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Para duas sereias e um tritão que a magia nos uniu; meus irmãos das águas, que
compartilham comigo a água salgada nas veias e os olhos úmidos de mar: Rachel,
Ingrid e Ph.
“As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu
canto: seu silêncio.”
– Franz Kafka.
Prefácio
Julho de 855
Os portos estavam cheios e barulhentos. Todo tipo de comércio
funcionava ali, e os navios chegavam abarrotados de mantimentos, joias,
armas e tudo o que fosse possível negociar. O oriente produzia riquezas que
não eram encontradas em outro lugar, portanto, era preciso ser ligeiro com a
competitividade para conseguir um bom escambo.
O som era alto e confuso, tal qual uma Torre de Babel, porém, todos
pareciam se entender, nem que fosse à base da mímica.
Ivar tinha acabado de chegar ao local e ainda estava a bordo de seu barco.
Não gostava das regiões de comércio e se incomodava deveras com os
olhares feios que costumavam lançar-lhe nesses lugares. Claro que não se
atreviam a falar-lhe – sabiam o quanto isso seria perigoso –, mas o simples
fato da ocorrência desses olhos inquisidores já era o suficiente para
importuná-lo.
A noite estava quente e ele estava suando e arfando por baixo da roupa
grossa de couro e pele. Não trouxera roupas mais frescas, pois não achava
que iria para aquelas bandas. Seu comprido cabelo loiro se encontrava
melado de suor e incomodava suas costas quando roçava as pontas úmidas. E
as duas mechas trançadas, mais compridas na frente, que cultivava há tantos
anos sem cortar e já alcançavam sua cintura, estavam agora ameaçadas, já
que Ivar estava a ponto de cortá-las, por não aguentar mais nada em cima
dele que lhe fizesse sentir mais calor. Igualmente seu cavanhaque, sempre tão
limpo e escovado, gotejava salgado e o fazia sentir-se nojento.
“Ragnar exagerou na porra de sua punição ao me mandar vir para cá. Sei
que ele não gostou do que fizemos àquele mosteiro, achou que tinha sido uma
manobra leviana demais ao não medir os percalços, ou a não traçar um plano
de contra-ataque. Mas como eu poderia imaginar que o local estava
guarnecido? E nós ainda perdemos nossos melhores homens... Isso não
poderia ter acontecido... Que castigo dos deuses essa merda de ano está sendo
para mim”, pensou ele.
Depois do último ataque à Britânia1, malsucedido, que ele e seu clã de
guerreiros vikings desferiram, que acarretou não só na morte de muitos
companheiros, como também na do irmão de Seawulf – seu melhor amigo –,
seu chefe e tio, Ragnar, não o perdoara. Ivar há tempos era o segundo homem
no clã, o braço direito de Ragnar, que comandava e tomava as decisões
quando o tio não se encontrava. Tudo estava em suas mãos, e ele, no calor
das emoções, fizera uma besteira. Não levara em conta que o mosteiro que
eles atacaram estava em terras há muito guardadas pelo chefe tribal daquela
região. Ivar sabia disso, mas o seu orgulho o traíra. Assim como sua vontade
de pilhar também. E agora, sua punição seria comandar uma frota
comerciante a bordo de um knorr2, até as áreas mais longínquas de comércio.
E o pior, utilizando o perigoso mar aberto.
Se tivessem saído de Hedeby3, provavelmente pegariam sentido à ilha
Rugen, penetrando Wolin, para depois navegar pelo rio Oder até sua
nascente. Então, rebocando o barco até alcançarem o rio Danúbio, seguiriam
o curso até desembocarem no mar Negro, e descendo a costa para chegar a
Bizâncio4. Desse modo, a viagem seria rápida e mais tranquila. Porém, eles
não estavam na Dinamarca, e sim na Britânia. O viking tentou dissuadir o tio
a permitir que eles descessem pelo rio Reno e depois seguissem com sua
embarcação em terra firme até chegar ao mediterrâneo, partindo, então, para
Bizâncio. Porém, somente para atormentá-lo e, principalmente, para puni-lo,
Ragnar obrigou-o a ir por mar, contornando a Bretanha, o império franco, a
Galiza e Astúrias e o território mouro dos emirados omíadas árabes5,
passando então pelo Estreito de Gibraltar até chegar ao Mediterrâneo, para só
então seguir para Bizâncio.
Esta era uma viagem que nenhum guerreiro viking fazia, apenas os
escravos e comerciantes escandinavos realizavam essa perigosa façanha. E
Ivar havia ficado, além de aborrecido com essa ordem, temeroso.
Ao menos, ele pensava, não o obrigara a ir pela rota sueca, que, apesar de
fluvial, era ainda mais arriscada do que por mar, já que eles desciam pelo rio
Dniepre e enfrentavam não só corredeiras fortíssimas – as sete corredeiras
que possuíam nomes igualmente amedrontadores: “O Devorador”, “A Força
das Ondas”, “O Corcel”, “O Grito Grande”, “O Fosso da Ilha”, “O Risonho”
e, por fim, “O Sempre Ruidoso” –, como também tinham que se defender dos
possíveis ataques de piratas eslavos.
Sua frota já passara por diversas outras áreas mercantis e ele se recusara a
sair do barco. Não gostava de gente estrangeira e sabia que sua gente também
não era bem quista. E ainda se culpava deveras pelos acontecimentos
recentes. Seu mau humor estava épico. A lembrança dos amigos e
companheiros que caíram mortos ao seu lado na batalha ainda trazia-lhe
sofrimento e remorso, mesmo sabendo que eles haviam tido a morte mais
honrosa de todas: com a espada nas mãos.
Quando Ivar foi eleito o segundo homem de Ragnar, ele ainda não havia
alcançado os quatorze anos e todos diziam que ele ainda era muito novo e
inexperiente, mas Ragnar não dera ouvido e apostara no sobrinho com toda a
confiança.
“E passadas nove primaveras, o que eu fiz? Quebrei essa confiança!”
Não bastava o aperto no peito que Ivar sentia desde a derrota do último
ataque, em que não pôde nem ao menos promover um funeral digno e
honrado aos guerreiros que lá morreram; agora, nessa região que aportaram, o
calor o estava castigando e já começara a afetar sua mente. Sua indisposição
ainda foi aumentada por conta da comida estragada que comera duas noites
passadas, quando não se deu conta da podridão em que se encontrava a carne
de cervo. Amaldiçoou o imbecil que se esquecera de salgá-la direito, já que
esse procedimento seria a única proteção do alimento contra o calor
escaldante que fazia naquelas terras.
O viking sentia que a qualquer momento iria desabar ali, no chão da
embarcação, tamanha fraqueza e vertigem que o acometeram.
“Não posso receber mais esse golpe. Mesmo que esses tripulantes não
façam parte do meu clã, sei que as línguas são rápidas e ferinas, portanto não
posso deixar que saibam como estou, ou me vejam nesse estado. Infelizmente
terei que desembarcar para verificar se a terra firme me traz alguma melhora
ou ao menos algum conforto.”
Ele sabia que se um comandante enjoasse no barco, achariam que os
deuses estavam dizendo que ele não era capaz para aquele posto e assim
poderia ser desafiado, até mesmo por algum escravo. Isso seria um dos
motivos de maior desonra para um homem, e ele jamais permitiria que as
coisas chegassem a esse ponto. Percebeu que com aquelas roupas não seria
nada fácil aguentar sem desmaiar. Tirou o gibão adornado com pele de foca
na goela e a cinta de couro que o prendia na cintura. Por baixo, usava uma
simples camisa de linho, esgarçada e velha, e resmungou quando se deu conta
que teria que sair assim. Ivar não gostava de andar malvestido, muito menos
perante pessoas que ele não suportava, pois acreditava que uma aparência
poderosa e altiva também era um importante mecanismo na arte de ser
temido.
Entretanto, teria que ser desse jeito mesmo. Ele já havia perdido muito
líquido na viagem, e o calor o estava matando. Então deu ordens aos escravos
e a seus subordinados e desembarcou.
Ragnar era dono de muitas posses, um grande chefe tribal de seu clã e
possuía a maioria dos barcos vikings que Ivar já vira. Barcos pesqueiros,
mercantes, e os mais importantes que eram para a guerra e a conquista. E de
tudo o que era pilhado nos mosteiros e nas cidades as quais eles atacavam,
Ragnar destinava uma parte para ser vendido, ou trocado, nos centros de
comércio ao sul e a leste do mundo.
Além do calor causticante que fazia naquele porto, uma fina chuva deu o
ar da graça, fazendo subir um vapor quente com um forte cheiro de madeira
podre dos píeres. Ele não aguentava mais. Enquanto a chuva batia em seu
rosto, trazendo-lhe uma sensação de frescor momentâneo, o calor que
emanava do chão, aliado ao odor nada agradável da madeira e que agora
ainda se misturara ao cheiro de lama, o deixava em um estado lastimável.
Ele tentava se lembrar do nome daquela pequena cidade onde aportaram;
Ivar sabia que era o porto após o de Roma – a cidade mais impressionante
que ele já vira, com construções que acreditara serem verdadeiras obras dos
deuses, arquiteturas impossíveis de serem feitas por mãos humanas – e a leste
da Grécia, mas sua cabeça não estava em condições de recordar nomes,
mesmo o seu subordinado dizendo-lhe que aquela cidade vinha antes da
impressionante Miklagard6, a “Grande Cidade”– o centro de comércio mais
importante e famoso daquela época. Na verdade, Ragnar ordenara que ele
fosse até lá, porém, Ivar agora se recusara e dera ordens aos seus
subordinados para aportarem em qualquer porto menor, antes dessa grande
cidade. Sabia que não aguentaria o barulho e a muvuca das multidões. Não
agora quando precisava de uma autorreflexão. Ele nem ao menos aproveitara
a viagem que fizera até ali. Ficara emburrado por todo o tempo e mesmo a
visão das praias paradisíacas pelas quais seu barco passou não conseguiu
aplacar sua ira e seu sentimento de culpa, até porque sua mente e seu ânimo
não estavam para diversão ou para o deleite de imagens bonitas. Estavam em
outro lugar, bem longe dali. No campo de batalhas onde seus amigos
pereceram a seu lado, manchando com o vermelho do sangue deles a sua
contundente culpa, por causa de suas ordens impensadas e impulsivas.
O viking não sabia que quando seus pés tocassem a madeira velha e
falseante daquele cais, o seu destino seria selado para sempre...
Capítulo 2
“Precisamos nos mandar daqui antes da aurora, pois não aguentarei esse
maldito lugar com um sol em cima de mim. Estou começando a achar que os
cristãos têm razão em alguns pontos, pois realmente o inferno existe!”
Com esse pensamento e ao olhar para a cara daquelas pessoas estranhas,
ele teve um sentimento há muito conhecido e cultivado: desprezo. Desprezo
pela religião delas e por tudo o que representavam. E, acima de tudo, raiva
pelo paganismo estar perdendo espaço cada vez mais, enquanto o
cristianismo estava se espalhando feito uma peste. Ele sabia que até sua
própria gente, até alguns de seus homens, já estavam declinando às crenças
antigas, já blasfemavam deveras contra os deuses nórdicos e se inclinavam a
aceitar aquele homem magro e fraco pregado numa cruz.
E, caminhando distraidamente com esses pensamentos na cabeça – que
agora já latejava com uma dor que aparecera repentinamente, fazendo agravar
ainda mais sua vertigem –, Ivar não percebeu que estava andando em direção
à saída do porto, numa área bem pantanosa e, àquela hora, bem inabitada.
De repente, como num golpe do destino, o viking tropeçou numa grande
pedra. Após xingá-la e ao depositar o pé, aos tropeços, no solo, não encontrou
mais terra firme, e sim um charco que fez afundar sua perna direita até o meio
de sua coxa. Por um triz não caíra de cara na lama molhada, não fosse uma
pequena ajuda de alguém que, com incrível rapidez, o segurou por trás, pela
sua camisa.
Com o coração saltado, Ivar se equilibrou para deixar o corpo firme e não
tombar para o lado, porém, estava preocupado, já que o broche dourado e
mal-feito que prendia sua camisa estava estalando e fazendo o pano – já
esgarçado – se rasgar.
– Puxe-me de volta, seu maldito! – ele ordenou. – Vá, com força!
Porém, nada aconteceu.
“Mas que merda! Será que esse cristão imbecil não entende minha língua
ou está fazendo de propósito, esperando que eu desabe devagar na lama, só
para depois gargalhar da minha situa-ção? Definitivamente, hoje não é meu
dia! Ah, mas se é isso que ele espera, ou é muito corajoso ou muito burro,
pois quando eu conseguir sair daqui, o matarei bem devagar também,
saboreando cada grito patético que sua garganta produzir.”
A raiva estava apoderando-se dele.
“Ainda se passasse mais alguém por aqui, eu poderia pedir alguma ajuda.
Mas além do porto ter ficado para trás, duvido muito que qualquer pessoa se
aproximaria para me ajudar. Na certa, teriam medo até de sustentar o olhar
para mim.”
Lembrando-se de suas armas naquele momento, Ivar nunca sentiu tanta
falta de sua espada longa.
“Droga! Se minha espada estivesse aqui comigo, com um único golpe e de
costas, trespassaria a barriga desse infeliz sem nem quase me mexer. Teria
apenas que ser ligeiro depois, ao cair para o lado quando o corpo moribundo
deste maldito tombasse para frente, porque mergulhar com a cara na lama
tudo bem, mas ser afogado por esse estrume em cima de mim, não!”
O viking nunca ficava sem suas armas. Suas espadas – longa e curta –, seu
machado, sua lança e seu escudo já eram uma extensão de sua própria
anatomia. E jamais se permitiria viajar sem elas, porém, como mais um
castigo infligido por Ragnar – um dos mais doloridos –, ele teria que
embarcar sem elas. Seu tio concedera que ele levasse apenas a espada curta,
já que Ivar alegou que precisava dela, pois a usava também para cortar
alimentos – uma vil mentira. Todas as suas armas eram os seus bens mais
preciosos, mas nenhuma se comparava em grandeza e adoração à sua espada
longa, a qual tinha o nome de “dente de lobo” por causa de um pequeno
detalhe em marfim que lembrava um dente, em sua empunhadura de madeira,
e porque sua lâmina de duplo gume rasgava a carne inimiga como se fosse a
mordida de Fenrir, o monstruoso lobo do Apocalipse. Além disso, a espada
era ricamente adornada com adamasquinados no cabo, em formato de uma
serpente enrolada a dois ursos e sendo engolida por um lobo gigante.
A “dente de lobo” havia sido presente de Ragnar quando seu pai, que era
irmão de Ragnar, morrera em batalha contra os cristãos de Wessex7, no sul
da Britânia. Ivar nem ao menos chegou a ver seu pai morto. Nem sequer pôde
se despedir, já que o corpo de seu pai havia sido consumido pelas chamas
funerárias em território britânico, no dia seguinte à sua morte. Como consolo,
Ragnar fez de Ivar, enfim, um guerreiro de seu clã e também seu braço
direito, e mandou confeccionar “uma esplêndida espada” para ele. O tio não
poupara esforços, tampouco prata ou ouro, para isso. Importara a lâmina dos
francos – benefício para poucos – já soldada e amolada pelos ferreiros da
Renânia; e o restante da arma havia sido confeccionado na própria
Dinamarca, pelos melhores e mais famosos ferreiros de todo o país, que ele
mandara buscar até em áreas longínquas.
E a espada cumprira bem o seu papel. Era leve e flexível e, portanto, não
atrapalhava em nada a agilidade de seu dono; mas também forte e
eternamente afiada. Tornara-se a melhor entre todas e, aliado com a
habilidade e a ferocidade de Ivar, não demorou a ser a ceifadora principal do
clã nas batalhas. Milhares de vidas já haviam encontrado seu término no fio
de sua lâmina, e se essa espada tivesse o nome batizado pela fama que tinha,
certamente se chamaria: “amiga da morte”.
Agora, porém, naquela situação, Ivar estava sem sua “dente de lobo”, sem
sua lança – que também poderia realizar um pequeno estrago com um golpe
semelhante – e sem seu machado para separar a cabeça do tronco daquele
infeliz. Entretanto, sua espada curta se encontrava com ele na altura de seu
quadril, em uma pequena e singela bainha de couro, revestida com pele de
ovelha. Bem diferente da bainha majestosa que sua “dente de lobo” possuía,
magnificamente adornada com enfeites de bronze e detalhes em prata.
Com um movimento quase imperceptível, o viking passou a mão devagar
sobre o cabo de sua espada curta, como que a certificar que realmente ela
estava ali, e desta vez falou devagar, quase silvando e tentando, sem sucesso,
parecer educado:
– O senhor poderia, por favor, ao menos não me soltar agora? Ainda
gostaria de apreciar mais um momento dessa bela vista da poça de lama,
antes de meus olhos ficarem sujos e embaçados pelo barro... Que tal ainda me
aguentar aí, só mais um segundo? Acredito que eu não esteja tão pesado.
Ainda mais depois de cagar tanto por dois dias consecutivos. Culpa dos meus
escravos. Eles não sabem nem ao menos salgar uma carne direito, pode?
Ivar tentava ganhar tempo até conseguir traçar na mente, passo a passo, a
sua estratégia. Teria que se deslocar com agilidade e pegar seu oponente
distraído, pois corria o risco de não dar certo e, além de cair na lama, o
homem poderia aproveitar para sair correndo, deixando-o sujo e, pior, com
sede de vingança.
Então o viking continuou:
– Você tem um nome? Sabe, eu me chamo Ivar, sou dinamarquês, como
você deve ter notado, e tenho muitas posses...
Nesse momento, a camisa foi rapidamente solta e pega de volta, fazendo
Ivar tomar um susto e ficar ainda mais aborrecido, pois acreditara que aquilo
havia sido de propósito. “Ou então”, pensou, sorrindo após o susto, “o cara é
fraco e não está aguentando mais meu peso.”
– Opa, opa! – O viking disse de modo descontraído, tentando esconder o
peito arfando. – Dessa vez foi por pouco que não caio, hein?
E, com toda a estratégia pensada, deu um súbito giro empunhando com
maestria sua espada curta, agarrando-se ao indivíduo que o segurava pela sua
camisa. Entretanto, devido à inclinação que seu corpo se encontrava, o viking
não conseguiu se sustentar em pé. Assim, ele e seu adversário desabaram e
afundaram na lama, com Ivar ainda o agarrando firme pelo cangote.
Assim que o indivíduo caiu, se debateu com sofreguidão na lama,
engolindo um pouco do barro aquoso; então levantou as pernas para o alto em
desespero e procurou um jeito de se levantar. Quando estava quase sentado,
deu uma desequilibrada e tacou involuntariamente a mão direita no rosto de
Ivar, que a essa hora tentava afastar com a mão esquerda – já que a direita
estava ocupada com a espada curta – o cabelo embarrado de cima de seus
olhos e de seu nariz, que o estava impedindo, ainda, de respirar.
Ao receber o golpe na face, Ivar ficou ainda mais possesso e seu rosnado
soou alto. Mesmo com os olhos fechados e ardendo, tateou seu oponente ao
lado e o agarrou novamente pela camisa. Levantou sua arma, pronto para
desferir um único e eficiente golpe em sua garganta, quando escutou:
– Não, por favor, senhor, pare! Não me faça mal, eu lhe peço...
Assustado, parou de súbito ao escutar uma voz feminina. Balançou a
cabeça para espalhar a água embarrada que caía em seu rosto e forçou os
olhos, que ardiam, a se abrirem.
– O quê? – rosnou mais uma vez, incrédulo. – Você é uma mulher?
Capítulo 3
Ivar não estava preparado para aquilo. Olhou assustado para o rosto
enlameado da mulher e não teve reação. Sua mão esquerda ainda segurava o
braço dela, porém sem qualquer força. A mulher, aproveitando-se desse
descuido momentâneo do viking, puxou o braço com força, levantou-se
cambaleando e pronta para correr o mais rápido que conseguisse. Porém,
ninguém podia fugir de Ivar. Ele soltou sua espada curta e apressou-se a
agarrar a mulher pelo quadril. A moça caiu para frente, mas ainda estava
disposta a se desvencilhar daquelas mãos; mas não contava que ele fosse
puxá-la para trás, com brutalidade. Ela voltou a desabar na lama e o impacto
de sua queda fez espirrar longe o barro molhado, sendo que uma grande
quantidade foi parar novamente sobre o rosto e os olhos já vermelhos de Ivar.
A mulher novamente se debateu com força, querendo se levantar, e o viking a
continha somente com as mãos em seus ombros. Ela gritava e mostrava os
dentes como um animal feroz ou acuado, numa expressão que denotava raiva
e frustração. Ivar não se intimidou com aquele protesto feminino e chegou
com seu rosto bem perto do rosto dela para poder enxergá-la melhor. O barro
impediu seu desejo e ele só pode ver com exatidão os olhos inusitadamente
acinzentados dela, através da lama que os circundavam.
– Calma aí – ordenou ele, sem sucesso. – Se acalme, mulher!
– Então, me solte! – gritou ela, em resposta.
– Estou vendo que você fala muito bem a minha língua. Então quer dizer
que compreendeu perfeitamente meu pedido para que me puxasse a fim de
que não caísse nessa poça? – A lembrança dessa descoberta deixara-o ainda
com mais raiva.
Ela sustentou o olhar duro para os olhos dele.
– Homens como você não sabem pedir. A educação não é cultivada em sua
pobre cultura, não faz parte de sua rotina – cuspiu ela.
– Hum... – examinou ele. – E onde está a sua educação agora? Onde foi
parar aquele “senhor”? – perguntou com escárnio.
– A minha educação – prosseguiu ela imediatamente – acabou no
momento em que fui agarrada com violência, sem ter lhe feito mal algum, e o
“senhor” foi parar, com todo o perdão da palavra, no rabo da cadela que,
infelizmente, pariu você!
O viking não esperava por isso. Jamais se atreviam a levantar a voz para
ele; nem mesmo um bêbado teria coragem para proferir-lhe qualquer
xingamento, mesmo os mais suaves.
A resposta que a mulher dera, primeiramente o chocou. Ivar não era muito
acostumado com mulheres. Lembrava-se brevemente de sua mãe e de suas
duas irmãs mais velhas, porém fora retirado de sua casa para morar junto com
o tio, Ragnar, quando ainda tinha somente seis anos de idade. Seu pai
preferira assim. Dissera que o tio perdera seu filho, junto com sua esposa, de
uma única vez – foi uma gestação perigosa que no final acabou matando a
mãe e a criança – e por isso estava-o mandando para lá para fazer companhia
ao tio, como um filho postiço. O pai dissera que certamente sua mãe lhe daria
mais filhos homens para compensar sua falta – o que não se concretizou, na
verdade. E Ivar acabou convivendo muito mais com seu tio do que com seu
pai, que ia visitá-lo uma vez por mês ou via-o quando ia buscar Ragnar para
alguma batalha.
Por muitas vezes Ivar perguntou por sua mãe, mas o pai sempre dizia que
não havia permitido que ela o fizesse uma visita, pois a mulher sentia deveras
sua falta, e ele queria que com essa distância a saudade se aplacasse.
– Vamos deixar assim, meu filho – o pai dissera na época. – É melhor
você esquecer sua mãe e se concentrar somente em suas aulas. Seu tio Ragnar
irá prepará-lo para ser o melhor guerreiro que essa terra já viu.
E Ivar aceitara, então, a imposição e o direcionamento de seu futuro, sem
reclamar.
Depois de muitos anos, certa vez Ragnar deixou-lhe escapar como havia
sido um terrível golpe para sua mãe o seu afastamento, a sua partida de sua
antiga casa. O tio não entrara em detalhes, mas disse que Tyhra – sua mãe –
chorara incessantemente por mais de uma lua e chegara a atentar contra a
própria vida por duas vezes, sendo socorrida, em ambas as situações, pela
filha mais velha. Na ocasião, Ivar não soube o que pensar. Compadecera-se
do sofrimento da mãe, mas não se sentiu impelido a desafiar a ordem de seu
pai, até porque não se lembrava direito de sua genitora e, por isso, não nutria
amores por ela.
Sua infância foi marcada pelos ensinamentos na arte da guerra: a como
usar as espadas, a lança, o machado e a como se proteger com o escudo. Teve
ainda algumas aulas de arco e flecha, mas foram secundárias e sem grande
importância para ele. Aprendeu a melhor montaria em cavalos, a como
sempre cuidar e conservar suas armas e também como amolá-las
eficientemente. O tio ainda descrevia as batalhas que ele havia participado, as
mortes que nasceram por seus golpes, e como as cabeças haviam sido
arrancadas de seus corpos.
Vários truques foram ensinados a ele, tanto no combate solitário – a luta
corpo a corpo – como em conjunto, sendo que um dos ensinamentos mais
valiosos era como armar uma “parede de escudos” impecável, na qual os
guerreiros tinham que ficar lado a lado, o mais unido possível, com o escudo
empunhado pela mão esquerda e protegendo o companheiro do seu lado
direito. Várias eram as formações para uma “parede de escudos” perfeita, e
cada uma era necessária em determinada batalha. Às vezes a manobra
consistia em apenas uma fileira de guerreiros, em outras optavam por um
formato mais quadrangular, com muitas fileiras atrás de guerreiros
empunhando a lança ou o machado, e ainda havia a manobra “focinho de
javali” – uma formação triangular, com apenas um guerreiro na frente, na
tentativa de conseguir romper uma “parede de escudos” adversária.
A artimanha de cada exército dependia de seu comandante, e Ragnar
treinara bem o sobrinho para sempre usar a astúcia nas guerras – pelo menos
era o que Ivar acreditava antes da última batalha que comandara e de seu erro
imperdoável.
Com toda sua vida regrada a um único objetivo – guerrear –, Ivar não
tivera tempo algum para se aprofundar no universo feminino. Ele sabia que as
mulheres eram ótimas moedas de troca. Quando conquistavam um local, as
mulheres e as crianças nunca eram mortas. As mulheres sem atrativos ou
então velhas eram vendidas como escravas e davam um bom lucro; já as
bonitas, eram reclamadas pelos soldados como um ótimo objeto de pilhagem.
Ivar sabia que muitos de seus companheiros – a maioria – não tinham o
menor impedimento em tomar uma mulher à força, porém Ivar nunca gostara
ou aceitara isso. Apesar de não sentir maiores afeições por nenhuma mulher,
ele não gostava da ideia de seres tão indefesos e inocentes sendo tratados
assim, e sempre dizia a seu clã que não aceitaria ver qualquer estupro nos
locais de conquista ou pilhagem. Ivar sabia que isso acontecia e, em alguns
momentos, até fazia “vistas grossas”, pois tinha a consciência de que nunca
conseguiria impedir todas as vezes, mas se ele visse qualquer de seus homens
atentando contra uma mulher na sua frente, impedia na mesma hora o ato e
muitas vezes ainda matava o companheiro ali mesmo – se não lhe fosse muito
próximo –, com a alegação de desrespeitar uma ordem sua; e se fosse um
verdadeiro amigo a realizar tal vil ato, dava uma severa bronca e depois ainda
o humilhava perante seu clã.
Todos o respeitavam, mas ele sabia que muitos deles não aceitavam e não
entendiam essa sua decisão e, assim, o maldiziam e menosprezavam pelas
costas. Entretanto, nenhum deles jamais desafiou sua liderança. Ele era
conhecido em seu clã como Ivar “Mão da morte”.
As poucas mulheres com as quais Ivar se relacionara eram algumas gentis
e doces escravas que aceitaram de bom grado seu corpo junto ao delas.
Algumas vezes Ragnar dissera que ele deveria se casar, mas ele jamais quis
tal futuro para si, pois achava que as esposas se tornavam mulheres choronas
com o matrimônio, e não via benefício algum nisso. Ao menos era essa a
ideia que ele tinha, já que sempre escutava as histórias de seus companheiros
sobre como suas esposas choraram a partida de seus maridos, a chegada
deles, o falecimento de alguém ou ainda a morte de suas lavouras. Ainda se
recordava sempre, também, das histórias que narravam o sofrimento de sua
mãe. E se tinha uma coisa que deixava Ivar “Mão da morte” totalmente sem
chão era ver uma mulher sofrendo. Ou pior, chorando.
Assim, ao ouvir a frase malcriada que aquela mulher enlameada proferira
em resposta ao seu questionamento, ele novamente ficou sem reação.
Acreditava que as mulheres nem ao menos sabiam xingamentos, já que
eram seres puros, delicados e de falas mansas.
O primeiro choque com aquela realidade que se apresentava em sua frente
o deixou baqueado.
“Ao menos”, o viking pensou, “a chuva fina cessou e o banho de lama
serviu para refrescar essa infernal noite quente.”
Capítulo 4
Assim que avistou a floresta, Ivar entendeu que se quisesse contê-la teria
que agarrá-la antes que pudesse se embrenhar no monte de mato, senão seria
praticamente impossível depois. Ele sabia que ela faria alavanca para um
monte de galhos baterem contra o seu rosto e também tinha consciência que
ela deveria conhecer muito bem aquele local.
Certa vez, Ragnar lhe ensinou uma lição, e ele jamais esqueceu:
A familiaridade com o local e a sapiência de todos os seus pormenores,
como o relevo, a vegetação e o clima, é um ponto muito importante para
quem quer ganhar uma guerra ou simplesmente traçar uma artimanha que o
favoreça, ou então propiciar uma fuga ou um esconderijo, ou ainda ao
menos não ser pego desprevenido numa armadilha natural que não consiga
sair. Portanto, preste bem atenção nisso e jamais subestime um inimigo que
esteja nas terras dele, pois, com certeza, ele terá uma vantagem grande sobre
você, a qual, às vezes, sobrepõe-se até ao tamanho de seu exército.
Ele sabia que só teria uma chance, e não poderia desperdiçá-la. Seria agora
ou nunca. Não deixaria uma desconhecida, cristã ainda por cima, enganá-lo,
humilhá-lo dessa forma e sair incólume.
“Desta vez abrirei uma exceção sobre nunca machucar mulheres. Porque
esta maldita terá o que merece. O fio de minha espada sujar-se-á com seu
sangue!” O desejo por sua vingança sanada o deixou tresloucado, como
igualmente acontecia em batalhas.
Por isso, quando percebeu as intenções da garota e viu que ele não seria
capaz de correr o tanto quanto era necessário, fez algo que jamais faria numa
guerra: se precipitar para cima de seu adversário, tal qual fazia aos filhotes de
javali quando era criança e achava que estava treinando luta. Entretanto, o
impulso que deu foi tão forte, que ao invés de suas mãos alcançarem as
pernas de Liban – como era seu intuito –, seu corpo inteiro se chocou contra
o dela, caindo por cima de suas costas e ambos desabando no chão.
O escandinavo ouviu quando a garota soltou um grito abafado –
provavelmente de dor e susto, devido ao impacto do golpe surpresa – e se
regozijou. Como um animal acuado e prestes a ser predado, Liban se debateu
e tentou sair do peso que o corpo de Ivar fazia sobre o seu. Todavia, prevendo
a tentativa, apertou-a com seus braços até suas mãos se encontrarem na frente
dela, contendo-a tal qual uma cobra constritora a uma presa,
impossibilitando-a de se mover.
– Pode se debater o quanto quiser, mas não tem como escapar. – Apesar do
peito arfando, seu sorriso era triunfante.
Liban nada respondeu, mas ele pôde sentir as batidas fortes de seu
coração. Ela tentou mais uma vez se soltar ao se debater e não conseguiu.
Então buscou usar as pernas, mas não tinha forças para se virar ao lado.
E misteriosamente ela começou a escutar a música que sempre ouvia à
noite, quando estava perto do mar. Ela sempre era a única que parecia ouvir,
pois mesmo quando estava próxima de pessoas, ninguém fazia qualquer
menção de que havia captado aquela melodia. E diante disso, mais
misteriosamente ainda, o viking exclamou:
– Que raio de música á essa?
O coração de Liban se acelerou ainda mais, já que diversas vezes
acreditara que a música era somente fruto de sua imaginação.
– Você pode ouvi-la? – as palavras saíram aos tropeços.
– Sim... eu posso ouvir – ele respondeu. A voz vazia, como se tivesse sido
tomado por algum encantamento.
Diante da resposta, Liban tentou escapar uma última vez daqueles braços.
Ela entendeu que a sereia que a seguia durante toda sua vida estava tentando
lhe ajudar. Pelo menos era o que ela imaginava.
Mas o viking não deixou, e do mesmo modo que a música havia
começado, repentinamente ela foi interrompida, deixando Liban confusa e
revoltada.
Ivar já aguardava mais tentativas de escape, talvez até uma mordida no
braço – e quando ele pensou nisso, escorregou suas mãos mais para baixo por
precaução –, porém nada disso aconteceu. Ao contrário. Liban afrouxou o
corpo, deixando-o todo relaxado e deu uma leve bufada, como alguém faz
quando está cansado. Pousando a testa na grama, ela disse:
– Tudo bem, você venceu, Ivar. Posso ao menos virar-me antes de morrer?
Está desconfortável assim, com a cara na grama...
O nortista mais uma vez não esperara aquela reação. Aliás, desde quando
conhecera Liban, todas as atitudes dela foram imprevisíveis para ele. E Ivar
iria retrucar, de forma truculenta, que também havia ficado desconfortável
quando quase se afogou na lagoa por causa dela, mas a menção de seu nome
deixou-o subitamente desconfortável.
Nunca um oponente dizia seu nome. Às vezes, em batalha, algum
adversário atrevido ou moribundo o xingava ou chamava de “Mão da morte”,
antes de morrer exatamente em suas mãos. Porém, jamais um desses inimigos
o chamou de “Ivar”. E ouvir o som de seu nome sendo pronunciado
exatamente por uma mulher, que ainda não apresentava qualquer resistência,
o fez ficar extremamente envergonhado do que havia feito e desejado. O
arrependimento veio instantaneamente, mas, ao mesmo tempo, não toleraria
“dar o braço a torcer”.
– Vire-se! – pronunciou com ar de quem ordena, e afrouxou os braços. –
Mas não se levante nem pense em se aproximar mais desse monte de mato.
Ficando de joelhos na grama, Ivar permitiu que a mulher se virasse. Liban
demorou-se ainda um tempo de costas, com a testa apoiada no chão, e o
viking, agora temeroso, por um momento acreditou que ela estivesse
arquitetando alguma manobra e que ele havia mais uma vez caído feito um
imbecil. Ali de joelhos, ele se encontrava numa posição extremamente
desfavorável e principalmente vulnerável, pois dessa forma seria fácil para
ela desferir-lhe um chute no rosto ou mesmo entre suas pernas, a parte mais
dolorosa de receber um golpe.
