador. De qualquer maneira, ambos
pareciam depender um do outro, como uma balança, mas que sempre parecia desigual, ora para o
lado dos Luares, ora para os Solares.
Umbra não se encaixava em nenhuma das características ou continha as duas. Era
confuso. Ela não era nada, mas, ao mesmo tempo, era tudo. Contudo, sua mãe sempre a
apresentava como uma Luares, ela não compreendia muito bem o porquê, mas talvez era dito
isso por fins lucrativos ou por, simplesmente, esconder a verdadeira identidade dela. Talvez sua
mãe soubesse quem ela era e nunca fizera qualquer questão de revelar.
Pelas Deusas Irmãs, ela não tinha ideia de quem era.
Victorie estava com uma pá na mão, quando desviou facilmente de um golpe de
machado que vinha em sua direção, acertando o homem que seguia Gollidu. O homem vacilou,
balançando a cabeça rapidamente e a vermelhidão da pancada surgiu na parte esquerda de sua
face, mas sendo um Solares, acabou absorvendo bem a colisão. O homem tentou golpeá-lo na
altura de seu abdômen, a lâmina lambeu o vento soltando um som cortante, mas Victorie desviou
com uma exímia facilidade. Desta vez, seu amigo não se arriscou e a ponta da pá foi de encontro
com o pescoço do homem Solares, o impacto seco foi ouvido, enterrando o pedaço de ferro
dentro da pele.
O homem se engasgou no próprio sangue, largando o machado que foi ao encontro do
chão de areia batida. Ajoelhou-se, fixando suas mãos ao entorno do cabo de madeira com o
ímpeto de retirá-la, enquanto o sangue jorrava. Os olhos esbugalhados encararam o Luares
Victorie, antes de abraçar o reino das duas irmãs e bater seu maciço corpo contra o solo.
Seu amigo Victorie tinha a exímia habilidade de prever movimentos, antecipar a
movimentação das pessoas nos próximos segundos que viriam a acontecer. Então, sem muito
esforço, tirou a vida de um e derrubou outro.
Umbra olhou para Victorie e sua visão começou a ficar turva. A forte dor de cabeça
martelava em seu crânio e seus membros ardiam mais do que nunca, como se estivessem prestes
a sucumbir em uma implosão dolorosa. Foi assim que seu verdadeiro cerne desabrochou como a
mais bela rosa do plantio.
Seu corpo humanoide, pouco a pouco, desfazia-se e se quebrava, a pele rasgava, dando
lugar a pelos longos e brancos. Seu nariz estendia-se para frente, até o focinho negro surgir junto
aos dentes pontudos. Os olhos amarelados davam lugar ao lindo branco calmo, agora eles eram
preenchidos por fúria e violência. Entretanto, o que mais chamava a atenção era a meia-lua
vermelha que surgiu no meio da sua testa de pelo reluzente.
Umbra não mais era humana e sim, um gigante lobo, poderoso e branco como a neve,
de patas cinzas, com olhos amarelos e com a meia-lua vermelha que lhe dava uma terrível
sensação de mistério pagão. Os dentes pontudos e imortais se projetavam pela boca suja de
sangue e o rosnado forte rasgou por todo o picadeiro.
Assim, a carnificina da Boca do Lobo começou.

∞∞∞
Umbra corria com a pata ferida e Victorie fazia o mesmo, diferente dela, o seu amigo
estava atrás, perdido na floresta que os cercavam.
Sua liberdade estava doendo, mas ao menos corria entre as árvores de copas fechadas e
densas, sob a leve penetração da iluminação da lua. O circo já ficava para trás e os gritos
distantes eram absorvidos pela natureza da noite silenciosa da floresta.
A loba estava cansada, mas a euforia e o medo não a faziam parar, já não ouvia mais os
passos de seu amigo, o que a deixou preocupada, mas ao mesmo tempo, voltar a deixava ainda
mais acometida de pavor. Ela não queria retornar, voltar ao pesadelo, ser capturada e sofrer
terríveis consequências. Provavelmente, isso a faria ser uma pessoa ruim, pois não voltaria para
ajudar Victorie, a única pessoa que lhe ajudou a vida inteira. Então, ela correu, sentindo os pelos
longos e brancos sendo acariciados pela brisa quente do reino dos Solares. Era um lado egoísta
que estava falando mais alto dentro de Umbra, mas perdoem-na, finalmente, depois de anos, as
correntes palpáveis, os açoites não iriam mais acontecer.
Suas patas gigantes quebravam galhos e folhas secas que caíram depois de um dia de
calor no reino dos Solares. Por infelicidade da sua liberdade, Umbra começou a sentir o cansaço
e as dores alastrarem-se por sua musculatura e pele. Logo, sua visão, pela segunda vez, ficou
turva, e por mais que tentasse manter os olhos abertos e vigilantes, seu corpo pedia para
simplesmente dormir. E foi desse jeito que o corpo de Umbra parou e desmoronou no solo da
floresta, igual a uma árvore cortada. Seus olhos se fecharam e sua forma humana nua deu lugar à
monstruosidade magnífica que sempre foi.
Foi no amanhecer, onde os primeiros raios de sol conseguiram penetrar a densa floresta
fechada por árvores, que alheia a qualquer coisa à sua volta, Umbra começou a recobrar sua
consciência. Entretanto, ela não ouviu o cavalo se aproximando, muito menos o tecido da capa
fina vermelha raspando sobre o solo fértil da floresta. Ela abriu os olhos, quando uma mão
aveludada por luvas, tocou em seu rosto ferido. Gemeu fracamente, tentando abrir os olhos, mas
eles permaneciam pesados. Sentiu seu corpo sendo coberto pelo tecido macio e tentou se refugiar
nele. Seu olfato capturou um cheiro de rosas marcante, não enjoativo, e então ouviu a voz
pertinente, mas quase gentil.
— Está viva?
E Umbra olhou para cima, sendo recebida por um olhar quente como o fogo do sol, de
cor castanha e, assim como a sua pele prateada, quase brilhante, lembrando o crepúsculo dos
céus que cobriam os dois reinos. Pelas Deusas, ela queria se sentir abraçada por ele.
Resolveu abraçar a quentura dos olhos e confiar seu corpo à linda mulher dona deles.
— Você ficará bem. — A voz feminina e gentil da mulher a assegurou.
— Está bem. — Umbra respondeu, mesmo não querendo parecer entregue, mas todo o
seu corpo gritava por ajuda, ansiava por cuidados e algo dentro da criatura gigantesca urrou para
ir junto do olhar quente. — Eu sei, eu estou com você agora.
A vida inteira de Umbra foi passada na escuridão e aqueles olhos eram intensos, como
nunca havia visto antes. Uma estranha sensação de familiaridade. Era loucura confiar sua vida a
uma completa desconhecida, mas não havia outra saída. A sua liberdade estava dedilhando o seu
rosto e isso tranquilizou Umbra, pelo menos, por enquanto.
Capítulo Dois
A diferença de dois mundos

Umbra nunca sonhou, ao menos não que se lembrasse, normalmente eram pesadelos
que assolavam seus pensamentos. Eles eram tão recorrentes em sua vida que começou a
incorporá-los quase como se fosse parte de si. Entretanto, dessa vez não foi o pesadelo que se
agarrou em si e, sim, algo novo, seria isso um sonho? Umbra não saberia responder, não se
lembrava de como era um. Mas seu corpo estava leve, limpo, abraçado por uma maciez que
nunca sentiu antes. A sensação era de que seus membros repousavam sobre nuvens fofas e
brancas, onde sequer uma gota de chuva ameaçava sair. Sua feição machucada e levemente
magra foi substituída por uma versão saudável, deixando Umbra ainda mais atraente. Talvez uma
das mulheres mais bonitas que tocaram os pés nos solos dos dois reinos.
Em seu sonho, o olhar quente a observava sobre a aura angelical que formava atrás do
cabelo e era impossível identificar a cor, pois o brilho resplandecente era tão imenso que quase
feriu as lindas íris de Umbra. Talvez… Só talvez, isso não fosse um sonho e, sim… Ela poderia
ter morrido, não é? E ter sido abraçada pelas Deusas Irmãs, mas Umbra não era um alguém bom,
era? Ela era um ser que se transformava em um lobo selvagem e quase sem controle. Sua mãe e
seu pai a chamavam de mutana suja. Logo, alguns personagens do circo acabaram adotando esse
apelido e começaram a chamá-la de mutana. Ela não se importava, contanto que não viesse
carregando a segunda palavra. Suja. Detestava quando a chamavam assim, entretanto, eles
poderiam ter razão. Umbra não merecia ser abraçada pelo paraíso das Deusas, mas sim ser
largada em algum buraco escuro.
Quando voltou à superfície da sua consciência, percebeu estar envolvida por uma
deliciosa cama macia, muito diferente nos trapos com feno em que dormia. Abrindo os olhos,
encarou o quarto espaçoso que estava. Encontrava-se em uma cama de casal de madeira, com
duas estantes de cabeceiras brancas, com duas gavetas e um espaço entre elas, com a superfície
lisa que comportava um lampião e, ao seu lado, um copo de água. Em sua frente, havia a porta de
saída e um armário branco. Ao seu lado esquerdo, havia uma segunda porta com duas pinturas de
paisagens do reino de Solares em cada lado, pregadas em uma parede cor bege e com madeiras
enfileiradas na vertical, que eram preenchidas em sua metade até alcançar o piso. Já no lado
direito, Umbra pôde ver um par de janelas grandes com cortinas de renda que deixavam o sol
penetrar livremente pelo quarto, assim como a brisa fácil que fazia elas se movimentarem. Ao
lado das janelas, no canto direito, uma poltrona vermelha junto a uma manta preta descansavam
para serem usadas enquanto pudesse ler um livro ou se distrair com qualquer outra coisa. Em
cima do estofado, sua coleira que circulou durante tanto tempo o seu pescoço estava intacta,
exposta como se não tivesse qualquer importância. Umbra quase sentiu falta do material roçando
em sua pele. Dedilhou com cuidado a pele, que por tanto tempo foi castigada pelo material e
sentiu faixas levemente espessas envolvendo o seu pescoço. Umbra se deu conta de que elas
estavam ali para curar seus ferimentos, assim como outros curativos espalhados em seu corpo.
Ela respirou fundo e tentou se mover, mas seu corpo doía, assim como sua cabeça
trazendo as memórias confusas da noite passada. Umbra não se lembrava muito bem do ocorrido,
mas se recordava do sangue e dos gritos. Evocava as memórias em um nevoeiro de pensamentos
como o momento em que sua coragem estourou dentro de si e a mordida mortal feriu sua mãe de
criação. O súbito de cólera era raramente visto, mas quando ele chegava poderia ser destrutivo,
afinal, a mutana tinha um gigantesco monstro dentro de si.
Com certa dificuldade, Umbra conseguiu se sentar e gemeu ao sentir seus músculos
protestando. Colocou-se de lado e seus pés tocaram o assoalho com manchas negras. Mais uma
vez, respirou fundo, tentando encher os pulmões, mas tudo parecia tão dolorido que não
importava a força que fazia, não era o suficiente para enchê-los. Ameaçou até mesmo uma tosse
seca, devido à garganta que arranhava, o que a fez bebericar um pouco da água que estava na
mesa de cabeceira ao seu lado. Foi uma experiência única beber esse líquido tão fresco, seus
lábios levemente rachados lubrificaram, causando uma sensação gostosa.
Conseguiu reparar que vestia uma camisola longa branca, livre de mangas e de tecido
leve. Através do tecido, conseguiu ver o contorno de seus mamilos e seus pelos pubianos que
marcavam um pouco a vestimenta. Sentiu-se vulnerável, era a primeira vez em um muito tempo
que sua pele estava tão exposta daquela maneira, ao menos encontrava-se dentro de um quarto e
não sob olhares curiosos.
Tentou se mover novamente e quando se colocou de pé, suas pernas fraquejaram.
Espalmou a mão na parede e seus olhos foram invadidos por pequenos pontos coloridos. Sacudiu
a cabeça e acalmou-se, querendo se recompor o mais rápido possível.
A porta se abriu.
— Você deveria estar deitada. — A voz feminina de tom acusatório fez com que
Umbra olhasse para a direção do som, e lá encontrou o olhar quente e castanho.
— Eu… — Umbra tentou balbuciar, mas descobriu estar sem força até para isso.
— Sente-se.
Um comando e, bem… a mutana cumpriu, ela sabia muito bem fazer isso.
Acompanhou a mulher de olhar quente se aproximar.
Era um tanto complicado descrevê-la, Umbra achou, mas não podia negar que estava à
frente de uma mulher com posses, suas roupas apontavam isso. Um vestido longo e vermelho,
quase como se fosse uma túnica, contornava o seu corpo, acompanhado de um decote, onde a
entrada do vale dos seus seios começava a ser exposta para olhares curiosos. As mangas desciam
até suas mãos, demarcando a musculatura bem definida sob o tecido que se envolvia em seu
dedo do meio como um anel. Em volta do quadril, contornava-se um cinto grosso de couro, preso
a uma bainha no lado esquerdo do seu corpo. Ali estava uma espada longa, com o cabo vermelho
e manchas negras, lustrosa, já o pomo entalhado e perfeitamente detalhado resguardava um
sol…
Um sol…
Umbra engoliu a seco.
A mulher ficou à sua frente, com as mãos ligadas atrás das costas, onde seus seios
avantajaram-se levemente, mostrando uma postura de orgulho e superioridade. Umbra levantou
os olhos e estudou a face que detinha o olhar quente.
Seu rosto tinha um formato quase de diamante, se não fosse pelo queixo firme e
levemente quadrado. Seus lábios eram grossos e naturalmente rosados, seu nariz era pequeno,
que se ligava às sobrancelhas densas e castanhas, seus olhos castanhos, quase amarelos, eram
grandes e transpassaram certa avidez e austeridade, combinando assim com o seu cenho, que
sempre parecia levemente franzido. Abaixo dos seus olhos, leves olheiras traziam intensidade e
uma profundidade no olhar. Junto às leves marcas de expressão aos cantos. A mulher se
reverenciou, inclinando-se levemente para frente e levando uma das mãos ao peito.
— Bom dia, eu sou a Rainha Expedia, você está sob a proteção do meu reino. — Um
cumprimento direto e sério, algo que pegara Umbra de surpresa.
A mutana estava perante o olhar quente da rainha dos Solares. A mulher que lhe
salvou, simplesmente era a que mais odiava o que Umbra poderia representar um dia, afinal ela
era uma Luares. Não era? Ou algo parecido. Conhecia um pouco dos feitos da rainha,
principalmente, quando se tratava em vencer conflitos contra os Luares.
Ela engoliu a seco e continuou olhando para Expedia, que não parecia muito mais
velha do que ela. Talvez trinta e quatro… trinta e cinco verões. Em geral, era boa em
adivinhações, principalmente quando se tratava da beleza de uma mulher.
— Normalmente, quando me apresento, a pessoa faz o mesmo também. — Expedia
falou, ao voltar com a posição ereta de antes.
Umbra continuou a olhá-la, percebendo os raios solares se abrigarem nas costas de
Expedia. Trazendo a mesma aura do sonho que tivera momentos atrás.
— Umbra, minha rainha.
— Umbra. Nome… peculiar, na realidade, você é. Desculpe-me, não quis soar rude,
peculiar no bom sentido. — Expedia tentou se explicar, pois reconhecia que mesmo com o rosto
ferido… Umbra era linda.

∞∞∞
A rainha se lembrava do seu primeiro encontro ocorrido poucas horas antes.
Expedia estava em sua caçada habitual, gostava de mergulhar na mata para capturar
algum animal e levá-lo para o seu castelo. Estava nas profundezas da floresta, aproveitando a
solitude da noite, longe de seu reino e de seus afazeres como monarca. Apreciava o seu momento
só em seu passatempo pessoal, algo que dividia com o seu pai até o seu falecimento. Claro que às
vezes não tinha tanta sorte e foi o que aconteceu, até jurar ouvir sons de algum grande animal por
perto.
Seu coração bateu rápido pela adrenalina que passava pelo seu corpo, tentou acalmá-lo
com o medo irracional do animal ouvir seus batimentos vorazes. Expedia sempre foi conhecida
por ser uma mulher enérgica e vigorosa. Como rainha dos Solares, era um alguém corpulento,
seus braços contornavam-se por uma deslumbrante musculatura, o ideal para uma luta corpo a
corpo e suas pernas grossas e flexíveis, a faziam ágil e rápida como ninguém. Ela era a elite do
que os Solares tinham de melhor e Expedia se orgulhava disso. Ela tentou segui-lo, mas a fera
era voraz e rápida, mais do que ela, por vezes perdeu seu rastro, já que a camada de folhas sobre
o solo não ajudava muito.
Após tentativas, cansada e com o suor acumulando sob suas vestimentas, Expedia
estava um tanto frustrada e indo para o castelo com as mãos vazias, até que quando voltou a
andar em direção a uma das trilhas para a cidade, encontrou entre as árvores um ser… Melhor
dizendo, uma mulher ferida, com a pele de cor peculiar, que brilhava levemente sob os primeiros
raios matinais.
Esgueirou-se entre as folhagens com cuidado, retirando a espada da bainha, nunca
sabia o que poderia aguardar na espreita da madrugada em sua floresta, mas quando se
aproximou ainda mais, reparou na mulher nua e inconsciente. Sua vontade de ajudar foi
imediata, mas, por um instante, perguntou-se: e se fosse um Luares? Expedia nunca foi muito
boa com eles, por vezes, divertia-se em vê-los sofrendo, mas só um pouco, ela tinha sua nobreza
e seus limites. Nunca havia se colocado em uma posição onde uma mulher indefesa — bem, não
existiam pessoas indefesas quando se era um Luares, nem mesmo mulheres ou crianças.
Ensinaram isso a ela, ainda quando era criança, antes mesmo de formar qualquer frase inteira.
Mas, a mulher desacordada não parecia uma Luares, nem ao menos cheirava como uma.
Curiosamente, Expedia se abaixou e, por decência, retirou seu próprio manto e cobriu o
corpo da mulher de pele cinza. A rainha poderia até ter sangue nas mãos ou às vezes fomentava a
dor em terceiros, mas nunca se aproveitaria de uma mulher. Seja ela Luares ou não. Jamais
tocaria em uma mulher inapropriadamente, Expedia detestava estupros e se descobrisse que
alguém de seu reino fez isso, ela mesma decapitava o filho da puta. Expedia poderia ter muitas
vertentes ruins, mas se aproveitar de uma mulher jamais. Alguns homens Solares e Luares já
haviam passado por suas mãos sanguinárias e uma mulher também, poderia quase dizer que tinha
prazer em tirar a vida de pessoas assim. Abusadores tinham que sofrer. Seria ela uma? Não sabia
responder ainda. Não existia apenas um tipo de abusador.
Quando a rainha cobriu o corpo, os olhos da mulher desfalecida abriram e Expedia
encontrou a imensidão branca naqueles olhos. Uma estranha calmaria, ainda que guardado com
muita dor. Eles eram enigmáticos e altamente atraentes, não de uma forma sexual, mas algo que
Expedia poderia passar horas encarando.
Entretanto, foram as próximas palavras que a mulher de olhos brancos pronunciou que
não a deixou dormir e, principalmente, desejou ainda mais se afogar na imensidão das íris
brancas acinzentadas.
“Eu sei, eu estou com você agora.”
E Expedia compreendeu a frase, pois era como se velhas conhecidas estivessem se
vendo depois de muitos e muitos anos.

∞∞∞
Expedia relembrou a memória ainda vívida em sua mente e voltou para o presente,
quando lembrou da frase que Umbra havia falado na noite passada, assim fitou pela segunda vez
os olhos brancos. A mulher estava devidamente cuidada como havia pedido às suas servas, e
parecia um pouco mais descansada. Parecia que a sua convidada não tinha tempo necessário para
dormir, como se esse ato fosse um luxo em sua vida.
Sentou-se ao lado de Umbra e apoiou as mãos na cama, antes de esticar os braços e
olhar para frente, encarando as cortinas que alguma empregada achou que poderia combinar com
o quarto simples. Esse tipo de movimento intimista e de aproximação exacerbada estava longe de
ser uma resposta bem quista ao olhar da monarquia, mas Expedia estava pouco se fodendo para
isso. Parte de sua popularidade era o aspecto falso ou até mesmo verdadeiro do acercamento que
fazia com seus súditos.
— Você estava bastante ferida quando eu a encontrei. Feridas antigas… — Expedia
comentou como se fosse algo comum de se acontecer no mundo no qual estavam inseridas. —
Sofreu durante anos. — Foi um comentário sem qualquer emoção vista na fala, era mais uma
constatação sem pesares. — Até onde eu sei, escravidão não é mais permitido no meu reino.
— Não sou uma escrava. Ao menos… Eu acho.
— Hmmm… Então o que você é? Nunca vi uma Luares como você, seus olhos, pele...
— A rainha perguntou com verdadeiro interesse, manejando sua cabeça para Umbra. — Cruzo
com muitos Luares e saberia se fosse uma.
A mutana trancou o maxilar e seus olhos agitaram-se de um lado para o outro,
negando-se encarar o olhar quente. Não seria astuto de sua parte contar para a rainha de onde ela
era ou até mesmo quem era. Na realidade, eram perguntas íntimas que nem mesmo a própria
mutana sabia. Seus pais insistiam que sangue Luarenos corria em suas veias, bem, era o que
contavam para ela. Sabia também a capacidade que seus pais adotivos tinham em mentir para
mantê-la sempre com suas rédeas firmes.
Sua mãe afirmava categoricamente que ninguém a queria, jamais iriam abraçar o
monstro de Umbra e Luriel tinha razão, se as pessoas descobrissem a verdade, ela morreria. De
repente, sentiu falta do conhecido, de sua cela. Lá ninguém a mataria… Era tenebroso pensar
nisso, mas era o que vinha na sua cabeça. Pensando melhor, para sua sanidade mental ferida, não
era hora de pensar nisso.
Deixava-se ser chamada de Luares devido às suas habilidades, como Victorie e outros
Luares que conhecia no circo, mas aparentemente, eles desenvolviam poderes psíquicos ou
outras habilidades envolvendo a mente e a psique, ninguém se transformava em uma fera mortal
e degoladora como ela.
— Eu não sei.
Foi uma resposta franca dada pela mutana, ainda que tivesse nuances de mentiras
dentro da fala...
— Como não sabe? — Expedia olhou para Umbra e mais uma vez a curiosidade pintou
sua figura mais rígida.
— Eu… não lembro. — Umbra resolveu mentir, seria muito complicado explicar tudo
o que ela significava e mais ainda, sabia muito bem da fama dos Solares perante os Luares e
vice-versa. Nenhum dos reinos era fleumático um contra o outro, ao contrário, quanto mais
perversidade entre eles, melhor. O continente era lotado de tensões e fronteiras entre as cidades
Luareanas e Solareanas e estando em uma cidade Solares, não queria abusar da sorte. — Muitas
coisas ainda estão confusas.
— Normalmente, quando as pessoas não se lembram de quem são, isso inclui o nome
também.
— Sim, mas… não sei, como disse, tudo está confuso. Eu sei que eu sofria, sei que os
meus carrascos estão por aí, querendo tirar minha liberdade, se não, não teria aquilo. — Uma
risada sem graça saiu dos lábios de Umbra, ao apontar para coleira, entretanto, o rancor soou nos
ouvidos da rainha. — Eu não lembro de muita coisa, só que eu estava correndo… fugindo. Eu
não sei quem eu sou, entende? Só sei que sou a Umbra… — A mutana sorriu e seus olhos
passearam pelas feições de Expedia. — Eu não tenho ideia do que eu seja, acho que estou
procurando por isso. Então, posso ser qualquer coisa, mas, ao mesmo tempo, nada…
Era uma meia verdade.
— Pelas Deusas, isso soa bem complicado, não queria estar em sua pele, ainda que seja
linda, não me leve a mal, mas isso tudo parece ser bem doloroso. Afinal, não só as feridas carnais
a machucam, não é, Umbra?! — Expedia se jogou na cama e colocou os braços atrás da cabeça,
encarando o teto de pedra e suspirou. — Então, você não sabe se é uma Luares ou Solares?
— É…
— Isso complica as coisas para mim. — Expedia informou cansada.
Umbra se virou, colocando umas das pernas na cama e apoiou as costas na cabeceira.
Ela olhou para a beleza incomum aos seus olhos e percebeu que Expedia olhava para o teto,
enquanto mastigava a parte de dentro da bochecha, já que seus lábios juntavam-se, como se
estivesse mandando um beijo singelo para alguém.
— Por quê?
Expedia coçou os olhos e, rapidamente, colocou-se sentada, Umbra enterrou as costas
na cabeceira e engoliu a seco ao se assustar com o movimento rápido da rainha.
— Porque não sei o que fazer com você. Mas, por enquanto, vou deixar você se
recuperando, algo me diz que você merece isso. Um descanso.
— Acho que você é boa de palpites. — Umbra concordou com a rainha e assentiu com
a cabeça. Entretanto, se surpreendeu quando arrancou uma risada baixa de Expedia. Ela encarou
os lábios e os dentes levemente tortos da rainha, deixando-se sorrir, ao ver que, genuinamente,
Expedia se divertiu.
— Em geral, eu sou, mas também tenho um fraco pertinente por mulheres bonitas.
— Eu? Bonita?! — Umbra mirou para o próprio peito, parecendo incrédula com o que
acabou de ouvir.
— Ahhh, pare de ser modesta… — Expedia deu dois tapinhas no joelho de Umbra,
estudando o rosto da mulher de olhos brancos e reconheceu que, de fato, não estava preparada
para o elogio. — Você não acredita em mim.
— Não! Não! Minha rainha, não é isso… eu- — Umbra arregalou os olhos, e negou
com a cabeça. — Acho que não recebia elogios, tenho a impressão de que ouvia apenas críticas.
— Oras, isso é uma calamidade. Pois deveria ouvir! — Expedia falou como se aquilo
fosse um absurdo. — Elogios ajudam o rei a crescer dentro de nossas barrigas, ajudam a gente a
continuar e, principalmente, ganhar confiança.
— Então, devo dizer que a senhora majestade é linda também. — Era uma outra
verdade, ainda que pudesse pressupor o poderio que Expedia carregava nas costas. — Não quero
ser indiscreta, perdoe-me caso esteja sendo.
— Não, imagina… como disse, é bom ouvir, a grande maioria dos quais recebo são
apenas superficiais, é bom receber um verdadeiro, quando recebo… não acho que sejam efetivos,
e com você, bem… vamos só dizer que acredito em você. Como eu disse, sou boa em palpites.
Assim se olharam por segundos em silêncio. Um desconforto instalou-se em Umbra,
normalmente, não encarava pessoas nos olhos, poderia ser perigoso, mas com Expedia era
diferente. Tentou sustentar o olhar, até que a rainha se levantou em supetão e se dirigiu à
poltrona. Observou a rainha envolver seus dedos em volta da coleira e Umbra não se moveu, já
que o medo real do material incomodativo ser colocado em volta de seu pescoço tornou-se
palpável.
— Acredito que possa queimar isso. — Novamente, Expedia não perguntou e sim
afirmou desgostosa, ao sentir o material grosso em suas mãos. Aquilo era nojento. — Acho que
encarar esse pedaço de nada vai ajudar, pode até trazer memórias, mas talvez, algumas memórias
mereçam ser enterradas, não é? — Apertou a coleira de couro formando um oito e abaixou os
olhos para ver o objeto. — Todos merecem de um pouco de dignidade, até mesmo os Luares. —
Após um novo suspiro, Expedia voltou os olhos para Umbra e sorriu. Escondeu a coleira atrás de
suas costas para que Umbra não mais olhasse. — Em breve, uma de minhas servas irá tratar de
seus ferimentos e disponibilizar o que precisar. Peço depois que se junte a mim a um jantar, o
que acha?
Sim, ela estava cortejando a misteriosa mulher. Umbra era um alguém curioso, que
havia despertado algo dentro de Expedia, principalmente pelos seus olhos brancos e sua pele
cinza, ousava dizer, quase prateada. Nunca em sua vida de nobre viu tal peculiaridade e ela
queria conhecer mais, talvez pudesse descobrir a história de Umbra, junto com a mulher que não
mais se lembrava de quem era.
— Acho perfeito, minha rainha. — Umbra concordou, ainda que sempre fosse uma
mulher confiante em seduzir outras, algo em Expedia a deixava um pouco encabulada, fosse pelo
seu poder ou por qualquer outra coisa que a fez estar atraída por uma pessoa perigosa.
— Então, lhe vejo à noite, minha serva irá te direcionar até a sala de jantar, assim que o
banquete estiver pronto. — Expedia fez a mesma reverência quando cumprimentou Umbra pela
primeira vez. — Descanse.
E assim, ela saiu, deixando a mutana para trás completamente tomada pelo impacto
descomunal que Expedia já tomava em sua vida. Nunca, em toda sua vida, se imaginou em uma
situação como essa um dia. De uma mulher sem esperança e prisioneira, experimentou
sentimentos que sequer ainda sabia nomear.
Capítulo Três
A estranha proteção

Umbra estava em pé com o ombro direito apoiado na parede mais próxima da janela
aberta sentindo o calor penetrar em sua pele cinza. Seus olhos brancos tinham certa dificuldade
de se manterem abertos perante toda aquela claridade, já que a maior parte de sua vida se passou
dentro da escuridão, e ainda que os quisesse manter fechados, a paisagem ante ao seu olhar era
linda. Pelas janelas, conseguia ver um pouco da vastidão da cidade principal dos reinos dos
Solares. Estrelares se desdobravam até as cadeias de montanhas por cores distintas pela natureza
vívida e o mar que se estendia na imensidão do horizonte onde o sol se escondia.
O castelo de Expedia era localizado no alto do desfiladeiro, onde as estruturas
misturavam-se com as rochas, criando fortes imponentes e impenetráveis. Suas paredes feitas de
pedras eram acariciadas pelas ondas todos os dias. Já à frente do castelo, a ponte firme ligava a
cidade que se espalhava pela amplitude do território e que se penetrava um pouco pela floresta,
criando caminhos como veias. A praia usada para pesca e troca mercantil tinha um porto
igualmente suntuoso no canto direito do litoral, perto de outros desfiladeiros. Ao redor dele,
barcos pesqueiros, barcas e veleiros aproximavam-se de Estrelares ou distanciavam-se para longe
do continente, explorando não apenas a imensidão do reino dos Solares e Luares, mas de outros
povos e reinos além do horizonte.
A janela de Umbra ficava bem ao centro do castelo, onde era possível ver um pouco da
praia e da cidade movimentada e harmoniosa. As lindas casas e prédios de tetos pontiagudos e de
diferentes tamanhos desenhavam as ruas, onde pessoas vestiam cores fortes e de paletas quentes,
estendendo-se ao vermelho, amarelo, dourado, laranja e outras cores que remetiam ao sol.
Algumas cidades de Luares também prestavam essa homenagem à lua e à noite, e eram
igualmente vívidas como a daqui, eram reinos parecidos, mas ultrajantemente diferentes. O
comportamento poderia ser análogo, mas culturalmente a diferença pulsava.
Umbra não gostava muito das grandes cidades, preferia o silêncio, a solidão, algo
dentro de si achava não ser merecedora de qualquer coisa boa que viesse em sua direção, mesmo
achando interessante observar as pessoas em seus afazeres, elas pareciam mais enérgicas em dias
quentes como o que fazia hoje, era assim para os Solares e os Luares. Para falar a verdade, não
via a hora de o inverno começar, as pessoas pareciam mais quietas durante essa estação.
Mexeu-se, endireitou um pouco sua coluna, movendo seu ombro da parede e um
gemido de dor caiu pelos seus lábios. O seu corpo ainda estava dolorido, mas as faixas e o
medicamento que fora usado nela ajudavam consideravelmente. Agradecia silenciosamente por
sua cura mais rápida, desde pequena fora assim, seus ferimentos se curavam em tempo invejável.
Umbra estava se sentindo um pouco perdida perante toda a situação na qual sem querer
se intrometeu. Ela sabia que deveria sair dali o mais cedo que pudesse, antes que Expedia
descobrisse o seu verdadeiro cerne, certamente, a rainha dos Solares ficaria FURIOSA. A
mutana não queria estar ali para ver quando isso aconteceria, pois aquilo significava a sua morte,
contudo, ela precisava ficar mais forte. Mesmo sem esperança, sua liberdade fez sua chama
interior crescer um pouco mais, uma excitação de sobreviver latejou em si, mas antes, ela
precisava se recuperar para estar forte. Esperava também que ninguém a reconhecesse, por sua
sorte, Luriel sempre lhe obrigou a usar uma máscara e roupas que escondiam quase
completamente o seu corpo.
Umbra teria que ter um plano, primeiro ela se recuperaria, sairia dali e procuraria por
Victorie, seu amigo que lhe salvou na noite anterior, depois, iria para algum povoado pequeno e
começaria uma vida lá. Era um plano, não era? Um plano horrível, mas era o que tinha em
mente. Mas para isso dar certo, sua obrigação era não chamar a atenção, isso era primordial.
Sua concentração sobre os pensamentos estava tão absolutamente focada em seus
próximos passos que os olhos de cor branca se perderam pela cidade e seus sentidos auditivos
falharam em ouvir a porta se abrir, o ranger dela passou despercebido por Umbra. Até mesmo
quando a porta se fechou em um estalo, a mutana apenas despertou de seus devaneios perdidos
quando a…
— Ah, então você é a convidada de minha irmã. — A voz masculina soou pelo quarto
claro e rapidamente Umbra se virou.
Sentiu-se completamente vulnerável pelo que vestia, mas não se mexeu, seu corpo
ficou tenso, gritando perigo e agora em alerta total.
O homem em sua frente tinha a mesma cor de olhos de Expedia, entretanto, eles não
transmitiram quentura, ao contrário, Umbra sentiu um arrepio desagradável em seus poros. Ele
era alto, esguio e parecia ser um pouco mais novo que Expedia, diferente de sua irmã que fora
abençoada pelas Deusas com lindos cabelos castanhos, o homem era completamente careca, e
não havia sinal de barba em seu rosto, que era desprovido de marcas de expressão. Seus lábios
eram cheios, sua mandíbula bem marcada com uma ilustração permanente de um sol que descia
pelo seu longo pescoço, seu nariz era pequeno, mas sua base era suavemente torta, havia
certamente quebrado o osso em alguma briga. Suas sobrancelhas peludas, eram bem-organizadas
e aparadas. Em sua pele morena, quatro pintas marrons fixaram-se sobre a maçã do lado
esquerdo do rosto. Em volta dos seus olhos, principalmente na parte inferior deles, uma
coloração profunda de roxo era pintada, a impressão era de que aquele homem nunca dormia.
Vestia uma blusa longa que caía até o meio de suas coxas em formato de V, o tecido
vermelho com detalhes em dourado na manga comprida era bem preso ao seu corpo esguio.
Usava um cinto de tecido grosso e dourado que circulava sua cintura fina e, preso nele, alguns
pequenos frascos de vidro contendo líquidos de diferentes cores guardavam conteúdos que
Umbra tinha convicção de que não eram bons. A calça vermelha escura e brilhosa também se
prendia em suas coxas e pernas, mas continha rasgos propositais nos joelhos.
— Eu sou Lucíferos, é um prazer. — Ele a cumprimentou, reverenciando-se com a
mão no peito. — Passarinhos vieram me dizer que minha irmã encontrou você, como um pirata
que encontra um tesouro no meio do nada. Não acreditei na primeira instância, mas você é real.
— Ele cruzou os braços embaixo do peito e assentiu. — Minha irmã sempre teve uma queda por
mulheres bonitas… podemos dizer que são os tesouros dela. Mas me diga, o que uma mulher
indefesa estava fazendo em uma floresta com feras? — Ele caminhou de um lado para o outro e a
madeira rangeu sob os seus pés vestidos por botas finas.
A mutana achou que ele falava muito. Certamente, um homem que gostava de se
vangloriar e atormentar a paz alheia. Conhecia muito bem esse tipo de gente. Sua mãe era assim.
— Não lembro. — Umbra resumiu em poucas palavras. Sinceramente, não queria
manter qualquer conversa com Lucíferos.
— Ahhh, entendi, entendi… bastante conveniente, não é? Você aqui, usufruindo de
tudo isso.
— Seria meio idiota da minha parte planejar ir ao meio da noite na floresta e,
propositalmente, me colocar em uma situação perigosa para a sua irmã me salvar. Não acha?
— Se você soubesse as loucuras que as mulheres fazem para chamar a atenção da
minha irmã — falou Lucíferos em desdém, ao apoiar as mãos no cinto e os pequenos frascos
tilintarem uns contra os outros. — Em geral, elas não duram mais que uma semana, ela é bem
volátil.
— E você está preocupado com ela? — Umbra devolveu com a ironia enfeitando as
suas palavras. — Acho meio descabido falar de sua rainha para uma completa desconhecida.
Lucíferos soltou uma risada em desgosto.
— Ela se distrai com coisas que atrasam nossas prioridades do reino e você pode tomar
isso como um conselho de amigo. — Deu de ombros.
— E por que está me contando tudo isso? — Umbra estava segurando o grunhido
animalesco que formigava em seu peito. Ela se moveu e se sentou na poltrona, ignorando a dor
alastrando-se pela sua coluna. A pele em que foram dispostas duas chicotadas na noite anterior
ainda estava deveras magoada.
— Talvez eu queira contar as vulnerabilidades dela, como eu disse, um aviso para
você, e quero que ela centre novamente no que é importante. — Ele se aproximou, e bateu
propositalmente seu dedo indicador na armação de madeira da cama. — Expedia é uma mulher
interessante, encantadora e uma excelente rainha. Infelizmente, por vezes, gasta o seu tempo com
coisas inúteis. — Lucíferos coçou o pescoço, arranhando levemente o desenho do sol.
— Você parece estar com ciúmes. Mas agradeço profundamente o que sua irmã está
fazendo por mim. Acho que foi a primeira vez em muito tempo que recebi benevolência de
alguém.
E desta vez, Lucíferos riu com vontade.
— E estamos falando da mesma pessoa? — Ele repuxou os lábios para baixo e acenou
com a cabeça em descrédito.
A porta se abriu pela terceira vez e a camareira adentrou o quarto, interrompendo as
maleficências do irmão da grande rainha.
— Meu senhor. — A empregada cumprimentou Lucíferos e virou-se para Umbra
fazendo o mesmo. — Senhorita Umbra, a rainha Expedia mandou-me para assistir você e levá-la
para a sala de jantar.
— Bem, parece que nossa reunião acabou, senhorita Umbra. Foi um prazer lhe
conhecer. — E assim, como sua irmã há algum tempo, Lucíferos se retirou do quarto deixando as
duas mulheres a sós.
— Não se importe com ele. Lucíferos é um verdadeiro fanfarrão. Deseja o lugar da
rainha, mas felizmente, nasceu dois anos depois. — A camareira informou, abriu a porta do
armário de madeira e retirou toalhas brancas e um vestido… vejam só, preto e sem mangas. O
que significava seus ferimentos visíveis aos olhos curiosos.
Umbra não esperava por isso, já que todos vestiam cores quentes ali, inclusive a
empregada que olhava se movimentando com grande facilidade pelo quarto. Ela usava um
vestido amarelo-escuro com um avental branco e a imagem do sol costurada na parte inferior,
sobressaindo contra a cor branca.
— O quarto de banho fica ali. — A jovem mulher falou ao entregar as toalhas para
Umbra. — Você consegue se banhar sozinha? Ou precisa de ajuda?
— Ah! Claro, sim! — Umbra se levantou rapidamente e gemeu em dor quando esticou
a coluna.
A camareira olhou sem acreditar no que a mutana havia acabado de falar.
— Tem certeza?
— Sim, tenho. — Umbra sorriu sem graça e levou as toalhas dobradas para o peito,
abraçando-a e sentindo a maciez.
— Bem, tudo o que você precisa está lá dentro. Daqui a quinze minutos voltarei para te
ajudar nos ferimentos e te levar para a sala de jantar, está bem? — A empregada avisou, ao
estender o vestido negro e sem mangas na cama. Alisou com a mão o tecido para ter certeza de
que nem uma ruga havia se criado.
— Obrigada mais uma vez. — Umbra permitiu-se um sorriso gentil e se dirigiu ao
banheiro.
Seria pela primeira vez em semanas que relaxaria sob a água quente, mesmo que não
tivesse muito tempo para aproveitar a água fornecida a ela, iria desfrutar o máximo que estava
sendo oferecido, afinal, não sabia quando iria ter esse agrado novamente.
O banheiro era simples, havia um vaso raso de porcelana branca com apenas uma
torneira de ferro e uma alavanca ao lado, sendo necessário bombeá-la para que a água pudesse
sair. Logo acima, um espelho redondo com detalhes reproduzindo os raios de sol que se fixavam
à parede de pedra escura. No outro extremo da porta, uma banheira de pedras depreciada no solo
estava completamente vazia e, preso na parede, havia outro cano de metal com uma válvula
fixada sobre ele.
Umbra retirou a camisola branca, passando os braços pelas mangas e deixando com
que a peça de roupa escorregasse por suas pernas, formando um arco em volta de seus pés.
Olhando para o espelho e fitando o seu reflexo, a mutana retirou as faixas brancas que
contornavam algumas áreas de seu corpo. Cada vez que mais pedaços de sua pele apareciam,
mais Umbra ficava rígida pelas cicatrizes e ferimentos espalhados pelo seu corpo. Tentava
enganar a si mesma ao soltar reflexões e pensamentos em sua mente, onde se confundia com
uma guerreira e aquelas marcas eram, de alguma maneira, resistências aglomeradas em sua vida
de vinte e oito invernos. Mas ainda se sentia feia. Nem sequer conseguia encarar suas
imperfeições gritantes, nem mesmo ela se amava, como alguém poderia conceber esse
sentimento para ela?
Desviou os olhos de suas marcas, principalmente as localizadas em suas costas e em
seus braços, direcionando-se para a banheira. Bombeou a alavanca algumas vezes, ouviu um
barulho oco vindo do cano de ferro até que, alguns segundos mais tarde, ele cuspiu a água.
Umbra esticou a mão para testar a temperatura em sua pele e se surpreendeu ao sentir o líquido
quente escorrendo entre os seus dedos. Ela sorriu em alívio, pois mesmo com o calor que fazia,
Umbra queria tomar banho com a água em uma temperatura mais elevada. Desejava sentir a água
ardendo em sua pele para espantar as cicatrizes espalhadas pela sua pele, ou pelo simples fato de
raramente se banhar em águas cálidas.
Quando seu corpo foi de encontro com o banho, a mutana sentiu as lágrimas brotarem
em seus olhos, a intensidade daquele simples ato era assustador, mas ao mesmo tempo,
tranquilo… leve. Mergulhou, molhando totalmente o seu cabelo branco e, no silêncio da água,
chorou.
Os quinze minutos se passaram muito rápido, entretanto, foram o suficiente para que
ela pudesse recompor um pouco de sua quase inexistente dignidade. Abrindo a sala de banho,
encontrou a empregada à sua espera com as mãos ligadas à frente do corpo.
Umbra estava úmida e gotas de água escorriam pelas suas pernas, molhando o chão
perto de seus pés. Sua pele cinza estava suavemente prateada e um pouco avermelhada devido à
temperatura da água, estava sentindo-se mais relaxada e com a musculatura mais solta, a dor não
parecia estar tão presente. Ela não deveria se acostumar com isso, mas era difícil.
Seu cabelo molhado estava grudado em seu rosto e braços, ela o pegou, arrumando-o
para um dos lados dos seus ombros e o espremeu, deixando a água presa nos seus fios
escapulirem, molhando o chão.
— Se a rainha vir isso, ela me mata e te mata… — A empregada murmurou, ao se
aproximar. Colocou-se ao lado de Umbra e apontou a mão para cama. — Sente-se, vamos cuidar
dos seus ferimentos e te vestir.
A mutana nada falou, apenas seguiu as ordens dadas pela serva e se sentou na cama
fofa. Observou a empregada dos Solares pegar uma escova de cabelo com cerdas macias dentro
do bolso do avental e colocou-se ao lado de Umbra por mais uma vez. Pacientemente, começou a
escovar o cabelo branco e limpo. Os nós que se envolviam entre os fios foram sendo desfeitos
com calma e cuidado extremo, algo que nunca foi emprestado à mutana. Seu couro cabeludo e
nuca arrepiaram-se agradavelmente pela cautela dada.
Após o cuidado com o cabelo, os curativos em volta dos pulsos e das costas foram
cuidados com a mesma atenção, e, por fim, a roupa foi colocada no corpo de Umbra.
— Ah! Os sapatos! — A serva colocou o dedo sobre os lábios e bateu duas vezes,
enquanto se voltava para o armário. — Prontinho. — Apanhou as botas de cano baixo e se
ajoelhou na frente de Umbra.
— O quê? Não-- é… — A mutana buscou se afastar da mulher sobre os seus pés, mas
seu tornozelo fora pego, causando-lhe uma surpresa evidente, e assim seus olhos se arregalaram.
— Eu posso fazer isso — insistiu, ao tentar puxar os pés para cima da cama, mas os viu sendo
segurados ainda mais firmemente pela jovem mulher ajoelhada no chão.
— É rápido e é meu trabalho, sou muito bem paga para fazer isso e a última coisa que
eu quero é zangar a rainha. Ela gosta de tratar bem suas convidadas. — E com habilidade, a
empregada colocou os sapatos nos pés de Umbra e se levantou, sacudindo a mão uma na outra.
Sorriu satisfeita pelo trabalho que fez e, novamente, levou as mãos à frente do corpo. — Perfeita!
A rainha irá adorar.
Umbra se levantou e olhou para si. O vestido realmente era lindo. Totalmente negro,
sem mangas e com a gola alta, escondendo o seu pescoço com duas camadas de babados feitos
por penas cinzas que escorriam pelos seus ombros. O tecido se apertava em sua cintura e
acompanhava suas coxas até os pés. Sentiu-se (quase) atraente, bela, era o quase primeiro elogio
que fazia a si mesma.
Seu cabelo já estava começando a secar e escondia um pouco do seu rosto ainda
magoado por fraturas, porém a beleza continuava ali. Na realidade, não importava como estava, a
beleza de Umbra sempre continuava intacta, ainda que ela não acreditasse nela.
— Vamos? — A empregada perguntou ao colocar uma mão para trás e com a outra
apontou em direção à porta de madeira.
— Certo.
E assim, Umbra seguiu a criada pelos corredores de paredes com bordas bege e centros
dourados com lindas linhas sinuosas entalhadas, ao lado direito, grandes janelas brancas abriam-
se para arejar os ambientes. Mesmo escuro, Umbra podia ver a cidade brilhando com as luzes
públicas e as iluminações das casas bem mais modestas que o castelo no qual nunca gravaria os
cômodos. Entre as janelas, estantes de ouro e pedra branca continham inúmeros objetos caros. Já
no teto, candelabros ajudavam a iluminar os corredores pelos quais passavam. Aquilo era a
representação total de riquezas e posses, um verdadeiro luxo que Umbra jamais imaginaria estar.
A empregada parou abrupta na frente de duas portas brancas e altas. Ela as abriu e
Umbra ficou no centro dela, embaixo do batente. Seus olhos miraram a beleza do local, mas
rapidamente, achou Expedia do outro lado da sala, perto da lareira, com um cálice em mãos.
Estava distraída, perdida entre as chamas que acariciavam a madeira colocada na cansada lareira
de pedra branca envernizada.
Seu cabelo castanho estava preso em uma linda trança com um fio de couro juntando-o
na ponta. A tiara dourada circulava sua cabeça, brilhava contra o fogo forte da lareira. Essa era a
coroa da grande rainha, um fio de ouro em volta de suas têmporas e um pequeno pingente de sol
em meio a testa marcavam o seu poder absoluto no território dos Solares.
Expedia respirou fundo e então se virou para encarar Umbra. A quentura logo chegou
na mutana e o sorriso maroto da rainha Solares a fez ficar um tanto nervosa.
— Ah, minha convidada chegou.
Umbra lambeu os lábios secos e assentiu.
Ela deveria correr dali, mas escolheu abraçar o perigo, dando o primeiro passo para
dentro da sala.
Capítulo Quatro
O estranho jantar

Se alguém lhe dissesse que um dia estaria dentro do castelo dos Solares, riria da face da
pessoa que deliberou tal fala, e quando um dos equilibristas confirmava categoricamente os
horrores do castelo Solaria, Umbra quase acreditou. Entretanto, ali ela estava vivenciando o
oposto disso, ao menos, nos poucos cômodos que conseguiu acesso ou os seus olhos puderam
enxergar.
A sala de jantar tinha uma estética bastante parecida com a dos corredores. As paredes
tinham detalhes parecidos, a borda bege e o centro com ilustrações de mini sóis em alto-relevo,
em dourado e amarelo. Pilastras levantavam o teto com bases igualmente douradas e o tronco
com pedras imprimindo a pele de uma onça-pintada. Candelabros eram fixados nas paredes, com
dois braços e uma proteção de vidro em formato de elipse. Havia também uma enorme varanda
bem iluminada por postes que apresentava uma linda visão da imensidão do mar, agora apenas
fulgurando a luz da lua em um prata que se destacava contra a pretidão das ondas calmas lá em
baixo. A mesa era longa com base de madeira de carvalho e uma robusta placa de pedra polida
branca e vermelha, com cadeiras de madeiras pintadas de dourados e com estofados vermelhos
estendiam-se por toda ela, e sobre a superfície da pedra, os alimentos eram expostos. A fartura
era tanta que Umbra tinha certeza de que aquela quantidade alimentaria quase todo o circo em
que vivia.
Expedia se aproximou de Umbra, enquanto colocava o cálice na cabeceira da mesa.
Olhando através do ombro da mutana, a rainha dos Solares assentiu com a cabeça, e as portas se
fecharam, deixando-as sozinhas.
— Sua pele realmente é peculiar, e as suas cicatrizes… Quando você disse que lhe
açoitaram, não sabia da extremidade. — Expedia notou as marcas com leve protuberância nos
braços. Ao perceber que Umbra se encolheu, alisando a mão no braço com as feridas antigas e a
faixa no pulso, a rainha se adiantou, segurando gentilmente os dedos de Umbra. — Não tenha
vergonha delas, isso mostra o quanto resistiu — proferiu com veemência.
— Mas não o quanto eu vivi. — Umbra respondeu, ao sentir o toque macio de Expedia,
surpreendeu-se com o dedilhar da rainha, esperava ser áspero como a de um guerreiro que
empunhava a espada, mas não, era acolhedor.
— Você viveu, talvez não da maneira que você quis. Corrigindo, você ainda vive,
infelizmente, muitas vezes os percalços da crueldade da vida aparecem em nossa frente, mas seja
como for, você não se encontra mais no cruel. — Expedia virou a mão de Umbra e fitou a palma.
— Sem calos, pelas marcas em seu corpo, pensei que pudesse trabalhar com os braços, a não
ser… — Os olhos castanhos da rainha voltaram para os olhos brancos e um sutil terror passou
em sua feição. Um brilho nebuloso pelo olhar brilhante da rainha, escondeu o humor estranho
que continha. — Você era usada como-
— Não! Não! Nada disso. — Umbra a cortou rapidamente, e recolheu sua mão para o
peito, sentindo-se desconfortável com o caminho que a conversa ia tomando. — Eu… tudo está
dificultoso na minha mente, mas eu sei que ninguém tocava no meu corpo dessa maneira, ao
menos não intimamente, não há ferimentos ou qualquer estranheza em minha…
— Ótimo. — Expediu respondeu com um tom firme. — Não que isso diminuísse a dor
que passou, mas acredito que há ferimentos corporais e emocionais piores que outros.
— Acho que você tem razão.
Inusitado, era essa a palavra que rodeava a cabeça de Umbra. A rainha falava de
violência com tanta naturalidade, mas era nítido que havia agressões que a insultavam mais
profundamente que outras.
Umbra olhou para a rainha e não pôde deixar de reparar em suas vestimentas, que
eram, de fato, magníficas. As calças de couro com uma faixa grossa em sua cintura, marcavam
suas coxas definidas e seu corpo curvilíneo. Já sua blusa, era um pouco mais folgada, com uma
abertura leve no peito, onde o começo do vale dos seus seios perdia-se por debaixo do tecido fino
para conseguir acompanhar seus movimentos ágeis.
— Por favor, sente-se, vamos comer e depois, há uma pessoa que quero te apresentar.
— A rainha pediu, mas Umbra sabia que aquilo era uma ordem disfarçada com um tom
agradável. Ela conhecia bem isso e, sem muita escolha, foi.
Também deveria dar o braço a torcer, ela estava faminta.
— Seu irmão? — Umbra indagou, colocando as duas mãos no encosto da cadeira mais
próxima da cabeceira da mesa, onde certamente Expedia iria sentar.
Ela olhou para o lado e viu a rainha parada, com o cenho franzido. Até que fechou os
olhos por alguns segundos, levando os dedos entre as sobrancelhas.
— Lucíferos lhe dirigiu a palavra? Ele… — Expedia suspirou e voltou a andar,
colocando-se atrás da sua cadeira, assim como Umbra. Pegou o cálice dourado trajado em pedras
e bebeu seja lá o que tinha ali dentro. — Se o meu irmão foi indelicado, ou passou de qualquer
limite, me avise.
— Ele não parece gostar muito de você. — Umbra apontou com sinceridade.
Expedia riu com vontade, antes de beber mais um pouco e puxar a cadeira. Sentou-se
em frente ao seu prato e observou Umbra fazer o mesmo.
— Ele me odeia por eu ser a rainha. — Expedia deu de ombros e depositou o cálice ao
seu lado direito, perto de dois vidrinhos pequenos com conteúdo em farelos. — Felizmente, ou
infelizmente, ele é o mais novo, e eu fui escolhida sendo a primogênita. Imagina, meu irmão
sendo rei. — Outra risada curta chegou em seus lábios, mas desta vez foi uma risada amarga. —
Meu reino teria sucumbido em meses, perderíamos tudo para os Luares, principalmente a nossa
dignidade. Um reino não é apenas sobre mulheres, riqueza e poder. Na cabecinha pequena dele é
o que aparentemente se passa.
Umbra sabia da guerra sem qualquer cabimento que os dois povos tinham, algo, em seu
ver, totalmente incabível, mas que indiretamente estava infiltrada nela. Era nítido o ódio que os
Luares tinham pelos Solares e vice-versa.
— Eu sei que não é da minha conta, mas deveria tomar cuidado — ponderou a mutana
ao virar um pouco o corpo para Expedia e sentir a lateral de suas costas raspar contra a cadeira,
ainda que superficialmente, a dor deu-se presente. Reuniu todo o seu autocontrole para não
esboçar qualquer feição.
— E por que diz isso? — A rainha exigiu, ao levantar uma das sobrancelhas, enquanto
novamente levava o cálice à boca.
— Ele falou algo parecido, mas relacionado a você. — Umbra levou a mão ao copo de
água à direita de seu prato, trouxe a borda para os lábios e experimentou o frescor da água
mineral. Degustou-a, sentindo limpar a sua garganta e sorriu para si ao provar uma iguaria que
para ela era única.
Sua mãe nunca a havia privado de água, mas o gosto metálico que vinha em sua boca
toda a vez que experimentava o líquido transparente era provado por Umbra, mas era a única
coisa que ela tinha e nunca se colocou a reclamar.
— Lucíferos gosta de me difamar, mas tentarei fazer com que ele não te importune
mais. Ele tem responsabilidades, além de ficar assustando as minhas convidadas com conversas
banais. — Expedia soou aborrecida e serviu-se com mais bebida. — Eu até te ofereceria, mas
não acho que álcool fará bem no seu momento de recuperação. É uma iguaria Solares, vinda de
Teranilas. Mel, maçã verde, hortelã e destilado. Quando estiver melhor, darei para você provar.
Umbra não esperava ficar tanto tempo dentro daquele castelo, ainda mais com risco de
ser descoberta.
Expedia tocou o sininho ao seu lado e logo uma porta lateral fora aberta e os
empregados adentraram a sala para servir a comida para as duas mulheres.
— Coma. — Uma oferta gentil saiu da boca de Expedia, mas novamente, Umbra
conhecia aquele tom.
As mulheres saíram da sala no mesmo silêncio em que entraram.
Delicadamente, Umbra segurou o talher de prata pesado da melhor maneira possível e
o sentiu levemente gelado. Espetou o garfo no alimento e colocou os primeiros pedaços de
aspargos na boca. Ela arregalou os olhos quando sentiu o gosto da comida, fechou os olhos e
relaxou contra a cadeira, mesmo sentindo um leve indispor em sua coluna, mas isso não a
impediu de quase vir as lágrimas. Era um alimento detestado por muitos, mas senti-los frescos
rolando por sua língua era magnífico.
— É bom, não é? — Expedia perguntou, mesmo já sabendo a resposta. Entretanto, ao
perceber que Umbra estava degustando o alimento com calma, mastigando lentamente, para
sorver o simples sabor de um aspargo, algo tremeu dentro da rainha. Sentiu um pouco de
empatia, pois imaginou que sua convidada não tinha alimentos ao seu alcance como poderia
desejar.
— Uma delícia, minha rainha. — O contentamento de Umbra fez as duas sorrirem
genuinamente uma para a outra. — Obrigada! — E assim, quando levou a carne à boca e a
suculência acariciou sua língua, Umbra comeu com ainda mais urgência e gemeu alto, enquanto
fechava os olhos e usava a língua no canto da boca para recolher o sugo vermelho. Inclinou-se
um pouco para frente e repetiu o processo, tendo logo mais um pedaço de carne na sua boca.
Era a primeira refeição encorpada que ingeria em dias.
Expedia encarou a sua convidada com grande interesse. Parecia um ato sexual não
intencional que Umbra estava praticando. Ela estava fazendo amor com a comida em sua frente,
e aquilo era absolutamente deleitável. A rainha achou que não seria prudente chamar a atenção
ou iniciar uma conversa com Umbra, decidiu esperá-la saborear a comida, e foi apenas na quinta
garfada que a mulher de olhos brancos a olhou.
— Desculpe… — A mutana se deu conta do silêncio instalado entre elas, após a
voracidade em que comia.
— Não precisa se desculpar pela fome. Agrada-me saber que gostou, mesmo eu não
fazendo a comida.
— Minha rainha, você se importa se responder uma pergunta minha?
— Não, vá em frente. — Expedia respondeu séria, ao circular o dedo na borda do
cálice.
— Por que me salvou? — A indagação foi direta.
— Acho que não parecia certo deixar uma mulher nua no meio de uma floresta densa.
— A rainha deu de ombros, jogando um dos braços para cima do encosto da cadeira. — Mesmo
que tente comandar meu reino com o cabresto firme, não consigo ter olhos em tudo, vamos
apenas dizer que foi bom eu ter te encontrado. Devo admitir que há pessoas não misericordiosas
no meu reino.
— E se eu fosse uma Luares? Me salvaria?
— Está dizendo que é uma? — Expedia levantou a sobrancelha.
— Eu não sei quem eu sou.
— Ahhh, sim, eu lembro, Umbra, a sem amarras. Mesmo se você fosse uma Luares,
não te deixaria nua jogada em uma floresta.
— Sinto um mas vindo.
— Você não estaria aqui comigo. — Expedia envolveu seus dedos em volta da haste do
cálice e bebeu mais um pouco. — Eu sei que isso pode ser cruel, mas os Luares não pensaram
nisso quando mataram os meus pais ou quando fazem questão de fazer da minha vida uma
adversidade constante. — Recolocou a bebida na mesa, antes de experimentar a sua comida pela
primeira vez e, de fato, estava uma delícia, deveria dar cumprimentos às cozinheiras. — Mas não
vamos falar de coisas ruins, você está bem agora e estamos comendo uma comida deliciosa.
— Acho que eu não tive oportunidade para dizer, mas… obrigada.
As duas se encararam perante a quentura e o brilho da sala. Até que Expedia apenas
assentiu fracamente.
O silêncio se transcorreu por mais alguns minutos, onde o som dos talheres, do fogo
acariciando a lenha e o ressoar fraco das ondas do mar lá fora foram ouvidos.
A mutana estava especialmente relaxada, o cheiro da comida farta e da maresia
preenchiam o seu sentido, Umbra sempre se orgulhou de seu olfato e especialmente hoje ele
parecia estar ainda melhor, talvez porque estivesse mais forte, curando-se e ingerindo alimentos
apropriados. Pôde sentir a fragrância de Expedia e um delicioso cheiro de flores de campos
misturou-se com os outros que já estavam sendo apreciados por ela. Olhou mais uma vez para a
rainha e os olhares se encontraram. O nervosismo espalhou-se pelo seu ventre e resolveu
continuar a conversa, estava curiosa em compreender mais a situação em que estava inserida.
— Quem irei conhecer afinal? — Umbra espetou mais um pouco da suculenta carne
que sangrava gritando para ser devorada. Parte dela, a parte bestial, tinha a necessidade, a fome
de consumir aquilo e alimentá-la era uma delícia.
Porventura, ao deixar a besta satisfeita, Umbra poderia ser presenteada com aptidões
mais refinadas de suas habilidades, mesmo quando não se transformava num monstro ambulante
que nasceu dentro de si.
— Hmmm, foi minha cuidadora durante o meu crescimento, eu tenho certeza de que
ela vai gostar de você, mas por favor, coma o que você quiser comer, depois farei as devidas
apresentações. Não temos pressa para nada, é primordial que se alimente direito e quando você
acabar, ela virá. Apenas não repare, ela pode ser meio ranzinza e insuportável, mas por incrível
que pareça é uma boa pessoa. Salvou-me mais de enrascadas na adolescência do que eu possa
contar. Eu dei um trabalho desgraçado.
— Você tem cara de ter aprontado na infância.
— E o que faz você pensar isso? — O desafio feito por Expedia, fez com que Umbra
sorrisse.
— Seu olhar é quente e travesso, com muita vida. Tenho certeza de que você espalhava
o caos pelo castelo.
— Se você soubesse… — Expedia soltou uma risada frouxa e seus olhos se perderam
por alguns segundos no seu prato quase intocado. A nostalgia da quase inocência e da
malandragem da época adolescente pintou em sua mente, eram memórias felizes.
— Gostaria de saber. — Umbra expôs seu interesse real de descobrir mais sobre aquela
rainha conhecida por muitos.
Expedia a olhou e seu peito apertou pela calmaria dos olhos brancos, pôde enxergar a
genuína verdade.
— Vou te contar, mas só quando puder beber álcool. Porque preciso estar bêbada o
suficiente para contar os meus vexames, que não foram poucos. — Expedia negou com a cabeça
para si mesma, antes de rolar os olhos.
— Certo. — Umbra ofereceu um sorriso mínimo, quase desejando ter experiências
felizes colecionadas em sua mente. Ela poderia até ter, mas com toda a certeza não chegava
próximo do que a rainha tinha. Não sentiu inveja de Expedia, nem desprezo, apenas desejou
saber mais.
— Vou contar até mesmo uma ou duas coisas podres do meu irmão para você. Caso ele
venha te importunar, basta constrangê-lo. — E uma piscadela foi dada por Expedia. — Meu
irmão só late, uma conversa fiada sem fim.
Umbra sentiu suas bochechas esquentarem e a necessidade de beber mais água falou
alto dentro de si. Tomando a liberdade que foi dada a ela, a mutana apanhou o jarro de vidro e
colocou mais água em seu copo.
— Acho que isso vai ser ótimo, sempre bom ter uma… como dizem? Carta na manga?
— Umbra tombou a cabeça levemente para o lado, ao tentar capturar o ditado popular dentro do
circo.
— Isso! Exatamente! — Expedia exclamou com certa excitação marota na voz e mais
uma vez jogou uma piscadela. A bebida começava a pegá-la. — Vai ser bom, vê-lo aborrecido.
Durante um tempo da minha adolescência era o que eu mais gostava de fazer. O moleque sempre
foi tão certinho que me dava agonia. — Mexeu um pouco em sua comida, fatiando um pequeno
pedaço de carne e o colocou na boca. Depositou o bolo alimentar intocado na bochecha esquerda
após mastigar algumas vezes, e colocou a mão fechada sobre os lábios. — Acho que deveria te
agradecer por me fazer rir um pouco hoje. Precisava. — E assim, engoliu a comida. — Eu odeio
ser supersticiosa, mas… eu não te encontrei por acaso, Umbra. — O tom gentil chegou aos
ouvidos da mutana. Ela suspirou e brincou com a comida, enquanto arrastava de um lado para o
outro com o talher. — Isso foi brega, não foi?
— Não! De maneira nenhuma. Eu… Eu concordo.
Mesmo Umbra tendo que sair dali, desde o princípio, ela abraçou o perigo da quentura
e do sol. O encontro das duas realmente não tinha sido por acaso. Caberia agora a Umbra decidir
os próximos passos, mesmo sua besta rugindo para fugir dali e o seu ser emocional gritando algo
completamente ao contrário. Fique… fique com a salvadora Solares.
Capítulo Cinco
A senhora das visões

Umbra estava com os cotovelos apoiados no parapeito de pedras balaustradas e


manchadas pelo tempo e pela maresia. A leve brisa acariciava seu cabelo longo e branco,
inspirando tons de baunilha e rosas de Temperas, uma região desértica dos Solares em que
Umbra esteve apenas uma vez. Não era tão rentável para o circo ir a cidades pequenas, o
transporte e o tempo perdido para chegar à área eram um pouco cansativos.
Sua audição estava atenta ao som do mar acariciando as rochas abaixo dela, assim
como os pássaros noturnos de penas azuis e vermelhas, brilhantes e grandes o suficiente para
caçarem cachorros de porte pequeno, os bicos finos e longos eram tão afiados quanto as de uma
espada, mas eram criaturas dóceis, ao menos com Umbra. Seus nomes eram Plarinárias.
Sua pele cinza arrepiava-se constantemente e seus olhos agraciavam-se pela escuridão
do mar refletindo a lua de cor prata, sentiu-se tentada em se jogar na imensidão prateada, mas
conteve-se, provavelmente morreria se fosse se atirar dali. Seu corpo ferido iria de encontro com
as rochas e certamente, diferente das ondas, ela não sentiria carícias no impacto e na destruição
de seus ossos.
Atrás da mutana, o salão de jantar estava bastante iluminado com pouca movimentação
de empregados que retiravam os alimentos da mesa. Expedia encontrava-se ali também,
enchendo pela quarta vez o cálice que se negava a ficar vazio.
O estado sereno que Umbra mantinha não levou muito tempo, pois suas orelhas se
mexeram quando ouviram passos chegando às suas costas. Não precisou virar imediatamente
para reconhecer que havia duas pessoas se aproximando. Esticando sua coluna, calmamente
girou seus calcanhares e fitou Expedia e uma senhora baixa e gorducha com cabelos brancos e
pretos.
— Umbra, essa é Nimala, foi minha cuidadora durante anos. Acho que foi a única
Luares que encontrei na vida que vale ter algum prestígio. — Expedia colocou a mão sobre o
ombro da velha e sorriu com todos os dentes visíveis. — Meus pais sempre quiseram colocar um
inimigo dentro da casa para nós aprendermos os costumes deles. Mas vejam só, Nimala durou
bastante, e mesmo quando meu pai quis se livrar dela, não aceitei. O que posso fazer? Eu gosto
dessa velha rabugenta.
Nimala era baixa, bem baixa, rechonchuda, vestindo uma saia longa bege e uma blusa
amarela, com golas em leves babados com furinhos que desenhavam-se sois e permeavam toda a
costura. Nimala tinha bochechas grandes e levemente caídas, assim como marcas de expressões
fundas em volta de seus lábios grossos e pintados com um leve rosado, seu nariz era levemente
arredondado em sua ponta e seus olhos eram verdes bem claros. Um pouco da pele que
sustentava suas sobrancelhas finas e pequenas caiam pelas suas pálpebras. Ela parecia uma típica
avó, até suas mãos pequenas e dedos gordinhos, adornados por muitos anéis em cada mão.
— É um prazer, senhora. — Umbra tentou usar o pouco de sua graça que a foi
ensinada, e se curvou levemente em um cumprimento acometido, seus ferimentos protestaram,
mas ela ignorou. Por alguma razão, Nimala tinha um efeito de respeito muito maior sobre a
mutana do que a própria rainha dos Solares. Nimala era uma mulher que sabia muito e Umbra
não precisava ser nenhum médium para saber disso.
— Olá, minha querida. — A voz rouca da velhice a cumprimentou com um tom gentil
que quase fizera Umbra sorrir pela quentura oferecida em duas simples palavras. — Fico
contente que esteja bem, a majestade Solar me comunicou como chegou ao castelo.
— Eu devo agradecer Expedia, que, afinal, me salvou. — Umbra disse, ao ligar as
mãos à frente do corpo e se reverenciar mais uma vez.
As duas supriram o olhar da outra e a mutana sentiu-se compelida a tocar na pele oliva
e sardenta, imaginou como seus dedos reagiriam sobre a pele de uma monarca, mas conteve sua
vontade, retornando o seu olhar a excêntrica e respeitosa pequena figura que interagia com ela.
— Expedia pode ter atos benevolentes de vez em quando. — Nimala comentou sem
qualquer medo.
A concentração de Expedia esvaiu-se completamente, quando ouviu o que sua antiga
cuidadora havia falado.
— Oras, sua-
— Agora vamos ao meu trabalho. — Nimala a cortou e se aproximou da mutana.
Umbra manteve-se séria, mas teve de reconhecer e aplaudir internamente, algo lhe
dizia que Nimala tinha poder dentro do castelo, deixando até mesmo a rainha dos Solares de
boca fechada. Expedia era capaz de respeitar uma Luares, ao menos essa, pois nenhuma censura
veio depois. A rainha apenas juntou as mãos atrás das costas e se calou, parecendo quase
envergonhada por interromper Nimala. Seus olhos castanhos caíram para o chão e mastigou a
ponta do lábio inferior. Umbra achou aquilo estranhamente gracioso, mas, ao mesmo tempo,
sensual. De repente, achou que muito da pose que Expedia tinha que manter era para que o
funcionamento de tudo aquilo em sua volta funcionasse, ou a fama dela realmente era verdadeira.
Não poderia julgar ainda.
— Acredito que Expedia não contou o meu propósito aqui, não é?
Umbra continuou a fitar a rainha, à procura de alguma resposta. Expedia levantou o
rosto e levou o cálice até a boca.
— Não. — Fora a rainha que resumiu, antes de andar até o parapeito e recostar o
quadril nele. Colocou o cálice na borda e cruzou uma perna sobre a outra, enquanto continuava a
olhar para ambas as mulheres à sua frente. — Acho que seria mais interessante ela descobrir
sozinha.
— Descobrir que é doloroso. — Nimala voltou com a cabeça para Expedia e levantou
uma de suas sobrancelhas finas.
Expedia deu de ombros.
— Dor…? — O medo da voz de Umbra foi quase palpável. Instintivamente dava um
passo para trás e sua fera desejou despertar, mas conteve-se, iria morrer facilmente se fosse se
expor daquele jeito.
O olhar de Nimala desprendeu-se de Expedia para fitar o olhar assustado da mulher de
cabelos brancos.
— Não fisicamente. — A velha adiantou-se em responder. — Expedia comentou que
você não se lembra de coisas, ou de você mesma. Eu consigo acessar suas memórias, vê-las…
como uma biblioteca, entende? Mas memórias podem ser dolorosas e posso puxar um capítulo
que doa.
E mais um passo foi dado para trás, Umbra levou a mão para a borda do parapeito e
apoiou seu peso para se firmar. Aquela senhora iria descobrir de onde veio e aquilo seria o seu
fim.
Acalme-se.
A voz de Nimala soou dentro de sua cabeça, e Umbra puxou o ar pela boca, jurando
poder sentir o gosto da maresia rolando por sua língua. Engoliu o ar e todo o alimento dado para
ela durante o jantar ameaçou entrar em erupção dentro de seu estômago.
Elas se olharam e o pavor se espalhou nos olhos da mutana, ainda que estivesse livre de
amarras, sentiu-se presa. Pressionando seu sacro no parapeito, fincou as unhas nele e pequenos
farelos acumularam-se embaixo delas. Seu olhar aflito parou rapidamente em Expedia, que
parecia olhar com curiosidade, enquanto passava os dedos pelo lábio inferior e o beliscava
delicadamente.
Olhe para mim e se acalme.
Umbra fez exatamente o que foi pedido, porém, quando encontrou os olhos verdes,
sentiu seu corpo sendo empurrado, agarrou-se ainda mais no parapeito com o medo palpável de
cair dali, de repente, a ideia de pular ao mar já não parecia mais tão atraente. Seu corpo
continuou projetando-se para trás, desequilibrando-se, até que simplesmente caiu, mas o impacto
nunca veio, nem das pedras e, nem da água, quando se deu conta, encontrava-se em um lugar
totalmente vazio e escuro. Havia apenas dois holofotes de luz sobre a cabeça dela e de Nimala,
que também estava ali, bem em sua frente.
— Interessante… — Nimala sussurrou, ao andar para o lado direito, e o foco de luz
continuou a segui-la.
Umbra a acompanhou com os olhos, percebendo que além de Nimala não havia nada,
ou tudo…, mas seja como for, era apenas a escuridão, sem vida, sem vento ou som.
Seria ela… vazia?
— Onde estamos? — A mutana não se mexeu, continuou enraizada no local, não
ousaria se mexer, o medo de se perder na escuridão era real.
— No seu íntimo, seu ser, alma, cabeça… O que quiser chamar. Mas, tudo é tão…
— Escuro. — Umbra comentou com tristeza evidente e negou-se a olhar em volta.
— Expedia tinha razão, você passou por muita tristeza, preferiu bloquear tudo isso,
mas certamente, não sei dizer se é Solares ou Luares.
— Eu também não tenho essa resposta.
— Sua meia-lua vermelha ao centro da sua testa diz muita coisa, mas também, nada. —
Nimala falou, ao parar e apontar para a testa de Umbra. — Um símbolo de um Luares, poderoso,
mas nunca vi nada como você. Normalmente, temos uma lua cheia e não é vermelha.
— Eu conheço Luares e nunca vi as luas na testa.
— Interessante.
— O quê?! — Umbra indagou nervosa pela falta de explicações.
— As luas são vistas apenas por Luares, assim que nos identificamos uns com os
outros. É uma maneira de defesa, se tivéssemos a lua em vista, os Solares acabariam com a gente
mais rapidamente, ainda mais aqueles que vivem nas cidades do Sol. É irônico, pois apenas aqui
posso ver sua lua. Talvez seja a sua fera, isso é algo que nunca vi. Normalmente, não somos
habilidosos quando se trata de força bruta, mas sim mental. — A senhora apontou para o seu
cenho e uma lua cheia surgiu como pintura em sua pele. — Você não tem ideia de quem é, e
acho que se contarmos para Expedia sobre a sua responsabilidade do ataque que ocorreu nas
terras dela, certamente não ficará contente. Você tem sorte de não te reconhecerem, seus pais, ou
que dizem que são, esconderam muito bem sua identidade. Tudo é tão confuso dentro de você. O
quão agoniante é para você? Saber quem não é?
— Eu não sei mais, sinto vontade de descobrir de onde eu vim, já que sou representada
como uma Luares mesmo não sendo uma. É tenebroso não saber onde você é pertencente, mas
ao mesmo tempo, quero também esquecer tudo o que vivi e recomeçar.
— Infelizmente, não consigo acessar suas memórias de bebê, normalmente, elas são
esquecidas, então não posso lhe dizer mais nada, porém, você pode recomeçar, está segura aqui.
— Nimala apontou, ao levar a mão até o queixo e esfregar os dedos na pele com marcas de
velhice.
— Você não vai contar para Expedia? — O fio de esperança soou na voz de Umbra.
— Não, francamente, não quero ser responsável pela morte de uma Luares, ou bem,
seja lá o que você for. Você precisa ficar melhor, mais forte, ajudar o seu amigo que quer ajudar
e ter o tempo que desejar para arquitetar pela primeira vez as suas vontades. Acho que sua
temporada dentro do castelo, ao menos até você ficar melhor, será bom para Expedia. No fundo,
o lugar onde ela está é bem parecido com esse, mas é tanta luz que chega a cegá-la.
— E você não vai querer nada em troca? — Umbra não estava totalmente convencida.
Ela deu um passo à frente, mas levantou o pé quando sentiu-o afundando em uma viscosidade
preta. Arregalando os olhos, voltou à posição original, foi ali que se deu conta que estava presa
em sua própria mente.
— Não, por que iria?
— De onde eu vim sempre querem algo em troca.
Nimala deu duas batidinhas com o indicador em seu queixo e um som saiu pela sua
garganta. Ela estava pensando como poderia usufruir da informação que retinha, mas Umbra se
surpreendeu com as próximas palavras.
— Nada… eu só... pensando melhor, pode ter algo. Expedia.
— O que tem ela?
Umbra não estava errada, sempre desejavam algo dela.
— Não a deixe só.
Aquilo foi confuso para a mutana. Ela franziu o cenho e suas írises mexeram sem
parar, na tentativa de estudar e procurar mais informações. Entretanto, a sensação de ser puxada
novamente aterrissou como um furacão que toca um solo. Umbra puxou o ar dos pulmões e
fechou os olhos, apertando-os o máximo que podia. Quando achava que estava prestes a ficar
sem ar, sentiu o toque quente no seu ombro, junto a um corpo firme e forte cercando suas costas,
com o intuito de não a deixar cair ao solo viscoso. Porém, quando abriu os olhos, a mutana se
encontrava na varanda do castelo, com Nimala olhando-a séria.
Inspirando pesadamente, tentando recolher todo o ar que tinha à sua volta, Umbra
olhou para trás e viu Expedia perto, na realidade, perto demais, com os braços em sua volta,
prendendo-a contra seu corpo. Novamente, sucumbiram-se ao olhar uma da outra, quase que
praticamente ignorando a presença de Nimala que estava ali junto a elas. Por um momento,
fizeram isso, mas ao ouvirem algum som de louças se chocando, ambas pareceram despertar de
algum tipo de sonambulismo atrativo e criado para as duas.
— Você está bem?! — A pergunta veio aflita na voz de Expedia, e sua mão apertou
gentilmente a cintura de Umbra, querendo chamar sua atenção para a exigência de uma resposta.
Umbra tocou novamente na borda do parapeito, tomando impulso para ficar de pé.
Usando ainda o parapeito, jogou um pouco do seu peso nele, descansou o seu quadril e escorou
as mãos. Respirou fundo algumas vezes, sentindo os membros de seu corpo reclamarem pela
ação exacerbada que provocou. Engoliu em seco e reparou que Expedia ainda a rodeava com os
braços suspensos no ar, esperando para que Umbra pudesse vir a cair. Entretanto, a rainha se
aprumou, colocando as mãos para trás e limpou a garganta.
— E então? — Expedia pediu a resposta daquilo que estava procurando, desde que
descobriu que a sua convidada não se lembrava do seu passado.
— Ela é uma tela em branco… Corrigindo, uma tela negra. Não há nada. — Era em um
tom de pesar que Nimala falava isso. — Sinto por decepcioná-la, minha rainha. — A submissão
da antiga cuidadora e agora coordenadora dos servos, soou diferente nos ouvidos de Umbra, mas
não interveio, ou disse qualquer coisa. Ela era obrigada a confiar na velha vidente.
— Isso é… uma verdadeira adversidade. — Expedia cruzou os braços embaixo dos
seios e tombou a cabeça para o lado, Nimala e Umbra se entreolharam, o segredo sobrevoava
entre elas e esperavam que a rainha pudesse acreditar e se convencer da mentira da Luares de
poderes fantásticos, mas ambas se assustaram quando ouviram uma palma de Expedia. As duas
viraram a cabeça e a rainha sorriu. — Certo, obrigada, Nimala. Pode ir…
A velha abriu a boca para protestar, mas tinha total consciência dos seus limites dentro
do castelo, mesmo tendo certo poder, saberia quando estava abusando da sorte. Então, apenas
assentiu com a cabeça, cumprimentando a rainha e um breve sorriso para Umbra.
— Até breve — falou a Luares, ao se virar em direção à sala de jantar.
Agora, com as duas sozinhas, Expedia suspirou e encarou o mar, onde assim como
Umbra, apoiou-se no parapeito, mas diferente da outra mulher, sua face sentia o frescor da
maresia.
— Espero que tenha compreendido minhas ações hoje. — A rainha proferiu, ao beber o
líquido de seu cálice e assim, colocou-o sobre o parapeito. — Eu precisava saber se estava aqui
para trazer um flagelo na minha vida — explicou Expedia, ao mesmo tempo em que seu dedo
indicador acariciava a pedra vermelha entalhada na prata. — Caso estivesse de fato falando a
verdade, poderíamos descobrir mais sobre você.
— Não a critico — resumiu a mutana.
— Você precisa se recuperar mais. — A rainha informou, ao olhar para as feridas de
Umbra. — Ainda está fraca. — Uma afirmação que Umbra não podia dar o braço a torcer.
— Sim, estou, minhas costas estão doendo bastante. — A mutana confessou soltando
um riso baixo e dolorido.
— Eu… sinto muito por isso. Antes de você se deitar, pedirei para que alguém veja de
novo seus ferimentos. — Expedia informou a ajuda com um tom gentil. Mais uma vez, suspirou
e procurou seu cálice, querendo se embriagar um pouco mais. — Droga… — resmungou ao se
dar conta que sua bebida havia acabado.
Umbra percebeu o que Expedia estava querendo, andou até a sala de estar, mesmo com
a sua coluna doendo a cada passo que dava, e recolheu de cima da mesa, já totalmente arrumada,
a garrafa de líquido amarelo. Voltou para a varanda e serviu um pouco de bebida alcoólica para a
rainha. Colocou a garrafa no parapeito e apanhou o cálice com o refil na intenção de entregá-lo
para Expedia.
A rainha ficou surpresa com a ação e piscou algumas vezes, ao compreender a situação
que estava se montando ali. Ela aceitou o cálice dado por Umbra e seus dedos tocaram a pele
cinza, quase prateada devido à iluminação artificial da lua. Uma pequena e tímida onda de
quentura invadiu seu ventre. O simples fato de Umbra querer agradá-la e trazer aquilo que
desejou, fizera a parte carnal de seu ser reagir.
— Obrigada… — A rainha agradeceu, antes de levar o copo à boca e beber todo o
líquido que lhe queimou a garganta. Expandiu as narinas para tentar diminuir a ardência, fitando
a calmaria dos olhos brancos, e deixou ser banhada por eles. — Fique no castelo até se recuperar.
— Um pedido, quase soando uma ordem.
Mas não era, não totalmente, ela queria conhecer mais essa mulher misteriosa.
Umbra tinha que ir embora, Expedia iria deixá-la ir sem problemas, não precisava sair
como uma fugitiva dali. Aproveitar a oportunidade e correr para longe do império Solares,
porém, viu-se no espaço pessoal de Expedia. Atraída pela chama de vida que ela representava e a
lembrança de Nimala pedindo para não deixar a rainha só. Não apenas isso, tinha o seu amigo
também. Deusas, ela estava se envolvendo em emaranhados conflitos e nenhum tinha qualquer
solução.
— Eu vou — disse ela roucamente. — Obrigada pela hospitalidade, Expedia.
— Eu-
— Minha rainha. — Uma voz ecoou atrás das duas e Umbra se afastou.
Expedia respirou fundo, querendo fincar a espada no peito do infeliz que a atrapalhou.
— O QUE É?! — A irritação foi bastante aparente, que fizera o homem de armadura
recuar.
— Está sendo chamada pelo conselho. — O homem falou com a voz baixa, evitando o
olhar pesado de Expedia.
— Problemas, todos os dias, problemas… — resmungou, ao suspirar cansada. —
Desculpe, Umbra, aparentemente, ninguém sabe mover uma palha nesse reino sem precisar da
minha ajuda. Vejo-lhe amanhã? — O pedido gentil de Expedia, fizera a mutana acenar
rapidamente.
E com um sorriso satisfeito, a rainha saiu da varanda, deixando Umbra só, na noite
quente do reino e do som das ondas que faziam a lua de espelho. Era calmo, diferente do que
Expedia era, e, de repente, sentiu falta do barulho incandescente que a rainha representava.
Capítulo Seis
Expedia gosta da lua

Umbra estava sentada em uma cadeira de madeira com a coluna reta e as mãos
descansando sobre as coxas.
Olhava seu próprio reflexo no espelho longo, quase não se reconhecendo, seus lindos
cabelos que escorriam pelos ombros e ancas agora eram descartados em ondas no chão de
madeira.
Seu rosto estava menos surrado, assim como os hematomas que estavam clareando,
deixando-a com a aparência mais saudável. Seu cabelo estava curto, curto o suficiente para sentir
o ar em sua nuca, e seu pescoço ainda expunha o ferimento adornado como uma coroa marcado
contra a sua pele quase prateada, devido aos anos da coleira de couro pesada e suja que usava.
Atrás de Umbra, Nimala passava os dedos no cabelo curto branco, sacudindo os fios,
enquanto se inclinava de um lado para o outro, tentando encontrar falhas através dos diferentes
ângulos que fazia com o corpo. Quando enxergava algo de errado, a tesoura dourada em sua mão
passava pelo cabelo de Umbra e a mutana mal respirava, não gostava de coisas pontudas por
perto. Seu corpo estava parado, um pouco tenso, como uma peça de mármore em exposição em
um jardim, mas não significava que não estava gostando do resultado, ao contrário, ao se olhar
pelo reflexo no espelho, percebia a movimentação habilidosa da tesoura de Nimala e mais
gostava do resultado. Seu rosto havia criado mais vida, sentia-se mais atraente, e perguntou-se o
que Expedia iria achar.
— Não se preocupe, ela vai gostar. — Nimala informou, ao passar a tesoura por alguns
fios rebeldes.
Umbra tensionou ainda mais o seu corpo e fitou o olhar da velha através do reflexo do
espelho. Consertou sua postura na cadeira, encostando a base da coluna no encosto de madeira,
sua coluna reclamou, mas não como no dia anterior. Ela estava ficando melhor, mais forte.
Umbra observou a velha se distanciar um pouco, deixando a tesoura em cima da cama.
Nimala andou até a janela e abriu um pouco mais as cortinas, deixando a claridade embrenhar o
quarto, embebedando a cama de lençóis brancos e o dourado da tesoura. A senhora Luares se
aproximou novamente com um sorriso nos lábios, demonstrando o orgulho do trabalho bem-feito
que acabara de fazer. Os dedos gorduchos e pequenos passaram pelo couro cabeludo de Umbra e
o acariciou gentilmente.
Umbra relaxou no carrinho.
— Eu adorei. — A mutana murmurou em agradecimento.
— Eu sei. — Nimala pousou a mão no ombro de Umbra e apertou.
Olhou-se um pouco mais e pela primeira vez em anos, sentiu-se bonita. Desejava
realmente que Expedia gostasse, queria chamar a atenção dos olhos quentes.
— Eu já disse, ela vai gostar. — A senhora Luares voltou a dizer.
— Saia da minha cabeça. — Não foi um pedido, e sim uma exigência com um rosnado
preso ao peito. Umbra não se importou pelo simples fato de Nimala ter uma tesoura bastante
afiada, centímetros perto dela.
— Eu não preciso estar dentro de sua cabeça para enxergar aquilo que é óbvio, cara
lobinha.
Já fazia três dias que a mutana não encontrava Expedia, claro que Umbra não andava
pelo grande castelo livremente, havia poucos lugares aos quais tinha o livre acesso para
caminhar, e toda vez que saia do quarto, procurava pela rainha, curiosa para a próxima conversa
que dividiria com ela. Mas pelo atarefamento da guerreira, não tiveram a oportunidade de terem
tal encontro, porém, Umbra tentou ao máximo aproveitar sua estadia no magnífico lugar.
Explorava onde era permitida, se exercitava quando podia e sempre que achava Nimala, a seguia
para cima e para baixo. A velha Luares a alimentou bem, a ajudou com os curativos e aplicou
exercícios para que sua musculatura ficasse mais rígida e forte.
Umbra estava cada vez mais próxima de confiar em Nimala, afeiçoava-se pela mulher
mais e mais, principalmente por cuidá-la tão bem. Talvez, aquilo era o que as mães faziam.
— Se você quer uma dica, a rainha gosta de visitar os jardins reais durante a noite. —
Nimala dividiu o segredo.
— Você disse que eu não poderia deixá-la sozinha, por quê? — Umbra perguntou, ao
se levantar, batendo as mãos na gola do vestido negro que usava.
— Acho que você pode ensiná-la uma coisa ou outra sobre a vida. Expedia é
privilegiada e tem dificuldade de ver além do que é mostrado ao seu nariz. Ela é uma boa rainha,
mas poderia ser melhor. Poderia ser uma pessoa melhor também. Infelizmente, ela cometeu
muitos erros, não em detrimento do reino, mas para ela própria.
— Mas eu sou ninguém. — Umbra se aproximou da janela e seus olhos se fecharam
pela iluminação exacerbada do sol, mas aproveitou por alguns segundos sua quentura, já que
logo ele começaria a se esconder nas montanhas. Voltou suas costas para a janela e escovou o
cabelo curto com os dedos, estava gostando dessa nova sensação.
— Exato. Você é ninguém, mas também é mais do que eu posso compreender.
Certamente, tem sangue de Luares, mas é mais que isso e é fascinante, abrace sua diferença
perante os Solares e aos Luares, pequena loba.
Umbra suspirou ao ouvir o que Nimala havia dito, buscava acreditar em si, mas era
difícil quando o mundo simplesmente a via como uma aberração, na verdade, não apenas os
outros, a própria mutana enxergava-se desse jeito. Atravessou o quarto e pegou uma vassoura e
uma pá que descansavam ao lado da porta da câmara de banho. Começou a varrer o chão que
estava com seus fios brancos e os juntou em um pequeno monte de cabelo. Luriel nunca permitia
Umbra cortar os seus cabelos e agora, vendo-os no chão, sentiu-se satisfeita, liberta de mais uma
prisão invisível.
— Eu deveria ir embora, Nimala. Eu não posso ficar, se ela descobrir o que eu sou,
mesmo eu não sabendo quem eu sou, não gostaria que ela descobrisse. Nunca me importei com a
morte, mas quando fugi, algo… a esperança nasceu dentro de mim de novo. Eu quero viver,
sumir daqui, pessoas morreram para estar onde eu estou. Eu sou uma assassina, mas ainda assim
não quero morrer. — Umbra desabafava segredos já descobertos por Nimala, enquanto arrastava
o pequeno monte branco de seus cabelos para a pá. — Mas, eu também não quero ir embora,
porque também estou com medo e estou gostando daqui, só que isso pode se quebrar a qualquer
instante.
Uma risada baixa saiu dos lábios da velha, e quando ela levantou os olhos, percebeu o
quanto Nimala estava perto. A tesoura estava enfiada no cinto que usava para prender o seu
vestido amarelo e o avental com o símbolo do sol. Pelas Deusas Irmãs, ela era rápida.
A velha recolheu a pá e a vassoura de sua mão.
— Eu não posso prever o futuro, só ver o passado e o presente, mas eu acredito em
mim, e acho que você vai ser importante para Expedia. Você vai estar segura com ela, melhor
estar aqui na boca do lobo do que está por aí podendo se tornar a caça principal dele. — Nimala
falou, ao sorrir e suas bochechas caídas se levantaram pelo esforço facial que fizera. — Daqui a
pouco, ela estará no jardim. — A Luares relembrou, antes de se afastar e sair pela porta do quarto
pertencente a Umbra.

∞∞∞
O silêncio não fazia muito parte da vida de Expedia, sempre que podia, tentava se
esconder em seu castelo, poderia ser bem cansativo ser uma monarca com poderes excessivos na
mão, já que todo mundo parecia sempre querer contar com ela. Era uma responsabilidade que se
orgulhava em ter, apreciava o papel de importância que tinha, entretanto, o esgotamento por
vezes chegava, e hoje era um dia desses.
Perdida em seu jardim, sentava em um banco de pedra, embaixo de duas grandes
escadas também de pedra, gostava dali, pois caso alguém a procurasse, olharia a linda extensão
do jardim particular e o horizonte marítimo. Ela estava escondida ali, em uma quase caverna rasa
de pedras lisas.
Seus pés latejavam, graças as andanças que tivera de fazer hoje, esticando-os para
frente, apoiou as costas no encosto do banco e tentou relaxar. Sentiu o cheiro das flores e do mar,
enquanto observava seu jardim muito bem preservado. Uma obra feita por sua mãe, ainda
quando Expedia era bebê. Ele se expandia em um corredor de pedras quadriculadas e com
árvores de folhas rosadas rentes ao caminho. Um lindo chafariz onde as Deusas Irmãs
dispunham-se da nudez, uma segurando a lua e a outra o sol. O verde se espalhava pelo campo
privado, com árvores frutíferas e canteiros geométricos com lindas flores que permaneciam
durante todo o ano, até mesmo no rigoroso inverno, quando aparentemente, tudo em seu reino
ficava ainda pior. Logo mais à frente, depois do chafariz e da modesta cabana de madeira, o qual
Expedia não usava muito, outro par de escadas de pedra com limo e folhas mortas levavam até
um pequeno deck privativo, que era usado para sair com o seu veleiro ou barco. Eles eram mais
usados por Lucíferos, quando tinha a vontade de sumir e não ressarcir o trabalho que devia ao
conselho. Um homem desinteressante e irresponsável, esse era o seu irmão. Expedia não
precisaria de inimigos, ela já contava com um dentro de seu próprio reino.
— Se escondendo aí embaixo?
A voz feminina fez com que Expedia se assustasse, em reflexo, colocou os dedos em
volta do cabo de sua espada e se levantou. Ao olhar para cima, observou Umbra debruçada sobre
o parapeito das escadas, com um sorriso mínimo nos lábios.
— Seu cabelo? — Foi apenas o que Expedia pôde dizer, ao observar Umbra descendo
os degraus e passando os dedos pelos fios curtos e brancos.
— Gostou? Acho que precisava fazer isso.
— Normalmente, cortamos o cabelo para mudar, se desprender de algo, ou
simplesmente pela facilidade de cuidar. — Expedia ponderou ao se colocar frente a frente com
Umbra. Seus dedos ainda seguravam o cabo da espada, entretanto, parecia mais uma segurança
para isolar a inquietação que ganhava força dentro de si pela aproximação de sua convidada.
— Acho que um pouco dos três. — Umbra respondeu em uma voz baixa perante o
silêncio da noite. Seus olhos flertaram com a lua amarelada ao céu e seu coração bateu rápido
dentro de seu peito, como se sua fera quisesse a liberdade de correr por todo esse jardim em uma
segurança falsa que não poderia se apegar.
Ao invés de Expedia seguir o olhar e fazer o mesmo que sua nova visitante, continuou
com os olhos sobre a pele cinza quase brilhante, o cabelo curto e o longo pescoço.
— Está linda… — Trancou o maxilar e apertou ainda mais o cabo da espada, até que
os nós dos seus dedos doessem. Ela se sentou no banco de pedra, sentindo-o estranhamente
desconfortável e respirou fundo. Francamente, não esperava encontrar Umbra no jardim, na
realidade, achava que estava fugindo de sua visitante, como se tivesse medo de encarar os olhos
calmos que eram transmitidos.
— Obrigada, minha rainha. — Umbra agradeceu, ao sentar-se ao lado de Expedia.
— Você está sendo bem tratada aqui, Umbra? — A rainha perguntou, ao soltar o cabo
da espada.
— Sim, e muito, agradeço profundamente pela hospitalidade. Estou me sentindo bem
mais forte. — Umbra se colocou totalmente reta no banco e seus olhos se perderam no jardim. —
É um lugar magnífico aqui, devo dizer. Acho que descobri o seu esconderijo.
— Nimala, não foi?
— Sim, não a culpe, eu quis vir até você — confessou Umbra, antes de respirar fundo.
Ouviu os grilos e as rãs enfeitando a cantoria da noite.
O cheiro do mar e do perfume de Expedia também invadiam um pouco os seus
sentidos, assim como sua visão que capturava a natureza e a lua que abrilhantava todo o
resplandecente local.
— Gosta da lua também? — Expedia perguntou casualmente, buscando ignorar a
palpitação forte de seu peito, ouvir aquela declaração mexeu com as suas emoções sempre tão
cálidas.
— Sim, o sol é muito brilhante, não me leve a mal, ainda que eu seja fascinada pelo
calor dele. — Umbra adiantou-se a dizer, com o receio da rainha se sentir afetada pelo
comentário. — Mesmo que a grande maioria das pessoas prefiram o sol por ele trazer alegria e
excitação para a vida de todos, eu gosto do que a lua traz, ela é sozinha e sequer tem o seu brilho
próprio, ela é um calmante na minha vida.
— Sozinha? Nunca vi essa perspectiva, mas acho que você tem razão. A lua é uma
visão melodramática, romântica, acredito eu. — Expedia deu de ombros. — Concordo que ela
seja para poucos e, sim, traz uma estranha calma, mas por favor, guarde esse segredo. Imaginem
se souberem que a rainha Expedia idolatra a lua.
Com isso, Umbra riu e voltou os olhos para a rainha.
— O seu segredo está bem guardado comigo.
— Que bom, eu preciso de calmaria às vezes, muitas coisas acontecendo ultimamente.
Mesmo eu amando a lua, os meus súditos me dão uma dor de cabeça tremenda. — Expedia
soltou o ar pela boca e, novamente, esticou as pernas, arrastando seus calcanhares contra as
pequenas pedrinhas. Mexeu os seus dedos dentro das botas, desejando livrar-se delas o mais
rápido possível, esperava sinceramente que não criasse bolhas. Descansou as mãos sobre o
ventre e deitou a cabeça no encosto do banco.
— Posso te ajudar de alguma maneira? — Umbra perguntou com sinceridade
abundante, e colocou-se um pouco de lado para melhor encarar Expedia. Sem perceber o que
estava fazendo, estendeu o braço sobre a borda do encosto do banco e seu polegar roçou no
cabelo castanho preso em uma trança embutida.
— Eu preciso me livrar, ou melhor, arranjar uma maneira menos violenta de lidar com
uma cidade Luares que interrompeu a passagem de um rio que atravessa uma das nossas cidades,
isso está prejudicando a vinda e a ida de barcos no porto da cidade.
— Eu sinto muito por isso, acho que nunca consegui ser muito política.
— Algo me diz que não deixavam você fazer muita coisa, não é, Umbra?
Os olhos se perderam novamente uma na outra e Umbra sentiu os pesos daquelas
palavras. Um aceno positivo foi o suficiente para que os olhos brancos se enchessem de
lágrimas.
— Minha rainha, eu acredito que daqui a alguns dias estarei totalmente curada e
melhor. Eu gostaria de me oferecer para fazer alguma coisa, algo em troca.
E era verdade, Umbra havia acabado de chegar a essa conclusão. Ela não tinha
dinheiro, não sabia para onde seguir e muito menos como poderia continuar sua vida, já que
passou praticamente todo o seu tempo dentro de uma jaula. Se Nimala tivesse razão, mesmo
dormindo dentro da boca do lobo, ela estava segura, era só Expedia não descobrir a sua besta que
tudo ficaria bem. Além disso, dinheiro seria bom caso quisesse tomar rumo ao desconhecido e
talvez por ali, pudesse ter mais chances de achar informações sobre o seu amigo Victorie.
— Eu não estou exigindo nada de você, Umbra. — Expedia disse com calma, antes de
voltar à posição anterior, foi quando sentiu o polegar da outra mulher em suas costas. Seus olhos
passearam pelo rosto menos ferido e desceram até o hematoma do pescoço, até o tentador vale
dos seios pequenos que estavam desenhados sob o tecido. Ela era linda, magnífica, como a porra
de uma deusa de pele brilhante.
— Eu sei, mas eu gostaria de me sentir útil. — E o polegar de Umbra acariciou em
movimentos circulares as costas de Expedia.
— Se fosse em outra circunstância ou com outra mulher, poderia tentar me aproveitar
disso. Oferecer o tentador, mas não seria justo e também não quero mais fazer isso — disse a
rainha com amargor em sua voz. — Entretanto, gostaria de saber quais são as habilidades que
você pode me ofertar para ajudar no funcionamento do castelo ou do meu reino?
Umbra realmente não queria se sentir usada, mas chegou a considerar FORTEMENTE,
em se deitar com Expedia, mas ainda estava ferida e não queria estragar uma oportunidade de
começar a ser um alguém.
— Costurar, sinto que sei fazer roupas, remendos. Tive alguns sonhos sobre isso, e
remendei um furo da minha saia ontem. Posso fazer costuras para as suas servas, assim você
pode gastar menos dinheiro e-
— Dinheiro não é um problema para mim, Umbra. Mas eu gostei de ouvir isso, eu
realmente estou querendo novas vestimentas. — A mesma mão que acariciava as costas de
Expedia foi pega por ela, que gentilmente levou os nós dos dedos de Umbra para os lábios, onde
os roçou contra a pele cinza quase brilhante. — Irá ser minha alfaiate, aceita?
Um arrepio agradável e mais do que bem-vindo passou pelo seu corpo, e foi em cheio
ao seu ventre, esquentando-o em um delicioso e pecaminoso prazer ainda controlado.
— Aceito, sim, aceito! — A animação rara passou pela voz de Umbra e Expedia
pareceu reconhecer isso, pois ambas sorriram abertamente uma para outra.
A rainha estava inundada na calmaria e no novo brilho de felicidade nos olhos brancos.
Expedia não tremulava por muitas coisas, mas certamente, o sorriso de Umbra causou um efeito
positivo e a vontade de criar mais efeitos como esse em sua convidada apenas se apoderou e
aumentou mais dentro de si.
Capítulo Sete
As mãos habilidosas de uma besta

As portas se abriram na frente dos olhos de Umbra e o brilho do sol acariciou sua pele
quase prateada. Levou alguns instantes até se acostumar com a claridade e após piscar algumas
vezes, para que sua pupila se ajustasse à iluminação, entrou na sala.
Seu coração disparou ao olhar em volta e perceber onde estava.
O piso do cômodo tinha cor marfim, quase com o mesmo tom das paredes de tijolos,
candelabros eram fixados no centro delas e, ao invés do teto, uma camada de vidro afunilava-se
em um bico, formando uma estranha, mas magnífica, claraboia. Assim, tanto o sol, quanto a lua,
poderiam ser vistos aos olhos dos visitantes. Encostada nas paredes, uma estante de madeira com
inúmeras pequenas gavetas se organizava em cada fileira de seis níveis, ali dentro continha
materiais para costura. Ao lado, uma arara igualmente de madeira com três fileiras armazenava
tecidos com as cores, predominantemente, vermelho de diferentes tons, assim como amarelo e
laranja. Do outro lado, um divã de veludo vinho escuro descansava sobre um tapete com o
símbolo supremo do sol. Havia também uma mesa longa com papéis amarelados e grossos, junto
a uma vasilha longa de vidro onde todos os lápis eram guardados. No centro da sala estava um
pequeno púlpito esférico, bem semelhante ao que ficava em pé dentro do picadeiro, enquanto
suas costas eram lesionadas pelo chicote maldito de sua mãe. Por um segundo, seus olhos se
perduraram naquele objeto que era tão comum, mas cheio de significado.
— O que achou?! — A voz satisfeita de Expedia fizera Umbra retornar aos seus
pensamentos presentes. — Está lindo, não é?
Umbra virou a cabeça e olhou o sorriso orgulhoso imenso de Expedia.
A rainha soltou uma piscadela para ela, antes de tocar gentilmente o braço da mutana,
sentindo as ondas leves das cicatrizes espalhadas pela pele cinza. Umbra quase sempre tendia a
ficar rígida quando um toque surpresa era feito, mas com Expedia, os toques eram ansiados. Um
estranho calor se espalhava pelo seu corpo, e não era apenas uma quentura sexual, mas também,
acolhedora.
— Sim, é maravilhoso! — A mutana sorriu de volta e tomou mais alguns passos para
frente. — Como você fez isso tudo em tão pouco tempo?
— Ah, tenho os meus contatos. — Expedia deu de ombros ao andar até os tecidos e
roçar seus dedos neles. — Eu percebi que você iria enlouquecer se continuasse não fazendo
nada. Soube que pediu para a empregada deixá-la limpar o seu próprio quarto. — Não saiu como
uma acusação, e sim mais um comentário.
— Sim, eu precisava me distrair e acho que Nimala ia me enforcar a qualquer
momento. Parecia uma sombra atrás dela.
— A velha adora atenção, tudo bem você perturbar ela.
Umbra reconheceu um tom de carinho na fala da rainha.
— Mas agora, espero ter bastante trabalho — declarou Umbra ao passar as mãos pelo
braço direito, sentindo os pequenos calombos da cicatriz presentes em sua pele.
Em geral, pessoas evitavam tocá-las, seja por nojo, hesitação ou estranheza, Umbra já
tinha se acostumado com isso, por isso que sempre as escondia sobre os trapos que recebia, mas
desde que se mudou para o castelo, alguns de seus vestidos eram livres de mangas e mesmo por
vezes se sentindo exposta pelas inúmeras cicatrizes, os sentimentos de aversão não eram vistos
dentro dessas imensas paredes.
— Ah! E vai! — Expedia retirou a capa fina que usava e a jogou em cima da arara de
tecidos, revelando a blusa vermelha escura com um grande colarinho em detalhes dourados, que
se estendia até os ombros, um lenço negro rodeando sua cintura junto ao cinto com a sua espada,
e calças negras que lembravam a noite escura dos invernos. Ela retirou a espada, deixando-a
apoiada na parede e correu até o púlpito, onde saltou para ficar de pé em cima dele. — Pode
começar! — O entusiasmo da rainha continuava em sua voz.
Umbra tentou reprimir o sorriso que nascia em seus lábios. Ela se aproximou do
armário com várias gavetas e suspirou aliviada ao reparar que todas elas tinham pequenas
etiquetas escrito o que havia dentro de cada uma. Diferente dos outros dias, Umbra não usava
vestido e sim uma saia longa vermelha escura e uma blusa branca com mangas curtas, mas seus
ombros estavam completamente nus, apenas uma parte de seu braço encontrava-se coberto pelo
tecido fino. Sua nuca, já não tão ferida, também estava nua perante os olhares curiosos. Levou
algum tempo para se acostumar a estar tão descoberta aos olhos de outros, mas agora estava um
pouco mais confiante, já que os hematomas começavam a sumir e, estranhamente, com os
cabelos curtos, a segurança de se reafirmar cresceu mais dentro de si. Claro que isso tudo vinha
com o efeito de estar sob os cuidados da rainha Expedia.
A mutana tratou de pegar uma fita métrica, papel e um lápis, para assim começar a
fazer as medidas.
— Pode me surpreender. — Expedia voltou a dizer, antes de estender os braços,
ficando com o corpo em forma de “T”.
Umbra encontrou um banquinho baixo no canto da sala e o levou para trás do púlpito.
Subindo no banquinho, dobrou o papel em duas partes e enfiou a metade dele na saia. Usando a
fita métrica, esticou-a no começo das pontas dos dedos de Expedia até o pescoço. Aproximou-se
um pouco mais, seu rosto quase raspou o cabelo castanho preso, olhou a medição e recolheu a
fita, para retirar o papel da saia e anotar o número apresentado. O mesmo processo se repetiu no
outro braço, entretanto, seu dedo mindinho roçou a lateral do pescoço de Expedia. Ela
reconheceu que a pele oliva se arrepiou, mas não comentou sobre a reação corpórea da rainha.
Logo, com uma facilidade extrema, Umbra parecia dançar em volta de Expedia, enquanto
anotava suas medidas e seus olhos passavam pelo corpo imaginando e ponderando que tipo de
potenciais vestimentas ficariam bem no corpo que encarava. Qualquer coisa iria cair bem em
Expedia, mas queria valorizá-la como rainha.
Expedia engolia em seco, os dedos cinzas de unhas negras por vezes tocavam sua pele,
observava Umbra com os braços cheios de cicatrizes e por um momento desejou machucar seja
lá quem tivesse feito isso. A pele quase prateada de Umbra era uma obra de arte a ser vista, assim
como seus olhos brancos. Encontrou-os segundos depois, quando Umbra se colocou no
banquinho em sua frente, aproximou-se inclinando um pouco para frente e circulou a fita métrica
ao longo de sua cintura.
— Abra um pouco os braços — pediu Umbra em um tom de voz baixo.
Seus corpos estavam próximos e Expedia percebeu a firmeza com que a fita se
posicionou ao seu redor, puxando-a levemente para Umbra. A rainha se propendeu para frente,
ainda encarando os olhos brancos, junto às pupilas que se dilataram. Umbra puxou a fita um
pouco mais, deixando-a mais justa e o corpo da rainha um pouco mais do de Umbra. Agora, seus
corpos roçavam levemente um contra o outro. A tensão se criou rapidamente, a atração entre elas
permitiu a se desabrochar ainda mais, reafirmando o acontecido desde o primeiro acariciar
entreolhares.
Expedia levantou as mãos e segurou o rosto de Umbra, antes de puxá-la para um beijo
de dias de angústia sexual que ambas conseguiram construir em pouco tempo. A língua macia de
Umbra foi que adentrou sua boca e a fita métrica fora substituída pelas mãos. Sentiu-se sendo
puxada com vontade e os lábios macios tornaram-se ainda mais voluptuosos e urgentes.
Outra sensação firme que a rainha encontrou foi a viscosidade em sua vulva, a vontade
de aliviar a tensão crescente tornou-se conturbada dentro de si e Umbra pareceu perceber isso,
pois a coxa de sua convidada adentrou entre suas pernas.
Expedia gemeu alto e Umbra engoliu o gosto e o som.
A mutana estava totalmente absorta nos sons que a rainha fazia, experimentando o
gosto de sua boca que parecia ser quente como um dia de verão. Umbra havia beijado outras
mulheres, mas nem uma como Expedia. Sentiu as mãos da rainha passarem pelo seu pescoço e os
dedos acariciarem sua nuca, logo onde seu cabelo curto acabava. Um delicioso arrepio percorreu
todo o seu corpo até seu sexo e, em resposta, Umbra desceu uma de suas mãos para a bunda de
Expedia e apertou.
Ambas gemeram.
Porém, do mesmo jeito que o beijo se desenvolveu rápido e carnal, ele chegou ao fim
em abrupto, quando foram interrompidos por dois socos na porta.
— Maninha!! — A voz de Lucíferos surgiu abafada do outro lado.
Expedia saiu dos lábios de Umbra e trancou o maxilar. Respirou fundo, descansando
sua testa na bochecha de sua convidada, o cheiro da mulher invadia todos os seus instintos, que
gritavam para lamber a pele cinza, mas conteve-se, entretanto, seus dedos continuaram a
acariciar a nuca nua.
— Desculpe pela interrupção. — Expedia disse com pesar, antes de beijar o pescoço de
Umbra e se afastar. A convidada olhou para os seus olhos com um sorriso triste nos lábios, antes
de afrouxar a fita métrica e soltá-la com uma das mãos. Foi o suficiente para que Expedia
descesse. — Entre!! — Anunciou com raiva e observou enquanto Umbra se dirigia até a mesa,
tirando o papel da saia.
Lucíferos abriu a porta.
O irmão mais novo de Expedia vestia uma blusa justa, expondo seu abdômen definido,
algo que fez a rainha revirar os olhos. Usava uma faixa de couro que cruzava o seu peito, uma
ombreira vermelha do seu lado esquerdo alongava-se até seu punho e uma saia pesada larga que
terminava no meio de suas canelas, o cinto com os líquidos coloridos em frascos circulava seu
quadril e, adornando suas panturrilhas, duas adagas descansavam, mostrando o tipo de arma que
usava casualmente para se defender de Luares.
— Então é verdade, você deu um quarto de costura para uma completa estranha. — Ele
riu em descrédito, antes de andar de um lado para outro. Passou a mão pela careca algumas vezes
e desceu com os dedos para coçar o olho esquerdo arroxeado. Interrompeu seus passos,
colocando a mão na cintura. — Acho que sua brincadeira já foi longe demais, maninha. Você
sempre se encantou muito fácil, mas nunca gastou isso tudo para manter uma-
Expedia avançou sobre o irmão e o empurrou contra a parede perto da porta.
A cabeça careca de Lucíferos chocou contra os tijolos ásperos, fazendo-o fechar os
olhos e gemer pelo impacto.
A rainha entrou em seu espaço pessoal e seu lábio superior tremeu de raiva. Mais uma
vez, o empurrou contra a parede, porém, desta vez, seu irmão endureceu seu corpo, evitando o
impacto completo contra a parede.
— Você vai respeitá-la! Ela é nossa costureira, nossa costureira. Retificando, minha
costureira, e eu não quero, eu exijo que você não a trate assim. — Expedia urrou ao segurar seu
irmão pelo queixo, obrigando-o a olhá-la nos olhos. — Não seja uma criança mimada, eu gasto o
MEU dinheiro como eu quiser, sou eu a rainha desse império. — Soltando o seu irmão, deu
alguns passos para trás e ajeitou os fios de cabelo que se rebelaram, colocando-os atrás da orelha.
— Apenas diga, o que você quer, Lucíferos? Achei que você fosse… sei lá, velejar.
Assim como a irmã, Lucíferos fizera a mesma coisa, arrumou a ombreira que havia
torcido um pouco e levou a mão a cabeça, esfregando o local que havia sido ferido e pequenos
pedaços de concreto desceram pelo seu colarinho, adentrando a camisa.
— O conselho precisa de você, eu vim aqui para dizer isso.
— E precisa provocar, Lucíferos? Você não pode simplesmente falar que o conselho
precisa de mim. — Expedia respirou fundo, ao se virar e ir em direção a sua capa. Olhou
rapidamente para Umbra que certamente fingia estar distraída com as anotações do papel. —
Diga-os que estarei na sala em dez minutos e que sejam rápidos. — A rainha deu a ordem,
fixando a capa em seus ombros, pegou a espada, contudo, não a colocou em volta do quadril, ao
invés disso, apenas a segurou.
— Tudo bem. — Seu irmão assentiu, reverenciando-se para a rainha e virou para
Umbra. — Tenha uma boa tarde, senhorita Umbra.
A mutana estava tentando ignorar a briga que ocorria dentro de seu salão de costura.
Era bastante visível que o relacionamento de ambos era completamente prejudicial, não sentia
nenhum carinho vindo deles. Ao contrário, Umbra sabia que Lucíferos não gostava da irmã e a
rainha tinha conhecimento disso também. Aparentemente, eles se suportavam para o bem do
reino.
Fingia estar entretida com as medidas de Expedia, quando ouviu Lucíferos se voltar
para ela e cumprimentá-la. Umbra enfiou o lápis atrás da orelha e espalmou a mão sobre o papel
com as marcações de Expedia, antes de menear a cabeça e assentir de volta.
Observou-o sair da sala, fechando a porta e percebeu Expedia se aproximando.
— Novamente, eu sinto muito por isso.
— Seu irmão é um babaca. — Umbra declarou a confissão com certo desdém, não
conseguindo frear as próprias rédeas de sua fala. — Perdoe-me a franqueza.
A rainha riu. Uma gargalhada genuinamente feliz, havia uma concordância embutida
dentro do som melódico e alto.
— Você tem razão.
Umbra se virou para Expedia, olhando-a se aproximar com a sua majestosa presença
monarca. Levando a sua mão na lateral do pescoço, apertou-o levemente antes de se aprumar.
Abaixou um pouco sua face em submissão e fez uma leve referência em respeito.
— Minha rainha, eu gostaria de pedir desculpas por atravessar o limite com você. Eu
não quero atrapalhar-
— Umbra — Expedia interrompeu, calando-a com o dedo indicador roçando nos lábios
da mutana —, não peça desculpas, a não ser que você tenha se arrependido.
Umbra pegou a mão da rainha e a levou para a lateral do seu pescoço, no exato ponto
onde segundos atrás a sua estava, deixou os dedos acariciarem a área e se inclinou levemente
para o lado, como um cachorro à procura de carinho.
— Não me arrependo.
— Ótimo. — Expedia disse satisfeita em um murmúrio e, assim, beijou-a novamente.
Diferente do primeiro, esse era mais calmo, apenas um acariciar. — Encontre-me à noite no
jardim. Quero fazer uma surpresa. — Beijou-lhe mais uma vez, antes de se afastar um pouco.
— Surpresa?
— Farei ser memorável. — A rainha flertou com sua convidada.
— Certo, vou te encontrar lá. — Tentou reprimir um sorriso, mas sem muito sucesso.
— Até mais tarde, Umbra. — Outra maldita piscadela dada por Expedia, entretanto,
antes de sair porta afora, ela virou a cabeça e sorriu. — Eu espero que você me surpreenda
também. Quero algo digno de uma rainha.
E Umbra abriu os lábios em um sorriso aberto, mostrando que seus caninos eram
levemente mais afiados que os de Expedia, mas a rainha não percebeu isso, afinal, havia outras
coisas que chamavam a atenção.

