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CARAVANA - YOSKHAS

O primeiro dia da travessia – quando menos é mais


Era o primeiro dia de viagem. Eu estava em uma pequena cidade fronteiriça ao deserto
do Saara, no norte da África. A minha intenção era fazer parte de uma caravana que
partiria rumo a um oásis onde residia um sábio dervixe. Nas rodas esotéricas ele era
conhecido como um feiticeiro muito respeitado face ao enorme conhecimento que
possuía a respeito de muitos segredos “sobre céu e a terra”. Eu ainda dava os primeiros
passos no Caminho e tinha ficado profundamente impressionado com as histórias que
ouvira. Essa caravana era a única maneira de chegar até o oásis e, por consequência, ao
sábio. Ela partia apenas duas vezes ao ano, em datas imprecisas, e a travessia durava
quarenta dias. Entrei em uma taberna que me indicaram como ponto de contato. Apesar
de me parecer um lugar estranho, que vendia não somente bebida e comida, mas todo
o tipo de coisas de que alguém precisaria para sobreviver durante muitos dias entre as
dunas e o sol, as pessoas, aparentemente, não se importaram com a minha presença.
Como todas as informações que eu tinha eram muito vagas, me dirigi ao homem que
atendia por detrás do balcão e perguntei sobre a caravana. Ele me olhou por alguns
instantes, como que duvidando da minha capacidade em completar a empreitada a que
me propunha e se limitou a indicar uma das janelas da taberna com o queixo, sem dizer
palavra. Além dos vidros empoeirados, eu vi apenas o céu azul e as areias claras, de uma
cor entre o amarelo e o bege, de um tamanho sem fim. Fixei o olhar e, ao longe, pude
avistar uma figura imponente, com a vestimenta típica dos povos do deserto, com um
falcão pousado em seu braço. De óculos escuros, por causa da claridade, e segurando o
meu chapéu panamá na cabeça, para não o perder ao vento, andei desajeitadamente
até a pessoa indicada. Durante o curto trajeto, vi a ave dar um maravilhoso voo rasante,
em círculo, até retornar as garras na grossa luva de couro do seu mentor. Perguntei se
era com ele que eu trataria sobre a travessia. A resposta foi um simples aceno afirmativo
com a cabeça. Eu disse que gostaria de fazer parte da próxima comitiva, pois desejava
encontrar o sábio dervixe. Eu precisava saber a data da partida e o custo para fazer parte
do grupo. Ele me olhou profundamente nos olhos e falou: “A travessia pelo deserto é
perigosa. Não posso garantir que nenhum dos integrantes chegue ao destino”.
Imaginei as muitas e severas privações, o desconforto, a possibilidade de assalto por
tribos nômades, as terríveis tempestades de areia, além da própria inclemência do
deserto como alguns dos obstáculos difíceis de superação referidos por ele. O homem
prosseguiu na sua sucinta explanação: “Muitos ficam sob as areias para sempre.
Fazemos uma prece e nunca avisamos à família. Desobediência e brigas são punidas com
rigor. O caravaneiro tem o direito de vida e de morte sobre todos os integrantes da
caravana. Esta é a única regra. Partiremos amanhã, antes do nascer do sol”. Em seguida
me falou o valor da viagem. Embora eu tenha achado o preço caro, nada comentei e
disse que aceitava as condições. Ele me mandou acertar com uma mulher sentada na
última mesa da taberna. Perguntei ao homem qual era o seu nome. Ele respondeu de
modo rude e objetivo: “Caravaneiro. Eu sou o caravaneiro”.
Não tive dificuldades para identificá-la. A mulher estava sentada na última mesa do lado
direito de quem entra na taberna, debaixo de uma enorme janela. A claridade de fora
ajudava na leitura do livro que a entretinha. Embora o local estivesse repleto de gente,
muitos dos quais participariam da travessia, ela estava sozinha à mesa. Quando me
aproximei foi impossível não me surpreender com a sua beleza. Apesar de toda aridez e
rudeza, seja do lugar, seja das pessoas, os traços do seu rosto eram finos e os seus olhos
possuíam um azul mais intenso do que o céu do deserto. Quando a abordei para tratar
sobre o pagamento, ela me recebeu com um sorriso delicado e os olhos celestes me
indicaram uma cadeira para sentar. Tirei da mochila um maço de dinheiro e o coloquei
sobre a mesa. Ela o recolheu e agradeceu com um simples aceno de cabeça. Falei que
estava pronto para partir. Então, tive a primeira das muitas surpresas quando ela
explicou com absurda naturalidade: “O pagamento não assegura o ingresso na
caravana”. Diante das minhas feições assustadas, prosseguiu: “Seria perda de tempo,
além de se expor a riscos inúteis, ir ao dervixe sem estar pronto para conversar com
ele”. Percebi que, de alguma maneira, as informações ali circulavam rápidas como o
vento do deserto. Como ela sabia que eu estava indo ao encontro do sábio? Talvez fosse
óbvia a minha intenção, pensei. Embora eu desconfiasse que muitas pessoas
realizassem a travessia com o mesmo objetivo, eu sabia que aquele oásis era um dos
maiores que havia no Saara e, ao contrário do que se pensa, algumas centenas de
pessoas o mantinham como residência fixa. Vários eram tecelões de tapetes, famosos
por sua rara beleza; outros viviam de esculpir desejadas peças artesanais. A maioria,
entretanto, movimentava o comércio de víveres e havia aqueles que se dedicavam à
criação de animais, como cabras, cavalos e camelos. Mercadores, turistas, familiares em
visita aos parentes, além de alguns místicos, como eu, fora as pessoas que cuidariam
dos serviços, como montagem de barracas, preparação das refeições à noite, e os
encarregados pela segurança do grupo durante a travessia, compunham o corpo da
caravana. No entanto, por alguma razão, que eu desconhecia, ela sabia da minha
intenção. A mulher procurou um livro em sua bolsa; marcou uma página, me entregou
e disse: “Leia esse texto. Amanhã, antes da partida conversaremos a respeito. Isto
determinará a sua presença, ou não, na travessia”. Em seguida, fez um pequeno gesto
com a cabeça dizendo que eu já podia me levantar e sair. Ofereceu-me um sorriso que
não consegui decifrar naquele instante.
Era um livro de poesias de Rumi, o poeta sulfi e um respeitável sábio em sua época. Os
seus escritos, desde sempre, iluminam os passos no Caminho daqueles que o trilham
através da tradição dos povos do deserto. O poema indicado pela mulher, O que não
somos, diz o seguinte:

“A dor que atraímos


transforma-se em alegria.
Vem, tristeza, aos nossos braços
– somos nós o elixir dos sofrimentos.

O bicho-da-seda come as folhas


e faz o seu casulo.
Não possuímos a folhagem desta terra
– somos nós o casulo do amor.

Apenas somos
quando em nada nos tornamos.
É quando perdemos nossas pernas
que nos tornamos corredores.

Calo a minha boca.


Direi o resto do poema
de boca fechada.”

Li e reli a poesia várias vezes durante a noite até sabê-la de cor. Afastado pela ansiedade,
o sono escapou e fiquei envolto em meus pensamentos sob um fantástico mar de
estrelas, somente possível nas noites do deserto, até que começou a movimentação
para partida da caravana. Procurei pela mulher e não a encontrei em canto nenhum. O
tempo passava aumentando a minha aflição. Rodei por vários lugares, perguntei por ela
a várias pessoas, sem sucesso. Até que um homem tocou em meu ombro e me indicou,
por entre as vidraças da janela da taberna, a mulher sentada à mesma mesa do dia
anterior. Quando me aproximei, ela me ofereceu o mesmo sorriso enigmático e indicou
com o queixo uma cadeira para eu sentar à sua frente. Sem que houvesse palavra, nos
foi servido um bule de chá e fatias de pão quente regadas com azeite. Ansioso, eu não
sentia fome nem sede. Ela bebericou o chá, mordeu um pedaço do pão e, apenas usando
os olhos de lápis-lazúli, pediu para que eu interpretasse o poema. Respirei fundo para
espantar o nervosismo e disse que a primeira estrofe falava que todo o sofrimento traz
um mestre oculto em si, pois é uma lição disponibilizada pelo amor universal. A
existência da dor retrata o valor excessivo que damos ao ego, na aparência das relações,
em esquecimento aos valores da alma, a essência da vida. Somente no âmago do ser,
na profundidade do conhecimento que cada um deve ter sobre si mesmo,
encontraremos a cura para as emoções que nos corroem e o desconforto que sentimos
para com o mundo. Em consonância com tal sabedoria, a tristeza não deve ser
amaldiçoada nem temida. Ao contrário, pois quando abraçada e cuidada com as nobres
virtudes, se tornará fonte de alegria pela libertação, transformação e evolução a que
deu causa.
A mulher fez um aceno de aprovação com a cabeça. Tornou a beber um gole de chá e
os olhos azuis me mandaram prosseguir. Falei que a segunda estrofe diz que na infância
da existência somos como lagartas que rastejam. As folhas que alimentam o ser são as
emoções de todas as espécies que circulam pelo mundo. Somente através da depuração
dos sentimentos que invadem e abalam será possível atingir o ponto de maturação
indispensável à evolução. De lagarta a borboleta, é preciso transformar folhas em fios
de seda: o casulo para o mergulho em si mesmo. Este é o processo primordial para que
patas virem asas. Na magia da transmutação o amor é o ingrediente principal. O poder
apenas está aparente no mundo. Em verdade, resta adormecido no coração de cada ser
a espera do despertar da mente”.
Os lábios dela se curvaram em um leve sorriso, quase imperceptível. Entendi como uma
nova aprovação e me animei. Em continuação, disse que a terceira estrofe ensina que
para saber quem somos temos que nos despir de qualquer ilusão oferecida pelo orgulho
e pela vaidade. É quando, mesmo no mundo, nos libertamos de seus condicionamentos
para nos guiar pelos valores ensinados pelas virtudes. É quando há a troca de direção
do ser: o ego a entrega à alma. A vitória não é a conquista do mundo, mas sobre si
mesmo. Este entendimento concede a leveza que nos manterá a dois palmos do chão.
Portanto, ninguém precisa das pernas para correr o mundo quando já o consegue
sobrevoar com as próprias asas.
A mulher fez um gesto com a cabeça em sinal de aprovação. Ela mordiscou o pão e um
filete de azeite escorreu pelos dedos. Ela os lambeu, sorriu como uma criança travessa
e pediu: “Finalize”. Confiante, eu falei que a última estrofe era muito simples. O poeta
dizia que não tinha mais nada dizer, pois tudo já havia sido dito. Que dali por diante cada
qual fizesse as suas próprias descobertas.
Neste instante as feições da mulher se fecharam como um céu que se cobre por grossas
nuvens. Ela fixou os seus olhos marinhos em meu olhar sedento por aprovação e
sentenciou: “Você está fora”. Protestei de imediato. Argumentei que tinha passado a
noite acordado refletindo sobre o poema e possuía a convicção da melhor
interpretação. Sugeri, caso eu estivesse errado, que ela me dissesse qual seria o melhor
entendimento da parte final daquela poesia de Rumi para que debatêssemos. A mulher
rebateu com palavras não menos enigmáticas do que o seu sorriso: “O título
complementa a conclusão e diz sobre o que ainda não somos”.
Fiquei esperando que ela continuasse com a explicação. Como não aconteceu, falei que
não tinha entendido e, em resposta, ela apenas deu de ombros. Engoli em seco para
controlar a irritação que começava a me invadir e ponderei que ela levasse em
consideração a leitura correta da maior parte do poema que eu fizera. Ela simplesmente
murmurou: “Não basta”. Fiz lembrar a ela de todos os gastos e esforços que eu fizera
para estar ali e a minha enorme vontade em conversar com o sábio dervixe. Ela explicou:
“Não adianta fazer a travessia do deserto se ainda não conseguimos iniciar a jornada da
alma”. Pegou a sua bolsa, levantou e saiu. Entre o espanto e a decepção, não consegui
mais dizer qualquer palavra. O que foi bom para não eu extrapolar a raiva que sentia.
Fiquei alguns minutos sem saber o que fazer, completamente perdido, na tentativa de
entender tudo que acontecia. Pela janela vi que a caravana já estava quase pronta para
partir. Quase todos já estavam montados em seus camelos. Peguei a minha enorme e
pesada mochila, repleta de apetrechos e víveres necessários para a travessia e fui em
busca de um pouco de compaixão por parte daquela mulher. A encontrei no meio de
outros viajantes, mas, ao contrário de quase todos, ela estava montada em um vigoroso
cavalo negro. Não muitos distante, o caravaneiro cavalgava um reluzente corcel branco,
dando as ordens derradeiras antes da partida. Postei-me ao lado dela como quem
suplica por um gesto de caridade. Ela, embora tenha percebido, me ignorou.
Passou um tempo que não sei precisar até que ouvi a voz de comando do caravaneiro
iniciando a viagem. Tive a atenção voltada para um jovem que seguia com o grupo,
talvez para tentar a sorte no oásis, talvez para rever algum parente. Percebi que ele
estava completamente desprovido de muitas coisas que seriam úteis durante o trajeto.
Resignado, retirei a mochila das costas e a entreguei. O jovem agradeceu com um sorriso
de sincera gratidão. Virei-me para não mais olhar para trás. Foi quando um homem me
tocou no braço para mostrar que alguém me chamava. Era a mulher. Ela fez um sinal
para eu montar em um camelo ao seu lado. Atônito, obedeci. Atrapalhado, entre a
caravana já em marcha, recebi ajuda para subir no dorso do dócil animal. Ela se afastou;
eu segui por horas, em absoluto silêncio, tentando concatenar as ideias.
Quando as estrelas voltaram para ocupar a função do sol, a caravana parou para
acampar e passar a noite. Fogueiras foram acesas para espantar o frio paradoxal do
deserto, em volta das quais eram servidas as refeições. Depois andei um bom tempo a
esmo pelo acampamento. Em dado momento, tornei a encontrar a mulher, sentada e
sozinha. Não sabia se meditava ou se estava em oração. Ela me viu e fez em gesto para
eu me aproximar. Falei que tudo aquilo que aconteceu pela manhã tinha sido
desconcertante para mim. Confessei que ainda não sabia como interpretar os fatos. Ela
explicou: “No momento da partida você finalmente mostrou entender a última estrofe
do poema: para entrar na vida não bastam palavras; indispensáveis são as atitudes. Por
isto o poeta terminaria o poema de boca fechada. A poesia é arte; a vida, obra-prima”.
Os meus olhos ansiavam por mais e a mulher foi generosa: “Quando você entregou a
mochila venceu a própria ira e se permitiu a leveza para iniciar a viagem. O
conhecimento se transformou em ação. Isto é sabedoria; quando movida por amor é
luz. Desse modo, estar aqui não foi uma permissão minha, mas uma conquista sua”.
Comentei, com sinceridade, que embora tenha oferecido a mochila de bom grado ao
rapaz, agora que eu fazia parte da caravana, algumas coisas me fariam falta. A mulher
ponderou com estranha simplicidade: “Isso pode ser muito ruim a ponto de impedir a
sua chegada ao destino. Ou muito bom, caso você se permita realizar a travessia como
se você e o deserto fossem um único corpo; então, tudo lhe será entregue”.
Mil imagens invadiram a minha cabeça naquele instante. Desconcertado, enquanto eu
tentava entender o significado daquelas palavras, ela concluiu: “‘De quanto menos eu
precisar mais livre serei’. Este verso é uma prece, do deserto e da vida”.
Antes que eu me manifestasse, ela fez um sinal para eu me levantar e sair.
Era apenas o primeiro dia da travessia.
O segundo dia da travessia – a dor nada ensina
A caravana seguia rumo ao maior oásis do Deserto do Saara. O meu objetivo era
conhecer um sábio dervixe, detentor de “muitos segredos do céu e da terra”. Estávamos
no segundo dia da travessia, e eu ainda me acostumava ao gingado do camelo, que me
deixava um pouco enjoado. Tentava me distrair com a paisagem, mas não conseguia.
Dunas enormes pareciam se repetir dando a falsa sensação de que andávamos em
círculos. A belíssima mulher com os olhos da cor de lápis lazúli, que me autorizara
participar da caravana no dia anterior, desaparecera. O caravaneiro, montado em seu
vigoroso cavalo branco, passava a comitiva em revista; por vezes, gritava ordens em um
idioma desconhecido. Eu, ainda impactado com os acontecimentos do dia anterior, me
limitava a acompanhar os demais integrantes com receio de fazer algo que prejudicasse
o encontro com o dervixe. Apesar do forte calor, tínhamos o corpo completamente
coberto por roupas para evitar queimaduras solares e a desidratação que poderia levar
à morte. Em determinado momento veio a ordem para a caravana parar por alguns
minutos para que que todos pudessem fazer uma refeição leve. Algumas pessoas
aproveitaram para realizar as preces diárias conforme os seus preceitos religiosos.
Desmontado do camelo, andei a esmo até avistar o caravaneiro, um pouco distante e
sozinho, com o seu falcão pousado na grossa luva de couro que usava na mão esquerda.
Um pouco reticente, arrisquei me aproximar. Ele me viu. Como não fez qualquer
objeção, cheguei mais perto. Comentei, apenas para puxar assunto, sobre como o
deserto era inóspito e sem vida. O caravaneiro discordou com um movimento de cabeça.
Em seguida, tirou a máscara que tapava os olhos da ave, deu uma voz de comando e o
gavião bateu as asas ganhando altura. No alto, planou por minutos, como que
economizando forças, se sustentando nas invisíveis bolhas de ar quente que se formam
a partir das areias escaldantes e sobem ao céu azul. Até que, de repente, recolheu as
asas e, em mergulho vertiginoso, desceu para buscar algo no solo. Quando retornou
pude ver que trazia uma serpente aprisionada nas garras, que logo lhe serviu de
refeição. Espantei-me com a capacidade da ave. O caravaneiro explicou: “Entenda o
deserto, aceite fazer parte dele e ele te dará tudo aquilo que precisar”. Percebi que ele
usava o deserto como metáfora para o mundo, para a vida e tudo mais de metafísico
que nos envolve. Argumentei que a frase era bonita na teoria, entretanto, bem diferente
na prática. O caravaneiro tornou a negar as minhas palavras com um simples balanço de
cabeça e acrescentou: “Como somos parte do todo, o todo está dentro de nós. Quando
entendemos isto, passamos a ter a força do todo à nossa disposição. O poder consiste
em aprender a usá-la”.