“Afinal, nunca confie numa mulher, são mais espertas e ardilosas que as
serpentes”. Outro ensinamento de Ragnar que ele devia ter seguido.
Todavia, mais uma vez Liban o surpreendera. Virando-se devagar no chão,
ela ficou de frente para ele, deitada na grama. Seus olhos estavam fechados,
como que esperando alguma reação por parte do viking, mas como nada
aconteceu, ela os abriu e encarou Ivar, que ainda estava prostrado de joelhos
na frente dela.
De todas as vezes que o viking ficara chocado com ela, nada havia sido tão
impactante quanto aquele momento. Ao olhar o rosto dela de perto, agora
sem qualquer resquício de lama para esconder-lhe os detalhes, ainda
iluminados por um luar brilhante, todos os seus pensamentos de vingança
“caíram por terra”. Sua beleza tirou-lhe o fôlego mais do que as águas da
lagoa, que quase o afogaram.
Ele apertou os olhos para se certificar de que o que via não era uma
miragem, uma ilusão de quem passou muito tempo no mar. Mas não, toda
aquela beleza esplendorosa estava bem ali, real, diante dele.
Liban respirava calmamente e, estranhamente, não dava sinais de que
estava nervosa ou desesperada; ao contrário, levantara o queixo com altivez e
apresentava um olhar duro e ferino.
Ivar, ainda sem total reação, limitou-se a estudar todos os detalhes
perfeitos daquele rosto. O nariz pequeno e arrebitado dava graça e jovialidade
àquela face petulante. Os olhos eram surpreendentemente cinzas, mas não o
cinza comum que ele já havia visto em tanta gente, mas um cinza prateado,
como se a pura prata derretida estivesse presente em milhões de fagulhas.
Aqueles olhos brilhavam e eram emoldurados por imensos e curvos cílios
negros. A boca, pequena e desenhada, como se tivesse sido esculpida por
mãos talentosíssimas. As iluminadas maçãs do rosto eram levemente
proeminentes e rosadas na pele tão branca quanto o leite. O queixo era
pequeno e delicado. E tinha um enorme, liso e frondoso cabelo negro, que ela
jogara para o lado com um movimento de cabeça quando se deitara de frente.
Ao olhá-la, o viking acreditou estar diante – em uma versão de cabelos
negros como a noite – da própria deusa Freya12.
Capítulo 9
Ivar e Liban voltaram juntos até a lagoa. Lá, a garota pegou seus broches e
calçados e o viking recuperou o pé do sapato que havia ficado dentro da água
quando ele partira atrás dela. Para sua sorte, o sapato de couro curtido jazia
boiando na superfície, perto da margem. Ele agachou-se, estendeu o braço e o
alcançou.
– No final das contas – ele falou aos risos –, saiu bem melhor que eu. Está
quase seca, e seu pescoço não apresenta nenhum dos cortes que eu havia
planejado. Já eu perdi a camisa, estou com um vergão profundo e dolorido no
peito, e um de meus sapatos está totalmente encharcado.
Liban não respondeu. Ainda atônita com o que havia acontecido, sabia que
não conseguiria começar uma conversa normal e despreocupada. Ivar
percebia a tensão dela e não sabia lidar direito com a situação, afinal nunca
antes conversara amigavelmente com uma mulher depois de beijá-la. Todas
as que haviam passado em seus braços eram escravas; e essas relações sem
importância duravam apenas algumas poucas horas e avançavam bem mais
que um mero beijo. Raríssimas vezes ele se lembrava do nome delas, e o
rosto dessas mulheres se apagava de sua memória assim que ele despertava já
sozinho. Mas agora, com Liban, tudo estava diferente. Para ele, ela era uma
garota linda, intrigante, arrogante e corajosa, que estava mexendo com seus
sentidos e que visivelmente estava perturbada por algum motivo.
O viking se aproximou no momento em que ela calçava seus sapatos,
apoiada no salgueiro que a abraçava com seus galhos. Abrindo espaço entre
eles para caminhar, chegou perto dela.
– Para onde exatamente vai? – ele perguntou.
– Para casa – Liban respondeu, sem olhar para ele.
– Já pensou realmente na história que contará? Já vi que é boa em
artimanha e enganação – ele pilheriou.
– Não, ainda não... – disse ela, com um olhar vago para a lagoa. – Mas
também, quem se importará?
– Sua mãe, talvez? Seu pai?
– Não tenho pai e minha mãe já não vive mais. Faleceu há dois anos.
– Hum... Sabia que eu ainda não me acostumei com seu nome? Liban...
Realmente muito incomum, mas não posso deixar de dizer que é tão lindo
quanto você.
– Não é para se acostumar. Vamos nos despedir em breve, espero não vê-
lo mais.
Ivar fechou o semblante feliz que apresentava e não sabia ao certo por que
essas palavras o incomodaram. Não estava acostumado a ser dispensado por
uma mulher, pois era sempre ele quem as dispensava. Então tentou se
convencer que o motivo que o perturbava era apenas esse.
E quando percebeu que Liban já se aprontava para ir embora, se adiantou e
perguntou:
– Por que falou que ninguém de sua casa se importaria com sua demora?
Antes parecia tão preocupada...
– Porque – ela respondeu de forma pragmática – meu tio sempre deixou
claro que se eu me demorasse em voltar depois que o sol se deitasse, era para
ter uma ótima desculpa. E se, por ventura, a noite virasse dia e eu ainda não
estivesse presente, era para procurar imediatamente outro lugar para me
encostar, pois ele não aceitaria sobrinha estragada na casa dele, a não ser sem
vida para providenciar o funeral.
Ivar surpreendeu-se.
“Como assim? Que espécie de tio é esse? Nem se preocuparia com a
garota que leva seu sangue?”
– Mas você passa muito tempo fora de casa? – ele arriscou perguntar, pois
não sabia mais o que dizer.
– Digamos que algumas vezes – ela disse, voltando a olhar para a lagoa. –
Eu gosto de ficar do outro lado do porto. Costeando a praia, existe um píer
abandonado, no qual, muitos anos antes, um pequeno comércio se firmava.
Depois, esse comércio acabou migrando para as outras bandas e o local se
tornou vazio.
– E o que faz lá? – estranhou.
– Passo o dia no mar, onde mais gosto de estar.
– Como assim?
– Mergulhando.
“Que garota mais estranha”, pensou, mas nada disse para não melindrá-la
de falar mais sobre ela mesma.
– Percebi que deve ser uma boa nadadora, pois nem ao menos lhe vi
saindo do lago. Mas ouso perguntar: o seu dia é sempre assim, tão solitário?
– Não. Eu tenho um amigo. Sempre me encontro com ele lá.
– Amigo? – Ivar estava achando inusitado demais o que ela contava, pois
nunca soube de alguma mulher tendo permissão para ter amigos, ainda mais
uma cristã. E muito menos de alguém mergulhar no mar espontaneamente
que não fosse para pescar ou consertar o barco em alto-mar. Isso não existia,
e ele agora tinha certeza de que ela mentia para ele.
– Sim... é um golfinho. Eu o chamo de Ulisses! Como nas histórias de
Homero.
O viking caiu na gargalhada.
– Você definitivamente é a pessoa mais estranha que já conheci – ele
disse, enxugando as lágrimas que surgiram em decorrência de suas intensas
risadas.
Liban o olhou com desdém e levantou a cabeça com arrogância.
– Definitivamente eu preciso ir.
– Também preciso – ele se adiantou para acompanhá-la. – Tenho que
retornar para minha embarcação. Meus escravos e subordinados devem achar
que me encontro em algum canto, bêbado ou morto.
– Talvez eles estejam felizes, então – ela respondeu sem olhar para ele,
com o nariz para cima e com um sorriso de lado.
– Não duvido disso!
– E, por acaso, você já pensou como andará por aí assim? Sem camisa?
Tenho certeza de que aqui, entre as pessoas dessa cidade, você não é bem
visto com roupa, quiçá sem!
– Realmente não havia pensado nisso... Mas tampouco me preocupo.
Ninguém se atreverá a falar qualquer coisa. Longe da terra de meu povo, só
encontro medrosos e covardes.
Os dois caminharam juntos até próximo ao local da poça de lama, que,
àquela hora, já estava um pouco mais baixa. Então Liban pediu que eles
ficassem longe um do outro, pois não poderia ser vista na companhia dele,
muito menos com ele sem camisa.
Ivar assentiu e a garota se virou para continuar o caminho, porém, antes
que ela desse mais de dois passos, ele a puxou de volta e a beijou novamente.
Um beijo longo e demorado que foi retribuído por Liban, com avidez. A
verdade é que ela ansiava por isso, apesar de não demonstrar.
Liban sabia que quando retornasse para sua casa e nunca mais voltasse a
ver o estranho e inimigo loiro, de cavanhaque e cicatriz na sobrancelha, teria
todo o tempo do mundo para repensar suas atitudes, culpar-se e condenar-se.
E até para tentar entender tudo o que havia acontecido. Porém, enquanto
ainda não chegasse esse momento, em seu íntimo desejava ardentemente ser
abraçada outra vez por ele e ter seus lábios tomados pelos dele.
Durante o curto momento que o beijo durou, foi capaz de esquecer tudo: a
ausência de sua mãe e toda a sua vida solitária e infeliz ao lado do tio que a
odiava.
Ivar estava certo. Ninguém se atrevera a lhe dirigir a palavra enquanto
andava pelo porto, em direção a seu barco. O viking sentia vários olhares em
cima dele, alguns talvez curiosos em saber por que ele andava com o peito
desnudo, e muitos outros horrorizados por este mesmo motivo.
Algumas mulheres, comerciantes ou ajudantes de seus maridos no
comércio, soltavam finos gritos de pavor e se encolhiam. E, então, os maridos
lançavam ligeiros olhares furiosos para ele, mais cortantes que o fio de sua
espada. O viking sabia, porém, que, pelo fato de ser um dinamarquês e de seu
corpo apresentar tantas cicatrizes de batalha quanto os barcos que por ali
zanzavam, ninguém teria a coragem de lhe repreender.
Chegou até sua embarcação, que se encontrava atracada no mesmo lugar
que ele havia deixado, e com todos os escravos a postos nos remos,
preparados para zarparem ao primeiro comando, e foi saudado pelo seu
subordinado, Olaf.
– Seja bem-vindo, comandante. Tudo está pronto. Toda a mercadoria foi
vendida e podemos partir quando o senhor assim desejar.
– Certo, Olaf – respondeu Ivar.– Quando tivermos que ir, ordenarei.
Capítulo 11
Liban rumara para sua casa. Ivar tentara perguntar a ela sobre a
localização de sua residência, mas a garota dissera que era melhor que eles
não se vissem mais.
Quando o viking a deixara ir e caminhara para a direção oposta em que ela
ia, não entendeu por que sua garganta secara e seu peito ficara subitamente
pesado.
Assim que chegaram à lagoa, com Liban na frente e Ivar alguns passos
atrás, o sol já anunciava sua despedida daquele dia. O clima havia mudado
ligeiramente, o calor não estava tão incisivo, apesar do sol forte, porque um
vento ameno soprava com mais força do que de costume. Ivar sabia que eram
indícios da tempestade que ele previra.
O viking não quis perder tempo e, assim que a alcançou, começou a
indagar:
– Liban, o que houve? Sei quem foi o autor disso. Por que seu tio cometeu
tal covardia? – perguntou, posicionando-se de frente para ela e levando sua
mão até o hematoma dos seus lábios.
Liban se contraiu e abaixou a cabeça.
– Não se preocupe. Não foi nada de mais. Na verdade, já estou
acostumada...
– Como assim, acostumada? – Ivar se exaltou. – Isso já aconteceu antes?
Liban virou o rosto para ele e o olhou nos olhos.
– Jura que não acha isso normal? Jura que se importa?
Ivar silenciara e não sabia o que responder. Ele não queria dizer a ela que
não achava essa atitude normal, pois imaginara que ela começaria a falar-lhe
novamente sobre a questão das mulheres e ele não queria escutar tudo de
novo; era um assunto que o incomodava deveras. Ele não era ignorante sobre
o valor das mulheres como mercadorias, e era consciente de que muitos de
seus homens, durante os ataques e as pilhagens que promoviam, cometiam
inúmeras brutalidades com elas. Porém, ainda muito jovem, havia saído da
casa de seus pais e crescera numa casa na qual tinha contato somente com seu
tio, que jamais lhe dissera ser comum bater numa mulher ou maltratá-la. Pelo
contrário, Ivar sabia que depois que a esposa de Ragnar havia morrido no
parto, ele não quisera outra companheira e sempre quando estava embriagado
de hidromel, o sobrinho escutava o tio falar da esposa falecida com carinho.
Ele até dizia – para um encabulado Ivar – que tinha saudades dela. Mas
quando o efeito da bebida passava, Ragnar voltava com o semblante austero e
jamais tocava no nome da ex-mulher novamente.
Ao mesmo tempo em que não desejava entrar no assunto com Liban,
também não queria dizer a ela o quanto se importava com seu rosto
machucado – por mais que ficasse claro em sua atitude de quase degolar o tio
dela –, pois se sentia incomodado com tal sentimento, não sabendo lidar com
a nova situação. O modo como ficara pensando em Liban depois que rumara
para o barco na noite anterior, havia deixado-o demasiadamente assustado e
sentindo-se um tanto desconfortável. Para ele, ocupar a cabeça com desejos e
saudades de alguém era coisa de mulher, e não de um guerreiro que irá
suceder o tio e padrinho, um dia, como chefe. Era algo humilhante, porém
mais forte do que ele. A imagem de Liban não saía de sua cabeça e quando se
deu conta já estava fazendo planos e tendo esperança de permanecer naquela
cidade por mais alguns dias, só para revê-la.
Como o viking não havia respondido sua última pergunta, Liban inspirou o
ar com mais força e espirou-o, soltando os ombros junto e abaixando
novamente a cabeça. Claramente notava-se que ela esperava por uma resposta
e deprimira-se porque ela não viera.
Ivar se agitou e balançou o corpo, incomodado.
– Ao menos, me conte o que aconteceu. Qual o motivo para ter lhe feito
isso?
– E há motivo? Há motivos para que um homem bata numa mulher?
Simplesmente não gostou quando cheguei tarde da noite, mesmo acreditando
na história que inventei.
– E por que raio aceita isso? – Ivar perguntou, irado.
– E tenho como não aceitar? – Liban respondeu, levantando novamente os
olhos para ele. – O que posso fazer? Fugir? Pensa que já não tive esse querer?
– Já pensou em fugir? Mas para onde iria?
Liban ficou um segundo em silêncio e voltou os olhos para as águas da
lagoa.
– Não sei – disse ela, por fim. – Quem sabe não volto para o mar, se foi lá
que nasci. Talvez não haja lugar para mim em terra firme. Quem sabe a
sereia... – ela parou de falar. – Quem sabe Ulisses não resolva me levar para
bem longe daqui...
Ivar iria perguntar – com uma pontada forte de ciúmes repentino– quem
era Ulisses, até que se lembrou que Liban batizara com esse nome o golfinho
com que costumava nadar no píer abandonado.
O viking prestou atenção nos olhos acinzentados de Liban, perdidos nas
águas paradas da lagoa, e reparou que eles estavam marejados. Seu coração
deu um forte salto e ele percebeu que estava nervoso, pois não saberia
novamente como agir diante daquela situação. Ver uma mulher chorando era
pior do que se ver desarmado diante de um adversário armado, já que neste
caso, saberia tudo o que fazer para tentar ganhar ou sobreviver; porém, diante
de uma mulher derramando lágrimas, sentia-se totalmente sem chão.
Instintivamente, colocou a mão nos negros e compridos cabelos dela,
como que para confortá-la. E essa foi a deixa que a garota precisava.
As lágrimas caíram livremente pela face de Liban. Virando-se para Ivar,
ela se jogou em seus braços, soluçando baixinho. O dinamarquês estava
totalmente aturdido. Demorou cerca de um minuto para seu coração começar
a desacelerar, porém o corpo ainda continuava tenso. A garota estava com as
duas mãos sobre o peito do guerreiro, e suas lágrimas molhavam a camisa
dele. Ivar olhou para o céu no horizonte que, àquela hora crepuscular, se
apresentava em cores avermelhadas, e aquilo lhe fez pensar em sangue.
“Sangue do tio de Liban, que hei de derramar. Agora, mais do que nunca,
sei que farei isso.”
E esse pensamento, curiosamente, fez com que ele se acalmasse. Ivar,
enfim, aconchegou a garota, colocando os braços sobre as costas dela.
– Liban, chega – sussurrou-lhe –, não faça mais isso. Eu lhe peço, não
chore mais.
Ivar abaixou a cabeça e lhe beijou a fronte. O contato de seus lábios na
pele dela o acendeu por dentro instantaneamente. Liban levantou a cabeça e o
coração duro de Ivar quase se despedaçou com a imagem do rosto
machucado e agora banhado pelas lágrimas que não paravam de dimanar.
O viking aproximou seu rosto e sua boca foi de encontro com a dela, que a
abriu para aceitar o beijo delicado, sem se importar com o machucado ainda
recente nos lábios. E Liban se perdeu naquele beijo, deixando escapar um
leve gemido que fez Ivar se incendiar por dentro.
– Você tem gosto de maresia – ele disse entre um beijo e outro.
E quando suas mãos desceram pelas costas dela e subiram pela lateral até
encontrarem os seios, o corpo de Liban foi consumido pelas chamas. Depois,
encontrando os dois broches acima que prendiam o vestido dela, ele soltou-os
com os dedos ágeis, fazendo a roupa despencar. Agachando-se, Ivar agarrou
a barra da túnica que Liban usava por baixo do vestido e a levantou
suavemente ao mesmo tempo em que acariciava com a mão e com a boca as
partes do corpo dela que iam se revelando.
Hesitante de início, agora Liban arfava, tremia e ansiava loucamente pelo
toque dele cada vez mais.
Com Liban nua em seus braços, ele se livrou também de sua camisa e
então a pegou no colo com um rápido movimento, levando-a para debaixo do
salgueiro com seus finos galhos que caíam em cascata verde e chegavam até
a água da lagoa.
Pousando-a delicadamente no chão de grama, Ivar a olhou deitada,
permitindo-se demorar, para saborear aquela visão.
– Você é uma deusa – ele disse, entorpecido por sua beleza.
– Venha... – ela falou com a voz embargada de desejo. – Tome-me em
seus braços e me faça esquecer tudo.
Ivar então mergulhou naqueles braços com a mesma ânsia que ela
demonstrava. O cheiro dela despertava seus sentidos de um jeito
enlouquecedor. Liban era uma mistura inebriante de deusa e mar, e ele queria
se afogar nela.
Enquanto os lábios do escandinavo sorviam os dela com avidez, suas mãos
começavam a conhecer aquele sinuoso corpo, embalando a fina cintura ou
estudando o arredondado quadril que tinha o tamanho perfeito para receber o
seu, para, em seguida, sentir toda a maciez de seus seios que preenchiam toda
a sua mão. E Liban também se deixou explorar o corpo do guerreiro viking,
sentindo todos os músculos de suas costas, braços e peito, que se contraíam e
se incendiavam quando ela o tocava.
Tirando, por fim, sua calça e seus sapatos, Ivar puxou o corpo de Liban
para junto do seu e acomodou o quadril dela sob o peso do seu. A garota não
sabia o que viria a seguir, pois nunca havia estado nos braços de um homem
antes, e apenas deixou-se ser comandada por seu inimigo e, agora, amante.
Quando Ivar a penetrou, emitindo um sensual gemido de prazer, a pequena
dor que inicialmente sentiu foi substituída pela descoberta do também prazer
que agora conhecia e experimentava.
No começo, as investidas do viking eram suaves e lentas, depois,
intensificavam-se à medida que o desejo se tornava incontrolável. Liban
conseguia sentir toda a tensão dos músculos dele, assim como o seu coração,
que saltava loucamente contra seus seios nus. Então, ele a puxou para cima
enquanto saboreava sua nuca e se deitou atrás, deixando que Liban ficasse
por cima.
Inexperiente, o primeiro movimento dela foi de fechar os olhos.
– Não! Não os feche. Olhe para mim – pediu ele. E, abrindo-os, Liban
encarou os olhos azuis cheios de desejo do escandinavo.
Dizendo seu nome em meio a gemidos, Ivar segurava com força o quadril
de Liban, guiando-a para o ritmo certo.
Assim, os dois amantes se amaram e alcançaram o êxtase total, na medida
em que a lua – ainda cheia – despontava no céu.
Capítulo 14
– A história que conto é para ser levada a sério! – Ela protestou diante da
interrupção sarcástica.
– Tudo bem, me desculpe, senhora – Ivar ainda ria.– Só não precisa se
apegar ao monte de bosta cristã!
– Então – prosseguiu Liban, ainda brava –, naquela época, enquanto
muitas pessoas diziam que essa desgraça havia sido prevista até pelo profeta
Jeremias na Bíblia, que disse que do norte viria um mal que arruinaria todos
os habitantes da terra, outra parcela da população foi se esquecendo dos
ataques dos homens do norte que, após alguns anos, sumiram daquela região.
Infelizmente, o otimismo é perigoso, pois cega a inteligência, descarta a
prudência e olvida o passado. Todos começaram a achar que as aldeias e
cidades estavam livres novamente, que já haviam pago o preço mortal a Deus
por seus pecados, já que muito sangue havia sido derramado. Mamãe dizia
que, assim, os fatos se tornaram lendas e meros contos de terror, e que ela
mesma jamais havia visto um dinamarquês. Achava que eles existiam
somente nas histórias que seus pais contavam para assustar a ela e aos irmãos
à noite.
Ivar escutava tudo com atenção e cada vez mais se sentindo incomodado
com o rumo que a história tomava.
– Entretanto – continuou ela, adotando um tom mais fúnebre –, em 835,
uma grande frota dinamarquesa aportou de surpresa na ilha onde minha mãe
nascera e morava, e os nortistas trouxeram com eles os seus itens
inseparáveis: morte e destruição. A previsão sobre a vinda dos anticristos
enfim se concretizara e o céu foi tingido de sangue. Eles devastaram todas as
aldeias que lá existiam, pilhando de quem já tinha tão pouco. Meus avós
foram mortos na frente de minha mãe, e ela uma vez me contou, com
lágrimas ressequidas nos olhos, já que não havia mais líquido para derramar,
o quanto foi horrível ver o pai ser decapitado na sua frente e a mãe
trespassada por uma cruel espada que, além de tudo, não lhe trouxe uma
morte rápida.
O momento em que Ivar estava querendo evitar chegara. Ele não pôde
deixar de se lembrar das tantas batalhas que já participara, desde os onze
anos.
– Mamãe já havia passado por dezesseis primaveras – prosseguiu Liban –
e me disse que estava enamorada de um bonito rapaz cheio de planos, que
vivia perto dela. A relação dos dois havia sido abençoada pelas famílias e não
tardaria para eles se casarem. Já haviam até mesmo marcado a data na capela.
O rapaz foi morto neste primeiro dia em que a tragédia caiu sobre aquela
região. Ela o enxergou pela última vez, ao longe, lutando contra um
dinamarquês com um precário machado de cortar lenha, quando estava sendo
carregada pelo nortista que matou seus pais. Mamãe não quis presenciar a
morte certa do rapaz, preferiu fechar os olhos e pedir desesperadamente que
aquilo tudo fosse apenas um terrível pesadelo; que ela acordaria em
determinado momento e todos os que ela amava ainda estariam vivos e
sorrindo. Mas no segundo seguinte avistou ainda suas duas irmãs sendo
levadas por outros pagãos do norte e ela nunca mais as viu ou soube falar
delas. O único que sobreviveu incólume foi meu tio, Burton. Isto porque não
estava na aldeia neste dia. Meu avô o havia mandado ir a Lundenwic19 para
comercializar alguns tapetes que minha avó e suas filhas faziam, além de
algumas ferramentas que meu avô produzia. Assim, somente retornou à
aldeia quando ela já estava devastada. Acabou dando sorte, pois enquanto os
nortistas rumavam para Lundenwic navegando pelo rio Temes, meu tio vinha
por terra.
Ivar não pôde deixar de pensar em como seria o certo nessa história, que
somente o tio dela morresse. Toda vez que olhava para o rosto machucado de
Liban, seu ódio aumentava, fazendo seu sangue ferver; ele se lembrava de
como, por muito pouco, não havia matado aquele homem. Mas o viking
tratou de afastar esse pensamento, pois estava interessado no que ela lhe
contava, apesar de cada vez mais estar temeroso com o resto da história que
ela desabafaria. E Liban continuou:
– A partir desse dia, a vida de minha mãe mudou para sempre. Quando a
raptaram, ela acreditava que também iria ser morta, como seus pais, e de certa
forma esse pensamento a confortava um pouco. Mas não foi o que aconteceu.
Na verdade, seu pior pesadelo se concretizou. Rasgaram seu vestido e ela foi
tomada a força ao lado de seu pai que jazia morto e de sua mãe agonizante.
Jamais imaginou que tal sofrimento fosse possível de existir. Acredito que foi
ali que ela começou a duvidar da existência de Deus, já que nenhuma ajuda
dos céus encontrou, nem para si, nem para sua família. Depois de ser
violentada, todos seus sonhos se desvaneceram e o vazio em que se
encontrava era tanto que a clareza dos fatos posteriores foram anuviados. Só
sabe que foi amarrada e colocada num barco junto com outras mulheres, mas
nenhuma delas eram suas irmãs. Esse barco seguiu para outras aldeias que
costeavam Wessex e mais ataques prosseguiram. Após alguns dias, não se
lembrava com precisão de quantos, pois sua memória foi afetada pela
extrema dor e sofrimento que sentia. O barco rumou para longe da Britânia,
seguiram para o leste, depois para o norte, aportando, enfim, na terra dos
malditos pagãos. Ela acabou passando quase dois anos entre o seu povo,
sofrendo todo o tipo de provações que você possa imaginar. Foi assim que ela
aprendeu e dominou bem a língua de vocês.
Ivar estava atônito. Não sabia o que pensar, muito menos o que dizer ou
como sairia daquela situação. Como deixaria aquele repentino sentimento de
vergonha e injustiça não afetar sua vida? Jamais tentara enxergar a guerra por
outro lado que não fosse o seu. E a naturalidade era ainda se regozijar antes,
durante e depois das batalhas que participava. Desde que ele nascera, seu pai
– e depois seu tio – lhe diziam que um homem só é resgatado pelas Valkírias
e levado para Valhala – o castelo de Odin, cujo salão abriga os guerreiros
honrados, mortos em batalha – se ele morrer com uma espada nas mãos,
guerreando bravamente. Só assim o guerreiro poderá se sentar todas as noites,
junto de seus companheiros, remendando os próprios pedaços do corpo e
beber cerveja e hidromel na companhia de deus, para no dia seguinte guerrear
e se despedaçar novamente. E isso sempre fez mais sentido para ele do que o
tedioso e sem propósito céu dos cristãos, onde nada acontece e ninguém se
embriaga, gargalha ou luta.
Derramar sangue para ele era, antes de qualquer coisa, um status, uma
honra; era quando o viking se sentia vivo e até consciente de seu poder. Por
isso, depois das batalhas nunca lamentava os mortos que não fossem os do
seu lado. Até porque, depois de uma guerra, era só festa, bebida e diversão.
Não existia espaço para as tristezas, tampouco para a reflexão que não fosse
por outras estratégias melhores para as batalhas posteriores. Ivar entendia que
as guerras e os saques eram um meio de sobrevivência, e nunca qualquer
avaliação moral de seus atos lhe pesou na consciência. “Afinal”, pensava ele,
“qualquer animal luta pela sobrevivência sua e deu povo, custe o que custar,
ou quantas vidas custar.”
Todavia, após esse relato tão sincero e contundente que Liban fizera sobre
o que sua mãe havia passado, algo o despertou por dentro. O começo de uma
primitiva empatia, talvez.
O escandinavo jamais pensou sobre as famílias que haviam sido desfeitas
por seus atos e os de seus companheiros. Sempre acreditou que os homens
que matavam tiveram a honra de defender suas casas e morrer bravo e
dignamente. Na verdade, a maior honra de todas: a de terminar suas vidas
como guerreiros e não morrer de velhice, sucumbidos pela incapacidade
física e mental, dentro de suas casas e de seus cotidianos medíocres. Portanto,
ele acreditava que em uma batalha, seu povo dava uma valiosa oportunidade
aos adversários para que eles provassem seu valor como homens. Ivar não via
nada de errado nisso, ao contrário. E ainda, as crianças e mulheres eram
sempre poupadas. Assim como Ivar também não se importava pelo fato dos
que não eram mortos virarem escravos, afinal, não nutria nenhuma simpatia
pelos cristãos ou por gente que ele não conhecia, e pensava que ao menos
esses inocentes da guerra estavam tendo sua vida poupada e talvez estivessem
até agradecidos.
Só que agora, o golpe havia sido duro, contundente. Liban estava
destruindo todo o seu conforto, fazendo-o, enfim, enxergar o outro lado da
moeda, pelos olhos dos cristãos.
Capítulo 15
– Ivar, tenho que lhe perguntar. Acaso considera uma guerra como um
cenário bonito? – Apesar da pergunta, o olhar era inquisidor.
– A questão não é essa – respondeu o viking, que ainda lutava para
acreditar em suas convicções. – A guerra definitivamente não é bonita. Ela
cheira à merda e sangue, e o coro dos gritos e lamentos é tão desolador
quanto imagino que seja escutar a corneta Giallarhorn de Heindall,
precedendo o Ragnarok20. Mas enxergar o pavor nos olhos dos homens que
matamos não é tão diferente de enxergar o mesmo pavor nos olhos de um
cervo. A única diferença é que em uma batalha, ou saque, damos uma chance
justa ao oponente. O que não acontece ao animal.
– Você, mais do que ninguém, sabe que numa guerra nunca há chances
justas e iguais.
– Bem, o que importa é que precisamos da vida de ambos para sobreviver.
Assim como você mata um animal para comer, as guerras que travamos são
por nossa sobrevivência, por melhores condições de meu povo e...
– Ao menos está certo ao dizer que na morte de animais, como galinhas,
porcos e peixes, não damos a eles chances para se salvarem, mas eu não mato
animais para comer, pois não vejo diferença, e por isso condeno as duas
práticas. E por fim, também não acho que vocês matam por sobrevivência. –
De cabeça erguida, Liban exibia a pose petulante habitual. – Por que atacar
lugares que não os pertence? Por que roubar pertences que não são seus?
– Liban, acredito que tenha sempre vivido aqui. Esta terra é quente,
produtiva e abastada. Por isso é fácil para você julgar com essa propriedade.
Não conhece o chão duro e infértil de um inverno.
– E por que escolher mosteiros e igrejas, onde não há sequer um homem
treinado na batalha? Acha justo e honrado atacá-los?
– Injusto não é, porque são homens como nós. Digo-lhe que não temos
qualquer pudor nisso. O deus fraco deles não olha por nós e se olhasse por
eles, como acreditam, talvez então não saíssemos vencedores. Mas como
sabe, não é o que acontece. Escolhemos tal alvo simplesmente pelos tesouros
que possuem, pois os senhores de sua religião são acumuladores de ouro e
prata. Para nós é só mais um saque, e dos mais produtivos. Fico me
perguntando, para que tanto tesouro guardado? No céu cristão é preciso pagar
uma quantia de ouro e prata para entrar? Se assim for, não é melhor distribuir
entre os desbastados devotos de sua religião para que também consigam o seu
espaço no céu, ou ao menos para que tenham o que comer, enquanto que
monges e padres aumentam suas circunferências corporais à base de muita
carne de porco e vinho? E, por fim, desejo saber... – prosseguiu Ivar, olhando
para ela com desconfiança. – Como assim você não mata animais para
comer?
– Isso não vem ao caso, é uma longa história e creio que você não
entenderia...
Ele a olhou com mais desconfiança ainda. Suas sobrancelhas quase se
encontravam.
– É, realmente não estou compreendendo muito o quê conta. Você diz que
sua mãe passou quase dois anos com meu povo, mas também disse que ela
era escrava. Então, como ela veio parar aqui?
– Isso é mais uma longa história... está disposto a ouvir? É algo que mais
ninguém sabe, além de meu tio e eu...
– Sim, estou – disse Ivar, sem pensar duas vezes.
– Bem, como já disse, mamãe permaneceu por quase dois anos vivendo na
Dinamarca. Anos deveras cruéis. Ela tinha que partilhar o corpo toda noite,
contra sua vontade, com o algoz de seus pais, que a fez de escrava. Somente
no verão ela tinha alguma paz, pois as viagens chegavam para os homens que
iam fazer guerra e saquear as terras do oeste. Ela sempre ficava a imaginar o
que teria sido feito de meu tio, Burton, e se ele viveria o próximo verão.
Mamãe não costumava pensar nas irmãs, porque não queria imaginá-las
tendo o mesmo destino que o dela. Ela me disse certa vez que o nortista que a
escravizou tinha mais duas escravas, sendo que uma era dinamarquesa. Eu
nunca entendi como um povo pode escravizar o seu próprio povo. Parece que
esse maldito pagão tinha esposas também, mais de uma, e acho que elas não
se davam muito bem. Minha mãe tratou de aprender a língua do norte; era
uma mulher astuta e endurecida pela vida, que não entregava os pontos
facilmente, mesmo com todos os sonhos desfeitos. Então começou um plano,
sem ter a mínima certeza se ele acabaria bem. Mas era sua última esperança.
Ivar escutava com atenção e com os ouvidos apurados.