∞∞∞
Expedia abriu as portas pesadas para a sala de reuniões do conselho.
A mesa redonda de pedra lustrada laranja com manchas negras era permeada por
poltronas vermelhas escuras, onde seu conselho sendo feito pela grande maioria de homens
velhos demais para entender sobre nova política, vestiam togas amarelas escuras e um fio de
ouro adornados na cabeça.
O teto com lustres de diamantes caindo como pingos de chuva era erguido por pilastras
azuis anis com linhas verticais douradas, já as paredes que ligavam as corpulentas estruturas
eram pintadas com azuis mais escuros, uma delas havia uma grande pintura da Deusa do Sol
agraciando a sala com uma espada idêntica à que Expedia segurava em sua mão. Na outra
extremidade existia a pintura da Deusa da Lua com um pergaminho brilhante aberto em mãos
pintadas por cores frias.
As Deusas Irmãs representavam o inverso uma da outra. Uma o conhecimento e a
sabedoria da construção da sociedade, a outra o fogo da batalha e a estratégia do ataque,
defendendo a mesma sociedade que se fortificava na cultura e nas artes. Era um equilíbrio, que
se quebrou em milhões de pedaços extremamente difíceis de colá-los de volta, infelizmente, não
parecia ter mais volta. Estava tudo absolutamente quebrado para que a estabilidade voltasse
como nos tempos anteriores, esquecidos por qualquer um que hoje andasse sobre ambos os
reinos existentes.
Assim que sua presença foi assimilada pelos conselheiros, todos se levantaram.
Expedia passou por eles até se sentar na maior poltrona em volta da mesa redonda.
— Eu espero que esse conselho valha o meu tempo. — A rainha aprumou-se, antes de
cruzar as pernas uma sobre a outra. Apontou para a poltrona mais próxima, permitindo que o
conselho pudesse fazer a mesma coisa que ela. Levou as mãos sobre as pernas e esperou que
todos se sentassem. Observou-os com certo desdém, infelizmente, não se afeiçoava com a grande
maioria que ali estava. Homens e mulheres ainda da época de seu pai, com ideias retrógradas e
errantes.
Alguns dali lhe apresentavam bons argumentos para o melhoramento da vida dos
Solares, mas eram poucos. Achou que Nimala poderia acrescer assuntos mais pertinentes do que
a grande maioria daquelas pessoas, para uma Luares, a velha era inteligente.
— Recebi alguns relatórios hoje. Estamos com um problema de estoque em algumas
cidades, devido ao bloqueio feito pelos Luares. Sem contar que as nossas colheitas podem
seriamente se findarem. Tememos que não teremos comida o suficiente para todos no inverno.
Deveríamos pedir retaliação. — Um dos conselheiros informou o propósito da reunião e, ao
mesmo tempo, já entregava a solução que ele achava a mais conveniente.
— E gastar mais suprimentos em uma guerra? — Expedia apontou o óbvio. Colocou a
espada em cima da mesa e inclinou-se para trás, entrelaçando os dedos em cima do ventre. —
Façamos o seguinte, daqui alguns dias o festival de verão começa. Eu teria que estar presente,
mande um mensageiro para a cidade de Serenas e diga que iremos em uma caravana para tratar
disso pessoalmente. O último conflito que tivemos com os Luares foi um verdadeiro banho de
sangue. Os malditos estão cada vez mais espertos. Quero atacar novamente apenas quando tiver
certeza de que a maioria dos meus homens e mulheres sairão com vida.
— Está ficando mais calma, majestade? — Outro conselheiro perguntou com certo
contragosto em sua voz.
A rainha maneou a cabeça para a esquerda e olhou o homem de barba longa presa em
duas tranças em fios de ouro. Seus olhos azuis escondiam-se sob a sobrancelha cabeluda e seu
cabelo branco e loiro prendia-se em um rabo de cavalo alto.
Um guerreiro.
Havia participado de inúmeros confrontos ao lado do pai de Expedia e alguns ao lado
dela, já fazia alguns poucos anos desde que lutaram lado a lado. A rainha começou a acreditar
que talvez confrontos violentos não levassem resultados pertinentes.
— Eu sei que vocês adoram uma guerra, mas a população não gosta de receber notícias
de que seus parentes morreram durante a luta. Muito menos crianças órfãs de Pais e Mães. Isso
não é algo muito sadio para manter nossa popularidade, ainda mais quando se corre o risco
dessas mesmas pessoas passarem fome. Daqui a uma semana partirei para assim resolver tudo
isso. — Expedia comunicou ao envolver os dedos na bainha de sua espada. Ela estava prestes a
se levantar, quando uma conselheira a interrompeu.
— Majestade, podemos falar sobre o ataque do circo? — Uma conselheira careca,
contendo a ilustração do sol marcada em sua cabeça e de pele negra, perguntou.
— O que tem, Marianne? — Expedia suspirou, largando a espada com certa força
contra a mesa, causando um barulho metálico irritante.
— Pessoas morreram — falou a conselheira um pouco indignada, ao colocar as mãos
de unhas pintadas de dourado sobre a mesa.
— Algum Solares? — Indagou impaciente ao esticar as sobrancelhas pra cima.
— Não — resmungou Marianne, ao encará-la com seus olhos verdes.
— Então, por que devo me preocupar? Francamente, o que vocês esperavam de
Luares? São selvagens, eles se matam o tempo inteiro.
— Seria bom mandar alguém para investigar, minha rainha. Temos que garantir ao
nosso povo a segurança total de nossas terras. — O primeiro conselheiro, o qual apresentou o
problema de estoques alimentares, saiu em defesa da outra parceira de trabalho.
Expedia tentou avaliar os recursos que poderiam ser gastos perante a investigação.
Talvez fosse bom tentar achar o assassino, afinal, ele poderia estar à solta por aí e, sinceramente,
não gostaria que um Solares fosse morto por um descuido seu. Ela tinha uma reputação a zelar.
— Certo. — A resposta resumida arrancou um aceno satisfeito da conselheira. —
Ficará responsável por isso.
— Precisamos lidar com mais alguns empecilhos, maninha. — Lucíferos falou da outra
extremidade da sua cadeira.
Deusa do Sol, tudo que Expedia queria era fugir dali e passar seu tempo com Umbra.
Estava cansada, mas seu trabalho como rainha era essencial e seus deveres sempre eram
prioridades para um reino próspero, por alguns instantes em sua vida, desejou não ter tal
responsabilidade, mas abdicar-se e entregá-lo para o irmão seria loucura. Os Solares
sucumbiriam em dias. Então, aqui estava Expedia ouvindo todos os problemas dos Solares, até
suas orelhas arderem.
Capítulo Oito
A noite recheada de estrelas

O andar fantasmagórico pelas placas de pedra que circulavam o chafariz não ressoavam
na noite. A leveza do andar fazia parte do seu ser, como uma caçadora faminta pela presa,
entretanto, sua pele cinza brilhava sob as infinitas estrelas quase esverdeadas no céu, que juntas a
lua gorda, poderiam facilmente denunciar que Umbra estava por perto. Mas ela não se
importava, queria ser vista, principalmente por Expedia, e quando chegou ao topo da escada de
pedra com musgo e folhas mortas, reparou que a rainha já lhe esperava no final do píer particular
de madeira.
Expedia estava agachada com uma corda na mão, puxando a popa do barco a vela para
mais perto do píer. Esticou-se, colocando as mãos atrás do quadril e colocou-se nas pontas dos
pés, antes de jogar seu tronco levemente para trás. Ao ouvir o rangido da madeira, virou-se para
o barulho, envolvendo os dedos rapidamente no cabo de sua espada. Entretanto, ao reconhecer o
rosto de Umbra, relaxou.
— Sou eu, calma, sou inofensiva, prometo. — A mutana levantou as mãos para o ar e
parou momentaneamente.
— Inofensiva, aham… — Expedia sorriu abertamente ao se aproximar de Umbra e sem
ao menos hesitar, juntou suas mãos nas bochechas de pele quase prateada e a beijou nos lábios.
— Estava me perguntando se viria.
— Desculpe por me atrasar, esse castelo é imenso. — Umbra disse ao inclinar a cabeça
levemente para o lado. — Me perdi. — Riu baixinho, antes de retribuir o beijo gentil. — Estava
ansiosa para vir. O céu está lindo hoje.
— Acho que as Deusas me ouviram. — Expedia piscou com um olho para sua
convidada, antes de pegar a mão dela e levá-la para perto do barco à vela. — O que acha de um
passeio?
— Eu não sei nadar… — Umbra recuou um passo em uma voz hesitante, olhou para o
castelo imponente e desejou voltar para dentro das paredes de pedra, fortes e inquebráveis.
Dentro daqueles blocos cinzentos pintados de amarelo, ela poderia estar segura. Seus pés
tocariam a firmeza dos pisos, sem ter a chance de cair sobre a imensidão da água, mesmo
achando o mar lindo e por vezes incitada por si mesmo a cair no mar, Umbra sempre vacilava,
porém, seus olhos voltaram a quentura de Expedia quando sentiu o aperto leve em sua mão. —
Desculpe, minha rainha, eu realmente-
— Nós não vamos nadar. — Expedia pisou dentro do barco e colocou-se de frente para
Umbra. Seu corpo sequer oscilou pela marola que lambia o casco do barco. — Além disso, eu
estou devendo alguns favores ao meu irmão para pegar essa belezinha aqui. Ele me emprestou o
barco, quero dizer, eu o obriguei a me emprestar e agora, ele vai usar esse favor para sempre. —
A rainha estendeu a mão para a mutana. — Eu não vou deixar você cair, mas se você quiser, a
gente pode voltar.
Estranhamente, Umbra confiou na rainha, as palavras eram manipuladoras, claro que
eram, Expedia era uma monarca, deveria ter todos os seus súditos sob os seus olhos, mas havia
algo a mais, não era apenas a rainha que estava ali e sim Expedia, uma mulher querendo seduzir,
flertar e conhecer ainda mais a mutana. Por fim, Umbra pegou a mão de Expedia e entrou no
barco, ao senti-lo mexer, seus olhos arregalaram e suas pernas tremeram, flexionou-as em
reflexo. Rapidamente, levou as mãos nos ombros da rainha e se apoiou, tentando se fixar da
melhor maneira possível.
— Calma — pediu Expedia, ao envolver os dedos nos cotovelos de Umbra. — Deixe
que o movimento da água te leve.
A mutana respirou fundo ao sentir a movimentação sutil da água sob o barco. Apertou
os ombros de Expedia e pouco a pouco esticou os joelhos, até ficar totalmente ereta.
As mãos de Expedia continuaram em seus cotovelos e ela só soltou Umbra quando um
aceno da cabeça foi dado por ela.
— Viu, não é tão ruim assim.
E a maldita piscadela chegou.
— Verdade — concordou Umbra. — Seu irmão tem bom gosto, o barco é bonito —
disse, ao olhar a estrutura do barco.
Por curiosidade, caminhou com certa dificuldade até o mastro e tocou a madeira
pintada de branco.
— Presente do meu pai. Ele gostava de mimar o filho mais novo, acho que às vezes
desejava que Lucíferos nascesse primeiro para comandar o reino. — Expedia dividiu em
amargura, algo íntimo, que certamente fez com que memórias passassem pela sua cabeça.
— Eu sei que o meu atrevimento pode ser exacerbado, mas pelo pouco que vi o seu
irmão, o reino dos Solares não duraria mais que duas fases da Lua Maior. — Umbra falou, ao
olhar para o lado e observar a iluminação do porto perto dos rochedos, sabia que havia pessoas
ali, sua audição era afiada o suficiente para reconhecer sons de um lugar que parecia não dormir.
O circo era assim, A Boca do Lobo nunca descansava, sempre com os caninos prontos para
abocanhar as cidades que surgiam em sua frente. — Se você veio para ser a rainha, há um
propósito para tal. — Umbra se virou para Expedia, ainda parada no lugar.
— Você realmente acredita nisso? — A incerteza em sua voz era clara, a rainha havia
se desarmado por alguns instantes.
— Que você nasceu para ser rainha?
— É, quero dizer, em coincidências, que as coisas devem acontecer por uma razão?
Umbra considerou a pergunta feita pela rainha, antes de dar um passo em direção a
Expedia. Tentou equilibrar-se em suas pernas, já que o mar cismava em balançar, deixando-a um
pouco insatisfeita com sua falta de capacidade de equilíbrio.
— Antes… não sei, todas essas marcas, todas as dores que passei, foram dolorosas
demais, não apenas por fora, mas principalmente por dentro. Me faz sentir completamente
descartável e talvez eu seja, eu não tenho nada e nem ninguém. Sozinha. Me pergunto por que o
destino ou as coincidências sempre me levaram a tanto sofrimento? Toda vez que eu olhar para
os meus braços, minhas costas, meu pescoço, as cicatrizes estarão lá, lembrando-me do quanto
eu sofri, mesmo não sabendo como eu as consegui. — Tudo o que Umbra estava contando era
verdade, exceto a última parte, jamais poderia de fato confidenciar o que passou nas noites de
terror no circo. Seus olhos perderam-se por alguns instantes no mar, seu olhar certeiro mirou
leves ondas circulares apontando que a vida marítima estava pulsante sob as águas salinas. —
Mas a mesma coincidência ou destino me trouxe esperança e me fez ter uma pequena mínima
vida. — Seus olhos voltaram para Expedia e seu esforço para o equilíbrio retomou, quando a
onda rebateu na proa do barco, mas pela sua teimosia tomou mais um passo para frente. — Não
estou morta, eu estou aqui e acho que isso é um bom sinal.
Expedia ouvia com grande atenção a fala de Umbra e escutar tudo aquilo foi doloroso
até para ela mesma. Tentava compreender como alguém poderia machucar e flagelar uma beleza
como a de sua convidada. Como não perceberam a raridade de Umbra? Ela parecia a própria lua
encarnada em uma pessoa. Sua pele, seus olhos calmos, seu cabelo, até mesmo a melancolia.
Tudo.
— Obrigada, Umbra. Principalmente, pela franqueza que poucos conseguem praticar
comigo. — A rainha disse, antes de sorrir. Ficaram-se a olhar uma para a outra por alguns
segundos, antes de Expedia mexer a cabeça rapidamente espantando ou tentando espantar o peso
daquela conversa. Sabia que ela ainda não havia acabado, mas ao menos por agora, ela precisava
agir e abaixou-se para retirar a corda grossa do píer. Ela fungou rapidamente e seus olhos
arderam pelas lágrimas que pediam para serem soltas, mas não choraria, precisava ser forte para
Umbra, Expedia não tinha razões de reclamações, diferentemente da sua convidada. Levantou-se
e começou o processo para abrir as velas. — Melhor começarmos nossa aventura, antes que eu
chore aqui. Além disso, meu irmão pode vir correndo e mudar de ideia.
Umbra riu baixinho, a graciosidade quase vulnerável de sua rainha.
Definitivamente, ela começava a acreditar no destino.

∞∞∞
Expedia não foi muito distante do píer, manteve um afastamento seguro do alto mar, e
de qualquer perturbação que pudesse vir de terra firme. Para sua sorte, o mar estava manso como
um gatinho recém-nascido. A água negra espelhava a lua prata em pequenas e suaves ondas, que
quase não bamboleavam o barco. Ao recolher as velas, olhou para a proa e observou Umbra
sentada sobre a sua capa de pelos, e ao lado de sua convidada, a espada Solar descansava ao
canto, perto do casco. Ambos os objetos foram dados por Expedia, quando ainda estavam
navegando para o ponto escolhido já com antecedência. Ela se aproximou e se sentou ao lado de
Umbra. Esticou as pernas para frente e os braços um pouco para trás. Ao respirar fundo, sentiu o
cheiro do mar e fechou os olhos por alguns segundos, antes de abri-los e voltá-los para a lua.
— Eu queria ter preparado uma cesta de comida, bebidas, mas a reunião do conselho
me tomou a tarde inteira. — Fora quase um pedido de desculpas embutido feito pela rainha.
— Não tem problema, a vista já vale. Estrelares é linda. Mesmo ainda não saindo do
castelo, pude perceber o quão próspero ele é. Todo reino é magnífico, parabéns, Expedia.
— Está longe do que eu gostaria. — Expedia criticou seus próprios feitos com uma
certa vergonha embutida nelas. — Ainda há pobreza, ainda há pessoas passando fome ou
morrendo. Há meninas e meninos que não estão estudando. Felizmente ou infelizmente, muitos
Solares não seguem a carreira acadêmica como eu gostaria, mas pouco a pouco estou mudando
isso. É difícil mudar o comportamento de uma sociedade, meu pai gostava muito de guerras sem
sentido, assim como seus antecessores, e um efeito manada de guerreiros foi fabricado, moldado
e muitos ainda querem isso. Houve muita morte sem necessidade, tanto da parte dos Solares,
quanto dos Luares, não que eu me importe muito com eles, mas isso contribuiu com uma série de
infortúnios para o meu reino. Acho que às vezes dou graças às Deusas por ele ter morrido. — Era
uma admissão que ninguém sabia, Umbra era a primeira pessoa a ter conhecimento dessas
palavras. Uma desconhecida acabara de ouvir um de seus segredos mais intensos e por alguma
razão, confiou. Foi um certo alívio falar aquilo. — Acredito que se ele não tivesse morrido,
seríamos escravos dos Luares. Eles ainda trabalham com escravos, isso é um tanto selvagem, não
acha?
— Não sei, minha rainha. — Umbra respondeu sinceramente, antes de juntar as pernas,
colocando-as embaixo das coxas. — Crueldade e selvageria são pontos de vista. Eles têm
escravidão, o que certamente não me parece correto, mas a questão é o que vocês têm para que
os Luares te achem selvagens?
— Cacete… — Expedia soltou uma risada frouxa e se jogou para trás, deitando-se no
chão, e apoiando a cabeça nos braços. — Eu queria pessoas como você no meu conselho. Sua
sinceridade realmente é fantástica, eu deveria estar irada, outros já tentaram dar pitaco no meu
reino e não sobreviveram a isso, mas com você, estranhamente, levo em consideração.
— Talvez eu seja uma perspectiva diferente. Um frescor dentro do costume do
conselho dos Solares. Não estou dizendo que estou certa ou errada, apenas falo de uma posição
neutra.
— Olha… Eu realmente… Tsk… Você é um frescor.
Umbra se juntou a Expedia, colocando-se de lado, sustentando sua mão com a cabeça.
Levou a outra para a barriga da rainha e por baixo do fino tecido de sua blusa, sentiu a
musculatura tensa. Era tão forte e macia. A mutana continuou a acariciar o abdômen e Expedia
prendeu a respiração por alguns segundos. Até que os dedos de Umbra passeassem nos vales dos
seios da rainha.
— Eu só queria entender como isso tudo aconteceu tão rápido. — Umbra soltou em
uma confissão e foi assim que beijou Expedia, em um beijo manso, como o mar que estava as
regalando na noite de brisa leve e fácil de verão.
Expedia correspondeu no mesmo instante aos lábios de Umbra. Trazendo o corpo
quase prateado para cima do seu. Mesmo que inúmeras perguntas passassem em sua cabeça, o
beijo leviano, com perversidade sensual e calmo, deixou sua mente completamente flutuante, não
apenas pela boca, mas a língua gostosa que invadiu sua boca sem qualquer resistência.
Entretanto, o sol brilhou dentro dela, assim como o fervor que nascia em seus poros e sexo. Logo
sua vulva pedia por atenção e a rainha necessitou por mais. Usando sua força, virou Umbra
contra o chão e montou nos quadris, ao colocar os pulsos de sua convidada para cima, na
tentativa de prendê-la.
O beijo tornou-se mais urgente, até que Expedia se desfez dos lábios de Umbra e
desceu com eles para finalmente experimentar a pele quase prateada do longo pescoço. Usou sua
língua para beijá-lo e lambê-lo, enquanto ouvia os suspiros de sua convidada embaixo de si. Os
quadris não paravam, à procura de fricção e de um alívio imediato. O jeito que o ventre roçava
sobre o sexo já úmido e coberto de Expedia a fazia gemer como uma recém-moça que perde sua
pureza. Porém, focou-se em Umbra e seus lábios desceram mais, até chegar no limiar da pele dos
seios e da blusa justa azul-marinho da mutana. Com a impaciência que continha em si, Expedia
apenas abaixou o tecido e sem qualquer cerimônia abocanhou com vontade o mamilo cinza-
escuro, chupou-o forte e o lambeu. E, mais uma vez, Umbra gemeu para a lua, que assistia de
testemunha à rainha do Sol, arrancando gemidos de um ser sem identidade.
Ao se sentar por alguns segundos, Expedia olhou para baixo e pôde ver os olhos de
Umbra brilhantes perante a vastidão da noite. Quando estava prestes a sorrir, surpreendeu-se com
a velocidade de sua convidada, arrancando sua camisa e assim, arrebentando os botões que a
compunham. Seus seios voluptuosos foram vistos pelos olhos atentos de Umbra, a mesma se
sentou, abraçou as costas da rainha, e foi a sua vez de experimentar a pele quente do sol.
Diferente de Expedia, a mutana degustou o pequeno mamilo rosado em sua boca, seus
lábios roçando o pequeno botão protuberante, o mordiscou de leve, apenas para sentir a rainha
ondular em cima dela, junto ao calor proferido por ambas.
Logo as roupas foram descartadas e espalhadas pela popa do barco. Ambas nuas, onde
Expedia ainda pairava sobre Umbra, os corpos, oliva e quase prateado esfregavam-se em uma
dança sensual, ao mesmo tempo que os lábios trocavam salivas e engoliam gemidos. Foi assim,
quando as vulvas e os pelos pubianos rasparam-se um contra o outro e os clitóris beijaram-se
intimamente. Levou alguns segundos para que os sexos se encaixassem perfeitamente e ambas
ondulavam para excitar ainda mais o som melódico da viscosidade do prazer das duas. A
umidade foi trocada, assim como o calor dos sexos e os pelos cada vez mais molhados. Expedia
era quem marcava a intensidade da fricção de ambas, e Umbra a seguia, enquanto levava uma
das mãos para baixo, na tentativa de abrir ainda mais o seu sexo e intensificar o contato sensível,
mas que arrancava gemidos manhosos de ambas as bocas.
O ventre de Expedia contraía-se involuntariamente, pois sua vulva conseguia roçar
contra os pelos pubianos e a maciez do sexo de Umbra. Ela estava chegando ao seu limite, não
demoraria para o seu ápice chegar, e realmente, não levou muito tempo, pois seus olhos miraram
fixamente os de Umbra, quando o corpo embaixo do seu tremeu-se completamente, chegando ao
orgasmo. A rainha sentiu a viscosidade aumentar contra sua vulva e aquilo foi o suficiente para
que ela mesma arrebentasse seu limiar do prazer e arqueasse as costas, finalmente encontrando o
seu clímax perante a lua.
Expedia respirou fundo, enquanto tentava acalmar o seu corpo que tensionava, assim,
que a onda se acalmou, simplesmente desabou sobre o corpo úmido e quase prateado de sua
convidada.
Sorriu cansada e relaxada contra o pescoço nu de Umbra, quando sentiu os braços
delgados envolvê-la em um abraço caloroso e protetor.
Ela deveria concordar com a sua convidada, as coisas estavam acontecendo rápido
demais, porém, a esse ponto, não mais se importava, apenas queria aproveitar essa nova
circunstância criada para ambas. A mulher sem identidade se tornava um ser que Expedia queria
ter, manter e cuidar… retirar todas aquelas cicatrizes formadas pela vida não tão justa, criar
memórias de confiança e, quem sabe, até mesmo um pouco do novo sentimento de felicidade que
ainda não estava sendo experimentado totalmente por Umbra.
Capítulo Nove
As faces dos Solares

As ondas estavam mais revoltas do que o comum, lambiam e manchavam a areia


rosada com tons mais escuros. Perto do porto, as aves vermelhas de bicos que pareciam pés de
pato e com uma grande papada inferior sobrevoavam ao abraço do céu nublado, seguindo
atentamente um barco pesqueiro que se aproximava do píer, na tentativa de atracar sobre as
ondas que perturbavam o trabalho dos Solares.
Sentada na poltrona, Umbra observava com grande interesse através da janela aberta de
seu quarto. Seus olhos brancos tinham a capacidade de enxergar com mais detalhes qualquer
coisa que estivesse mais distante, eram como lupas instaladas em seus orbes e que se ajustavam
automaticamente quando tinha a necessidade de visualizar seu campo de importância. Como de
praxe, não conhecia ninguém que dividisse essas habilidades, os Luares, em geral, grassavam-se
com poderes telepáticos e mentais. Eram ótimos manipuladores e com grande inteligência, o total
da maioria das imensas invenções vieram das mãos de Luares, já que suas vidas eram gastas em
conhecimento e na vida acadêmica, bastante adversa dos Solares. Lá, faltava força militar e força
corporal, algo que os Solares tinham de sobra.
Desde que chegou ao castelo, Umbra não conseguiu pisar para fora da grande estrutura,
uma parte porque ainda estava fraca, mas a outra porque o medo pesava ao seu redor, já que o
temor de ser reconhecida era palpável. Tinha a curiosidade de conhecer Estrelares melhor, da sua
janela reconhecia a beleza e a vivacidade que o lugar continha e, mesmo estando algumas vezes
com A Boca do Lobo na cidade, nunca sequer conhecera as ruas mercantis ou as casinhas de
tijolo e madeira com varais que cruzavam as ruas. Ela já tinha ouvido falar de tudo aquilo, mas
queria conhecer.
A mutana estava gostando de sua estadia no reino dos Solares, os trabalhadores lhe
tratavam bem e tinha a oportunidade de ficar debruçada sobre o manequim de sua sala de
costura. Suas horas de trabalho eram gastas dentro do local colorido por tecidos e papéis
rabiscados com roupas que futuramente vestiriam a rainha, um momento de criatividade que
Umbra começava a gostar de explorar. Claro que vez ou outra aborrecia-se quando a agulha
espetava seus dedos indicadores, ainda não havia se acostumado a usar o maldito dedal.
Seus olhos abaixaram e com as mãos repousadas nas coxas, virou-as e fitou um
pequeno pontinho avermelhado no seu dedo indicador esquerdo. Um sorriso desenhou-se em
seus lábios, antes de apertar a ponta do dedo contra o opositor. Sentiu um leve incômodo, mas
nada comparado aos anos de solidão e lesões acumuladas.
Seu corpo já não apresentava tantos ferimentos desde que chegou ao castelo, a não ser,
claro, pelas cicatrizes, elas ficariam para sempre, relembrando-a que sua pele cinza já não era
doce como deveria ser. Mas essas mesmas marcas deixaram Expedia extremamente curiosa, os
toques de suas mãos passeando e traçando-as com seus dedos habilidosos, que caminhavam
lentamente até chegar em suas dobras molhadas e aveludadas, faziam Umbra tremer por
completo, pois assim como ela, a rainha também continha marcas em sua pele bronzeada, graças
aos esforços de guerras e batalhas que coordenava para sua força continuar invicta. A sua
musculatura das costas, braços e barriga desenhavam-se como a de uma perfeita guerreira
retratada em escrituras antigas, em toda sua glória e majestade. E assim como a curiosidade de
Expedia desflorou pelas cicatrizes de Umbra, a mutana tivera grande ardor de tocar a
musculatura definida da barriga da rainha com seus lábios e bocas, antes de abocanhar o sexo
igualmente aveludado sob os olhos da lua gigante que brilhava no céu.
Um arrepio agradável percorreu por todo o seu corpo e Umbra juntou as mãos,
esfregando uma contra a outra. Levantou-se com calma e a luz cálida do dia nublado iluminou
sua camisola branca, deixando seu corpo um pouco mais visível. Andando até o armário,
selecionou uma saia longa azul escura e uma blusa roxa clara de botões que se fechavam até o
pescoço. Jogou-as na cama e fechou o armário com o calcanhar.
Ela estava decidida, iria sair pela cidade, explorar um pouco, queria achar um broche
perfeito para a vestimenta que estava confeccionando para Expedia. Sem contar que estava um
pouco frustrada de ficar o tempo inteiro dentro das paredes do castelo, ainda que se sentisse
segura ali dentro, queria conhecer mais.
Umbra não era uma propriedade, ao menos não mais, não precisava dizer aonde iria,
tinha a permissão total de adentrar as ruas e ruelas de pedras em paralelepípedo. Sua vontade
maior era que Expedia fosse junto consigo, assim a rainha poderia levá-la nos melhores e mais
afortunados lugares que o reino poderia oferecer. Entretanto, Expedia estava sumida por dois
dias, desde a noite incrível que haviam dividido no barco de Lucíferos. Mas o silêncio da rainha
não durou todo esse tempo, pois, logo no seguinte, recebeu uma carta lacrada com o símbolo real
de cera vermelha. Ao romper a imagem quebradiça do sol colando o envelope amarelado, Umbra
retirou um papel dobrado e, quando o abriu, se surpreendeu com a linda letra desenhada de
Expedia.
A costureira sorriu, sentindo seu corpo esquentar e seus olhos brancos passarem
rapidamente pelo conteúdo.
Já em adiantamento, Expedia pediu desculpas, pois iria se ausentar pelos próximos dois
dias junto ao seu irmão para resolver problemas que assolavam o reino, obviamente, não
entrando em detalhes políticos ou ditando as barreiras que estavam acontecendo para o reino
Solares continuar próspero. Reafirmou que estaria junto a Umbra, pois tinha o desejo de levá-la
para o festival anual do sol, e a mutana ficou animada com tal convite. Esperava poder responder
pessoalmente o convite, mas caso isso não acontecesse, estaria pronta para a sua rainha.
Dois dias depois, a carta descansava em sua mesa de cabeceira, junto a um jarro de
barro contendo água e um copo de vidro. Evidentemente, Umbra leu a carta por mais algumas
vezes durante esses dias, já que a mutana não havia encontrado Expedia, mas aquilo não
extinguiu sua excitação de ter um dia inteiro com ela.
Ao se arrumar, pegou um pequeno saquinho de moedas de ouro e enfiou na abertura de
seu vestido para deixá-lo bem preso. A rainha havia feito um pagamento adiantado para que
Umbra pudesse sair pelas ruas de seu reino e comprar aquilo que achasse necessário para pôr em
seu quarto, ou adquirir objetos pessoais. Entregou-lhe um bocado de moedas a mais para adquirir
itens para abrilhantar ainda mais as roupas e, mesmo parecendo irredutível, a rainha fez questão.
Deu-lhe também um pequeno broche com o desenho do sol e um pedaço de tecido vermelho
pendurado, para mostrar que Umbra trabalhava próximo de Expedia, o que significava que
ninguém sequer pensaria em mexer com ela, pois a morte poderia estar à espreita.

∞∞∞
Umbra estava nervosa ao atravessar a grossa ponte com arcos de madeira, onde flores
rosas, amarelas e vermelhas preenchiam as hastes envergadas, envolvendo-as como um abraço
mortal de cobras. Ao atravessar a ponte por completo o terreno se abria para uma praça com um
imenso chafariz branco e dourado, permeado por árvores de folhas vermelhas, que se sacudiam
gentilmente pelo frescor da maresia. A água cristalina continha peixes de variados tamanhos, e
uma rasteira faixa de corais com as mais diferentes cores que desenhavam o chão do chafariz. Ao
centro dele, a incrível Deusa Solar olhava para o castelo de braços abertos e suas vestes voavam
em ouro causado pelo sopro dos céus.
Cercando as árvores, uma calçada de pedra lisa circulava toda essa linda e maravilhosa
estrutura, que Umbra fitava com grande comoção aquela grandiosidade. A rua movimentada
delimitando a calçada desmembrava-se em várias outras ruas como correntes sanguíneas pela
cidade, onde casas feitas de madeira e pedra espalharam-se. Elas não eram altas, mas algumas
agrupavam-se uma na outra, ou em cima da outra. Era um lugar populoso, mas organizado e
belo.
Tomada pela coragem, Umbra tomou uma rua aleatória e ficou deslumbrada com as
cores, os cheiros, as casas e o comércio vivo, com placas penduradas em suas paredes com as
mais diferentes ilustrações e nomes, na intenção óbvia de chamar a atenção do consumidor.
Pessoas gritavam, passavam por ela, falavam alto, zanzando com objetos embaixo do
braço ou os carregando, seja com as mãos ou com sacolas de couro envolvendo seus ombros.
Todas elas vestiam a mesma paleta de cores que continha no castelo, eram predominantemente
laranjas, vermelho e amarelo. As vestimentas poderiam ser mais simples do que as de Expedia e
Lucíferos, mas isso não tirava a beleza dos vestidos, das calças e blusas que homens e mulheres
usavam. Um comichão impregnou o coração de Umbra, enquanto absorvia a vida da rua com
quitandas e prateleiras a céu aberto, com bolos e doces coloridos, que mesmo alimentada, a
mutana tivera vontade de roubar todos. Principalmente, o doce de pera verde de Temperas, a
região desértica que conseguiu crescer e prover uma fauna exótica.
Tinha muitas pessoas, mais do que um dia Umbra já vira em sua vida, mas aquilo a
animou ainda mais, pois além de ser um lugar vivo, os moradores ali não pareciam muito se
importar com um alguém de pele acinzentada e olhos brancos. Mesmo usando uma saia longa, e
blusas de manga, resolveu vestir uma túnica que pudesse proteger o seu rosto, mas ainda assim,
Umbra era diferente das pessoas daquele lugar.
Ao construir ainda mais sua confiança, caminhou com passos mais decididos pela rua e
passou a se introduzir ainda mais naquela cidade pulsante. As casas tinham também diferentes
cores e escadas que conectavam do primeiro para o segundo andar de alguns imóveis. Tudo era
absurdamente organizado, mesmo com a confusão da cidade viva.
Enfiando-se em mais ruas e subindo uma escada que unia outra rua, Umbra encontrou
um charmoso estabelecimento com uma placa de madeira pendurada, logo acima da porta. A
placa tinha três ilustrações de tecidos que estavam entalhados na superfície, causando um efeito
protuberante, as cores pintadas de tinta haviam sido absorvidas pela madeira, deixando-as mais
enfraquecidas. Abaixo da ilustração, o nome do estabelecimento também estava entalhado e com
a letra cursiva lia-se: Tecisolis.
Pela curiosidade crescente, a mutana empurrou a porta de madeira vermelho rubro com
duas janelas verticais que se esticavam até a metade. Ao se encontrar no estabelecimento, Umbra
ficou completamente extasiada com as cores e o próprio lugar em sua volta.
As paredes eram preenchidas por prateleiras com tecidos das mais diferentes
tonalidades de cores que um dia Umbra poderia imaginar existir. Entre uma prateleira e outra que
ocupavam as duas paredes de sua esquerda e direita, se encontravam duas pilastras de madeira,
onde flores vermelhas circulavam a estrutura grossa até o teto pontiagudo. Em sua frente, um
balcão em formato de semiarco continha uma balança de medida, rolos de papéis enfiados em
um compartimento longo e cilíndrico, junto a objetos para costura. Acima do balcão havia um
mezanino com parapeito sinuoso, havia mais prateleiras com outros objetos e tecidos, e lá estava
uma pessoa. Uma mulher negra que tinha um cabelo curto igual ao da mutana, entretanto, com
fios crespos castanhos acobreados. Seus olhos pretos, nariz largo e lábios cheios de cor rosada
compunham a linda figura da mulher. Ela vestia uma calça bufante de tecido leve que acabava no
meio de sua canela e uma camiseta, fazendo com que seus braços magros aparecessem. Em seu
pulso esquerdo, havia uma pulseira de couro com uma almofada branca pequena cheia de
alfinetes com cabeças coloridas e no direito, inúmeras miçangas enfeitavam seu pulso, causando
sons de chiado toda vez que ela se mexia.
A mulher, que parecia ser mais jovem que Umbra, acenou em sua direção, antes de
desaparecer para o fundo do mezanino, surgindo segundos depois, no pé da escada caracol de
metal, que se escondia atrás de uma prateleira no final da loja.
— Visita! — Ela falou animada. Aproximou-se rapidamente e Umbra se deu conta de
como a jovem mulher era baixa. — Não, freguesa! — corrigiu-se. — Ahh, você é do castelo! —
Abaixou os olhos para encarar o broche que orgulhosamente estava pendurado sobre o seio
esquerdo da mutana e sorriu. — Eu sou Liriana, ao seu dispor! — Reverenciou-se para Umbra.
A mutana recuou um passo e arregalou os olhos, ao negar com as mãos, na intenção de
fazer Liriana parar.
— Não precisa fazer isso, por favor. — Umbra pediu baixo, ao olhar para os lados,
mesmo estando apenas as duas no recinto, queria ter a mais absoluta certeza de que ninguém a
veria, ainda estava insegura de se expor totalmente. Retirou o capuz da túnica de sua cabeça e
observou quando os olhos da jovem arregalaram. — Eu sei que-
— Não é de costume mulheres do reino terem cabelo curto, mas está lindo, e ainda por
cima são brancos. Seus olhos… — Liriana colocou a mão no queixo e bateu o pé direito contra o
assoalho da loja, antes de olhar para cima. — Você não é daqui, é? É da cidade de Vinamar? Os
Solares de lá são mais estranhos, não pegam muito sol. Mas você saberia disso se fosse de lá, né?
— Ela deu de ombros e sorriu novamente para Umbra. — Não conheço muitas pessoas de lá,
mas são todas legais. — Apressou-se a dizer, e Umbra percebeu a timidez da jovem negra. —
Desculpa, eu falo demais. — Liriana suspirou em cansaço.
— Não, não tem problema, eu gosto. — Umbra também se adiantou a proferir, antes
que a alegria da jovem pudesse se extinguir. Era bom poder falar com outra pessoa de fora do
castelo, a grande maioria das empregadas trocava apenas palavras caso de extrema necessidade, a
única que parecia ter algum tipo de paciência com ela era Nimala. — Eu sou Umbra, prazer. —
A mutana estendeu a mão e logo foi cumprimentada por Liriana. — Eu realmente não sou daqui
e muito menos de Vinamar, ainda que tenha ido lá uma vez. Eles realmente não pegam muito sol,
viver nos pés e paredes de grandes montanhas dá nisso. O sol não ilumina muito a região. Mas
desde que me mudei para Estrelares só tenho coisa boa para dizer, exceto que é tão barulhenta
quanto de onde eu vim, mas não estou reclamando.
— Aqui é um bom lugar para se morar, mas concordo com você, essa cidade aqui
nunca sossega, nem na madrugada. Ainda mais com o festival chegando, as pessoas parecem
ganhar euforia já que a noite não fica tão presente no céu. Mas me diz, o que você precisa?
Umbra andou até a parede da esquerda e dedilhou os tecidos de diferentes texturas e
cores. Seus olhos brilharam com as maravilhas apresentadas a ela. Aproximou seu nariz do
tecido dourado e inalou o cheiro, fechando os olhos momentaneamente, e as luzes do circo
invadiram sua mente, junto às vestes extravagantes que foram tantas vezes remendadas pelas
mãos quase prateadas. Relembrou do descontentamento quando sua mãe detestou a capa preta
com detalhes dourados que passou semanas para confeccionar. Ela tentava se desculpar por
quebrar a garrafa de vinho preferido Luriel, mas nada adiantou, pois, a mutana havia levado uma
verdadeira surra. Confeccionar algo não foi o suficiente, e foi ali que Umbra aprendeu que nada
NUNCA seria suficiente para sua mãe.
— Você está bem? — Liriana soou preocupada atrás dela, tocando o seu ombro.
Rapidamente, Umbra se encolheu ao sentir o contato inesperado.
— Sim, desculpe… apenas memórias longe de serem boas. — A mutana voltou com a
cabeça para a atendente da loja, antes de colocar um sorriso triste nos lábios. — Na realidade, eu
não sei o que estou procurando, eu vim no intuito de comprar uma joia, mas por fim encontrei
esse lugar, ele é tão-
— Velho? — Liriana a cortou, ao se distanciar, dando alguns passos para a esquerda.
Riu sem graça e alisou um dos tecidos com a mão, esforçando-se em procurar alguma dobra
amassada que era absolutamente inexistente.
— Lindo, aconchegante! — A animação sacudiu as memórias para fora do ser de
Umbra. Seus olhos atentos passaram por uma segunda vez na loja, até que ela apontou para um
tecido na outra extremidade da loja. Com uma nova excitação acumulada em seu corpo, andou
com certa pressa até o tecido roxo escuro. — Ele é lindo!
— Sim, é verdade, mas não é muito usado por nós, aparentemente, a gente só gosta de
cores quentes. O que francamente… é meio… não sei, igual, e bem clichê.
Ao ouvir a fala de Liriana, Umbra riu e balançou a cabeça em afirmação.
— Acho que ela ficaria linda com essa cor. — A mutana pensou em voz alta, ao puxar
o lábio inferior um pouco para frente. Suas memórias foram puxadas novamente, mas desta vez
por lembranças felizes e prazerosas. Deusas, a musculatura daquela barriga. — Eu vou levar! —
deu um soquinho na palma de sua mão e acenou com orgulho de achar tão rapidamente o que
não precisava.
— Certo! Quantos metros você deseja? — Liriana perguntou ao se direcionar para a
bancada, enfiou-se atrás dela e puxou da gaveta uma grande tesoura de ferro com o cabo preto
desbotado.
— Três metros.
— Você pode pegar as pontas para mim? — Pediu a dona da loja.
— Claro.
Liriana retirou uma fita medidora cinza de uma bolsinha escondida atrás da calça
bufante, fixada em seu quadril por dois botões, e a estendeu rente ao tecido.
— Dá uns passinhos para trás — ordenou Liriana e Umbra assim o fez. — Isso,
perfeito! — E a mutana parou.
A dona da loja puxou o tecido para si, criando mais tensão entre as fibras, levou a
tesoura um pouco acima da fita, abriu as lâminas e em um movimento rápido, rasgou o tecido
sem ao menos fechar a tesoura, as lâminas extremamente afiadas fizeram o trabalho com bastante
facilidade.
Umbra puxou o tecido e com a ajuda de Liriana o dobraram em duas partes. A dona da
loja seguiu para o balcão, deixando a tesoura sobre a superfície de madeira e enrolou a fita
métrica cinza.
— O que mais você gostaria de levar? — Liriana perguntou, enquanto, delicadamente,
retirava o tecido da mão de Umbra e, com cuidado, dobrava-o, buscando não abandonar nenhum
amassado. A cada dobra que fazia, passava seus antebraços sobre o tecido, deixando-o mais
uniforme e organizado. — Temos outros tecidos lindos e umas agulhas de crochê maravilhosas,
você faz crochê?
— Eu acho que é só isso. — Umbra olhou em volta, estava tentada em levar mais
coisas, mas seu foco era o broche e não os tecidos e instrumentos de costura, Expedia já havia
lhe provido tudo isso.
— Ah, sim, tudo bem, então… — Liriana parecia levemente desapontada. — Eu
espero que você faça algo lindo. Algo me diz que você tem talento.
— Depois de furar muitas vezes os dedos, acho que peguei a prática da coisa. —
Umbra devolveu com um sorriso sem graça, ao observar Liriana depositar o tecido sobre um
papel grosso amarelado e dobrá-lo para proteger o novo item comprado.
— Sei bem como é…
O silêncio se instalou por alguns segundos e apenas o som do barbante passando pelo
embrulho foi ouvido. Quando Liriana terminou o laço, passou as lâminas da tesoura no barbante,
rompendo a linha do rolo principal, e escorregou o tecido, agora protegido, para Umbra.
Entretanto, antes que a mutana pudesse recolher sua nova mercadoria, Liriana abriu a boca com o
tom aflito na voz.
— Olha, eu não estou dando em cima de você, ou nada do tipo, e sei que isso é bem
repentino, mas ultimamente a loja não tem dado muito movimento… Você não quer ficar pra
tomar um chá, sei lá, de repente… você é nova por aqui e eu sem amig--
— Adoraria! — Umbra respondeu com entusiasmo. — A gente pode tomar um chá.
Também tenho certeza de que se eu ficar mais, você vai acabar me convencendo a levar mais
coisas.
Um sorriso imenso se instalou no sorriso de Liriana.
— Perfeito!
Umbra sentiu um prazeroso formigar em seu peito, não era sexual, mas uma felicidade
de que talvez pudesse começar a arranjar uma amiga dentro daquele reino. Alguém que não a
tratasse diferente pelo que ela era. Liriana poderia ser um começo de laços, algo novo e sincero
para a sua nova vida. A jovem faladeira iria poder construir uma amizade sucinta com ela e isso
era extremamente animador.
Ela não tinha ideia de como cultivar uma amizade ou fazer uma. Victorie era o seu
único amigo, mas foram criados juntos, então com ele tudo foi quase involuntário, as coisas
foram se construindo sem que ela pedisse ou trabalhasse para que isso acontecesse. Agora, com
Liriana, ela iria ter que fazer isso e mesmo soando trabalhoso, almejava por tal feito.
Capítulo Dez
A linha entre a maldade e a benevolência

Umbra estava notoriamente feliz.


O sorriso estampado em seu rosto iluminava sua figura de pele cinza. Seus olhos
brilhavam levemente ouvindo Liriana contar suas aventuras um pouco excêntricas pelo reino de
Solares. Alegava ter herdado o vício de jogos de sua mãe, principalmente Regins Solar. Um jogo
de apostas, onde quatro dados de oito lados eram colocados dentro de um copo de couro, quando
virado contra a mesa, o jogador que tivesse o maior número acumulado ganhava a partida. O
jogo era feito com vinte rodadas, cada jogador recebia vinte peças redondas com a estampa da
Deusa da Lua e da Deusa do Sol, e a cada vez que um dos jogadores perdia, a peça pegava fogo
automaticamente. O vencedor era o jogador que mais tinha peças acumuladas e, com isso,
ganhavam as moedas de ouro apostadas. Cada peça poderia custar entre 2 a 10 moedas de ouro,
isso era o recomendado, mas raramente eram seguidas. Um jogo de pura sorte e, francamente,
algo que Umbra jamais faria.
Mesmo depois de duas xícaras de chá servidas em cerâmicas manchadas pelo tempo
por líquidos quentes e escuros, Umbra teve o desejo de continuar a aprender um pouco do mundo
através dos olhos de Liriana. Sem ao menos perceber, a mutana passou duas horas de seu tempo
no segundo andar da loja, mais ouvindo do que falando, mas sinceramente, não se importou,
gostou de ouvir, distraindo-se longe dos muros do castelo. Reconhecendo uma leveza dócil,
Umbra não precisava ficar com os seus ombros tensos como no circo, já que a todo momento
parecia que algo ou alguém pudesse fazer algo contra ela, com Liriana, apoiava suas costas no
encosto da cadeira estofada de cor azul, relaxada o suficiente para cruzar as pernas em cima dela.
Nesse meio tempo, apenas quatro compradores entraram no charmoso espaço, e Umbra se deu
conta de que a loja não era um lugar muito movimentado, sabia que isso poderia ser ruim para os
negócios de sua nova conhecida. A cidade era latente, as pessoas deveriam estar passando por
ali, carregando tecidos, alfinetes, as malditas agulhas de crochês, que certamente levaria e, droga,
ela precisaria levar lãs. Pensou por alguns segundos como poderia ajudar Liriana, mas
certamente não seria hoje, pois ainda teria que achar o broche que estava procurando e voltar
para as paredes faustosas do castelo.
Umbra não sabia muito bem como lidar com as despedidas e já estava na hora de ir,
então simplesmente colocou-se de pé, recolhendo os pacotes dos objetos recém adquiridos.
— Eu deveria ir, Liriana. Obrigada pelos chás e torradinhas. — A mutana levou sua
mão ao abdômen, e dois tapinhas foram dados. — Mas eu tenho bastante trabalho para fazer,
bem, na realidade não muito, mas é o meu primeiro trabalho, então realmente não quero
decepcionar a rainha.
— Claro! Sempre é bom causar uma boa impressão.
Ambas usaram a escada, Liriana na frente, descendo com uma velocidade
extraordinária, já que os degraus eram bastante finos e íngremes. Umbra levava os dois pés no
degrau a cada vez que descia para o próximo, seus joelhos reclamaram um pouco, mas apoiava a
mão no corrimão para se equilibrar melhor, com a outra, lutava para que as embalagens não
caíssem escada abaixo. Não que houvesse algo que quebraria dentro delas, mas também não
queria causar um fuzuê desnecessário.
— Vê se aparece, eu posso te levar para uns lugares legais na cidade. — Liriana voltou
a dizer, enquanto se colocava no pé da escada à espera de Umbra.
— Eu adoraria! Aqui é imenso, acho que nunca estive em um lugar tão grande assim.
— Eu entendo. Acredito que você tenha algum dia de descanso, venha, eu fecho a loja
mais cedo.
— Combinado!
— Você vai estar no festival de verão?
— Sim. — Respondeu Umbra com certa excitação de estar em um evento que
aparentemente faria a cidade pulsar ainda mais do que o normal.
— Ótimo! É incrível, vem pessoas de todos os lugares, além das tendas de especiarias.
Uma ótima oportunidade de comprar itens vindos dos Luares e além do continente — informava
sua nova conhecida, enquanto abriu a porta da frente de sua loja, e assim que foram presenteadas
com o começo da tarde de Solares, reconheceram uma pequena aglomeração mais ao final da
rua.
— Nós nos vemos lá, então — comunicou a mutana, ao direcionar o olhar para a
confusão.
— Suma daqui, sua suja! — Um homem gigante passou entre as pessoas que
formavam um meio círculo na frente de uma padaria. O homem em si, estava com um avental
amarelo com manchas rubras e uma faixa de couro adornando sua testa. Em sua mão coberta por
luvas vermelhas, segurava uma pequena criança pelo braço e na outra, um cutelo sujo de sangue.
Ela tentava se livrar da garra do homem alto e barrigudo, e mesmo que fizesse um esforço
tremendo, nada parecia adiantar. Entretanto, o adulto que a arrastava para a rua de paralelepípedo
a jogou no chão. — Criança Luares nojenta!
A menina caiu de joelhos no cimento com pedra e areia. Pelo impacto, com toda
certeza, havia esfolado seus joelhos e palmas.
Umbra nunca tivera um senso de justiça apurado, aliás, a grande maioria das coisas que
passava sob o seu olhar, ela ignorava. Era a melhor maneira de sobreviver, ao menos no mundo
dela. Mas, ao ver a menina de cabelos castanhos escuros com o rosto sujo, adiantou-se e correu
em direção à criança, deixando as embalagens escaparem pelo seu braço. Os itens recém
adquiridos foram esquecidos na poeira entre as pedras e o cimento. Enquanto se aproximava,
percebeu a magreza que cercava a jovem e a pele branca, devido à falta do sol, abraçava
mortalmente os ossos de seu rosto. Porém, foi a lua cheia vermelha entre suas sobrancelhas que
chamou a atenção da mutana.
As memórias de seus encontros com Nimala vieram à tona, Luares escondiam suas
luas, apenas eles podiam enxergar a marca, já que o medo de receber retaliação dos Solares
poderia ser um tanto palpável, e sinceramente, Umbra não duvidava disso, ela tinha a prova em
sua frente. Perguntou-se por que a garota não havia escondido a maldita de sua lua?
Umbra empurrou algumas pessoas para o lado, atravessando o pequeno motim que
usava palavras sórdidas contra a garota. Sua nova amiga Liriana veio logo atrás, enquanto
mandava alguns calarem a boca. Não eram todos que xingavam, alguns apenas olhavam em uma
passividade extrema à crueldade acontecendo perante seus olhos. A mutana chegou à conclusão
de que se aquela jovem menina morresse ali, ninguém faria nada para defendê-la. Apenas a
guarda protetiva real retiraria o seu corpo e, provavelmente, nem ao mesmo um enterro digno
aquele pequeno ser teria. Umbra não pôde deixar de sentir empatia, pois já havia se encontrado
algumas vezes de joelhos ralados contra o chão, enquanto sua mãe lhe surrava com palavras
imundas que eram direcionadas para si.
Colocou-se agachada no chão e reuniu a menina trêmula em seus braços. A criança
tentou se debater contra o seu colo, mas assim que Umbra roçou seus dedos na nuca da menina,
seus olhos se encontraram e ela simplesmente parou. A garota se agarrou na blusa que Umbra
usava e escondeu o rostinho magricela em seu pescoço.
Ela havia reconhecido o que talvez Umbra pudesse representar ou, talvez, apenas
precisava ser salva, agarrando-se assim, na primeira oportunidade dada.
— Largue ela, ou vai se contaminar com a sujeira dos Luares. — O homem de luvas
falou, enquanto guardava o cutelo na bainha de couro fixado em seu cinto. — A vadiazinha
estava tentando roubar um pedaço de carne. — Retirou as luvas vermelhas e jogou dentro do
bolso do avental.
— Não a chame assim! — Umbra se levantou e levou a menina em seus braços. O
rosnado de sua fera ameaçou sair, mas ela o engoliu, já estava fazendo algo bem idiota ali, não
precisaria adicionar outra para a lista que ganhava proporções cada vez maiores. — Olha o
estado que a menina está!
— Radofel, custava dar o pedaço de carne para a garota? — Liriana falou baixo,
colocando-se atrás de Umbra.
— Custava, Liriana. Moedas de ouro — devolveu o açougueiro. — Não é à toa que
sua loja está prestes a fechar as portas, além de ter produtos fajutos, sai em defesa de uma
Luares! As pessoas deveriam ter vergonha de entrar na sua loja.
— Ela é apenas uma criança, cacete! — A compostura de Liriana acabou. Colocou-se
lado a lado de Umbra, com o cenho franzido e o queixo levemente baixo, sinal da cólera que se
aproximava de seu corpo.
— Mas logo se tornará uma adulta e matará um de nós ou você se esqueceu o que
fizeram com a sua mãe? — Radofel falava em tom acusatório, enquanto dava um passo em
direção a ambas e logo dois homens fizeram o mesmo.
— Oras, seu desgraçado, não fale-
Mas sua fala foi interrompida, por uma jovem mulher que tomou a frente de todos,
colocando-se em destaque dentro do semicírculo. Ela ergueu uma pedra azulada na mão e a
lançou em direção a criança, mas os reflexos de Umbra foram mais rápidos. Defendeu a menina
chorosa em seu colo, cercando-a com os seus braços ainda mais fortes contra o seu corpo, o que
acabou causando um ferimento na testa da mutana, pois o objeto maciço foi de encontro a sua
pele.
Umbra sentiu o líquido viscoso descendo por sua testa e junto com a cor vermelha de
seu sangue, a raiva alimentou-se do ferimento. Sua visão tornou-se sensível, podia relatar cada
mínimo movimento que acontecia em sua volta e o cheiro do medo que a jovem mulher exalava.
Compreendia tudo à sua volta, desde o bater das asas da borboleta, a teia de aranha formada no
canto da placa do açougueiro, até a lasca da unha que um homem tirava da boca.
Os sons ampliaram-se, podendo ouvir cada mínimo detalhe, cada respirar e cada batida
de coração. O pobre bater da menina estava fraco, adoecido pela fome e pela maldade humana
que o mundo poderia proporcionar a ela, assim como o seu cheiro de dias sem um bom banho. O
sangue do cutelo de Radofel pairou em suas narinas e sua barriga reclamou, bem, não era ela, e
sim a besta que desejava desfrutar da violência.
— Você está louca!? Atacar a costureira da rainha! Ela trabalha junto a rainha Expedia,
é a costureira pessoal dela! — Liriana gritou em desespero, ao empurrar a mulher pelos ombros.
Nesse instante, todos pararam, e suspiros surpresos junto aos murmurinhos foram
ouvidos.
— Eu não… — A mulher tentou até falar, mas seus olhos de cor castanha arregalaram
quando, ao prestar mais atenção na figura estranha de Umbra e notar o broche real.
Era nítido que as pessoas que vestiam aquele pequeno objeto eram importantes, porque
o medo se tornou palpável na fisionomia e no cheiro da jovem mulher.
— Faça alguma coisa útil e mande alguém do castelo vir ajudar. Diga que Umbra está
ferida. — Liriana exigiu para a causadora do ferimento, enquanto colocava as mãos no ombro de
Umbra.
Mais uma vez, a fera tremulou, seu corpo tensionou, contudo, reconheceu o cheiro de
Liriana, Umbra relaxou levemente, afrouxando seus braços em volta do pequeno corpo que não
mais chorava, mas ainda se escondia da maldade dos Solares.
— Mas ela… alguém pode querer me machucar.
— Pensasse isso antes de ferir alguém ligada diretamente à rainha! Agora vá, antes que
tudo piore. — Liriana falou novamente, usando ainda sua cólera sobre a injustiça que ali estava
sendo feita.
A jovem mulher saiu correndo, batendo seus saltos de maneira desajeitada na calçada
da estreita rua.
— O que ela faz aqui? Ela não deveria… Merda, mas a criança é uma Luares. —
Radofel parecia falar consigo mesmo. Ele retirou o chapéu que usava e o apertou com as mãos.
— Olha, me desculp-
— Eu não quero ouvir mais nada! — O rugido feroz de Umbra saiu pela sua garganta
carregando a fome de uma fera. — Cale-se! — No mesmo instante, todos hesitaram, dando um
passo para trás. Inclusive o próprio açougueiro, que parecia ter diminuído dentro de sua
insignificância. Umbra poderia matá-lo, mas fazer isso significaria também a sua morte, ela
estava em desvantagem. — Liriana, você se importa se voltarmos à loja. Assim que ela estiver
melhor, a levarei comigo.
— Claro! — A mulher respondeu rapidamente, ao sacudir a cabeça em positivo. —
Vamos! Eu tenho uma maleta de primeiros socorros, acho que podemos dar conta do ralado
dela.
E sem ao menos esperar por qualquer outra resposta de Radofel, Umbra e Liriana
viraram e todos saíram de sua frente. Assim, as três mulheres saíram da confusão.
Ao chegarem à loja, Umbra tomou a liderança e subiu as escadas, que anteriormente
subiu com grande dificuldade, e agora fazia com uma facilidade extrema. Algo que não passou
despercebido por Liriana.
Umbra colocou a criança em uma pilha de tecidos velhos no canto à esquerda do
parapeito de madeira.
A menina tentava se ajeitar da melhor maneira possível. Por fim, colocou as duas
pernas para cima e com a ponta do dedo tentou retirar uma pequena e ínfima pedrinha que estava
entre o sangue e o ralado em sua pele. Quando o toque foi realizado, ela choramingou e Umbra
gentilmente pegou seu punho.
— Pode infeccionar. — A mutana avisou com um sorriso doce. Ajoelhou-se na frente
da menina, e virou a pequena mãozinha para ver os ferimentos na palma. — Você tem um
nome?
— Constela… — A menina fungou, ao olhar para a mulher de pele cinza em sua frente.
— Você é uma- — Rapidamente se calou ao fitar através dos ombros de sua salvadora a segunda
mulher de pele negra abrindo um armário de madeira robusto do outro lado do mezanino. — Eu
não sei esconder como você. — Ela sussurrou ao apontar para a própria testa, onde
orgulhosamente a lua marcava a pele. — Qual é o seu poder? Não consigo sentir você em minha
mente. Sua lua é diferente.
Uma informação nova que Umbra nunca havia ouvido antes, algo extremamente útil e
talvez perigoso. Com toda a certeza poderiam ter barreiras para que essas ligações não
funcionassem, porque mesmo sendo uma Luares, ao menos era o que falavam para ela, nunca
havia conseguido chegar à mente de ninguém, ou ao contrário, apenas, claro, a serva de Expedia.
Uma mulher que certamente representava muito poder.
Liriana ajoelhou-se ao lado de sua nova amiga e entre elas, depositou uma pequena
caixa de madeira. Ao abrir, Liriana retirou de lá duas gavetas que se desdobravam por hastes de
ferro, formando dois andares de mantimentos. Ali havia faixas, unguentos, líquidos coloridos em
pequenos vidrinhos com conta-gotas, entre outros suprimentos importantes que cairiam muito
bem.
— Umbra, você precisa se cuidar também. Sua testa… tem bastante sangue. — Liriana
avisou com certa preocupação.
Desta vez foi a mutana que levou as pontas dos dedos para a viscosidade que seu
ferimento tinha. Sua raiva estava em níveis tão altos que a dor causada pelo objeto maciço foi
esquecida. Mas a ardência chegou quando os dedos encontraram uma leve abertura em sua pele
cinza. Ela puxou o ar entre os dentes e arfou um pouco.
— Mas a menina-
— Eu posso cuidar dela, tente se cuidar primeiro. A rainha não vai gostar nada de te
ver assim. E pelas Deusas, quando ela souber que eu estou envolvida nisso. — Os dedos de
Liriana mexiam rapidamente nos suprimentos dentro da caixa, ao encontrar o que necessitava,
depositava ao lado da criança, ou os dava para Umbra cuidar dos seus próprios ferimentos.
— Calma, eu vou falar com ela. — Umbra sorriu, querendo passar o máximo de
confiança que podia. Ela mesma não tinha certeza de absolutamente nada. Seus momentos com
Expedia ainda eram poucos, e por algumas vezes, fugaz. A própria mutana não sabia o que sentia
pela rainha, e não tinha ideia do que Expedia sentia por ela. A única coisa que tinha certeza, era
que o olhar de Expedia a fazia se sentir segura, abraçada… Era fácil estar perto da rainha. — Ela
vai entender.
Umbra se levantou e vacilou por um instante. Sua cabeça latejava um pouco, e a dor
começava a se tornar um pouco mais presente.
Ela se sentou na mesa com alguns utensílios dados por Liriana. Puxou um pequeno
espelho arranhado pelos anos de uso e começou a tratar seu ferimento. Já estava acostumada em
fazer isso, desde muito cedo teve que se adaptar com as lesões sofridas no circo e, sozinha,
aprendeu como se cuidar.
O silêncio havia tomado conta do ambiente, mas Umbra percebia o olhar curioso de
Constela, por hora, ignorou-o, precisava primeiro desinfetar bem o seu ferimento.
Pelo seu conhecimento, acreditava fielmente que não haveria uma nova cicatriz
adicionada em seu corpo, o que para ela era muito bom, ainda não conseguia amar as marcas que
seu corpo acumulou durante os anos e ter mais uma adicionada em sua pele com certeza não iria
lhe ajudar.
— Eu sei que posso te causar problemas. Desculpa. — A menina pediu, antes de
encolher os ombros e seus olhos amendoados começaram a encher de lágrimas. — Eu não sou
bem-vinda na cidade.
— Criança, você pode ser Solares, Luares, não me interessa. Mesmo eu não gostando
muito do seu povo, nenhuma criança deveria ser tratada assim. — Liriana encaixou as gavetas
dentro da caixa de madeira e a fechou. — Eu vou pegar alguma coisa para você comer, você
deve estar faminta.
— Obri-gada. — Constela ofereceu um sorriso encabulado.
Certamente, assim como Umbra, a criança não estava habituada a receber carinho.
Assim que Liriana se levantou do chão, gemeu com um pouco de dor, pois manteve
seus joelhos dobrados contra o chão duro por um tempo, a porta se abriu em um estardalhaço.
— UMBRA! — A voz de Expedia soou com firmeza.
A mutana se levantou da cadeira, sentiu uma leve tontura, mas logo foi ao parapeito
para observar a rainha olhando em volta com uma ansiedade notória. Atrás dela, guardas
fechavam a porta do estabelecimento para afugentar os olhos curiosos que anteriormente
julgavam a menina.
— Minha rainha… — Umbra sussurrou, e rapidamente os olhos de Expedia se
levantaram para encontrá-la.
Expedia liberou o ar pela boca e olhou para frente, percebendo a escada ao canto da
loja. Umbra a olhou correndo com a capa vermelha esvoaçante em direção a escada, e se virou
contra o parapeito para receber a rainha.
Quando Expedia chegou ao topo dos degraus íngremes, com a mão no punho da
espada, parou momentaneamente, para de fato reconhecer Umbra. Foi então, que após sorver a
beleza ferida da mutana que Expedia se apressou até ela e a tomou em seus lábios.
— Quem fez isso? Eu vou matar quem te tocou! — A voz rouca e exigente saiu contra
a boca de Umbra. Os olhos quentes estudaram o rosto da mutana com a preocupação que se
desenhava em seu olhar. — Eu não posso dar as costas para você que se enfia em problemas.
— Eu sinto-
— Pelas Deusas, Umbra. Não se torne um trabalho para mim. — A frustração da rainha
foi transmitida em sua voz, e novamente, as bocas se encontraram. Entretanto, ao menear a
cabeça, Expedia encontrou o pequeno ser sobre os tecidos velhos e em uma rápida
movimentação, a rainha retirou a espada de sua bainha e mirou a ponta da lâmina em direção da
menina.
Umbra arregalou os olhos, e colocou-se entre a Constela e Expedia.
— Calma… eu posso explicar.
Poderia ela explicar? Como faria para quebrar as barreiras Solares de Expedia? Já que
seu ódio representado e manifestado esteja à sua frente? Constela, assim como ela, era tudo o que
a rainha mais odiava e convencê-la a derrubar esse ódio seria complicado… difícil, talvez algo
quase impossível.
Pelas Deusas Irmãs, no que Umbra havia se metido?
Capítulo Onze
A odiadora de Luares

A rainha solar deveria estar enfurnada em mais uma de suas reuniões, ouvindo a
ladainha ególatra de monarcas interessados em subterfúgios próprios. Era agonizante falar com
algumas daquelas pessoas, mas ela estava ali, sentada na mesa redonda. As poderosas mãos
ligadas em frente ao estômago estavam cobertas por manoplas negras e maleáveis, que deixavam
seus dedos totalmente descobertos, elas tinham pedras amarelas ao centro das costas do
metacarpo. Com punhos fechados, uma ponta protuberante de metal era formada, um golpe bem-
dado poderia romper a pele do inimigo. Seus dedos brincavam com a fivela grossa do cinto,
enquanto os fios de seu cabelo escapavam de sua trança e invadiam a sua visão. Seus olhos
passeavam entre dois indivíduos que discutiam sobre a possibilidade da presença de Luares no
festival de verão que ocorreria em breve.
Marianne, a conselheira careca, de pele negra, usava um esplendoroso vestido amarelo,
carregava consigo uma calma invejável, que Expedia jamais alcançaria. Explicava com exatidão
e poder em suas palavras que a aproximação com os Luares poderia trazer frutos positivos,
inclusive a liberação da lagoa que lambia as terras de ambas as nações e que com o
bloqueamento e o envenenamento ocorridos, logo as colheitas da cidade que fazia fronteira com
os Luares sofreria consequências graves. De fato, a conselheira tinha o seu ponto, mas o povo
dos Luares não era tão amado pelo povo dos Solares, principalmente pela cidade Estrelares, na
qual o castelo principal se localizava. Ainda que a capital fosse composta por pessoas
progressistas, o ódio aos Luares era herdado por todo o reino, a impressão era que todos tinham
as veias contaminadas por esse sentimento.
Por outro lado, um homem de cabelos ruivos e de bigode discutia contra a ideia
ensandecida de Marianne e diferente da conselheira, o homem berrava pelos pulmões.
Sinceramente, Expedia estava quase tentada a aceitar a proposta da conselheira apenas para vê-lo
ainda mais irritado.
Marianne era uma pacifista, que tentava trazer um senso de justiça para o reino,
demonstrando diante de todos que o poder dos Solares caía sobre todos os corpos, sejam eles
Solares ou Luares. Sua investigação sobre o circo ainda estava em decorrência. No início da
reunião, quando a grande sala ainda estava vazia, Marianne se aproximou da cadeira onde estava
a rainha, que se encontrava perdida pelas infinitas burocracias de um reino escrito sobre papéis
manchados. Ela lhe entregou um pequeno pergaminho e enquanto Expedia o abria, viu a linda
letra cursiva escrita pelas penas das lindas aves Wensol, que tinham penugem prata, perfeita para
uma caligrafia fina como a de sua conselheira. Escutou solenemente a explicação de Marianne e
achou um pouco fantasiosos os relatos das testemunhas que foram ouvidas. Um ser que se
transformou em uma terrível fera atacou todos. Bem, ela poderia acreditar que, de fato, os
circenses perderam o controle da fera. Era óbvio que algum tipo de ilusão era feito pelos Luares,
onde assim, o homem ou a mulher embaixo da máscara deu lugar para a criatura. Chegou a se
questionar se Umbra estava no meio daquela apresentação e, enquanto os outros ainda não
haviam chegado, perguntou para a bela conselheira em sua frente se alguma daquelas pessoas
esbarrou o olhar sobre uma mulher de pele cinza, mas infelizmente, Marianne respondeu que
ninguém que entrevistou comentou qualquer coisa sobre o assunto.
Estava prestes a interromper a discussão entre os conselheiros, quando a porta do salão
se abriu e um guarda real, portando uma lança de pedra dourada e vestindo uma armadura leve
de cor amarela, se aproximou. A conversa entre os dois monarcas continuou ignorando
completamente o homem que marchava na direção da rainha.
Quando chegou ao seu lado, o guarda se virou de frente para a rainha, bateu duas vezes
levemente a base da arma longa contra o piso e colocou-se em prontidão, com um braço
estendido rente à lateral do corpo.
Expedia olhou para o guarda que encarava algum ponto invisível na parede mais
próxima e suspirou. Fez um movimento com os dedos para que o homem se aproximasse e assim
que finalizou a ação, o guarda se inclinou perto do seu rosto.
O leve cochichar tomou a atenção de alguns conselheiros, mas outros ainda estavam
entretidos demais no debate que ocorria em volta da mesa redonda.
Ao ouvir a mensagem anunciada pelo guarda, Expedia se levantou em supetão
arrastando a cadeira contra o piso, arranhando-o em um som estridente. Finalmente, a discussão
havia se cessado. Chocou as duas mãos contra a mesa maciça e reverberou com a sua voz
dominante de rainha.
— Os Luares não virão esse ano. Não quero violência em nosso festival principal, sim,
os comerciantes ainda serão bem-vindos e aqueles que têm passaporte, mas não quero surpresas
desagradáveis. Sua ideia não é de mal por um todo, Marianne, mas há uma tensão crescente e se
qualquer coisa acontecer durante o festival poderá ser o rompimento de algo muito mais grave.
Não quero arriscar.
— Eu compreendo, majestade.
A rainha não esperou por mais justificativas ou por mais intermédios, estava com
pressa. Suas botas bateram com ritmo contra o piso polido e sua capa vermelha, presa por asas
douradas fixadas abraçando os seus ombros, a acompanhava com a rapidez de quem tinha o
verdadeiro poder. Sua convidada parecia precisar de ajuda, só esperava que não muita, de
qualquer forma, tinha que agradecer, afinal, Umbra havia lhe arrancado do tedioso afazer de um
monarca.

∞∞∞
Expedia apertou o cabo de sua espada, que parecia pesar mais do que normalmente
pesaria, achou que fosse o simples fato de estar apontando para alguém que começava a criar
uma certa, ou talvez mínima, afeição. Seus pés procuravam estabilidade sobre o rangido da velha
madeira do mezanino e sua mão desocupada estava levemente estendida para que a outra mulher
não se aproximasse. Não iria matar uma Solares em plena luz do dia e com uma plateia inteira
esbaforida tentando encontrar o pior dentro da loja abafada e empoeirada.
— Eu já disse, Umbra, saia da minha frente. A criança não pode frequentar lugares
como este. — Expedia informou ao se aproximar e a madeira cantar irritantemente abaixo dela.
— Olha a algazarra que ela está promovendo.
Era por isso que permitir Luares dentro de seu festival seria loucura. O ódio era um
sentimento bastante palpável entre os dois reinos, Expedia não sabia ao certo por onde havia
começado isso, ela entendia aonde o seu ódio pessoal tinha iniciado: a morte de seus pais.
— O que você quer dizer com isso? — Umbra pediu a explicação e deu um passo para
trás, alcançando a mão da menina que tremia sobre o seu toque.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer...
O mantra cantado de terror foi escutado por Umbra dentro de sua cabeça. Ela olhou de
soslaio em direção à criança, mas não viu o seu rosto, já que o pequeno corpo estava levemente
atrás do seu.
— Existem locais dentro das cidades de Solares que Luares não são tão bem-vindos,
justamente para evitarmos esse tipo de situação. — Expedia apontou com a cabeça para a porta
do pequeno estabelecimento. A rainha respirou fundo e se aproximou em mais um passo. — Eu
sinto muito pela pequena criatura, mas para manter o equilíbrio ela terá-
— Não, não! — Umbra interrompeu a rainha de forma abrupta, fazendo Expedia
levantar uma sobrancelha em desgosto pela perfuração óbvia da sua superioridade. — Ela não
sabia das regras, certo?! Ela acabou de chegar, é apenas uma criança.
Umbra fabricou uma história inteira em sua cabeça, mas realmente estava tentando
salvar a vida da menina.
— Minha rainha… — A voz da criança, trépida e recheada de medo fizeram todas as
três mulheres olharem para ela. Liriana a olhou com pena, quase como se quisesse correr até a
Constela e protegê-la, mas jamais faria isso. Amava sua vida, mais do que se preocupar com a
menina que poderia rapidamente conhecer a morte. Poderia ser um ato covarde, mas gostava de
estar viva. — Eu… Meus pais foram mortos por Solares e o moço que matou o meu pai me
capturou para virar… — Um soluço foi preso em sua garganta, mas seus olhos encheram de
lágrimas. Engoliu com grande dificuldade a bola de choro que tentava arrebentá-la em fracasso,
mas ao sentir o aperto de segurança da mão de sua salvadora de pele quase prateada, conseguiu
se acalmar. — Eu fugi, mas eu não sabia para onde ir.
— Capturou? Em que sentido? — Expedia exigiu a explicação, ao fitar pela primeira
vez os olhos fundos da menina.
— Meu pai devia dinheiro para esse fazendeiro e ele não tinha como devolver, então…
me deu como garantia, mas eu consegui fugir do fazendeiro. — A menina olhou para baixo,
tentando esconder suas lágrimas de tristeza. Suas mãozinhas agarraram os dedos de Umbra e sua
testa encostou no braço de pele quase prateada.
A mutana olhou Expedia com súplica, ao sentir o desespero e a desesperança na voz da
menina. Ela conhecia muito bem essa emoção, era sórdida e perigosa.
Com a falta de palavras vindo de Expedia, Umbra envolveu os ombros de Constela e a
cabeça da menina descansou na lateral de seu corpo.
— Você fez bem. — Umbra acariciou o rosto machucado.
— Fiz? — A menina procurou por um guia.
— Escravização é proibido em meu reino. — A fala de Expedia saiu perdida, como
se não pudesse conceber o que Constela havia falado. Abaixou um pouco a lâmina de sua espada
e seu cenho franziu em confusão.
A primeira coisa que fez quando assumiu o seu posto foi se certificar de que nenhum
tipo de pessoa passasse por isso. Expedia detestava os Luares, mas o cerceamento da liberdade
era assustador. Era inadmissível que isso acontecesse em seu reino, ela precisaria tomar
providências.
— Mas isso acontece bastante… — A criança Luares respondeu sob uma respiração
fraca e juntou mais o seu corpo pequeno contra a mulher ao seu lado. — Ele é um homem que
gosta de capturar… crianças.
— Como você chegou até aqui? — Novamente, a exigência e autoridade da rainha
foram exercidas e sua espada abaixou ainda mais. A ponta da lâmina descansava na pilha de
tecidos velhos, ao lado da coxa de Umbra.
— De carroça. Eu entrei na carga da carroça, ela estava cheia de produtos de gaiolas
para pássaros e consegui ficar lá por bastante tempo, até que o dono dela me viu e me expulsou.
Andei por muito tempo até chegar aqui.
— E de onde você veio, originalmente, quero dizer?
— Lurilana.
— Hm… a cidade que faz fronteira com o reino dos Solares.
Constela assentiu com a cabeça, relaxando um pouco mais o seu pequeno corpo. Suas
mãos já não apertavam dolorosamente os dedos de Umbra, seu rosto, ainda que molhado por
lágrimas, continha uma coragem súbita, já que seus olhos amendoados infantis e maltratados
encaravam Expedia de volta.
Menina corajosa. Passou por muita coisa e está aqui.
— Para uma Luares, és dura na queda, garota. — O elogio dado por Expedia
surpreendeu a todos, inclusive a própria.
Mesmo com a lâmina apontada para a maciez do tecido e Expedia ouvindo a história da
menina com certo interesse, Umbra estava sentindo suas costas suarem, pois qualquer
movimento brusco ou palavras ditas erroneamente, a Expedia que começava a conhecer iria dar
lugar a rainha Solar e isso não seria bom de se ver, aparentemente, estavam conseguindo chegar
em algum lugar com todo esse diálogo tenso, mas sincero, da criança Luares.
Liriana estava morrendo de vontade de ir à casa de banho, sua bexiga frouxa perante os
assuntos que lhe causavam nervosismo era um prato cheio para que seu corpo começasse a se
contorcer com desejo de usufruir da sala de banho.
Expedia estava com raiva, não apenas da criança Luares correndo por suas ruas, mas
saber que um alguém estava se aproveitando do lado cego da lei para fazer crianças de escravas,
isso a enfurecia mais do que qualquer balbúrdia que Luares poderiam fazer em seu reino. Por
fim, guardou sua espada na bainha e um suspiro em uníssono fora ouvido por todas. Cruzou os
braços, aproximou-se um pouco mais de Umbra, repousou sua mão sobre o parapeito do
mezanino e olhou para o primeiro andar, onde viu os curiosos se espichando para ver qualquer
mínimo detalhe do interior da loja. Conseguia ouvir as conversas abafadas vindo do outro lado
da porta, ainda que não pudesse distinguir o que estava sendo dito. Virou-se de costas para a
porta e suspirou, aquelas pessoas iriam buscar por respostas e explicações.
Muitos poderiam acreditar na história da criança, outros nem tanto. Expedia resolveu
dar um voto de confiança, a menina não tinha uma razão explícita para mentir.
— Você tem alguém? — Expedia indagou cortante.
— Não…meus pais, eles eram minha única-
A rainha levantou a mão para que a criança se calasse.
— A velha Nimala pode usar uma companhia. Você irá estudar, ter comida em seu
prato e uma cama, quando tiver idade o suficiente começará a ser treinada para trabalhar no
castelo e receberá bem por isso, ou quando fizer a maior idade, poderá seguir a sua vida
retornando para os Luares. A não ser que você queira voltar agora.
A menina sacudiu a cabeça em negativo com veemência. Ali, ela poderia ter uma
chance, mesmo dentro do território dos seus inimigos, contudo, dentro do castelo poderia estar
protegida. Constela sentiu um fiapo de esperança e se animou, mesmo com a vida futura sendo
incerta, era melhor que nada. Talvez até mesmo melhor da vida que tinha com seus pais, já que
miseráveis não tinham chances nem em Luares ou nos Solares.
— Nimala é uma boa Luares. — Umbra comentou, ao oferecer um sorriso mínimo à
menina, queria tranquilizá-la mais.
— Obrigada, minha rainha. — A menina murmurou ao se colocar ao lado de Umbra,
revelando-se completamente para a rainha. Inclinou-se para frente e abaixou a cabeça em uma
saudação respeitosa. — Meu nome é Constela.
— Umbra, ela também será sua responsabilidade, se a pequena Luares colocar o fio de
cabelo para fora da linha. Vocês duas irão pagar. — Expedia comunicou, ao levantar um pouco o
queixo, ignorando completamente a fala da menina.
— Ela não vai, prometo! — Umbra garantiu firmeza, antes de relaxar um pouco. —
Desculpe por isso… desculpe pela confusão. Eu apenas-
— Eu sei. Ao que tudo indica, ela afetou você, talvez semelhanças na história. —
Expedia levou os nós dos dedos para a bochecha de Umbra e acariciou gentilmente. O carinho
não levou mais do que poucos segundos, antes da rainha voltar a cruzar os braços e andar para o
centro do mezanino. — Agora me diga, o que faz por aqui?
— Eu queria comprar um broche para você. Algo que combinasse com a vestimenta
que estou fazendo.
— Aqui não parece vender esse tipo de coisa. — O olhar de Expedia pousou na jovem
negra em sua frente, antes de levantar uma de suas sobrancelhas e voltar o seu particular
interesse entediante para a loja. — Humpf…
— Mas os tecidos daqui são uma maravilha! — Umbra expressou sua opinião positiva,
mesmo não tendo ideia se os suprimentos daquela loja eram de fato de excelência ao gosto de
Expedia. Mas, ela queria ajudar sua nova amiga, havia gostado do jeito da mercadeira e desejou
construir laços com Liriana. Umbra não tinha facilidade de fazer isso, nem um pouco, porém,
queria tentar.
— Os melhores da cidade. — Liriana finalmente acumulou coragem suficiente para
dirigir a palavra para a sua rainha. — Garanto!
— Garante? — Expedia a desafiou, ao puxar as sobrancelhas para cima e os cantos dos
lábios para baixo.
— Com toda a certeza.
Expedia riu.
— Acredito no gosto da minha costureira e gostei da asserção firme — verberou a
rainha.
— Minha rainha? — Umbra chamou por Expedia e no mesmo instante os olhos
quentes a encontraram. — Como iremos nos livrar… digo, despistar os curiosos lá fora. — A
mutana virou o seu corpo para a porta.
Expedia caminhou até ela.
— Pela porta da frente, essas pessoas viram a criança entrando aqui. Não há como
esgueirá-la para qualquer outro lugar.
— Eles não irão indagar insatisfeitos?
— Sim, eles irão, mas aqui estou eu fazendo aquilo que você deseja. — Expedia se pôs
ao lado de Umbra e seus braços roçaram levemente. Mesmo sobre os tecidos que cobriam suas
peles, ambas sentiram o calor que uma transportava para a outra. — Depois darei algo que eles
queiram, estou começando a observar que suas prioridades estão se tornando importantes para
mim. — A rainha suspirou frustrada com sua própria fraquejada perante a presença de Umbra.
Mas, ao fitar os olhos brancos e enigmáticos, a chama habitual do prazer acendeu-se em seu
ventre.
— Agradeço por estar fazendo isso por mim e dando uma oportunidade para a menina.
— Eu nunca fiz isso, Umbra, não faça com que eu me arrependa.
— Não irei, minha rainha e, francamente, acho que a velha Nimala vai ficar feliz em
ter com que se ocupar.
Para a surpresa de Umbra, Expedia soltou uma gargalhada, jogando a cabeça para trás e
segurando o parapeito com as mãos.
— Aquela desgraçada vai adorar e irá tratar bem a menina. Ensinar coisas de Luares.
— A rainha deu de ombros, antes de se virar e apoiar o quadril no parapeito. — E quanto a você?
— Mexeu na bainha da espada e direcionou o seu olhar para Liriana, que nesse momento tentava
ficar o mais longe possível de Expedia. Colocou-se atrás da mesa onde ofereceu o chá para
Umbra, na tentativa de ganhar uma falsa barreira de defesa. — Se Umbra precisar de qualquer
tecido, providencie, você irá se tornar a fornecedora oficial dela. Mas lembre-se, se chegar perto
dela ou trazer problemas-
— Não! — A jovem negra arregalou os olhos, e negou rapidamente com a cabeça. —
Quero dizer, sim! Eu agradeço por me tornar a fornecedora oficial, e não, não tenho interesse
nenhum por Umbra. Apenas amizade! — As últimas palavras foram ditas quase como um berro
de desabafo e a sua mão foi parar no peito, como se quisesse segurar o coração no lugar, para
evitar que a qualquer momento ele pulasse para fora de si.
A rainha soltou um sorrisinho de lado, na mais perfeita vitória, deleitando-se com o seu
poder.
— Ótimo e quem sabe da próxima vez me junto ao chá. — Comentou Expedia em
aprazimento, ao olhar para a mesa pequena no mezanino que ainda continha a louça de porcelana
velha.
— Com as melhores ervas de Temperas.
— Hm, bom gosto… aprecio sua vontade de manter Umbra em segurança, seus
esforços serão reconhecidos. — Expedia avisou, ao ajustar o cinto da bainha de sua espada. —
Agora vamos encarar a multidão.

∞∞∞
Umbra não cansava de se surpreender com o poder que Expedia tinha sobre o seu
reino, sua personalidade agridoce parecia encantar os seus súditos, Liriana era prova disso. O
primeiro encontro com a sua rainha havia lhe aterrorizado, mas agora, sorria encantada perante a
sua presença. Seja pelo auto convite do chá, que provavelmente nunca iria acontecer, ou por ser
oficialmente a pessoa a disponibilizar material para costura da monarca.
Umbra e Expedia estavam na frente da porta, junto com a criança Luares que se
mantinha perto delas. A rainha pousava sua mão sobre o ombro da Constela, enquanto os
soldados se arrumavam ao redor dos três célebres seres. As lanças em punhos, rente ao corpo,
com as bases tocando no chão de madeira, e os olhares atentos para qualquer um que tentasse
penetrar essa barreira praticamente imortal.
Ao saírem da loja, a mutana recolocou o capuz de sua túnica sobre a cabeça, seus olhos
penderam para baixo e um passo para o lado foi dado, com o intuito de se colocar ainda mais
perto da rainha. Eram muitas as pessoas que estavam reunidas ali, mais do que anteriormente,
algumas pediam explicações sobre o futuro da criança Luares, outras solicitando atenção da
rainha Solar, a fim de expressar suas amarguras e vontades, mas também de elogiá-la e bajulá-la,
principalmente mulheres. As pessoas sabiam que a rainha se deitava apenas com o sexo
feminino.
Expedia tomou um passo à frente, passando por Constela. O cerco de guardas as
protegia em ambos os lados, exceto a vanguarda. A rainha poderia se cuidar se alguém avançasse
sobre ela, bom destino não teria e era praticamente impossível tal prática ocorrer. Solares não
eram animais.
A imponência de Expedia, enquanto segurava o cabo da espada dentro da bainha com
uma mão e com a outra gesticulava para o seu povo de um modo tranquilo, mostrava
perfeitamente como a rainha mandava em seu reino. Ela poderia ser bondosa e amistosa, mas
sempre os lembrando de quem detinha o poder, seja pela capa que usava ou vestindo as
manoplas negras com as pedras mais raras existentes no reino dos Solares. Era ela a responsável
por acariciar uma cabeça, mas também tendo a simples capacidade de arrancá-la em um único
golpe, seja por sua lâmina ou força descomunal.
Aparentemente, o alvoroço crescia, o número de pessoas naquela tarde havia
aumentado e os súditos tentavam chegar até a Expedia. A rainha ergueu as duas mãos para cima,
na tentativa de acalmar os ânimos, mas aquilo não funcionou. Por fim, estalou os dedos e alguns
guardas se moveram para a sua frente. Logo um círculo se formou em volta das mulheres, uma
medida de segurança que era de suma importância.
Umbra se sentia presa como um animal enjaulado, relembrando exatamente de como
era a sua vida dentro do circo. Estava cada vez mais insuportável respirar, já que os guardas se
fechavam mais ao seu redor, deixando-a sem escapatória. Ela queria sair dali o mais rápido
possível, a atenção era a última coisa que queria, os olhares e os gritos não a ajudavam a relaxar.
Puxou ainda mais o seu capuz para o rosto e ajeitou a túnica para garantir que todo o
seu corpo estivesse coberto, desejou naquele momento ter a sua máscara, era um esconderijo usá-
la.
Seu corpo tencionou quando sentiu suas costas baterem no peito de um guarda. Como
um animal encurralado, se virou para o homem e o empurrou em desespero, mas não causou
muito efeito, o guarda sequer havia vacilado.
— Expedia… — Umbra a chamou com urgência, mas a rainha não lhe atendeu.
Reconheceu que sua voz saiu quebrada demais para que qualquer um escutasse, sua inquietação
não ajudava a colocar firmeza em suas cordas vocais. Estava praticamente paralisada ante a jaula
humana que a cercava.
Constela fechou os olhos bem apertados e com suas mãozinhas sujas de poeira de dias
de privação de banho agarrou em volta do tecido da saia de Umbra, como se sua vida dependesse
do quão grudada poderia estar junto àquela mulher estranha que havia lhe salvado. O medo dela
era palpável e bastante compreensível, e mesmo a mutana sentindo seus próprios pavores, sentiu
uma terrível empatia pela criança. Envolveu-a com o braço direito, escondendo-a dentro de sua
túnica, colocou a mão nas pequenas costas da garota, pressionando o corpinho contra a sua coxa.
Umbra não desejava ser mãe ou muito menos ter a responsabilidade de criar uma
criança nesse momento, francamente, ela mal havia adquirido sua parcial liberdade e queria
aproveitá-la o máximo que poderia, mas ver Constela assim, a deixou ainda mais apreensiva.
Ela precisava se recompor, apenas assim conseguiria sair dali.
— Expedia, por favor.
Desta vez, ela foi ouvida e a rainha a olhou através do ombro direito.
Mais palavras não precisavam ser ditas.
Expedia pegou a mão de Umbra e a confortabilidade do toque conhecido pareceu
acalmar o olhar cinza tempestivo pela insegurança.
— Leve a criança para o castelo, e não quero ver um arranhão sequer na garota, ouviu?
— A rainha rosnou, ao pegar no colarinho de um dos soldados, trazendo-o perto o bastante para
que ninguém à sua volta ouvisse.
Logo começaram a andar para o centro da rua, onde os cavalos os aguardavam, junto a
um soldado com uma faixa de metal amarelada na testa. Expedia segurava a mão de Umbra e a
mutana afagava as costas da menina.
Outro soldado com a testa coberta pelo mesmo metal trouxera o lindo alazão negro de
Expedia, abrindo ainda mais caminho pela pequena multidão que ainda insistia em ficar por
perto.
Expedia montou em seu alazão negro e estendeu a mão para Umbra.
— Gostaria de você ao meu lado, até o passeio de volta para o castelo.
Umbra olhou para Expedia e para a menina que ainda estava enrolada em suas pernas.
Tentou com um esforço transpassar um sorriso calmo, levando sua mão para o topo da cabeça de
Constela. Acariciou o cabelo castanho bastante empoeirado e levemente oleoso e tentou garantir
com segurança em sua voz que ela iria ficar bem.
A menina pareceu hesitante, porém, por fim soltou a perna de Umbra. Talvez fosse
pela experiência de sua pequena vida que havia aprendido que era extremamente negativo
contrariar pessoas mais velhas.
— Logo você vai estar em um castelo, comendo, de banho tomado e cuidada. A moça
que vai ficar com você é bem legal e eu sempre vou estar por lá, principalmente em minha sala,
pode pedir para Nimala te levar lá, te ensino a costurar. — Umbra garantiu para a menina, antes
do guarda anteriormente ameaçado por Expedia se aproximar e colocar a mão coberta por luva
de couro vermelha no ombro de Constela. — Você ouviu o que a sua rainha disse, não ouviu? Eu
espero que a garota chegue sem nenhum arranhão ou com qualquer trauma recente. Se você a
ameaçar ou qualquer um aqui fizer isso, eu vou saber. — Umbra desafiou o soldado, com o tom
de voz gélido e ameaçador, esquecendo até mesmo do terror que estava sentindo no meio
daquela balbúrdia.
Para sua surpresa, o pobre coitado acreditou no que a mutana poderia fazer contra ele,
não em que uma luta direta ela venceria, a não ser que seu monstro viesse à tona, aí sim.
Entretanto, todos sabiam da aproximação que ela tinha com a rainha e testar o vínculo seria
perigoso.
Ele apenas assentiu rapidamente e levou a jovem com ele.
Ao se virar, envolveu os dedos na manopla gelada da rainha, seus olhos pousaram
sobre Expedia, que olhava a cena com interesse evidente. Seu olhar brilhava em uma chama
pouco conhecida por Umbra, mas já experimentada. O calor único que sentiu em toda a sua vida
estava de volta.
— Hmmm… Ela sabe dar ordens. — Expedia ironizou, mas o desejo sexual carregado
na frase também veio acompanhado e Umbra pôde reconhecer. — Mas não se acostume, minha
cara costureira.
A mutana tomou impulso e montou no cavalo, mas diferente do que esperava,
encontrou-se na frente da rainha e os braços fortes com as poderosas manoplas circularam o seu
quadril, apertando-a contra o seu corpo, e o bustiê de ferro pressionou suas costas. Sentiu-se
protegida e o medo que antes assolava o seu pensamento esvaiu-se por completo.
— Ninguém irá te tocar, fique tranquila. — Mitigou Expedia, ao sussurrar perto de sua
orelha revestida pela túnica. No mesmo instante que sentiu a vulva de Expedia tocar em sua
bunda, mesmo cobertas pelos tecidos, Umbra engoliu em seco, e automaticamente jogou um
pouco seu quadril para trás. — Hmmm… não queremos fazer uma apresentação sexual no meio
de todos. Ou você gosta disso? — A voz sedutora de Expedia pintou em sua orelha, quase como
um beijo sensual. A rainha afirmou ainda mais seu apego na cintura de Umbra, e sua mão desceu
levemente para a coxa da mutana, quase ameaçando a chegar à parte de dentro. Porém, antes que
as coisas pudessem sair do controle. Expedia pegou as rédeas de seu alazão e gritou: — Yaaaa!
— Bateu as cordas de couro contra o pescoço do cavalo, que rapidamente seguiu a ordem da
rainha, tomando uma trotada.
Os súditos saíram de sua frente com lufadas de ar e surpresa, exasperados pela
possibilidade de serem atropelados. Crianças surgiram em ruas adjacentes na tentativa de seguir
o cavalo. Rindo esbaforidos, mexendo as mãos de um lado para o outro em felicidade por verem
a rainha.
Umbra segurou com firmeza a cela do animal equino, começava a relaxar, pois
finalmente estava se livrando de toda a atenção e todo tumulto que indiretamente causara. Ousou
se inclinar de leve em direção a Expedia, que a aceitou com facilidade.
Criando um pouco mais de confiança, a mutana retirou a túnica, revelando o seu rosto
machucado para a cidade. O vento marítimo conseguia penetrar as ruas, assim como o cheiro de
pão que estava prestes a ser retirado do forno. Observou com interesse as pessoas andando pela
rua e quando percebiam que estavam na presença da sua rainha se curvavam em sinal de
respeito.
Expedia nada disse durante o caminho de volta para o castelo, enquanto o cavalo
trotava e a ferradura cantava ritmicamente o chão de paralelepípedo. Mas os braços fortes ainda
se mantinham em Umbra e, uma vez ou outra, a mutana poderia jurar que o nariz aristocrático de
Expedia roçava sua nuca.
Umbra ainda tinha dificuldade de compreender o que sua vida estava preparando para
ela, seja como for, parecia que as consequências de abrigar uma Luares no castelo não seria tão
amarga. Ela não podia se enganar ou dar as costas para as reações corporais e o fascínio
crescente que estava criando por Expedia.
A guerreira rainha não estava muito longe disso, a calma e a firmeza que Umbra lhe
dava eram estranhas, a atração era inegável, e não somente por isso, a mulher de olhos brancos
tinha um mistério inigualável, que a fazia querer cavar ainda mais fundo no que aquilo poderia
representar. Porém, não era apenas isso, era evidente que sua personalidade ativa deixava
Expedia perdida, e ela gostava daquilo. Por isso, em nenhum momento soltou Umbra durante o
percurso das ruas pouco abafadas e vivas de seu reino. Ao curso que admirava a beleza da outra
mulher com os cabelos curtos brancos e a pele quase prateada com uma pequena camada de
umidade, Expedia queria se sentir aquecida por aquela calma, quase como se gritasse por
proteção, ainda que fossem os seus braços que tivessem ao redor de Umbra.
Capítulo Doze
Conhecendo um pouco da própria história

A reunião de Nimala e Constela foi mais do que bem-vinda aos olhos de Umbra. A
velha Luares acolheu a pequena menina com satisfação. Abraçando o corpinho da garota,
enquanto se encontravam no corredor de pedras com teto curvo e sem janelas, mas com tochas
pequenas de metal em formato semicircular penduradas. Era ali o principal acesso para a cozinha
e para os quartos de alguns empregados que viviam no castelo. Para a surpresa de Umbra,
Nimala tinha um aposento nos andares superiores, equiparando-se ao dela própria. Constela
aceitou feliz a afeição da velha Luares e retribuiu o carinho.
Expedia estava junto delas, com as costas inclinadas na parede de pedra feita por
blocos de diferentes tamanhos, seus braços estavam cruzados e seu joelho dobrado, já que seu pé
se encontrava também apoiado na pedra. Proferiu que a responsabilidade da educação e das
ações da menina seriam de Nimala. E a proibiu categoricamente de treiná-la, expondo sua
infelicidade de ter mais uma Luares com habilidades difíceis de serem controladas.
Umbra tinha certeza de que Nimala não ouviria a ordem de sua rainha, a velha Luares
tinha uma vontade própria dentro daquele reino e mesmo Expedia expelindo ordens em sua boca,
a velha sabia muito bem como levar a formidável guerreira. Claro, conhecia muito bem o seu
limite, ela havia experimentado três ou quatro vezes essa linha tênue e não tinha sido muito
inteligente de sua parte.
A mutana podia sentir que Expedia não estava muito contente com ela, sua paciência
desde que adentrou pelas portas do castelo regrediu categoricamente. Umbra considerou que
agora que estavam seguras e dentro dos muros da morada suprema, a adrenalina e a gesticulação
para falar com o seu povo começou a ser substituídas pela indisposição de se expor daquele jeito
e pior ainda, não havia sido nem a própria rainha que havia começado isso, bem, também não era
a culpa de Umbra, mas infelizmente foi ela a trazer a causa do problema para dentro do castelo e
tinha a consciência desse ato.
Esperou que pudesse reverter toda essa situação, mesmo criando um laço que não sabia
distinguir o significado, Umbra não queria rompê-lo, pois começava a gostar do seu trabalho e
principalmente da companhia de Expedia. Pedia silenciosamente, enquanto encarava a menina e
Nimala, que Constela se comportasse de maneira exemplar, pois qualquer equívoco, as duas
poderiam ter consequências de uma rainha não tão compreensiva. Expedia era um pouco
presunçosa, não que isso ainda perturbasse Umbra, mas conseguia aferir na personalidade quente
da rainha o traço de superioridade que sentia perante a todos os Luares.
O rancor que os Solares destilavam contra os Luares derretiam-se em ódio puro e o
inverso também acontecia. Era de comum acordo entre ambos que o matrimônio oficial entre um
Solares e um Luares era proibido. O casal poderia até se unir, mas não seriam respaldados por
nenhuma das partes dos reinos e, na grande maioria das vezes, não era nem mesmo aceito pelos
membros da família. Umbra não conhecia nenhum casal composto por Solares e Luares, a
dicotomia entre os dois povos era gigantesca, ainda que achasse que, por vezes, pareciam
codependentes. Esse amor entre dois extremos era extremamente raro e, se acontecia,
provavelmente ninguém mais sabia.
O conflito existia e muita gente não tinha ideia do porquê aquilo havia acontecido,
todos de sua geração ou até mesmo das gerações passadas. Existiam lendas, folclores e razões
por todo esse ódio que era incubado dentro das pessoas desde o seu nascimento, mas a verdade
havia se perdido no tempo, criando ramificações de possibilidades de como tudo isso começou.
Seja como for, não era algo sadio, mas já fazia parte das pessoas.

∞∞∞
Já era tarde da noite e Umbra se encontrava distraída na sua sala de costura.
O castelo encontrava-se dormindo, o silêncio pairava sobre o cômodo, tendo a única
companhia a noite lá fora, com a lua cheia e a estrelas esverdeadas bisbilhotando-a sobre a
claraboia da coroa da cabeça da mutana, suas únicas testemunhas de seus afazeres dentro daquele
santuário criado por Expedia. A baixa iluminação do ambiente foi muito bem recebida pelos
olhos brancos da mutana, a luz exacerbada trazia muita dor de cabeça, mesmo que,
particularmente, seus olhos tenham sido extremamente atraídos por um Sol. Principalmente, pelo
par de olhos amendoados que a encarava com o interesse esfíngico e que sempre a atraía a tal
ponto que nem sequer sabia compreender.
Umbra esperava ansiosa por sua rainha, após a chegada no castelo trazendo Constela a
tiracolo, Expedia demonstrou o seu descontentamento para a mutana, sendo um pouco fria e
afastando-se para seus afazeres monárquicos, ainda que Umbra não tivesse ideia do que aquilo
significava, mas ela havia lhe prometido um encontro, no qual pudessem dialogar melhor.
Através do olhar quente de Expedia, Umbra reconheceu a vontade da sua rainha em desfrutar a
companhia uma da outra.
Alfinetes estavam presos entre os seus lábios, enquanto estava sentada no chão e, em
sua frente, o manequim estava coberto pelo tecido que havia adquirido na loja de sua amiga
Liriana. Retirou um alfinete da boca e passou a língua pelas pontas afiadas dos outros três.
Juntou um pouco de tecido na mão e o dobrou para colocar o alfinete atravessado
horizontalmente. Umbra olhou para cima e reconheceu que a capa começava a tomar a forma de
uma peça para uma rainha poderosa como Expedia. Logo, iria bordar linhas sinuosas de fios de
ouro nas margens da manta, costurar uma pesada pele de urso escarlate de Gelidus sobre os
ombros da vestimenta, no intuito de protegê-la do desolador inverno e procurar o broche especial
para tudo ser entregue com perfeição. Seria uma obra de arte que esperava do fundo de seu ser
ter a aprovação convicta de Expedia.
A porta abriu e Umbra virou o olhar para o intruso que invadiu com facilidade o seu
templo.
A iluminação de fora realçou a silhueta do intruso e Umbra a reconheceu
imediatamente. Nimala adentrou o ambiente e fechou a porta atrás de si, e seu corpo quase
misturou-se na penumbra.
Criança…
A mutana ouviu a voz da Luares dentro de sua cabeça.
Umbra retirou os alfinetes da boca e se levantou, apoiando sua mão no joelho, ao sentir
uma pequena fisgada. Guardou os pequenos objetos pontiagudos dentro de uma caixinha
acolchoada com diferentes cores, assemelhando-se a uma pequenina gaveta e a colocou em cima
da mesa, onde seus rabiscos eram achados.
Ao se virar para Nimala, sentiu seu joelho protestar de novo, anos e anos de exploração
trouxeram-lhe consequências que apenas agora estava começando a conhecer. Talvez por viver
sempre em uma situação desagradável em um lugar fantasioso para outros e até mesmo uma fuga
da realidade, seu corpo deteriorava acostumando-se com açoite diário, e agora que não mais se
encontrava lá, ele começava a reconhecer as feridas lesadas dentro dele.
— A gente pode falar em voz alta. — A mutana não gostava muito de saber que Luares
poderiam entrar na mente de pessoas alheias e descobrirem suas ânsias e segredos.
— Desculpe…
— Como está a Constela? — A leve preocupação de Umbra era verdadeira.
Ela apontou para o divã e as duas se encontraram nele. Entretanto, a mutana esperou a
senhora se sentar primeiro em um sinal de educação e assim que Nimala o fez, Umbra a
acompanhou.
— Uma peste, mas uma boa garota. Órfã… Contou da terrível adversidade que passou
— disse a velha Luares, ao repousar as mãos com veias verdes protuberantes em cima da saia
simples amarela. — Tentei acessar as memórias dela, mas estão bem bloqueadas, talvez por
defesa, não sei… acho que não seria um bom momento para acessá-las agora.
— Você não mudaria essas memórias dela, se pudesse? Remontá-las por algo mais
feliz? — Umbra pegou-se interessada para conhecer mais sobre os Luares.
Virou um pouco do seu corpo em direção a Nimala e apoiou suas costas no encosto do
divã.
— Você gostaria que isso acontecesse com você?
— Não sei… — Levou a mão para o pescoço, sentindo finas cicatrizes marcando sua
pele rara. — Acho que às vezes seria melhor, não tenho muito a perder.
— Nós sempre temos algo a perder, talvez você só não esteja vendo.
Umbra considerou a fala da velha Luares.
— Eu não tenho ideia do que eu sou. — A amargura foi solta com a fala de Umbra. —
Então para mim seria indiferente. O mais importante agora é ela se encaixar aqui.
— Ela vai ficar bem, Umbra. Expedia pode parecer uma rainha quase perversa, mas é a
primeira vez em muito tempo que ela leva em consideração um pedido quase absurdo como
este.
— Ter uma outra Luares dentro de seu castelo?
— Exato.
A mutana tombou a cabeça para trás e olhou para a lua lá fora. Novamente as
indagações espalharam-se por sua cabeça. Outras crianças sem rostos poderiam estar passando
pela mesma situação. Pessoas estariam enfrentando nesse exato momento represálias por amar
alguém do outro reino. Aquilo não era justo.
— Eu não compreendo, vocês têm essas habilidades incríveis de entrar na mente de
alguém e ver quase tudo, de manipulá-los. Vocês poderiam vencer tudo isso, convencer a rainha,
tenentes, grandes personalidades dos Solares e ainda assim não fazem nada.
— Não é tão fácil quanto parece — disse a velha Luares.
Umbra suspirou, levando a mão para o seu pescoço, apertou-o levemente para aliviar a
tensão de ter ficado muito tempo sentada e olhando para cima, enquanto via a capa ficar cada vez
mais pronta diante de seus olhos.
— Expedia também segura um exército nas mãos. Ela poderia dizimar o povo Luares
— comentou a mutana.
— Você gostaria disso?
Os olhos brancos brilharam contra a luz da lua, voltou-os para Nimala e negou com a
cabeça.
Havia sido uma fala idiota, mas ainda assim pertinente.
A velha Luares se levantou e suspirou. Com o andar um pouco arrastado, se pôs a
observar o manequim, estudando a vestimenta ainda não pronta. Seus dedos passaram sobre o
tecido roxo, enquanto o rodeava.
— Ela vai gostar muito quando estiver pronto. — Nimala falou com certo afeto ao se
referir a Expedia. Voltou-se para a mesa, onde pegou um bloco de pergaminhos retangulares,
presos por cordas em uma das laterais mais longas. Folheou-os com cuidado para que seus dedos
não causassem qualquer tipo de ferimento nas páginas. Levou as ilustrações para perto de sua
visão e reparou nos diversos modelos de roupas que foram expostos para o seu olhar cansado e
de pálpebras um pouco caídas. Vestidos, calças, blusas, capas, casacos e até mesmo armaduras.
Algo que talvez fugisse da especialidade de Umbra, mas não deixou de ser menos
impressionante. — As coisas não são tão simples — começou a falar, repousando o monte de
pergaminhos de volta a escrivaninha. — Sim, você tem razão, os Solares estão em maior número
e a fonte militar deles é melhor do que a nossa. Poderíamos sim, manipulá-los a nossa vontade,
refazer memórias, tentar fazer provisões ou usar o fator científico ao nosso lado, mas não
teríamos pessoas o suficiente, e com qualquer descuido o ataque total chegaria até nós. O que eu
estou querendo dizer é que ambos se equilibram, mesmo nesse conflito idiótico.
— Como uma simbiose.
Umbra já havia pensado nisso por algumas vezes.
— Algo parecido com isso. O conflito sempre existiu e guerras focadas também, mas
desde que eu me lembre ou os relatos que chegaram até a mim, seja por pessoas ou escrituras,
uma guerra iminente e mortal aconteceu muitos e muitos anos atrás. Hoje estamos relativamente
bem, dentro da possibilidade de convivência. — Nimala levou as mãos para trás do corpo e
caminhou pela sala, admirando a beleza do recinto.
Seus cabelos brancos estavam particularmente bonitos hoje, soltos até a sua cintura.
— Conheci bem a tensão. O que fizeram com a Constela foi repugnante… não sou tão
ingênua para apostar na paz, eu vivi o bastante para ver o pior dos dois lados e inerente à guerra,
elas são ruins. — Umbra informou seus pensamentos com desesperança.
Ela conhecia cidades e províncias dos dois lados e ambos os reinos tinham sua beleza
singular, cultura, arte e costumes, mas também continha ruindade, amargura, violência e
desigualdade. Pensando melhor, provavelmente era tudo isso que fomentava a guerra. A linha
tênue entre a diferença e a semelhança que os dois guardavam.
A Deusa da Lua representava a sabedoria, o misticismo, defesa e alquimia. Enquanto, a
Deusa do Sol representava o calor da batalha, o racionalismo, a ordem e o labor.
Uma grande unificação formaria um reino no ápice de sua perfeição, mas a política, os
sentimentos de odiosidade, acumulados com a superioridade inexistente que achavam que um
tinha pelo outro nunca deixariam isso acontecer. Eles se tornariam o continente mais poderoso,
poderiam até mesmo unificar tudo, conquistar todos além dos oceanos.
— Eu concordo com você. — Nimala falou. — Você não é a única a ter cicatrizes. —
Ao parar perto do degrau circular em que beijara Expedia pela primeira vez, a velha Luares
puxou a blusa de seu ombro e a imensa cicatriz de uma terrível queimadura foi apresentada ao
olhar branco de Umbra. — Luares fizeram isso comigo, ao descobrirem que eu trabalhava para o
rei dos Solares. Eu deveria amar o meu povo e por muito tempo amei, eu era feliz, mas após
salvar a vida da mulher do rei, todos começaram a me odiar e fizeram isso comigo. Alguns deles
sentiram prazer ao sentir o cheiro da minha carne queimar — confessou Nimala ao cobrir a
ferida antiga.
— Eu sinto muito. — Disse Umbra com pesar.
— Você conhece as dores. As chicotadas, os castigos… O que sua mãe fez, foi-
Novamente, a Luares estava dentro da sua mente sem a permissão de Umbra.
Revirando a sua dor, sangue e feridas que em sua pele estavam fechadas, mas não dentro de si.
— Para com isso. — A mutana reclamou, ao inflar as narinas e levar a base da mão
contra suas têmporas. Fechou os olhos bem apertados, pressionando sua cabeça, na tentativa de
expulsar Nimala de dentro de seu ser.
— Eu vou te ensinar a bloquear os Luares de sua cabeça. Pode ser bem útil, ainda mais
que é um alguém próximo da rainha, e sinto muito por invadir assim, é a força do hábito, mais
fácil quando faço desse jeito. — Nimala voltou para perto de Umbra e novamente se sentou ao
seu lado. — Ela construiu isso tudo para você. Expedia realmente viu algo diferente no que você
representa, Umbra. Eu sei que já pedi isso, mas Expedia é um alguém que pode trazer um pouco
mais de paz entre os reinos. Mas infelizmente ela não pode fazer isso sozinha.
— Nimala, eu nem sei o que eu sou para mim, como posso começar ajudá-la? E para
dizer a verdade, não acho que tenho posição para interferir em qualquer decisão dela.
— Você já interferiu. O que ela fez para Constela foi o oposto do que normalmente ela
faria. Eu não sei como você pode ajudá-la, mas algo me diz que você precisa ficar perto dela.
Expedia é só.
— Não foi o que pareceu quando estávamos nas ruas de Estrelares.
— Pergunto-me, nunca se sentiu só ante uma multidão?
Todos os dias. Pensou a mutana.
— Expedia tem a sua própria prisão, Umbra. Não é porque você não vê as barras de
ferro a cercando que elas não estejam ali. — A mulher mais velha proferiu, antes que o silêncio
fosse instalado.
Umbra sentiu-se um pouco incomodada por isso, mas nada fez, continuou parada,
levando a mão à testa, onde a massageou, no puro intuito de retirar a pressão constante que sua
cabeça estava lhe dando. Esperava que Nimala pudesse proferir mais alguma coisa de seus lábios
levemente enrugados pela idade, mas durante alguns segundos nada veio.
A mutana finalmente abriu a boca com intuito de poder arrancar mais informações da
Luares, algo lhe dizia que Nimala conhecia muita coisa, quase como se fosse um ancião
escondendo segredos que só ela poderia ter. Não esperava que pudesse arrancar muita coisa, mas
o mínimo que fosse capaz de sorver poderia ser mais do que o suficiente.
— Você sabe por que essa guerra teve início? — Umbra finalmente perguntou pela
curiosidade crescente que se manifestava em seu ser. Ela queria entender mais do mundo em que
estava e talvez assim ter respostas sobre como ela pertencia a ele.
— Ninguém sabe, mas começou há muito tempo, não estou dizendo cem, duzentos ou
quinhentos anos atrás, mais do que isso. As lendas e os fatos se misturam, mas posso dividir o
pouco que eu sei.
— Por favor.
E um sorriso gentil foi dado por Nimala.
— As Deusas germinaram cada uma, uma filha dentro do seu ventre. A magia que uma
delas carregava foi a responsável pela concepção. Era a continuidade delas, para que assim
pudessem descansar, o intuito inicial era criar a civilização com a perfeita harmonia. Onde um
ser não teria as duas habilidades, mas um completaria o outro, como uma balança. As irmãs
sempre dependiam uma da outra para trazer o melhor que o mundo poderia oferecer. Porém,
infelizmente houve uma briga, a filha que veio através do ventre da Deusa da Lua tivera uma
filha com um ser esquecido na terra, um Deus há muito adormecido, que veio antes mesmo das
Deusas. Era ele a representatividade de algo caótico e não conhecido. A jovem se rendeu
completamente ao poder do Deus, causando um grande conflito entre as duas filhas das Deusas
primordiais e o próprio reino que antes era totalmente unificado, começou a ruir.
O ser esquecido era uma criatura que os antigos cultuavam e pelo seu egoísmo e
excesso de crueldade contra os seres, as próprias Deusas o trancafiaram, mas jamais poderiam
imaginar que a filha da matriarca da Deusa da Lua fosse se encantar pelo oculto. A filha
concebida pelo ventre da Deusa do Sol começou a querer tomar cada vez mais poder para si, na
tentativa de colocar as pessoas sob o seu molde de pensamento, causando um conflito estrutural
na sociedade. Além disso, ela tentou matar a própria sobrinha e isso não foi bem concebido pela
irmã, trazendo ainda mais degradação a tudo. No final das contas, a filha da Lua ficou entre a
filha fanática e a irmã que tentava a todo custo unificar um primordial pensamento. Assim, a
partilha ocorreu.
Umbra estava completamente compenetrada e quase nervosa com todas as informações
que lhe eram dadas. Aquilo soava fantasioso demais, um mito, um folclore para fazer crianças se
amedrontarem e não saírem da vista de suas mães e seus pais, mas a mutana havia visto muita
coisa em sua vida. Pelas Deusas maiores, ela se transformava em algo bestial e praticamente sem
controle, parecia que a história da construção dos reinos separados não fazia parte dela. Pois
Umbra não era nenhum dos dois, ainda que fosse constantemente lembrada por Luriel que ela era
Luares. Uma mentira, era assim que achava. Desejou profundamente ingerir uma quantidade
significativa de álcool, o vinho de maçã ou a cerveja de cereja que tanto gostava.
— Então, a briga das duas foi o primeiro grande estopim para a separação dos reinos.
— Umbra considerou em voz alta, não havia uma pergunta e sim uma conclusão que se construía
em sua cabeça. Desta vez, foi ela que se levantou, sentindo-se agitada por todas as informações
que acabara de escutar. Ela queria fazer alguma coisa sobre isso, imaginou-se voltando no tempo
para enfrentar as duas irmãs e juntá-las novamente. Soavam extremamente mimadas, pois,
aparentemente, ambas não tinham sequer a capacidade de resolverem conflitos para um bem
maior. Apoiando suas mãos no quadril, andou de um lado para o outro na sala. Tombou a cabeça
para trás e fitou a lua encarando-a de volta em seu esplendor, brilhante e prateada. — E você não
fez nada? — A reclamação direcionada a perfeita esfera que era iluminada graças a sua mulher.
Umbra também compreendeu que as duas Deusas também eram codependentes. —
Francamente… — Soltou frustrada ao bater as mãos na coxa.
— Claro que tudo isso é só uma história, folclore. — Nimala adentrou na discussão
criada pela mutana. — Não há como saber se isso é verdade ou não. Temos historiadores, tanto
no reino dos Luares, quanto aqui, e parece que tudo foi quase que apagado propositalmente. — A
velha se levantou e sorriu. — Mas agora eu tenho que ir, pois a rai–
A porta se abriu e Expedia em todo seu esplendor majestoso e poderoso chegou na sala
de costura. Assim que os olhos de Umbra acharam os da rainha, seu coração bateu rapidamente
contra o seu peito e a frustração da conversa anterior junto a Nimala pareceu esvair-se um pouco.
Ela queria a atenção de Expedia, passar um momento a sós com ela. Algo que não havia lhe
apresentado desde o encontro e o maravilhoso sexo ocorrido ao meio mar rosado do reino dos
Solares.
Afeiçoava-se por Nimala, mas finalmente, estaria junto a sua rainha, e pelo olhar
quente de Expedia, percebeu que não era apenas a mutana que desejava isso.
Pelas Deusas mães, Expedia era a própria reencarnação da beleza do sol.
Capítulo Treze
O vício criado entre os corpos