Fez uma pausa e concluiu: “É isto que o gavião fez”. Discordei de imediato. Falei que a
ave age por instinto ou determinismo biológico. Não há raciocínio filosófico em suas
ações. O caravaneiro sacudiu a cabeça em concordância: “Sim. Ao contrário do gavião,
você tem absoluta liberdade diante de um diversificado leque de escolhas. Isto amplia
o teu poder”. Olhou-me nos olhos e disse: “Isto é o que vocês no Ocidente chamam de
fé”. Tornou a se virar para o deserto e concluiu: “No Oriente também”.
Falei que havia lições em toda a parte. Em seguida lamentei com a conhecida tese de
que “aprendemos com o amor ou com a dor”. Acrescentei que, não raro, o sofrimento
costuma ser o professor mais utilizado. O caravaneiro me olhou de maneira estranha,
como se tivesse ouvido algum absurdo, e se limitou a dizer: “A dor nada ensina”.
Proferi um pequeno discurso sustentando a teoria do aprendizado pela dor. Citei
exemplos próprios e alheios para ilustrar o meu raciocínio. O caravaneiro apenas me
olhava, enquanto eu falava, como quem observa os devaneios de um louco. Quando
terminei, ele me tomou de surpresa: “Você ainda não está pronto para conversar com
o dervixe”. Ainda sem entender o que estava por acontecer, ele sentenciou: “Você não
seguirá com a caravana. Será um desperdício de tempo e de mantimentos”. Colocou em
minhas mãos um cantil feito com pele de cabra e orientou: “Aguarde que à noite um
guia virá para te conduzir de volta à cidade”. Fiz menção de protestar, mas a rudeza no
olhar do caravaneiro me fez lembrar que a desobediência no deserto era punida com
extremo rigor. Ao longe, vi levantarem o acampamento e seguirem até desaparecerem
atrás da primeira duna.
Fui invadido por um redemoinho de sentimentos; da raiva ao medo; da indignação pela
injustiça da sentença prolatada pelo caravaneiro à revolta pela minha covardia em
aceitá-la passivamente. Corri para um lado e para o outro; xinguei e amaldiçoei; até que
cai prostrado na areia. A boca ficou com um gosto amargo e a garganta secou. Bebi um
gole longo de água e me dei conta da necessidade em moderar o consumo, pois o sol
ainda tinha boa parte do meridiano para ultrapassar até que a noite chegasse junto com
o resgate. Como apenas me restava aguardar – e torcer para que a promessa de vir
alguém fosse cumprida – me sentei e procurei me acalmar. Como naquele momento a
única coisa que eu poderia fazer era refletir, comecei pensando como as diferentes
culturas produziam comportamentos considerados estranhos enquanto não
compreendidos. Na medida que eu me acalmava, procurei rever toda a conversa que
tive com o caravaneiro. Para que eu tivesse alguma chance de entendê-lo, era preciso
retirar qualquer resquício de maldade que, por ventura, existisse em sua decisão. Parti
do princípio de que ele tinha sido sincero e justo, apesar da dificuldade em entender o
aparente paradoxo de como um homem rigoroso como ele podia sustentar de que nada
se aprende com a dor. Lembrei por quanto sofrimento eu passei, desde a infância, até
chegar ao entendimento que possuía naquele dia. As frustrações e as decepções que me
correaram as entranhas até me levarem a outro nível de consciência em vários ciclos de
aprendizado. Tudo porque eu não quis aprender por amor. Não restava dúvida de que
o caravaneiro estava equivocado.

Com o passar das horas, resignado com a situação, me permiti ampliar o raciocínio,
apenas como exercício dialético, na possibilidade de que o caravaneiro, porventura,
estivesse certo e nada se aprendesse com a dor. Duas situações pretéritas que me
fizeram sofrer vieram à mente. Uma delas foi a decepção que eu tive com um sócio ao
descobrir que ele fraudava a empresa. Tivemos uma briga horrorosa, ele se retirou da
sociedade e, mesmo passado muito tempo, embora eu não lhe desejasse qualquer mal,
eu ainda não tinha conseguido perdoá-lo, pois a recordação me fazia reviver uma
enorme mágoa. A outra lembrança que me ocorreu naquele momento foi a convivência
conflituosa que eu tivera, por muitos anos, com a minha filha. Como eu me divorciara
quando ela era muito pequena, durante muitos anos o relacionamento entre pai e filha
foi repleto de cobranças, de ambas as partes, de que não havia no outro a dedicação
desejada. Palavras ríspidas fizeram com que brotassem muitos ressentimentos dos dois
lados. Ocorre que, apesar das desavenças, existia amor e isto não nos permitiu desistir.
Aos poucos, à medida com que fomos amadurecendo, seja como pai, seja como filha, o
amor que trazíamos no coração também cresceu. Devagar, mas sem cessar,
conseguimos aparar as arestas que nos feriam, fortalecemos os laços e evoluímos para
uma relação maravilhosa.
Foi quando, me ocorreu uma ideia: por que em uma das relações houve transformação
e na outra restou apenas a mágoa? De repente tudo ficou claro como o céu do deserto.
Sim, o amor foi o que fez a diferença. Na primeira, no conflito com o antigo sócio, o
sofrimento não foi capaz de despertar nenhum sentimento amoroso em mim. Então,
mesmo sendo uma experiência dolorosa não trouxe qualquer aprendizado, cura ou
libertação, pois a compaixão não se fez presente. A mágoa ainda imperava e alimentava
uma triste lógica de desconfiança em relação ao mundo. Ocorreu-me a evidente verdade
que, apesar de a prudência ser uma virtude, é impossível ter leveza sem confiar; a
existência se torna por demais pesada e chata. É impossível ser feliz sem perdoar.
Na segunda, ao contrário, permitimos que o amor prevalecesse diante de todas as
dificuldades. Todo o sofrimento pelo qual tínhamos passado fez despertar um amor
ainda maior dentro de mim e da minha filha. Então, foi possível descobrir uma
convivência em esfera impensada, um amor em um nível de amadurecimento que
desconhecíamos. Isto nos permitiu escolhas improváveis de início, possibilitou pacificar
a relação e a nos tornar pessoas diferentes e melhores. Balancei a cabeça por demorar
tanto tempo para ver o óbvio e ri de mim mesmo.
Se a dor não for capaz de despertar o amor, não restará nenhuma lição.
Sim, o caravaneiro tinha razão. Como em êxtase, me levantei e gritei para o deserto em
gratidão até ficar rouco. Tomado por enorme alegria, comecei a dançar
incessantemente, por um tempo que não sei precisar. Girei, girei e girei o corpo sobre o
próprio eixo até a minhas forças se esgotarem e tudo se apagar.
Quando abri os olhos, o azul do céu tinha sido substituído pelo rosa crepuscular do
entardecer. A primeira coisa que vi foram os olhos de lápis lazúli da belíssima mulher do
dia anterior. Ela segurava a minha cabeça e tentava me fazer beber um pouco de água.
Contei para ela tudo o que tinha acontecido, as minhas lembranças e como, ao por do
sol, eu já entendia de maneira diversa da qual pensava ao amanhecer. Falei que, apesar
de tudo, eu me sentia estranhamente feliz. A mulher me ofereceu um sorriso enigmático
e comentou: “A dor nada ensina. O sofrimento é apenas uma ferramenta que deve ter
a força de romper a casca da semente do amor que está adormecida dentro de cada ser.
Se a dor não for usada com a devida sabedoria para fazer germinar o amor, não se
poderá extrair qualquer lição de nenhuma situação. Apenas mágoa ao invés do perdão;
dor sem cura; prisão sem chance de libertação. Na evolução de nada serve um elevado
nível de consciência se não vier acompanhado com igual medida de amor”.
“Perceba que muitos atravessam o mesmíssimo deserto de sofrimentos. Alguns se
atolam nas tempestades de ressentimentos; outros aproveitam esses fortes ventos para
avançar em incessantes etapas de superação. Nas duas situações pessoais que você
acabou de me contar, em ambas houve dor. Em uma restou incompreensão e
estagnação; na outra, entendimento e evolução. A diferença? O amor. Ele é o único
mestre de todas as lições. É o amor quem movimenta a sabedoria no sentido da luz. Sem
amor, todo o conhecimento apodrece em quarto escuro. A dor é somente um dos
instrumentos da luz, usado apenas para auxiliar na germinação do amor quando a casca
da semente se mostrar por demais resistente, negando a inevitável beleza da flor”.
Fechei os olhos e fiz uma prece de sincera gratidão. Perguntei se era ela quem me
conduziria de volta à cidade. A mulher tornou a me surpreender: “A caravana segue e
você com ela”. Fez uma breve pausa e concluiu: “Tudo mudou. Você fez tudo mudar”.
Com o queixo apontou para o alto de uma enorme duna atrás de mim. Quando me virei,
avistei o caravaneiro de pé, impávido como uma sentinela, me observando. O falcão
estava pousado sobre a sua mão esquerda. Entendi que em nenhum momento eu tinha
sido abandonado.
Ela me ajudou a levantar. Depois subiu em seu cavalo negro e me deu a mão para que
eu montasse na garupa para irmos ao encontro da caravana. Em seguida, fez um
comentário aparentemente despretensioso: “Os dervixes também rodopiam em seus
cerimoniais de conexão com o lado invisível da vida”. Eu não sabia.

O terceiro dia da travessia – o dilema entre a palavra e a verdade


Acordei na manhã do terceiro dia da travessia com o corpo ainda alquebrado em função
dos acontecimentos do dia anterior. O céu já estava claro, embora o sol não tivesse
alcançado a linha do horizonte no fim do mar de areia que parecia sem fim. A
movimentação para recolher o acampamento era intensa. Todos arrumavam as suas
coisas para seguirem adiante, rumo ao maior oásis do Saara. Eu ia ao encontro de um
sábio dervixe, “conhecedor de muitos segredos do céu e da terra”, que lá residia. A
grande maioria dos integrantes da comitiva era de mercadores, peregrinos e turistas,
que marchavam montados em camelos. Os funcionários da caravana encarregados da
segurança viajavam a cavalo, em vigorosos puros-sangues árabes, que permitiam maior
agilidade, além do caravaneiro e da enigmática mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli, a qual eu não avistara naquela manhã. Notei que, além dessas, algumas outras
poucas pessoas também seguiam a cavalo. Como eu não tinha me acostumado ao
gingado do camelo sobre as areias do deserto, algo que me deixava enjoado, assim que
o caravaneiro se aproximou, questionei o privilégio concedido a essas pessoas que
“viajavam de primeira classe”. Argumentei que todos deveriam ter o mesmo tratamento
face às condições inóspitas da travessia. Acrescentei que, como esse não era o caso, eu
também gostaria de seguir a cavalo. O caravaneiro me olhou fixamente e disse: “Todos
são tratados de maneira justa e recebem um camelo para realizar a viagem. No entanto,
alguns trouxeram ou compraram os seus cavalos. Não há nada de errado nisto”. Em
seguida, advertiu: “Cada qual deve vigiar a si mesmo”. Fez uma pequena pausa e
concluiu: “Todos são livres para quaisquer atos, desde que não prejudiquem a harmonia
da caravana”.
Expliquei o meu enjoo e a vontade de comprar um cavalo. O caravaneiro explicou: “Não
há oferta de cavalos”. Olhou-me por instantes e disse: “No entanto, um dos homens,
um intrépido integrante da segurança, está com febre alta. Foi oferecida a ele a opção
de voltar, porém ele escolheu, por enquanto, continuar. Caso ele não possa seguir, o
cavalo será seu”. Satisfeito com a resposta, estendi a mão direita para selar o
compromisso. O caravaneiro apertou a minha mão.
Com a marcha em curso, foi impossível eu não tentar encontrar qual era o integrante
adoentado. Não foi difícil avistar um homem curvado sobre o cavalo, a passo lento,
sendo amparado de perto por outros dois, montados em camelos. Seguimos por cerca
de duas horas, quando veio a ordem para caravana parar e a notícia de que aquele
integrante falecera. Fomos orientados a formar um grande círculo. No centro foi
realizado um rápido, porém respeitoso, sepultamento. Algumas preces de acolhimento
por aquela alma foram recitadas.
Sem demora, veio uma nova ordem para que todos retomassem os seus lugares. A
caravana seguiria adiante. Assim como a vida. Sem dramas e com coragem. Fiquei
esperando pelo meu cavalo. Separei o dinheiro para o pagamento, mas nada me foi
pedido nem me foi entregue. Andamos por horas. Quase ao entardecer, percebi outro
peregrino montado no cavalo que me seria destinado. Chateado com o absurdo da
situação, assim que a caravana tornou a parar, desta vez para levantar o acampamento
para passarmos a noite, decidi procurar o caravaneiro para questionar sobre o
compromisso assumido. Afinal, tínhamos firmado a palavra ao apertarmos as mãos.
Contudo, isso não foi necessário. Eu me servia de um saboroso guisado de legumes com
carne salgada de carneiro, quando ele se aproximou, encheu a sua cuia e me convidou
para sentar ao seu lado. Acomodados um pouco distante do grupo, ele disse: “Não pude
lhe entregar o cavalo. Vi-me obrigado a mudar a minha decisão em razão de novos
fatos”. Protestei de imediato. Lembrei que tínhamos um compromisso. Mais do que isto,
ele tinha me dado a sua palavra. Falei que um homem vale tanto quanto a palavra
empunhada. Eu tinha motivos para estar zangado e não faltavam razões para eu
provocar o caravaneiro. Ele não pareceu se ofender. Ao contrário, com serenidade,
explicou os motivos pelos quais mudou de ideia: “Chegaram notícias que uma perigosa
tribo de nômades nos acompanha de longe. São famosos pelos assaltos e ferocidade”.
Levou um pouco de comida à boca, mastigou em silêncio e, após, prosseguiu: “Perdi
hoje um dos homens mais valentes que tínhamos aqui. Logo após, fui informado que
um dos viajantes é um sagaz oficial das forças especiais do exército marroquino, que
viaja para visitar parentes no oásis. Ele se ofereceu para reforçar a segurança sem exigir
nenhum pagamento. Achei por bem entregar o cavalo a ele, sem nada cobrar, e integrá-
lo ao corpo de proteção da caravana. Por favor, peço a sua compreensão”. Exaltado,
rebati que apesar do argumento, aquela conversava não passava de uma mera
comunicação do negócio desfeito. Acrescentei que era inaceitável desfazer o
compromisso unilateralmente, sem consulta nem concordância da minha parte. Tornei
a lembrar da palavra empenhada. Sem perder a calma, o caravaneiro respondeu: “A
minha palavra tem muito valor, mas ela estará sempre atrelada à verdade”. Fez um
aceno de despedida com a cabeça, se levantou e sumiu no meio da caravana. Mais tarde,
quando a caravana já silenciara para dormir, eu ainda me revirava envolvido em uma
mistura de insônia e irritação. Levantei-me e fui meditar junto às estrelas no alto de uma
duna. Foi quando percebi que, ao longe, duas estrelas da cor de lápis-lazúli me
observavam. A bela mulher, que esteve sumida durante todo o dia, estava sentada
distante, do outro lado da mesma duna.
Andei em direção a ela; como não houve objeção, me aproximei. Com o rosto iluminado
pelas estrelas, apontou um lugar para eu me sentar. Nem próximo nem distante; a uma
distância possível de conversar em voz baixa sem qualquer menção de intimidade. Sem
que ela nada falasse, despejei toda a minha insatisfação pelo comportamento do
caravaneiro naquele episódio. Fiz questão de ressaltar que ele tinha maculado a própria
honra ao não cumprir com a palavra empenhada. A mulher me ouviu impassível,
deixando que eu transbordasse todo ressentimento que me assolava. Ao final, ela
comentou: “A palavra de uma pessoa tem que ser fiel à verdade que ela traz no coração.
Simples, clara, tranquila e pura. A honra está ligada às virtudes da sinceridade e da
honestidade, que se traduzem no exercício da verdade perante os outros e diante de si
mesmo. Por sua vez, estas virtudes são indispensáveis para a dignidade”.
Insisti que onde eu morava a palavra tinha valor absoluto e falava sobre a honra do
indivíduo. Ela rebateu: “Não se trata de uma questão cultural, mas de se permitir um
novo jeito de ser e viver. Sem o peso da culpa, mas com o compromisso pela verdade,
que por estar viva e em processo de aprendizado, se modifica com a expansão de
consciência e da capacidade de amar. Isto possibilita a liberdade”.
Falei que não tinha entendido e pedi para a mulher me explicar melhor. Ela foi paciente:
“Quando empenhamos a palavra, é de má-fé não cumprir com o compromisso. Não se
desfaz um compromisso por vaidade ou variação de humor. Isto revela fraqueza de
caráter. Todavia, pode haver uma razão justa e fundamentada. Vale lembrar que a
palavra tem que estar associada à verdade. A verdade está sempre ligada ao bem, é a
manifestação consciente em prol da luz. Como se comportar quando surge um fato ou
um olhar que modifique o entendimento daquela realidade? Devemos nos manter fiel
à palavra mesmo sendo desleal à verdade e à luz? Isto seria como permitir o mal de
maneira consciente”.
Aquela ótica me desconcertou e devo ter manifestado espanto em minhas feições, pois
ela fez questão de exemplificar o raciocínio: “Imagine um rei que condene um suposto
malfeitor à forca. Lembre que a palavra tem a força equivalente à prolação de uma
sentença no âmbito de quem a profere. Próximo à hora derradeira do infeliz subir no
cadafalso para encerrar os seus dias nesta existência, surge um fato incontestável que
demostra a inocência do condenado. Deve o rei manter a palavra ou voltar atrás?
Retroceder perante uma nova verdade é um erro? Haverá dignidade em sustentar a
palavra mesmo quando se percebe o equívoco contido nela? Perceba que quando a
sentença foi proferida existia dignidade por pensar de que ela trazia a verdade em seu
conteúdo. No entanto, a verdade se modificou à luz de uma nova realidade. Haverá
dignidade em manter a palavra diante do erro consciente?”
“Quando eu era criança ouvia que “palavra de rei não volta atrás”. Ora, um rei que não
tem as virtudes necessárias para rever um posicionamento, seja qual for, não merece
ser senhor de si mesmo”.
“Manter a palavra, mesmo diante do novo que modifica a vida, é a teimosia dos
condicionamentos atávicos e sombrios do orgulho e da vaidade. Demonstra o medo
diante da opinião alheia em admitir um equívoco, em lidar com o novo ou com relação
à sua liberdade de pensar e ser diferente. Durante séculos, mentes primitivas e mal-
intencionadas vêm deturpando o sentido da palavra como instrumento do bem,
impondo um falso conceito de honra, com a intenção de manipular as escolhas alheias
ao encontro de seus interesses egoístas e, não raro, escusos. Inconscientemente
absorvemos estes vícios. De outro lado, há que se ter humildade e simplicidade em
procurar a outra pessoa para revelar que o olhar se modificou, reconhecer o equívoco,
pedir desculpas pelo transtorno, reparar algum dano que porventura tenha causado e
seguir em paz, pois, independente do que digam, há que se ter compaixão para com
aqueles que ficaram inconformados. A paz nasce da percepção de caminhar do lado
iluminado da Estrada. Então, ela, a paz, não será mais uma concessão transitória para se
tornar uma conquista definitiva”.
Fez uma pausa para olhar para estrelas como quem busca inspiração e concluiu: “Voltar
atrás na palavra, desde que para se manter ligado à verdade, não é desonra, é a real
dignidade. É uma atitude de respeito para com o compromisso assumido diante de si
mesmo e com a luz. Anterior à palavra que eu possa empenhar diante de alguém, tenho
um compromisso primordial com luz. Se algo se modificar no lapso de tempo entre o
acordo e a execução, me manterei fiel à verdade, mesmo que me leve a retroceder
quanto à palavra”. Olhou-me nos olhos e completou o recado: “Ainda que tenha que
enfrentar revoltas, ofensas, incompreensões, provocações ou maledicências. Então, é
preciso coragem, paciência e tolerância, além de amor, é claro. Ser digno é viver de
acordo com a verdade. Viver a verdade é caminhar em sentido à luz. Não raro, a
interpretação do mapa da vida mostra a possibilidade de uma melhor interpretação.
Aceite que isto pode provocar mudanças de rotas para manter o destino inalterável.
Pois, todos os dias, exige o aperfeiçoamento das escolhas, sempre orientadas pelas
virtudes e associadas às suas inevitáveis transformações”.