– Todas as vezes que o nortista reclamava o corpo de minha mãe e
avançava para possuí-la com violência, ela dava sinais de que apreciava o
contato dele, que estava cedendo e não mais o impelindo. O escandinavo
passou a acreditar. Depois, minha mãe, que já dominava a língua, começou
aos poucos a trocar algumas frases com ele e incentivar mais a conversa entre
eles. Certo dia, ele deixou escapar que viajaria na manhã seguinte para a
costa de Wessex. E naquele ponto, após tantas batalhas, saques e raptos, ele
já nem mais se lembrava de onde minha mãe era. Diante daquela notícia, o
coração dela pulou fortemente, mas ela se conteve, pois aprendeu a não
demonstrar seus sentimentos. Vestiu um capuz negro em seu sorriso e com
sua astúcia convenceu-o a levá-la junto, dizendo que estava gostando dele e
não queria se separar. Disse-lhe que deveria ir para cuidar de sua roupa, sua
barba e seu cabelo sempre que ele retornasse para o acampamento. Do
mesmo modo, iria sempre estar feliz, já que teria também o corpo dela todas
as noites, quando desejasse. O que eu sei é que ele cedeu e assim a levou de
volta para sua terra natal, sem nem imaginar o quanto minha mãe esperava
por aquele momento. A frota era composta por oito barcos, sendo que dois
eram de seu algoz raptor, chefe de pouca importância, e levava alguns amigos
e criados. O restante das embarcações era de um fazendeiro e de um pequeno
latifundiário que se uniu a alguns guerreiros para equiparem os barcos e
partilharem os ganhos. Pelo que minha mãe já compreendia dos xingamentos
nórdicos, e vocês adoram xingar, ela conseguiu captar que o seu algoz não
gostava nenhum pouco do fazendeiro, e vice-versa. O raptor de minha mãe
disse a ela que o fazendeiro, de nome Erik, tinha inveja de suas posses e os
dois já tinham até se agredido por diversas vezes. Mamãe guardou essa
informação como se fosse uma preciosidade. Quando, enfim, aportaram na
ilha de Sceapig, ela teve um susto. Toda sua aldeia estava devastada e, pelo
jeito, há muito tempo. Existiam poucas casas em pé, o que lhe intrigou, afinal
não sabia o porquê de os nortistas terem as deixado em paz, sendo que todo o
resto havia sucumbido pelas chamas e pela destruição. Ela identificou o local
onde antes era sua casa e lembrou-se de seus pais. Nem sequer sabia se seus
corpos haviam tido um enterro digno. Acredito que a visão dos destroços
queimados a fez não esmorecer, se agarrando à esperança de que seu plano
daria certo. Acontece que, logo na primeira noite, entrou no acampamento
escandinavo uma pessoa daquela região que dizia ser um homem livre, pois
trabalhava para os dinamarqueses como um “faz tudo”. Era um ferreiro que
consertava barcos, buscava água doce e também cuidava dos cavalos;
algumas vezes até remendar o couro gasto de sapatos e das roupas ele fazia.
Mamãe disse que ficou indignada com a ideia de uma pessoa de sua própria
aldeia devastada estar trabalhando para os nortistas, sendo um homem livre.
E sua indignação se tornou insuportável quando ela viu, com os próprios
olhos, que aquela pessoa era seu irmão.
– Seu tio? – assustou-se Ivar.
– Sim, o próprio! Meu tio Burton. Você imagina como foi para ela ver o
irmão trabalhando para as pessoas que mataram seus pais, violaram seu corpo
e escravizaram suas irmãs? Durante muito tempo, teve medo que seu irmão
estivesse morto e sempre gostava de imaginar que ele tinha conseguido se
salvar e estaria bem, com uma esposa ou quem sabe já com filhos; assim, ela
sonhava que ao menos alguém de sua família havia tido sorte e prosperado.
Mas nunca, nem em seus piores pesadelos, ela o imaginaria junto dos
dinamarqueses. Agora, sem me prolongar mais, irei resumir os pormenores.
O que sei é que quando meu tio a viu como escrava, toda a raiva que ele
sentia do povo escandinavo veio à tona. Disfarçadamente, conseguiu
conversar em reservado com minha mãe e contou como ele havia sobrevivido
e se tornado um ajudante dos inimigos. Disse ainda que quando aquelas terras
estavam livres deles, ele trabalhava como ferreiro e vendia o que podia das
peças e armas que produzia. Muita gente da Britânia estava tentando se armar
de alguma forma contra o “terror pagão do norte”. Ele chegou a ver pais
ensinando seus filhos de cinco e seis anos, às vezes até mais novos, a como
manejar uma espada rústica ou um machado, e tentar desferir golpes. Quem
não podia abandonar suas casas, ao menos tinha que tentar se defender de
alguma forma. Desse jeito, meu tio conseguiu juntar um bom dinheiro e disse
para mamãe que seu intuito era conseguir um barco que o levasse até algum
lugar onde fosse possível ter alguma pista do paradeiro de suas irmãs. Porém,
durante os dois anos que se passaram, ele nada conseguiu de efetivo
descobrir; sabia apenas poucas coisas sobre minha mãe, pois subordinava
alguns escravos que chegavam junto com os dinamarqueses. E agora que os
dois haviam novamente se encontrado, ele colocaria o plano em ação.
Acontece que, por infortuno do destino, minha mãe engravidou de mim e
assim o plano deles estava correndo sérios perigos. Mamãe escondeu sua
condição do dinamarquês que a engravidou, porém contou ao meu tio, que a
obrigou a deitar fora a criança. Entretanto, ela não quis e disse que nada a
faria abortar de mim. Acredito que seu anseio desesperado era por não perder
mais ninguém de seu sangue, mais ninguém de sua família. E então, escondeu
a gravidez o quanto pôde. E quando a gravidez já se encontrava num estado
avançado, difícil de camuflar, meu tio conseguiu, enfim, pagar uma alta taxa
ao dinamarquês que tinha rixa com o algoz de minha mãe. Ele tinha um barco
que vinha para cá vender os objetos que seu clã havia pilhado, e permitiu que
meu tio e minha mãe embarcassem nele. E foi assim que vim parar aqui.
Mamãe deu à luz a mim quando ainda estava viajando. Eu nasci prematura e
em alto-mar. E nada sei de meu pai, a não ser que ele possuía uma cicatriz no
lábio inferior e tinha os cabelos escuros e os olhos de cor cinza, como os
meus.
Ivar, antes de tudo, pegou essa última informação que Liban dera e ficou a
pensar nela.
“Quem poderia ser o pai de Liban, será que eu o conheço? Cicatriz no
lábio...” O viking forçou o pensamento, mas ele tinha a noção que saber quem
era o pai dela seria uma tarefa impossível, pois muitos possuíam cicatrizes no
lábio e ele não sabia sequer qual era a idade desse homem, e como muito
tempo havia decorrido desde então, ele poderia muito bem nem estar mais
vivo. Fora isso, Ivar imaginou que Liban não gostaria de saber, muito menos
conhecer o homem que fez tanto mal a sua mãe.
O viking olhou para a garota com olhar de compaixão – sentimento tão
escasso nele – e, com a visão do rosto machucado dela, fez o que jamais
havia feito antes: pensar nas tantas famílias que se destruíram por causa de
seus atos e nas milhares de moças, tal qual a mãe de Liban, que haviam sido
feitas escravas e tomadas à força, ou então, visto seus pais e talvez avós ou
irmãos sucumbirem aos golpes das espadas e lanças de seu povo. O nascer de
um primitivo e desconhecido remorso o alcançou e fez seu coração pesar.
Ivar balançou a cabeça como se pudesse apagar os pensamentos de sua
mente. Mas eles estavam ali e talvez fossem permanecer para sempre. Olhou
novamente para Liban e a tristeza, enfim, o invadiu. E em seus ombros caídos
se revelava; sentia-se como se estivesse carregando um fardo, e ele era
pesado: a culpa.
De repente, Ivar se lembrou do tio de Liban e se agarrou a essa lembrança
como sendo sua salvação, o que faria sua consciência se esquivar para outro
assunto.
– Liban, realmente a história que sua mãe infelizmente viveu e carregou
por tanto tempo é triste e injusta, e eu, sinceramente, sinto muito, apesar do
lado em que me encontro. Porém, acredito que nada posso dizer, pois devido
ao respeito que tenho pela dor que sua família passou, ao mesmo tempo
existem questões que poderiam justificar o que você não compreenderia...
– Razões? Justificar? Existe razão que justifique acabar com vidas,
famílias e sonhos?
Ivar estava mais incomodado do que nunca, mas percebeu que agora Liban
não mais o interpelava com raiva na voz. Por isso seu receio perante ela e
perante o que ela poderia lhe jogar na cara foi abrandando. Ele arriscou trocar
o sujeito de julgamento.
– E seu tio? – apressou-se em perguntar. – Por que a trata tão mal? Por que
fez essa... – iria dizer “covardia”, mas diante de toda a história que ela havia
contato, não se sentiu confiante para usar essa palavra – ... esse estrago em
seu belo rosto?
– Infelizmente, o único sentimento que meu tio sente por mim é ódio. O
mais puro ódio, porque vem gratuitamente e nasceu assim que ele colocou os
olhos em mim – ela respondeu, agora abaixando a cabeça e embargando a
voz.
Ivar soube que ao menos tinha conseguido seu objetivo: desviar o foco das
atrocidades de seu povo.
– Quando minha mãe estava viva – Liban continuou a falar – não deixava
que meu tio encostasse a mão em mim, apesar de Burton sempre deixar claro
para ela o quanto me odiava. Só que, depois que mamãe faleceu, toda a
proteção que ela me dava morreu junto com ela. Assim como parece ter
morrido também o último resquício de humanidade que havia nele. E meu tio
passou a, imediatamente, recuperar o tempo perdido. Já nem me lembro mais
quantas vezes ele machucou meu rosto...
– Não posso acreditar nisso! – exclamou Ivar com sinceridade e
indignação.
– Meu tio sempre me disse que nem ao menos conseguia olhar para a
minha cara sem ter vontade de quebrar todos os ossos de meu rosto. Por
várias vezes perguntei o motivo de tanto ódio, e ele me dizia que a cada dia
que passava eu me parecia mais e mais com o homem que acabou com a vida
dele e de sua família. Dizia que o cinza de meus olhos vinha do pagão e
minhas atitudes malcriadas também. Burton também sempre deixou claro que
enquanto eu vivesse, ele olharia para a minha cara e somente o que veria seria
o horror de encontrar seus pais mortos e parcialmente devorados por animais,
e sua vida e futuro destruídos. Nunca adiantou minha mãe dizer a ele que eu
de nada tinha culpa...
– Sinto muito por isso também, Liban – lamentou Ivar. – Por seu tio ser
uma cadela!
“Uma cadela que ainda hei de derramar o sangue.”
– Você precisa conhecer meu tio – ele emendou. - É uma das melhores
pessoas que eu conheço.
– Conhecer seu tio? – perguntou Liban, incrédula.
– Por que não? Eu desejo que um dia você o conheça. Tenho certeza que
se darão bem, afinal, os dois carregam um ar de petulância e também não
medem a voz mesmo diante de um inimigo lhe ameaçando com uma espada
empunhada.
Liban não se conteve em rir.
– Duvido muito que esse dia chegue, Ivar. Você é uma criatura bem
estranha, sabia? Depois de tudo o que lhe conto, ainda diz que preciso
conhecer seu tio, um dinamarquês? Sinto muito, mas acredito que devo
declinar do ótimo convite.
– Pois lhe digo! Quando o conhecer, tenho certeza que apreciará sua
companhia.
– Louco!
Ivar se adiantou sobre ela, abraçando-a e puxando para perto dele. E ela se
deixou ser abraçada. Liban estava se sentindo mais feliz e leve agora que
partilhara suas histórias com alguém. No entanto, jamais imaginou que esse
alguém seria um dinamarquês. Pensar nisso a deixava um pouco confusa e
com uma estranha vontade de gargalhar ao mesmo tempo, diante da ironia
que o destino a havia colocado.
– Quero propor-lhe um passeio amanhã. Espero que aceite. Sei que não irá
querer passar a noite comigo e sei que está aflita para voltar para sua casa,
mas amanhã logo na primeira hora do dia a encontro aqui, tudo bem?
– E por acaso tenho escolha? Ainda mais agora que você já sabe onde
moro.
– Exatamente! Não tem! Não sei por quanto tempo ainda fico nessa cidade
tão quente quanto o bafo de Jormungand21, mas amanhã ainda estarei aqui e
penso que, quem sabe, também lhe brindo com histórias sobre minha família.
– Ah não, por favor. Tudo menos isso! – Liban gargalhou, se desvencilhou
dos braços do viking e se levantou às pressas.
Ivar apressou a se levantar também e a puxou novamente contra seu peito,
dando-lhe um beijo úmido e demorado.
– Tudo bem, mas agora eu preciso ir, de verdade – murmurou Liban,
depois que o beijo acabou.
– Entretanto, não se esqueça – disse ele, soltando-a –, amanhã, neste
bosque, logo que o sol se levantar no céu.
E quando Liban rumava para sua casa e Ivar pegava o outro caminho, indo
para o porto e para seu barco, ambos somente pensavam se as horas
demorariam muito a passar e chegar o outro dia...
Capítulo 16
A garota abriu a porta e se certificou que o tio já estava bem longe. Então
saiu apressada para a trilha que tanto conhecia. Ao sair das vistas da cidade
começou a correr, pois sabia que tinha que ser bem rápida e que não poderia
se demorar em sua despedida do golfinho.
“Só vou dar um beijo grande no meu melhor amigo e dizer-lhe que não é
para ficar triste, pois não me demorarei em vê-lo novamente”, pensou Liban
já com lágrimas nos olhos e com o coração apertado. “Ah, não posso
esquecer também de mandar-lhe arrumar alguma amizade. Ele precisa de
amigos golfinhos que nem ele. Ulisses precisa de uma companheira, de uma
família. Ele precisa ser feliz.”
Ao pensar que ele só a tinha como amiga, assim como ela só tinha ele
como amigo, Liban ficou um momento em dúvida, pois a possibilidade de se
afastar do cetáceo estava sendo difícil e dolorida. A garota pensou em sua
vida desgraçada junto ao tio e pensou também em Ivar, em como seria
horrível permanecer ali naquela cidade, aguentando todos os insultos e os
hematomas que Burton desferia a ela, e não mais olhar para os olhos azuis e
entrefechados do viking ou para a feroz cicatriz que cortava ao meio sua
sobrancelha, nem mais ouvir suas risadas sarcásticas e galanteios sensuais ou
sentir seus braços fortes em volta dela. O momento de dúvida dissipou-se
ainda que a imensa tristeza em se separar de Ulisses tenha permanecido.
Todo seu corpo doía. Antes de abrir os olhos, pôde sentir as fisgadas que
pareciam vir de todas as partes. Seu pulmão estava pesado e, ao respirar,
emitia um barulho estranho. Estava deitada de bruços sobre uma superfície
áspera e molhada. Liban conseguiu soltar um som, apenas um gemido que
traduzia uma pequena parcela de sua dor.
Não havia morrido como acreditara que aconteceria um segundo antes de
apagar dentro do mar. “Mas onde estou?”, ela se perguntou.
Recobrou um pouco a consciência e abriu os olhos. Tudo estava escuro,
todavia ela conseguia ver um ponto de luz à sua frente. Na verdade, um
minúsculo ponto claro, brilhante, porém já suficiente para não tornar aquele
local um breu.
As dores eram muito fortes, mas mesmo assim, arrastou as mãos e as
espalmou no chão, fazendo força para se apoiar e levantar o corpo. Fez uma
careta quando uma forte agulhada pareceu-lhe trespassar a coluna, mas não
esmoreceu, continuou sustentando o corpo sobre as mãos e os braços.
Olhou em volta e agora, com seus olhos mais acostumados com o
ambiente escuro, conseguiu identificar o local. Paredes de pedras quase
negras e com a aparência molhada, viscosa. À sua frente estava o buraco pelo
qual a luz entrava.
“Isto aqui parece uma caverna...”, pensou Liban, intrigada. “Ah, já sei!”,
exclamou ela em pensamento. “Devo ter vindo parar na ‘Gruta de Teseu’, que
fica a leste do antigo porto. Só pode ser isso, pois é a única gruta por essas
bandas... Todavia, pensando bem, ela fica bem longe de onde eu estava...”
Na verdade, o local era um quilômetro e meio distante de onde Liban
mergulhava todos os dias com seu amigo golfinho.
“Como vim parar aqui?”
A garota estava confusa. A “Gruta de Teseu” tinha esse nome devido ao
herói Grego que entrou no labirinto do Minotauro25, pois todos diziam que
era muito fácil entrar na gruta, mas quase impossível sair dela. Sua entrada se
localizava no final de uma pequena baía e estendia-se quase até a beira-mar, e
constantemente a água do mar a invadia e a correnteza forte que formava
naquela área de enseada fazia pressão contrária na boca da gruta, que, além
de tudo, ainda era estreita e baixa. Portanto, quem quisesse entrar não teria
maiores dificuldades. Seria preciso apenas dobrar o corpo se abaixando ou,
com a maré cheia, passar pela entrada da gruta nadando, pois a forte
correnteza levaria a pessoa diretamente para dentro, como um funil. Porém,
para fazer o caminho de volta e sair da caverna, só com muita habilidade para
vencer a força da correnteza contrária e aproveitar quando a maré estivesse
baixa o suficiente e o mar calmo. Fora isso, era impossível se desvencilhar
daquelas paredes escuras e úmidas. Aquele era, sem dúvida, um local
traiçoeiro e perigoso. Uma armadilha natural.
A tempestade foi pior do que Ivar e Olaf imaginaram. Apesar de não ter
durado mais do que algumas horas, devastou quase todo o cais do porto. A
maioria dos barcos que estavam atracados se soltou e veio a pique. Alguns
foram severamente danificados e outras embarcações ainda ajudaram a
quebrar em várias partes as passarelas dos píeres, quando as ondas as
levavam de encontro a elas.
Graças à engenhosidade de Ivar, o knorr de seu tio estava a salvo. Na
manhã seguinte, quando o viking foi à praia ver se o barco de Ragnar havia
resistido, constatou que ele estava intacto e soube do trabalho duro que os
escravos tiveram, pois durante a tempestade, Olaf ordenou que eles ficassem
em volta da embarcação, colocando força para que ela não tombasse com a
força do vento.
As ondas acabaram chegando até o casco do barco, que acabou decorado
por algumas algas, mas como Ivar previra, naquele ponto elas não tinham
mais tanta força e, com isso, não prejudicaram em nada.
Era nítido nos rosto dos escravos o quanto estavam cansados e ainda
assustados por tudo o que haviam passado. Ivar chamou Olaf e mandou-o
comunicar a todos que poderiam realizar um bom banquete ali mesmo, com
algumas provisões que o subordinado havia comprado e descansar até quase a
metade da manhã. Ivar desejava, além de recompensá-los pelo serviço que
haviam realizado com perfeição, garantir também a força e a saúde dos
escravos remadores, já que precisava que estivessem com todo vigor possível
quando fossem fugir com toda a velocidade daquela cidade, levando Liban.
Sua esperança era grande e o dinamarquês estava contente e ansioso.
Como o tempo ainda estava nublado, apesar de naquela hora nenhuma
gota de água cair do céu, Ivar aproveitou para se arrumar melhor. Penteou o
cavanhaque, que ainda era um pouco curto para o gosto dele, e os cabelos
compridos e loiros com todo esmero, deixando-os soltos e trançando as duas
compridas mechas na frente. O viking tirou a camisa de linho surrada que
vestia, colocando outra um pouco melhor que pediu emprestada para Olaf, e
por cima vestiu uma capa vermelha de lã fina e retangular que chegava até o
meio das costas e que lhe cobria o ombro esquerdo, pois era segura do lado
direito por um broche ricamente ornado, presente também de Ragnar. Ajeitou
em seu pescoço o seu colar predileto: um cordão de ouro com um pingente de
prata que ele mandara fazer há alguns anos. O pingente era um Mjolnir – o
martelo de Thor26–, e atrás possuía gravada uma inscrição rúnica que dizia:
Este me pertence, para sempre.
Arrumou ainda as tiras que trançara na perna por cima da calça e apertou a
cinta da bainha onde ficava sua espada curta, na cintura. Só não ficou
satisfeito com a condição de seus sapatos, mas teria que ficar assim mesmo,
pois não havia trazido outro.
Então, depois de ter dado as ordens para Olaf, saiu apressado em direção à
rua que o levaria até a casa da garota pela qual ele ansiava de saudade. Na
mão, levava a bolsa de couro com as roupas masculinas e simples de
subordinado e o elmo que emprestaria para Liban. Nada o impediria dessa
vez, estava decidido a executar seu plano, até porque sabia que com o tempo
nublado, tempestade nenhuma de verão voltaria, no máximo uma chuva
fraca. Mas uma leve preocupação se instalara com relação à garota estar
chateada pelas coisas não terem dado certo no dia anterior. E Ivar ainda tinha
certo medo de que Liban pudesse ter repensado a sua decisão e não estar mais
tentada a partir com ele.
“Ah, mas eu a arrasto daqui comigo. Mesmo se ela não quiser, eu a coloco
em meus ombros e vamos embora”, pensou, decidido.
Ao chegar à frente da casa dela, sabia que só tinha uma coisa a fazer:
esperar. Novamente esperar que Burton saísse pela porta, para assim poder
entrar na residência, falar com a garota e os dois partirem o mais rápido
possível.
Dessa vez se certificou de que não estava em um anglo fácil de ser notado
e torcia por nenhum vizinho dali encrencar com a sua presença. Precisava ser
o mais silencioso e imperceptível possível.
Muitos minutos se passaram e não havia nenhum sinal de Burton ou de
Liban. Sentindo-se incomodado, Ivar estava cada vez mais ansioso. Sua boca
secara por completo e seus ombros duros não relaxavam um segundo sequer.
Seus batimentos cardíacos já haviam adotado um constante ritmo acelerado.
Mais tempo transcorreu e tudo permanecia quieto. O dono da casa ao qual
estava escorado já havia aparecido e lhe feito cara feia por três vezes –
ignorado em todas elas – e o sol pálido por trás das nuvens cinzas já havia
avançado um tanto no céu.
“Há algo estranho aqui... Onde está Burton? Onde está Liban? Por que não
saem de casa?”, pensava, aflito.
E como se fosse possível ler esse pensamento, o britânico, enfim,
escancarou a porta da sua residência.
O coração de Ivar ficou frenético na medida em que ele se escondia,
contente, atrás da casa em que estava escorado, deixando apenas os olhos de
fora. Olhos esses que mesmo com o céu nublado, refletiam um azul intenso
de esperança. Essa esperança estava viva e ele já podia sentir o gosto dos
beijos de Liban. Definitivamente, sentia falta dela.
Burton não parecia estar bêbado como ele havia visto naquele primeiro dia
que o avistou, porém sua feição não estava tranquila, ao contrário,
transparecia algo ruim, uma certa preocupação, Ivar notou. E ao esperar que o
homem batesse a porta atrás de si e se dirigisse para o porto ou para qualquer
outro lugar, mais uma surpresa se acometeu, pois Burton não se mexeu dali,
apenas ficou parado no vão da porta e olhando para a rua.
O dinamarquês não estava entendendo nada.
“Será que ele desconfia de mim? Ou pior... de mim com Liban? Ou será
que está à espera de alguém? Isso mesmo, ele está claramente esperando por
alguém... Mas quem? Talvez um de seus comparsas?”
Muitas eram as dúvidas sobre o comportamento do homem, e Ivar achou
melhor continuar observando e esperar, porém, nessa hora, sua ansiedade
estava virando um veneno e o deixando mal-humorado e inseguro. Depois do
que pareceu a ele uma eternidade, o britânico, enfim, se mexeu e, com uma
última olhada para a rua, entrou na casa novamente e fechou a porta. Ivar
olhava a madeira gasta e escura daquela porta, sem nada entender. Seus olhos
piscaram confusos, suas sobrancelhas quase se encostavam uma na outra.
“Por que ele entrou de novo? O que está acontecendo?”, perguntava-se a
toda hora.
Seu coração batia ainda mais acelerado, e Ivar, sem perceber, já estava
tomando uma atitude precipitada. Colocou a bolsa com as roupas que levara
para Liban no ombro e começou a ir de encontro àquela porta, sem se
preocupar mais com quem estivesse nas casas ao lado. Seus pensamentos
estavam todos na garota e foi somente pensando nela que fez o que fez. O
som de seus punhos fechados contra a madeira velha reverberara por toda a
casa e Burton, que estava sentado e pensativo em sua cadeira, deu um pulo ao
escutar as batidas na porta.
“Ah, deve ser aquela desgraçada”, pensou ele, já fechando a mão e
apertando os dedos involuntariamente. “Deve ter perdido a chave naquela
maldita praia que vai todos os dias e ficou com medo de voltar ontem à noite.
Deve ter se abrigado da tempestade na casa de Dona Aisha. Agora ela que se
prepare, pois vai ver só uma coisa.”
Mais batidas haviam sido desferidas contra aquela madeira que rangia em
protesto, e dessa vez foram mais fortes.
– Vai quebrar a porta agora, sua inútil? – berrou Burton, já de pé e se
adiantando para a entrada da casa. – Espero que esteja preparada para o que
vai lhe acontecer...
Mas ao escancarar a porta com violência, tomou um susto que não
esperava. Ao invés do bonito rosto miúdo de sua sobrinha, havia o rosto
sombrio e de maxilar proeminente do dinamarquês que ele havia mandado
seus amigos perseguirem e darem um susto no dia anterior.
Imediatamente e por um instinto desesperado, Burton tentou fechar a porta
com a mesma violência que a abrira, porém Ivar não deixou. O reflexo do
viking era muito mais rápido do que o do britânico, assim como a força
despendida no movimento também. O escandinavo deu um solavanco que
jogou ambos, porta e Burton, para trás. O tio de Liban cambaleou e bateu
com as costas na parede. Seus olhos transpareciam o pavor que estava
sentindo. Ivar colocou os dois pés no chão da sala e deixou a porta bater atrás
dele. Quando Burton se deu conta de que estava sozinho com o dinamarquês,
começou a tremer e a balbuciar assustado:
– Você... você não pode entrar na minha casa... Não lhe dei permissão para
entrar aqui...
Ivar se adiantou para cima dele como um leopardo para sua presa, e
agarrou-lhe pela gola de sua camisa.
– Para começo de conversa, fale a minha língua! – silvou.
– Está... está bem – gaguejou Burton, dessa vez na língua escandinava,
sem nem se lembrar de que havia falado em grego antes.
O nortista olhou no fundo dos olhos castanhos do britânico e teve a certeza
de que nunca viria a gostar deles, pois além deles demonstrarem fraqueza –
algo que o viking repugnava –, não passavam também confiança. O
dinamarquês afrouxou a mão e soltou a camisa do homem. Então Burton fez
o que sabia fazer de melhor: implorar e se rebaixar. Da mesma forma que
havia implorado pela sua vida para os vikings no passado – os que mataram
seus pais, raptaram e escravizaram suas irmãs e queimaram sua casa –, estava
também implorando agora, de joelhos, e ainda prometendo servi-lo no que
Ivar quisesse.
– Servir-me em que, homem? Para que preciso de um covarde? – disparou
Ivar, com raiva.
Burton se levantou apressado do chão e o escandinavo jurou que o
britânico estava pronto para se debulhar em lágrimas. Isso o deixou ainda
mais irritado. Porém, quando viu que das pernas do tio de Liban escorria um
filete malcheiroso de urina, soube que aquele homem era ainda mais
repugnante do que imaginava.
– Está se mijando agora, infeliz? – explodiu Ivar, sem conter o semblante
de repulsa com a situação.
– Senhor, me perdoe! – pediu Burton, em tom de súplica. – Eu não sabia
que meus amigos iriam segui-lo. Disse-lhes para não o importunarem. Eu não
tenho nada a ver com aquilo, dou minha palavra. Eu nem mesmo gosto
daquela gente, para falar a verdade. A culpa não é minha. Se desejar, posso
dizer até onde eles moram, pois volto a afirmar que nada tive nada a ver com
aquilo. Nada mesmo, posso jurar se o senhor quiser, tudo partiu deles. Eles
não o machucaram, não é?
– Cale a boca! – cuspiu Ivar. – Mesmo sendo rápido em culpá-los, é claro
que a sua corja não colocou a mão em mim. Só me impressiono em constatar
que além de covarde é também traidor.
– Então, senhor – adiantou-se Burton, ensaiando um sorriso nervoso nos
lábios –, se nada aconteceu, o senhor não precisa querer se vingar de mim,
não é mesmo? Vamos deixar assim, que tal?
– Não vim aqui falar sobre isso... – respondeu o viking, agora olhando no
fundo dos olhos do homem novamente.
– Nã... não? – perguntou Burton, confuso. – Então por que está aqui?
O sotaque do britânico era forte apesar de sua fala fluente na língua
escandinava, e Ivar se esforçava para entender corretamente tudo o que era
dito.
– Onde está Liban? – o escandinavo perguntou secamente, sem mais
delongas.
Burton olhou para ele, aturdido, e mais confuso do que nunca.
– Hã? – foi só o que o britânico conseguiu dizer.
– Onde está a sua sobrinha, homem? – Ivar repetiu agora como um
rosnado. – Onde está Liban? Está aqui dentro, não está? – perguntava,
afobado. – Liban! Liban! Venha até aqui – gritou a plenos pulmões,
esperançoso por vê-la.
– Espere aí... Como assim? – Burton chacoalhou a cabeça, como se aquilo
tudo não passasse de um devaneio louco.
Ivar ainda berrava o nome dela e agora avançava pela casa, procurando-a
nos cantos. E o tio de Liban ainda continuava parado no mesmo lugar,
tentando entender o que estava acontecendo. E quando o dinamarquês foi até
o quarto da garota, o britânico saiu do transe em que estava e seguiu para lá
também, mas Ivar o alcançou no meio do caminho.
– Onde ela está? – perguntou para Burton, já voltando a agarrá-lo pela gola
da camisa. Os dois homens eram quase do mesmo tamanho, entretanto, diante
da extrema raiva que sentia, Ivar parecia ter o dobro de tamanho dele.
– Como você a conhece? – o britânico devolveu a pergunta, agora mais
calmo. O ódio que estava sentindo da sobrinha ajudara-o a esquecer do medo
que sentia do viking.
– Não lhe interessa! Só quero saber onde ela está! – O olhar duro de Ivar
parecia fuzilá-lo.
– Eu sabia! – disse Burton, agora rindo. – Sabia que aquela vagabunda não
prestava. Nunca prestou!
O tapa violento que foi dado com as costas das mãos no peito de Burton o
fez cair no chão. Ivar avançou para cima dele bufando como um urso raivoso
e o agarrou novamente pela gola da camisa, erguendo-o do chão e fazendo-o
ficar em pé outra vez.
– Deseja morrer, seu merda? – perguntou o nortista, espumando de ódio
pela boca. – Ouse falar novamente assim de Liban e lhe faço beber esse seu
mijo nojento e fedorento e depois lhe castro antes de matá-lo.
– Qual a sua relação com ela? – perguntou Burton, tomado por uma
surpreendente coragem momentânea.
– Já lhe disse que a minha vida não importa, e você me dirá agora onde
está sua sobrinha.
– Não, não direi! – enfrentou-o Burton ainda com a coragem que ele nem
sabia que tinha. – E não me importa mais quantas ameaças irei receber.
– O quê? – Os olhos de Ivar eram puro veneno e ele apertou ainda mais a
camisa entre seus dedos, pronto para enforcar o britânico a qualquer
momento. – Acaso está querendo morrer mesmo, seu porco infeliz?
– Já não vivo há muito tempo... morri lá na minha querida Britânia há
tantos anos... – respondeu Burton, com um sorriso tresloucado no rosto e com
os olhos cheios de lágrimas. – Morri quando sua gente destruiu a minha
vida... seus malditos demônios...
– Não me venha com esse papo agora. Não tem honra sequer para se fazer
de coitado e isso me dá ainda mais nojo de você – devolveu Ivar. – Sei o
quanto é covarde e vil, já presenciei o trabalhinho que fez no rosto de sua
sobrinha.
– É claro que fiz! – berrou Burton, soltando perdigotos enquanto
gargalhava histericamente. – E digo-lhe que em nada me arrependo! Só talvez
de nunca ter conseguido arrancar um dente daquela vagabunda. Eu sabia que
ela estava aprontando alguma coisa... mas jamais imaginei que... – ele
gargalhou ainda mais – ... que estivesse envolvida com um dinamarquês! –
Ele cuspiu ao chão depois de falar essa palavra.
O soco que o britânico recebeu abriu imediatamente seu lábio inferior e
quase deslocou seu maxilar. Burton cambaleou, mas não caiu. Com a mão
sobre o queixo, sentiu a dor lancinante do punho de Ivar e logo depois
percebeu que sua boca havia se enchido de sangue. Cuspiu novamente no
chão, esperando ver apenas o líquido vermelho expelido, mas havia mais: um
dente. Imediatamente levou a mão à boca e notou que seu dente superior da
frente não estava mais lá.
– Ah, não acredito – disse o britânico às gargalhadas. – Olha como o
destino é cruel... ou melhor, engraçado, muito engraçado.! Eu que sempre
quis arrancar um dente de Liban, e olha que foram inúmeras as vezes em que
tentei, agora tenho o meu próprio dente arrancado e exatamente por qual
motivo? Por causa dela! – gargalhou ainda mais.
– E terá também a vida arrancada de suas fuças – rosnou Ivar, voltando a
agarrá-lo pela camisa – se não me disser onde ela está e o que aconteceu.
– E se eu resolver não lhe dizer? O que fará?
– Primeiro, lhe deixarei viver nessa sua existência de merda. Depois tirarei
Liban dessa vida infeliz que vive ao seu lado, seu covarde desgraçado. Ela
vai comigo, estou zarpando ainda hoje e Liban irá comigo. Ela nunca mais
olhará para essa sua cara feia.
– Sabe – começou a dizer Burton, o sangue escorrendo feito um fluído
grosso pelos cantos de sua boca –, essa desgraçada tinha a mesma doença da
mãe... Minha irmã aceitou ter e criar uma filha que era fruto do dinamarquês
pagão que a aprisionou, por mais que eu insistisse para ela deitar fora o
filhote de demônio que ela carregava na barriga. E como se não bastasse, a
desgraçada morre e me deixa com essa maldita menina para criar. A maldita
menina cresce e também se torna uma desgraçada estranha que não tem
amigos, não come carne e também não mata os bichos, pois diz que os
animais é que são seus amigos, tem sempre frases contra a igreja tal qual sua
mãe, e quase sempre discute as minhas ordens. E ainda, para piorar, o que
acontece? Ela vira estragada! Tantas e tantas vezes eu a avisei que não
aceitaria vagabunda estragada dentro da minha casa, mas é claro que ela não
iria me ouvir. É claro que iria me desobedecer, e logo com quem? Com um
dinamarquês! – Burton gargalhou e o sangue de sua boca espirrou na face da
Ivar.
O viking então, limpando o rosto com as costas da mão, pressentiu o pior
nessa última frase do britânico.
– O que você fez a ela? – perguntou, desesperado, chacoalhando-o. E
quanto mais fazia isso, mais sangue voava da boca agora desdentada de
Burton, e mais ele gargalhava histericamente.
– Liban... Liban morreu! – disse Burton, com os olhos vidrados e com um
sorriso irônico no rosto ensanguentado. – Nunca mais a verá novamente, não
com vida!
– O quê? – O coração e a respiração de Ivar pararam. – O que está
dizendo, seu porco desgraçado?
– Isso mesmo que ouviu... Liban está morta! Até que enfim eu a matei.
Morta, está ouvindo? Morta!