Expedia ligou as mãos nas costas e estufou o peito para frente, enquanto seus olhos
quentes passeavam entre as duas mulheres, que pareciam entretidas em algum tipo de conversa
íntima. Dividindo segredos… A guerreira não sabia se gostava disso ou não, contudo, não
poderia negar que ver Umbra se entrosando com alguém era um tanto satisfatório, mesmo não
sabendo absolutamente nada sobre o passado daquela misteriosa mulher, tinha certeza de que o
sofrimento fazia parte de grande parte do ser dela.
— Minha rainha. — Nimala virou para Expedia e se curvou perante ao seu poder
majestoso. — Dizia para Umbra como a criança Luares se comportou em seu primeiro dia. Logo,
estará totalmente treinada e não levará muito tempo até que consiga frequentar a escola.
— Hmm… — Expedia olhou para sua serva, que ainda se curvava em sinal de respeito
e submissão. Seus olhos miraram Umbra e ao receber um aceno positivo da mutana, Expedia
movimentou a mão com os dedos abertos de baixo para cima, como um leque, e assim a serva se
colocou ereta. — Desde que isso não me cause problemas. Agora, retire-se, preciso conversar
com aquela senhorita ali. — A rainha mirou seu dedo mindinho para Umbra e se aproximou.
Nimala nada falou e exerceu o seu papel de subordinada, retirou-se do ambiente,
enquanto Expedia voltava a proferir.
— Ah… vejo que começou a preparar minha primeira vestimenta. — A rainha
observou, ao reparar o tecido roxo longo preso no manequim perto da escrivaninha.
Umbra olhou para trás e rapidamente correu até a sua obra de arte. Colocou-se na
frente do manequim, mexendo os braços na horizontal de um lado para o outro com o esforço
quase inútil de cobrir a capa excepcional.
— Ainda não está pronto! — Umbra anunciou com a voz um pouco aguda, certamente,
apreensiva por ter sua peça julgada antes de estar definitivamente pronta. Seus olhos procuravam
aflitos algum objeto que pudesse esconder sua obra-prima. Logo, encontrou um pedaço de tecido
laranja jogado sobre a cadeira da escrivaninha. Rapidamente, o pegou e cobriu grande parte da
nova vestimenta de Expedia. — Só poderá ver quando estiver pronto.
— Você sabe que eu sou a rainha deste lugar, não é? — Expedia desafiou, ao levantar
uma de suas sobrancelhas e cruzar os braços robustos desprovidos de mangas, e então, dando
mais um passo para se aproximar da mutana. Na visão de Umbra, aquela musculatura desenhada
sob a derme a distraíam com facilidade. — Ordens não funcionam muito para mim.
A mutana considerou aquela fala, Expedia estava dizendo uma verdade única. Era ela a
lei daquele lugar, logo, Umbra sentiu o peso de estar só com Expedia, ainda eram raras as
ocasiões que conseguiam ficar daquele jeito. Sentia-se nervosa por estar tão próxima do calor da
luz que Expedia emitia, mas também, extremamente arrebatada por estar naquela presença. Seja
como for, a excitação, o medo, o interesse e o poder que aquele sol emitia faziam parte do que a
guerreira representava para Umbra, adicionado a isso, a vestimenta de Expedia apenas
intensificava todo o sentimento.
A rainha vestia um peitoral dourado que contornava os seus seios e seguia até a sua
barriga, onde um sol entalhado de cor negra fixava-se contra o material e os raios se desenhavam
pela peça até todas as pontas se encontrarem ao centro de suas costas. Em seu braço esquerdo,
um lindo bracelete de ouro adornava sua musculatura escondida pela pele oliva levemente suja,
indicando que a rainha estava exercitando suas habilidades no pátio de luta na lateral do castelo.
Usava calças mais folgadas para melhor movimentação de golpes e como sempre, sua espada,
sua fiel companheira, estava escondida em sua bainha.
— Algo me diz que você gosta de receber ordens, mas há lugares específicos para isso.
— Umbra arriscou com a sua bravura momentânea, poderia ser perigoso dar uma resposta tão
direta para a rainha, mas Umbra se deliciava com o que Expedia fazia com ela e não estava
referindo-se apenas ao erotismo. A rainha era um desafio, um enigma calorento que seguramente
a queimaria, mas a mutana não conseguia se conter.
Uma risada curta e maliciosa nasceu nos lábios de Expedia. Moveu a cabeça de um
lado para o outro de maneira negativa, ao mesmo tempo, em que retirava o cinto da bainha de
sua espada e depositava sua arma apoiada no divã roxo.
— Eu tive uma tremenda dor de cabeça essa tarde por sua causa, Umbra. Eu não posso
recolher cada criança perdida que você encontrar pela frente. Eu tenho uma reputação a manter, e
principalmente, respeito também. — Expedia desabou no divã, arrastando seu quadril para
frente, mantendo suas pernas levemente abertas, seu braço descansou sobre o encosto macio e
sua cabeça encostada seguiu o mesmo curso.
Fechou os olhos por alguns segundos, mostrando o cansaço evidente que uma rainha
tinha. Cuidar de assuntos políticos, econômicos e pessoais diariamente estava longe de ser
agradável.
Relaxou por alguns segundos, deixando-se levar pelo silêncio posto entre as duas, ela
poderia dormir ali, estar perto de Umbra causava-lhe um estranho relaxamento, como se pudesse
ousar confiar na estranha que agora passava a ser sua costureira pessoal. Não seria muito
prudente ressonar, já que seu intuito inicial era estar na presença dela, porém, quando estava
prestes a abrir os olhos, sentiu o peso corporal de Umbra sobre suas coxas.
— O que você… — Expedia começou a falar, mas foi incapaz de seguir qualquer
raciocínio, pois ao abrir os olhos, encontrou a mutana montada em suas pernas, com as mãos em
seu peitoral, enquanto se livrava das fivelas que o prendia em seu tórax.
— Você está tensa por minha causa e por todo o trabalho que eu causei. Quero que
você relaxe um pouco, Expedia. Não precisa carregar todas as responsabilidades do reino agora.
Aqui você vai estar segura. — As palavras poderiam até soar manipulativas, mas não eram, pois
Umbra realmente almejava ter Expedia tranquila e não tão afundada em todos os seus deveres.
A rainha até queria protestar, mas quando o peitoral saiu do seu corpo e o baque
metálico foi ouvido com o material caindo no chão, sua pele se arrepiou. Ela fechou os olhos
novamente, deixando-se levar pelas mãos de Umbra, que passeavam pelos seus ombros e seios
ainda cobertos por uma blusa fina de cor cinza. Sentia os dedos delicados de sua costureira
aplicarem uma deliciosa pressão em seus ombros, esgueirando-se entre o tecido da blusa e de seu
peito, porém nunca chegando perto demais de seus mamilos.
— Eu sinto muito por hoje… não quis causar mais problemas ou preocupações para
você ou conflitos com terceiros. — O sopro da voz rouca e intimista de Umbra surgiu em uma
carícia deliciosa em sua orelha e, mais uma vez, o arrepio agradável chegou até o seu corpo,
espalhando-se como os braços novos de um rio que se abriam na terra, chegando até a sua cabeça
em um relaxamento quase automático. — Não quero ser uma inquietação para você, não
compreendo totalmente seus afazeres como rainha, mas sei que são muitos e também não quero
me tornar um afazer para você.
— O que você quer se tornar para mim, Umbra?
Os olhos quentes estavam ali, encarando-a e a mutana carregou-os sem hesitação. Suas
mãos continuaram pelos ombros e as guiou para as laterais do pescoço até chegar à nuca. O
couro cabeludo dos fios selvagens e amendoados foi massageado pelas pontas dos dedos,
causando um leve tremor no corpo forte da rainha.
— Algo que você nunca tivera antes.
Expedia repousou as mãos sobre as coxas de Umbra, permitindo-se relaxar um pouco
mais sob o toque calmo e afável.
A rainha ainda não tinha ideia do que queria em relação a mutana, mas ela sabia que a
queria próxima, ter aquela misteriosa mulher em sua volta. Trazendo, como a mesma havia
prometido, algo que nunca experimentara antes.
Umbra fitava o rosto descontraído e sorriu satisfeita. Percebeu que Expedia precisava
ser cuidada, a mutana poderia abrir as perspectivas da rainha, trazer algo melhor para o reino,
para os Luares e até mesmo para si própria, era uma oportunidade. Não que estivesse movida a
interesse, mas sim a ajuda de criar algo melhor. Não poderia negar que ter a rainha sob as suas
mãos lhe trazia certo poder, prazer e importância.
— Senti falta disso… De suas mãos. — Expedia admitiu, levando as mãos para a
cintura da mutana. — Estou me acostumando a tê-la por perto. — Reconheceu e uma de suas
mãos foi para o pescoço longo de pele cinzenta de Umbra. — Eu acho que já disse isso, mas eu
gosto do seu cabelo assim.
— Que bom, minha rainha.
— Amanhã iremos ao festival, como lhe disse na carta… — Expedia continuou a
acariciar o pescoço de Umbra, até descer para o peito e, novamente, pousar sua mão sobre a
cintura da mutana. — Confesso que quero lhe mostrar o que os Solares têm para oferecer.
Mostrar os costumes, as barracas mercantis, a comida típica das regiões, é um dia bem pulsante e
talvez possa ser um pouco intenso, algo me diz que você gosta do silêncio. Sei que já fiz o
pedido pelo recado que lhe enviei, mas gostaria de ouvir pelos seus lábios. — A rainha ofereceu
com a esperança de que sua costureira aceitasse. Ela poderia ordenar a presença de Umbra, mas
não pareceu certo, desejava tê-la como convidada. Mostrá-la para o reino, como teve sorte de
encontrar uma mulher tão singular quanto a mutana. — O que me diz?
— Não está errada, gosto do silêncio, mas ultimamente percebo que venho mudando,
não mudando, mas reconhecendo vontades dentro de mim.
Por alguns instantes, as mãos de Umbra pararam os movimentos. Elas já não se
encontravam no couro cabeludo de Expedia e sim nos seios voluptuosos da rainha. Sua cabeça
tombou levemente para trás e seus olhos sorveram o olhar quente. Mexeu-se em cima da rainha,
ouvindo o farfalhar dos tecidos da calça e do vestido que estava usando esfregando-se um contra
o outro. Umbra levou sua mão para o cabelo macio e cheio e os colocou para trás da orelha da
rainha, acariciando o couro cabeludo perto da têmpora.
O convite escrito e verbal seria um passo para as duas, pois Umbra seria vista ao lado
de Expedia, o que significava que um novo patamar de respeito iria ser tomado, mesmo a rainha
não dizendo isso em voz alta, as amarrações das duas se fixariam ainda mais.
— Está me deixando nervosa… normalmente, não sou rejeitada, mas entendo se-
— Sabe, quando eu recebi a carta com o selo e vi que era pertencente a você, fiquei
nervosa. Achei que algo ruim poderia estar ali, mas vi o convite e senti-me extremamente
afortunada. — Umbra ofereceu um sorriso aberto e levemente tímido, o que contagiou a mesma
expressão em Expedia, mas diferente da timidez, a contenção de ouvir palavras positivas vindo
daquela linda boca. — Eu queria lhe escrever uma resposta, mas esperei lhe ver, estava na
esperança de isso acontecer ainda hoje, caso não, eu estaria pronta para você. Não poderia negar
tal cortejo.
Expedia riu, enlaçou a cintura da mutana usando sua força para virá-la e a jogou contra
o estofado do divã.
Umbra gargalhou em felicidade, uma ação rara e pela primeira vez ouvida por
Expedia.
O coração da rainha pulou contra sua caixa torácica, ouvir aquele som foi
surpreendentemente único. Seus movimentos pararam por alguns instantes, Expedia precisava
beber a beleza prateada única que se embriagava perante a luz da lua. Seus lábios se entreabriram
enquanto Umbra depositava as mãos em seu pescoço, escondendo-as sob seu cabelo. O sorriso
mínimo nasceu em seus lábios após a deliciosa risada. Deusas, a rainha estava em apuros.
Expedia colocou-se entre as pernas de Umbra, enquanto sua mão direita abria caminho
para dentro da saia negra da mutana. As pontas dos seus dedos foram agraciadas pela pele quase
prateada e macia. Levou sua mão até a lateral da coxa de Umbra e apertou, afundando seus
dígitos na carne. Logo, as longas e delgadas pernas da mutana envolveram o quadril da rainha,
trazendo seu corpo junto. Umbra levou a cabeça para frente, retirando-a do estofado do divã para
encontrar a boca de Expedia.
Os lábios brincavam em um beijo sensual, com línguas e salivas que pintavam as
bocas, deixando-as mais barulhentas e excitantes quando se tocavam.
A boca de Expedia serpenteou o pescoço longo e nu de Umbra, sorrindo contra a pele,
sentindo as mãos da mutana vaguearem por suas costas até a sua bunda. Porém, antes mesmo de
chegar às carnes macias, Umbra dedilhou o metal frio escondido na barra da calça larga de
treinamento. A rainha lambeu a extensão do pescoço da mutana e alinhou seu olhar junto aos
olhos brancos.
— Opa... — Expedia sorriu de lado, tocou na mão de Umbra e no cabo da pequena
adaga que guardava na parte de trás de sua calça. — Eu preciso andar prevenida… —
Comunicou, ao retirar a pequena bainha fixada na barra de sua calça e a adaga que a protegia
caso infortúnios pudessem vir a acontecer e Expedia não estivesse com sua espada em mãos.
Livrou-se da arma mortal, jogando-a de qualquer maneira no chão, sua mente estava nublada por
demasia para que pudesse arranjar algum lugar seguro e apropriado para ela.
— Hm… além de uma guerreira formidável, tem uma inteligência pura.
Expedia semicerrou os olhos, sem saber ao certo se Umbra estava sendo irônica ou
apenas a elogiando. Mas quando sentiu a mão esquerda da mutana afundar na carne de sua bunda
em um tapa para chamar atenção, a rainha soltou um gemido surpreso e manhoso, trazendo um
sorriso malicioso nos lábios carnudos de Umbra.
— Umbra… Umbra... — A rainha ronronou o seu nome em uma voz sensual e baixa.
Antes de seus dedos encontrarem a pele prateada, já não tão escondida pela saia do vestido que
parecia gostar de se acumular cada vez mais no começo de sua coxa.
As bocas se acharam mais uma vez e os dedos tão conhecedores de um corpo feminino
acharam o pequeno triângulo com pelos pubianos, coberto pelo tecido da roupa de baixo de
Umbra. Tentadoramente, o polegar esfregou o pequeno ponto de prazer inchado e quente sobre o
tecido, arrancando um gemido preguiçoso da linda mulher sob o seu toque.
Elas se olharam e novamente a lua testemunhou o ardor do desdobrar do prazer das
novas amantes. A conversa do acontecimento quase fatídico daquela manhã e o desabafar
repentino poderiam acontecer depois. Agora, tudo o que queriam era o fogo carnal que o
encontro das peles tão distintas poderia ter, ainda que quase completamente cobertas. O contraste
perante o prateado da lua e da pouca iluminação do ateliê junto a pequena camada de umidade
que se formava nos corpos, junto a tudo, parecia a mais absoluta perfeição. Uma perfeição
perigosa, ignorada principalmente pela mutana. Mas quem poderia julgá-la, era a primeira vez
que estava provando algo assim. Nem sequer conseguia ser arisca com o desconhecido, talvez
pelos anos de enclausuramento, resolveu simplesmente experimentar em sua língua o que era
aquilo que estava vivendo.
Expedia retirou o pequeno tecido, colocando-o para o lado, antes dos dedos
experimentarem o líquido viscoso da excitação de Umbra. Ao passear pelos lábios gentis e
úmidos, a rainha coletou cada microexpressão de prazer que se contorcia no rosto da linda
mulher rendida ao seu toque. Expedia esfregou seus dedos na carne para molhá-los até retirá-los
da vulva da mutana. Sorriu ao receber um gemido de frustração, mas logo, outro gemido
manhoso quando a rainha colocou o néctar pessoal de Umbra em sua boca e os chupou com
prazer.
— Está se tornando o meu sabor preferido, Umbra. Único, forte e encorpado, do jeito
que sempre gostei de degustar e raro de se encontrar.
Ao ver tal ação, Umbra beijou com urgência a sua rainha, provando o seu próprio gosto
íntimo. Envolveu sua mão sobre os dedos de Expedia e os guiou para o seu prazer, penetrando
três dedos da rainha em sua entrada.
Os gemidos foram engolidos pelas bocas, mas foram os de Umbra que se perduraram
ao sentir a deliciosa pressão crescente das estocadas brutas e lentas de Expedia.
— Minha rainha… — Umbra murmurou contra os lábios de Expedia, sentindo seu
hálito quente contra os seus.
— Sim… Umbra, o que você deseja? — A rainha indagou, arrancando um gemido alto
da mutana. O polegar circulou o clitóris de Umbra e um resmungo prazeroso foi ouvido, antes
das palavras ouvidas.
— Você.
Expedia era tão quente. Como o sol tocando sua pele quase prateada. Era uma
verdadeira inundação de quentura que Umbra nunca conseguiu provar antes. Perguntava-se como
tão rapidamente viu-se em uma situação como aquelas? Era amedrontador, perigoso, mas
francamente, nada poderia ser feito.
— E você tem, principalmente, minha atenção. Você não tem ideia de como é difícil
pensar em afazeres, quando apenas você voa em minha mente, Umbra. É frustrante, mas tão
bom, tão gostoso…
A fala de Expedia fez o corpo de Umbra queimar em prazer. Ela povoava a mente da
rainha, enquanto a mesma defendia e ordenava todo um reino. Ouvir aquilo foi maior do que ela
poderia aguentar, após a deliciosa pressão crescer em seu ventre, a mutana chegou ao seu ápice
em um gemido longo, mas baixo.
— É verdade isso? — A voz carregada e preguiçosa de Umbra preencheu o ateliê que
ainda carregava o cheiro e a respiração entrecortada sexual.
— Que eu fico pensando em você? — Expedia voltou com outra pergunta e quando foi
respondida com um aceno simples a respeito, chegou em sua boca: — Sim, Umbra. Eu não estou
evitando você, ao contrário, justamente estou lhe convidando para o festival amanhã porque
quero passar o meu tempo com você. Infelizmente por ser rainha tenho que me atentar a muitos
afazeres, às vezes mais do que eu gostaria. — Confidenciou seu descontentamento pela grande
responsabilidade que retinha. — Até o momento, estou tentando ficar mais com você e é o que
eu estou conseguindo fazer. — Expedia se ajeitou, colocando a lateral do seu corpo no divã.
Umbra entregou mais espaço para Expedia, colocando-se de lado, onde as duas
poderiam dividir aquela superfície macia que ainda seria palco de mais sexo.
— Eu não estou reclamando, não quero que entenda que estou descontente. Quer
dizer…. — Ela rodou os olhos admitindo as próximas falas de sua vulnerabilidade ao calor que
Expedia tinha. — Claro que quero passar mais tempo com você, mas o que você está me
entregando e se desdobrando para fazer me deixa contente. Como se eu tivesse valor.
— E você, ao menos para mim, está começando a ter. — Mais uma confissão guardada
apenas para elas duas e a lua.
— Hmmm…. Então quer dizer que a rainha está gostando da desmemoriada costureira.
— Umbra provocou ao se sentar no divã e puxar Expedia consigo.
Mesmo a fim de responder à altura, a rainha viu-se perdida pelo toque repentino e pela
destreza que Umbra tinha, pois quando fizera menção de sentar no colo da mulher de pele
prateada, fora colocada de joelhos em cima do divã, com os seios apoiados no encosto.
— O que você–
A voz de Expedia morreu, quando Umbra usou sua incrível força para abaixar sua
calça larga e expor a sua bunda para o ar aconchegante, quente e sexual do salão de costura.
Umbra usou suas mãos para passear pelas coxas e pela bunda de Expedia com
paciência e calma até aproximar o seu rosto, e com os dedos, expôs as dobras inchadas e o ânus
da rainha. A mutana usou sua língua para experimentar a vulva, o períneo e o ânus.
Expedia jogou seu quadril para trás e lançou a cabeça para frente, apoiando sua testa no
encosto do divã. Apertou suas mãos no estofado para segundos depois morder o encosto. Seu
gemido saiu abafado e seus olhos rolaram quando as lambidas continuaram.
O beijo íntimo foi barulhento e melado, manchando o nariz e o queixo de Umbra, que
certamente não se importava em estar sendo lambuzada pelo prazer de Expedia, na realidade,
aquilo parecia animá-la ainda mais.
— Você quer só minha boca ou os meus dedos também? — A mutana indagou contra o
sexo de Expedia, antes de chupar os lábios inferiores, arrastar a língua para a bunda e morder a
carne.
Mais uma vez, o gemido abafado aconteceu.
Expedia queria ser fodida com os dedos, bem daquele jeito, submissa, mas ter a boca
de Umbra assim, estar exposta para ela daquela forma era tentador demais.
— Assim, por favor, assim.
Pelas Deusas Irmãs, ela estava implorando.
Umbra aproveitou o seu banquete real. Com vontade em se afundar cada vez mais no
gosto de Expedia, tentando arrancar-lhe o prazer mais sensível e fazer com que as antigas
amantes da rainha fossem nada em comparação ao que ela poderia dar. A mutana compreendia
que dentro da vida sexual que se aflorava com grande animação e veemência, seria Umbra a dar
as principais coordenadas. Expedia queria dar-lhe o controle, ao menos, nesse momento de
vulnerabilidade e irresponsabilidade de não vigiar o seu reino. Umbra entregaria isso a ela.
Tomaria o controle, fazendo a rainha sucumbir aos seus pés.
E foi isso que aconteceu, após uma deliciosa massagem íntima no sexo exposto e
vermelho de Expedia, a rainha explodiu em um orgasmo furioso, esfregando-se
desavergonhadamente contra o rosto da mutana.
As duas desabaram no divã, seminuas com risinhos felizes e cansados. Aproveitando
assim, o carinho silencioso sob a luz da lua e a penumbra da luminosidade do ambiente.
O ressonar estava quase chegando nos corpos enlaçados, quando uma batida na porta as
fez pular da tranquilidade fabricada pelos corpos grudentos de sexo.
— Eu estou batendo na porta, porque não quero ver minha irmã trepando com a
costureira, mas precisamos de você. — A voz de Lucíferos soou tediosa do outro lado da porta.
Expedia se escondeu entre os seios de Umbra e encolheu o seu corpo, claramente,
tentando se esconder das responsabilidades de rainha.
— A gente se vê amanhã… — Umbra assegurou, ao escovar o cabelo longo de
Expedia com os dedos. — Estou ansiosa para ver o festival.
A rainha levantou a cabeça e os olhares se encontraram em sutileza, mesmo com a
interrupção escabrosa de seu irmão.
— Eu também, será um bom dia. Eu estarei na frente de sua porta às nove em ponto.
Infelizmente, o dever me chama, até mesmo tarde da noite.
— Nós iremos ter muitas outras noites, pode apostar.
— Eu sei. — A confiança retomou o peito de Expedia. Beijou a boca de Umbra,
sentindo-a pegajosa pelo gosto do seu sexo e se levantou do divã para catar suas roupas. — Te
vejo amanhã, senhorita Umbra.
A mutana ofereceu um sorriso aberto ao observar a rainha vestir sua calça e segurar a
espada e a adaga com a mão direita, enquanto a esquerda buscava ajeitar seu cabelo. Esperava
que a reunião não fosse longa ou com muitos conselheiros, pois Expedia exalava sexo,
certamente burburinhos iriam ascender na corte, mas nenhuma das duas parecia se importar.
— Até amanhã, minha rainha. — Umbra se colocou de joelhos no divã e puxou
Expedia pela blusa, dando-lhe um beijo demorado.
A rainha se afundou no beijo, mas logo a interrupção veio novamente.
— Eu não quero invadir essa sala, pela Deusa do sol, Expedia. ANDA LOGO! — Dois
socos pesados foram golpeados contra a porta pesada de madeira.
Expedia interrompeu o delicioso toque dos lábios e se distanciou.
— Eles sempre me encontram. Mas estou ansiosa para amanhã. — Bufou e se dirigiu
para a saída. Ao abrir a porta, não deu qualquer espaço para que seu irmão pudesse enxergar o
cômodo que tanto desejava ficar. — Francamente, Lucíferos, não há nada que você possa fazer
sem…
Expedia fechou a porta e a voz firme saiu abafada do outro lado. Umbra ouviu a
rainha resmungar enquanto os irmãos andavam pelo amplo corredor do castelo e as vozes pouco
a pouco iam se distanciando. Sozinha, Umbra se levantou e ajeitou a vestimenta em seu corpo.
Alisou a mão na saia do vestido e escovou o cabelo com os dedos, antes de se abaixar e recolher
o peitoral deixado para trás. Dedilhou-o com interesse evidente, circulando com os seus dedos
onde os seios de Expedia se encaixavam e o levando para perto do nariz. Cheirava a couro, metal
e a suor, como a de uma guerreira rainha.
Deixou a vestimenta em cima do divã e voltou aos seus afazeres, em breve, algumas
das empregadas regressariam para lhe entregar algo para comer e Umbra poderia entregar o
peitoral para ser colocado novamente no cômodo de armaduras.
Direcionou-se ao manequim e retirou o tecido que cobria a sua peça ainda inacabada.
Enrolou-o em seus braços e os depositou no divã. Porém, antes de retornar a sua obra de arte,
abriu o grande baú de madeira com dobradiças de metal que fez um rangido baixo. Retirou lá de
dentro uma pesada pele de urso escarlate de Teranilas, uma cor única e ideal para lapidar a
primeira vestimenta para sua rainha. Sua cor vermelha escura, quase tão densa quanto sangue,
combinaria perfeitamente com o vinho escuro do tecido. As cores quase se aproximavam. Ela
não havia encontrado o broche ideal, que transformaria em fecho para ligar a capa e deixá-la
presa para proteger os ombros da rainha.
Trabalharia mais um pouco na peça antes de se recolher, estava angustiada para o
evento amanhã. Uma dualidade entre animação e preocupação, então, caso fosse retirar-se para
os seus aposentos, não iria conseguir dormir. Dita seja a verdade, Umbra queria cuidar de
Expedia e a cada hora essa vontade apenas aumentava.
Capítulo Catorze
O festival dos Luares

Umbra despertou aos primeiros raios da manhã. Ao abrir os olhos, espreguiçou-se


como um felino preguiçoso, esticando seus membros, estalando-os auditivamente. Passou os
dedos pelas pálpebras e em um súbito de adrenalina, tirou os lençóis de volta de seu corpo e
pulou da cama, certamente animada pelo dia que começava a se estender por todo o reino. Sentiu
que a atmosfera em sua volta estava diferente, assim como os sons mais altos vindos da cidade
chegavam com certa timidez em seu quarto. Logo, dirigiu-se às janelas e abriu as cortinas que
impediam o seu vislumbre da cidade que terminava as últimas preparações para o festival.
Semicerrou os olhos quando a claridade exacerbada penetrou seu olhar sensível. Levou
a mão na horizontal no meio da testa e uma acanhada sombra se formou em seus olhos, na
tentativa de ajustar suas pupilas defronte ao sol. Quando finalmente se acostumou com a
claridade, conseguiu ver a cidade até onde suas janelas poderiam lhe prover.
Tendas coloridas se organizavam em alguns pontos das ruas em que Umbra tinha a
oportunidade de ver, principalmente aquela que ligava para o cais do porto. Cordas enfeitadas
com bandeirinhas atravessavam as cabeças dos comerciantes que apressados carregavam
caixotes de um lado para o outro. Olhou com grande interesse o cais abraçado nas rochas,
enchendo-se de visitantes, assim como as filas de diferentes tamanhos de barcos para arranjarem-
se dentro das docas.
Convidados eram vindos do mar e da terra e durante dias, a cidade principal do reino
dos Solares estaria abarrotada de turistas, algo ótimo para os negócios locais, desejou
solenemente que sua nova amiga Liriana tivesse sorte com essa oportunidade.
O tempo estava sublime, o céu azulado despido de nuvens presenteava pássaros e
insetos voadores, que assim como o festival, pareciam animados para o evento. Logo o sol
estaria totalmente firme no céu, enquanto a lua, ao seu lado oposto e em sua cor branca, estaria
apenas a observar o dia que não era feito para ela. Umbra perguntou-se: estaria ela com inveja?
Talvez não. Afinal, os Luares também comemoravam o seu dia com grandes confraternizações.
Sabia disso, pois a grande maioria das vezes, em sua época de circo — que estranhamente já
parecia ser antiga —, calhava de sempre estarem com o picadeiro aberto em uma das cidades dos
Luares. Zinlux, uma região pequena com uma grande concentração de academias intelectuais, foi
o último lugar em que esteve presente no festival luar, a diferença era que o evento havia
ocorrido durante a noite e se estendido para a madrugada. Umbra lembrava muito bem de como a
cidade era bela e destoava de quase todas que já vira antes. Prédios brancos erguidos juntos a
torres hexagonais pontiagudas que praticamente reluziam contra os raios do sol e o brilho da lua.
Umbra conseguiu ter um lindo vislumbre do jardim que cercava as lindas propriedades, uma
delas continha em seu centro uma interessante estrutura de metal, equivalente a uma plataforma
quadrada e fina, onde foram capazes de colocar uma representação quase perfeita da lua
flutuando sobre o metal. Ela rodava o tempo inteiro sobre o seu eixo e emitia uma fraca luz
prateada, onde durante a noite todo o lindo jardim de árvores-brancas ficava iluminado junto ao
verdadeiro satélite natural erguido no céu.
Colocando-se de costas para as janelas, Umbra tratou de ir em direção ao seu guarda-
roupa e selecionar alguma vestimenta que pudesse ser do agrado de sua rainha. Infelizmente,
com a falta de tempo, não pôde confeccionar roupas as quais ela achava que poderia gostar de
vestir.
Suas mãos passavam pelas vestimentas penduradas e dobradas no simples armário,
nada parecia a altura de ir em público com a sua rainha. Apenas alguns minutos depois e algumas
lufadas exasperadas, seu rosto brilhou em um sorriso tímido. Puxou a primeira veste, selecionou
uma blusa branca, levemente bufante em seus braços e justos nos antebraços, junto a pares de
duas correntinhas de prata que circulavam um pouco acima de seus cotovelos e desciam até suas
mãos, prendendo-se em dois anéis onde dois símbolos de sol desenhavam-se sobre as costas de
suas mãos.
Adicionou uma saia verde-escura e leve que contornava sutilmente suas ancas e
estendiam-se até suas canelas. Puxando uma das gavetas de dentro do armário foi presenteada
com um lindo e simples espartilho do mesmo tom de sua saia, com cordas que poderiam ser
facilmente ajustadas. Ao colocar a peça, optou por não apertar muito, mesmo querendo chamar a
atenção da rainha Expedia, não desejava parar de respirar embaixo de sua vestimenta. Achou que
com essa roupa estaria bem arrumada para andar ao lado de sua nova amante, Umbra ainda
continha certo pudor em demonstrar muito de sua pele para olhos não conhecidos. Ter uma pele
cinza com cicatrizes poderia atrair olhares curiosos demais para o seu próprio bem.
Quando estava prestes a ir à pequena câmara de banho foi interrompida por uma batida
tímida na porta. Umbra parou em meio ao quarto com os olhos arregalados. Teria ela deixado o
tempo escorregar e perdido a hora? Porém, quando a porta se abriu, a preocupação se lavou de
seu rosto e Nimala adentrou com uma empregada alta e careca, que com um aceno educado,
apresentou-se como Ramiras, uma Solares assistente da cozinha.
— Reparo que está adiantada… ansiosa para o festival ou para ser vista pela rainha? —
Nimala perguntou, em um sorriso malicioso.
— Creio que os dois.
— Assim vejo… — Nimala depositou a mão ao centro das costas de Ramiras e com a
outra apontou para cama.
— Como está a menina, Constela? — Umbra indagou, enquanto acompanhava com o
olhar Ramiras segurando em suas mãos uma bandeja de prata com pães, geleias, frutas e chás.
— Está bem, por enquanto está se habituando com o castelo e se envolvendo com os
Solares menos hostis a ela. Como, por exemplo, a senhorita Ramiras.
E com cuidado absoluto, a empregada colocou a bandeja no colchão e pôs-se em uma
pequena reverência de respeito e submissão.
— É uma menina esperta e carente. Sua história realmente não é das melhores. — O
pesar estava presente na voz grossa de Ramiras. — Mas acredito que ela ficará bem aqui.
Umbra sorriu com certo alívio. Aquilo era uma boa notícia, esperava que a menina não
aprontasse muito, talvez ela pudesse ter uma vida promissora ali e enterrar em memórias
distantes o que havia acontecido em sua vida. Apesar de tão nova, decorrências danosas
arrebentaram-na no pouco tempo que caminhava com os pés pequeninos pela terra. As duas
poderiam ter as diferenças nos percalços da vida, mas aparentemente, ambas estavam
conseguindo ter uma segunda chance dentro do castelo de uma rainha que odiava muita coisa do
que ambas representavam.
— Espero estar do seu agrado. — Ramiras voltou a dizer ao apontar para o pequeno
banquete individual localizado na cama.
— Obrigada — murmurou Umbra e voltou com a educada referência que normalmente
os súditos faziam para a rainha.
— Agora… — Nimala chamou a atenção das duas mulheres soltando algumas palmas
leves. — Por que não come? Depois tome um banho para nós ajeitarmos o seu cabelo e pintar
esses lindos olhos e boca. — A Luares se aproximou, deu um leve tapinha no quadril da mutana
e piscou um dos olhos. — A rainha está ansiosa para lhe ver também. Passei no quarto dela um
pouco antes de vir aqui, já estava acordada, com as metades das roupas na cama. Pobres das
empregadas que irão ficar responsáveis pelo quarto dela.
Ramiras se retirou, deixando Nimala e Umbra a sós no quarto.
A mutana não estava com fome, devido a sua vontade de estar logo pronta e desvendar
o que o festival do sol tinha tanto para lhe dar, mas também não poderia fazer tamanha desfeita
com Nimala, resolveu por fim, retornar para a cama e se sentar perto da cabeceira, onde puxou a
bandeja para mais perto.
— Quero que, por favor, tenha cuidado hoje. — Nimala pediu e se aproximou um
pouco, enquanto seus olhos passavam pela vestimenta esticada sobre o lençol ao lado oposto de
Umbra.
— O que quer dizer com isso? — Perguntou, ao passo que segurava o pequeno pote de
madeira com frutas coloridas cortadas em pequenos cubinhos, ainda localizados na bandeja. Seu
movimento cessou completamente e os seus olhos procuraram por respostas no rosto enrugado
da Luares.
Entretanto, tudo o que recebeu foi as costas de Nimala, já que no mesmo segundo, a
antiga cuidadora da rainha se virou para abrir o armário.
— Apenas a atenção exacerbada que irá receber. — A Luares explicou, retornando o
seu olhar para Umbra. Em suas mãos segurava um par de botas quase despido de salto e que
cobria um pouco mais que o calcanhar da mutana. — Não você, propriamente dito, mas a rainha,
e pode ser um pouco aflitivo.
Umbra assentiu, retirando o recipiente de madeira da bandeja e pegou a colher ao lado
do prato com as fatias de pão. Contemplou enquanto Nimala posicionava as botas no chão, perto
dos pés da cama e, novamente, colocou-se perto da mutana.
— O ferimento está curado. — Observou a Luares, direcionando os olhos para o
pescoço nu da convidada real.
— Ficará uma cicatriz, não uma cicatriz, mas várias, já são tantas que perdi a contagem
faz um tempo — disse Umbra, com dor inserida em sua voz. Colocou a colher dentro do
recipiente e recolheu uma fruta pronta para ser digerida. Com a outra mão levou os dedos na pele
sensível e de linhas protuberantes em seu pescoço, sentindo mais uma vez suas marcas. —
Expedia falou que devo ter orgulho delas, pois sou uma sobrevivente. Elas estão aqui para me
lembrar que eu pereci.
— A majestade tem os seus momentos em pensamentos notórios. — Nimala proferiu
com certo tom de orgulho, apropriando-se da liberdade de sentar-se na cama junto a Umbra. Os
olhos carregados de sabedoria e anos acumulados pela pele rasgada de linhas de expressão
estudaram a jovem mutana. — E você não se sente assim.
— Não — murmurou tão baixo que foi dolorido de ouvir.
— Pois deveria. — Nimala devolveu firme. — Seria bom, termos o nosso treinamento,
posso sentir as chicotadas ecoando em minha cabeça, mesmo sua mente sendo a escuridão, quero
ter certeza de que nenhum Luares chegue perto de descobrir algo que você não queira que seja
descoberto.
Umbra assentiu e finalmente provou a fruta que esperava na colher.
Durante os poucos dias que estava só e se recuperando dos terríveis ferimentos, seus
momentos reunidos com a Luares foram proveitosos, pois além de conhecer mais sobre tudo que
a rodeava, pôde aprender como bloquear seus pensamentos perante aqueles que poderiam fazer
algo contra ela.
— Certo — concordou Umbra e, mais uma vez, levou uma colherada de frutas cortadas
para a sua boca. Ela ainda tinha algum tempo de sobra, o seu banho só teria que ser um pouco
mais rápido do que o de costume.
Depositando o recipiente redondo de madeira com apenas algumas frutinhas restantes,
Umbra recolheu a bandeja, colocando-a sobre a mesinha de cabeceira. Aproximou-se um pouco
de Nimala e respirou fundo antes de esticar a sua coluna.
— Estou pronta. — A mutana afirmou, repousando as mãos nas coxas e fechando os
olhos.
— Tudo bem, começamos como sempre começamos. Escolha uma memória.
Os olhos de cor branca foram fechados.
Era demasiadamente difícil escolher alguma lembrança, já que a própria proprietária
delas tinha a dificuldade de ter qualquer controle.
Seu cenho franziu e suas mãos se fecharam sobre as coxas, enquanto uma miscelânea
de imagens pintou a sua mente. As memórias se desorganizavam dentro de sua cabeça em uma
linha de tempo sem qualquer concordância, claramente sua própria cabeça queria sabotá-la,
como se ela quisesse escancarar para o mundo todo o que havia sofrido e o que de mais bárbaro
fez em sua existência.
Umbra se viu entre as pernas de uma mulher, entregando-a ao prazer máximo. Depois,
uma versão sua como criança com o dente banguela correndo por uma clareira enquanto
segurava uma boneca de pano surrada, ela ria, enquanto seus caninos mais afiados que o normal
se projetavam sem qualquer vergonha. A imagem seguinte foi de Victorie e ela, ambos estavam
rindo, pois, uma bêbada Umbra havia acabado de cair de uma banqueta com pernas bambas. A
próxima foi a da imensa besta que representava, a loba trancafiada dentro da jaula pequena
demais para comportar uma criatura branca como aquela. Os olhos brancos e a lua cheia
vermelha brilhavam sobre a noite no breu de uma cabana escura malcheirosa. Ela rosnava e se
debatia contra as grades, tentando se livrar de sua prisão e, mesmo sabendo que aquilo não
adiantaria nada, continuou. O rosnado que reverberava por toda a cabana assustaria qualquer um
que estivesse se esgueirando para o final do parqueamento das carroças em que os atores e os
trabalhadores ficavam, pequenos quartos com os mais diferentes detalhes pessoais para que
pudessem chamar de lar. Umbra não merecia isso.
Seguiu-se a próxima lembrança, desta vez em sua forma humana, que bracejava de um
lado para o outro, enquanto se encontrava de joelhos sobre o feno que espetava e arranhava sua
pele cinza. Sentia o cheiro de estrume, ração e mijo do curral improvisado em que estava, lugar
em que comportavam os animais do circo quando estavam parados em uma cidade por tempo o
suficiente para os acomodarem em lugares melhores. Animais nos quais eram mais bem tratados
do que ela.
Suas mãos empenharam-se, ainda que inútilmente, em retirar a corda que envolvia o
seu pescoço pintado de sangue e ferimentos. Atrás dela, sua mãe apertava o material áspero em
sua pele, enquanto gritava contra a sua orelha, palavras doloridas demais que ocasionalmente
lembrava.
Sentia o gosto metálico na boca e a sua garganta se fechava cada vez mais, era
escusado tentar reter qualquer partícula significativa de ar para dentro de seu ser. O peso que sua
mãe fazia sobre o seu corpo comprimia ainda mais os seus pulmões, já que eles estavam de
encontro com as suas coxas.
Os animais em sua volta assistiam calados a sua morte chegar, nenhum deles ousou em
soltar qualquer som, talvez com medo de ter o mesmo destino que Umbra poderia ter.
Ela queria se transformar, esfolar sua mãe viva, mas não conseguia e não
compreendia o porquê. Achava que era o amor que ainda cultivava por um ser que deveria lhe
proteger e não lhe açoitar. Infelizmente, sua passividade persistiu por anos e cenas como aquela
iriam se repetir.
— Você não pode mudar isso. — A voz calma de Nimala surgiu em meio ao
perturbador acontecimento.
Umbra continuava a lutar por sua vida, sentindo o cheiro fétido de bebida vindo do
hálito de sua mãe. Debateu-se mais um pouco, procurando pela Luares e se assustou quando a
viu ao seu lado. Seu instinto era gritar para que Nimala a ajudasse, mas aquilo era uma memória,
já havia acontecido.
— Mas pode isolá-la. — Nimala avisou com calma. — Deixá-la escondida na
escuridão já intrínseca em você.
A corda apertou na volta da pele quase prateada e o tom rubro leve e quase
imperceptível se adicionou à coloração do rosto de Umbra. Estava cada vez mais difícil de levar
ar aos seus pulmões, a aspereza do material debilitava ainda mais o seu pescoço e apesar de usar
suas mãos para se livrar da corda, naquele momento aquilo não parecia adiantar.
Ela sabia que não morreria ali, primeiro porque aquilo era uma memória que Umbra já
havia vivido. Segundo porque a pobre mutana valia dinheiro demais para Luriel, contudo, não
significava que Luriel estacaria o flagelo que tinha prazer em prover para a jovem Umbra.
Perguntava-se até hoje por que sua mãe gostava de fazer aquilo? De deixá-la
totalmente à mercê da dor? Sempre tentou ser a filha perfeita, quieta, sem ousar fazer
questionamentos, prestativa e ouvinte, mas nada parecia ter efeito sobre o que sua mãe fazia com
ela.
Queria isolar aquela memória para ninguém poder vê-la, nem mesmo ela. Era doloroso
demais, ruim demais. Então, simplesmente, parou.
Mesmo sentindo a corda apertar o seu pescoço, levou as mãos às coxas e fechou os
olhos, concentrando-se em sair dali, em se livrar daquela dor. Quando abriu os olhos novamente,
tomou impulso, libertando-se da amarra de sua mãe. Tropeçou alguns passos adiante, apoiou
seus braços na porta baixa do estábulo e tentou se colocar de pé. Após reconhecer a pequena
vitória, puxou desesperadamente o ar para os pulmões em respirações rápidas, levou a mão ao
pescoço, esfregando-o para se desprender da dor, mas percebeu que ele não estava mais ferido.
Virou-se e encontrou sua mãe ainda sobre ela, mas não era exatamente ela e sim uma versão sua
da memória.
— Agora, tranque-a. — Nimala ressurgiu ao seu lado.
Sentiu a mão da Luares em suas costas, enquanto a afagava um pouco, no único intuito
de acalmar as reações tão reais que acabou de ter.
Umbra apenas assentiu, pois a ardência de sua garganta era real o suficiente, ao menos
para ela, que a impedia de pronunciar uma palavra sequer.
Concentrou-se na visão, desejando trancafiar aquela lembrança.
De repente, foi expulsa da cena em sua frente. Sentiu seu corpo sendo puxado para trás
em um ato violento, encontrando-se em um lugar totalmente preto, a escuridão de sua cabeça,
apenas ela e Nimala estavam lá, iluminadas pelo foco de luz vindo de cima de suas cabeças.
Ao longe, avistou um par de imensas portas de madeira escura com detalhes de metal
negro em sua borda que se assemelhavam a espinhos, que se moviam para o centro, onde uma
gigantesca lua cheia vermelha brilhava como um selo espiritual.
A memória estava lá, trancada, longe de qualquer um e até mesmo dela, agora apenas
Umbra tinha acesso àquelas lembranças, caso ela desejasse dividi-la com alguém, poderia abrir
as portas novamente.
Estava aprendendo a selar segredos em sua mente, algo que apenas Luares poderiam
fazer. Era um tanto quanto estranho não ter nenhum tipo de habilidade psíquica e mental, mas ser
capaz de fazer isso já era um grande feito, seja como for, ela estava mais protegida já que o
perigo de descobrirem o que ela era ainda era iminente.
Eventualmente, se um dia ela e Expedia tivessem laços intensos, poderia mostrar quem
era realmente, ou o que achava que era, porque nem mesmo Umbra tinha certeza do que
representava, mas por enquanto, não poderia confiar em demonstrar sua outra face, ao menos não
agora, ainda era cedo e perigoso. Expedia poderia facilmente achar que o que estava acontecendo
era uma verdadeira traição, nunca mais perdoá-la ou até mesmo findar sua vida. Era nítido que a
rainha era um tanto soberba, não gostava de ser enganada, detestava mentiras e omissões, e não
se afeiçoava em andar com aqueles que achava inferior. Umbra parecia estar embutida em todas
essas categorias. Mas não queria pensar nisso agora…
Fechou os olhos e quando os abriu, estava de volta ao quarto com Nimala sentada em
sua frente.
As duas trocaram um sorriso, antes de Umbra relaxar contra a cabeceira da cama e
recolher com sua mão esquerda os últimos quadradinhos de fruta dentro do recipiente redondo de
madeira.
— Não fui tão ruim assim. — Umbra falou e logo depois limpou a garganta, já que os
resquícios da dor em sua memória ainda se projetavam fisicamente nela.
— Não mesmo, és de fato uma veloz aprendiz. — E mais uma vez, o orgulho de
Nimala coloriu a voz, fazendo com que uma súbita timidez preenchesse o peito de Umbra. —
Agora vá tomar banho e se aprontar, o dia será bom e cheio para você hoje, senhorita. — A
ordem veio dos lábios da Luares.
Umbra se levantou da cama e sua cabeça latejou um pouco pelo esforço que fizera, mas
resolveu ignorá-la, logo passaria, pois estaria no festival junto a sua rainha e lá, poderiam se
entreter com o evento e aproveitar as especiarias que ele poderia oferecer.

∞∞∞
O lábio inferior foi acariciado pelas cerdas de um gentil pincel com cor rosada, quando
três batidas na porta foram ouvidas pela mutana sentada na poltrona perto das janelas, que
inquieta assistia a cidade encher cada vez mais.
— É ela! — Umbra disse em exaspero ao se levantar e quase derrubar Nimala no meio
do processo descabido de avidez.
A mutana se apressou para a porta e a abriu.
Seu coração retumbou quase que dolorosamente contra a sua caixa torácica, pois
Expedia representava a verdadeira rainha e certamente atrairia todos os olhares do festival, sendo
eles de cobiça ou de inveja.
Expedia estava com os braços ligados atrás de suas costas e seu queixo levemente
levantado para cima, demonstrando um pouco de sua aura soberba de rainha.
Umbra não seria capaz de descrever o quão espetacular ela estava. Primeiro a blusa
preta de mangas compridas e levemente bufantes em seus antebraços prendiam-se sob um
peitoral de metal escamoso vermelho-escuro, apenas preenchendo área dos seus seios, pois sua
cintura segurava tiras de couro, antes de terminarem em seu quadril, e uma calça do mesmo tom
de sua blusa cobria suas pernas, mas elas eram possíveis de ser vistas até a metade de suas coxas,
pois botas negras ocultavam toda a extensão de suas pernas. Sob as tiras de couro, tecidos
vermelhos escarlates desciam em harmonia até seus joelhos e luvas que cobriam suas mãos
igualavam-se à mesma cor. Adornando sua cabeça, a tiara dourada com o sol ao seu centro
completava a vestimenta da rainha prestes a se misturar entre os seus súditos.
— Expedia…
Umbra queria dizer algo que pudesse estar à altura da sua dominação sob o encanto da
rainha, mas nada parecia à altura.
— Eu sei que já disse isso, mas adoro ver o seu pescoço livre e seu cabelo curto.
— Obrigada, minha rainha. — E a reverência de respeito foi dada. — Você está linda.
Perguntando-me se as minhas habilidades de costureira irão suprir suas expectativas. Sua
vestimenta combina perfeitamente com você.
— Eu tenho certeza de que irá me surpreender com suas habilidades.
Expedia ergueu a mão para o pescoço desnudo de Umbra e seus dedos acariciaram a
pele prateada e cicatrizada pelos ferimentos já curados.
— Podemos ir? — Expedia perguntou em um tom gentil, entretanto, seu olhar colocou-
se sobre o ombro direito de Umbra. — Ahh, a velha Luares não te deixa em paz, não é mesmo?
— Um sorriso implicante nasceu em seus lábios. — Nimala, estás me trocando pela minha
costureira? — Cruzou os braços e sua musculatura quase rasgou o tecido fino de sua blusa.
— Não está com ciúmes, está, criança? — A Luares perguntou com certo tom irônico,
ainda que soubesse que talvez aquele sentimento pudesse ser de fato real.
— Hmm… apenas não estou acostumada a dividir você, mas acho que posso fazer isso
por Umbra. — Expedia respondeu.
— Apenas fazendo o meu trabalho, minha rainha. A menina Umbra está ansiosa para ir
ao festival.
— Ouvi dizer. — Devolveu Expedia. — Vamos? — Indagou, colocando-se de lado e
esticando o braço, oferecendo espaço para que a mutana saísse do quarto.
— Sim.
O sorriso não foi capaz de ser escondido.

∞∞∞
Umbra achou que estaria pronta para experimentar todas as sensações que um festival
Solares daquela magnitude poderia lhe oferecer, mas ao dar os primeiros passos pela ponte de
pedra rodeada por flores rosas, amarelas, lilás e vermelhas em arcos sobre a sua cabeça e pelos
pilares que firmavam toda aquela grande estrutura, teve a certeza de que talvez não estivesse.
Os olhares curiosos começaram quando ela e Expedia andavam lado a lado, suas mãos
não estavam ligadas uma na outra, mas a proximidade era nítida e a ação corporal de ambas
diziam mais do que palavras que a intimidade entre aqueles dois seres era verdadeira.
Sob o seu olhar branco, Umbra reconheceu a movimentação das pessoas em sua volta,
algumas incrédulas por reconhecerem que a sua rainha estava entre elas.
Sentada no parapeito da ponte, perto de uma das pilastras floridas, a mutana reparou
um homem pegando a mulher pela cintura, ajudando-a a se firmar no chão de concreto e ambos
correram na direção dela e de Expedia.
Os súditos se animaram e amontoaram-se, claro que nenhuma daquelas pessoas
chegaram tão próximas, já que guardas, ainda que vestidos de roupas mais leves e não tão
intimidadoras, a cercavam espaçadamente, bem diferente do episódio que Umbra passou frente à
loja de Liriana. Expedia poderia ser uma rainha do seu povo e amada por muitos, mas sua
segurança era o primordial.
A rainha os cumprimentou em acenos curtos e sorrisos mínimos, seus dentes apareciam
em um sorriso mais aberto apenas para crianças.
A praça com o imponente e hipnótico chafariz da Deusa Solar em seu centro estava
rodeada por lindas barracas com as mais diferentes cores e tamanhos. Eram tantas que tomavam
conta da rua fechada que circundava a estátua. Durante o festival era proibido qualquer meio de
transporte passar por ali.
Através de prateleiras, tecidos estirados no chão, armários sem portas e expositores, os
Solares, comerciantes Luares e de fora do continente vendiam seus produtos. Havia desde uma
senhora com uma cesta de pães em suas mãos com uma pequena quitanda ao seu lado
descansando sobre uma mesa de madeira e enfeitadas por trigos, até um homem vestido de calças
largas cor de areia desértica e um sobretudo leve sentado ao chão, vendendo jogos de azar,
enquanto seus longos dedos rodeados por anéis embaralhavam as cartas roxas brilhantes. Avistou
uma grande e musculosa mulher sobre uma caixa resistente, enquanto segurava um imenso peixe
atravessado em suas mãos. Já próxima dela, um homem de estatura baixa andava de um lado
para o outro carregando uma enorme cesta de madeira com inúmeros pergaminhos enfiados em
rolos ali dentro. Segurava um deles, totalmente aberto e Umbra pôde ver a linda obra de arte
desenhada por giz de cores terrosas e remetente às cores dos Solares. Uma linda paisagem de um
entardecer na cachoeira.
A música também podia ser ouvida e os bardos aglomeravam-se na esquina de uma das
ruas que desembocavam na praça. Mulheres dançavam em pares, assim como homens e a
mistura dos dois sexos. Todos estavam sorridentes e felizes.
Até mesmo as casas com mais andares estavam empoleiradas de pessoas rindo,
bebendo, flertando e, claro, crianças brincando e correndo pelas ruas e entre os afobados adultos
com mãos ocupadas.
— É lindo, não é? — Expedia perguntou com a voz baixa ao se inclinar para perto.
Pôde reconhecer o brilho nos olhos de Umbra. Aquele brilho de quem está pela
primeira vez experimentando algo surpreendente, algo parecido com aquilo que tiveram na
primeira noite em que se desvendaram intimamente.
Virando o rosto em direção à rainha, a mutana assentiu com veemência.
— Pode ser um pouco demais para quem não está acostumado. — Expedia voltou a
dizer, ao colocar a mão sobre o cabo da espada.
Diferente dela, já percebia que Umbra era uma mulher mais calma e reflexiva,
recolhida, se assim poderia dizer. Sempre com gestos gentis, mesmo passando por horrores ainda
não descobertos e diferente de suas outras amantes, Umbra não era estrondosa e espalhafatosa,
todavia, era através do olhar que a comunicação acontecia e ela estava começando a
compreender isso. Sua costureira não pedia por coisas ou empunhava qualquer vontade material,
tudo o que aparentava querer era a oportunidade de viver.
— Pode sim, mas é deslumbrante. Os cheiros, as cores, as pessoas, achei que não
estivesse preparada para isso, mas eu quero conhecer tudo.
— Então faremos exatamente isso. O que deseja fazer primeiro? — Expedia indagou.
— Eu… eu não sei. — Incerta estava Umbra e seus olhos brancos apenas
demonstraram isso. — O que você deseja fazer?
E novamente, ali estava… O simples preocupar de querer agradar a rainha não passou
despercebido. Expedia queria mostrar tudo para ela, mas claro, com a devida calma. Não queria
sobrecarregar sua convidada com muitos estímulos, ainda que tenha achado que seria quase
impossível fugir daquilo dentro do grande dia dos Solares.
— Hmmm, podemos passear um pouco pela praça e ir em direção ao porto. Talvez
você possa encontrar a sua amiga.
— Liriana. — E um sorriso se abriu no rosto da mutana.
— Uhum… caso você veja algo e goste, pode adquirir. Seu quarto precisa ter um
pouco mais do seu gosto.
— Não há necessidade. — Umbra rebateu ao desviarem de uma criança que segurava
uma bola maior que o arco de seus braços.
— Claro que há, é uma ordem e eu sou rainha.
Os olhos de Umbra se perderam por alguns segundos nas barracas que passavam por
elas e reparou uma mulher forte e baixa, com metade de sua cabeça careca e a outra metade
preenchida por um lindo cabelo vermelho que descia até sua cintura. Estava usando calças e
blusa de couro, sem quaisquer mangas, e tatuagens desenhavam em tribais por toda sua pele.
Sentada em uma cadeira, suas pernas estavam sobre a mesa da barraca com tecidos pretos
formando o teto e atrás dela, prateleiras de armas como espadas, cajados, machados e flechas
eram expostas para guerreiros ou caçadores que tivessem a habilidade de tê-las. A mulher não
parecia ser Luares ou Solares, mas a atenção da mutana não levou muito tempo. Culpa dos
estímulos à sua volta e, principalmente, de sua rainha.
— Poderei então ficar mais sob o seu teto, Expedia? — Umbra perguntou depois de
alguns segundos de silêncio. Sem saber ao certo qual resposta queria ouvir. Seria mais fácil ser
expulsa do castelo, mas, ao mesmo tempo, não desejava virar as costas.
— O tempo que desejar e o tempo em que o que está acontecendo entre a gente durar.
— Posso confessar algo, minha rainha?
— Por favor.
— Espero que isso não acabe por agora. — Umbra falou sem apontar o que elas
tinham. Juntou as mãos em frente ao corpo, sentindo-se levemente nervosa pelo desabafo. Uma
de suas cicatrizes localizada no pescoço coçou, mas ignorou. — Eu realmente tenho que
confessar, quero estar mais em sua presença.
— Pois assim espero também. Sua companhia está sendo boa, Umbra. Devo ousar a
dizer que um alento para as tensões tão ruins que recaem sobre os ombros de uma rainha. —
Expedia expôs um pouco mais de suas emoções que ainda eram difíceis de serem exploradas. Na
realidade, ambas tinham medo de ir além do que era permitido, ainda que limites nunca tivessem
sido impostos para elas. — Agora o que me diz, mais a frente há uma barraca bastante
tradicional com espetos de tentáculos das águas de Estalares. Já provou? É uma das minhas
comidas preferidas. Gostaria de te levar lá.
— Não que eu me lembre, minha rainha, mas eu adoraria provar.
— Então temos um plano, minha querida convidada. — E assim, os dedos de Expedia
roçaram rapidamente pela nuca nua de Umbra.
Expedia não poderia deixar de se achar um pouco mais presunçosa do que o normal,
era ela a única a ter um alguém tão distinto dos outros. A impressão era que de todos os tesouros
existentes em uma caçada, o prêmio maior fora ela quem ganhou, não era surpresa, pois, mais
uma vez, Expedia conseguia o melhor prêmio. A mulher de olhos brancos, pele quase prateada,
alta, com uma beleza única e uma alma preciosa, que certamente equivalia aos seus tributos
exteriores, ousava dizer que os passava. Tinham que conhecer a sua costureira melhor para poder
chegar a uma conclusão firme, mas por enquanto, era isso que estava sentindo e normalmente,
não estava errada. Mentira, Expedia errou muitas vezes, mas ali era diferente.
Elas andaram por mais algum tempo, lado a lado, aproveitando o que o festival poderia
dar, foi apenas quando estavam se aproximando do porto que Umbra encontrou com Liriana com
um lindo tecido amarelo cobrindo seus antebraços. Ao seu lado, um jovem atendia duas mulheres
que estavam interessadas nos produtos de sua amiga.
Assim que Liriana viu Umbra, se livrou do tecido de seus braços, deixando-o cair para
a cabeça de seu ajudante e correu para a mutana, antes de tomá-la em um abraço forte.
Umbra liberou o ar pela boca, surpresa pelo ato carinhoso e pelo impacto dos corpos se
encontrando, mas aceitou de bom grado o abraço de sua nova amiga. Reparou, enquanto
envolvia o corpo em seus braços, o olhar não muito satisfeito de Expedia, mas a rainha nada
disse.
Elas se separaram segundos depois e Liriana se virou para Expedia. O seu primeiro
intuito foi erguer os braços para copiar o gesto afetivo que fizera em Umbra, mas sua mente
conseguiu reagir antes de seus instintos sem filtro e rapidamente, curvou-se.
— Minha rainha. — Liriana a cumprimentou cordialmente.
Expedia a olhou em presunção, com o queixo levemente erguido e a postura rígida,
enquanto segurava o cabo de sua espada, estufando o peito levemente.
— Quero agradecer pela sua súbita passagem na minha loja, desde que vocês estiveram
lá, para a minha grande surpresa, as vendas estão tomando um novo rumo. — A Solares dividiu
sua felicidade, enquanto apontava para a barraca. — Contratei até mesmo um ajudante.
— Fico feliz, Liriana. — Foi Umbra que a parabenizou.
— O que estão achando do festival? Esse ano parece ainda mais cheio do que no ano
passado. — Liriana comentou, querendo alongar a conversa com sua amiga e aproveitar a
companhia da rainha próxima a seus produtos.
— É tudo tão lindo. Eu estava com a expectativa alta, mas devo dizer que me
surpreendeu.
Seus olhos desviaram-se rapidamente para o mastro erguido no alto do morro que
adentrava o mar. A bandeira do reino dos Solares tremulava orgulhosamente.
— Foi anos de trabalho duro, mesmo sendo uma festa tradicional, é recente termos
tantas pessoas vindo para cá. — A rainha comentou pela primeira vez desde que a conversa se
iniciou.
— Um trabalho notório seu, minha rainha. — Liriana rebateu com delicadeza. Não
havia nenhum tipo de bajulação, era apenas um fato apreciado por todos os Solares residentes na
cidade Estrelares.
— E espero que com isso sua loja volte a ter cada vez mais lucro. — O comentário
generoso de Expedia foi percebido por Umbra que desenhou um sorriso gentil em seus lábios.
Por outro lado, Liriana se curvou por uma segunda vez, certamente agradecida pelas
palavras direcionadas a ela.
Expedia olhou para Umbra e seu olhar quente caiu sobre a boca que tanto queria beijar
desde o momento em que a porta foi aberta para ela. Seu ventre se apertou em empatia, quando
notou o sorriso orgulhoso dado, mesmo ela não tendo que provar nada a ninguém, de repente,
sentiu-se contente por ter a aprovação da sua convidada.
— Ainda tem muita coisa para ver, mas estou ansiosa para provar o espeto de polvo
que Expedia comentou. — A mutana dividiu sua vontade, já que seu estômago começava
reclamar.
— Hmmm… — Liriana juntou os dedos retos e beijou as pontas deles. — São uma
delícia, especialidade da nossa cidade.
— Por que não vamos comer? — Direcionou a pergunta para Umbra, antes de
cumprimentar um nobre que passava por ela. — Depois, se desejar, volte para conversar com
sua amiga, tenho que me encontrar com alguns conselheiros e acenar para alguns visitantes
importantes. — Expedia ofereceu sua ideia, ao levar a mão para a cintura de Umbra.
— Mas… eu quero passar mais tempo com você — admitiu, sem se importar com a
plateia ou com a sua amiga que poderia ouvir.
— Encontre-me na zona de torneios, perto do porto. Liriana pode te levar lá. Tenho
certeza.
— Posso! — Liriana se prontificou. — Eu aproveito agora, dou um tempo de descanso
para o meu ajudante e quando você voltar, a gente dá uma volta e te devolvo para a rainha sã e
salva.
Depois de um acenar entre Umbra e Liriana, o casal ainda não oficial retornou o
tranquilo caminhar da rua larga que terminava no porto perto das grandes rochas que pareciam
ajudar a sustentar toda a incrível estrutura. Novamente, Umbra sentiu os olhares sobre elas e
tentou evitar o incômodo de ser o centro das atenções, durante um bom tempo de sua vida era
exatamente o que representava, mesmo escondida sob panos negros, úmidos pelo suor e fétidos
pela falta de lavagem. Por alguns segundos, ansiou pelo tecido cobrindo sua pele e suas
cicatrizes.
— Aqui estamos! — Expedia avisou, ao parar em frente a uma barraca, onde atrás dela
a vista para areia rosada, o mar manso e pequenas embarcações, que abrigavam pequenos grupos
e alguns casais, conseguiam acalorar ainda mais a beleza de todo o festival.
A barraca continha um cheiro forte de peixe e frutos-do-mar. Uma bancada de madeira
coberta por um tecido azul detinha rasos barris que guardavam os peixes em água fresca e quase
congelada para que o produto não apodrecesse com mais rapidez. Mas também havia peixes
maiores pendurados por cordas nas hastes da estrutura e, neles, ervas com incenso de cheiro forte
para espantar qualquer inseto que pudesse se aventurar ali por perto. Uma invenção dos Luares
comercializada por todos os territórios, assim como as ervas que se misturavam na água que
estavam os peixes mortos. Uma mistura vinda de Temperas e Gelidus, uma região muito bem
demarcada e dividida pelos povos Luares e Solares. O composto dessas ervas, em doses bastante
meticulosas, poderia deixar a água quase com uma camada fina de gelo sobre sua superfície,
deixando-o à temperatura bastante baixa e ideal para que os peixes pudessem ficar dias e dias
sem estragar. Enrolada à borda da barca, sobre as cabeças de quem se aproximava demais, uma
gigante rede de pesca ainda úmida pingava em alguns pontos, formando uma pequena
concentração de poças no chão.
Atrás da bancada, três pessoas, sendo combinadas por um homem e duas mulheres,
trabalhavam arduamente para atender os clientes e também supervisionar os alimentos assados
sobre uma armação retangular de ferro e metal fundido, contendo lenha dentro dela e uma chapa
de metal sobre a mesma, assegurada por quatro pernas de madeira que ficavam na altura dos
quadris de uma pessoa adulta. Talvez um pouco baixa para Umbra, já que era mais alta do que a
grande maioria dos Solares, inclusive os homens, mas com a massa muscular infinitamente
inferior. Seus braços eram esbeltos, enquanto os de Expedia eram… vamos apenas dizer que a
mutana adorava a musculatura desenhando-se perfeitamente sobre a pele cor de oliva.
— AAHHH! Nossa cliente predileta! — O homem magro de cabelos longos brancos
que iam até os ombros sorriu abertamente em seus dentes levemente amarelados pelo tabaco. —
Como está, minha rainha? — Reverenciou-se o súdito, colocando a mão sobre a barriga e se
curvando. — Vejo que trouxe uma companhia para provar nossa especialidade.
— Emiraldo, estou bem. Contente de me deixar sempre bem alimentada com os frutos
vindo dos mares revoltos. — A rainha sabia bajular seus súditos, tanto quanto eles a ela. — E
essa é Umbra, minha costureira pessoal e uma pessoa significativa para mim, de tal maneira que
a trouxe para provar o seu delicioso polvo.
— Ahhh, sim… Ahhh, sim, então para você e sua convidada ofereço os melhores
pedaços. Nada como novas amantes aproveitando o festival! — O homem sorriu de lado, bateu
duas palmas com as mãos cobertas com luvas de couro preenchendo todos os seus antebraços
magros, antes de se virar e puxar dois palitos fincados em tentáculos vermelhos. — Aproveitem!
Umbra e Expedia sorriam polidamente para o homem e assim se viraram, onde
caminharam para perto da areia. A mutana percebeu quando um dos guardas entregou quatro
moedas para o dono da barraca, que satisfeito aceitou e as jogou dentro da pequena caixa
localizada dentro dos dois barris.
Com um sorriso nos lábios, sentindo o frescor da maresia roçar a sua nuca, Umbra
mordeu a ponta do tentáculo, puxando-a levemente com os dentes, levando assim um pequeno
pedaço para a sua boca. Mesmo com a textura um pouco borrachuda para o seu gosto pessoal,
não podia negar que estava uma delícia.
— Você tinha razão, minha rainha. É muito bom. Tem uma leve ardência que é
bastante gostosa. — Umbra comentou, virando o rosto para Expedia, que estava ao seu lado
deliciando-se com o seu alimento.
A rainha sorriu, jogando-a uma piscadela.
Expedia observou em volta e mesmo que os olhares ainda passassem sobre elas, seus
guardas conseguiram arranjar um espaço onde pudessem ter um mínimo de intimidade e uma
troca de conversa baixa. Constatou que apreciava seus momentos junto a Umbra, não apenas os
sexuais, mas os debates que poderiam ter.
— Em geral, tenho bom gosto para as coisas. Bem, para quase tudo. — Admitiu a
rainha.
— Quase tudo?
— Por vezes, penso que algo é bom para mim ou para o reino e, bem, simplesmente
não é… — Havia um certo conflito interno dentro de Expedia ao revelar isso.
— Tudo bem se você se enganar uma vez ou outra. Não é necessário buscar a perfeição
sempre. — Umbra proferiu.
— Sempre buscam isso de mim.
— E você sempre entrega a sua perfeição para elas. Se é o suficiente ou não, é algo que
não depende totalmente de você. Assim como em seu âmbito íntimo.
Uma risada rouca saiu dos lábios de Expedia, enquanto Umbra puxava mais um
pequeno pedaço do tentáculo.
— Acho que você pode ter razão, minha querida convidada, acho que dentre as coisas
que aconteceram recentemente, você foi uma das poucas que foram boas — confessou Expedia
sem querer parecer muito dependente do seu amarrar sentimental em direção a Umbra.
E diferente da risada da rainha, um sorriso tímido surgiu nos lábios da mutana.
— Eu espero sempre poder suprir suas expectativas, sei como você gosta de tudo nos
mais altos padrões.
— É como eu governo e é graças a isso que o reino dos Solares prospera. Ainda que
talvez não tenha olhos em todos os lugares. Mas fique tranquila, Umbra, você está dentro desse
padrão, principalmente em meu particular.
— Alegro-me em ouvir isso, minha rainha. — E a mutana se curvou levemente.
— Acho que estou ficando mole com você, Umbra.
Voltaram seus olhares para o mar tranquilo a alguns metros à frente, trocando palavras
e pequenos relatos de histórias vividas principalmente por Expedia, infelizmente, Umbra não
poderia contar nada sobre ela e, bem, mesmo que pudesse, havia muita coisa que ainda não
estava preparada para dizer, muitas dores que ainda permeavam de maneira tão dolorosa,
semelhantes às dores físicas que sofreu em sua vida. Claro, episódios positivos e leves
aconteceram, mas nada equiparado a quando Expedia enfiou-se dentro de uma caverna e ficou
intoxicada com o cogumelo junto com outras duas soldadas confiáveis, onde simplesmente
tiraram as roupas e passaram a madrugada no lago perto da cidade de Nebulas, lugar em que o
céu da noite parecia ser ainda mais latente e próximo da terra do que em qualquer outro. Mas
Umbra ouviu com prazer nítido o deleite de Expedia em contar suas aventuras e, especialmente,
quando se viu verdadeiramente apaixonada pela Lua.
— Se o tempo permitir, gostaria de levá-la para alguns lugares, algo me diz que você
não os visitou. — Ofereceu a rainha, após finalizar seu último pedaço do delicioso tentáculo
vermelho. — O que me diz? Prometo não ser uma companhia entediante, claro, desde que eu
tenha uma boa cama para que eu possa recostar, tudo bem, posso me contentar com boas
almofadas também.
— Tenho certeza de que sua companhia seria a melhor possível e, se pudesse, dividiria
as almofadas com você. Eu adoraria, claro, se ainda desejar estar ao meu lado.
Umbra tinha visitado quase todas as cidades já existentes dos dois reinos, mas nunca
tivera a oportunidade de conhecê-las, já que ficava estritamente dentro dos arredores do circo.
Sua estranheza poderia chamar a atenção e olhares para seus pais e o circo. Mesmo que suas
apresentações fossem um verdadeiro sucesso, quase ninguém acreditava que um ser poderia se
transformar em um lobo gigante, muitos achavam que era um truque, uma substituição e talvez,
nesse momento em que Umbra vivia era melhor que continuassem a achar assim.
— Eu começo a desejar mais veemente a cada dia, apenas não me decepcione, não se
torne um erro, não gostaria que você entrasse na minha gigantesca e próspera lista de decepções,
estou cansada disso. — Expedia disse com o seu traço soberbo difícil de ser quebrado.
Umbra engoliu seco e molhou os seus lábios com a língua. Respirou fundo e olhou para
suas botas afundadas na areia, por um momento tentou experimentar a sensação em seus pés.
— Não quero que isso aconteça.
Voltou com o olhar marejado para Expedia. Como era lindo o cabelo rebelde
esvoaçando levemente pela brisa do mar, os fios teimavam em esconder as bochechas com as
leves sardas da rainha e Umbra segurou com todo o seu poder não se colocar a chorar perante a
imagem quase celestial da guerreira.
— Eu também não. — Expedia confessou, virando o seu corpo para Umbra, que logo
fizera o mesmo.
Assim, beijou-a levemente nos lábios sem se importar com a plateia que poderia estar
ali, assistindo ao afagamento entre duas novas amantes. Expedia nunca fora uma mulher tímida,
ao contrário de Umbra que sentiu suas bochechas esquentarem, mas estar sob a atenção da rainha
a fizera esquecer da movimentação em sua volta e apenas aproveitou os lábios sobre os seus.
O carinho não durou mais do que alguns segundos, pois Expedia se afastou e com um
sorriso brilhante e mais uma piscadela, falou:
— Agora, eu devo ir, minha convidada e você vai até a sua amiga. Nos encontraremos
mais tarde.
— E quanto ao nosso passeio? — A pergunta inquietante veio dos lábios de Umbra.
— Eu vou te dar, eu apenas quero me livrar dos conselheiros e dessas pessoas. —
Expedia bufou. — Infelizmente, tenho que me dividir em muitas, mas prometo que depois
passarei uma tarde tranquila com você e podemos selecionar alguns itens para o seu quarto.
Porque tenho certeza de que não fará isso sozinha.
— Certo. — Concordou Umbra, mesmo relutante em se afastar de Expedia.
Desse jeito, cada uma foi para um lado e a mutana quase desistira de sua nova amiga,
sua vontade era de ficar junto a rainha, as ocasiões que conseguiam estar presentes uma com a
outra nunca eram o suficiente, ao menos não para a Umbra.
Mal sabia ela que a rainha sentia a mesma coisa, pois enquanto andavam em direções
opostas, Expedia olhou para trás, mirando seus olhos quentes para o corpo esbelto de Umbra,
mas deveres deveriam ser cumpridos e, mais tarde, passaria a noite com a sua convidada,
finalmente dormiria com ela. A primeira vez desde que Umbra apareceu em sua vida.
Isso era significativo e Expedia queria isso.
Capítulo Quinze
A besta e a morte

Umbra retornou para a sua amiga com o humor levemente depreciado, mas não durou
muito tempo, pois assim que Liriana a viu, um novo abraço foi concebido.
Era incomum na vida da mutana receber afagos, estranhava a forma como a sua nova
amiga a tratava. Victorie havia a abraçado apenas uma vez e foi um tanto desconcertante, mas
bem-vindo, receber o carinho, pois pôde afogar sua mágoa recém-criada em seu ser. Umbra tinha
acabado de ter seu coração quebrado por uma jovem trapezista que abandonou A Boca do Lobo.
Uma paixonite ridícula e emocionada, mas que lhe rendeu beber uma garrafa inteira de destilado
e o abraço de seu Victorie.
Umbra sentia que havia abandonado completamente o seu único amigo, ela deveria
estar por aí procurando-o, se certificando de que ele estaria bem, afinal Victorie salvou a sua
vida. Mas os dias passaram e sua preocupação foi isolada por todos os estímulos novos que sua
vida recebia. Por alguns momentos, quando Victorie povoava sua mente, de maneira proposital,
tentava-o isolar. Justamente para não pensar sobre isso. Era de um extremo egoísmo sem fim e
Umbra não merecia estar recebendo o tratamento que tinha, por fazer tal ato tão mesquinho. Era
a primeira vez em anos que se sentia genuinamente em paz e arriscava dizer que até mesmo feliz.
Os pesadelos não a acompanhavam com tanta frequência, estava comendo bem, conhecendo
pessoas interessantes, recebendo um salário que certamente nunca pensou em ganhar em toda a
sua existência, um trabalho que parecia ter significado e a cada instante que passava deparava-se
em estar mais e mais encantada pela sua rainha.
Ela até tentou buscar o seu amigo, uma procura porca e sem muito afinco. Perguntou
para Nimala se ela sabia de alguma informação que pudesse lhe ajudar a encontrar pistas sobre
ele, mas a velha Luares reafirmou não saber do paradeiro de Victorie. Infelizmente, sendo ele
um Luares, os soldados não estariam muito preocupados com o desaparecimento dele. Tentou
sondar até mesmo um, indagando-o se algum Luares havia sido preso, mas nenhum havia sido
capturado.
Tudo o que restava para Umbra era torcer para que seu amigo estivesse escapado.
— Minha criança, eu sei que pareço ser alguém com respostas infinitas para tudo. Mas
o reino é imenso, assim como a capital. Infelizmente, não retenho todas as respostas.
A fala de pesar ressoou em sua cabeça.
— Ei, está tudo bem? — Liriana perguntou, tirando-a de seus devaneios que quase
constantemente invadiam sua mente.
As duas andavam lado a lado, circulando a praça principal para adentrarem uma das
ruas, onde os bardos ainda continuavam a cantar na esquina. Pelas Deusas, como aguentavam
tanta cantoria?
— Hmmm… Eu tinha um amigo e eu acho que ele iria gostar desse festival. —
Comentou casualmente, mas foi difícil segurar um pouco de sua voz trêmula quando seu queixo
tremeu. Ela era uma péssima pessoa, um ser terrível. Claro que ela era, afinal dentro de si residia
a terrível fera.
— E por que ele não veio?
— A gente se perdeu. Infelizmente, eu fiquei muito doente e a rainha me ajudou. Nesse
meio tempo, eu não sei para onde ele foi.
— Ele poderia ir até você.
— Acho que ele não sabe onde eu estou também. Nossa última conversa foi
bastante…
Umbra não sabia como direcionar a palavra certa para a sua nova amiga.
— Eu entendo. Olha, mas se serve de acalento, muitas vezes, há certas coisas que
acontecem por um motivo. O rompimento de vocês pode ter sido ocasionado por algo além do
controle de vocês.
— Você acredita nisso? — Umbra perguntou, ao parar no meio da rua.
Liriana pegou o seu punho delicadamente, puxando para perto dos prédios. Colocaram-
se entre uma barraca e outra, o movimento das pessoas transitando na rua estava bastante
exacerbado e parar assim no meio dela poderia causar algum tipo de insatisfação por estarem
bloqueando o caminho, ou pior, serem arrastadas pela multidão, isso já havia acontecido com
Liriana, talvez uma ou duas vezes.
— Sim.
— Mas, e se eu não fiz o suficiente? — Umbra voltou com outra indagação, desta vez,
aflita e com os olhos cheios de lágrimas.
— E se você fez? E se você fez aquilo que você conseguia fazer? Umbra… — Liriana
suspirou. — Eu sei que seu passado não foi fácil, eu posso ver pelas marcas que carrega, não são
apenas as físicas que pelo pouco que vejo… — Os olhos negros remoeram os ferimentos no
pescoço quase prateado.
Ao perceber tal ação, Umbra levou as mãos para a pele machucada, na tentativa de
escondê-las, o constrangimento começava a apanhá-la com força.
— Não, não as esconda — sussurrou Liriana, ao pegar as mãos da amiga e apertá-las
levemente em um gesto carinhoso, tirando-as assim da pele cicatrizada. — Dê uma chance para
você, Umbra. Existem coisas mal resolvidas em nossas vidas e que talvez nunca irão, de fato, se
finalizarem, nada é fácil como dizem. Nós somos seres passíveis a erros e acertos e isso não nos
faz maus ou bons, mas aproveite o que você está tendo agora. Eu sei que muitos não devem ter
sido afáveis com você e sinto muito por isso. Mas não se cobre tanto
E desta vez, foi Umbra que reuniu Liriana em um abraço feroz, antes de seus ombros
tremerem e um choro quieto se esvair de seu corpo. Era de uma compaixão inebriante o que
estava sendo oferecido. A mutana nunca havia provado uma bondade como aquela, era único,
estranho e achou que não a merecia. Contudo, sua amiga, aceitou-a com um entendimento que
jamais pensou que alguém pudesse ter. Ela mal conhecia Liriana, mas reunia um respeito e
afeição genuína pela Solares.
As duas se separaram e sorrisos foram trocados.
— Agora me diz… — A animação voltou na voz da Solares. — Há algo que viu pelo
festival que você queira?
Umbra fungou, antes de oferecer uma risada curta.
— Para mim nada, mas ainda estou à procura do broche perfeito para a minha rainha.
Estou finalizando a peça que fiz com o tecido que comprei com você e só falta isso. O toque
perfeito.
— Ahhhh… — O sorriso gentil se transformou em um malicioso. — Sei muito bem do
toque perfeito que está falando aí…
Okay, desta vez um riso carregado saiu da boca de Umbra, um som quase não
conhecido por ela, mas descobriu que gostava de usá-lo. Era uma sensação gostosa de perder o ar
com tal ação, pois vinha de uma emoção que desencadeou através do prazer da companhia de
quem gostava.
— Eu estou falando sério. — Tentou ser firme, ainda que sem muita validação pelos
rastros da risada.
— Eu sei, eu sei… — Liriana levantou as mãos para cima, antes de levar o dedo
indicador à boca. Ela voltou para o meio da rua e deu algumas meias-voltas em seu eixo,
mexendo o seu tronco de um lado para o outro. — Por aqui! — Apontou para a esquerda,
justamente para o caminho que estavam percorrendo. — Acho que no final da rua, se nada
mudou desde o ano passado, há uma tenda perfeita para o que você está procurando. Você vai
amar!
E antes que Umbra pudesse falar qualquer coisa, Liriana a pegou pela mão e a puxou
forte o suficiente para o corpo da mutana se projetar para frente. Deu alguns passos rápidos e
exagerados, antes de começar a se apressar atrás da amiga. Quando chegaram no final da rua, de
fato, tinha a barraca com um expositor de madeira revestido por um tecido de veludo acolchoado
por penas, as peças e as joias eram expostas em pequenos pregos para que pudessem ser vistas
pelos curiosos que passavam por ali. Em pé, ao lado do expositor fixado por um prego maior,
uma mulher baixa e de pele morena com um brinco preso em sua narina esquerda e com
inúmeros cordões ao redor de seu pescoço fino se aproximou das duas novas potenciais clientes e
sorriu.
— Ahh, vejo que ficaram curiosas com as iguarias vindas das regiões frias dos Luares.
— A mulher proferiu, ao oferecer um sorriso orgulhoso. — Temos o melhor que qualquer um
pode oferecer.
Umbra observou a mulher levantar a mão e apontar para as joias, as pulseiras de pedra
e metal que a Luares usava sacudiram-se contra as argolas que preenchiam grande parte de seu
antebraço direito.
Tomou um passo à frente e a mulher logo saiu de seu caminho, os olhos treinados e
brancos da mutana passaram pelos diferentes estilos de joias. Entre cordões, anéis, brincos,
pulseiras, coleiras e por fim… Ah, Umbra encontrou abaixo do expositor, um tapete vermelho
com inúmeros porta-joias e lá estava o que sempre quis, desde o primeiro dia que se tornou a
costureira da rainha.
Agachou-se e com delicadeza pegou a caixa de madeira lustrosa, lá dentro,
descansando sobre a almofada de veludo negra, o broche que tanto procurava finalmente a
achou.
A peça era redonda, do tamanho da palma de sua mão, cravejada em sua metade em
pequenas pedras amarelas com espigões saindo por ela, acompanhando assim o mesmo tom, na
outra metade a cor da pedra era substituída por um prata-escuro. A representação do sol e da lua.
— Devo dizer que é uma peça ousada. Não são muitos que vestem a dignidade e a
coragem para ter um símbolo como esse exposto em qualquer lugar. — A voz da mulher soou
atrás dela.
Umbra olhou para cima antes de se levantar com a caixa segura em mãos. Ela fechou a
tampa com cuidado e entregou para a vendedora.
— Levarei.
— Menina, tem certeza? — Avisou a mulher, mas ainda assim, colocou a caixa dentro
de uma bolsa vermelha escura. — Pode atrair muitos olhares confusos.
— Ou olhares destemidos, nem tudo precisa acabar em ódio perante elas.
Referia-se às Deusas Irmãs e Mães de todos.
A vendedora tentou esconder um pouco de seu sorriso, enquanto amarrava a corda fina
sobre a boca da bolsa.
— Definitivamente, é uma das minhas. — Assim entregou a bolsa.
Umbra usou a corda para prender no espartilho e retirou de dentro dele uma pequena
sacola roxa lotada de moedas. Colocou-a na palma de sua mão e a abriu, antes de olhar para a
mulher.
— Quanto lhe devo?
— Oito moedas de ouro Sóis ou doze de prata Luas.
Umbra virou a pequena sacola e as moedas caíram devagar na mão desocupada.
Quando finalmente chegou a sete moedas, fechou três dedos contra a palma da mão segurando-as
todas e enfiou o polegar e o indicador dentro da sacola para, por fim, pegar a última moeda.
Ela levou as moedas para a mulher, que com certa gratidão, aceitou-as. Sequer
conferiu, pois enquanto as moedas caiam na palma da mão de Umbra, pudera contar
corretamente a quantidade.
E assim como a barraca do pesqueiro, a mulher de joias extravagantes e de brinco preso
ao nariz, levou sua pequena riqueza para dentro da caixa, onde outras moedas já aguardavam as
novas chegarem.
— Acho que a rainha ficará deslumbrante com essa peça — comentou Liriana após as
duas se afastarem da barraca e andarem a esmo pelas ruas e praça da cidade.
— Terá a grandiosidade dela, uma linha tênue do que ela gosta de ser representada. —
Falava enquanto se assegurava pela segunda vez se o nó feito em seu espartilho estava bem
preso. A última coisa que queria era perder a joia que lhe custou um bom número de moedas.
— E o que seria? — Liriana indagou, ao pegar uma maçã dada por alguém de alguma
barraca aleatória.
— Respeito e temor.
— São traços que uma rainha deve ter, não é?
Sua amiga mordeu o pedaço da fruta e logo depois, ofereceu para Umbra.
Umbra negou com a cabeça.
— Não sei — respondeu com a sinceridade que a mutana continha. — Penso que ela
possa querer desejar projetar isso.
— Bem, eu não sei o quanto você sabe do reino, mas Expedia assumiu-o quando ainda
tinha apenas dezoito verões. Hoje ela acumula trinta e cinco, infelizmente, durante anos, ela teve
que comandar com bastante cabresto e cuidado, seu pai, o rei Martin, não era tão zeloso quanto
ela e nem mesmo respeitado. Apreciava guerras sem sentido e um pouco de barbárie. Os Solares
sempre foi um reino de grandeza, mas Martin escolhia métodos não muito pacíficos.
Informações novas que nem mesmo Expedia dividiu com ela. Claro que a história
contada pela perspectiva de uma súdita poderia mudar bastante, mas desejou que a rainha
pudesse relatar o seu lado da narrativa.
— Creio que ela prefira ser mais diplomática, ainda que resguarde um rancor pelos
Luares. — Umbra expressou seu pensamento em voz alta, enquanto seus olhos se perdiam em
dois homens erguendo imensas canecas de madeira para logo em seguida derramarem para
dentro de suas bocas cobertas por barbas.
A mutana nunca poderia beijar um rosto cheio de pelos, parecia incomodar
exageradamente.
— Assim como eles da gente. Algo completamente sem sentido que os motivos reais se
perderam por muito tempo. Isso me dá um pouco de dor de cabeça. É sério.
Umbra abriu um pequeno sorriso e assentiu positivamente.
— Você soa como uma das servas que trabalha no castelo.
— Uma mulher bastante inteligente, então?
— Com a mais absoluta certeza. Ela é uma mulher fantástica. — Umbra concordou. —
E você, Liriana? A loja está indo bem como você disse?
— Sim! — A animação ressoou na voz de sua amiga. — E depois de hoje, com vocês
parando em minha barraca, a tendência é aumentar ainda mais. Durante algumas semanas o reino
fica mais cheio, o que vai ser ótimo para juntar um bom dinheiro. Fazer encomendas
diferenciadas e assim trazer para Estrelares. Estava pensando em ir até mesmo para Gelidus, uma
zona neutra onde posso comprar de Luares. Além disso, nunca fui. Dizem que é lindo.
— Está enérgica, isso é bom. Torço por você. — Disse sinceramente, enquanto
desviava de uma criança que passava entre elas com uma velocidade formidável e, em suas
pequenas mãos, segurava uma linha fina que, conectada a ela, uma pipa em forma de borboleta
dourada planava em cima de sua cabeça.
Liriana deu de ombros, antes de jogar o restante da maçã em um tonel de madeira perto
de uma barraca e logo em seguida, esfregar as mãos na calça bufante que usava.
— Minha vida sempre foi… parada. Eu nunca tive nenhum sonho ou objetivo, acho
que perdi muito tempo nas opostas e não pensei em um futuro. A loja nunca foi algo que quis ter,
eu a herdei, mas pela primeira vez, sinto que posso usá-la para poder viajar e trazer coisas novas
para cá. Explorar. Nunca saí daqui, não sei, talvez explorando possa encontrar algo ou alguém,
quero achar algo que possa me fazer completa, ou ao menos, com um objetivo. — E um suspiro
foi dado pela sua nova amiga.
— Eu entendo você. — E era verdade. — Eu nunca tive sequer um sonho, uma
vontade e ainda não sei qual é o meu caminho. Me sinto perdida e assim como você, quero
também me sentir preenchida. A única coisa que conquistei foi sair de onde eu estava. Não era
um lugar bom e nunca achei que conseguiria sair. Não há nada pior do que não ter esperança, a
perspectiva que nada irá acontecer em sua vida. Eu quase desisti.
Liriana pegou a sua mão e ambas pararam debaixo de uma linda árvore de folhas
vermelhas e amarelas. Onde elas estavam, o festival não chegava tão latente, havia poucas
barracas e a rua estreita se cercava por poucas casas, diferentes daquelas que se aproximavam
mais da praça.
— O importante é que você não desistiu, continuou. Você pode não saber o que quer,
assim como eu, mas agora temos possibilidades e isso já é alguma coisa, não é?
Umbra considerou aquela fala, Liriana não estava apenas falando aquilo para ela, mas
para si mesma. Ali, ela reconheceu que começava a gostar da sua nova amiga, uma pessoa que
poderia começar a confiar, confidenciar segredos e inseguranças. Liriana estava longe de ser uma
julgadora e era exatamente o que Umbra precisava.
— Sim, já é uma grande coisa.

∞∞∞
Voltando para uma das ruas principais, as duas amigas caminhavam rente à praia e em
direção ao porto. Mesmo que estivesse tendo um maravilhoso momento com Liriana, tudo o que
a mutana desejava era retornar para a atenção que a rainha prometeu que lhe daria. Estava ávida
por isso e ansiava que após o passeio pudesse se recolher com Expedia para o quarto. Desejava
se perder mais uma vez no corpo firme e quente da rainha e ter pensamentos como esses apenas a
fez acelerar ainda mais suas passadas. Por ser uma mulher alta e Liriana tendo pernas mais
curtas, sua amiga teve que praticamente correr ao seu lado para conseguir acompanhá-la.
Umbra não deu tanta atenção para o porto como achava que iria, talvez por sempre
acordar e conseguir olhá-lo ou simplesmente por sua necessidade de chegar mais depressa ao
encontro da rainha. Mas ele continuava cheio e pessoas se desviavam uma das outras para
conseguirem ter acesso a rua. Percebeu que tecidos estavam pendurados no teto da construção e
que o brasão do Sol orgulhoso de cor amarela e laranja tremulava sobre o vento gostoso da
maresia.
Ao virarem para esquerda, um imenso espaço se abriu e perto do morro que ainda
abraçava o porto, a mutana vislumbrou uma aglomeração de pessoas.
Aproximando-se do local, percebeu que estava chegando perto de uma espécie de arena
rodeada por cercas baixas de madeira, um octógono, onde as pessoas circulavam em sua volta e
gritavam animadas, enquanto levantavam seus braços em gritos excitados. De onde Umbra
estava percebeu que a rainha estava do outro lado da arena, sentada em uma arquibancada
pequena e estreita. Seus olhos não estavam concentrados no centro do octógono e sim em um
homem que gesticulava com certo fervor, certamente não satisfeito com o que a rainha havia lhe
dito antes. Umbra chegou mais perto e pôde perceber dois homens dentro do octógono.
Eles lutavam em punhos com ataduras e apenas de bermudas folgadas. O sangue e o
suor, junto a areia batida, se acumulavam nos corpos masculinos e no chão. Pareciam cansados,
fadigados. Um deles estava em postura defensiva, com os cotovelos dobrados e as mãos bem
próximas a têmporas, enquanto se protegia da sequência de socos do imenso homem ruivo que
batia sem qualquer pudor. Seu rosto estava praticamente desconfigurado, aparentemente, o que
estava em modo de defesa, havia humilhado o suficiente para que reagisse em algum tipo de
revanchismo.
— Acabe com o Luares! — Alguém gritou perto de Umbra, fazendo-a arregalar os
olhos e empurrar uma das pessoas que estava em sua frente.
Ela se debruçou sobre a cerca e olhou para a cena que se desdobrava em sua frente.
Quando o próximo soco invadiu o espaço do homem que estava se defendendo, o ruivo
Solares — julgou Umbra —, enganou-o, dando-lhe assim uma rasteira. O homem foi ao chão e
quando se colocou sobre os seus cotovelos, a mutana o reconheceu.
VICTORIE!
Umbra arfou e todo o seu corpo vibrou em adrenalina. Seus braços se juntaram firmes
perto da lateral de seu corpo e seus seios pressionaram quase que dolorosamente contra a cerca
de madeira.
Seu amigo parecendo ouvir seu grito interno a olhou. O rosto ensanguentado e com o
olho esquerdo bastante inchado e debilitado procurou-a desesperadamente. Ele ergueu a mão em
sua direção, em um pedido nítido de ajuda, mas os músculos de Umbra simplesmente travaram
no lugar, sua reação chegou tardia, pois o homem ruivo chutou a sua cabeça com tanta força que
Victorie perdeu o equilíbrio em seus cotovelos e caiu desacordado.
Victorie tinha as habilidades de prever segundos no futuro, tinha a plena capacidade de
enxergar o próximo movimento das pessoas, mas seu amigo parecia estar tão cansado que a
probabilidade de seu talento estar debilitado era grande.
O juiz estava prestes a abrir o portão para finalizar a luta, mas o Solares não parecia
satisfeito com a finalização do combate. O homem ruivo grande e corpulento como um urso
levantou o seu pé ao encontro do rosto de Victorie. Várias e várias vezes. Os gritos eram
ensurdecedores, eles estavam comemorando o flagelo de alguém e o juiz simplesmente congelou
em meio ao assalto violento.
Algo dentro de Umbra tremeu, sua besta.
— NÃÃÃO!! — Ela urrou em uma ferocidade gigantesca que todos voltaram a olhá-la,
até mesmo a rainha.
Umbra pulou a cerca com grande facilidade e foi em disparada contra o homem
gigantesco que acabava de assolar o seu amigo. A descarga de força foi tão grande, que um
grunhido foi dado e quando suas mãos encontraram o peito peludo, suado e sangrento do Solares.
O homem simplesmente voou para o outro lado do octógono, destruindo uma parte pequena da
cerca.
A mutana conseguia sentir seus caninos levemente prolongados, enquanto sentia toda
sua musculatura remexer dolorosamente dentro de seu corpo. Se ela não se acalmasse, se
transformaria na frente de todos e sua vida estaria por um fio. Sua boca formigava, a vontade de
afundar os dentes no brutamontes foi gigantesca, contudo, havia outras prioridades. Ela abaixou
a cabeça para que ninguém pudesse ver e se virou para encarar o amigo que se engasgava no
próprio sangue.
Umbra simplesmente se jogou no chão e o recolheu em seu colo.
— Não, não… por favor — sussurrou, enquanto tremia em desespero e as lágrimas
brotavam em seus olhos.
Mordeu dolorosamente a sua própria língua, até que seus caninos pudessem voltar ao
normal.
— Um–
A voz afogada de seu amigo a fez procurar pelos seus olhos semiabertos, mas eles não
pareciam se centrar em um só lugar, o pobre homem tentava se manter acordado ou lúcido. Na
realidade, estava empenhando-se para manter a vida dentro de seu ser, mas não iria conseguir,
não era forte o bastante.
Ela olhou para cima, tentando em um ato desesperado procurar por ajuda e tudo o que
encontrou foi o verdadeiro pandemônio em sua volta. Sua amiga a olhava assustada e confusa
pela ação que acabara de fazer, sentiu que Liriana queria ajudar, mas ali, entre os Solares, ela
poderia perder muita coisa.
Voltou seu olhar para o amigo e mais lágrimas brotaram de seus olhos brancos.
— Eu sinto muito… Eu sinto muito… Eu sinto muito… — Repetia as palavras como
uma prece às Deusas, enquanto embalava o seu próprio corpo e o do amigo.
Com grande dificuldade, ele ergueu a mão e levou o dedo indicador ao centro de sua
testa, manchando-a com sangue, a pintura escarlate estava no mesmo local, onde sua meia-lua
sempre era vista quando se transformava na terrível fera que emanava poder e ruína.
Um sorriso vencido desenhou nos lábios de Victorie, antes de seu braço bater forte
contra a areia compacta.
Umbra chorou, embalando o cadáver de seu amigo e continuou assim, mesmo depois
de ouvir a voz da rainha soar atrás dela.
— JÁ BASTA!!! — Expedia berrou entre os pulmões e todos ficaram em silêncio, até
mesmo o choro de Umbra aquietou-se. — É PROIBIDA A LUTA ATÉ A MORTE!! — Ela
urrou ferozmente, chutando o portão da arena.
Expedia pegou o juiz pelo colarinho, desferiu um soco doloroso e o empurrou para fora
do octógono.
— A PARTIR DE HOJE, ESSA MERDA ACABA AQUI!!!
A rainha não parecia ter acabado por ali, marchou até o grande homem que estava
ainda tentando se colocar de pé e o pegou pelo cabelo ruivo. Levou o rosto para perto do seu e o
homem Solares paralisou pelo medo.
— Quer ser confundido com as barbáries que os Luares praticam?! Quantas vezes
repeti que jogos que findam a vida de outro são proibidos? — Disse entre os dentes, enquanto
apertava o couro cabeludo do Solares, que lutava para não fazer qualquer careta, não iria ferir o
seu orgulho.
O homem nada falou.
E então o seu rosto que antes estava a centímetros da rainha, foi ao encontro do joelho
duro e musculoso dela. Certamente, os dentes foram perdidos.
— Eu não ouvi! Você quer ser confundido com eles?
— Nã... Não… — A dificuldade da fala veio, já que a boca estava como uma nascente
de rio, expulsando, ao invés de água, sangue rubro.
— Eu lhe avisei, Uriel! — Expedia jogou o Solares no chão e desta vez, ele ficou.
Jamais ousaria se levantar dali. Ela se virou para o homem que antes estava discutindo. — É
proibida a luta entre um Luares e um Solares dentro das minhas terras!
Uriel, o dono da arena, se aproximou do portão baixo.
— É tradição? Seu pai-
— Meu pai está MORTO!! Foi por causa dessas tradições estapafúrdias que a vida dele
se findou. Vocês querem voltar à vida de guerra? De morte?! E a sua mulher e seu filho?! VOCÊ
QUER IR PARA A PORRA DE UM COMBATE E NÃO VOLTAR MAIS? — Expedia
brandava com fervor, enquanto seus pulmões esvaziaram-se de ar e seu rosto ficava cada vez
mais rubro.
— Foi apenas uma luta, uma casualidade, não é pra tanto. — Uriel racionalizou, mas
era um erro, mexer com a ira da rainha não era uma movimentação inteligente a se fazer.
— Casualidades levam a guerra e daqui a pouco isso não será mais uma casualidade.
— Eles nunca tiveram consideração por nós. — Um alguém da plateia gritou e os
ânimos começaram a se esquentar novamente.
— E isso significa que temos que agir como eles? — A rainha repetiu a fala que disse
para o lutador Solares. Seu corpo girou e seus olhos treinados tentaram encontrar o dono da voz
que lhe chamou a atenção na frente de todos. Infelizmente, não viu a pessoa que fez tal ousadia.
Pois se tivesse… bem, talvez fosse melhor assim. — Eu tento manter esse reino, as cidades em
harmonia. Eu não quero voltar à miséria e à morte, onde poucos tinham muito.
Uma hipócrita. Ela sabia disso. Expedia tinha mais do que todos ali.
— Mas ele é um ninguém. Quem se importa?
Umbra grunhiu em raiva. Seus dentes cerraram com tanta força que ouviu um estalo
vindo de sua mandíbula. Sua respiração ficou acelerada e profunda, o comichão cresceu em seu
peito e a criatura lutou para sair. Ela olhou para cima e viu Liriana com os olhos fixados nela.
Sua amiga respirou fundo e liberou o ar pela boca. Logo a mutana compreendeu o que
Liriana queria fazer e assim, a imitou.
— Hoje, pode ser um ninguém, mas amanhã pode estar aqui um alguém muito
importante para os Luares e algum Solares irá pagar por isso. Eu não me importo com
divertimento, mas as regras têm de ser postas e se elas não são respeitadas, o divertimento deverá
se findar. Já que a irresponsabilidade de alguns chega a ser um desaforo. Eu já repeti, Uriel, não
quero mais prisioneiros particulares, você irá pagar por isso. Acha que eu sou estúpida!
— Eu… Minha rainha, hoje era o festival, queria trazer algo diferente. Achei que
pudesse ser algo bom, se o Luares ganhasse, ele iria ter uma grande quantia de moedas na mão
dele.
— Mas o seu lutador cometeu ASSASSINATO! Nas minhas terras! Um Solares
assassinou um Luares. — Expedia levou a mão para o cabo de sua espada. Suspiros foram
ouvidos e passos de hesitação e medo foram dados para trás. — GUARDAS?! Levem-no daqui.
— A rainha mirou para o lutador que ainda estava caído no chão. — Enquanto você, Uriel, está
proibido de sair de Estrelares até segunda ordem. Isso aqui não acabou! AGORA ANDEM,
CIRCULEM!
E seus súditos fizeram exatamente isso, inclusive Liriana, que olhou uma última vez
para Umbra, antes de se despedir com um aceno tímido e um sorriso triste.
A mutana sentiu a presença da rainha em sua volta e então suas mãos firmes apertaram
os seus ombros. Não eram totalmente acolhedores, mas também não se tornaram um gesto
dolorido. Expedia queria chamar a atenção de Umbra, dizer que ela estava ali. Presente. Ao seu
lado.
— Eu preciso que você o solte e que você venha comigo. — Era uma ordem, a voz
rouca pelo vociferar tornou-se mais amena e levemente gentil.
— Não! — Atônita, Umbra respondeu, enquanto o seu corpo vibrava por inteiro.
Olhares de súditos remanescentes miraram a troca de palavras entre a rainha e a
costureira.
— Eu preciso que você venha, antes que as pessoas comecem a se perguntar porque
minha costureira está abraçada com um Luares morto. Eu não quero ter que dar explicações aos
meus súditos e isso pode ter implicações para você. — O tom continuava sério.
O misto de raiva, preocupação e incompreensão passou pela mente da rainha. Ela
queria confrontar Umbra, mas ali não era o local, não queria se expor ou até mesmo expor sua
convidada. Mas aquilo resvalaria, principalmente para o seu conselho e seu irmão.
Por que ela havia se encantado pelos olhos brancos calmos? Expedia estava bem
sozinha, não estava? A solidão deveria combinar com ela, deixava-a focada, longe de problemas
e, principalmente, fazia com que fosse a rainha que tinha que ser. Sem distrações, ela não
pensava em si e sim em sua função. Agora, uma verdadeira tempestade estaria por vir.
Capítulo Dezesseis
A compreensão de duas almas

A volta para o castelo foi silenciosa.


Durante o percurso até a entrada da morada real, a cabeça de Umbra ficou o tempo
inteiro direcionada para o chão, enquanto sentia o trotar do cavalo embaixo dela e as pernas
grossas de Expedia em sua frente. Não tinha ideia de como o equino surgiu, mas quando se deu
conta, estava montada nele com as pessoas abrindo caminho para que ela e a rainha pudessem
passar.
Quando chegou às portas principais do castelo, Nimala estava lá, junto a Ramiras e
outras servas, aparentemente, a notícia havia chegado rápido demais à morada de Expedia. Pois
enquanto desmontava do cavalo, Umbra conseguia sentir a tensão de todos, mesmo sob o estado
de letargia que se encontrava.
Continuou em silêncio, enquanto caminhava pelos corredores do castelo de paredes de
pedras polidas amarelas e cor de areia. Sentiu um desagradável arrepio passeando por sua nuca e
de repente, sentiu-se exposta, quase como se estivesse nua. A menção de levar a mão para a pele
revelada foi interrompida, quando percebeu que seus dedos estavam pintados de sangue. Ela se
engasgou, ao reconhecer que Victorie ainda estava presente em seu corpo e logo, esfregou
palmas e os dedos uns contra os outros.
Expedia estava à frente de Umbra e mesmo percebendo o desespero particular da
jovem mulher, nada fez. Foi apenas quando a rainha abriu a porta do quarto dado por ela à sua
costureira que as primeiras palavras foram desenhadas.
— Sua insolência me causará dor de cabeça, Umbra. Por muito menos, já fiz pessoas se
arrependerem por agirem do jeito que você agiu. — Expedia avisou, ao segurar o cabo de sua
espada com tamanha firmeza que o som do couro rasgou os ouvidos de ambas. Era nítido que
estava trancafiando sua raiva para não machucar a mulher parada em sua frente.
— Eu sinto muito. — Foi tudo o que Umbra conseguiu dizer com os seus olhos ainda
mirados para o chão.
— Mas eu não posso fazer nada com isso. O seu sentir não vai mudar o que foi feito.
Para dizer a verdade, apenas trará mais infortúnio para mim — respondeu com um pouco de
desdém.
Algo que Umbra não gostou de ouvir.
— Você tem razão, afinal, a morte foi inevitável. — E finalmente, os olhos brancos
calmos como o sereno da noite encontrou o olhar brilhante e lotado de calor como um final de
tarde de um verão.
— MAS QUE MERDA! — Expedia esbravejou frustrada, ao socar lateralmente o
armário que estava ao seu lado e, mesmo assim, Umbra sequer reagiu perante o movimento
violento. — Por que você precisa ser tão benevolente?! Primeiro a criança, agora aquele homem!
É a segunda vez que me exponho perante os meus próprios súditos! Por um alguém que eu nem
conheço direito. Por Luares! Talvez meu irmão tenha razão, talvez eu me encante por um par de
pernas de maneira muito fácil.
Expedia estava tendo a sua própria batalha interior, não fazia ideia de como resolveria
a raiva que estava sentindo e o desaponto do fracasso em que a mesma se achava agora.
— E você queria que eu o deixasse sangrar? Sem qualquer dignidade?
— Ele era um Luares, por que você se importa tanto?
— Você mesmo disse, minha rainha, lá fora, para evitar guerras.
— Sabemos que não é isso, não é mesmo? Não me faça de idiota como Uriel tentou
fazer — brandou ainda frustrada. — Eu ajo assim por diplomacia e você? Pelo que você age? —
Expedia perguntou com certo desprezo e a soberba da rainha dos Solares. — Certamente não é
para proteger um reino inteiro de guerra. Eu não sou tão ingênua assim, cara costureira.
A ironia dentro das palavras machucara a mutana, mas achou melhor ignorar e Expedia
pôde ver isso nos olhos brancos, que estavam cada vez mais difíceis de negá-los. Seria muito
mais fácil se Umbra fosse apenas uma Solares, uma mulher comum que pudesse apenas se
divertir, mas não… havia algo, algo que Expedia não sabia apontar o que a deixava tão absorta
naquele ser.
— Porque o flagelo que ele estava sofrendo poderia ser semelhante ao meu. — Umbra
apontou para o próprio pescoço. — A dor da humilhação me acompanha todos os dias. Imaginar
que talvez houvesse pessoas que se divertiam enquanto isso acontecia comigo. — Em um súbito
de adrenalina, segurou a manga esquerda de sua blusa e a puxou com raiva, fazendo com ela se
despedaçasse em um rasgo. Logo, novas cicatrizes desenharam-se perante o olhar atento de
Expedia. — Talvez, as pessoas que fizeram isso comigo estivessem rindo, se excitando ao me
verem chorar sem qualquer esperança. Você iria rir também, minha rainha?
Tal feito surpreendeu um pouco a rainha. Era a primeira vez que via Umbra perder um
pouco a típica tranquilidade que Expedia se amarrava cada vez mais. A rainha engoliu seco e sua
boca entreabriu levemente, ela foi desafiada pela costureira calma e reflexiva. Afinal, havia fogo
dentro dela.
— O quê? Não… não seja descabida, isso não tem qualquer sentido.
— Claro que tem. Eu era propriedade de alguém, você viu a coleira, viu o que fizeram
com o meu corpo.
— Você se lembra de alguma coisa?! — Novamente, a exigência na voz da rainha.
Umbra precisava mentir, precisava pensar, mesmo sob a tristeza terrível que sentia.
Talvez, ela pudesse sair morta dali, mas seu instinto gritava por sobrevivência. Ela havia
experimentado o que era a liberdade e não desejava que isso acabasse. Sua culpa diante da morte
de seu amigo seria mais uma cicatriz que carregaria com vergonha, mas ainda dentro dessa
possibilidade, escolheria viver. Então, se mentir fosse o caso… ou ao menos omitir, faria isso.
— Não! Mas eu sofri e ele estava sofrendo. Eu queria que aquilo acabasse, então eu
agi, eu precisava, não sei o que deu em mim, eu senti que deveria acabar com aquilo, tudo
aconteceu rápido, a força, a vontade de fazer algo. Eu apenas… não me importava se ele era um
Solares ou um Luares.
Ondas de lágrimas surgiam nos olhos de Umbra, enquanto indicava seus ferimentos
perpétuos em volta de seu pescoço e braços.
— Pessoas esperam que eu faça alguma coisa contra você, Umbra. Você protegeu um
Luares, desafiou-me perante olhos atentos. Como posso pedir algo para os meus servos e impor
regras se dentro dos meus próprios muros isso não acontece?
Expedia pareceu cansada após a fala.
— E você vai fazer? — A mutana perguntou dolorosamente baixo.
— Eu deveria acabar com tudo isso. — A franqueza de Expedia era esperada. Seus
olhos deambularam por Umbra, pela caixa embrulhada dentro de uma bolsa, amarrada no quadril
fino e pela manga suja de sangue jogada perto de seus pés.
— Você quer?
— Eu preciso pensar.
— Você quer me machucar? Como os Solares fizeram com aquele homem?
Victorie.
— Não posso — confessou a rainha.
— Não pode ou não quer?
— Jamais tocaria em você daquele jeito, mas saber que você tem esse tipo de poder
sobre mim nebula os meus pensamentos — suspirou. — Eu preciso…
E sem completar aquilo que desejava, Expedia se virou, abriu a porta e a fechou com
grande estrondo. A miscelânea de emoções pulsantes dentro dela a fez querer vomitar.
Para trás, Umbra desabou sentada na cama, desolada e perdida. Em luto pelo seu amigo
e com a sensação de desolação completa por estar só, sem a rainha que lhe entregava o acolhedor
toque da presença real de carinho.