Perguntei se ela achava que o caravaneiro tinha manchado a sua palavra. Ela deu de
ombros e comentou: “Acredito que ele modificou o compromisso em função de um bem
maior. Parece-me justo. Ele tem a responsabilidade em empenhar os seus melhores
esforços para que a caravana chegue ao destino”. Olhou-me com os seus olhos da cor
de lápis-lazúli e aconselhou: “Feche os olhos e reflita por si mesmo. O entendimento é
a sua fortuna e herança”.
Quando tornei a abrir os olhos o céu já clareava. E a mulher não estava mais lá.
O quarto dia da travessia – a escuridão é o pavio da luz
Ainda era o quarto dia da travessia e já houvera mais movimentação do que eu seria
capaz de imaginar. Tudo o que eu queria era um pouco de sossego para refletir sobre a
vida enquanto atravessávamos o deserto que parecia sem fim. Ao contrário do que eu
supunha, não existe tédio quando se faz parte de uma caravana. O deserto é um
universo peculiar, que pulsa como um corpo vivo, muda a todo instante pela ação do
vento na areia, tem fortes contrastes entre o dia e a noite, além de abrigar uma
incontável quantidade de seres em seu âmago. Aves migratórias e de rapina, pequenos
roedores, répteis como lagartos e serpentes, além de pequenos invertebrados, alguns
bem perigosos, como aranhas e escorpiões. Também tinha ouvido falar de felinos, mas
estes me pareciam lendas, pois duvidava da existência dessas espécies em região tão
inóspita. Aquele dia seguia modorrento, conforme o meu desejo. Eu alternava as horas
entre a reflexão, enquanto observava a paisagem, as inúmeras fotografias que eu tirava
para registrar a viagem e a leitura de um livro, o qual já me habituara a ler sem enjoar,
apesar do gingado do camelo. Eu queria estar preparado para o encontro com o sábio
dervixe, “conhecedor de muitos segredos do céu e da terra”, que morava no oásis. O
caravaneiro seguia à frente, montado a cavalo. Por algumas horas do dia, ele gostava de
trotar carregando o seu falcão pousado sobre as grossas luvas de couro que usava no
braço esquerdo. Naquele dia eu ainda não tinha visto a bela mulher com os olhos da cor
de lápis-lazúli.
A caravana, com dezenas de integrantes, além de seus próprios funcionários, era
composta não apenas de peregrinos como eu, mas também de mercadores e turistas
em visita a parentes que residiam no oásis, ou apenas tinham a curiosidade de conhecer
o lugar e comprar um dos famosos tapetes feitos pelas mãos de algum dos hábeis
tecelões locais. A caravana seguia o seu curso quando tive atenção despertada por um
enorme falatório. Virei-me para a direção onde muitas pessoas apontavam. Tomei um
susto ao ver, ao longe, um imponente leopardo descendo uma duna, com a postura de
quem reina no deserto. O caravaneiro pareceu não dar importância e manteve a marcha
do grupo. Peguei a câmara fotográfica no alforje e retardei o passo da minha montaria
para enquadrar o felino por um ângulo mais apropriado. Pensei em como poderia
ganhar algum dinheiro com a venda de uma foto como aquela para as revistas
especializadas, além de como os meus amigos ficariam admirados com a experiência
que eu relataria.
Deixei que todos passassem à frente. Tirei algumas fotos, que ficaram sem a qualidade
que eu desejava. Algumas tremidas, outras embaçadas. Considerei alguns fatores como
a marcha lenta e regular da caravana, a oportunidade inusitada que se apresentava e
não hesitei em desmontar do camelo para conseguir um melhor enquadramento e foco.
Eu não teria dificuldade em alcançar o grupo logo após as fotos. Bati várias fotografias,
mas o leopardo, sempre em movimento, parecia não estar disposto a colaborar. Até que
sumiu por detrás de uma duna. Resignado, retornei ao camelo que tinha se distanciado
um pouco. Quando me aproximei o camelo se adiantou mais alguns passos. Iniciamos
um jogo que pareceu divertido, ao menos para ele. À medida que eu andava, ele
acompanhava; e também parava quando eu assim o fazia. Isto começou a me deixar
nervoso, pois a caravana se distanciava, e me irritou bastante quando o camelo virou a
cabeça e me mostrou os dentes. Cheguei a imaginar que ria de mim e o amaldiçoei. A
brincadeira, para ele, e o desconforto, para mim, duraram mais tempo do que deveria.
Quando finalmente consegui montar o camelo, a caravana já não estava mais à vista.
Como se não bastasse, uma forte e rápida rajada de vento, típica do deserto, me obrigou
a parar para me proteger, principalmente os olhos. Ao final, quando passou, percebi que
eu tinha mais um problema. As pegadas do grupo tinham sido varridas das areias do
deserto.
Eu tinha como referência o sol poente, pois seguíamos para o oeste; não para o Oeste
como referência magnética e, sim, em sua direção. Variações mínimas de ângulos são
suficientes para te levar a um lugar distante do destino almejado. Galopei para o alto de
uma grande duna com o intuito de avistar a caravana, porém apenas encontrei outras
dunas adiante, que me pareceram ainda mais altas. Subi em mais uma e noutra. Nada.
Somente o sol e o deserto. Custei a admitir o ridículo da situação, típicas da infância ou
da irresponsabilidade; eu estava perdido.
O tempo era escasso para decidir entre esperar, na esperança que sentissem a minha
falta e retornassem para me buscar, ou correr o risco de me distanciar ainda mais na
aventura de tentar encontrar a caravana. Lembrei de uma situação vivida quando
garoto, na saída do Maracanã com meu pai. Tínhamos ido assistir a uma final de
campeonato de futebol, quando me perdi dele, após uma confusão entre as duas
torcidas. Aguardei em um bar próximo, assim que me dei conta que ele não estava do
meu lado. Embora tenham sido poucos minutos de aflição, me pareceu uma eternidade.
O meu pai logo refez o trajeto. Ele abriu um sorriso ao me encontrar e perceber que os
seus conselhos tinham resolvido o impasse. No entanto, eu não tinha amigos ou
parentes na caravana que pudessem de pronto sentir a minha falta e dar o alarme ao
caravaneiro. Eram dezenas de desconhecidos que deveriam cuidar de si e manter a
harmonia do grupo. Considerei que poderia levar dias para sentirem a minha ausência.
Então, de nada adiantaria mandarem alguém à minha procura. Era melhor perecer na
luta do que no lamento. Tendo o poente como referência, segui nessa direção, sempre
atento a qualquer sinal ou pegadas na areia que pudessem me auxiliar na busca.

Com o passar das horas a sensação de infortúnio aumentou. Eu tinha pouca água no
cantil e nenhuma comida no alforje. Apressei o passo da minha montaria, pois precisava
estar mais rápido do que o ritmo da caravana, se quisesse alcançá-la, sem falar da
necessidade de, por vezes, ter de subir em enormes dunas a procura de uma visão com
maior amplitude. No começo da tarde começou a ficar difícil manter a calma. O
desespero começou a se avizinhar. Fiquei irritado ao pensar que uma mera fotografia
poderia motivar a minha morte. Veio à lembrança algumas histórias de parecida
estupidez. Fiz uma prece fervorosa rogando pela ajuda das Terras Altas. O tempo voou
no vento, enquanto as minhas palavras pareceram dissolvidas no sol ardente do deserto.
Senti-me abandonado pelos homens e por Deus.
No bairro em que eu fui criado na infância, se dizia para não reclamar de uma situação
ruim, pois ela pode piorar. Lembrei disso quando, diante do momento complicado,
avistei o leopardo, a causa da minha desgraça, me observando do alto de uma duna.
Apesar do calor, senti o frio percorrer as minhas entranhas. Veio-me à mente a minha
mesquinhez e ganância de estar naquela situação por causa do dinheiro que eu ganharia
ao vender as fotos ou a vaidade e o orgulho de contar uma aventura ilustrada pelas
fotografias aos meus conhecidos. Neste instante, igual a uma tempestade do deserto,
um turbilhão de pensamentos circula sem rumo na mente. Sem o devido alinhamento,
pode causar um enorme estrago. Cheguei a pensar que um desenlace através do ataque
de uma fera talvez fosse menos doloroso do que a morte lenta de quem definha no
sofrimento. Pode parecer absurdo, mas considerei que aquele animal selvagem poderia
ter vindo a mando dos céus para abreviar a minha dor. Mas logo em seguida afastei da
mente a ideia ridícula.
Entendi que eu contava apenas comigo e dependia somente de mim para sair daquela
situação. Nada mais justo, ponderei, uma vez que estava ali por livre escolha. Lembrei
que a morte não é o fim, mas uma passagem, e todos os dias são bons para morrer
quando se vive por amor e com dignidade. Eu considerei que poderia encarar o deserto,
e todas as vidas que nele habitam, como um aliado ou um adversário. Eu tinha uma
escolha.
Amadureci a ideia por um bom tempo. Por mais absurdo possa parecer, estranhamente
o medo e a culpa passaram dando lugar a uma calma absoluta. A maneira de lidar com
a morte muda o sentido da vida. A maneira de lidar com a vida muda a existência.
Substituir a culpa pela responsabilidade de fazer diferente e melhor, de contar comigo,
com a minha força e poder, transformou o ânimo e o sentido do momento. Por
completo.
Encaramo-nos, o leopardo e eu, por minutos que não sei precisar. Sussurrei, como se
ele pudesse me ouvir, que eu não desistiria de viver, que lutaria pela minha vida e que
eu tinha direito, tanto quanto ele, os grãos de areia, o sol, as estrelas e os demais animais
do deserto, de estar ali, em paz. Assim como ele, eu era parte essencial do todo.
Talvez por não estar com fome, talvez por estar à procura de uma presa mais apetitosa,
o felino se virou e começou a andar em direção contrária à minha. Foi quando uma ideia
me ocorreu. Um animal daquele porte precisa beber água com alguma regularidade. Eu
sabia que, além dos oásis, os desertos costumam ter fontes de água. Considerei a
possibilidade de o leopardo estar mais com sede do que com fome e estar se dirigindo
para um poço próximo ou algo parecido. De outro lado, eu também sabia que uma
caravana não tem como levar toda a água necessária para a sua travessia, mormente
em uma jornada de quarenta dias com dezenas de pessoas. Por vezes, o caravaneiro
teria de desviar a rota para se abastecer de água. Estávamos no quarto dia e poderia
estar nessa hora. Ao invés de fugir do leopardo, como a principio seria normal, tomei a
firme decisão de acompanhá-lo. À distância, claro. Afinal, era um raciocínio, não um
delírio.
Segui o felino de longe, por cerca de duas horas, com muita dificuldade em razão da
enorme diferença de agilidade, mesmo sem correrias, entre ele e o camelo, que ainda
tinha o fardo de me carregar. Uma estranha sensação de ânimo aqueceu o meu coração.
O leopardo pareceu não se importar com a minha presença, da qual eu não tinha
qualquer dúvida de que ele estava ciente. No entanto, apesar dos meus esforços para
não o perder de vista, ao cair da tarde ele sumiu. Dei-me conta que eu tinha me afastado
sensivelmente do Oeste, minha referência geográfica inicial. Não me lamentei. Ainda
não era noite, mas no horizonte o céu crepuscular começava a alterar o azul pelo rosa
que antecede às estrelas. Embora tenha me perdido da caravana e, naquele momento,
talvez estivesse mais distante dela, eu trazia em mim uma certeza diferente, uma
convicção inabalável de que eu estava conectado a todas as coisas ao meu redor, como
se o universo e eu fôssemos um. Não existia medo, desespero nem frustração. Havia a
serenidade de entender que aquela era a situação a ser vivida. Com todas as suas dores
e delícias; lições e transformações. Nem mais nem menos. Para tanto, eu precisava estar
ali por inteiro. O meu coração tinha de estar onde o meu corpo estava.
Achei melhor parar, pois o camelo dava sinais de cansaço. Apeei e me sentei na areia.
Bebi o último gole de água do cantil e senti fome. Pensei em como seria bom se eu
tivesse alguma habilidade como caçador para encontrar, por exemplo, um coelho
descuidado de volta à toca. Imediatamente domei o pensamento para não recair em
lamentos inúteis e me senti feliz por não ser encontrado por uma serpente, escorpião
ou um predador qualquer. Não tinha se passado nem ao menos um minuto quando a
minha atenção foi voltada para uma ave que sobrevoava o deserto em círculos. Em um
primeiro momento achei que fosse um abutre e a considerei de mau agouro.
Em seguida percebi se tratar de um falcão. O meu coração ficou aos pulos. O falcão do
caravaneiro? Bendito sejam os falcoeiros! Sinceramente, eu não sabia. Mas como
também se falava no bairro onde fui criado, “quem não tem nada a perder, tem tudo a
ganhar”. Anotei mentalmente a direção na qual a ave me pareceu descer, tornei a
montar o camelo e fui atrás.
Do alto de uma duna avistei a caravana acampada junto a um poço natural de água para
se abastecer e passar a noite. Por necessidade, o caravaneiro não podia seguir em linha
reta pelo deserto, entre a cidade e o oásis. Assim costuma ser entre a origem e o destino.
Ele estava um pouco distante do grupo, como sempre fazia ao colocar o falcão para
caçar. Ao me aproximar, o caravaneiro não fez nenhuma objeção. Contei para ele todo
o ocorrido e perguntei se ele tinha notado a minha ausência. Ele apenas sacudiu a
cabeça em negativa. Confessei que por momentos me senti abandonado pelos homens
e por Deus. Ele apenas me olhou sem dizer palavra. Eu quis saber se ele acreditava em
Deus. O caravaneiro me olhou profundamente e respondeu: “Não preciso acreditar”.
Fez uma pausa e logo desfez a ideia de arrogância, que de início me pareceu, dando
lugar à humildade, ao acrescentar: “Eu o sinto”.
Ficamos sem dizer palavra enquanto observávamos o voo do falcão. Quebrei o silêncio
ao dizer que eu não tinha uma boa fotografia para vender nem uma história para contar,
pois ninguém acreditaria que inverti a lógica e o instinto ao me aliar ao leopardo. Como
uma lúcida loucura. Acrescentei que eu me sentia estranhamente mais forte e inteiro.
Apesar de contar apenas comigo, de alguma maneira eu sabia que não estava só,
tampouco pela metade. O que me completava não vinha de fora; estava dentro de mim.
O caravaneiro se virou para mim e disse: “A ganância e o orgulho lhe proporcionaram
uma bela lição. Passe a fazer bom uso dela. A escuridão pode servir de pavio para luz”.
Tornou a olhar para o deserto e falou: “Por todo o tempo somos guiados através da vida.
Ora por intuições, ora por sinalizações. Ambas têm por objetivo orientar as nossas
escolhas ou nos corrigir a rota. São os momentos em que nos sentimos amparados e
seguros. Isto acontece na maior parte da existência de todos nós. Entretanto, não há
como negar a dependência. Então, por precisão evolutiva, surgem situações bem
complicadas, nas quais nos sentimos desamparados, sem que surja qualquer ajuda por
parte dos bons espíritos. Assim, ao ter que lidar com a nudez dos fatos somos levados a
enfrentar a nudez da alma. Você terá a nítida sensação de que poderá contar apenas
consigo mesmo. Para superar o momento é preciso ouvir a si próprio e a refazer as suas
verdades, independente das regras sociais e dos condicionamentos culturais. No íntimo,
você saberá o que é certo fazer, ainda que muitos discordem. ‘Ver de dentro’ é diferente
de ‘ver de fora’. Esta certeza traz a plenitude daqueles que ao buscarem a sua essência
acabaram por encontrar o Absoluto. Então, descobriram que nunca estiveram só. É o
início da maturidade do ser. Quando o mundo parece escuro e ninguém nos acode com
um lampião, significa ter chegado a hora de acender a própria luz. O que parece
abandono, em verdade, é a melhor oportunidade”. Olhou para o deserto por instantes
e finalizou: “Conhecer o destino é entender a viagem; conhecer o Mistério é entender a
si mesmo. A plenitude surge durante esse movimento”.
Mais tarde, após a refeição, achei ter visto a bela mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli contemplando as estrelas, sentada no topo de uma pequena duna, um pouco
distante do grupo. Andei em sua direção, tendo que parar por segundos para dar
passagem a um cameleiro que levava os animais para o trato. Quando passaram, eu a
tinha perdido de vista. Ela não estava mais lá. Aproximei-me do local e vi a sua marca na
areia. Sentei-me no mesmo lugar e fiquei observando toda a cena, em reflexão. Foi
quando tomei um susto ao perceber que o leopardo, ao longe, no alto de uma enorme
duna em frente, aguardava deitado e sereno a partida da caravana, no dia seguinte, para
saciar em paz a sua sede naquele poço. Tive a sensação de que ele me olhava de volta,
em impossível cumplicidade, pelo dia vivido, pelas lições permitidas.