A cabeça de Ivar rodava sem parar, e parecia que a voz do odioso britânico
se encontrava longe, quase inaudível, enquanto ele repetia que Liban estava
morta. Um filme passou em sua cabeça. Da garota em seus braços, dos
momentos que passaram juntos, das risadas que compartilhavam e das
histórias que cada um contou sobre sua vida. Ivar enxergou a alegria radiante
dela na praia junto do golfinho, e a graça com que nadava tão cheia de vida.
– Está mentindo – murmurou o viking, trêmulo.
Burton percebeu que havia conseguido atingir seu objetivo, notou o quanto
o dinamarquês ficara abalado.
– Não, não estou mentindo – disse agora sem mais gargalhar. – Liban está
morta, eu a matei...
– Você mente! – berrou Ivar.
– Pode perguntar para aqueles meus amigos de ontem. Pergunte! Eles me
ajudaram nesse servicinho. Se não acredita, vá até o cemitério e abra a cova
que lhe parecer mais recente. Quem sabe com a chuva de ontem, o corpo
daquela infeliz não esteja até boiando para fora da terra? Mas não se assuste
com o que vai ver, pois eu e meus amigos fomos muito eficientes e o belo
rosto daquela desgraçada ficou quase desfigurado.
Tudo ficou escuro na mente de Ivar. Seu estômago revirou. O viking
conhecia bem o sentimento de raiva e o gosto pela matança que ele usava nas
batalhas, mas o que sentia agora era diferente. Não queria apenas matar, seria
muito pouco, seu desejo era liquidar com toda a existência daquele ser à sua
frente. Um ódio tão grande, que nunca havia sentido antes, estava misturado à
completa desolação que o corroía por dentro ao pensar na garota morta. E o
que fez após, foi apenas expandir um pequeno resquício da dor que sentia.
Ivar soltou a camisa do britânico que ele segurava com as mãos, e
procurou sua espada curta que estava presa a bainha que levava na cintura.
Empunhou-a com a familiar maestria e com ela desferiu dezenas de golpes
sobre a barriga de Burton. Uma estocada atrás da outra, enquanto quem mais
berrava de dor era o próprio Ivar. Dor por perder uma pessoa que ele nem
sabia que lhe era tão amada. Dor em saber que nunca mais iria ver a face
daquela por quem havia perdidamente se apaixonado.
Nos primeiros golpes que sofreu, Burton gritou de dor, desespero e medo,
ainda mais quando Ivar rasgou sua carne e um pouco de suas tripas saíram e
foram amparadas por suas mãos trêmulas e ensanguentadas. Mas a partir do
quinto golpe, já não sentia mais nada e ainda morreu com um desdentado
sorriso bizarro no rosto e com os olhos abertos e vidrados. Ivar nem se
importou em ver que Burton já havia perecido e, mesmo caído ao chão, não
parava de estocar a pequena espada sobre a barriga aberta e o peito do bretão
morto que respondia emitindo os barulhos borbulhantes do sangue em
abundância e o som dos ossos do tórax sendo triturados. Com a intensidade
da força distendida, Ivar afundou o peito de Burton no chão.
Então, após um tempo que ele nem viu passar, Ivar parou com os golpes e
se deitou ao lado do corpo, exausto. Seus cabelos loiros, assim como sua pele
alva, estavam totalmente manchados pelo rubro sangue de seu inimigo.
Chorando tudo o que ele nunca havia chorado antes na vida, Ivar lembrou-
se novamente da garota e fez reverberar sobre os ares o lamento que o
castigava.
– Liban... – gritou – Liban... Liban...
Capítulo 23
Tudo estava cinza. Mas não era só o céu ou o semblante das pessoas que
passavam ao seu lado e que ele nem prestava atenção, e sim a sua alma. Sua
alma estava nublada, pesada, perdida.
Havia não só a tristeza cortante e a desolação, mas também um sentimento
pesaroso da perda de algo que nem havia começado, que nem havia
vivenciado. E esse tipo de perda é sempre a mais dolorosa, pois advém da
morte dos planos vividos e revividos nos pensamentos, advém do cessar da
esperança de um futuro próximo e idealizado. Se Ivar experimentasse a morte
de Liban depois de já ter vivido com ela e a amado durante esse tempo, talvez
não tivesse sofrido tanto quanto estava sofrendo agora. E ele sabia que o
caroço preso em sua garganta era a angústia dessa saudade, a frustração que
já sentia do que não viveria.
Ao deixar a casa de Liban, andou primeiro a esmo sem saber para onde ia.
Suas mãos e roupas estavam completamente ensanguentadas, assim como seu
cavanhaque e seu cabelo cuidadosamente trançado. A bainha que carregava
presa à cintura estava vazia. Ele esquecera a espada curta enterrada
profundamente no peito de Burton. Da bolsa que carregava com o elmo e as
roupas puídas de subordinado que daria para Liban, sobraram apenas as
roupas, pois o elmo, assim que caiu da bolsa, também foi deixado para trás,
sem importância. Após um tempo de confusão mental e desnorteamento,
sabia exatamente o que faria. Olhou ao redor e viu que estava parado no local
onde havia combinado o encontro com Liban, dois dias atrás. Isso o
machucou ainda mais. Mas, então, a raiva aflorou e ele se dirigiu para o
porto. Ao chegar lá, não mais se importou com os acordos de paz e comércio
estabelecidos e existentes entre o seu povo e o daquela cidade, e que estavam
regendo grande parte de seu comportamento ali.
Tudo o que fez e todos os seus movimentos foram rápidos e violentos ao
encontrar os três comparsas de Burton, rindo e sentados ao lado de um grande
barril de vinho.
Várias pessoas se encontravam próximas, afinal, o porto inteiro estava
lotado, pois a população tentava consertar os estragos que a tempestade fizera
na estrutura do cais e das embarcações.
O primeiro escolhido foi o que estava de costas. Ivar agarrou-lhe pelos
ombros e o atirou para frente; ele voou uma distância de dois metros antes de
bater com tudo no chão. Então, o comparsa que estava ao lado dele se
levantou assustado e já procurando desembainhar a sua faca, quando o viking
desferiu um soco brutal em seu rosto. Era o homem de sorriso debochado e
Ivar ficou satisfeito ao ver que ele havia desaparecido de seu rosto. O soco foi
extremamente forte, mas não o suficiente para fazê-lo cair, então, outro soco
foi desferido e, ao tombar para trás, o homem deixou a faca escapar de sua
mão. Ivar se adiantou para cima dele e fez o que mais sabia fazer: matar com
eficiência. Pegou a faca que jazia caída ao lado do homem apavorado e, com
um ligeiro e mortal movimento, abriu-lhe a garganta. Estranhamente, depois
de se debater por um curto período de tempo tentando estancar o sangue que
jorrava, o homem acabou morrendo com o mesmo semblante no rosto que
possuía em vida, levemente obsceno e com o sorriso debochado presente, o
que fez Ivar notar que aquilo era um irritante cacoete e ficar ainda mais
enojado.
O bizantino que estava de frente e que viu – aterrorizado – toda a
aproximação de Ivar e não conseguiu dizer nada, era o mais jovem entre eles,
o de barba rala. Ele havia se adiantado para correr tarde demais, e quando
Ivar o alcançou, arrancou a vida de seu corpo em meio a socos frenéticos e
repetidos, que acabaram até por desfigurar toda a sua face.
Então Ivar se virou para o terceiro homem, que ainda se encontrava caído
ao chão e se dobrando de dor. Era o homem mais velho entre eles, o que Ivar
havia atirado para frente logo que chegou para executar sua vingança. Mesmo
com a imensa dor que sentia, o amigo de Burton conseguiu se levantar ao ver
a aproximação do viking e alcançar o que estava mais perto: o barril
praticamente vazio de vinho. Tentou, com ele, uma manobra ridícula e
desesperada: utilizá-lo como escudo. O chute que Ivar desferiu ao barril fez o
objeto soltar-se das mãos do homem e quase partir-se no chão. O escandinavo
aproveitou e passou a não só chutar o bizantino ao chão como o objeto
também. E quando viu que o barril havia ficado com as suas tiras de madeira
soltas, Ivar se adiantou para ele, arrancou com força o aro de metal que ligava
as tiras e enforcou violentamente com ele o último homem.
Ninguém à volta fez coisa alguma. Todos, horrorizados, viram a
insanidade nos olhos de Ivar e nenhuma coragem de pará-lo se apresentou.
Depois da matança, o viking se dirigiu para onde seu barco se encontrava
e, alucinado, deu ordens para todos zarparem imediatamente.
Olhando assustado para o estado que seu jarl chegara, com sangue dos pés
à cabeça, Olaf não se atreveu a perguntar o que havia acontecido ou se ele
estava bem. E assim, o knorr grande e resistente ganhou as águas novamente,
deixando um rastro de pavor e tumulto naquele porto.
A vingança de Ivar estava feita. Todos que ele pensava que haviam
matado Liban jaziam mortos, mas isso não lhe trazia nenhum conforto.
Também, para sua maior desolação, não acabava com o seu sofrimento ao
pensar que nunca mais veria aquela que havia, pela primeira vez, acalentado
seu coração endurecido e confuso.
Capítulo 24
Não foi difícil para o golfinho entrar outra vez na gruta. A correnteza era
muito forte na embocadura e puxava qualquer coisa para dentro. Quando
Liban avistou o amigo chegando, ficou eufórica.
A garota nunca foi religiosa, e nunca soube em que acreditar. Sua mãe
dizia que Deus não existia, ou ao menos não para as mulheres, pois além de
ser uma figura masculina, de um livro que falava que a mulher é que havia
colocado o pecado no mundo, Deus ainda havia lhe faltado quando mais
precisou. A única ajuda divina que ela dizia ter um dia recebido veio de uma
sereia, uma figura feminina, e não chegou do céu, e sim do mar. Com isso,
Liban cresceu cheia de dúvidas na cabeça. Não gostava nada do povo
religioso de sua cidade, porque além de não enxergar qualquer santidade ou
bondade neles, não aceitava o que os padres diziam sobre as mulheres e os
animais. Além disso, revoltava-se por sua mãe – a melhor pessoa que ela
havia conhecido – haver morrido tão cedo, enquanto muitos homens ruins
continuavam vivos. E ali, sozinha naquela caverna, ela não tinha nem para
quem rezar. Resolveu pedir ajuda à sua mãe, chorou e gritou o seu nome
pedindo que ela lhe desse algum sinal, que ao menos iluminasse aquele lugar
ou que ajudasse alguém a encontrá-la. Mas nada aconteceu, e Liban teve
certeza de que não existia nenhuma magia no mundo. Quando já estava
começando a se desesperar totalmente, acreditando que nem Ulisses voltaria
mais, escutou o canto... o canto que sempre a acompanhou em toda a sua
vida. Mas havia uma diferença nele. A música parecia mais forte e Liban teve
a impressão de que quase conseguia entender, agora, as palavras que aquele
canto dizia. Estranhamente, ele pareceu lembrá-la de uma cantiga de ninar
que sua mãe cantava quase todas as noites:
Dorme, menina, no leito do mar
Quem te observa de cima é o belo luar
Mas ao acordar, não fiques na areia deitando o olhar
Pois quando a maré chega, em sereia podes te transformar
Porém, assim como o canto surgiu de repente, desapareceu, e Liban
balançou a cabeça confusa, como que saída de um encantamento. Então
Ulisses apareceu e a esperança da garota se avivou novamente. Chamou por
seu amigo, que nadou rápido em sua direção, sendo ajudado pela forte
correnteza. A maré já havia subido desde que o golfinho saíra para conseguir
socorro, e agora o mar chegava à pedra onde Liban estava. Quando o cetáceo
emergiu o rosto e a garota pôde ver o colar de Ivar em sua boca, adiantou-se
para ele e pegou o colar nas mãos.
– Ulisses, você o encontrou! – gritou, eufórica. – Estamos a salvo! Onde
ele está? Está vindo, não é? Está aí fora? – Liban segurava a cabeça do
golfinho e o olhava nos olhos, contente. – Ivar! Ivar! – berrou, sorridente.
Mais alguns gritos felizes e esperançosos se seguiram, até que ela parou
para observar outra vez os olhos do seu amigo, que transpareciam uma
profunda melancolia mesmo em sua expressão sorridente de golfinho. E
então entendeu a triste realidade. Ivar não estava ali. Ninguém viria salvá-la.
Ela deixou afundar-se para trás e ao fazer o movimento para sentar-se,
perdida em seu pavor, notou apreensiva que a água subia velozmente. Por
alguns segundos, a tristeza tomou-lhe conta e um pensamento chegou à sua
mente: morreria ali, naquele frio e escuro lugar, e sua morte seria como a sua
vida: triste e solitária.
Olhou novamente para Ulisses, e mais uma vez os olhos escuros do
cetáceo lhe deram a força que precisava, assim como lhe passaram o amor e o
carinho que ansiava. Então, aquecendo de novo o seu espírito corajoso, Liban
afastou com as mãos as lágrimas que ainda estavam em sua face, apertou os
lábios com obstinação e ordenou que o amigo a acompanhasse logo atrás,
pois eles nadariam para fora daquela gruta.
Levantando-se da pedra, a água já batia na altura de seus joelhos. Pegou o
colar de Ivar e o apertou para ficar rente ao pulso.
Ao mirar para o local onde ficava a entrada da gruta, notou que não
conseguia mais enxergar luz vinda de lá, ou seja, o buraco por onde eles
teriam que passar para sair estava todo submerso. Teriam que atravessá-lo por
debaixo d’água.
Ulisses estava a seu lado, então a garota pegou fôlego e mergulhou na
frente, na esperança de sair nadando com o golfinho logo atrás. Porém, não
esperava ter de lidar com mais correnteza do que previa. A força da maré a
jogava de volta, e Liban teve que lutar para não bater com as costas na parede
de pedra atrás dela. Ulisses percebeu a dificuldade e chegou a seu lado. Para
ele era bem mais fácil nadar contra a correnteza, pois além de já estar
acostumado, sua poderosa cauda era mais forte do que a força da água. Liban
compreendeu isso e se agarrou no cetáceo, segurando firmemente com uma
mão em sua nadadeira dorsal e com a outra envolveu o corpo robusto do
animal. O golfinho estava obstinado e usou todas as suas forças para
conseguir nadar com Liban em suas costas e devagar começou a se aproximar
do local onde ficava a boca de saída da gruta.
Quando o animal submergiu, Liban, com sua capacidade de enxergar
embaixo d’água, conseguiu ver a claridade pálida que vinha da embocadura.
Ulisses batia a cauda freneticamente para impulsioná-lo para frente, pois sem
isso, a correnteza os jogaria para trás. E assim que o golfinho estava prestes a
atravessar o buraco, com imensa amargura a garota viu que o tamanho dele
não comportaria os dois. Ulisses até tentou, mas pela circunferência só
passaria um deles, e Liban acabou por ralar as costas na vã tentativa de se
espremer junto com o golfinho. E quando se soltou do animal, foi jogada para
trás violentamente pela força das águas.
Tudo estava um caos, e a garota soube que não conseguiriam dessa forma
que haviam tentado. O desespero tomava conta dela, então Liban teve a ideia
de se segurar na cauda do golfinho, pois assim poderiam atravessar juntos a
saída da gruta. Entretanto, quando segurou em sua cauda, Ulisses não
conseguiu fazer o movimento para cima e para baixo com ela, e somente
batendo-a com muita força na água que ele teria a propulsão necessária para
avançar para frente, carregando ainda todo o peso de Liban com ele.
Mais alguns minutos se passaram. O golfinho estava esgotado e a garota,
exausta, caída sobre a pedra mais alta; o mar já chegava até a altura de seus
quadris e a escuridão se tornava mais presente.
Liban imaginou que a noite tomava corpo e algo mais a preocupava: por
quanto mais a maré subiria...
De todas as situações ruins que já havia passado, nada se comparava
àquilo. Passada a euforia das tentativas, sem sucesso, de escapar daquele
local, agora junto do cansaço havia chegado o frio. A água gelada do mar
parecia mil facas entrando em seu corpo. Seus dentes batiam violentamente
uns contra os outros e seu corpo não conseguia parar de tremer. A água subira
até chegar à altura de seus ombros, porém havia um tempo que parecia não
subir mais. Ao menos, ela pensava, não morreria afogada.
Ulisses passava todo o tempo a seu lado, nadando em sua volta ou
encostando a cabeça em seus ombros. No começo, a garota tentava se
exercitar também, para o frio não ser tão causticante, mas à medida que os
minutos se passavam, seu ritmo foi desacelerando e a hipotermia se instalou
de vez. Por um tempo convulsionou involuntariamente, assustando deveras o
golfinho. Sua pele estava tão gelada quanto um iceberg e Liban sequer
conseguia se mexer para acarinhar Ulisses.
A escuridão era total e a garota estava tão desesperada que só o que
restava a ela era chorar. Entretanto, até o choro se tornou uma difícil tarefa. O
frio começava a impedi-la até de pensar.
As dores foram abrandando e em seu lugar surgia uma sensação de
dormência em todo seu corpo. Com os dedos rígidos tentou apalpar os
braços, mas nada sentia. Era como se aqueles membros não fizessem parte
dela. Então sua memória começou a ser afetada e ela já tinha dificuldades
para entender perfeitamente o que lhe tinha acontecido e por que estava ali. O
som do barulho de sua respiração estava ficando rouco e falhado, e Liban
lutava para não lhe faltar o ar.
Há mais de uma hora a garota havia ficado silenciosa. Antes disso, estava
sempre falando com o golfinho, pedindo que ele escapasse dali, que se
salvasse, ou então contando coisas de sua vida que ela rememorava. Mas
agora, tudo estava silencioso. Os únicos sons ouvidos eram a respiração forte
do golfinho e um leve bater de dentes de Liban.
Ulisses jamais a deixaria sozinha, nem que isso significasse que ele
morreria também. Mas a verdade é que, tirando a imensa fome, o golfinho
estava muito bem fisicamente. Não tinha frio e já não estava mais tão
cansado. Tinha a perfeita consciência de que conseguiria sair dali quando
quisesse. O problema é que não iria embora sem ela. E a agonia em ver sua
amada sofrendo estava deixando-o desesperado. Então, quando Liban
silenciou, ele entendeu que realmente ela estava morrendo, que estava
deixando-o, assim como sua mãe uma vez o fez. E Liban também
compreendeu isso...
Juntando as poucas forças que ainda lhe restavam, ela chamou por ele. E
assim que o golfinho encostou a cabeça em seu ombro, ela disse baixinho e
com dificuldade:
– Ulisses, eu estou morrendo, meu amigo... meu único amigo. Eu sabia
que você não me abandonaria neste momento. Mas assim que eu me for, por
favor, saia daqui e nade para longe. Viva a sua vida, conheça outros amigos e
seja feliz. É a única coisa que lhe peço...
Poucas lágrimas rolaram sobre a face gelada de Liban e ela só tinha mais
uma coisa a fazer antes de se deixar morrer. Com extrema dificuldade,
movimentou lentamente seus braços e quando conseguiu tirar suas mãos da
água, viu o quanto já estavam arroxeadas. Na mão direita, o colar de Ivar
ainda era segurado firmemente. Ela olhou novamente para ele, e mais uma
vez achou incomum o formato do pingente.
“Os dinamarqueses são realmente estranhos e imbecis... não sabem nem ao
menos como fazer joias”, pensou e tentou sorrir, mas sua face estava
endurecida demais ou faltavam-lhe forças para isso, ela não sabia.
Com a ajuda da outra mão, abriu o colar, pousou-o em seu pescoço e o
prendeu atrás. Agora, estava pronta.
Tentou lembrar-se pela última vez de sua mãe e da vida que viveu com
ela, mas a única coisa que lhe vinha na cabeça eram os olhos azuis de Ivar e
seus cabelos dourados. E os últimos momentos que rememorou foram de seus
beijos e de como ficava feliz quando o viking a pegava no colo.
E então... suas pernas bambearam e ela se sentiu afundando. E tudo ficou
ainda mais escuro...
Capítulo 26
O pavor tomou conta do golfinho assim que viu que Liban afundar na
água. Desesperado, entrou rapidamente por debaixo dela e levantou-a até ela
ficar com a cabeça emergida. Seu maior medo era que Liban tivesse
realmente morrido, porém, para seu alívio, conseguiu escutar que sua
respiração ainda era presente.
Ulisses sabia que só tinha uma coisa a ser feita. Ele não tinha esperança de
que fosse dar certo, mas era a única coisa que poderia fazer.
Logo que um golfinho nasce, ele aprende como o equilíbrio dos mares é
mantido. E mesmo sendo apenas meras histórias que os golfinhos contam uns
para os outros, todos eles acreditam nelas. Seus tios e sua mãe lhe diziam que
existe uma deusa das águas a qual eles chamam de Fand, mas que na verdade
ela possui muitos nomes. E esta deusa é a mãe das sereias também – seres
também divinos que são metade peixes e metade humanos. Alguns golfinhos
que ele havia conhecido diziam que já tinham visto uma sereia. Porém,
Ulisses nunca, e ele não sabia se acreditava realmente na existência desses
seres. E mesmo com os avisos e precauções de sua mãe, todos em seu bando
lhe diziam que se qualquer um deles visse algum humano no mar se
afogando, era para ajudar. Deveriam tentar carregá-lo até um pedaço de terra
mais próximo, pois esse humano poderia ter algum parentesco com as sereias.
Por isso, os golfinhos deveriam ser solidários, mesmo que os terrestres não
merecessem. As sereias, diziam eles, eram responsáveis por ajudar as águas e
os seres que vivem nela, mas ninguém havia ajudado sua mãe quando ela
estava morrendo, e isso era mais um ponto forte que deixava Ulisses em
dúvida quanto à existência de uma força divina.
Mas àquela hora isso era só o que lhe restava. O golfinho não tinha mais
tempo nem a quem recorrer. Então, usou toda a pouca fé que ainda tinha para
clamar para as sereias. Mas nada aconteceu, ninguém viera por socorro. E ele
se agitou e clamou ainda mais forte, pedindo agora para a deusa Fand o
ajudar. Implorou aos mares, mas tudo estava escuro e silencioso.
E então, de repente, um clarão tomou conta da gruta. E junto com um
canto maravilhoso, Ulisses viu, à sua frente, uma mulher na água. Ela tinha
os cabelos loiros e enormes e à medida que se movia, eles
surpreendentemente se transformavam na aparência de corais dourados e
avermelhados. Do alto de sua cabeça brilhava uma estrela de prata. Seus
olhos eram diferentes, pois um era azul e inconstante como o mar e o outro
era negro como a noite. Seu corpo se encontrava somente da cintura para
baixo submerso, e seu vestido parecia feito das ondas do mar. A visão
daquela mulher era estupenda e Ulisses não teve medo, ao contrário, ficou
maravilhado. Então, sem mover a boca, ela começou a falar e a voz ecoava na
mente do golfinho:
– Meu amado filho do mar, você me chamou, clamou para as minhas
águas com todo fervor e aqui estou.
Ulisses rapidamente falou também em pensamento:
– Quem é a senhora? Acaso pode salvar Liban?
– Eu sou a mãe que dá a vida e sou a Deusa. Sou parte das gotas do oceano
e da água doce que cai das cachoeiras. Estou presente na cauda dos peixes, no
canto das baleias e veja só este meu olho... estou presente nos olhos negros
dos golfinhos também. Sou aquela a quem seu povo chama de Fand. A mãe
das sereias, a mãe de todos os habitantes das águas.
Por um momento, ele nada conseguiu falar. Apenas a olhava, admirado. E
ela lhe sorria calmamente. Ulisses nem mais sentia o peso de Liban sobre
suas costas, parecia que agora tudo ficava leve e tudo de ruim havia
desaparecido. Todo o desespero, o cansaço e a fome.
Ele queria tanto que Liban estivesse acordada para poder também se
maravilhar com aquela visão.
– Então, pode ajudá-la?
– Infelizmente, Liban não é de minha competência. Ela é uma humana,
entretanto, sei que o seu coração pertence ao mar, assim como sou ciente
também da ligação que esta jovem possui com o oceano. E é por isso que no
que pude, ajudei. Dei-lhe forças e tentei transmitir-lhe paz, porém, nada mais
posso fazer, pois nem a Deusa pode atrapalhar o livre-arbítrio de quem não
pertence às águas.
E toda a esperança do golfinho foi embora novamente. Ele lembrou-se de
sua mãe, e de como ninguém também a havia ajudado, e, magoado, disse:
– Então, peço-lhe... troque a minha vida pela dela. Eu não tenho mais por
que viver se não for com ela, mas Liban tem. Ela ama um humano, se viver,
pode ser feliz ao lado dele.
A Deusa o olhou com compaixão, depois se inclinou e o beijou entre os
olhos, igual Liban sempre fazia com ele. E a esse contato, a luz envolta dela
se tornou ainda mais brilhante.
– Você é nobre, meu pequeno filho. Possui o coração mais puro que já
senti e sua alma é majestosa. Curvo-me diante de você, pois somente um ser
de extrema grandeza daria a vida por um amigo. Em toda a existência do
mundo, jamais vi esta compaixão acontecer entre um humano e um golfinho,
nem mesmo quando os humanos eram seres da água. E lhe digo que é
possível realizar tal ato, porém, isso tem que partir mais de você do que de
mim, tem que nascer do verdadeiro anseio de seu coração.
E assim a Deusa se despediu e a escuridão voltou a reinar na gruta. Ulisses
sabia agora o que iria fazer. Com todo o cuidado, nadou mais um pouco em
sentido a embocadura da caverna, com Liban em suas costas. Até que parou,
completamente exausto, já que a fome e as dores haviam retornado. O
golfinho não aguentava mais carregar Liban e sentiu que afundaria a qualquer
momento junto com ela. E então, com toda a fé e a força de seu ser, fez seu
último pedido, para que a sua própria vida fosse trocada pela vida de Liban.
Ele estava disposto a morrer para ela viver.
Assim que submergia, viu novamente a luz que retornara e escutou o lindo
canto da Deusa pela última vez. Quando enfim afundou nas águas, sentiu-se
feliz e em paz, e que sua vida se esvaía de si...
Capítulo 27
Sua cabeça girava amortecida como se estivesse bêbada. Liban, certa vez,
embriagara-se com um vinho que roubara de seu tio. A intenção não havia
sido realmente ficar bêbada, somente atazanar Burton, que não saberia onde
teria ido parar o seu odre. Porém, quando ela levou a bebida até a praia, teve
curiosidade e experimentou. Gostou, e o pouco que bebeu já foi suficiente
para fazê-la perder os sentidos, ficar confusa e, principalmente, enxergar tudo
girando. A garota odiou essa sensação, e agora experimentava outro tipo de
realidade embriagante.
Olhando para seu corpo agora transformado em golfinho da cintura para
baixo, não conseguia conceber ou acreditar no que se passava. Suas dúvidas
ainda eram constantemente bombardeadas com as lembranças confusas de
outrora, quando ela e Ulisses se encontraram presos na “Gruta de Teseu”.
Como se o absurdo da situação já não bastasse, Liban voltou a escutar o
familiarizado canto. Mas dessa vez, ela não ficou indiferente.
– Ei! – berrou, olhando de um lado a outro, pois nunca soubera exatamente
de onde ele vinha. Muitas vezes achou que nascia em seus ouvidos, como se
ela própria o projetasse. – Por favor, me ajude! Quando minha mãe morreu,
trouxe-me Ulisses, então, ajude-me novamente, por favor... Se é alguém de
verdade, se realmente existe, apareça!
Seu coração batia esperançoso e ela olhava atenta para as movimentações
da água. Nunca teve coragem de ficar chamando pelo canto, pois tinha um
certo medo inexplicável. Mas agora ele poderia ser a sua única chave para lhe
ajudar a entender.
– Apareça! – gritou novamente de um jeito mais histérico, quase perdendo
a paciência. –O que mais deseja de mim? Por que me persegue se não
aparece?
Seu rosto demonstrava a insatisfação pela falta de resposta e Liban estava
sendo tomada pela raiva. Nessa hora, a música se intensificou e ela teve a
impressão de que quem a cantava se aproximava.
Inexplicavelmente, isso a deixou ainda mais irritada.
E então... a cerca de dez metros à frente, ela começou a perceber uma
agitação e um leve brilho na água. Seus olhos apuraram e seu coração
começou a bater acelerado na medida em que lentamente o topo de uma
cabeça se projetava para fora do mar.
“É ela!”, pensou, eufórica. “É a sereia que ajudou a mim e a minha mãe no
dia em que nasci. É ela, só pode ser!”
Os cabelos eram realmente bem loiros e no topo da cabeça trazia uma
espécie de guirlanda feita de conchas e estrelas do mar. Quando todo o rosto
ficou emerso, Liban se surpreendeu com a imensa beleza daquela sereia. Ela
aparentava ter vinte e poucos anos, o que deixou a garota mais confusa ainda,
pois se era a mesma sereia que conhecera sua mãe dezenove anos atrás, seria
para ela aparentar bem mais idade.
A sereia nadou com rapidez e delicadeza ao mesmo tempo, uma visão
atordoante para Liban, e pousou as mãos – tão belas quanto seu rosto – sobre
a rocha onde a garota estava sentada.
Liban não conseguia dizer nada e por alguns momentos a sereia também
nada disse. Apenas sorria de um jeito amável, mas a garota percebeu de leve
que seus grandes e incomuns olhos negros transpareciam uma estranha
cobiça. Aqueles eram olhos incomuns e Liban espantou-se ao perceber o
quanto eles eram parecidos com os olhos de Ulisses, os mesmos grandes
olhos negros de golfinho.
Ainda examinando aquele rosto, a garota viu como as feições dela eram
perfeitas e de aparência forte. Seus lábios eram grossos e o sorriso perfeito.
– Até que enfim nos conhecemos, Liban... – disse, com uma voz bela e
poderosa, e suas palavras não foram ditas normais, mas soaram como um
canto, provocando ecos em todas as sílabas melodiosas pronunciadas, que
acertavam em cheio o âmago de Liban, assim que eram captadas.
Abrindo a boca para falar, a garota se deteve, saboreando ainda o som que
aquelas palavras reverberaram, e notou estranhamente como havia ficado
mais calma e feliz repentinamente.
“Com toda a certeza, estou em um delicioso encantamento”, a garota
pensou, sorrindo.
A sereia também sorriu e ao estender um de seus braços, pousou sua mão
sobre a de Liban. O toque da mão molhada e gelada da sereia fez com que
acordasse do encantamento em que parecia estar, e por um impulso instintivo,
puxou sua mão para si, como se não quisesse, ou temesse, o contato com ela.
Mas essa reação bruta pareceu não incomodar a sereia.
– Há muitos anos eu sonhava com esse nosso encontro – novamente a
sereia falou de modo melodioso, porém,gradativamente menos. – Era muito
ruim vê-la de longe e não poder me aproximar. E agora, veja como está! Está
a perfeita magia que existe no mundo! Olhe como seus cabelos agora
combinam com seus olhos. Você está brilhando!
Resgatando uma mecha de seu cabelo para olhar novamente, Liban
certificou como realmente ao sol os fios, agora prateados, brilhavam.
– Mas, por que nunca apareceu para mim antes? – ela se viu perguntando
de supetão, e por isso sua voz falhou um pouco no começo e o restante dela
ficou mais fina do que era, causando-lhe um leve constrangimento diante da
belíssima voz da sereia. Meio sem jeito, Liban limpou a garganta e
prosseguiu. – Por que só agora? – As perguntas a fazer eram muitas e ela
ansiava-se por entender o que havia acontecido com ela e, principalmente,
descobrir o paradeiro de Ulisses, mas as primeiras perguntas que saíram de
sua boca tinham relação com o seu passado e com todo o mistério do canto
que a perseguia. De princípio, e buscando mais a emoção que a razão, sonhou
com a possibilidade de a sereia contar histórias sobre a sua amada mãe.
Pensar que aquele ser mágico a havia conhecido e ajudado sua mãe deixava-a
extasiada de fascinação e em busca por respostas.
– Porque antes não era hora. E agora é! – a sereia falou, calmamente.
– Eu não entendo – respondeu Liban, com sinceridade. – Por que cantava
para mim? Acaso foi você que me enviou Ulisses àquele dia na praia, quando
minha mãe morreu? E foi você quem ajudou minha mãe quando ela estava
parindo e caiu no mar? Afinal... qual é o seu nome?
A sereia abriu um largo sorriso, mostrando dentes tão brancos quanto os
cabelos de Liban. E então, começou a rir.
– Vejo que alguém se encontra no meio do oceano, mas continua com
sede. Mas essa sede é diferente, é por respostas. Digo-lhe, tenha calma que
elucidarei todos os seus questionamentos. Primeiramente, pode chamar-me
por Amairani. Este não foi sempre o meu nome, mas há muito tempo o é, e
por muito tempo será. Porque Amairani significa “eterna” e se um dia souber
de minha condição ou de meu pesar, entenderá o motivo da escolha de meu
nome. E sim, enviei-lhe Ulisses àquela noite para àquela praia. Você
precisava de companhia e de uma razão para viver. E o mesmo havia
acontecido ao golfinho. E fui eu também quem a trouxe para fora do útero de
sua mãe, segurei em sua pequena mão – Amairani falava e agora olhava para
suas próprias mãos como se enxergasse a mão pequena da Liban recém-
nascida sobre a dela – e então olhaste para mim, pela primeira vez...
Todo aquele cenário estava se passando como se fosse um sonho para
Liban, um confuso e impossível sonho, e por um mo-mento, enquanto se
lembrava de sua mãe, até havia se esquecido de que agora não tinha mais
pernas. A garota não estava nem um pouco tentada a entrar na água com
aquela sua nova aparência. Na verdade, estava apavorada. Durante muito
tempo, imaginou-se indo embora com a “garota-peixe” e transformando-se
num peixe, mas isso era uma quimera irreal, sabia que jamais aconteceria.
Nada se comparava ao que vivenciava agora. Olhou para sua cauda cinza
que se estendia diante de seus olhos e forçou mexê-la. A cauda subiu e
desceu, desenhando uma rápida ondulação no ar e batendo na pedra.
– A pele de sua cauda precisa urgentemente de água – disse a sereia. –
Venha para cá! Agora não pode mais ficar muito tempo fora do mar.
Liban olhou para aquela belíssima mulher, mas seus pensamentos estavam
longe. A realidade de sua condição era tão absurda que mesmo enxergando-a,
sua mente continuava a negar constantemente, como se sua visão e seu
cérebro se repelissem
– Tudo bem – disse por fim. – Acho que preciso realmente de água. Sinto
tudo repuxando e coçando.
– Sim, venha!
Amairani balançava a cauda para frente e para trás, e suas escamas
exibiam um brilho único, sobrenatural, que deixava tudo claro e colorido em
volta dela. A cor predominante de sua cauda era o verde, mas o rosa e o coral
também brilhavam com intensidade e quando se mexia em direção ao sol, um
tom vermelho aparecia. Um colar de algas vermelhas e verdes tapava-lhe
parcialmente os seios.