∞∞∞
Umbra terminava de fixar o broche sobre a pele do urso escarlate, substituindo a agulha
do objeto por um encaixe grosso de metal para que pudesse sustentar a capa e se afastou do
manequim, quando a peça finalmente chegou ao seu ponto final.
De luto e com os olhos levemente inchados pela tristeza que ainda lhe cobria como um
manto pesado, Umbra compeliu todas as suas vontades em vir a sua sala de costura e se afundar
no trabalho, foi assim que fez até o sol lá fora se pôr, negando-se comer a comida que foi
oferecida para ela, aceitando apenas um jarro de água que Ramiras deixou em uma bandeja sobre
o divã roxo.
O som do festival ainda era ouvido e a felicidade dos súditos da rainha também, mas a
mutana ignorou por completo, absorta apenas na tarefa manual de terminar aquela vestimenta.
Quando o sol deu o seu lugar para a lua, o coração de Umbra pareceu mais pacato. A noite lhe
presenteava com esse sentimento, suas emoções tornavam-se mais serenas.
Acendeu com o fogo resistente os lampiões e as tochas cobertas por uma cúpula
transparente pela sala onde estava. Fogo esse que não queimava ao toque da pele e resistia dias
sem consumir fios de vela, ou seja lá o que estivesse consumindo com a sua iluminação. Uma
invenção interessante e muito apropriada vinda do reino dos Luares e usada por todos. A
alquimia dos seres acadêmicos e telepatas era incrível.
Umbra não chamou qualquer servo para ajudá-la e não acendeu todos os pontos de
iluminação da sala, apenas o suficiente para que pudesse terminar a sua obra de arte. Ocupar a
cabeça e pensar em seu próximo plano.
Foi apenas no meio da madrugada com os olhos fixados na vestimenta pronta que
Umbra decidiu. Era melhor ela ir embora. Mesmo que fosse doloroso tal processo, desaparecer
seria o ideal. Assim não traria problemas para a rainha e nem mesmo para si própria. Uma parte
grande do seu ser não queria simplesmente ir embora e deixar a rainha só, embora ela fosse
soberba e um pouco inflexível, a mutana desejava-a e não era apenas carnalmente. Entretanto, o
caminho das duas iria cessar.
— Está digno de uma rainha.
A voz de Expedia soou atrás dela.
Rapidamente, Umbra se virou e arregalou os olhos, pois estava tão distraída remoendo
todos os seus pensamentos que não tivera a capacidade de ouvir a porta se abrir ou o ritmar da
bota contra o piso frio do castelo.
A mutana se curvou perante a presença de Expedia e ligou as mãos em frente ao corpo.
— Que bom está ao seu agrado. Queria terminar, antes de…
Sua voz morreu, não parecia ter coragem de completar aquilo que estava remoendo em
sua mente por algum tempo.
Expedia se aproximou, passando por Umbra. Ela parou frente à obra de sua costureira e
seus dedos roçaram o pelo grosso do urso.
— É difícil arranjar uma pele como essa. — Comentou a rainha circulando a capa
enquanto seus dedos ainda se moviam por ela, mas desta vez, encontraram o tecido comprado na
loja de Liriana.
— Os Solares têm exímios caçadores, além de comerciantes valiosos que puderam me
presentear com essa espécie única. A pele pode proteger do calor e do frio. O tecido pode te
trazer refúgio durante a noite e o dia.
Expedia parou novamente na frente da vestimenta e se inclinou levemente para
dedilhar o broche preso a pele do urso e conectado a um tecido grosso de couro fixado do outro
lado, um pouco abaixo da altura dos ombros.
— O sol e a lua?
— Um equilíbrio. Eu sei que mesmo odiando os Luares, a rainha preza por diplomacia,
e diplomacia requer paciência e estabilidade. Não é uma tarefa fácil, ainda mais com a
hostilidade constante vinda de ambos os lados. — Umbra comentou com cuidado, sabia que era
um assunto sensível trazer o poder monárquico dos reinos, mas ela ansiava interpretar a sua obra
de arte. — Mas sei que tenta o melhor que pode fazer e o broche é um lembrete disso.
Expedia soltou uma risada curta e baixa, sem mostrar os dentes, vencida pelo discurso
de Umbra.
— Eu gostaria que você não falasse as coisas na hora certa. — A rainha confessou, ao
retirar a peça sobre o manequim de madeira.
Manuseou-o com grande cuidado e o jogou sobre os ombros, surpreendentemente,
achou-o leve. Já havia enfrentado um urso escarlate uma vez e a criatura massiva poderia
facilmente chegar a 400 quilos, ao menos o macho.
Umbra colocou-se às ordens e seus dedos ágeis trabalharam sobre a peça, encaixando-a
da melhor maneira possível sobre os ombros largos da rainha guerreira. Seus dedos roçaram o
pescoço de Expedia e suas mãos passaram por dentro da vestimenta, onde sentiu o peito e o
começo dos seios da rainha coberto por uma blusa branca simples. Pegou a corda de couro
trançada e encaixou sob o broche. Afastou-se apenas um pouco e finalmente pôde ver como a
peça estaria no corpo forte de sua rainha. Umbra já havia imaginado como a capa ficaria em
Expedia, mas sua imaginação simplesmente não dera jus à perfeição diante dela.
Expedia estava magnífica, imensa, como a própria Deusa do Sol.
— Minha rainha, eu… — Umbra lutava para encontrar as palavras que pudessem
acalmar o seu próprio coração, ainda não sabia o que Expedia iria reservar para ela, já que a
mesma saiu em disparada do quarto. Talvez pudesse chegar a um consenso diplomático. Assim,
poderia ir embora e deixar a rainha em paz, Umbra não iria sofrer represálias e Expedia voltaria a
ter sua grandeza intacta novamente.
— Você vai ficar. — Soltou a rainha em uma voz contida.
— Não quero causar problemas, não mais do que já causei e não quero que você… Eu
sei do seu poder.
— Eu jamais te machucaria. — Expedia devolveu ainda com a voz séria e com
firmeza. — Eu não vou mentir para você, eu fiquei furiosa, com raiva sobre o que aconteceu com
o meu comando e com você também. Você me desafia de inúmeras maneiras e não estou falando
apenas dos acontecimentos com os Luares.
— Desculpe. — Era o que Umbra poderia dizer.
— Eu sei, não é culpa sua, eu a direcionei para você. — Houve alguns segundos de
silêncio sobre o som da felicidade lá fora e os olhos se encararam. — Eu não gostaria que você
fosse embora, eu gostaria da sua paciência… comigo. Eu sou a rainha dos Solares, todos esperam
algo de mim, a tensão faz parte do meu corpo.
— Você é a rainha, mas também é a Expedia. Uma mulher difícil, mas para mim,
fascinante.
— Eu não sei separá-las — confessou a rainha. — É difícil. Quase impossível.
Cansativo demais.
Umbra alcançou as mãos de Expedia e as repousou em sua cintura.
— Está tudo bem. Você vai aprender a separá-las e eu vou aprender quem eu sou. Você
não precisa segurar todos sobre os seus ombros, você pode descansar nos meus.
— Gostaria de estar junto com você durante esse processo e eu sei que não vai ser algo
fácil. Mas por causa de mim mesmo, eu estou longe de ser a pessoa mais fácil de se lidar. —
Expedia mexeu a cabeça de um lado para o outro, antes de encolher os ombros e rodar os olhos.
Tal confissão trouxe uma risada leve vindo de Umbra.
A rainha não se controlou, levou sua mão para a lateral do pescoço da mutana e
acariciou o local com a pele sensível das cicatrizes.
— Eu irei fazer uma viagem… — A guerreira tomou a palavra.
— Ah… — O desapontamento chegou na voz de Umbra.
— Eu estou aqui pensando, me lembro muito bem do meu desejo de te levar para
conhecer lugares.
Um sorriso foi dado por Umbra e seu coração bateu mais rápido contra o peito. Mesmo
sentindo o luto por seu amigo, ouvir o que Expedia estava lhe dizendo trouxe um pouco de
conforto.
— Não é bem uma viagem de prazer, mas de diplomacia, irei passar por Vinamar e
Serenas. Eu gostaria de levar você comigo. Não teremos muito tempo para passeios, mas-
— Sim! — Umbra cortou a fala de Expedia e desta vez foi a mutana que se desamarrou
do controle. Segurou o rosto da rainha entre suas mãos e trouxe os lábios quentes contra os dela,
num escovar gentil.
Expedia soltou um suspiro de alívio.
— Partiremos amanhã, após o café da manhã. — A rainha explicou, enquanto se
afastava um pouco para retirar a corda de couro do broche.
E mais uma vez, Umbra ajudou Expedia, retirou a capa dos ombros da rainha e o
colocou de volta no manequim.
— Pedirei para uma das servas arrumá-lo para amanhã. — Expedia continuou a sua
fala, referindo-se a vestimenta feita para ela. — É lindo, Umbra. Obrigada. Jamais esperaria por
algo tão atencioso.
— Apenas o melhor para a rainha.
— Umbra?
— Sim?
— Podemos ir deitar? No seu quarto? Não precisamos fazer nada, apenas-
— Vamos. — Novamente, Umbra cortou Expedia e a pegou pela mão.
Seria a primeira vez que ela dividiria as peles, os lençóis e uma cama quente com a
rainha.
∞∞∞
O som do festival continuava lá fora, agora bem mais ameno, era possível ouvir uma
risada alta ou um grito animador. A noite fresca, mesmo na chegada do verão, instigava as
pessoas a aproveitarem sob o olhar atento da lua. Infelizmente, ela não conseguia ver as duas
amantes escondidas no quarto de cortinas fechadas e abraçadas sobre os lençóis.
A lua não ouviu quando se despiram quase que completamente nuas e gemeram
quando os corpos se encontraram na maciez do colchão. Ela não testemunhou Umbra acariciar o
estômago firme e levemente musculoso da rainha, enquanto Expedia respirava o topo da cabeça
de cabelos brancos da mutana. Pôde ver, ainda que rapidamente, quando a brisa bateu na cortina
revelando um pouco o quarto quase totalmente escuro, o beijo lânguido e sensual que trocaram,
enquanto a perna longa de Umbra transpassava pelo quadril da rainha.
O sono e a tensão foram pouco a pouco se desmontando, ainda que Expedia quisesse
trocar carícias mais firmes e sexuais, estava cansada, dolorida e recusava-se a perder o carinho
que quase nunca se permitia ter. O sexo poderia vir depois e ela pretendia que isso acontecesse e
muito, sua fome de poder também se estendia para a cama.
Elas dormiram pesadamente, sem se preocupar com o testemunho das Deusas Irmãs.
As novas amantes teriam um longo caminho para ser percorrido, não apenas pelos segredos,
omissões e a responsabilidade de um reino inteiro sobre os ombros de uma, mas a junção de dois
seres tão distintos prometia muita coisa, com isso, muitos problemas. Mas talvez, só talvez, as
Deusas Irmãs tivessem complacência com as amantes, se juntariam apenas por essa vez, para
olhar sobre os seres que tanto mereciam. As Deusas sabiam o que estavam fazendo, pelo menos,
era o que achavam.
Capítulo Dezessete
O brilho da calmaria branca é diferente

A caravana já esperava na ponte que ligava o castelo e à terra firme da cidade de


Estrelares. O comboio seguia com dois vagões simples de madeira, com o símbolo real da Deusa
do Sol em cada lado, eram sustentados por quatro cavalos cada e dentro daqueles carros continha
suprimentos para um acampamento. Desde mantimentos, comida, cabanas, a tenda real e até
mesmo uma pequena banheira para comportar o corpo da grande rainha. Havia também cerca de
vinte dos melhores cavaleiros mais leais que acompanhariam Expedia. Homens e mulheres que
exerciam habilidades únicas de luta. Cada um deles carregava consigo uma bolsa na lateral de
seus cavalos, onde objetos pessoais eram guardados. Além de aljavas com flechas que poderiam
ser colocadas chamas em suas pontas com dentes que poderiam rasgar a pele do inimigo com
grande facilidade. Eles estavam ali para proteger a grande figura magistral da guerreira, se fosse
necessário dariam a própria vida para defender aquela que estava um passo mais próxima da
Deusa do Sol.
A viagem até Serenas não duraria mais do que dois dias e talvez dois vagões de cargas
pudessem ser um exagero, mas era melhor sobrarem provisões do que deixar faltar e ela não
poderia apenas pensar em si, para manter a sua cavalaria firme e forte, eles precisavam ter o
mínimo de conforto e barriga cheia.
Expedia caminhava para fora das grandes portas dos castelos com a sua nova capa cor
vinho, junto a destemida pele do urso escarlate. Embaixo de sua proteção, vestia calças justas de
cor preta, botas marrons que chegavam até os seus joelhos com duas placas de bronze que os
protegiam. Usava uma blusa branca de alças sob uma malha de metal cobrindo apenas o seu
busto, e em cima dela, uma brigantina pesada e acolchoada com pequenos ferrões, que desciam
até o meio de suas coxas. Um cinto grosso e rígido de couro cobria sua barriga e prendia a
brigantina em seu corpo, ali repousava sua espada de punho negro e vermelho com o sol
cravejado em sua ponta. Expedia também guardava uma adaga na lateral direita do seu corpo e
uma faca pequena em sua bota. Seu cabelo longo estava trançado por um fio de ouro com a tiara
do reino do Sol ornamentando sua testa.
Ao seu lado, Umbra andava com os olhos mirados para o chão, pois sentia o olhar fixo
de Lucíferos e de alguns dos conselheiros sobre ela, e isso a incomodava profundamente. Eram
quase sempre olhares julgadores de ter tomado uma posição tão rápida junto a rainha. Eles
temiam que ela, uma ninguém, pudesse manipular alguma situação. Tinha o conhecimento que a
mudança gradual do comportamento de Expedia poderia ser relacionado a ela, mas ditar o que a
rainha poderia fazer, Umbra não tinha essa força.
Diferente da guerreira, a mutana não estava vestida para qualquer emboscada,
surpresas ou batalhas no meio do caminho. Até carregava uma adaga que Expedia insistiu para
que ela levasse, o convencimento só deu certo, pois a rainha dizia isso entre trocas de carinhos
eróticos durante o sol nascente. E depois do clímax que Expedia entregou para ela em um beijo
latente entre as suas pernas, simplesmente não poderia negar.
Umbra estava vestida com calças bastante parecidas com a de Expedia, já que seria
mais confortável para a montaria, botas de cano curto, um peitoral de bronze que moldava os
seus seios, deixando-os perfeitamente encaixados nas depressões formadas, e que assegurava a
sua barriga para qualquer golpe em seus órgãos vitais. Sob a vestimenta resistente, usava uma
blusa amarela vívida, com um decote que deixava parte de seu colo desnudo, mas que cobria
parte do seu pescoço, deixando assim, um formato de coração contra a sua pele prateada. Tecidos
do mesmo tom prendiam-se em suas calças e se desenrolavam quase até o chão, deixando assim
a impressão de que também vestia uma saia.
Elas estavam formidáveis, perfeitas para chegarem até Vinamar, a cidade entre as
grandes colinas que praticamente cercavam Estrelares, passariam a noite lá e no dia seguinte
continuariam seu caminho para acampar dentro da floresta ou se instalariam em algum vilarejo
para então chegarem a Serenas, a cidade que fazia fronteira com os Luares. Expedia tinha um
assunto delicado para ser tratado e esperava que sua paciência diplomática a ajudasse. Não queria
levantar a animosidade entre os reinos, mas se o rio não voltasse a correr normalmente pelas suas
terras, muitos Solares poderiam ter dificuldades alimentares no próximo verão, e isso seria um
problema.
Expedia deveria chegar o mais cedo possível a Serenas, entretanto, prometeu para sua
convidada que quando tudo estivesse resolvido, ficariam alguns dias em Serenas e Vinamar.
Uma exclusão por alguns dias como rainha, para uma regalia pessoal, queria conhecer ainda mais
Umbra e aproveitar um pouco de seu encantamento sobre o olhar branco.
— Voltaremos em breve. — Expedia avisou à Nimala, enquanto um de seus servos
trazia os cavalos com as cores branco e preto pelas rédeas. Virou para o seu irmão. — Deixarei o
castelo em suas mãos, Lucíferos, não decepcione. — Apanhou a rédea do servo e estendeu a mão
para Umbra.
A mutana subiu em sua égua e suas pernas logo fecharam-se contra a barriga do
animal.
A égua reclamou, soltando um exasperar pelo nariz. Relinchando, mexeu a cabeça para
cima, para trás e bateu seus cacos contra o chão.
— Calma… — Expedia ofereceu, ao acariciar o pescoço da égua e depois apertar
gentilmente o joelho de Umbra. — Ela sente que você está tensa — avisou à mutana, enquanto
oferecia um sorriso. — Apenas relaxe, ela vai te levar. É uma égua mansa.
Umbra respirou fundo e seu corpo tremeu levemente, antes de descontrair suas pernas.
— Sinto muito, acho que tenho um pouco de medo deles. — A mutana soltou um
murmúrio de desculpa para Expedia e a égua, enquanto acariciava o pescoço da equino.
Na verdade, Umbra não tinha experiência em montar cavalos, mesmo que os achasse
criaturas formidáveis. Em geral, seu meio de transporte era dentro da carroça junto às pessoas do
circo ou dentro da gaiola.
A rainha sorriu levemente e a égua relinchou, parecendo aceitar o pedido que Umbra
fizera.
— Nós nem sentiremos sua falta, maninha. — Lucíferos proferiu com certa ironia. —
O reino irá ficar bem sem você. O festival ainda está latente, mesmo com o infortúnio de sua
convidada.
Expedia olhou para Umbra e os olhos brancos novamente sussurraram uma desculpa
não verbal. Seu irmão sabia lhe tirar do sério.
Ela se virou para Lucíferos e sorriu maliciosamente.
— Ah, tenho certeza de que o número de desventuras dela ainda não chegou perto do
que você já aprontou. Todo mundo tem sua cota, não é, Lú? — Assim como o seu irmão, ela
sabia usar o sarcasmo, mas diferente dele, seu olhar flamejante poderia o fazer hesitar.
E foi exatamente o que aconteceu, ele se aprumou e limpou a garganta.
Expedia se lembrava da discussão que ambos tiveram dentro de seu quarto, enquanto
seu irmão lhe enchia os ouvidos sobre o quão imprudente ela estava sendo em relação a sua
convidada. A rainha sabia disso, mas se negava a escutar, ela era a rainha afinal, deveria saber o
que estava fazendo e francamente, ter Lucíferos vociferando sua irresponsabilidade era irritante,
finalmente, ela havia entendido o que ele tinha passado a vida inteira sob o julgamento de
Expedia.
— Apenas tenha uma boa viagem. — Ele disse e estendeu a mão de maneira genuína.
A rainha viu verdades nos olhos fundos com olheiras permanentes. Ela ofereceu um
pequeno sorriso e o cumprimentou.
— Cuide bem da nossa casa.
E Lucíferos se curvou levemente em respeito a sua majestade.
Expedia se despediu de alguns de seus conselheiros e montou em seu alazão. Logo,
toda a caravana começou a galopar em direção ao seu destino.
Umbra passava pela cidade ainda cheia devido aos resquícios do festival que iriam
perdurar por mais alguns dias. Passando pela praça principal, pôde ver sua amiga, que logo
acompanhou o trotar ainda leve do cavalo.
— Está tudo bem — garantiu Umbra, enquanto, rapidamente, alcançava a mão da
amiga. — Voltarei daqui a alguns dias, guarde seus melhores tecidos para mim.
— Boa viagem! — Liriana falou animada, antes de soltar a mão da amiga. — Da
próxima vez, me chama!
E Umbra riu.
Por que não?
Os súditos abriram caminho, enquanto toda a cavalaria, os vagões, a rainha e sua
convidada passaram pelas ruas, até o limite da cidade. Pouco a pouco, a paisagem foi se
transformando, as casas que antes estavam quase amontoadas uma na outra, abriam-se cada vez
mais. O ruralismo chegou à vista de Umbra e a estrada de terra chegou se desenhando entre as
árvores e floresta, era aquela estrada que levava para a entrada das colinas que Vinamar
construiu perante as pedras longevas.
Elas já estavam há algumas horas cavalgando tranquilamente pelo tempo quente, mas
não insuportável. Volta e meia, Umbra pegava o seu odre na lateral de sua cela e bebericava um
pouco da água para que a sede pudesse diminuir.
Era bom sentir a brisa em seu rosto e o cheiro da maresia foi substituído pelo odor da
floresta. A sua confiança estava tornando-se mais firme sobre a montaria, ao passo que os cascos
dos cavalos batiam tranquilamente contra a estrada de terra, enquanto eram cercados pela
floresta. A mutana se sentia mais em casa em meio às árvores, escondida em seu frescor, do que
em qualquer outro lugar, mesmo não tendo um lar fixo, pois de fato nunca sentiu tendo um, era
perto da natureza que se sentia mais… plena. Lembrou-se dos momentos em que seu amigo
Victorie e ela caçavam animais pelas florestas que cercavam ambos os reinos. Umbra
transformada na besta gigante, correndo na noite sob o olhar atento, enquanto, ele informava os
próximos passos da caça. Era quase um ritual que ambos faziam, após horas de alguma
apresentação, ambos saiam — com a permissão de sua mãe, claro — atrás de uma presa. Com a
habilidade de Victorie e Umbra no ataque, descobriram que caçar embaixo da lua poderia trazer
seus benefícios. Parecia que durante a noite, os animais relaxavam, a tensão ou a sonolência se
apoderava com mais veemência. Onde, na grande maioria das vezes, encontravam uma boa
caçada. Fadigados, chegavam com uma refeição completa para quase todos do Circo. Ao menos
aqueles que trabalhavam na manutenção, muitos dos atores que transformavam o picadeiro no
verdadeiro show não apreciavam a companhia da fogueira com os “subalternos”, claro que não
eram todos, mas era visível a pequena hierarquia criada na sociedade na “A Boca do Lobo.”
As lembranças de Victorie causaram-lhe uma estranha dor no peito. Era o luto. Seus
olhos brancos encheram-se de lágrimas, sua visão embaçou e então inclinou a cabeça para baixo.
Sua égua relinchou, parecendo compreender a tristeza que a mutana estava experimentando e
como era bem treinada, apenas seguiu a comitiva.
— Está sentindo alguma coisa? — Expedia perguntou, aproximando-se com o seu
alazão, que acompanhou o andar da égua, as duas ficaram lado a lado, com as pernas quase
tocando uma à outra.
Umbra olhou para frente e limpou as lágrimas que quase desciam pelo seu rosto.
Aparentemente, os vagões e os soldados que cavalgavam em sua traseira e dianteira estavam
alheios às duas ou ao menos aparentavam estar.
— Não irá se enfurecer se eu disser o motivo? — A pergunta honesta foi feita, e
Expedia sorriu de lado, assim que ouviu as palavras saindo da boca da mutana.
— Ah, então já sei do que se trata. Não, não irei ficar. Estou começando a compreender
que é um alguém mais sensível do que o restante das pessoas que eu conheço.
— Não me leve a mal, minha rainha, eu estou animada, feliz por estar aqui com você.
Por você ter me dado a oportunidade de ir a essa aventura, não quero estragá-la, quero aproveitá-
la. Mas ainda dói ver a morte em vão.
— Se lhe servir como um pouco de amparo, o homem que fez isso será preso e Uriel
também. Servirá de exemplo para não mais manter prisioneiros particulares. Isso foi proibido há
alguns anos em meu reino, mas algumas manias são difíceis de morrer. Talvez assim, essa
idiotice de luta acabe.
— O que significa isso? Prisioneiro particular? — Umbra indagou com a curiosidade
mais aguçada.
Ela já havia visitado diferentes cidades, observado de longe como os Luares e os
Solares se comportavam, mas estar inserida na sociedade de um deles era um tanto fantástico.
Principalmente, estar ao lado da rainha. Aquela que de certa forma carregava o poder supremo.
Desta vez, foi a vez de Expedia alcançar o seu odre e beber um pouco de sua água.
— Por que não paramos por meia-hora? — A rainha comandou com a voz alta e logo a
caravana desacelerou. Limpou a boca com as costas da luva de couro e soltou um som de
satisfação pela boca. — Assim podemos comer um pouco e esticar as pernas. — Voltou com a
voz mais baixa e direcionada para Umbra. — Há uma pequena clareira rodeada por árvores que
pode nos ajudar a recuperar o fôlego. Ela está logo à frente.
Ela puxou a rédea do seu alazão para direita e Umbra, ainda que incerta de como agir
sobre o seu cavalo, copiou o movimento.
Poucos minutos depois, as duas se encontravam sentadas sobre um tecido grosso,
embaixo de uma grande árvore de folhas verdes e amarelas. Ela estava cheia e projetava uma
grande sombra circular.
Os dois cavalos de viagem estavam dividindo a penumbra formada pela árvore, usavam
um balde de madeira com água e outra com feno, mas aparentemente, a égua preferiu comer o
mato ao redor da árvore.
Dali, Umbra conseguia se esconder um pouco do sol, enquanto sentia o suor escorrer
por suas costas, recostou-se no tronco grosso e liso da árvore, relaxando sobre o apoio. Seus
olhos observaram quando a rainha retirou a capa, deixando-a cair em volta de seu quadril.
Reconheceu uma pequena linha de umidade escorrendo pela lateral do seu pescoço e o seguiu até
que se perdesse entre as vestimentas da mulher.
Descansando sobre o tecido grosso, água, frutas e pães estavam expostos para elas e
mais a frente, sobre uma tenda improvisada, os poucos servos e cavalheiros alimentavam-se com
um ensopado. Alguns estavam sentados sob a tenda, outros espalharam-se e colocaram-se a
descansar sob as outras copas das árvores, não tão próximos das duas mulheres, que
evidentemente procuravam por intimidade.
Expedia dobrou o joelho e apoiou seu braço em cima dele, antes de suspirar.
— Algo me diz que não é a primeira vez que você vem aqui. — Umbra adivinhou,
enquanto apanhava uma fatia de pão com um leve creme rosado por cima.
— Sou uma mulher de hábitos. — A rainha deu de ombros e riu.
— Não totalmente, você me disse ontem que começou mudanças no reino.
Expedia olhou para os olhos brancos de Umbra e a admirou, simplesmente pelo fato da
mulher que estava ao seu lado desfrutando do pão fofo ter prestado atenção em suas falas.
— Sim, como a prisão particular. — Começou a explicação que Umbra pediu. — São
apenas palavras bonitas para um tipo de trabalho análogo à escravidão. Meu pai aceitava isso,
diferente de mim, e depois de muito sacrifício, consegui acabar com essa lei. Nela, Solares
poderiam capturar Luares caso a pessoa estivesse atacando ou incomodando alguém.
Aparentemente, esse Luares que Uriel pegou estava fazendo isso, ao menos foi o que ele alegou.
Eu tenho as minhas dúvidas particulares. Mas ele disse também que o Luares nada falou, pelo
que eu entendi, era um alguém desgarrado. Sem laços permanentes, já que ninguém deu falta
dele, Uriel achou que pudesse capturá-lo para trabalhar para pagar a sua pena... É algo ridículo,
francamente, por mais que eu deteste os Luares, as pessoas merecem um julgamento. Imagine, se
cada um dos cidadãos começasse a ser juiz? Logo eles começariam a aplicar essa regra para o
nosso próprio povo, alegariam inúmeras coisas, apenas para mantê-los sob um cabresto apertado
de exploração. Certamente, fugiria do meu controle, então simplesmente anulei a lei. Eu não
quero ser como os Luares, um povo que escraviza os seus próprios.
Umbra ouviu a explicação com ávido interesse, esquecendo por alguns instantes de
continuar sua refeição para aguentar o restante das horas que faltavam para a viagem ser
completada. Era um assunto sensível e doloroso, já que a própria mutana havia passado por algo
assim durante toda a sua vida. Imaginou quantos ainda poderiam estar presos como ela estava.
— Desculpe minha intromissão, mesmo não gostando muito de como você trata os
Luares, você é uma rainha admirável.
Expedia soltou uma risada baixa, para logo após abrir a boca e abocanhar um imenso
pedaço de maçã.
— Você é um tanto agridoce. Me insulta e logo depois me elogia. Um dos seus
melhores charmes, poucos teriam coragem de fazer isso — disse a rainha, ainda com o alimento
dentro da boca e assim, o engoliu.
— Eu faço o meu possível. — E pela primeira vez, Umbra jogou uma piscadela para a
rainha.
Pelas Deusas… Expedia sentiu seu pescoço esquentar.
— Acho que o meu convívio está fazendo com que suas falas se tornem mais irônicas.
A mutana sorriu, antes de beliscar com os seus dentes o pão crocante, enquanto
mastigava o delicioso alimento fresco, observava a rainha apoiar a maçã na coxa para retirar as
luvas e alcançar seu odre com água.
— Você sempre fala de seu pai, mas e quanto a sua mãe? — Umbra perguntou, pois,
mais uma vez a curiosidade se apoderou dela.
Paciente, Expedia tampou o odre e o colocou ao lado da cesta de frutas. Esticou as
pernas para frente e mexeu o pescoço de um lado para o outro, estalando auditivamente. Passou a
mão pela nuca e com um leve tapa, colocou a trança do seu cabelo para trás. Apoiou as mãos
sobre o tecido grosso e suspirou. Era óbvio que estava ganhando tempo para montar a história
em sua cabeça, organizando as memórias para contar aquilo que valia a pena, a fim de que
Umbra soubesse apenas o suficiente.
— Tudo bem se não quiser falar nada — ofereceu Umbra, vendo o óbvio desconforto.
— É apenas complicado… — Expedia pegou a maçã em sua coxa, para ganhar um
pouco mais de tempo e elas se olharam mais uma vez. — Minha mãe não era uma pessoa tão
boa assim, uma verdadeira narcisista, mas que sempre protegeu o meu irmão. Ela poderia ser
quase cruel e não era apenas com os Luares, mas qualquer um que estava abaixo dela, isso inclui
os Solares, amigos e família, estou me incluindo nisso. Seguia à risca os dizeres da Deusa do Sol,
quase como uma fanática religiosa. Mas mesmo dentro disso tudo, as pessoas a amavam.
Amavam tanto que quando os meus pais morreram, choraram mais por ela do que por ele. Uma
das cicatrizes que tenho no meu corpo foi ela que fez. Os curandeiros diziam que ela sofria
algum mal da cabeça, não sei se acredito, pois, com o meu irmão ela nunca sequer levantou a
mão.
— Eu sinto muito por isso. — Umbra se virou levemente para a rainha e colocou a mão
sobre a coxa musculosa.
— Não sinta — devolveu Expedia, mas não de maneira ríspida. Sua mãe não merecia
ser lembrada por ela. Famílias eram complicadas.
Seu alazão se aproximou com cuidado, enquanto as narinas largas se expandiam,
certamente farejando o cheiro da metade da maçã que estava em suas mãos. Em outra risada
baixa, ofereceu a fruta na palma de sua mão, evitando que seus dedos entrassem na frente da
grande boca com dentes grossos. Prazerosamente, o seu cavalo aceitou e relinchou, antes de
mexer a cabeça para frente e para trás e sua crina tremer. Certamente feliz por receber tal mimo.
— Você acredita que as pessoas possam ser naturalmente ruins, Umbra? — A rainha
voltou para a mutana, enquanto reclinava a cabeça no caule da árvore.
Seus rostos estavam próximos e a mutana sentiu vontade de beijá-la, porém, se
conteve, achou que tal ato de carinho poderia expor a rainha na frente de seus súditos, ao invés
disso, apertou mais uma vez a coxa de Expedia.
Um sorriso fraco se formou nos lábios de Umbra e assim, assentiu com a cabeça.
O pesar carregado em tal ação trouxe Expedia a refletir sobre, tal resposta.
Sim, existiam pessoas que só fabricavam o mal e ela esperava não ser essa pessoa.
— Obrigada por ser honesta, Umbra.
E aquilo atingiu o peito da mutana, inclinou-se mais em direção ao rosto de Expedia,
sentindo o odor junto ao suor da tarde de verão.

∞∞∞
Foi apenas depois de quarenta minutos que a caravana voltou para a estrada com a sua
tranquilidade, ainda que estivessem um pouco mais apressados. Os galopes dos cavalos
tornaram-se mais velozes e insistente, e não demoraria mais do que três horas para chegarem até
Vinamar. O Sol da Deusa estaria adormecendo quando adentrassem entre os corpos das colinas e
a mutana encontrou-se animada para isso. Já havia passado algumas vezes por lá, sempre com os
olhos curiosos em ver as casas escoradas subindo pelas pedras, onde os cômodos se
incorporavam na montanha e os corredores penetravam-se nas rochas, como brônquios de um
pulmão, percorrendo o interior. Ela nunca havia entrado em tais estabelecimentos, por ser uma
cidade apertada, as apresentações do circo não conseguiam ser efetivadas, então todas suas
visitas eram apenas passagens, esperava poder finalmente conhecer Vinamar.
Umbra também estava com o seu humor renovado após a oportunidade dada de
conhecer ainda mais a sua rainha, e enquanto andavam lado a lado em uma fila única com a
caravana, a mutana continuava a olhar tudo com atenção, ouvindo os sons que a natureza fazia E
que a agradavam profundamente. Até mesmo a águia Goldina, que cortava o céu em uma
velocidade incrível, foi notada pelo olhar afiado da mutana. As asas imensas, que poderiam
chegar ao cumprimento de uma criança pequena, tinham penas douradas que refletiam contra o
brilho do sol e da lua, era uma das aves preferidas de Umbra, usada, principalmente, para os
reinos se comunicarem entre si. Era caro o serviço desse animal e a mutana havia usado apenas
uma vez. Mas era comum vê-los pelos céus, mas aqui, na estrada entre uma cidade e outra, a ave
parecia ser ainda mais imponente do que o usual.
Estavam próximo à cidade quando um dos cavaleiros reais soltou um som alto e grosso
pela boca e assim toda a caravana parou. A cavaleira responsável por tal ato se aproximou com o
seu cavalo em um trotar rápido parando na diagonal do alazão da rainha.
— Minha rainha, há uma guarnição da cidade de Vinamar mais à frente, acredito que
seja importante a senhora vir, aparentemente, algo aconteceu. — A cavaleira avisou com a voz
séria, sem qualquer alarde ou trepidação.
— Claro que sempre acontece. — Aborrecida, a rainha puxou a rédea do seu cavalo e
estalou a língua no céu da boca, o alazão relinchou e mexeu seus cascos para a lateral da estrada.
— Obrigada — agradeceu sua cavaleira. — Venha, Umbra — chamou Expedia, ao dar um leve
toque com os calcanhares na barriga de seu cavalo, e assim que recebeu o comando, começou a
trotar pela lateral da caravana.
Quando chegaram na guarita improvisada, feita por duas tendas e estacas de madeira
fincadas no solo cercando o pequeno perímetro ao canto da estrada, dois guardas estavam na
frente da única abertura, com suas lanças afiadas e brilhantes. Seus rostos estavam cobertos por
um elmo com uma placa maior com o formato de raios de sol em suas testas.
Assim que reconheceram a imensidão que Expedia representava, os olhos
esbugalharam sob a proteção e curvaram-se quase imediatamente.
— O que está acontecendo? — A rainha exigiu em um tom ríspido, dando sequer o
trabalho de cumprimentar seus súditos.
— Infelizmente, a cidade de Vinamar está isolada. — Um dos soldados tomou a frente
da explicação.
Expedia exasperou já sem qualquer paciência. Ela coçou a testa, sentindo o suor
embaixo de sua tiara, puxou um pouco mais as rédeas do seu cavalo e colocou-se de lado para os
soldados.
Umbra ficou um pouco mais distante, logo atrás de dois cavaleiros reais.
— O que você quer dizer com isso? — continuou a rainha, ao franzir o cenho sob a
tiara de ouro branco que usava.
— O começo do desfiladeiro que dá para a entrada norte da cidade foi fechado por
pedregulhos que despencaram de seus picos. Acabaram se amontoando. Mas com nosso
impecável trabalho, em três dias abriremos a entrada novamente.
— Eu não tenho três dias — proferiu com frustração cada vez maior.
Pela Deusa Suprema do Sol, como as coisas poderiam dar errado para ela. Expedia
conseguia sentir seu corpo vibrar de raiva.
Vinamar era uma cidade funil, com apenas duas saídas e aparentemente uma delas
estava fechada. O que significava que apenas o outro lado estava aberto e isso implicaria dar a
volta na cadeia de colinas, o que os obrigariam a usar a velha estrada. Raramente ela era usada,
devido ao tempo que era necessário para chegar ao outro lado. Expedia se deu conta de que iriam
acampar pela floresta, isso a deixaria exposta, mas sentiu que não tinha muita escolha. A viagem
iria levar mais tempo do que pensava e os planos da rainha estariam arruinados, já que
inicialmente passaria a noite na cidade, onde pudesse descansar para enfrentar um dia longo de
caminhada até Serenas.
— E como não fui informada disso? — Voltou a falar.
— Aconteceu muito rápido, majestade. Ontem de noite para ser mais exato, e só
conseguimos enviar a mensagem hoje.
— Francamente — bufou.
Expedia não perdeu mais tempo, voltou-se para Umbra e para os dois cavaleiros que a
cercavam e informou a frustração dos acontecimentos.
— Vamos nos adiantar, pois, em breve a noite irá nos alcançar. — A ordem foi dada e
todos voltaram aos seus lugares.
O silêncio retomou a caravana e Umbra podia sentir a raiva transpirando pelos poros da
rainha, desta vez, foi ela a demonstrar preocupação perante o semblante de sua nova amante.
— Está tudo bem, minha rainha?
— Eu não gosto quando aquilo que planejei não sai como o esperado. Infelizmente,
essa estrada secundária raramente é usada e eu detesto surpresas. Aqui é uma rota usada por
pessoas que não querem ser achadas — falou todo o seu descontentamento diante da situação
que se encontrava.
— Sinto muito, minha rainha. — Umbra não sabia muito o que dizer.
— Não é culpa sua, Umbra. — Expedia soltou um sorriso cansado. — Acho que meu
mau-humor pegou o melhor de mim, minha bunda já está começando a doer.
E uma risada fraca e curta da mutana foi dada.
O crepúsculo já se fazia presente, enquanto todos seguiam entre as árvores de estrada
precária e estreita. Os vagões chacoalhavam um pouco bruscamente e os cavalos pareciam ter um
pouco mais de dificuldade para seguir em frente, principalmente pelos galhos que invadiam o
caminho.
A caravana esticou o máximo que poderia, sendo verão, o sol perdurava por mais
tempo no céu, deixando o caminho iluminado e o perigo que a escuridão projetava ficaria
escondido, ao menos até as sombras ficarem maiores, mas o cansaço já era aparente. Estava na
hora de pararem, poderiam continuar na manhã do dia seguinte.
Percorreram por mais algum tempo, mas agora com o intuito de encontrarem um lugar
para repousar. Infelizmente, por não ser um caminho muito usado, não sabiam ao certo em que
local poderiam descansar pela noite.
A cavaleira que tomava a frente da caravana, a mesma que foi até a rainha comunicar
sobre a guarnição posta perto da entrada de Vinamar, foi a responsável por presenciar uma
pequena clareira mais profunda na floresta, rodeada por grandes e antigas árvores que continham
as copas cheias de folhas.
Aparentava ser um bom local, perto da estrada, mas não totalmente à mercê de
surpresas caso alguém passasse por ali, querendo causar transtorno. Bem, isso se Expedia
permitisse, a rainha era uma sublime guerreira e muitos a conheciam.
Instalaram-se bem ao centro da clareira, onde a lua iluminava a grama verde, trazendo
um lindo aspecto prateado.
A rainha desmontou do cavalo e ajudou Umbra a fazer o mesmo, os servos e os
cavaleiros selecionados logo trataram de montar a sua tenda pessoal, enquanto as duas
alimentavam os animais.
A proficiência dos que trabalhavam para Expedia era um tanto invejável, pois em
pouco tempo, a rainha abria a pesada tapeçaria para entrar na tenda. O ambiente estava
aconchegante, tapetes e pele de animais cobriam a grama verde da clareira. Ao lado direito, uma
pequena mesa baixa guardava alimentos cobertos por revestimentos côncavos de palha, cipó e
vidro. Um pequeno cântaro de metal guardava rolos finos de pergaminho, caso a rainha desejasse
escrever ou ler documentos reais. Almofadas foram colocadas no chão, perto da mesa e uma
banheira de madeira foi colocada mais ao canto. Ao centro da tenda, um pequeno braseiro
aquecia a noite fresca, com uma pequena abertura no teto, fazendo com que a pouca fumaça feita
vazasse do ambiente. Do lado esquerdo havia uma cama, um colchão com peles e mais
almofadas para duas pessoas e, em seu pé, um baú guardava as roupas de Umbra e Expedia.
— Uau… — Foi o que a mutana soltou pelos seus lábios quando seus olhos passaram
por todo o local.
— Depois de um dia como esse, a gente merece. Além disso, amanhã será ainda mais
cansativo. — Expedia explicava, enquanto abria a sua capa e a depositava sobre o baú de
madeira e ferro.
Umbra caminhou para perto da banheira e ficou surpresa ao vê-la cheia. Colocou a mão
sobre a água, seus dedos balançaram, causando um perturbar na superfície, pequenos halos
formaram em volta de seus dedos, ela suspirou ao sentir a temperatura bastante agradável.
Ansiou em submergir na temperatura daquela água.
Dois braços envolveram sua cintura e Umbra relaxou contra o corpo firme de Expedia.
Uma das mãos da rainha chegou em seu rosto e os dedos repousaram sob o seu queixo, puxando-
o levemente para o lado. As bocas se aproximaram e um beijo lânguido e sensual foi dado entre
elas.
— Estava ansiando fazer isso. — Expedia disse contra os lábios da mutana. — Desde
que saímos de casa.
Casa… seria o primeiro lar de Umbra? Nenhuma das duas sabiam dizer ainda.
— Não vou mentir, eu também.
— Por que não toma um banho? Depois a gente come alguma coisa e vai se deitar —
ofereceu a rainha e suas mãos já começavam a remoer o corpo esguio de Umbra, procurando os
fechos e aberturas para que pudesse despi-la e ver o corpo que tanto desejava.
— Eu gosto dessa ideia.
Quando a pele foi totalmente revelada, Expedia roçou os lábios pelas costas sinuosas e
marcadas pelos ferimentos antigos. Sorriu ao ouvir um gemido rouco escapando pelos lábios de
Umbra. Ajudou-a entrar na banheira, retirou a brigantina e a malha que cobria o seu busto,
ficando assim com a blusa branca, levemente úmida, devido ao dia quente sob o sol, esperava
não estar com o odor forte. Abriu uma pequena maleta perto da banheira e retirou uma esponja e
uma barra de sabonete com o cheiro floral de campo. Logo, começou a banhar a pele prateada.
Umbra engoliu em seco, com um pouco de dificuldade para relaxar, era a primeira vez
que alguém lhe dava um banho. As mãos errantes de Expedia acariciavam-lhe os braços e os
seus seios pequenos, no intuito óbvio de despertá-la. Estava funcionando, pois, eventualmente
abriu as pernas e sentiu seu sexo pulsar. Ela queria dizer alguma coisa, mas o carinho e a
paciência da rainha apenas lhe arrancaram suspiros.
— Eu-
— Descanse, minha querida — falou a rainha ao descer com a mão esquerda e seus
dedos desaparecerem no pelo pubiano, encontrando o melado do sexo. — Relaxe, eu quero dar
isso para você. — Expedia beijou-a de maneira estalada.
Umbra mordeu o lábio inferior, enquanto segurava a borda da banheira, até que os nós
dos dedos ficassem brancos. Ela começou a ondular sensualmente, enquanto sentia o massagear
gentil em seu clitóris.
Repreendia o gemido com dificuldade, tentando evitar que as pessoas lá fora ouvissem
o afago sexual trocado dentro da tenda.
— Você é tão linda, Umbra. Tão linda. — Expedia continuou, ao levar a ponta do seu
dedo à entrada da mutana, provocando-a. — Obrigada por vir comigo e fazer com que minha
viagem fosse menos solitária. — E os dedos voltaram para o clitóris inchado.
Umbra jogou a cabeça para trás, fechou os olhos bem apertados e seu corpo tensionou,
antes de liberá-lo em um orgasmo lânguido e sedutor.
Relaxou totalmente contra a banheira e abriu os olhos alguns segundos depois. Expedia
estava ali, com um sorriso nos lábios, enquanto os seus dedos acariciavam seu pelo pubiano.
Umbra levou os seus braços em volta do pescoço da rainha e a abraçou em um súbito incomum
de carinho, não se importando de molhar a sua nova amante.
Expedia ficou um pouco aturdida com a ação, mas logo aceitou o abraço. Seus lábios
roçaram a bochecha esquerda da mutana e suas mãos prenderam-lhe no afago. Desvencilhou-se e
beijou a lateral do pescoço de Umbra.
— Se eu pudesse, entraria com você aí, mas explodiríamos a banheira. Troque-se, vou
pedir para trocarem a água e assim, farei a mesma coisa.
— Está bem — concordou Umbra, antes de mergulhar na banheira.
Voltou à superfície e se levantou, já com Expedia segurando uma imensa toalha de
pano. Os olhos quentes percorreram pelo seu corpo e a mutana reconheceu as pupilas dilatadas e
o cheiro do sexo da rainha em suas narinas. Umbra iria recompensar Expedia pelo excelente
banho, mas primeiro a deixaria desfrutar da água deliciosa.
Momentos depois, Expedia já estava banhada e com roupas frescas para acompanhar a
sonolência que logo a chamaria. Seu corpo estava cansado e dolorido, devido ao dia de montaria.
Nem sequer se importou quando duas servas entraram em sua tenda, enquanto se despia para
limpar o seu corpo. Elas mantiveram a cabeça baixa durante todo o tempo em que refizeram o
banho, nem mesmo olharam para Umbra que estava começando a retirar a proteção dos
alimentos para que as duas pudessem desfrutar.
Agora, o casal estava sentado nas almofadas, desfrutando a comida pela segunda vez
naquele dia e hidratando-se com água e suco. O som lá fora estava baixo, aparentemente, uma
parte dos cavaleiros e dos empregados já se preparavam para o descanso. Todos tinham um saco
de dormir ou dividiam tendas menores, mas de tamanho o suficiente para se manterem
protegidos. Geralmente, seus cavaleiros preferiam dormir sob a luz do luar nas noites de verão,
enquanto os empregados se aconchegavam sob a proteção do tecido da tenda.
Umbra se espreguiçou e descansou sua cabeça no ombro da rainha, esgueirando sua
mão para dentro da blusa preta de manga comprida que Expedia usava. Seus dedos acharam a
musculatura rígida da barriga e seu desejo acendeu novamente. Ela simplesmente adorava o quão
forte a rainha era.
— Como você consegue ser tão forte? Eu posso contar seus gominhos, isso é um
absurdo.
— Hmm…. — A rainha sorriu de lado e levou as mãos para trás da cabeça. — Antes
de ser uma rainha, eu sou uma guerreira. Preciso treinar muito, nunca se sabe quando irão te
atacar.
— Nós somos tão diferentes — murmurou Umbra, ao traçar com o único dedo o centro
da barriga da rainha, até o começo da curvatura da mama voluptuosa.
— Eu gosto disso — disse a rainha, com a voz rouca.
— Do carinho ou das nossas diferenças?
— Os dois, definitivamente, os dois.
Umbra concordou com um acenar de cabeça, enquanto continuou o seu acariciar na
pele oliva e levantou a cabeça para beijar a boca com gosto de morango.
Expedia relaxou ainda mais contra as almofadas, enquanto sentia a excitação crescer
novamente. Levou a mão para a lateral da bunda de Umbra e apertou, puxou a perna para que a
mutana pudesse montar nela.
Umbra fez exatamente aquilo que silenciosamente sua rainha pediu e, em resposta, seus
beijos tornaram-se ainda mais tórridos, junto à vontade de mais uma vez usufruir daquele corpo
que tanto a atraía. Levantou a blusa de Expedia e seus lábios ansiosos acharam o mamilo rosado.
Chupou-o e acariciou-o com a sua língua.
A mão de Expedia arranhou seu couro cabeludo e Umbra sorriu contra a mama. Ela se
virou rapidamente para pegar um morango do recipiente de frutas separado para elas. Mordeu-o
e enquanto mastigava, roçou a fruta fresca contra o mamilo direito de Expedia. Trazendo um
gemido erótico da boca da rainha. Engoliu o morango e sua boca encontrou o suco que escorria
pela carne volumosa da mama de Expedia.
A rainha a pegou pelo pescoço e suas bocas se encontraram com fome evidente. As
mãos gulosas de Expedia encontraram a bunda de Umbra, enquanto rebolava levemente contra o
colo dela.
Era inacreditável a fome insaciável que Expedia tinha por sua nova amante. Ela sempre
gostou de se aventurar sexualmente, mas aquilo que estava acontecendo com a sua costureira
realmente era algo novo.
Umbra desceu com sua boca novamente, seus lábios passaram pelos mamilos e sua
língua lambeu a musculatura firme do estômago da rainha. Até que seus dentes mordiscaram o
quadril e suas mãos puxaram a calça leve e larga para baixo, expondo assim o sexo recém
lavado, mas totalmente molhado de Expedia.
A mutana lambeu os lábios, quando olhou a imagem da rainha por um todo. A blusa
suspensa em seus ombros, os mamilos rijos, a barriga úmida pelos seus beijos, o ventre
tensionado e suas calças acumuladas nas panturrilhas grossas.
Aquela era a cena mais erótica que viu em toda a sua vida e, simplesmente, afundou
sua boca nas dobras de Expedia, sentindo a quentura, o melado e os pelos roçando o seu nariz e
bochecha.
Diferente da mutana, a rainha não estava retendo seus gemidos, nunca foi uma mulher
tímida e isso não mudaria agora, se ouvissem a rainha grunhindo desesperadamente para chegar
ao seu ápice, que seja. Ela mandava no reino dos Solares.
Seu orgasmo chegou em surpresa, talvez pudesse ter sido pelo cansaço acumulado do
dia mais o estresse inevitável em que o festival havia se desdobrado.
Umbra se colocou no colo de Expedia novamente e riram satisfeitas pelo que havia
acabado de acontecer.
A rainha acariciou a lateral do pescoço da mutana e roçou seu nariz contra o dela.
— Eu queria poder continuar isso a noite toda, mas seria prudente a gente dormir.
— Hmmm… — Umbra abraçou a sua rainha e resmungou, ela queria mais.
— Quando chegarmos a Serenas, ficaremos trancadas o dia inteiro em um quarto.
— Você vem me prometendo muitas coisas — murmurou Umbra contra o peito de
Expedia.
— E vou cumprir todas elas.
Um delicioso cafuné colocou a mutana à deriva da sonolência.
— Posso cobrar?
— Deve, você mais do que ninguém pode cobrar.
Umbra beijou a mandíbula de Expedia e abaixou a sua blusa.
— Então vem, vamos dormir. — Uma ordem feita pela mutana que a rainha aceitou
com felicidade.

∞∞∞
Os corpos estavam pressionados um contra o outro, novamente, procurando refúgio e
segurança, os braços e as pernas se misturavam sob as cobertas em uma tranquilidade única. Elas
pareciam velhas amantes, já que os corpos se procuravam com grande costume. A impressão que
dava era que ambos os seres se conheciam por toda uma vida. A intimidade estranhamente
construída correspondia ao jeito que Expedia envolvia o braço em volta da cintura de Umbra em
uma forma protetiva e como a mutana repousava a mão sobre o peito da rainha, assegurando que
ele estava bem guardado.
Até que o primeiro berro de desespero foi dado, reverberando por toda a clareira e na
tenda aconchegante das novas amantes, que a cada compasso que se passava, mais amarradas
estavam.
— ESTAMOS SENDO ATACADOS!
Capítulo Dezoito
Umbra não está sozinha

Os olhos de Expedia abriram ao primeiro sinal de ameaça. Desvencilhou-se de Umbra,


que ainda se encontrava aturdida com a confusão que começava a crescer ao redor e a rainha
logo tratou de vestir sua malha e a brigantina. Não trocou de calças, ou se importou em colocar
sapatos, mas puxou a espada da bainha. Ela precisava ser rápida, antes que o perigo se infiltrasse
dentro da tenda.
Expedia não queria isso, muito menos com a sua costureira ali.
— O que-
— Fique aqui! — Ordenou a rainha, cortando qualquer pensamento alto da mutana. —
Não saia dessa tenda, ouviu? E se alguém entrar aqui, tem a adaga ali no canto. — Apontou entre
o colchão e a tenda. — Use-a, por favor, e não hesite. — A voz cortada já estava recheada de
preocupação.
Umbra tentou se levantar, mas a guerreira colocou a mão em seu ombro para impedi-la,
abriu a boca, mas o berro da morte e o som da carne rasgando a fez hesitar. Ela olhou para a
abertura da tenda e voltou os olhos para a mutana. Sorriu e beijou a testa de Umbra. Virou-se,
girando a espada no ar e abriu a abertura coberta pela tapeçaria pesada.
O que estava acontecendo diante de seus olhos estava longe de ser aquilo que
imaginava. A clareira calma e de relva prateada pintada pela Irmã Lua, agora se transformava em
um campo de batalha, com sangue e luta.
Seus cavaleiros estavam em desvantagem, não pela falta de experiência, mas pelo
inimigo atípico que estavam lutando contra.
Eles eram felinos gigantescos, tigres maiores que Expedia um dia poderia ter visto.
Eles estavam organizados e pareciam saber o que estavam fazendo, pois, desviavam das lanças
dos cavaleiros e contra-atacavam com exímio poder. Os ataques coordenados eram
estarrecedores, assistia dois tigres abocanharem os braços de uma cavaleira e puxarem em
sincronia para lados opostos, fazendo com que os membros se partissem.
Era ruim confessar isso, mas Expedia não sabia ao certo o que fazer, sua prática em
lutar contra animais não era extensa, normalmente, os caçava e o combate quase nunca era
necessário. Mas aqui estava ela e precisava fazer alguma coisa, antes que todos os seus homens e
mulheres morressem.
Correu para o centro da clareira, prestes a atacar um dos tigres que estava sobre um dos
seus cavaleiros. Os gigantescos dentes tentavam morder a cabeça do homem, mas antes de
chegar até lá, a boca encontrou um obstáculo. A manopla do cavalheiro impedia esse encontro,
mas sua mão foi completamente destruída, os ossos foram moídos pela fera. Porém, antes que
pudesse acudir o cavaleiro, agora praticamente desmembrado, sua visão periférica pegou o exato
momento em que um imenso tigre pulava em sua direção, com as patas erguidas no ar e a boca
sedenta para rasgá-la.
Expedia colocou as duas mãos no cabo de sua espada, levantou-a na horizontal, na
altura de sua cabeça e firmou seus pés descalços contra a grama. A fera mordeu a lâmina e a
rainha sentiu o impacto da massa corporal do felino colossal. A ponto de seus pés afundarem um
pouco no chão e suas pernas tensionaram para que pudesse sustentar o impacto tremendo.
Conseguia sentir a respiração do tigre em seu rosto. Os olhos da rainha fixaram-se em
um ponto bem ao centro da testa da criatura, uma lua cheia branca como uma pintura brilhante
estava desenhada sobre os pelos cintilantes. Ela voltou a encarar os olhos amarelos do tigre e
pôde jurar que algum tipo de racionalidade estava passando por eles.
Um arrepio desagradável passou pelo seu corpo. Uma sensação de quase morte que
passou por uma ou duas vezes em sua vida.
Em um súbito de adrenalina, a musculatura e o vigor de Expedia agiram. Colocou mais
força no punhal da espada, fazendo com que a lâmina passasse pelos dentes do tigre, certamente
trincando ou quebrando alguns pelo caminho, mas isso significava que o rosto da besta estava
mais próximo do dela, conseguiu até mesmo sentir o cheiro pútrido de morte recente no hálito do
seu atacante.
Ela não tinha muito tempo para pensar, se vacilasse em sua ação, sua cabeça seria
esmagada com uma facilidade tremenda. Soltando um berro feroz, aplicou ainda mais viço em
seus braços, ultrapassando os últimos dentes, e a lâmina encontrou o final da boca da fera, onde a
espada começou a romper a pele, entre a arcada dentária inferior e superior.
O tigre oscilou e rugiu em dor, Expedia tomou a oportunidade e virou a fera para o
lado. O animal foi ao chão em um estrondo alto, com a mandíbula levemente pendurada.
Sem qualquer hesitação, a rainha rodou a espada no ar e a ponta da lâmina foi de
encontro à têmpora da fera, atravessando por toda sua cabeça. O animal soltou alguns espasmos,
até que a sua vida foi simplesmente soprada para fora do corpo. Os olhos do tigre tomaram uma
cor leitosa e a lua no centro da testa foi se apagando.
Uma onda de orgulho passou pelo peito da rainha, junto a adrenalina que pulsava
dentro de si. Ela gostava de estar nesse estado, no calor da batalha, demonstrando para todos a
sua aptidão para encontrar a morte e decidir o destino final das vidas que iriam ser ceifadas em
sua mão ou na ponta da sua espada, forjada no vulcão dos Solares, que agora dormia
profundamente.
Expedia tentava controlar essa sede dentro dela, não queria ser a rainha sanguinária
como o seu pai, mas sentir o cheiro do sangue e os músculos tensos dentro de uma batalha era
viciante, algo que sequer poderia compreender direito.
A rainha retirou a lâmina da cabeça do tigre e sacudiu a espada para baixo. O sangue
acumulado na lâmina derramou-se em um arco escarlate quase perfeito perto dos seus pés.
Ela se virou para o cavaleiro que anteriormente estava sendo atacado, mas para a sua
não surpresa estava jazido sem vida no chão, com a mão mutilada e com o rosto deformado pelos
grandes dentes. Estava prestes a analisar o que estava acontecendo ao seu redor, quando em sua
frente, um pouco mais distante do homem sem vida, entre as árvores de copa cheias e longas,
surgiu uma mulher de cabelos brancos, vestida com um capuz e uma túnica verde-escura, com
penas fixadas em seus ombros. O vestido que usava eram remendos de couro com diferentes
cores, cordões adornavam o seu pescoço e a sua testa. Segurava um imenso cajado distorcido de
madeira com penduricalhos e mais penas penduradas em sua ponta.
De repente, toda a morte e confusão ao seu redor desapareceu, seu olhar se prendeu
completamente na mulher, que aparentava ser mais velha do que ela, talvez um pouco mais nova
que Nimala, entretanto, resguardando uma beleza um tanto diferente. Ela andava na direção da
rainha, descalça, parecendo ter uma estranha união com aquela terra, estava acompanhada por
dois imensos tigres, resguardando sua proteção, um em cada lado. Aquela pessoa era quem
resguardava o poder e Expedia sentiu isso em sua presença.
Infelizmente, sua distração custou caro, pois seu corpo foi projetado para frente, assim
que enormes patas foram de encontro com as suas costas. Caindo contra o chão, seu rosto foi de
encontro com a grama, terra e sangue, sujando a metade de sua face. Expedia tentou se mexer,
mas a pressão da fúria do tigre ainda se mantinha em seu corpo. Estava difícil de respirar e ainda
que tentasse sair dali, não era forte o suficiente para tal manobra. Olhou em volta e percebeu que
ninguém poderia ajudá-la. Seu corpo começava a gritar por ar, imobilizada, debatia-se
desesperadamente, enquanto observava a aproximação da mulher. Seus olhares se cruzaram e
pela primeira vez, depois de muito tempo, sentiu medo. Uma emoção que não a visitava com
frequência, mas que agora estava latente dentro de si e mesmo incapaz de se mexer, inutilmente,
continuou a lutar.
Todavia, sua noite parecia tomar proporções cada vez mais ilógicas, pois achou que seu
fim chegaria, mas isso nunca aconteceu, uma besta maior do que qualquer tigre que estivesse ali
apareceu em sua visão. O lobo branco com a meia-lua de sangue pintada em sua testa em sua
majestade destemida rosnava em direção a ela. Uma criatura em seu esplendor, em uma
dualidade que mesclava o mistério da noite e o seu perigo de espectro trevoso. A calma da
superioridade do lobo e o rosnar eram a mistura perfeita que alguém poderia ter. Se um dia
Expedia achou que detinha o poder de eliminar qualquer inimigo, aquele pensamento não existia
mais. Era aquele lobo que levava a morte consigo.
A rainha tinha a certeza de que a sua morte estava abraçando-a ternamente e seria
aquele lobo que a levaria para o reino superior junto a Deusa Sol.
A criatura correu em direção a ela, entretanto, no último segundo o ataque foi dirigido
ao tigre que estava em cima dela.
O lobo empurrou o felino com facilidade, graças a mordida dada na jugular. Os dentes
afundaram na carne e o choramingar do tigre foi ouvido. Ele cambaleou e o rio de sangue desceu
livremente pela pelagem e pela relva, nutrindo-a de forma distinta de tudo o que já provou.
Expedia olhava com certo fascínio o lobo que estava lhe cercando, ainda arredia com a
proteção repentina, mas continuava ali, admirando o pelo branco manchado de vermelho que
reluzia contra a luz da lua, trazendo um aspecto quase brilhante e mágico para aquele ser.
Observou a criatura rondá-la até parar em sua frente, colocou-se de lado com as patas
fincadas no chão, enquanto a boca soltava um rosnado em afronta à mulher misteriosa e aos
tigres.
Eles deveriam ter sentido o poder do lobo, pois os felinos pararam, assim como a
mulher e todo o restante na clareira ferida e ensanguentada.
De repente, toda a atenção estava sobre o lobo.
Recuperando-se aos poucos, Expedia tentou se levantar com a ajuda de sua espada.
Enterrou a ponta da lâmina do chão e apoiou seu peso no pomo dela. Seus joelhos protestaram
um pouco, enquanto voltava seu olhar para trás, onde vislumbrou a tenda com a tapeçaria aberta.
O coração da rainha bateu dolorosamente contra a sua caixa torácica, sentiu a falta de sangue em
sua cabeça e a tontura chegou no mesmo instante, certamente, quem a olhasse agora enxergaria a
palidez sobre a linda pele cor de oliva.
Imaginou sua costureira degolada pelas garras mortíferas dos felinos, caída sobre a
cama que dividiram após o longo dia de caminhada. O corpo gelado e sem vida, segurando a
adaga que repousava nas pontas de seus dedos. Os olhos brancos sem vida e vazios, destituídos
de calma serena, encaravam o teto da tenda, enquanto o filete vermelho de sangue escorria pela
sua boca, junto a terrível abertura que expunha sua carne e musculatura.
Negou-se a continuar alimentando aquela imagem apavorante em sua mente.
Seus olhos desesperados procuraram por Umbra, mas não havia nenhum sinal dela na
clareira banhada pela luz prata e pintada de sangue. Alguns dos seus cavaleiros agonizavam pela
vida, outros já não estavam presentes no mundo terreno, eram consideráveis as baixas que a
rainha sofreu. Infelizmente, Expedia não se importou muito com aquelas vidas tomadas por feras
nunca antes vistas sob os seus olhos. Sua razão estava nublada pelo medo e o cheiro da morte
que invadiam seus sentidos. Foi a primeira vez que se deu conta de que estava verdadeiramente
se afeiçoando demais pela sua costureira. Não queria perdê-la.
Colocando-se de pé, percebeu o quanto sua cabeça latejava pelo impacto que seu rosto
encontrou no solo. Não sabia dizer se estava sangrando ou não, pois, o sangue da besta embebia
a sua face, atada a grama e a terra. Sentiu até mesmo o gosto dessa mistura em sua boca, era
desagradável, mas tinha coisas piores para se preocupar.
Como sair dali viva e tentar encontrar Umbra.
A única opção que poderia fazer era lutar, e rezar para a Deusa do Sol que conseguisse
acabar com todos. Expedia já estivera em situações escabrosas, mas nunca como essa.
Novamente, sua percepção de batalha voltou. Percebeu que dois homens a cercavam,
corriam entre as árvores para atacá-la em sincronia. Eles não estavam sendo exatamente
silenciosos, os pés batiam contra os galhos secos e as folhas que cercavam a clareira rente às
raízes dos grossos caules das árvores. Eles saíram dentre delas e pularam em sua direção.
Expedia levantou a espada, preparada para o ataque.
Os homens não se encontravam com armaduras ou armas e ainda assim, vinham com a
certeza de que acabaria com a vida da rainha. Pela experiência da guerreira, não se permitiu se
vangloriar sobre inimigos desarmados. Era um erro subestimá-los e ela estava certa, pois diante
dos seus olhos a transformação ocorreu.
A pele humana se rompeu em vários segmentos e entre a derme e a musculatura a
pelagem do tigre nasceu, substituindo-a. Ao som de ossos se rompendo em sofrimento, os
membros, a face e o nariz daquelas pessoas também se modificaram, as pernas e os braços deram
lugares a imensas patas e longas garras, o focinho e os dentes do felino gigantes converteram os
lábios e o nariz humano. Quando aterrissaram no solo, as bestas estavam totalmente feitas e
nenhum resquício daqueles homens foi deixado para trás.
O lobo rodou para a direita, seu corpo tensionado e os grandes dentes à mostra
enquanto salivava, misturado ao sangue do outro felino que feriu mortalmente. Expedia
compreendeu o que a criatura queria, virou-se para a esquerda e por um breve momento, os olhos
se encontraram.
Uma sensação estranha se espalhou pelo corpo da rainha, o lobo exalava grandiosidade,
mistério e morte, mas o olhar era calmo, como a noite de verão, onde a lua se apoderava dos céus
em sua magnitude quase mágica. Ela já havia sentido aquilo antes, quando encontrou pela
primeira vez com-
Os tigres vieram em disparada para cima dela e da criatura. Logo a batalha
incomumente sincronizada foi oferecida para os olhares que ainda restavam dentro da clareira.
Expedia bloqueou com sua espada a patada do animal, cortando as almofadas
protetivas dela. Em um movimento rápido, a lâmina dançou no ar e um corte vertical cantou
contra o olho esquerdo e o focinho da criatura, fazendo-a choramingar. Por outro lado, o corpo
do lobo e do tigre, entraram em confronto direto, os corpos se chocaram e rugidos, rosnados e
mordidas foram desferidos.
— PARE! — A mulher gritou, ao chocar a base do bastão retorcido contra o solo.
Uma tímida onda de ar em forma circular reverberou até o combate e o som alto da
madeira se chocando contra algo maciço foi ouvido por todos. Imediatamente, os tigres recuaram
alguns passos, mas continuaram em sua posição de ataque, caso fosse necessário.
O lobo e Expedia continuavam tensos, concentrados no que poderia acontecer ao seu
redor. Expedia segurou o cabo da espada com as duas mãos e aproximou a lâmina em vertical
para perto de seu rosto. Flexionou as pernas, pronta para o próximo ataque. O lobo não ficou
para trás, voltou com suas patas para o chão, tensionando seus músculos na parte dianteira,
inclinando seu corpo levemente para trás. Pronto para a próxima mordida mortal, porém essa
pose não demorou por mais que alguns segundos.
Uma chuva de dardos vinda das copas das árvores, vieram na direção da criatura e da
rainha, e mesmo que fossem habilidosas, não conseguiram se esgueirar para evitá-las. Três
dardos chocaram-se contra as costas do lobo e um foi ao encontro do ombro de Expedia.
Merda… talvez se ela estivesse usando a capa feita por sua amante, a rainha poderia ter
uma mínima chance de se proteger da picada dolorida. A pele dos ursos escarlates era difícil de
ser penetrada, graças ao ambiente inóspito que viviam.
Expedia caiu de joelhos e seu pensamento rapidamente foi para Umbra e sua
segurança. Mais uma vez, procurou pela costureira, mas tudo o que viu foi o lobo vindo em sua
direção, tropeçando em suas próprias patas, sem conseguir sustentar seu imenso peso sobre suas
estruturas, como se estivesse embriagado. Os olhos novamente se encontraram e a sensação de
calma apoderou-se no peito da rainha. Ela caiu no chão, tentando manter os seus olhos abertos,
enquanto o lobo choramingava e desabava ao seu lado.
O focinho tocou em seu braço e as pálpebras da fera selvagem começaram a fechar, de
repente, Expedia queria gritar para que o lobo continuasse junto com ela. Talvez, juntas, elas
tivessem uma chance. Os olhos brancos do lobo pareciam lhe dar essa garantia.
Ela queria voltar para os braços de Umbra. Porventura, aquilo poderia ser um sonho,
queria acordar o mais rápido possível e se apertar ainda mais contra o corpo prateado, recomeçar
sua viagem e se perder nos olhos brancos e nas cicatrizes que tanto lhe atraíam. Esperava que
aquela fera pudesse ter protegido sua Umbra, ao invés dela, mas isso não aconteceu.
E o choro quis se manifestar dentro da rainha. Ela não queria fechar os olhos, desejava
sua segurança e a segurança de sua costureira. Pouco se importava com seus cavaleiros ou até
mesmo os seus servos, aquilo era errado, inumano? Sim, provavelmente. Mas seu egoísmo de ter
a tranquilidade da Umbra falou mais alto, entretanto, sua força não foi o suficiente, pois
sucumbiu à escuridão, sentindo o focinho gelado da criatura em sua mão.
Capítulo Dezenove
O esquecimento de uma nação

Desde que sua nova vida começou, o que não tinha sido mais do que alguns acúmulos
de noites, seu corpo sofrido acostumou-se rapidamente com a maciez de um bom colchão. Seu
ser havia se curado acima de um encontrado refúgio nos braços da rainha, aprendido a dormir e
até mesmo a sentir preguiça, um luxo que lhe foi tirado desde que tinha lembrança.
Possivelmente, seus olhos continuavam fechados, pois, seu corpo encontrava-se sobre um
colchão macio, não tanto quanto o de seu novo quarto no palácio, mas a sua consciência não
sabia daquilo, já que continuava a dormir, ao menos era o que parecia. Estava de lado, bem
encolhida, como se estivesse com frio, mas era apenas os últimos resquícios do composto de
raízes e ervas que corria por sua corrente sanguínea.
Foi apenas alguns minutos depois, após os raios acariciarem o seu rosto que Umbra
abriu os olhos lentamente. Franzindo o cenho e piscando algumas vezes para assimilar a
claridade repentina em sua íris branca, Umbra gemeu em dor quando tentou movimentar os seus
membros, mas eles protestaram, fraquejando levemente, quase como se negassem a se mover.
Eles ainda não a obedeciam totalmente, devido à toxina que se espalhou em seu corpo. A dor a
fez se lembrar dos acontecimentos da noite passada e em um súbito de adrenalina a mutana foi
capaz de levar a mão para as costas e se certificou de que os dardos não estavam mais ali. Ficou
um pouco surpresa ao deparar que havia um tecido entre sua pele e ela, foi quando se deu conta
que estava com um vestido de alças de cor branca. Alguém havia colocado aquela roupa nela.
Finalmente, seu cérebro começou a funcionar e uma enxurrada de perguntas nasceram
em sua cabeça. Nenhuma delas estavam sendo respondidas.
Umbra olhou em volta, ainda com a extrema dificuldade de se sentar. Definitivamente,
estava longe de seu novo lar, na realidade, a mutana nunca havia visto algo como aquele lugar.
O lugar em que estava era arejado, espaçoso e longo. As paredes que lhe cercavam
eram de madeiras retorcidas, grossas e ásperas que se erguiam junto a plantas, folhas, galhos
menores e grossas raízes que traspassaram pelo local e nelas objetos eram pendurados em cordas
ou cipós. Janelas abertas de circunferências irregulares distribuíam-se em dois pares nas paredes
da sua esquerda e direita. Umbra percebeu olhando para elas que estava no alto, pois as copas
das árvores estavam em sua visão.
Ao seu lado direito, vislumbrou uma mesa de quatro lugares com velas gastas sobre
castiçais de ferro, um recipiente com frutas e pães, um jarro de barro e um copo de metal. Umbra
sentiu sua boca seca e desejou poder se hidratar um pouco. Estava um pouco enjoada para
alimentos, mas o que ela não daria por um copo de água.
Uma rede de cor vermelha erguida um pouco alto demais estava fixada entre um dos
galhos que saíam do chão e da parede, ficando assim, localizada debaixo da janela. Para subir
nela e aproveitar o seu balanço, seria necessário escalar um pouco do galho que servia de
alicerce. Já em seu lado esquerdo, havia apenas um armário de metal com entalhes de flores
geométricas pintadas, mas com a tinta levemente oxidada devido à mistura do material e o passar
do tempo. Um barril vazio e uma porta pequena de madeira clara vigiada por uma sentinela
vestida apenas com calças largas e uma blusa branca, que segurava em sua mão um bastão, sem
qualquer lâmina do lado pontiagudo. Não era muito necessário portar armas mortais quando você
era uma. Umbra não era inocente, sabia que aquela guarda era como ela ou algo parecido.
A mulher de cabelo curto e loiro não estava lhe dando qualquer atenção, continuava a
olhar para frente, ignorando a sua presença.
A princípio tivera o ímpeto de levantar-se e sair em disparada para cima da sentinela,
talvez assim pudesse ter alguma chance, mas aquilo seria idiotice. Sentia-se fraca e não tinha
ideia de onde estava.
Foi então que o som de metal se chocando tomou sua atenção e Umbra virou a cabeça.
Na sua frente, a alguns passos de onde estava, uma escada de madeira levava para um mezanino
totalmente aberto, onde prateleiras de livros, pergaminhos, frascos e potes se espremiam em
estantes tão longas quanto as paredes, entre elas, havia uma mesa imponente com um livro aberto
ao centro, cristais e bugigangas que Umbra não conseguia distinguir pela distância que estavam.
Havia uma mulher de costas para ela, vestida com uma túnica verde com ombreiras de penas
negras, parecia estar distraída, trabalhando em alguma parafernália no canto da grande mesa de
madeira.
A mutana a observou e constatou que mesmo de costas, aquela mulher era a provedora
do ataque que sofreu.
— Eu nunca vi alguém como você. — As primeiras palavras foram ditas para Umbra.
A voz daquela mulher era firme e com a rouquidão típica das cordas vocais falhas. Ela se virou
para a mutana e com as mãos ligadas em frente ao corpo, desceu o primeiro degrau. — Permita-
me, me apresentar: Eu sou Unema.
Umbra continuou a encará-la sem dizer qualquer palavra.
A aproximação de Unema a afetou um pouco, primeiro, a mulher era atraente. O cabelo
tinha a cor da neve da noite de inverno que a cidade de Gelidus fornecia para os cidadãos da
região gelada, misturando-se com o pouco de castanho-claro de uma noz recém-capturada de um
roedor. Suas sobrancelhas eram grossas, acompanhando a cor dos fios de seus cabelos, e seus
olhos eram pequenos, mas levemente puxados para cima, eram quase — ironicamente — felinos,
a cor deles era de um estranho e enigmático amarelo em tons diferentes de verdes. O seu nariz
era convexo com uma leve cicatriz atravessando-o horizontalmente. As linhas de expressão
estavam presentes no rosto de Unema, a mistura das marcas de guerras e da vida afetaram a
mutana, aquela mulher era uma guerreira. Seu corpo era firme, austero, sustentava conhecimento
e provavelmente a morte. Chegou até mesmo a encarar os lábios finos, enquanto se perguntava
como seria o tigre de Unema.
— Normalmente, quando nos apresentamos, a pessoa que ouve nosso nome responde o
dela de volta.
— Umbra.
— Um nome de acordo com a sua fera. — Unema comentou, ao puxar a cadeira perto
da mesa de comida.
— Vocês são iguais a mim — comentou a mutana.
— Iguais, não. — A mulher se sentou na frente de Umbra. — Como eu disse, eu nunca
vi ninguém como você, mas você definitivamente é um semelhante.
— Onde nós estamos?
A mutana olhou em volta, registrando o local mais uma vez e, em virtude de seus olhos
aguçados, viu um pequeno roedor de olhos esbugalhados com pelagem amarela e calda longa e
felpuda adentrar sua toca particular dentro de um dos grossos galhos que sustentavam parte da
casa. Definitivamente, a fauna e a flora faziam parte daquele povo que se transformava em
ferozes e sublimes felinos.
— Em um lugar seguro para semelhantes como você. Longe do perigo.
— E quanto aos-
A voz de Umbra foi cortada, sua garganta reclamou pela secura e uma série de tosses
tentaram explodir pela sua boca. Tentou reprimi-las, mas infelizmente não foi capaz de se
segurar.
Unema se levantou, pegou o jarro de barro e virou a boca em direção ao copo de metal.
A água cristalina praticamente brilhou contra a claridade do sol que batia exatamente em cima da
mesa.
A mulher voltou e ofereceu o copo para Umbra.
— Sua luta de ontem foi formidável e mesmo claramente sem treinamento conseguiu
me surpreender. Parte de mim está interessada no que és, a outra com raiva, pessoas importantes
vieram a falecer.
— Eu sinto muito — respondeu rapidamente, pareceu o certo a se fazer, mesmo que no
final das contas, estivesse apenas tentando se defender.
A mutana recolheu o copo em suas mãos e fitou o conteúdo ali dentro. Molhou os
lábios com a língua, ansiando ter o líquido fresco rolando por sua boca, mas encontrou-se
hesitante, incerta se a água era apenas água, ou se tinha mais alguma coisa ali dentro.
— Vá em frente, se eu quisesse você morta, já estaria. — A mulher apontou o óbvio,
retornando mais uma vez para a mesa. Pegou uma maçã e o jarro de água, e os depositou perto
dos pés da mutana.
Unema tinha razão e, com certo desespero, levou o copo à boca e a tomou com anseio.
Uma fina linha de água desceu pelo canto dos seus lábios, manchando levemente o tecido do seu
vestido branco, mas não se importou, apenas continuou a beber até que o copo estivesse vazio.
— Infelizmente, a toxina lançada no seu corpo tem seus efeitos colaterais, como a
constante necessidade de se hidratar. Por favor, não hesite em tomar a quantidade que necessita.
— Unema continuou a falar e, mais uma vez, se sentou na frente da mutana.
Umbra limpou o canto da boca com o nó do dedo e colocou o copo apoiado entre as
suas coxas.
— Eu sei que tem muitas perguntas e irei respondê-las, mas antes de tudo quero que
saiba que sua amante está viva, assim como os servos. Eu iria matá-la, mas me dei conta de
quem ela era e isso é um problema, um problema que não preciso. — A mulher retomou a fala.
— Por quê?
— Você alguma vez já ouviu falar da gente, Umbra?
A mutana apenas balançou a cabeça em negativo.
— Justamente, esse é o problema. Nós trabalhamos e vivemos longe de todos. Para a
nossa segurança e a segurança deles.
— E o que nós somos? O que eu sou? — Umbra perguntou com certa inquietação, era
a primeira vez em sua vida que poderia descobrir mais do que ela representava.
— Nós somos aquilo que chamamos de crianças perdidas. Um nome que eu
particularmente acho um desaforo, mas foi assim que nossos antigos começaram a nos chamar.
Uma mistura entre os Solares e Luares, ou Luares e Luares, mas não qualquer Luares. Isso soa
confuso, eu sei.
— São os seguidores do culto do terceiro Deus, não é?
Aquilo pegou Unema de surpresa.
— Conhece a história?
— Pouco. A filha da Deusa Lua se entregou para o terceiro Deus e, junto a conflitos,
houve uma separação entre elas.
— Exato. As matriarcas do Sol e da Lua começaram a ter constantes desentendimentos
sobre a governança do povo, mas o estopim foi a tentativa de assassinato que a matriarca da Sol
tentou fazer com a filha da matriarca da Lua. Nenhuma mãe reage bem quando percebe que seu
filho é ameaçado. As duas se separaram após um conflito que levou à quase morte da matriarca
do Sol e foi naquele momento que houve a separação. Os povos que um dia foram um se
desmembraram em dois. A questão é que dentro desse conflito social, a filha da matriarca da Lua
desapareceu com os seus seguidores, deixando sua mãe só, depois de tudo o que ambas
passaram. Depois de começarem a cultuar esse terceiro Deus, sob a lua escarlate, a filha da
matriarca tornou-se poderosa, sendo a nova mãe de uma incrível civilização. As seguidoras
tiveram a chance de conceber filhos especiais, mas era necessário haver uma mistura entre
Luares e Solares com esses Luares especiais. Com o tempo, o culto foi se minguando, devido à
fanatização da filha matriarca da Lua. A história acabou se perdendo e cá estamos nós, herdamos
essa mesma capacidade. Entretanto, não são todos que recebem essa benção. Por isso, somos um
número insignificante comparado aos reinos, e vivemos em reclusão, assim preferimos. Há
alguns Luares e Solares conosco, alguns que desertaram e nos encontraram, outros que se
apaixonaram por nós. É como se nossa sociedade fosse construída para manter um equilíbrio.
Gostamos desse jeito.
— Acho estranho que nunca tentaram ir atrás desse Deus novamente ou de vocês.
— Não há evidências sobre nós, apenas a mitologia. Nossa própria história pode ser de
fato uma lenda, não sabemos, é apenas como nos contaram. Deusas e Deuses podem ou não
serem reais, tudo é questão do que você acredita e na sua perspectiva.
— Entendo, mas me pergunto, vocês são poucos agora, e se a pessoa que pode prover
filhos como eu, não quiser? — Umbra perguntou, fascinada com tudo aquilo que estava sendo
dito para ela. Começou a se sentir mais forte e confiante, conseguindo até mesmo se mover um
pouco na cama. Inclinou-se para baixo e enquanto ouvia Unema falar, serviu-se um pouco mais
de água.
— Então, não tenham. Temos pessoas que preferem não procriar, ou pessoas como
você e eu que apenas se envolvem com as pessoas do mesmo sexo e está tudo bem. Ainda assim,
temos um incrível jeito de continuarmos. Somos prósperos. Nós poderíamos escolher procriar
sem parar e tentar crescer mais e mais, só que nossa sociedade não necessita e não quer isso.
— E por que os felinos? — Outra pergunta saiu dos lábios de Umbra e após feita,
tomou um pouco mais de água fresca. Parecia que quanto mais tomava, mais a sua fome
começava a aparecer.
— Como a filha da matriarca da Lua amava felinos, a presenteou como forma de
agradecimento por trazer o seu culto novamente dos escombros da terra. Você é a primeira loba
que encontro e a maior. Até mesmo maior do que eu. Isso parece ser perigoso e fascinante ao
mesmo tempo. Porque não tenho ideia de como isso aconteceu.
— Vocês não têm a meia-lua como eu, por quê?
— Não sei — resumiu a governanta.
— Vocês não têm interesse em reviver o culto?
— Não — respondeu Unema, de forma cortante.
— E por que você está dividindo toda essa informação comigo?
— Eu não sou o tipo de mulher que retém informação, convenhamos, é sempre
perturbador quando nós descobrimos tudo aos pedaços. Eu não sou a inimiga aqui e nem quero
ser. Deixo isso para os seres que gostam de difundir desinformação.
— Mas você matou aqueles guardas.
— Que poderiam descobrir o que nós somos e lidamos com o problema antes deles se
tornarem um, mas agora, tenho um ainda maior, a rainha sob os meus olhos. Não posso matá-la,
isso seria perigoso demais, mas também não posso deixá-la simplesmente ir. Não desejo acordar
daqui a alguns dias e ter tudo o que construímos em paz ser totalmente quebrado.
— E você espera que eu faça alguma coisa. — Umbra completou o raciocínio.
— Exatamente e, com isso, posso tentar te ajudar a descobrir quem você é.
— Por quê?
— Como eu disse, você é única. Fascinante. Sempre tive interesse genuíno na
descoberta.
Umbra olhou sobre o ombro da mulher e constatou pela quantidade de livros,
bugigangas metálicas e frascos de vidros que, de fato, aquela mulher tinha um interesse legítimo
pelo conhecimento. Arrastou o seu quadril para a beirada da cama e com a ajuda das mãos tomou
impulso para se levantar, mas suas pernas falharam. Os braços firmes de Unema vieram acudi-la
e a sentinela que o tempo inteiro estava ali de prontidão, pela primeira vez se moveu, vindo em
direção às duas.
— Eu estou bem… achei que pudesse-
Umbra estava envergonhada por demonstrar sua fraqueza de maneira tão repentina. Por
algum motivo, depois de sua conversa com a mulher, que certamente era a governanta daquele
local, achou-se confiante para consumir algum nutriente para o seu estômago, mas estava errada.
A mutana tocou nas penas negras nos ombros de Unema e, sob o seu toque, reparou o
quanto era macia a penugem. Firmou-se mais e aceitou a ajuda da governanta, pois suas pernas
insistiam em tremer, sua musculatura parecia ter enfraquecido.
— Tifa, por favor, você pode me alcançar a vasilha com frutas? — Unema pediu
gentilmente, enquanto colocava Umbra novamente sentada na cama. — Coma e descanse mais
um pouco, em breve te levarei para a sua rainha. — Ajeitou a mutana da melhor maneira
possível. — Logo, estará totalmente limpa da toxina.
— Ela está sendo assistida?
— Ela está fora de perigo.
Não era bem o que Umbra queria ouvir, mas bastava nesse momento.

∞∞∞
Com os nós dos dedos feridos sobre a mesa, a rainha Expedia se situava ao centro de
uma habitação de cinco paredes de madeira com grandes janelas que formavam imensas folhas
de árvores e se afunilavam ao teto repetindo o mesmo padrão das grandes paredes principais. As
pilastras que sustentavam o local eram entalhadas em formato de árvores de uma madeira mais
clara que o restante da estrutura. O ambiente era claro o suficiente para que o lustre sobre a sua
cabeça estivesse totalmente apagado.
Diante da rainha sentada, dois guardas estavam de prontidão, sustentando apenas
cajados em suas mãos e vestidos em roupas simples, calças pretas e blusas brancas, eles eram um
homem baixo e uma mulher gorda e musculosa. Expedia sentiu-se levemente mais ameaçada
encarando a guerreira do que o rapaz, mas negou-se a entregar qualquer tipo de sentimento que
pudesse demonstrar qualquer tipo de fraqueza. Afinal, ela era a rainha, e mesmo não tendo a
menor ideia do que estava acontecendo, seu orgulho quase inabalável continuava na feição
cansada e ferida.
— Eu realmente só gostaria de saber se a mulher que estava comigo se encontra viva.
— Expedia insistiu pela terceira vez, antes de lubrificar a garganta seca com a saliva. Já havia
desistido de perguntar de seus soldados ou de seus empregos e, bem, para dizer a verdade, a
única pessoa com qualquer significado pessoal naquela caravana era Umbra.
E pela terceira vez, foi totalmente ignorada.
Expedia queria sair dali, matar todos que estivessem em seu caminho e achar sua
costureira, mas naquele instante, estava simplesmente incapaz de efetuar qualquer decisão
impensada, ainda que fosse um pouco impulsiva, qualquer erro poderia lhe custar a vida e a
guerreira Solares não tinha pretensão nenhuma de morrer cedo, ela queria viver o máximo que a
Deusa Solar poderia lhe oferecer e esperava que fosse muito.
Seus membros estavam doloridos, sua garganta arranhada devido à falta de lubrificação
e sua cabeça latejava em proporções quase assustadoras, estava fraca. Quase uma inválida, que
humilhação seria se seus súditos lhe vissem assim. Com isso, soltou um riso curto e baixo. Olhou
para a mesa e ao lado de seu punho preso por uma grossa argola de metal, jazia um copo de
metal vazio. Seguiu a corrente presa na argola, até encontrá-la fixada no chão por outra
igualmente maciça, perto dela a água manchava o piso de pedra junto aos cacos do que havia
restado do jarro de barro. Arrependeu-se profundamente do ato de rebeldia, quando foi levada
para aquele local. Em cortesia, lhe trouxeram água e, em uma típica soberba comum de Expedia,
um tapa de desdém fora dado no jarro. Agora ela estava com sede e parecia que a cada minuto
que passava a sensação desértica em seu corpo estava piorando, consequentemente, tudo o que
sentia apenas se acentuava.
A rainha estava presa como um rato enclausurado, perdida e sem qualquer
conhecimento do que estava acontecendo em sua volta. Ela detestava aquele tipo de ignorância,
pois isso significava desvantagem e estar nessa posição tendo o título que carregava era
arriscado. Mas agora nada poderia ser feito, ela deveria esperar, eventualmente aquela mulher
iria procurá-la, se Expedia estava viva era porque existia um motivo. Ademais, não poderia
deixar de reconhecer o fato de estar intrigada por aquelas pessoas que se transformaram em
terríveis e sanguinárias criaturas.
Como ela nunca havia ouvido falar daquilo antes? Confiava em seus cartógrafos e em
seus rastreadores, como poderiam ter deixado escapar aquele local? Talvez, aquelas pessoas
fossem boas em se esconderem, talvez nenhum cartógrafo ou rastreador tenha conseguido sair
desse local vivo. Aquilo modificava toda a sua perspectiva, seus sequestradores queriam se
manter nas sombras. Deu-se conta, eles eram perigosos, mas aquilo era meio óbvio, aquelas
pragas se transformavam em animais, algo de heresia total. Desrespeitando qualquer coisa que
um dia a perfeição da Deusa Mãe Sol poderia ter feito.
Expedia teria que jogar o jogo da paciência, algo que não perseverava muito nela.
Dentro do seu ser, ela queria gritar de raiva e chorar, chorar pela frustração de estar cercada e
aprisionada. Estava descontente com as suas habilidades de guerreira, dos acontecimentos que a
levaram até ali. Da preocupação de seu povo que poderia passar fome, mas também, o seu lado
egoísta pulsava em querer saber do paradeiro de Umbra.
Pelas Deusas Irmãs, ela esperava não enlouquecer.
∞∞∞
Umbra estava se sentindo mais forte. Após comer calmamente a refeição disponível na
mesa, levantou-se pela segunda vez com a ajuda de Unema, que a direcionou para uma porta
embaixo do mezanino e a mutana tivera a oportunidade de tomar um banho morno.
Foi dada a ela uma muda de roupa, uma única peça, um vestido azul de apenas um
ombro, acompanhado de uma fita grossa de um tom amarelo para prender em volta de sua
cintura. Botas de cano-baixo também foram dadas a ela.
Em sua frente, dentro da espremida sala de banho, havia apenas uma tina de madeira,
similar à que tinham na tenda em que dividiu com a sua rainha. Atrás de si, Umbra pôde reparar
um espelho gasto, olhou por cima de seu ombro e suspirou em alívio quando atentou que os
ferimentos causados pelos dardos estavam cobertos pelo tecido do vestido no qual cobria a
escápula e o ombro. Esperava que os três prontos levemente esverdeados sumissem de sua pele o
mais rápido possível, assim poderia evitar qualquer pergunta de sua rainha. Em sua mente, já
tinha o plano arquitetado para que Expedia não suspeitasse de qualquer coisa e esperava que
Unema aceitasse embarcar com ela nessa mentira.
Assim que terminou de se arrumar, saiu do banheiro. A governanta e dois guardas a
esperavam. Ela olhou desconfiada para a trupe e hesitou dar qualquer outro passo, mesmo
acertando a paz imediata com a governanta, estava mais uma vez, sem opções, detida. Eram
irônicas e trágicas às vezes que a vida dava isso para Umbra.
— Iremos te escoltar até a sua rainha. — Avisou Unema em um tom cordial, ao apontar
para a porta de madeira. — Nosso lar é pequeno, então não é muito longe daqui.
— Onde é aqui? — Umbra perguntou, ao andarem em direção à porta.
— NossDomuss.
E assim, a porta foi aberta. Tomou o primeiro passo para fora da casa em que estava e a
visão que tivera era praticamente impossível de descrever com a maestria do lugar em que havia
chegado. De repente, achou que ali era a sua casa, a sensação de lar se apoderou completamente
de si. Era como se ela estivesse voltando para casa depois de um longo dia.
A mutana estava na base da copa de uma gigantesca árvore, seus troncos eram tão
grossos que um pequeno terreno havia sido construído naturalmente e, com isso, a capacidade da
construção de uma casa foi possível. Não apenas uma, mas algumas, pequenas, mas a árvore
antiga era capaz de sustentá-las. Em seu largo e imponente tronco, um caminho de madeira foi
construído em espiral para acompanhar a geometria natural dele e menores casas foram
construídas por todo o seu comprimento. Umbra tomou alguns passos, colocando-se próximo ao
parapeito da pequena sacada que a casa tinha e vislumbrou outras poucas árvores com a mesma
arquitetura, ligadas por pontes de madeiras altas e, embaixo delas, um lago extenso com mais
casas e estabelecimentos comerciais em sua beirada, que seguia até o alto de uma colina baixa.
Em volta desse pequeno mundo particular, muitas árvores escondiam a cidade escusa,
talvez fosse por isso que Umbra nunca havia notado ou ouvido falar de NossDomuss.
— É lindo — murmurou a mutana, mesmo que a palavra não pudesse dar jus ao que
estava vendo.
Unema apareceu ao seu lado e colocou a mão sobre o ombro de Umbra.
— E pacífica, assim que quero que continue.
— Eu falarei com a rainha.
— Eu sei. Eu não quero problemas, porque eu sei que somos poderosos, mas somos
poucos e não quero que meu povo sucumba. — Unema declarou, enquanto começaram a andar
pelo caminho de madeira. — Vivemos isolados por um motivo.
— Faz sentido e compreendo, minha vida toda eu-
Umbra olhou para baixo, enquanto acompanhava suas botas baterem ritmicamente
contra as tábuas.
— Você? — Unema incentivou a jovem mutana.
— Me usaram pelo que eu era. Isso aqui… — Mostrou seus braços com as cicatrizes
que desenhavam o seu corpo como tinturas permanentes — foi o resultado do que eu sou.
— Eu sinto muito por isso. Foi a sua aman-
— Não! — Umbra sacudiu a cabeça em negativa. — Minha mãe. Expedia me salvou,
mas… — Respirou fundo em desalento. — Ela não sabe o que eu sou.
— Medo?
— E proteção.
— Um segredo que poderá vir à superfície a qualquer momento — comentou Unema,
ao pegar uma jarra de barro de um dos guardas que as acompanhava logo atrás.
— Aparentemente, não existe uma hora certa para dizer isso.
— Não, e quanto mais ela te desejar, quiser e amar, mais difícil ficará. Mas não irei
contar nada, o seu segredo está confinado comigo e não pedirei para qualquer Luares penetrar em
suas memórias. Acima de tudo, mesmo que nós sejamos diferentes, somos iguais.
— Obrigada.
E assim continuaram a circular pelo caminho de madeira até chegarem à rua principal
de terra batida. As pessoas a olharam com grande interesse, pois ainda que todos se
transformassem como ela — ou quase todos, Umbra era a única a ter a pele quase prateada.
Talvez fosse uma condição, uma doença. Em geral, cidades eram cidades e ali não era muito
diferente. Pessoas transitavam, se comunicavam, compravam, riam e acenavam para a
governanta Unema.
Umbra não podia negar, aquela mulher era interessante, emanava poder de um jeito
diferente do que Expedia tinha. Ela ainda não sabia ao certo a diferença, mas era existente.
Quando chegaram próximo da ponta da colina, a mutana pôde ver a estrutura de
madeira e vidro, e lá dentro estava Expedia, com a cabeça levemente pendida para frente. Seu
coração disparou e apressou o seu passo. Abriu a porta e o estrondo que anunciou sua chegada
fez com que a rainha levantasse seu rosto em susto.
Seus olhos estavam semiabertos e seus lábios secos. Entretanto, seu ferimento estava
cuidado e ela usava roupas frescas, usava uma calça preta e uma blusa de manga branca. A
argola metálica chamou a atenção dos olhos brancos e Umbra correu, ficando ao lado de sua
rainha. Tocou a corrente e logo em seguida segurou o rosto de Expedia que ainda parecia em um
estado semiconsciente. Seus olhos tentavam fixar em Umbra e o cenho foi franzido, a impressão
era que não acreditava que sua costureira estava ali.
— Por que a corrente?! — Exigiu a mutana irritada, enquanto desviava o seu olhar para
Unema parada perto da porta.
— Quando acordou, se tornou agressiva, quebrou o nariz de um guarda — justificou a
governanta, ao se aproximar e colocar o jarro de barro em cima da mesa. — Ela vai ficar melhor
depois da água, mas dê em poucas doses.
Umbra não pestanejou, colocou a cabeça de Expedia apoiada em sua barriga, enquanto
servia o líquido transparente no copo de metal. Com cuidado, abaixou-se para ficar na altura dos
olhos de sua amante, segurou o queixo de Expedia e levou o copo aos lábios secos.
— Devagar… — pediu a mutana, ao virar o copo.
Assim que Expedia molhou a sua boca, os sentidos pareciam ter sido redobrados e
logo, começou a sorver a água com certa veemência.
— Cuidado — avisou Umbra.
Mas a rainha não deu ouvidos, aquilo era um néctar. Porém, em sua última golada,
engasgou-se.
Umbra se levantou, retirando o copo dos lábios de Expedia e repetiu o processo,
encheu-o mais uma vez e de novo levou à boca da rainha. Todavia, desta vez, Expedia conseguiu
segurar o copo com uma mão, mas sua cabeça tombou levemente e mais uma vez apoiou-se na
barriga da costureira.
Expedia fechou os olhos ao beber a água e sentir a proximidade de sua amante
novamente.
Ela estava viva.
— Por favor, tire isso dela. — Umbra pediu, referindo-se a corrente que enclausurava
sua rainha.
— Eu quero, mas ela pode ferir mais pessoas. Temos crianças e idosos aqui. — Unema
advertiu.
— Eu ainda estou fraca e não tenho ideia de onde estou. Estaria em desvantagem
absoluta se quisesse fazer algo contra vocês. — Expedia disse com a voz ainda fraca, mas
definitivamente estava se sentindo bem melhor. — Não que eu não tenha pensado em fazer isso,
mas ao final das contas, seria burrice.
— Sim, seria — concordou a governanta.
A rainha colocou o copo em cima da mesa e seus olhos quentes começavam a retornar
em total alerta. Mirou-os para Umbra à procura daquele olhar calmo, queria se certificar que ela
estava bem.
— Estou melhor. — A mutana havia entendido a comunicação não verbal. — Que bom
que está bem.
— Eu fiquei com receio de te perd… — A rainha sentiu seu queixo tremer, mas negou-
se a demonstrar qualquer tipo de vulnerabilidade frente aos seus inimigos (não sabia como os
chamar ainda). Expedia respirou fundo e seus olhos se voltaram para a mulher que coordenou o
ataque contra ela. — A cordialidade ainda vive por aqui?
— Certamente. — Unema sorriu de lado e acenou para um de seus guardas, que se
aproximou. — Sou Unema, governanta de NossDomuss. — Colocou a mão sobre o peito e
curvou-se levemente.
— Um lugar bastante excêntrico. Diferente, devo admitir, algo que nunca vi antes.
A governanta pegou a chave da mão do guarda, apoiou seu quadril na mesa e esticou a
mão em direção a Umbra.
Enquanto abria as algemas do pulso de Expedia, ouviu-a se apresentar para Unema.
O baque alto da corrente se chocando contra o chão de pedra e o caco do primeiro jarro
quebrado fez com que o silêncio nascesse por alguns segundos. Expedia aproveitou o momento
para apertar o pulso e rodá-lo em seu eixo, certificando-se de que tudo estava bem com ele, claro
que o incômodo muscular e a ardência em sua pele iriam persistir, era justamente com esse braço
que usava a sua espada, que não estava em nenhum lugar à vista. Por um momento, olhou para
Umbra e se perguntou se era essa a sensação que tinha quando estava aprisionada, seus pulsos
tinham cicatrizes de algemas e amarras. Aquele simples pensamento foi capaz de fazer borbulhar
a raiva dentro da rainha, mas não era o momento de perder qualquer tipo de fio de paciência. Era
clara a desvantagem.
— Agora, sabendo quem eu sou, sabe que temos um problema gigantesco, não é? —
Expedia perguntou em retórica, não era preciso uma resposta, a tensão que se construía no
ambiente fresco e em toda a situação construída era um tanto perceptível.
— Ao menos que você queira. — Unema disse.
Com isso, Expedia riu.
— Você nos atacou. Matou meus guardas e os meus servos. Aprisionou a rainha dos
Solares, olha, a lista de desgosto só aumenta. — Disse com autoridade, ao abrir um pouco mais
as pernas e relaxar levemente contra o encosto da cadeira.
A soberba começava a voltar à superfície.
— Não, seus empregados estão vivos. Assim como ela. — Unema olhou para Umbra.
— Ainda assim, nos atacaram — insistiu Expedia, ao dar de ombros.
— Uma de suas guardas adentrou mais a floresta e viu uma das minhas.
Aparentemente, sentiu-se ameaçada e a atacou. Infelizmente, nossos últimos meses têm sido um
tanto atribulados. Estávamos à procura de uma criança nossa que foi sequestrada. Ela não é como
nós, mas vive conosco. Adicionado ao fato de estarmos caçando uma criatura que vem rondando
nossas terras, acreditamos que é como um de nós. Estamos procurando pistas e o caçando
diariamente. Meus guardas estão tensos e nervosos com tudo isso que está acontecendo. E
quando vocês apareceram, tudo saiu do controle, normalmente, não usamos a força física.
— A criatura é o lobo.
— Exato — concordou a governanta. — Gostamos de viver na surdina, mas
ultimamente tem sido cada vez mais difícil, alguns que nos ameaçaram a soltar o nosso segredo,
tiveram suas memórias apagadas pelos nossos Luares, quer dizer, não apagadas, mas
modificadas.
— E por que não tentaram fazer isso com a gente? — Expedia exigiu com a voz
recheada de cólera. Parte porque havia acabado de descobrir o plano frustrado da governanta e
outra pelo simples fato de saber que iria ser manipulada por Luares.
— Tentamos. Nós não conseguimos fazer isso com você — ponderou a governanta,
direcionando a fala para a rainha. — Já Umbra, não vi qualquer necessidade.
Aquela informação era nova para as duas mulheres sequestradas.
Umbra não conhecia ninguém que pudesse ser imune aos poderes dos Luares, se não
fosse por Nimala, ensinando-a isolar suas memórias, muitos saberiam do seu passado. Unema
apenas não ordenou penetrarem em sua cabeça, pois havia a curiosidade genuína pela mutana.
Por outro lado, Expedia ter aquela informação modificava muita coisa. Seu ego iria ser
massageado mais uma vez. Ela era superior.
— Seus servos foram bem cuidados e não mais se lembram do ataque. — Unema
voltou a falar, ao cruzar os braços embaixo dos seios. Ela olhou em direção à porta e do alto da
colina, pôde ver um pouco do comércio e algumas das casas construídas nos troncos da árvore.
— Expedia, eu faço o que posso para proteger o meu povo. — Os olhos amarelos de tons verdes
voltaram para a rainha dos Solares. — Assim como você, não quero que nos destruam.
— E você não quer retaliação? Você matou os meus melhores cavaleiros e não quer
que eu-
— Não está em posição para se irritar, está?
— E você não está em posição de me ameaçar! — Expedia esbravejou, batendo
fortemente as duas mãos na mesa.
O copo caiu e o jarro também.
O corpo de Expedia projetou-se para frente, reunindo todo o seu esforço para se
levantar, quando conseguiu impulso o suficiente em seus braços, ergueu-se em sua glória,
fazendo até mesmo a governanta se afastar um pouco da mesa e os guardas atrás dela se
ajustarem para o ataque, mas a rainha ainda se encontrava fraca. Seu corpo não aguentou o
próprio peso e suas pernas fraquejaram, estava prestes a desabar no chão quando Umbra
envolveu-a com os braços.
A mutana se desequilibrou um pouco e sentiu os seus membros protestarem, ainda não
estava totalmente recuperada da toxina, mas foi capaz de firmar Expedia e então ajudá-la a se
sentar novamente.
Quando se certificou de que a rainha estava novamente segura, pequenos pontos negros
pintaram a visão de íris branca e foi ela que procurou por suporte. Seus pés se atrapalharam um
pouco e sua mão procurou a mesa, levando a outra na altura da testa e a sacudiu.
— Você está bem? — A pergunta preocupada veio de Unema e de Expedia.
A governanta e a rainha se olharem no mesmo instante.
— Estou, eu-
Novamente, a tontura veio em seu corpo e pela segunda vez, Unema estava ao seu lado
para ampará-la. Seus braços acudiram o corpo ainda fraco e a mutana aceitou-os, segurou o
ombro e o antebraço da governanta, a fim de procurar estabilidade.
— Uma cadeira, rápido! — Exigiu a governanta em um latido para os seus guardas.
Expedia olhou a cena e detestou testemunhar Umbra ser amparada por outros braços
que não fossem os dela, mas não havia nada que ela pudesse fazer, estava fraca. Inútil.
— Por favor, Expedia, você já está com uma tensão cada vez mais intensa com os
Luares, não traga mais conflito para você e para eles. — Umbra pediu, enquanto era colocada na
sentada ao lado de sua rainha. — Eles são poderosos, mas são poucos, muito poucos, se você for
atrás da vingança… não serão apenas soldados que irão morrer, podem ser todos eles.
— Como eu vou explicar para a família dessas pessoas que morreram, Umbra? —
Expedia perguntou genuinamente aflita, esperando uma solução para todos os seus problemas
que pareciam infinitos.
— Nós pensaremos em algo — afirmou a mutana dividindo o mesmo sentimento que a
sua rainha guerreira. — Meu único receio é que tudo isso tome uma dimensão ruim para todos.
Recolheu a mão de punho ferido de Expedia, virou a palma da mão para cima e beijou
o pulso, raspando os lábios na pele lesionada.
A rainha sentiu suas bochechas esquentarem pela exibição de carinho perante os olhos
de novas pessoas, mas nada podia fazer, pois, já se encontrava perdida nos olhos calmos e no
toque que tanto ansiava por sentir desde o momento em que recobrou sua consciência.
Como poderia negar algo a Umbra? Afinal, ela tinha razão, mas o seu orgulho sempre
sombreava o seu caminho. O que faria? Cederia para uma governanta desconhecida? Ou
procuraria retaliação?
— Nós honraremos os seus guerreiros. Faremos um rito de passagem e eu lhe ajudarei
a prover soluções para esses questionamentos. — Unema garantiu em um tom sério e respeitoso,
curvando-se um pouco, em sinal de respeito à rainha em sua frente.
— E quanto ao lobo? — Expedia perguntou diretamente a governanta. — Aquele lobo
que me salvou, vocês o capturaram afinal?
— Infelizmente, não. — Uma mentira que Unema e Umbra confabularam juntas. —
Ele vem trazendo um pouco de trabalho para a gente, causando ataques a ladrões ou
desafortunados que passam pela estrada auxiliar quase nunca usada. Não queremos chamar
atenção para o nosso povo e ultimamente, com o sequestro da criança e o lobo, as coisas não
estão saindo como planejado. O exemplo está bem na minha frente.
Expedia tinha muitas perguntas e sua cabeça não estava lhe ajudando a pensar. Tudo o
que queria agora era se fortificar e poder tomar boas decisões, ela não poderia apenas pensar em
si, mas tinha que pensar em seu reino e suas implicações. Esconder algo tão grande como isso
poderia ser traição, mas esconder aquelas pessoas poderiam salvá-las não apenas dos Solares,
mas dos Luares também.
Ela olhou para os olhos brancos e em retorno apertou a mão de sua costureira, junto a
um aceno positivo com a cabeça.
Era inacreditável como o bem-estar daquele ser enigmático e quase mágico se tornava
cada vez mais importante.
Capítulo Vinte
As Crianças Perdidas de NossDomuss

Após a conversa não muito longa entre as duas mulheres de poder e Umbra, a
governanta insistiu que ficassem aquela noite, assim poderiam se recuperar melhor, garantir o
rito de passagem dos cavaleiros perdidos, conversar ainda mais e, caso quisessem, estavam
convidadas a interagir com os cidadãos de NossDomuss.
Expedia estava se opondo um pouco à ideia, afinal, aquela cidade entre as árvores era
desconhecida para ela. Qualquer um que andava sobre aquela terra poderia se transformar em
uma ameaça real. Ali era um terreno desconhecido, dentro de seu próprio reino, estava
desprotegida sem sua cavalaria, que no final das contas não serviu para muita coisa, suas roupas
e a espada leal, sentia falta do peso da sua lâmina em seu quadril, do pomo que segurava para
impor a sua imagem real. Perguntou-se, onde ela poderia estar?
Para dizer a mais absoluta verdade, estava sendo confuso lidar com tudo o que estava
acontecendo. Em resumo, havia acabado de contactar, pela primeira vez em sua vida, um povo
que não sabia da existência. Seu lado monárquico e imperador insistia em voltar para essas terras
junto a uma excursão depois de resolver o problema que o seu reino estava enfrentando com os
Luares. Mas Unema tinha razão, levar desconhecidos para lá poderia trazer implicações
geopolíticas para os reinos, desentendimento e morte. Sem contar o interesse dos seres fora do
continente, aquilo tudo poderia se tornar uma catástrofe. A rainha ainda não sabia o que fazer.
Seja como for, por insistência de sua costureira, ficariam aquela noite ali e talvez, só talvez,
tenha sido uma boa ideia, pois assim que um acordo foi tratado perante as falas, a governanta lhe
ofereceu um aposento no cume da maior árvore e mesmo sentindo dores musculares terríveis,
Expedia vestiu a máscara do orgulho monárquico e andou com certa dificuldade lado a lado a
Umbra até chegarem ao destino. Durante o seu trajeto, observou as pessoas de NossDomuss e
elas pareciam felizes, assim como em seu reino. A única diferença era que algumas delas
transformavam-se em terríveis feras mortais. Expedia não podia negar a beleza do local, as
árvores eram tão cheias, altas e robustas, que suas folhas quase cobriam o brilho do sol,
impedindo-o de chegar no lago que decorria todo o local.
Gemia em dor e em desconforto, enquanto subia pela trilha de tábuas fixadas pelos
troncos e sentia o suor formar uma camada considerável de umidade em seu corpo. Era um
pouco estranho, pois Umbra parecia estar consideravelmente melhor do que ela. Talvez fosse a
toxina que havia invadido suas veias sanguíneas e o impacto que seus membros encontraram ao
se chocarem contra a grama não tão macia da clareira.
Fechou os olhos quando sentiu os raios do sol penetrarem sua pele, enquanto subiam e
estavam cada vez mais próximos à copa da árvore. O vento fresco que passava pelo seu corpo
parecia ajudá-la a seguir em frente, foi ele o responsável por mexer as grandes folhas sobre a sua
cabeça e a luz quente esgueirar-se entre a natureza fechada daquele lugar, iluminando a face de
aparência quase enferma.
Quando finalmente a porta da pequena casa foi aberta para as amantes, Expedia
suspirou em alívio, era bom estar em um local aconchegante e bem-arrumado.
Aparentemente, em todos os prédios e estruturas daquele local, a natureza se
incorporava com grande naturalidade. Ao seu lado esquerdo, havia uma lareira de pedra pequena,
um sofá diante dela que descansava sobre um tapete gasto, mas limpo. Ao lado esquerdo da
lareira, localizava-se uma prateleira baixa com seis nichos e roupas bem dobradas, junto com
jogos de lençóis, cobertores e uma manta de pele, estavam devidamente organizados. Do lado
direito da lareira, continha uma pequena estação de utensílios para comida e uma escada de mão
que se conectava a um mezanino, onde havia um armário, uma rede e uma estante com livros e
objetos decorativos entalhados no próprio tronco da árvore. Ao centro da sala, uma mesa com
quatro lugares também repousava sobre um tapete e, finalmente, encostada na extremidade
oposta ao mezanino e a lareira, a cama de casal com lençóis brancos.
— Descansem um pouco — ofereceu a governanta, atrás das duas mulheres. — Há um
ensopado recém feito dentro daquela panela. — Unema apontou para a panela de ferro com
tampa em cima da mesa. — Caso queiram esquentá-la, é possível usar a lareira. Há toalhas na
estante e embaixo da escada tem uma porta que leva vocês para o banheiro.
Umbra se virou para a governanta e sorriu em agradecimento.
— Nos veremos daqui a algumas horas, virei pessoalmente pegar vocês para o jantar e
para a passagem — informou Unema. Estava prestes a se retirar quando voltou com os olhos
para as duas mulheres. — Após isso, temos uma confraternização, fiquem à vontade em falar
com os nossos, irão ver que não somos ruins. — E assim, a governanta se retirou, fechando a
porta atrás de si.
Após o clique do trinco da porta, ambas se encontraram sós, e a sinergia pareceu
acontecer, pois, os braços envolveram os corpos debilitados em urgência. Elas se apertaram uma
contra a outra e mesmo sentindo o desconforto da força desesperada que usavam, era uma
sensação bem-vinda, significava que elas estavam vivas.
— Eu pensei que-
Expedia soluçou e se agarrou mais em Umbra. O choro preso em sua garganta ameaçou
sair e foi ali que percebeu que o repreendeu por todo esse tempo, desde o primeiro momento em
que abriu os olhos naquele lugar estranho, mas com uma beleza particular nunca vista antes.
Exatamente como Umbra. E foi apenas agora que conseguiu reconhecer o conforto de ter
novamente sua costureira perto de si, era estarrecedor o quanto se via cada vez mais entrelaçada.
Era a primeira vez em muito tempo que derramava lágrimas.
Seu rosto escondeu-se no pescoço de cicatrizes, negando-se a demonstrar a sua
vulnerabilidade perante os olhos brancos, mas o choro e o ombro tenso continuaram.
— Eu estou bem, estou viva — garantiu a mutana em um sussurro gentil.
Os dedos de Umbra passaram pelo cabelo castanho e cacheado de sua guerreira.
— Eu ficaria furiosa caso não estivesse e mataria a todos.
— Eu sei…
Umbra se deu conta de que estava ficando cada vez mais importante para a rainha dos
Solares.
— Eu estou com fome, mas preciso me deitar, meu corpo está-
Umbra se afastou um pouco, segurou o rosto da rainha entre as suas mãos e beijou-lhe
lentamente.
— Deite-se, eu posso te servir um pouco de comida na cama, a gente descansa e toma
um banho.
— Está bem…, mas… primeiro, fique um pouco comigo. — Expedia pegou a mão de
Umbra e a guiou para a cama.
Antes de se deitar, a rainha retirou sua blusa branca e Umbra viu as costas musculosas
e nuas em sua frente. Reparou no ferimento circular no ombro de Expedia, ele parecia pior e
mais lesionado do que o que ela carregava. Achou que o grau da dor e da recuperação delas
diferia devido ao que Umbra representava. Quando estava com a sua besta, a pelagem da mutana,
assim como o couro da pele do lobo, era mais resistente, sua carcaça também lhe trazia ainda
mais poder, vigor e defesa.
Por mais uma vez, seus dedos tocaram a pele de oliva. Eles se espalharam pela
musculatura e a extensão de toda a coluna até chegar perto do ferimento. Para sua surpresa,
estava limpo e medicado, mas halos vermelhos e roxos mostravam o impacto que a agulha fizera
no corpo da rainha.
Ela se aproximou, circulando a cintura de Expedia e seus seios cobertos tocaram as
costas musculosas. Gentilmente, o roçar dos dedos continuou, retirando o cabelo que se espalhou
em vida própria e o colocou por cima do ombro não debilitado, já que o ferido foi recebido por
um carinho dos lábios da mutana.
As duas ficaram paradas por alguns instantes, Expedia relaxou a sua cabeça, tombando-
a para trás, apoiando-se e confiando no toque de Umbra, enquanto a costureira continuava a
beijar em volta da pele ferida e o acariciar dos dedos continuou sobre a barriga tonificada.
Deitaram-se sobre os lençóis, repousando sobre os travesseiros macios. Olharam-se em
silêncio, ouvindo o farfalhar da natureza lá fora e o som tímido da pequena cidade. As
respirações quentes eram sentidas nos rostos cansados e as mãos se seguravam rentes aos seios
de ambas.
O desconforto do corpo da rainha pareceu lhe dar uma trégua mais amena, talvez fosse
pelo simples fato da aproximação da mutana, na realidade, tinha certeza de que era, pois
finalmente poderia relaxar um pouco mais. Ela estava ali, viva. Assim, as lágrimas encheram os
olhos e o nó do dedo indicador de sua costureira secou aquelas que escaparam.
— Eu tomei uma verdadeira surra. — Expedia tentou suavizar um pouco as emoções
profundas de apego e importância que pulsavam cada vez mais forte entre elas.
E Umbra riu baixinho.
— Você continua sendo uma guerreira incrível.
— Que falhou miseravelmente, em breve, irão começar a me procurar, não acho que
seja bom ficarmos muito tempo aqui.
— Você realmente vai deixá-los em paz?
Com isso, Expedia mudou de posição, colocou-se de costas para cama, seu abdômen
desenhado e seus seios se espalharam na visão de Umbra. Um suspiro cansado foi dado e a
rainha levou os dedos para os cantos dos olhos.
— Eu deveria estar com muita raiva, procurar retaliação, esmagá-los pelo que fizeram.
Eles são únicos, mas acho que existem coisas que devem manter-se escondidas. Para o nosso
bem e o bem deles.
Surpreendida pela verdade da Expedia, Umbra sentiu um estranho alívio passar pelo
seu corpo. Com um sorriso satisfeito, levou a mão para a barriga de Expedia e acariciou com os
dedos.
— Eu não deveria concordar mais — comentou a mutana, pensando na ironia da
situação.
— Acredito que estou sem força para comer qualquer coisa, eu preciso muito dormir.
Acho que preciso só de um pouco de água.
Expedia fez menção de se levantar, mas foi impedida por Umbra, que colocou a mão
espalmada no centro do seu peito e a empurrou delicadamente de volta para a cama.
— Eu pego — disse a mutana, já se colocando de pé.
Para a sua sorte, encontrou um jarro com água ao lado da panela, entretanto, não
encontrou nenhum copo que pudesse servir a rainha. Enquanto se dirigia para a prateleira com os
utensílios, ouviu Expedia perguntar:
— O que eles fizeram com você? Digo, até pouco tempo atrás eu pensei que estava
morta.
Umbra abria o armário da estante, quando parou com a sua mão pendurada no
segurador da porta de madeira pintada de verde-claro. Seu coração bateu rápido, quase
dolorosamente, pois teria que mais uma vez mentir para sua rainha.
— Eu fiquei na cabana como mandou. Um homem entrou e eu tentei atacá-lo, mas ele
me desarmou. — A mutana contava a história fictícia, ao tempo em que apanhava o copo de
madeira e fechava a porta do armário. — Acho que não sou uma guerreira, foi patética a luta. —
Soltou um riso frouxo, imaginando que se essa mentira fosse verdade, seria exatamente assim
que aconteceria. — Ele garantiu que não ia me machucar e eu fiquei com medo de gritar e você
se distrair… então, mesmo desarmada, tentei ir para cima dele. Ele enfiou a mão em uma bolsa
lateral de sua calça e assoprou um pó roxo em meu rosto. Não levou mais do que segundos para
eu simplesmente apagar.
Pronto a história foi contada e esperou que tivesse sido convincente o bastante.
— Eu sinto muito por não estar lá.
E aquilo doeu ainda mais no peito da mutana.
Dirigiu-se para a mesa, pegou o jarro de barro com uma mão, enquanto a outra
segurava o copo, sentou-se na cama e despejou a água nele. Virou-se levemente para a sua
amante, que cuidadosamente colocava-se de lado e apoiava-se no cotovelo.
— Obrigada — murmurou a rainha, ao pegar o copo e tomar uma golada.
— Assim que acordar terá que comer, ao menos um pouco. Não sabemos quanto tempo
levará a cerimônia — advertiu a mutana, ao recolher o copo e o depositar no chão, ao lado do
jarro, perto do pé da cama.
— E você novamente querendo mandar em mim.
Expedia deitou novamente e Umbra juntou-se a ela.
— É, acho que eu levo jeito para isso. — A mutana falou, ao se ajeitar mais perto de
sua rainha. Depositou a cabeça no ombro de Expedia e abraçou a sua cintura. — Mas eu me
preocupo.
— Eu sei e agradeço por isso. — A voz da guerreira estava calma e baixa.
Quando Expedia olhou para cima, os olhos quentes e castanhos estavam fechados e a
respiração tornava-se cada vez mais pesada. A pobre rainha deveria estar absolutamente cansada
e depois do estresse ocorrido pelas horas desde o ataque, finalmente, foi presenteada com o
descanso. Umbra guardaria o seu sono, iria se certificar que sua amante pudesse descansar, até
que sua força fosse restaurada.

∞∞∞
Os pés descalços sobre a maciez da neve congelavam os dedos de unhas arroxeadas em
virtude do frio que passava em seu corpo magro e negligenciado, coberto apenas por um
maltrapilho que mal poderia ser chamado de vestido. Devido ao corpo debilitado e trêmulo pelo
vento raivoso, a vestimenta parecia grande demais, e também longe do ideal para afastar o cruel
álgido que penetrava sua pele quase prateada.
Os cabelos úmidos criavam pequenos flocos de gelo em suas pontas e estavam duros o
suficiente para não se mexerem com a fluidez que suas madeixas sempre faziam. Eles escondiam
o rosto retorcido pela dor e os olhos vazios e estarrecedores miravam as mãos instáveis, sujas
pelo sangue não pertencente a ela.
A íris branca olhou para frente, quando um grito furioso cortou o vento e chegou até
ela.
Puxou o ar gelado pela boca preenchendo os pulmões antes de soltá-lo em uma lufada
gasosa. O pânico percorreu por todo o seu corpo e Umbra virou, correndo em direção à floresta
de árvores retorcidas e peladas. Seus pés afundavam no gelo dificultando sua corrida, pisava em
gravetos e machucava a pele fria, deixando assim um rastro de sangue para trás. Pulava os
troncos que pareciam ter afinidade com o solo, pois tão estranhas eram aquelas árvores que
cresciam mais na horizontal do que na vertical.
Seus pulmões ardiam, assim como a musculatura de seus membros, mas nada a fazia
parar de correr. Ela sabia que se parasse tudo chegaria ao fim, mas a sorte nunca parecia sorrir
para o lado da mutana, pois quando encontrou outro tronco retorcido e fez menção de pular,
sentiu seu pescoço sendo puxado para trás e consequentemente, o seu corpo encontrou a neve
fofa, trazendo uma onda de dor e gelo.
A risada metálica e conhecida vinda dos lábios de sua mãe deixou Umbra desesperada.
Colocou as mãos sobre a sua coleira, tentando inutilmente se livrar dela, mas tudo o que
conseguia era arranhar a pele já machucada.
Ela estava sufocando, o couro se apertava cada vez mais contra sua garganta e sua
agonia de se livrar do frio e do terror apenas atenuou mais sua asfixia.
— Você nunca vai se livrar de mim, minha querida. — Luriel falou atrás dela.
A mutana não conseguia ver a sua mãe, por mais que tentasse. Luriel resguardava um
poder tão grande sobre Umbra, que mesmo não a enxergando na floresta soturna, ela era capaz
de sentir a presença dela. A mutana estava em pânico, debatia os seus membros contra a neve e
suas mãos procuravam qualquer coisa para se agarrar, mas nada estava ao seu alcance.
Umbra sentiu outro tranco forte em sua coleira e gritou, levando mais uma vez as mãos
a ela, foi quando percebeu a corrente presa na argola fixada no couro em sua nuca. Logo se viu
arrastada sobre a neve como um animal de carga para os braços de sua mãe.
— NÃO!!!!
Os olhos brancos se abriram e Umbra se sentou em um solavanco violento. Sua
respiração estava falha e seu corpo trêmulo, suado. Olhava em volta, tentando reconhecer o lugar
em que se encontrava, ainda estava claro, mas o crepúsculo iria acontecer a qualquer momento,
reparou pela deficiência de iluminação alaranjada vazando através das janelas e da dificuldade
que a luz tinha de entrar, já que as folhas atrapalhavam. Sentiu o toque ao centro de suas costas e,
em reflexo, projetou o seu corpo para fora da cama e estapeou a mão que a encostou. Ao cair
sentada no chão, Umbra colocou os pés e as mãos no chão e de costas para ele, tomou alguns
passos para trás, antes de perder a força e se arrastar para a parede, onde ficava a porta.
Encolheu-se e com os seus olhos arregalados olhou para a pessoa que a tocou, reconhecendo
Expedia assustada com os lençóis sobre o seu corpo.
— Umbra? — A voz preocupada e rouca pelo sono carregado fez com que mutana
pudesse relaxar um pouco o estado atordoado que se encontrava.
— Eu… — Umbra esforçou-se para falar, mas hesitou, levando sua mão para o
pescoço e massageando a área, sentindo a pele sensível e estranhamente dolorida.
Expedia retirou o lençol de seu corpo, vestiu sua blusa branca e pulou da cama,
ignorando um pouco sua tontura e o enjoo repentino. Em passadas largas e pesadas pela
preocupação que se instalava cada vez mais afinco dentro de si, colocou-se ajoelhada de frente
para a mutana, levantou a mão para tocar o joelho de Umbra, mas em último instante desistiu.
— Foi uma lembrança? — Perguntou a rainha com cuidado, à procura do olhar branco,
que parecia evitá-la de vergonha.
— Como você…
— Eu não sei, apenas imaginei. Quer dividir?
Os olhos de Umbra encheram-se de lágrimas.
— Estava sendo arrastada na neve, usando a coleira. Eu era um pouco mais nova e
alguém me puxava para a escuridão de uma floresta — contava a mutana, endireitando-se um
pouco.
Com extrema cautela, Expedia repousou a mão sobre o joelho desnudo de Umbra e a
mutana aceitou o toque, pois seu corpo inclinou levemente para frente.
— Eles não estão mais aqui, ninguém irá te ferir novamente — garantiu a rainha com
furor. — E se um dia você se lembrar deles, quero ser a primeira a saber, irão pagar caro.
— Expedia...
— É verdade — assegurou a rainha. — Ninguém mais irá lhe tocar — afirmou, antes
de roçar o seu nariz contra o de Umbra.
Ela era o frescor dentro da tormenta que Expedia tinha em sua vida particular.
— Eu espero que não. — A melancolia e o medo enevoaram os pensamentos de
Umbra, mas a aproximação de Expedia e o beijo recebido no meio da sua testa, foram capazes de
acalmá-la mais um pouco. — Desculpe ter lhe acordado. Você precisa descansar e eu atrapalhei
isso.
— Não peça desculpas por algo que não foi deliberado — declarou Expedia, ao voltar
seus olhos para Umbra. — Quero apenas me assegurar de que está bem.
— Tudo bem… estou melhor — assentiu a mutana ao colocar um sorriso pequeno em
seus lábios. — Acho melhor a gente se levantar. Eu vou esquentar a sopa e você vai para o banho
— falou em um tom mais animador.
A rainha fez um bico de desgosto, enquanto se levantava.
— Você poderia se juntar a mim — ofereceu a rainha, estendendo a mão para Umbra.
A mutana queria dividir a banheira com Expedia e se afugentar na água morna junto ao
corpo forte, mas tinha receio de que seus ferimentos pudessem chamar a atenção, não poderia
arriscar, ao menos não no claro.
— Nós sabemos que se eu me juntar a você, não iremos sair nunca daquele banheiro.
— Com a ajuda de Expedia, se levantou do chão, depositou as duas mãos no peito da rainha e
beijou-lhe os lábios. — Prometo que após o jantar junto com os NossDomuss, irei recompensar
você.
Expedia não estava satisfeita e como uma criança mimada jogou a cabeça para trás e
reclamou soltando um som pela garganta. Um ato que fizera Umbra rir.
— Você tem sorte d’eu gostar muito de você. — Expedia dividiu seus sentimentos, ao
voltar a olhar para a mutana.
Sentindo o corpo esquentar por uma onda de sensações boas, Umbra ruborizou e beijou
mais uma vez a boca de Expedia.
— O sentimento é totalmente recíproco. Mas agora vá!
A mutana virou a rainha em direção a porta do banheiro e a empurrou pelos ombros,
antes de dar uma palmada na bunda de Expedia.
— Ei!! — A guerreira meneou a cabeça para trás e espremeu os olhos em uma falsa
indignação. — Você não pode me bater assim e não me fazer companhia.
E assim, Umbra gargalhou.
Logo o pesadelo foi esquecido e pelas Deusas, ela estava nas nuvens!