O quinto dia da travessia – a alma do mundo


Estávamos no quinto dia da travessia. A caravana seguia a sua marcha rumo ao oásis
onde vivia um sábio dervixe, “conhecedor de muitos segredos do céu e da terra”, com
qual eu desejava encontrar. Entre peregrinos, mercadores, turistas e encarregados,
dezenas de pessoas integravam a caravana e viajavam pelas areias do Saara. Na manhã
daquele dia, logo cedo, antes de levantarmos acampamento, percebi o caravaneiro um
pouco distante do grupo adestrando o seu falcão. Chamava-me atenção o fato de ele,
sempre que possível, se afastar para se entreter com a ave. Estranha diversão, pensei.
Atribui o hábito às inevitáveis diferenças culturais entre os povos. Procurei pela bela
mulher com olhos da cor de lápis-lazúli em vão. Depois tive a atenção voltada para um
homem que sempre que a caravana fazia uma parada, estendia um belo tapete e
expunha em pequenos cestos porções de biscoitos finos. Ele se dedicava a servir chá
para quem desejasse. Esse homem não trabalhava na caravana como de início pensei;
uma vez por ano viajava para encontrar com parentes. Realizava o cerimonial do chá por
prazer. Fiquei impressionado com o capricho com o qual ele se dedicava a essa tarefa.
Um mercador inglês que costumava viajar para negociar tapetes com os habilidosos
artesões do oásis, ao perceber o meu interesse, se aproximou e disse: “É o melhor chá
que já tomei na vida.” Respondi que tamanho elogio vindo de um inglês era para se
respeitar. Em seguida, comentei que achava um certo exagero todo aquele afinco
apenas para servir chá com biscoitos em um acampamento no deserto. O inglês falou
como quem revela um segredo: “Dizem que é um mestre”. Logo o meu interesse mudou.
Cheguei próximo ao homem, perguntei se podia sentar; ele sorriu e fez um gesto com a
mão para que eu ficasse à vontade. Ele tinha acabado de terminar uma infusão no bule,
me serviu com esmero em uma elegante xícara de porcelana e disse para eu me servir
dos biscoitos. Senti-me um rei. Fiz um elogio sincero ao chá. De fato, era delicioso. Ele
tornou a sorrir e disse: “Isso me alegra o coração. Gosto quando dizem que é um néctar
dos deuses.” Eu confessei que foi exatamente isso que eu senti ao provar a bebida. Em
seguida, interessado em averiguar a mestria a ele atribuída, perguntei se gostava de
Blavatsky, apreciada escritora russa nos círculos esotéricos. Ele me olhou com
simplicidade e respondeu: “Não sei quem é.” Insisti em saber a sua opinião sobre
Krishnamurti, Yogananda, Kardec, Gibran, entre outros. As respostas se repetiam com
um balanço da cabeça em negativa. Desolado, eu quis saber por quais livros ele se
interessava. O homem, cujo o nome, depois eu soube, se chamava Kalil, disse com
humildade: “Eu não sei ler.” E justificou: “Fui criado em um campo de refugiados. Lá não
tinha escolas.” Em seguida acrescentou com enorme estima: “Eu aprendi a fazer chá”.
Decepcionado, apenas esbocei um rascunho de sorriso como quem diz que entendia a
situação. Esvaziei a xícara, tornei a elogiar o chá e quando fiz menção para me levantar,
ele se manteve gentil fazendo questão de explicar: “O chá que você bebeu é de uma flor
comum no deserto, mas rara nas cidades. Ela precisa ir fresca para a infusão, na qual
não pode demorar mais do que três minutos, sob o risco de ter o sabor alterado. Tive
sorte de encontrar um pequeno ramo ontem.” Comentei que era mesmo uma iguaria,
agradeci e, como não estava interessado em saber mais sobre chás, me levantei.
A caravana seguiu o seu curso sem maiores novidades e nenhuma turbulência, ao
contrário dos dias anteriores e de acordo com o meu desejo. No final do dia, um pouco
mais cedo do que de costume, paramos para o descanso, refeições e passarmos a noite.
Depois que cessou toda a movimentação da montagem das tendas, o jantar foi servido.
Eram enormes panelas com cozido de legumes, grãos e carne de carneiro. De maneira
organizada, cada pessoa pegava a sua cuia e era servida pelos cozinheiros. Naquelas
circunstâncias e devido à fome, sempre era momento agradável do dia. Quando me
afastei para comer sozinho, percebi a bela mulher dos olhos da cor de lápis-lazúli,
sentada sobre o elegante tapete de Kalil, saboreando uma xícara de chá e entretida em
uma demorada conversa. Tentei me aproximar com a desculpa de que gostaria de beber
um pouco de chá para auxiliar na digestão, mas fui impedido por um dos seguranças da
caravana. Ele se limitou a informar, com as feições sérias, que eu esperasse. Resignado,
fiquei de longe aguardando o fim da conversa, que parecia interminável. Fiquei
imaginando, sem entender, o que a enigmática mulher, de notável inteligência, tanto
falava com o homem do chá. Em determinado momento percebi que ela também o
ouvia bastante. Como eu ainda sentia fome, retornei para a tenda onde estavam os
caldeirões e enchi mais uma vez a minha cuia. Quando voltei, a surpresa, ela não mais
estava lá. Outras pessoas eram servidas por Kalil, sempre atencioso e gentil. Procurei a
mulher por toda a parte sem qualquer êxito. Parecia que tinha se desmanchado no ar.
Com o dia ainda claro e sem ter o que fazer, peguei um livro e me sentei em um canto
sossegado. Eu ainda não tinha começado a ler, quando vi o caravaneiro retornar com o
falcão pousado sobre as grossas luvas de couro que usava no braço esquerdo. Abordei-
o na tentativa de papear um pouco, porém ele se disse impossibilitado naquele
momento: “Vou beber uma xícara de chá e conversar com o Kalil.” Curioso, perguntei
sobre o que ele gostava de conversar com o homem do chá. O caravaneiro deu de
ombros e falou: “Sobre tudo e sobre nada. Sobre as coisas do mundo. Gosto de
conversar com ele. É um mestre.”
Intrigado pelo interesse do caravaneiro e da mulher por aquele homem, questionei se,
por acaso, se tratava do sábio dervixe do oásis. Ele negou com a cabeça e esclareceu
como quem explica o óbvio: “Claro que não.” E acrescentou com sinceridade: “São
pessoas bem diferentes. Cada um com a sua beleza.”
De longe observei o caravaneiro conversar por longos minutos com o homem do chá.
Ora um falava, ora era o outro. Por vezes deram boas risadas. Foi a primeira vez que vi
caravaneiro sorrir. Mais tarde, quando as primeiras estrelas começavam a surgir, voltei
a Kalil, que numa mistura de delicadeza, paciência e alegria continuava a oferecer chá
para todos. Servi-me de mais uma xícara e perguntei-lhe se era um mestre, como todos
comentavam. Ele me olhou com doçura e respondeu em um tom no qual as palavras
tinham a mesma suavidade dos seus olhos: “Claro que não.” Comentei que eu estudava
metafísica há muitos anos e queria encontrar com o dervixe do oásis. Kalil, balançou a
cabeça como quem diz que entende e falou: “É uma boa pessoa. Costumamos tomar
chá juntos. As nossas conversas são muito animadas.” Eu quis saber sobre o que eles
conversavam. O homem do chá respondeu com sofisticada simplicidade: “Sobre todas
as coisas e sobre nada. Essa leveza do encontro, por vezes, dá asas à imaginação e nos
leva a lugares desconhecidos, onde se é possível ver sem o véu da ilusão.” Questionei se
esse poder vinha do chá. Ele deu uma risada deliciosa e explicou: “Claro que não. Toda
a magia vem de dentro para encantar o que existe fora. Todo o poder vem da alma.
Quando a sua alma encontra um bom lugar para passear dentro de outra pessoa
acontece um encanto. Duas velas juntas iluminam melhor um ambiente. Cuido para que
a minha alma seja hospitaleira e permita um pouco de conforto a todos que chegarem.”
Perguntei quem tinha ensinado isso a ele. Kalil deu de ombros e disse: “Ninguém.
Aprendi servindo chá.”
Antes que eu pudesse prosseguir naquela conversa, outras pessoas chegaram em busca
de uma boa xícara de chá. Afastei-me e fiquei com aquelas palavras circulando na
mente, na tentativa de encontrarem o melhor sentido. Foi quando tornei a ver o
caravaneiro. Ele estava afiando um punhal na pedra. Ao me aproximar comentei que o
homem do chá era uma pessoa interessante, embora fosse um analfabeto. O
caravaneiro me olhou como quem está diante de uma criança e falou: “A cultura e o
conhecimento têm um valor inegável e devem receber todos os estímulos. No entanto,
a sabedoria está na alma do mundo. Apenas lá poderemos encontrá-la.” Eu disse que
tudo aquilo era bastante enigmático e quis saber se ele poderia explicar melhor. O
caravaneiro não se fez de rogado: “É preciso botar a sua alma em tudo que você fizer,
das coisas mais importantes às mais banais. É uma maneira de oferecer a sua alma ao
mundo. Em contrapartida o mundo lhe devolve a própria essência, a sua alma, a alma
do mundo. Lá existe muita luz.”
“Kalil coloca a sua alma no chá que faz. Então, quando o serve as pessoas, entrega ao
mundo pequenas porções do melhor que existe em si. Cada xícara de chá é adoçada
com gotas da sua alma. O chá de Kalil tem a alma de Kalil. Assim a sua essência se
envolve e se funde com a essência do mundo. Isto é magia. Isto encanta e transforma.”
Questionei se isso apenas era possível com o chá. O Caravaneiro franziu as sobrancelhas
e disse sério: “Claro que não. É imprescindível que se coloque a alma em absolutamente
tudo o que fizer. Das pequenas ações do cotidiano às escolhas angulares da existência;
no ofício e na arte. É preciso que se dê vida às coisas, aos lugares e que se anime a vida
de outras pessoas. Isso faz com que a sua alma possa colorir e iluminar tudo o que tocar;
isso permite a conexão com a alma do mundo e a toda a sabedoria e amor contidos ali.”
O caravaneiro tornou a se concentrar em afiar o punhal na pedra. Eu fiquei ao seu lado
por algum tempo sem dizer palavra, concatenando as ideias. Quebrei o silêncio ao
comentar que, de fato, a caravana tinha a alma dele, do caravaneiro, como se fosse uma
extensão natural do seu corpo, dos seus pensamentos e dos seus sentimentos. Satisfeito
com a minha própria conclusão, arrematei dizendo que a caravana era a perfeita
fotografia da alma do caravaneiro. Ele me olhou, sorriu e disse: “Amo a caravana e
coloco a minha alma nela. Esforço-me para que todos possam viajar com o conforto
possível e cheguem ao destino com segurança. Tudo nasce com a responsabilidade de
estar por inteiro nas mínimas coisas de cada dia. O compromisso se expande até
ultrapassar a própria fronteira. Então, se torna amor. Ao fazer com que a minha alma
pulse por toda a caravana fortaleço a todos os seus integrantes com o poder da minha
essência. Assim desperto a alma do mundo e ela nos ajuda a atravessar o deserto.”
Ele fez uma pausa para examinar o punhal, o guardou na bainha e concluiu: “Quando
movimento a minha alma manifesto o que de melhor há em mim e me aventuro na alma
do mundo. Esta é a travessia para o inimaginável.”
O caravaneiro se foi. Fiquei pensando como eu poderia oferecer a minha alma ao
mundo; tive vontade de conhecer a alma do mundo. Algum tempo depois tive a atenção
voltada para a imagem do acampamento na noite do deserto. Seus inúmeros lampiões
e lamparinas, de longe pareciam se misturar com as estrelas no céu, como se formassem
um único manto, salpicados por infinitos pontos de luz. Imaginei que talvez fosse assim
com a alma de todos e a alma do mundo. Percebi que distante, no alto de uma duna,
uma pessoa rodopiava sozinha, como em comunhão com o universo. Como se a sua
alma bailasse com a alma do mundo. Achei que talvez fosse a bela mulher com os olhos
da cor de lápis-lazúli. Mas nem tentei chegar perto para me certificar; tive a absurda
impressão de que ela se dissolveria no ar à menor aproximação.

O sexto dia da travessia – a sombra da discórdia e a alma esquecida


A caravana estava no sexto dia. As precárias condições de uma travessia pelo deserto,
por maiores que sejam os cuidados dispensados pelos viajantes, seja pelo clima inóspito,
seja pela falta de uma série facilidades, às quais nos acostumamos nas cidades, trazem
inevitáveis problemas. Há que se ter atenção tanto em relação às variações de humor,
tão imprevisíveis quanto as dunas que se movimentam ao sabor do vento, quanto à
saúde física que tende a se deteriorar muito rapidamente ao menor descuido. Ao
caravaneiro cabe a difícil tarefa de conduzir a caravana na harmonia entre a firmeza e a
compaixão. A sensatez é a virtude que permite o equilíbrio entre as outras duas virtudes,
posta à prova a todo momento em diferentes graus de exigência. Naquele dia circulava
a notícia de que poderíamos enfrentar uma violenta tempestade de areia. Alguns diziam
que não passava de um boato; outros sustentavam a veracidade do perigo, alegando
como fonte um experiente encarregado da caravana, veterano de muitas travessias.
Como se não bastasse toda a insalubridade típica do deserto, a tensão diante da
iminência do perigo alterou o ânimo de alguns integrantes. Não raro, o medo se torna a
raiz de muitas doenças e conflitos. Um dos viajantes foi acometido de um mal súbito.
Como já estávamos no meio do dia, o caravaneiro ordenou uma pequena parada para
um rápido descanso e as providências cabíveis à pessoa adoentada.
Por acaso era um homem que viajava próximo a mim naquele dia. Algo nele me
incomodava. Ele falava o tempo todo, sempre contando vantagens. Quando me
aproximei, percebi que ele respirava com dificuldades e falava coisas que na minha
opinião eram absurdas e sem sentido. De imediato diagnostiquei a origem do mal:
medo. Em seguida, sem a menor cerimônia, receitei o remédio: coragem. Outro homem,
que naquele momento também o acudia, um espanhol chamado Pablo, peregrino como
eu, discordou. Disse que as palavras pronunciadas pelo enfermo não eram um mero
delírio, mas valiosas visões sobrenaturais que deveriam ser aproveitadas para a
segurança de todos. Eram, segundo ele, os espíritos do deserto nos auxiliando diante do
perigo que se avizinhava. Falei que aquilo era uma bobagem maior do que o delírio do
doente. O homem rebateu dizendo que eu deveria ter um pouco mais de sensibilidade
e consideração pelos outros. Acusou-me de não ter compaixão. Logo iniciamos uma
séria discussão que não chegou às vias de fato graças à intervenção de outras pessoas.
Exaltados, cada um foi levado para um lado, carregando consigo as suas razões. Aleguei,
para quem estava por perto, a minha falta de paciência com a ignorância travestida de
sabedoria. Por sua vez, o meu desafeto sustentou os mesmos motivos para quem estava
próximo dele. Não demorou, o caravaneiro se aproximou e disse em tom de sentença:
“Por maiores que sejam os perigos que uma caravana está exposta, seja uma
tempestade de areia, seja o ataque de tribos nômades, nada supera os danos causados
por egos descontrolados e pela discórdia. É mais fácil me defender do mal quando ele
vem de fora. O mal quando se manifesta internamente costuma causar estragos bem
mais sérios e, portanto, precisa ser sanado na raiz. Ambos continuarão a pé, na rabeira
da caravana, puxando os seus camelos, até o final do dia. Será uma oportunidade para
a reflexão.”
Tanto eu quanto o outro homem alegamos que aquela decisão era insensata. Cada qual
se considerou injustiçado em virtude de a culpa ser do outro. O caravaneiro ouviu todas
as nossas lamúrias sem nos interromper. Ao final, fundamentou: “Não me importa quem
tem razão. Quando duas pessoas discutem, ambas podem ter razão. A razão oscila de
acordo com o nível de consciência de cada pessoa. Todos têm direito à própria opinião;
ela é sagrada por conduzir as nossas escolhas. No entanto, a maneira de a manifestar,
demonstrando respeito pelas diferenças, é uma arte.” Fez uma pausa antes de concluir:
“Esta travessia apresenta as dificuldades inerentes ao próprio deserto. Elas não são
poucas nem fáceis de enfrentar. Para conseguir alcançar o destino a caravana precisa se
comportar como um só corpo. Caso contrário, com as forças divididas, não será possível
fazer frente às muitas dificuldades externas que inevitavelmente se apresentarão
durante o trajeto. O valor reside na pacificação das relações sem que ninguém precise
perder a própria identidade. Cada um com as suas verdades e crenças; todos em paz.”
Não tardou e a caravana tornou a seguir o seu curso. Pablo e eu fomos a pé, fazendo
companhia um ao outro, conforme determinação do caravaneiro. Na primeira hora nos
amaldiçoamos mutuamente. Eu estava profundamente irritado com o espanhol; a
recíproca também se aplicava. Como ele viajava acompanhado de alguns amigos, um
deles decidiu fazer companhia a Pablo durante o trecho em que íamos a pé. Na segunda
hora, começaram a interpretar as visões do homem que tivera o mal-estar e
comentavam, fazendo questão que eu os ouvisse, que aquela situação era uma das
previstas por ele. Nas horas seguintes a minha irritação foi escalando tons a ponto de
virar um ódio destruidor. Toda raiva, mágoa, ira ou ressentimento é avassaladora. É
quando quebramos tudo ao redor ou destruímos o melhor que existe em nós. A raiva,
como todas as demais sombras, quando se manifesta dentro da gente, nos faz tão mal
que parece que a melhor solução é espalhá-la pelo mundo. Quando isto acontece
significa que a permitimos germinar e dar frutos. Passamos a habitar uma floresta escura
e amarga. Tudo à nossa volta parece trevas; o coração perece por inanição. Isto acontece
quando permitimos às sombras o poder de apagar a nossa luz. Então, perdemos a
batalha.
No final da tarde, quando a caravana parou para levantar o acampamento e passarmos
a noite, eu estava exausto. Mas não sentia fome nem tinha sono. A boca trazia um gosto
amargo. Sentei-me em um canto afastado. Eu queria quietude e solidão. Vi o
caravaneiro se distanciar com o seu falcão pousado sobre a grossa luva de couro que
usava no braço esquerdo. Com um muxoxo, para que ninguém ouvisse, disparei uma
série de palavrões. Pablo e os amigos que o cercavam formavam um grupo. Não dava
para escutar o que eles diziam, mas percebi que eles falavam muito e tive a impressão
de que riam de mim. Desconfiei que zombavam dos meus argumentos. A raiva crescente
foi se avolumando e considerei a possibilidade de ir tomar satisfações. Não levaria
aquele desaforo para casa. Chegou a me ocorrer a absurda ideia de que eu trazia um
punhal no alforje do meu camelo. Apenas a certeza de que a punição do caravaneiro
seria bem mais rigorosa, caso eu arrumasse qualquer outra confusão, foi capaz de me
deter. No entanto, o fel da ira me envenenava e, logo após um breve acesso tosse,
vomitei. Com forte sensação de enjoo, virei-me à procura do meu cantil.
Para a minha surpresa, ele estava nas mãos na mulher de olhos da cor de lápis-lazúli,
que o estendia para mim. Eu não tinha notado a sua aproximação. Agradeci, bebi um
pouco de água e, lembrando dos dias anteriores, comentei que ela parecia se
desmanchar e se materializar no ar. Ela deu uma deliciosa risada e disse em tom de
brincadeira, embora eu desconfie que houvesse algo a mais nas entrelinhas das suas
palavras: “Eu cavalgo no Vento.” Fez uma pausa e concluiu: “É o nome do meu cavalo”,
se referindo ao vigoroso corcel negro com o qual atravessava o deserto. Em seguida,
derramei todos os meus sentimentos através da narração dos fatos que se sucederam
durante o dia. Ela me ouviu com bondosa paciência. Em determinado momento da
minha falação, repleta de queixas, tive a sensação que ela me ouvia na intenção de que
eu também me ouvisse. Fiz esse comentário para a mulher. Ela balançou a cabeça em
concordância e esclareceu: “Durante um conflito, não raro o espalhamos, seja na
tentativa de obter dos outros uma palavra de apoio às nossas ideias, seja na absurda e
inconsciente possibilidade de transferir parte do sofrimento ou da responsabilidade
que, por ventura, nos vergue as costas. Esse discurso, quando é para o mundo, acaba
sendo infrutífero por inadequação, pois ninguém poderá resolvê-lo em nosso lugar. Ou,
pior, pode agigantar as sombras ao encontrar suporte por parte de alguém que as
alimente. No entanto, quando conseguimos fazer com que a alma escute as palavras
proferidas pelo ego, damos o primeiro passo para o verdadeiro entendimento do que se
passa. Por isto falar para si mesmo é importante; é a oportunidade de ouvir a própria
voz e a mensagem que ela traz. Entender o conflito é entender o ego, os seus desajustes
e desejos insensatos; é compreender as próprias sombras envolvidas, fomentadoras do
entrevero. Então, aos poucos, a alma se acende para iluminar as escolhas do ego,
mostrando novas possibilidades de pensar e agir; de ser e de viver. Um conflito pode
causar um grande problema ou te colocar diante de um mestre. Esta escolha é sua. Se
faz necessário estar atento a ela.”
Aquelas palavras não arrefeceram os meus ânimos exaltados. Falei que o discurso era
belo, porém distante da realidade. Lembrei à mulher que Pablo e seus amigos me
ridicularizavam. Ela me olhou com infinita doçura e me disse de forma delicada: “Isto
não tem importância. As ofensas, a ironia ou desprezo são armas das sombras utilizadas
por um ego ainda primitivo e dominador. Estas flechas somente irão atingi-lo se você
tiver um ego na mesma vibração. Um ego alinhado à alma sempre estará em posição
onde as setas do mundo não têm alcance. O amor será sempre as suas asas e o seu
melhor escudo.”
Perguntei se ela achava que o delírio do homem pela manhã poderia ser mensagens dos
espíritos do deserto. Ela deu de ombros e comentou: “Não me importa, tampouco as
ouvi. Se você acredita, faça uso delas; senão, descarte-as. Simples assim. Cada um será
responsável pelas suas escolhas, com ou sem ajuda dos espíritos. Vale lembrar que no
deserto há espíritos de todos os tipos. Você terá sempre a ventura de escutar aqueles
com os quais o seu nível de consciência e padrão de sentimentos se afinarem. Estes, sim,
serão os mecanismos que determinarão a participação da alma na educação do ego e as
suas chances de libertação”. Interrompi para questionar de qual libertação ela se referia.
A mulher esclareceu: “A libertação do sofrimento. Justamente a cura da dor provocada
pelo ódio que te corrói agora e oculta de ti a beleza da vida.”
“As diferenças de opinião são saudáveis por nos apresentar, por vezes, óticas
desconhecidas sobre uma determinada situação ou nos mostrar fronteiras que já
atravessamos. Pode se tornar um jeito diferente e melhor de ser ou uma maneira
obsoleta de viver. Escute o outro com respeito e paciência; sobre diferentes disfarces,
as pessoas quase sempre falam sobre as suas dores”. Fez uma pequena pausa e
prosseguiu: “No entanto, quando brigamos, ninguém escuta ninguém. De sobra resta a
energia pesada que nos envolve. Faz-se primordial que as ideias sejam expostas de
maneira clara e serena, para a devida compreensão. Depois serão aceitas ou
descartadas, conforme o valor que houver. Quando vocês discutiram, o
desentendimento fez com que as sombras se apresentassem para ambos. Elas, as
sombras, os convenceram que cada qual precisava se sobrepor ao outro, como se a
divergência de ideias fosse uma guerra na qual tivesse que haver um vencedor. Isto
acontece todas as vezes que nos iludimos maiores e melhores que os demais. Pura
desnecessidade.” Eu tornei a interromper para saber quais sombras seriam essas. Ela
respondeu sem rodeios: “As mais vulgares, que também são as da pior espécie: o
orgulho e a vaidade.”
Eu confessei que me sentia muito mal e não sabia como reagir. A mulher continuou
atenciosa e disse: “Nesses casos, ao perceber a aproximação de qualquer das sombras,
não reaja por impulso, pois você provavelmente estará sob a orientação dela. Pare, sinta
e pense. Use o coração como um filtro. É preciso que saibamos quem são nossos
conselheiros a cada momento da vida. Busque pela sua alma; dê voz à sua alma. Ela é
puro amor e será sempre a melhor conselheira, pois lhe indicará a outra face. A face da
luz.”
“Em momentos assim é imprescindível, para iluminar os fatos, que as sombras sejam
envolvidas pela nossa luz interior. Quando conseguimos, impedimos que os sentimentos
densos se alastrem e a escuridão será extinta de imediato. Quando, porventura, todo o
amor necessário não estiver disponível naquele instante, apenas se recuse a alimentar
a sombra. Por inanição você irá enfraquecê-la. Então, logo adiante, poderá transmutar
a sombra na luz das virtudes.”
“No entanto, na disputa para se mostrar maior e melhor que outro, vocês concederam
um enorme poder as sombras. Tão grande esse poder que, na medida que se avolumou,
foi capaz de dominar as ideias e as emoções dos dois. Onde estavam a humildade, a
compaixão, a paciência, o respeito, a sensatez e o amor? As virtudes acabaram
aprisionadas pelo orgulho e pela vaidade. Assim, foram impedidas de qualquer
movimento. Quando isso acontece, o resultado origina muito sofrimento.” Deu de
ombros e comentou: “Os frutos sempre estarão de acordo com a seiva que alimenta a
árvore.”
Falei que tudo aquilo era bastante complicado. Ela respondeu: “Atravessar um conflito
é parecido com atravessar o deserto. Se não houver coragem, sabedoria e amor, não se
chegará a lugar nenhum. Coragem para enfrentar a si próprio, sabedoria para se
conhecer e amor para perdoar a todos, inclusive a você mesmo.” Fez uma pausa e
concluiu: “A travessia só termina quando todos os corações estiverem unidos.”
Bebi mais um gole de água para tirar a secura da garganta e, por instantes, deixei que
os pensamentos voassem sobre as areias do deserto como o falcão do caravaneiro.
Quando me virei para continuar a conversa com a bela mulher de olhos da cor de lápis-
lazúli a cena se repetiu mais uma vez, que mesmo previsível não deixava de me
surpreender: ela não estava mais lá. Ri sozinho.
Continuei ali, pensando em todas as palavras que me foram ditas. Como eu tinha me
acalmado, aos poucos, cada uma delas foi encontrando o seu devido lugar. Admiti que,
na verdade, tudo não passara de uma disputa entre dois egos exaltados. Na briga por
quem tinha razão, esquecemos o principal, que era atender ao homem acometido pelo
mal súbito, cujas necessidades foram relegadas, tanto por mim quanto por Pablo.
Guerreamos por insensata vitória. Quando o ego é frágil sente fome por sensações de
superioridade em relação aos outros e acaba por tentar impor as próprias razões sobre
o ponto de vista alheio, independente de estar certo ou errado. Naquele dia, a absurda
necessidade em apontar a ignorância, um ao outro, nos fez esquecer do homem
adoentado. A discórdia não nos fez perceber a ignorância maior: o amor foi deixado de
lado.
A última frase dita pela mulher, “a travessia só termina quando todos os corações
estiverem unidos”, pulsava na minha mente. Lembrei que a palavra discórdia era a
junção de outras duas palavras de origem latina. Dis significa fora, distante,
afastado. Cor ou córdia significam coração. Assim, discórdia é uma palavra que traduz a
raiz de muitos males, pois ela surge quando afasto o meu coração do coração de alguém.
Ainda mais profundo, significa estar distante do meu próprio coração. Viver fora do
coração é não entender a importância do amor; é deixar a alma esquecida.
Tinha anoitecido e o céu estava salpicado de estrelas. Levantei-me e fui até onde estava
Pablo e seus amigos. Fui recebido com desconfiança. Pedi a Pablo que me desculpasse
pela minha falta de humildade e agradeci pela lição que ele me proporcionara.
Sinceramente, não sei se ele e todos os demais entenderam naquele momento a minha
fala, mas pelo silêncio que se fez, sei que em algum momento, entenderiam; seja a
minha dificuldade, sejam as deles. Caso demorasse algum tempo para eles
compreenderem o que se passara, isto não retiraria a força do perdão, que tem o poder
de ser unilateral. Pois, não seria justo que alguém ficasse aprisionado à vontade ou à
autorização de outra pessoa para se libertar de uma situação e seguir adiante. Depois
me dirigi ao homem que passara mal e também pedi desculpas. Desta vez pela minha
falta de compaixão. Ele me deu um abraço forte que interpretei como uma assinatura
sincera de aceitação.