Devagar e com certo pavor crescente, Liban girou a cauda para colocá-la
para baixo, e assim que sua barbatana tocou a água, sentiu como se um leve e
delicioso suspiro tivesse percorrido todo o seu corpo. Isso lhe deu mais
coragem para se atirar, enfim, no mar.
Sempre fora uma exímia nadadora, mas seu salto, por assim dizer, acabou
sendo estabanado e barulhento. A sereia riu e se apressou em ajudá-la.
– Não estou acostumada com isso! – disse Liban, nervosa.
– É fácil, basta movimentá-la assim, veja. Jogue-a para frente e para trás;
seu próprio corpo vai ondular, naturalmente. Não é igual a quando temos
pernas e só as batemos para nos impulsionar, deixando o corpo reto. Não,
agora será como uma dança, seu corpo ondulará junto dela.
– Como assim, quando temos pernas? Acaso já teve pernas antes?
– Sim, mas é claro! Ou acha que eu nasci assim? Você também não nasceu
com essa cauda, não é verdade?
E essa constatação fez Liban cair em si sobre sua real condição e todo o
absurdo que estava acontecendo com ela.
– Não, não nasci, você bem sabe! – respondeu secamente e de modo
apressado, como se agora se desse conta que estava perdendo tempo com
alguma coisa. – E como foi que fez isso comigo? Acredito que foi para me
ajudar a sair daquela gruta, e agradeço imensamente, porém,necessito que
desfaça essa... essa mágica! Não tenho palavra melhor... E preciso que seja o
mais rápido possível! Pois tenho que procurar Ivar, ele ainda deve estar me
esperando. Sabe, nós iremos fugir juntos, eu e ele. E preciso, principalmente,
correr para ver se Ulisses está bem, não sei se ele conseguiu sair da caverna
ou se ainda está lá, preso e assustado.
– Não, Liban, você não vai a lugar algum... – respondeu a sereia, fechando
pela primeira vez o semblante.
– Como assim? – perguntou temerosa.
– Não fui eu que fiz isso a você. Na verdade, nem tenho esse poder. E
Ulisses não saiu daquela gruta.
– Não saiu? – foi a única coisa em que Liban se apegou, pois já nem
importava a ela mais o fato de ter virado uma aberração da natureza, e sim
somente a saúde de seu amigo. – Então, preciso mesmo correr! Vou salvá-lo.
Ajude-me? Preciso saber a direção certa para onde ir. Venha comigo? –
perguntou exasperada, arfando e com medo.
– Liban, calma! – a sereia pousou suas mãos sobre o peito da garota e uma
luz dourada surgiu, acalmando-a na hora. – Ainda não se deu conta do que
realmente aconteceu? Ainda não se perguntou por que seus cabelos se
tornaram prateados e, principalmente, por que sua cauda é diferente da
minha?
– Hã? – perguntou confusa e atordoada com o poder calmante que aquela
luz dourada provocava.
– Minha pequena... Ulisses deu a vida por você. Ao trocar a própria vida
pela sua, a essência dele se fundiu a você. E o poder que o amor dele gerou
foi tão grande que agora uma parte dele vive em você. Liban, Ulisses morreu
para você viver. Ulisses morreu... por você!
Capítulo 29
O poder do canto de Amairani era forte. A mãe das sereias, a Deusa, dizia
que nunca havia tido, em todas as eras, uma sereia com um canto tão
poderoso quanto o dela. Isso deveria alegrá-la e envaidecê-la, porém,
produzia o efeito contrário quando Amairani se lembrava que o destino de
sua vida já estava traçado e ela não poderia usufruir de escolhas que tanto
almejava.
A Deusa instruiu a sereia de que o canto servia para encantar os seres que
necessitavam e assim acalmá-los, trazê-los à razão ou alegrá-los. Mas nem
todo esse poder estava sendo capaz de apaziguar a dor que Liban sentia ao
pensar na morte de Ulisses.
No começo, o choque que sentiu com a notícia provocou uma taquicardia
e um desespero tão grande que a fez desfalecer. Amairani então a levou nos
braços até uma praia bem afastada da civilização, que ficava a leste da cidade
de Liban. Quando a pousou na areia à beira-mar, voltou a cantar. Liban
acordou e quando se viu novamente com a cauda de golfinho – a cauda de
Ulisses –, a dor, o sofrimento e as lágrimas retornaram.
Muito tempo se passou, e ela nem sabia por quanto tempo ainda
continuava chorando nos braços da sereia que a acolhia calorosamente e
cantava em seu ouvido com sua voz mágica.
Liban sentia que Ulisses a amava, mas não sabia que chegava ao ponto de
trocar a sua vida pela dela. Porém, também sabia que se isso fosse uma
escolha dada a ela, também sacrificaria sua própria vida para que o golfinho
vivesse. Portanto, além da dor da perda, havia também a maior dor de todas:
o sentimento de culpa. Culpa por ter sido fraca e, principalmente, por não ter
conseguido salvá-lo.
Ela queria perguntar a Amairani como isso havia realmente acontecido,
mas com a dor que sentia em seu peito e com os soluços que irrompiam,
sequer as palavras conseguiam se formar em sua garganta.
A noite chegou e com ela a lembrança do amigo a machucou ainda mais.
Não conseguia aceitar o destino tão torturante que a fez ficar viva enquanto
quem amava acabava sempre morrendo. De sua mãe, poucas coisas haviam
sobrado que traziam a sua lembrança em seu pensamento, e ela acreditava
que isso era até bom, já que a impedia assim de sofrer tanto com as
reminiscências, mas agora teria que conviver para sempre com a visão de
uma parte de Ulisses junto de si, e isso ela não iria aguentar. Já nem quase
conseguia olhar para os olhos negros de Amairani – iguais aos de um
golfinho – sem uma pontada de angústia trespassar seu coração.
Então, outra preocupação lhe permeou a mente: Ivar. Com o caos da
situação, achou que nem mais pensaria nele, em seu inimigo e amante, mas
constantemente a visão de seu belo rosto e dos planos que fizeram juntos não
a abandonava. Sentia-se também culpada por pensar nele e em ter esperanças
de uma vida feliz e alegre ao seu lado agora com a morte de seu amado amigo
golfinho. Entretanto, quanto mais sua alma se sentia pesada e machucada,
mais ela buscava o dinamarquês, como uma fuga desesperada do sofrimento
que sentia.
Ainda não queria admitir para si mesma que estava perdidamente
apaixonada por Ivar; preferiu convencer-se de que somente precisava saber
dele, como uma espécie desesperada de escape dessa realidade torturante.
Enxugando com as costas das mãos as muitas lágrimas que caiam de seus
olhos, desvencilhou-se dos braços da sereia e sentou-se na areia. O horizonte
já se encontrava totalmente escuro e ela percebeu que provavelmente estava
bem longe de sua cidade, pois nenhuma iluminação era vista e nenhum
barulho, além do mar, era ouvido.
A maré ia e voltava no ritmo das pequenas ondas que quebravam ali, na
beira-mar. A sereia também se sentou e fez feição de lhe abraçar, mas Liban
repeliu o abraço com a mão.
Ao olhar para as caudas estendidas à sua frente, Liban percebeu a enorme
diferença entre elas. A cauda da sereia era frágil, colorida e as escamas
brilhavam tais quais as estrelas, parecendo exalar luz própria. Em contraste, a
estranha cauda que agora estava no lugar de suas pernas era forte, espessa,
cinza, não possuía escamas e somente brilhava timidamente quando a água a
molhava e a luz da cauda de Amairani refletia.
Ao colocar as mãos na água, a garota notou que o mar estava
estranhamente quente. A sereia entendeu a surpresa no rosto de Liban e se
adiantou em falar:
– Nós, sereias, conseguimos deslocar as correntes de águas quentes que
existem nos mares, fazendo-as sempre ficarem ao nosso redor. É por isso que
aqui à nossa volta o mar não está gelado.
– Por quê? Por que fazem isso? – perguntou Liban, ainda com dificuldade
para falar e se concentrar em outra coisa que não fosse Ulisses e Ivar.
– Porque sentimos frio! – riu Amairani. – Que resposta esperava? Talvez
você não sinta, não sei. Na verdade, nunca tivemos uma sereia como você
antes.
– Não sou uma sereia! – respondeu com rispidez. – Sou uma garota! Sou...
humana.
– Minha querida, não se esconda no véu do inaceitável. Agora você é
metade humana e metade um ser do mar, portanto é uma sereia! Sabe o que
alguns homens dizem de nós? Que somos tão lindas que poderíamos
enfeitiçar qualquer um! Até mesmo ao ponto de matá-los com nossa beleza –
riu novamente Amairani, de um jeito sensual. – Os homens estão sempre
diminuindo os poderes femininos e relegando sempre ao que os interessa, ou
então os demonizando. Entretanto, eu lhe digo que, linda do jeito que está,
com esses olhos acinzentados combinando com esse seu cabelo prateado,
você realmente enfeitiçaria qualquer um!
A sereia continuava a sorrir e agora passava as mãos pelo cabelo de Liban.
– E também – ela continuou – falarei com nossa mãe e ela há de
transformá-la em uma sereia igual a mim e às minhas irmãs, com uma cauda
igual à nossa e com nosso encantamento. Você nasceu no mar há dezenove
primaveras, é filha dessas águas e agora renasceu.
“Eu nasci no mar. O mar é a minha casa.” Essas frases eram repetidas em
seu íntimo e ecoavam mais que o canto de Amairani em seu coração. Durante
toda sua vida, sentiu uma forte ligação com o mar. E quando estava sob suas
águas, muitas vezes sentia como se não fosse capaz de deixá-las nunca mais.
Todavia, ouviu as palavras que saíram de sua boca, com determinação:
– Não! Não é isso que quero para minha vida – desesperou-se Liban ante a
essa possibilidade. – Não posso permanecer assim, por mais que eu sinta, e
até queira, o mar em minhas veias, dentro de mim.
– Por que não pode? O que a impede? Acaso algo ou alguém lhe prende a
terra? Saiba que, uma vez que o mar a toca, é impossível resistir ao seu
chamado, é impossível deixá-lo.
– Simplesmente não posso ficar aqui...
– Então, acaso seu coração pende para o dinamarquês? – a sereia
perguntou com um sorriso maroto e sensual. – O dono desse colar que
carrega no pescoço?
– Você o conhece?
– Sim, eu o vi chegando por essas bandas. Não tive como não reparar, é de
uma beleza única, eu concordo. E vi também você junto dele. Mas não a
censuro. Quem resistiria àquele homem?
Liban corou-se e instintivamente procurou com a mão pelo colar. Seus
dedos apertaram o pingente de prata e então, decidida, disse:
– Sim, é ele. É ele que me espera. Deve estar no porto agora mesmo
procurando por mim.
– Não, Liban, infelizmente não está. Eu o vi deixando esta terra, indo
embora para sempre.
– Embora? – repetiu ela, sentindo o desespero chegar.
– Sim. Estava perto quando vi o momento em que deixou o porto em seu
barco, cheio de homens. E devo dizer que ele parecia feliz, pois cantava,
sorria e bebia de um odre.
– Não pode ser verdade... você mente! – Liban espalmou as mãos na água,
fazendo-a espirrar longe. Sua garganta secou rapidamente, e ela sabia que o
choro não tardaria. Se ainda tivesse pernas, com certeza sairia correndo,
escondendo as lágrimas que rolariam por sua face.
– A verdade é cruel e machuca, minha querida, mas é a ela que deve se
apegar, e não a uma falsa ilusão – disse Amairani com uma voz suave. – Em
terra firma, você está sozinha. Entretanto, aqui no mar, sob essas águas
quentes que embalam você, tem a mim. Para sempre, se quiser.
– A você? – explodiu Liban. – Quem é você? Eu não a conheço e você não
me conhece!
– É claro que a conheço, Liban! Mais do que qualquer um. Eu a trouxe
para esse mundo. Se não fosse por mim, você e sua mãe estariam mortas! Por
toda a sua vida eu a acompanhei, mesmo à distância. Escutei em todas às
vezes o seu choro e o lamentei junto de ti, com o coração apertado de quem
ama. Assim como ri junto de ti quando mergulhava nas ondas e se alegrava, e
cantei... cantei para lhe confortar todas as noites, enluaradas ou sem lua.
Mesmo quando as procelas furiosas não respeitavam meu querer e o barulho
das tempestades teimava em querer disputar pelo maior som.
– O seu canto nunca me confortou! – respondeu Liban de um jeito ríspido.
Nem ela entendia o porquê de sua grosseria com a sereia. – Esse canto só me
deixava confusa, me fazendo acreditar estar enlouquecendo.
– Nem mesmo a minha canção de ninar a confortava?
– Canção de ninar?
Olhando fixamente para Liban, a sereia apertou os olhos e abriu a boca
lentamente, como se fosse suspirar. Então, com os lábios entreabertos,
começou a cantar:
Dorme, menina, no leito do mar
Quem te observa de cima é o belo luar
Mas ao acordar, não fiques na areia deitando o olhar
Pois quando a maré chega, em sereia pode te transformar
– Não pode ser... Não pode...– a garota repetia aturdida. – Essa música,
minha mãe a cantava!
– Pense, Liban, lembre-se! Alguma vez já viu, realmente, sua mãe
cantando esta canção?
– Não, mas... – respondeu Liban, depois de refletir confusa.
– Nunca viu – interrompeu Amairani – porque ela nunca cantou para você.
Quem sempre cantava era eu, e você sempre foi a única pessoa que ouvia. A
nossa ligação é mais forte que a ligação do sangue, não percebe?
As sobrancelhas de Liban se entortaram e se encontraram, transparecendo
toda a confusão de seus pensamentos. Nada ali fazia sentido. Olhou
novamente para os olhos da sereia, que agora exibiam doçura, e de tão negros
brilhavam como uma fogueira em meio a uma rocha escura.
E num rompante se atirou para frente quando mais uma suave onda
chegou. Sua cauda instintivamente batia para cima e para baixo e ela
ondulava o corpo, impulsionando-o para frente. Não sabia para onde deveria
nadar, só desejava sair dali e, por alguma razão ainda desconhecida, não
queria mais o contato com aquela sereia.
Assim que ganhou mais velocidade no nado, já começando a se sentir
melhor e até um pouco feliz com essa nova sensação embaixo d’água, eis que
o canto de Amairani foi mais rápido e atingiu em cheio seus ouvidos. Sem
conseguir discernir de que lado ele vinha, como um veneno a engoliu inteira,
parecendo percorrer por todo seu corpo, e a fez acalmar e diminuir o ritmo.
Então, parou de nadar e emergiu lentamente – pois não conseguia se mover
rápido ou bruscamente – para pegar fôlego. O céu já começava a arroxear,
anunciando que logo o sol começaria a raiar naquele novo dia.
Liban vislumbrou uma luz brilhante serpenteando as águas abaixo dela, e
soube que Amairani já a havia alcançado. Emergindo em sua frente, a sereia
ainda continuava cantando e sorrindo. E todas as forças de Liban pareciam
desaparecer diante do canto dela.
Então, sem ambas esperarem, um forte clarão de repente explodiu e Liban
achou, por um momento, que o sol havia nascido bem ao seu lado.
Depois de piscar algumas vezes para se acostumar com a claridade
repentina, viu que não era o sol que surgira, e sim mais uma linda sereia. A
mais linda de todas, que parecia flutuar acima das ondas, ainda que seu corpo
estivesse em contato com elas.
Ela não sorria, ao contrário, exibia um semblante triste e ao mesmo tempo
furioso em seu rosto de feições mais do que perfeitas. Seus cabelos eram
parecidos com os de Amairani, frondosos e encaracolados, loiros e de
diversas nuances. E para espanto de Liban, eram mutáveis, pois pareciam se
transformar em corais maravilhosos, que possuíam as mesmas tonalidades.
Seus olhos também exibiam uma singular particularidade, um era de um azul
profundo e inconstante, que ora adotava um tom escuro e sombrio, ora fugia
para um sensual azul-turquesa e ora ganhava a cor de um brincalhão azul-
celeste. Era como se aquele olho carregasse as águas de todos os mares do
mundo. E seu outro olho era negro... Negro como o de Amairani... Igual aos
de um golfinho... Igual aos de Ulisses...
O brilho que ela irradiava era tão grande, que era deveras difícil olhá-la
por muito tempo, mas então a claridade diminuiu e somente o que ficou a
brilhar constantemente foi a estrela de prata que ornava o topo de seus
cabelos de corais. Sua cauda possuía as mesmas cores de seu cabelo:
dourado, prata e vermelho. E seus seios, frondosos, estavam nus.
Uma voz poderosa e límpida saiu de sua garganta quando ela disse,
olhando furiosamente para Amairani:
– O que foi que você fez?
Capítulo 30
Quando Liban chegou ao local, não pôde acreditar no que via. A Deusa
nadou a seu lado mostrando-lhe todo o caminho, mas quanto mais nadavam,
mais Liban achava que a Deusa desapareceria a qualquer momento, pois a
impressão que tinha era a que sua pele se tornava cada vez mais transparente,
fundindo-se às águas do mar pelo qual elas deslizavam com suas caudas.
Logo que chegaram e a Deusa parou, Liban virou-se para falar-lhe mais,
entretanto a Deusa havia, então, realmente desaparecido, deixando no local
apenas um rastro brilhante de espumas marinhas. Por um momento a garota
achou que tudo pudesse ter sido um delírio. Todavia, ao vislumbrar o lugar,
teve certeza de que por mais incrível e absurdo, aquilo tudo era real.
O sol, já entre as nuvens, lançava pequenos, porém, fortes, raios dourados
à enseada rochosa onde as sereias estavam. Junto ao barulho de gaivotas, que
pareciam anunciar contentes o novo dia, estava o doce som que as sereias
produziam, com cantorias, risadas e conversas. A visão da cena era tão
sublime que Liban sequer teve reação. Instantaneamente contou quantas ali
estavam: eram sete! Todas parecendo exatamente iguais, com frondosos e
longos cabelos loiros, que ora balançavam com o vento, ora moldavam seus
corpos de cinturas finas e ora dançavam livremente na água, como se
possuíssem vida própria. Apenas suas caudas se diferenciavam, cada uma se
denotava uma cor diferente. E todas exibiam os resplandecentes seios nus,
sem nenhum pudor. Pensando nisso, Liban se deu conta que ela mesma,
incrivelmente, não se sentia envergonhada por também estar com os seios à
mostra.
Duas das sereias estavam num papo animado em cima de uma rocha alta,
escura e pontiaguda nas extremidades. Três delas estavam na água e ficavam
todo o tempo mergulhando, rindo, cantando e jogando água nas que estavam
em cima da rocha. E as outras duas estavam na areia, com as caudas
brilhantes de peixe tocando o mar. Liban reconheceu uma delas, era
Amairani, que estava calada, com os braços cruzados e uma expressão
aborrecida no belo rosto. A outra que estava ao seu lado, de cauda escura,
parecia também não estar contente e a julgar pelo dedo em riste, estava-lhe
passando um sermão.
Ao olhar atentamente, a garota percebeu diferenças significativas nos
rostos de cada sereia. Ao mesmo tempo em que se pareciam sob um olhar
ligeiro, se diferenciavam nas feições sob um olhar demorado.
Seria capaz de passar todo o tempo ali, somente a observar aquela linda
visão das sereias, se não fosse por Amairani a avistar e rapidamente se jogar
no mar para ir a seu encontro. Quando as outras sereias a enxergaram
também deram gritinhos de excitação, e as que estavam em cima da rocha
pularam imediatamente na água.
– Liban! – exclamou, contente, Amairani, assim que chegou perto. –
Venha! As outras estão ansiosas para conhecê-la!
As duas nadaram até a rocha, onde se encontravam as outras sereias. Então
uma delas teve a ideia de irem para a areia. Estavam principalmente
interessadas na cauda de Liban.
Quando todas se encontravam, enfim, sentadas sob a areia branca e fina da
praia, com Liban no meio delas e com suas caudas a tocarem as ondas calmas
do mar, um turbilhão de vozes exaltadas apareceu ao mesmo tempo, todas
falando na língua grega.
– Como fez para conseguir essa cauda? – perguntou uma.
– Olhem a textura, é bem diferente da nossa! – exclamou outra que, não
comedida, passava a mão sob a cauda de Liban.
– Uau, seu cabelo é lindo! É branco! Não, é prata! – gritou uma outra que
se debruçava sobre uma sereia que estava à sua frente, empurrando-a para o
lado, e se estendia para puxar alguns fios do cabelo de Liban de forma mais
brusca, examinando-os atentamente.
Então a garota, atordoada, não conseguiu compreender mais nenhuma das
frases com exatidão. Até que veio em seu socorro uma sereia de cauda
escura, azul petróleo, com algumas listras quase imperceptíveis de dourado
brilhante na horizontal. Liban a reconheceu como sendo a que estava
passando um sermão em Amairani.
– Parem! Parem todas vocês! – gritou ela, e todas, surpresas, se calaram. –
Não percebem que a estão sufocando?
Depois de alguns segundos de silêncio entre as sereias que se limitavam a
olhar umas para as outras, a sereia de cauda escura voltou a falar:
– Essa do seu lado direito é a Basha; ela é de Creta.
– Olá, seja bem-vinda! – respondeu polidamente a sereia de cauda
vermelha e pele morena. Ela parecia ser a mais robusta delas e se sentava tão
empertigada que somente abaixou o rosto levemente para olhar para Liban.
Ao contrário das outras, ela não sorria.
E antes que Liban pudesse responder algo, a sereia de cauda escura tornou
a falar:
– E esta que estava puxando o seu cabelo – falou em tom reprovador – é a
Mirella. Ela vem da Sardenha.
– Por que acha que ela conhece os lugares de onde viemos? – perguntou
Mirella, de forma aborrecida. – Bem, em todo o caso... seja bem-vinda! Seu
cabelo é realmente maravilhoso!
– Obrigada – respondeu Liban, sem conseguir desviar o olhar dos olhos de
Mirella. A sereia possuía o cabelo mais longo de todas elas. Chegando abaixo
de onde estaria o seu joelho se ela tivesse pernas, era frondoso e
brilhantemente dourado, porém, possuía algumas mechas mais avermelhadas
perto da nuca. Ela sorria de um jeito amigável e maroto. Sua cauda
apresentava mil tons de anil, verde e dourado. O tom predominante ora
parecia ser o azul, ora o verde e ora o dourado. Mas o que mais chamou e
prendeu a atenção de Liban, foram os olhos negros e grandes da sereia. Olhos
espertos e brincalhões. Olhos definitivamente de golfinho, olhos de Ulisses...
– Essa daqui – prosseguiu a sereia de cauda escura apontando para uma
sereia de cauda rosa claro com finas listras púrpuras na vertical, que estava ao
lado de Mirella. Seu rosto era o mais delicado de todos, com boca, nariz e
queixo finos. Ela parecia ser tímida e fraca, quase remetendo a uma garota de
frágil saúde por causa de seus ombros magros, mas Liban se lembrou que era
essa sereia que se portava mais faceira no mar, mergulhando, brincando e
jogando água nas outras, logo que as avistou. Aparentava ser a mais moça de
todas, apesar de sentir dificuldade para imaginar a idade delas, pois todas,
além de jovens, não apresentavam quaisquer linhas de expressão nos belos
rostos – é a Laguna. Ela é de Córdova.
– Oi! – respondeu a sereia, de forma comedida, abaixando os olhos e
tentando esconder o riso ou uma possível gargalhada. Então cutucou
deliberadamente a sereia que estava ao seu lado, que não aguentou e soltou
uma sonora risada.
– Essa outra aqui – interrompendo a risada da outra sereia, a sereia de
cauda escura proclamou com a voz alta e apontando para ela – é a Ximena.
Ela vem de Cádis.
– Prazer em conhecê-la! – respondeu quase sem conseguir, devido a outra
explosão de risadas que a acometeu. Sua cauda era de um azul vivo, quase
um turquesa, e apresentava um leve dégradé até o final de sua barbatana. Sua
pele apresentava o tom mais moreno de todas as outras, um bronzeado
dourado, e seus olhos teimavam passar rapidamente do brincalhão ao sensual.
Liban achou essa sereia a mais linda de todas, com lábios carnudos e escudos,
maçãs do rosto salientes e sobrancelhas marcantes. Uma beleza latina.
– Esta daqui é a Chantal – prosseguiu mais uma vez a sereia de cauda
escura. – Ela veio da Bretanha.
Liban olhou rapidamente para a sereia, interessada. Já havia ouvido o
nome desse lugar por diversas vezes. Não sabia se era um povoado ou um
reino, mas sabia que era importante. Ouvira sua mãe falar várias vezes sobre
a importância daquele local.
– Olá, como vai, querida? Iremos lhe ensinar muitas coisas, não precisa
ficar apavorada ou sentir-se perdida. Agora nós seremos sua família –
respondeu Chantal com um sotaque forte e incomum. Seu rosto arredondado
e de feições infantis possuía pequenas sardas nas bochechas e quando ela
sorriu, uma covinha apareceu. A sereia possuía uma cauda dourada, com
alguns tons em lilás logo na base, abaixo de seu umbigo. Era a cauda que
mais brilhava e sob o sol que agora a incidia, era até difícil olhar para ela.
– Essa você já a conhece, não é?
– Sim – respondeu Liban, olhando para Amairani. A sereia se adiantou
com o tronco e segurou as mãos de Liban por alguns segundos, antes da
sereia de cauda escura pedir para que ela se afastasse.
– Bem, e agora só está faltando a mim – voltou a falar a sereia de cauda
escura. Seu cabelo era de um tom diferente das demais. Apesar de também
ser loiro, era mais avermelhado, com algumas mechas acobreadas espalhadas.
Por alguma razão, Liban acreditou que essa sereia fosse a mais velha entre
elas, pois passava certo amadurecimento em sua postura e comando em sua
voz. Agora percebia como elas eram parecidas e, ao mesmo tempo, diferentes
entre si, não só na aparência, mas nas possíveis personalidades. – Eu me
chamo Kim, e vim da Nortúmbria27.
– Nortúmbria? – perguntou Liban, já com o coração acelerado.
– Sim, é um reino que fica na Britânia. Você não deve conhecer.
– Minha mãe... minha mãe era da Britânia! Era de Wessex.
As sereias ficaram caladas, se entreolhando. Então Kim voltou a falar:
– Sério? Mas como você veio parar aqui? Você conhece a nossa língua?
– Sim! – eufórica, Liban respondeu, enfim, na língua anglo-saxã.
Capítulo 32
Depois de Ragnar, o mais feliz pela volta de Ivar foi Seawulf, seu melhor
amigo. Ivar o estava evitando desde que chegara ao barco do tio, pois
acreditava que o amigo ainda lhe guardava mágoa e raiva pela morte do
irmão em batalha. Mas não foi o que pareceu, já que Seawulf estava
exultante, alegre e falante como sempre.
“Pelo jeito o tempo lhe arrefeceu as amarguras”, pensou Ivar. “Por que não
consigo também ser assim? Por que meu flagelo também não é passageiro?”
O amigo de cabelo curto – havia pegado piolho certa vez e decidira nunca
mais deixar o cabelo crescer – e loiro-escuro, nariz afilado e torto – presente
que ganhara numa batalha em que quebrara o nariz – e olhos verdes, foi logo
lhe perguntando sobre tudo o que lhe havia acontecido. Ivar economizou as
palavras e se deteve a somente contar algumas coisas das batalhas que
enfrentou com os noruegueses. Sobre Liban, nada disse. Então, para não ser
questionado mais, começou ele a perguntar-lhe coisas.
– E vocês, irmão, o que fizeram de bom? Soube por um sueco barrigudo
em Noirmoutier que a frota atacava o norte da Bretanha, é isso?
– Sim, mas já estávamos quase retornando para a Britânia quando
recebemos o seu chamado. Não pilhamos muita coisa. Os bretões andam
nervosos e tivemos certa dificuldade quando fomos atacados de noite, no
acampamento que tínhamos montado. Havíamos enchido a cara de hidromel,
você precisava ver! E a música e a gritaria eram tantas que nenhum infeliz os
ouviu. O pior é que ninguém estava em condições de lutar. Para se ter uma
ideia, Harald estava no mato, cagando, quando foi surpreendido e saiu
correndo, ou tentando correr, com aquela bunda feia de fora – Seawulf
gargalhou. – Acabamos sendo salvos, acredite, pelos cães que lutaram
bravamente mordendo alguns traseiros bretões e pelos batedores que haviam
ido reconhecer o terreno. Ragnar tinha designado um grupo grande de
batedores, já prevendo qualquer adversidade desse tipo. Mesmo assim,
tivemos algumas importantes baixas, e quase todos os nossos cavalos foram
mortos. Porém, quando o resto da tropa chegou, dias depois, aqueles
vagabundos puderam sentir a força de nosso exército. Matei uns tantos e com
gosto. A um deles rasguei-lhe a garganta de tal modo, que vi sua língua se
inchar e depois vomitar para fora, como um verme grande e gordo.
Entretanto, Ragnar não quis permanecer muito tempo ao norte, pois além de
temer uma vingança organizada, ainda escutou boatos de que os francos
estavam se unindo aos bretões contra nós. Pelo jeito as igrejas e os mosteiros
lá de cima são bem mais de interessantes para eles do que as daqui do sul,
que são bem menos guarnecidas.
E desse jeito Seawulf continuou a contar as façanhas do exército e as
próprias, muitas vezes com riquezas de detalhes. Ivar fingia interesse na
conversa, mas a verdade era que, desde que saíra do porto da cidade de
Liban, nunca mais conseguiu se concentrar em conversa alguma. Quando
alguém se prolongava a mais de três frases ditas, sua mente já começava a
navegar e ia aportar nos braços de sua amada morta. Mesmo ele não
querendo isso, era inevitável. Porém, era melhor fingir interesse em uma
conversa do que ser sabatinado por perguntas que ele não queria responder.
Seawulf não era muito observador, muito menos sensível a detectar
sentimentos alheios, mas conhecia deveras o amigo e levemente percebeu que
Ivar estava mudado. Ele estranhou muito o fato do viking, até então, não o
encher de histórias sobre os seus feitos nas batalhas com os noruegueses.
Sabia o quanto Ivar era orgulhoso, aliás, a fama e a glória para qualquer
viking eram mais importantes até do que sua riqueza material. Por isso, tantos
jarls e guerreiros profissionais pagavam quantias consideradas para que os
escaldos transmitissem os seus feitos, muitas vezes enfeitando a realidade
para toda a Escandinávia em forma de poesia. Várias vezes um rei ou jarl
escandinavo empreendia batalhas não com o intuito da pilhagem ,e sim
somente pela glória; como um dia fez famoso o grego Aquiles quando
decidiu lutar na Guerra de Troia.
Mas esse novo Ivar, estranho a seus olhos, estava intrigando-o.
“Não o vejo mais nem ao menos sorrir... E as músicas que ouço de sua
flauta nunca são alegres. Acaso será que se culpa pela morte de meu irmão?”,
indagou Seawulf para si mesmo. “Não, certamente que não. Ivar nunca se
culpa por nada e sabe que a morte está sujeita a chegar a todos a qualquer
momento e em qualquer circunstância. O importante é morrermos em luta,
com a arma nas mãos, para assim sermos escolhidos e carregados pelas
Valkírias e aceitos no Valhala. E meu irmão teve uma morte honrada,
guerreando, é isso que importa. Mas então, o que pode ser? Ele está aqui,
presente, entretanto parece que sua mente foge de seu corpo... Sim, Ivar está
mudado!”
Muitos dias se seguiram novamente embarcado. Passada a sangrenta
revolta que ele cultivou e extravasou no campo de batalha bretão, agora Ivar
desejava mesmo era retornar à sua terra natal. Estava cansado e machucado.
Mas também sabia que talvez lá se afundasse de vez em reminiscências
dolorosas e imprestáveis, quando o ócio chegasse. E mais ainda quando
vislumbrasse a paisagem outonal das pradarias da Dinamarca, com seu
acinzentado característico, tão igual aos olhos de Liban.
A frota contornou toda a costa da Bretanha e o norte da França, mas ao
invés de seguirem costeando até chegarem à Dinamarca, Ragnar decidiu que
eles pegariam o Canal da Mancha e partiriam para acampar na Inglaterra.
Não tinham tido muito sucesso com as incursões na Bretanha e muitos
mercenários e guerreiros profissionais de sua hoste exigiam mais espólios. O
verão já havia acabado e o outono não demoraria a passar. Como já era de
costume de alguns exércitos escandinavos, eles permaneceriam o inverno na
Inglaterra.
A ideia era ir até a Mércia31, entrando pela foz do rio Trent e se fixando
em algum lugar às margens do rio. Entretanto, seguindo conselhos de Ivar,
Ragnar – que ficara contente pelo sobrinho participar das tomadas de decisão,
já que até então estava recluso e introspectivo – decidiu aportar no estuário
do rio Tâmisa, numa Ilha chamada Thanet. Ivar o convenceu dizendo que
além do inverno naquela região ser mais ameno devido ao clima marítimo – e
assim propiciar a manutenção das granjas e a saúde dos cavalos que
sobreviveram – e por estar cercada pelo leste, norte e sul pelo mar e a oeste
pelo canal Wantsum, que compreende o Rio Stour, havia também, por esse
mesmo fato, o quesito segurança, já que os cursos d’água funcionavam como
pontos estratégicos de observação e rotas de fuga, comércio ou pilhagem.
Apesar de Ivar desejar voltar para a sua terra natal, essa decisão de Ragnar
se mostrou excelente para ele. Pois assim que aportaram na ilha, muito
trabalho ocupou o seu tempo, como a construção do acampamento, que
contou com o corte das árvores, a escavação de um grande fosso,
aproveitando-se as áreas pantanosas e o levantamento margeado da terra,
assim como a colocação de palafitas e caniçadas como proteção, e a
disposição do local em si, onde foram estabelecidos os limites das baias dos
cavalos, dos currais dos porcos e dos carneiros, e dos locais de moradia
temporária de todos. Depois, utilizando a elevação de um pequeno
promontório, construíram um ponto de observação para grandes distâncias.
Até mesmo um pequeno porto foi feito e o mosteiro que ali existia e que já
estava sem os clérigos devido à última invasão viking, foi usado como
fortificação central e moradia para Ragnar, Ivar e os homens mais próximos a
eles.
Também montaram uma pequena ferraria para consertar armas, cotas de
malha e peças dos barcos.
A ideia era usar aquele acampamento de inverno por uma ou duas
temporadas.