∞∞∞
Era difícil de admitir, mas o ensopado feito para Expedia e Umbra veio de fato a
calhar, principalmente por revigorar o estado corporal da rainha. As colheradas chegavam em sua
boca em uma velocidade longe de ser a etiqueta ideal para uma monarca, mas a guerreira não se
importou, a abóbora como ingrediente central a fez ansiar por um segundo prato.
Um pouco mais contida, Umbra comia observando a rainha se deleitar com o alimento,
contente por vê-la melhor e com a mesma vestimenta do dia em que deixou a capital. A mutana
descobriu que apreciava com bastante apreço Expedia vestida com o traje de guerreira,
especialmente a brigantina, que lhe dava um ar ainda mais dominante. Infelizmente, a espada não
havia sido entregue, já era de se esperar, pois a relação de confiança entre a governanta e a rainha
ainda estava sendo construída.
Diferentemente de Expedia, Umbra encontrou um vestido nas prateleiras perto das
toalhas e cobertores, achou-o lindo, resolvendo assim usar. A peça verde musgo continha
pequenas aberturas laterais em suas mangas longas, ligadas por anéis, assim como nas laterais de
suas costelas. Os ombros de Umbra incluíam um material rígido assemelhando-se às escamas
negras que desciam até a metade de seus antebraços. Novamente, a diversidade entre o novo
casal era bastante contrária, mas certamente atrativo para os olhos que as encontrava.
Após o ensopado, a noite se fazia presente, Umbra e Expedia conversavam
tranquilamente ainda sentadas à mesa com os seus pratos vazios e as colheres descansando sobre
eles. A rainha estava relativamente mais bem-disposta e mais serena. Sorria com mais facilidade,
junto a sua ironia e o toque de soberba que Umbra começava a se acostumar. E foi com uma
risada baixa da mutana que foram interrompidas por leves e contidas batidas na porta.
Levantaram-se ao mesmo tempo, em que Unema adentrou a pequena e charmosa casa.
— Estão prontas? — A governanta perguntou, com os braços ligados para trás, sob a
capa azul que usava.
As penas majestosas continuavam orgulhosamente em seus ombros.
Umbra assentiu.
Novamente, Unema liderou o caminho com as duas visitantes logo atrás e dois guardas
para assegurar a proteção de todas.
Enquanto desciam a rampa que levava à encosta do lago, Umbra vislumbrou
maravilhada o brilho da cidade sob a escuridão da noite refugiando as estrelas e a lua dos olhares
dos moradores de NossDomuss. As árvores iluminadas traziam um brilho amarelado e
estranhamente aconchegante, pareciam grandes vaga-lumes em meio a natureza.
Seguiram pela rua à margem do lago, admirando o comércio e os cidadãos daquele
pequeno mundo fantástico em que a mutana encontrou após o destino quase cruel. Eles não
pareciam tão diferentes dos Luares ou Solares, ao menos não as características físicas.
Aparentemente, crianças gostavam de estar em volta de Umbra, pois, quando estavam
chegando perto do local onde encontrou Expedia pela primeira vez na cidade, uma menina com
um pouco mais de seis anos, banguela e de cabelos crespos avermelhados se aproximou.
— Você é muito bonita! — A criança em sua espontaneidade falou, enquanto sorria
abertamente com as bochechas de coloração levemente rubra.
— Alguém já ganhou uma admiradora — comentou a governanta, ao olhar para trás
através de seu ombro.
Umbra encarou a menina pequena e devolveu o sorriso.
— Obrigada…
— Você se transforma que nem a gente? — A curiosidade da menina aguçou rápido, ao
passo em que praticamente corria para acompanhar os adultos.
A mutana arregalou os olhos e sentiu seu rosto esquentar.
Unema olhou novamente para trás ao passo em que contornavam a casa de vidro.
— Só um instante? — Interrompeu a rainha dos Solares. — Você também se
transforma naqueles felinos?
— Uma versão… filhote. — Unema teve certa dificuldade de encontrar a palavra certa
para descrever a transformação daquela menina.
— Isso deve ser fofo — comentou Expedia.
— E é — concordou a governanta.
— Não, infelizmente não. — mentiu Umbra.
Estava cada vez mais difícil ter que sustentar toda essa história.
Finalmente, chegaram a um grande espaço quase circular de grama-rasteira sobre um
penhasco não muito alto. Próximo ao precipício, camas de madeira estavam construídas e os
corpos dos soldados de Expedia que repousavam sobre elas estavam cobertos por cetim
vermelho. Ao lado de cada cama, continha uma tocha fincada ao chão e um grande ramo de
flores coloridas, localizado atrás delas.
Alguns soldados à esquerda do local estavam ajoelhados e de cabeça baixa, enquanto
as lanças dos guerreiros pessoais da rainha estavam à frente deles. Já ao lado direito, homens e
mulheres seguravam instrumentos musicais, principalmente tambores e flautas. Esses vestiam
uma capa semelhante à de Unema, mas a quantidade de penas era relativamente menor do que as
da governanta. Alguns cidadãos estavam espalhados pelo lugar, aguardando o rito de passagem
começar.
Expedia poderia estar com raiva naquele momento, mas ao invés disso, sentiu uma leve
gratidão por seus guerreiros serem enviados aos céus dos Solares de maneira honrosa, mesmo
que aqueles guerreiros ajoelhados sobre o chão, possivelmente, fossem os assassinos dos seus
cavaleiros, a rainha não desejou vingança. Ela ainda não confiava naquelas pessoas,
principalmente em Unema, era uma mulher poderosa, mas que havia se afeiçoado por Umbra,
poderia isso ser uma vantagem, não, na realidade, isso a deixava em desvantagem.
Perguntou-se se as situações se invertessem, se fossem guerreiros de NossDomuss que
estivessem mortos, seria Expedia capaz de presentear uma honraria para eles? Ela já tinha a
resposta. Nunca. O orgulho de Expedia era demais para tal. Ela jogaria os corpos ao mar e muito
provavelmente exploraria seu poder sobre a governanta.
Unema foi para o centro do espaço e os soldados se levantaram, pegando as lanças.
Silenciosamente, levaram as armas e as deitaram ao lado dos corpos dos cavalheiros.
Posicionaram-se e pegaram as tochas fincadas no gramado.
— Valentes cavaleiros — começou a governanta. —, fizeram o papel leal de proteger a
sua rainha, infelizmente, foram ceifados pelo medo que nos persegue por anos e anos a fio,
minhas condolências e desculpas caminharão sempre ao lado da rainha dos Solares. Serão eles
honrados por seus trabalhos, cultivados nas memórias daqueles que os amam e lembrados na
história do grande reino celestial dos Solares.
Assim, os soldados repousaram a chama sobre os tecidos de cetim empapados de
querosene e o fogo logo lambeu os corpos, formando incríveis piras que quase alcançavam os
céus.
Expedia sentiu um leve e superficial remorso, em geral, a rainha tinha dificuldade de
sentir emoções extremas. A única pessoa que conseguia extrair esses tipos de sensações era
Umbra. Um típico estereótipo que a irritava, a amante que foi capaz de desabrochar emoções na
dura rainha. Mas afinal, estereótipos existiam por um motivo, assim como os clichês, e a rainha
estava caminhando para isso. Esperou profundamente que Umbra não a decepcionasse.
O som dos tambores começou a nascer, retumbando o peito das amantes, enquanto as
madeiras e os corpos viravam cinzas ao olhar brilhante de Expedia, que refletia o fogo.
Após alguns bons minutos, Unema caminhou até elas, depositou a mão sobre o ombro
de Expedia e a rainha seguiu com os olhos o toque inesperado.
— Minhas palavras foram verdadeiras.
— Assim eu espero. — A guerreira não era fácil.
— Expedia… — Umbra tentou repreendê-la, de uma maneira que não soasse rude,
para o seu alívio particular, a rainha baixou sua guarda e apenas assentiu para a governanta.
— Vocês podem circular pela cidade, o jantar será oferecido em breve dentro do nosso
templo pessoal — informou Unema, ao apontar entre as mulheres para a estrutura de madeira e
vidro.
E dessa forma, a governanta se retirou.
Não foi uma surpresa para nenhuma das duas quando se encontraram um pouco
deslocadas de tudo. Andavam lado a lado, não tão longe do templo dos NossDomuss,
observando o que a cultura nova poderia oferecer para elas. No final, eles não eram tão diferentes
dos Luares e Solares, já que muitas iguarias desses dois lugares estavam expostas em vitrines e
balcões, claro que havia coisas, objetos e até mesmo alimentos os quais nunca tinham colocado
os olhos antes. Umbra estava mais curiosa do que a rainha, Expedia começava a se sentir
desconfortável e desejava profundamente voltar para o seu palácio. Ela não pertencia àquele
local.
— Vocês não pertencem aqui. — A voz de uma senhora, sentada em uma cadeira de
balanço e um cachimbo nos cantos dos lábios murchos falou.
Expedia e Umbra estavam em frente a uma pequena e simpática tenda com objetos
decorativos, a princípio todos eles partiam de madeira e penas coloridas como principais
matérias-primas.
— Nós não queremos causar nenhum tipo de imposição. Em breve, iremos embora. —
A mutana garantiu em um tom gentil, ao olhar para a senhora que sugava as bochechas sem
qualquer flacidez para tragar a erva que queimava no fornilho do cachimbo.
— Do que adianta? Se vocês já destruíram o que levamos anos e anos para levantar. —
A velha reclamou, antes de retirar o cachimbo da boca e cuspir uma quantidade grande de saliva
nos pés da rainha. — Solares acabaram com a minha vida e agora Unema trazem eles para cá.
— Você é uma Luares? — A coloração do implícito desgosto de Expedia foi notada
por Umbra.
— Meu marido foi morto por um soldado Solares, os seus cavaleiros deveriam ser
esquecidos e seus cadáveres jogados aos porcos. — A velha falou ao se levantar com a
assistência de uma bengala com a clara dificuldade de se firmar em pé.
Foi assim que a rainha percebeu que a Luares com quem falava era uma velha
amputada.
— Eu sugiro que se você não quiser perder sua outra perna, o melhor a se fazer é calar
a boca… — Expedia proferiu entre os dentes em um sussurro intimidador, enquanto agarrava o
colarinho da mulher e a puxava para si.
A velha bengala de madeira escura despencou da mão ossuda e de veias proeminentes.
A chama do lampião próximo iluminou o olhar quente da rainha, que encarava os olhos
levemente tomados por catarata, devido à idade avançada da mulher.
— Expedia!! — Umbra exasperou, ao segurar o braço da rainha, na tentativa de
impedir que algo pior pudesse acontecer. — Por favor, não vale a pena — pediu a mutana ao
apertar seus dedos em volta da pele de sua amante.
— Minha rainha, por favor, Samira está velha, ela não sabe o que fala. — Uma quarta
voz brotou no pequeno espetáculo violento que poderia começar a se montar.
Expedia e Umbra direcionaram o olhar para um jovem rapaz, que se assemelhava à
idade da mutana, descendo um pequeno lance de escadas que ligava a uma varanda de madeira
com pilastras grossas enrodilhadas pela natureza e logo acima do teto de tijolos limento. O
letreiro iluminado apresentava o nome do bar com portas de vaivém.
Em passadas largas, o homem alto, forte, negro e de cabelos crespos atravessou a rua
considerada estreita em padrões Solareanos e se juntou às amantes e Samira. Ele se curvou para
Expedia e colocou a mão sobre o peito, logo, a rainha percebeu que aquela pessoa de cabelos
crespos e acobreados era uma Solares.
A surpresa de Expedia foi grande, pois havia encontrado um súdito nas ruas de
NossDomuss. Seus dedos que apertavam o tecido preto da vestimenta de Samira aliviou um
pouco e a velha respirou fundo, certamente em desafogo.
A pobre senhora era apenas um ser desesperado, carregado pelo luto de uma tensão e
de conflitos duradouros que pareciam se estender quase sem explicação.
— Eu tenho certeza de que ela sabe muito bem do que está falando. — A guerreira
retomou a fala, após o choque inicial, e seus olhos voltaram para Samira, ainda carregando certa
fúria, depois do desacato que raramente recebia de alheios.
— Olha… — O homem levantou as duas mãos, em sinal claro de passividade e se
aproximou ainda mais com certo cuidado para que nada pudesse sair do controle. — Muitos
daqui adquiriram terríveis traumas com o que sempre aconteceu entre os Solares e Luares —
continuou buscando apaziguar um pouco o conflito. — Acredite, ela tem os dela, assim como eu
tenho os meus.
Expedia percebeu que dois guardas marchavam em sua direção pela rua de pedras, sua
mão rapidamente foi para o seu quadril, mas quando encontrou o nada, lembrou-se que sua
espada não estava fixada a sua vestimenta. Sua arma sempre estava presente, era indispensável a
rainha tê-la, foi com aquela lâmina que por tantas vezes escapou da morte, se defendeu e matou
muitas pessoas.
— Expedia, solte-a. — pediu Umbra, aflita com a proporção que aquilo poderia vir a
tomar.
A rainha desejava profundamente não atender tal pedido, mas novamente, ainda que
fosse impulsiva, permanecia em terrível desvantagem, e achou que poderia ser imprudência criar
um ambiente hostil para ela. Deveria garantir que sairia daqui com vida e a velha desolada pela
dor não merecia tal risco. Por fim, a mão que segurava o colarinho soltou e Samira quase foi ao
chão pela perda brusca de apoio.
Umbra foi ágil o suficiente para pegar Samira, que tombou para o lado.
— Apenas não me encha mais. — Expedia exigiu com sua soberba costumeira, ao
passo em que esticava o braço para entregar a velha bengala, antes caída no chão. — Acredite,
você me odeia tanto quanto eu odeio vocês. Os seus soldados mataram os meus pais.
Samira aceitou o seu instrumento de apoio e firmou a base contra as pedras irregulares
do pavimento.
— Samira, por favor, você não pode se exaltar, lembre-se o que a curandeira disse. —
O jovem rapaz lembrou a velha, enquanto a ajudava a se sentar na cadeira de balanço. Agachou-
se e pegou o cachimbo esquecido perto dos pés de madeira sinuosos da cadeira. A fumaça ainda
saía por ele.
— Névula, sua bondade vai acabar te matando um dia. — Samira murmurou, quase
envergonhada de suas ações, e assim como fizera com Expedia, aceitou o cachimbo entregue
para ela.
Samira tragou-o, uma conduta que tomava quando estava visivelmente nervosa.
Névula nada falou, apenas colocou a mão sobre o ombro magro da velha e sorriu
docemente.
— Por que não entramos e bebemos alguma coisa? Sei que o jantar ainda será servido,
talvez possamos mostrar um pouco mais da nossa hospitalidade. — O jovem rapaz voltou a sua
atenção para as amantes.
— Acho que será uma excelente ideia — concordou Umbra e gentilmente enroscou o
seu braço ao da rainha. — O que acha? — Seus olhos miraram Expedia, no intuito de pedir
silenciosamente que ela concordasse com o convite.
Os olhos castanhos quentes ainda encaravam a velha e, após alguns segundos,
relutantemente, viu-se aceitando a se impregnar ainda mais na cultura das então,
autoproclamadas, crianças perdidas.
Atravessaram a rua ao mesmo tempo em que os soldados passavam por eles e um
comprimento educado, junto a um aceno, foram trocados entre os participantes, exceto pela
rainha, que seguiu em frente ignorando-os por completo.
Subiram os lances de escadas para chegarem à varanda iluminada e, guiadas pelo
homem, foram presenteadas com a atmosfera de uma aconchegante taverna.
As mesas longas de madeira robusta e bancos forrados por peles de animais estavam
distribuídas pelo pequeno salão com cheiro de cevada e carne. Na extremidade do local em que
entravam, havia uma parede de pedra abraçava uma lareira adornada com a cabeça de um cervo
empalhada com uma impressionante galhada e sobre ela, um mezanino que levava a um segundo
andar com um corredor com poucos quartos, já que nunca recebiam visitantes. Ao lado direito,
via-se um balcão de madeira com escudos redondos pintados em distintas cores em sua base
demarcando o bar e, na parede atrás, grandes barris se acumulavam apertados para servir a
bebida alcoólica para os clientes.
Algumas pessoas curiosas, interessadas ou até mesmo contrariadas olharam para as
forasteiras que seriam as convidadas de honra no jantar do templo de NossDomuss.
— Vamos nos sentar ali? — Apontou Névula para a mesa vazia perto da janela.
Enquanto se direcionava para lá, o rapaz ergueu a mão e levantou três dedos em
direção ao bar, onde uma jovem de cabelos vermelhos limpava uma caneca de madeira com um
pano branco e úmido.
Umbra se sentou no banco e arrastou seu quadril para perto da parede, pois assim
poderia ver melhor a vista da rua e de Samira que se balançava, fumando o seu cachimbo com o
rosto escondido pela penumbra. A mutana não precisava ver o rosto enrugado para ter certeza de
que ainda estava contorcido pela dor do luto.
Expedia colocou-se ao seu lado e seus joelhos se tocavam levemente. A rainha queria
ter a certeza de que Umbra estava se sentindo segura em um ambiente novo, uma ação silenciosa
que reafirmava que ela não estava sozinha. Claro que parte do toque também assegurava a
própria rainha de não perder qualquer fio de racionalidade ali. Umbra era um ponto de partida
seguro dentro da loucura em que estava sendo os seus dias.
Névula se sentou na frente das mulheres e repousou suas mãos sobre a mesa que
continha em seu centro um vaso pequeno de barro com uma única flor e uma vela achatada sem
qualquer aroma, o que particularmente agradou Umbra, pois o cheiro da comida com a cerveja
trazia um delicioso conforto, sem contar que mesmo o local sendo apertado, ao menos aos
parâmetros do reino dos Solares e até mesmo dos Luares, o ambiente era arejado. Claro que a
lareira sem o fogo fazia toda a diferença para que eles não suassem ali dentro ou ficassem
sufocados com o calor que o verão poderia proclamar.
— Mais uma vez, peço desculpas pelo desentendimento. — Névula proferiu acanhado
em meio ao burburinho de conversas e sons de louças sendo usadas. Levou os dedos direitos para
dentro da palma da outra mão e os estalou em um som alto. — Nós não recebemos pessoas de
fora, muito menos uma rainha. As pessoas estão com medo.
— Talvez seja bom elas terem — deliberou Expedia ao levantar uma de suas
sobrancelhas.
Diferente de Umbra, ela suava um pouco pela quantidade de roupa que usava, sua testa
começava a ficar úmida e desejou a bebida prometida. Levou as costas da mão para testa e a
secou.
— Está tudo bem? — A mutana perguntou ao repousar seus dedos sobre a coxa da
rainha.
Nada passava despercebido pelo olhar branco da mutana.
Expedia reprimiu o sorriso, afetada pela preocupação genuína da linda mulher de pele
cinza. Seus olhos desceram pelo pescoço de pele sensível e constataram um fio de umidade
descendo por ele.
— Estou sim, minha querida.
— Com licença. — Uma mulher de avental e vestido azul-claro se aproximou com três
grandes canecas de madeira em mãos. — Por conta da casa. — Enunciou com o contentamento
típico para trazer confiança aos seus clientes e escorregou as canecas pela mesa.
— Obrigado. — O homem agradeceu em um sorriso, antes da atendente se retirar. —
Por favor, aproveitem. É uma das nossas especialidades, criada por mim e pela minha mulher. —
Falou com orgulho evidente, antes de erguer a caneca e levá-la para o centro da mesa.
Umbra e Expedia fizeram o mesmo e, assim, brindaram.
Os olhos brancos se abaixaram para o líquido espumante de seu copo e a mutana
respirou o frescor da cevada junto ao toque de maracujá. Mesmo não sendo uma consumidora de
bebidas alcoólicas, desde que Umbra conseguiu sua liberdade, prometeu para si que tentaria
aproveitar aquilo que o mundo poderia lhe dar e até agora, mesmo com os infinitos percalços e
dores, conseguiu acumular aventuras e desventuras que poderiam ser postas nas páginas de um
pergaminho qualquer. Levou a bebida aos seus lábios e a engoliu, enquanto expandia suas
narinas pelo gás que explodia dentro de sua boca.
— É uma delícia — admitiu a mutana em bom grado, ao levar pela segunda vez a
caneca para molhar sua boca.
— Realmente, uma cerveja que faria sucesso entre os Solares. — Expedia reconheceu,
ao pronunciar o estranho elogio. Estava com a feição mais relaxada pelo frescor que a cevada lhe
deu.
— Eu sei que está se perguntando o que estou fazendo aqui, não é? — Névula falou, ao
bebericar um pouco de sua invenção.
— É, passou uma ou duas vezes pela minha cabeça. — A rainha comentou, ao dar de
ombros, e puxou os lábios para baixo, antes de lambê-los para ter a certeza de que nenhuma
espuma ficou para trás.
— Minha mulher me salvou. Algumas crianças perdidas podem ir além do território,
ela estava na mesma embarcação que eu, e após uma tempestade não esperada pela gente, o
navio afundou. Eu estava desacordado e ela me pegou com uma das canoas de emergência nas
laterais do casco da embarcação principal. A partir daí, nos apaixonamos e eu fui aceito por
Unema. Levou um pouco de tempo para eu me acostumar a conviver com os Luares, mesmo que
nunca tivesse problemas com eles. Acho que a gente espera que no final um vai fazer mal ao
outro e isso não acontece aqui.
— Sua mulher é a moça no balcão? — Umbra perguntou verdadeiramente interessada
com a história do homem. Por alguma razão, via-se cada vez mais romântica, provavelmente
eram seus sentimentos que se tornavam cada vez mais intensos.
Névula olhou para trás e reparou que a jovem mulher de avental andava pelo salão com
uma grande travessa de carnes e batatas.
— Não, não. — Ele se virou, depositando um sorriso triste em seu rosto. —
Infelizmente, ela morreu dois anos atrás, ficou doente e não aguentou. Os curandeiros tentaram
de tudo.
— Eu sinto muito. — Fora Expedia que expressou as condolências.
Umbra ficou calada, ela entendia de dores e ver a expressão daquele homem a fez
sentir pena. Não era a melhor emoção ou até mesmo a mais nobre de se sentir, mas era
inevitável. NossDomuss parecia ser um refúgio para pessoas que sofreram com toda a confusão
que os reinos causaram. Talvez, em outra vida, seria o lugar ideal para que a mutana pudesse
viver. Ela até poderia ficar, mas não desejava abandonar a sua rainha. Não agora.
— Eu poderia até ter voltado para os Solares, mas minha filha, ela é como a mãe, não
poderia arriscar. — Névula continuou a explicar, enquanto segurava a caneca pela alça perto de
seu rosto e, em coincidência, ele e Expedia tomaram uma longa golada.
Uma compreensão não verbal foi sentida pelos dois. A influência por Névula ser um
Solares era bastante óbvia, talvez se ele fosse um Luares, a sua empatia não seria tão explícita.
Assim que o homem terminou o resumo de sua história, a porta vaivém se abriu e uma
menina de cabelos crespos correu pelo salão, preenchendo-o com uma risada infantil gostosa.
Alguns dos clientes cumprimentaram a criança com um acenar ou um acariciar leve no cabelo.
Umbra a reconheceu quase imediatamente, a menina era a mesma que a chamou de bonita,
enquanto iam em direção ao ritual de passagem dos cavaleiros de Expedia.
— Papai! — A criança ergueu os bracinhos e pulou na direção de Névula, que em
tempo conseguiu se colocar de lado e apanhar sua filha.
Abraçou-a, depositando um beijo em sua testa e a colocou em seu colo.
— Por onde andava, mocinha? — Névula mudou seu tom melancólico para uma fala
divertida e leve, aproveitando a felicidade de sua filha, e a lhe entregou cosquinhas pela lateral
das costelas.
A menina riu e se contorceu até que seu pai cessou a brincadeira. Seus olhos
expressivos e infantis de cor azul, diferentes de Névula que detinha a íris castanha, olhou para as
duas amantes.
— Estava com as meninas e as pescadoras, elas estavam ensinando a gente a fazer
redes, é bem difícil. — A menina bufou, ao mostrar o dedo indicador com um curativo, que
cobria o corte superficial que a inexperiência de uma criança representava.
— Aqui é um lugar de extrema segurança. — O homem comentou, ao segurar com
delicadeza o dedo da filha e o levar para os lábios, beijando-o carinhosamente.
Expedia entendeu o que ele queria dizer, infelizmente, em algumas cidades ainda havia
violência em suas ruas. A rainha estava tentando com todo o poder mudar isso, pois ansiava que
crianças, mulheres e cada cidadão estivessem a salvo dentro de seu território, algo que não era
tão assegurado assim com o seu pai no poder.
— Vocês vieram conhecer o papai? — A pergunta inocente foi feita enquanto suas
perninhas se mexiam para frente e para trás.
— Eu ouvi dizer que ele tem a melhor cerveja da cidade, então eu vim. — Expedia
falou casualmente, antes de levantar a caneca e levá-la até a boca. Ela bebeu o líquido amarelado
e soltou um som de satisfação na garganta. — E olha, realmente é muito boa.
— É verdade que você é uma rainha? — Os olhos da menina brilharam com a
expectativa da resposta.
— Eu sou sim. — Expedia assentiu com a cabeça.
— WOOW! — E assim, a menina soltou um gritinho de felicidade.
— Mariza… — Névula chamou a atenção da menina.
Mas isso não pareceu abalar a criança, pois colocou seus cotovelos sobre a mesa, se
debruçando sobre ela.
— Então, a moça bonita é a outra rainha?! — A animação de Mariza estava cada vez
mais exacerbada. — Aposto que todo o reino te adora, me leva para conhecer?
— Eu não sou rainha, sou a costureira real e a… eu estou com a rainha.
— Então um dia você vai ser rainha? — Mariza deu algumas palminhas e as juntou
perto do peito, oferecendo um sorriso grande e feliz. — Unema pode juntar vocês, ela pode fazer
isso, não pode, papai?! — O cabelo crespo sacudiu na cabeça da vibrante menina, enquanto a
virava para encarar o seu pai, à procura de ajuda para continuar o incentivo de casar aquelas
mulheres.
Expedia engasgou com a cerveja e logo cobriu a boca, certificando-se de que a bebida
não se espalhasse pela mesa e, provavelmente, pelo rostinho jovial de Mariza.
— As coisas não funcionam assim, minha filha. — Névula comentou soltando uma
risada nervosa, e sua personalidade amenizadora de tensões foi à superfície.
Mesmo surpreendida com a declaração da menina espevitada, a rainha desejava um
futuro com a sua costureira, ainda estava muito cedo para falar em casamento e, francamente,
Expedia não estava preparada para isso.
— Mas Unema não ia negar. — Mariza fez um bico.
E desta vez, Expedia riu. Talvez a primeira risada sincera que dera desde que chegou
dentro daquela misteriosa cidade.
— Aparentemente, Unema tem habilidades infinitas. Inclusive, de uma casamenteira.
Algo que certamente não irei me esquecer — disse a rainha, antes de finalmente terminar a sua
cerveja.
— É verdade que você não sabia que a gente existia? — O questionário de Mariza
ficava cada vez mais complexo.
— Não, nós não sabíamos. — Expedia respondeu séria, e assim ergueu a sua caneca
vazia para cima. Ao captar a atenção da funcionária da taverna, a rainha apontou para o copo,
pedindo mais uma rodada. Ela não tinha ideia de como pagaria aquilo, mas precisava continuar a
beber.
— Unema falou uma vez que muita gente iria querer o nosso mal.
Umbra vacilou ao tensionar o seu corpo devido às memórias que voaram livremente
em sua cabeça. Mariza tinha razão, durante toda a vida, a mutana foi explorada e maltratada por
pessoas como Expedia e sua própria mãe. Mesmo que Luriel insistisse que Umbra fosse uma
Luares, hoje não mais tinha certeza, a mutana era mais do que isso. Mais do que uma Luares,
Solares ou até mesmo uma criança perdida. Umbra era sozinha no mundo, ela não se encaixava
em nada e, provavelmente, todos iriam querer o seu mal, inclusive Expedia.
— Seu pai tem razão, Mariza, as coisas não são fáceis.
— Hmmm, adultos são complicados. — A menina murmurou, franzindo o cenho e
segurando o próprio queixo, pensativa com tudo o que havia sido dito ali. Mas a reflexão não
durou muitos segundos. — Amanhã vocês querem ver como eu fico?
— Ficar? — Umbra indagou confusa com o trilho de pensamento da menina.
— É! Me transformar, sua boba. — Com uma risadinha, Mariza abriu a boca e seus
caninos se alongaram.
A mutana arregalou os olhos pela exibição sem qualquer censura da criança. Observou
a menina espetar a língua na presa e seus próprios caninos pareciam vibrar pelo simples fato de
ver alguém parecido com ela estar tão próximo. Achou que seria mais seguro não exagerar.
— Isso é impressionante, um pouco assustador, mas não deixa de ser-
A fala um pouco inapropriada da rainha dos Solares foi interrompida pela mulher de
avental que substituiu sua caneca seca por uma abarrotada com o delicioso líquido criado por
Névula.
— Eu prometo que não vou te machucar e não conta pra ninguém, mas eu sou forte, a
mais forte! — Mariza tagarelou, antes de imitar um rugido poderoso.
Umbra queria chorar pela inocência da menina, chegou a sentir até mesmo um pouco
de inveja, pois durante toda a sua vida e, principalmente sua infância, tivera que andar sob as
sombras e os toldos do circo. Já que diferente de Mariza, durante o seu crescimento, até a
adolescência, a mutana não tivera a capacidade de se controlar, isso acarretou ferimentos, não
apenas em terceiros, mas nela também.
Obrigou-se a beber um pouco mais da cerveja, enquanto seus olhos passearam
rapidamente para fora, pois o olhar branco encheu-se de lágrimas e escondê-las nesse momento
era essencial.
— Você ficou bonita com as nossas roupas, está cheirando mais como a gente. —
Mariza comentou, puxando a atenção de Umbra para ela.
A mutana engoliu em seco, por mais que estivesse se afeiçoando pela menina, a falta
de filtro dela poderia ser um problema. Durante a sua vida, aprendeu a usar uma máscara
invisível no qual quase sempre conseguia acobertar as emoções em seu rosto. Era irônico, pois
independentemente de estar dentro ou fora do picadeiro, Umbra sempre usava algo sobre a sua
face.
— Espero que bem. — A mutana forçou um sorriso gentil e jogou uma piscadela para a
menina.
— Com certeza!
E o polegar gorducho se levantou em positivo.
Depois da leve tensão levantada, Umbra conseguiu distrair a criança com perguntas
sobre a sua casa e os costumes do lugar e, pouco a pouco, sua máscara foi caindo, permitindo-a
relaxar, enquanto se encontrava absorvida na narrativa de Mariza.
Expedia escutava atentamente, uma vez ou outra bebericava sua cerveja,
descontraindo-se mais perante o álcool e o frescor que começava a penetrar suas camadas de
roupa.
Se a rainha tivesse qualquer direito de escolha, optaria em continuar naquela taberna,
dividindo a mesa com um Solares e a menina tagarela, mas algum tempo depois, dois guardas se
aproximaram, informando-as que o jantar finalmente estava servido e com um exasperar não
muito satisfeito, a rainha se levantou, trazendo consigo sua costureira.

∞∞∞
Era impressionante a fartura servida sobre a longa mesa de madeira branca, alimentos
de todas as partes dos reinos e iguarias não conhecidas por visitantes, apenas por moradores que
rodeavam a pequena cidade ainda desconhecida pela grande maioria das pessoas.
As cadeiras brancas de estofado bege de costuras geográficas com um tom mais escuro
que o tecido, estavam ocupadas por moradores de importância significativa para que a cidade de
NossDomuss tivesse o funcionamento adequado para que todos pudessem viver em harmonia, ou
tentar.
Unema estava na cabeceira da grande mesa, sua cadeira destoava levemente das outras,
tendo um encosto maior e voltas mais sinuosas, formando nas pontas desenhos de asas
encravados na madeira. Observava com o seu olhar atento a interação de seu povo, enquanto
roçava o lábio inferior com a taça de vinho. Ao seu lado esquerdo, estava Umbra, a enigmática
criança perdida e única, sobre a qual a governanta nutria certa curiosidade. Nunca em sua
existência encontrou um ser tão poderoso quanto aquela jovem de pele cinza que degustava as
delícias oferecidas, sorrindo amigavelmente para a mulher que estava ao seu lado. Seu interesse
não era evidente, mas em seu pessoal, cobiçava a presença da mutana, aprender mais sobre o
grande lobo branco. Perguntou-se intimamente se talvez outras crianças perdidas estivessem
espalhadas por aí sem que ela soubesse. Até onde ela sabia, apenas as pessoas que a cercavam
eram remanescentes dos ancestrais do culto do Deus Baixo. Infelizmente, Umbra não iria ficar,
mesmo a mulher mentindo o seu verdadeiro ser da rainha, o olhar apaixonado era evidente e
mesmo Unema podendo usufruir disso, não era tão cruel a esse ponto. A governanta já havia
amado uma vez e a dor de perder alguém poderia assolar uma pessoa para frente, transformá-la
em algo diferente do que ela poderia ser e Unema não queria arriscar a segurança do seu povo.
Umbra era diferente, uma verdadeira besta, que certamente não compreendia totalmente o seu
poder. Em outro momento, poderia facilmente se encantar pela jovem mulher de olhos brancos e
cabelos curtos, com marcas dolorosas sobre sua pele cinza.
O terror real de Unema era a chance que as crianças perdidas poderiam se tornar
alguma parte de um plano sádico dos reinos maiores, algo que aparentemente, Umbra fora.
Expedia comia em um silêncio maior, certamente desejando estar no bar com o Solares
e Mariza. Participar de um jantar formal provavelmente nada acrescentaria na sua vida, era
apenas uma mera formalidade para demonstrar que os cidadãos de NossDomuss partilhavam um
acolhimento verdadeiro.
— Amanhã as levarei para o limiar de nossa fronteira, darei suprimentos e dois cavalos
para que possam retornar em paz — informou a governanta, esperando nunca mais reencontrar a
rainha. Pois, sabia que se isso acontecesse poderia ser o fim do que sempre cultivaram ali. —
Espero poder contar com a sua compreensão. — A persuasão de Unema era bastante
convincente, mas Expedia estava acostumada com esse tipo de gente.
— É claro. — Expedia respondeu ao espetar um pedaço de pato-selvagem suculento
com o garfo e levá-lo à boca.
A rainha não tinha muita escolha e ansiava sair dessa estranha realidade paralela.
Mesmo passando poucos dias, imaginou todo o seu reino em escombros e seus conselheiros
enviando guardas e batedores para encontrá-la. O colapso poderia chegar rapidamente, se não
voltasse, não demoraria muito para que os Luares descobrissem isso e tirassem qualquer tipo de
vantagem.
Depois da pequena e breve interação entre as figuras de poder, Expedia terminou o seu
jantar. Trocou breve palavras com alguns dos representantes da cidade e, finalmente, retirou-se
do templo com Umbra ao seu lado.
Caminharam para a confortável casa oferecida em silêncio, aproveitando a presença
que uma dava a outra, com uma sonolenta cidade que começava a diminuir sua iluminação.
Poucas pessoas andavam pelas ruas ou pelas passagens de madeira que circulavam os troncos da
árvore, e em oposição ao som das ondas do mar que a rainha tanto estava acostumada, os insetos,
animais e folhas eram a trilha sonora que passavam pelo seu sentido auditivo, assim como
diferente do odor de maresia que tanto amava, o cheiro da floresta perseverou em suas narinas.
Quando estavam próximas da casa, Expedia envolveu Umbra pela cintura, trazendo o
calor de pele cinza contra o seu. A mutana soltou uma risada breve e abraçou o braço forte da
rainha até que cruzaram a porta para o ambiente designado a elas.
— Finalmente, voltaremos para casa — murmurou Expedia, posicionando-se atrás de
Umbra e envolvendo seus braços em volta da cintura a fim trazê-la para mais perto. Beijou-lhe a
nuca nua devido ao cabelo curto e roçou o seu nariz na pele cinza.
— Aqui não é tão ruim assim — ponderou a mutana, inclinando sua cabeça para o
lado, oferecendo mais espaço para que os lábios cheios pudessem degustá-la um pouco mais. —
Você não irá prejudicá-los, não é? — Pediu Umbra, ao sentir um arrepio agradável, graças ao
mordiscar dado em sua nuca.
— Hmmm… não é do meu interesse, eles nunca me deram trabalho anteriormente, e
acredito que continuaram assim. Apenas…
Umbra reconheceu a hesitação na fala da rainha e se virou para encará-la. Mesmo na
meia-luz do ambiente, a mutana conseguia enxergar a incerteza vagando pelos olhos quentes.
— Apenas? — Incentivou a mutana.
— Algumas coisas de fato têm que se manter escondidas, a descoberta deles pode
realmente implicar um desequilíbrio bem negativo, e se descobrirem que eu sei disso, eu posso
ser acusada de traição. Eu confio em você, Umbra, apenas nós duas sabemos o que está
acontecendo aqui.
Umbra trancou o maxilar e respirou fundo. Confiança. Uma palavra com um
significado poderoso, que a mutana nunca resguardou em sua vida, ninguém havia lhe entregado
tal emoção, talvez apenas Victorie, mas aquela situação era diferente de tudo que já havia
experimentado.
— Não direi absolutamente nada — afirmou a mutana, ao se inclinar para frente e
beijar a rainha.
Expedia recebeu a boca de Umbra com animação, seus ombros relaxaram e um som
satisfatório saiu pela sua garganta. Era bom ter alguém com quem pudesse ser vulnerável. Aqui,
no corpo quente da sua costureira, ela poderia deixar a sua posição de rainha e ser apenas
Expedia.
O beijo tornou-se lânguido, sem a pressa que amantes recém-formados tinham. O som
dos lábios se tocando, os olhos fechados para sorver o prazer crescente que se construía dentro
do local, fizeram o corpo da mutana vibrar.
Rodando o seu corpo e trazendo Expedia com ela, caminharam até a cama, enquanto os
lábios errantes de Umbra desciam pelo pescoço da rainha e suas mãos descartavam a parte
superior da vestimenta imponente. Quando a parte de trás dos joelhos de Expedia tocaram a
cama, fazendo-a desabar sobre o colchão fofo, seus seios, tórax e a barriga estupidamente
definida estavam sob o olhar atento e ardente da mutana que a mirava com os olhos pesados de
prazer.
Expedia colocou-se apoiada nos cotovelos e os olhos expressivos e curiosos
observaram Umbra, que começava a retirar a alça do seu vestido. Molhando os lábios secos, a
rainha sentiu um aperto agradável em seu ventre, quando a nudez da sua costureira particular
apareceu ante aos seus olhos. A sombra das velas lambia o seu corpo levemente úmido pelo calor
que encaravam ao caminhar pela cidade. Degustou com o seu olhar cada volta feminina da
mulher de pele cinza, até encontrar o sexo preenchido pela fina camada de pelos. Desejou ter
aquele néctar em sua boca, mas desde que começou o seu relacionamento com Umbra,
reconheceu que dentro daquela vulnerabilidade construída de confiança era a sua costureira que
ditava as regras e, sinceramente, a guerreira gostava disso, ainda que não admitisse em voz alta.
Controlar um reino não era a tarefa mais fácil a ser instituída, era bom abrir mão desse poder
alguma vez e entregá-lo para alguém de confiança.
Umbra se aproximou, colocando-se de quatro em cima de Expedia, seus lábios
passearam pelo rosto e pescoço da rainha, distribuindo beijos e lambidas, o que foi o suficiente
para que Expedia gemesse, deitando completamente na cama.
A guerreira jogou a cabeça para trás e fechou os olhos quando sentiu a boca de sua
costureira encaixar perfeitamente em seu mamilo, chupando-o languidamente, antes de usar seus
dentes e mordiscá-lo. Seu seio foi segurado e os lábios de Umbra roçaram contra o mamilo já
protuberante para então lambê-lo.
A respiração entrecortada de Expedia e o carinho que a mutana recebia em sua nuca,
incentivando-a continuar, fizeram o seu próprio sexo latejar em empatia. Sua língua continuou
recolhendo o suor entre os seios de sua rainha, antes de dar a mesma atenção para o outro,
entretanto, dessa vez, o beliscou e o torceu com o dedo indicador e opositor. Sorriu quando um
gemido alto foi produzido.
Expedia poderia chegar ao seu clímax desse jeito, com Umbra assaltando os seus seios
já melados por suor e saliva, sem contar os sons instalados produzidos pela verdadeira bagunça
que os lábios finos faziam. Seu sexo estava tão arruinado quanto a região do seu peito, sentia o
quão quente ele estava, preparado para ser usado.
Umbra continuou a usar a sua boca até encontrar o pescoço da rainha, envolveu os
lábios no lóbulo da orelha e sussurrou:
— Vire-se.
Uma ordem.
Ordens… Expedia apenas as dava, quase nunca recebia e todo o seu corpo tremeu,
acompanhado de um gemido desesperado. Seu quadril ondulou contra a coxa de Umbra e pôde
jurar que havia acabado de sentir um tímido e pequeno orgasmo rasgando seu corpo.
Os lábios atacaram as costas musculosas e desenhadas sorvendo o suor e o gosto da
pele de oliva. As mãos serpentearam a extensão da coluna até a bunda, e a língua se arrastou por
toda espinha, até que outra ordem chegou aos ouvidos da rainha que se contorcia, trazendo o seu
quadril contra o colchão para aliviar a pressão quase dolorida do seu sexo.
— Levante o quadril.
Sedutora era a sua costureira, e Expedia fez o que foi pedido, logo sua calça e botas
estavam espalhadas pelo chão. O corpo que pairava em cima dela deitou-se sobre o seu e os
gemidos se misturaram quando os seios e o sexo de Umbra se esfregaram contra a sua bunda e
suas costas. Novamente, os lábios passearam pela pele, enquanto a rainha abraçava o travesseiro
debaixo de sua cabeça. Sentiu as mãos em sua bunda de novo, apertando-a languidamente,
fazendo-a empinar levemente. Suas nádegas foram abertas, a respiração foi sentida contra sua
carne vermelha, até que finalmente a língua massageou dos seus lábios inferiores até o seu ânus.
Expedia arfou em prazer, sabendo que o rosto de Umbra estava completamente tomado por
viscosidade. A língua e os lábios continuaram a percorrer livremente por toda área. Quando
sentiu a deliciosa pressão em seu clitóris, gemeu alto como uma jovem que acabara de descobrir
o prazer da vida. Porém, houve uma ausência de contato, Expedia se viu desesperada, e quando
estava prestes a virar a sua cabeça para efetuar sua reclamação, três dedos de Umbra invadiram
lhe prazerosamente. Mais uma vez, jogou a cabeça para trás e gemeu alto. As estocadas eram
ritmadas, duras, mais lentas e tudo que a rainha fez foi acompanhá-las com o seu quadril,
jogando-o para trás, procurando o seu próprio prazer.
Sentiu Umbra virar os dedos dentro dela para que o polegar pudesse raspar diretamente
o seu clitóris.
— Umbra… Eu… — Expedia tentou, mas faltava-lhe ar.
Seu corpo estava quente, sua pele úmida sendo beijada e lambida por sua costureira.
As sensações eram incríveis, fortes demais… Nenhuma mulher a fizera tremer e ficar
tão absolutamente exposta quanto a misteriosa mulher de olhos brancos enigmáticos. Ela estava
completamente perdida.
— Sua Umbra… — A mutana resmungou, antes de mordiscar a bunda de Expedia.
— Sim! Minha, minha… — E assim, rompeu em um orgasmo avassalador.
Os dedos continuaram em um vai e vem fácil, até que a rainha descesse de seu clímax,
quando o corpo relaxou por completo, cuidadosamente, Umbra retirou-os do sexo pulsante.
Após recuperar um pouco do seu fôlego, Expedia se virou para encarar a costureira e
sorriu quando a mesma montou sobre sua púbis. A rainha dedilhou as coxas de Umbra, o quadril,
a barriga e os seios, os quais segurou e os massageou, usando o indicador para provocar os
mamilos.
A mutana ondulou sobre o sexo da rainha, encharcando-o com o seu néctar, o contato
estava tentador e ela não pôde parar. Colocou suas mãos sobre o peito de Expedia e esfregou
contra ela. Pelas Deusas… Ela iria gozar ali, já que se mexia com certo rigor sobre a rainha.
Expedia a guiou, usando suas mãos para segurar o quadril da costureira. Entretanto,
apertou a pele cinza, fazendo com que Umbra cessasse o movimento. Desta vez, era a mutana
que arregalava os olhos.
— Expedia, por favor. — A urgência na voz foi responsável por uma nova onda de
prazer invadir o corpo da rainha.
— Senta na minha boca, por favor… Eu quero, eu preciso disso. — Diferente das
ordens de Umbra, Expedia pediu, suplicou… Como desejava o gosto da costureira em sua boca.
A mutana estava inquieta com o seu próprio prazer, e assim que o pedido foi feito,
Umbra deslizou para cima e encaixou suas coxas em cada lado da cabeça da rainha. Ao se
abaixar, a boca de Expedia lhe invadiu por completo e para conter um gemido alto, mordeu o
lábio inferior com tanta força que chegou a machucá-lo, mas isso não iria pará-la. Assim como
estava ondulando sobre o sexo de Expedia, agora fazia o mesmo contra o rosto dela,
infelizmente, não se importou muito o quanto aquilo poderia sufocar sua rainha ou até mesmo
melar o seu rosto.
Umbra estava consumida pelo erotismo, poderosa se sentia por estar sobre o rosto
da rainha dos Solares. Poucas estiveram em seu lugar, poucas puderam ver a verdadeira face de
Expedia, foi ela a escolhida para desvendar as nuances mais profundas da guerreira rainha. A
mutana desejou ter a rainha para o seu sempre, tê-la até que sua vida se findasse por velhice.
Foi esse pensamento poderoso o culpado do orgasmo de Umbra chegar. Empinou o seu
quadril para trás e sua cabeça seguiu o mesmo fluxo, fazendo-a encarar o teto da noite.
A mutana riu baixinho, extasiada com o gozo, o cheiro e a névoa de aconchego e
intimidade que ali foram construídos. Umbra deitou e trouxe a sua rainha para os seus braços.
Expedia se aconchegou dentro do abraço da costureira e seu rosto descansou contra o
peito quente, ouvindo o coração firme na caixa torácica da mutana. Ela fechou os olhos.
Sim, a rainha estava apaixonada.
As amantes estavam tão, absolutamente, cansadas que as falas não foram distribuídas
ao silêncio da cidade que dormia lá fora, ao menos muitos deles. Esperavam dormir
profundamente nos braços uma da outra, até que finalmente acordariam e suas vidas voltariam ao
normal, mas infelizmente isso não aconteceu. Claro que não aconteceu, a vida de Umbra nunca
poderia ser fácil, a dificuldade parecia entranhada em sua personalidade e em seu destino.
Desejava com todo o seu ser apenas ser feliz, nem mesmo sua curiosidade em saber
quem realmente era fazia-se tão presente e potente quanto a vontade de simplesmente ser feliz.
Acreditava que parte dessa felicidade poderia ser encontrada em Expedia. Mas o dia seguinte
começou preguiçosamente, o sol nascia tentando penetrar as folhas grossas da pequena cidade de
NossDomuss. As pessoas acordavam devagar, cada uma com os seus afazeres e sua vida para
serem construídos. Umbra e Expedia estavam alheias a tudo, mesmo com a ansiedade aparente
da rainha sair dali, o aconchego familiar e amoroso conseguia superar qualquer tipo de
emergência. Ali, naquele pequeno e simples ninho, a essência do começo de um amor poderia
começar, mas algo tão frágil como esse sentimento poderia se romper e foi o grito furioso a
seguir que tremulou a perfeição.
— EXPEDIA!!!!!
A voz de Lucíferos penetrou o sono delicioso em que a rainha estava.
Expedia abriu os olhos e suas pupilas dilataram.
O que o seu irmão estava fazendo ali?!
Capítulo Vinte e Um
A dor da desconfiança

O grito do nome da monarca cortou os rugidos e o brado dos moradores, permeando


por toda a cidade sob a grossa chuva que começava a castigar.
Um arrepio desagradável percorreu pela espinha dorsal da mutana, quando o trovão
estourou em raiva no céu escondido pelas lindas folhagens. Umbra pulou da cama, ao passo que
Expedia fazia a mesma coisa.
As roupas descartadas com certo relaxamento na noite passada foram recolhidas o mais
rápido possível e vestidas pelos corpos ainda marcados pelo conforto do ninho recém-descoberto
na cidade de NossDomuss.
Elas se olhavam, mas as palavras faltavam-lhe. O sono já isolado para algum lugar
longe de seus conscientes deu lugar a adrenalina da chegada repentina do irmão da rainha.
Lucíferos não deveria estar ali, aquilo era ruim, muito ruim.
— Merda… — exclamou Expedia ao colocar a mão no quadril e perceber que sua
espada ainda não estava na sua companhia.
O hábito de se certificar se sua bainha estava bem presa a sua vestimenta se fazia
presente.
Umbra foi a primeira a abrir a porta da frente, deparando-se com a chuva torrente e as
pessoas que transitavam histéricas pelo caminho de madeira, agora protegido por marquises de
folha, galho e pano. Para a sua ventura, a passagem que contornava o tronco foi aberta pelos
moradores da cidade, deixando-as correr livremente para a base das raízes.
Correu descalça, escorregando duas vezes durante o percurso do caminho, mas seu
medo de o irmão da guerreira fazer alguma besteira era grande, seu desalento era tanto que
ignorou a dificuldade que Expedia tinha para acompanhá-la. De repente, se viu com vontade de
machucar Lucíferos. Ele iria destruir aquilo tudo. Umbra não o conhecia o suficiente, mas tinha a
impressão de que o que ele tocava, ele desmantelava, principalmente a sanidade de sua irmã.
Quando chegaram ao destino, Expedia sentiu o seu coração pular contra a sua caixa
torácica e os primeiros pingos grossos de chuva começaram a lavar o seu corpo. A cena diante
dos seus olhos quebrava tudo aquilo que tentou construir dentro do breve período que ficou
naquele lugar estranho.
Lucíferos estava com os olhos esbugalhados, com as vestimentas molhadas, sujas e
desalinhadas em seu corpo magro e esguio. Seu supercílio sangrava e suas naturais olheiras
estavam ainda mais profundas. Agarrado ao seu tato, o irmão da rainha segurava Mariza, a
criança que deixou a presença de ambas as amantes mais leve na cidade. Usando-a de escudo
humano, Lucíferos apontava a sua adaga afiada para a jugular da criança em meio a rua principal
à margem do lago, próximo da ponte curva de pedra que ligava o outro lado. Curiosos se
amontoavam ali, outros observavam do outro lado da margem, entre as casas e os pontos de
comércios. Os olhares variavam entre medo, raiva e confusão com o visitante violento. Um dos
cidadãos de NossDomuss segurava uma peixeira na parte alta da ponte, certamente ansioso para
usar a lâmina na carne de um monarca Solares.
Aquilo era o desastre certo.
A pobre menina choramingava em dor, enquanto Lucíferos, envolvia seu longo braço
em volta do corpo infantil. Umbra sentia nojo da cena e sua besta imperial ameaçou desabrochar.
Arrancar Mariza dos braços daquele homem que a desprezou desde o dia que pisou no castelo de
sua amante. A mutana desejava afundar seus grandes caninos mortais no rosto do irmão de sua
amante. Era desprezível o ser que tentava machucar a alma inocente de uma criança e Umbra,
mesmo se considerando violenta, sentiu a vaidade do poder da morte retumbar em seu cerne.
Unema estava mais à frente, segurando seu cajado retorcido, enquanto detinha o seu
poder autoritário, já que tigres cercavam Lucíferos, prontos para agirem assim que a ordem fosse
dada, entretanto, a sábia governanta tinha a experiência de que com qualquer movimentação
errada, vidas poderiam se findar ali e uma guerra contra os Solares estaria próxima, ela não teria
qualquer chance.
— Lucíferos!? — Expedia chamou o seu irmão, ao passo em que caminhava em sua
direção. — O que você está fazendo aqui!? — Exigiu em certo tom de desespero,
— Eu recebi a mensagem de Vinamar! A Goldina, ela apareceu horas depois de sua
partida. Eu vim atrás de você e vi que algo estava errado, então consegui seguir seus rastros... Eu
sou um bom batedor, aprendi com o melhor! — Lucíferos referia-se ao pai que tanto enxergava
como o exemplo perfeito. Ele apertou o corpo da menina contra o seu e a adaga afundou um
pouco mais na pele branca, mas um pouco ela iria romper. — Agora vem, vamos sair daqui!
— Solte a criança, Lucíferos. — Rosnou Umbra, em punhos cerrados, enquanto se
colocava ao lado de Unema e Expedia.
Lucíferos olhou para a costureira e puxou o lábio superior para cima, em claro gesto de
nojo.
— Cale a sua boca, vadia! Eu estou salvando você!
— Ouça o que Umbra está dizendo. — Expedia apoiou a fala de sua amante, o que
pegou seu irmão desprevenido.
Dando um passo para trás, Lucíferos puxou a menina com ele, desta vez, enlaçando-a
pelo cabelo.
Mariza choramingou alto.
Umbra sentiu quando toda sua musculatura tensionou, dando-lhe pequenas câimbras
musculares, principalmente em seus ombros, que pareciam carregar o peso da sua representação.
Suas garras se alongaram, perfurando dolorosamente as palmas de suas mãos, o cheiro de sangue
empesteou os sentidos e sua visão mirou a garganta do monarca. Era uma mordida, arrancar-lhe-
ia a vida e Mariza estaria a salvo.
— Você não deveria ter feito isso, Lucíferos, sua inconsequência pode nos-
A fala de Expedia foi interrompida por um grito de raiva acumulado pela agonia da
cena de abuso sob a criança inocente.
Névula, o homem que vivia em luto por perder sua amada esposa tão precocemente,
não estava em seu melhor estado. O Solares que há muito tempo vivia naquelas terras roubou a
peixeira afiada e correu em desespero cego e vingativo, diretamente para aquele que lesava a sua
filha.
As decisões tomadas a seguir iriam ditar a vida das duas amantes para sempre. O tempo
pareceu tomar um percurso lento, enquanto os suspiros presos nas bocas dos cidadãos guardavam
para a cena que se desmembrava. Névula saltou para cima de Lucíferos, sem medir qualquer
consequência sobre a sua filha, o desespero muitas vezes poderia ser culpado por movimentos
precipitados, era o que estava acontecendo naquela manhã nublada e úmida.
Lucíferos tivera a reação esperada por sua irmã. O jovem monarca empurrou o
corpinho para o lado e a lâmina cortou o pescoço de Mariza. A menina caiu sobre o solo, batendo
o seu rosto contra o paralelepípedo e lá ficou, petrificada no chão. Lucíferos usou a mesma arma
contra Névula, desviando facilmente da lâmina afiada do Solares e a adaga foi ao encontro do
estômago do homem. Neste mesmo segundo, Umbra rosnou tão forte que muitos dos moradores
arregalaram os olhos e foram sob esses mesmos olhares estupefatos que a terrível mutana de
lindos olhos e cabelos brancos deu lugar ao lobo feroz.
Sem repressão ou medo por qualquer censura, ou apreensão, o lobo branco em toda sua
majestade de couro firme e molhado pela torrencial chuva, que chorava por testemunhar os
acontecimentos desgraçados no solo quase abençoado pela não violência, atacou o monarca.
Suas imensas presas bateram no peito de Lucíferos, e como nunca fora um homem forte, ruiu
contra o chão.
A boca mortífera baforou contra o rosto de Lucíferos em um rosnado onde os dentes
projetaram-se pela boca salivante ansiando por cravá-los na pele pálida de aspecto doente do
monarca. Poderia até a besta ouvir o que estava acontecendo ao seu redor, mas ela queria apenas
uma coisa: o sangue. Entretanto, sob a neblina animalesca, as orelhas pontudas se mexeram ao
escutar o seu nome ao longe. Mesmo fraca e distante, Umbra reconheceu-a. Os olhos brancos
piscaram uma vez e, quando estava prestes a se virar, a lâmina de Lucíferos perfurou o ombro. O
lobo choramingou alto, vacilando apenas um pouco, mas a resistência era algo notável na fera,
logo voltou sua atenção para o monarca, mais do que nunca sentiu a vontade de mastigar a
cabeça daquele ser, contudo, outro berro chamando pelo seu nome penetrou o nevoeiro. Neste
momento, o lobo sentiu um empurrão em seu lombo e sua concentração sobre Lucíferos esvaiu-
se, virando-se mais uma vez, atacou sem qualquer prudência quem estava lhe impedindo de fazer
aquilo que queria. Empurrou o corpo para o chão, assim como fizera com o monarca. O rosnado
forte rasgou pela rua principal e os olhos brancos e dilatados focaram-se ao olhar de seu
atacador. Umbra os reconheceu, quente como uma manhã de verão, grandes e expressivos, de cor
única castanha que estava se apaixonando levemente. As presas foram recolhidas, enquanto tudo
em sua volta parou e Umbra encarou Expedia.
A rainha olhou para a fera sobre o seu corpo, seu coração disparava contra o seu peito
dolorosamente, ao mesmo tempo, em que suas mãos seguravam o lobo no lugar. Seus dedos
molhados pela chuva e pelo sangue ilustrado na pelagem quase brilhante de Umbra fizeram todo
o seu corpo vibrar de tensão e confusão.
O lobo choramingou mais uma vez, não pela dor do ferimento, mas pelo que havia
acabado de fazer. Então, Umbra recolheu-se saindo de cima da rainha, que hesitante foi se
levantando, ainda com os olhos fixos no monstro em sua frente.
— Você… — Expedia começou a dizer, mas ao ouvir o gemido de dor vindo de seu
irmão, desvencilhou o contato com a fera e correu até ele.
Umbra andou para trás, distanciando-se de sua rainha, com o típico medo que por
muito tempo lhe acompanhou como algum tipo de espírito obsessor. Sua cabeça começou a doer
e seus olhos coloriram-se com pontos negros.
— Expedia, ela é… — Lucíferos pronunciou com certa dificuldade, ao se sentar no
chão com a ajuda de sua irmã.
— Um monstro! — completou Expedia. — Traidora!
O lobo chorou e assim voltou a sua forma humanoide, diante dos olhos de todos que ali
estavam. Sua figura humana estava nua, junto à exposição de inúmeras cicatrizes que lhe
penetravam a pele com dor, as dores que marcavam a alma quase destruída da jovem mulher.
Encolheu-se em significância, escondendo-se dos olhares e foi assim que a capa da grande
governanta envolveu o seu corpo. As mãos de Unema envolveram seus ombros em um
reconforto e uma seguridade, pois seus sentidos começavam a querer desligar.
Seu ferimento ainda perdia sangue e seus pensamentos sobre Expedia junto a toda
situação pesava na cabeça. Ela tentou levantar-se, mas suas pernas não pareciam ter força.
— Expedia… — Murmurou a mutana ferida.
A raiva incontrolável pela mentira cobriu qualquer tipo de emoção acumulada por
Umbra. Por que sempre traíam sua confiança?
Em um ato, onde certamente se arrependeria, puxou a adaga de seu irmão e a mirou em
direção da fraca e miserável Umbra.
— Não ouse se aproximar! — exclamou em rugido de angústia.
Mas a mutana deu um passo em direção a Expedia com Unema ao seu lado, entretanto,
quando a rainha se levantou, Umbra petrificou no lugar.
Sim, a rainha iria atacar.
A mutana se engasgou em choro de dor e quando esticou o braço em um pedido
silencioso de reconciliação, arfou, assim tombando para o lado.
A governanta a segurou contra o seu peito.
— Desculpa… — pediu Umbra, ainda com a mão esticada.
A pobre jovem até tentou pela terceira vez ir para perto da pessoa que estava
começando a se apaixonar verdadeiramente, mas o sangue deixando o seu corpo, a dor, o
impacto pelas palavras, sucumbiram Umbra à escuridão da inconsciência como muitas vezes
aconteceu em sua vida passada de exploração.
Seu último pensamento foi uma sorridente rainha, que não mais teria qualquer chance de
pertencer a ela.
Capítulo Vinte e Dois
A Solidão a acompanha

As luzes do picadeiro causavam uma terrível tontura em Umbra, mesmo sob a sombra
da túnica e da máscara. Poderia estar calor ou frio, mas a vontade de vomitar quase sempre se
persistia quando estava com essas roupas. Era a tremedeira, a raiva e o medo que sempre a
visitavam com uma constância irritante. Novamente, estava com seus pés sobre a areia batida, a
plataforma que sempre usava não estava ali e sim em algum lugar quebrado no depósito
improvisado entre os vagões e as tendas dos personagens que ali viviam.
Sua mãe estava em sua frente, segurando o famoso chicote de várias línguas, ela
apertava o cabo de cobre para usá-lo a qualquer momento. Entretanto, Luriel parecia de bom
humor, mimou a filha adotiva, dando-lhe roupas novas, um pente, livros antigos e as raras visitas
que lhe permitiam ir às cidades que visitava. Então, como de praxe, presenteou sua mãe de volta,
transformando-se no lindo lobo, coisa que apenas ela poderia fazer.
Os olhares atenciosos e maravilhados das arquibancadas puxaram o ar pela boca em
surpresa pelo truque de mágica que estava ocorrendo diante de seus olhos.
Normalmente, Umbra mirava o seu olhar branco apenas para sua mãe, mas hoje foi
diferente. Ela encarou a multidão e rosnou, mostrando sua magnitude e deixando Luriel um tanto
quanto satisfeita. Todavia, seus olhos repousaram-se sobre uma figura igualmente majestosa,
vestindo em sua cabeça a coroa do sol maior, em um vestido vermelho vivo e a espada tão
conhecida amarrada no quadril que Umbra já tanto conhecia.
“Expedia.”
O lobo branco correu em sua direção, mas as grades que a circulavam não permitiram
que ela fosse a lugar algum. O desespero tomou conta de seu ser. Suas grandes patas bateram nos
canos de metal e seus olhos continuavam a encarar a rainha, que continuava olhá-la com uma
dolorosa indiferença.
Expedia se levantou, descendo os níveis das arquibancadas, todos saíam de sua frente,
escorregando os quadris para longe dos passos da rainha. Penetrou o picadeiro com o seu andar
suntuoso e parou frente a frente com a besta chorosa que tentava lhe alcançar.
O desprendimento no olhar frio continuou e Umbra pediu por atenção, mas aquilo não
foi dado a ela, ao invés disso, a rainha puxou a espada de pomo vermelho brilhante e em um
movimento rápido rodou a lâmina no ar e a entranhou na barriga do lobo branco.
O desalento, a dor e as emoções que ainda sequer conseguia distinguir abraçaram a sua
alma.
— EXPEDIA! — Berrou Umbra ao se sentar na cama de lençóis brancos e toda a sua
dor arder.
A mutana se encontrava nos aposentos emprestados pela governanta. Velas
iluminavam o ambiente, já que a noite se apoderava da cidade lá fora. Arrumando-se sobre a
cama, resmungou em dor, percebendo que seu ombro e a metade do seu braço estavam
enfaixados, devido ao ferimento do desgraçado que já conseguia amontoar bastante ódio, em
geral, Umbra não era uma mulher que guardava rancor, nem mesmo por sua família. Seu corpo
estava envolto por um vestido branco, leve e sem mangas, parecia mais uma camisola do que de
fato uma vestimenta. Seja como for, pelo peso de seu corpo, desnorteamento que estava sentindo
e pela noite lá fora, encontrou-se inconsciente por boas horas.
— Ela não está aqui. — A voz de Unema soou atrás dela.
Ao virar a cabeça, observou em silêncio a governanta se aproximar e se sentar na
beirada da cama.
— Onde ela está? E o irmão dela? Vocês…
— Calma — pediu Unema com calma, depositando cuidadosamente a mão sobre o
ombro não ferido da mutana — Eu preciso te contar algo, muitas coisas aconteceram desde que
você desmaiou.
— O que Unema? Cadê Expedia? Eu preciso explicar pra ela que… — Falava,
enquanto tentava se levantar, mas logo foi impedida pela governanta que a assegurou no lugar.
— Ela não está aqui… Expedia foi embora.
O baque daquela notícia fez tudo o que estava permeando a sua volta começar a ruir.
— Quando você desmaiou… — Unema retomou a fala. — Expedia não estava no
melhor dos humores. Tornou-se um pouco violenta, mas conseguimos contê-la. Suas palavras de
ameaça foram levadas a sério, mas consegui persuadi-la, ao menos eu acho, para que não
houvesse derramamento de sangue. Lucíferos foi um problema ainda maior. — Suspirou a
governanta da cidade, ao se levantar. — Ele é um verdadeiro crápula. — Continuou ao pegar a
jarra de barro. — Mesmo cuidando dos ferimentos dele na cabeça, o homem quis machucar
todos que via na frente. — Unema informou os acontecimentos para Umbra, enquanto servia um
pouco de água nos dois copos de madeira sobre a mesa. — Conseguimos com sucesso manipular
as memórias dele, temos alguns ótimos Luares que podem fazer esse trabalho com excelência. —
Voltou para a cama e ofereceu a água para a silenciosa Umbra, que sorvia todas as informações
dadas a ela. — Quando o trabalho sobre Lucíferos estava pronto, Expedia quis partir
imediatamente, tentei convencê-la a ficar, te ouvir, pois, eu acredito que você poderia dar uma
sensatez para ela. Eu não sou inocente, Umbra, você tem algum tipo de influência sobre ela e
com você por perto as indagações e pensamentos de retaliações poderiam ser minimizados. —
Unema bebeu um pouco de sua água, antes de tocar na base do copo de Umbra e empurrá-lo para
os lábios secos da jovem mulher. — Você precisa de um pouco de água.
Umbra sentiu a borda do copo em sua boca e a água acariciando seus lábios, mas a
vontade de tomar o líquido nunca veio, na realidade, o que havia sobrado no seu estômago do
jantar da noite passada desejava sair pela sua boca, mas por fim, tomou uma tímida golada. Ao
abaixar o copo para a sua coxa, percebeu que sua mão estava trêmula e seu ferimento doía ainda
mais do que quando despertou.
— Eu preciso ir atrás dela. Fazê-la me ouvir. — Umbra não queria conceber a ideia de
que havia sido abandonada por um alguém que estava criando uma conexão firme e pela
primeira vez, deliciosa, e não era pela conotação sexual.
— Acho que não seria prudente agora, você ainda está fraca, ferida. Umbra, muitas
coisas aconteceram nos últimos dias, seria melhor ficar. Ao menos até você ficar bem.
— Eu… Eu não posso. — Umbra negou com a cabeça, ao passo em que as primeiras
lágrimas nasciam em seus olhos. — Eu preciso ir.
— Se é o que desejas. — Unema soou um pouco mais firme. — Descanse, e então, se
ainda quiser, vá, mas realmente, acho que não é a melhor escolha. — Repetiu um pouco
insistente.
Ela queria que Umbra ficasse.
— Eu passei muito tempo da minha vida escondida, com medo, sofrendo, e agora aqui
estou eu, colecionando mais uma marca disso — murmurou Umbra com extremo pesar e dor, ao
levar a mão ao ombro ferido.
Dedilhando a faixa azul, sentiu o frescor das ervas através de seus dedos cinzas.
Sua vida não lhe dava um refresco, sempre tão exigente, tirando-lhe gradativamente a
vontade de viver, mas isso mudou um pouco quando lhe foi oferecida a liberdade, na realidade,
por sorrateio dela, que consequentemente lhe trouxera Expedia e uma nova vida.
— Eu sinto muito por tudo isso, espero que você possa me contar um pouco do que
aconteceu. Às vezes, dividir aquilo que nos aflige pode ser bom. Alivia a alma. Não é o unguento
principal, mas falar ajuda.
— É, talvez…
— Façamos o seguinte, irei pedir que nos sirvam um pouco de comida e assim posso
dividir um pouco da minha própria história. — Propôs Unema, ao se levantar, apoiando-se em
seus joelhos. — Eu sei que não quer comer e não adianta me olhar com essa cara. — Sorriu,
antes de depositar o copo sobre a mesa de madeira com velas de ceras coloridas praticamente
padecendo.
— Acho que não tenho muita escolha. — Concordou Umbra, sem qualquer vontade de
forrar o seu estômago com alimento.
— Vai ser bom — garantiu Unema. — Comida é ótimo para pensar, tentar arrumar
planos de barriga vazia pode ser uma desventura.
— Eu sei.
A mutana assentiu com a cabeça, fungou, antes de limpar as lágrimas que
escorregavam pelas suas bochechas.
Unema se retirou do recinto, deixando Umbra só, assim como foi a grande parte de sua
vida, estar só era uma fatalidade necessária. Por inúmeras ocasiões nunca havia se importado em
estar assim, na realidade, até preferia, mas hoje, hoje foi diferente. Não queria ficar sozinha,
estava apavorada, com medo, fraca. Levou um pouco mais de alguns segundos para conter a
vontade de correr atrás de Unema. A governanta ainda era uma estranha, contudo, era bom estar
perto de alguém relativamente semelhante. Sentia que poderia confiar nela. Entretanto, resolveu
esperar e seguir o conselho de Unema. Iria comer, mas não poderia deixar se abater, iria tecer um
plano para encontrar sua rainha. Ela já tinha algumas vantagens, pois sabia para onde Expedia
estava indo e era para lá que ela iria, não poderia deixar tudo se findar desse jeito.

∞∞∞
Expedia estava com raiva, frustrada, cansada e outros sentimentos que não eram
certamente saudáveis. Ela queria matar, arrancar dor e gritos entalados em sua garganta,
arranhando lhe com tanta força que jurou que a dor pudesse ser física, porém, engoliu todas
aquelas emoções, ainda que fosse de extrema dificuldade. Ser uma rainha de um reino inteiro
com tensões, guerras e conflitos, poderia trazer o que poderia existir de pior. A monarca poderia
até sentir orgulho disso, mas certamente, hoje não era mais assim. Uma antiga Expedia adoraria
desfrutar dessa sede, mas não se permitia mais sentir isso. Era ruim, terrível e principalmente
doloroso. Os pesadelos a visitavam com frequência, o rosto de seu pai com o sorriso orgulhoso e
de falso pacificador, deixavam-lhe mais amedrontada do que qualquer inimigo Solares. Ela
tentava ser o orgulho do pai e muitas vezes conseguia, hoje, pensava se a aprovação do pai era de
fato necessária. Foi tão à procura dele que ceifou tantas vidas e não eram apenas de Luares, mas
de Solares também. Expedia já havia matado traidores Solares, estupradores, mercenários e
ladrões, tudo isso em prol maior do seu povo, mas e quanto a sua sanidade?
Galopando sobre a pequena colina, a rainha parou no topo ao lado de seu irmão
levemente letárgico pelas técnicas escabrosas dos Luares. De onde estavam, conseguiam ver a
cidade de Serenas, cercada pelas muralhas de concreto e estacas posicionadas em seu solo de
gramado baixo e verde. A cidade se constituía de casas ao estilo Solarianos e o pequeno, mas
eficiente palácio, centrava-se ao meio do local, caso os Luares tivessem qualquer tipo de
coragem de adentrar a cidade para uma invasão, demorariam um pouco para passar por todos os
cercos ensaiados. Isso havia acontecido apenas uma vez há bastante tempo, e como resultado,
Expedia mandou instalar imensos caldeirões ardentes para despejá-los dos fortes caso a tentativa
errônea de invasão ocorresse novamente. Além de seteiras, onde homens altamente treinados,
disparavam flechas com distintos venenos mortais e, claro, o favorito de Expedia, arpões retráteis
que poderiam perfurar várias pessoas ao mesmo tempo.
O rio em questão, o responsável de sua visita, delineava a cidade no seu lado direito e
com uma curva sinuosa sumia entre as árvores, onde pequenos fazendeiros usufruíam dele para o
sistema de irrigação de suas colheitas, que não apenas alimentavam Serenas, mas também outras
cidades do seu reino. Serenas também continha um pequeno porto, principalmente para
atividades pesqueiras e pequenas viagens de balsa que poderiam ser feitas até vilarejos menos
distantes.
Aquele problema de envenenamento estava prestes a lhe dar uma dor de cabeça
monstruosa, mas estranhamente, não era isso que a incomodava, aparentemente, suas prioridades
haviam mudado, pois, Umbra era o nome constante que estralava em sua mente. A traição doeu
tanto quanto a morte de alguns de seus súditos pelo problema do envenenamento de Serenas.
Mas ela era uma rainha, não poderia deixar seus problemas intervirem em seus deveres, a veriam
como uma monarca fraca.
Expedia chocou seus calcanhares levemente contra a barriga do cavalo e, em silêncio,
junto ao seu irmão, continuou o seu destino para a cidade de fronteira.
As portas do palácio foram abertas pelos guardas reais, surpresos pela presença da
rainha. Era bastante comum uma recepção regada a comida e festividade com a chegada de sua
formidável figura, mas isso não foi feito. O que deixou Expedia ainda mais irritada, já que seu
cansaço latente sobrevoava o seu corpo ansiosa para liberar a tensão que insistia em se fixar nela.
Os guardas saudaram a rainha com certa espalhafatosa apresentação, nervosos por sua
presença e liberaram as portas para que ela pudesse adentrar.
Ao dar o primeiro passo para dentro de seu lar, por direito, já que todas as propriedades
reais eram pertencentes a ela, Expedia passou os olhos pelo local, enquanto um dos guardas se
retirava, certamente para avisar a sua chegada.
A rainha se simpatizava com o pequeno palácio, pois ao seu centro, a alguns passos de
onde estava, havia uma grande abertura parecida com um pátio a céu aberto. Uma fonte de água
se localizava ao meio dela e em sua volta continha dois bancos de madeira de cor escura, um
sofá sem encosto com tecidos e almofadas de cores vermelhas e vasos com árvores de pequeno
porte. Também havia uma mesa redonda e alta à direita do sofá, onde uma garrafa de vinho
longa estava esquecida. Ao redor desse pátio, corredores abertos e sustentados por pilastras altas
ligavam os cômodos mais profundos do palácio, e pelo som percebido por Expedia, todos
estavam em movimentação para satisfazê-la o mais rápido possível.
— Minha cabeça está me matando. Por acaso eu bati ela? — resmungou Lucíferos pela
terceira vez, enquanto apertava sua nuca, mexendo o seu pescoço de um lado para o outro,
tentando aliviar a pressão. Um estralo de sua musculatura foi ouvido e o jovem monarca soltou
um gemido de satisfação.
Expedia o observou, enquanto ele caminhava em direção ao sofá, deitando-se sobre os
tecidos e as almofadas.
— Eu já te disse, nossa caravana sofreu um ataque e você me ajudou, mas bateu a
cabeça muito forte contra o chão e desmaiou. — Mentiu, odiando-se por fazer isso, sua vontade
era voltar e se vingar de algo que nem sabia ao certo o motivo.
Expedia ainda não havia decidido o que fazer, não depois do que aconteceu, mas
Umbra iria estar lá e ainda que estivesse com raiva, não desejava machucá-la, talvez Unema, mas
não a sua não mais amante.
— Minha rainha!! — O duque esbaforido de Serenas chegou apressado, ao ritmo que
seus cordões e pulseiras chacoalhavam para a irritação pessoal de Expedia.
— Feneros — cumprimentou a rainha.
A guerreira não era uma admiradora de Feneros, um homem medíocre, que vestia
roupas espalhafatosas e coloridas, com mangas bufantes, sempre usando adereços brilhantes. O
homem de sessenta primaveras era careca com costeletas brancas que cobriam as bochechas,
barrigudo pela quantidade de álcool que consumia diariamente. Era cego de um olho, que sempre
estava coberto com um tapa-olho de couro, com uma pedra vermelha cravada ao seu centro,
enquanto o outro estava sempre acompanhado de monóculo.
Um monarca não muito sábio, mas amigo profundo de seu pai, que o salvou inúmeras
vezes dos Luares, inclusive a perda de seu globo ocular foi em um dos inúmeros conflitos
existentes.
— Nós pensávamos que não mais viria. Procuramos por informações, mas nada foi nos
dado. É de agrado vê-la de novo.
Feneros tomou a indelicadeza libertária de pegar Expedia pelos braços e beijá-la em
suas bochechas. A rainha tentou esquivar, mas o esforço foi em vão, pois a barba branca roçou
em seu rosto delicado. Livrou-se logo do afeto exacerbado e aprumou-se, de repente, com
vontade de lavar-se.
— Por que não comemos e assim te explicarei tudo? — Ponderou a guerreira. — Além
disso, vejo a urgência de tratarmos do problema do rio. Não posso deixar meus súditos passando
fome.
Expedia não lhe contaria a verdade, usaria a desculpa combinada por ela e Unema,
ainda estava matutando sobre o que fazer ou não fazer com todas as informações que foram
jogadas para ela nesses últimos poucos dias. Suas decisões poderiam tomar um curso bastante
drástico no funcionamento de todo o reino, e principalmente, das ações que os Luares poderiam
tomar. Seja como for, Expedia estava ali em Serenas para um único e exclusivo motivo e era isso
que ela faria.
— Claro, claro! Será por demasiada alegria lhe ter aqui em nossa humilde cidade! — O
homem disse, ao colocar as duas mãos na cintura e dar uma compelida risada.
— Minha cidade — consertou Expedia, ao caminhar em direção de seu irmão
ressonando auditivamente no sofá. — E estamos longes de sermos humildes, somos supremos,
meu querido Duque. — Sentou-se ao chão, retirando as botas, e mergulhou seus pés dentro da
fonte de água. Arrepiou-se quando sua pele entrou em contato com o frescor da água e mexeu
seus dedos sofridos pelo enclausuramento das botas. — Agora, por que não usa a famosa
hospitalidade de minha Serenas e traz nossos pratos? — Ordenou, retirando a bainha de sua
espada do quadril e depositando-a ao seu lado.

∞∞∞
Foi apenas dois dias depois da vinda de um emissário do reino dos Luares em suas
típicas túnicas quase religiosas azuladas que Expedia, Feneros e um grupo de guerreiros
trotavam com seus alazões seguindo rente à margem do rio fraco. Finalmente, trataria do assunto
que a fez sair de seu castelo, ironicamente, aquilo parecia ter sido há muito tempo. A sensação
que permeava a guerreira era que o seu lar havia ficado para trás há muito mais tempo do que de
fato passou. Os dias intensos de Expedia estavam sem fim, assim como o cansaço quase evidente
sobre os seus olhos. Estava infeliz, frustrada e com raiva. Raiva de si e de toda a situação em que
se colocou envolvida.
Apertar as rédeas do cavalo não adiantou muito, pois seu nervosismo perante tudo
parecia isolá-la de qualquer incômodo, tanto que demorou um tempo para sentir que seus dedos
começavam a ter o leve formigamento de dormência pela falta de circulação.
Observava atentamente Feneros, o homem inclinava-se exageradamente para trás,
enquanto esmagava a barriga do cavalo com suas pernas cobertas apenas por um saiote dourado.
A pele peluda debaixo da vestimenta incomodou Expedia, mas seria melhor ignorar.
Para sua saúde mental, Expedia deixou seu irmão para trás, não queria e nem podia ter
a impulsividade de Lucíferos junto a ela. Seu irmão pareceu um pouco irredutível, pois desejava
se juntar a rainha, mas após um convencimento bem manipulativo, ele aceitou ficar para trás.
Assim como no dia anterior, o sol escondia-se nas nuvens como a timidez de uma
amante recém-apaixonada. Ao passo em que caminhavam em silêncio, bem, não totalmente, o
duque insistia em assobiar em desafino, o que sinceramente fazia Expedia repensar várias e
várias vezes se ela estava ou não cercada por retardados, ao menos era o que ELA achava.
Não muito distante de onde estavam, a rainha começava a ver a barragem do rio e mais
atrás, os prédios altos que tentavam abraçar o céu, suas cores brancas, prata e totalmente polidas
brilhavam especialmente sob a querida Deusa Irmã Lua. Os detalhes de prata que decoravam as
paredes grossas das estruturas eram cuidadosamente colocados para formar ilustrações brilhantes
que pareciam ganhar vida com a ajuda do satélite natural.
Era difícil dar o braço a torcer, mas os desgraçados dos Luares tinham bom gosto
estético, por vezes, até melhor do que os Solares, mas Expedia NUNCA admitiria isso em voz
alta.
Escoltados pelos guerreiros Luareanos, principalmente, mulheres que usavam vestidos
pretos com espartilhos de couro grosso com lindos entalhes de prata reproduzindo as fases da
lua. Seus rostos eram parcialmente cobertos por um véu de seda negro, que escondia os mistérios
de suas habilidades. Elas carregavam consigo imensas espadas em suas costas, grossas lâminas
polidas e brancas, certamente tão poderosas quanto as dos Solares. Já os homens vestiam
quimonos longos negros, carregando duas espadas em cada lado do quadril, entretanto, diferente
das mulheres, as lâminas eram menores e mais estreitas.
Expedia bateu as suas botas contra o chão de asfalto sem qualquer depressão e grandes
portas brancas de uma corpulenta casa de três andares, com os traços arquitetônicos dos Luares,
foram abertas em sua frente.
Surgiu de dentro um homem alto, forte, de cabelos grisalhos e barba bem-feita. Os
olhos azuis vívidos destacavam-se contra a pele negra, eles eram calmos e pacientes.
— Rainha Expedia. — A voz grave do monarca dos Luares fez uma leve reverência a
sua convidada. — É uma honra, tenho que dizer.
— Baricus. — Saldou a guerreira, mas oferecendo o sorriso mais contemplador que
alguém poderia dar. — Lurilana continua esplêndida.
Baricus olhou para Feneros e apenas assentiu com a cabeça. O homem negro e esguio
cruzou os braços sobre o peito coberto por uma camisa fina justa ao corpo. Expedia reparou as
ilustrações brancas permanentes contra a pele, que começavam no pescoço largo e serpenteavam
para baixo até se perderem dentro da vestimenta do homem. As lindas fases da lua marcavam a
pele cor de ônix, trazendo-lhe uma estranha presença poderosa que poderia fazer Expedia
estremecer. Claro que as espadas também foram percebidas em sua cintura, ela tinha a certeza de
que suas habilidades poderiam ser páreas para ela. Alguns, ainda que poucos, Luares eram
formidáveis guerreiros e eles pareciam muitas vezes praticamente imorríveis.
— Por que não entramos? Nós temos realmente assuntos importantes para tratar. — A
típica calma que Baricus tinha, ou ao menos a falsa sensação de que ele passava, e que
surpreendia Expedia.
As poucas vezes que encontrou o monarca, ele sempre fora civilizado, bastante
diferente de Feneros. Barulhento demais.
— Claro, quero acabar com isso imediatamente. — A rainha comentou
despretensiosamente, enquanto tomava seus primeiros passos para a casa comunal que nunca
estivera.
Baricus soltou um riso curto e seus lábios se desenharam para o lado esquerdo. Ele
conhecia o humor da jovem rainha e do trabalho que ela poderia dar caso o pior acontecesse.

∞∞∞
O final do dia penetrava a claraboia com sua luz alaranjada, iluminando a sala oval de
dois andares erguidos por pilares brancos. Ao centro da sala, uma enorme mesa redonda de
madeira e metal era vazada em seu centro, pois se erguendo dali, uma estrutura em forma de
globo cinza replicava a lua em seu maior esplendor. Objetos, livros, mapas e pergaminhos
estavam de maneira displicente, organizados sobre a superfície daquela estranha mesa.
Expedia andou pela sala, enquanto suas botas batiam ritmicamente contra o piso polido
aquarela de cores brancas e cinzas e quase brilhante, e sua capa de esplendor vermelho-escuro
refletia sua magnitude de guerreira. À sua direita, Baricus andava com sandálias fechadas de
couro e pano e, em seu lado esquerdo, Feneros caminhava fazendo barulho com suas joias
demasiadamente irritantes.
Ao passarem pela sala, Expedia foi direcionada a uma pequena câmara, resumida a
apenas uma mesa triangular com exatamente três cadeiras e enormes janelas que davam para a
mais exuberante vista dos jardins do grande casarão.
Os três monarcas se sentaram em um silêncio desconfortante e Baricus, a fim de aliviar
a tensão crescente, ofereceu-lhe o chá do bule de porcelana branca com desenhos de lobos
correndo, pintados em cinza, adornando a linda peça.
Os olhos da rainha caíram sobre a peça delicada e ao observar a ilustração feita à mão,
o seu coração palpitou, pois, sua mente vagou pela memória de Umbra transformando-se à sua
frente, dando lugar ao monstro impiedoso.
Baricus colocou a mão sobre a tampa do bule e segurou a alça de madeira preta,
despejando pacientemente o líquido quente e rosado nos copos redondos e achatados de cor preta
e ilustração branca. Gravado na louça estava apenas o rosto do lobo em uma expressão serena.
— Ervas Noras e flor silvestre, esse chá é uma especialidade em nossa cidade. Bastante
conhecido, inclusive pelos Solares. — O monarca da cidade dos Luares informou, ao depositar o
bule de volta à superfície da mesa e se sentar em sua cadeira.
— Já o tomei por algumas vezes, é gostoso. — Admitiu Expedia facilmente, ao pegar o
copo e levar o conteúdo até a sua boca.
O gosto doce não enjoativo chegou em seu paladar, era quase como se o líquido fosse
levemente aveludado, trazendo uma sensação calmante para o seu corpo quase que
imediatamente. Ela observou a hesitação de Feneros, era capaz do homem achar que o chá estava
envenenado, mas Baricus não faria isso, ao menos não com a rainha ali.
— Baricus, nós temos um problema, não temos? — Continuou a rainha, ao voltar o
copo para a mesa.
— Temos. — Baricus concordou, antes de experimentar o seu chá preferido.
— Envenenar e cortar o acesso do rio está causando morte ao meu povo. Uma atitude
drástica, já que vivemos em tempos de paz.
— Vivemos? — perguntou o monarca dos Luares, em um tom mais sério e quase
beirando a incredulidade.
— Até onde eu sei é o que quero.
— Então, comunique isso para o inútil do seu duque.
— HEY! — Feneros interrompeu a conversa,
— Cale-se, Feneros. O que você quer dizer com isso?
Expedia conhecia bem a inutilidade e a idiotice do homem velho que ainda se
perdurava no poder apenas pelo simples fato dos favores que fizera para a coroa, como salvar a
vida de seu pai.
— O seu duque está um pouco irredutível. Veja só, rainha do Sol… — Baricus
começou a falar enquanto relaxava seus cotovelos nos braços da cadeira. Ele pegou o copo,
deixando os seus dedos segurarem a base dele e tomou mais um pouco de sua bebida — O filho
do seu monarca passeou pelas ruas de minha cidade, o que, francamente, não me importava
muito, ao menos não de princípio. Mas ele começou a nos causar problemas, importunação, as
queixas vieram principalmente das mulheres Luares.
Expedia meneou a cabeça para Feneros, o homem estava com o rosto vermelho, entre a
clara raiva e o constrangimento que começava a se reviver dentro dele. A rainha trancou o
maxilar, já que o duque desviava o seu olhar, claramente querendo-o evitar.
A informação dada era nova e agora, Expedia estava claramente em desvantagem.
— Ele foi acusado por importunação sexual. — Continuou Baricus com calma, não
deixando resvalar qualquer sentimento de raiva perante o assunto.
— Isso é mentira! — Feneros vociferou ao bater o punho com pulseiras contra a mesa,
causando o tilintar das louças de porcelana. — Meu filho me garantiu que isso nunca aconteceu.
— Três mulheres alegaram tal ato. — Baricus argumentou, levantando-se da cadeira.
Os olhos atentos de Expedia observaram o duque Luares virando de costas para a mesa
e ligando suas mãos para trás. O andar calmo sobre as sandálias junto ao balançar do quimono
replicando desenhos de ondas calmas esverdeadas fizeram a rainha tensionar um pouco o seu
corpo. Aquela serenidade era fingida, um vulcão não adormecido esperando o momento certo
para romper em explosões e chamas. A guerreira começava a achar que talvez não iriam sair dali
com uma resolução pacífica.
— Elas podem estar inventando isso, majestade! — Feneros esbravejou novamente,
desta vez esmurrando a mesa com ainda mais raiva, tilintando as lindas louças. — É apenas um
motivo bobo para que eles prejudiquem nossa cidade.
— Cale a sua boca, Feneros — alertou Expedia entre os dentes com as narinas infladas,
ao assegurar que seu frágil copo não virasse.
Ela odiava o chilique de certos duques.
A rainha levava certas regras em seu reino com bastante dureza e importunação sexual
era uma delas. Não se importava como os Luares lidavam com isso, mas em seu reino aquilo era
simplesmente ultrajante e saber que o imundo do monarca de Serenas fizera isso na cidade dos
Luares apenas lhe deixava querendo esmurrar ainda mais o fedor que Baricus representava.
— Infelizmente, Feneros não nos deixou julgar o seu filho. — Baricus disse, ao
caminhar para perto da janela.
Os olhos cansados e poderosos do guerreiro observaram o lindo jardim com árvores de
caule verde escuro e folhas amareladas. Infelizmente, elas não estavam no melhor de seus
estados, o verão poderia ser bastante castigador. O gramado rasteiro estava sendo ocupado por
crianças Luares, elas corriam, riam e brincavam. Três escravos estavam na companhia delas,
caso a ajuda fosse necessária. Eles estavam sentados em uma toalha grande e azul, sob a sombra
da árvore de folhas amarelas organizavam o lanche que logo iria ser servido para a geração mais
nova de Luares.
— Para você torná-lo escravo?! — Intercedeu o monarca de Serenas pela ideia de seu
filho se tornar a escória da sociedade.
— Não, meu caro duque, estes somente têm a penitência para crimes leves e
endividamento. — Os olhos de Baricus continuaram sobre os dois escravos no jardim. Um deles
se levantou para entregar sanduíches que estavam enfileirados sobre uma bandeja de bambu. —
O seu filho iria ser julgado pelo delito de perturbação sexual, seu crime seria pago por outra
forma, mas aparentemente, isso não foi atendido. — Continuou e sorriu levemente ao ver as
crianças animadas, mas ordeiras, pegarem o alimento. — Mulheres do meu reino sofreram
violência e elas são a base da nossa sociedade, eu sou um dos poucos duques homens que regem
uma cidade. — E com essa informação, Baricus se virou novamente para os seus convidados.
— E por causa disso, você prejudicou a minha cidade inteira, matando o rio. —
Apontou Expedia, enquanto apertava o pomo da espada. Levou a mão para a nuca e apertou
levemente, antes de mexer a cabeça de um lado para o outro.
— A sua parte do rio — indicou Baricus com um sorrisinho malicioso. —
Convenhamos, Expedia, se fosse no seu reino, o desgraçado nem estaria mais vivo.
Os olhos do duque de Serenas se acenderam.
Ali estava a ferocidade do homem.
— Um pouco descabida essa decisão, não acha? — Uma pergunta quase retórica foi
feita pela rainha. Ela já sabia a resposta.
— Nem um pouco, como eu disse, você faria bem pior, majestade solar.
Sim, ela faria.
— Eu não darei o meu filho! — A voz irritante de Feneros obrigou Expedia a fechar os
olhos para não esbofeteá-lo no meio de seu rosto suado e de bochechas inchadas pelo álcool
exacerbado.
— Então, não teremos nenhum tipo de acordo. Mas a cada hora que se passa, mais seus
moradores irão sofrer.
— Você sabe que isso é uma ideia estúpida, não sabe? — Indagou a rainha, sorvendo
um pouco do chá, que de fato estava delicioso, simulando a mesma calma que o duque dos
Luares.
— É um risco que tenho que tomar. Um recado bastante pertinente para os Solares que
não respeitam o básico da civilização.
— Algo que certamente podemos partilhar, não acha? Afinal, vocês colecionam
escravos. — Falou Expedia, ao levantar uma de suas sobrancelhas.
Sim, ela estava com raiva de Feneros e seu filho, mas um Luares falar de seu reino, aí
já era por demais.
Baricus soltou uma risada baixa e rápida.
— Eu me esqueci do quanto a rainha dos Solares pode se transformar em uma fedelha.
— O duque dos Luares proferiu, mostrando um pouco mais de sua falsa passividade.
— A pior que pode existir — concordou Expedia ao espalmar as duas mãos na mesa e
tomar impulso para se levantar.
A rainha guerreira não era uma mulher muito alta, mas sua musculatura desenhada pela
mão pessoal da Deusa do Sol e sua irradiação de resplendor geraram desconforto em Baricus.
Transferiu o seu peso de uma perna para a outra e seus dedos descansaram no cabo retangular de
sua espada levemente curva.
Era reconfortante saber que Expedia tinha esse tipo de efeito.
Medo e respeito eram sentimentos os quais a rainha andava lado a lado. Quando o
respeito se esvaía, Expedia trabalhava em destilar o sentimento de medo e agora era o que ela
precisava. Até urrar contra Baricus e tomar decisões que poderiam mudar o curso de Serenas.
— Verei o que posso fazer e logo retornarei com uma resposta à altura do problema
que está me dando, Baricus — disse Expedia.
— Eu tenho certeza de que sim, majestade do sol. — E o duque se reverenciou.
Havia sido inútil vir até aqui? Talvez. Entretanto, se não viesse, não teria aprendido o
real motivo da atitude dos Luares. Expedia iria ter que lidar com um conflito cada vez mais
perigoso, um irmão relapso pelas memórias mutadas, Feneros, o imbecil que iria ter de lidar e,
claro, a dor pulsante da traição com a qual Umbra lhe presenteou. Coleções de problemas que
transbordavam por todos os lugares.
Capítulo Vinte e Três
Os pesadelos voltaram

Os olhos brancos refletiam a dor do abandono enquanto a chama da tímida lareira


coloria sua íris. Essa era Umbra, a mulher que provou a esperança e agora não conseguia mais
senti-la. Escondida sob a manta felpuda azul-marinho, sentada no chão de madeira, segurava em
suas mãos um prato de comida praticamente intocado.
Seus lábios secos e as olheiras profundas marcavam o choro acentuado. Seu corpo doía
perante o flagelo que sua alma estava tão fortemente sentido, tudo seria mais fácil se Umbra
nunca tivesse tido esperança, pois prová-la e não mais tê-la era quase pior do que nunca tê-la
sentido.
— Você precisa comer — murmurou Unema, em algum lugar atrás dela.
As duas se encontravam no aposento oferecido a ela desde que chegou em
NossDomuss.
Umbra era boa em seguir ordens e foi exatamente o que ela fez. Segurou o prato de
madeira perto de sua boca e espetou com o garfo o pedaço pequeno de carne de ovelha suculenta
que estava lhe esperando. Mastigou sem vontade, enquanto a governanta se sentava ao seu lado,
juntando-se à aura melancólica da mutana.
Nas mãos de Unema, dois cálices de vinho estavam ansiosos para serem provados.
Gentilmente, ela colocou um sorriso nos lábios e ofereceu o líquido alcoólico para a jovem que
ainda mirava perdida a lareira em sua frente. Levou alguns segundos para que Umbra colocasse o
prato apoiado no chão e entregasse qualquer atenção para a governanta.
O sorriso foi contemplado pela mutana, antes de finalmente aceitar a bebida de Unema.
Os dedos gélidos tocaram levemente os da governanta e a preocupação coloriu os olhos amarelos
da governanta. Era difícil de admitir, mas a mulher de olhar felino admirava e se afeiçoava pela
jovem mulher ao seu lado. Talvez em outras circunstâncias, ela poderia tentar flertar com Umbra,
mas naquele momento, aquilo não parecia tão correto.
— Eu gostaria que você ficasse aqui, eu sei que está decidida a ir, mas seria ótimo tê-la
conosco. — Continuou Unema ao cruzar as pernas e esticar sua coluna de maneira ereta. Seus
olhos passearam pelo fogo, enquanto seus lábios experimentavam o néctar doce do vinho de
uvas-silvestres, vindo de algum tipo de contrabando interceptado pelas suas crianças perdidas. —
Nós poderíamos treinar, poderia te ensinar um pouco mais sobre o que você representa, até
mesmo ajudar a achar o que você é.
Um riso desanimado foi dado por Umbra.
— Eu não tenho ideia de quem eu sou, o quão patético é isso?
— Não fale assim. — A voz calma e gentil de Unema, fizera com que a mutana a
olhasse. — O que aconteceu na sua vida foi algo extremo e ruim, os responsáveis por isso
deveriam ser julgados. Ouso dizer, até mesmo mortos. Compreende o meu medo de nos
revelarmos? Eu não quero que outras crianças passem pelo que você passou. — Disse com
veemência e um toque fugaz foi dado no ombro que ainda estava sendo curado.
A complacência foi aceita com prumo.
Alguns segundos de silêncio foram dados para elas.
Umbra continuava com a sua dor, mas desta vez, o vinho lhe acompanhava, trazendo o
típico rubor que a bebida oferecia. Seus joelhos começavam a fisgar levemente, consequência do
tempo que decidiu lamuriar pela sua vida sentada na frente da lareira. Unema se juntou a ela não
muito tempo depois e com a estranha familiaridade que sentia pela mulher, começou a desatar o
seu desabafo doloroso sobre as desventuras de sua vida. A governanta apenas a ouviu com a
empatia que um bom ouvinte poderia ter, apenas interrompendo algumas vezes para fazer
perguntas consistentes. Era um tanto aliviador poder contar a sua história sem precisar se
censurar à medida que as palavras saíam de sua boca com uma estranha facilidade.
— Eu tenho que contar tudo a ela — informou Umbra sobre os seus planos.
— Eu sei.
Tinha um certo pesar na voz de Unema, mas o sorriso pequeno e o segundo toque no
ombro da mutana reafirmou que a apoiava mesmo deduzindo que aquela decisão poderia
massacrar ainda mais a loba solitária.
— Olha, Umbra — começou Unema novamente, antes de bebericar um pouco do seu
vinho. —, eu irei lhe acompanhar amanhã até a margem da estrada, assim, você sempre saberá
voltar. As minhas terras sempre estarão abertas para você.
— Obrigada, Unema.
A mutana fungou e simplesmente repousou sua cabeça sobre o peito da governanta.
Unema encheu seus pulmões de ar, mas não o desperdiçou, seu corpo tensionou pelo
momento de afeto, infelizmente, esse tipo de afeição não era muito bem recebido pela
governanta. Infelizmente, seu lugar de posição era muito respeitado, mas temido também. O que
lhe trouxe uma profunda solidão. Umbra parecia preencher um pouco isso, mas talvez, pudesse
ser apenas uma carência, seja como for, ela apreciava a presença da jovem. Mas essa
costumidade iria logo passar, pois daqui a poucas horas, a governanta não mais veria Umbra.

∞∞∞
Escondida sob a túnica preta, Umbra apressava o esbaforido cavalo dado por Unema
até o começo do território da cidade de Serenas.
Sua inquietação construía-se cada vez mais forte dentro de si, enquanto se aproximava
dos portões o sentimento se fortificava. A mutana ainda se impressionava como uma grande
cidade como aquela conseguia ser murada tão orgulhosamente e, aparentemente, o local estava
ainda mais cheio desde a última vez que viera com sua antiga família. Fazia, mais ou menos, dois
ou três anos e agora as casas estavam cada vez mais apertadas, erguendo-se para os céus. As ruas
transformavam-se em uma confusão de vozes, comércio e boemia. Infelizmente, a pobreza havia
aumentado repentinamente, talvez fosse esse o problema que Expedia havia vindo tratar.
Enquanto cavalgava em um trotar lento pelas ruas de lama e pedras, Umbra lutava para
conseguir um espaço decente para se locomover.
Seus olhos atentos escondidos estavam sob o capuz da túnica verde-escura, também
oferecida por Unema, que também foi de ótima serventia, já que os moradores não lhe davam
muita atenção, claro que ouviu um ou dois xingamentos vindos em sua direção. Não era fácil
disputar espaço em uma viela apertada com um cavalo de um tamanho bastante considerável.
A memória de Umbra sempre foi muito boa, especialmente para lembrar do pesadelo
real que quase diariamente sofria no circo, mas também tinha uma facilidade muito grande de
reconhecer caminhos e locais, por isso que para ela não seria tão difícil voltar para NossDomuss,
caso necessário. Ela pensava em voltar, mas não ainda. Agora, tentava encontrar a taverna no
final da ruela, pois ao lado do estabelecimento havia um estábulo onde era possível deixar o seu
cavalo e, com algumas moedas oferecidas por Unema e a bolsa de veludo que guardava para
depositar o seu pagamento de costureira, seria possível pagar uma cabine, comida e bebida para
o equino que a trouxera até aqui.
Umbra desceu do cavalo em frente ao estábulo, uma estrutura de madeira de cor
amarela escuro e telhas vermelhas levemente convexas que iam quase até o solo. As grandes
portas contornadas por tinta branca estavam semiabertas e pelas rédeas do cavalo, a mutana o
puxou em direção ao local, parando apenas por alguns segundos antes de entrar. Piscou algumas
vezes e levantou a cabeça para olhar o entra e sai da taverna em uma hora cedo da manhã.
Certamente, bêbados que passaram a noite ali e eram substituídos por aqueles que tiveram uma
noite difícil na cidade.
Ela abaixou o capuz e sentiu o calor do sol da manhã roçar sua pele acinzentada, seus
olhos se fecharam por alguns segundos, aproveitando a sensação agradável que ele dava.
Entretanto, o seu pequeno e insignificante momento de paz foi interrompido pelo som de um
soco e um xingamento descontente. Quando abriu os olhos, viu o começo da briga de homens na
frente da taverna e não demorou muito para que os dois estivessem se engalfinhando no chão.
Umbra sentiu uma leve repulsa, antes de rodar os olhos e negar com a cabeça, para finalmente
entrar no estábulo.
Sob a iluminação da manhã penetrando o ambiente através das janelas altas, Umbra
escoltou o seu cavalo para dentro. As baias que preenchiam as laterais do local estavam quase
todas cheias, alguns cavalos se alimentavam pacientemente com o feno dado, outros curtiam o
sôfrego tédio de apenas existirem e outros conseguiam dormir em meio ao local que fedia
levemente a estrume.
A mutana procurou por alguém, um cocheiro talvez, mas seus olhos não captavam
ninguém por ali. Soltando um muxoxo desanimado pela boca, continuou a puxar seu cavalo pelas
rédeas, abriu a porta da baía à esquerda e o acomodou da melhor maneira possível.
Direcionando-se para o fundo do estábulo, Umbra encontrou um balde vazio de madeira e o
colocou embaixo de uma torneira, bombeou a alavanca de ferro e os primeiros jatos de água
saíram em um som estridente.
Ao encerrar o bombear da água, a porta do estábulo se abriu, já que a iluminação
exacerbada e as dobradiças enferrujadas indicaram a presença de mais alguém. Umbra fez
menção de abrir a boca e se virar para trás, mas seu olfato agiu primeiro, ela reconheceu aquele
cheiro. Seu coração pulsou tão fortemente dentro de sua caixa torácica que repousou sobre ele.
Ela não estava na presença do cocheiro, longe disso.
— Eu sabia que o destino iria nos abençoar novamente, filha. — A voz de sua mãe
ressoou com a típica dissimulação de carinho.
Umbra não queria se virar, quase se negava a fazer tal ato. Como era possível aquela
mulher estar ali? Dentre tantos outros lugares que ela poderia selecionar para fazer suas
apresentações, fora ali que ela optou.
O pânico tão rapidamente espalhou-se pelo seu corpo.
Não havia muito o que pudesse fazer, sim, ela poderia se transformar na fera, mas
Umbra estava cansada, perdida, sentindo um verdadeiro desalento. Além disso, fazer com que o
lobo saísse de dentro de si na luz do sol poderia lhe causar verdadeiros problemas. Então, ela se
virou, revelando o seu novo ser para sua mãe. Umbra precisava de coragem agora, mas a
pobrezinha ainda não tinha, pois, quando encarou Luriel com seu típico tapa-olho dourado, o
olho verde afiado e o chicote — o maldito — enrolado em sua mão, sabia que nunca poderia
vencê-la.
A hesitação e o erro…. O meio passo para trás dado por ela, junto ao arregalar dos
olhos. Seu carrasco particular estava ali, esperando por ela, no intuito explícito de levá-la para a
forca. Mas agora, uma grande cicatriz também marcava a pele branca e seca de sua mãe. A
mulher acumulava duas perdas com Umbra, seu olho e a pele destroçada entre o ombro e o
pescoço.
Todo esse visual deixou-a ainda mais aterrorizante.
Luriel desenrolou o chicote e um sorriso vitorioso nasceu.
— Você realmente não tem ideia do estrago que fez, tem? — Continuou a mulher de
tapa-olho.
— Mamãe, eu-
— CALE-SE! — Luriel cortou a sua explicação, vociferando em quase um espumar
canino.
Umbra estava cada vez mais encolhida, poderia jurar que sentia até mesmo a dor
queimando lhe a pele. O medo crescente já estava presente em seus poros, mas a vontade da
morte também lhe acompanhava, seria tão fácil acabar com a sua mãe. Mas por que não estava
tendo essa capacidade?
Seu peito começou a pesar ainda mais, sua respiração estava entrecortada e seu corpo
começava a criar uma camada de suor frio, consumindo-a pelo terror. Como alguém conseguia
ter tantas amarras com ela? Seu coração doeu, muito. Sua coluna curvou para frente e sua mão
foi ao peito, enquanto hesitava dando um passo para trás, percebendo o quanto suas pernas
estavam bambas.
No próximo instante, dois homens brotaram atrás de sua mãe, um deles era do fatídico
episódio que ocorreu no dia em que fugiu da "A Boca do Lobo".
Eles se aproximaram dela, prestes a dar o bote certeiro.
Umbra rosnou como um animal amedrontado, ela teria que tentar lutar por sua vida.
Um dos homens se aproximou o suficiente para tentar desferir um doloroso soco em
seu rosto, mas pelo seu reflexo aguçado, Umbra desviou sem muita dificuldade. Entretanto, a
mutana não contava com o segundo homem se posicionar atrás dela e seus grandes braços
abraçá-la em um verdadeiro ato esmagador.
Seus pulmões faltaram ar quase que imediatamente e suas costelas comprimiram-se
dolorosamente. Ele a ergueu no ar com uma facilidade assustadora, mas Umbra era uma mulher
forte, ao menos, sua criatura interior, sim.
Debateu-se, usando os seus braços para fazer a força oposta do que o homem estava
aplicando. Seus pés começaram a se movimentar para todos os lados com a única intenção de
acertá-lo. Quando sentiu um leve afrouxar dos grandes braços, Umbra jogou a cabeça para trás,
acertando a face do homem, consequentemente, o abraço se folgou mais. Seus dentes, agora
afiados, foram em direção ao braço de seu assaltador e ela o mordeu ferozmente. O sangue
jorrou por sua boca e a carne de gosto salgado com cerveja arrebentou no seu paladar. O pedaço
veio impregnado com os caninos mortais de Umbra.
Ele urrou em dor absoluta e a voltou, mas não antes de chutá-la nas costas.
Umbra aterrissou em seus joelhos contra o solo duro e o velho feno esquecido no chão
pinicou sua pele, mesmo através do tecido. Antes que pudesse reagir e continuar sua batalha, a
bota gasta do primeiro homem veio em direção a sua face. O chute foi dado com tanta maestria
que o corpo da mutana foi jogado para o lado como a de uma boneca de trapo velho.
O seu sangue molhou sua boca já empapada pelo do seu assaltador. Sentiu o próprio
gosto em sua língua e uma dor lasciva em seu nariz. Ela não sabia se tinha quebrado ou não, mas
a dor não a deixou raciocinar muito bem.
Sendo empurrada de frente, seus olhos lutavam para se manterem abertos.
— O que você fez com o seu lindo cabelo, filha? — Luriel perguntou com a voz
sedosa.
Umbra levantou um pouco a sua cabeça, infelizmente, ela encontrava-se pesada,
latejante com um zunido alto em seus ouvidos, deixando-a desestabilizada e desatenta. Por mais
que tentasse, não conseguia dizer onde estava a sua mãe, mas isso mudou, quando sentiu o couro
do chicote envolver o seu pescoço de maneira abrupta e o hálito de Luriel acariciar a pele de sua
bochecha, um asco infindável que a mutana nunca poderia se esquecer.
Sua mãe a puxou para trás e suas costas formaram um leve arco, rapidamente, levou as
mãos para o chicote, quando sentiu sua garganta fechar pelo esforço monstruoso que Luriel
estava aplicando.
Seu rosto estava vermelho, a pele inteira de sua face ardia, mais uma vez ela era
marcada. Mais uma vez, suas cicatrizes entrariam em evidência, assim como a desesperança cada
vez mais entranhada em sua alma. Era isso… Umbra não passava de um ser para ser usado e
depois descartado. Ela sequer poderia provar que era diferente, nunca haviam lhe dado aquela
oportunidade.
Pela primeira vez, desejou voltar para Unema, lá ela estaria segura…, mas, seu amor
por Expedia a fez continuar, ela tinha que contar, tinha que tentar. Era inédita essa emoção:
amar… Ela nunca ousou sentir isso, mas reconheceu ali, na sua asfixia, que seu coração
pertencia à rainha dos Solares.
E foi assim, que o seu mundo voltou à escuridão, seu último pensamento havia sido a
quentura de Expedia.

∞∞∞
A voz de Expedia bradava por todo o palácio, enquanto passeava pelos cobertores
abertos, despidos de paredes e sustentados por pilastras sinuosas.
— Eu quero o seu filho na minha frente, imediatamente! — Irredutível estava a rainha.
— Ele não está na cidade… — O flagelado duque tentou se explicar.
Eles pararam em meio ao corredor, olharam-se por menos de dois segundos, até que
Expedia o pegou pelo colarinho e o levou para a pilastra mais próxima, onde o imenso corpo se
chocou, chacoalhando as joias e produzindo um choramingo covarde de Feneros.
A rainha poderia jurar que se o jogasse mais firme contra o concreto, o duque poderia
derrubá-lo. Como aquele homem um dia havia sido um guerreiro? Patético! Era esse o tipo de
nojo que Expedia sentia. Odiava homens covardes, odiava mais ainda aqueles que tripudiavam a
civilidade.
— Eu preciso averiguar o testemunho dele! Baricus entregou-me os das jovens, e
preciso saber o que o seu filho tem a dizer. As acusações são pavorosas. Eu tenho que pensar nos
nossos próximos passos. — Suspirou a rainha, ao perceber que o homem estava calmo, ou
simplesmente, amedrontado demais para rebater. — O que está acontecendo com Serenas é além
de você e de seu filho. Não posso deixar o meu povo passando necessidade.
E assim, ela se afastou, ajustando suas manoplas de couro e a capa de pele vermelha.
— Eu não quero perder o meu filho. — Feneros disse ao acariciar o próprio pescoço.
— Eu não quero perder a minha cidade. Traga-o imediatamente, duque. Para o bem de
todos, e veremos o que poderá ser feito.
Continuou o seu andar majestoso pelo corredor. Ela desejava tanto um pouco de paz,
mas aparentemente, isso não ia ser entregue a ela.
— Ei, maninha!
Lucíferos surgiu apoiado em uma pilastra, quando Expedia virou para um corredor
menor, mas desta vez, eles eram emparedados, devido aos cômodos distribuídos por ali. Seus
aposentos eram logo mais à frente, mas entre ele e ela estava o seu irmão segurando uma maçã
cortada na mão esquerda, enquanto na direita segurava uma pequena faca e um pedaço suculento
fincado nela.
— Como foi a reunião?
— Preciso de suas habilidades, eu não confio em Feneros, quero que acompanhe os
soldados para pegar o filho daquele homem. Eu o quero aqui o mais rápido possível.
Lucíferos estufou o seu peito nu e sem pelos, o que, sinceramente, sempre irritava
Expedia, mas era bom reparar que aos poucos seu irmão estava voltando da letargia.
— Quando eu parto? — Perguntou o irmão, ao levar o pedaço da maçã na boca.
— Amanhã.
Lucíferos guardou a faca dentro de seu cinto junto aos frascos de veneno e antídotos,
levou a mão na careca e seus dedos passaram por toda ela.
— Tsk… esperava descansar mais um pouco, mas tudo bem…
Expedia continuou o seu trajeto para o aposento, entretanto, foi interrompida pelo seu
irmão. Com a mão livre, ele a pegou gentilmente pelo ombro.
— Está tudo bem, não está? — Continuou ele, com uma pergunta quase inocente,
como as de quando ele era apenas uma criança disposta a aprender qualquer coisa posta para ele.
Expedia ofereceu um sorriso tranquilizador.
Não estava tudo bem, ela poderia a qualquer momento entrar em guerra, se não
resolvesse essa tensão criada por Feneros, estava se sentindo completamente traída por Umbra.
Um alguém que confiou e simplesmente escondeu a sua verdadeira essência. Atacando-lhe como
uma besta sem rédeas. Umbra representava uma completa escuridão para ela. Não tinha ideia de
quem era a mulher pela qual se apaixonou e que agora nutria a dor de um coração quebrado.
Era mais fácil quando ela simplesmente se envolvia com alguém pelo simples fato de
troca de prazer. Ela era uma rainha, quem poderia nutrir qualquer sentimento por ela? Nem
mesmo Umbra… talvez sua missão de vida fosse simplesmente ser a monarca, cuidar do reino
até que os sucessores viessem. Seja Lucíferos ou a prole dele.
— Vai ficar — respondeu sinceramente ao pousar a mão sobre o ombro de seu irmão.
— Acho que estou um pouco cansada também. Não demore, ok? Encontre-o. — Pediu, antes de
dar dois tapinhas no ombro de Lucíferos.
Com o humor bastante depreciado, voltou a andar em direção ao quarto, ao menos,
naquele local fechado e particular, ela poderia sentir suas mágoas sem demandas ou amarras.
Não precisaria colocar algum tipo de faceta apenas para mascarar a frustração que estava
sentindo.
Recolheu-se.