Voltei à quietude e solidão em lugar afastado. Fiquei um bom tempo observando a


beleza do manto de estrelas sobre o leito de areia do deserto. A paz estava selada;
dentro e fora de mim. Uma indescritível leveza me arrebatou. Tive a impossível sensação
de estar sentado a dois palmos do chão. Em silêncio, prometi a mim mesmo que da
próxima vez, em situação parecida, me esforçaria para agir diferente e melhor,
impedindo que a discórdia criasse raízes. Agradeci a todos os envolvidos as lições
permitidas naquele dia. A bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli, o caravaneiro,
o Pablo e seus amigos, o homem que passou mal e os espíritos do deserto, cada qual
dentro das suas capacidades e possibilidades, me apontaram um jeito melhor de seguir
no Caminho. Sorri para as estrelas; sorri para mim.

O sétimo dia da travessia – a temperança e o poder da alma


Estávamos no sétimo dia da travessia. A caravana fez um pequeno desvio em sua rota
para se abastecer de água em um poço construído e mantido por uma pequena
comunidade de tuaregues que, embora fossem de natureza nômade, tinham se
estabelecido naquele local há algum tempo. Eram pessoas amistosas que se dedicavam
a atender aos viajantes. Além da água potável extraída de um leito subterrâneo do
deserto, ofereciam diversos víveres e negociavam camelos. As mulheres do grupo eram
conhecidas pela tecelagem colorida de suas roupas e pelo delicioso doce de tâmaras que
vendiam. Depois de encher o meu cantil, provei a famosa iguaria e entendi a razão de a
chamarem de “o mel do deserto”. Tive que fechar os olhos tamanho foi o prazer. Como
não sabia quando teria uma nova oportunidade em comer aquela maravilha, adquiri
uma grande quantidade, suficiente para muitos dias e acondicionei no alforje do meu
camelo. Não tardou, a caravana seguiu o seu curso. Naquele dia, fui me deliciando com
os doces, um após outro, até o último, em incessante volúpia. Na medida que comia os
doces, eu sentia sede, me obrigando a beber uma quantidade de água bem maior do
que o normal. No final da tarde, quando a caravana tornou a parar para acampar e
passar a noite, eu estava enjoado e com o cantil vazio. Enfastiado, rejeitei a refeição
oferecida e me afastei em razão do mal-estar que sentia. Procurei o encarregado pela
provisão da caravana e solicitei água para o meu cantil. De modo educado, ele negou.
Disse que tinha orientação do caravaneiro de somente fornecer água após dois dias da
passagem pelo poço, como maneira de todos colaborarem para um consumo
consciente, equilibrando as difíceis condições que se impunham. Insisti, mas o homem
se manteve firme na negativa. Tornei a me afastar e, em pouco tempo, a sensação de
sede aumentou exponencialmente até ficar insustentável. A irritação tomou conta de
mim como efeito da crise de abstinência. De longe avistei outro viajante, um mercador,
veterano de muitas travessias, bebendo água. Aproximei-me e pedi um pouco. Expliquei
a ele o ocorrido. Ele me olhou por alguns segundos e disse que me venderia um cantil.
Vi que havia vários cantis em seu alforje. Sem hesitar, falei que pagaria. Ele sorriu de
maneira estranha. Em seguida estabeleceu o preço. Era um valor alto, muito alto.
Argumentei que era um absurdo cobrar uma fortuna por uma pequena quantidade de
água. O mercador respondeu que estava barato, pois aquele preço não era pela água,
mas pela minha vida.
Todos sabem que é impossível sobreviver sem água. Mais frágil é a vida e mais
necessária é a água em região inóspita como o deserto. Falei que o seu comportamento
era abusivo e desumano. Ele deu de ombros e disse para eu ficar à vontade para decidir.
Sustentei que a minha necessidade furtava a minha liberdade de escolha. Ponderei que
não tinha todo o dinheiro cobrado. O mercador propôs que eu pagasse com o meu
camelo. Disse que o animal lhe seria útil para distribuir melhor o peso das mercadorias
que transportava até o oásis. Contestei o absurdo da proposta, caso em que eu teria de
seguir a viagem a pé. Roguei que tivesse piedade; o homem me aconselhou a pedir
misericórdia ao caravaneiro que tinha água suficiente para abastecer a todos. Implorei
ao mercador, em vão.
Tentado a entregar o meu camelo, decidi me afastar para tentar colocar em ordem a
confusão de ideias e emoções que me envolviam. Eu tinha perdido a paz; sem paz a
felicidade era uma ilusão. Assim, tênue se tornara o amor que eu sentia por mim ou por
alguém. Senti-me o pior dos homens; um trapo de gente. Percebi que talvez eu tivesse
que aceitar condições com as quais não concordava; sem liberdade eu também perdia
a dignidade. Amaldiçoei a vida.
Procurei me acalmar e pensei que talvez eu tivesse uma chance ao negociar. Os povos
do deserto tinham o comércio como uma arte. Voltei ao mercador e ofereci o relógio de
uma marca caríssima que eu usava. Ele recusou. Adicionei uma boa parte do dinheiro
que eu tinha. A mesma resposta. Mesmo entregando todo o dinheiro nada mudou.
Propus fazer uma transferência bancária no valor de dois camelos quando retornasse à
cidade. Depois, dez camelos. A negativa se manteve. O mercador se mostrou insensível
às minhas ofertas e argumentou que não precisava de um “relógio agora ou de dinheiro
depois”. Naquele momento ele necessitava do meu camelo assim como eu desejava um
cantil cheio de água.
A sede me assolava de maneira insuportável. Quando pensei em resistir à absurda
proposta, a secura na garganta pareceu me sufocar. O ar que eu respirava ardia como
fogo. Capitulei. Resignado, disse ao mercador que aceitava a sua absurda oferta. Ele,
sem dar a mínima para a minha opinião, pegou um dos cantis no alforje. Antes de me
entregar avisou que ao colocá-lo em minhas mãos o negócio estaria fechado.
Irremediavelmente.
Com as feições contrariadas, balancei a cabeça afirmando estar ciente dos termos.
Quando fui estender a mão para pegar o cantil, para minha surpresa, outro cantil, bem
mais rústico, confecionado com pele de cabra e repleto de água, foi atirado aos meus
pés. Era o caravaneiro que se aproximara sem se fazer notar. Sedento, peguei-o na areia
e bebi um gole prolongado de água em sensação de prazer inesquecível. Alegria tanto
pela saciedade quanto pelo resgate da situação que eu me envolvera. Sem temer o
caravaneiro, o mercador protestou sob o fundamento de que a tradição do deserto
impedia que um homem interferisse nos negócios de outro. O caravaneiro, sem se
alterar, respondeu em um tom de voz que equilibrava serenidade e firmeza: “Reza
também a tradição do deserto que um homem não pode escravizar outro. Entendo, pela
ordem de valores, que esta se sobrepõe àquela”. Virou-se para mim e ordenou: “Afaste-
se daqui e aprenda a cuidar de si. Seja senhor das suas escolhas para não se tornar
prisioneiro dos seus desejos.” Antes que o mercador articulasse qualquer palavra, girou
nos calcanhares e se retirou. Sem demora, segui para um canto distante dali.
Em local distante de todos, me deitei sobre a areia macia e fiquei envolto com os fatos
daquele dia, enquanto me encantava com o céu estrelado do deserto. Dormi ali mesmo,
abraçado ao cantil de couro de cabra, agora com água pela metade, uma verdadeira
riqueza para o dia seguinte. No meio da noite acordei como quem desperta pelo susto
de um sono atribulado. Ao meu lado estava sentada a linda mulher com os olhos da cor
de lápis-lazúli, com as pernas cruzadas em posição de meditação. Ela olhava para mim
como se velasse pelos meus sonhos. Comentei que tinha sido um dia difícil, porém
restara uma valiosa lição. Falei que dali por diante eu seria mais moderado quanto aos
prazeres e às necessidades. Acrescentei que talvez eu não precisasse de tanto quanto
antes imaginava. Era preciso rever as minhas desnecessidades. A mulher sorriu e disse:
“A temperança é a flor da serenidade, cujas raízes estão na sensatez. Quanto menor for
a dependência, de qualquer tipo ou espécie, maior será a tranquilidade do indivíduo.
Quanto mais moderado em relação às minhas necessidades, mais livre consigo ser. A
liberdade preserva a dignidade. Esta nos envolve em paz, que por sua vez nos permite
respirar o ar puro da felicidade. Então, conseguimos amar de verdade, despojado das
exigências mundanas que nos impomos.”
“A temperança é a arte da harmonia entre as metades na integralização do ser. Ela tem
a capacidade de desnudar algumas sombras, como a volúpia, a inveja, o ciúme e a
ganância, por exemplo. Ao mostrar a insensatez de muitos dos desejos do ego e a
importância de valorizar as necessidades fundamentais da alma, a temperança nos
orienta rumo à plenitude. Ela retira o enorme peso do ter para oferecer leveza ao ser.”
Fez uma pausa antes de concluir: “Não se trata de desfrutar menos a vida, mas
aproveitar melhor todas as coisas que há na existência.”
Virei o olhar para as estrelas e pensei em como menos se torna mais diante da fortuna
imaterial da plenitude. Liberdade, dignidade, paz, felicidade e amor são as flores do
sagrado ocultas no jardim do mundo; encontrá-las é o encantamento da vida e o poder
incomensurável da alma. Se a humildade é a virtude que abre o portal do Caminho, a
temperança me equilibra através dele.
Sem lembrar do momento em que voltei a dormir, acordei com os primeiros raios de sol
acariciando o meu rosto. Eu ainda estava agarrado ao cantil de couro de cabra. A
caravana se movimentava para levantar o acampamento e logo seguiria o seu curso.
Como era de se esperar, nem sinal da mulher de olhos da cor de lápis-lazúli. Duvidei se
a conversa daquela noite de fato acontecera ou não passara de um sonho bom.