Tudo isso, consequentemente, ocupou também os pensamentos de Ivar. E
pela primeira vez desde que descobrira a morte de Liban, tinha um pouco de
paz em sua mente, anuviada pelos afazeres.
Enquanto ele começava a voltar a sorrir, dando-se até mesmo o prazer de
jogar com seu amigo Seawulf o jogo Hnefatafl32, elaborando estratégias no
jogo de dados para atacar o rei e o exército pequeno dele ou tentando salvar
seu grande exército que havia perdido o seu rei para a hoste inimiga, Liban,
enfim, depois de muito navegar e enfrentar no mar, já se encontrava próxima
do Canal da Mancha.
Algo lhe dizia que Ivar estava por perto...
Capítulo 39
O ano estava chegando ao fim, assim como o outono. Já era possível sentir
as rajadas geladas de vento que precedem o inverno. Mas Ragnar não queria
ficar estocado no acampamento que haviam montado; nem seus guerreiros e
os mercenários que acompanhavam a frota desejavam isso. Estavam ávidos
por saquear mais, até para poder passar com tranquilidade pela estação fria
que chegaria. Ragnar então passou o comunicado que dali a três dias, logo
pela manhã, a hoste iria a campo para novas invasões.
Descansando como há muito não fazia e, como quase sempre, num canto
afastado de todos, Ivar havia se esquecido das campanhas. Não que tivesse se
esquecido de todo, mas por alguns breves momentos acreditou que passariam
todo o inverno ainda trabalhando naquele acampamento, deixando as
incursões para depois. E quando o comunicado chegou a seus ouvidos foi
depressa ter com Ragnar.
– Boa noite, tio – disse Ivar, adentrando a pesada porta do mosteiro e se
dirigindo para a mesa na qual Ragnar estava, sozinho, estudando alguns
papéis em que ele mesmo havia desenhado um rudimentar mapa da região.
Sempre impecável, usava calças de inverno folgadas até o joelho e presas até
o tornozelo com tiras de fio de urdiduras finas e botas altas de pele de cabra.
Além do cinto ricamente adornado com arnês de ouro que exibiam desenhos
tribais de animais com garras, vestia sobre o casaco de linho, uma capa de lã
vermelha, retangular, que era segura no ombro direito por um enorme broche
de bronze dourado.
Ragnar levantou os olhos para o sobrinho.
– Ah, aí está você! – disse em tom de deboche. – Mesmo dormindo aqui,
faz tempo que não o vejo. Cheguei a achar que havia mais uma vez
abandonado este exército para se juntar aos noruegueses. – O riso era irônico.
– Soube que em três dias partiremos para novas incursões – falou Ivar,
sem se importar com o tom ácido do tio.
– E suponho que você vá conosco, não? Suas armas devem estar sentindo
sua falta.
– Desde que você as roubou? – Ivar riu, para que a frase não soasse
agressiva.
– Veio aqui para tomá-las de volta? Pegue-as, sobrinho, estão ali naquele
baú encostado ao pilar – respondeu Ragnar, apontando para o local.
– Não, não foi para isso que vim, apesar de realmente sentir falta da “dente
de lobo”, principalmente. Mas vim para falar sobre as novas incursões. Não
acha ainda muito cedo? Não é melhor permanecermos o inverno aqui,
treinarmos mais nosso pelotão de arco e flecha que ainda está pequeno e
ruim?
– Realmente nosso grupo do arco e flecha está uma bosta! E é por isso que
eles ficarão aqui, defendendo o acampamento. Designei mais alguns que
cuidarão do porto. Fora isso, mais uma pequena hoste está para chegar.
Enviei mensageiros quando estávamos em mar. Não demorarão a vir.
– Mas... achei que ficaríamos mais tempo por aqui. Há tanto ainda por
fazer, tio.
Ragnar o estudou com os olhos.
– Acaso está ficando mole, meu sobrinho? Você, correndo da luta? Não
estou reconhecendo-o! – O próximo olhar que lhe dirigiu foi divertido.
– Só não estou querendo ser precipitado novamente e acabar culpado de
alguma merda que venha acontecer com essa gente ou com nossos espólios –
respondeu Ivar, sentindo o ódio crescer pelas palavras caçoadoras de Ragnar.
– Não se preocupe. Faça apenas o que você mais sabe – Ragnar deu de
ombros. – Agora veja, estou estudando os locais que iremos atacar. Deixando
a ilha a oeste e a sul, sabemos da existência de pelo menos dois ou três
mosteiros e uma igreja. Fora as várias aldeias e cidades que poderemos
invadir.
Sem aviso e sem saber o porquê, Ivar foi tomado por uma repentina
agonia.
– Atacaremos cidades também? Não é melhor nos concentrarmos nos
mosteiros?
Ragnar levantou os olhos incrédulos, observando o sobrinho.
– Por que diz isso Ivar? Qual o problema?
– Ora, nenhum! – Ivar tentou encolher os ombros, despreocupado. – Mas
bem sabe que os mosteiros são mais vantajosos, afinal de contas dificilmente
encontraremos moedas, ouro e prata nessas aldeias que já devem ter sido
devastadas anteriormente.
– Eu sei disso. Mas também temos que levar em conta que precisamos de
mais provisões para o inverno. E nas aldeias conseguiremos não só bons
escravos como cavalos, vacas, galinhas, entre outras coisas. Fora que são
incursões menos arriscadas para nosso exército. Bem sabemos que
fortalecidos mesmo são os mosteiros e as igrejas, já que os clérigos não
parecem muito preocupados com seus fiéis e o deus cristão é um sovina que
só pensa em ouro – gargalhou Ragnar.
Ivar sabia que o tio estava certo, entretanto se viu falando:
– Bem, conte comigo para os saques aos mosteiros e até contra as hostes
anglo-saxãs, mas não para ataques a aldeias indigentes.
Ragnar levantou o olhar, curioso, com um pequeno riso de lado, pronto
para desabar a rir quando o sobrinho dissesse que era uma brincadeira. Mas
isso não aconteceu, e ao ver o rosto sério de Ivar, o sorriso morreu em seus
lábios.
– O quê? – ele cerrou os dentes. – O que está falando, seu monte de
estrume?
– Isso mesmo que ouviu, tio. – O tom de voz não foi alterado e mantinha-
se sereno. – Estarei do seu lado nas batalhas, claro, mas não me peça para
invadir mais aldeias que nem ao menos conseguem se sustentar sozinhas.
Sem conseguir acreditar ou entender, Ragnar balançava a cabeça, mais
confuso do que raivoso.
– E por que isso agora, Ivar? Já que, bem me lembro, jamais tivemos
problemas com esse fato. Pelo contrário! Você sozinho, há quatro anos,
liderou uma de minhas maiores hostes quando atacaram aqui mesmo, na
Britânia, a cidade de Lundenwic. Eu ainda estava a caminho com alguns
mercenários suecos, já que nosso clã era ainda pequeno, e você arrasou a
cidade inteira, Ivar. Destruiu-a quase que completamente. Depois, quando eu
cheguei, ainda seguimos para Contwaraburg33, e arrasamos esta cidade
também, queimando o que não nos prestava. Você se lembra daquele ano?
Foi nosso melhor espólio e responsável por eu ter dobrado as posses que
tenho hoje, e que passarão a você. Então me diga, o que está se passando
agora?
– Somente acho desnecessário. – Ivar tentou parecer calmo e
despreocupado. – Assim como você bem se lembrou de Lundenwic e de
como ela ficou depois de nossa investida, a maioria das aldeias dessa região
não deve possuir grandes coisas de valor. Tenho receio de estarmos
desgastando nosso exército com pouca coisa, quando podíamos estar
acumulando espólios valiosos. Apenas isso, nada mais. Meu desejo é agora
dar bons conselhos, livres de vaidade ou precipitação.
Apertando os olhos e estudando-o atentamente, Ragnar suspirou fundo,
aliviado. Ivar realmente parecia preocupado com o destino da hoste.
“Será que, até que enfim, consegui colocar amadurecimento na cabeça de
Ivar?”, pensou ele. “Por pouco temi que ele estivesse ficando mole ou então
pior, fraco. Jamais deixaria isso acontecer em minha família e com meu único
herdeiro. Mas agora vejo que não é nada disso, preocupei-me à toa. Ele
apenas não quer cometer os mesmos erros que cometeu e que culminaram
com as baixas em nosso exército. Sim, é isso. Ivar realmente está mudado,
mas agora vejo que mudado para melhor. Ivar cresceu, amadureceu e se
tornou um homem centrado, paciente e sério.”
– Entendo suas preocupações, meu sobrinho – disse Ragnar, dando alguns
tapas afetuosos nas costas de Ivar, que continuava impassível – e me alegro
em ver seu amadurecimento. Mas apesar de levar em conta a sua estratégia,
não posso aceitá-la como sendo a melhor, pois, como lhe disse, também
precisamos de provisões que só as aldeias possuem para passarmos o inverno
aqui na Britânia.
– Tudo bem, meu tio – falou o sobrinho, se preparando para deixar Ragnar
sozinho. – O que for melhor para nosso exército.
E ao bater a porta atrás de si, um enorme conflito se instalou na mente de
Ivar, que nem ao menos sabia o porquê havia falado tudo aquilo para o tio.
Além de não ver nada de mais em lutar e matar pela fama, pela glória, pelo
sustento e por melhores condições próprias e de sua família, ele sabia
também que era guerreando que estava honrando aos seus deuses nórdicos.
Entretanto, mesmo sem desejar, também se lembrava da história de horror
que Liban havia contado sobre o destino de sua mãe.
Ele sabia que jamais fugiria de uma guerra, ainda mais ao lado de seu
próprio exército, e a morte já estava em seu sangue, era sua eterna
companhia, que fulgurava até mesmo em seu próprio nome adotado: “Mão da
morte”. Mas sua consciência pedia desesperadamente por uma saída que não
acabasse por destruí-la. E na manhã de três dias depois, era só nisso que ele
pensava quando a maior parte do exército rumou para trilhar mais um
caminho de saque e destruição.
Atravessando o rio Stour, pilharam a primeira igreja que já encontraram
mais ao sul. E o embate foi contundente. A igreja ficava no centro de uma
pequena aldeia que não tinha muito a oferecer. Parecia que a suntuosa igreja
romana sugava tudo o que a miserável aldeia tinha, pois ao redor dela só
existia carência e pobreza.
A maioria dos anglo-saxões, principalmente as mulheres e as crianças, saiu
em retirada, desesperados, assim que viram a hoste se aproximar.
Geralmente, a chegada dos exércitos se dava o mais silencioso possível e os
vikings já tinham a fama de aparecerem de surpresa, sendo este um dos
fatores que garantiam o sucesso nas batalhas. Mas devido ao terreno
pantanoso daquela região, o som que os guerreiros faziam era facilmente
detectável. Entretanto, assim que chegaram aos limites da aldeia, alguns
homens saxões, bem como alguns garotos ainda jovens demais para
defenderem sua terra, os esperavam. Ivar deu ordens para que a hoste
avançasse com uma parede de escudos, enquanto que o resto abriria nas
laterais para realizar um cerco. A batalha terminou rapidamente e depois da
igreja saqueada, foi sumariamente queimada. Os aldeões saxões geralmente
não eram treinados para guerras: eram simples fazendeiros, comerciantes,
pescadores, ferreiros ou artesãos. Diferentemente dos bretões, dos francos,
dos frísios e principalmente dos mouros, os aldeões anglo-saxões – além de
tudo, ainda atemorizados pelo “horror pagão” – que sofreram com os
primeiros anos de ataques vikings, sem armamento, estratégias, hostes
militares ou mesmo ensinamentos e treinos, dificilmente conseguiam
prosperar. Isso só mudaria anos depois, quando o rei Alfredo, o Grande,
conseguiu fazer frente aos vikings e quando os burhs, ou seja, o sistema de
cidades fortificadas foi implantado.
Ivar fez o seu trabalho como guerreiro, mas decidiu ir a cavalo e usar mais
o seu arco e flecha. Ele disse a Ragnar que estava com saudades de montar e
queria aproveitar para ver como estava com essa arma e também treinar mais.
Diferentemente do que ocorrera quando estava com o exército norueguês,
dessa vez Ivar foi ao campo de batalha vestido como um guerreiro. As duas
enormes mechas laterais de seu cabelo loiro estavam agora trançadas e presas
na ponta com tiras vermelhas. Ele usava sua cota de malha em formato de
túnica, levava em sua bainha a sua famosa espada “dente de lobo” que
possuía o cabo em formato de uma serpente enrolada a dois ursos e sendo
engolida por um lobo gigante, e usava um elmo de ferro com proteção para o
nariz.
Ao distribuir as flechadas, que acertavam as costas, pernas, crânios e
pescoços das vítimas, curiosamente não mais se regozijava. E agora, vendo a
aldeia abandonada e parte dela queimada – dessa vez ele não permitira que se
queimassem as casas, apenas o mosteiro, mas alguns mercenários violentos
não perderam a oportunidade –, sua mente ficava novamente num embate
terrível, que ele não queria fomentar. Queria ser o guerreiro de sempre, sem
qualquer vestígio de fraqueza ou empatia para com cristãos.
Quando voltavam e se decidiam por dirigir para o sul ou para o norte, um
mensageiro de Ragnar que havia ficado no acampamento os encontrou para
contar-lhes que eles haviam avistado uma grande frota escandinava indo para
lá. Ele ainda disse-lhes que pelas velas brancas com inscrições rúnicas no
meio provavelmente era a mesma frota norueguesa em que Ivar estava antes
de se juntar novamente aos dinamarqueses. Então, temendo ser emboscado e
ter seus espólios roubados pelos noruegueses, Ragnar ordenou que todo o
exército retornasse para o acampamento imediatamente.
E assim que os vikings chegaram apressados ao acampamento na ilha de
Thanet, Liban já estava esgotada da incrível jornada que havia feito no mar.
Jornada essa não solitária, já que teve a companhia de dezenas de golfinhos
em quase todo o trajeto. Ela também se aproximava da mesma ilha...
Capítulo 40
Liban jamais imaginou que fosse possível nadar por tanto tempo, quase
que ininterruptamente. Na certa, pensou ela, só conseguiu mesmo essa
façanha devido à obstinação em encontrar Ivar novamente e a preciosa ajuda
dos golfinhos que, além de não a abandonarem, ainda a carregavam quando
ela se cansava, segurando em suas nadadeiras dorsais para ser puxada. O mar
dificilmente esgotava suas forças e Liban também conseguia deixar o corpo
solto, ondulando sobre as marolas e deixando a própria maré a levar,
entretanto, devido à ansiedade em que estava, utilizava desse recurso muito
pouco, preferindo quase sempre bater a cauda com violência na água para
nadar mais depressa.
E agora que ela acreditava estar, enfim, próxima a Ivar – ela lembrou-se
quando ele lhe contou que antes de aportar na cidade dela, estava na Britânia.
E também, sem saber por que, algo lhe dizia que ele estava por perto –,
muitas dúvidas começaram a fervilhar em sua cabeça.
“Se realmente eu o encontrar, como será? Afinal de contas, não tenho mais
pernas...”, pensou ela. “O que poderei fazer? E, principalmente, como ele
reagirá ao ver-me assim?”
Na verdade, essas dúvidas já a acompanhavam logo que ela selou sua
decisão, entretanto, as novidades da viagem lhe ocupavam a mente. Ela
adorou conhecer novos lugares, tanto as novas ilhas quanto as novas
paisagens submarinas a que seus olhos eram apresentados. O que mais gostou
foi quando se aproximou da Sardenha, com seu incrível mar turquesa e
recifes de corais, e seus promontórios altos e portentosos, e principalmente
quando nadou ao lado de uma enorme baleia, com olhos e gestos gentis, e de
seu filhote. E não conseguiu deixar de pensar em Ulisses em todos os
momentos em que conhecia novos lugares e novos seres. Com certeza ele iria
adorar tudo aquilo. Pensou até mesmo em quando Ivar lhe fez a proposta para
zarpar junto dele e disse-lhe que eles levariam Ulisses também, fazendo-o
acompanhar a embarcação, já que Ivar faria o barco ir bem devagar para não
cansar o golfinho. E lembrava-se também de como naquele dia lhe dissera
que não iria fazer isso, porque tinha medo de que algo acontecesse a Ulisses
fora daquelas águas protegidas. Esse dia nunca saía da cabeça de Liban e,
muitas vezes, fazia seu coração se tornar pesado com essas reminiscências.
Mais a oeste encontrou um grupo grande de golfinhos, quando chegava
perto das Ilhas Baleares, e eles a ajudaram a passar pelo Estreito de Gibraltar
escondida de olhos humanos. Liban não sabia por que os golfinhos a
seguiram, mas acreditava que Ulisses devia estar ajudando-a de alguma
forma. Ou então, por causa de sua cauda, os golfinhos a estavam aceitando
como uma igual. Esse pensamento mexeu um pouco com ela, já que se sentia
tão feliz e aceita no mar como nunca havia sido em terra. Mas a verdade é
que cada vez mais que persistia em seu querer, sentia como se Ulisses
estivesse também cada vez mais presente, como se ele morasse em sua
alegria e alimentasse os seus sonhos. Às vezes sentia que Ulisses até mesmo
ria em coro com sua risada. Liban gostava de acreditar nisso.
Também não foi fácil passar despercebida por todo o território mouro do
Emirado de Córdova e pelas Galiza e Astúrias, portanto, quando chegou ao
território franco, preferiu se afastar da costa, temendo ser vista, e com isso
teve que passar dias somente se alimentando de algas marinhas. Apenas em
poucas vezes tomava coragem para se aproximar de alguma praia ou de
algum porto quando avistava as luzes de uma cidade ou aldeia, assim,
esperava a noite cair para tentar roubar algum alimento ou então se
esgueirava embaixo das tábuas elevadas dos portos para escutar a língua que
o povo falava e assim tentar imaginar onde já estava.
Quando chegou perto da Bretanha, sentiu não só o clima mudar como o
mar se tornar extremamente gelado. Sua sorte era que da cintura para baixo
não sentia qualquer frio, já que sua cauda de golfinho impedia-a de sentir
frio, e da cintura para cima estava sempre se movimentando. Ficou com
saudades das sereias, que estavam sempre com o mar quente em volta delas,
pois conseguiam atrair e deslocar para junto delas as correntes quentes
marítimas. Pensando nisso e em sua capacidade de acalmar ou agitar as
ondas, tentou também realizar a façanha, mas nadando pela volta não parecia
se encontrar com nenhuma das correntes quentes por perto. O jeito era passar
um pouco de frio mesmo, mas ela não desistiria de seu objetivo.
E agora que já havia passado pelo Canal da Mancha, outra coisa também
estava em sua mente: o fato de que se aproximava das terras de sua amada
mãe. Assim que chegou perto da costa sul, Liban teve certeza de que se
tratava da Britânia. Sua mãe havia muitas vezes lhe desenhado todo o trajeto
que havia feito de barco, quando estava fugindo dos dinamarqueses e grávida
dela. Assim como havia também descrito toda a paisagem daquele lugar que
tinha sido a casa dela. Um imenso desejo de poder caminhar e correr pelo
solo da ilha onde sua mãe nascera e vivera se instalou em seu coração. Ela
sabia o quanto a mãe amava aquele lugar, mas também o quanto guardava
uma imensa mágoa, afinal foi lá que viu os pais morrerem à sua frente e tinha
sido lá que fora escravizada. Era como se sua mãe procurasse colocar a culpa
de sua má sorte em um lugar.
Mas a mente de Liban voou para outros ares. Saboreando a ideia
novamente de ter as pernas e os pés de volta, foi inevitável não pensar em
Ivar e não criar todo um fantasioso cenário de sonhos em que voltava a ser
humana e, encontrando-se com Ivar, ele a pegaria nos braços e amaria com a
intensidade que ela tanto desejava. E então os dois sairiam em um de seus
barcos para viver todos os planos que haviam feitos. Todavia, ela sabia em
seu íntimo que isso era impossível, e mesmo que viesse um dia a acontecer,
como ficaria toda a saudade que sentiria do mar? Será que a falta das ondas
em seus cabelos e das vagas marinhas embalando seu corpo seria tão ou mais
torturante que a falta que sentia de Ivar?
“E quando eu me encontrar mesmo com Ivar, o que falarei? E se ele me
disser que realmente me abandonou a própria sorte? Eu, então, serei capaz de
perdoá-lo? E novamente, o que mais me preocupa... como ele reagirá ao ver
como estou? Se ele verdadeiramente me ama, se importará com a mudança
drástica de meu corpo? Afinal de contas... eu não deixei de ser aquela garota,
a Liban... ou será que deixei?”
O medo e o receio das possíveis reações de Ivar frearam um pouco sua
ansiedade por encontrá-lo, assim como o pessimismo deu as caras quando ela
se pôs a imaginar como realmente seria difícil encontrá-lo na vasta imensidão
que era a Britânia. Decidiu ir devagar, mas seguir em frente, afinal havia
chegado até ali e não iria desistir agora. Aproximou-se da costa a ponto de
poder enxergar ao longe embarcações e as velas escandinavas.
Nadou, nadou e nada encontrou; nenhum drakkar ou knorr, com seus com
seus cascos de forma simétrica e com os talhamares curvos para cima, da
mesma altura na proa e na popa. Até que chegou perto de um grande volume
de água que percebeu não ser tão salgado quanto o mar. A água era mais
escura, densa e salobra. Ela estava entrando no estuário do Tâmisa. E então,
para sua felicidade, avistou uma grande frota de barcos que na mesma hora
identificou como sendo escandinavas.
Liban quase engasgou quando viu e seu coração bateu forte, como não
batia há muito tempo. Sorrisos amplos e esperançosos chegaram logo à sua
face.
“Tem que ser Ivar! Eu sinto que ele está perto!”, pensou ela, exultante.
Quando o viking havia chegado à sua cidade, Liban não chegou a ver a
vela de seu barco, mas ela também sabia que provavelmente ele não estaria
agora naquela mesma embarcação, já que o barco em que ele havia chegado
lá era um knorr mercantil, e agora provavelmente estaria numa frota de
barcos de guerra. Ao pensar na possibilidade de Ivar estar novamente
guerreando e cometendo as mesmas atrocidades nas aldeias e nas cidades que
o algoz de sua mãe havia feito, ela parou de súbito. Havia conhecido uma das
faces de Ivar, a gentil, sedutora e divertida, mas desconhecia o outro lado da
moeda, ou seja, sua face guerreira e sanguinária. Entretanto, a visão daqueles
barcos em movimento afastou dela esses pensamentos e Liban soube que
havia chegado a hora.
Mesmo ao longe, contabilizou quinze barcos e teve ciência de que teria
que tomar cuidado ao se aproximar. Provavelmente seria preciso seguir as
embarcações e somente quando aportassem em algum local que ela poderia,
sorrateiramente, tentar chamar a atenção somente dele, para a água. Ela sabia
que ninguém poderia lhe ver, seria perigoso demais e já estava se arriscando
muito em se mostrar para o viking. Mas ele era o homem por quem ela estava
apaixonada, e o amor nunca é prudente.
Olhando ao seu lado, se deu conta dos golfinhos que ainda a
acompanhavam e entendeu que era preciso que eles agora se afastassem dela,
que seguissem o próprio rumo. Liban não tinha certeza se eles a entendiam
como Ulisses, mesmo assim sempre conversava com eles. E agora, parando
de nadar e com eles a olhando, lhes disse:
– Meus amados, não tenho como agradecer a companhia, a força e carinho
que vocês me dedicaram em todos os momentos. Sem vocês, tenho plena
consciência de que não conseguiria chegar até aqui. Estamos juntos por
tantos dias e eu aprendi a amá-los com toda minha alma, como se fossem de
minha família. Na verdade, já sinto que todos vocês são realmente a minha
família agora. Mas daqui em diante é preciso que vocês voltem, que se
afastem de mim. A partir daqui é tudo muito perigoso e vocês não podem me
seguir, entenderam?
Dando um beijo em cada um deles, Liban se despediu com lágrimas nos
olhos, pensando em quantas vezes teria que se afastar de quem amava. E
então, mergulhou nas ondas à sua frente, nadando com velocidade. Porém,
depois de um tempo, o que ela temeu, aconteceu. Olhando ao lado, viu que os
golfinhos não haviam ido embora, mas a seguiam, determinados. E quando
submergiu para novamente tentar demovê-los da ideia de ir com ela, viu que
a frota viking estava mais próxima do que ela imaginava, pois também
avançavam com agilidade no mar. E o pior, parecia que iam diretamente em
sua direção.
Sem muito tempo para pensar ou agir, viu, horrorizada, que os golfinhos
passaram por ela como flechas e se dirigiam em sentido aos barcos. Liban
gritou, apavorada, para que eles voltassem, e como não adiantou se atirou
para frente e começou a nadar na maior velocidade que conseguia.
Seu coração quase lhe saltava pela boca e ela só torcia por uma coisa: para
que aquela fosse a frota de Ivar, que disse-lhe que suas expedições nunca
haviam matado golfinhos.
Porém, as velas que se exibiam orgulhosas nos mastros dos drakkars não
eram vermelhas, e sim brancas, com inscrições rúnicas em negro...
Capítulo 41
Tudo foi muito rápido e aterrorizante. Liban sabia que os golfinhos muitas
vezes gostavam de nadar e se exibir na frente das proas dos barcos, mas
aquilo que aconteceu tinha sido diferente. O jeito como passaram por ela e
dispararam a toda velocidade em sentido aos barcos era como se estivessem
querendo protegê-la das embarcações. Como se lhe dessem tempo para que
ela escapasse por outro lado, para não ser vista ou pega.
O plano dos golfinhos deu certo, os tripulantes dos barcos não a
enxergaram. Mas para Liban, o pior aconteceu, pois os noruegueses eram
notórios na pesca, atividade que constituía papel mais importante do que a
agricultura no paladar e na economia deles. E a caça de golfinhos, assim
como de focas e morsas, era fortemente apreciada para eles. Aquela frota
jamais deixaria escapar a oportunidade de uma caça bem-sucedida, com
golfinhos que pulavam voluntariamente bem na frente de seus barcos.
Agindo depressa, eles conheciam o modus operandi34 e munidos já com
os arpões, lanças e redes nas mãos, começaram o ataque feroz aos leais e
inocentes animais.
Em pouco tempo, uma pequena mancha vermelha no mar se espalhou,
alcançando Liban, que nadava contra o tempo. Ao ver o ataque brutal aos
golfinhos e o mar tingido de vermelho pelo sangue dos seus bravos amigos,
Liban soltou um grito histérico de pavor. Com a velocidade de um agulhão,
nadou até o primeiro golfinho que se afastou dos barcos e se debatia
desesperadamente na água com uma lança de madeira cravada em suas
costas. Com o toque de suas mãos, o golfinho conseguiu se acalmar um
pouco. Liban, então, com um movimento rápido e brusco, tirou a lança que
machucava a grossa pele do animal e muito sangue se esvaiu do ferimento. O
golfinho emitia sons como se fosse uma criança sofrendo e ao ver o
sofrimento do animal que nada fez para merecer aquilo, a não ser se arriscar
para protegê-la, seu coração ficou pesado e apertado. Liban jogou a lança ao
lado e tentou acalmar o cetáceo, abraçando-o. Mas ao levantar os olhos, a
visão que tinha era a de um pior pesadelo imaginável. Os quinze barcos
encontravam-se na água, no meio do estuário do Tâmisa, e os amados
golfinhos que tinham a acompanhado durante toda aquela viagem estavam na
volta das cinco embarcações que tomavam a dianteira da frota, sofrendo com
as terríveis investidas dos noruegueses que a todo o momento lançavam
arpões que atravessavam o flanco dos animais e depois os puxavam para as
embarcações, lanças que os feriam e as traiçoeiras redes com pontas de
pedras que os impediam de respirar.
Cerrando os dentes, Liban apertou os punhos com força e experimentou a
maior sensação de raiva que já havia sentido em toda sua vida. Suas mãos
ainda estavam cheias do sangue do golfinho à sua frente e essas mãos ela
levou ao rosto para tentar enxugar as lágrimas que já haviam começado a
dimanar de seus olhos.
Agora, seu rosto sombrio pela dor de ver e ouvir aquele cenário mortal
estava também vermelho, não só por estar tomado pela fúria, mas por estar
manchado com o sangue de um de seus fiéis amigos.
Com um grito tenebroso que fez o tempo parar por um instante e o som
ecoar por quilômetros, todas as atenções se voltaram para si, e os
noruegueses, enfim, lhe enxergaram. Liban levantou os braços e em sua volta
as ondas acompanharam o movimento, subindo metros acima de sua cabeça
em uma enorme onda, e então, quando ela os abaixou, as ondas também se
abaixaram e se precipitaram em direção aos barcos, que chacoalharam
violentamente de lado e quase viraram, fazendo ainda alguns tripulantes
voarem ao ar.
Por toda sua vida, Liban sempre soube que tinha o dom de fazer as ondas
acompanharem os desmandos do seu coração, que se acalmavam quando ela
estava feliz e tranquila e se agitavam quando estava triste ou chorava. Mas
agora, as ondas seguiam também a fúria de sua alma e o seu desejo por
vingança.
Outros gritos se seguiram, mas dessa vez foram dos noruegueses que
estavam apavorados não só com as ondas que os atacaram, quanto com a
terrível visão do ser do mar que tinha a cara vermelha e uma cauda de
golfinho.
– Um monstro! Um monstro marinho! – Berravam as muitas assustadas
vozes.
E tal qual Mjölnir era arremessado por Thor nas batalhas e fazia estrago
nos adversários, Liban arremessava as ondas que faziam o trabalho sozinhas,
quebrando a madeira dos barcos, que eram firmes, porém,não indestrutíveis.
E tudo virou um caos. Os barcos vikings, de poucos calados e talhamares
erguidos e curvos, eram construídos perfeitamente para não furar as ondas e
sim passar por cima delas, mas seguindo os anseios e as lágrimas de Liban, as
violentas ondas os pegavam em todas as direções.
Depois de seu ataque de fúria inicial, Liban se preocupou em nadar
depressa para salvar os golfinhos. Conseguiu livrar alguns das redes, mas viu
que um deles já jazia imóvel. Sua fúria aumentou ainda mais e o berro de
sofrimento ao ver o golfinho morto fez coro com o som do primeiro barco
daquela frota que se estilhaçava com o castigo das ondas.
Os noruegueses se encontravam num quadro de pavor ensandecido e
muitos acreditavam que o Ragnarok havia chegado e que os monstros haviam
deixado o cativeiro para anunciarem que ao invés do fogo, o mundo seria
consumido pela água e pelas profundezas do mar.
Inicialmente, nada conseguiram fazer, pois foram pegos desprevenidos e
ficaram em total estado de choque com a visão de Liban e seu poder com as
águas do mar. O anúncio para a guerra foi soado de forma desesperada e
depois de saírem do transe inicial e apavorado em que estavam, os
noruegueses correram para pegarem suas armas e assim tentarem destruir o
monstro marinho, mas notaram rapidamente que a única coisa a ser feita ali,
se quisessem mesmo sobreviver, era se segurarem em seus barcos e tentarem
remar para o mais longe possível. Toda a esperança deles estava depositada
nos timoneiros dos barcos que tentavam, com suas habilidades no ofício,
manusear através da cana os enormes remos seguros ao lado de estibordo das
popas das embarcações, fazendo um círculo de 180 graus com o barco e se
posicionando para fugirem dali.
Liban se adiantou para os outros golfinhos que também estavam com
estacas nos flancos e as retirou deles. E então viu, mais ao longe, a pior visão
até agora: um dos cetáceos estava içado por um arpão que lhe atravessou o
corpo.
Nadando velozmente, chegou desesperada ao lado da embarcação que
içara o animal. Puxando com força a corda do arpão, viu que o estrago na
pele do animal havia sido grande. O golfinho estava mortalmente ferido. O
arpão entrara diagonalmente, atingindo o buraco do respiradouro no topo da
cabeça e atravessando seu cérebro, indo parar no maxilar inferior. Não
adiantava nem mesmo tentar tirar o arpão que possuía duas pequenas alças
em sentido contrário para que quando fosse puxado, fizesse um grande
arrombo na pele que o perfurou. Subindo o olhar tresloucado, seus olhos
deram para a única figura no barco que sorria vitoriosamente e que estava em
pé e agarrado com uma mão ao mastro. Os outros tripulantes, apavorados,
estavam sentados e remando com todas as suas forças. Ninguém tinha
coragem de fixar os olhos em Liban, como se temessem que ela fosse capaz
de matá-los ou de transformá-los em pedra com um simples olhar, como no
mito grego da Medusa. Mas o viking que estava em pé a desafiava com o
olhar e ainda segurava a corda que prendia o arpão que havia matado o
golfinho de forma tão brutal. O norueguês era um dos mais valorosos
guerreiros daquela frota, e ele não se amedrontaria facilmente. Já até mesmo
bolava em sua cabeça o plano para matar aquele “monstro marinho” e exibir
sua cabeça por toda a Noruega, ganhando assim grande prestígio e honra
marcial. Sua ideia era atraí-lo para o seu barco exibindo o golfinho morto,
então com o outro arpão que já estava preparado sobre seus pés, ele se
agacharia rapidamente, o pegaria e o lançaria com força e precisão sobre o
peito do “monstro”. Então, sem titubear, com a proximidade da criatura
marinha que tinha os cabelos brancos e o rosto vermelho, ele continuou
olhando diretamente para os olhos de Liban, que dolorosamente pelo golfinho
choravam lágrimas de fel e sangue.
O movimento foi rápido e completamente inesperado. Liban saltou acima
do barco – ajudada pelas ondas e por sua forte cauda que batia ferozmente –,
chocando-se no ar com o homem e o levando junto para o mar novamente. Os
outros tripulantes berraram quando viram a cena, o monstro marinho voando
em direção a eles, agarrando o comandante do barco e o levando para o
oceano.
Assim que o norueguês foi engolido pela maré bravia, começou a se
debater desesperadamente e a tentar subir para a superfície. Mas Liban, cega
de ódio, o segurou firme e o empurrou mais para baixo com as mãos em seu
peito e se desvencilhando dos braços dele, que balançavam debilmente no
mar. Ela estava possessa, seu grito de raiva ajudava-a a apertar ainda mais a
roupa do norueguês entre seus dedos até sentir a carne dele e cada vez mais
ela levava o viking para o fundo. Nada a fazia desistir de se vingar, nem
mesmo os olhos assustados do norueguês, que agora viam que o monstro, na
verdade, não tinha mais o rosto horrivelmente vermelho, pois a água havia-o
limpado, mas apenas o rosto de uma linda mulher, uma das mais lindas que
ele já havia visto, que exibia um semblante de dor e fúria.