∞∞∞
Os olhos se mexiam sob as pálpebras fechadas, o rosto cinza antes ensanguentado,
estava sem qualquer mancha escarlate. O nariz, antes ferido, estava tratado, coberto por uma
proteção e ervas para que a pele já ferida inúmeras vezes fosse tratada. O corpo estava deitado de
lado em uma posição fetal à procura de proteção. As vestimentas de antes foram substituídas
pelos antigos trapos que tantas vezes foram presenteados para ela e que sempre odiou, o cheiro
era como o de um trabalhador que se prezava o dia inteiro no sol.
Perdida nas sombras sem sonhos ou pesadelos, a consciência de Umbra a puxava para
o mundo real, um lugar bem pior do que sua cabeça poderia um dia pensar em fabricar.
Seus olhos se abriram e seu cenho logo franziu, pois todo o seu corpo irradiava em dor.
Não levou mais do que alguns segundos para ela reconhecer onde estava. Primeiro, espalmou as
mãos no chão de madeira com o feno apodrecido, depois levantou um pouco o seu tronco,
gemendo em dor e com a terrível dificuldade de lubrificar a garganta. O olhar quase sem vida
observou as barras de ferro em sua volta e o desespero retumbou em seu corpo como um soco no
estômago. Sua respiração encontrou-se novamente entrecortada e seu peito subia e descia
rapidamente, estava hiperventilando, simplesmente pelo local em que se encontrava.
Choramingou e se mexeu na tentativa de se colocar sentada, entretanto, em meio ao caminho,
Umbra sentiu o peso tão conhecido em volta de seu pescoço. Vagarosamente, seus dedos foram
subindo pelo seu peito, ao passo que tentava recuperar sua respiração. Em poucos segundos, suas
emoções se modificaram e tudo parecia ter tomado um passo mais lento, sentiu o pulso de suas
artérias baterem em seus ouvidos. Fechou os olhos e seu queixo tremeu, quando Umbra dedilhou
o grosso material de couro.
Ela se encolheu, arrastou seu quadril para trás até que encostasse nas gélidas barras de
ferro. Segurando a coleira em seu pescoço, chorou como uma criança, chegou até mesmo a
soluçar.
— Não precisa chorar, meu amor. — Luriel disse, ao entrar na tenda alta, reservada
apenas para o carro de cela.
Umbra levantou os olhos e encarou a mãe vindo em sua direção.
Fungando, limpou as lágrimas que ainda saíam de seus olhos.
— Por favor, me solta… — Pediu tão baixinho, que parecia ser mais um pedido para si
mesma do que para a própria mãe.
Qualquer um que ouvisse a suplicar, choraria. A dor cravejada na voz dizia isso.
— Você sabe que eu não posso fazer isso, não sabe? Eu acabei de te reencontrar, filha
— falou sua mãe ao raspar as pontas dos dedos nas barras de ferro da cela particular da mutana
— Hoje faremos nossa abertura e você vai ser nosso número principal. Eu estava realmente
sentindo sua falta, querida.
Luriel parou em frente a Umbra e seu braço esticou para dentro da sala, até que sua
mão tocou a bochecha de cor acinzentada. A carícia aconteceu fugazmente, bem perto do nariz
lesionado, algo que em breve estaria curado. O poder de regeneração de Umbra poderia ser
bastante invejável.
— Você não é a minha mãe! — A estranha e rápida valentia apoderou-se da mutana,
mas logo, o sentimento enclausurou-se dentro de seu peito.
O sorriso contido de uma sordidez especial espalhou-se pelos lábios de Luriel e os
dedos sobre sua bochecha apertaram-se contra sua pele. Era inacreditável como aquela mulher
tinha poder sobre Umbra.
— Tem razão, mas para você ver, sua mãe lhe jogou fora assim que viu o monstro que
você é. Eu te acolhi porque eu sabia de seu potencial. Quem diria, a filha da rainha dos Luares
foi tratada como maltrapilho. Um ninguém. Se não fosse por mim, você estaria morta. Mães são
as que cuidam, eu sou essa pessoa. Eu aceitei essa sina.
Aquilo não poderia ser verdade. Luriel poderia ser absolutamente cruel quando
desejava, algo que fazia corriqueiramente quando estava insatisfeita com algo, mas, ao mesmo
tempo, sentiu-se rejeitada pela mãe que sequer conheceu e, mesmo magoada, Umbra estava um
tanto estarrecida com as informações que haviam sido jogadas para ela.
— Por que você está me dizendo isso? — Umbra perguntou, ao se afastar do carinho
não afetivo de Luriel.
Ela abraçou suas pernas e suas costas voltaram a se apoiar nas barras de ferro de sua
jaula.
— Apenas para te contar que absolutamente ninguém aceita essa monstruosidade que
está dentro de você. Sua verdadeira mãe não podia sequer olhar para você e eu te dei tudo o que
você precisava para sobreviver. E você me paga com isso.
Luriel apontou para o ferimento recém-cicatrizado e ainda avermelhado, localizado
entre o ombro e o pescoço. Os olhos de Umbra fitaram a deformidade que deu a sua mãe e
sentiu-se envergonhada, sem ao certo saber o porquê disso. Mas sua mãe tinha razão… As
pessoas lhe abandonavam, sua fera era sua verdadeira maldição. Seria muito mais fácil se Umbra
simplesmente vivesse na ignorância, sem a típica esperança que foi apresentada para ela. O lugar
dela era aqui, sendo o chamariz perfeito para encher o estômago de todos com os mais diversos
alimentos.
— Você não se encaixa em ninguém, minha filha. Nem com os Luares, nem com os
Solares — continuou Luriel ao se afastar um pouco da grade. — Para sempre vai estar sozinha,
apenas comigo que encontrará um lar.
Novamente, sua mãe encontrava-se certa e aquilo doía. Doía tanto que as lágrimas
brotaram em seus olhos de íris branca, mas não havia nada que ela pudesse fazer, apenas se
afundar na tão conhecida desesperança.

∞∞∞
Não muito tempo depois, lá estava ela, ao meio do picadeiro, diferente da plataforma
redonda que habitualmente ficava, seus pés tocavam a areia batida. Sua túnica ainda continha o
seu cheiro de suor e sangue, sequer tiveram a pachorra de lavar o pedaço de maltrapilho que ela
sempre usava.
As jaulas a cercavam, enquanto os holofotes brilhavam incandescentes e mesmo
escondida sob o capuz negro e a tão conhecida máscara de madeira com o lobo entalhado, a
iluminação perturbava a sua visão. Em adição, os odores que um dia Umbra tanto amou, hoje
não passavam de cheiros enjoativos, trazendo um gosto desprazeroso em sua boca. Os gritos e as
risadas pareciam se camuflar embaixo da dor latente que sentia, enquanto sua mãe disparava a
terceira chicotada em suas costas. Luriel gritava ordens, mas seu corpo apenas balançava com o
impacto do couro, logo, mais cicatrizes se juntaram às outras e assim seria a vida de Umbra. As
trevas a abraçaria e ela simplesmente encontraria o reconfortante vazio da escuridão. Isolar-se de
qualquer propósito que um dia pensou que poderia ter. A apatia estava tão palpável em seu
corpo que a mutana não conseguia ter a concentração suficiente para reunir suas forças.
Logo as vaias começaram a se proliferar como ervas daninhas em um jardim já
destruído e as chicotadas continuaram, Umbra continuava firme com os punhos cerrados, pois
sua carne começava a arrebentar e com isso o sangue brotava entre os ferimentos.
Luriel estava desprovida de qualquer paciência, era óbvio pela força que ela usava,
enquanto a insatisfeita plateia reagia de maneira negativa para o espetáculo principal.
— Ande! Você está maluca? — Esbravejou a mulher que segurava o chicote com força
o suficiente para os seus dedos arderem.
Com os ombros caídos, Umbra olhou para trás.
— Lembre-se, eu alimentei você! Se não fosse por mim, você estaria sozinha, agora
faça o que estou mandando. — Continuou Luriel com o seu massacre em palavras.
Mas as palavras não pareciam surtir qualquer efeito sobre Umbra, ao contrário, seus
olhos pareciam perdidos, ela era uma renegada, uma ninguém.
Luriel elevou a sua perna e desferiu um chute certeiro ao centro das costas da mutana já
totalmente lesionada.
O corpo fraco de Umbra foi projetado para frente, caindo de joelhos. Apoiando-se em
suas mãos, gemeu em dor e incômodo.
Ela olhou para trás mais uma vez e viu sua mãe se aproximar, agachando-se do lado
dela.
— Mãe… — Umbra chamou por Luriel, em uma clemência dolorida para que o show
acabasse.
— Não seja inútil, garota.
Sim… Ela era inútil…
Com a mesma apatia que estava sentindo, os olhos brancos enxergaram o desagrado de
sua mãe agachada ao seu lado. Pessoas em volta gritavam, berravam de desgosto pela falta de
entretenimento. Aparentemente, elas estavam mais furiosas do que o normal, algo relacionado ao
descontentamento dos moradores perante a cidade de Serenas. Problemas que Expedia iria
resolver… Expedia. Esse nome já parecia distante de seu vocabulário, tão distante que o vazio a
engoliu quase por completo. Ela estava perdida, mergulhada nas trevas, até que o cheiro do
sangue lhe acendeu como um predador selvagem.
Fixando seu olhar ainda mais firme sobre a sua mãe, percebeu a testa com pequenos
fios viscosos de cor rubra.
As pupilas dilataram e a fera tremulou dentro de si, quase sem controle, buscando
vingança certa por tudo o que foi dito e passado durante os anos de abuso que foram oferecidos
para Umbra. A impressão era a de que o lobo dentro de si estava tomando conta do cerne da
mutana, fazendo algo que Umbra, no estado em que se encontrava, não podia fazer.
Depois disso, a mutana não tinha mais qualquer controle, nem mesmo lembranças do
terrível acontecimento. Mas tudo se resumia ao gosto do sangue de sua mãe adotiva em sua boca
e o coração desacelerando, enquanto o sofrimento de Luriel acontecia diante a grande fera
perante a ela.
A tosse de sangue, os gritos, as próximas mortes que ocorreram devido ao lobo
sanguinário, que desejava apenas defender seu hospedeiro, fez com que Umbra permitisse tal
poder, vingar-se do que nunca um dia procurou ter ou saber. Tudo o que ela queria era ser
abraçada pela reconfortante escuridão, mas também pela brasa de sua fera particular. Deixou-se
levar, pela primeira vez, abrindo mão da consciência. Ela era um monstro, uma criatura sádica e
talvez, só talvez, o grande lobo viraria o pesadelo de todos e assim, sua hospedeira poderia
finalmente ter sua vingança e sua paz.
Capítulo Vinte e Quatro
A fera e a guerreira

Expedia encontrava-se desnorteada, ao passo em que caminhava pelos corredores do


pequeno palácio da cidade de Serenas. Seu rosto ainda estava marcado pelo sono, assim como o
seu cabelo desgrenhado. Irritada pelo despertar precoce, a rainha guerreira terminava de se
ajustar, junto aos passos largos.
Expedia estava em sua excelência de guerreira, mesmo não sendo uma mulher alta, seu
físico chamava olhares curiosos e atraídos. A calça negra estava protegida por grevas e colchetes
de brigantinos negros. Sua blusa era resistente e pesada, feita de couro de feras selvagens das
florestas mais perigosas do reino dos Luares, firmes o suficiente para deixar seus seios levemente
apertados dentro da vestimenta. Seus braços estavam expostos, sua musculatura desenhada em
evidência mostrava o quanto aquela mulher poderia machucar alguém com pouco esforço. Havia
algumas fivelas que adornavam seu antebraço e braço, um toque de vaidade, já que elas não
serviam para termos práticos de luta.
Aparentemente, uma enorme confusão ao sul da cidade deixou três pessoas mortas e,
como Expedia estava aqui, era o papel dela averiguar o que de fato estava acontecendo. Guardas
já a esperavam em prontidão na sala central para informar tudo o que haviam recolhido de
testemunhas. Ela poderia até deixar esse trabalho para Feneros, mas não confiava nele.
— Desembuche — exigiu a rainha, quando parou exatamente à frente dos guardas.
— Houve um ataque. — O guarda com a patente mais alta estufou o peito mostrando o
peitoral de metal lustroso perolado com o sol em amarelo em seu centro.
— Hmmm, conte algo que eu não sei.
Definitivamente, Expedia não estava no melhor de seus humores.
— Foi no circo, eles carregam animais ferozes com eles e, pelo que foi dito, um lobo
gigante atacou três membros da equipe.
— Lobo?! — Exclamou a rainha, sentindo o seu corpo tensionar levemente.
— Sim, um lobo maior do que qualquer outro visto e de pelagem branca. — Foi o
guarda de patente mais baixa que a informou desta vez.
— Me leve imediatamente até lá.
Entretanto, antes que pudessem sair pelas portas do palácio, Lucíferos surgiu de um
dos corredores do pequeno palácio. Estava pronto e vestido para passar horas a fio em cima de
um cavalo. Tudo indicava que o filho de Feneros estava em um vilarejo nas proximidades.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou seu irmão, apertando o seu cinto com os
seus frascos tilintantes.
— Problemas, algo que eu posso resolver.
— Eu posso ajudar.
— Você já está me ajudando, irá atrás do filho de Feneros.
— É algo que eu possa ajudar? — Lucíferos indagou, se direcionando para o soldado
de patente mais alta.
Expedia odiava quando o seu irmão fazia isso, a ignorava completamente,
desrespeitando-a na frente de subalternos. A rainha guerreira levou anos para construir respeito
entre os duques das cidades e se esforçou ainda mais para ter o apoio militar. Ela sabia que
muitos não gostavam dela no poder. Os motivos variavam bastante, desde o fato de ela ser
mulher, até sua idade, ou pelo simples fato de que preferiam a instabilidade do seu irmão. O que
sinceramente não fazia muito sentido.
— Um lobo atacou algumas pessoas em um circo. — O soldado repassou a
investigação do caso para o irmão da rainha.
— Circo? — Lucíferos repetiu a palavra, ao franzir o cenho. — Espera, tivemos um
ataque como esse, semanas atrás, não tivemos? É um circo Luares.
Claro… Umbra trabalhava para os circenses, ou melhor, pelos ferimentos, cicatrizes e
pesadelos não pareciam muito um emprego, mas sim um certo tipo de crueldade exploratória.
Expedia tinha sido bastante estúpida por não perceber algo tão absolutamente óbvio. Encontrar
uma mulher nua em meio a floresta, a alguns quilômetros do circo, ensanguentada e confusa, era
realmente algo bastante suspeito, mas até então a rainha não tinha nenhum conhecimento de
pessoas como ela. Sim, Expedia poderia ter a pressionado mais para arrancar algo dela, mas
Umbra parecia uma mulher frágil, desesperada por ajuda e, principalmente, por segurança, e
Expedia proveu isso. Não apenas isso, mas muito mais.
Isso significava que Nimala também sabia de tudo e preferiu defender Umbra ao falar
qualquer coisa, aquilo não fazia sentido. A mulher sempre a atendeu, uma confidente de
confiança, que agora havia lhe traído.
— Majestade! — O soldado de patente alta a chamou em um tom alto e inquieto.
Expedia voltou à realidade, balançando a cabeça de um lado para o outro, antes de
focar seus olhos nos soldados em sua frente.
— Vamos! — Rugiu a rainha — E você, Lucíferos, ande, já está atrasado.
— Às ordens.
O sarcasmo nas palavras de seu irmão foi entendido por Expedia.
Mais do que nunca, a rainha se encontrava aflita para encontrar Umbra, ao que tudo
indicava, o destino estava insistindo para que elas continuassem a se cruzar sem parar. Apenas
desejou, mesmo ainda com raiva e frustrada, que a sua antiga costureira estivesse bem.
Seu corpo fervia e praticamente vibrava, ela precisava ver Umbra, sua preocupação já
não era focada em resolver a tensão criada pelo energúmeno de Feneros, mas sim em ter certeza
de que o bem-estar de Umbra estava intacto. Ela mataria quem fosse se descobrisse que lhe
marcou tão profundamente.

∞∞∞
A dor se alastrava por cada poro de seu ser ferido e fraco.
Umbra estava no escuro, nua, com a lateral do seu corpo pinicando devido ao feno
embaixo dela. Sua face estava inchada, úmida, sua boca ainda continha o gosto metálico de
sangue, mas não era apenas o de sua mãe que estava ali e sim de outras pessoas e o seu próprio.
Os pulsos estavam em carne viva, presos por cordas ásperas atrás de suas costas, ligando a argola
de sua coleira.
Sua jaula estava em uma apertada tenda com cheiro de mijo, álcool e vômito. Tudo
estava escuro, assim como sua alma dolorida, entretanto, um fiapo de luz penetrava na ponta da
tenda triangular, diferente do que a mutana apresentava, ela mesma não tinha nada dentro de si,
apenas a escuridão do vazio.
Desejava estar morta e achava que estava quase abraçando a vida eterna ou
simplesmente, o nada. Seja como fosse, ela tinha certeza de que seria melhor do que aqui.
Ninguém merecia viver aquilo, nem mesmo ela, o ser solitário por obrigação.
Sons desconexos e vozes furiosas começaram a se exaltar no exterior da tenda obscura
de horror, então o tecido se abriu e a silhueta apareceu sendo contornada pela luz que vazou para
dentro do local. Inconscientemente, Umbra se encolheu, não sabia se era por causa do medo, da
dor, ou pela iluminação que exacerbou o seu olhar com incômodo.
— Pela Deusa Solar! — O sussurro de surpresa foi reconhecido por Umbra. Aquilo só
poderia ser um sonho, ou talvez o prelúdio de sua morte. — Solte-a! — Rugiu a voz em raiva
absoluta.
Se sua ordem não fosse cumprida, mataria todos.
— Expedia… — Umbra tentou pronunciar o nome de seu amor, a voz rouca pelo choro
e grito, desencadeou uma tosse carregada.
A porta de ferro se abriu em um som alto e, mais uma vez, Umbra se contraiu. A
madeira rangeu e a rainha se agachou perto do corpo frágil.
— Eu estou aqui — sussurrou Expedia, antes dos braços envolverem a mutana.
A princípio, Umbra colocou-se como uma bola, protegendo-se por inteiro, temerosa
com o que a rainha poderia fazer, mesmo sendo o seu amor, a mutana estava vulnerável, à mercê
de qualquer um, mas a quentura que irradiava a rainha a fizera voltar um pouco mais para a
realidade. O cheiro tão conhecido, mesmo sob todos os outros odores, a confortava um pouco.
Então, sentiu vergonha, vergonha por estar naquele estado e tentou se afastar, mas Expedia não
parecia desistir tão facilmente, abraçou-a ainda mais forte, com cuidado para não passar a
impressão de estar prendendo-a.
— Eu estou aqui — repetiu mais confiante, beijando o topo da cabeleira branca,
imunda e suja, entre poeira, graxa e sangue.
Umbra chorou em dor, gritando e arfando. Mas ainda assim, mesmo trêmula, procurou
se aconchegar e entrar mais no abraço de Expedia, tentar sentir um pouco mais da quentura que a
rainha poderia lhe oferecer.
— Eu vou acabar com vocês! — Expedia rosnou para alguém dentro da tenda.
Umbra sequer conseguia abrir os olhos direito, mas quando os entreabriu, pôde ver a
proximidade do rosto da rainha. Era bom sentir o cheiro reconfortante, o corpo, o toque, a voz…
tudo.
Gradualmente, seu corpo parecia querer se desligar de tudo, inclusive de sua própria
alma, ela poderia morrer agora, não poderia?
— Fique comigo, Umbra — pediu Expedia em um fio de voz de vulnerabilidade. —
Por favor, não feche os olhos, minha querida. Eu preciso vê-los. Hmmm... abra-os. —
Desesperada estava.
Mas Umbra não conseguiu manter a promessa.

∞∞∞
As portas do palácio se abriram violentamente pelos guardas apressados, pois logo
atrás a rainha segurava em seus braços a mutana desfalecida. O corpo de Umbra estava coberto
pela capa do soldado de patente mais alta, que acompanhou a rainha para a expedição e a
averiguação daquele circo dos horrores.
Os membros da mutana estavam moles e sua cabeça enterrada no seu pescoço e,
mesmo com a tormenta da preocupação passando por todo o seu ser, conseguia sentir a fraca,
mas constante respiração de sua amante.
— Eu quero o melhor curandeiro da cidade! Arraste-o para cá o mais rápido possível
— proferiu Expedia com a voz séria e ríspida.
Marchou em direção ao quarto, sentindo-se terrivelmente culpada pelo destino que a
vida de Umbra tomou. Se ela tivesse ficado para trás e tentasse compreender o que se passava na
cabeça da sua costureira, isso nunca teria acontecido. O terror estava marcado por todo corpo de
Umbra e agora, mais eram acumulados, e era impossível Expedia não se martirizar por isso.
Duas servas praticamente pisavam nos calcanhares da rainha, enquanto a
acompanhavam até os aposentos reais. As duas tinham consigo uma tina, toalhas brancas e ervas
medicinais para, ao menos, conter a dor monstruosa que Umbra poderia estar sentindo naquele
momento.
Com extremo cuidado, Expedia repousou o corpo ferido e frágil na maciez da cama.
Umbra gemeu em dor absoluta e contraiu-o, antes de se colocar de lado. Tentou se cobrir com a
capa, enquanto tremia de frio, mesmo sob o calor do verão de Serenas.
A rainha se sentou ao lado de Umbra, observando a cena, e seu coração pesou
dolorosamente contra sua caixa torácica. Ela estava tão pequena…
Virou-se para trás e viu as duas mulheres perto da porta dupla.
— Cuidem dela, andem! — Ordenou Expedia.
As servas pularam no mesmo instante, temendo a reação negativa da rainha guerreira.
Em poucas passadas, elas estavam sobre Umbra.
As atribuladas, mas eficientes mulheres cuidavam com a mais excelência de cuidados
da mutana, Expedia percebeu que ao lado dela, estaria apenas impedindo as servas de se
moverem livremente. Ela se afastou, levantando-se da cama macia de lençóis brancos, que
começavam a sujar de sangue e sujeira. Em outra ocasião, aquilo incomodaria Expedia com
veemência, mas tudo o que desejava era a recuperação de Umbra.
Caminhando de um lado para o outro com a ponta da unha entre os dentes da frente e a
outra mão segurando um pouco da pele de urso de cor rubra que a mutana fizera, a guerreira
olhava para a fragilidade de Umbra. Seu corpo ferido e quase sem resposta era movido de um
lado para o outro em grande facilidade, o que sinceramente, assustava um pouco a rainha.
Ela iria fechar aquela espelunca, acabar com a vida do pai de Umbra, confessou para si
mesma em seus devaneios, enquanto sua bota de bico de metal e pontuda batia contra o chão de
madeira em ritmo apressado e ritmado. Desejava que a mãe de Umbra ainda estivesse viva, pois
assim, poderia ela mesma matá-la, fazê-la sofrer por tudo o que ocasionou no corpo marcado de
sua amante. Mas seria ela tão diferente deles? Expedia a negou e a repudiou no momento em que
Umbra mais precisava de alento, sua terrível impulsividade e históricos problemáticos com
entrega e confiança a fizeram perder qualquer tipo de fio de meada para o entendimento dos
sentimentos.
— Expe-dia… — A voz doída e quebrada de Umbra acariciou a audição da rainha em
uma melodia soturna.
O devaneio da rainha foi extinguido, assim que ouviu o seu nome. Sem sequer hesitar,
voou em direção à cama, empurrando a pobre serva que ainda esfregava gentilmente a toalha
encardida no joelho de Umbra.
Expedia estava ali, acariciando a bochecha úmida de Umbra, procurando com
dificuldades os olhos brancos, pois o da direita estava levemente inchado pelo corte do supercílio
já tratado.
— Eu estou aqui… — A rainha reprimiu a terrível vontade de chorar, jamais faria isso
na frente de duas subalternas.
— Eu… me perdoe.
Aquilo quebrou o coração de Expedia de um jeito que, mesmo depois de anos, nunca
soube explicar ou experimentar sensação pior do que aquela. Foi a própria rainha que
indiretamente a colocou naquela posição, era ela que deveria estar pedindo por perdão, não a
mulher que amava.
— Shii…
Expedia se inclinou para frente e beijou a testa levemente fria para a adição de
preocupação que já se encontrava. Com a mesma delicadeza, segurou a mão de Umbra e aplicou
o mesmo gesto sobre ela.
A mutana sorriu fracamente, seus olhos tentavam se perdurar nos de Expedia, mas
parecia quase impossível, a sensação de torpor e alucinação era presente no olhar que se fechava
em mais prolongamento a cada vez que piscava. Em vão, tentou dizer algo, mas a tosse lhe
pegou de surpresa, fazendo-a gemer de dor e seu frágil corpo tremer.
— Cadê esse curandeiro? — O desespero na voz de Expedia era palpável, enquanto
apertava a mão de Umbra e lançava o olhar mais mortífero que poderia ter para uma das servas
do pequeno palácio.
No mesmo instante, sendo salva pelo gongo pela consequência que poderia chegar a
ela, as portas duplas se abriram e um homem magro, alto, de cabelos longos pretos e barba
alinhada adentrou.
O homem aparentava ter ao menos quarenta verões, vestia calças de tecido cor verde,
botas de couro avermelhadas, um cinto grosso do mesmo material com inúmeras ervas, caixinhas
de madeira, sacos de pano e uma pequena, mas presente, cimitarra. Sua blusa folgada e de decote
um pouco acinturado dividia a mesma paleta com a calça, sendo de alguns tons mais escuros.
Usava também um exuberante chapéu que adornava uma coroa de flores, mas o que mais
chamava a atenção era a imensa bolsa com inúmeros suportes, onde inúmeros frascos, ervas e
plantas lutavam para sair devido o aperto e a quantidade de coisas que ali eram mantidas.
— Eu, o humilde curandeiro da cidade, pode me chamar de Pergis. — Pergis se
apresentou ao reverenciar a rainha. — Então essa é a minha paciente?
Os olhos verdes e brilhantes caminharam pelo corpo de Umbra, apenas coberto da
cintura para baixo. Não havia nenhum traço de desejo ou anseio pela costureira, apenas uma
análise clínica, pois sua cabeça já trabalhava.
— Cure-a — exigiu Expedia, enquanto o acompanhava com olhar.
Pergis depositou a grande bolsa no chão, sobre a tapeçaria das constelações que
recheavam os céus dos Solares, principalmente o grupo de estrelas que eram descritas como o
cântaro, pontos brilhantes esverdeados que se ligavam reproduziam o objeto. Era um dos
instrumentos da Deusa do Sol, onde após uma batalha vencida, bebia o delicioso vinho de maçã
direto do cântaro.
Ele se sentou ao lado de Umbra e de frente para a rainha.
— Seja lá quem fez isso com ela, espero que esteja sofrendo — comentou o
curandeiro, ao passar os dedos pelo braço magro de Umbra.
— Pode ter certeza de que estará e muito — confirmou Expedia com ardor.
Ela queria que todos daquele circo sofressem, sem exceção. Infelizmente, Expedia não
estava sendo a rainha que tanto lutava para ser. Um alguém justo e compassivo.
— Ela não está bem, preciso ter certeza de que nenhuma costela esteja quebrada, ou
qualquer membro do corpo. Preciso também ter certeza de que nenhum de seus órgãos esteja
ferido, isso será um problema e, principalmente, ter certeza de que ela irá aguentar passar por
tudo isso — informava Pergis, ao se virar levemente para sua bolsa, abriu-a, pegando de lá uns
fracos e uma bandeja surpreendentemente grande. — Eu preciso ficar a sós com ela.
— Não a deixarei-
— Você precisa, é mais difícil trabalhar com alguém que ama vendo o meu trabalho o
tempo inteiro. Não será bonito o que acontecerá aqui e me fazer hesitar só será prejudicial para
ela. — Falava o curandeiro, enquanto colocava os frascos, ervas frescas e sua cimitarra curta em
cima da bandeja já localizada sobre a cama.
— Eu-
— Eu sei que a ama, vejo em seus olhos, mas sei que irá me indagar a cada instante e
quero minha cabeça totalmente focada em minha paciente — cortou Pergis, depositando um
sorriso confiante em seus lábios. — Agora, minha querida rainha… — Ele se levantou, retirando
o seu imenso chapéu e o depositou no pequeno pilar pontudo de madeira que sustentava a cama.
— Eu realmente preciso, o mais rápido possível, iniciar o meu processo de cura. Eu preciso de
uma assistente, quem pode ficar? — Apontou com o dedo para as duas servas, que silenciosas
aguardavam perto da porta.
— Quem de vocês é a melhor? — Expedia perguntou cortante, enquanto se levantava
em seu esplendor majestoso.
Em hesitação, a mulher mais velha levantou a mão, enquanto com a outra segurava a
macia toalha suja embaixo do braço.
— Ótimo! E quanto a você, pegue mais toalhas, panos e água quente — continuou a
rainha referindo-se a empregada na qual esbarrou momentos antes.
Expedia foi em direção à porta, mas antes deu uma última olhada para trás. Sua Umbra
estava totalmente alheia do que acontecia em sua volta, seu corpo frágil e ferido tremia
levemente pela dor e pelo castigo de todos os verões de sua vida.
Pela Deusa Maior, que brilhava constantemente sobre a sua cabeça, prometeu em
silêncio fazer Umbra a mulher mais feliz de todos os reinos e de todos os povos. Ela apenas
queria aquele amor e a tranquilidade do olhar sereno.
— Salve-a. — O pedido doloroso fez com que os seus olhos ficassem completamente
marejados, atravessando finalmente o limite da vulnerabilidade.
— Farei o meu melhor, majestade.
A guerreira formidável acenou em positivo, antes de sair.
O sol que brilhava através do calor da Deusa testemunhou o desalento da rainha
soberba e quase mesquinha. Não era apenas a Lua melancólica e romântica que protegia os
amantes, O Sol poderoso em seu único ardor servia para acalentar os corações em sua paixão
extrema. Seriam elas que protegeriam as novas amantes.
∞∞∞
Os olhos de íris branca abriram, a visão turva levou alguns segundos para vislumbrar
algo que pudesse reconhecer, definitivamente, nunca havia estado aqui, reconheceu pelo simples
fato de que quando finalmente seus olhos focaram, encarou um gigantesco lustre de três andares,
ligados por cordas de esmeraldas do mar rosado das regiões áridas dos Solares. Ela não sabia
como tinha aquela informação, mas foi a primeira coisa que a sua mente conseguiu raciocinar.
Em seguida, reconheceu que estava de noite, pois as velas sobre cada fixador do lustre estavam
acesas. O frescor da brisa noturna brincava com as cortinas na parede atrás dela, uma em cada
lado da cama.
Seu corpo massacrado pelo ódio de seu algoz latejava em dor, mesmo que estivesse
totalmente parado sobre a carícia do lençol de seda. Sua respiração era a principal responsável
pela dor, mas como iria parar de respirar? Não poderia, então continuaria a sentir o sofrimento de
seus membros até que eles passassem.
Tentou se mover, usando os punhos para alavancar um pouco o seu corpo para cima,
mas gemeu alto, pois não só a dor viera lhe visitar, mas a tontura, o mal-estar e o vômito do
estômago vazio que já a machucava por dias.
— Se eu fosse você, continuava parada, exatamente onde está, é para o seu bem. — A
voz masculina soou dentro do quarto.
Umbra seguiu o som da voz e virou a cabeça para a esquerda, onde encontrou um
homem de chapéu exuberante, sentado em uma cadeira de balanço revestido de ouro. Ao lado
dele, uma grande bolsa de couro e uma cimitarra faziam-lhe companhia. Pelo cheiro forte de
ervas, fumos e emplastro, Umbra reconheceu o propósito do homem. Era o seu curandeiro.
— Foi tão ruim assim? — pronunciou as primeiras palavras e sua garganta seca
protestou, logo uma violenta tosse subiu por ela. Tentou reprimir e conseguiu, mas não muito.
Logo o curandeiro estava ao seu lado, com um copo de vidro nas mãos e dentro dele
continha um líquido bem claro, quase transparente, de cor amarela.
— Beba… — Sussurrou o homem e Umbra levantou apenas a cabeça e experimentou o
líquido, o alívio foi instantâneo. — Você dormiu por quase três dias — informou.
A mutana engasgou, fazendo borbulhas no líquido amarelado, as gotas chegaram a seu
nariz e ela o mexeu rapidamente, querendo se livrar do cheiro dos pequenos pingos que lhe
coçaram a pele.
— Você nos deu um susto, ela fez tudo o que foi preciso. — O curandeiro disse, ao
mirar a cabeça para o outro lado do quarto.
Umbra o seguiu, virando seu olhar para a direita, foi quando viu Expedia dormindo,
empoleirada em uma cadeira estofada, inclinada em direção a pequena mesa de carvalho, usando
a capa feita por Umbra de travesseiro.
— Eu pensei que tivesse sido um sonho, que eu ainda–
As lágrimas brotaram no rosto ferido, mas não tanto quanto o dia que chegou no
palácio.
— Se ela demorasse mais um pouco a te pegar naquele local, não sei se você
aguentaria. Estava realmente muito ferida.
A mutana voltou com os olhos para o homem, que se levantava para colocar o copo na
superfície da mesa estreita e pequena recém-colocada ao lado da cama para comportar o material
necessário para curar Umbra.
— Qual é o seu nome? — A mutana perguntou, realmente sentindo a curiosidade de
saber quem era um dos seus salvadores.
— Apenas um humilde servo, em felicidade extrema de ver você abrir os olhos. Sua
capacidade de regeneração é extraordinária, devo apontar.
— Eu… hmm–
— Umbra! — Expedia exclamou em surpresa, deleite e preocupação.
Quando, pela segunda vez, virou a cabeça para encarar a rainha, ela já se encontrava
ajoelhada ao lado da cama, com seus braços fortes estendidos sobre o cobertor, a fim de tocar nas
mãos ainda gélidas de Umbra. Ao compasso que o toque aconteceu, as duas arfavam em
uníssono, pois finalmente estavam ali, unidas.
Expedia sentiu seus olhares arderem pelo acúmulo de lágrimas não concedidas pelos
últimos dias de terror que passou, já que Umbra conseguiu lhe pregar dois sustos em que, por
alguns segundos, achou que nunca mais a veria. Seus dedos acariciavam a palma da mão da
mutana, mas eram fugazes à carícia, a rainha estava com o medo real de quebrá-la.
Umbra sorriu com seus lábios levemente rachados, mas lubrificados pelo líquido
incrivelmente revigorante que tomou, a tontura já não mais a atrapalhava tanto.
— Eu-... me perdoe, me perdoe por te deixar. — A rainha não era uma pessoa que se
desculpava, muito menos admitia erros, mas Umbra estava viva e também estava ferida graças a
ela.
Expedia se inclinou ainda mais para dentro da cama e puxou com delicadeza o braço de
Umbra para fora do lençol, seus lábios encontraram a pele já não tão esfolada e suspirou ao senti-
la.
— Sinto muito por você me ver assim, eu devo estar-
— Viva, e é isso que importa, eu vou cuidar de você, Umbra. Fazer todos pagarem.
— Minha mãe?
— Ela…
— Eu a matei — concluiu Umbra, ao desviar os olhos de Expedia e encarar o lindo
lustre dourado.
Novamente, sua visão se tornou turva e a dor irradiou em pulsar forte em seu corpo. A
memória do sangue banhando-a, enquanto Luriel agonizava pela vida que se esvaía na mordida
feroz da criatura mortal fizera Umbra ter nojo de si mesma. Ela lembrava do gosto do sangue, da
sensação das presas afundando na carne, na musculatura e até mesmo nos ossos que se partiram
como gravetos. Mesmo deixando a fera tomar o verdadeiro controle, Umbra sentiu-se protegida,
forte… Como se ninguém pudesse ou tivesse sido capaz de pará-la. Durante aquele tempo,
vangloriou-se pela sua morte bem-sucedida, agora, se dava conta que não passava de uma
assassina.
— Você não teve escolha… — Expedia disse com o intuito de espantar o mal-estar de
sua costureira.
— Eu tive e eu…
— Acho melhor eu ir… acredito que vocês tenham muito o que conversar. — Pergis se
intrometeu em um murmúrio.
Por um instante, Expedia tensionou por inteira, seu foco estava totalmente em Umbra,
que tivera a capacidade de esquecer a presença insistente — e necessária — do curandeiro.
— Lhe acompanharei até a porta.
— Claro, majestade — concordou o curandeiro ao colocar a grande bolsa nas costas.
— Na mesa está tudo o que ela precisará, deixei tudo anotado no pergaminho embaixo do frasco
azul, caso esqueça de alguma coisa — continuou a dizer, enquanto amarrava a cimitarra na
cintura.
— Espere um pouco, eu já volto — garantiu Expedia em uma voz intimista e gentil.
Mais um beijo foi depositado, desta vez, em meio a testa de Umbra.
Ela ainda estava com a temperatura levemente baixa, mas não tão assustadoramente
quanto antes.
A rainha dos Solares e o curandeiro partiram para fora do quarto, deixando a enferma
para trás.
Ao clique da porta se fechando, Umbra concentrou todos os seus esforços
choramingando, ao sentir seus músculos trabalharem de maneira exorbitante, conseguiu se
colocar sentada, mesmo com o gosto amargo da bile que veio à garganta por duas vezes. Quando
finalmente colocou as costas contra a cabeceira fofa da cama, seu corpo relaxou e a respiração
tornou-se mais contínua e melhor.
Vestia uma camisola branca, bastante similar à de quando acordou em seu primeiro dia
no castelo majestoso e poderoso abraçado pelo grande rochedo que adentrava o mar exuberante
da capital. Ainda se perguntava como tudo isso aconteceu, como sua vida conseguia tomar
guinadas em diferentes curvas sinuosas de uma maneira quase desastrosa, mas, ao mesmo tempo,
excitante e inédita. Finalmente, Umbra poderia ser ela mesma, ainda que não soubesse ao certo o
que representava, mas poderia por fim partilhar sua história não tão romantizada vivida pelos
circenses. Só esperava que depois de todos os pavores que fosse dividir com Expedia, que ela
pudesse aceitá-la.
Não demorou muito, mas o ressonar do sono já se aproximava quando Expedia abriu a
porta novamente, desta vez, vestindo apenas calças folgadas e uma camiseta justa, deixando os
seus braços delineados pelos músculos de guerreira à vista. Nas mãos da rainha estava uma
bandeja de prata com um delicioso ensopado que cheirava a galinha e brócolis.
— Recomendações do curandeiro, você precisa comer tudo — informou a rainha ao se
aproximar com extremo cuidado para não derramar nenhuma gota da sopa, chegou até mesmo a
colocar a ponta da língua para fora, em sinal de total concentração.
A bandeja foi colocada ao lado esquerdo de Umbra e Expedia entregou para ela o
recipiente fundo e circular.
A fumaça e a quentura do objeto de madeira deram uma sensação de confortabilidade
dentro do peito da mutana.
— E quanto a você? — Perguntou Umbra, enquanto mexia com a colher a superfície da
sopa densa.
Respirou fundo, sentindo o delicioso aroma e com a ponta do talher cutucou o pequeno
pedaço de brócolis que se voltou para cima da sopa.
— Eu comi faz pouco tempo, o importante agora é você. — Expedia dizia ao se sentar
de frente para Umbra, que, ao mesmo tempo, recolhia as pernas para cruzá-las uma embaixo da
outra. — Eu sei que agi de maneira… não sei como sair com um adjetivo para como eu te deixei
— continuou a falar, reprimindo um estúpido riso baixo e sem graça, totalmente envergonhada
de suas ações e, pelas Deusas, Expedia era orgulhosa. — Eu gostaria de entender tudo, Umbra.
Sem mentiras ou hesitações, não irei julgá-la ou até mesmo me afastar, mas eu preciso saber
quem é você, verdadeiramente, sua história.
— Há coisas que nem mesmo eu sei, Expedia, quando eu disse no primeiro dia que nós
nos conhecemos que eu não sabia quem era, isso era verdade. Eu sou uma mulher que se
transforma em um lobo gigante, a única. Minha história se perde em mentiras, sou uma farsa
desde o princípio de minha vida.
— Não é.
— Eu sou, porque não há ninguém como eu. Até mesmo na cidade de NossDomuss, eu
sou a única.
— Unema sabia de você, então? — A rainha não pôde deixar de mascarar o ciúme que
emanou fugazmente em seu peito.
— Sim — admitiu.
— Certo.
— Ela havia sido a primeira pessoa que se parecia minimamente comigo, estava
disposta a me ajudar, mas eu vim para cá, atrás de você, me explicar que-
— Eu quero te ajudar e se Unema puder nos ajudar, ótimo! — Confidencializou em
veemência, apertando levemente o joelho esquerdo da mutana, já que o direito continha um
gigante hematoma bastante magoado pelas vezes que Umbra se arrastou para se manter de pé.
Pela primeira vez em muito tempo, Expedia estava engolindo qualquer tipo de resquício de
orgulho que um dia passeou tão livremente em sua personalidade difícil. — Mas eu também
gostaria de saber como você chegou até mim. Como eu te encontrei naquela floresta? Quero
saber um pouco mais de suas memórias. Porque mesmo não sabendo quem você é, você teve
uma vida, mesmo que por muitas vezes você não tenha tido qualquer opção de como vivê-la.
Claro, se você quiser, se você se sentir à vontade. Eu compreendo que o que você passou foi-
— Eu conto… — Umbra a cortou, percebendo o nervosismo evidente da rainha.
Expedia acenou positivamente e se aproximou um pouco mais, tocando os seus joelhos
nos de sua amante.
Entre uma colherada e outra, sob o lustre de ouro que reproduzia uma meia-luz
bastante aconchegante e a brisa do verão adentrando pelas janelas, fazendo com que as cortinas
delicadas dançassem em um ritmo sossegado, Umbra dividiu suas memórias, não todas, mas as
mais importantes, sejam elas dolorosas ou não. Contou sobre seus pequenos momentos de prazer
que o circo poderia lhe dar, mas excluindo as amantes que tivera no caminho, disse sobre as
apresentações e como faziam tudo parecer uma mera ilusão bastante chamativa, das dores que
passava na mão dos seus pais adotivos e, finalmente, sobre o fatídico dia que a levou conhecer
Expedia, e dizer adeus para Victorie. Quando estava com a garganta levemente dolorida, mas a
sopa estava quase inteiramente vazia dentro da vasilha, Umbra também confidenciou o que
Luriel disse, o fato dela ser a filha da rainha suprema dos Luares e mesmo depois de todas essas
confissões, Expedia continuou ali, apenas ouvindo os capítulos da vida de Umbra,
interrompendo-a apenas uma vez para lhe dar o chá amarelo.
— Eu acho que se eu te contasse tudo isso quando nos conhecemos, nós nunca
estaríamos aqui. — Considerou Umbra, colocando a tigela sobre a bandeja de prata.
— Acho que você tem razão. Não, você tem toda razão. Nunca lhe receberia.
A franqueza doeu como um punhal atravessando o seu âmago, mas era verdade.
— Mas eu seria uma burra, estúpida e fui, Umbra, como eu fui — continuou
ponderando as palavras sôfregas que arrastavam em lamuriar em seus lábios.
Usou-os para beijar a têmpora de sua amante e, de olhos fechados, pediu perdão. Para
Umbra, para a Deusa Maior Solar e até mesmo para a Deusa da Lua. As irmãs supremas
trouxeram sua amante de volta.
Expedia recolheu a bandeja, levantou-se da cama, abriu a porta e a depositou no chão,
ao lado do batente no longo corredor que guardava os quartos.
— E o que faremos agora? — Perguntou Umbra com a leve dúvida de uma criança
perdida por respostas.
— Primeiro, preciso resolver o que está acontecendo em Serenas. Creio que daqui dois
dias meu irmão estará de volta com a pessoa que irá resolver esse conflito — informou Expedia,
ao passo que se aproximava. — Depois, iremos voltar para o nosso lar e nós iremos descobrir
tudo o que podemos sobre você — continuou, enquanto levantava o lençol para se juntar ao lado
da costureira. — Nimala pode nos ajudar. A mulher vigarista sabia de tudo isso. — Por fim, riu
baixo, recolhendo a frágil Umbra em seus braços.
Era bom segurá-la novamente, ainda que sua amante estivesse frágil e com a
temperatura mais baixa do que o normal. Umbra não recuou ao toque, ao contrário, encolheu-se
dentro de seus braços fortes e seguros, procurando refúgio.
— Eu prometo proteger você, Umbra. Ninguém mais irá marcá-la ou feri-la, quero
garantir isso a você. Quero ainda, quando tudo se apaziguar, fazer de você minha semelhante,
minha rainha. — Expedia voltou a falar depois de alguns segundos em silêncio, onde
aproveitavam a calmaria que a noite fresca estava dando para as duas amantes.
Umbra levantou a cabeça para encontrar os olhos quentes que tanto sentia falta.
Apertou-se ainda mais contra o corpo da rainha, sentindo suas pernas, sua barriga e seus seios. O
lar da mutana não era um local e sim aqui, ao lado de Expedia… Ela ainda procuraria o seu feito
da vida, talvez continuar a trabalhar como a costureira oficial da rainha ou até mesmo se
aventurar em outras coisas, ela tinha possibilidades agora e não mais queria pensar nas
consequências sobre isso. Ela poderia alcançar o que desejasse, o seu cerne e sua besta poderiam
ser felizes e era a primeira sensação de plenitude que tinha. Ela sabia que ainda teria de
conversar com Expedia sobre outras implicações, mas o que a confortava era que ela sempre
voltaria para os braços da guerreira que a prometeu defendê-la.
— Eu adoraria ser sua rainha.
A mutana e a rainha dividiram sorrisos felizes, carregados na mais absoluta maestria de
amores que amantes apaixonados e devotos poderiam ter.
Elas estavam longes de serem perfeitas, pois conflitos e divergências iriam surgir, mas
conseguiriam enfrentar isso juntas. Afinal, ambas eram únicas.
Capítulo Vinte e Cinco
A face da rainha Solares e da loba raivosa

Umbra ressonava pesadamente sobre as costas bem desenhadas e delineadas de


Expedia, mesmo sob a camisa fina que ela vestia, a quentura irradiava de uma maneira tão
absolutamente deliciosa que o calor corporal da rainha transpassava para a mutana que ainda se
encontrava em extensa recuperação. Seu rosto pressionava entre as escápulas da rainha, enquanto
respirava profundamente, alheia de que a própria Expedia estava acordada e incapaz de se mexer.
A rainha estava com os olhos fechados, mas estava consciente, para a falar a verdade,
não conseguira dormir muito, sua preocupação era um tanto palpável sobre a condição de saúde
de sua amante, mas aparentemente, Umbra tivera uma ótima noite de sono, talvez uma ou outra
interrupção, pois seu corpo ainda tinha certa dificuldade de se movimentar, foi apenas quando a
mutana achou a posição em que estavam nesse momento, que conseguira dormir sem se mover,
relaxando profundamente.
Expedia estava contente, feliz… Sim, seu reino poderia colapsar em alguns poucos
meses, devido ao imenso rio envenenado. Serenas precisava de sua ajuda, mas não apenas a
cidade, todos. Logo as plantações iriam morrer e faltaria comida, mas mesmo com todo esse
enorme peso de responsabilidade, a guerreira queria apenas se esconder com sua amante e se
refugiar no amor que ali estava sendo construído.
— Eu sei que todos querem você, mas não quero levantar — resmungou Umbra com a
voz abafada, pois seu rosto continuava pressionado contra as costas de Expedia.
As mãos se encontraram sobre o travesseiro da rainha e os dedos se enlaçaram.
Expedia se virou e encarou os olhos brancos de Umbra. Acariciou o cabelo branco
desgrenhado e roçou com as pontas das unhas a nuca nua de sua amante. Com a pele exposta
devido ao decote da blusa que a rainha usava, Umbra depositou um beijo ao centro de seu peito,
antes de procurar os lábios em um beijo manso e reconhecedor. Era um toque simples, mas
recheado de significado, longe de ser sexual, entretanto, era o suficiente para que aconchego dos
corpos e das mentes se atraíssem ainda mais.
— Temos que levantar, principalmente por causa de seus remédios e pelo café da
manhã. Pergis disse que você precisa comer — proferiu Expedia.
As mãos fortes da guerreira desceram pela coluna de Umbra e, mais uma vez, o beijo
foi dado, desta vez, um pouco mais firme e poderoso, mas não totalmente entregue. A mutana
ainda estava fraca.
Umbra depositou um último beijo na nuca da rainha e se levantou de costas
firmemente, antes de se apoiar na cabeceira estofada de cor vermelha. Antes mesmo que a
guerreira pudesse fazer igual, ambas ouviram três batidas tímidas na porta. A mutana pegou o
lençol jogado em cima do colchão e envolveu o seu corpo, já Expedia se levantou em supetão.
Suas roupas não estavam exatamente alinhadas e seu cabelo selvagem encontrava-se
completamente desgrenhado, mas francamente, ela não se importava com isso, a timidez nunca
foi um traço em sua personalidade.
Expedia abriu a porta e apoiou seu braço nela, logo em cima de sua cabeça. Deu de
cara com a serva com a mesma bandeja do dia anterior, mas desta vez, estava preenchida por
cafés, frutas e pães. Atrás dela estava seu irmão, com as olheiras profundas e um corte recém-
adquirido em seus lábios secos. Estava vestido com a vestimenta habitual, mas desta vez um
peitoral de aço com o símbolo do sol em dourado ao centro de seu peito.
— Problemas? — Perguntou Expedia, enquanto abria um pouco mais a porta, dando
assim espaço para a criada entrar.
— Nada que eu não tenha resolvido. O moleque é um bêbado — reclamou Lucíferos,
ao espichar um pouco seu olhar e através do ombro de sua irmã avistar Umbra na cama.
— Nada que você não seja — revidou a rainha.
Ao seguir os olhos de seu irmão, viu Umbra encolhida na cama com os olhos vidrados
nos dois, enquanto a empregada depositava a bandeja sobre a mesa maior e mais afastada.
Voltando a olhar o seu irmão, fechou um pouco mais a porta para proteger o máximo sua
mutana. Ela ainda não sabia o quanto seu irmão estava confuso sobre o apagão de memória que
os Luares de NossDomuss tinha feito.
— Eu pensei que ela tivesse ficado para trás, na capital — falou Lucíferos bastante
descontente com o que havia acabado de ver.
— Enquanto você estava fora, ela veio até mim. — Uma mentira, mas por enquanto
poderia servir. — Eu preciso dela. — Isso era uma verdade.
— Claro — concordou seu irmão em desdém. — É importante para você manter sua
cocubi-
Expedia empurrou Lucíferos pelos ombros, fechou a porta atrás de si e novamente o
afastou, até que as costas dele batessem do outro lado da parede do corredor.
— Não lhe dei permissão para dirigir essa ou qualquer palavra pejorativa a ela. Umbra
está comigo e é a minha igual. — Rosnou Expedia, ao adentrar o espaço pessoal de seu irmão. —
Eu não admito que você fale com ela assim… Por que você precisa ser assim?!
O corpo inclinado levemente sobre o irmão e seus punhos cerrados já demonstravam a
irritação matinal que se apoderava nela. Tudo o que desejava era acordar bem ao lado de sua
amante e se esbanjar em um delicioso café da manhã, mas aparentemente, seu irmão conseguia
tirá-la do sério com uma facilidade extrema.
— Ei, calma. — Ele levantou os braços para cima, antes de colocar a cabeça contra a
parede. — O moleque já está aqui, Feneros e ele estão esperando na sala de reuniões. O homem
parece bastante inquieto, talvez seja melhor você ir até lá — comunicou, afastando-se um pouco
da parede e arrumou os pequenos frascos de vidro em sua cintura, dois deles estavam vazios. —
E pode deixar, deixarei sua costureira em paz, já lhe prometi isso. Só queria que você pudesse
aguentar um pouco de provocação, você não era assim com as outras.
— Ela é diferente. — Soltou um leve resmonear antes de suspirar, afastando-se dois
passos para trás. Apertou a base do nariz e coçou a testa levemente, antes de jogar sua juba para
trás. — Eu já disse isso… — Bufou. — Apenas diga que irei me encontrar com eles e te quero
junto comigo.
— De repente me quer mais próximo?
A sobrancelha de seu irmão ergueu, formando algumas ondas de rugas na sua testa.
— Fazer o quê? Você é, infelizmente ou felizmente, a pessoa que mais confio.
Lucíferos sorriu de lado e, em uma exagerada movimentação, se curvou para sua
rainha.
— Sinto-me lisonjeado, maninha.
— Cale a boca.
Reprimiu um sorriso, antes de tapear a careca de seu irmão, em um estalo seco e alto.
— Auuu!! — Reclamou Lucíferos, ao se erguer em sua exorbitante altura e esfregar a
cabeça com a palma da mão. — Vai ficar vermelho, cacete.
— Isso não é problema meu.
E então a porta atrás de si se abriu, a serva os cumprimentou rapidamente, sumindo da
vista deles o mais rápido possível.
— Te encontro daqui a pouco. — Lucíferos enunciou, aproveitando a interrupção da
empregada para ir ao lado oposto ao dela.
A rainha o parou, antes que ele pudesse estar muito longe, segurou-o pela camisa e
com isso, fez com que Lucíferos virasse para trás.
— Avise ao emissário, amanhã cedo iremos aos Luares e quero guardas grudados em
Feneros e no seu filho. — Ordenou a guerreira com a sua voz tipicamente ameaçadora.
Ninguém diria não para ela, nem mesmo o seu irmão.
— Claro. — E assim, ele se foi.
Expedia retornou para o quarto, seus olhos pegaram a cama vazia, mas quando ouviu o
tilintar dos talheres, sua cabeça virou para esquerda e viu Umbra em pé levando um pedaço de
maçã a boca.
— Pergis falou para você ficar de repouso — censurou a rainha com evidências de
preocupação e chateação em seu rosto, mas ainda assim, foi em direção a sua amante, era bom
vê-la novamente.
— Eu estou bem melhor, minha regeneração é mais rápida do que as pessoas… —
Houve uma ligeira hesitação de Umbra. — Normais. — E por fim, colocou o pedaço de maçã na
boca.
Pelas Deusas irmãs, sua costureira era incrível, como poderia Expedia negar a tamanha
magnitude que Umbra representava? Mesmo agora, ainda ferida com a camisola torneando o seu
corpo magro e sua pele esplendorosamente cinza, a guerreira podia sentir a grande fera
emanando dentro daquele ser esguio e ligeiramente mais alto do que ela. O cabelo branco e os
olhos de íris dividindo a cor apenas traziam um límpido mistério a ela, Umbra parecia quase uma
feiticeira como as que eram encontradas em histórias infantis. Seus pés descalços sobre a
tapeçaria eram leves ao caminhar em volta a mesa com a leve timidez que por vezes colocava-se
nas pontas do pé para se debruçar no delicioso café da manhã dado a ela.
— Você não vem? — Umbra perguntou, tirando Expedia do seu típico devaneio
mágico.
— Claro!
Aproximou-se da costureira, porém, não era muito bem a sua vontade degustar
qualquer alimento. Seus braços fortes e bem desenhados se apoderaram da cintura fina de
Umbra, trazendo suas costas contra os seus seios e abdômen definido.
— Desculpe. — Voltou a dizer a rainha.
— Pelo quê? — indagou uma confusa mutana, ao virar o seu rosto em direção a
Expedia.
— Por ter lhe abandonado.
— Nós já conversamos sobre isso. Você se sentiu traída, enganada… Eu compreendo
que talvez, se você descobrisse o que eu era, poderia simplesmente fazer qualquer coisa pior do
que um dia meus pais fizeram.
— Eu-
Umbra colocou-se de frente para a rainha e segurou o seu rosto com as leves sardas que
se desenhavam lindamente pela pele oliva.
— Você poderia sim fazer isso, és uma rainha conhecida por muitos motivos, dentre
eles, a violência. Eu poderia ter ido embora, fugir, mas… algo dizia para eu ficar.
— Eu realmente preciso me tornar uma rainha melhor. — Lamentou a guerreira.
A mutana depositou a mão sobre o peito de Expedia e sorriu, antes de depositar um
beijo na testa da mulher.
— Você é a rainha que consegue ser.
— Vou tentar me contentar com isso.
Ambas se voltaram para a mesa, optando por sentar uma ao lado da outra, Umbra
cruzou as pernas para cima da cadeira estofada e Expedia fizera o mesmo, era nítida a rápida e
surpreendente intimidade que estava se construindo depois que os segredos estavam pouco a
pouco sendo desmistificados.
— Já resolveu o problema ocorrente pela cidade? — A curiosidade de Umbra palpitou
em seu peito, enquanto passava em seu pão um pouco de geleia de amoras vermelhas vindas de
Quioros, uma cidade magnífica de Luares, construída em níveis, ligados por escadas maciças e
poderosas, tinha como jardim a maior floresta de ambos os reinos.
Uma exploração econômica que os Luares aproveitavam o máximo e sabiam o quanto
as cidades dos Solares também precisavam dela. Umbra ainda não compreendia a tensão e as
guerras desnecessárias entre os povos que eram tão intrínsecos codependentes.
— Resolverei isso pela manhã, terei de ir mais uma vez ao terreno dos Luares e findar
o que está ocorrendo de uma vez por todas.
— Eu vou com você. — Umbra requereu com a voz firme. — Eu posso ajudar.
— Negativo! — Expedia disse de maneira um pouco estridente. — Você ainda está se
recuperando e não quero me preocupar com você lá.
— Ah, certo, porque eu ficando aqui não ficarei preocupada. — Umbra largou a faca
sobre o pequeno prato de porcelana com ilustrações de lírios azuis e amarelos em sua borda para
se virar levemente em direção à sua amante. — Eu sei lutar, eu posso-
— Não. — Resumiu Expedia, cortante. Então, suspirou. — Tudo será resolvido, espero
que em poucos dias voltemos para Estrelares, afinal, preciso de outras roupas, quer dizer, se
quiser continuar a trabalhar para mim.
— A princípio, continuarei sim.
— Ótimo! Claro que… com o tempo, você irá começar a ter papéis mais importantes.
— Como o quê? — Novamente, a maldita curiosidade de Umbra.
Mas era um ponto positivo para Expedia, já que aparentemente, ao menos na
superfície, a mutana parecia ter esquecido do pequeno confronto que poderiam ter caso
continuassem no tópico de sua difícil, mas necessária, missão na cidade dos Luares.
— Bem, eu irei lhe apresentar como alguém que está ao meu lado, o que implica
responsabilidades reais. Não é fácil estar com uma rainha, Umbra — confessou a guerreira.
— Um desafio que aceito com felicidade única! — Exclamou Umbra dentro de sua
deliciosa calma com as palavras.
Por fim, a mutana levou o pedaço de pão com amoras em direção à boca da rainha, que
alegremente aceitou.
— Só espero fazer jus à tal posto — continuou a costureira.
— E vai — concordou, após engolir o pedaço delicioso de pão.

∞∞∞
As portas da sala de reuniões foram abertas pelos guardas de lanças pontiagudas e
vestes leves com o sol majestoso no peito.
Expedia adentrou com a sua típica arrogância e glória.
Estava ela vestida com uma calça de couro negra, junto a botas em um tom de marrom
escuro, três fivelas grossas de cinto com o mesmo material de sua calça ornavam seu quadril e
cintura sobre a blusa vermelha longa, presa por um peitoral de couro que protegia apenas os seus
seios. Expedia vestia uma ombreira de ouro fundido a um mineral altamente resistente descendo
até seus dedos, formava uma manga compacta e resistente para qualquer golpe. Em seu material,
uma imensa (coincidentemente) cabeça de lobo estava entalhada na parte de cima do seu braço.
— Minha rainha! — O fedelho alto de sobrancelhas cheias e olho roxo caiu sobre os
pés de Expedia, assim que sua presença foi anunciada.
O olhar frio e, certamente, superior da rainha, a fez mover os pés para trás, enojada
pela ação de covarde.
— Lucíferos, leve-o para o vagão — ordenou Expedia, ignorando a humilhação do
homem aos seus pés.
Lucíferos estalou os dedos, combinado a um sorrisinho malicioso e os guardas, que
anteriormente abriram a porta para a rainha, seguraram o garoto pelos braços, arrastando-o para
fora da sala.
Feneros foi em direção a Expedia, segurou-a pelos braços e começou a sacudi-la.
— Você é louca! Não pode fazer isso, entregá-lo para o nosso inimigo! Você disse que
iria ouvir o que ele tinha para dizer. — Desesperado pedia, o homem com ira sentida cuspia as
palavras em salivas acumuladas na boca que gotejavam no rosto de Expedia.
A guerreira o olhou com asco e em um rosnado, chutou entre as pernas do duque, logo,
o homem caiu de joelhos no chão.
O sorriso que dera assemelhou-se ao de seu irmão, estavam mais parecidos do que
nunca.
Observou Feneros colocar as mãos em seu órgão genital, ao rugir de dor extrema. Seu
corpo inteiro tensionou, enquanto encolhia-se para frente, juntando os seus membros o mais
apertado possível contra o próprio tronco.
— É exatamente assim que você deve estar, Feneros. Você está abaixo de mim, eu dou
as ordens. Seu filho vai ser o exemplo primordial para que outros não façam igual. Por causa
dele, o MEU povo pode morrer.
Expedia se inclinou levemente para frente e pegou as bochechas gorduchas e suadas do
homem desmontado e oprimido. Os olhos castanhos, quase amarelados, de Expedia estavam
recheados de fúria. Esse sentimento estava preso dentro dela por dias, desde o momento que
havia saído de Estrelares, apenas foram se acumulando, e ela estava tentada a descontar toda essa
frustração em alguém.
— Você irá ser destituído, no meu reino, quase todos são substituíveis e você é uma
dessas pessoas — explicava Expedia, enquanto apertava as pontas das unhas curtas no rosto do
homem, que ficava cada vez mais rubro, logo, os primeiros acúmulos de gotas de sangue
nasciam, devido à pele viçosa e sensível do rosto de Feneros. — Por sua imprudência, protegeu o
seu filho às custas de meu povo.
— Você é uma vadia! Eu não entendo como o seu pai escolheu você como rainha, seu
irmão cumpriria o papel muito melhor.
— Porque ele é corruptível.
Conhecia bem Lucíferos, a luxúria do poder sempre o encantou. Ela era mais velha,
sim, por direito o reinado seria dela, mas seu pai poderia muito bem não seguir a regra dos
primogênitos. Se seu pai a escolheu, aquilo poderia ter um significado maior.
— Agora, eu preciso fazer o meu trabalho, você meu caro, será um preso político,
poderá continuar com o pouco de suas regalias, mas não mais terá qualquer influência —
continuou, antes de largar o rosto do homem e se levantar, ficando ereta em sua majestade
superior. Limpou o óleo que o rosto produzia na calça de couro e tomou um passo para trás. —
Você é uma perda de tempo, um velho que não sabe mais o significado de reger algo. Patético é
você, Feneros.
E assim, voltou-se para as portas enquanto dois guardas assistiam ao espetáculo não
pago. Quando regressasse para Serenas, poderia decidir quem ocuparia o lugar de Feneros, já
tinha um ou dois nomes em mente, um deles era o de uma Senhora Marquesa que apresentava ter
mais princípios e pensamento crítico do que Feneros. Era um tanto aliviador saber que a prole do
destituído duque não controlaria mais Serenas, a última coisa que queria lidar era com um
abusador.

∞∞∞
Já fazia algum tempo desde que Expedia saiu do reino para enfrentar a perigosa cidade
da fronteira dos Luares. Umbra não podia negar os seus próprios sentimentos de preocupação,
confiava inteiramente nas habilidades de guerreira de sua amante, mas ter a possibilidade remota
de vê-la em perigo já a deixava inquieta. Ficava ainda mais agoniada pelo simples fato de estar
parada, dentro daquele palácio exuberante, mas extremamente monótono. Estava se sentindo
mais forte, capaz, seus ferimentos, claro, ainda existiam e doíam, mas não como antes, Pergis era
de fato um curandeiro magnífico. Graças ao seu cuidado e a capacidade surpreendente de
regeneração da mutana, não faltaria muito tempo para estar em total poder.
Depois de um bom tempo zanzando pelos corredores abertos e fechados do palácio,
Umbra encontrou uma linda e charmosa biblioteca. Quando adentrou o espaço, ficou estarrecida
ao ver o local. Prateleiras imensas e irregulares preenchiam todas as paredes, deixando apenas
um pequeno espaço ao centro delas, onde uma depressão ocorria e um pequeno globo de metal
pesado assemelhando-se ao sol era colocado para adereçar o local. Com o pé direito gigantesco
que a sala tinha, mais dois mezaninos existiam e eram ligados por uma escada caracol,
facilitando assim a busca das centenas de livros e pergaminhos que empinavam o ambiente
primordialmente de madeira. Umbra sentiu o cheiro das páginas velhas, do pinho e da cera de
velas esquecidas no ar pesado, pois as janelas abaixo dos globos da parede oposta há muito
tempo estavam fechadas.
Umbra resolveu se aventurar apenas no primeiro andar, enquanto caminhava sobre o
piso de porcelana que formava grandes círculos claros em diferentes tons de bege, seus dedos
raspavam pelas lombadas empoeiradas dos livros. Até encontrar um romance de uma famosa
autora dos Luares. Curiosamente o pegou, puxando-o da prateleira com a ponta do dedo. Ela o
pegou em suas mãos, retirou o pó da capa vermelha, contendo apenas o título em dourado e
andou até o centro da sala, onde uma mesa baixa com velas apagadas e quatro sofás verdes a
contornavam. Sentou-se e abriu na primeira página do livro, esperando que o tempo fosse amigo
dela.
E para a sua surpresa foi, pois, quando estava prestes a virar a página cinquenta e sete
para a cinquenta e oito, uma batida bastante tímida na porta foi ouvida por ela.
Umbra colocou as pernas para baixo e espichou sua cabeça em curiosidade, enquanto a
serva da noite passada e de hoje de manhã, surgiu, esgueirando-se para dentro da sala.
— Desculpe, atrapalhar. — Cuidadosa era a fala da mulher de vestido e avental
amarelo. — Há uma senhora querendo falar com você. Está bastante insistente.
A mutana fechou o livro que estava lendo e o depositou cuidadosamente na mesa
levemente empoeirada. Era uma pena que mal usavam esse incrível acervo de livros e
pergaminhos. Antes de sua partida para a capital, carregaria um baú com a literatura que se
interessasse e a colocaria na espetacular biblioteca do palácio principal. Era um desperdício vê-
los aqui, sendo alimentados pelas traças, eram elas que aproveitavam as páginas da história, da
biografia e dos romances dos reinos, e não as pessoas.
— Amenu é o nome dela — continuou a serva, ao ligar as mãos à frente do corpo e
tombar a cabeça para baixo, evitando o olhar direto de Umbra.
— Amenu? — Repetiu o nome que não reconhecia.
— Ela disse que te salvou de um grande lobo.
Amenu?? Ressoou em sua mente. Claro! Umbra arqueou as duas sobrancelhas em
surpresa. Era Unema, a governanta suprema de NossDomuss, a mulher que a aceitou e a abraçou
sem qualquer tipo de hostilidade. Ela havia sido uma das pouquíssimas pessoas com a qual
cruzou em sua vida e nunca sequer a olhou estranho. Um tanto irônico, já que Expedia, a sua
amante e a mulher que cada vez mais se encontrava amando, rejeitou-a no momento em que
soube de sua verdadeira forma. Unema nunca havia feito isso. Não pôde deixar de sentir seu
coração aquecido em saber que em um período curto a veria novamente.
— Por favor! Peça para ela entrar. — Exclamou em uma excitação animadora. — Você
poderia trazer um chá e biscoitos, ou bolo, ou pão… Não sei…
De repente, estava um pouco aflita, nunca havia sido anfitriã para absolutamente nada.
Tudo bem, aquele não era o seu lar, ou o palácio que dividia com Expedia, mas ela era o amor da
rainha e aquele sentimento a apoderou de tomar um lugar de poder, como se aquela biblioteca de
alguma maneira a pertencesse.
A serva soltou um suave riso, entretanto, quando se deu conta de tal ato, arregalou os
olhos e levou as pontas dos dedos sobre os lábios.
— Desculpe — murmurou em desalento, certamente com temor de consequências.
Umbra detestou ver aquilo.
— Não precisa se desculpar, eu apenas não sei direito o que pedir, sou uma pateta.
— Não, não é… apenas não está acostumada. — A empregada afirmou e os olhos
pretos a encararam pela primeira vez. — Pedirei para ela entrar, senhorita Umbra, e eu mesma
irei providenciar o necessário.
Com isso, a mulher se retirou e Umbra ficou para trás e, rapidamente, passou os dedos
pelo cabelo na tentativa de ajustá-lo, para logo depois, alisá-lo pelo seu vestido negro. Ela
estranhou a formalidade que de repente pareceu tomar ante a situações, mas também havia um
adendo, Unema trazia um leve rubor em sua face, queria estar bem para a grande tigre, a
governanta do seu povo.
Por alguns minutos, Umbra ficou ali, aguardando, sentindo-se um pouco exposta pela
espera de alguém, mas para a melhora de sua inquietude, a presença poderosa de Unema lhe deu
o ar da graça. Ainda com a face escondida sob os véus leves de cor verde, a mutana pôde
capturar os olhos amarelados e felinos da governanta de NossDomuss. Por instantes se olharam,
até que Unema retirou o véu do seu rosto, levando as duas mãos para perto da têmpora e puxou o
tecido leve para baixo, revelando a beleza de sua maturidade e o leve cansaço da viagem.
— O que aconteceu com você? — Perguntou a governanta, ao expressar preocupação
em seu olhar, aproximou-se um pouco, elevando um pouco a mão, como se quisesse tocar a face
da mutana, entretanto, hesitou. — Foi ela que-
— Não, não — adiantou Umbra — É uma longa história. Posso contá-la caso queira,
mas acho que você não veio até aqui se expor apenas para ver como eu estou.
— Bem… — Começou Unema — Estava sim, me perguntando como você estava, mas
estou aqui para outro tipo de negócio e queria a sua ajuda. Infelizmente, só pude trazer um dos
meus cavaleiros… pensei que com a rainha aqui, as coisas poderiam ser mais fáceis.
— Quero ouvir o que tem para dizer, por favor, sente-se — pediu Umbra, ao apontar
com a mão em direção ao sofá que estava acariciando levemente a lateral de seu joelho.
Unema colocou um sorriso em seus lábios, uma expressão de orgulho banhou a sua
face, antes de se colocar sentada no canto do sofá.
Diferente de todos os outros momentos, a governanta não usava o seu poderoso bastão,
Umbra achou que talvez fosse uma maneira para que pessoas não a reconhecessem, já que sua
arma era bastante singular. Na realidade, o bastão de Unema era muito mais um símbolo do que
de fato uma arma, quando se tinha essa capacidade de se transformar em uma fera não era tão
necessário ter qualquer tipo de arma ao seu alcance.
— Encontramos o paradeiro da menina que foi sequestrada. Você lembra que comentei
com você? Logo no início do nosso primeiro contato. Ela está aqui, em Serenas.
— Claro. — Seguiu Umbra ao se colocar na outra extremidade do sofá, onde suas
costas se apoiaram no braço revestido por espuma e couro. — Eu encontrei uma Luares que disse
ter sido sequestrada por um Solares, os pais dela deviam alguns montantes de moedas, eles
morreram também. Infelizmente, pela menina ser Luares, Expedia não deu muita atenção a isso.
Tudo o que eu sei que ela é da Lurilana. A cidade que faz fronteira com Serenas...
— Imaginei que ela não daria atenção, mas, não são apenas crianças Luares que esse
homem sequestra, crianças Solares que não mais têm pais e as minhas crianças perdidas também
estão lá. Meu intuito era trazer esse problema para Expedia e assim resolvermos isso, sem muito
alarde… Ainda que minha vontade seja matar o homem que fizera isso. Ele é um fazendeiro um
tanto quanto poderoso dessa região, dono de terras, exportador de todo o reino, não apenas para
os Solares, mas também para os Luares.
— E seria um risco você se expor, não é?
— Exatamente, seria um risco e eu não posso ter isso. Por isso, precisava dela.
— Eu posso ir com você!
— Você não está bem, Umbra.
— Por favor, Unema — pediu a mutana, juntando sua mão direita à mão esquerda da
governanta. — Eu preciso me sentir útil.
Ruborizada ficou Unema, um contato desse era tão absolutamente raro em um coração
que já passara pelo luto de perder a amada. Em um suspiro e sem poder negar um pedido de
Umbra, aceitou.
— Tudo bem — concordou, ao desvencilhar a mão cinza da sua, era mais seguro. —
Nós traremos todas as crianças de volta, sem alarde, mas preciso tirar a minha criança de lá.
— Mas eu preciso trazer esse homem comigo, Unema, não posso simplesmente deixá-
lo lá… preciso trazer justiça. — Umbra exasperou com um pouco de veemência, recolhendo a
sua mão e percebendo que o ato despretensioso que acabara de fazer havia afetado a governanta.
Elas eram mulheres adultas e Umbra sabia da atração que Unema nutria perante ela.
Jamais usufruía disso, seu coração era cada vez mais pertencente à rainha dos Solares. Admirava
Unema, não podia negar, mas era o limite sem dizeres posto a ela, ansiava apenas a amizade
dessa incrível mulher.
— E iremos, você irá trazê-lo, Expedia irá ouvi-la e você tem muito mais
confiabilidade no reino do que eu.
— Então, será melhor nós não nos transformamos — expôs a mutana.
— Não, nós iremos sim ter armas e, bem, acredito que você já deva saber que nós
temos explosões, isso é bastante eficaz.
— Mas podemos sair ferida.
— Exato, mas isso não vai acontecer, eu vou estar lá — garantiu a governanta.
Umbra sentiu-se mais sossegada com a excelente capacidade de fazer aquilo que a
governanta desejava e ela também estava confiante que pudesse fazer isso. Acreditou que fosse
pela segurança que a voz levemente rouca de Unema pudesse transparecer para ela.
Batidas tímidas na porta foram repetidas na mesma intensidade de momentos atrás.
A governanta levou o tecido para o seu rosto novamente e sequer se virou para receber
ou contemplar o pequeno carrinho de madeira com uma tampa oval sobre ele, coberto por uma
toalha branca que a serva arrastava com diferentes tipos de alimentos.
Umbra, por outro lado, se levantou rapidamente e observou a mulher se aproximar,
colocando o carrinho perto da mesa baixa, lugar em que abandonou o começo de sua leitura. A
mutana apenas colocou um sorriso no rosto e deu um leve, porém perceptível, inclinar de cabeça
para agradecer silenciosamente a serva e, ao mesmo tempo, um pedido encabulado, mas bem
entendido, que era o momento da mesma se retirar.
A mutana pegou o bule de porcelana amarela que espantava a fumaça pelo bico sinuoso
e colocou o líquido rosado nas duas xícaras pequenas, acompanhando a mesma cor do bule.
Concentrada, voltou a louça para a mesa do carrinho e ofereceu a xícara para Unema, que de
bom grado aceitou.
— Que horas iremos para a fazenda? — Indagou Umbra, ao colocar a xícara na mesa
baixa perto do livro de leitura interrompida.
Por mais uma vez, a governanta abaixou o tecido do seu rosto, revelando a sua beleza,
enquanto com a outra mão segurava a louça delicada sobre a sua coxa.
— Ao anoitecer… os trabalhadores das fazendas próximas voltarão para as suas casas,
menos atenção chamaremos.
E assim, Unema provou um pouco do seu chá.
Umbra ouvia com atenção as informações dadas, enquanto alternava o seu olhar entre
os pequenos pedaços de pães e geleias que colocava no prato e o olhar amarelado da governanta.
— Perfeito. Eu gostaria de levar alguém, ele parece ser de confiança. O homem que
cuidou dos meus ferimentos.
— Ferimentos esses que carregam uma história e eu gostaria de ouvir. Mas tem certeza
de que é seguro?
— Não, mas não sabemos como as crianças estarão, o convocarei, acredito que ele não
fará mal e nos ajudará — comunicou Umbra, até que finalmente se sentou ao lado de Unema.
— Vamos fazer a sua vontade, só que temos tempo, por que não me conta o que
aconteceu? Claro, se quiser… — Pediu a governanta, em um tom um pouco mais acolhedor, e
Umbra sabia que contaria tudo.
Unema era uma mulher misteriosa e tinha um poder extraordinário, gostava do que a
governanta emanava, confiava nela.
— Não tem problema, julgo que mesmo não estando totalmente pronta, vai ser bom
contar o que aconteceu comigo e as revelações que eu tive. Eu confio em você, Unema. Assim,
como confio em Expedia… em pouco tempo, já sinto que são seres importantes para mim.
— Eu fico contente em saber disso. — Era verdadeiro o que a governanta dizia.
A mutana usou a faca para mergulhar na geleia de damasco, com a outra mão livre,
pegou o pedaço de pão e com a assistência do talher afiado, acariciou o doce amarelado e, por
fim, comeu o primeiro pedaço. Mesmo com todos os percalços da vida, Umbra queria se
acostumar com aquela vida, era regada de tudo que um dia pudesse ser negado a ela.

∞∞∞
Pelo colarinho da blusa bufante cavada vinho escuro, Expedia carregava o filho de
Feneros, que se debatia como um peixe fora d’água, desesperado à procura de sua fonte da vida,
mas também da justiça não muito límpida dos Luares.
Seguindo por um extenso corredor de paredes de mármores de cores cinza, prata,
branca e preta, a rainha trazia consigo o fedelho, não mais sucessor de Serenas e, logo atrás,
Lucíferos e outros dois guardas Solares a seguiam. Estavam eles sendo escoltados por cavaleiras
leais de Luriana.
Os passos ecoavam pelo local despido de qualquer móvel, que talvez pudesse dar
algum tipo de personalidade ao ambiente, mas era em seu final que duas esplendorosas portas
altas e brancas de grandes seixos de paletas de cores azuis ornando os seus contornos surgiram
na frente dos olhos de Expedia. Logo elas foram abertas pelas guerreiras bem treinadas de
Luriana e assim que a rainha vislumbrou a imensa e maravilhosa sala do trono, quase invejou a
representatividade daquele poder.
O salão extenso e alto continha inúmeros lustres requintados de vários níveis,
brilhavam como cristais e diamantes, um mezanino era sustentado por pilares azuis-claros, o
segundo andar era preenchido por bancos de granito e natureza de folhas azuladas, brancas e
verdes. A flora descia como tapeçaria para o primeiro andar, seja ela agarrando-se à estrutura dos
pilares ou cortinas livres que sacudiram ligeiramente com a brisa que entrava no local. O lindo
piso de pedras brancas e cinzas polidas brilhavam em virtude de três grandes janelas de ferro
branco vindas da outra extremidade da sala. No topo de cada uma havia uma representatividade
das fases da lua, sendo elas respectivamente, indo da direita para esquerda, crescente, cheia e
minguante. Logo à frente dessas lindas janelas, o trono oval e igualmente cintilante como o resto
da sala aguardava vazio o monarca se sentar. Descendo oito degraus, a cada lado, duas grandes
estátuas da Deusa Lua seguravam um pergaminho e uma pequena adaga. Ligando a porta onde
Expedia estava até a grande cadeira, que representava poder, um tapete azul de comprimento fino
era o caminho final para o destino do filho de Feneros.
Uma porta da lateral do grande salão, próxima ao trono, foi aberta e de lá saiu Baricus
em sua postura calma, envolvendo com os seus dedos longos a espada reta e longa que guardava
em sua cintura. Entretanto, desta vez, o homem não carregava duas espadas e sim quatro, mas
duas delas eram curtas, quase do comprimento dos sais de Lucíferos. Expedia tinha certeza de
que elas machucavam tanto quanto as que o seu irmão tinha.
A rainha se aproximou, observando Baricus caminhar até o terceiro degrau que ligava
ao seu poderoso trono, e quando se encontrou frente a ele, Expedia jogou o filho de Feneros no
chão, o jovem homem colidiu em alto e bom som contra a maciez do tapete, gemendo em dor e
em agonia. Encolhia-se como um covarde que nunca sequer lutou por algo na vida. Expedia
odiava aquilo, não gostava de pessoas sem propósitos ou muito menos com ambição que
pudessem modificar suas vidas. Talvez fosse uma visão soberba de sua parte, já que muitos de
seu reino não poderiam apenas sonhar, muitos deles tinham que trabalhar para sobreviver. Algo
que a rainha tentava mudar, auxiliando-os, mas não era um trabalho que se realizava da noite
para o dia.
A destruição de um reino poderia ser feita em horas, mas a construção dele poderia
levar séculos.
— Como pedido… — Começou Expedia em uma fala fria.
— Hmm… — Baricus soltou, ao acariciar a barba. — Devo dizer que estou surpreso
com o tempo em que atendeu ao meu pedido. Achei que não fosse responder aquilo que
desejava.
O filho de Feneros choramingou, protegendo sua cabeça com os braços e levando os
joelhos até a sua barriga. Encontrava-se em uma posição fetal asquerosa, o que deixou Expedia
ainda mais possessa.
— Não fiz isso por você e sim pelo meu povo — falou a rainha, ao andar em direção ao
duque de Luriana.
Expedia passou pelo homem caído no chão, evitando que sua bota se encontrasse com
o corpo, mas sua capa arrastou-se quase que dolorosamente por ele. Diferentemente do propósito
daquela vestimenta que era sempre de proteger a rainha, o poderio que a capa poderia passar era
capaz de enrijecer qualquer um pelo medo, e foi exatamente o que aconteceu.
— Ao menos não é egoísta como o seu pai, sabe a hora de recuar e atender pela
racionalidade. — Baricus disse, ao encher um pouco mais o peito, pela proximidade repentina da
rainha.
As tatuagens das fases da lua ficaram levemente evidentes para os olhos de Expedia e
aquilo a deixou apenas mais raivosa. Ela estava ali, colocando-se inferior, graças aos erros de
seus próprios monarcas, eram esses, ditos de confiança, e era por causa desses mesmos que a
rainha enxergava o sorriso de vitória do homem à sua frente.
— Ele está entregue, sinceramente, não me importo com o que você vai fazer com ele.
— Isso trará desavenças para o seu reino, não? — Vangloriava o duque de Luriana.
— Nada que não possa ser resolvido, prefiro um monarca destruído que cidades
inteiras revoltadas e miseráveis.
O maxilar de Baricus trancou, certamente, não esperava por essa frieza.
— Agora o envenenamento deve parar e a encosta destruída — continuou Expedia,
ainda controlando o seu orgulho, que tentava sair a todo custo.
Era preciso, pelo bem do seu povo.
— Em uma semana tudo estará como era antes. Temos certos produtos líquidos que
aceleram a limpeza do rio.
Desta vez, Expedia riu em deboche.
— Eu não tenho uma semana. Hoje. Você não tem escravos? Faça eles trabalharem até
cair — apontou a rainha, levantando os braços, antes de abaixá-los com exasperação e bater com
as mãos nas coxas, em um sinal claro de frustração. — Eu trouxe o desgraçado que abusou das
mulheres do seu reino, o mínimo que você pode-
— Uma semana, não seja uma rainha mimada que não pode-
O punho forte, capaz de quebrar mandíbulas, acertou Baricus nesse mesmo local. O
golpe dado por Expedia em sua potência máxima poderia fazer um estrago muitas vezes não
mais capaz de ser consertado.
Ouviu-se uma arfada em uníssono em todos os presentes, para imediatamente após o
ruído, o som das lâminas saindo das bainhas e sendo posicionadas em diferentes posições para
ataques e defesas foram colocadas.
Por outro lado, Baricus segurava a face, de olhos marejados e sangue escorrendo para o
pescoço, manchando as luas brancas de seu peito negro.
— Imediatamente. — Rosnou a rainha. — Não teste minha paciência, Baricus. Você
não tem ideia com quem está lidando, não é? Eu sou diferente do meu pai, diferente de qualquer
um antes dele.
Uma das cavaleiras dos Luares tomou a dianteira e tentou atacar Lucíferos, mas seu
irmão era habilidoso, as lâminas de suas adagas travaram o golpe, antes que ele chegasse em sua
cabeça. Quando o próximo ataque estava prestes a ser desenrolado, Baricus vociferou:
— CHEGA! — A voz abafada pela boca foi ouvida por todos.
As armas foram recolhidas ou abaixadas, mas a tensão ainda era bastante palpável.
— Está bem. — Baricus se deu por vencido, enquanto limpava com a manga de sua
blusa o sangue em seu rosto, conhecia a notoriedade da rainha — Você terá tudo feito ainda hoje.
Em breve, tudo irá ser normalizado, contanto que os Solares se mantenham na linha.
— Vangloriando-se. — Cuspiu Expedia em sordidez. — Apenas não entre mais em
meu caminho, Baricus, e não teremos problemas. Da próxima vez, não será o meu punho que
encontrará a sua face e sim a lâmina do machado em seu pescoço.
O monarca dos Luares sorriu com os dentes manchados de sangue. Era um desafio que
ele estava tentado a tomar, mas que certamente poderia ser bastante prejudicial para ele e todo o
reino dos Luares. Não poderia um único homem tomar uma decisão por todo o reino, mas
Expedia poderia e isso a tornava bastante perigosa.
— E espero que tudo se normalize, pois se não cobrarei aquilo que irá ser perdido —
continuou a rainha, ao mesmo tempo, em que apertava os nós de seus dedos doloridos pelo golpe
cheio e acumulado de ódio. — O garoto já está aí… — Expedia colocou-se um pouco de lado e
cutucou com a bota o fedelho que começava a recuperar um pouco de sua dignidade. — Que a
sua justiça seja, de fato, justa e que ele aprenda a não mais abusar das mulheres, assim que o
condenamento dele passar, envio-o imediatamente para as terras dos Solares. — Exigiu a rainha.
— Minha nova duquesa irá entrar em contato com você.
Baricus puxou o ar para dentro, ao passo em que inspirava um pouco do sangue que
ainda tinha certa dificuldade de estancar. Seu rosto estava começando a ficar inchado,
certamente, tomaria dias até que o monarca pudesse retomar seus compromissos em público.
— Como desejar — resumiu Baricus, aprendendo o seu lugar dentro de toda aquela
dinâmica.
— Ótimo — sintetizou Expedia.
A rainha guerreira não conseguia negar o quão satisfatório era ver o seu poder sendo
usado. Era intoxicante e perigoso, mas francamente, Expedia não parecia racionalizar isso, ela
gostava da sua superioridade, era naquele instante que sua soberba monarca mais se aflorava aos
olhos alheios. Seja olhando-a com admiração, raiva ou medo, deleitava-se com o efeito que
reservava para as pessoas.

∞∞∞
Saindo das muralhas que abraçavam a segurança da cidade, Unema e Umbra seguiam
de cavalo para a estrada de terra batida à esquerda dos portões grossos e, logo atrás, Pergis e um
fiel confiante guerreiro de NossDomuss as seguiam com uma carroça coberta por um tecido
firme, aparentando uma tenda móvel.
A noite já estava firme aos céus, a lua brilhava dentre as nuvens noturnas, junto a
pássaros e morcegos que começavam a sua caçada notívaga, quando se entranharam no bosque,
desviando levemente do caminho que cortava as árvores, evitando desta maneira, trabalhadores
que pudessem transitar e avistar o pequeno comboio de salvamento das crianças.
Os quatros salvadores vestiam túnicas, as verdes escuras vestiam Unema e Pergis,
enquanto as pretas vestiam Umbra e o guerreiro.
O bastão da governanta localizava-se amarrado na lateral de seu cavalo marrom, já
Umbra nada portava, seus punhos poderiam fazer um estrago bastante eficiente, entretanto,
diferente da governanta, a mutana usava um peitoral firme de couro de ursos escarlates sobre o
vestido de tecido leve e negro que usava. Pergis carregava sua cimitarra e sua imensa bolsa e o
cavaleiro empunhava um machado de duas lâminas. Esperavam não usar nenhum tipo de
violência, talvez, apenas para prender o homem fazendeiro e levá-lo para Expedia.
Após passarem pelo bosque e contornarem algumas fazendas, Unema desacelerou o
ritmo do cavalo e todos a copiaram. Não muito distante, subindo uma colina pequena, a colheita
de milho crescia orgulhosamente, deixando o local denso o suficiente para adultos terem
dificuldades de transitarem, diferente de crianças pequenas com mãos hábeis.
A casa de pedra, madeira e teto de palha estava com as janelas abertas, as luzes
interiores iluminavam um pouco do espaço em volta da moradia de grama-baixa. Havia também
um poço, um galpão e uma outra habitação, um pouco mais modesta e com apenas uma porta,
sem qualquer outra abertura naquela moradia. Todas repetiam o mesmo padrão da casa principal,
com a diferença da chaminé que cuspia gentilmente a fumaça carregada pelo cheiro de pão e
bolo, alimentos os quais Unema, Umbra e o cavaleiro conseguiam facilmente distinguir.
Havia também um moinho, logo atrás da casa com grandes pás que rodavam
incessantemente, graças a roda de pá anexada a ele, alimentando-se de uma nascente. Um
caminho de pedras ligava a uma escada com formato de ponto e abaixo dela, uma nascente
continuava pela colina acompanhando um pouco a colheita da fazenda. Logo após a ponte,
porteiras baixas davam acesso aos milharais, circuncidados por arames farpados bastante afiados,
perigosos e altos o suficiente para aumentar a dificuldade de pulá-los ou passar entre eles,
tornando isso um trabalho praticamente impossível.
Ao longe, parecia uma fazenda normal, charmosa, por assim dizer, já que ligeiras
pedras fixadas ao solo e invadidas por musgos cobriam o campo nu na frente da casa. Para não
levantar maiores suspeitas, contornaram a área e chegaram à conclusão de que poderiam se
esconder atrás do moinho, onde as árvores se aproximavam mais da fazenda.
Umbra e Unema desceram do cavalo, Pergis e o cavaleiro fizeram o mesmo.
— Devemos investigar todo o perímetro e não deixar nenhuma criança para trás. —
Começou Unema de sua maneira assertiva como poucos teriam o poder... — Não queremos
casualidades, a não ser que seja extremamente necessário. Levaremos conosco o homem que está
escravizando essas crianças e com isso poderemos trazer justiça para elas.
— Soube que duas crianças Solares foram dadas por desaparecidas em Serenas e
Vinamar, talvez elas possam estar aqui. — Pergis comunicou em um tom aflito.
Uma informação não muito necessária, mas de certa forma, uma esperança crescia
solenemente dentro do peito do homem, pois os pais sofridos poderiam ter seus filhos de volta.
O curandeiro jogou a bolsa para dentro da carroça, contudo, abriu-a para pegar alguns
itens que julgou ser importante e os colocou pendurados ou guardados dentro do cinto contendo
pequenas sacas. Era sempre bom se precaver, principalmente, se encontrassem alguma criança
ferida no meio do resgate.
— Pergis e Gernes, vocês irão até o milharal, se eu estiver correta, ele explora as
crianças durante a madrugada para não levantar suspeitas. Eu e Umbra vasculharemos a casa, o
moinho e o armazém. — Unema continuou a jogar as ordens necessárias para o plano continuar.
Umbra nada disse, apenas observava seus companheiros salvadores, certamente,
encontrava-se um pouco inquieta para começar o resgate. Seu peito formigava levemente, a
sensação poderosa da besta querendo caçar o desgraçado apropriava-se de si com vontade.
Pergis e Gernes aceitaram sua missão e passando por trás da casa, do armazém e
descendo pela colina, adentraram pela lateral do milharal, arrebentando os fios grossos com o
esforço que apenas um adulto forte e hábil pudesse fazer. Entretanto, antes de se esgueirar pelas
plantas altas de folhas cortantes e de espigas gordas e amareladas, o curandeiro retirou um
pequeno lenço vermelho de um de seus bolsos do cinto e o amarrou no primeiro pé de milho.
Assim, embrenharam-se no mar consistente e dificultoso do milharal.
Umbra e Unema começaram pelo moinho, graças a elasticidade e a altura das duas,
foram capazes de pular a única janela que havia atrás dele. Os olhares atentos das feras não
capturaram nada de anormal, apenas feno, caixas, uma escada em caracol que levava até as pás,
contudo, foi ali que Unema viu um homem de costas para ela na abertura do moinho, distraído
enquanto enrolava um fumo de tabaco. A sorte tinha sorrido para o lado dela, pois se não fosse
por essa simples distração, talvez o homem pudesse ter visto Pergis e Gernes invadirem o
milharal.
Unema olhou para trás e olhou para Umbra, colocou o dedo na frente dos lábios, em
um pedido cuidadoso de silêncio.
A governanta ergueu o seu cajado poderoso e mesmo com os penduricalhos em suas
pontas, a arma não ousou soltar nenhum som, exceto quando Unema usou para golpear a nuca do
homem, que estava prestes a colocar o cigarro aceso na boca. A ação foi interrompida e o corpo
caiu para o lado, desacordado antes mesmo do baque alto contra o feno, a poeira e o piso.
Umbra andou para perto dele e pisou no cigarro para apagar a chama e o pequeno
palito que ainda era lambido pelo fogo vermelho e laranja, evitando que maiores problemas
pudessem ser causados, como um atemorizador incêndio.
A mutana achou de uma grande irresponsabilidade aquele homem estar ali, acendendo
o cigarro ao meio daquela palha, mas francamente, não era da sua conta. Talvez fosse melhor se
aquele local caísse em chamas, mas aquilo também significaria pessoas passando fome, já que o
milharal tinha um tamanho bastante invejável. Queimar toda aquela produção causaria muitos e
muitos problemas.
Ela olhou para a pequena abertura do moinho e pôde perceber as pontas das plantas se
mexerem em diferentes pontos do milharal, aquilo poderia significar Pergis e Gernes, as crianças
ou até mesmo outros capangas do homem escravizador. Apenas esperava que seus companheiros
estivessem sempre em vantagem.
Desceram em silêncio e optaram por sair pela janela que entraram.
O próximo alvo era a casa principal.
Agachadas, colocaram-se rentes ao muro e a cada oportunidade que avistavam uma
janela aberta, os olhares atentos miravam para dentro do cômodo, com intuito de talvez
encontrarem alguma coisa. Foi na cozinha simples que o olhar de Umbra capturou sob um
pedaço grande de couraça animal, um alçapão descoberto com uma enorme argola de metal e, ao
lado dela, uma fechadura com um maciço cadeado.
A mutana puxou o braço de Unema que quase caíra de cócoras contra o gramado ralo e
terra úmida. Quando a governanta virou a cabeça para trás, certamente, um pouco aborrecida
pelo ato abrupto, Umbra apontou em direção ao cadeado.
As duas assentiram uma para a outra e assim que fizeram menção de pular a janela,
uma senhora adentrou o recinto com um prato na mão, com restos de comida e ossos que se
assemelhavam a carcaça de um pássaro.
O coração de Umbra gelou e rapidamente, encolheu-se para que seu corpo voltasse à
posição anterior, longe do olhar infestado de catarata da senhora.
Observaram com atenção a mulher de cabelos grisalhos e ralos atravessar a cozinha,
caminhando despreocupadamente pelo alçapão até chegar em uma única prateleira grossa. Atirou
o resto da comida em um balde de descarte ao lado mais próximo da porta de entrada e colocou
os pratos de madeira em uma grande bacia com água já levemente engordurada. Quando a
senhora passou novamente pelo alçapão, parou um instante para recolocar a pele do animal de
volta no local.
Esperaram mais um pouco, Unema e Umbra assentiram mais uma vez, as duas pularam
pela janela, agachadas e com extremo cuidado tomaram conta do perímetro da cozinha.
A governanta voltou os seus olhos amarelos para Umbra e com a cabeça apontou para
o interior da casa, logo, as duas se voltaram para o local em que a senhora seguiu. Ao entrarem a
sala, encontraram o ambiente completamente vazio, entretanto, quando estavam prestes a virar
para o corredor escuro, onde os quartos poderiam ficar, esbarraram com a velha que saía de um
daqueles cômodos.
A mulher apenas teve tempo de arfar e soltar um grito rouco e engasgado, antes de
Unema cobrir a boca enrugada com certa rispidez. Envolvendo o corpo magro e baixo, a
governanta andou para frente, trazendo a mulher junto consigo, juntas desapareceram para o
mesmo quarto no qual ela havia saído. Umbra ficou para trás, mas ouviu um segundo gemido
vindo da senhora e alguns segundos depois, Unema saiu de lá.
— Você consegue abrir aquele cadeado? — Indagou a governanta, enquanto ajeitava o
lenço em volta de sua cabeça. — Você é consideravelmente mais forte do que eu.
— Se nós encontrarmos algo para bater contra ele, acho que sim. Mas não estaríamos
fazendo muito barulho?
— Acho que não podemos perder tempo à procura de uma chave.
Umbra não gostou muito da possibilidade de ser ouvida e exposta, principalmente, por
talvez, colocar alguma criança em perigo.
Por fim, aceitou a condição da governanta e logo trataram de procurar alguma coisa
que pudessem usar para quebrar o cadeado, foi apenas alguns momentos mais tarde, junto a
inquietação de Umbra pelo medo da descoberta, que a mutana abriu uma gaveta na cozinha e
encontrou um grande martelo. Sorrindo de alívio, trouxe o objeto para perto do peito e apertou o
cabo com força. Algo lhe dizia que estavam prestes a finalmente salvar as crianças que estavam
ali.
As duas se ajoelharam no chão e Unema retirou a pele do animal de cima do alçapão.
Por outro lado, Umbra segurava com firmeza o martelo, pronto para o golpe final. Elevando-o
para cima, deixou-o no nível de sua têmpora e quando as duas se olharam, o sinal positivo foi
dado. No momento em que a cabeça do martelo estava prestes a encontrar o cadeado maciço e
enferrujado.
Alguma porta lá fora foi escancarada e uma voz masculina bramiu em raiva:
— CRIANÇA INÚTIL!
E o choro de dor infantil foi ouvido pelas duas mulheres agachadas.
Elas se levantaram e foram para a parede da frente da cozinha, logo acima do balde
com os restos de alimentos, que provavelmente iriam se transformar em comida para os porcos,
caso eles tivessem, Umbra ainda não tinha visto nenhum animal na propriedade.
— Cinna! — Unema esbravejou em um chamado claramente desesperado e irracional.
A governanta pulou a janela e saiu em disparada na direção da criança encolhida e
ferida no chão. Cinna não parecia ter mais do que dez anos de vida, usava um vestido puído e
sujo de poeira, lama e outros elementos repulsivos e identificáveis pelo olfato de Umbra e
Unema.
A menina estava com hematomas incontáveis das mais variadas cores em seu corpo e
rosto. Ela havia sido castigada severamente, outro indicativo disso era a magreza excessiva que
Cinna estava sofrendo.
Umbra sentiu todo o seu ser gritar dentro de si.
Pulou a janela e caminhou lentamente em direção ao homem alto, grande e de cabelos
grisalhos, que aparentemente estava um tanto atônito de receber visitas indesejáveis.
— Isso aqui é uma propriedade privada! — Urrou o homem, apertando o cabo do
chicote curto em sua mão.
Tal objeto não passou despercebido pelos olhos brancos de Umbra, e
consequentemente, espremeu o martelo em seus dedos, deixando-os esbranquiçados e doloridos
de tanta força. Ela não havia esquecido do alçapão, mas a vontade de machucar aquele homem
tornou-se algo urgente.
Junto àquela arma dolorosa que o homem usava nas crianças, a mutana avistou duas
argolas ligadas por uma corrente grossa presa na calça do fazendeiro. Eram algemas pesadas…
Umbra conhecia elas, ainda que seus pais tivessem preferência por coleiras, já havia
experimentado o peso do metal em volta de seus pulsos.
Isso era demasiado ultrajante. O homem acertou o chicote no âmago com recentes
feridas da mutana.
— Você vai pagar por isso — avisou Umbra entre os dentes, sentindo-os levemente
mais pontudos.
Toda sua pele arrepiou, pois, a criatura, o seu lobo particular, queria sangue.
— Pagar pelo que? Eu faço um favor para essas pestinhas! — Continuou o homem a
clamar, sob a barba levemente amarelada e gordurosa — Se não fosse por mim, elas morreriam
de fome!
Unema estava alheia à reclamação do fazendeiro. Sua atenção estava totalmente virada
em Cinna, que se estreitava e se apertava ainda mais no colo da governanta. Era um descuido que
Unema estava cometendo, deixando de lado o seu cajado para atender a menina praticamente
desfalecida em seus braços.
De onde a mutana estava, pôde lobrigar Pergis e o cavaleiro escoltando três crianças
em silêncio absoluto, enquanto atravessavam o espaço entre o armazém e a casa. Assim como
Unema, Umbra permitiu-se distrair em um momento fracionário de alívio ao perceber que ao
menos três crianças estariam a salvo. Um erro que antes era captado pela mutana, agora repetido
por ela. Contudo, seu alerta voltou à superfície, quando ouviu o som de um assobio fino cortando
o céu de brisa fácil. Ao se virar para trás, sua percepção e sentidos se aguçaram no mesmo
segundo, pois, a lâmina afiada de uma lança veio em sua direção. Antes que a ponta da arma
pudesse atingir qualquer pedaço vital de seu corpo, Umbra foi capaz de desviar, mas não
totalmente ilesa. A aresta da lâmina cortou a fina camada da manga de seu vestido, aproveitando
a oportunidade de colher o seu sangue em uma cissura criada pelo golpe da arma.
A lança fincou na grama úmida um pouco atrás de Umbra.
Mesmo com a escuridão predominando o local, a silhueta iluminada por algumas
tochas pelo perímetro da fazenda não passou totalmente despercebida, já que ela corria em sua
direção.
— Umbra! — Berrou Unema.
E assim, o chicote estalou contra as suas costas, a ferida recém-feita pelo mesmo tipo
de material certamente fora aberta.
Umbra gemeu em dor, mas seus olhos antes brancos tomaram a coloração amarelada e
seus dentes alongaram-se ainda mais. A agonia do golpe lhe trouxe o sentimento de vingança que
não era muito visto dentro de si.
Como um borrão em meio a paisagem, a mutana rodou o martelo em sua mão, virou-se
para o homem, acertando-o em um golpe certeiro de baixo para cima bem ao centro do queixo e
antes mesmo que ele pudesse cair no chão, Umbra já rodava o próprio corpo para a posição
anterior, arremessando o martelo contra a silhueta que se aproximava.
A mutana não sabia se tinha o matado ou não, pois a pancada do martelo acertou
precisamente a testa do capanga do fazendeiro.
— Leve-a para Pergis. — Desta vez, foi Umbra entregava as ordens em um tom de voz
frio e sábio. — Eu abro o alçapão… — Caminhou até o capanga caído no chão e pegou o
martelo em cima do peito dele. — Volte para me ajudar.
Umbra deu uma última olhada para trás e Unema a encarava certamente impressionada,
enquanto carregava uma desmaiada Cinna em seu colo.
Umbra entrou na casa e sem muito esforço, em um único golpe certeiro e pesado,
quebrou o cadeado enferrujado. Chutou-o para longe, envolveu a argola nos dedos e puxou a
tampa do alçapão para cima. O estrondo foi alto o suficiente para acordar a casa e despertar
curiosidade ao redor da fazenda, mas todos estavam desacordados, golpeados como mereciam. A
mutana ainda achou que eles poderiam sofrer um pouco mais, entretanto, essa não era ela. Isso
não fazia parte de sua índole, sua missão aqui era salvar as crianças e levar os vermes que ali
estavam para a justiça.
Foi bastante desagradável descer a escada de madeira e paredes de pedra, sustentadas
por vigas de qualidade duvidosa. Ao passo que caminhava em silêncio no corredor quase que
completamente dentro do breu, Umbra segurava consigo o martelo, atenta a qualquer perigo,
quando o longo corredor ligeiramente íngreme acabou, o ar já estava rarefeito e bastante pesado,
mas não foi isso o que incomodou a mutana e sim o horror posto na frente dela.
O espaço se abria como uma grande cela suja de uma masmorra. Camas de palha
estavam enfileiradas nas paredes da direita e da esquerda, tochas estavam colocadas em
fincadores de madeira em forma de cone contra as pedras de limo e argolas posicionadas em
cima das camas continham correntes e algemas. Umbra tentou isolar qualquer imagem que sua
mente poderia ter proposto ao olhar a cena pitoresca em sua frente. Do lado oposto de onde
estava, havia apenas dois baldes, que certamente as crianças utilizavam para se aliviarem, e uma
mesa de madeira, assimilando-se a de cantinas públicas. Embaixo dela, três outras crianças,
menores do que a própria Cinna, se abraçavam em urgência, como se aquele sinal de afeto
desesperado pudesse salvá-las de alguma coisa.
Umbra soltou calmamente o martelo e se aproximou, percebendo que as crianças se
encolhiam ainda mais, parou. Agachou-se e colocou um sorriso doce nos lábios, agradecendo por
seus dentes pontudos já estarem retraídos.
— Eu vim tirar vocês daqui. Ninguém mais vai machucar vocês — garantiu Umbra em
uma voz doce.
— Ele disse isso pra mim quando eu fugi de casa por causa dos meus pais e agora estou
aqui… — Choramingou um menino, referindo-se ao fazendeiro.
Como Umbra queria matá-lo.
Ela já tinha ultrapassado o limite da matança uma vez, havia assassinado sua própria
mãe de criação. Um passo que não mais poderia retroceder. Não seria muito difícil acabar com a
vida de um desgraçado como aquele. A matança era como um fio fino, poderia ser rompido
facilmente, mas havia certa resistência em cortá-lo, pois ninguém sabia ao certo o que poderia
acontecer depois. Agora Umbra já sabia e era difícil de admitir, mas poderia ser satisfatória, caso
aquele ser fosse um alguém sórdido.
— Eu sei, e sinto muito por isso, mas eu realmente quero ajudar vocês. Uma amiga de
vocês, Constela, veio atrás de mim.
— Constela?! — O menino repetiu o nome parecendo surpreso.
— Isso…
— Ela disse que acharia ajuda, mas demorou tanto que a gente pensou que ela havia…
Doeu ouvir aquilo, infelizmente, com tudo o que estava acontecendo no reino Solares,
Expedia deixou as acusações e investigações para terceiro ou, até mesmo, quarto plano. Uma vez
ou outra, Umbra chegou a perguntar sobre como a investigação estava indo, mas a rainha quase
sempre era evasiva ou até mesmo os próprios enviados para desvendar o desaparecimento das
crianças pudessem ter sido completamente relapsos a isso. Pelas Deusas, a própria mutana havia
esquecido disso. Tantos eram os problemas e acontecimentos que esse tipo de horror
acontecendo em Serenas foi completamente jogado para alguma parte obscura de sua mente, mas
ela estava ali agora, era isso que importava. Sendo uma igual à rainha, Umbra prometeu a si
mesma que cuidaria de assuntos que envolvessem o bem-estar das crianças Solares e claro, das
Luares também, caso estivessem no vasto território da Deusa Sol.
— Infelizmente, ela não sabia como voltar, mas eu estou aqui e garanto a vocês que
tudo vai ficar bem.
— Quem é você? — Foi uma menina de cabelos crespos e loiros que perguntou.
— Eu sou a futura rainha junto a rainha Expedia.
Dizer aquilo fez o rosto da menina brilhar.
Com isso, a mutana reconheceu a esperança nos olhos grandes e expressivos da
menina.
Novamente, o sorriso se desenhou em seu rosto e, cautelosamente, estendeu a mão para
as crianças. Houve hesitação, olharam entre si, incertas de como agiriam. Um vínculo forte foi
construído entre eles e dificilmente se quebraria. Passar pelos horrores que haviam passado os
conectava, porque eles conheciam a sensação do sofrimento. Foi apenas depois de alguns
segundos que a menina entrelaçou os dedos pequenos e quase esqueléticos nos de Umbra.
O sorriso infantil e banguela era a resposta que a mutana precisava.
Finalmente, assim como Umbra, elas teriam sua segunda chance e a mutana faria
questão de prover isso a elas.
Capítulo Vinte e Seis
E assim, as amantes se amam

Não foi surpresa para nenhum dos empregados do palácio quando o humor de Expedia
mudou radicalmente ao chegar de sua viagem e não encontrar Umbra. Antes, a triunfante e
satisfeita rainha estava disposta a organizar um banquete e chamar a duquesa para oficializar o
seu papel magistral o mais rápido possível, mas tudo mudou, pois, ao chamar Umbra pelos
corredores do palácio e não obter nenhuma resposta, todos os planos pareciam arruinados.
Lucíferos tentou animá-la, trazendo garrafas de bebidas em suas mãos e embaixo dos braços,
mas após o empurrão que tomou, desistiu, e sua própria cólera resvalou, decidiu, afinal, se
embriagar em alguma taberna não tão arrumada nas ruas apertadas do reino Solares.
Foi apenas alguns minutos depois que a serva comunicou a visita surpresa de uma
mulher misteriosa e que já haviam se acumulado algumas horas desde que ambas saíram.
Dispensando a serva, Expedia ficou no salão de entrada do castelo, caminhando o perímetro dos
pilares que se erguiam formando o quadrado desnudo de paredes.
O cavaleiro da mais alta patente surgiu na sala, colocou-se o mais afastado possível da
rainha, tremendo fatalmente o seu humor palpável de calor raivoso.
— Eu quero os seus melhores homens varrendo cada canto dessa cidade — ordenou
Expedia, ao parar do lado oposto da sala, longe do cavaleiro, ela mesma sabia do perigo que o
homem se encontrava.
O guerreiro juntou os pés e colocou a mão sobre o seu peito, onde repousava uma
medalha dourada de honra e mérito com o formato do sol ardente.
— Sim, majes-
As portas do palácio abriram.
Umbra apareceu esbaforida, com os cabelos brancos curtos esvoaçados e
desorganizados. A face suja de poeira e terra indicava a adrenalina que havia acabado de passar.
Com a manga rasgada e o corte com o sangue seco em seu braço, marchava para dentro do
recinto em uma presença poderosa, que todos direcionaram a atenção. Seus olhos estavam
atentos, arregalados, vigilantes a qualquer ameaça, parecia que estava prestes a atacar qualquer
um. Em seus braços, carregava consigo uma menina desacordada de cabelos crespos, logo atrás,
Pergis surgiu de mãos dadas com duas crianças e elas seguravam as outras que estavam atrás.
Todas, sem exceção, estavam assustadas, surrupiadas e até mesmo choramingando pela
insegurança do desconhecido.
— O que está acontecendo aqui? — Expedia exigiu com a voz ligeiramente trépida
pela surpresa do que estava se desenrolando em sua frente.
— Ela precisa de cuidado — apontou Umbra, ignorando a pergunta de Expedia. —
Você! — Chamou o cavaleiro de alta patente. — Chame os empregados para ajudarem as
crianças, elas precisam de um banho, tratamento médico e comida. Coloque-as em um só quarto,
elas precisam ficar juntas. Pergis, siga o cavaleiro, um quarto também será preparado para você.
Se o cavaleiro tivesse que confirmar o pedido com Expedia, esqueceu totalmente, pois
assim que a ordem foi dada, o homem pegou a criança do colo de Umbra e todos saíram do
salão, deixando-as a sós.
— Quero que uma das empregadas anote os nomes dessas crianças e recolha as
informações necessárias para encontrarmos os pais delas — ordenou com a voz firme, sem
direcionar essa tarefa a um alguém específico, mas viu quando uma serva deu um pulinho e
desapareceu de sua frente, certamente foi atrás de um pergaminho.
A rainha ainda a encarava pasma com a atitude, seguridade e facilidade que a mutana
tivera para delegar ordens firmes e sem quaisquer espaços para dúvidas. A mulher de cabelos
brancos não havia hesitado ou trepidado nas palavras. Ela havia sido clara e concisa. Nunca tinha
encontrado aquela faceta de Umbra e, de repente, sentiu-se extremamente orgulhosa, afinal, era
aquilo que uma rainha deveria ser, mas havia algo maior nesse momento. Era além do orgulho...
era amor. Selvagem. Único. Protetivo.
Mas primeiro, precisava colocar-se em seu papel monárquico.
— Você sabe que eu preciso de uma explicação bem boa, não é? — Foi impossível
esconder o débil irritar na voz de Expedia. Mesmo querendo que Umbra fosse a sua igual,
reivindicava uma decente elucidação.
Começava a se acostumar que Umbra carregava consigo um grande poder, mas
também anexado a isso, grandes problemas.
Reuniram-se ao redor da fonte de água no centro do salão. Umbra jogou-se no sofá,
sentindo todos os seus músculos e ferimentos protestarem, enquanto Expedia colocava-se em um
dos bancos de madeira, com as pernas ligeiramente abertas e com o tronco levemente inclinado
para frente. Apoiou os cotovelos nos joelhos e esperou por uma explicação, mas antes disso,
olhou mais uma vez sua amante.
O olhar branco estava totalmente selvagem, certeiro, com um diferente calor abrasador
que Expedia nunca havia visto, retificando, via apenas quando dividiam a cama em uma noite de
amor. A rainha engoliu seco, fazia tanto tempo desde que tocou no corpo de pele quase prateada,
que sentiu sua boca secar por inteiro. Ela desejava tanto Umbra… estava pronta para enlouquecer
a mulher de desejo quando estava voltando de Luriana. Havia conseguido resolver o problema
que agravava o seu reino e depois de findá-lo, desejou comemorar, mas antes disso, ela queria
ouvir o que a mutana tinha a dizer.
Umbra tomou o seu tempo, explicando tudo com os mínimos detalhes para a rainha,
desde a aparição de Unema, até a ida na fazenda, a descoberta da prisão e a captura dos homens e
dos capangas. Explicou que a governanta de NossDomuss havia se despedido dela antes mesmo
de entrarem nas muralhas da cidade, levando consigo a menina. Pergis e Umbra ficaram com a
carroça e com os cavalos, que carregavam como cargas de sacas de milho o fazendeiro, sua
mulher e três capangas. Eles os levaram até a prisão local, onde um dos cavaleiros reconheceu o
broche que Umbra sempre carregava, demonstrando o seu nível de importância e proximidade da
rainha. Avisou a Expedia que se encarregasse da justiça, explicando que foi através de uma
denúncia anônima e da fuga de uma criança que conseguiram achar os horrores que aconteciam
naquela fazenda.
O coração de Expedia praticamente esmurrava o seu peito com as notícias que estavam
sendo praticamente arremessadas até ela, como o martelo que Umbra usou para derrubar os dois
homens. Por um lado, ansiou por ver a cena dos dois homens caindo aos pés do poder que a
mutana representava, por outro, a vontade do assassinato retumbou fortemente, queria matá-los,
fazê-los sofrer, não apenas pelo que fizeram com as crianças, mas por ameaçarem o bem-estar da
mulher que estava completamente apaixonada.
Expedia nada disse, apenas se levantou, caminhou até Umbra e se ajoelhou entre as
pernas da mutana. As mãos da rainha tomaram a liberdade de acariciar as coxas, até que o tecido
do vestido se acumulasse no centro delas. Observou com interesse e sorriu maliciosamente
quando a mesma chama abrilhantou ainda mais os olhos de Umbra. Colocou-se um pouco mais a
frente e com as mesmas mãos que acariciaram a macia pele cinza, segurou a nuca da mutana,
iniciando assim um beijo urgente, com línguas, mordidas e gemidos de prazer acumulados pelos
últimos dias.
— Estou orgulhosa de você — murmurou Expedia com a voz rouca.
O elogio solto pela sua rainha fez com o sexo de Umbra latejasse em prazer. Em
resposta, mordiscou o lábio inferior, jogando seus braços para os ombros de Expedia, trazendo-a
para cima de si. Quando os corpos se encontraram, eles friccionaram e os centros de desejo
esfregaram-se nas pernas de ambas.
O desejo tornou-se imbatível, elas poderiam resolver tudo amanhã, hoje, as duas
queriam apenas unificar aquilo que sentiam uma pela outra.
∞∞∞
As mãos procuravam os fechos e as aberturas das vestimentas, enquanto com o quadril
de Expedia batia a porta do quarto o qual começavam a dividir. Inquietas estavam as mulheres,
as bocas encontravam a pele uma da outra e degustavam as mesmas quando eram descobertas.
Umbra estava um tanto esbaforida, com a urgência de despir sua rainha o mais rápido
possível, sentia falta do corpo tonificado contra o seu, da respiração entrecortada contra a sua
orelha, consumir aquele gosto que tanto adorava. Mas as vestimentas da rainha nunca pareciam
acabar, a pobre da mutana já estava praticamente nua e ainda encontrava mais peças de roupas
em meio ao seu caminho, os intermináveis cintos que circulavam a cintura e o quadril da
guerreira e o seu bustiê pesado e justo com o intuito de proteger seu coração e pulmões. Quando
finalmente Umbra descartou a blusa vermelha escura de Expedia, seus olhos contemplaram os
seios que brotaram em sua frente. Ela sorriu maliciosamente e empurrou a guerreira pelos
ombros, deixando-a cair sentada no pé da cama. A mutana ajoelhou-se dentre as pernas
musculosas de pele arrepiada e contornada.
Expedia a olhava sob os olhos semiabertos, já carregados de prazer. Suas pernas
abriram ainda mais, expondo o seu sexo úmido e bastante latente. Sua boca também entreabriu e
um expirar quente e longo saiu de seus lábios.
Os dedos responsáveis pelas mortes de muitos acariciaram o cabelo branco como a
neve, roçou-os pelo couro cabeludo, desceu pela nuca e foi até o ombro.
Expedia tivera o leve vislumbre das costas de Umbra e pôde ver a lambida vermelha da
marca da trança do chicote que sovou a pele de sua amada.
— Umbra… — Chamou Expedia em um tom de voz vulnerável e preocupante.
A mutana beijou a parte de dentro da coxa de sua rainha, antes de olhá-la.
— Eu estou bem — garantiu em segurança. — Eu quero tanto você, Expedia.
Os lábios de Umbra beijaram a barriga da guerreira, antes de mordiscar suavemente a
pele oliva. A boca se moveu para baixo e a roçou sobre a penugem feminina e doce de sua
amante. Ao ouvir um leve arfar, a mutana depositou as dobras dos joelhos em seus ombros para
então se inclinar e colocar a cabeça para frente e, finalmente, lamber os deliciosos e suculentos
lábios.
Expedia gemeu alto, suas pálpebras tremeram, obrigando-a a fechar os olhos. Jogou a
sua cabeça para trás, apoiou uma de suas mãos na cama enquanto a outra continuou a acariciar
Umbra. Ela queria demonstrar para sua amante um pouco de carinho, mais do que ninguém, sua
maravilhosa e talvez não mais costureira merecia isso.
O beijo íntimo continuou, sem pressa, como uma verdadeira degustação. Umbra iria
venerar a rainha do Sol Maior, sentir o gosto do calor adoçando sua língua, mas também seu
queixo, suas bochechas e seu nariz. Foi apenas alguns poucos minutos depois que a mutana
escorregou a metade da falange do seu dedo para dentro de sua rainha e aquilo surtiu um efeito
bastante positivo, pois Expedia gemeu ainda mais alto. O quadril remexeu-se lentamente sobre a
cama e Umbra continuou o capricho adicional, até que sua amante chegasse ao ápice do deleite.
Umbra esbaldou-se no gozo de Expedia, aproveitando cada gota como se fosse um
néctar especial.
A rainha encontrava-se arrebatada pelo pós-clímax, com a respiração rápida, as pernas
oscilantes e o sorriso bobo de triunfo nos lábios, mas quando observou Umbra colocando-se de
pé. Os olhos castanhos quase amarelos acenderam-se em uma chama de desejo impagável. Era
quase impossível dar qualquer explicação de como o corpo nu de Umbra causava esse efeito de
euforia e excitação na guerreira. Os inúmeros motivos poderiam ser listados, primeiro, a cor de
sua pele única que só pertencia a ela, depois, a dualidade da fragilidade do corpo de Umbra,
coberto de feridas, mas também, agora tinha o conhecimento do quão poderosa era a sua amante.
Carregava a fera embaixo da pele de cicatrizes que achava delirantes. Claro, se pudesse,
arrancaria todo e qualquer ferimento daquelas cicatrizes, tiraria as dores que elas carregavam.
Mas Expedia as amava porque se recordava do quanto Umbra era valente.
Expedia levou seus braços na fina cintura de Umbra e a apertou em um abraço,
deixando sua cabeça relaxar contra a barriga. Sentiu os dedos longos massagearem suas longas
madeixas rebeldes.
— Eu prometo sempre lhe proteger — murmurou a rainha ao roçar seu nariz na pele
cinza, quase prateada.
— E eu prometo fazer o mesmo — devolveu Umbra, antes de depositar um beijo na
coroa da cabeça de sua amante.
— Eu sou uma rainha, Umbra — resmungou Expedia, em uma falso tom zangado, ao
mesmo tempo, em que apertava a bunda da mutana.
Umbra riu, apossando-se do colo de sua rainha. Colocou seus joelhos sobre o colchão,
montando nas coxas firmes que tocavam o seu sexo bastante excitado. Ela ondulou, deixando um
rastro de desejo da pele contornada por musculatura.
Desta vez, foi Expedia que riu, era bom… quer dizer, satisfatório, ver o efeito que ela
tinha em Umbra. E assim, como sua amante, tomou o seu tempo. Beijou os seios, chupou os
mamilos até senti-los túrgidos e levemente avermelhados contra a sua língua.
Umbra estava em êxtase, como sentira falta do toque da rainha. Era inacreditável como
o seu prazer escalonava desenfreadamente em um desespero de chegar ao deleite, mas ao mesmo
tempo, se atordoava com ele por uma noite inteira. Contudo, a saudade era grande, tão grande
que engolia todo o seu peito e Expedia parecia compreender isso. A sinergia de ambas e a
conexão que as duas tinham estreitavam cada vez mais.
Assim, a rainha penetrou-a com dois dedos, fácil e lânguido, e Umbra se apertou contra
o seu corpo, abraçando-a pelo pescoço. Novamente, o beijo se iniciou ao compasso do vai e vem
que o quadril da mutana e os dedos de Expedia faziam.
O som erótico do sexo de Umbra e os sons de prazer soltados por ela, deixava a rainha
ainda mais fervorosa, sua vontade aumentava, mas segurou-a um pouco, o corpo de sua amante
havia passado por altos níveis de estresse nos últimos dias. Tudo deveria ser tranquilo, gostoso,
uma memória de afeto para Umbra.
— Você é minha — disse Expedia.
— Apenas sua — concordou a mutana em um gemido estrangulado.
E foi assim, no termo possessivo, que Umbra entregou-se ao prazer final. Escondendo
o seu lindo rosto na lateral do pescoço da rainha, enquanto o seu corpo sucumbia ao clímax.
Expedia deixou seus dedos dentro do canal apertado de Umbra por mais algum tempo,
foi apenas quando ela se mexeu, que a rainha os retirou.
Levou-os a boca e provou o gosto de sua amante, pois, assim como a mutana, Expedia
também adorava o gosto do sexo de pelo cinza-escuro.
Aquela mulher incrível em cima dela pertencia a ela.
Como havia sido idiota, orgulhosa em simplesmente ter virado as costas à mulher
que… amava. Sim, ela amava Umbra e iria provar todos os dias, iria recompensá-la de seu ato
soberbo. Sua amante era incrível. Era única. Expedia queria mostrar para Umbra que sua
singularidade era maravilhosa, poderosa, quase divina. Algo que nem mesmo as crianças
perdidas (assim, era como Unema chamava os parecidos de Umbra) tinham. Todos eram felinos,
Umbra era um lobo, um tremendo e gigantesco canino, largada e explorada por sua excepcional
habilidade. Não apenas isso, tudo também indicava que ela era a filha da rainha suprema Luares.
Expedia poderia até negar Umbra por isso, pois, odiava-os, mas simplesmente não iria, não
conseguiria. Estaria até mesmo disposta a ir atrás da rainha dos Luares na busca de informações.
Era isso, estava apaixonada.
— Onde você está? — Perguntou Umbra, acariciando a têmpora da rainha, enquanto
um sorriso doce era colocado em seus lábios finos.
— Longe.
— Eu percebi… algo que queira partilhar? — Indagou a mutana novamente.
Em um primeiro momento, Expedia nada disse, apenas se organizou na cama, puxando
Umbra para si. Elas ainda iriam se banhar, mas queriam aproveitar aquele momento íntimo que
há muitas noites não partilhavam.
Umbra deitou a cabeça no peito de Expedia e seus dedos desenharam traços irregulares
pelo abdômen trincado da rainha. Ela queria fazer amor com a rainha mais uma vez, talvez
quando dividissem a grande banheira de madeira que as esperava na sala de banho, escondida na
porta atrás da mesa de madeira, onde fizeram o seu café da manhã.
— Estou pensando em tudo. — Começou a rainha, repousando o braço cuidadosamente
na cintura de Umbra, estava tomando cuidado para não acertar o corte na pele da mutana ou o
ferimento causado pelo chicote.
— Isso deve ser bastante coisa.
Expedia riu baixo.
— Como sempre, com razão — concordou Expedia. — Eu espero que as coisas se
acalmem agora, eu realmente quero passar um tempo com você. A gente se conhece ainda mais,
quero compreender e saber mais sobre o que você guarda dentro de si.
A rainha estava se referindo ao lobo.
— Desejo isso porque, para ser sincera, não sei absolutamente nada.
A tristeza nítida na voz de Umbra fez com que Expedia levantasse o rosto de sua
amante para beijá-la levemente nos lábios.
Por muito tempo, Umbra esteve conformada por não saber quem era ou qual era seu
propósito de vida. Esse sentimento luxuoso não era muito sentido por ela, quando se vivia em
uma jaula apertada, refém de amarras reais e imaginárias, sonhar não era uma possibilidade.
Bem, na realidade, era. Foi isso que ocasionou o seu escapamento, mas demorou muito tempo,
cerca de vinte e oito primaveras. Finalmente, depois de tanto tempo, ela estava vivendo, sem
mentiras ou amarrações.
— Eu sei, eu quero te ajudar com tudo, Umbra. Não estou dizendo para ser dependente
de mim, mas como eu disse, você irá tomar papéis importantes no reino. Você caminhará e
escreverá a sua história, quero estar lá para ter certeza de que isso irá acontecer. Ajudarei você a
encontrar o significado do que você representa e, claro, … — Outro beijo de Expedia foi dado —
Dentro de tudo isso, roubarei um ou dois beijos. — Completou, ao jogar uma piscadela para
Umbra.
E a mutana riu feliz.
Era claro que ela aceitaria tudo.
A esperança, mais do que nunca, era um incêndio dentro dela.
Capítulo Vinte e Sete
O varal de concreto

Os empregados da casa tentaram não perturbar a manhã tranquila que a rainha e Umbra
estavam tendo, todos, sem exceção, conheciam o humor de Expedia, mesmo aqueles que nunca
haviam convivido com ela. Era uma mulher de personalidade difícil, poderia não ser cruel, mas
por vezes, um almiscarado de rudez aparecia em sua fala ou movimento.
Foi apenas no meio da manhã que uma das servas do palácio adentrou o quarto escuro
e surpreendentemente fresco.
A mulher tentou desviar o olhar da cena em sua frente, pois o rubor crescia cada vez
mais em seu rosto.
Expedia estava deitada de barriga para cima, com os seus seios e abdômen desnudos, já
que o lençol se acumulava em seu quadril. Um de seus braços estava jogado sobre os seus olhos,
enquanto o outro segurava firmemente Umbra. Diferente da rainha, a mutana estava encolhida de
lado, ainda com o rosto apoiado no peito de Expedia, mas seus braços estavam de modo que seus
seios ficassem cobertos pela visão da empregada.
— Eu espero que você tenha interrompido o meu sono por uma razão muito boa —
resmungou uma sonolenta Expedia, ainda com os olhos cobertos pelo braço.
A serva deu um leve pulo para trás e colocou a mão sobre o seu coração e a outra
espalmada para frente, cobrindo de sua visão os corpos das mulheres deitadas na cama.
Curvando-se exageradamente, a empregada manteve os olhos arregalados no chão.
— Perdoe-me, majestade — disse em sussurro um pouco desesperado. — Não queria
interromper-
— Mas já que está interrompendo, o que deseja?
Desta vez, Expedia retirou o braço de cima dos olhos, levantou-se um pouco,
colocando as suas costas apoiadas na cabeceira da cama. Continuou desnuda, entretanto, cobriu
todo o corpo de Umbra, que agora se aconchegava contra a sua barriga.
— A Duquesa já está presente, minha rainha.
— Ahhh, ótimo... — cantou em um tom arrastado. — Mande-a para o salão de
reuniões, há muito o que se falar.
A empregada se endireitou, mas virou a sua cabeça para o lado, evitando qualquer tipo
de interação visual.
— Apronte um café da manhã para Umbra e leve o meu para o salão de reunião.
Dispensada.
A velocidade que a serva saiu do quarto fizera Expedia rir, porém conteve-se para não
acordar a mutana, entretanto, não pareceu adiantar muito, pois logo ouviu a voz melódica chegar
aos seus ouvidos.
— Qualquer dia desses você vai matar uma de suas empregadas.
A fala foi finalizada com uma mordiscada na barriga definida, causando uma risada
ainda mais gostosa em Expedia.