O oitavo dia da travessia – as tempestades de areia e da alma


A caravana iniciava o seu oitavo dia de viagem. O acampamento despertava. Afastei-me
para uma ligeira meditação quando vi o caravaneiro, distante de todos, com o seu falcão
pousado nas grossas luvas de couro que usava no braço esquerdo. Distrai-me a espera
do voo da ave que costumava caçar no início e ao final do dia. Estranhei o falcão se
recusar a voar. Ao perceber o caravaneiro retornar ao acampamento em passos
apressados, entendi que algo estava errado. Embora não tenha ouvido, vi quando ele
deu algumas ordens para os encarregados. Logo chegou a notícia de que uma
tempestade de areia se aproximava. Fomos orientados a nos arrumar para partir o mais
rápido do possível em busca de um lugar onde pudéssemos enfrentar a tempestade com
um pouco mais de segurança. Eu tinha ouvido histórias de caravanas inteiras que
sucumbiram diante de violentas tempestades de areia, equivalente às avalanches para
os montanhistas. Em poucos minutos todos já estavam montados em seus camelos e
cavalos, em jejum, seguindo adiante. Marchávamos em absoluto silêncio. Todos os
olhos estavam angustiados em patrulha no horizonte à procura de qualquer sinal. O céu,
com o natural azul intenso do deserto, me parecia igual ao dos dias anteriores. A
temperatura começava a aumentar na medida que o sol escalava a abóbada. Nada me
pareceu diferente, salvo o medo que amplificava a estranha quietude da marcha
naquele dia. Notei que o caravaneiro nos conduziu para um espaço aberto, longe das
dunas, que se movem ao sabor dos ventos e poderiam nos soterrar durante a
tempestade. Até que paramos para um breve descanso. O caravaneiro se afastou e
sentou sobre as pernas em posição de prece. Ao sentir a minha aproximação, ele abriu
os olhos e me encarou. Fiz sinal perguntando se podia chegar mais perto e ele autorizou
com um aceno de cabeça. Indaguei se podíamos rezar juntos. Com o queixo ele indicou
um lugar para eu sentar ao seu lado. Confessei que estava com medo e quis saber se ele
também sentia. O caravaneiro respondeu com serenidade: “Todos sentem medo na
iminência de um mal. Peço por luz e proteção. A minha prece tem tão e somente duas
palavras.”
Luz e proteção, simples assim? Eu quis saber a razão de uma prece tão singela. De olhos
fechados, ele explicou: “Deus, independente da maneira como o concebemos, habita
em de cada um de nós. A alma é o templo do sagrado, o único lugar onde o encontro é
possível. Não é o tamanho da oração que abrirá essa porta, mas a pureza dos
sentimentos aliada ao entendimento de si mesmo, que em resumo, é o código do
Caminho. Diante dos perigos da existência peço proteção contra os males com os quais
ainda não consigo lutar, e luz para clarear as minhas escolhas frente àqueles que já posso
enfrentar. Os bons espíritos do deserto estarão sempre dispostos ao auxílio, porém
jamais farão a parte que me cabe fazer, caso em que estariam atrapalhando o meu
aprimoramento pessoal. Apesar dos enormes riscos de uma tempestade de areia, a
tempestade da alma é infinitamente mais arrasadora.”

Também fechei os olhos e não dissemos palavra por um tempo que não sei precisar.
Deixei que o silêncio me conduzisse em viagem para dentro de mim, como uma visita
guiada através dos jardins das minhas memórias, ideias e emoções. Serenei as agitadas,
me nutri com as sutis. Uma agradável sensação de leveza aos poucos me envolveu, como
quando, ainda criança, meus pais me levavam para passear no parque. Até que me
deparei com um antigo conhecido, um velho inimigo: o medo.
Imediatamente, o que era bem-estar virou angústia. O medo sempre fora cruel e uma
das principais causas dos meus sofrimentos. O medo me acenava com a derrota em
diversos aspectos da existência. Desastres, enfermidades, desemprego, abandono e
fracasso eram alguns dos raios da roda que girava desde sempre dentro de mim.
De outro lado, pensei, se o medo estava em mim, ele era criatura de minha autoria.
Logo, passível de outro significado. Eu tinha que parar de me assustar, de me encolher
e de fugir do medo. Embora fosse um personagem, o medo crescera pelos séculos e
ganhara autonomia. Fingir que ele não existia ou negar a sua presença apenas o
agigantava. Era preciso, em um primeiro momento, enfrentá-lo com sabedoria. A
antítese do medo é a coragem. Ocorreu-me que para haver a coragem é preciso antes
existir o medo; sem este não haverá aquela. O medo é a lagarta; a borboleta, a coragem.
Isto, em seguida, me permitiu olhar e abraçar o medo com amor. Sim, o medo se
alimenta da ausência do amor primordial, o amor por si e pela vida; portanto, eu
poderia, através do amor, reinventar o medo como personagem, dar-lhe outro contexto
e atuação em minha história e, assim, inverter as suas consequências funestas. Matar
ou sufocar o medo seria um equívoco. Em um terceiro ato mostrei ao medo – ou, em
essência, a mim mesmo – as possibilidades infinitas da luz. Eu disse ao medo que
aceitaria os seus avisos face aos perigos iminentes do mundo, mas que isto jamais me
paralisaria. Ao contrário, apenas serviria para me deixar atento e melhor preparado a
cada dia. O medo não mais teria força para me esconder da vida nem me furtaria a
alegria das manhãs. A partir daquele instante ele se tornaria um bom conselheiro cuja
função seria me lembrar de aprimorar os meus dons ao invés de abandoná-los; de
compartilhar com o mundo os meus melhores frutos ao invés de guardá-los comigo; e,
acima de todas as coisas, de nunca me deixar desistir de seguir adiante. O medo me
recordaria, todos os dias, que só fica triste quem abdica dos sonhos. Naquele instante
me tornei um hábil criador de mim mesmo, capaz de transmutar um perigoso inimigo
ancestral em um valioso aliado contemporâneo.
A agradável sensação de leveza voltou e, desta vez, trouxe consigo uma força estranha.
Quando abri os olhos percebi que o caravaneiro me olhava. Ele arqueou os lábios em
leve sorriso como se soubesse aonde eu tinha ido e com quem eu havia me encontrado.
Antes que eu pudesse traçar algum comentário, com o queixo, ele apontou o horizonte.
Densas e escuras nuvens se avizinhavam. Ao contrário de antes, fui tomado por um
incomensurável poder numa mistura de virtudes. Entendi que todas as vezes que houver
coragem para enfrentar os problemas que se apresentam, amor para aprender com eles,
paciência para aceitar o momento, sabedoria para superar a situação e fé para
movimentar no sentido da luz o sagrado que me mora em mim, nunca faltará proteção,
nenhum mal poderá me alcançar.
Sim, luz e proteção; tão e somente. Sorri de volta para o caravaneiro pela cumplicidade
na revelação de parte da arte que compõe a plenitude; que revela a verdade e perfaz o
todo. Sem dizer palavra, corremos ao encontro da caravana para ajudar a quem
pudéssemos, mormente os desesperados.
O caravaneiro gritou ordens para que todos se reunissem como a um só corpo. “Todos
somos um,” orientavam os encarregados da caravana, pedindo que as pessoas, de
joelhos, se unissem em um grande abraço coletivo. Uma comum-unidade. Era a melhor
maneira de enfrentar a tempestade. Todas as tempestades. As nuvens se aproximavam
rapidamente e fomos aconselhados a cobrir o rosto por causa da violência da areia
lançada pelo vento. Foi quando avistei uma anciã separada do grupo, sentada no chão,
a uma distância de uns 100 metros de onde estávamos. Ao tentar me desvencilhar, um
mercador que estava ao meu lado, ao perceber a minha intenção, disse que seria inútil,
pois ela tinha dificuldade de locomoção. A tempestade me alcançaria em terreno aberto
e morreríamos, a anciã e eu. Acrescentou para eu não “bancar o herói”, que talvez já
fosse a hora dela e o destino tivesse que se cumprir, mas que o destino dela não estava
atrelado ao meu. Em frações de segundo ponderei as razões do homem e não tive
dúvida de que ele falava orientado pelo medo, porém, o medo dominado pelas sombras.
O meu medo, como bom conselheiro, me dizia que não se tratava de uma questão de
heroísmo, mas, apesar do perigo, não deveria desperdiçar a oportunidade de exercitar
o amor que eu sentia por aquela mulher desamparada. Tornei a tentar a me
desvencilhar, mas ele voltou a me segurar. Olhei-o com sincera compaixão. Foi
suficiente para ele afrouxar a sua mão do meu braço. Corri em direção à anciã. A
ventania me desequilibrava e roguei aos bons espíritos do deserto que não me
deixassem cair. Quando eu a abracei recebi um olhar de gratidão tão profundo que eu
não saberia traduzir em palavras. Embora a tempestade não arrefecesse nem um pouco,
meu coração alimentado pelo amor daquela senhora pareceu serenar o tempo dentro
de mim. Percebi que ela também estava em paz e se encantava com o meu amor. Falei
para ela que tínhamos que correr para nos juntar ao grupo antes que a tempestade
aumentasse. Ela confessou que tinha dificuldade para andar. Implorou com honestidade
que eu retornasse e me salvasse. Olhou-me nos olhos e disse para eu ir tranquilo, que
ela e Deus eram ótimos amigos. Acrescentou que não ficaria desamparada e me
presenteou com um luminoso sorriso. Eu estava decidido a não abandonar a anciã. Ali o
tempo era veloz e a tempestade não mais permitiu que nos juntássemos ao restante da
caravana. Foi quando percebi que, junto ao grupo, o caravaneiro me olhava. Ele fez sinal
para eu olhar atrás de mim. Vi que três camelos estavam deitados e agrupados, por
instinto de sobrevivência, a uma pequena distância de onde eu estava. Tornei a olhar
para o caravaneiro e ele balançou a cabeça dizendo que sim, era isto mesmo que tinha
pensado. Sem mais hesitar, levantei a anciã em meus braços, corri para nos misturar aos
animais e tentar resistir a intempérie. Deitados entre os camelos, enfrentamos o terrível
clímax da tempestade.
Desmaiei sem me dar conta. Despertei sob dois olhos da cor de lápis-lazúli. Uma das
mãos da bela mulher apoiavam a minha cabeça, enquanto a outra oferecia a água de
um cantil. Alguns encarregados da caravana ajudaram a tirar a camada de areia que me
cobria. A anciã, um pouco afastada, estava bem e era cuidada por outras pessoas. Ela
acenou para mim e sorriu em agradecimento. Sentei-me na areia e quando ficamos a
sós, contei para a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli tudo o que acontecera
desde cedo. Falei que devia agradecimentos ao caravaneiro pela lição. Ela comentou:
“Figos não brotam em tamareiras.” Pedi para ela explicar melhor. A mulher esclareceu:
“O entendimento só floresceu porque a semente já estava pronta para germinar. Caso
contrário, de nada adiantaria as mais sábias palavras.”
Confessei que naquela noite eu dormiria um homem bem diferente daquele que
acordou pela manhã. Falei que a maneira como eu tratava as minhas emoções faria
delas inimigas ou aliadas. Este era um grande poder e era meu. A mulher balançou a
cabeça em concordância e disse: “Todos os dias temos oportunidades para transformar
chumbo em ouro, prisões em asas, de curar as feridas. Esta é a transmutação alquímica
pura e simples; profunda e infinita. No entanto, a desperdiçamos por manter fechada as
cortinas que encobrem a verdade. Nos mantemos na tempestade por negar a abrir a
porta que nos leva à alma.”
Nesse instante veio a ordem para todos retornarem às suas montarias. A caravana
seguiria o seu curso. Inexoravelmente. Levantei-me, sacudi um pouco de areia que ainda
tinha em minha roupa e, quando olhei para o lado, não teve como deixar de dar uma
gostosa risada pela previsível e, ao mesmo tempo, inusitada cena recorrente. A bela
mulher com os olhos de cor de lápis-lazúli tinha se desmanchado no ar.

O nono dia da travessia – quando a alma se olha no espelho


Entardecia no nono dia da travessia. Tinha sido um dia monótono, mormente se
comparado aos anteriores. O caravaneiro dera ordens para montarmos o acampamento
um pouco antes da hora que em geral interrompíamos a marcha. Aproveitei para ir ao
barbeiro. Pode parecer estranho, mas a caravana tinha um barbeiro. Um dos
encarregados levava em sua bagagem uma pequena pia e um espelho, além dos
apetrechos típicos para a barbearia, como navalhas, tesouras, óleos e cremes. Eu uso
barba há muitos anos e tenho o costume apará-la uma vez por semana. Como não
cuidava da barba desde alguns dias antes da partida, somado às condições difíceis
impostas pelo deserto, me senti abandonado por mim mesmo quando me olhei no
pequeno espelho. O barbeiro era um homem simpático e falante. Como era veterano
de muitas travessias, o seu ofício ficava enfeitado pelas muitas histórias que contava na
medida que aparava barbas e cortava cabelos. Quando me sentei na cadeira e comentei
que tomara um susto ao me ver no espelho devido aos maus-tratos que o deserto me
impunha, ele me corrigiu para dizer que o deserto era rigoroso, porém cada um definia
os cuidados que tinha consigo mesmo. Em seguida, narrou uma engraçada história, que
ele afirmava verdadeira, acontecida há muitas travessias atrás, de um homem que teve
um sério surto ao se olhar no espelho: ele jurou que a imagem refletida não
correspondia a sua pessoa.
Atribuí o ocorrido ao desleixo desse homem consigo mesmo, somado a algum tipo de
problema psicótico agravado pelas difíceis condições da travessia. O barbeiro deu de
ombros e falou que o deserto sempre mudava a vida das pessoas que o
atravessavam. Acrescentou que já havia visto muitas coisas estranhas durante as
travessias e tinha desistido de entendê-las. Serviço encerrado, paguei o preço cobrado
e me dei por satisfeito. Como o jantar estava servido, fui comer e esqueci da história
contada pelo barbeiro. Tive a atenção desviada para um rico mercador de tapetes, a
quem eu já tinha notado nos dias anteriores, que viajava acompanhado por um séquito
de empregados, sempre à disposição para suas menores vontades. A sua tenda era
luxuosa, forrada por finos tapetes e almofadas de seda. De longe, ele reparou que eu
observava toda a movimentação à sua volta e fez um sinal para eu me aproximar. Hesitei
e ele enviou um dos empregados para me convidar à sua tenda. Quando entrei, de perto,
tudo me pareceu ainda mais luxuoso. Talheres de prata, copos de cristal e um músico
que entoava uma doce melodia com um instrumento de corda que eu nunca tinha visto.
Foi impossível não me impressionar. Ele disse para eu me sentir à vontade e me servir
do que quisesse. Logo contou sobre os seus negócios e falou do palácio no qual morava
em Marraquexe. Em seguida, um dos seus empregados entrou com todos os apetrechos
para aparar a barba do mercador. O mercador disse para continuarmos a conversa
enquanto o serviço era feito. Tudo transcorria bem até que perguntei se o caravaneiro
costumava frequentar aquela tenda. As suas feições se fecharam. O tom de voz ficou
visivelmente alterado quando ele disse que o caravaneiro nunca entrara ali. O clima
piorou quando após a barba feita, cortada rente à pele por uma afiada navalha, e o rosto
banhado em óleo, elogiei o resultado. Sugeri que ele mesmo constatasse diante de um
espelho. De modo grosseiro, bem diferente do afável anfitrião de pouco antes, o
mercador disse que nunca se olhava no espelho durante as travessias no deserto. Em
seguida avisou que estava na hora de ele dormir. Sem entender a mudança repentina
de humor, fui conduzido por um dos empregados para fora da tenda.

Atônito, fui para um lugar afastado para tentar entender o que tinha acontecido, quando
vi o caravaneiro cuidando do seu falcão após o período vespertino de adestramento.
Aproximei-me e fiz algumas perguntas sobre a ave, menos por curiosidade e mais por
necessidade de conversar. Não demorou, contei sobre o que tinha acontecido há pouco
na tenda. O caravaneiro me ouviu com paciência e, ao final, não traçou qualquer
comentário. Perguntei por qual motivo ele nunca tinha entrado na tenda do rico
mercador. A resposta foi simples: “Nunca fui convidado.” Embora tenha me pego de
surpresa, não tive dúvida da sinceridade do caravaneiro. Ele arqueou os lábios em leve
sorriso. Havia compaixão e nenhum ressentimento. O caravaneiro pediu licença para ir
jantar, pois, logo a comida seria recolhida. Sozinho, me sentei na areia e fiquei tentando
entender os estranhos fatos enquanto observava as primeiras estrelas surgirem no céu.
Foi quando a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se sentou ao meu lado.
Ofereceu-me um punhado de nozes. Ficamos sem dizer palavra por algum tempo, até
que resolvi lhe contar sobre o acontecido na tenda do rico mercador e a posterior
conversa com o caravaneiro. Então, aconteceu a maior das surpresas quando ela
segredou: “Eles são irmãos”. Acho que em razão das minhas feições não terem
escondido a enorme surpresa que senti, ela decidiu me contar um pouco mais: “Eles
ficaram órfãos ainda garotos. Cresceram cuidando um do outro. Iniciaram no comércio
de tapetes ainda adolescentes quando uma senhora, que estava de mudança, lhes deu
todos os tapetes da sua casa, pois não os podia levar. Venderam tudo. Com o dinheiro
passaram a correr a cidade em busca de outros tapetes usados para revenda. Até que
ouviram falar dos tapeceiros do oásis, que apesar da excelente qualidade, tinham
dificuldade em encontrar compradores por causa da travessia do deserto. Com a
intrepidez típica da juventude, começaram a viajar para negociar com os esses
maravilhosos tecelões. Naquela época ninguém se aventurava a isso. Na medida que
enriqueciam, as viagens aumentavam e o negócio se consolidava. Ocorre que o
caravaneiro começou a se encantar mais pelos mistérios do deserto do que pelos lucros
do comércio. Aos poucos, sem se dar conta, a travessia não era apenas uma parte do
seu ofício, mas virou uma arte. Apesar disto, tudo parecia ir bem até o dia que, durante
uma das travessias, ao terminar de aparar a barba do caravaneiro – até então um
mercador de tapetes – o barbeiro o colocou diante do pequeno espelho para avaliar o
serviço realizado. Dizem que ele não reconheceu a imagem que o refletia.”
“Ali foi o momento da virada na existência do caravaneiro. Abdicou do negócio de
tapetes, deixando tudo para o irmão. Com o dinheiro que juntou durante aquele período
decidiu montar a própria caravana. Claro que no início não foi fácil, mas o amor pelo seu
sonho e o aperfeiçoamento do seu dom o fortaleceram para superar as dificuldades e
prosseguir.” Perguntei se o sonho do mercador era também virar caravaneiro como o
irmão. A mulher explicou: “Provavelmente não, cada qual é único e nisto reside toda a
beleza do ser. Todavia, o mercador precisa entender duas coisas básicas. O fato de o
caravaneiro não mais desejar para si a vida de mercador de tapetes não deprecia nem é
uma crítica ao irmão, que continua a exercer esse ofício. Cada um com o seu dom e
sonho. Outra coisa é a questão do dinheiro que me parece presente de maneira muito
óbvia. O dinheiro é uma ferramenta útil e bem-vinda, mas atravessar um deserto apenas
para ganhar e acumular fortuna como forma de poder e dominação, orgulho e vaidade,
causará em algum momento um inevitável vazio impossível de preencher com moedas.”
“Um dia você acaba por não reconhecer o seu rosto no espelho por se tornar estranho
a si mesmo. Uns decidem enfrentar a batalha pessoal; outros escolhem fugir.” Abriu os
braços como quem lamenta e concluiu: “Podemos fugir de um lugar, nunca da verdade.”
Como não reconheceu o próprio rosto? Interrompi para pedir que explicasse melhor. A
mulher teve boa vontade: “Olhar no espelho e ver o nariz, as bochechas e as orelhas,
todos conseguem. No entanto, olhar no espelho e encontrar a sua alma refletida é para
poucos. Algumas vezes pode acontecer, em momentos de sensibilidade e percepção, de
você encontrar a alma abandonada, esquecida de si mesmo. Todo o brilho exterior não
ilumina a escuridão causada pela luz interna apagada” Fez uma pausa e prosseguiu: “É
um encontro doloroso, mas necessário. É preciso humildade, sinceridade, amor e
coragem, além de outras virtudes, para o imprescindível resgate.” Observou-me
profundamente e disse: “Em algum momento da existência todos precisam enxergar a
alma diante do espelho. Depois, trazer a alma de volta à vida. Negar esta busca é abdicar
da essência da vida. Ninguém pode fazer isto por ninguém. Encontrar a própria alma é
a arte maior; libertá-la das prisões da existência, a grande obra.”

