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I – Negação

A primeira coisa que vem a minha mente é a luz da lua refletindo sobre o mar de um barco... Um vilarejo a
distância e um nevoeiro se aproximando. Quando eu encaro aquela onda de nevoa, o sentimento de
incerteza e apreensão de algo ruim começam a devorar toda uma paz duradoura que parecia ser infinita
naquele local, por isso largo meu equipamento de pesca e começo a remar rapidamente para a praia sempre
gelada do vilarejo em busca do conforto da minha esposa e de minha filha, pois sei que o guardião irá
conseguir lidar com seja lá o que for que venha daquele nevoeiro...

II – Raiva
Mais um lapso. A nevoa chegou primeiro transformando o ambiente que era sempre frio em um inferno
congelante. Começo a correr com o coração batendo cada vez mais forte ao me aproximar do meu antigo lar,
pressentindo o pior por presenciar diversas casas ao redor em situações de horror, mas sem prestar atenção
nas silhuetas por perto daquilo que estava causando isso, apesar de me perguntar sem parar onde estava o
guardião, onde estava Akanor... Finalmente alcancei o meu destino, mas parecia ser tarde demais, tudo
estava derrubado e com rastros de destruição por toda a parte, então me esgueirei procurando alguma
esperança, mas só consegui acha-la sendo agarrada pelo desespero. Aquela bela mulher, pela qual me
apaixonei e que se tornou um dos meus motivos de viver, estava sendo segurada por uma figura verde
monstruosa... Era inacreditável, não conseguia conceber que o próprio guardião, o herói do vilarejo estava
espumando como uma besta e com olhos avermelhados, fazendo mal as pessoas a quem protegia e que
estava querendo matar a minha esperança. Eu precisava salvá-la e não sabia mais o que fazer, então meu
próprio instinto despertou e tentou agir baseado na minha emoção mais forte naquele momento, talvez isso
tenha sido minha falha, mas tudo começou a escurecer em minha mente...

III – Barganha
Um clarão intenso. Meus olhos se abrem observando o chão, que ficava vermelho a cada momento que meu
olhar permanecia, mas escuto um grito atrás de mim, então descido ignorar o chão e olhar para o que
realmente importava, minha esperança se esvaindo aos poucos. Quando me ergui, percebi que estava sendo
banhado pelo sangue dela, o maldito fez questão de fazer isso, começou a rir sem parar enquanto eu olhava
a expressão no rosto dela se perdendo e ficando vazia, meus olhos começaram a se encher de água, fazendo
o colar dela refletir mais na minha visão, então reparei no seu último movimento de apontar para o porto
próximo a nossa casa e eu reparei na garotinha vendo aquela situação desesperadora, chorando com o
mesmo sentimento. O monstro já tinha reparado e estava jogando o corpo de sua atual vítima para o lado
em busca de abater aquele alvo que estragava a sua diversão, mas eu não podia deixar aquilo acontecer e o
puxei na hora. Ele não foi afetado pelo puxão, mas parou na hora e se virou para mim, parecia impressionado
e feliz com aquilo, eu não parava de dizer bravatas, fazendo de tudo para distrair o inimigo e fazê-lo esquecer
da menina que fugia em direção ao cais para os barcos. A besta me encarava ainda impressionado, mas
então esboçou um largo sorriso pontiagudo que o guardião jamais teve, fechou os punhos e começou a me
socar vagarosamente, golpe por golpe, me dizendo que iria atrás dela assim que eu caísse... Eu não podia
cair, precisava aguentar e me levantar, então conforme ela sumia no nevoeiro até o cais, comecei a encarar a
lua cheia e contar as pancadas, 10...30...50 golpes que mesmo para um ex-guarda como eu, não sabia se
seria capaz de suportar, mas essa era a troca, o atacante já começava a se cansar de tanto golpear, mas para
mim era o suficiente ver o barco partindo, só assim eu finalmente pude partir também.