∞∞∞
Eram raras as ocasiões em que Expedia usava um vestido, mas havia dias que ela
gostava de sentir o material macio contra o seu corpo. Então, ali estava ela, andando pelos
corredores desprovidos de paredes e sustentados por pilastras.
O vestido contornava seu corpo quase como uma segunda pele, o que fazia a
musculatura do seu braço ser ainda mais vista do que normalmente quando usava a sua
armadura.
O encontro da duquesa ocorreu sem qualquer perturbação, ambas se sentaram uma de
frente para outra, desfrutando um delicioso café da manhã, enquanto debatiam sobre o futuro de
Serenas, as vontades de renovação que a nova monarca apresentava, e que Expedia tinha de
admitir que eram muitas boas. A rainha partilhou o acontecimento da noite anterior, obviamente,
desenhando a situação para que Unema não fosse descoberta.
A duquesa prometeu que aquele caso seria sua prioridade total.
Expedia poderia voltar para os seus afazeres e, assim, arrumar todos os seus
mantimentos para seguirem em caravana para Serenas, mas a rainha gostou da presença da
duquesa.
A mulher de sessenta e três primaveras era alta, muito alta, com pernas tão longas que
parecia ter dificuldade de dobrá-las no sofá onde estava sentada. Seu cabelo longo, preso em
milhares de pequenas tranças, era predominantemente branco, mas alguns fios azuis-escuros
insistiam em aparecer. Seus olhos eram profundos e cada íris continha uma cor, sendo elas cinza
e amarela. Seu nariz era pontudo e seus lábios desenhados e levemente cheios. A pintura de cor
negra pintada em suas pálpebras e os símbolos de runas de proteção da Deusa do Sol,
desenhados em sua bochecha esquerda, traziam um ar de magnetismo que Expedia poderia talvez
compará-la a Unema.
Por fim, a reunião durou toda a manhã, adentrando assim o começo da tarde. Nesse
tempo inteiro que ali estiveram, foram interrompidas apenas uma vez. Um servo adentrou a sala,
comunicando que Umbra havia saído junto a Pergis para comprar alguns mantimentos para a
cura das crianças. Aparentemente, todas elas estavam fora de perigo, mas o cuidado tinha que
continuar e, ao ouvir isso, a duquesa de Serenas garantiu que elas ficariam no palácio até que
todas estivessem curadas e que seus pais ou tutores fossem encontrados. Aqueles que não
tivessem ou morassem em uma casa que apresentasse perigo iriam ser remanejados para pessoas
responsáveis.
Expedia gostou de ouvir isso, acreditava fielmente que Serenas finalmente teria uma
líder de importância e à altura do reino dos Solares.

∞∞∞
Foi apenas no meio da tarde que Expedia encontrou Umbra.
Sua amante estava empoleirada em uma das camas dos aposentos de visitas com os pés
esticados, escondidos dentro do cobertor, Umbra se apoiava na cabeceira da cama, na parede à
esquerda da entrada do quarto. Segurava em suas mãos um livro grande de couro vermelho e
ilustrações de brasões seguindo todas as bordas. Lia em voz alta o que tinha no conteúdo com
entonações diferentes, enquanto as crianças da noite passada cercavam-na com olhares
sonhadores. Exceto a menina que viera em seu colo ontem, que estava sendo tratada por Pergis
na cama da parede do outro lado da porta, já que em oposição a ela, um armário robusto e duas
janelas de tamanhos médios fechavam a composição do quarto bastante simples.
Expedia não quis interromper as aventuras da princesa que estava disposta a ir ao
submundo salvar o seu namorado bardo. Então, direcionou-se para Pergis, que terminava de
trocar a faixa da testa da menina.
— E como ela está? — Perguntou a rainha em tom baixo, enquanto se colocava em pé,
no final da cama.
Pergis descartou a faixa suja de emplastro, ervas e sangue seco em um balde de
madeira e voltou a sua atenção para a menina.
— Ela vai sobreviver, a pobrezinha estava desnutrida e bastante ferida. Mas não é ela
que me preocupa e sim a criança que aquela mulher levou. Ela, sim, estava mal — disse com
pesar, ao soltar um som de descontentamento na garganta.
— A menina vai sobreviver, aquela mulher que estava com vocês, é fantástica. Mas
que por falar nisso…
— Eu sei, Umbra me pediu que caso me perguntassem alguma coisa, a denúncia iria
ser anônima. Resolvi até mesmo apelidar ela… A mulher mascarada. — Pergis se levantou da
cama, retirou um frasco pequeno de seu cinto e jogou em sua mão, colocou-o de volta no lugar e
esfregou as palmas das mãos, higienizando-a. — Eu gostaria de lhe pedir algo, majestade. — O
homem se colocou frente a frente com a rainha.
— Vá em frente.
— Eu gostaria de acompanhá-las até Estrelares.
Expedia levantou uma de suas sobrancelhas, cruzando os braços, repuxando o tecido do
vestido vermelho-escuro, uma tentativa de acanhar o homem.
— Eu… hmmm… Sempre estive em Serenas e nos vilarejos a sua volta, mas nunca
cheguei a ir à Capital. Eu sei o quanto ela é grande e sei o quanto posso aprender mais. Eu
gostaria de poder ir com vocês.
A rainha continuou a fitá-lo, admirando-o pelo desafio de perguntar isso para ela.
Expedia sorriu por dentro, mas continuou com a sua postura. Seus olhos se desviaram por alguns
instantes, encontrando rapidamente com os de Umbra, que folheava a próxima página da
princesa corajosa. Expedia jogou uma piscadela e recebeu um sorriso. Quando piscou, a rainha já
mirava o homem de peito estufado e mãos ligadas sobre o cinto cheio de bugigangas.
Talvez seria bom tê-lo próximo, transformá-lo em um assistente do curandeiro
principal de Estrelares. Pergis parecia ser um homem com suas trinta e cinco primaveras, mas na
arte da cura isso não era absolutamente nada comparado a, de repente, a de um guerreiro, pois
todos os dias uma erva, uma mistura, um elemento eram descobertos. Sabia disso, porque os
Luares eram os melhores e mesmo os detestando, os estudos deles eram bastante usados pelos
seus próprios curandeiros. Havia outros reinos distantes além do continente que dividia com os
Luares e as suas ilhas, mas quando se tratava de descobertas, os desgraçados eram os melhores.
Era frustrante depender deles, mas Expedia começava a investir em campos de estudos e os
soberanos em aprendizagem estavam em Estrelares. Talvez Pergis pudesse ser de bom uso.
— Sairemos amanhã cedo. No primeiro despertar do dia. Esteja pronto na porta do
palácio — ordenava Expedia, como se estivesse falando com um cavaleiro.
O mais engraçado foi que Pergis agiu como um, levou a mão no peito e se curvou
levemente em sinal de total respeito.

∞∞∞
Na manhã seguinte, Pergis estava na frente do portão com a caravana pronta. Três
vagões estavam montados, prontos para partirem, sendo um deles apenas com livros, tecidos e
objetos que Umbra achou interessante quando ambas visitaram a feira noturna nas apertadas ruas
de Serenas. A noite fresca e as tochas distribuídas pelas marquises das casas e estabelecimentos
formavam um corredor de cascalhos brilhantes e que se abriam para um espaço perto do pequeno
píer que desembocava no rio. Um lugar visitado até pouco tempo por Expedia, quando Feneros
apresentou o estado da situação das águas que cortavam a cidade.
Serenas estava animada naquela noite, músicos tocavam e cantavam no centro da feira,
enquanto crianças e adultos zanzavam pelo espaço. Umbra estava feliz, puxando a sua rainha de
um lado para o outro, mostrando as belezas da cultura local. Seus olhos brancos brilhavam
revelando a calma que eles sempre tiveram, mas desta vez, Expedia tinha a impressão de que
Umbra estava inteiramente ali, o seu segredo descoberto limpou a névoa do olhar da mutana,
algo que a rainha nunca sequer tinha percebido, não até agora. Então, como prometeu a si
mesma, sua prioridade era fazer Umbra feliz, passaria toda a noite se fosse preciso naquela
feirinha, observando a genuína e quase inocente expressão de deleite de sua amante. Não muito
longe dali, Lucíferos se esbaldava no maior bar da cidade em uma cantoria desafinada com
companheiros desconhecidos de bebidas. Hoje, ele estava praticamente desmaiado sobre o
cavalo.
— Espero que tenham uma ótima viagem de regresso, minha rainha — desejou a
duquesa respeitosamente, em frente aos grandes portões da cidade cercada.
Expedia a olhou de cima do seu cavalo, já vestida com botas pretas de joelheiras de
metal, calças marrons-escuras, uma blusa cinza com uma grossa faixa de couro protegendo
totalmente seu abdômen e uma brigantina preta curta, que acabava logo após os seios, com
detalhes em vermelho, assemelhando-se a uma rede de pesca. A bainha de sua espada estava
amarrada na faixa de proteção, assim como um coldre de água.
— Obrigada, duquesa. Aguardo seus relatórios com os avanços da cidade. — A rainha
falou.
A nova monarca assentiu com a cabeça.
A caravana saiu com três guardas em sua dianteira, outros três em sua traseira, Pergis
estava entre os dois primeiros vagões e Umbra e Expedia entre o segundo e o terceiro. Lucíferos
não se juntaria a eles, passaria um tempo visitando cidades e vilarejos, coletando informações
úteis para Expedia. Abatedores e diplomatas serviam para isso e Lucíferos era um pouco dos
dois. Alguns duques da velha guarda tinham a tendência de esconder certos assuntos e
pendências da rainha, como acontecera com o duque de Serenas e, francamente, Expedia não
queria que isso acontecesse novamente. Era de fato primordial que ela obtivesse informações
extras, assim não receberia mais surpresas e poderia, antecipadamente, lidar com as
adversidades.
Em um galope constante, os cavalos batiam as ferraduras recém-trocadas contra o
caminho de terra batida e as grandes rodas de madeira com pontas de ferro em toda a sua
superfície, rodavam quase que preguiçosamente nas mundanas paisagens do território dos
Solares.
Algumas horas mais tarde, Expedia decidiu parar ao lado de uma guarita Solariana, que
ficava localizada na beira da estrada, embaixo de grandes árvores que proporcionavam uma
excelente e bem oportuna sombra. Ao lado da guarita havia também um posto de cartas, que
ficava um domador de Goldina, os pássaros que eram usados como mensageiros do reino dos
Solares. Ali, elas poderiam descansar, caso a viagem fosse longa. Era uma casa larga e longa,
com um viveiro alto cercado por arames acoplando uma árvore dentro do perímetro. Nem todas
as Goldinas ficavam ali, apenas as feridas ou os filhotes que ainda estavam em treinamento. As
outras entravam ou saíam da casa de janelas longas, ou descansavam nas árvores ao redor da
guarita e da estrutura para atendê-las. O treinador e os quatro guardas que estavam ali sempre
cuidavam delas. Aves extremamente inteligentes e altamente domesticadas, por não serem
predadoras, compreendiam que os humanos lhe davam proteção, comida e abrigo, além de afago,
algo que Goldinas gostavam, em troca, elas trabalhavam como mensageiras.
Expedia e Umbra sentaram-se lado a lado em cadeiras simples tiradas dentro de um dos
vagões. Recostaram-se contra a parede da casa de cor amarela viva, a rainha estava afogando-se
no odre de água e aberto sobre suas coxas, um tecido cinza continha dois pães com geleia de
pimenta e queijo. Já a mutana carregava consigo algumas frutinhas em uma cesta quadrada e isso
chamou a atenção das Goldinas que ali estavam.
— Expedia? — chamou Umbra, enquanto continuava a acariciar o pássaro.
— Hmm? — respondeu, ao virar a cabeça recostada na parede da casa, em direção a
sua amante.
— Você acha que um dia, os Luares e os Solares poderão conviver em paz?
— Você está me perguntando isso como rainha ou como a sua amante? — Expedia
devolveu a pergunta, ao repartir um pedaço do pão e jogar para dentro da boca.
— Acho que os dois.
— Não acredito. Nossa dependência pelos conflitos é tão intrínseca quanto nossa
dependência da sobrevivência. Por algumas vezes, tivemos períodos de guerra. A última foi há
cerca de trinta anos, não me lembro ao certo, mas sei que foi algo devastador. Eu tinha apenas
algumas primaveras, mas meu pai me contava e anos depois eu conseguia enxergar o efeito dela.
Para que a guerra não mais existisse, alguém iria ter que ceder mais e, sinceramente, ninguém
está disposto a isso.
— Mas, e os outros reinos, os outros continentes?
— Nós somos isolados de tudo e, bom, nossos problemas não são os outros reinos. Eles
são pequenos e distantes. Os Deuses deles são pequenos, A Deusa Lua e a Deusa Sol são as
regentes principais. E ninguém quer se encorajar ou se meter no conflito que nos regem por
séculos, apoiar um de nós poderia ser o fim deles. Por serem consideravelmente menores.
— Entendo. — Umbra disse com certo pesar.
— Eu mesma não sei se gostaria da trégua, perder aquilo que eu conheço, a minha
cultura, inserir outra… Eu não os respeito o suficiente. Eles mataram os meus pais, escravizam
seu próprio povo e toda oportunidade que têm, tentam infligir o meu reino.
— Nem todos do reino dos Luares são ruins, Expedia.
— Mas todos são criados para nos odiar.
— Assim como vocês a eles — disse Umbra em um tom calmo, ao oferecer uma uva
rosada para a Goldina.
Expedia apenas a olhou, antes de assentir.
Interrompidas por Pergis, a conversa cessou.
— É verdade que vamos passar por Vinamar?! — Indagou animado, ao se sentar no
chão de frente para as duas mulheres.
Pergis usava um chapéu vermelho redondo de aba redonda estupidamente imensa, era
adornado em sua borda por pequenas fitas brancas, reproduzindo uma cortina em volta de toda a
sua cabeça. A brisa balançava as fitas como cabelos ao vento. Em suas mãos, sua cimitarra
cortava um pedaço de pêra e sua mochila servia como um encosto para a sua coluna.
— Iremos — respondeu Expedia.
Ela fechou o tecido em cima do segundo pão e o tirou de sua coxa para apoiar o
calcanhar direito sobre o joelho esquerdo.
— Eu fui apenas uma vez lá e é uma cidade como eu nunca vi na vida — comentou
Pergis animado
— Concordo, podemos encontrar algum local bom para comermos, o que acha? —
ofereceu Umbra.
A rainha abismou-se com tal oferta, não apenas isso, mas o fato de sua amante
verbalizar um desejo, que para ela era corriqueiro e simples, mas tinha o total conhecimento de
que para Umbra era novo. Pedir algo que tinha vontade era algo que a mutana ainda estava
aprendendo.
— Claro! — Respondeu Expedia com animação genuína, para logo depois roçar os
dedos na nuca nua de Umbra. — Mas ficaremos lá apenas um dia, sinceramente, não vejo a hora
de voltar para casa.
— Eu também sinto falta do palácio, de Liriana e Nimala.
Expedia soltou um riso alto, cruzando os braços embaixo do peito e assentiu, antes de
puxar os lábios para baixo.
— Eu também estou sentindo falta daquela velha desgraçada — admitiu a rainha.
Nimala era a única Luares que Expedia respeitava, ousava dizer até mesmo que gostava
dela, mas isso nunca sairia de sua boca, imagine só se sua cuidadora de infância ouvisse tal coisa.
— Aposto que ela irá te mimar com todos os seus pratos preferidos. — Umbra
provocou, ao balançar as duas sobrancelhas para cima e para baixo.
Um movimento que pegou Expedia desprevenida fazendo-a rir. Era bom ver sua
amante sem segredos, totalmente livre. Ela estava amando aquela Umbra.

∞∞∞
Vinamar era única, a cidade que ascendia nas paredes da montanha e em seu interior,
onde as estruturas de casas e edificações eram abraçadas pelas pedras e rochas, ligadas entre si
por escadas longas. Eram espaços que começavam ao pé da única estrada da cidade e seguiam
até o topo, encontrando lá, o palácio de mármore, cristais e pedras. As duas montanhas
interligavam-se por pontes de pedras formando um verdadeiro varal de concreto, nos quais as
pessoas perambulavam de um lado para o outro seguindo as suas vidas. No solo, entre as duas
massivas montanhas, a única rua servia quase que inteiramente para a passagem de pessoas,
postos de guardas e túneis que se conectavam aos níveis abaixo do solo. As pessoas ali eram
pálidas, pois quase sempre viviam como mineradoras. Suas vidas se estabeleciam nas rochas.
Umbra estava deslumbrada, pois, pela primeira vez, pôde explorar Vinamar. Expedia,
mesmo cansada, a acompanhou, e Pergis também, uma ótima companhia era o homem,
engraçado, jovial, fazia-lhe lembrar Victorie, o único amigo que tivera durante a sua vida no
circo. Foi naquela cidade em que Umbra tomou mais vinhos do que um dia pudera tomar,
dançou, riu e embriagada, após um verdadeiro banquete em dos salões de refeições da cidade, a
mutana também surpreendeu Expedia na cama dos aposentos de visitas no palácio de pedra e
cristais. Fizeram amor pela madrugada inteira, cansaram-se apenas porque Expedia já sentia
aquela prazerosa dor entre as pernas e suas costas lanhadas pelas unhas curtas de sua amante.
Ainda que a visita à cidade tenha sido rápida, a parada em Vinamar foi essencial para a rainha,
ao menos, para o seu divertimento pessoal. Sendo uma cidade pequena, não havia muitos
afazeres, era um povoado pequeno que se alimentava de viajantes que passavam por ali. Foi um
dos primordiais motivos para depois da refeição afogaram-se nos corpos uma da outra.

∞∞∞
Era bom estar em casa.
Era esse o sentimento primordial que Expedia tinha ao sentir a brisa marítima em seu
rosto, enquanto atravessava em um galope preguiçoso a grande ponte que ligava o castelo
apoiado no rochedo e a capital dos Solares.
Quando chegou ao jardim da frente, à frente das portas de sua morada, alguns
conselheiros, guardas, servos e Nimala as esperavam, quase em uma fileira lateral. A sua antiga
cuidadora infantil estava um passo avante do restante das pessoas.
Ao descerem dos cavalos, Expedia cumprimentou primeiramente seus conselheiros e
capturou com o olhar periférico, Umbra envolver seus braços nos ombros de Nimala, à procura
de um afeto maternal. Apressando suas cortesias com os monarcas, a rainha virou-se para a velha
que teimava em gostar e, com um sorrisinho de lado, junto a um cruzar dos braços sob os seios,
Expedia proferiu:
— Como foi a minha ausência? Não colocou fogo em nada, não é?
— Melhor impossível, minha dor de cabeça se reduziu consideravelmente. É
inacreditável como você pode fazer tanto barulho, sendo apenas uma pessoa num lugar tão
imenso — respondeu à velha.
— Oras… Cale a boca. — Expedia praticamente rosnou para Nimala, mas não poderia
negar que gostava dessa mulher.
— Mas senti sua falta, majestade. — A velha Luares voltou a dizer, ao se curvar
levemente em sinal de submissão perante a rainha.
— Expedia nunca admitiria isso, mas ela também — comentou Umbra em um tom
casual.
A rainha arregalou os olhos e percebeu que os conselheiros olhavam o estranho
entrosamento, principalmente, a intimidade de provocações que acontecia entre uma Solares e
uma Luares.
— Bem, seja como for, vos apresento Pergis. — Expedia mudou de assunto, puxando o
curandeiro pela alça da mochila. O corpo do homem foi projetado para trás e quase caiu. — Ele
estará aqui para aprender mais sobre a arte da cura.
Pergis estava ao seu lado agora, sentindo os tapas firmes em seu ombro esquerdo. Ele
se encolheu, oferecendo um sorriso pequeno nos lábios, infelizmente, ninguém viu tal gesto,
graças ao seu chapéu imenso e ao seu varal de fitas.
Os servos esvaziaram os vagões em uma fileira organizada, carregando os objetos para
uma entrada lateral do castelo. Expedia, por outro lado, continuou na entrada de sua morada,
ouvindo alguns rápidos comentários e informações urgentes de seus conselheiros. Prometeu-os
que ainda hoje iriam se reunir. Tudo o que pedia era um descanso, sua bunda estava doendo pelo
excesso de montaria que tivera nesses últimos dias. Hmm… talvez uma massagem das belas
mãos de Umbra. Isso! Definitivamente, essa seria a melhor coisa. Entretanto, quando os
conselheiros se dispersaram, reparou que Nimala ainda estava com Umbra e, mais uma vez,
colocou-se a se intrometer na conversa das duas.
— Depois, preciso falar com você. — A rainha foi direta com a voz dura que quase
sempre direcionava para os súditos.
— Eu sei.
— Então, você já sabe que eu sei de tudo…
— Assim que coloquei os meus olhos em você e, francamente, o que você fez com a
pobrezinha… — Censurou Nimala, negando com a cabeça, na clara de decepção de mais uma
vez ver a rainha falhar.
— Tsk…
Era claro que a velha saberia de tudo, a habilidade dela era incrível, invejável, por
assim dizer.
— E pode deixar que os segredos descobertos estarão guardados comigo.
O mistério que cercava a voz de Nimala era um tanto quanto impressionante, Umbra e
Expedia sabiam exatamente do que ela estava falando. NossDomuss estaria seguro na mente da
velha que criou a rainha.
— Apenas fico feliz em saber que, apesar dos percalços, vocês permaneceram juntas.
Eu sei que minha opinião não vale muito, minha rainha, mas realmente fico contente. — Nimala
voltou a dizer, antes de juntar as mãos à frente do corpo e, pela segunda vez, inclinar-se para
frente, fazendo uma leve reverência à majestade.
Expedia poderia até dizer algo espinhoso para Nimala, provocá-la, mas por alguma
razão, gostou de saber da aprovação da velha que passou sua infância inteira junto a ela, até
mesmo mais do que a própria mãe, que parecia detestá-la, e o pai, devido às tarefas pedidas ao
rei.
— Obrigada — resumiu a rainha, quase envergonhada, mas em um tom sincero.
As duas se olharam e sorrisos tímidos foram trocados. Logo após, Nimala despediu-se,
alegando ter de ajudar as outras servas a colocarem todas as coisas da viagem de volta aos seus
devidos lugares, pois sem ela, as meninas nunca terminariam o trabalho.
Expedia gostava de Nimala, principalmente pelo seu jeito ranzinza, mas também
estranhamente carinhoso.
— Não sei quanto a você, mas eu estou cansada para cacete! — A rainha resmungou,
ao esticar os braços para cima e depois mexer a cabeça de um lado para o outro.
O estalo foi grande.
— Um banho seria ótimo, perfeito. Meus pés estão me matando. — Umbra reclamou,
enquanto abraçava sob a capa, o braço esquerdo de Expedia. Sentiu o seu músculo e a leve
camada de suor.
— Então vamos… A partir de hoje, você irá dormir em meu quarto… quero dizer, em
nosso quarto.
Expedia a puxou para dentro do castelo.
Umbra estava… pasma, não sabia se esse seria o termo certo, mas enquanto andava
pelos corredores e habitações do imenso castelo, ao lado de sua amante, seu coração batia quase
que dolorosamente contra o peito. Seria a primeira vez que teria a oportunidade de entrar no
quarto da rainha. De repente, aquilo pareceu ser uma grande responsabilidade para ela. Seu
relacionamento estava realmente tomando outro patamar, algo totalmente novo para a mutana.
— Está tudo bem se você não estiver pronta ainda — disse Expedia, ao parar no
corredor que seguia para o seu quarto, que ficava ao final dele.
Umbra colocou suas mãos nas bochechas da rainha e o seu polegar direito acariciou a
maçã do rosto que tanto adorava. Ela sorriu de forma graciosa, antes de se inclinar para frente e
beijar os lábios cheios da monarca.
O delicado tocar das bocas fez os corpos relaxarem após os dias cansativos de viagem.
Não apenas a viagem, mas tudo o que ambas haviam passado. Elas eram novas mulheres agora,
guardavam e dividiam segredos e juras. A divisão do quarto parecia mais um passo natural para
o enlace cada vez mais poderoso que as duas estavam tendo.
— Eu não poderia estar mais feliz com isso.
Capítulo Vinte e Oito
Os laços de Umbra

— Já estou descendo!!! — O esgoelar de Liriana foi dado assim que ouviu a porta da
frente de sua loja bater.
Ela estava no fundo do mezanino, arrumando o armário robusto e azul que havia
comprado há alguns dias. Apoiada na parede, ao lado da janela redonda, as prateleiras estavam
organizadas em três níveis e Liriana organizava alguns objetos para estoque. Graças a visita da
rainha em sua loja, a comerciante encomendou diferentes alfinetes, tecidos, agulhas de tricô e
outros inúmeros objetos e materiais que saíam com certa frequência porta a fora.
— Se estiver muito ocupada, posso voltar mais tarde.
E assim que Liriana ouviu a voz Umbra, não esperou mais tempo, correu para o
parapeito do mezanino e se debruçou sobre ele. Com um sorriso feliz, acenou para amiga e
pronunciou com felicidade:
— Eu não acredito que você voltou!!!
A mutana sorriu de volta e aumentou o sorriso ainda mais quando observou sua amiga
se virar e correr escada abaixo em sua direção.
Umbra mal conseguiu retirar a túnica azul-escuro que usava devido à camada fina de
chuva que caía num dia quente na capital dos Solares, pois Liriana a reuniu fortemente em seus
braços, enquanto Umbra foi um pouco mais delicada. Era um abraço bom, tinha que admitir, um
gesto de saudade. Ainda estava aprendendo a ser tocada de forma carinhosa, era um pouco
insólita, a única pessoa que conseguia relaxar completamente era Expedia, mas isso certamente
não era uma novidade. Ela gostava da presença de sua nova amiga, assim como gostava da
presença de Unema e Nimala. Claro que cada mulher arrancava sensações diferentes de seu
âmago, mas apreciava a presença de todas, cada uma pelo seu motivo diferente.
— Talvez pudéssemos tomar um chá, o que acha? — ofereceu Umbra um tanto incerta.
Acostumava-se a pedir suas vontades.
— Claro! Mas é claro! — Liriana se afastou rapidamente para trancar a porta da frente
da loja e fechar as cortinas da vitrine, pronto, assim ninguém as perturbaria. — Quero que me
conte absolutamente tudo da viagem! — Voltou e pegou o braço de sua amiga, carregando-a para
o mezanino.
— Eu vou contar! Foi bastante desafiador, com altos e baixos, se assim posso falar.
— Voltou inspirada para fazer novas roupas para a sua rainha? — Liriana a provocou
ligeiramente, cutucando-a com a ponta do dedo na lateral da barriga.
Umbra se retorceu, soltando um engasgo na garganta.
— Por enquanto, serei a costureira pessoal da rainha.
— Por enquanto?
A mutana se sentou.
— Sim, quero dizer, Expedia quer que eu tome papéis mais importantes no reino-
— Espera, espera, espera! — Liriana colocou as mãos espalmadas em direção de
Umbra, no intuito de fazê-la parar de falar. — Aguenta três minutos, já volto — disse ela se
virando e desaparecendo na porta lateral do mezanino.
E foi exatamente o tempo que ela tomou.
Liriana voltou com uma bandeja de madeira e depositou-a em cima da mesa simples e
redonda. Sua amiga colocou o bule, as xícaras, e os pequenos e delicados biscoitinhos sobre a
superfície dela. Colocou a bandeja em cima de uma das prateleiras que ainda mantinha a porta
aberta e sentou-se na frente de sua amiga.
— Eu queria ter vindo antes, mas desde que nós chegamos, Expedia não parou e eu…
Bem, nesses últimos dias tenho me empenhado em não apenas ser a costureira pessoal dela. Ela
tem me dado espaço para atuar como uma representante da coroa.
— Olha, isso está sério mesmo.
Umbra balançou a cabeça positivamente, enquanto despejava o chá nas xícaras.
Segurava o bule e seus dedos pressionaram a tampa para que ela não caísse ou o líquido ali
dentro não derramasse em demasia.
— Sim, e eu quero essa seriedade. Eu estava me afundando em alguns documentos do
reino, principalmente nos grandes centros e é inacreditável a quantidade de crianças órfãs que
existe no reino Solares.
— É uma pena mesmo.
— Ao mesmo tempo, li a quantidade de pessoas que querem ter um filho, mas há uma
grande desorganização para fazer essa ponte, sem contar que não há uma preocupação com essas
crianças. Se elas irão ser abusadas, maltratadas ou até mesmo bem tratadas. Sem contar que
existem crianças Luares nestes orfanatos. Eu queria devolvê-las para o reino delas, ou então,
encontrar Solareanos que possam estar dispostos a adotá-las.
— Isso será bastante difícil, diria que quase impossível — disse Liriana com
pessimismo. — Acho nobre o que está fazendo, de verdade.
Umbra comeu um pouco dos pequenos biscoitinhos doces em formas geométricas
distintas e os pressionou no céu da boca, quando percebeu que eles derretiam um pouco. Não era
um doce enjoativo, era o ideal para o café da tarde com uma amiga.
— Mas — continuou a sua amiga comerciante. —, eu acho uma ideia fantástica. Até
pouco tempo era um pouco comum ver crianças trabalhando nas tabernas ou em trabalhos onde o
manuseio precisava ser delicado. A rainha Expedia mudou isso, mas infelizmente, não há como
mudar tudo, ao menos não ela sozinha. O reino é próspero, tem os seus inúmeros defeitos, mas
ela tenta. — Terminou a sua fala, ao dobrar uma das mangas de sua blusa de botões, escondida
por um colete de corte formidável. Liriana pegou a xícara ignorando a alça recurvada dela e
bebeu o líquido morno. — Acho que você será uma boa adição para o reino e o que eu puder
ajudar, poderia me voluntariar às vezes.
— Eu iria adorar. — Umbra abriu um sorriso. — Será nossa fornecedora principal de
tecidos para confeccionar as roupas das crianças. — Eu só espero que tudo dê certo e,
principalmente, que Expedia aceite. — A incerteza povoou a sua mente, fazendo-a retrair
levemente contra o encosto da cadeira.
Odiava se sentir vulnerável, ainda que confiasse em Liriana… Era estranho tal
sentimento nascer tão rápido, afinal, analisando tudo o que viveu hoje, tirou a conclusão de que
sua confiança viera antes em Liriana e depois em Expedia. Sim, ela ainda escondia o seu segredo
para a comerciante, mas Umbra simpatizava muito com a mulher.
— Mas me diz, eu quero saber da viagem. Houve alguns rumores de ladrões no
caminho de vocês.
— Sim… é… — Umbra mentiu. — Fico contente que tudo tenha terminado bem. A
viagem foi bastante importante, foi graças a ela que consegui pensar nessa otimização do sistema
de adoção. Aconteceu algo terrível em Vinamar e isso me fez pensar sobre crianças
negligenciadas por aí. Eu não tive uma infância fácil e, francamente, não desejo que outra
criança passe por isso. Ainda que eu não seja maternal, eu quero poder ajudar, entende?
— Você não precisa querer ser mãe para sentir vontade de ajudar uma criança. —
Liriana apontou, antes de tomar um pouco mais do chá que havia servido para ambas. Achou-o
levemente amargo, por isso arriscou-se a colocar alguns pequenos cubinhos de açúcar para
adocicar a sua vida. — Nos escritos da Deusa da Lua, que os Solares não ouçam, dizia que as
crianças de um reino eram mais importantes do que o próprio rei ou a rainha. Pois, seriam eles
que sempre carregariam o conhecimento e o legado para frente. — Dividia o seu saber, enquanto
mexia a colher dentro da xícara de chá.
— Bastante sábia, pois concordo com ela.
— Que a rainha não te ouça falando isso.
— E você? O que aprontou em minha ausência? — Perguntou Umbra, antes de comer
mais um biscoitinho.
Eles eram viciantes, tinha que admitir. Certamente, terminaria com eles antes de
terminar o seu chá.
Liriana sorriu constrangida, desviando o olhar de sua amiga e em sinal de nervosismo,
afundou algumas agulhas na pulseira de almofada que tinha em volta do punho.
— Ah, nada de mais, na realidade-
— LIRIANA, ABRA ESSA PORTA! — A voz grossa do homem ressoou fora do
estabelecimento, junto com batidas furiosas na porta que sacudiram o vidro da vitrine.
— Foi essa a minha distração — murmurou Liriana, ao esconder os olhos com as
mãos.
— Apostas?
Assentiu, ao esfregar o rosto com as mãos. Seus olhos começaram a encher-se de
lágrimas de desalento. Estava envergonhada.
— Antigas, eu não estou fazendo mais isso, mas ele é um antigo cobrador que veio
para a cidade. Eu… sinto muito.
Liriana ainda se recusava a encarar a sua amiga. Mais uma pessoa iria se afastar dela,
tudo por causa do seu antigo vício. Ela precisava de um amigo e agora, tudo estava
desmoronando em sua frente. Porém, seus olhos voltaram-se para cima, quando ouviu o barulho
da cadeira se arrastar contra o chão de madeira.
— O que você está fazendo?! — O desespero na voz de Liriana foi sentido pelo seu
corpo, que se levantou em supetão para seguir Umbra, que já começava a descer as escadas.
— ABRA ESSA PORTA, SUA VAGABUNDA! — Vociferou o homem.
— Eu vou resolver esse empecilho — respondeu Umbra com seriedade.
Mesmo Liriana tentando impedi-la, segurá-la pelo braço não fazia qualquer efeito. A
mulher era surpreendentemente forte.
— Não faça isso, Umbra. Por favor! Eu–... Olha, eu posso resolver o meu problema.
Umbra parou em meio ao estabelecimento e Liriana chocou o seu corpo contra o da
mutana pela ação repentina.
— Você é a minha amiga. — Umbra disse, ao virar sua cabeça e sorrir. — E eu sei me
defender, já lidei com homens irritados por diversas vezes na minha vida.
A mutana retomou os seus passos firmes em direção à porta, enquanto Liriana ficou
para trás, estatelada pela fala de sua amiga. Quando Umbra destrancou a porta com a chave
gelada de metal e a abriu, um homem de estatura média, forte e olhos púrpuros de raiva a
encarou. Ele tomou um passo para dentro da loja, mas a mutana agiu ainda mais rápido,
repousando sua mão ao centro do peito do homem, fazendo força contra ele.
Sem conseguir adentrar a loja de Liriana, o homem acumulou ainda mais cólera dentro
de si. Agarrou o pulso da mutana e o apertou com mais força do que o necessário, retirando a
mão de seu peito.
— Meu problema não é com você, garota. Sugiro que saia da frente. — O tom baixo e
ameaçador não afligiu Umbra, mas não poderia dizer o mesmo sobre Liriana, que juntou os
ombros perto das orelhas, em um claro sinal de temor.
— Umbra, eu-
A comerciante tentou proferir algo, mas a mutana a cortou.
— E eu sugiro que você se acalme.
O homem riu em desdém, ignorando completamente a presença da mutana.
Novamente, tentou entrar na loja, mas por mais uma vez, foi impedido por uma Umbra.
— Você está brincando com fogo. — E o homem a empurrou no peito.
Umbra sentiu o impacto e seu corpo foi para trás, entretanto, conseguiu se manter em
pé, apenas dando alguns passos para trás. Ela olhou para ele, em uma falsa calma de frieza, já
que por dentro a fera começava a se mexer, querendo mais do que nunca experimentar a carne
daquele ser asqueroso.
— Podemos resolver isso pacificamente. — Umbra ofereceu, ao ligar as mãos em
frente ao corpo.
Já dentro da loja, o homem pareceu ganhar ainda mais poder.
— Não podemos, essa vagabunda está me devendo uma grande quantia de dinheiro,
sem contar os juros. Vim pegar o que é meu.
— Eu já disse, eu não tenho esse montante todo! Eu falei que posso pagar aos poucos!
— Era nítido o desespero na voz de Liriana.
O homem estalou os dedos e sorriu de lado.
Ele queria o dinheiro, mas também desejava extravasar sua irritação. Umbra estava no
caminho, mas aquilo não seria um impedimento. Com isso, o homem usou o seu antebraço para
empurrar a mutana, que surpreendida com a velocidade dele, tropeçou e caiu para trás.
Os olhos púrpuros voltaram-se para Liriana, que covardemente caminhava com as
pernas bambas para trás. Ela apenas parou, pois seu quadril encostou no balcão de vendas.
— Eu quero o meu dinheiro de volta, não sairei daqui até você me dar tudo o que deve.
Ele estava irredutível.
Agarrando o pescoço da comerciante, o homem apertou-o e, mesmo que Liriana
tentasse lutar para recuperar o ar, era praticamente impossível. Seus pulmões berraram por
qualquer fração de oxigênio, mas ele simplesmente não vinha. Sua esperança esvaeceu-se, por
mais que lutasse por ela. Era isso, estaria fadada à morte na loja que nem amava tanto assim,
entretanto, não seria hoje o dia de sua morte. Pois através de seus olhos, viu Umbra pular nas
costas do homem. Suas longas pernas enrolaram-se na cintura dele e seus braços envolveram seu
pescoço. Ela apertou os seus membros em sincronia com uma força tão estúpida, que o homem
foi obrigado a largar Liriana.
A comerciante foi para o chão de joelhos, tossindo, enquanto levava a mão para o
pescoço, certificando-se de que ele ainda estava no local. Seus olhos estavam vermelhos e
lacrimejantes, mas sua adrenalina não a permitiu ficar naquela posição de indefesa por muito
tempo, ela tinha que ajudar Umbra. Contudo, ao levantar a cabeça, viu a mutana ainda sobre o
homem, mas aquela não parecia sua amiga, ao menos, não totalmente. Os olhos brancos, agora
estavam mais profundos, seus dentes afiados e o leve som que saia pela sua garganta
assemelhava-se a um rosnado feroz.
Os olhares se encontraram e, no mesmo instante, Umbra largou o homem.
Ele caiu, como uma árvore, após levar inúmeras machadadas. O baque contra o
assoalho foi forte o bastante para que o chão tremesse e alguns objetos estremeceram.
Umbra virou de costas para sua amiga e o homem. Levou a mão fechada para o centro
do peito, encolheu-se e fechou os olhos bem apertados. Tomando o controle total de seu ser.
Por alguns segundos, tudo ficou em silêncio, exceto pela respiração alta do homem.
— Você terá o seu dinheiro hoje, um guarda da coroa irá encontrar você nas docas —
informou Umbra, ainda de costas. — Não quero mais te ver por aqui. Você não tem ideia com
quem está se metendo. A rainha Expedia ficará extremamente irritada se souber que algo
aconteceu a acompanhante fiel.
A mutana detestava ter que usar isso ao seu favor. Ela não desejava tirar proveito do
título que tinha, mas era um caso extremo e esperava que o homem aceitasse ou temesse isso.
Novamente, o silêncio. Umbra continuou de costas, até que ouviu a porta da frente
bater e então, os passos de Liriana se aproximando dela.
— Talvez-
— Umbra-
As duas falaram ao mesmo tempo.
— Vá em frente. — A mutana incentivou a fala de Liriana.
— Seus olhos e… O que era aquilo?
Umbra se virou para a amiga.
— É o motivo de todo o meu sofrimento. Aquilo faz parte de mim e, agora, depois de
tanto tempo, estou aprendendo a amar. Eu não espero uma compreensão sua, mas quero te
contar, porque você é a minha amiga e eu confio em você.
Liriana recebeu as palavras de Umbra, demorou algum tempo para assentar tudo o que
estava acontecendo naquele pequeno espaço de tempo. Aquela pessoa em sua frente continha
uma estranha calma e doçura, como a comerciante viu aos poucos. Ela gostava genuinamente
daquela mulher de pele cinza, era diferente de qualquer outro humano que um dia colocou os
olhos e logo, se simpatizou. Umbra foi sua primeira amiga em anos, mesmo com o pouquíssimo
tempo de amizade, esperava poder construí-la ainda mais poderosamente.
— Ainda bem que renovei meu estoque de chá — resumiu a comerciante, antes de
soltar uma risada curta.
O coração de Umbra ainda mantinha um bater constante e forte dentro de sua caixa
torácica, mas o motivo dele estar assim havia se modificado, anterior a isso era a emoção
principal de deixar a sua besta escapar, agora, era a esperança de que Liriana continuaria em sua
vida.

∞∞∞
A lua escondida timidamente entre as nuvens escuras não refletia inteiramente no mar
em seu total esplendor, mas o satélite natural observava com certo apreço a rainha dos Solares.
De olhos fechados, Expedia sentia a brisa do mar chegando aos seus sentidos, podendo
quase provar o gosto salino. O som do mar estava preguiçoso, bastante incomum, já que contra
os rochedos as ondas batiam com certa raiva, como se elas quisessem arrancar o palácio dali.
Com a mão no parapeito de pedras, Expedia relaxava sob o leve efeito do vinho, mesmo que
ainda tivesse um pouco em sua taça ao lado de seus dedos.
Diferentemente de hoje cedo, a rainha não estava com a sua coroa ou com as suas
roupas reais. Vestia uma calça leve, ligeiramente bufante e uma blusa justa com um generoso
decote em suas costas, uma ótima visão para aqueles que gostavam de um corpo esculpido pela
Deusa Sol.
Mesmo com toda a responsabilidade que segurava em suas mãos de guerreira, fazia
tempo em que Expedia se sentia assim, completa, leve. O motivo era bem especial e,
francamente, isso não era uma surpresa para ninguém.
— Causando problemas de novo. — A rainha comentou casualmente.
Umbra sorriu, surpresa com a capacidade de percepção de Expedia.
A mutana havia acabado de chegar, observava em silêncio no vão das portas de vidro e
madeira que davam para a sala de jantar, sua amante contemplando o momento só e reflexivo
que estava tendo. Um momento especial, raro e que certamente trouxera certa delicadeza para o
seu coração.
Umbra finalmente estava formando laços.
Unema.
Liriana.
Pergis.
E, claro, o amor crescente pela sua rainha.
— Ajudando uma querida amiga. Desculpe se causei qualquer tipo de desconforto, eu
apenas-
Expedia se virou para a mutana e cruzou os braços embaixo dos seios, apoiando o seu
quadril no parapeito.
— O problema? Ele foi resolvido? Devo mandar quebrar a cara de alguém?
Umbra soltou uma risada e se aproximou, envolvendo os seus braços na cintura da
rainha. Puxou-a para o seu corpo e suas mãos encontraram a bunda de Expedia. Apertou-a
levemente e sorriu.
— Tudo resolvido. Mas tive que contar para Liriana o que eu sou.
A guerreira levou a cabeça para trás, afastando-se um pouco de Umbra para melhor vê-
la.
— O quê? Umbra! Isso é perigoso, você não pode simplesmente-
— Está feito e eu confio nela.
— Eu poderia ficar até ofendida com isso, o fato de você confiar nela de maneira mais
rápida do que confiou em mim, baseando-se no tempo em que ficamos juntas. Só que percebo
que as reações foram bastante discrepantes, entre ela e eu.
Era difícil admitir isso, a personalidade impulsiva e de paciência quase nula diziam
para ela continuar sendo como antes, sentir inveja, ciúmes… afastar Umbra, pois assim seria
mais seguro. Mas, assim como a mutana, Expedia também estava mudando.
— Obrigada pela sua compreensão. — Disse Umbra com franqueza.
— Ótimo! Quero saber de seu dia, absolutamente tudo, mas prefiro fazer isso enquanto
saboreamos o nosso jantar que já está nos esperando. O que acha?
— Olha, raramente você dá boas ideias e hoje você deu.
Expedia semicerrou os olhos e entreabriu a boca, formando um “O” nos lábios. Levou
a mão até a parte externa da coxa da mutana e deu-lhe um tapa leve.
— Não abuse da sorte. — Uma ameaça recheada de jovialidade foi dada pela guerreira.
Umbra riu.
Ela estava tão feliz. Tão absolutamente feliz. Tudo parecia caminhar certo agora.
Infelizmente, só parecia.
Capítulo Vinte e Nove
A traição pelo poder

O outono havia chegado a três semanas. O calor do verão dava lugar ao frescor do dia e
à brisa ligeiramente gelada à noite. As árvores começavam a ficar despidas perante o tempo e as
cores das folhas tornavam-se mais fracas, comparando-as com o verão e a maravilhosa
primavera. Umbra tinha uma fascinação pelo outono, mais do que qualquer outra estação, ainda
que o verão fosse a sua preferida.
A mutana estava irradiando felicidade. Durante o restante do verão e o começo do
outono, conseguiu começar a construir um novo orfanato, além de organizar pergaminhos e
registros de crianças abandonadas e sem pais. Seu plano inicial era fazer com que os adultos que
tivessem interesse em adotar uma criança fossem visitar o estabelecimento e, caso encontrassem
a criança que fizessem seu coração corresponder, seria oferecido um tempo de adaptação e, com
inspeções de voluntários, julgariam se os futuros pais teriam a capacidade de criar aquele ser.
Expedia estava extremamente orgulhosa de Umbra e isso a fazia se empenhar ainda
mais em seu trabalho. A mutana era conhecida pelo povo, ela era a prometida da rainha e que
eventualmente, se tornaria uma também. Muitos a respeitavam, outros nem tanto, mas não eram
estúpidos de se colocarem contra Umbra. Estava contente em estreitar seus laços com as pessoas
que conheceu. Com Liriana, seu laço estreitava-se ainda mais, viam-se quase frequentemente,
assim como Nimala, que parecia mais uma conselheira e, com uma incrível empatia maternal,
deixando por vezes, Umbra chorar em seu colo por pesadelos passados. Pergis não era tão visto
assim por Expedia, mas acabou se tornando um amigo. Principalmente, porque ajudava as
crianças doentes do orfanato ainda em construção.
Seus momentos com a rainha ainda eram extremamente especiais. Mas o que ela mais
gostava era do ritual que começavam a praticar com regularidade. Ao meio da madrugada,
quando não estavam cansadas dos seus afazeres, iam ao meio da floresta, certificando-se que
ninguém estava por perto, Umbra se transformava na sua linda besta. E com Expedia montada
em seu cavalo e com a mutana em sua forma de lobo, elas corriam entre as árvores e uma vez ou
outra caçavam algum animal. Era extremamente excitante e isso refletia diretamente na cama que
elas dividiam.
Umbra nunca tinha experimentado esse tipo de liberdade, era único.
Foi após uma noite como essas, as duas amantes esgotadas pela caça e pelo amor que
fizeram, ressonaram pesadamente uma contra a outra, à espera de um novo dia. Porém,
infelizmente, o aconchegar dos corpos sonolentos não durou muito tempo. Pois Nimala rompeu a
porta adentro, sem ao menos dizer nada.
Expedia levantou-se rapidamente, nua. Com uma adaga longa que deixava na cabeceira
luxuosa de sua cama. Levou alguns segundos para reconhecer a sua serva de longa data. Ela
abaixou a arma, mas seus ombros tensionaram e seus olhos se abriram completamente. A
irritação já se emitia por todos os poros do seu corpo.
— COMO OUSA-
— Unema está aqui — interrompeu Nimala, antes que a cólera de sua rainha
escalonasse. — A visitante me pareceu bastante aturdida. Ela disse que precisa falar com vocês,
é urgente. Pensei até em negar a visita, mas percebi que ela era como Umbra.
A guerreira e a mutana se olharam.
Aquilo não era boa coisa.

∞∞∞
Novamente, a lua se fazia presente, ao menos, sua iluminação artificial que
transpassava a claraboia anelar rebatendo no lustre negro totalmente apagado.
A sala de pé direito extremamente alto de cor verde e dois pares de janelas uma sobre a
outra ajudavam a iluminar o piso de madeira, o tapete redondo de cor vermelha e verde, as
cadeiras sobre ele que formavam um ciclo ao centro da sala, a imensa e robusta lareira preta com
desenhos entalhados de guerreiras Solareanas e uma pequena cômoda ao contrário a porta, onde
estava Unema.
Parada e com o olhar perdido sobre as pétalas das rosas verdes, revivia os horrores que
seu corpo e sua mente passaram horas antes. Os gritos de desespero, o choro, o cheiro do fogo e
de morte. Lembrava-se da névoa espessa da fumaça das chamas, parecia ainda estar dentro de
seu corpo, seus olhos vermelhos ardiam, não apenas pela fumaça, mas pelas lágrimas.
Apoiava-se um pouco em seu cajado retorcido, cansada e ferida. O corte na perna não
havia sido tão profundo, mas estava doendo como uma desgraçada.
Seus olhos se fecharam quando a porta se abriu, respirou fundo e buscou controlar suas
emoções.
— Unema! — A voz aflita de Umbra a fez apertar o cajado.
Virou-se.
E Umbra já estava atravessando a sala, abraçando-a. Era óbvio, a mutana havia sentido
o cheiro dela. A governanta não precisava dizer muita coisa.
O carinho foi retornado, Unema respirou fundo, sentindo-se um pouco mais calma,
depois de tudo que havia acontecido. Percebeu a nuca de Umbra brilhar levemente contra a luz
da noite e, por alguns segundos, admirou-a. Seus olhos repousaram sobre Expedia, que estava
parada ao centro da sala, dentro da roda de poltronas. Afastando-se de Umbra, a governanta foi
em direção à rainha, seu andar estava dificultoso, obrigando-a a mancar e colocar ainda mais
apoio no cajado. Frente a frente com Expedia, Unema retirou sua outra mão da túnica e jogou no
chão o broche do símbolo do sol.
— O que você pretendia, Expedia? — perguntou a governanta. — Mandando seus
carrascos massacrarem os meus filhos? Muitos dos nossos morreram, crianças, principalmente.
Expedia abaixou os olhos, antes de se voltar para Unema.
— Você não pode achar que eu tenho a ver com esse ataque. Eu jamais-
— Eu estava segura, até você aparecer! — Vociferou Unema, ao bater o cajado no
chão.
O som reverberou pela sala inteira, mas nenhuma das mulheres estremeceu perante a
força da governanta.
— Eu prometi para Umbra e para você que a manteria em segredo e assim o fiz. Agora,
principalmente, compreendo o fato de vocês viverem escondidos. Mas, Unema, mais cedo ou
mais tarde isso iria acontecer.
— Eu não sou idiota! Mas não me surpreende que os Solares escolham a violência. Isso
está encarnado dentro de vocês. Sua tão dita Deusa sempre preferiu o sangue ao invés da
inteligência do diálogo.
Expedia avançou em direção de Unema, entrando em seu espaço pessoal. Os olhares
castanhos quase amarelos e amarelos, encaravam-se com a chama de destruição.
— Não ouse falar da Irmã Sol na minha presença. Vocês são hereges, consideram um
Deus terreno e falho como-
— Não acreditamos em absolutamente ninguém. Todos os Deuses são falhos, por isso,
os abandonamos há muito tempo — proferiu Unema. — Eu perdi pessoas que eu amava hoje,
Expedia. Um ato covarde, aproveitaram a saída dos nossos guerreiros e atacaram.
— Eu entendo que está ferida e farei o que eu puder para ajudar. Vou descobrir quem
fez isso e vou trazer a vingança.
— Onde estão o restante? — Umbra indagou, ao se aproximar das duas soberanas.
— Na parte norte da cidade, no bosque. Longe para não sermos vistos. Fugimos e não
temos absolutamente nada — respondeu Unema com grande pesar. — Não podemos ficar muito
tempo aqui. Mas eu queria vê-las. Eu vim aqui com o intuito de fazer você pagar, rainha. Mesmo
sabendo que Umbra iria me odiar.
— Fico feliz que não tenha feito isso. Eu a respeito, Unema. Temos nossas diferenças
e, talvez, uma antiga Expedia lhe atacaria. Afinal, mesmo sendo uma área esquecida, você vive
em minhas terras e, não apenas isso, vocês são considerados ameaçadores. Eu tenho certeza de
que vocês só perderam porque seus guerreiros não estavam presentes. — A rainha disse. —
Unema, eu sinto muito por tudo isso. Eu irei procurar o responsável. Mas antes… irei convocar
Nimala, é uma Luares que trabalha comigo. A pedirei para juntar servos que ela confie e vou
mandá-la preparar alguns alimentos e provisões para vocês. Lhe darei um bocado de dinheiro,
dinheiro o suficiente para você comprar um barco e mais mantimentos.
— Barco?! — Exclamou Unema em surpresa.
— Umbra, minha querida — a voz de Expedia suavizou. —, por favor, chame Nimala,
passe em meu escritório e recolha os mapas da segunda gaveta. Assim, poderemos ajeitar tudo
antes do sol nascer.
— Certo! — Umbra falou sem pestanejar.
Quando ficaram sós, Expedia apontou para a poltrona, oferecendo um merecido
descanso para Unema.
A governanta não escondeu o seu cansaço e simplesmente se jogou na poltrona. Sua
respiração saiu trépida, quase como um choro estrangulado pelos horrores das últimas horas.
Expedia se sentou ao lado de Unema e permitiu alguns segundos de silêncio, apenas
para a governanta assentar as suas emoções.
— Lhe darei uma carta náutica. — A rainha disse e a fala chamou a atenção de Unema.
— Você irá para Gelidus. É o local mais seguro para vocês viajarem. É uma terra de troca,
mercenários, onde ninguém quer ser relacionado com ninguém ou não se importam com
terceiros. Eu tenho um informante de extrema confiança. Ele vive nas docas, mandarei uma
mensagem para ele e quando vocês chegarem lá, seu barco já estará abastecido. A única coisa
que você fará é entregar o saco de moedas para-
— Eu não posso aceitar isso — interrompeu Unema.
— Você vai aceitar. Não estou fazendo isso apenas por você.
— Por Umbra.
— Exato — concordou Expedia. — Você irá entregar o saco de moedas para ele.
Quando o mapa chegar, te mostrarei a rota que terá que seguir. Há uma ilha ao sudeste do
continente, ela é pertencente a absolutamente ninguém, a única ilha que permeia o continente há
muito tempo vazia. Já foi uma vila de pescadores isolada, mas acabou findando, justamente por
ser longe da costa. Ela tem um tamanho considerável, de mata densa e fértil. Além disso, ela não
faz parte de nenhuma rota de barcos, então, eu acredito que vocês estarão seguros. É tudo o que
eu posso oferecer… seja lá quem te atacou, irá continuar a procurar e, provavelmente, irão querer
uma resposta minha. Vou atrasar o máximo que eu puder para dar tempo de vocês chegarem a
Gelidus. É longa a viagem, mas eu acredito que vocês consigam.
— Eu-
Unema queria dizer algo, mas estava cansada, aturdida, ferida em sua alma e em sua
carne.
— Aceite, é o mínimo que posso fazer. Eu prometo que vocês terão o suficiente dentro
daquele barco, ao menos para começarem uma vida.
— Aceite, Unema. — A voz de Umbra soou dentro da sala.
A rainha e a governanta estavam tão distraídas que sequer se deram conta da chegada
da mutana.
Foi então que a poderosa Unema chorou. Doloridas eram aquelas lágrimas de desalento
e desesperança. Algo que Umbra conhecia bastante, ela era íntima daquelas temerosas emoções.
Umbra colocou-se de joelhos em frente a governanta, pegou a mão dela com as suas e
apertou-as gentilmente com um sorriso doce nos lábios.
— É o mínimo que podemos fazer, você me ajudou tanto. — Umbra voltou a falar.
— Eu não te ajudei, nós sequer sabemos por que você é única — devolveu Unema, ao
deixar os ombros caírem em total desistência.
— Você me ajudou a não temer aquilo que eu sou. Ajudou-me a abraçar aquilo que
represento. Durante parte da minha vida, eu me achava amaldiçoada, mas hoje isso está mudando
e quem deu o pontapé inicial foi você.
Expedia assistia à interação como espectadora, sentiu um pouco de ciúmes não poderia
negar, pois se ela própria não fosse teimosa e soberba, ao ponto de não ouvir Umbra, talvez ela
seria essa pessoa que pudesse dar a ajuda que sua amante precisava. Por outro lado, Unema era
perfeita para tal feito. Mais do que ninguém, compreendia como Umbra poderia estar
remotamente se sentido. Era o seu dever ajudar a governanta, refazer o seu povo, longe dos
Luares e de seu povo. Era difícil admitir, mas Unema tinha razão, os Solares eram mais tentados
a praticar a violência, já que seu povo foi culturalmente inserido no militarismo e na guerra.
Pelas Deusas, por vezes, cidades poderiam brigar entre si. Seria melhor para Unema se mover,
era seguro. Não queria carregar a culpa de ter toda uma pequena civilização extinta.
— Você voltará a prosperar, governanta. — A certeza na voz de Expedia foi admirada
pelas outras duas mulheres.
— Obrigada, rainha Solares.
E assim, um sorriso cansado se expandiu no rosto de Unema.
Expedia iria procurar os desgraçados que ceifaram as vidas inocentes das crianças
perdidas.
O formigamento da típica violência dos Solares chegou ao peito de Expedia. Ela se
vingaria.

∞∞∞
Depois da saída de Unema pelos fundos do castelo com a ajuda incontestável de
Nimala. Umbra e Expedia não mais conseguiram pegar no sono, a preocupação que rondava a
cabeça das duas era notável. Reunidas na varanda do quarto que agora era das duas, a mutana e a
guerreira degustavam um chá, enquanto seus olhares estavam no horizonte. O céu começava a
clarear e, com isso, o leve aumento de temperatura também acompanharia o dia, até que
novamente, o sol se recolhesse para degustar a tranquilidade da noite.
A mutana até tentou suprir um bocejo, entretanto, conseguiu evitá-lo, colocando o
punho fechado em frente à boca.
— Por que você não vai se deitar um pouco? — perguntou Expedia, ao colocar a mão
no ombro de sua amante.
— Não estou com sono, apenas cansada e preocupada também — respondeu,
repousando a mão sobre a de sua rainha.
— Com Unema?
— Com todo o seu povo e ela também. Eu espero que eles cheguem bem até a cidade,
mesmo conhecendo-os há pouco tempo, me afeiçoei a eles.
— Eu entendo, afinal, eles são, de certa forma, parecidos com você.
Umbra suspirou.
— Às vezes, realmente queria saber o porquê de eu ser assim — confessou a mutana
com certo pesar em sua voz.
— Nós sempre podemos ir até a sua mãe.
— Isso se ela for a minha mãe.
— É a única pista que temos, meu amor.
Com isso, Umbra abriu um sorriso meigo, eram raras as ocasiões que essa palavra saía
dos lábios da rainha. Era uma sensação esplendorosa saber que ela era o amor de Expedia e que
agora elas eram iguais.
— Eu preciso pensar se-
A porta se abriu em um estrondo e ambas pularam em susto. Vindo com uma soberba
quase semelhante à da irmã, Lucíferos caminhou até elas cercado por guardas.
Com o rosto ensanguentado por sangue de NossDomuss, mas também surrado por
aqueles que lutaram pela sua vida, Lucíferos caminhou com seus frascos vazios em sua cintura.
Atrás dele, porém, foi o que mais as pegou de completa surpresa… Sob a claridade da manhã do
sol da Deusa, Gollidu, o pai adotivo de Umbra, permanecia com o olhar cansado, mas um sorriso
glorioso brotava em seus dentes de ouro.
— O que significa isso?! — Exigiu Expedia, enquanto se colocava na frente de Umbra.
Seu instinto de proteção sempre foi bastante persistente dentro de sua personalidade.
— É ela, foi ela que me atacou! Umbra é monstruosa como aqueles desgraçados que
viraram tigres! — Lucíferos berrou em fúria. — E minha querida irmãzinha acobertou tudo, não
é? Não adianta negar, eu lembrei de tudo!
Por alguma razão, três dos conselheiros que sempre se reuniam no salão da estrela
maior estavam presentes e uma delas era Marianne. A mulher que Expedia tinha grandes
respeito. A conselheira parecia estar confusa, o rosto marcado pelo sono era perceptível e a típica
ilustração do sol dourado em sua careca não estava lá.
— Do que você está falando, Lucíferos? O que você aprontou dessa vez? — Expedia
fingiu não entender o que seu irmão estava falando.
Em mais um sinal de proteção, circulou o braço na cintura de Umbra. Pôde sentir sua
energia feroz se movendo contra as suas costas. O animal feroz que residia e fazia parte da
mulher que amava se remexia em impaciência para ser liberado. Infelizmente, Umbra ainda não
tinha o total controle da fera, principalmente, quando ela era atormentada por algum tipo de
ameaça iminente e esse momento, era um exemplo bastante pertinente.
— Esse homem — Lucíferos pegou a gola de Gollidu e o empurrou para frente. —, me
encontrou em uma das minhas missões e, bem, quando ele me contou sobre Umbra e o monstro
que ela era, as memórias voltaram… Essa besta me atacou, uma ameaça dentro do nosso
território, assim como aqueles que viviam naquele monte de barraco que eles chamam de cidade.
Eu, como um excelente batedor, encontrei-os.
— Lucíferos…
— Ela matou a minha mulher! — Gollidu se intrometeu, enquanto apontava para
Umbra e suas salivas voavam da boca. Um efeito tenebroso, desde que substituiu seus dentes
pelos de ouro. — Sua vagabunda!
Ele até tentou ir para cima das amantes, mas Lucíferos o puxou pelo colarinho de sua
blusa velha e cinza. Gollidu caiu de bunda no chão e reclamou de dor.
Umbra grunhiu e Expedia a apertou contra o seu corpo.
— Você traiu o seu próprio reino, Expedia. Pessoas perigosas viviam em nossas terras
e você sabia disso. Pior ainda, a trouxe para cá. Juntou-se a eles, aos hereges que não abraçam a
nossa Irmã Sol e nem sequer a porca da Irmã Lua.
— Pense bem no que está fazendo, Lucíferos — ameaçou a rainha.
— Eu sei. — Houve um instante de silêncio, exceto pelos pássaros diurnos que
começavam sua cantoria lá fora. — Prendam a criatura.
Os soldados hesitaram por um momento, entretanto, compreendiam que o que estava
acontecendo ali poderia ser um ato de traição à coroa. Então, seguiram a ordem.
Expedia e Umbra andaram para trás, até encostarem no parapeito.
— Não ouse tocar em mim, eu sou a vossa rainha! — Exclamou Expedia com raiva e
certamente, apreensiva.
Como a chave de seu mandato poderia virar tão rapidamente assim? Foi quando ela se
lembrou. Em um dos seus juramentos, nem um monarca era mais poderoso do que o povo
Solareano. Sua segurança e o seu bem-estar eram primordiais para o funcionamento e a paz do
povo. Era um pouco hipócrita o que estava acontecendo ali. Seu pai agia de forma bem pior,
coisas que afetam diretamente o reino e nunca foi sequer cerceado por isso. Mas a grande
maioria dos monarcas que vigiavam as cidades Solares era feita por homens e muitos não
acreditavam no potencial de Expedia.
Os guardas sequer a ouviram, seguraram ela pelos braços, tirando-a de perto de Umbra.
— Me solta! — Umbra gritou, mas sua voz saiu grossa e logo um rosnado acompanhou
a fala.
— Lucíferos, escute-
— Você traiu o seu povo, minha irmã. Deixou criaturas hereges, monstros, estarem em
nossas terras!
— Umbra não tem nada a ver com isso, solte-a, por favor. — Expedia nunca havia
implorado para o seu irmão.
Ele sorriu.
Três guardas a imobilizaram, o que tornava bastante difícil se soltar ou se mexer. Os
conselheiros a olhavam em silêncio e, por alguma razão, sentiu-se extremamente envergonhada
por isso. Ela era a mulher que deveria dar o exemplo, mas ao invés disso, de certa maneira,
estava traindo o povo.
Lucíferos tinha conquistado uma habilidade muito boa durante os anos, o poder de
ignorar o que sua irmã tinha a dizer. Caminhou para Umbra e sorriu vitorioso, com sua
prepotência, outro traço que dividia com a sua irmã, agarrou o pescoço da mutana.
— Eu lembro muito bem de quando você quase me matou. És uma ameaça, querida
cunhada.
O limite da besta foi rompido.
Os olhos brancos e calmos de Umbra transformaram-se no tempestuoso da criatura
faminta. Seus dentes alongaram-se mais e as veias de seus pescoços saltaram. Ela rosnou como
um animal e se desvencilhou de um dos guardas, desta vez, ela usou seus dedos de unhas
estupidamente longas que estavam em volta do pescoço do irmão da rainha. Seria tão fácil
quebrá-lo. Era tentador, confessava para si mesma.
O guarda que a soltou devido à sua força, tentou contê-la, mas era inútil, e a besta sabia
disso. Em um sorriso vitorioso e quase sádico, Umbra o lançou para a parede mais próxima,
perto das portas que delimitavam a varanda e o quarto das amantes.
O corpo de Lucíferos voou com uma facilidade tão grande, que Expedia achou que seu
irmão estaria morto. Mas quando o corpo escorregou para o chão, um grunhido vindo dos lábios
dele chegou aos seus ouvidos.
Umbra tinha a visão vermelha, todos os seus sentidos gritavam, urravam para matar
aquele que a ameaçava. Sua língua coçava para sentir o gosto da carne daquele energúmeno e
quando correu em direção a ele para finalizar o seu trabalho, escutou seu nome pelos lábios
doces de sua amante.
— UMBRA! — Expedia pediu aflita, jogando o seu corpo totalmente para frente.
Os guardas pareciam ter entendido o recado e a soltaram.
A rainha correu colocando-se entre Lucíferos e sua mulher.
Para dizer a verdade, ela não estava tão preocupada com o seu irmão, mas sim com as
ações raivosas de Umbra poderem acarretar algo negativo para ela. Por um segundo, desejou
fugir com Unema, pois algo dentro dela já sabia que mais cedo ou mais tarde isso aconteceria.
— Por favor… — Voltou a dizer, um pouco derrotada.
A mutana respirava rapidamente, seu peito subia e descia. Todo o seu corpo estava
tenso, suas garras estavam ao lado de seu corpo, mas seus dedos estavam abertos e hirtos,
prontos para serem usados contra o irmão de sua mulher.
— Estão vendo? Ela é incontrolável, minha irmã é uma irresponsável colocando-a aqui.
— A fala foi deferida em meio à tosse pelo impacto que seus pulmões receberam, Lucíferos se
levantou, ainda apoiando suas costas na parede de pedra.
Umbra, percebendo o que estava fazendo, recuou um pouco. Suas unhas encolheram,
seus olhos voltaram a calma de sempre, contudo, desta vez, linhas de tristeza pintavam aquele
lindo olhar. Seus dentes também voltaram ao lugar e a tensão esvaziou-se de seu cerne. Seus
braços se suavizaram e os guardas logo as agarraram.
— Ela merece a morte! Atacar um monarca! — Um dos conselheiros proferiu.
— Cale-se!! Não está vendo que isso é uma tragédia! Não apenas para o reino, mas
para elas também. — Marianne censurou o homem velho ao seu lado.
— Eu exijo que Umbra volte para o meu circo! — Gollidu exigiu.
Ele foi completamente ignorado, exceto pela conselheira Marianne, que lhe deu um
pescotapa.
— Prenda-a, imediatamente! Ela será julgada e Expedia sofrerá as consequências. —
Lucíferos comunicou em veemência. — Você é uma vergonha para a coroa, rainha Expedia!
— Não, isso-
— Deixe, Expedia — falou Umbra com a voz trépida de choro.
A mutana não queria prejudicar mais a sua mulher.
A rainha espantada se aproximou de sua amante, segurou-a pelo rosto e puxou
delicadamente os lábios para os seus.
— Eu não posso deixar você ir, você precisa estar ao meu lado — murmurou a
guerreira em uma vulnerabilidade sôfrega, reconhecida por Marianne e Nimala, que estava fora
do quarto.
— Eu não quero te prejudicar mais, deixe-me ir.
Expedia beijou a mutana com veemência e seus lábios se separaram por conta dos
guardas que a puxaram de maneira brusca.
A rainha queria brigar, quebrar os ossos de todos, mas Expedia não poderia agir de
forma egoísta. Ela era a monarca principal desse reino, agora, não apenas teria que brigar por
Umbra, mas também pela sua coroa, mas sabia muito bem que muitos a odiavam. Lucíferos
esperou, esperou e, finalmente, parecia ter conseguido aquilo que queria. A tentativa (certa) de
destronar a sua própria irmã.
Capítulo Trinta
A fuga da besta

Expedia estava aprisionada em seu próprio quarto e estava completamente


enlouquecida. Perguntou-se como Umbra conseguiu passar vinte e oito primaveras dentro de um
lugar apertado como uma jaula. Seu quarto era praticamente uma casa e, mesmo assim, o simples
fato de não poder se locomover pela sua cidade ou até mesmo pelo castelo estava a deixando
cada vez mais deprimida e colérica, aquilo era o seu reino, pelo amor da Deusa maior! Havia
perdido completamente o seu livre arbítrio. Guardas estavam do lado de fora de seu quarto e
outros faziam rondas nos jardins embaixo de sua varanda.
Pela primeira vez em sua existência, a guerreira estava sem esperança e sua cabeça só
voltava para Umbra. Prometeu por tantas vezes que a protegeria e falhou. Sua linda amante de
olhar calmo estava de volta a uma cela.
Quando o mundo seria justo com Umbra?
Estava se sentindo uma verdadeira inútil e talvez, só talvez, ela fosse exatamente isso.
Parecia que, de repente, toda a sua estirpe havia sido arrancada dela.
Encolhida contra a cabeceira da cama, seu cabelo castanho estava desordenado. Caíam
livremente pelos seus ombros e olhos, que estavam fundos, cansados e lacrimosos devido ao
choro e a total desesperança avassaladora.
A porta abriu e Nimala entrou com uma bandeja de almoço nas suas mãos.
Aproximando-se, colocou o alimento perto dos pés da rainha.
— Não estou com fome — reclamou Expedia como uma criança mimada, antes de
apertar seus joelhos com os braços.
— Pare com o drama, Expedia.
— O quê?!
A rainha levantou a cabeça pela insubordinação de sua criada. Nimala sempre foi
abusada, mas aquilo cruzou um limite que ela não estava acostumada, talvez, a mulher que lhe
criou também estivesse perdendo qualquer respeito por ela.
— Você está no conforto do seu quarto, enquanto Umbra está em uma cela suja.
Pergunto-me até onde você iria para tirar ela de lá. Faz cinco dias.
Expedia se levantou da cama em supetão e organizou o seu cabelo da melhor maneira
possível.
— Você pensa que eu não sei disso? — perguntou incrédula.
— Acho que não.
Nimala estava com uma calmaria que lhe irritava profundamente.
— Expedia, o que estão querendo para Umbra não é justiça. Marianne está tentando
fazer algo, mas não é o suficiente. Sua mulher irá sofrer se você não fizer nada.
Aquelas palavras doeram profundamente na guerreira. Trancando o seu maxilar, socou
a parede na qual a cama estava encostada.
— Eu estou presa aqui!!! Como a porra de um cachorro sarnento.
— Então faça algo! — Nimala levantou a voz, antes de respirar fundo e ligar as mãos
para frente do corpo. — Façamos alguma coisa, vou te ajudar. Umbra não merece o que querem
que ela passe e você… se algo acontecer com ela, você não mais será uma rainha exímia, mesmo
que consiga voltar para sua coroa.
O silêncio persistiu no quarto escuro pelas cortinas que insistiam por dias em estarem
fechadas, assim como as portas da varanda. O cheiro do quarto estava pesado e um pouco
rançoso, se assim pudesse descrever.
— Se eu tirar Umbra de lá, vou ser considerada uma traidora.
— Você já é uma, Expedia, e qualquer escolha que você tomar terá consequência.
— E se descobrirem que você está envolvida?
— A mulher que esteve aqui, ela vai para a ilha, não vai? — Nimala perguntou, mas
ela já sabia a resposta. Sua habilidade Luares lhe dava esse direito
— É.
— Vá com eles, nós podemos ir com eles.
Expedia quase riu do absurdo que foi lhe dito.
Colocou a mão na cintura e caminhou de um lado para o outro.
— Ir para o meio do nada?! E tudo o que eu conquistei?! — Expressou Expedia, com
uma típica insegurança.
— Como eu disse antes, é a sua escolha. Você pode ser uma presa política, uma
exilada, ou ter uma chance de prover um futuro feliz com Umbra.
— E você estaria disposta a me ajudar? A perder tudo o que conquistou todos esses
anos? — Outra indagação saiu dos lábios de Expedia, desta vez, seus olhos miraram diretamente
os da mulher que lhe criou.
— Expedia — Nimala começou, ao se aproximar, ficando apenas alguns centímetros
longe da rainha —, todo esse tempo que fiquei aqui, foi por causa de você.
— O quê? Por quê?
Expedia cerrou o cenho e bateu nas laterais das coxas, frustrada com a conversa que
estava tomando.
— Porque você é a minha única família, a pessoa com quem eu mais tenho afeição e
Umbra, ela precisa disso. De uma família.
Por alguma razão, a rainha encontrou-se gostando ainda mais de Nimala. Seu coração
retumbou contra o peito, a sensação era de que as coisas poderiam dar realmente certo. Uma
segurança certeira, que não existia por alguns dias. Sentiu vontade de abraçar a velha, mas
conteve-se, ela nunca havia feito tal afeto em direção a um Luares.
— Certo! — Expedia assentiu com a cabeça. Sentou-se na cama e pegou um pedaço de
pão. — Umbra me contou que a amiga dela, Liriana, tem um porão que leva para um túnel até
uma caverna um pouco depois do limite da cidade. Aparentemente, foi construído há muito,
antes mesmo de Estrelares ser considerada a capital. Podemos pedir para ela liberar o caminho.
— Matutava a rainha em seu modo estrategista. Em geral, não era tão bom quanto a do seu
irmão, mas para ser uma rainha era preciso também saber de muitas coisas. Há também Pergis,
ele pode ajudar. Na realidade, ele que irá me tirar daqui.

∞∞∞
Um assobio cantava pelo corredor extenso do Castelo do Sol, adicionado ao ranger das
rodas de madeira que deslizavam sobre o piso bege e amarelo polido. Pergis era o dono da
cantoria e do som agudo do metal enferrujado. Carregava com ele um carrinho de madeira e em
cima dele um baú gigantesco feito de madeira e ferro. Ao se aproximar das portas do aposento da
rainha, um dos guardas de vigia colocou-se na frente delas e o parou fazendo um sinal com a
mão.
— O que deseja? — Perguntou ele.
— Vim aqui cuidar da rainha. Sua serva pessoal me disse que a rainha não está se
sentindo bem, com terríveis dores no corpo e muita dor de cabeça — informou Pergis, ao inclinar
o seu grande chapéu para trás.
— Não recebi qualquer comunicado que-
— Irá desobedecer às ordens da rainha? — A voz de Nimala voou pelo corredor.
Pergis olhou para trás e viu a mulher se aproximando, até ficar ao seu lado.
— Ela é ainda a vossa rainha. O que vocês acham que irá acontecer com você, caso ela
volte ao poder? — Continuou a falar.
Aquilo pareceu fazer o guarda hesitar. Seus olhos baixaram para o chão, sugerindo que
estava pensando nos prós e contras do que estava prestes a fazer. Finalmente, afastou-se.
Contudo, antes que Pergis e Nimala pudessem entrar no quarto, o segundo guarda os parou.
— Gostaria de ver o conteúdo de dentro do baú, a rainha não pode usar objetos
cortantes.
— O que é um absurdo, já que toda vez que trago o seu prato de comida uma faca é
acompanhada. — Nimala respondeu contrariada.
— Insisto. — Irredutível estava o guarda.
Pergis soltou um suspiro e abriu o baú.
Lá dentro, continha um cobertor, pedras, dois instrumentos de curandeiro, de alquimia
e algumas ervas.
— Satisfeito? — Pergis perguntou, ao fechar a tampa do baú de maneira um pouco
abrupta.
O guarda que estava vistoriando o conteúdo lá dentro soltou um leve pulo para trás,
pelo susto evidente que tomou.
O homem assentiu.
Nimala tomou a frente e abriu as duas portas, deixando assim Pergis passar com o
imenso baú. Ao fechar a porta atrás de si, Expedia surgiu da câmara de banho, vestida em roupas
simples. Uma calça justa preta, uma blusa de manga preta, botas e uma túnica verde musgo. Seu
cabelo estava preso em um coque, coberto pelo capuz da vestimenta, e em suas costas uma bolsa
de tamanho considerável continha o necessário para uma viagem.
— Já está tudo pronto? — Expedia indagou com urgência.
Pergis abriu a tampa do baú, começou a retirar os objetos de dentro e o depositou no
canto do quarto.
— Sim, os frascos de fumaça sonífera já estão prontos. — O curandeiro respondeu,
enquanto carregava o cobertor para a poltrona próxima às portas da varanda.
— Elas são boas mesmo?
— O efeito é quase que imediato, esperamos que Umbra não apague com isso. —
Pergis dizia, ao passo que retirava outros objetos do baú.
— Ela é forte.
Expedia contava com a força da besta que vivia dentro de Umbra. Normalmente, sua
amante era mais resistente do que o restante das pessoas, até mesmo dos cidadãos de
NossDomuss.
— Liriana já está esperando com a carroça lá fora. Constela está com ela. — Nimala
avisou, enquanto fechava as cortinas das portas da varanda.
Agora a lua já não tinha mais privilégio de ver o que estava acontecendo dentro
daquele quarto. Era interessante, de fato, algo que o sol também acompanhava.
— Espero que a criança saiba performar — disse Expedia.
— Aquela garota adora Umbra — continuou Nimala.
— Assim que tudo acontecer, teremos pouco tempo. — Pergis colocou-se na conversa,
com a metade do corpo para dentro do baú. — Entraremos pelo fundo da loja de Liriana, assim
como Nimala falou. — Ele voltou para pegar o cobertor em cima da poltrona e o estendeu dentro
do compartimento, dando assim, um pouco mais de conforto para a rainha. — Ela já aprontou
tudo.
— Certo.
Expedia esfregou as mãos. Ela estava nervosa.
— Eu não consegui pegar a sua espada, mas peguei uma da sala de treinamento —
comunicou Nimala.
— Vamos esperar um pouco e em breve, saímos. — Pergis falou
Os três se olharam, estavam nervosos, ansiosos. A expectativa era alta, era o começo da
movimentação para a mudança mais radical que Expedia faria na vida. Ao entrar nesse baú,
estaria dando as costas para o seu povo, trocando-os por uma única mulher, que não conhecia
nem há um ano.
Expedia tinha se arrependido de entrar naquele baú, assim que ele começou a ser
arrastado por Pergis. Seu corpo encolhido remexia-se de um lado para o outro, trazendo-lhe uma
leve dor de cabeça. Dentro daquele espaço, a dificuldade de respirar era precária, assim como o
calor exacerbado que logo preencheu o local. Ela só esperava chegar o mais rápido possível na
carroça. Não demorou muito para que seu corpo fosse remexido mais uma vez de um lado para o
outro, mas desta vez ela ouviu vozes.
— Caramba, isso está pesado! — A voz de Liriana soou abafada e esbaforida no
mundo exterior da noite fria de Estrelares.
Quando sentiu que o baú estava firme de novo, a tampa foi aberta e um rosto infantil
foi a primeira pessoa que ela viu.
Constela.
Expedia se sentou, olhando em volta da carroça coberta por um tecido firme. Liriana já
caminhava agachada para a parte dianteira da carroça, com o intuito de continuarem os seus
planos o mais rápido possível.
A rainha pulou do baú, recolheu a espada deitada no chão da carroça e a amarrou em
seu quadril.
— Estaremos lá em poucos minutos. Temos que ir o mais rápido possível… não vai
demorar muito até que sintam a minha falta — comunicou Expedia. — A prisão fica em outra
praia ao norte daqui.
— Eu sei bem onde fica. — Liriana respondeu de volta, ao bater as rédeas no lombo
dos dois cavalos.
Sob a lua entre as nuvens cheias de água, a carroça solitária correu pelas ruas da
capital. O tempo parecia particularmente bom hoje, espantar olhos curiosos de fato era bom,
parecia que alguém estava ajudando Expedia a abrir mão de tudo para viver sua nova vida com a
sua amante. Mesmo perante o silêncio da rainha, os olhares de sua pequena e singela caravana se
direcionavam para ela.
O tempo foi se arrastando e Expedia ficava cada vez mais nervosa, suas bochechas já
tomavam uma coloração rubra. Apertava os dedos, estalando-os, enquanto o seu braço se apoiava
no joelho levantado.
A carroça chacoalhava e a chuva lá fora apertava ainda mais. Era uma noite de mar
revolto e galhos partidos.
— Vamos chegar logo, ou não? — A impaciência foi nítida na voz da rainha.
— A ladeira é um pouco íngreme, vamos ter que colocar a carroça dentro dos arbustos
altos que acompanham a estrada até a entrada. Você acha que Umbra consegue caminhar até
aqui? — Liriana falou, ao virar a cabeça rapidamente para trás, a fim de ver o grupo.
Pergis estava ao lado de Expedia, com os braços cruzados e seu grande chapéu
escondendo o seu rosto. Já Constela e Nimala estavam lado a lado.
— Ela vai ter que conseguir. — Expedia respondeu. — Nimala, suas habilidades
servem para alguma coisa nesse momento?
— Posso infligir as memórias de um deles, algo que faça um dos guardas sair do seu
posto.
— Faz ele ter vontade de ir ao banheiro! — Constela falou pela primeira vez desde que
Expedia entrou na carroça.
— A menina tem uma boa ideia — apoiou Pergis, de olhos fechados.
— Uma ideia imbecil — disse a rainha.
Constela fez uma ligeira careta e Expedia comprimiu os olhos.
— Pois não é. Farei isso. Pergis pode pegá-lo. Assim, Constela entra em ação, atraindo
o outro para longe e você o pega, Expedia. Depois, Pergis e você entram na torre…
— E jogamos, os fracos de fumaça. — Expedia completou o raciocínio de Nimala.
A carroça finalmente parou entre os arbustos, conforme Liriana havia prometido.
O curandeiro arrastou a sua grande bolsa para perto e a abriu, retirando de lá, quatro
frascos redondos de vidro, dois menores em formato cilíndrico e, finalmente, duas máscaras que
só cobriam a região do nariz e da boca. Havia um leve formato de bico com pequenos furinhos
na lateral e, para finalizar, uma corda de tecido com o propósito de amarrar atrás da cabeça.
— Use esse produto dentro da máscara. — Pergis disse, ao jogar o frasco pequeno em
direção a Expedia, para logo depois, entregar a máscara.
Pergis e Expedia desceram pela parte traseira da carroça e logo depois, Nimala e
Constela se juntaram a eles, entretanto, a criança ficou ali, à espera do sinal. Ela era uma Luares,
conseguiria ouvir Nimala. Ao contornar os cavalos, seguiram em frente, ainda à espreita dos
arbustos altos, até chegarem a uma torre de estatura baixa, mas larga o suficiente para abrigar
presos. Ela era lisa e sem janelas, havia também as celas subterrâneas que usavam o rochedo
contra as paredes desgraçadamente úmidas devido ao mar. Essas eram as piores e tinha certeza
de que Umbra estava lá.
A torre ficava no pico de um rochedo, assim como o seu castelo, as ondas acariciavam
a estrutura do local, mas diferente do calmante que o mar trazia em seu lar, aqui era o verdadeiro
pesadelo. O local era fétido, sujo, com o ar pesado pela falta de arejamento e essa não era a pior
prisão do reino dos Solares. Aqui estavam apenas os presos políticos, era interessante mantê-los
perto.
Pelos arbustos, a rainha conseguia ver quatro homens, não seria tão difícil derrubá-los.
Mas estaria disposta a matar seus próprios súditos? Não foi preciso pensar muito, amava o seu
povo, contudo, Umbra estava perdida dentro da cela fria. Seguiram um pouco mais à frente, até
ficarem na lateral da torre. Dali ninguém os veria, ao menos não quando Nimala fizesse a sua
parte do plano.
Expedia acenou positivamente para Nimala e, mesmo sob a chuva e com a claridade
quase nula, sua serva enxergou a sua ordem. Assim, a velha que Expedia começava
verdadeiramente a admirar colocou a sua habilidade em prática. Não levou mais do que alguns
minutos para que um dos guardas viesse exatamente no ponto em que eles estavam. O homem
parou na frente deles, quando estava prestes a colocar o membro para fora, Pergis posicionou a
palma da mão aberta embaixo do lábio inferior e assoprou. Um pó vermelho viajou até o rosto do
guarda.
Soltando um grunhido, o homem tentou retirar inutilmente o conteúdo do rosto, mas
nada adiantou, até que foi puxado para dentro das sombras do arbusto por Pergis, que cobria a
boca dele. Logo, o homem desmaiou.
De repente, Constela gritou sob a chuva.
— Socorro! Socorro!
Ela correu pela estrada, próximo o suficiente para que os guardas virassem a cabeça.
Ela parou próximo a grande grade de metal atrás deles e choramingou.
— Meu pai virou com a carroça! Ele está ferido! — Continuou a falar em um tom
desesperado e Expedia se surpreendeu com a atuação.
Ainda que carrascos, dois guardas foram em direção à garota.
— Onde ele está? — perguntou um dos homens.
— Lá embaixo! — respondeu a menina Luares com um tom de desalento.
Ela limpou as falsas lágrimas das gotas da chuva e engasgou em um choro copioso.
Virou-se em direção à estrada e puxou a mão do homem.
Expedia viu a oportunidade perfeita e voltou com cuidado extremo para não fazer
qualquer barulho. Seguiu a menina, até que parou perto da carroça mais adiante, onde duas
árvores retorcidas e espinhosas descansavam.
Eles adentraram entre os arbustos e as árvores. Os homens vasculharam a pequena área
e nada foi encontrado, Expedia, como raposa à espreita do ataque, engalfinhou seus dedos no
cabelo do guarda e fez o rosto do homem encontrar os espinhos da árvore. As pernas do soldado
perderam a força, enquanto seu corpo raspava pelos espinhos, até que simplesmente, caiu
desacordado e ensanguentado.
Os espinhos choravam o vermelho rubro e a chuva lavava o corpo do homem ferido e
agora, cego.
O segundo guarda tentou reagir, gritar, mas Constela esticou a mão para frente, antes
que o homem conseguisse ultrapassar a fronteira dos arbustos. O jovem rapaz teve o seu corpo
arrastado para trás e, com o desequilíbrio, colocou-se de joelhos. Por mais que lutasse, seus
membros não o obedeciam. Expedia percebeu que quem estava impedindo o guarda era a
pequena menina Luares.
Sem tempo para reagir ao que estava acontecendo ali, a rainha retirou a espada da
bainha e com o pomo dela, açoitou a têmpora do guarda. O rosto do homem foi de encontro com
a terra batida molhada.
Expedia virou para Constela.
— Pestinha, você é incrível — sussurrou a rainha e a menina soltou um sorriso
orgulhoso. — Agora, vá para a carroça junto com Liriana.
Saltitando, a garota foi. Certamente, Nimala havia treinado a pequena Luares.
Expedia voltou entre os arbustos até Nimala e Pergis. O último guarda estava vigilante
com a lança solar na mão e a grande chave da entrada da torre em sua cintura. Olhou por todo o
seu perímetro, baixando a haste na vertical, deu alguns passos para frente e se firmou em posição
de defesa. Ele sabia que algo estava errado.
Foi nesse momento que ele virou e correu em direção ao grande portão de metal
enferrujado, escondido sob o arco da entrada. Expedia sabia muito bem o que havia lá, uma
alavanca rotativa que acionava grandes chifres e um som alto e estrondoso era acionado em toda
prisão. Isso chamaria atenção dos guardas lá dentro e das casas de guarita, onde soldados
ficavam de rondas e vigias por toda a cidade. Havia cerca de três perto da prisão e se isso
acontecesse, Expedia não teria nenhuma chance.
Ela correu em disparada, retirando sua espada — não exatamente sua — da bainha,
Expedia lançou-a com toda a força que existia dentro de si. A lâmina cortou o vento, cantando
com o seu brilho fosco pela noite quase dublada, pois a lua conseguira testemunhar o assassinato
do soldado que apenas tentava alimentar sua família.
A espada perfurou as costas do homem e ele grunhiu em dor. O soldado até tentou
acionar o alarme, mas seus dedos não conseguiram alcançar a alavanca, seu corpo chocou-se
contra o chão de terra batida, fazendo-o sangrar.
Expedia sentiu por isso, ela matou um alguém que estava apenas fazendo o seu
trabalho, mas o seu amor estava ali dentro e ela faria qualquer coisa para alcançar a sua missão
principal.
Aproximou-se do soldado morto banhado pelo seu próprio sangue e retirou a espada, o
som da carne cortada e dos ossos se quebrando foi ouvido. Sacudiu a lâmina, retirando o excesso
de sangue da lâmina, levemente pesada para o seu gosto, e se abaixou para pegar o molho de
chaves robustas para abrir a porta de metal.
— Coloque a máscara — aconselhou Pergis atrás dela.
Expedia guardou a espada na bainha, desamarrou a máscara presa em seu cinto, abriu o
pequeno frasco de vidro com a boca, cuspiu a rolha presa em seus dentes e embebedou a máscara
com o líquido. Amarrou-a atrás de sua cabeça e seus olhos lacrimejaram pelo cheiro do conteúdo
adicionado. Virou a cabeça em direção a Pergis e o viu já com a máscara e as garrafas redondas
em mãos.
A rainha — certamente não mais — colocou a grande chave na fechadura e com um
rangido alto demais para os seus ouvidos, o portão foi aberto.
Eles andaram em um corredor extenso de pedras e sem qualquer janela, com tochas
iluminando o seu caminho. Ao final da passagem, encontraram-se em uma imensa ambientação
esférica com uma enorme claraboia no teto através do qual a luz noturna tentava penetrar,
mesmo com o impedimento das nuvens. Contornando todo esse espaço, celas de pedra e grades
de metal eram os lugares onde os presos ficavam. Ao centro, uma escada caracol levava para o
segundo andar e outra para o subsolo.
Soldados rondavam por todo aquele perímetro, mas ainda estavam alheios sobre os
novos visitantes escondidos na sombra do corredor.
Pergis parecia tão ansioso quanto Expedia, lançou os três primeiros frascos no
ambiente e logo que tudo foi tomado por uma nuvem de fumaça espessa, a tosse tomou conta do
local.
— Apenas foque em achar Umbra, eu cuido do resto — avisou o curandeiro, ao pegar
novos frascos presos em sua cintura e correr para dentro da névoa. Desaparecendo da vista de
Expedia.
A guerreira piscou algumas vezes e também se lançou contra o pandemônio que havia
se instaurado. Expedia até esperou gritos e grunhidos, mas nada veio, apenas o silêncio.
Procurando em frenesi por Umbra, a rainha começou a inspecionar as celas do andar
térreo, ela sabia que sua amante não estaria ali, mas era ela teimosa, precisava averiguar. Quando
não a achou, desceu as escadas o mais rápido possível, em meio ao corredor, encontrou dois
guardas caídos, mesmo com os olhos ardendo, agachou-se para procurar por chaves que
pudessem abrir a cela em que Umbra pudesse estar. Foi apenas no segundo soldado que Expedia
achou o que estava procurando.
Seus passos ecoavam no silêncio do corredor sob a fumaça espessa, a luz fraca das
tochas e a dor de cabeça pelo aroma da máscara, Expedia finalmente encontrou Umbra.
A mutana estava com a dobra do cotovelo sobre o nariz e a boca, tossindo, tentando
recuperar um pouco do ar impregnado pela substância do ambiente.
Expedia não esperou, encaixou a primeira chave no cadeado da grande porta e seja pelo
destino, benção das Deusas ou puramente sorte, abriu a cela em que a mutana estava, correndo
para ela em seguida.
— Você está bem? — perguntou Expedia com a voz abafada.
— Muita dor de cabeça. O que está acontecendo? — devolveu Umbra, ao colocar seu
braço sobre os ombros da guerreira. Suas pernas fraquejaram, mas Expedia segurou-lhe contra o
corpo firme.
— Aguenta um pouco, tenta não respirar muito. Eu vim te salvar.
Começaram a caminhar em passadas apressadas até as escadas em caracol. Umbra
vacilou uma segunda vez, o seu corpo se projetou para o lado pesado e quase sem forças.
Expedia sentiu o impacto e caiu com um joelho no degrau da escada, desequilibrou-se quase
caindo da escada.
— Vamos, Umbra — insistiu a rainha com certa impaciência, colocando-se de pé
novamente.
A mutana continuou com o seu andar confuso, uma tosse cada vez mais carregada e
seus olhos fechavam-se com mais frequência. Quando chegou ao topo, seu corpo ameaçou a cair
para frente, mas Pergis surgiu em meio a fumaça já não tão espessa e a pegou.
Rapidamente, o curandeiro se colocou ao lado de Umbra, jogando os braços de cor
quase cinza em seus ombros e a firmou segurando a cintura fina. Expedia e eles carregaram-na
para fora daquele terrível local.
Ao atravessar o corredor e as robustas grades da torre lisa e sem janelas, o ar puro e de
frescor junto à maresia acariciou o rosto de Umbra. Seus olhos já estavam fechados, mas suas
pernas continuavam presas à sobrevivência de continuar em frente. Conseguia ouvir a respiração
constante de pesada e Pergis e Expedia, o relinchar de cavalos, o som do mar e a voz de…
Nimala? Ela abriu os olhos, quando escutou a voz da senhora Luares. Nimala estava em pé, com
a mão sobre o tecido da traseira da carroça, a mutana forçou um sorriso. Estaria ela delirando?
Talvez, não. Muitas coisas haviam acontecido em sua vida, os mais escabrosos absurdos e
situações.
A garoa fina começou a molhar o seu corpo, o cheiro da terra, do mar e de sangue
instigaram o olfato da mutana, deixando-a um pouco mais desperta. Com a ajuda de sua amante e
de Pergis adentrou a carroça, encontrando não apenas Nimala, mas a menina Luares e, para seu
grande espanto, Liriana também estava lá. Sua pequena família construída nos últimos meses
veio ajudá-la. Claro que isso também levantou inúmeras perguntas em sua cabeça, mas ela estava
cansada e algo dizia que a sua noite não havia acabado. Entretanto, se sentou no chão, com as
costas apoiadas na parede esquerda da carroça.
Expedia se juntou a Umbra, retirou a máscara claustrofóbica, puxou o ar pela boca e o
expulsou pelo nariz. Escorou sua cabeça e fechou os olhos por alguns segundos, deixando seus
ânimos se acalmarem. Seu coração batia desesperadamente contra o seu peito, seu rosto
queimava levemente, achou que pudesse ser a exposição exacerbada à nuvem da toxina liberada
por Pergis. Sua cabeça doía, seus músculos gritavam e sua mente trabalhava em pungência.
Havia assassinado Solares e fugido de seus deveres monárquicos, nem ao menos brigou por eles.
Expedia virou as costas para tudo. Tornou-se o que tanto enojava: uma traidora. A rainha caída
iria ser odiada por todos e pela futura geração dos Solares. Talvez, nem mesmo a própria Deusa
Sol fosse a perdoar, achava que não merecia esse tipo de coisa. Ela não era ninguém agora, não
pertencia a nada e-
A não mais rainha sentiu o leve toque de dedos magros em sua mão, enquanto o
balançar da carroça começava já um pouco frenético. Quando abriu os olhos, castigados ainda
pela toxina, olhou para as mãos de Umbra. Geladas, mas firmes. A pele era macia, mesmo com
todo o mal que sua querida amada havia sofrido em sua vida. Expedia prometeu a proteção
daquele ser único e falhou, aparentemente, errar era o traço de sua personalidade mais forte.
— Obrigada.
A voz fraca de Umbra fez com que Expedia a olhasse nos olhos brancos. Lindos,
calmos, feitos para ela. A guerreira não estava só, pertencia sim a um lugar e a uma pessoa,
construiria um futuro promissor, longe de seu reino. Era uma troca que Expedia estava fazendo e
valia a pena.
Tinha a mais absoluta certeza de que percalços duros iriam acontecer em sua vida, ela
agora era procurada e Umbra era o ser único que causava curiosidade, medo e asco a todos. Elas
seriam procuradas não apenas pelos Solares, mas também pelos Luares.
Elas tinham um alvo nas costas e quanto mais cedo saíssem do continente, melhor seria
para elas.
Capítulo Trinta e Um
A caravana para um mundo novo

Umbra estava fétida e, graças ao seu olfato apurado, o cheiro estava lhe deixando
levemente enjoada e com dores nas têmporas, mas infelizmente, por mais que quisesse, estava
em fuga e o encontro com a água iria ser adiada.
Parada na cozinha pequena e abafada de Liriana, as pessoas que a cercavam
perambulavam de um lado para o outro. Constela, Expedia, Pergis e sua amiga estavam vestiam
túnicas e fixavam bolsas em suas costas. Enquanto seus olhos piscavam lentamente, pôde ouvir
sua própria respiração, concentrando-se apenas nessa ação simples. Sua rainha se aproximou,
pegou em sua mão e a guiou para o quarto de sua amiga. Apenas um lampião estava aceso,
deixando o lugar em uma penumbra fria. Seus pés descalços tocaram o chão de pedra álgido de
cor cinza-escuro, seu corpo tremeu sob o trapo que usava, sentiu as mãos confortavelmente
quentes da guerreira em seu corpo, que aqueceram-lhe um pouco a sua alma.
A roupa que vestia foi descartada e em reflexo, encolheu-se, não apenas pelo frio,
ainda que seu corpo fosse mais resistente a temperaturas mais severas.
— Está tudo bem, sou eu — disse Expedia em um tom gentil, enquanto acariciava o
pescoço marcado por anos de dor.
Umbra apenas assentiu, relaxando o suficiente perante o carinho agradável.
E quase como uma criança, a rainha vestiu sua mutana e fixou a túnica sobre o seu
corpo. Diferente de todos, Umbra não estava em condições de carregar peso, pelo menos não
agora. Sua recuperação foi rápida, mas Expedia não faria isso com a sua amante.
— Onde a gente está? — indagou Umbra, confusa e com a voz rouca.
— Em Liriana, mas em breve estaremos livres.
— Acho que isso nunca irá me pertencer.
— Não diga isso — pediu a guerreira, ao beijar o pescoço de Umbra.
Era doloroso por demasia, saber que não era capaz de defender e proteger a sua amante
e, mais ainda, saber que o universo nunca parecia querer ajudar a mutana. Foi naquele momento
que se viu sentindo raiva das Deusas Irmãs. Como alguém poderia ferir sua Umbra? Um ser que
passou a vida sem descobrir os seus prazeres.
— Eu estou cansada, só isso.
A mutana descansou sua testa no ombro direito de Expedia e logo, os braços firmes e
musculosos de sua rainha pessoal a seguraram contra o seu corpo.
O som lá fora não existia, ouviam apenas a pequena garoa que teimava em acarinhar os
telhados das casas. Entretanto, esse sossego não durou muito tempo. Pois, logo inúmeros passos
em sincronia foram ouvidos contra o paralelepípedo molhado.
— Ela não foi muito longe! — Um homem esbravejou.
Umbra se encolheu mais no abraço de sua guerreira, reconhecendo a óbvia raiva de um
soldado, que certamente fora despertado para encontrá-la ou até mesmo a sua rainha.
— Temos que ir — sussurrou Expedia um pouco aflita.
— Como?
Afastou Umbra para melhor olhar os olhos castanhos sob a penumbra fria do quarto.
— Liriana. Lembra? O caminho embaixo da terra. Você me contou. Não posso dar os
detalhes, mas temos um plano.
E novamente, foi puxada pela mão.
Quando chegou à cozinha, um alçapão semelhante ao da fazenda que encontrara em
Serenas estava sendo aberto por Liriana, antes de cuidadosamente colocar a porta no chão.
Seria isso normal? Pessoas terem alçapões em suas casas?
— Vamos andar um pouco, estaremos seguras durante a travessia — avisou a amiga da
mutana. — E aí? Vamos? — Deu um sorriso grande e simplesmente pulou para o breu do
corredor obscuro e esquecido durante anos e anos.
— Ela é maluquinha, né? — Constela soltou em meio a situação tensa.
Uma risada baixa e fraca foi dada por Umbra e o som encantador chamou a atenção de
todos, era impossível não sorrir de volta. A mutana sofreu tanto em sua vida, contudo era capaz
de achar algum tipo de fio de esperança, compaixão e até mesmo humor. Não era apenas o seu
físico que era excêntrico, mas sim o próprio cerne que acompanhava a fera imortal.
Pergis olhou para ela e disse algo, mas Umbra não filtrou a mensagem, seus ouvidos
doíam um pouco. Ele pulou para dentro do alçapão. Logo, Nimala e Constela se juntaram ao
grupo.
Umbra caminhou um pouco hesitante em direção ao particular precipício de uma nova
vida, deixando para trás aquela que mal conquistou.
— Eu estou aqui — assegurou a guerreira.
Ela olhou para baixo e viu seus amigos esperando-a.
Umbra poderia recomeçar sempre, mas nunca mais estaria sozinha.
Assim, confiou nas palavras da mulher que amava. Sim, ela amava Expedia
intensamente. Um sentimento pulsante e vivaz que a fazia querer seguir em frente.

∞∞∞
Corriam no quase breu, se não fosse por Liriana e Pergis segurando lampiões, nem
mesmo a visão cansada do monstro interior de Umbra seria capaz de enxergar.
Expedia estava na frente de sua amante e Nimala preocupada com ambas, pois, Umbra
ainda precisava reunir forças e a velha Luares tinha o fator da idade e a musculatura fraca para
acompanhá-los. Não iria admitir em voz alta, se fosse necessário, carregaria Nimala em seu colo.
O cheiro de limo, pedra e terra molhada destacavam-se sobre o cheiro da mutana, um
alívio particular para ela, enquanto corria o túnel sustentado por toras de madeiras já não tão
sadias. Goteiras invadiam o sentido de audição de Umbra, assim como as batidas rítmicas das
botas e as respirações já cansadas do grupo. Principalmente da velha Luares. Escondida sob o
capuz, que ainda permanecia em sua cabeça, ao contrário do restante do bando, Umbra desejava
chegar em breve na caverna prometida por Liriana.
— Estamos quase lá! — Avisou a amiga, parecendo adivinhar o que estava passando
pela cabeça de Umbra.
Se ela fosse Luares até suspeitaria de tal prática, mas esse não era o caso. Era apenas
uma sinergia incrível que cultivou com Liriana.
Continuaram o ritmo penoso até que a mutana viu a entrada da caverna coberta por
trepadeiras e galhos de árvores que tentavam penetrar os mistérios do túnel que levavam à
cidade. Subiram um leve aclive e Nimala quase escorregou, se não fosse por Expedia segurá-la, a
velha teria encontrado o chão molhado e, certamente, quebraria o fêmur, era o que acontecia com
pessoas daquela idade.
Elas se olharam e Expedia apenas arqueou uma sobrancelha.
Atravessando a caverna, embrenharam-se na floresta quase nua, devido ao conforto do
outono que desnudava a flora de Estrelares. Andaram por algum tempo, acompanhados pela fina
garoa e sons da fauna profunda do arvoredo. Cansados, escolheram descansar escondidos em
uma grande árvore de tronco oco, ao menos Nimala e Umbra adentraram para poderem
descansar, ao menos até o amanhecer, assim poderiam continuar. Expedia esperava alcançar a
caravana dos NossDomuss até o meio da tarde do dia seguinte.
A mutana, acostumada a se aconchegar em lugares inapropriados, usou a bolsa de
Expedia como travesseiro e Nimala imitou a sua ideia, entretanto, enrolava-se em uma pele
macia para que suas costas não sofressem tanto.
A garoa tinha se rendido e, finalmente, perdido a força, agora, apenas a umidade e o
frio do outono acompanhavam os viajantes. Umbra observou que Constela, Pergis e Expedia
estavam a poucos metros de distância, construindo uma tímida fogueira para não chamar
atenção, para poderem comer e se aquecer na temperatura sob as nuvens inchadas de água.
— Ela fez o impossível por você — comentou Nimala. — Eu disse que você a mudaria
e que ela precisava de você.
— Expedia desistiu de sua coroa por mim.
O pesar da voz de Umbra era bastante óbvio e sentido.
Deitadas de lado, uma virada para outra, pareciam duas amigas adolescentes dividindo
segredos. A mutana olhou para Luares e a encarou perante o breu predominante, havia uma débil
iluminação dentro da árvore oca, devido à fogueira lá fora, mas não era o suficiente para que
Umbra pudesse enxergar sua companheira de “quarto” por inteiro.
— Ninguém a obrigou, minha cara lobinha. Tudo bem, eu dei um esporro nela,
Expedia sempre precisou disso. Mas o seu bem-querer é mais importante do que o próprio reino.
— Isso é uma tremenda responsabilidade. Tenho medo de não ser o suficiente.
— Você é aquilo que pode ser e é quem ela quer.
— Certo. — Respondeu a mutana baixinho, ao se aconchegar um pouco mais perto da
velha Luares.
— Uma vida nova espera vocês. A paz.
— Parece fácil demais.
— Fácil? — Riu Nimala pela fala da mutana. — Minha criança, você passou por todas
as provas da maldade que possa passar por essa terra. É um descanso. As Irmãs estão lhe dando
um amor tranquilo.
Umbra olhou para Expedia e os olhos se encontraram. O calor e a tranquilidade se
encontraram. De repente, a mutana sentiu a onda de amor invadindo o seu ser pela segunda vez
em poucas horas. Tinha a certeza de que se as almas fossem dívidas, era a rainha que guardava.