E, mesmo indo contra todos os seus princípios, Liban havia se
transformado numa fagulha do que era Ivar, quem ela tanto amava. Naquele
instante, Liban estava sendo a mão da morte.
Não aguentando mais a horrível sensação de falta de ar, a razão, enfim, o
abandonou e o homem instintivamente respirou. Com isso, apenas água
encontrou, que navegou traiçoeiramente direto para seu pulmão. E antes de
morrer, o único rápido pensamento que teve foi de como a lenda das sereias
era, infelizmente, verdadeira. E ao contrário dele, o único pensamento de
Liban ao ver que a vida se esvaia do norueguês foi a de que os golfinhos, e
principalmente Ulisses, seu amado e inesquecível amigo, estavam finalmente
vingados.
Deixando o corpo do homem para trás, enquanto este descia pesadamente
para ter sua sepultura nas profundezas do mar, Liban subia vertiginosamente,
pois ainda tinha coisa para fazer. E quando alcançou a superfície, viu que,
enquanto estava submersa, as ondas ainda estavam seguindo os almejos de
seu coração, agora ensandecido, pois mais da metade dos barcos havia
quebrado. Tanto os mastros estavam partidos e já não exibiam mais suas
orgulhosas velas brancas com inscrições rúnicas, como muitas embarcações
jaziam em frangalhos, sujando o mar com milhares de pedaços de madeira e
provisões que eles carregavam. Inúmeros tripulantes estavam à deriva e se
debatiam no mar, tentando não se afogar.
Liban só trazia em mente uma coisa: ela tinha que ajudar aqueles
golfinhos, eles não poderiam morrer por sua causa.
Para seu alívio, viu que a maioria deles estava bem. Liban forçou a própria
raiva a diminuir para que as ondas também se acalmassem. Ela precisava
retirar os golfinhos feridos dali.
Gritando, porém, agora não histericamente, mas somente com uma
poderosa voz, como se fosse realmente uma sereia, chamou todos os cetáceos
para perto dela e, como se realmente a entendessem, todos se aproximaram,
formando um rastro vermelho no mar, pois muitos ainda sangravam.
Nadaram para fora do estuário e Liban os levou para a primeira área que
julgou ser segura. Então, abraçando com cuidado os feridos, ela chorou e
pediu para que a Deusa lhe desse o poder de curá-los. Ela sabia que não era
uma sereia, portanto não tinha o mesmo encantamento delas. Mas nada
aconteceu e os golfinhos feridos ainda sangravam e se tornavam mais
apáticos à medida que o tempo passava. Liban implorava para que a Deusa
aparecesse, já que outras vezes ela havia lhe ajudado, mas a luz
resplandecente que refulgia quando a Deusa aparecia, não era vista.
– Mãe, por favor, é só o que lhe peço... – Liban implorou uma última vez.
– Assim como Ulisses trocou sua vida por mim, quero fazer o mesmo por
eles, se não conseguir salvá-los de seus ferimentos.
Então, antes de perder as esperanças, uma voz poderosa surgiu em seu
inconsciente e Liban soube imediatamente que era a voz da Deusa.
“Liban, não perca as esperanças, pois eu estou em todos locais que as
águas alcançam. Pela primeira vez, chamou-me de mãe, mas ainda não
acredita na força que tem essa palavra e, principalmente, ainda não se
enxerga verdadeiramente como minha filha. Mas como minha filha, digo-lhe
que deve acreditar em tudo o que isso representa. Esses golfinhos detêm o
seu amor e carregam as suas lágrimas, que são feitas tanto de sal quanto de
água e que ajudam a salgar o meu oceano e igualmente fazem o meu espírito
tão antigo padecer junto. Liban, minha filha, ouça minhas palavras e que elas,
dessa vez, fiquem gravadas dentro de seu coração: você é, e sempre foi, uma
sereia...”
E a voz sumiu, deixando em seu rastro apenas um eco de suas palavras
finais. “Você é, e sempre foi, uma sereia...Você é, e sempre foi, uma sereia...”
E, enfim, Liban compreendeu que ela podia lutar contra o seu destino, mas
a partir do momento em que havia sido abençoada por Amairani no momento
de seu nascimento, toda sua vida havia rumado para o que ela era agora: uma
sereia! Mesmo sem a cauda colorida de escamas de peixe, mesmo sem o
poder do canto, mesmo sem a mágica que elas possuíam, ela era uma sereia.
Reunindo todas as forças que ainda tinha, Liban fechou os olhos e se
concentrou, notando que algo crescia junto com ela, fazendo-a sentir-se como
se fosse a própria Deusa dos mares, gigante e poderosa. Aconchegando com
os braços os golfinhos em sua volta, sentiu que tinha o controle de suas
próprias forças, assim como de sua própria saúde, e, assim, as direcionou
para os golfinhos, um após o outro. Abrindo os olhos, viu, surpresa, como
suas mãos emitiam uma brilhante luz dourada e como os ferimentos dos
golfinhos se fechavam como mágica à medida que a luz os envolvia.
Ela sorria mais feliz do que nunca, mas também sentia que cada vez mais
suas forças lhe abandonavam e uma imensa fraqueza tomava conta de seu
corpo. Segundo após segundo, era como se sua vida e sua vitalidade fossem
arrancadas de seu ser. Sem esmorecer, persistiu até que o último golfinho
ferido ficasse totalmente curado. Então, sem mais aguentar, seu corpo
desabou inerte para trás.
Para Ivar, apenas um barco era suficiente. Ele não queria chamar a atenção
de sua presa, mas tentaria seguir o rastro da criatura em surdina. Mas Ragnar
exigiu que pelo menos dois drakkars fossem nessa empreitada insana, pois se
algo acontecesse a um dos barcos, os homens não ficariam à deriva no mar.
Munidos com muitos arpões de pesca, a maioria doada pelos noruegueses
que, além disso, ainda patrocinaram a viagem, oferecendo-lhes algumas
moedas de ouro, levavam também muitas redes, lanças, estacas de madeira
afiada e machados. O arsenal era grande, só a coragem dos guerreiros, exceto
de Ivar, não. Preferiam encarar até os ferozes e valentes árabes do território
do Califado Abássida, que possuíam barcos equipados com catapultas que
lançavam o fogo grego37 sobre as hostes inimigas e cujas torres fortificadas
de suas cidades mouras eram defendidas por máquinas de guerra
desconhecidas dos vikings, que também lançavam fogo, a encarar uma vil
criatura, um monstro dos mares horrendo e mortal, que ao contrário de lançar
fogo, lançava ondas bravias do mar.
Estavam apavorados e a todo o momento seus olhos percorriam o mar à
procura de algum sinal da criatura. Mas mesmo com medo, esses guerreiros
seguiriam Ivar aonde quer que fosse. Muitos já o encaravam como o sucessor
de Ragnar e confiavam em sua força e habilidade, ainda mais depois da breve
estadia dos noruegueses no acampamento, quando ficaram sabendo sobre os
feitos de Ivar na Bretanha, que de forma ensandecida, porém,efetiva, acabou
com os guerreiros bretões empunhando apenas um rústico machado de
fazendeiro; como também ficaram sabendo a origem de sua nova alcunha, o
“Berserker”. Este fato dava-lhes a pouca coragem que tentavam cultivar e
manter dentro deles.
A trajetória escolhida foi a navegação por fora do estuário do Tâmisa,
chegando ao Canal da Mancha e contornando a costa sul da Britânia.
Segundo relatos dos noruegueses, a criatura marinha tinha seguido com
seu séquito de golfinhos ensanguentados para fora do estuário, deixando um
longo rastro visível de sangue.
Ivar retirara as carrancas de dragões das pontas das proas dos barcos, para
que os drakkars não ficassem parecidos com barcos de guerra. Ele não queria
que os britânicos pensassem que aquela era uma pequena hoste invasora.
Quando acordou, sem saber por quanto tempo esteve desacordada, jamais
imaginou o que veria. Estava dentro de um quarto escuro, feito de pedras nas
paredes e que cheirava a mofo. Seus olhos demoraram a entender o que
perscrutavam. A confusão de estar naquele ambiente era tanta, que Liban por
um momento até se esqueceu que não tinha mais pernas, que era uma sereia,
e tentou se levantar. Mas olhando imediatamente para baixo, viu que se
encontrava em uma espécie de banheira de ferro bem grande, tão grande
quanto o comprimento de sua cauda. A banheira estava cheia de água e
curiosamente sobre os seus seios, antes nus, uma túnica marrom cortada
pousava. Liban não estava entendendo nada e o desespero era grande.
“Minha Deusa, onde estou? Que lugar é esse? O que aconteceu?”, indagou
ela, apavorada.
Estava zonza e sentia muita fraqueza no corpo.
Investigando o local com os olhos, viu que atrás dela tinha uma cama e o
final dela dava para uma pesada e alta porta de madeira, e do seu lado havia
uma pequena mesa com algumas tigelas em cima e mais adiante a única
janela do quarto, grande, abobadada e com grades. Olhando para sua frente,
viu um candeeiro aceso com uma vela vermelha pela metade e na parede
jazia um crucifixo com a figura de Jesus pregado que, devido à luz da vela,
produzia uma agourenta sombra sobre ele e sobre o quarto.
Agindo rápido, pensou na janela. Segurou-se na beirada da banheira e
pendurou-se na mesinha ao seu lado, sustentando o corpo para cima. Porém, a
força de seu corpo fez a mesinha balançar e as tigelas em cima dela caíram ao
chão, provocando alto som no quarto, que reverberou e fez eco sobre aquelas
paredes de pedra.
Seu coração disparou, ainda mais quando ela ouviu passos e a pesada porta
atrás dela se abriu. Olhando para trás, soltou um grito ao ver a figura de um
homem vestindo uma longa túnica marrom, olhando para ela. Debateu-se na
banheira, tentando irracionalmente de novo se erguer. O homem largou a
porta, que bateu violentamente, fazendo Liban se assustar mais ainda, e
correu para ela, se ajoelhando apressadamente.
– Por favor, acalme-se! Acalme-se! – pediu ele, exasperado. – Você fala a
minha língua? Não irei lhe fazer mal.
Liban parou de chofre. O peito arfando e a cabeça doendo bem onde levara
a pancada. Até então não sentira essa dor, mas agora ela viera com tudo.
Olhando para o homem, conseguiu dizer:
– Onde estou? Quem é você? O que aconteceu comigo?
O homem tentou levar a mão para o ombro de Liban, mas ela se assustou
com esse movimento, contraiu o corpo para trás e soltou novamente um grito.
– Não, tudo bem, se acalme! – O homem pediu novamente, levantando os
braços sobre a cabeça, sem saber o que fazer. – Já lhe disse que não lhe farei
mal algum, queria apenas acalmá-la, desculpe-me. Está tudo bem, viu. Não
irei tocá-la.
Liban o olhava com os olhos arregalados e com a respiração
descompassada. O monge tinha os cabelos curtos e castanhos, mas na parte
de trás o cabelo era um pouco mais comprido. Seus olhos eram também
castanhos e ele aparentava ter em torno de vinte e cinco anos.
– Agora que vejo que fala a minha língua, irei responder a todas as suas
perguntas, calmamente. Antes, deixe-me apresentar-me. Chamo-me Beoc e
sou um dos monges desse mosteiro em que estamos.
– Mosteiro? – repetiu Liban, quase inaudivelmente.
– Sim, estamos no mosteiro de St. Decúmano, perto da aldeia de Watchet,
no noroeste de Wessex.
– Noroeste? – Liban estava confusa. – Mas eu estava na costa sul...
– Quando eu lhe achei, quer dizer, quando eu a pesquei – o monge sorriu
–, você estava na costa celta de Cornwalum39. Eu lhe trouxe até aqui, pois
bati forte em sua cabeça acreditando se tratar de um peixe grande, o que de
certa forma você não deixa de ser – mais sorrisos tímidos o monge deu. – E
passado o meu imenso susto e os longos minutos em que eu custava a
acreditar que você fosse real, resolvi colocá-la em meu barco, por não saber
se, desacordada, você conseguiria respirar embaixo d’água. Bem, não sei se
consegui me fazer entender direito, na verdade. Sempre me complico com
palavras e explicações.
Liban nada falava, apenas o olhava, desconfiada e ainda encolhida. Se
tivesse pernas, com certeza sairia correndo dali imediatamente.
“Ela parece um bicho acuado, pobrezinha”, pensou Beoc.
– Por que... Por que me trouxe para cá? – Liban arriscou perguntar, ainda
muito temerosa.
– Na verdade não sei ao certo. Pareceu-me a coisa certa a fazer. Afinal, eu
havia lhe dado uma pancada e achei que precisava de ajuda. Veja, eu estava
pescando e quando joguei a rede e a puxei, vi o quanto a rede estava pesada e
então quando sua cauda apareceu debatendo-se, bem, eu achei que meu
almoço de uma semana estava garantido – o monge riu. – Mas não era um
grande peixe, era você...
– E por acaso você sabe o que eu sou? – Liban estava achando impossível
acreditar no fato do monge não aparentar estar com medo dela.
– Bem, no momento eu estou conversando com uma senhora, mas se me
pergunta pelo fato de você não ter pernas, para mim isso pouco importa.
Liban o encarou, desconfiada.
– Tudo bem, quando a retirei da água, quase desmaiei. Confesso que
milhares de coisas se passaram em minha cabeça. Sou um monge, sigo a
palavra de Deus, as escrituras sagradas. Mas não poderia negar o que meus
olhos estavam vendo, bem diante deles.
– E pelo fato de realmente ser um religioso, não ficou com medo de mim?
– perguntou Liban, ainda receosa. – Não tem medo agora? Não acha que sou
algum monstro ou demônio?
“Como poderia achar isso de algo tão belo?”, pensou ele, em silêncio.
– Não – respondeu ele, em seguida. – Para mim, todas as criaturas que
existem só podem vir de Deus. Só podem ser obra do pai, do criador. Você
não é um monstro, não poderia ser. – Seus olhos iluminados olhavam
fixamente para Liban. – Ademais – ele prosseguiu –, apesar de ser cristão,
venho de Cornwalum, do seio de uma família celta pagã que antes de se
converter ao nosso bom Senhor, tinha suas crenças druidas no que eles
chamavam de elementais da natureza. Quantas e quantas vezes escutei minha
avó contando-me, quando eu era menino, sobre as mulheres que moravam na
água e transmitiam boas energias – ele sorriu novamente, mostrando um belo
sorriso jovial que o fazia parecer ter menos idade. – Hoje vejo que mesmo
pagã, vovó sabia de algumas coisas.
– Você é bem diferente dos religiosos que já conheci, sabia? – Liban
estava agora um pouco mais calma.
Beoc nada disse, apenas fechou o sorriso, limpou a garganta e se levantou,
batendo a roupa.
– Desculpe por não poder lhe proporcionar um local melhor, mas foi o que
eu consegui. Imaginei que a sua... cauda? Bem, que precisasse sempre de
água, não?
– Você vai embora? – perguntou Liban, alarmada. – Vai me deixar aqui?
Agachando-se rápido novamente, Beoc dessa vez não hesitou em colocar
sua mão sobre o ombro de Liban, que recuou com menos intensidade.
– Não, claro que não! – adiantou-se ele, como se estivesse chocado com a
pergunta. – Acaso acha que a sequestrei? Que a manterei cativa?
Sem nada a dizer, até porque não sabia a reposta – sempre esperava o pior
das pessoas, principalmente de religiosos –, Liban limitou-se a olhá-lo,
esperando que ele mesmo respondesse suas próprias perguntas.
– É claro que não! – Ele assim o fez. – Sou um homem temente a Deus,
sou um servo do Senhor, e não um cruel escandinavo pagão! – exclamou ele,
pela primeira vez levantando a voz.
Engolindo em seco, Liban virou o corpo na banheira para ficar de frente
para ele. Dessa vez foi Beoc que recuou para trás ante o olhar penetrante dela.
Liban estudou-o com os olhos. Era um belo rapaz, analisou ela, porém,um
pouco subnutrido e com profundas olheiras nos olhos cansados.
“Ele deve jejuar e fazer penitência em demasia”, pensou ela, vendo o rosto
bonito, mas covado e sofrido, do monge.
Em sua cidade, dificilmente via clérigos assim, a maioria era bem
abastada, possuíam o olhar duro e inquisidor e vestiam-se bem, exibindo
ainda anéis, pulseiras e colares de ouro. Beoc vestia-se somente com uma
grossa túnica de lã tingida de marrom, com um capuz pendendo atrás e um
cordão de sisal amarrado na cintura. Percebeu que a túnica que ele usava era
do mesmo tecido áspero e incômodo da túnica cortada que ela estava usando.
– O que é isso que estou vestindo? – ela perguntou, fazendo uma careta
quanto tocou no tecido grosseiro da túnica. – Você colocou isso em mim?
– Não! – chocou-se novamente o monge e desandou a explicar
rapidamente. – Quem a vestiu foi Ana, uma senhora residente no mosteiro
que além de nossa cozinheira, é ajudante e servente. Quando a retirei da água,
vi que... bem... você estava despida. – Beoc sentiu o rosto queimar. – Então,
joguei-lhe um manto por cima e depois quando cheguei com você nos braços,
Ana a vestiu. Isso é apenas um pedaço de uma túnica, nada mais. Imagino
que não ache um tecido bonito, realmente.
– E acaso essa Ana também encarou tão bem como você a minha
aparição? – perguntou Liban, curiosa. Estava achando totalmente absurda a
ideia de religiosos não estranharem ao verem uma sereia, uma criatura que
era considerada por muitos como uma lenda pagã.
– Por Deus, mas é claro que não! – Beoc arregalou os olhos para
demonstrar exagero. – Eu quase a mato do coração. Foram precisos dois dias
inteiros para essa mulher ter coragem de entrar nesse quarto e mais um para
vesti-la. Ela dizia aos berros que eu havia resgatado o próprio demônio das
águas – ele riu como se isso fosse uma bobagem – e exigia para eu tirá-la
daqui. Olha, se dona Ana não lhe visse com os próprios olhos, ela jamais
acreditaria em sua existência.
– Dois dias? – Liban assustou-se. – Há quanto tempo estou aqui? – o grito
saiu abafado.
– Este é o quarto dia. Fora mais um dia inteiro em que naveguei com você
no meu barco. No começo, como você não acordava, temi que eu tivesse
matado-a. Deus me livre de um destino desse, mas cheguei realmente a
pensar isso. Entretanto, notava sua respiração forte e orei todos os dias para
que você despertasse bem.
Era realmente um feito e tanto, pensou ela, além de ter tido todo o esforço
para levá-la até ali, um religioso não pensou que ela fosse um monstro, não
pensou em afogá-la, em matá-la, como os escandinavos queriam. Todavia,
ainda estava receosa e desconfiada, e não conseguiu emitir um agradecimento
por tudo o que o monge havia feito.
Virando-se novamente de frente, ela suspirou e percebeu o quanto estava
com fome.
– Quatro dias? Inacreditável – disse ela, num quase sussurro. – Por isso
estou com tanta fome.
– Fome? – Beoc pulou, levantando-se animado. – Ana já preparou muita
comida para você a meu pedido. Na verdade, eu nem ao menos sabia se você
comia ou qual o tipo de comida você gostava, mas todos os dias pedia para
ela preparar uma refeição a mais, caso você acordasse. E mesmo você não se
alimentando por todos esses dias, eu vinha todas as manhãs e tardes aqui e
molhava um pano úmido para despejar em sua boca.
– Sério? – Liban o olhou, aturdida. Era como se tanta gentileza não fosse
capaz de existir em uma pessoa. – Bem... obrigada, então, por todo esse
cuidado comigo.
– Não precisa agradecer. A caridade é um dos preceitos de nossa doutrina
cristã.
– Ah é? Pois fale isso para os cristãos e, principalmente, para os clérigos
que conheço!
– Como? – perguntou ele parecendo não entender.
– Não é nada. Esqueça... – respondeu ela, suspirando novamente e
passando a mão em sua nuca dolorida.
– Bem, trarei sua comida, então, senhora. Como lhe disse, não sabia qual
alimento você gostava, mas hoje temos lula com batatas e ovelha assada. Ah,
e também temos ainda um pouco de queijo de cabra. Está no fim, mas se
desejar, posso trazer também.
– Hum... traga-me, por favor, só as batatas e o queijo, se tiver, nada de
ovelha ou lula. Mas antes, gostaria de olhar por aquela janela. Esse quarto é
tão escuro, tão funesto. Gostaria de olhar a claridade do dia e, principalmente,
a paisagem depois dessas paredes de pedras. Por favor, você pode me ajudar?
– Liban levantou os braços para ele, como uma criança pede um colo.
A esse pedido, Beoc hesitou. Não era correto um clérigo carregar uma
mulher no colo, ao menos que ela estivesse desacordada e precisando de
ajuda, como havia acontecido anteriormente com ela. Mas não agora, que ela
estava acordada e ainda mais a pedido dela, por mais que a mulher em
questão fosse apenas metade, sendo a outra metade um animal marinho.
“Porém, também não posso negar ajuda a quem me pede.”
Torturando-se ao ver aquele lindo ser estendendo-lhe os braços, os olhos
acinzentados olhando diretamente para ele, Beoc então cedeu e se agachou, e,
hesitante, passou um braço em volta das costas de Liban, que se aninhou em
volta do pescoço dele, e com o outro braço Beoc mergulhou na água da
banheira para envolver a cauda dela. Com certa dificuldade, já que o monge
era fraco, Beoc a levantou e a levou até a janela abobadada. Seu coração batia
acelerado e ele nem ao menos arriscava olhá-la. Estava petrificado, como se
fosse uma estátua.
Quando chegaram à janela, Liban pôde ver a paisagem. O mosteiro ficava
no topo de uma colina onde uma praia escura e pedregosa se abria no
horizonte. Antes da praia, existia um gramado bem verde e ao lado, áreas
pantanosas e com musgo traziam também uma passarela de pedras que descia
até a praia. Liban ficou tentando imaginar como havia sido possível para
aquele monge tão magro carregá-la por aquela passarela íngreme. Lembrou-
se de como Ivar a havia carregado no colo tão facilmente na primeira vez em
que ela se entregou a ele. Liban pensou nos braços musculosos do
escandinavo e em seus olhos em brasas, e como ele havia lhe dito que ela era
uma Deusa ao olhar para seu corpo nu. Essas lembranças fizeram o coração
de Liban doer de saudade e ela se perguntou se realmente nunca mais voltaria
a ver Ivar.
“Onde ele estará? Tudo o que me aconteceu até agora foi porque o
procurei. Será que meu destino não é estar ao seu lado?”, pensou ela, em
desalento.
Beoc falseou os braços por um instante e fez um careta, mais por vergonha
do que pelo esforço que estava fazendo ao carregar Liban nos braços. Rindo,
a sereia pediu que a colocasse novamente na banheira.
– Perdoe-me, Beoc, acho que abusei de sua gentileza – disse ela ao ver que
ele ainda tentava talvez impressioná-la, pois lhe disse que aguentava mais um
pouco se ela desejasse olhar mais pela janela.
Ao ouvir o seu nome, o monge pela primeira vez arriscou abaixar a cabeça
para olhá-la. Seu rosto ficou a centímetros do rosto de Liban e Beoc sentiu
não só suas bochechas queimarem, como seu corpo inteiro também.
“Por que ela é assim tão linda? Só pode ser um anjo, meu Pai. Só pode ser
sua obra mais perfeita, meu Senhor”, pensou ele, atordoado pela beleza dela.
Liban percebeu que o monge havia ficado incomodado com alguma coisa,
pois a olhava sem nada dizer, então pediu novamente para que ele a colocasse
na banheira. Desculpando-se mais uma vez, e de forma atrapalhada, Beoc a
colocou com delicadeza na banheira e se virou dizendo que iria trazer a
comida. Mas antes que ele pudesse sair pela porta, Liban o interpelou:
– Já sei o seu nome, Beoc, todavia, não deseja saber o meu? – ela
perguntou.
Ainda de costas, o monge hesitou mais uma vez, pois seus batimentos
cardíacos ainda estavam acelerados pela aproximação da sereia, e ele não
queria que ela percebesse a sua condição. Respirando fundo, esperou mais
um segundo e, então, se virou para ela, sorrindo mais uma vez.
– Mas é claro! – exclamou de forma novamente jovial. – Creio que não fui
um anfitrião dos mais educados; perdoe-me, senhora. Por favor, diga qual a
sua graça.
– Liban... Eu me chamo Liban!
– Hum... É um prazer conhecê-la, senhora Liban. – Seu sorriso era amplo e
amável, mas quando se virou, o semblante se fechou.
Ao sair pela porta, correndo apressado para fazer jus aos seus batimentos
cardíacos, Beoc sentiu não só o coração apertado, como também o cilício –
feito de cordão de crina de bode entrelaçado com algumas pontas de ferro –
em sua coxa, lembrando-lhe que para ficar mais perto de Cristo, eram
necessários o sofrimento e a expurgação dos pensamentos mundanos e das
fraquezas da carne.
Capítulo 48
– Pai, ajude-me a conseguir livrar sua casa do demônio, do mal que assola
essas paredes. – Ana orava baixinho no altar, com fervor, na primeira hora do
dia. Os olhos de pálpebras caídas estavam fechados e os cabelos grisalhos
presos num coque atrás da cabeça e cobertos por um lenço branco de oração.
Ana nunca rezava com os cabelos descobertos, pois foi ensinada que a
vaidade e a beleza feminina não eram servas de Cristo, pelo contrário, eram
alimentadas pelo diabo. Por isso os homens não cobriam a cabeça na hora da
reza, mas as mulheres, sim, pois estavam sempre caindo em tentação e
pecado, por isso deviam respeito a Deus, se comportando com recato.
“Por isso até mesmo Virgem Maria, a mãe de nosso Cristo, está sempre
com o véu. Para mostrar sua pureza, sua obediência e seu recato. Mulheres de
respeito não exibem uma cabeleira comprida e selvagem como a dessa
criatura marinha”, refletia ela indignada. Ana sabia o texto da Bíblia de
cabeça, de cor e salteado, e murmurava baixinho entre os cantos para ver se
Beoc se lembrava das palavras nas sagradas escrituras: “Se a mulher não
cobre a cabeça, deve também cortar o cabelo... O homem não deve cobrir a
cabeça, visto que ele é imagem de Deus; mas a mulher é a glória do homem.”
Com isso, Ana tentou ao menos dissuadir o monge para que obrigasse
Liban a cobrir a cabeça com o véu.
“Mas ele nem ao menos quis obrigar aquela criatura a isso. Ela já o
enfeitiçou e agora ele faz tudo o que ela lhe pede”, martirizava Ana, com
raiva.
– O pobre do monge Beoc está enfeitiçado por essa feiticeira marinha. –
Ana voltava a orar baixinho, de joelhos em frente ao enorme crucifixo da
casa paroquial. – Ele não vê que ela só pode ser o demônio disfarçado para
conseguir entrar na casa de Deus e espalhar a maldade e a corrupção da alma.
Beoc está fora de si! – Sua raiva agora era latente e ela apertou as mãos em
oração. – Como ele pôde trazer para cá, para a morada do Senhor, uma
criatura que nem ao menos é descrita no livro sagrado? Uma criatura que
parece ter saído exatamente das religiões pagãs, com seus falsos deuses? Tire
a venda maldita dos olhos de Beoc, meu bom Senhor. Faça-o enxergar o mal.
Ou, ao menos, apresse a vinda dos outros monges. Eles não são fracos como
Beoc, eles saberão destruir a criatura marinha!
Algumas vezes, Ana até mesmo considerava a possibilidade de colocar
algum veneno na comida que era servida para Liban. Mas não levava a ideia
adiante, pois indagava se aquela seria realmente uma atitude cristã ou se, por
causa disso, sua morada no céu estaria comprometida. Ao mesmo tempo,
lembrava-se de como os anjos e os arcanjos trabalhavam para Deus, matando
os demônios e infiéis, e ficava na dúvida.
“O monge Beoc ainda teve a capacidade de me dizer que acreditava que a
feiticeira marinha era um anjo! Um anjo, veja só!”, indignava-se Ana quando
se lembrava do fato.
– Anjos vivem no céu, e não nas profundezas desconhecidas do mar –
disse Ana a Beoc, nessa ocasião. – Anjos têm asas e não uma horrenda cauda
de um animal marinho. Anjos têm nomes masculinos e são a glória e os
servos de Deus, e não se chamam Liban, tampouco servem a deuses pagãos.
Isso é blasfêmia! E admira-me muito o senhor ter esse pensamento impuro.
Ao menos está usando o cilício? Não vejo mais o senhor jejuando ou fazendo
penitência.
– Agora quer passar por cima de minha autoridade eclesiástica, dona Ana?
Quer supervisionar minhas penitências? – O olhar de Beoc era frio, mas suas
palavras não foram ditas de forma ferina.
– Por Deus, não, senhor! Longe de mim, que sou somente uma serva de
Cristo e dessa casa paroquial – respondeu Ana com deferência e como se
estivesse chocada pelo monge ter pensado isso dela.
Ana então resolveu não mais confrontar com o monge, até porque, para
ela, Beoc parecia estar enfeitiçado por Liban desde que entrara por aquela
porta carregando-a no colo, e quase matando Ana do coração. Mas sempre
que podia, perguntava para ele se a sereia não queria se confessar, se não
queria rezar ou jejuar, e se ela já era batizada e qual religião ela tinha. Beoc
se esquivava das perguntas sempre com muita educação, deixando Ana
possessa.
Certo dia, ela ainda lhe perguntou quais eram os assuntos que ele e Liban
conversavam tanto.
– Afinal, o que se pode conversar com uma criatura marinha? – perguntou
ela, não conseguindo esconder a rispidez no tom de voz. – Sobre Deus e a
sagrada escritura é que não deve ser, monge. Perdoe-me se eu estiver
abusando de sua autoridade, mas não vejo mais o senhor ir até seu quarto, ou
quando a leva para a praia, carregando a Bíblia entre os braços.
– Dona Ana, tenho muito respeito pela senhora, por sua pessoa distinta e
por tudo o que a senhora já fez e faz por esse mosteiro, mas tenho que
adverti-la que novamente a senhora está passando do ponto! Sou um monge!
Deus está sempre comigo, assim como suas palavras sagradas também.
Acaso anda me espionando para saber quando estou ou não com a Bíblia
entre os braços? – respondeu ele, perdendo, pela primeira vez, a paciência
com ela.
Então, Ana decidiu que o melhor a fazer seria esperar pela volta dos outros
monges. Ela contaria tudo aos outros clérigos e os faria expulsar Beoc
daquele lugar santificado. Ou, quem sabe, eles o puniriam até que ele voltasse
a seguir os preceitos de Deus e repudiasse a criatura marinha, destruindo-a ou
mandando-a de volta para o lugar de onde ela nunca deveria ter saído.
Acontece que, passados mais alguns dias, Ana teve que ir ao vilarejo
vizinho para comprar mantimentos. O inverno havia chegado e sem a ajuda
dos outros monges, a horta do mosteiro havia sido castigada com o frio e
metade da produção se perdera. Mas quando Ana chegou ao vilarejo, outra
coisa além de provisões ela conseguiu: fofocas!
Ana escutou o que todos estavam comentando, que barcos escandinavos
estavam navegando pela costa sul à procura de um terrível monstro marinho
que havia destruído uma frota deles. Ana nem acreditava em tamanha sorte.
“É um sinal de Deus!”, pensou ela, com o coração saltando e pronta para
derramar lágrimas de devoção.
Imediatamente saiu à procura do barqueiro conhecido que sempre lhe dava
peixes, mariscos e crustáceos – doações para o mosteiro. Encontrou-o no
porto, desamarrando seu barco do cais. Então lhe contou coisas que o
barqueiro jamais imaginava. Pediu ajuda e disse que o próprio monge Beoc
lhe pedia em nome de Deus.
– A criatura marinha que os pagãos escandinavos estão à procura está lá
no mosteiro – disse ela.
– No mosteiro, senhora? – chocou-se o barqueiro.
– Sim, ela anda enfeitiçando aquele local sagrado e por isso pedimos a sua
ajuda, em nome de Deus e do monge Beoc.
– Estou e estarei sempre a serviço de Deus e dos homens santos, senhora,
os monges sabem disso – respondeu o barqueiro, surpreso e ao mesmo tempo
extremamente envaidecido por ter sido lembrado pelo clérigo e por estar
sendo chamado a ajudá-los em nome de Deus.
– Então preste atenção ao que ele lhe pede. Você deve procurar uma forma
de enviar a mensagem aos escandinavos, dizendo-lhes a localização do
monstro marinho.
– Mas... para os escandinavos? – O barqueiro ficou sem entender e
temeroso.
– Sim! Essa não é uma hoste invasora, pelo que escutei, e se eles estão
atrás desse monstro, que o levem daqui, da terra do nosso bom Senhor. Os
monges sozinhos não conseguem se livrar desse mal, você entende?
– Entendo, senhora – respondeu o barqueiro com convicção, mas
internamente ele ainda estava confuso.
– Então vá! Faça esse serviço a Deus e Ele o recompensará em dobro! Ah,
e você não deve falar a mais ninguém sobre isso, está bem? Ninguém, exceto
os escandinavos, pode saber que o monstro marinho está lá no mosteiro,
atormentando-nos. Não queremos que aquela casa de Deus vire um antro de
curiosos e, principalmente, tenho medo do que aquele monstro poderia fazer
aos os cristãos que ousarem chegar perto dele.
– Sim, senhora. O segredo do mosteiro estará a salvo comigo. Diga ao
monge Beoc que ele tem a minha palavra. Darei um jeito de avisar os pagãos
e mais ninguém ficará sabendo.
– Está bem, meu filho, vá com Deus, então, e o padre Beoc lhe agradece.
– Por favor, senhora, só peço que diga ao monge para nunca se esquecer
de mim em suas orações. Sei que já contribuo com doações para o mosteiro,
mas é importante que ele diga a Deus o quanto eu ajudo as obras do Senhor.
– Pode deixar, eu falarei... – respondeu Ana, sem nenhum peso na
consciência.
Capítulo 50
Ivar ainda não acreditava na sorte que chegara até ele, e estava relutando
para crer. Depois de tantos dias sem nenhuma pista, navegando a esmo, já
cogitava a ideia de desistir realmente e voltar derrotado e com a estima no
chão para o acampamento. Já havia comandado sua frota para o oeste
novamente e depois para o leste. Todos os seus companheiros, em especial
Seawulf, diziam-no que ele tinha enlouquecido por caçar um tesouro já
perdido.
– Ivar, caia na real! – clamou Seawulf da última vez que implorara para
que eles não seguissem mais naquela caçada infrutífera. – Esse monstro, ou o
que quer que aquela merda seja, já deu o fora daqui há muito tempo. Nem
golfinhos são mais vistos por essa região. Vamos embora! Pelas barbas de
Odin, vamos logo para o acampamento.