IV – Depressão
Paz, tormento e instabilidade. Agora minhas memórias começam a ficar mais claras, a viagem após minha
partida terminou, ironicamente em um barco sobre um rio com outros como eu. Como um pescador, era
responsável por alimentar o vilarejo e evitar a fome, acho que terei um julgamento decente... Não... ainda
sentia o vazio e a perdição, simplesmente não parecia certo deixar aquela garota sozinha e perdida no
mundo, o vazio parecia aumentar cada vez mais em meu peito. Mas mesmo navegando pelas águas do Rio
das Almas em direção ao purgatório no grande além, não era para o curso do rio mudar para mim, por que
está diferente? Uma centelha iluminada começou a saltar pelas águas alterando o meu curso e guiando
minha embarcação, comecei a achar que não era nem merecedor do julgamento de Pharasma, o fracasso
estava tomando completamente minha alma. Tudo começou a ficar confuso a partir daí, não sei como, mas
de alguma forma tinha ido parar em um salão festivo com diversos seres cantando e dançando e tudo aquilo
só me deixava mais afogado na frustração e tristeza. Havia a figura de uma dama, muito maior do que todos
ali, por alguma razão ela me lembrava de todas as pessoas que amei e que compartilhei minha felicidade,
porém na forma de algo inalcançável naquele momento, então fui levado para perto dela e então notei outro
ser próximo, parecendo de fato uma assombração mesmo no mundo dos mortos, estava lá Akanor. Fiquei
sem reação, não sabia se entraria em conflito novamente ou simplesmente fugiria, talvez minha sentença
seria a de ficar ao lado do monstro que me tirou tudo? Então notei que a expressão dele não era
monstruosa, mas sim de um sorriso parecido com sua época de herói da região, de sua época como guardião
dali, apesar de ser também um sorriso soturno. Ele murmurou algumas palavras para mim, mas eu não
entendia nada, então assentiu com a cabeça e fechou os olhos, percebi um afago em minha cabeça pela
dama, fazendo eu finalmente tentar olhar para sua face, era algo tão iluminado que tive de fechar os olhos.
Quando os abri novamente, não me encontrava mais lá.

V – Aceitação
Eu acordei em um corredor escuro, logo percebi as tumbas ao meu redor do cemitério dedicado a Ashva.
Percebi que a minha mão não era a minha mão, mas sim a daquele herói caído, mas apesar de sentir nojo de
daquilo que agora era eu, rapidamente me dei conta da garotinha perdida no meu barco de pesca. Eu não
podia abandoná-la e tinha de reencontrá-la para protegê-la, estranhamente algumas memórias de Akanor,
como algumas relações, aprendizados e conhecimentos, agora eram meus também, então usei isso para
tentar voltar para o meu antigo lar e ter uma noção de como achá-la. Vaguei por dias, sempre observando a
lua durante as noites, já que ela parecia me observar também, até que finalmente cheguei ao local do
desastre, tentei vasculhar o que pude, porém aparentemente eu era o único que havia restado daquele
massacre. Realizei diversas rotas de barco durante anos, mas sempre acabava em algum templo abandonado
ou cemitério antigo, me fazendo ficar frustrado de início, até finalmente perceber que havia me perdido
naquela segunda chance de vida que me foi dada e estava agindo de maneira errada. Portanto, retornei até
o vilarejo invernal e dei paz ao corpo da minha esposa, enviando seus restos mortais em uma pira de fogo
pelo mar até o seu espírito se juntar ao Rio das Almas. Após isso, finalmente decidi usar os meus novos
conhecimentos da maneira correta, investigando os rastros de forma mais estratégica, eu sabia que dessa
forma seria mais demorado de ver os resultados, algo no meu interior gritava que eu estava no caminho
glorioso da certeza e durante as noites a lua parecia de alguma forma confirmar isso. Durante as minhas
andanças, fui descobrindo mais sobre a divindade que me acolheu e me deu uma nova chance na vida e
sobre o quanto eu precisava agradecer por esse presente, oferecendo o mínimo para algo assim, a minha
devoção. Além disso, minha vida como um bom samaritano havia se iniciado, percebi que podia ajudar as
pessoas durante a minha busca e tirá-las do escuro, assim como Ashva fez comigo, por conta disso acabei me
deparando com duas figuras intrigantes para dizer o mínimo, Flare e Cedric. O que uma fada suspeita e um
homem arvore excêntrico faziam perdidos nos desertos? Eu tinha de guiá-los para a segurança, isso parecia
certo, inclusive certo até demais... Aquela voz interior parecia quase explodir em meu peito, como se tivesse
encontrado um mapa para o meu objetivo. Espero que eu esteja certo em seguir isso e que esses relatos de
memórias antigas que estou escrevendo aqui sirvam para eu nunca me esquecer das feridas e dos milagres
passados.

Que Ashva nos guie...

Zorghul.

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