Falei que era uma belíssima história, com bastante material para reflexão. Contudo, não
entendia o fato de os irmãos terem brigado. A mulher explicou: “Eles não brigaram.
Apenas o mercador se recusa a conviver com o caravaneiro. Este nada tem contra
aquele.” Eu disse que agora compreendia ainda menos. Ela não desistiu de me fazer
entender: “É porque eles são muito parecidos.” Sacudi a cabeça como quem diz que não
fazia sentido. A bela mulher foi pedagógica: “Negamos a beleza do que não conseguimos
aceitar. Fugimos da verdade quando ela nos incomoda. Estar ao lado de alguém, que
mesmo sem dizer palavra, nos mostra toda uma vida que poderia ter sido, mas não foi,
entristece. Então, nos refugiamos na sensação de segurança e poder com as ilusões que
o entreposto das sombras, sempre nas margens da vida, seduz o ego.” Deu de ombros
e comentou: “Nem todos estão prontos para iniciar a travessia através do deserto de si
mesmo para chegar ao oásis da alma.”
Interrompi para dizer que algo não fazia sentido. Se a opção de vida do caravaneiro era
tão dolorosa para o mercador, por qual motivo ele teimava em fazer a travessia com a
caravana do irmão? Ele poderia ingressar em outra caravana. A mulher me devolveu a
pergunta: “Por que brigamos tanto com as pessoas que amamos? Por que insistimos em
procurar por pessoas que opõe sérios obstáculos em nossa existência? Já se deu conta
disto?” Fez uma pausa e como eu nada falei, ela prosseguiu: “Pelo simples fato de
admirarmos essas pessoas, ainda que apenas no inconsciente. Sabemos que, no fundo,
estas são as pessoas que podem nos ensinar e fortalecer. Existe nelas uma luz que nos
chama, que nos indica as dificuldades a serem vencidas. Nelas ecoa a voz quase inaudível
da nossa alma, incansável em mostrar uma porta de saída para o ego desorientado e
fragmentado por diversas dores. É a chance de escapar de um lugar escuro, onde não se
percebe a ausência de luz por causa do inúmeros enfeites brilhosos pendurados ao redor
do tempo para nos distrair. Como a claridade costuma arrancar a máscara de quem está
escondido na escuridão, reclamamos, depreciamos, maldizemos.”
“No entanto, nada revela mais quem somos do que os nossos sofrimentos.”
Interrompi mais uma vez para questionar se os sofrimentos são indispensáveis à
evolução. A mulher tornou a sacudir a cabeça: “Claro que não. Os sofrimentos não são
necessários. Pelo contrário. É justamente isto que o deserto nos ensina. Sofremos
apenas quando nos movimentamos em sentido contrário à luz”. Olhou-me nos olhos e
pareceu ler os meus pensamentos: “Sim, por mais absurdo que possa parecer, sofremos
tão somente em razão de nossas escolhas. O deserto é apenas o deserto. A direção para
onde se move e o jeito de pisar na areia definem as dunas e as dificuldades da travessia.”
“Contudo, é nesse ponto que os sofrimentos se mostram importantes. Eles formam o
mapa do resgate, a trilha da transformação. São as pegadas de superação que contam a
história de todos nós. Narram a busca da vida, da luz, da alma, de si mesmo.”
“Os sofrimentos têm o valor de mostrar quem ainda não somos, passo iniciático para
entender quem podemos ser. É preciso dissecar o sofrimento a partir do fato que o
provocou até compreender a desnecessidade da sua presença. Na origem do sofrimento
está também o fim do sofrimento. Lá é possível encontrar a transformação
indispensável, a gênese das virtudes, o portal do Caminho. Nele está oculta a chave da
libertação, a receita da cura. Tudo ao alcance de qualquer indivíduo na exata medida do
aperfeiçoamento das escolhas pessoais. Porém é preciso entendimento. Entendimento,
por sua vez, exige amor, para que, ao invés de culpa e estagnação, vigore a alegria pela
descoberta, além de ânimo pelo prosseguimento da jornada.”
Ficamos algum tempo em silêncio até que a bela mulher pediu licença e se despediu.
Disse que tinha alguns afazeres. Acrescentou que eu precisava de quietude e solidão.
Aos poucos aquelas ideias foram encontrando o devido lugar dentro de mim. Entendi a
recusa do rico mercador em olhar no espelho para não correr o risco de encontrar a
própria alma em abandono, como uma mendiga da vida. Como ele não estava disposto
a mudar, sofria. Paradoxalmente, a fuga do sofrimento agigantava a sua dor, girando a
roda dos conflitos e dando poder as sombras pessoais. A variação de humor que eu
presenciei na sua tenda acontecia quando algo o lembrava de quem ele ainda não era.
A irritação e a sisudez são sintomas típicos de pessoas que precisam esconder a
fragilidade por estarem assombradas pelo orgulho e pela vaidade. De outro lado, o
caravaneiro era a imagem que revelava as escolhas possíveis, simples, imprescindíveis,
porém, nem sempre dispostas de serem enfrentadas. Negar o irmão era a reação
inconsciente de ignorar a própria alma, o dom e os sonhos. Recusar o espelho é abdicar
da verdade. É negar a magia oferecida pela travessia do deserto. Ou da vida. É onde
reside o poder da transformação e a força da evolução.
Naquele momento, tive a nítida sensação que a mulher com olhos da cor de lápis-lazúli
olhava para mim. Mas eram apenas duas estrelas azuis que brilhavam no céu do deserto.

O décimo dia da travessia – os demônios do deserto

Estávamos no décimo dia de viagem. Ainda não tinha amanhecido. Eu me revirava de


um lado para o outro sem sono. Resolvi sair da barraca. O deserto estava iluminado
pelas muitas estrelas do céu e de alguns poucos lampiões pendurados nas entradas das
tendas. Uma brisa fria, que nos passar das horas desaparecia para dar lugar a um forte
calor à medida que o dia avançasse, exigia que eu me cobrisse com uma manta. O
silêncio era absoluto. Ocorreu-me que ainda não tinha ouvido ninguém na caravana falar
dos demônios do deserto. Eu conhecia muitas histórias, mitos e lendas sobre esses
espíritos e não tinha qualquer dúvida de que havia algo de verdade. Sentei-me na areia
e fiquei envolvido em reflexões. Logo o céu começou a mudar de cor anunciando o novo
reinado do sol. As tendas começaram a ficar barulhentas com o despertar do
acampamento. Alegrei-me com a possibilidade de tomar um café quente logo pela
manhã. A primeira pessoa que vi foi o caravaneiro. Ele estava pensativo, com o olhar
perdido no deserto. Estranhei ele não estar com o falcão para o adestramento matinal.
Sem dar importância a esse detalhe, me aproximei e perguntei pelos demônios do
deserto. Eu queria saber se ele acreditava na existência deles. O caravaneiro me olhou
rapidamente, depois se voltou para o deserto e disse: “Eles acompanham a caravana e
estão misturados aos viajantes”.