– Voltar como um derrotado? É isso que você quer para mim, irmão? –
vociferou Ivar na ocasião, dando um murro na madeira do barco. – Voltar
novamente de uma empreitada inútil, na qual, sob minhas ordens, só cagadas
foram feitas?
– Derrotado? – Indignou-se Seawulf. – Acaso está louco? Você voltou de
suas incursões com os noruegueses sendo aclamado como o “Berserker”. Não
lhe falo essas coisas porque não sou afeminado e não elogio homem, e
também para que você não se torne ainda mais arrogante do que já é. Mas
quisera eu ter a sua fama. E não falo apenas de sua fama como sobrinho do
grande jarl Ragnar. Não, você conseguiu, enfim, suplantá-lo, e hoje sua
glória não se apóia mais nele. E nem ao menos você sairá derrotado dessa
incursão, já que todos dirão o quão corajoso o Berserker foi ao se atirar no
mar para caçar um terrível monstro marinho que dizimou quase
completamente toda uma frota norueguesa. Assim como ninguém diz que
Thor é um fracassado por sempre tentar caçar a serpente marinha
Jormungand e não obter sucesso. Seus feitos, irmão, são comparáveis aos do
deus, filho de Odin. E todos darão crédito a isso.
Porém, mesmo com as palavras de incentivo do amigo, Ivar se sentia
derrotado e mais uma vez os planos que fizera para o seu futuro iam por água
abaixo.
Entretanto, quando estava prestes a desistir, novamente as fiandeiras
mexeram suas mãos e enterraram a agulha de osso na trama.
Eis que milagrosamente chega a seus ouvidos um boato sobre a suposta
localização do monstro marinho que eles tanto perseguiram. Ivar, de
imediato, desacreditou na história, afinal de contas se algo assim fosse
verdade, todos estariam comentando também. Porém, como ele não tinha
mais nenhuma outra pista e como quase tudo estava perdido naquela viagem,
resolveu arriscar. Seria sua última tentativa, e ele já havia até mesmo
comunicado à sua frota de que se dessa vez também não conseguissem achar
a criatura, iriam finalmente “jogar os panos” e voltar para o acampamento.
– Mas também lhe digo uma coisa, irmão – Ivar falou para Seawulf –, se
estiverem me enganando, ah, esses cristãos nojentos verão só uma coisa. A
localização do mosteiro que nos indicaram é bem longe, teremos que
contornar novamente essa costa sul da Britânia. Não aguento mais olhar os
mesmos miseráveis portos e as mesmas miseráveis pessoas, e subir
Cornwalum, navegando para o leste. Se me fizerem andar isso tudo a troco de
nada, ao menos um saque iremos fazer!
– Claro! Pelo menos não sairemos perdendo tanto – confirmou Seawulf.
– Então rumemos para lá. Não quero mais perder tempo!
– Bom dia, dona Ana! – Beoc exibia seu sorriso bondoso e jovial.
– Bom dia, com a graça de Deus, monge – respondeu ela, abaixando a
cabeça e unindo as mãos em oração.
– Amém. Que Deus lhe acompanhe sempre. Tem uma hora? Preciso falar
com a senhora sobre um assunto.
– Sim, monge. Todo meu tempo é dedicado a servir a Cristo, ao mosteiro e
a vocês, homens de Deus. Pode falar.
– Liban me contou que hoje é seu aniversário. Também me disse que não
pode mais se demorar por muito tempo aqui no mosteiro. – Ana percebeu,
extremamente incomodada e indignada, o quanto Beoc sofria por dizer isso. –
Por isso, pensei em ao menos alegrá-la neste dia e, como bons anfitriões e
cristãos que somos, quero lhe fazer uma surpresa para que ela não se esqueça
de nossa hospitalidade quando, enfim, for embora.
– Para que ela não se esqueça de nossa hospitalidade? – Cada vez mais
Ana tinha certeza de que o monge enlouquecera. – Concordo com o senhor
de que esta... criatura... precisa voltar para o lugar de onde veio, afinal, um
mosteiro não é o lugar para uma... para ela! Mas o que sugere, monge?
– Queria pedir-lhe, encarecidamente, para que preparasse para o almoço
alguma comida especial. Sei que estamos no inverno e não há muitas
provisões, mas como a senhora foi ao vilarejo vizinho há poucos dias para
buscar mantimentos, acredito que possa ter algo de diferente para o almoço
de hoje. Digo isso porque, como a senhora sabe, Liban não come carne de
nenhum tipo, portanto gostaria que a senhora preparasse algo bom para nós.
– Claro, como quiser, senhor – respondeu Ana, mordendo os lábios
murchos e cerrando os dentes amarelados.
“Vai sonhando, monge. Nem se eu fosse obrigada iria fazer um banquete
comemorativo para uma serva do demônio”, pensou ela.
E quando chegou a hora do almoço, foi servido o de sempre: muita carne
de carneiro, batatas que ela propositalmente esquecera de salgar e temperar e
também um frango assado, só que dessa vez nem o queijo de cabra tinha. Ana
desculpou-se com Beoc, pedindo-lhe humildemente para que ele a perdoasse
e dizendo-lhe que por causa de seus muitos anos, sua cabeça e sua memória
estavam falhando. Beoc, desgostoso e aborrecido pela impossibilidade de
fazer a surpresa que queria para Liban, disse-lhe que não havia problema e
Ana saiu de lá com um sorriso vitorioso nos lábios, que ela mal conseguia
esconder.
Liban então teve uma ideia. Pediu para que naquele dia, eles fizessem o
banquete à beira-mar, como um piquenique. O monge aceitou com disposição
ao ver a alegria que Liban exibia com a ideia que tivera. E assim, ele a levou
de carriola na estrada da colina que dava para o mar. Chegando lá, Beoc
pegou a trouxa de tecido em que eles levavam a comida e a estendeu ao chão,
antes das pedras da praia, colocando as panelas com a comida sobre a toalha
e as tigelas. Liban pediu para que ao invés de comerem naquele momento,
que ele a pegasse no colo e a levasse ao mar.
– Quer nadar agora, Liban?
– Sim! – falou ela, animada. – É meu aniversário e além de não conseguir
ficar fora do mar, porque cada vez mais ele me chama para ele, quero
comemorar de uma forma diferente hoje. Por favor, me leve até lá.
Obedecendo ao pedido dela, Beoc a pegou no colo e a levou até a água.
Sempre que ele a pegava no colo era uma verdadeira tortura para o monge,
que sentia seu corpo estremecer em todas as vezes que tocava Liban ou era
tocado por ela. E mais tortura ainda quando ele ficava longe dela. Já fazia
dias que nem ao menos conseguia dormir direito pensando na sereia, e suas
olheiras cada vez se tornavam mais profundas. Até quando dormia, a sereia
também sempre o visitava em seus sonhos, onde a mente de Beoc criava um
mundo em que ele e ela viviam juntos, e assim o monge acordava suando e
ainda se lembrando da imagem que ficara de Liban em seus braços e em seus
lábios.
Beoc vivia uma profunda contradição. Ao mesmo tempo em que desejava,
intensamente, que Liban nunca mais fosse embora de lá, também desejava
que ela imediatamente desaparecesse de sua vida. Queria sua tranquilidade
mental de volta. Sua vida regrada a servir a Deus. E exatamente por causa da
tortura mental que Liban causava nele, que ele também torturava sua própria
carne toda noite, quando desamarrava o cilício de sua coxa e chicoteava suas
próprias costas, já castigadas, até sentir seu sangue derramar, pedindo perdão
a Cristo por seus pensamentos impuros.
Depositando-a na água, ele imediatamente se virou de costas, porque sabia
que a sereia iria tirar a túnica de lã marrom para nadar desnuda. Só que
quando Liban mergulhou, ela gritou-lhe com entusiasmo lá da água:
– Pronto, agora é sua vez, Beoc.
O monge não entendeu. Virou-se devagar, com os olhos semi-cerrados
porque não sabia se Liban já estava coberta pelas águas escuras do mar que
lhe tapavam sua nudez.
– Venha! Agora é sua vez de entrar na água! – Liban repetiu.
– Hã?
– Hoje é meu aniversário! Completo vinte primaveras!
– Vinte anos de nosso bom Senhor – repetiu ele, corrigindo-a.
– Sim, que seja! Mas venha, estou esperando! – Liban sorria efusivamente.
– Como assim... ir? Acaso acha que vou nadar também?
– Sim, este é meu presente, oras! Pretendo, daqui dois ou três dias, me
despedir desse local que me acolheu tão bem e de você, que foi maravilhoso
comigo. Na verdade, eu já deveria ir embora, mas quis passar o aniversário
aqui com você. Por favor, não me faça essa desfeita!
– Mas como assim, Liban? Quer que eu entre no mar? – Beoc estava
chocado.
– Quero!
– Impossível!
– Ora, por quê? Acaso monges não nadam?
– Certamente que não! – exclamou Beoc, arregalando os olhos.
– Hum... nem se ao menos eu lhe pedir? Por favor... Gostaria tanto de
guardar esta lembrança deste dia. Já que, com certeza, jamais me esquecerei
de você, Beoc.
O monge prendeu a respiração e na mesma hora sentiu novamente seu
corpo inteiro responder. O coração se acelerou a quase sair de sua boca.
– Venha... por favor! – pediu novamente Liban, de um jeito doce.
E Beoc não pôde resistir. Na verdade, ele já se dera conta de que não era
mais capaz de negar nada à sereia. Sua vida, infelizmente, estava nas mãos
dela.
– Tudo bem, mas... não sei nadar direito.
– Não há problema! Veja como quase não há ondas aqui, tampouco
correnteza. Estamos em um banco de areia, e com certeza lhe dará pé. Em
todo caso, estou aqui também e jamais permitiria que você se afogasse.
Beoc engoliu em seco e começou a avançar. Quando colocou os pés na
água, deu um pulo.
– Está gelada por demais! Meu Deus, como aguenta?
– Não seja frouxo, logo você se acostuma – disse Liban aos risos. –
Estamos no inverno, você queria o quê? Mas é só se movimentar que você se
esquenta.
E quando Beoc entrou no mar, praticamente caindo no banco de areia,
Liban gargalhou do jeito desengonçado do monge.
Aos poucos Beoc foi se soltando e também começou a rir. Jamais havia
entrado na água desse jeito e não imaginava como aquela sensação era
diferente, sentindo seu corpo suspenso pela água. Liban, além de começar a
nadar à sua volta, alegre, começou também a jogar-lhe água, brincando como
se fosse uma criança. Mas como Beoc não estava acostumado, atrapalhou-se
todo quando água caiu em seus olhos e ele, apertando-os com os dedos, ainda
tropeçou e começou a se debater no mar como se estivesse quase se
afogando. A sereia correu para acudi-lo, mas ainda dando risada de seu jeito
atrapalhado. Ela pegou em seus ombros e pediu para que ele se acalmasse,
porque ela estava ali.
Abrindo os olhos, ao sentir seu toque, Beoc se deparou com o rosto de
Liban bem próximo ao seu.
“Nossa, como ela é linda”, pensou ele. “Senhor, com certeza é sua obra
mais divina... E consegue ficar ainda mais bela e radiante com a água do mar
em sua pele.”
Seu corpo tremia quase convulsivamente, mas não por causa do frio, e sim
por causa do desejo latente que sentia por Liban. Além do desejo que lhe
deixava em brasas, Beoc estava apaixonado por ela, perdidamente
apaixonado, como se não conseguisse mais viver sem a sereia.
Olhando fixamente em seus olhos acinzentados, ele não conseguia se
mover. As batidas fortes de seu coração podiam ser ouvidas a quilômetros.
Liban sorria-lhe afetuosamente, mas quando percebeu o olhar apaixonado de
Beoc, retirou as suas mãos dos ombros dele.
– Beoc, preciso lhe dizer uma coisa... – murmurou ela, quase
inaudivelmente, e abaixou a cabeça.
O monge não se mexeu, pois ainda estava atordoado pela visão dela. E
quando Liban olhou-o novamente, seus olhos se encontraram com os dele e
por um momento Liban sentiu-se impelida a beijá-lo.
Aproximando-se ainda mais do monge, que permanecia com o corpo
totalmente retesado não fosse sua tremedeira, Liban ficou agora a poucos
centímetros de seu rosto e Beoc sentiu o perfume inebriante de maresia que
ela exalava. Aquilo era mais do que uma tortura para ele, era a pior penitência
que ele já havia experimentado. Olhando para sua boca, ele lembrou-se dos
tantos sonhos que tivera com ela, quando os dois se entregavam à paixão e
sorviam, enlouquecidamente, os lábios um do outro. Ao mesmo tempo em
que pensou isso, imagens de Jesus na cruz chorando sangue por causa de sua
fraqueza também lhe povoaram a mente. E então, após mais um minuto de
tortura, Liban enfim se afastou, e, virando-se de costas muito sem jeito, disse-
lhe que já era hora deles saírem da água, senão ele e a comida iriam congelar.
A sereia gostava do monge, sentia-lhe muita gratidão por tudo o que ele
havia feito, mas seu coração estava longe dali. Quando pensou na
possibilidade de tentar amar Beoc, só conseguiu enxergar os selvagens olhos
azuis e a sobrancelha falhada do escandinavo.
Ao longe, dona Ana observou tudo o que havia acontecido naquela praia
sem nem conseguir acreditar. Aquilo já tinha ido longe demais.
– Essa miserável vai pagar! Com a graça de Deus, ela vai pagar! – com os
punhos cerrados, Ana gritou internamente.
Capítulo 51
Beoc sentia-se levemente febril. Não sabia se havia adoecido por conta da
água gelada do mar, na qual Liban o fizera entrar dias atrás, ou se o motivo
por sentir-se assim era outro: ou uma febre mandada por Deus para expiar
seus pecados e pensamentos impuros, ou então uma febre já avisando da dor
da saudade que sentiria.
Agora que Liban anunciava realmente a sua despedida, Beoc quase não
conseguia viver. Raramente lembrava-se de comer e já havia negligenciado
até suas obrigações religiosas por quase não conseguir mais se concentrar em
suas rezas. Por isso, à noite, tentava se purificar, punindo-o com o cilício.
Mas novamente no outro dia somente Liban ocupava seus pensamentos. Ele
não sabia como seria quando ela, de fato, fosse embora, como ele reagiria,
mas já se desesperava somente em pensar nisso. Dessa forma, ao mesmo
tempo, ele sabia que a melhor coisa seria ela realmente se afastar dele e do
mosteiro.
A sereia lhe disse que já estava pronta para ir embora e, na primeira hora
do próximo dia, ela deixaria o mosteiro para viver novamente em seu amado
mar. O monge tentou dissuadi-la a permanecer ali pelo menos até o inverno
acabar e o oceano se esquentar, mas Liban lhe disse, aos risos, que uma sereia
não poderia ter medo da água gelada.
Tanta coisa havia se passado que Liban quase não pensara em Ivar e agora
já não sabia se realmente iria atrás dele. Com Beoc, ela havia aprendido que
uma pessoa, ou, no caso, uma sereia, poderia viver bem sem uma paixão. Ela
via o quanto Beoc era feliz ali, com sua inabalável fé e com seus afazeres em
torno daquilo que ele amava, acreditava e devotava. E se pegou pensando em
pedir à Deusa que realmente a transformasse numa sereia igual às outras, para
que ela pudesse fazer de sua vida uma vida de servidão ao mar. Liban queria
afogar no peito o amor que sentia por Ivar e substituí-lo por uma vida regrada
a ajudar os animais marinhos e o equilíbrio dos oceanos. Ela sabia que
poderia ser feliz assim. Teria apenas que suplantar de vez a paixão que sentia
pelo escandinavo, cujo paradeiro ela nem ao menos sabia.
Navegando a toda a velocidade que as embarcações permitiam, a pequena
frota de Ivar seguiu direto, sem mais parar em porto algum. Seria agora ou
nunca, pensavam Ivar e os outros companheiros. Se a dica que receberam não
desse em nada, iriam saquear o mosteiro e levar para o acampamento ao
menos ouro e moedas. Ivar até mesmo já dera essa campanha por derrotada,
mas iria arriscar essa última vez ao menos para dizer que havia tentado tudo,
apostado todas as fichas.
Cornwalum já havia ficado para trás há quilômetros e Ivar sabia que estava
finalmente chegando ao local indicado. Tinham lhe dado todas as
características do mosteiro e da praia onde se localizava, em cima de uma
colina.
Nessa reta final, o viking não permitiu nem ao menos que seus
companheiros dormissem ou aportassem à noite. Eles teriam que se revezar
nos remos e ele próprio ficou acordado e sem sono.
O nascer daquele novo dia já anunciava sua tímida luz em volta da
cerração, mostrando que mais uma vez aquele seria um dia nublado. Ao
menos a temperatura não estava castigando-os, pois naquele começo de
inverno, o frio ainda não havia chegado de vez.
Quase não conseguira dormir. Liban acordou ainda de noite e ficou
olhando o dia clarear – porém,não muito, já que as muitas nuvens tapavam o
sol que havia nascido –, mirando o teto do quarto, as paredes de pedra e
pensando em sua vida. Definitivamente não sentiria saudade daquele quarto
escuro e lúgubre, e sempre que olhava para a cruz naquela parede, se
perguntava como as pessoas poderiam sentir-se bem com a imagem de
alguém ensanguentado, sofrendo e com pregos enfiados nas mãos e nos pés,
sendo que esse alguém seria exatamente a figura sagrada para eles. E quando
se lembrava de Beoc lhe dizendo que a imagem de Cristo na cruz servia para
todos verem o quanto ele havia sofrido ao morrer por todos nós e também
para mostrar que através do sofrimento se encontrava Deus. Liban não
conseguia ver sentido naquilo. Não conseguia aceitar a ideia de um Deus
grandioso que criava vidas e seres para gostar de vê-los sofrendo, como um
sádico. Mas a Deusa certa vez lhe disse que os deuses podem ser muitos ou
apenas um, tudo dependeria da fé de cada pessoa. Liban, que antes apenas se
revoltava com religiosos cristãos, que além de julgarem sua mãe, viviam
acumulando bens e vendendo penitências, agora havia encontrado uma das
melhores pessoas que já conhecera, o bondoso e religioso Beoc. E então ela
compreendeu que realmente as pessoas poderiam tirar o melhor ou o pior de
suas religiões. Beoc escolhera o amor ao próximo e ela lhe tinha muito
carinho por tudo.
Quando o monge viesse levar-lhe o desjejum, Liban já decidira que queria
uma despedida breve, senão tinha certeza que sofreria em deixá-lo. Estava
muito afeiçoada a ele e sabia também que ele já gostava dela, portanto não
queria igualmente vê-lo sofrendo por sua partida. Ela pediria que ele a
levasse até a praia, e então se atiraria ao mar, dizendo-lhe apenas “obrigada”
e “adeus”.
Com o dia já raiando, faltava pouco para isso.
Levando-a no colo para fora do mosteiro, Ivar não sabia o que fazer. Seu
berro para que todos os seus companheiros saíssem de sua frente assustaram
tanto monges quanto dinamarqueses. Ninguém lhe perguntou nada e o olhar
de ódio que ele deu a Seawulf, que havia atirado a flecha no peito de Liban,
dizia que se Liban viesse a morrer por causa daquela flechada, a vida de
Seawulf também iria acabar.
Ivar aninhou Liban em seus braços como se pudesse protegê-la do mundo,
mas, desesperado, ele sabia que ela estava muito mal. Depositando-a com
delicadeza no chão de pedra e grama da entrada do mosteiro, Ivar olhou o
ferimento. A flecha entrara muitos centímetros no peito de Liban, e ele sabia
que se arriscasse tirá-la, Liban teria uma forte e mortal hemorragia.
– Ivar, dê-me sua mão – pediu Liban. – Preciso contar-lhe... preciso
contar-lhe tudo o que me aconteceu desde que combinamos fugir. Você se
lembra?
– Mas é claro, meu amor... – respondeu Ivar, aproximando sua testa da
dela e beijando seus lábios. – Aquele dia ficou gravado em mim e nunca mais
me abandonou. Sempre revivia em meus pensamentos esse seu lindo rosto,
todos os momentos que passamos juntos e os planos que havíamos feito.
– Então, por favor, deixe-me contar.
A sereia então passou a contar de forma breve tudo o que havia
acontecido, como havia ficado presa na gruta, como Ulisses havia dado sua
vida por ela e, consequentemente, como ela havia virado uma sereia. E por
fim, contou também que nadara até ali, a Britânia, somente para vê-lo.
Todos os outros dinamarqueses também haviam ido para fora do mosteiro
e fizeram uma roda grande em volta de Ivar e Liban. Os monges continuaram
acocorados embaixo do altar, protegendo seus objetos sagrados e valiosos,
mas não rezavam mais. Além do pavor que ainda existia neles, estavam
também aparvalhados com o que havia acontecido. Beoc, diferentemente
deles, foi correndo para fora do mosteiro, pedindo passagem com o braço no
meio dos dinamarqueses, sem nenhum medo, sem nem se importar mais com
eles. Ele só queria saber de Liban.
Quando irrompeu a porta e a viu no chão, junto com Ivar, teve certeza de
que aquela flechada havia sido mortal. Desabando com os joelhos no chão,
Beoc juntou as mãos em orações e começou a rezar fervorosamente em
silêncio. Ele tinha fé de que o seu Deus iria curá-la, afinal, mesmo sem
entender o que diziam e o que ela fazia ali com os pagãos, Beoc tinha a
certeza de que Liban só poderia ser um anjo.
– Liban, eu jamais a abandonaria. Jamais! – Os olhos azuis de Ivar
perscrutavam o rosto de Liban com adoração. – Eu achava que você estava
morta! Por isso joguei meu colar nas ondas, para que ele ficasse ali, naquele
mar que você tanto amava. E agora você me encontrou, meu amor, me
encontrou. E poderemos realizar tudo aquilo que havíamos planejado.
– Ivar, infelizmente não tem mais jeito... – Liban disse com muita
dificuldade. Seu peito ardia e o ar lhe faltava. – Ao menos consegui o que eu
queria, que era ver seu rosto uma última vez.
– Psiuuu, não fale, meu amor, não fale. Você vai se curar, vai se salvar. –
O peito de Ivar também ardia, mas a dor era diferente da dor sentida por
Liban.
– Não... sei que dessa vez não vou me curar. Sinto que estou indo embora.
Ao menos, por favor, peço que coloque meu corpo no mar quando eu me for.
É só o que peço. Meu corpo deve permanecer lá, pois é ao mar que eu
pertenço. E também não permita que façam mal a esses monges. Tenho muito
carinho por esse local, que me acolheu e me ajudou.
– Liban, pare de falar isso! Eu lhe peço, por todos os deuses! Irei levá-la
até o acampamento, lá conseguirão salvá-la.
– Jamais achei que eu falaria isso – Liban riu, mas isso lhe provocou uma
tosse dolorida –, mas me apaixonei por um dinamarquês... me apaixonei por
um inimigo...
Levando novamente a mão ao rosto de Ivar, Liban sentiu uma forte
pontada no coração, como se outra flechada a tivesse atingido. Mas não era
outra flecha, ela sabia que era apenas a contundente mão da morte a levando
consigo. E apesar de um grande guerreiro, Ivar não podia lutar e vencer esse
oponente, apesar de sua antiga alcunha ser “Mão da morte”.
Novamente a falta de ar chegou e Liban, por último, achou graça
internamente do fato de que mesmo sereia, ela estava presa a terra, pois iria
morrer sem ar em terra firme.
Tentando instintivamente respirar, o ar não chegou a seu pulmão perfurado
e Liban... morreu.
O urro de Ivar pôde ser ouvido em quilômetros. Chorando novamente, sem
se importar com os companheiros vikings a seu lado, Ivar abraçou Liban e a
balançou.
– Não, por favor! Alguém faça alguma coisa, por favor! – ele pedia. –
Não, Liban, não vou perdê-la de novo, não vou!
– Ivar... – alguém tocou em seu braço.
– Saia daqui! – ele rosnou, mostrando os dentes, mas sem nem mesmo
prestar atenção no rosto da pessoa.
Beoc, ao ver que Liban realmente estava morta, caíra com o rosto no chão,
também chorando.
– Liban, não me deixe novamente... eu... eu te amo... – foram as últimas
palavras que Ivar conseguiu dizer a ela.
Então, pegando-a novamente no colo, Ivar a levou até o pequeno barco de
Beoc, amarrado no tronco de madeira que ficava à beira-mar. Os
companheiros vikings o seguiram, mas ele ordenou que todos subissem nos
drakkars e voltassem imediatamente para o acampamento, onde deveriam
esperar até ele voltar. E também ordenou que aquele mosteiro não fosse mais
atacado.
O escandinavo colocou o corpo de Liban deitado no barco, desamarrou a
embarcação, pegou os remos e a empurrou para a água. Em seguida, subiu no
barco e começou a remar em sentido contrário ao que sua frota ia nos
drakkars.
“Seu último pedido, ao menos, lhe considerei, minha deusa. Seu corpo
ficará no mar e desse dia em diante não desejarei mais morrer em batalha,
pois não quero ir para Valhala e ficar sem você. Não, que os deuses me
concedam a glória de morrer um dia afogado, para me juntar a você no
palácio de Aegir.”
Remou por cerca de uma hora, a distância suficiente para que ele saísse do
território do mosteiro e chegasse até próximo de uma praia distante e
selvagem, sem habitação por perto. Ivar jamais deixaria que o corpo de Liban
ficasse em águas cristãs. E durante todo esse tempo, ele foi rememorando
tudo o que Liban havia lhe contado. Ele sabia que jamais iria conseguir
superar outra vez a morte da única mulher que amou. Ele sabia que, mesmo
vivo, sua vida havia acabado.
E, então, pegando-a novamente no colo, Ivar olhou-a uma última vez. A
beleza de Liban era fascinante ainda mais como sereia.
Colocando-a com delicadeza no mar, esperou para ver seu lindo corpo de
sereia afundar nas águas escuras e geladas do oceano, deixando apenas um
rastro de fios de cabelo prateados que ainda brilhavam na negritude daquelas
águas.
Abaixando a cabeça e sentindo toda a dor cortante em seu coração, pegou
os remos novamente e começou a remar.
Braços a puseram na escuridão daquelas águas, mas foram outros braços
que a pegaram lá embaixo quando ela afundou.
“Eu lhe disse que sempre lhe achava, não é verdade?”, ela sorriu, olhando
para Liban morta. “Que meu coração sempre a encontraria, não importava
onde você se escondesse...”
Emergindo com Liban em seus braços, Amairani a carregou até a praia.
Colocando-a na areia grossa, ela arrumou os cabelos prateados de Liban ao
lado do rosto. Depois, puxou com força a flecha, que quando saiu acabou
fazendo um enorme buraco no peito dela. Então, juntando todas as suas
forças e a raiva há muito acumulada, ela berrou para o mar, exigindo que a
Deusa aparecesse. Como ela não apareceu, Amairani começou a chorar e a
implorar por ela, dizendo que havia tomado uma decisão importante. A
mesma decisão que um dia o golfinho Ulisses tomara. Amairani queria doar a
sua vida para Liban...
Emocionada pelo pedido de Amairani e pelo amor profundo que a sereia
tinha por Liban, a Deusa apareceu e acolheu a filha com seus resplandecentes
braços. A filha que nunca antes havia se sentido realmente filha.
– Por favor, mãe – pediu Amairani, soluçando naqueles braços vestidos
com asondas da Deusa –, é só o que lhe peço...
“Você é e sempre será a minha filha, Amairani”, a Deusa não lhe falou
com palavras, mas de dentro de sua mente. “A minha amada filha. Mas o que
me pede será respondido da mesma forma que respondi certa vez para o
golfinho: isso tem que partir mais de você do que de mim, tem que nascer de
sua alma, do verdadeiro anseio de seu coração.”
Limpando o rosto, Amairani fechou os olhos e pousou suas mãos sobre o
corpo de Liban. Ela sabia o que fazer e ao realizar o pedido para que sua vida
e sua saúde fossem doadas para Liban, ela sentiu que o seu desejo havia sido
aceito.
Abrindo os olhos viu, feliz e tranquila, que seus braços estavam se
tornando transparentes e que o imenso ferimento no peito de Liban estava se
fechando. Então, debruçando-se sobre ela, Amairani a beijou nos lábios na
hora em que todo o seu corpo sumia, virando apenas espuma do mar.
Liban acordou nessa hora, sentindo ainda a última lágrima de Amairani
sobre o seu rosto. Sem entender, sentou-se na areia e viu, aturdida, que suas
pernas haviam retornado a seu corpo.
A Deusa estava a seu lado e contou tudo o que havia acontecido. Liban
chorou a partida de Amairani, mas a Deusa lhe disse que a sereia havia ido
em paz e com alegria.
– Ela finalmente encontrou a felicidade, Liban. A felicidade dela não era
viver trezentos anos como sereia. Isso, na verdade, e infelizmente, era a sua
tortura. A felicidade dela era você, era se doar por você. E foi o que ela
finalmente conseguiu – a Deusa falou. – E agora ela vive não apenas nas
espumas do mar, como também em um pedaço de você, já que agora você
tem pernas novamente devido à parte humana de Amairani. Agora é a sua vez
de ser feliz, minha filha. Lembre-se que mesmo que você não tenha mais uma
cauda, o mar também é sua casa e você é, e sempre será, uma sereia...
– Obrigada, mãe – respondeu Liban, ainda emocionada. E colocando suas
mãos na água, disse: – E obrigada, Amairani, por tudo...
– Agora vá! Incrivelmente, sua felicidade está na água, remando para o
leste e não tão longe daqui. Use agora suas pernas humanas para nadar, mas
seu coração de sereia para encontrá-lo.
As histórias sobre Liban não ficaram restritas aos limites do mosteiro, mas
ganhavam cada vez mais territórios. No entanto, a história foi modificada
pelos cristãos e no final ela acabou sendo contada com a roupagem que eles
quiseram dar.
Beoc não quis mais permanecer naquele mosteiro de St. Decúmano, pois a
lembrança de Liban era forte e dolorida demais. E assim, ele rumou para a
Irlanda, com o intuito de não apenas pregar a palavra cristã às aldeias ainda
pagãs, como também levar a história de Liban adiante.
Assim, o relato sobre Liban acabou sendo mencionado e eternizado nos
Anais do Reino da Irlanda como a Santa Murgen de Inver Ollarba, cuja
história conta a vida da menina chamada Liban, que havia se tornado sereia
depois de presa numa gruta com seu cachorro – que acabou virando uma
lontra; em outros relatos, dizem que ele virou um leão-marinho. E após ser
resgatada pelo monge Beoc, filho de Inli, e levada até um mosteiro, a sereia
realizou milagres e ao invés de querer ser solta no mar e viver por trezentos
anos, preferiu viver no mosteiro e ser batizada como uma cristã para, enfim,
ganhar uma alma e poder ir para o céu quando morresse.
A história acabou indo mais além e Liban, agora retratada como Santa
Murgen, tinha que se enquadrar ao menos um pouco na visão cristã e então
ela começou a ser vista como uma virgem. A virgem nascida do mar.
Durante muito tempo, a igreja de Beoc ainda foi considerada um local
sagrado e lugar de muitos milagres atribuídos à Santa Murgen.
E após muitos anos, milhares de igrejas, capelas e abadias da Inglaterra
começaram a retratar a figura sagrada da virgem Santa Murgen, a santa que
era uma sereia. Há figuras de sereias na Igreja de St. Peter, em Lincolnshire;
na Igreja de Todos os Santos, em Norfolk; na Igreja Cartmel, de Lancashire;
na Igreja de St. George, em Leicestershire; na Igreja de St. Nicholas, em
Kent; na Igreja de Saint Senara, da Cornualha; na Igreja de St. Laurence, em
Shropshire, e na abadia de Sherbone, em Dorset. E por incrível que pareça, há
figuras de sereias em toda a Europa. Encontramos sereias nas igrejas da
França, Itália, Escócia, Espanha e Portugal, onde, curiosamente, na cidade de
Elvas, há a figura de duas sereias carregando uma cruz, ou seja, o símbolo
máximo da igreja cristã, em um capitel da Igreja de Nossa Senhora da
Assunção. Como também há a figura de uma sereia levantando a pia batismal
da Igreja Matriz de Póvoa, de Varzim, na cidade de Vila do Conde. E uma
das igrejas mais antigas da Irlanda possui uma magnífica figura de uma sereia
em seu altar, na qual ela se exibe carregando um pente e um espelho.
Acredito que depois de muito tempo, a Igreja Católica se deu conta de que
uma figura feminina, nua e relacionada a cultos e crenças antigas e pagãs, ou
seja, uma sereia, estava inserida no rol de suas santas e tratou de arrancá-la
imediatamente. Porém, mesmo a Santa Murgen não sendo reconhecida como
uma santa canonizada pela Igreja Católica, ela está mais do que presente na
história e no seio da religião cristã, pois nenhuma outra figura lendária e pagã
é encontrada em locais cristãos, em igrejas, mosteiros, capelas ou abadias.
Apenas a figura da sereia. E diferente das gárgulas que estão presentes nas
paredes do lado de fora e nos telhados de muitas igrejas medievais, para
indicar que o demônio nunca dormia e estava à espreita, exigindo a vigilância
contínua das pessoas e a vida regrada aos preceitos e dogmas religiosos, essas
figuras das sereias não estão do lado de fora, mas sim, dentro. Ou seja, dentro
da casa de Deus. E o mais incrível ainda é que essas figuras estão inseridas
nos locais sagrados. As sereias estão nas cadeiras, nos pilares e até,
extraordinariamente, nos altares.
Para mim, o mais curioso dessa história não é apenas ver a representação
de sereias em lugares antigos, já que as sereias são os seres místicos mais
antigos de todos – é o único ser lendário que está presente em pinturas
rupestres de milhares de anos; mostrando, talvez, que as sereias sempre
estiveram com os humanos. Não, o mais curioso não é, de fato, isso. O que
me fascina, na história de Liban, é ver como essa figura mística, lendária e
pagã pode estar inserida numa religião que lutou tanto exatamente contra
isso.
Outro fato inusitado, e por que não dizer fantástico, é ver ao lado dessas
figuras femininas sagradas do cristianismo, ao lado das virginais e
canonizadas santas, cobertas pudicamente com seus muitos panos que lhes
escondem não só o corpo como os cabelos, eis que surgem as figuras das
sereias dentro das igrejas, com seus seios desnudos e suas cabeleiras soltas e
descobertas, como que para talvez mostrar – para quem ainda consegue ver –
que o poder do feminino ainda está lá, mesmo que subjugado por anos de
patriarcado.
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