∞∞∞
Antes mesmo da Deusa Sol se firmar no céu, o grupo se aprontou e voltaram a andar
em direção às novas vidas. Contudo, depois das andanças, Nimala e Constela pareciam
extremamente cansadas. Umbra avaliou a situação e chegou à conclusão que no ritmo em que
começavam a ter não conseguiriam alcançar Unema.
— Esperem… — Pediu a mutana.
— O quê? Ouviu alguma coisa? — Expedia perguntou, ao colocar a mão no cabo da
espada.
— Não… Nimala e Constela estão cansadas.
— Eu aguento — falou Constela com firmeza, mas suas perninhas estavam tremendo
levemente pelo esforço feito.
— Ela não aguenta. — Umbra expôs. — Eu já estou forte o suficiente para-
— Não, não — interrompeu a guerreira.
— A gente vai se atrasar, além disso, confio em Pergis.
— Do que vocês estão falando? — Pergis perguntou, enquanto ajeitava a bolsa em seus
ombros.
— Umbra… — Ignorando Pergis, Expedia alertou sua amante.
A mutana não deu ouvidos, ela retirou sua túnica e sua vestimenta, ao perceber tal ato,
o curandeiro rapidamente virou de costas, encarando alguns arbustos de poucas folhas.
Umbra fechou os olhos e libertou a sensação única de ser tomada pela fera que
habitava dentro dela. Era sempre doída a sua transformação, mas percebeu que desta vez a dor
não aconteceu com tanta latência como as outras vezes em que seu lobo se manifestou. O
processo continuava o mesmo, o som dos ossos quebrados era ouvido, junto a contorção que eles
tomavam. Sua pele dava lugar a pelos brancos e seus dentes se alongavam, até que o focinho
fosse formado.
O lobo estava em sua glória para que todos pudessem ver.
Liriana estava atônita, seus lábios entreabertos em surpresa bastante aparente. Ela sabia
que sua amiga tinha essa magnífica habilidade, mas nunca lhe foi apresentada a oportunidade de
vê-la em sua transformação total. Era único. Pergis se virou, olhou com grande curiosidade e se
aproximou, segurando seu grande chapéu verde.
— CARAMBA!!! — Exclamou Constela.
Todos olharam para a menina estatelada no lugar. Até que em um súbito de
irracionalidade, fez com que a menina corresse em direção ao grande lobo. Ela se jogou no
pescoço de pelo branco e afundou o seu rosto ali, esfregando sua bochecha na maciez.
— Que linda! Que linda! Que linda! — Continuou sua animação, ao se apertar ainda
mais contra o corpo maciço do canídeo.
A fera virou o seu rosto, soltou um leve choramingo, antes de lamber o rosto da garota,
trazendo assim, uma risada gostosa e infantil.
— Ahh, por isso que a sua lua é diferente da minha. — Constela informou, como
soubesse do que estava falando. Apontou para sua testa e mirando com os olhos para cima na
tentativa de vê-la. — Espera! — Ela parou de repente, e abriu um sorriso imenso travesso. — A
gente vai montar em você!!!
— Garota… — Resmungou Expedia atrás dela, colocando sua mão sobre a coroa da
cabeça da menina. — Sossegue.
A guerreira pegou Constela em seus braços e a colocou no lombo branco do lobo.
Constela até tentou segurar sua animação, mas simplesmente não conseguia, jogou as
mãos para cima em felicidade e depois, se jogou novamente em Umbra, abraçando-a com os
olhos fechados. Quem poderia culpá-la? Era apenas uma criança.
Nimala, com a ajuda de Expedia, conseguiu se colocar atrás de Constela, mais uma
vez, as duas se olharam, entretanto, não houve qualquer implicância da guerreira, apenas um
entendimento com um aceno na cabeça, firme e curto.
Liriana colocou-se na frente do lobo e sua mão hesitante tocou a meia-lua vermelha na
testa de Umbra, olharam-se e assim, ela sorriu.
— Isso é incrível. Eu nunca vi ninguém como você. Quando você me disse o que era,
jamais poderia imaginar que seria algo tão... magnífico — O orgulho e a comoção coloriram a
voz da amiga.
— Teremos tempo para elogios depois, agora vamos — ordenou Expedia com a sua
típica soberba de majestade.
Umbra estava contente, sentia-se útil enquanto carregava Nimala e Constela. Ouvia
Expedia dar todas as explicações cabíveis para Pergis, omitindo as suas dores, era algo muito
pessoal para a guerreira comentar e agradeceu a gentileza que sua amante tivera.
Durante a caminhada, descansaram algumas vezes, alimentaram-se, se hidrataram, e
sem demora retomaram a viagem. No percurso, Nimala e Constela trocaram de lugar com Pergis
e Liriana. Quase todos usufruíram do poderoso lobo, exceto Expedia, a guerreira continuava
firme em seus passos. Era óbvio que o cansaço já se esgueirava com facilidade nos corpos de
todos, principalmente, em Umbra, mas ela continuou firme, negando-se a parar. Desejava chegar
o mais rápido possível na caravana de NossDomuss, esperava não demorar para alcançá-los.
Sabia que Unema estava com grandes responsabilidades na mão, principalmente pelas crianças
que estavam junto a ela, indefesas e perdidas. Com isso, tinha a certeza de que eles iriam
caminhar lentamente, quando se tinha uma grande quantidade de pessoas em uma viagem, o
ritmo diminuía consideravelmente. Tinha conhecimento disso, pois desmontar um circo e viajar
com uma trupe inteira era demorado. Muitas coisas para organizar e muitos passos diferentes.
Foi quando estava à beira de desistir, já que suas patas estavam doloridas e levemente
machucadas, Expedia apontou para o horizonte formado por uma grande planície de vegetação
baixa em marrom queimado e um humilde lago refletindo o crepúsculo, que a mutana se deu
conta dos cavalos e vagões em um círculo em volta da água. O choramingo e o uivo foram
ouvidos, não apenas pelo seu grupo, mas pelos NossDomuss.
Arrastaram-se em direção ao acampamento, quando dois guerreiros e Unema vieram na
direção de seus novos visitantes.
— O que aconteceu?! — Aflita estava a governanta, enquanto ainda se aproximava em
um disparate invejoso.
— Uma longa história. Mas resumindo… Eu não sou mais a rainha dos Solares, e nós
iremos para ilha junto com vocês. — Expedia comentou casualmente.
Constela e Liriana desceram do lombo de Umbra e o lobo simplesmente arriou-se em
quatro patas. Cansada, a fera choramingou mais um pouco e o corpo humanoide começou a
reaparecer.
A guerreira agiu rapidamente, colocando sua túnica sobre o corpo em transformação.
Achou-se ao lado de sua amante e acariciou o rosto úmido de suor.
— Você foi incrível, meu bem. Se não fosse por você não teríamos chegado a tempo —
comentou Expedia em um tom gentil.
— Pan, Ulius, ajudem nossos novos irmãos. As apresentações podem ser feitas durante
um jantar reforçado — ordenou Unema para os dois guerreiros.
Enquanto Nimala, Pergis e Constela se afastavam, Unema abaixou-se, colocando-se ao
lado de Expedia. Sem pedir qualquer permissão, segurou Umbra em seus braços e a carregou em
seu colo.
A mutana abraçou o ombro da governanta e seus olhos se fecharam, entregando-se
completamente ao descanso merecido. O seu corpo confiava em Unema, ela poderia dormir e
acordaria em segurança, sequer se importou com a nudez que estava sob o tecido da túnica, ela
só queria descansar.
— O que você está fazendo!? — Exigiu a guerreira já com a cólera presente.
Ela estava cansada, frustrada e agora, uma terceira emoção indesejada.
— Claramente, Umbra não consegue andar e você está muito cansada para carregá-la
— apontou o óbvio. — Achei que tivéssemos passado desse degrau.
O degrau que Unema estava se referindo eram os ciúmes que Expedia tinha sobre a
governanta. Era um sentimento embasado, já que Unema, indiscutivelmente, era atraída por sua
Umbra, mas seja por respeito, admiração ou qualquer outra coisa, nunca rompeu o limite do
permitido. Contentava-se em ser apenas amiga do ser extraordinário que a mutana era.
Mesmo contrariada, Expedia aceitou a ajuda que Unema estava oferecendo. Claro, era
ela que desejava fazer o que a governanta estava idealizando, entretanto, seus músculos doíam,
gritavam por descanso.
A caminhada silenciosa não foi desagradável, mas reflexiva, principalmente para
Expedia, pois iniciava a racionalização do que estava acontecendo em sua vida. Seus olhos
marejaram, ela havia dado as costas para tudo o que conhecia, por uma mulher ainda misteriosa.
Abandonou todo o seu orgulho e sua coroa para viver em uma ilha com um alguém que poderia
não mais querê-la. A insegurança tomou conta de seu ser, mas então, pensou em Umbra e na
quantidade de vezes que a jovem tivera que abrir mão de seu próprio destino, por vezes, foi
persuadida a fazer tal escolha.
— Gostaria que fizesse parte do nosso conselho — comentou Unema. — Sua
experiência será de grande ajuda para a construção de um novo lar seguro.
— Estou honrada com o convite — respondeu de forma diplomática, mas
estranhamente satisfeita em saber que de alguma maneira poderia comandar… não, assistir
aquele povo, que agora fazia parte. — Obrigada, Unema.
— Por nada, espero que agora possamos finalmente ter a nossa paz.
— Eu espero o mesmo — disse a guerreira, finalmente, se aproximando do
acampamento.
A fogueira singela estava ao lado direito, no centro das barracas temporárias, já ao
esquerdo localizava-se um toldo e um enorme caldeirão, uma cantina para alimentar o restante
daquela civilização. Avistou Névula e sua filha e assentiu, contente por estarem vivos. Na
realidade, por um instante, sentiu vontade de chorar. Como era bom ver aquela pequena filhote
de tigre ainda caminhando pela terra. Era bom ver Névula também, esperava em que sua nova
morada pudesse beber boas cervejas.
Desejava muito um banho, comer e ficar a sós com a sua amante, onde pudesse
repousar o seu corpo fatigado, porém, teria de explicar tudo para Nimala, Pergis, Constela e
Liriana, e não apenas isso, mas também exemplificar os últimos acontecimentos para Unema. Só
de pensar nisso, suas têmporas ardiam, mas havia coisas que não poderiam ser adiadas e para que
todos pudessem estar na mesma página desse imenso livro que estava se tornando a sua vida,
Expedia deveria se dispor para todos.
Pelas Deusas, ela queria apenas uma vida normal, ao lado de sua mulher.
Sim, Umbra era a sua mulher.

∞∞∞
Dois dias se passaram desde o encontro com Unema e os NossDomuss, todos estavam
com os seus humores renovados, provavelmente, devido ao fato de estarem cada vez mais perto
de Gelidus, Expedia achava que mais três dias de viagem iriam finalmente adentrar o território
da cidade e poderiam estar mais seguras, já que a cidade gelada era considerada um território
neutro. Eles estavam lentos, mais do que esperava, encontrava-se inquieta pela movimentação
vagarosa que tomaram. Assim eram as caravanas com crianças e velhos.
A guerreira reconheceu que, de fato, muitos haviam morrido, o ataque de seu irmão
havia sido letal. Contudo, inúmeros continuavam vivos, seja lá o que Unema tenha feito para
evacuar a pequena cidade, tinha realizado com uma proeza fantástica. Era uma esperança, as
crianças perdidas afinal continuariam na terra.
Era o começo da noite, Umbra e a não mais nomeada rainha estavam deitadas sob peles
grossas de algodão. Estavam nuas, entrelaçadas e com as respirações entrecortadas. O sexo
recém-feito foi fantástico, nostálgico e carnal. Expedia se viu sendo invadida pelos dedos
exigentes da mutana e depois afagou-se em um beijo lânguido no sexo dela.
— Estou ávida para chegar à ilha que você tanto fala — disse Umbra em meio da quase
escuridão da barraca improvisada. — Mas parece que, ao mesmo tempo, eu fico cada vez mais
longe de descobrir o que eu realmente sou.
— Te incomoda tanto assim? — Perguntou Expedia francamente, ao puxar a mutana
para si.
Umbra repousou sua cabeça no peito da guerreira, ouvindo o bater firme do coração,
parecido a um tambor rítmico de uma cantoria de guerra. Passou o braço pela barriga de Expedia
e suspirou.
— Você sabe de onde é Expedia, você tem uma identidade. Tem uma história. Eu não
tenho absolutamente nada. Eu sou um nada jogado ao léu-
— Não é. — Cortou a guerreira e abraçou a sua amante.
— Eu estou bem cansada disso tudo, Expedia — confessou a mutana. — Você largou a
sua coroa. Abandonou tudo o que conhecia por um monstro. Por um alguém que sequer sabe
quem é. Eu não tenho absolutamente nada para oferecer. Nada…
As lágrimas, que ultimamente nasciam com uma facilidade não querida, começaram a
brotar em seus olhos. A melancolia invadiu o seu peito dolorosamente, descobriu a sensação de
não ser o suficiente para a mulher que amava. Desejou, por alguns segundos, fugir, encontrar sua
verdadeira mãe, mas reteve essa vontade dentro do peito. Expedia tinha feito tanto por ela,
desistido de tudo por ela. Iria ser um ato tão egoísta menosprezar isso.
Expedia ficou em silêncio ouvindo o fungar de sua amante. Ela queria dizer inúmeras
coisas, garantir a segurança dos seus pensamentos para sua amante, mas achou que talvez suas
falas iriam embora junto ao vento, então, pronunciou as palavras que pudessem ter o significado
mais importante que alguém poderia ouvir.
— Eu amo você.
Era o suficiente.
E Umbra compreendeu a importância daquilo. Ela nada disse, apenas se apertou mais
em sua mulher, mesmo que seus pensamentos continuassem iguais aos de segundos atrás, era
extremamente reconfortante e profundo saber que Expedia sentia isso, pois ela também sentia.
Foi com esse pensamento que a mutana foi visitar os seus sonhos, agarrada em sua
única âncora. Em contrapartida, a guerreira ficou acordada, guardando o sono de sua amante.
Foi apenas uma hora depois que Expedia levantou e com muita dificuldade e cuidado
para não acordar Umbra, desvencilhou-se dela, sua amante reclamou, procurando o seu corpo
firme, entretanto, a ausência da rainha não foi o suficiente para despertá-la. Expedia vestiu uma
calça frouxa e uma blusa de mangas branca, abriu um pouco a abertura da cabana e saiu.
Estava frio, mais do que achava do que estaria, acreditou que pela aproximação da
cidade gelada a temperatura começava a cair drasticamente. Por fim, abraçou-se firmemente para
espantar o frio e andou pelo semicírculo de tendas ao redor da fogueira trêmula ao centro, com
banquinhos bem baixos de madeira em seu contorno.
Expedia não sabia ao certo o que fazer, mas estava inquieta e ficou um pouco
decepcionada quando não encontrou ninguém a sua vista. Resolveu pegar a singela trilha natural
entre as árvores nuas a sua esquerda, não muito longe dali um riacho semi congelado a
aguardava para espairecer um pouco, contudo, antes disso, pegou um lampião aceso pendurado
em uma das estruturas das barracas, seria uma péssima ideia enfrentar o pequeno caminho no
total escuro.
Enquanto suas botas tocavam o chão úmido de folhas secas, a brisa fria adentrou entre
os seus fios de cabelo e invadiu o seu colarinho. Um arrepio não muito agradável passou pelo seu
pescoço, mas aquilo não foi o suficiente para que desistisse. Ergueu um pouco mais o lampião,
quase na altura de seu rosto, e continuou a caminhar, ouvindo o embalar gostoso da água
cristalina logo a frente, todavia, seus olhos capturaram duas mulheres sentadas sob uma pele de
urso à margem, dividindo um longo cachimbo e iluminadas por duas tochas fincadas no chão.
Imediatamente, a guerreira reconheceu a voz de Nimala e por alguma razão
desconhecida, não se aproximou, ao invés disso, agachou-se atrás dos arbustos secos, mas
algumas folhas vitoriosas persistiam em seu esverdeado de verão. Estava curiosa pela repentina
aproximação da velha Luares e Unema.
— … soa como um terrível sofrimento — comentou a governanta dos NossDomuss —,
ver tudo isso acontecer e não poder fazer nada.
— E não poderia. Martin nunca me perdoaria e também não poderia trair sua
confiança, fazer isso significaria ficar longe dela. — Revelou Nimala, ao pegar o cachimbo das
mãos de Unema, tragou longamente e enquanto falava, liberava a fumaça. — Então o vi
procurando afeto com outra mulher, uma verdadeira Solares e não eu, um abjeto Luares.
Expedia não tinha ideia do que elas estavam falando, o que deixou a sua curiosidade
ainda mais aguçada. Não se sentia incomodada por estar ouvindo conversas alheias, ainda mais
daquelas duas mulheres que carregavam grande e invejável sabedoria, que certamente, ela nunca
teria. Expedia era uma boa rainha, mas era melhor ainda segurar o punho de uma espada. Sua
força era mais eficaz. Queria compreender o que passou despercebido à aproximação de ambas.
Continuou agachada, assegurando que o lampião estivesse bem coberto para não
chamar a atenção.
— Por isso que ela é imune aos efeitos dos Luares — ponderou a governanta e tomou
de volta o seu fumo. — Isso explica muita coisa — considerou.
— Do que está falando?
— Tentamos apagar a memória dela como a do irmão, mas simplesmente não
funcionou. Agora faz sentido, ela é meia Luares — concluiu Unema.
O mundo de Expedia eclodiu.
Ela não era a mulher mais astuta da terra, mas estava longe de ser burra. Bastava
conectar os pontos de todas as suas memórias e a partilha do segredo contado perante o lindo
riacho de grama pintada por um orvalho noturno. A velha Luares era a sua… não, aquilo não
poderia ser possível. Como poderia ela dividir o sangue de algo tão… desprezível.
O seu pai havia se deitado com uma Luares, como ele pôde?
Uma verdadeira hipócrita que se tornava, Umbra não era uma Solares e mesmo assim,
deitou-se e se apaixonou, não, não, não… era diferente, Umbra era… pelas Deusas Irmãs, ela
não tinha ideia do que sua amante representava, mas aquilo não era importante para ela. Então,
por que seria importante para Nimala? Sua cabeça começou a doer e seu corpo elevou levemente
a temperatura. Sentiu suas axilas suarem pela agitação crescente que estava borbulhando dentro
de si.
Antes que pudesse tomar qualquer atitude impensada e certamente inconsequente, o
barulho estourou atrás de si e gritos foram rapidamente ouvidos. A rainha se levantou, ao mesmo
tempo, em que as duas mulheres se viraram para trás. Os olhos de Nimala encontraram o da
guerreira, mas a guerreira nada podia fazer, apenas voltou-se para a trilha curta seguindo o som
do que possivelmente seria mais um pesadelo de matança.
Voltou correndo para o acampamento, Expedia vislumbrou o que estava acontecendo
ao seu redor. A correria das crianças esquecidas e alguns tigres ferozes que atacavam mulheres
em vestidos longos negros e espadas longas e curvadas. As bandeiras tremulantes em estandartes
do símbolo da lua cheia, erguidas por guerreiros em armadura azul-escuro partindo o mesmo
ícone nos peitorais de aço e quase impenetráveis, faziam duas filas de seis homens de cada lado.
— Já chega! — A voz austera da rainha dos Luares rugiu sobre seu cavalo negro de
crina longa e reluzente, atrás dos homens enfileirados.
Era linda a rainha Luares. De pele branca pálida como a de uma porcelana frágil, com
olhos de cor lilás, sobrancelhas finas e longas, nariz reto e lábios cheios, era assim, o rosto
emoldurado por longos cabelos negros que guardavam a frieza que representava. Ali estava
Espectra Luares, a rainha gélida e de maiores renomes no ramo dos estudos de alquimia. Não era
uma guerreira, vestia apenas um vestido roxo justo com uma pele peluda de cor branca
sedutoramente envolta de seus ombros, expondo o colo desnudo pelo decote da vestimenta.
Nesse mesmo instante, Umbra saiu da cabana, vestindo uma túnica simples, calça e
uma blusa cinza. Seu cabelo curto estava desgrenhado e seu olhar perdido, na tentativa clara de
encontrar Expedia, entretanto, seus olhos brancos repousaram-se sobre os da rainha dos Luares.
A sua… mãe.
Os ataques foram suspensos e Unema e Nimala surgiram ao lado da rainha.
Os tigres, as guerreiras e o restante dos remanescentes NossDomuss direcionaram seus
olhares para a rainha.
Temendo os estragos que ali poderiam ser feitos, a governanta tomou à frente.
— Não queremos problemas, somos apenas um povo-
— No momento, não sei o que fazer com vocês, criaturas vis, talvez a morte seja a
melhor saída, tentei procurar por você por anos e anos — pronunciou Espectra atravessando a
fala de Unema. Seu cavalo galopou alguns passos, passando por Umbra, que fora completamente
ignorada e parou ante Expedia. — Ou… animais como vocês poderiam ser uma ótima força de
trabalho, mas uma coisa de cada vez.
A guerreira tinha esquecido o quão desprezível era a rainha, como poderia Umbra
nascer daquela mulher? Lembrou-se de que provavelmente ela mesma poderia ser uma rainha
desdenhável na visão dos Luares.
— O que deseja, Espectra? — Expedia perguntou em sua voz soberba de monarca,
título o qual não mais cabia para ela.
— Você.
— Sinto-me lisonjeada — a ironia foi ouvida pintando o tom da guerreira, antes de
fazer uma leve reverência de respeito —, mas estou comprometida.
— Não seja estúpida, Expedia. Suponho que você não esteja no lugar de fazer
gracinhas. As notícias correm rápido. Desistiu de tudo, fugiu de sua coroa por uma criatura vil.
Foi surpreendente devo dizer, mas me interessa estar com você, iria usufruir isso perante a coroa
Solares.
— Criatura vil? — Expedia repetiu a palavra entre os dentes.
Encontrou-se cerrando os punhos de raiva e dando um passo à frente, ela iria quebrar
essa mulher ao meio, mas foi interrompida por uma mão em seu ombro.
— Expedia... — Unema alertou tensa.
Mas a guerreira não quis ouvir, desvencilhou-se da mão e deu mais um passo. Um
traço perigoso da Expedia era a certa imprudência que levava às situações, devido à sua
personalidade emocional e abrasadora.
— Essa criatura vil é a sua fi-
— Não. Ela não é. — Novamente, a rainha dos Luares cortou a fala de alguém.
— Está com medo de seu povo descobrir quem é a verdadeira rainha dos Luares? —
Nimala perguntou, engasgada com algo íntimo que nem mesmo Expedia sabia.
— Não seja ridícula, velha Luares. Você abandonou o seu povo, não tem direito de
demonstrar sua opinião. Além disso, eu fiz o melhor para o meu povo. Se isso significa
sacrifício, que assim seja.
Espectra desceu do cavalo e as guerreiras posicionaram-se perto dela, todas com as
espadas em mãos. Os guerreiros continuaram parados em seu lugar, mas certamente estavam
prontos para atacar tanto quanto aquelas mulheres. Os tigres rugiram e as pessoas restantes
encolheram-se em medo, escondendo-se entre os tecidos da cabana.
Expedia não tinha mais o seu exército, agora era um punhado de criaturas
metamórficas e ela.
— Eu não pedi por alguém assim! — Desdenhou a rainha dos Luares, ao levantar o
lábio superior em sinal de nojo. — Foi por culpa de seu pai que aquilo saiu de dentro de mim.
A guerreira trancou o maxilar e seus olhos foram rapidamente para Umbra. A pobre
mutana estava de cabeça baixa, seu olhar perdido encarava a terra úmida, que insistia em grudar
em seus pés descalços.
— Maldita hora que fizera o contrato com o Deus Baixo, tudo o que eu queria era que a
guerra que seu pai começou, acabasse. Martin era egóico, incapaz de ver que o que ele estava
fazendo iria destruir todos nós. Então, tive que me humilhar, o Deus Baixo me prometeu a
vitória, em troca daria um filho a ele e reergueria o seu culto. No final das contas, estava com um
bebê cinza e a guerra foi perdida. Tivera que sacrificar meu primeiro filho para desfazer o
contrato. Francamente, não sabia onde estava com a cabeça. Uma jovem tola, essa é a única
explicação plausível. Porque, sinceramente, como poderia deixá-la em meios aos Luares, Umbra
é um ser da escuridão, maligno. Eu tenho certeza de que o meu povo ficaria enojado e temeroso
em ter uma criatura vil rondando pelo nosso reino. Mas aparentemente, existe um zoológico
inteiro de animais perversos, por mim, todos deveriam morrer, passei anos da minha vida
procurando por eles. Acabar com tudo isso, por causa deles perdi o meu primogênito. Imagine
só, levar você e as criaturas para o meu reino. Serei eternizada, mais amada e mais temida e eu-
O monólogo odioso foi interrompido por um engasgo molhado de sangue.
Umbra, ou a fera que habitava ela, usou seus grandes caninos para perfurar a pele e a
carne da rainha. O sangue foi expulso em um raivoso jato de sangue, enodoando a penugem
branca da roupa de Espectra e do massivo lobo, que expurgava a sua dor através da violência.
Umbra, a fera ou as duas, não estava procurando um encontro emocionante e, sim, vingança. Ela
tinha esse direito.
O silêncio em volta da cena foi espectral, os únicos sons que ousavam a serem tocados
eram do rosnado da fera comunal, a luta pela vida se esvaindo do corpo monárquico que
sucumbia a terra molhada e a carne rasgando mais e mais, a cada vez que os dentes perfuravam
profundamente à busca da alma sórdida da mulher que a colocou nesse mundo tão absolutamente
cruel com ela. Umbra já tinha passado humilhação na vida o suficiente para aguentar mais uma
dessas intervenções caladas. Tornando-se assassina da sua própria mãe, afinal, matou suas duas
mães e nada sentia. Algo que Expedia nunca faria com Nimala, porque percebendo agora, a
velha Luares sempre a amou, diferente da mutana que sempre tivera o desprezo envolvido em
sua vida. A guerreira não tinha o direito de ser egoísta, ela iria construir um novo lar para
Umbra, um cheio de amor e perdão.
Expedia se deu conta que todos comungavam de uma mesma escuridão. Seja Luares ou
Solares, arriscava-se dizer até mesmo os NossDomuss, mas mais do que nunca, sentiu vontade
de se juntar a eles e criar um novo reino distante na ilha abandonada por todos. Lá, ela poderia
viver em paz, junto a mulher que amava, ambas seriam semelhantes, já que as crianças perdidas,
alguns Luares e Solares viviam em uma harmonia quase equilibrada.
As consequências seriam duras, mas a guerreira não se importava com isso.
Capítulo Trinta e Dois
O paraíso existe

Sentada com as costas apoiadas no tronco com trepadeiras que havia caído de uma
árvore que há muito estava morta, Expedia observava a nudez dos seios de Umbra, enquanto
acariciava a superfície da água cristalina com as mãos. Parte do lindo corpo estava submerso e o
cabelo mais longo agora grudava em seus ombros e bochechas.
A feição de sua amante era de mais puro deleite, já fazia algum tempo que se
encontrava assim, em paz, feliz e amada. Não havia sido um caminho muito fácil para chegar até
onde elas estavam. A culpa e a morte acompanharam a mutana por meses após o assassinato da
rainha dos Luares, por dias, Umbra não abriu a boca para dizer qualquer palavra, reclusa e
arredia, procurava apenas por Unema e às vezes por Nimala, que hoje, Expedia começava a
aceitar como mãe.
Dois anos, esse era o tempo que passou desde a última vez que havia pisado no
continente, desde o encontro com os Luares e a fuga acelerada, entraram a bordo no navio
carregado com muitos suprimentos e fixaram-se na ilha de 80 quilômetros quadrados e cerca de
1.900 quilômetros de distância das terras que os Luares e Solares viviam. Longe o suficiente para
não serem perturbados e ficarem seguros, pois se encontravam em mares internacionais. Havia
um certo acordo de cavalheiros dentre todas as civilizações sobre o mar aberto que envolvia o
planeta.
A ilha tinha um bom espaço para os quase 400 habitantes que ali viviam, mas
aparentemente, aquele número iria aumentar. A cada três meses, um mercenário trazia insumos
em um barco relativamente encorpado, dentro dele continha objetos, provisões, animais e
algumas matérias-primas que a ilha não provinha. Unema, Expedia e o pequeno conselho com
mais quatro pessoas, encontraram uma ilhota perto da principal na qual vivia e lá em sua
pequena costa, encontraram ostras com lindas pérolas de ouro. Era mais que o suficiente para
que pudessem pagar por tudo, inclusive o homem que trazia informações valiosas do continente,
já que era um exímio explorador.
Tudo o que indicava era que o seu irmão havia enlouquecido, a morte, a guerra e a
fome começavam a devastar o seu antigo reino. Os Luares também não pareciam estar muito
atrás disso, após a morte da rainha e Lucíferos entrando como o rei totalitário, o continente
parecia estar prestes a sucumbir. Percebeu isso, pois, nos últimos dois meses, três pequenas
embarcações com cerca de oito pessoas cada chegaram à ilha pedindo refúgio. Entre elas
estavam Luares e Solares, misturados, a fim de viverem em paz. Todos engoliram o orgulho,
abraçaram as diferenças e aprenderam a conviver com feras correndo livremente pela ilha. Já que
dentro dessas 400 pessoas, cerca de 150 eram crianças perdidas. Na realidade, 151 se Umbra
fosse contada.
— Você não vem?! — A pergunta da mutana, fez com que a guerreira voltasse para o
momento presente. — Está uma delícia!
Expedia sorriu de lado, levantou-se e retirou suas roupas, depositando-as sobre o tronco
caído, ao lado do vestido de Umbra. Ela caminhou lentamente sobre a grama verde, sentindo o
cheiro da floresta e o sol esquentando a sua pele. Passarinhos passaram por cima de sua cabeça,
enquanto se aproximava da beirada, seus pés afundaram na água cristalina e todo o seu corpo se
arrepiou.
— Está tentando me seduzir, não é? — Umbra voltou a uma segunda pergunta,
enquanto caminhava ao encontro de sua amante.
— Não estava, mas fico feliz de ainda ter esse efeito sobre você.
— Você sempre terá, eu te desejo na mesma intensidade que te amo — expressou a
mutana, compartilhando suas emoções sem qualquer censura.
Abraçou a guerreira pela cintura e seus corpos tocaram-se em um roçar leve. Expedia
soltou um leve riso, quando a pele prateada da mutana entrou em contato com a sua.
Deixando-se na confiança de Umbra, Expedia foi puxada para dentro do riacho, onde
se agacharam para que os corpos ficassem totalmente submersos.
— Podia ouvir suas angústias daqui — comentou a mutana, enquanto seus dedos
indicador e médio acariciavam o cenho de Expedia.
A guerreira fechou os olhos, apertando-se mais no abraço de Umbra, seu corpo relaxou
ainda mais, a água fresca que a banhava no dia quente a fez estar segura.
— Conhece-me como ninguém.
— Eu sei.
Mais uma vez, Expedia soltou uma risada curta.
— Estou preocupada com tudo o que está acontecendo, eu sei que não deveria me
preocupar.
— Foi o seu lar durante a sua vida inteira e as pessoas estão sofrendo, especialmente os
Solares.
— Sim, meu irmão é um estúpido e estamos recebendo refugiados, não desejo que aqui
se torne um ambiente de descontrole. Eu sei que a ilha tem muito espaço ainda, mas gosto de
saber que temos uma boa harmonia com o lugar. — Expedia manifestou sua preocupação.
— Essas pessoas não têm para aonde ir.
— Eu sei, eu apenas não quero mais perturbação. Gosto de como estamos, longe. — A
guerreira respondeu emburrada. — Mas me diz como está o treinamento com Unema? —
perguntou mudando de assunto.
Desde o último ano, a governanta e Umbra estavam treinando ao menos duas vezes na
semana junto aos tigres com aptidão para luta, criando táticas e ataques em conjunto. Sua loba
sempre era o elemento surpresa, a cartada final.
Já Expedia treinava alguns dos Solares e Luares que queriam se aprimorar na arte da
batalha, percebeu o quão poderoso poderia ser um exército com as habilidades dos Luares,
adicionando a alquimia e a força bruta das criaturas, e dos Solares. Eles poderiam conquistar o
mundo inteiro, caso tivessem um verdadeiro batalhão com a mistura de todos. A antiga rainha
dos Solares faria isso acontecer, mas hoje, não mais. Ao contrário, escapava disso.
— Ótimo! Estou gostando muito!
— Unema me disse que em breve faremos um ritual sob a lua vermelha, a última vez
que isso aconteceu foi mais ou menos trinta anos atrás. É algo poderoso para o povo de
NossDomuss.
— Sim! — Umbra abriu um sorriso e beijou rapidamente os lábios de Expedia pela
súbita animação de participar do rito mais importante das criaturas metamórficas. — Estou
ansiosa para ver. Você vai estar lá também, certo?
— Claro, eu sei que é importante para você. Por falar em importância… — Expedia
escorregou a sua mão para dentro da água, até alcançar a bunda de Umbra. Apertando-o
sensualmente, trouxe a virilha de sua amante para a sua coxa musculosa. — Amanhã, um
carregamento irá chegar e vai ter uma surpresa para você.
Era um anel.
Após o ritual, a antiga monarca pediria a Umbra para selarem suas almas eternamente.
Uma cerimônia feita pelos Solares e usada em sua própria versão para os Luares. Havia
combinado tudo com Unema e Nimala, esse seria o primeiro selar de almas da ilha e Expedia não
via hora para isso acontecer.
— Hmmm, tenho alguma dica? — murmurou Umbra, ao mordiscar a nuca de sua
amante.
Expedia sorriu, quando sua pele reagiu em um arrepio sexual. As mãos de Umbra
desceram pelas costas desenhadas da guerreira, costelas, até chegarem aos seios volumosos,
apertando-os levemente, mas seus opositores aproveitaram para roçar os mamilos pequenos.
— Não, e nem comece a me comprar com sexo.
— Mas você gosta.
Umbra serpenteou com a língua o lábio inferior de Expedia, antes de apertar levemente
o mamilo esquerdo, causando um gemido leve na guerreira.
Expedia enroscou os dedos no cabelo branco e puxou a mutana para um beijo tórrido.
Umbra suspirou dentro da boca macia da guerreira, envolvendo suas pernas em torno
da cintura para poder ter mais fricção contra a pele de oliva que guardava a musculatura firme de
seu dorso. Mesmo depois desse tempo junto a Expedia, sua excitação por ela não havia reduzido,
na realidade, seu desejo aumentava, pois a cada vez que se entregava para a guerreira, mais elas
se conheciam e foi exatamente o que aconteceu no momento seguinte, quando Expedia
contornou a mão pelo seu sexo e seus dedos o acariciaram. Umbra não pôde resistir, começou a
rebolar preguiçosamente contra o carinho lascivo. Gemendo baixo contra o beijo lânguido.
Era inacreditável como Expedia ainda segurava um poder incrível sobre o corpo de
pele quase prateada, pois logo o sublime orgasmo se aproximava de Umbra, e então, para
finalmente sucumbir em um abraço apertado segurando os braços fortes da guerreira que a levou
ao delicioso prazer final.

∞∞∞
A embarcação chegou no pequeno, mas charmoso, porto que os NossDomuss
construíram há alguns meses. Um prédio não muito alto de madeira com guinchos pendurados
serviam para a retirada de insumos mais pesados, ao lado do prédio, um pequeno armazém
organizava os produtos, antes de serem enviados para o comércio na rua principal na cidade nova
que ainda se moldava à natureza local.
Expedia e Unema já estavam no final do píer, enquanto esperavam a embarcação parar
em sua frente. Era um ritual que faziam para checagem de todos os suprimentos e verificações
dos documentos “não oficiais” de compras. Era a governanta que pedia para os trabalhadores
virem pegar a mercadoria e era Expedia que repassava o que seria necessário para a próxima
remessa que chegaria apenas daqui três meses.
As gaivotas rodopiavam acima dos mastros do barco e para olhá-los, Expedia produziu
uma singela sombra sobre os seus olhos, usando a sua mão, que se estendeu no ar. A sombra foi
um bom remédio para os seus olhos castanhos. Ela sorriu contente, pois nessa embarcação estaria
o lindo anel que pediu para o mercenário.
Quando o barco finalmente atracou, a guerreira levou os olhos para o convés e ali viu
uma pessoa que achou que nunca mais veria.
Marianne!
Lá estava ela, com sua magnífica presença em um vestido esvoaçante amarelo e
dourado, com sua careca pintada com tribais, assemelhando-se aos raios solares na mesma cor de
sua vestimenta. Suas mãos estavam para trás, mas seus olhos perfuravam Expedia. Parte surpresa
e aliviada por finalmente chegar à pessoa que ela queria.
— Isso não é bom — sussurrou Expedia, ao levar as mãos para o cinto de couro grosso
que usava.
— O que não é bom? — perguntou a governanta, enquanto virava a cabeça para o lado,
procurando respostas no perfil do rosto da guerreira.
— Marianne… Era a minha conselheira mais confiável e a mais honesta.
— Isso significa que seu irmão não está trabalhando com honestidade.
— Não — suspirou e cruzou os braços despidos de mangar —, o filha da puta sempre
quis ser corrupto.
Observaram em silêncio as duas esteiras de madeiras colocadas no píer e enquanto
Marianne descia em uma, os trabalhadores do porto subiam em outra para descarregar o navio.
— De muitas pessoas que existem nesta terra, você era uma das únicas que pensava
que nunca viria.
Um jeito estranho de cumprimentar uma quase amiga, mas foram as primeiras palavras
que saíram da boca de Expedia.
Marianne sorriu gentilmente, ao se reverenciar para sua antiga rainha.
— Sabemos que não precisa mais fazer isso — continuou a guerreira.
— Desculpe, apenas hábitos antigos são difíceis de morrer — respondeu a conselheira,
antes de virar seu rosto para Unema, cumprimentando-a em um aceno firme.
— Essa é a governanta Unema. A mandachuva do lugar — apresentou Expedia.
— Não seja infantil, Expedia. — A governanta a censurou, batendo a ponta de seu
cajado contra o pier de madeira. — Acredito que não esteja aqui para uma visita, não é?
— Acredito que não, senhora governanta. Acho que venho à procura de abrigo.
Unema e Expedia se entreolharam por um instante, antes de voltarem sua atenção para
Marianne, entretanto, a governanta percebeu o grande mercenário descendo uma das esteiras, o
rangido e sua imagem foram o suficiente para que Unema tomasse ação. A guerreira precisava de
um tempo com a antiga conselheira do reino, era Expedia que sabia como ninguém lidar com os
Solares.
— Por que você não conversa com a sua amiga, mostre a ela o seu novo lar? Depois,
podemos conversar e-
— Eu pedi algo para ele e preciso-
— Se é o que estou pensando que é, eu pego.
A governanta tinha o conhecimento do ritual que Expedia queria praticar, foi a própria
que a chamou para completar a junção das almas, ser a mediadora desse lindo acontecimento.
— Tsk… — A guerreira não estava feliz com isso, ao contrário, ela estava bastante
aborrecida.
Óbvio que estava curiosa em saber o motivo do pedido de exílio de sua quase amiga
Marianne, mas estar em meio a negociação lembrava-a de seus momentos particulares como
monarca.
Lado a lado, atravessaram pelo prédio aberto e subiram alguns degraus de pedra, antes
de chegarem a uma rua larga com pedras circulares polidas que se fixavam ao chão batido e
compacto. Pessoas transitavam naquela rua principal, entre uma casa e outra, eram elas semi-
côncavas, feitas de pedras com hortas em seu teto, contrárias das de madeira com distintas cores
e de telhados pontiagudos, e havia também as de couro, pedras lisas e troncos. As diferentes
culturas que andavam por aquela ilha faziam com que as casas e o comércio representassem isso.
A rua se alongava até o final de uma colina cercada por floresta e casas mais
espaçadas, ao pico da elevação, estavam uma praça e uma casa de madeira formando quatro
grandes folhas como as de uma árvore e preenchidas por vidro. Dentro daquele local, uma mesa
longa com seis cadeiras e uma sinuosa prateleira guardava os conselheiros de NossDomuss.
— Isso aqui é inacreditável — admitiu Marianne, admirando tudo à sua volta. Desde as
excêntricas casas que traziam uma estranha harmonia, até as barracas e quitandas que atendiam
as pessoas que ali transitavam.
— Levou muito tempo para construir e ainda está se construindo, mas é um bom lugar.
Amo aqui — comentou Expedia, ao pegar uma maçã entregue por uma jovem Luares, que
cuidava de uma pequena lojinha de frutas.
— Mais do que o reino dos Solares? — Indagou a conselheira, ligando as mãos para
trás.
— São amores diferentes e dores diferentes. Aqui é o meu novo lar. — E com isso,
acenou para Pergis, saindo da enfermaria do local. — Longe de tudo e de qualquer problema,
mas se você chegou aqui, significa que o problema chegou.
— Sim.
Expedia suspirou, retirando do bolso da calça preta leve e bufante um pedaço de linha
de couro. Prendeu o seu cabelo, sentindo sua nuca úmida de suor e não apenas isso, suas axilas
começavam a ficar assim também, agradeceu por estar usando apenas uma blusa sem mangas. O
verão da ilha era bastante quente, mas o extremo acontecia no inverno. O primeiro ano deles na
ilha havia sido um inferno gelado.
— Eu não quero saber — resmungou a guerreira.
— Mas isso pode afligir vocês.
— Como?
— Lucíferos está louco. Injetando todo o dinheiro na guerra, é inacreditável como em
pouco mais de um ano, ele praticamente afundou o reino, sem contar a trilha de morte que ele
está deixando nos Luares.
— Desde que não cheguem até a ilha. — Expedia disse, ao dar de ombros.
Marianne parou e a guerreira fez a mesma coisa.
A indignação estava estampada no rosto da conselheira.
— Pessoas estão morrendo. — O tom agudo e aflito de Marianne cantou os ouvidos da
guerreira.
Os transeuntes dirigiram as atenções para as duas mulheres paradas em meio a rua
principal. Ao perceber que estava ultrapassando a lógica do bom senso, Marianne se retraiu. Não
era culpa dela, as últimas semanas não foram fáceis, sem contar do estresse emocional de chegar
até ali.
— Elas não se importaram quando fizeram o que fizeram com Umbra ou com qualquer
uma dessas pessoas, eu as protejo. — Expedia expôs em uma inusual calma.
Ela também havia mudado nos últimos dois anos.
— Olha, seu irmão quer fazer algo com… Eu não sei direito, mas algo relacionado ao
Deus Baixo.
— Deus Baixo!? — repetiu Unema, que já se aproximava para perto das duas
mulheres.
As duas mulheres se viraram para a governanta e Expedia recolheu a pequena
embalagem de tecido vermelho-escuro da mão de Unema. Escondeu-o dentro do bolso, onde
anteriormente estava a fita de couro, e o apertou, sentindo o formato anelar escondido no
embrulho.
— Isso é menos ainda da minha conta. Tudo o que Umbra sofreu foi por causa desse
Deus… Gente, isso é um folclore, um mito.
— Nós podemos falar a mesma coisa das Deusas Irmãs. — Unema ponderou em
racionalidade.
— Não, é diferente — contestou Expedia.
— Não é não. — Marianne interveio.
— Umbra nasceu desse ritual, um ser único. — Unema falou.
— Mas os Luares perderam a guerra, seria idiota da parte de meu irmão usar um ritual
como esse.
— Deuses não estão no mesmo tempo em que nós estamos. Talvez, se Umbra tivesse
ficado com a rainha dos Luares, hoje não existiria mais Solares. Hoje é o dia da lua vermelha e
faz muito, muito tempo desde a última vez que ela apareceu. — Continuou Unema, antes de
começar a andar em direção à casa principal do conselho. As mulheres a seguiram. —
Precisamos de Nimala e Um-
— Não! Umbra não. — A irritação se apoderou de Expedia, a calma adquirida nesses
últimos anos evaporou de seu corpo. — Isso é demasiado pessoal para ela. Doído. Não quero
que ela saiba, não mesmo. Finalmente, Umbra está parando de ter pesadelos, amando ter a vida
que está tendo aqui. Não quero trazer a guerra até ela.
— Mas a guerra pode chegar até ela — considerou Marianne — Deusa Maior, aqui está
calor…
— Vamos para o conselho, providenciarei um banquete para você e um aposento. Está
convidada para assistir o nosso ritual particular hoje. Cumprimentar a lua vermelha e a junção
das almas de Expedia e Umbra.
— O QUÊ?! — A conselheira mais uma vez usou seu tom de voz alto e agudo, desta
vez, ao perceber tal reação, cobriu a boca com as mãos e encolheu os ombros. Gestos bastante
incomuns para Marianne, ela sempre foi uma mulher branda, mesmo que firme.
Novamente, os olhos dançaram para a figura das três mulheres que já chegavam à casa
de conselho em cima da colina. A vista de lá era ainda mais bela, era possível ver as casas
permeando a rua principal e outras menores, adentrando a floresta em volta, como folhas
espiraladas de uma palmeira. À frente, o pequeno e singelo porto de homens e mulheres
carregando os novos mantimentos para dentro da cidade. Nas costas da casa do conselho, a mata
ainda era fechada, contando com uma linda fauna e flora, lá Umbra estava com alguns tigres,
aventurando-se junto a um habitat quase natural.
— Sim, e é por isso que é mais um motivo para que eu não me meta nisso tudo. Só
quero viver minha vida em paz — disse Expedia.
— Há alguns anos, acharia que estava enlouquecendo. A rainha dos Solares nunca dava
as costas para um confronto, para o calor de uma batalha. — A conselheira expôs memórias
conhecidas pelas duas Solares.
— A rainha dos Solares já não existe mais.

∞∞∞
— Você está linda!! — Exclamou Liriana, ao colocar as mãos sobre os ombros de
Umbra. — Sério! Está perfeita.
As duas se encontraram na loja de tecidos e, agora, de costureira também, de sua amiga
mais longeva, desde que sua vida mudou completamente. Semelhantes ao molde da antiga loja,
Liriana adaptou um segundo andar para aparatos de costura, onde poderia confeccionar
vestimentas para alguns dos NossDomuss.
A claraboia em diagonal fixada no teto triangular iluminava o interior do
estabelecimento através do final da tarde dolorosamente alaranjado, em pouco tempo o céu da
noite estaria com uma coloração sanguínea, algo nunca visto por Umbra. Estava temerosa, com
uma sensação de inquietude em seu peito, como se sua fera quisesse uivar em uma cantoria
lúbrica para a lua alimentada pelo sangue escarlate. Entretanto, suas emoções se aquietaram,
quando se viu no espelho de pé com lindas flores azuis em suas hastes, mesmo danificado pela
maresia, Umbra conseguia se enxergar perfeitamente.
Seu vestido negro de seda contornava o seu corpo de pele cinza, seus seios, quadris,
coxas e ombros, destacavam-se na carícia do tecido, livre de mangas e com o decote avantajado,
alcançando até o meio de seus seios pequenos. Seus braços e pescoço de cicatrizes pareciam
pinturas de iras marcadas por um artista possesso, que não mais confiava em sua criação, mas
não deixava de ser menos belo. O caos poderia ser isso e Umbra com seu cabelo branco e seus
olhos brancos pintados de preto era uma verdadeira obra de arte.
— Não acha que está demais? — perguntou insegura.
— Claro que não! É o primeiro ritual do nosso novo lar.
É claro que Liriana sabia do segredo de Expedia e se prontificou a arrumar a amiga, já
que depois do ritual da lua sangrenta para trazer prosperidade a todos de NossDomuss e as
crianças perdidas, as almas dessas duas incríveis mulheres iriam se juntar em uma só.
— E você não vai se arrumar? — indagou a mutana, ao olhar para sua amiga através do
reflexo.
— Eu vou, mas será rápido. Para vocês que se transformam que é algo mais
importante. Vocês serão os protagonistas!
A animação de Liriana não estava chegando até Umbra, ainda pensava que algo estava
errado. Desejou se enclausurar em sua casa de pedra e madeira, ante a lareira, junto à mulher de
sua vida.
— Está bem.
— O que houve, Umbra? Sério… — Indagou Liriana, ao procurar alguma resposta nos
olhos brancos calmos.
— Não sei. Apenas… não estou com uma sensação boa.
— Hm… — A comerciante se afastou e recolheu de cima da mesa uma xícara de barro,
contendo um chá de ervas calmantes. — Acho que está nervosa hoje e está tudo bem-estar assim.
Quero dizer, é a primeira vez que você irá estar integralmente em um ritual com as crianças
perdidas.
Umbra pegou a louça das mãos da amiga e tomou um pouco do chá, assim que o
experimentou fez uma leve careta.
— Muito ruim? — continuou Liriana.
— Sem açúcar…
— Mas vai ajudar… bebi. Vamos fazer assim… — Liriana começou e novamente se
afastou, desta vez, pegando a segunda xícara. — Você me espera e nós vamos juntas, o que
acha? Expedia te encontra lá. — E assim, bebericou o líquido. A careta foi reproduzida pela
comerciante. — Puta merda, isso está horrível.
— Eu te disse…
Umbra riu brevemente, era bom ter alguém que a pudesse fazer rir sem qualquer
preocupação. Liriana era uma amiga que sempre “não” sonhou em ter, já que não sabia como
isso poderia ser, mas se tivesse consciência disso, teria pedido alguém exatamente como a
comerciante.

∞∞∞
O céu sanguinolento de lua de tom mais escuro deixava todos da pequena e excêntrica
cidade em uma paleta de cor avermelhada. Quando Liriana e Umbra saíram da loja, os
transeuntes seguiam para o topo da colina, alguns estavam animados, outros reflexivos em suas
próprias finitudes de pensamentos e outros, curiosos, muitos deles estavam assim.
A mutana estava como os reflexivos, calada, enquanto ouvia os tambores e as flautas
tocando em uma melodia calma e de lembrança mística. Umbra poderia até ter gostado, mas
talvez em outra ocasião, nesse momento, seus sentimentos culminaram em um sepulcral
dolorido. Ela não queria estar assim, queria sorrir… era para ser uma data álacre. Mas sua besta
incontrolável arranhava suas entranhas avisando-lhe que algo muito ruim estava prestes a
acontecer. Umbra não deveria ignorar esse chamado, contudo, ignorou. Foi o que fez em toda a
sua vida, desconsiderar o seu interior. Era por isso que suas cicatrizes pareciam ter sido pintadas
por um artista raivoso, era ela o próprio pintor de sua tela.
No topo da colina, circulando a casa dos conselheiros e atrás dela, as pessoas se
aglomeravam entre falas cálidas e calorosas. O espaço reservava hastes de madeira contornando
todo o perímetro, onde cordas as conectavam em suas pontas e, nelas, esferas de vidro emitiam
uma iluminação brilhante. Dentre as lacunas formadas por estas vigas, mesas com alimentos e
bebidas eram oferecidas para quem quisesse consumir as especiarias e pratos dos reinos Luares e
Solares, junto às de NossDomuss. Havia também uma távola de pedra circular com um enorme
livro aberto e alguns instrumentos para observações astronômicas e insumos de alquimia. Já na
extremidade de onde ficava a casa do conselho um grupo de pessoas cantarolava com flautas e
tambores as melodias semelhantes que Umbra ouvia enquanto ainda estava no trajeto.
Os olhos brancos procuraram pelos da sua guerreira, reconhecendo que outros olhares a
estudavam pela beleza enigmática que representava. Quando finalmente achou a sua amante,
andou até ela. Estava com um cálice de vinho na mão e dando a oportunidade de conversar
casualmente com a governanta do lar em que viviam.
Expedia consumiu a beleza de sua mulher, assim que percebeu sua aproximação. Pelas
Deusas, Umbra estava magnífica, sem a menor dúvida uma de suas aparições mais
deslumbrantes. Almejou que a noite estivesse em sua corriqueira paleta de cores, pois assim
poderia entrever ainda mais o seu amor. Tanta era sua hipnose, que seus braços pararam meio ao
ar com o cálice que segurava. Engoliu em seco, balançou a cabeça, voltando à realidade e,
casualmente, colocou a mão sobre a embalagem aveludada amarrada em seu grosso cinto, atrás
de sua espada recém-feita pelo ferreiro Luares da ilha. Diferente da blusa usada de manhã, vestia
um peitoral apertado que deixava os seus seios levemente apertados sob a blusa branca de manga
comprida e bufante, como as de piratas que invadiam portos desavisados. A calça que usava
tinha um incrível bordado de um tigre envolvido em sua coxa esquerda.
— Pelas Deusas… — Murmurou a guerreira, enlaçando a cintura de sua amante e
beijando-a com propriedade.
Aquela mulher seria com quem conectaria sua alma, tornando-as uma só.
Umbra repousou as mãos nos ombros da Expedia e sorriu timidamente.
— Você está maravilhosa também. — Expressou a mutana.
— Eu prometo que em breve ela será sua, Expedia — Unema anunciou sua presença no
momento íntimo de ambas —, mas primeiro, iremos fazer o ritual, vou adiantá-lo, todos já estão
aqui. Farei isso para que possamos aproveitar a noite.
— Eu acho justo — pronunciou Umbra, ainda tocando sua amante.
— Estou animada! Vai ser lindo demais! — Revelou Liriana atrás delas, antes de soltar
palminhas de felicidade.
— Você não tem ideia do que vai acontecer aqui, Liriana. Como pode ter certeza de
que irá ser bonito? — Indagou Expedia, ao levantar um pouco a sua sobrancelha direita,
demonstrado o seu vício soberbo.
— Ah, só sei. — Liriana deu de ombros, antes de roubar o cálice da antiga monarca.
— Ei!
Com isso, Unema e Umbra sorriram.
Elas se despediram das duas Solares e juntas foram para o centro da colina, logo,
outros metamorfos ou crianças perdidas se concentraram ali também, formando uma fila
horizontal. Umbra ficou exatamente no meio, olhou para um lado e para o outro, um pouco aflita,
pois todos pareciam saber o que fazer. Ela estava ali, perdida, com a terrível sensação em seu
peito.
Observou Unema se afastar até a távola de pedra e pegou o grande livro em suas mãos.
— Estamos aqui para fazer um ritual inédito. — A voz da governanta reverberou por
toda a clareira. — Aqui pediremos para a natureza e nosso âmago especial nos entregarem a
prosperidade sob a lua sangrenta do nascimento da nossa primeira criança perdida. A
manifestação ocorrerá para o nosso novo lar e as mazelas que afligem qualquer outro ser se
findem por vez. — Continuou a proferir, usando os antebraços para apoiar o pesado e antigo
livro de capa de couro vermelho.
Os olhos amarelos se direcionaram para as páginas velhas e roídas pelo tempo. Unema
começou a cantar em uma língua não conhecida por Umbra, mas o efeito em seu corpo foi
imediato.
Seu peito começou a formigar, seus dedos das mãos formigavam e o zunido em seu
ouvido perturbou-a. Olhou novamente para os seus não tão semelhantes e confrontou ante de
seus olhos as lindas transformações. Ao contrário de Umbra, a metamorfose não ocorria de
forma dolorida, era quase como uma dança celestial e leve, onde a penugem de tigre nascia
naturalmente de suas peles. Os sons dos ossos quebrados ou do rasgo da carne não eram
escutados. Para os tigres era uma bênção divina ter essa única habilidade, já para Umbra nem
tanto.
As listras dos tigres começaram a brilhar, aparentemente, cada um ganhava uma
respectiva cor e a mutana nunca havia visto antes. Não sabia o que aquilo significava, mas a
energia emanada pelas luzes particulares a fez compreender que todos ali estavam ganhando
ainda mais potência.
— Umbra…
Uma voz grave e fantasmagórica a chamou e todos os pelos de seu corpo se eriçaram.
— Umbra...
E então uma risada odiosa, de puro escárnio.
A música cantada e os suspiros de alegria expressados pelo restante das pessoas que
estavam na colina tornaram-se distantes para Umbra. Desejou compreender o que estava
acontecendo com seus não tão semelhantes, mas sua visão começou a ficar turva, tão turva que
apenas tons variados de vermelho surgiam em sua visão. Então ela caiu e abriu a boca, o grito
desesperado saiu de suas cordas vocais, rompendo em uma dor alucinante. O corpo contorceu
contra a grama-rasteira e seus membros foram expostos pelo tecido fino do seu vestido.
Ela se virou para cima, suas mãos foram em direção aos céus como garras e suas costas
formaram um arco perfeito, antes do último grito de dor.

∞∞∞
— Umbra…
Novamente, aquela voz.
A mutana abriu os olhos e a iluminação exacerbada sobre ela a fez fechá-los por uma
segunda vez. Colocou a mão esquerda sobre eles, no intuito de protegê-los. Resmungou, mas
desta vez, abriu os olhos vagarosamente, deixando-os se acostumar com a claridade.
Em lufadas profundas e inspirações igualmente poderosas, Umbra foi se levantando aos
poucos, sentindo ainda a terrível dor em seus membros, principalmente em sua cabeça. Doía
tanto que pensou que pudesse vomitar.
Ao se sentar, reconheceu onde estava. Havia vindo aqui uma vez… Sua biblioteca
escura de memórias. Cercada pela gosma negra das trevas que a impediam de seguir em frente,
ou simplesmente sair do foco de luz sobre ela. Levantando-se, tentou olhar em volta, mas ela
conhecia aquele local, não era possível ver um palmo à frente. Entretanto, aquilo pareceu mudar,
pois, começou a enxergar com mais clareza as trevas que a cercavam.
Ouviu sons de passos pesados, esmagando o gosmento piso de seus sonhos e
memórias. Temerosa estava e, desesperada, olhou para todos os lados, incapaz de se mover, de
sair do seu seguro. Foi ali, dentro de seu próprio refúgio medíocre, invadido pelo leviano, que
encontrou a imensa criatura, trajada em uma capa negra e calças de linho, uma blusa branca sob
um colete de couro, adornado por correntes com pingentes, dentes de feras e insígnias. A criatura
gigantesca também usava um lenço amarrado em volta de seu pescoço, mas não era isso que
assustava Umbra e sim, que no lugar da cabeça humana, havia um crânio de um lobo e no lugar
dos globos oculares, duas bolas brilhantes e vermelhas reduziram o pavor que aquele monstro
podia prover. Não existia nenhuma expressão naquele rosto ossudo, mas através do andar
confiante e superior era compreendido o tamanho do seu poder e ele nem sequer precisava
demonstrá-lo.
Umbra tombou a cabeça para trás quando ele se aproximou. Era imenso aquele ser,
facilmente passava dos três metros de altura.
— Minha filha… — Murmurou a voz gélida sem que a boca se mexesse, e o toque
humano da palma da mão quente tocou gentilmente a bochecha de Umbra. Os dedos eram tão
grandes que apenas as primeiras falanges decretaram o afago. — Venha até a mim, vamos…
juntos tomaremos aquilo que nos pertence. Por tanto tempo te quis, agora és minha.
A mutana estava estagnada, congelada perante o seu… pai? Não confiava em seus
movimentos ou falas no momento, apenas encarou aquilo que achava que pudesse ser os olhos
dele.
— Restauremos tudo, a ordem… todos devem sumir para que tudo recomece.
— Hmmm?
Umbra piscou lentamente, sentindo seu corpo vibrar, parecia estar cada vez mais
adormecida e sua fera, gradualmente, tomava força dentro de si, claramente, orgulhosa de seu
pai.
— Não… — Negou Umbra em um murmúrio fraco, desviando do carinho da criatura.
Mas ele pegou o queixo com firmeza, deixando-a imobilizada e os olhos sofredores
encararam-se.
— Eu preciso de você para continuarmos. Esqueça as fraquezas que acompanhou,
ninguém vale a pena.
— Não…
— Todos lhe fizeram sofrer, comigo, serás a líder, a nova líder.
— Não…
— Minha querida, não é um pedido e sim uma ordem. Posso acabar com tudo o que
você julga que é bom para a sua alma. Não será sequer um sacrifício. Invocaram-me e agora
quero retaliação e você estará ao meu lado. Quer queiram ou não, exceto que prefira que eu
carregue sua amada para o abismo junto a mim. Tenho certeza de que ela fará uma ótima
companhia.
— NÃO!!!
Ela empurrou a criatura com toda a sua voracidade guardada no peito. Era tão poderosa
aquela mutana, que o próprio Deus Baixo foi engolido pela escuridão de Umbra.
Estava sozinha, apenas com a lembrança do brilho vermelho e perfurante com o qual
seu pai a encarou sem qualquer expressão. Mesmo negando a ordem, Umbra sabia que poderia
negar, todos ali corriam perigo, principalmente a mulher que amava.
Capítulo Trinta e Três
A teia de segredos

Vagando pelos sonhos escuros de um passado não tão distante, Umbra seguiu o cheiro
reconfortante que tanto conhecia para ficar longe deles. A maciez também lhe abraçou, alentador
era ter a sensação de ser embalada, continuou, até que a luz quente e amarela predominou a sua
escuridão.
Umbra abriu os olhos, logo, reconheceu o teto de toras de madeira e pedras. Respirou
fundo e se mexeu, constatando estar em sua cama, que nos últimos anos, tornou-se o seu refúgio
predileto. Era naquele móvel em que se encontrava com Expedia todas as noites.
Olhou para si e percebeu que ainda estava com o vestido negro da noite anterior, suas
pernas praticamente desnudas eram aquecidas pelos raios de sol que penetravam a janela
retangular de pequenos cacos de vidro multicor, deixando sua pele refletindo a maravilhosa
paleta.
— Deusas, você acordou! — Preocupada era a voz de Expedia, quando cruzou a casa
sem divisórias e, rapidamente, estava ao lado de sua amada.
Os olhos vermelhos, as olheiras embaixo deles, a espetacular vestimenta que vestira
ontem à noite, exceto pelo peitoral descartado apoiado na parede da janela, demonstraram o
cansaço da guerreira.
— Eu sinto muito — resumiu a mutana, mesmo não sabendo apontar porque estava
pedindo clemência.
— Todos estavam preocupados com você, Umbra. Os sons que você soltou, o jeito que
você estava no chão. Pensávamos que talvez você fosse-
Expedia foi incapaz de continuar a sua linha de pensamento.
— Eu estraguei absolutamente tudo, não foi? Mais uma vez, me tornei a atração
principal. — Insatisfeita estava com a sua própria atuação durante o ritual, culpava-se, mesmo
que não tivesse qualquer controle do que estava acontecendo.
— Claro que não, as pessoas aqui idolatram você, Umbra — assegurou Expedia, ao se
sentar na cama. Tocou gentilmente a bochecha da mutana, mas pela primeira vez, o afago foi
repudiado pelo encolher do corpo cinza. — O que houve?
Umbra engasgou em um choro, antes de pegar a mão da guerreira e posicioná-la
novamente em seu rosto. Esfregou-se no toque e as lágrimas desceram pelos olhos cansados.
— Eu… — A mutana tentou organizar tudo o que aconteceu em seu âmago, ela abriu a
boca duas vezes e apenas sons cantados saíram de sua garganta. Ela não poderia contar, Expedia
iria a impedir de ir até o seu pai e impedi-lo a acabar com tudo. — Sendo diferente de todos,
acho que o ritual não teve o mesmo efeito em mim.
— Você é especial, Umbra.
— Eu sou uma maldição.
Sorriu em tristeza absoluta, antes de levantar-se da cama, entretanto, quando firmou os
pés no chão, a firmeza não chegou até ela e Expedia a segurou, envolvendo-a com os seus braços
robustos. Elas se olharam e o abraço feroz foi dado no mesmo instante. Respiraram os aromas
que ambas tinham, a firmeza das peles se tocaram e ambas relaxaram por alguns segundos.
— Você não é uma maldição. — Expedia falou com veemência.
Umbra não achava isso, seu pai iria destruir tudo caso ela não fosse até ele. Não tinha
ideia do que aquilo poderia significar, o peso da consequência de não chegar até o Deus Baixo.
— Os dias se tornaram piores e as noites vermelhas como o sangue que correm em
suas veias.
A voz de seu pai soou dentro de sua cabeça e Umbra apenas se apertou mais contra a
sua amante. Era isso, ela tinha que ir, precisava defender Expedia e todos que amava, até aqueles
que ela não conhecia.
— Por que a gente não dá uma volta? Marianne, uma antiga conselheira minha que está
na cidade, gostaria que a conhecesse — ofereceu Expedia, após beijar a testa da mutana.
— Eu gostaria de ficar um pouco só… pensar em tudo o que aconteceu. — Sussurrou
um pouco envergonhada por negar algo para Expedia.
Ela quase sempre aceitava o que a sua amante propunha, pois, realmente gostava das
propostas, entretanto, hoje não era o caso.
— Ahhh! — A decepção coloriu na voz de Expedia. — Tudo bem, eu entendo. Achei
que pudéssemos conversar melhor sobre o que aconteceu.
— Eu preciso primeiro compreender o que eu senti e o que aconteceu comigo. —
Explicou Umbra. — Acho que vou para o nosso lugar.
Referia-se ao riacho que encontraram meses após se instalarem na ilha.
— Está bem, mas por favor, caso você precise de alguma coisa, me avise.
— Eu vou, sei onde te encontrar.
E a famosa piscadela de Expedia foi dada por Umbra. Um sorriso brilhante como o sol
foi oferecido pela antiga monarca.
Beijaram-se levemente, sem profundidade sexual, apenas o afeto que as duas dividiam
tão intensamente.
Após tomar um banho e trocar suas roupas por um conjunto de calça e blusa, Umbra
foi para o seu esconderijo, evitando os olhares curiosos que passavam por ela. Agradeceu
naquele momento por morar mais afastada do centro da minúscula cidade. Contudo, antes de
chegar ao riacho, parou no casebre ainda mais entranhado na floresta. Um velho alquimista do
reino dos Luares vivia ali, antissocial e com uma extrema inteligência, que assustava todos da
ilha.
O velho alto e corcunda, sequer perguntou como ela estava, mesmo não estando no
ritual, o cochicho havia se esgueirado para dentro da floresta e chegado até ele. Achou melhor
assim, não queria ter de dar meias explicações. Foi direta e pediu dois artefatos e três diferentes
porções, retirou de dentro do bolso uma pérola dourada e o entregou.
O alquimista acenou positivamente e embrulhou o pedido da mutana e do mesmo jeito
que entrou no casebre, saiu… sem levantar suspeitas ou tendo olhares que pudessem indagá-la.
Desta vez, se dirigiu para o riacho, mas ao invés de aproveitar a maravilhosa água,
escondeu os itens dentre as pedras e se sentou sobre elas. Observou a lua avermelhada no céu da
manhã quente do verão da ilha e ver o satélite natural daquela cor apenas confirmou que a noite
ficaria ainda mais sangrenta. Teve a leve curiosidade de saber o que Unema iria achar sobre isso,
algo lhe dizia que talvez a mulher pudesse saber de algo, ou então, fosse tão ignorante quanto
ela. Afinal, até então, a história das crianças perdidas era apenas um mito, um folclore sobre
Deuses e Deusas, mas Umbra sabia que tudo era verdade. Absolutamente tudo.
Ficou ali, esperando o dia passar, percebendo que o tom do céu mudava a cada hora
que passava. Os pássaros pareciam estar confusos com a diferente paleta de cores que há trinta
anos não aparecia. Por fim, molhou os pés na água fresca e fechou os olhos repassando seu plano
não tão infalível pela sua cabeça.
Voltando para sua casa, foi recebida por Expedia, ainda com a preocupação estampada
em seu rosto.
As duas se reuniram na sala de descanso, Umbra queria parecer despretensiosa, então
se jogou no sofá roxo de estofado com desenhos de brasões feitos a linhas douradas e armação de
madeira em formas sinuosas, lembrando ondas pequenas da praia do porto. As almofadas macias
amorteceram sua queda e suspirou.
Expedia beijou-lhe os lábios, entregando para ela um pouco de chocolate quente em
uma caneca de metal exageradamente grande. Umbra riu pelo gesto de carinho e murmurou um
obrigada tímido. A guerreira sabia exatamente como aquietar os sentimentos calamitosos da
mutana.
— Algo está errado, não está? — Perguntou a antiga monarca, ao se apoiar na parede e
através de outra janela, ver que novamente tudo em sua volta estava se tornando vermelho. —
Você está sentindo alguma coisa diferente?
— Não. — Era mentira. — Unema não disse nada?
— Hm, ela disse que a última vez que isso aconteceu o efeito durou apenas uma noite.
Os segredos entre elas novamente estavam se guardando. Umbra não queria dizer a
verdade e Expedia não ousaria contar do plano idiótico de seu irmão. Oras, vejam só, trazer um
Deus inexistente para a terra. Não queria trazer a notícia que o cerco da guerra estava se
apertando, defender Umbra era o seu ato primordial e assim continuaria.
— Espero que termine logo — desabafou a mutana. — Meus olhos ardem ao olhar para
a mesma cor durante muito tempo.
— Eu sinto a mesma coisa e a dor de cabeça é terrível. Parece que minha cabeça tenta
projetar as cores reais nos objetos e forçar isso dói.
— Eu sinto muito por isso — comentou Umbra em pesar.
— Eu sei, meu bem.
A conversa durou por mais algumas horas, queriam manter o humor e os sentimentos
de leveza, mas a vermelhidão que tomava conta do ambiente estava realmente irritando ambas as
mulheres. Principalmente Expedia, que estava cada vez mais impaciente.
— Acho que vou dormir, sério. Não consigo mais. — Bufou a guerreira, ao se levantar
do sofá. — Você vem? — Perguntou, estendendo a mão para a sua amante.
— Claro!
Seguiram para cama e deitaram-se lado a lado, viradas para frente uma da outra.
Expedia se aproximou, colocando o seu rosto entre os seios pequenos e macios da mutana.
Fechou os olhos, forçando-se a relaxar na escuridão de suas pálpebras. Concentrou-se na
respiração de Umbra, esperando que amanhã a lua não mais estivesse vermelha, desejava que as
coisas pudessem entrar em seu eixo novamente. Talvez — fingiu para si —, amanhã tudo iria
melhorar, inclusive o milagre do fim de uma guerra totalmente sem sentido, e foi com essa
esperança que Expedia dormiu, apenas para acordar no dia seguinte e perceber que estava só na
cama.
Assim que abriu os olhos, tinha certeza de que algo estava errado.
∞∞∞
A cidade pequena estava mais lenta, certamente, o efeito da lua ainda vermelha no céu
estava afetando a todos, principalmente as crianças perdidas, que vagavam em uma melancolia
sem razão, mas diferente de todos na cidade, Expedia marchou em direção à casa de Unema, seu
punho cerrado e espada na cintura, a concentração e a tensão lavavam o seu rosto. Seria uma
péssima ideia interrompê-la.
Expedia se colocou na frente da porta da casa de pedra de Unema e bateu fortemente
com a lateral do seu punho, demonstrando através do gesto a sua impaciência, raiva e
preocupação. Não demorou muito e Unema abriu a porta. Os olhos amarelos arregalaram-se ao
ver a expressão facial da guerreira.
— Ela sumiu! — Resumiu exasperando.
Adentrou o lar da governanta e, para sua surpresa, encontrou Marianne desfrutando o
café da manhã sobre o balcão alto de madeira.
— Você falou alguma coisa para ela? — Acusou Expedia, irradiando poder em direção
a Marianne.
A mulher continuou sentada com um pedaço de pão parado em meio aos seus lábios.
Congelada pelo súbito susto que Expedia estava lhe dando logo de manhã. Conhecia bem a
personalidade da antiga rainha e ser a atração dessas emoções não era agradável, pois
normalmente, acabava em morte ou sofrimento.
— Você falou, não falou? Ela sumiu! — Continuou Expedia, ao pegar o colarinho do
vestido de Marianne e com extrema facilidade a jogar contra a mesa, derrubando os alimentos do
chão e sujando a linda vestimenta de sua conselheira. — Eu disse para você não falar nada para
ela.
— O que está acontecendo? — Unema exigiu e se adiantou.
Concentrando toda a sua força, puxou Expedia pelos ombros, colocando-a longe de sua
convidada.
— Eu acordei e Umbra não estava ao meu lado — vociferou em ódio — Ela estava
estranha ontem, eu sabia, deveria ter insistido mais! — Levou a mão na frente de seu rosto e o
esfregou, antes de bater com a palma da mão no meio da testa.
— Você a procurou? — perguntou Marianne calmamente, enquanto retirava pedaços
de alimentos espalhados pelo seu lindo vestido de cor dourada e laranja.
— Eu– — A hesitação veio na voz de Expedia.
— Vou mandar que a busquem pela ilha, até lá, não faça nenhuma besteira com a
minha convidada, ouviu bem? — Falou a governanta de olhos penetrantes, exalando o mesmo
poder que Expedia. Os caninos alongados e as pupilas finas ditavam que a fera guardada em
controle dentro de Unema queria sair.
Expedia recuou, dando um passo para trás, abraçando-se como se estivesse com frio,
mas era a desolação, porque algo estava errado, muito errado.
Unema saiu do recinto, deixando as duas Solares a sós.
— Eu não conheço a Umbra — afirmou Marianne, sentando-se novamente na mesa
alta, recolhendo a xícara intocada e pegando a outra virada, arrastando-a em direção à cadeira ao
seu lado. — E mesmo que conhecesse não trairia a sua confiança, sei que quer deixá-la ignorante
perante a guerra.
Expedia trancou o maxilar e a chama dentro dela ficou ainda mais forte, pois Marianne
tinha razão. Sentou-se ao lado da mulher negra e suspirou, enquanto esperava ser servida por
chá.
— Ela estava muito estranha, muito. Estou querendo achá-la, mas tenho medo de
encontrá-la. — Confidencializou, apoiando um cotovelo na bancada e de forma derrotista
apoiou-se nele. Nunca havia estado vulnerável na frente de sua antiga conselheira, mas Expedia
começou a fazer inúmeras coisas inéditas, após a rejeição da coroa.
— Eu a vi durante o ritual, algo aconteceu com ela.
— Sim, mas ela não me disse absolutamente nada.
— Espere, talvez… — O lado investigativo de Marianne pulsou. — Eu sei que não
acreditas nisso, Expedia, mas seu irmão completou o ritual na lua vermelha para despertar o
Deus Baixo, Umbra tem uma ligação direta com ele. Algo pode ter-
— Você sabe que isso é uma besteira, não sabe?
— Pode ser, como pode não ser.
Marianne bebericou seu chá e Expedia jogou a cabeça para trás em total frustração.
— Arggggg… Isso não faz sentido — reclamou a guerreira, ao voltar com a cabeça
reta. Pegou a xícara e bebeu uma golada grande, deixou sua garganta queimar pelo líquido e isso,
estranhamente a acalmou.
— Faz, Umbra é um ser especial. Os metamorfos são, e isso não dá para negar, mas
ela… você me disse que ela é a única a se tornar um lobo feroz, gigantesco. A mãe dela, a rainha
Luares, engravidou, mas ela não deixou muito claro se a filha veio através dele ou se ela
concebeu Umbra para dar a ele. Seja como for, o Deus Baixo pode ser pai de Umbra e agora ele
está de volta. Lucíferos com toda a certeza deve ter oferecido algo incrivelmente poderoso. Pois,
a lua vermelha continua no céu.
Aquilo era loucura, mas Marianne estava fazendo — por incrível que pareça — com
que fizesse sentido.
— Você acha que o que ela estava sentindo no ritual era de alguma forma-
— Um sinal dele para ela, talvez… e, quando acordou, não soube lidar com isso.
— Isso é muito perigoso — falou Expedia, ao se levantar em supetão. Caminhou de um
lado para o outro na casa como a dela, sem quaisquer divisórias, entretanto, o lar de Unema era
uma semiesfera, então não havia cantos. — Eu preciso procurá-la, dizer que daremos um jeito ou
iremos ainda para mais longe, não sei. Eu encontro com vocês mais tarde, vou revirar a porra
dessa ilha. — E o furacão de fogo representado por Expedia sumiu porta afora.
Marianne ficou para trás, mesmo sentindo dor atrás de sua cabeça, manteve a postura,
bebericando o seu café com a mais absoluta serenidade. Seu olhar pairou sobre a mesa
totalmente derramada por alimentos e suspirou, compadeceu-se pela dor de Umbra. Se aquele
Deus Baixo estivesse na terra, isso seria um problema imenso, começando pelo sofrimento da
antiga monarca e da própria mulher que carregava a pele cinza.

∞∞∞
Expedia intensificou as buscas e convocou mais pessoas para ajudá-la a cercar todo e
qualquer perímetro da ilha. Liriana e Pergis foram os primeiros a se apresentarem e juntos
saíram, batendo de porta em porta para perguntar sobre a amiga. Dois Luares e três Solares,
colegas mais próximos de Umbra, também começaram a busca, sem contar que praticamente
todas as crianças perdidas se mobilizaram.
Passou-se quase o dia inteiro e a noite vermelha já começava a ganhar força no céu.
Expedia estava verdadeiramente desesperada, verificando até mesmo caixotes no
armazém do porto, sua parte irracional achava que poderia encontrar Umbra dentro deles,
escondendo-se, chorando pelo episódio fatídico. Mas ela não estava lá, era claro que não estava.
Foi naquele momento, ao sair do depósito, que se atentou ao fato de uma embarcação não estar
atracada no pequeno porto. Eles não tinham muitos barcos, três para serem exatos, e um deles
simplesmente não estava mais ali. Ela correu para o píer e olhou para o horizonte do oceano.
Nenhum sinal do casco de madeira revestida passeando por ali.
Seu coração doeu, doeu tanto que achou que passaria mal. Ela levou a mão ao peito e
tentou respirar fundo, o desespero não a levaria a lugar nenhum. Talvez, a morte de alguém, mas
certamente, não valeria a pena.
— Expedia!! — Unema a chamou.
Ao se virar, encontrou a governanta e Marianne em passos apressados até ela.
— Nós não a encontramos — continuou Unema, ofegante e com o rosto levemente
úmido. Expedia nunca tinha visto isso antes. —, mas temos informações. Ela foi ao encontro de
um alquimista Luares e pediu por certas parafernálias. Uma delas, um estocador de vento. Serve
para acelerar algum tipo de transporte.
— Eu sei o que é a porra de um estocador de vento! Estou mais preocupada com a
embarcação que não está aqui! — Vociferou a guerreira, ao apontar o espaço vazio. — Puta que
pariu! Puta que pariu! — Bateu em sua própria têmpora com os punhos fechados. — Ela foi
embora, ela foi para a maldita guerra! Eu preciso ir atrás dela! Imediatamente!!
— Expedia! — Marianne chamou a sua atenção, segurando o rosto de sua antiga
rainha. — Tente se acalmar, mandarei cartas para alguns conselheiros, eles me devem favores.
Vou perguntar o que está acontecendo e assim que tivermos alguma resposta iremos atrás dela.
Seja onde ela estiver. Vocês têm aves Goldinas, não é?
— Cerca de quatro — respondeu Unema, mas seus olhos amarelos focaram-se
totalmente na determinação daquela inesperada e linda mulher.
— Ótimo, usaremos as quatro, assim teremos mais chances de algum tipo de resposta
— determinou Marianne. — E enquanto isso, arrume-se, em breve, partiremos.
Expedia se desvencilhou de sua conselheira e voltou os seus olhos para as águas
profundas e distantes. Ela iria encontrar sua amada e pedi-la para unir as suas almas, a guerreira
iria abraçar cada fragmento da mutana. A luz da calmaria e a escuridão caótica, tudo o que
precisava era ter sua Umbra sã e salva.
Capítulo Trinta e Quatro
O massacre da filha do Deus Baixo

As narinas do cavalo marrom estavam dilatadas devido ao esforço animalesco que


fazia. As ferraduras batiam freneticamente contra o terreno irregular de árvores espaçadas e
deformadas pela sua antiguidade. A velocidade do equino era surpreendente, como um risco
tracejando o caminho à sua frente. Em cima dele estava Umbra com o cabelo branco esvoaçante
no dia quente de verão, acompanhando a agilidade surpreendente do animal. Suas mãos
seguravam as rédeas com firmeza e suas pernas pressionavam as laterais da barriga de pelo curto
e marrom. Seus pés descalços apoiados nos estribos de metal escorregavam quase que
constantemente, a mutana estava impaciente e aflita, o Deus Baixo povoava a sua mente em
ordens e conselhos, convencendo-a de suas vontades. Umbra tentava ignorar, mas era demasiado
árduo, já que seu pai tinha uma estranha influência sobre ela. Pois, mesmo que quisesse negar,
não podia, não conseguia. Mesmo contra sua vontade, a mutana estava indo em direção ao
momento mais arriscado de sua vida.
Faltava pouco, em breve, estaria em Quioros, uma cidade de Luares muito próximo da
capital, o que significava que os Solares estavam avançando com certa constância. O que
sinceramente, explicava a falta de obstáculos para transitar entre cidades e fronteiras,
aparentemente, todos os esforços estavam virados para a guerra. Mas não passaram
despercebidos por Umbra a destruição nos dois reinos, o silêncio, o medo e principalmente a
tensão que pairava no ar. Todos pareciam estar confusos com esse conflito mortal. Sim, o ódio
entre os reinos sempre existiu, mas eles eram dependentes um do outro, um morreria sem o outro
e Expedia compreendia isso, diferente de Lucíferos. Que idiota. Umbra nunca gostou dele.
Pensou na guerreira, imaginou como Expedia estaria agora, provavelmente, viria atrás
dela, mas desejou que ela viesse apenas quando tudo estivesse acabado, seja lá o que isso possa
significar.
Levou horas até que Umbra chegasse a Quioros e assim que reparou na fumaça negra e
cinza subindo pelos ares, parou o equino.
A densa floresta que cercava a charmosa cidade estava em cinzas, derrubada, morta.
Algumas das árvores ainda pegavam fogo, resistentes à morte. Não existiam animais, apenas
corvos enlouquecidos que sentiam o cheiro da carniça queimada. Eles ficaram ainda mais
assustadores sob o final do entardecer vermelho.
Gritos e som de batalha foram ouvidos pela mutana, assim como a respiração ofegante
do cavalo marrom. Foi então que viu ao longe, um guerreiro Luares correndo em sua direção,
estava ele desarmando, percebeu que o homem não estava vindo atacá-la e sim, fugindo. Não deu
mais do que alguns passos afoitos, antes de uma lança perfurar o seu peito. Umbra ouviu a
respiração do homem parar em meio ao percurso e seu corpo congelar, ele olhou para baixo e viu
seu empalamento. Com o olhar opaco pela vida escorrendo por ele, olhou para cima e encarou a
mutana antes que seu corpo fosse para frente e ficasse suspenso em meio ao ar, pois a ponta
mortífera da lança fincou o chão.
Umbra engoliu seco, assustada… sem saber ao certo o que fazer, mas então, ouviu o
chamado do Deus Baixo. Ela virou para o cavalo, retirou a sela e as rédeas, descartando-as no
chão. Acariciou o focinho do bicho e beijou o largo pescoço, por fim, deu um leve tapa em seu
lombo e o equino deu meia volta, assegurando-se de estar cada vez mais longe da guerra.
A mutana olhou para trás e esperou até que ele sumisse de vista. Respirou fundo e
assim começou a andar pelo solo quente que ainda era engolido pelo fogo, enquanto as cinzas
que choviam em cima dela. Passou pelo homem morto e sequer olhou para o corpo, enquanto
caminhava, mais corpos eram espalhados pelo chão, assim como o som da guerra se aproximava.
Umbra encontrou a arena da batalha, acontecia em volta de uma torre sinuosa, feita de
pedras brancas lustrosas, entretanto, o limo e o tempo as deixaram ligeiramente sujas. Em seu
telhado pontiagudo a bandeira da lua tremulava em prata e azul. O lindo monumento ali presente
tinha grandes chances de ser destruído, já que esse era o último obstáculo antes que a grande
caravana dos Solares chegasse à cidade de Quioros.
Surpreendeu-se, pois o desfalque entre os exércitos era igual. Luares nunca foram
exímios na arte da luta, mas talvez suas habilidades telepáticas e alquimia pudessem dar algum
tipo de vantagem. Umbra passou por eles, nenhum deles parecia se importar, nem deram atenção
para a sua presença, eles estavam compenetrados demais, ou então…
Vá à torre.
A ordem do seu pai ressoou em sua mente e ela, mesmo por contra vontade, foi.
Subiu os primeiros degraus da escada redonda que abraçava a parte de baixo da
estrutura da torre e abriu a porta maciça de aço lisa com um único puxador fixo em seu centro,
entrou na sala redonda de paredes brancas e piso de madeira cobreado, uma única cadeira de
ferro e estofado vermelho estava ao centro do local. Sentado nela, estava Lucíferos, ou ao menos
o que restou dele. A face esquelética e doente foi o suficiente para que Umbra sentisse pena do
ser. Os pulsos magros revelados nos pomos dos braços da cadeira pareciam prestes a quebrar. A
vestimenta típica estava grande demais para ele. Umbra reparou o peito descoberto pelos botões
arrebentados da blusa justa com a ombreira de couro e ferro, formando três andares de placas até
o meio de seu braço. Seu tórax continha apenas a pele ligeiramente arroxeada sobre a camada de
ossos e musculatura frágil.
A imensa mão humana surgiu no ombro do rei Solares e o mesmo puxou violentamente
o ar pela boca, um chiado estranho penetrou o peito de Lucíferos e Umbra deu um passo para
trás, batendo suas costas contra o aço gelado da porta. Levantando-se atrás da cadeira de ferro, o
Deus Baixo surgiu com a sua cabeça de crânio de orbes brilhantes vermelhas.
Olharam-se e seu pai se aproximou. Gigante era o ser que dividia o ambiente com a
pobre mutana. Novamente, o toque gélido veio até a sua bochecha e mesmo querendo se afastar,
não o fez. Algo em seu ser a fazia ficar, esse era o seu pai. Não a negou como o restante, como
Espectra, Gollidu ou Luriel. Ela não nutria nenhum sentimento por aquele ser horrendo, mas era
aquele ser que lhe dava algo nunca experimentado, o afeto de um pai.
Umbra fechou os olhos, sentindo o afago quase infantil em sua bochecha.
— Você veio, sabia que viria — disse o Deus Baixo.
Ela não tinha escolha de estar ali, mas, ao mesmo tempo, pareceu certo.
Os dedos frios pouco a pouco foram descendo, até envolver o pescoço de sua filha.
Umbra abriu os olhos, mas o medo não se aparentou nela, afinal, já estava sendo
engolida por aquele ser.
— Juntos, iremos ruir esse mundo e criar o novo, a nossa semelhança. Os tigres serão
bem-vindos, afinal, a mãe deles me ajudou e, pela competência sublime, fiz que seus filhos
viessem como felinos, o amor verdadeiro dela. Infelizmente, traiu-me, assim como sua mãe, mas
você não irá fazer isso. Aquele ser ali atrás, também não, certifiquei-me.
— Por que não o mata? — A pergunta feita por Umbra a assustou, mas estava
embriagada pelo poder e curiosidade.
— Não posso e nem você, ao menos não esse ser, mas outros, sim. Foi ele que me
chamou e com a morte dele voltarei para onde estava. Contudo, minha cara, você pode liderar os
exércitos dos tigres, podemos formar um exército com os melhores dos reinos.
— Expedia… Pergis, Unema, Liriana, Constela, Nimala?
— Elas podem vir conosco.
— Promete?
— És minha filha, não é?
— Sim.
— Isso responde sua pergunta.
— E quanto a essas pessoas inocentes? — A racionalidade de Umbra apitou.
— Que elas corram para as suas Deusas.
— Mas-
Então, a queimadura sobrepujou cada canto do seu ser e a criatura dentro dela arranhou
suas entranhas. Diferente de todas as outras vezes, Umbra se sentiu fora do controle, não
conseguia acalmar a sede da carne. Ela não queria matar pessoas inocentes, mas o poder, o poder
que aqueles glóbulos vermelhos lhe davam era intoxicante.
— Não– — A voz quebrada de Lucíferos soou fracamente, e Umbra recobrou um
pouco a lucidez do absurdo que estava acontecendo ali.
A mutana deveria matar aquele ser. Mas como? Como?
A queimadura se expandiu e Umbra se encolheu em dor, mas o Deus Baixo apertou o
pescoço já tantas vezes machucado. Suas vias aéreas foram bloqueadas sem quaisquer
dificuldades e mesmo se debatendo, o ser gigantesco sequer balançou.
Sua fera saiu, libertando-se completamente e seu pai a soltou.
Umbra foi para o chão em quatro apoios e o grito de desespero gerou uma lágrima em
Lucíferos, mas infelizmente, não foi ouvido pela mutana. A dor excruciante rasgou a sua pele
cinza que foi substituída pela pelagem branca, entretanto, suas patas traseiras cresceram mais do
que o habitual, criando-se ainda mais musculatura, deixando-a em dois apoios. Suas patas
dianteiras cresceram igualmente, deixando-a com articulações humanoides e suas garras se
estenderam similares a lâminas mortíferas, assim como seus dentes, que estavam ainda maiores
do que em suas transformações anteriores. A meia-lua continuava em sua testa, mas seus olhos
acompanhavam o escarlate de seu pai, assim como a sua altura. Umbra agora era o monstro que
sempre temia. A fera soltou um grunhido feroz e seu abdômen contraiu-se, demarcando o
desenho muscular.
— Agora está completa, em sua forma verdadeira, e assim deve ficar. — O Deus Baixo
falou, com orgulho em sua voz, mesmo que o crânio canino tenha continuado sem qualquer
expressão de emoção.

∞∞∞
Expedia não tinha ideia de como havia chegado ali. Sua mente estava extasiada demais
para compreender como a morte se espalhou pelo seu reino e pelos Luares também.
Ela estava com um cavalo, Unema, Marianne e Nimala estavam logo atrás, cada uma
em seus equinos, e aceleradas estavam passando pelas cidades Solares e Luares, entristecidas
com tudo o que viam. Deuses, a guerreira poderia odiar os Luares, mas jamais faria tal atrocidade
com um povo inteiro.
Passando pelas árvores retorcidas pelo tempo, reconheceu o silêncio da fauna e da flora
do local, os animais não mais viviam ali. Fazia anos desde a última vez que passara por esse lado
do território dos Luares, mas a facilidade que entrava na área perto da Capital era desoladora.
Olhou para trás e viu Marianne esticar o braço para cima, no mesmo instante a ave de
penas douradas repousou sobre o antebraço coberto por uma luva grossa e acolchoada de couro.
Ela retirou o pedaço do pergaminho de um compartimento anexado no peito da ave, fazia tudo
isso cavalgando com certa destreza. Contudo, Unema aproximou seu equino de sua antiga
conselheira, resguardando a sua segurança.
Marianne colocou o bilhete dobrado em seu cinto fino dourado e retirou de uma bolsa
na lateral do seu quadril um pequeno biscoito triangular, colocou-o no bico da Goldina e liberou
a ave, impulsionando seu braço para cima.
Foi graças aquela mulher careca, que agora tinha a ilustração da metade de um sol e a
metade de uma lua cheia. Era um sinal de respeito e paz, era isso que Marianne queria, um
objetivo diferente de Expedia, pois, apenas desejava ter sua amante de volta. Todavia, seria
eternamente grata a sua antiga conselheira, foi ela que liderou toda a investigação e graças aos
seus contatos intactos, conseguiu desenhar um trajeto inteligente para encontrarem seu irmão e a
guerra. Chegou até mesmo a encontrar no meio do caminho um general Solares e uma General
Luares, que estavam lado a lado, dividindo uma fogueira precária. A guerreira estranhou ao ver
aquela cena, mas ambos se negaram a lutar em uma guerra que não parecia ter sentido.
Reafirmaram ver uma criatura gigantesca com a cabeça de crânio de um lobo. Lucíferos também
não parecia estar em sua sã consciência e até mesmo os guerreiros Luares pareciam rendidos a
aquele ser. No final, todos pareciam estar se matando.
Aquilo pegou Expedia desprevenida e ainda mais confusa, ela precisava encontrar
Umbra o mais rápido possível. Mas agora, chegando a Quioros, encontrava-se ainda mais aflita e
impaciente. Bateu as rédeas no cavalo, obrigando-o a acelerar, situou-se em um conjunto de
árvores queimadas com os restos dos troncos onde se erguia um corpo com ossos largados por
urubus, após destroçarem toda a carne. O solo misturava-se entre a terra e a fuligem liberada
pelas chamas. O corpo empalado, pendurado por uma lança, chamou a atenção de todas,
principalmente a poça de sangue seca logo abaixo da abertura da ferida.
Caminharam lentamente com os cavalos hesitantes, até que encontraram a torre branca,
agora borrada de sangue, terra e limo antigo. Em volta da estrutura, guerreiros Solares e Luares
acampavam ali, guardando o local. Mais à direita, longe o suficiente dos homens e mulheres que
estavam ali, uma pilha de cinzas e membros queimados que resistiram à cremação esperavam a
segunda rodada de chamas. Era um espetáculo de horrores, aliados estavam, mas ainda assim, a
guerra continuava. O Deus Baixo estava articulando algo maior.
Quando surgiram na visão dos guardas, todos se levantaram em praticamente uníssono,
de modo a findar o grupo de mulheres.
Expedia desceu de seu cavalo, retirando sua espada da cintura. Marianne fizera o
mesmo, mas ao invés de segurar uma lâmina longa, puxou dois sais dourados da parte de trás de
sua vestimenta. Se a guerreira usava a força bruta, sua antiga conselheira era rápida como uma
rapina, usava seu corpo flexível para dançar em volta dos inimigos. Unema transformou-se no
perigoso tigre, o maior de todos das crianças perdidas, suas listras negras estavam iluminadas,
um efeito que começou desde o primeiro dia da Lua Vermelha. Reconheceu que sua habilidade
também estava ainda mais poderosa, o que sinceramente era ótimo para vantagem.
Nimala foi a única que não desceu do seu equino, mas sua habilidade iria ser usada,
manipular memórias iria ser ótimo para distração.
Logo que a batalha começou, Marianne pulou sobre um guerreiro Solares, envolveu
suas pernas no quadril do homem e o esfaqueou com as lâminas curtas nos ombros dos inimigos.
Empurrou-o e deu um mortal para trás, ao aterrissar no solo, jogou um de seus sais na coxa de
uma guerreira Luares.
Expedia usava sua espada como um martelo, chocava a sua lâmina contra a de seu
oponente, sua força era monstruosa, a tal ponto que o guerreiro soltou a sua espada e a lâmina
afundou no crânio Luares. Quando se virou para o próximo inimigo, sentiu o estardalhaço do
vidro se chocando contra as suas costas, no mesmo instante, o líquido começou a corroer a sua
brigantina. Tentou retirá-la, sentindo o líquido penetrar cada vez mais rápido em sua armadura,
em breve a sua pele seria desmanchada como um pergaminho solto na água. Para o seu azar
infinito, um guerreiro Solares reconheceu o seu estado de desespero e veio em sua direção.
Aquele homem que um dia declarou devoção absoluta para sua rainha, agora estava prestes a
matá-la. Por sorte, conseguiu retirar sua armadura a tempo, desviando do golpe, desferiu três
socos no rosto do guerreiro, derrubou-o no chão e a sola de sua bota foi de encontro com a
traqueia do homem repetidas vezes. Sua raiva era tanta que continuou seu massacre até que os
ossos do guerreiro virassem farelo.
Unema surgiu em sua visão periférica, atacando mortalmente a Luares que havia
acabado de jogar a alquimia em suas costas. A imensa boca felina encontrou a cabeça da
guerreira e os dentes mortais rasgaram a face da coitada.
Eram guerreiras exímias, Unema e Expedia, mas conhecer o lado violento de Marianne
foi surpreendente. Elas eram uma equipe infalível, apenas faltava sua Umbra, com elas quatro
juntas, tinha a total seguridade que poderiam valer por um exército inteiro.
Após acabar com os últimos guerreiros subiram a escada da torre, com dificuldade,
Expedia abriu a porta de aço e o que encontrou lá dentro fez o seu ódio por Lucíferos se findar.
Seu irmão estava não reconhecido, sua pele sadia parecia podre, seus ossos estavam
protuberantes em cada oportunidade que era dada a eles. As roupas desgastadas e sujas
demonstraram que estava dias naquele estado, pobre Lucíferos, foi engolido pela vaidade do
poder e agora encontrava-se em um estado calamitoso. Talvez fosse melhor estar morto do que
estar naquela condição.
Expedia adiantou-se e colocou-se de joelhos na frente de seu irmão. Unema ainda
terminava de vestir as suas roupas, chegou logo em seguida, sem conter o seu horror, puxou o ar
pela boca e arregalou os olhos.
— O que ele fez? — perguntou a governanta retoricamente.
— Lucíferos! — Chamou Expedia, tocando gentilmente a mão esquelética e gelada de
seu irmão.
— Hmm... — O som saiu da garganta arranhada de seu irmão. Ele abriu os olhos e,
assim como Unema, arregalou os olhos lotados de vasos estourados. — Hmm!!!
Sequer tinha força para falar.
— Nimala, entra na cabeça dele, sei lá, por favor, por favor!!! — Pediu a guerreira,
aflita.
Ela queria entender o que estava acontecendo com o seu irmão.
— Unema, ajude-o, pegue a bolsa de suprimentos no cavalo! — Ordenava desesperada.
Precisava tirar seu irmão dali e de preferência com vida.
Fizeram aquilo que Expedia falou. Nimala se sentou ao lado de Expedia e Unema se
retirou junto a Marianne.
— A vida dele está por um fio, mas algo o prende aqui — comentou Nimala em uma
assustadora calma. A velha Luares repousou a mão sobre o peito fraco de Lucíferos. — Talvez,
ele consiga falar comigo, tudo depende de como estará o seu espírito. — E então fechou os
olhos.
Lucíferos fez o mesmo e Expedia observou como espectadora passiva o que estava
acontecendo em sua frente. Era angustiante observar e nada poder fazer, sentiu-se inútil perante
toda a situação, não apenas pelo seu irmão, mas por sua amante também.
A governanta e a conselheira adentraram pela segunda vez aquele local enquanto
Nimala fazia o seu papel. Unema se colocou ao lado oposto de Expedia, abriu a bolsa de
suprimentos e gentilmente começou a cuidar das escaras do irmão da guerreira.
Demorou cerca de trinta minutos e, quando Nimala voltou, estava cansada. Com os
olhos marejados em lágrimas doloridas.
— Ele vendeu sua própria alma para o Deus Baixo — informou Nimala.
— O que isso significa? — indagou Marianne.
— Significa que se Lucíferos for morto, o Deus Baixo também será — continuou a
velha Luares.
— Deixá-lo aqui foi um pouco irresponsável, não? — perguntou Unema, enquanto
limpava uma ferida que já continha uma pequena larva caminhando pelo sangue seco.
— Ele deixou guerreiros aqui, achou que pudesse ser suficiente, sem contar que ele
está com Umbra, ou o que restou dela. Lucíferos disse que ela virou um monstro tão poderoso
quanto ele. O próprio pai a cerceou, dando-lhe um sofrimento sem tamanho. Umbra é a arma
secreta do Deus Baixo — inteirou Nimala ao se levantar. Seu joelho esquerdo estalou
auditivamente e foi incapaz de guardar o gemido de incômodo — O Deus Baixo sabia que
mesmo que você se encontrasse com Lucíferos, você não o mataria e ele tem razão. Expedia, ele
manipulou tudo.
— Eu vou encontrar esse filho da puta e arrancar aquela cabeça esquelética de seu
corpo. Eu li uma vez, que arrancar a cabeça de alguém é a melhor maneira de se certificar que ele
irá morrer. Ninguém vive sem a cabeça, nem mesmo um Deus. — Prometeu Expedia, cerrando
seus punhos sobre as coxas. — Devamos ir imediatamente.
— Lucíferos deseja ir junto — comunicou a velha Luares.
A guerreira olhou para o seu irmão e ele piscou fortemente.
— Per–doe.
A palavra arrastada e quebrada foi dita pelo rei dos Solares.
— Isso é loucura. — Negou-se a atender o pedido.
— Não é, talvez Lucíferos seja necessário. — A governanta expôs o seu pensamento,
enquanto envolvia o tecido medical empapado em um emplastro vermelho no antebraço do
irmão de Expedia. — Encontrei uma carroça lá fora, podemos o colocar ali, Nimala e Marianne
podem cuidar dele, enquanto vamos na frente.
— Eu não estou gostando disso — Disse a guerreira.
— Ninguém está, Expedia. — Nimala concordou, colocando a mão sobre o ombro da
filha. — Mas por enquanto é a única saída.
Expedia suspirou contrariada, mas por fim, acenou em positivo.

∞∞∞
A cidade Luares estava sob chamas de fumaça branca, misturando-se às nuvens, que
em breve estariam vermelhas. Os lindos monumentos brancos, azuis e prata, reluziam ao sol
quente do verão da Deusa que representava a calidez eterna. A grande imagem da Deusa da Lua,
posicionada no prédio mais alto, em meio a cidade, erguia as mãos para o céu com um
pergaminho em mãos. A lua cheia vermelha em meio a sua testa brilhava como rubi, entretanto,
infelizmente, a retratação da brancura polida estava demolindo ante aos olhos das testemunhas, o
braço esquerdo caía, destruindo estruturas em sua volta, até chegar ao solo, causando um tremor
assustador na terra. A cidade erguida em andares, conectada por imensas e sinuosas escadas
brancas, parecia uma tentativa de alcançar o céu na plenitude da calma da Deusa Lua. As
colossais paredes brancas seguravam toda a cidade que parecia flutuar. Focos de batalhas nos
diferentes andares da cidade límpida manchavam o sangue em sua palidez e seu prateado.
Umbra se mimetizava aos alicerces da cidade, exceto sua boca e garras, que eram
pintadas pelo sangue dos seus inimigos, sejam eles quais forem. Apenas ouvia o som da carne
rasgando, do grito do desespero e das lâminas se chocando. A fera gigantesca não tinha distinção
de seus inimigos, matava quem estava à sua frente, enumerando uma quantidade cada vez maior
de assassinatos sobre o seu ser.
Expedia havia acabado de entrar na cidade junto com Unema totalmente transformada
em seu tigre magistral. Conseguia ver através da guerra e do decesso das pessoas em volta a fera
gigantesca andares acima. O lobo de duas patas e de articulação humanoide estava imparável,
usando o seu corpo como arma. Ao lado de Umbra, o Deus Baixo estava, era imunda a criatura
de cabeça de crânio. Alinhado com a roupa impecavelmente sem sangue, mancha ou amarrotada,
o ser usava apenas as mãos para arrebatar seguidores que julgava serem usáveis para o seu plano
maior. Se alguém tentasse o atacar, o golpe nunca era finalizado, pois, uma estranha membrana
agitava-se em volta do seu corpo, deixando-o impenetrável.
A guerreira usava a sua lâmina certeira para abrir caminho, assim como a mutana, não
fazia distinção entre os exércitos, seu objetivo era chegar até a sua amante.
— UMBRA!!! — Berrou Expedia, no começo da escada, usando todo o seu ar para que
sua voz reverberasse nos esqueletos dos prédios arruinados.
As orelhas da fera branca se mexeram, e no topo da escada que levava uma linda praça
com casas pequenas de cor perolada, a mutana olhou para baixo.
Os olhos vermelhos caóticos encontraram os castanhos quentes de Expedia. Não houve
nenhum reconhecimento, eles estavam transmitindo nenhuma emoção, vazios eram. Como o do
Deus Baixo. Umbra desceu um degrau, atraída pelo olhar conhecido. O focinho se mexeu,
tentando reconhecer o cheiro daquela mulher de cabelos castanhos selvagens. Ela conhecia
aquele odor, mas de onde? O peito colossal subia e descia, coletando cada nuance, contudo, algo
mudou dentro da fera e qualquer chance de reconhecimento esvaiu-se. O rosnado nasceu na
garganta da fera e os dentes afiados foram expostos, junto a uma baba espumante. O lobo pulou
alguns degraus e correu, se lançando em direção a guerreira.
Expedia ergueu a espada para se defender e até conseguiu, pois, sua lâmina se chocou
contra as garras compridas da mutana. Seu corpo foi projetado para trás, fazendo com que ela
caísse contra o piso liso de mármore. Umbra foi junto dela, montando em seu quadril, erguendo
novamente a sua garra para dar o golpe final, porém, assim como aconteceu com Expedia em sua
última batalha, o braço da mutana congelou em meio ao ar. Seus olhos escarlates tremularam um
pouco, antes de jogar a cabeça para trás.
Umbra batalhava na dualidade infinita, seus membros se mexeram, sua força era por
demasia poderosa, mas o intuito não foi atacar Expedia e sim segurá-la, infelizmente suas unhas
perfuraram os ombros da guerreira, causando um grito de agonia eterna, e que para sempre
marcaria sua alma.
Nimala estava dentro das memórias de Umbra, dando-lhe de presente as lembranças
saborosas e felizes que passou junto a Expedia e as pessoas que cultivou carinho. Eram elas
lindas, mas doloridas, pois encolhida no canto escuro de sua própria cabeça, a mutana apenas
assistia, chorando como uma criança desalentada. A fera agitou-se, levantou-se do colo de
Expedia e suas patas humanoides golpearam suas têmporas sem parar, até que as memórias
tremularam e a escuridão eterna tomou conta de sua cabeça. Sentiu o toque de seu pai em seu
ombro, deixando-a ainda mais desolada, seus olhos escarlates olharam para o chão. Expedia
estava lá, jogada, com dor e com o sangue molhando o lindo mármore. Combinação linda essa, o
vermelho e o branco. Assim como o dourado e o prateado. Como a água e o fogo. A calma e a
agitação da vida. Contrapontos que encaixavam perfeitamente.
Nimala surgiu, subindo os degraus e junto a ela estava Marianne e Lucíferos.
— Elas traíram você, minha querida filha. — Desprezou o Deus Baixo, na orelha
felpuda do monstro que Umbra era. — Como pode confiar em seres assim? Lembre-se, nós
iremos construir o mundo a nossa imagem. Encontrará alguém à sua imagem.
A fera choramingou, como um filhote de cachorro, mal parecia o ser que assassinava
sem pestanejar. Umbra não tinha o controle, estava dividida, pois, mesmo odiando o que estava
fazendo, ela não parava, era como se parte de seu ser concordasse com a restauração para que
semelhantes como ela pudessem vir à tona. Aquela ideia pareceu menos desoladora, mas era
errada.
O tigre também surgiu logo atrás, o sangue também se espalhava em sua linda
penugem de cores vibrantes. Unema foi a única a se aproximar, ficando entre Expedia e Umbra.
Ela se sentou no chão e rugiu levemente. Umbra inclinou a cabeça para o lado e suas orelhas
mexeram em curiosidade. Mesmo não sendo um ser semelhante a ela, era bom ver um ser como
ela. Distanciou-se de seu pai, atraído pelo grande felino, agachou-se ficando à altura de Unema.
Havia um reconhecimento ali, a governanta?! Sim, era a governanta, uma mulher forte,
independente, que a mutana sentiu-se afeiçoada rapidamente. O que ela estava fazendo ali? Veio
se juntar a ela?
E novamente, seu raciocínio foi interrompido, seu corpo foi puxado para trás e ele se
chocou violentamente nos degraus da escada branca.
Seu pai estava em sua volta, pegando-a pelo pescoço, até que ela ficasse sentada.
Choramingando, os olhares escarlates se encontraram.
— Não me decepcione, Umbra. Você é fantástica, única, poderosa para pisar em todos
eles. Eu lhe dei essa força, a força que sempre lhe faltou — disse o Deus Baixo, apertando seus
gigantes dedos em volta do pescoço peludo do lobo.
Umbra se debateu, por mais uma vez, sentindo a dificuldade de respirar, seu corpo
queimava e o sofrimento invadiu o seu corpo. O uivo dolorido cessou a guerra por alguns
instantes, pela força do som melancólico cantado para o crepúsculo cada vez mais vermelho.
— SOLTE-A! — Gritou Expedia.
Umbra reconheceu aquela voz, era tão enérgico aquele chamado, que o uivo parou e os
dedos se afrouxaram em volta de seu pescoço.
Expedia, mesmo ferida, correu em direção ao grande Deus, levantou a sua espada e
tentou golpeá-lo, mas a sua lâmina ricocheteou através da membrana impenetrável do Deus
Baixo.
— Eu posso até não te matar, mas posso fazer você sofrer. — Ameaçou o senhor das
Trevas, soltando Umbra por completo.
— Umbra, por favor, Umbra! — Expedia chamou em desespero por sua amada.
O Deus Baixo investiu o seu poder sobre a guerreira, a palma de sua mão avançou de
baixo para cima, encontrando perfeitamente o tronco desprotegido de Expedia. Seu corpo
absorveu o golpe com extrema facilidade e ela voou alguns metros para trás, onde mais uma vez
encontrou o solo. Sua consciência lhe traiu um pouco, mas forçou seus olhos a ficarem abertos,
se mexeu sobre o mármore, esticando sua coluna em um arco e gemendo em dor. Reuniu a força
que lhe restava e se virou, ficando em quatro apoios, tentando sorver o ar para os seus pulmões,
mas parecia quase impossível, quando viu o Deus se aproximar de novo, tentou se colocar de pé,
mas estava fraca. Para sua sorte, o tigre avançou sobre ele, mas nada aconteceu, pois novamente,
a membrana o protegeu.
O golpe dado em Expedia foi repetido em Unema, seu corpo felino bateu contra uma
pilastra e quando se encontrou com o chão, já estava desfalecida.
— Se você não fizer nada, Umbra! A mulher que você ama e tudo que conhece vai
morrer! — Nimala falou, soltando Lucíferos e aproximando-se do lobo. — Desprende-o da sua
mente, lembre-se que o seu lugar de trevas pode se transformar! Lembre-se de tudo o que eu te
ensinei, por favor!
O pedido aflito de sua figura materna despertou-a por alguns instantes. Nimala tinha
razão, não tinha? Sim, ela tinha!
Aos poucos, colocou-se de pé e seu pai se virou para ela.
— Pense no que está fazendo. Pense no que você é.
O peso das palavras do Deus de Baixo era tão profundo que se agarrava nela como erva
daninha. O que seu pai fazia era além da manipulação, era um tipo de dominação que chegava
em seu âmago e influenciava diretamente a sua fera.
O lobo rosnou, fechou os olhos, balançando a cabeça de um lado para o outro
desvairando em passos incertos. Cobriu a cabeça com as próprias garras e continuou soltando o
som de fome, até que sua estatura começou a diminuir. A pele cinza voltou à vida novamente, e
as mãos humanoides substituíram as patas mortíferas. O rosto pintado pelo sangue de suas
inúmeras vítimas, desenhou-se em suas lindas feições. Nua, a fera havia voltado para o seu
controle e Umbra voltava a vida.
Todos a olharam, surpresos… naquele instante, a vermelhidão dos céus tornou-se mais
amena e os sons de guerra pareciam mais uma vez cessados.
— Umbra! — Seu pai lhe chamou. — Umbra, minha querida. — Aproximou-se. — O
que está fazendo?
A mutana o olhou, os olhos brancos frios e calmos os encarou. As emoções estavam
assentadas, controladas, bem diferente do que se encontravam momentos atrás.
Sua nudez não a incomodava, justamente, ao contrário, estava livre de tudo.
O Deus Baixo chegou até ela, pronto para envolver os seus grandes dedos em volta do
pescoço da filha, mas Umbra foi mais rápida, apoiou sua perna esquerda para frente, dobrou os
joelhos e espalmou as mãos na cintura do Deus Baixo. Impulsionou suas pernas e em um grande
choque, o corpo de seu pai voou, com o impacto muito maior do que Expedia e Unema
experimentaram. Foi tão grande a força que o Deus Baixo colidiu contra uma casa, fazendo ela
ruir no mesmo instante.
Ela olhou para o pai, que assim como Expedia, tentava se colocar de pé.
Deusas, Umbra não parava de surpreender, a sua força era única, talvez, se pudesse
dizer, a criatura mais forte que já pisou nessa terra.
— Umbra, AGORA!!! — Lucíferos falou, irrompendo em uma adrenalina final.
A mutana voltou com os seus olhos para o seu cunhado e assentiu positiva. Caminhou
até ele, apanhando a espada de Expedia no meio do caminho.
— O que você está fazendo?! — Expedia perguntou aflita, onde mais uma vez, tentou
se levantar.
Umbra ficou frente a frente com Lucíferos, levou sua mão até a bochecha esquelética
do homem e seu queixo tremeu, os olhos tranquilos encheram-se de lágrimas. Ela estava prestes
a cometer seu último assassinato. Talvez Expedia nunca fosse lhe perdoar, mas se isso não fosse
feito, poderia voltar a ser o monstro anterior.
— Está tudo bem, é o único jeito. Apenas cuide da minha irmã. — Pediu Lucíferos em
uma lucidez invejável.
Em um golpe, rápido, limpo e certeiro, perfurou o coração do seu cunhado, dando-lhe
uma morte rápida e limpa.
Assim que a alma de Lucíferos deixou a matéria, a noite escura de estrelas verdes foi
tomando forma e a lua prateada brilhava no céu, com a dor de ver seus filhos Luares e Solares
mortos. Pela primeira vez, a Deusa da Lua sentiu falta do abraço caloroso de sua irmã. Pelo ódio
alimentado e enaltecido por ambas, inocentes jaziam mortos nas cidades do continente e foi o
único ser diferente de todos que encerrou esse ciclo, mesmo sendo responsável pela morte de
muitos, inclusive de seu próprio pai, mães e cunhado. Foi Umbra que as Deusas quiseram
proteger. O caminho de sofrimento desse ser deveria acabar aquela noite, sob a pele prateada que
brilhava ligeiramente como diamantes preciosos.
Observaram as amantes agarrarem-se e desabarem em cansaço e choro. Contra o piso
de mármore, pintado com suor, sangue, poeira e lágrimas, abraçaram-se como se as vidas delas
dependessem daquilo. Pouco a pouco, soldados Luares e Solares reuniram-se na volta das duas
poderosas mulheres, o corpo de Umbra ainda trajado com o brilho da sua pele foi coberto
parcialmente por uma capa, ao menos suas delicadezas femininas.
Um canto eterno das almas perdidas fora cantado, Solares e Luares choraram pelas
perdas que ali foram feitas, não mais desejavam isso. Por pouco, muito pouco, suas existências
iriam sucumbir às trevas de um Deus Baixo.
O corpo do ser não mais existia, apenas o crânio do lobo que descansava quebradiço
sobre os escombros da casa. Esquecido, como sempre deveria ter sido.
— Eu amo você. — Foi o que Umbra conseguiu dizer, perante toda a comoção.
Expedia retirou da pequena bolsa fixado de seu cinto, um anel de prata, onde o sol e a
lua se tocavam, contemplando uma à outra. Escorregou-o no dedo anelar de Umbra, sem nada a
dizer, não precisava, os olhos encaravam um ao outro na mais absoluta paixão que amantes
dividiam.
Eram elas, o complemento uma da outra. O equilíbrio perfeito para que um novo
mundo pudesse ser continuado. Nunca se esquecendo do passado doloroso, mas desenhando um
futuro diferente e único. Como elas mereciam.
Suas almas agora eram uma.
O Sol e a Lua.
Juntas, o crepúsculo.
EPÍLOGO
O lobo corria na floresta particular da ilha que morava por dois anos, quatro tigres a
acompanhavam, um deles era imenso, quase tão grande quanto o canino. Eles pareciam apostar
uma inútil corrida para provar quem era o mais veloz.
— Elas sempre fazem isso. — Marianne comentou deitada sobre uma pedra no riacho,
enquanto sorvia o delicioso dia quente.
— Elas sempre empatam e sempre brigam, teimosas que tentam se convencer que uma
é mais ágil que a outra — disse Expedia, que nadava tranquilamente na água cristalina.
As duas ouviam o som dos galhos e das patas se chocando contra a grama e o solo da
floresta, que estavam cada vez mais próximas devido ao som que provocavam. Entre rugidos e
rosnados de felicidades.
Dois anos haviam se passado e muita coisa tinha mudado.
Primeiro Marianne e Unema estavam com suas almas unidas, assim como Umbra e
Expedia.
Pergis finalmente parecia ter dado o primeiro passo para pedir um encontro para
Liriana. Fazia quatro anos que se conheciam, mas foi apenas meses atrás que a guerreira sentiu a
mudança de tensão entre os dois.
Expedia tornou-se cada vez mais próxima de Nimala, chamando-a de mãe algumas
vezes. Percebeu que durante o tempo, passou a amá-la profundamente, preocupando-se com a
sua saúde e bem-estar. Uma vez ao mês, enviava curandeiros para uma checagem minuciosa e
mesmo aborrecida, Nimala aceitava. Era uma estranha forma de demonstrar carinho, mas
aceitava.
A ilha estava prosperando, agora com cerca de 520 pessoas, era de bom tamanho,
Expedia achava, gostava que o seu lar não fosse tão povoado, queria um equilíbrio com a
natureza, onde as crianças perdidas e Umbra pudessem brincar e correr pelas florestas. Com o
tempo passando, pessoas do continente pararam de aparecer à procura de abrigo, pois com o final
da guerra, conselhos e reuniões foram propostos inúmeras vezes de ambos os lados e em quase
todos esses encontros houve participação de Unema, Expedia e Umbra. Aparentemente, as
fronteiras entre os reinos estavam abertas para que qualquer um pudesse transitar, ou seja, um
Solares poderia agora estudar na universidade dos Luares e os Luares poderiam usar o litoral
praticamente dominado pelos Solares, a fim de transitarem mais e aumentar a rota mercantil.
Cada reino mantinha as suas regras, leis e deveres, mas a relação entre eles começou a se tornar
respeitosa, talvez, um dia, sendo positiva, poderiam ser até mesmo amigáveis.
Expedia não tinha como negar, sentia falta da monarquia, de ser uma rainha, mas doía
ainda mais a perda de seu irmão, mesmo com todos os seus infinitos defeitos, no final das contas,
ele sempre foi o seu irmão.
A guerreira despertou de seus devaneios quando viu duas feras saltarem do limiar da
floresta diretamente para o riacho. Os corpos maciços e peludos submergiram a água e quando
voltaram à superfície, eram elas em forma humana, nuas e esbaforidas, jogando jatos de água
uma na outra.
— EU VENCI!!! — Pronunciou Umbra. — Você está ficando velha, Unema. — E
assim que terminou de ofendê-la, escondeu-se atrás de Expedia, à procura de refúgio.
A guerreira e a conselheira riram.
Unema e Umbra tornaram-se amigas íntimas e poderosas. Eram elas imbatíveis.
Uma vez, há não muitos meses, uma pequena embarcação de piratas tentou invadir o
porto da ilha e apenas elas duas foram o suficiente para colocá-los para correr.
Na realidade, essas quatro mulheres eram imbatíveis. As poucas vezes que se reuniram
no campo de batalha, sendo para espantar ladrões na fronteira de uma cidade Luares ou chutar
assediadores na cidade dos Solares, foram certeiras e coreografadas.
As quatros eram quase como uma família.
— Me respeite, Umbra — disse Unema em uma falsa censura, antes de sair d’água.
Vestiu-se e se deitou junto a Marianne, que repousou sua cabeça no peito.
Umbra e Expedia se afastaram um pouco, nadando em direção à floresta. Quando
estavam com intimidade o suficiente, se abraçaram em um delicioso encontro e os lábios
juntaram-se em um beijo lânguido e de amor absoluto.
— Aqui é a nossa perfeição, Expedia. Tudo o que é importante está nessa ilha.
— Tudo graças a você.
— Graças a gente. Seremos lembradas eternamente, minha querida rainha.
— Seremos… estou orgulhosa de você, não me canso de dizer isso — falou Expedia,
ao acariciar a pele cinza. — Obrigada por não me deixar sozinha, não fugir ou desistir de mim.
— E obrigada, você trouxe a minha identidade.
E assim, beijaram-se novamente, sendo testemunhadas pelas irmãs Lua e Sol. Eram
elas orgulhosas por terem seres tão poderosos capazes de mudar o rumo de toda uma civilização.
Poderosas seguiam, quase como semideusas caminhando pela terra.
Bem, talvez fossem, isso ninguém saberá, apenas as Deusas.
Sobre o autor
Mariana Rosa
Instagram e Twitter: @mari_mrosa
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apreensiva e amedrontada, pois Kira não sabe os detalhes de quem ela era.

Agora, encontra-se entre a dualidade de enfrentar o seu passado ou continuar escondendo para
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aquele ser monumental de olhos cor de petróleo e feição madura. Uma proposta é feita e Allie,
rendida pelo feitiço daquela mulher, aceita. Uma proposta que lhe renderia a mais incrível
experiência de sua vida. Joanna estava à procura de mais uma acompanhante. Alguém para
satisfazer seus mais profundos desejos e acabou encontrando muito mais em uma doce e
tentadora stripper. Ela percebia que Allie era o seu verdadeiro cataclisma, seu calcanhar de
Aquiles, mas a garota era promissora e Joanna a desenharia de acordo com o seu prazer. Juntas,
embarcam em uma quente e alucinante paixão. Onde o sexo, o prazer e a complexidade das duas
se misturam, formando um poderoso laço de sentimentos. Perfeita para mim é o terceiro volume
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