Antes que eu iniciasse uma série de perguntas que me ocorreram, ele orientou: “Arrume
logo a sua bagagem. Sairemos mais cedo do que de costume, pois temos que chegar ao
poço antes do anoitecer. Precisamos abastecer. Não há tempo a perder”. Falei que antes
tomaria uma caneca de café. Ele esclareceu: “Não haverá desjejum hoje. Partiremos
assim que as tendas sejam recolhidas”. Aquilo me irritou. Alguns poucos minutos para
um rápido café não fariam diferença até a chegada ao poço. Achei que faltavam
planejamento e sensatez. Pensei em dizer isso a ele, mas quando me virei e o
caravaneiro viu as minhas feições, se adiantou as minhas palavras e falou: “Reze”. Em
seguida concluiu: “Que Deus o proteja”. E saiu.
Voltei para a tenda e arrumei as minhas coisas. Foi quando percebi que a bela mulher
com olhos da cor de lápis-lazúli me observava. Conversar com ela era uma das coisas
mais interessantes da caravana. Tentei me aproximar, mas um homem intercedeu pela
minha ajuda. Precisava de auxílio para colocar o seu pesado alforje sobre o camelo. Não
tinha como negar e aquele precioso minuto foi suficiente para eu não mais a encontrar
quando tornei a procurá-la. Voltei a me irritar ainda tão cedo. Aquele não estava sendo
um bom dia.
Logo a caravana iniciou a sua marcha. Domei a minha ira à força, como se faz com um
animal selvagem, e tive os pensamentos desviados para memórias, antigas e recentes,
de situações mal resolvidas que ainda me traziam desconforto. Enquanto
atravessávamos dunas após dunas, eu lembrava de como poderia ter me comportado
diferente naqueles momentos do passado que me deixaram mágoas. Achei que algumas
pessoas mereceriam respostas mais duras e outras eu jurei nunca mais procurar ou
dirigir a palavra. Olhei no relógio e o tempo se arrastava bem mais lento do que eu
desejava.
Foi quando tornei a perceber que, de longe, a bela mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli me observava. Porém ela estava a uma distância que não permitia a minha
aproximação. Nesse momento, um homem que seguia um pouco à frente, acendeu um
charuto. Era comum algumas pessoas fumarem durante a marcha, mas aquele cheiro
estava insuportável. Como ninguém nada falou, adiantei o meu camelo para reclamar
com ele. Logo se iniciou uma ríspida discussão acalmada pelos viajantes que estavam
próximos. Um dos encarregados da caravana me recolocou em outro lugar, distante da
fumaça do charuto. Fiquei indignado com a permissividade de todos em relação ao
fumo. Sem dúvida, um absurdo, mormente em um grupo controlado com regras de
comportamento tão rigorosas como uma caravana. Decidido a não deixar que a irritação
me dominasse, desviei o pensamento para momentos agradáveis da minha vida.
Situações que me levaram a outras, de pesadas memórias. Dei-me conta de como as
pessoas são difíceis e como é raro encontrar alguém que tenha empatia pelos outros,
que sintam os sentimentos do mundo e disponibilize o próprio coração com boa vontade
para pacificar as relações. Situações que eu pensei esquecidas tornaram a se fazer
presentes em minha memória, trazendo a sensação de que eu não tinha sido tão feliz
quanto imaginava. Tive certeza o mundo não era um bom lugar para se viver quando
chegou a notícia de que não pararíamos, como também era de costume, para um breve
almoço. A caravana seguiria initerruptamente até o poço. O calor estava insuportável e
o sol mais quente do que nos dias anteriores. A bela mulher de olhos da cor de lápis-
lazúli, de longe, continuava a me observar.
Custei a acreditar quando chegamos ao poço ainda no meio da tarde, restando algumas
boas horas até o anoitecer. Veio a ordem para montar o acampamento e que todos se
abastecessem de água. O jantar seria servido em seguida. Decidi esperar que a enorme
fila que se formou no poço terminasse. Não havia pressa, pois só partiríamos no dia
seguinte. Vi que o sábio homem do chá colocava algumas ervas em infusão e me
aproximei. Comentei que não entendia a pressa que nos deixou sem desjejum e almoço.
Ainda era cedo e daria tempo para tudo. O homem sorriu com doçura e tentou explicar:
“As reservas de água da caravana estavam esgotadas e não podíamos correr o risco que
algum imprevisto impedisse que chegássemos aqui antes de anoitecer”. Falei que se a
caravana fosse uma empresa e o caravaneiro o seu diretor, com certeza seria demitido
por um planejamento tão equivocado. O sábio do chá disse com doçura: “Por isso ele é
um homem da areia e não um executivo do asfalto. Cada qual com a sua beleza e
sabedoria”. Agradeci o chá e me afastei pensando como as pessoas no deserto eram
resignadas em excesso. Eu não tinha ouvido uma única reclamação por causa daquela
absurda programação. Uma paciência tão estendida que beirava a permissividade. Isto
me incomodava.
Enquanto aguardava o jantar, vi que o caravaneiro se afastava, com o seu falcão
pousado na grossa luva de couro que usava no braço esquerdo, para iniciar o
treinamento vespertino da ave. De longe vi o falcão planar no céu por longos segundos
com as asas abertas até as recolher para um mergulho profundo e retornar com uma
serpente em suas garras. A cena me fascinou e decidi me aproximar, quando fui
impedido por um dos encarregados, sob a alegação que o caravaneiro tinha pedido para
ficar só. Falei que estranhava a ordem, pois outras vezes tinha conversado com ele
enquanto adestrava o falcão. Acrescentei que estava cansado de ordens sem qualquer
sentido e me desvencilhei para ir de encontro ao caravaneiro. O encarregado tornou a
me segurar e quando tentei me soltar, a minha roupa rasgou. Reagi e nos embolamos
no chão. Rapidamente outras pessoas chegaram para apartar a briga, evitando maiores
consequências. O caravaneiro que assistiu a tudo, mandou que fossemos falar com ele.
Demos as nossas explicações. Dispensado o encarregado, que apenas cumpria uma
ordem, o caravaneiro se virou para mim e disse: “Você não queria conhecer os demônios
do deserto? Eles te acompanharam por todo o dia. Espero que consiga se entender com
eles”. Em seguida determinou que eu estava proibido de jantar e deveria ficar o resto
do dia afastado do grupo. Irritado, perguntei se ele me puniria com a fome. Ele
esclareceu: “Não, a sua pena será a reflexão. Mais do que uma punição, que a pena sirva
de aprendizado ou não servirá para nada”.
Sozinho, sentado na areia, vi o céu mudar de cor enquanto a minha mente se parecia
com uma tempestade do deserto. Revolta e ressentimento me devoravam como
predadores a uma presa. Foi isto que falei à bela mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli quando ela me surpreendeu ao se sentar ao meu lado. Ela ouviu todos os meus
lamentos com paciência e, ao final, falei que o caravaneiro dissera que os demônios
tinham me feito companhia por todo o dia. Confessei que tinha achado sem sentido o
comentário dele, pois o fato de eu ter opinião sobre qualquer assunto era um direito
inalienável. A mulher balançou a cabeça em concordância, mas teceu considerações que
iam além do aspecto mundano: “Nossas opiniões são sagradas por revelarem, muito ou
pouco, da verdade que nos habita naquele momento. As escolhas, reflexo prático das
ideias, se nutrem das nossas emoções, poço onde os demônios bebem se dermos a eles
aquilo que os alimenta. Então, o sagrado se afasta, a espera de que possamos entender
e lidar com a trindade que define quem somos: sentimentos, ideias e escolhas. Coração,
mente e mãos; sentir, pensar e fazer. Eis a santíssima trindade do ser”.
Eu quis saber quais eram os alimentos dos demônios. A mulher respondeu de imediato:
“As sombras. Muito mais do que em grandes desastres, os demônios se fazem presentes
nas situações banais do cotidiano. O orgulho, a vaidade, a inveja, o ciúme, a ganância, o
medo, o egoísmo, a impaciência, a vitimização são as portas de entrada mais comuns.
Formam um enorme banquete para as trevas. Por descuido, no desencontro de quem
somos, nos tornamos justamente aquilo que tememos”.
“Isso nos leva a uma óbvia conclusão: ninguém nos prejudica mais do que cada um a si
mesmo”.
Pedi para ela explicar melhor, mas a mulher se levantou, disse para eu continuar em
reflexão. Se pudesse, após o jantar, voltaria. A vi se afastar com seu jeito gracioso de
andar até desparecer em uma das tendas. Envolto comigo mesmo, achei que aquelas
palavras faziam sentido e me permiti usá-las como guia para reflexão. Procurei acalmar
os sentimentos para que não atrapalhassem a fluidez dos pensamentos. Passado algum
tempo, me ocorreu que, se eu agigantava os demônios com as minhas emoções, ideias
e atitudes, também seria capaz de enfraquecê-los da mesma forma. Tudo se resumia
em ser um poço de sombras ou de luz. Isto definiria quem, se anjos ou demônios, se
aproximaria para andar comigo. Sim, os demônios do deserto não apenas se
alimentavam comigo, mas, pior, percebi que muitos eram criações minhas. Sim, alguns
nasciam das minhas emoções, ideias e atitudes.
Em contrapartida, pensei, como criador eu também tinha o poder de criar anjos. Melhor
ainda se eu criasse os anjos a partir da transmutação dos próprios demônios. Afinal,
“nada se perde, tudo se transforma”, ensinou certa vez um alquimista francês. Para
tanto, era preciso luz. Onde buscar luz? Ora, só havia um lugar, na mesma fonte das
sombras, na trindade pessoal, em mim mesmo. Cada ser é a perfeita fonte de luz do
universo. Luz ou trevas, anjos ou demônios, são escolhas pessoais. Naquele instante, eu
percebi que precisava refazer as minhas criações. Era necessário também trocar quem
me acompanhava e aconselhava. Entendi que por este motivo, a trindade pessoal é o
perfeito escudo contra o mal. Indo mais fundo, cheguei à conclusão de que, se ela, a
trindade pessoal, me liberta das prisões impostas pelas sombras, ela se torna também
as minhas asas. Ali, na trindade, está todo o poder e a magia do mundo. Uma agradável
sensação me envolveu. Satisfeito, sorri comigo mesmo.
Passou um tempo que não sei precisar; todo o acampamento dormia, enquanto eu
continuava encantado com as minhas descobertas. A bela mulher com olhos de lápis-
lazúli retornou. Contei sobre o conhecimento que tinha se revelado para mim e a
agradeci por suas palavras. Ela arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Nada que não
estivesse pronto para florescer. As sombras não são de todo ruim como se costuma
pensar. Não raro se tornam a força necessária para romper a casca da semente onde a
luz aguarda para germinar”.
Falei que estava envergonhado pela minha postura durante aquele dia. A mulher me
corrigiu em um tom entre a gentileza e a firmeza: “Não sinta vergonha para não ficar
paralisado. Ninguém chega pronto para atravessar o deserto. Seja grato a tudo e a todos
pelo aprendizado. No entanto, o mais importante é o compromisso com a
transformação do próprio ser e toda a mudança que isto irá gerar ao seu redor”. Olhou-
me profundamente e concluiu: “É disso que os demônios mais temem”.
Sem se despedir, se levantou e andou até o alto de uma duna. Então, sozinha, bailou
para as estrelas que iluminam o céu do deserto.
O décimo-primeiro dia da travessia – os demônios acompanham a caravana
Ainda era cedo. O sol começava a banhar o deserto por detrás de uma enorme duna ao
leste. Arrumei as minhas coisas no alforje e o deixei pronto para colocá-lo sobre o
camelo na hora da partida. Fui à tenda em que serviam o desjejum para encher uma
caneca com café. Depois me afastei para a prece que gostava de fazer sozinho pela
manhã, sempre acompanhada de alguma reflexão. Como de costume, o caravaneiro
estava destacado do grupo, com o seu falcão pousado nas grossas luvas de couro que
usava no braço esquerdo, para o adestramento matinal. Foi então que se aproximou de
mim um peregrino que fazia parte da caravana. Perguntou se podia me fazer companhia.
Com o queixo apontei para que se sentasse ao meu lado. Não demorou, puxou conversa.
Disse que se chamava Saul. Falou que, assim como eu, ele também ia ao oásis para
conhecer o sábio dervixe. Em seguida criticou a estrutura da caravana. Falou que o valor
cobrado pela viagem era muito caro para o pouco que ofereciam e que o caravaneiro
devia dedicar ao grupo a mesma atenção que oferecia ao falcão. Eu nada respondi para
não alimentar aquela conversa com energias que estimulavam a discórdia e a
insatisfação. Não satisfeito, talvez por não encontrar em mim o apoio esperado,
perguntou se eu tinha lido determinado livro. Respondi que nunca tinha ouvido falar
nem no título nem no autor. O peregrino me olhou com espanto para dizer que aquela
leitura era pressuposto para a conversa com o dervixe, uma vez que era a base de sua
doutrina filosófica. Acrescentou que nem todos que iam ao oásis conseguiam o
esperado encontro, pois o sábio escolhia apenas algumas pessoas, aquelas que
considerava aptas a entenderem as suas palavras.
Eu quis saber se ele tinha o livro e se poderia me emprestar. Como ainda faltavam trinta
dias até chegarmos ao oásis, seria tempo suficiente para eu me preparar. O homem
falou que tinha o livro, mas estava dedicado a uma releitura do mesmo. Lamentou não
poder me atender. Falou, ainda, que tinha certeza de que ele seria um dos eleitos para
se reunir com o dervixe. Relatou todos os estudos que fizera e escolas das mais diversas
tradições que frequentara ao longo de muitos anos. Pelo que tinha reparado, duvidava
que na caravana alguém estivesse tão preparado como ele. Perguntou sobre qual
vertente se sustentava o meu conhecimento. Falei que recentemente tinha ingressado
em uma ordem esotérica dedicada ao estudo da filosofia e da metafísica. Nada além
disso. Ele sacudiu a cabeça como quem diz que não era suficiente, mas aconselhou que
eu não desistisse e que me ajudaria no que fosse possível. Em seguida, falou que tinha
que preparar a sua bagagem, pois a caravana logo seguiria a viagem. Antes, porém, me
alertou para ter cuidado com o caravaneiro. Perguntei a razão, mas ele apenas puxou a
pálpebra do olho como sinal para que eu estivesse atento e saiu.
Fui envolvido por uma sensação muito ruim. Uma mistura de emoções desagradáveis
com alguma confusão mental. Pensei em como seria detestável atravessar o deserto,
com todas as dificuldades inerentes ao percurso, para, ao final, voltar frustrado quanto
às intenções da viagem. O que eu diria aos meus amigos ao me perguntarem sobre como
tinha sido a conversa com o dervixe, especialmente entre aqueles que me incentivaram
a fazer a peregrinação? Incomodava a ideia de responder que fora em vão, que o sábio
se recusara a conversar comigo. De sobra ainda teria que me deparar com os colegas
que haviam me aconselhado a não vir por causa dos perigos do deserto, além da grande
despesa que eu teria com a viagem. Fechei os olhos e os imaginei me oferecendo lições
de prudência com ares de pretensa superioridade, dizendo algo como “se Deus está em
todo lugar, e principalmente dentro de si mesmo, você não precisa ir a lugar nenhum
para encontrá-lo”. Na realidade, eu não viajava para encontrar Deus, mas em busca de
novos conhecimentos. Eles retrucariam, “não vejo sentido em você se privar do conforto
da sua casa, principalmente hoje em dia, onde encontramos tudo na internet”. Ora,
andar pelas ruas de uma cidade me permite uma percepção bem diferente do que
conhecê-la por fotos. Assim é com a filosofia; se não for vivida restará desperdiçada. No
mais, fora as críticas que eu teria que enfrentar, não tinha vislumbrado a possibilidade
de passar quarenta dias no deserto, com todas as privações inerentes à caravana, para
ao final nem ao menos ouvir uma única frase do dervixe. Aquilo me deixou
profundamente agoniado.
Esperei o caravaneiro retornar com o falcão. Quando passou por mim, o questionei por
qual razão ele não me avisou que havia uma enorme chance de eu não conseguir
conversar com o sábio quando chegássemos ao oásis. Ele me olhou atentamente, como
quem procura ler o que está escrito além das palavras ditas, e disse com serenidade:
“Você contratou a caravana para chegar a um determinado destino em segurança. Tão
somente. Esse é o meu compromisso. Respondo apenas por mim e pela caravana. Não
sou secretário nem agenciador do dervixe. Não posso ser responsabilizado se ele viajou
ou está recluso sem desejar encontrar com ninguém. Assim como não posso responder
pelos negócios entre mercadores e tapeceiros. Ao contrário, veto o ingresso na caravana
daqueles que, de antemão, percebo que perderão tempo e dinheiro na travessia. Sejam
mercadores, sejam peregrinos”. Admiti que, de fato, eu mesmo quase fui impedido de
participar da viagem, logo no início, uma vez pelo caravaneiro, noutra pela bela mulher
com olhos da cor de lápis-lazúli. No entanto, achava que a possibilidade de atravessar o
deserto e não conseguir encontrar o sábio deveria restar mais clara.
Sem deixar que a energia densa que me envolvia o atingisse, ele manteve o tom suave
da voz como maneira de não alimentar a confusão: “Assuma os riscos da sua escolha e
aproveite a travessia. O deserto é muito mais do que sol e areia”. Olhou-me nos olhos e
concluiu de jeito enigmático antes de seguir para os seus afazeres: “Mais uma coisa,
preste atenção aos demônios para não servir a eles. O melhor truque das sombras é nos
iludir de que elas não existem em nós”.
Aquela conversa com o caravaneiro piorou ainda mais a confusão mental que eu sentia.
Perdi a confiança nele, e a insegurança quanto ao encontro com o sábio dervixe se
agigantou, tomando conta de todos os meus pensamentos. O acampamento foi
recolhido e a caravana partiu. Eu seguia desconfortável sobre o camelo. O gingado do
animal, a falta de brisa, o calor parecia mais intenso naquele dia. Tudo me incomodava.
Senti fome, pois tinha apenas tomado uma xícara de café no desjejum. Depois fiquei
com sede. Em razão das lições dos dias anteriores, eu sabia que tinha que racionar a
água para não tornar a ter problemas. Comecei a lembrar das pessoas que me
desaconselharam a fazer a viagem e fui tomado por uma horrível sensação de
arrependimento de estar ali. Eu poderia estar em lugares que adorava, como no
mosteiro, nas montanhas do Arizona, na oficina do Loureiro, na pequena vila do
Himalaia ou mesmo viajando com as minhas filhas. No entanto, eu estava atravessando
o deserto, sob severas condições, para vivenciar uma experiência que, agora, descobria
improvável. A agonia me abateu e convidou a irritação para a ceia.
Foi quando o peregrino emparelhou o camelo dele ao meu. Ofereceu-me um chiclete.
Disse que ajudava a manter a boca úmida. Aceitei e encontrei nele um amigo disposto a
me ajudar. Não demorou muito, Saul começou a narrar como era solicitado para
ministrar cursos e fazer palestras. Contou das suas incríveis experiências metafísicas,
apenas permitida aos iniciados. Enquanto ouvia, eu me comparava a ele. No íntimo,
senti vontade de algum dia ser requisitado daquela maneira.
A bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli passou por nós montada em seu ágil
cavalo negro, olhou-me por instantes e prosseguiu.
Em seguida, Saul antecipou a conversa que teria com o dervixe. Tinha uma série de
questões filosóficas para debater com o sábio. E mais, faria uma proposta irrecusável
para juntos montarem um spa espiritual na cidade do peregrino. Diante de tudo,
confessei o meu receio em não ser recebido pelo dervixe e de como esta possibilidade
me incomodava. Ele disse que, na medida possível, intercederia ao meu favor.
Acrescentou que eu deveria, da próxima vez, me preparar melhor antes de vir. Depois,
voltou a falar sobre a precariedade da caravana, de como era ruim a relação entre o
valor cobrado e as condições oferecidas. Falou de algumas maravilhas proporcionadas
por outras caravanas. Tendas mais confortáveis e comidas mais requintadas eram
apenas algumas das realidades que estavam distantes da nossa.
Ao final da tarde paramos para passar a noite. Logo após o acampamento ser montado,
foi servida a refeição. Fui com o peregrino até a tenda para enchermos a nossa cuia. Era
um guisado com carne seca de carneiro, grãos e legumes. Saul provou, torceu o nariz,
me olhou como para lembrar do que ele tinha falado. Ensina a sabedoria que o acaso
não existe, pois nesse instante o caravaneiro entrou para se servir. Enchi-me de coragem
e o abordei para reclamar das condições da caravana. Ele me ouviu sem interromper.
Quando terminei, ele falou com serenidade: “Ofereço o melhor que posso dentro dos
limites das possibilidades que se apresentam e da capacidade que possuo. Acredite,
nem um pouco a menos. No entanto, entendo que é um direito seu não estar satisfeito
ou mesmo arrependido de estar aqui. O que de pior pode acontecer na caravana é a
discórdia criar raízes e se alastrar”. Fez uma pequena pausa antes de prosseguir com
toda a calma: “Dou-lhe a chance de retornar daqui. Devolverei integralmente o dinheiro
pago. Não quero que você se sinta prejudicado ou enganado. Amanhã um dos
encarregados voltará à cidade de onde partimos. Se quiser, poderá ir com ele. Pense. Se
for o caso, esteja pronto logo cedo”. E se retirou. Olhei para o lado em busca do apoio
do peregrino. Ele tinha se afastado.
Fui em sua direção e percebi que ele me evitava. Insisti até estar com ele. Achei estranho
o comportamento do homem. Mais ainda, quando perguntei se tinha ouvido a conversa,
ele nada respondeu. Eu quis saber se ele voltaria comigo no dia seguinte. O peregrino
sacudiu a cabeça em negativa e nada falou. Falei que eu estava em uma situação
delicada com o caravaneiro. Saul, em um tom agressivo de voz, disse que não era
responsável por minhas atitudes nem por minhas escolhas. Falou que eu deveria
amadurecer. Contestei. Argumentei que eu tinha plena consciência da responsabilidade
pelas minhas ações. Entretanto, as palavras eram a forma mais antiga de magia, pois
têm o poder de espalhar as sombras ou semear a luz. Ele, como homem iluminado que
se proclamava, deveria saber disso e entender que tipo de mago de fato era e a má
influência que tinha causado. Saul me olhou com desdém e disse que logo que me viu
tinha reparado que eu não tinha a menor condição de me encontrar com o dervixe.
Contrariado, preferi me afastar para não criar uma confusão maior.
Fiquei sozinho, sentado em um canto distante, até um manto de estrelas cobrir o céu
do deserto. Aos poucos fui me tranquilizando. Dei-me conta de como tinha sido tolo por
embarcar nas sombras de Saul. Lembrei do bom homem que servia chá na caravana,
que embora nunca tivesse frequentado uma escola, possuía uma sabedoria extraída da
simplicidade e da humildade. Impulsionado pelos bons sentimentos, além de outras
virtudes, como a delicadeza e a compaixão, ele se tornara uma das pessoas com quem
o dervixe adorava conversar. Não tinha como negar a importância do conhecimento; no
entanto, sem amor tudo se esgota nos ralos da existência. Passou um tempo que não
sei precisar, quando, de repente, ouvi uma voz doce atrás de mim: “Mais do que sexo,
poder e dinheiro, o medo move o mundo. Toda a vez que isso acontece, seguimos na
direção oposta à luz, nos afastando do verdadeiro destino”. Era a bela mulher de olhos
da cor de lápis-lazúli.
Ela se sentou à minha frente. Contei lhe todo o ocorrido durante o dia. Ao final, me
declarei traído pelo peregrino. A mulher não concordou: “Pare de culpar os outros pelo
seu sofrimento. Isto o impede de avançar. Em verdade, você foi traído por suas vozes ao
dar ouvido às próprias sombras. Uma das mais perigosas delas, o medo, se tornou seu
conselheiro e alimentou a vaidade e o orgulho do peregrino. Isto fez com que a inveja
também lhe fizesse companhia. Com mentores desse quilate você inevitavelmente teria
problemas”. Sustentei que a responsabilidade pelas escolhas era minha, porém ele era
responsável pelo alcance das suas palavras. A mulher concordou, em parte: “Sim, é
verdade. No entanto, a magia das palavras somente germina onde encontra solo fértil,
seja de sombra, seja de luz”. Fez uma pausa e concluiu: “A vaidade, o orgulho e a inveja
são os demônios mais vulgares que existem, porém os mais influentes em nossas vidas.
Todos nascem do medo”.
Eu quis saber se esses eram os demônios aos quais o caravaneiro havia se referido
naquela manhã. Ela concordou com um movimento da cabeça. Perguntei se esse era o
motivo de ela ter passado a cavalo me olhando enquanto eu conversava com o
peregrino durante a marcha daquele dia. “Sim, percebi os demônios acompanhando a
caravana”, ela respondeu simplesmente. Falei que o peregrino era quem movia esses
demônios e só agora eu me dava conta disso. Ela discordou: “O peregrino é responsável
apenas pelos demônios dele. Você, pelos seus. A permissão para que os demônios dele
alimentassem os seus foi concedida por você”.
“As pessoas têm sobre nós apenas os poderes que concedemos a elas.”
Lamentei que nem sempre eu conseguia identificar a presença desses demônios em
mim e também tinha certa dificuldade de entendê-los. Ela explicou: “A vaidade é a
necessidade de se sentir admirado pelos outros; o orgulho surge quando precisamos nos
sentir maiores que as demais pessoas. Ambos insistem em nos convencer de que são
indispensáveis à felicidade. A inveja se faz presente quando teimamos em nos comparar
ou em desejar a vida alheia, como se as possibilidades que se apresentam não são boas
o suficiente para nós. No fundo, um desejo sombrio e inconfessável de estar no trono
do mundo”. Olhou-me profundamente e disse: “Vaidade, orgulho e inveja são demônios
filhos do medo. Medo de duvidar da própria força, medo de não acreditar no poder que
o habita, medo de não conseguir viver o próprio sonho, medo de não enxergar a beleza
do seu dom, medo de se sentir menor, pior ou abandonado. Medo de mergulhar nas
profundezas de si mesmo para iluminar a escuridão. Paradoxalmente, é esta escuridão
que alimenta o medo, em eterno ciclo de sofrimento e fuga. Fugimos para a vida do
outro na vã tentativa de esquecer a nossa. Então, sofremos por incompletude”.
“Dentro de cada um de nós vivem anjos e demônios, alimentados pelos nossos
sentimentos e pensamentos. Os bons e os ruins. O que fazer com cada um deles define,
passo a passo, quem somos e qual direção seguimos. Creia, neste momento da
existência, ainda precisamos de ambos, anjos e demônios, movidos por ideias e paixões
de muitas vertentes, para aperfeiçoar as nossas escolhas e fortalecer, em definitivo, os
laços com a luz”.
“Todos temos os mesmos demônios. Não negue nem reprima os seus. Envolva-os com
amor e os ilumine, como um bom pai cuida do filho. Use a enorme força vital deles para
trabalhar em favor dos seus anjos. Esta é a diferença”.

Falei que tinha que dar uma resposta ao caravaneiro logo pela manhã. Admiti que estava
arrependido e já sabia a decisão que tomaria. Ela disse: “A humildade é a virtude
primordial ao primeiro portal do Caminho. O portal da lucidez. Lucidez por começar a
entender quem sou. Só então, me abro as infinitas possibilidades para tudo aquilo que
posso me transformar, na alegre batalha para me tornar melhor do que fui ontem. A
existência não trata da absurda competição com os outros, mas no esforço da superação
sobre si mesmo. Essa estrada começa com a humildade. Em verdade, a humildade é o
início do amor pela vida. As virtudes são os nossos anjos, pois protegem e libertam; a
humildade é um dos anjos mais poderosos que existe”.
Sem pedir licença, se levantou e saiu. Fiquei acompanhando os seus passos, quando ela
se virou e disse: “Não esqueça de agradecer aos seus demônios pela lição de hoje”. Fez
uma pausa e finalizou: “Mas também não esqueça de educá-los”. Depois seguiu até o
alto de uma duna. Iluminada pelas estrelas, a vi bailando, sozinha, em comunhão com o
deserto.
O décimo-segundo dia da travessia – a marca do deserto

Amanhecia no décimo-segundo dia da travessia. Peguei uma caneca de café e me afastei


para as minhas reflexões matinais. Eu flanava entre mil pensamentos quando avistei um
homem que viajava com a caravana sentado sozinho na areia. Eu já tinha reparado nele
pelo fato de sempre estar destacado do grupo. Nunca o vira conversando com ninguém.
Decidi me aproximar. Perguntei se podia me sentar ao seu lado e ele aquiesceu com a
cabeça. Apresentei-me e disse que seguia para encontrar com o dervixe. Ele disse se
chamar Farid e retornava ao oásis, onde nascera, depois de muitos anos para rever os
parentes. Em um dia longínquo partira em busca de trabalho. Contou que tinha uma
pequena banca de grãos e temperos no mercado central de Marraquexe. Comentei que
ele deveria estar muito animado para esse reencontro depois de tanto tempo. Farid
disse que nem tanto; em verdade, voltava mais porque a mãe estava muito adoentada.
Confessou que o seu desejo era retornar apenas quando se tornasse um rico mercador
para que fosse admirado por todos. No entanto, lamentou, a vida não quis assim.
Comentou que não sabia a razão do seu negócio não prosperar, pois era esforçado e
honesto. Isto o entristecia. Falei que talvez pudesse ajudá-lo, uma vez que eu era
publicitário e a minha agência ajudara na construção de diversas marcas ao longo dos
últimos anos. Farid disse que talvez não fosse o caso, pois era apenas um mercador de
grãos. Sustentei que não importava o tamanho nem o tipo do seu negócio, o importante
era criar uma marca que não apenas o identificasse, mas que o diferenciasse dos demais
comerciantes; que o tornasse único. Contei de uma marca de motocicletas que agregara
o conceito de liberdade às motos que vendia. Falei também de uma fabricante de
celulares que dizia não vender apenas telefones, mas aparelhos que poderiam mudar o
mundo. Ele me olhou assustado e me perguntou se aquilo era honesto. Respondi que, a
depender da ótica, sim, que era possível criar uma marca que refletisse com total clareza
as qualidades do produto oferecido. Acrescentei que os exemplos apenas ressaltavam o
poder da criatividade, assim como o alcance que uma marca bem construída poderia
ter. Falei, ainda, que uma marca deve observar três conceitos importantes em relação
ao produto: a verdade, a inovação e a utilidade.
Farid se mostrou interessado. Ao partir, emparelhamos os nossos camelos para
conversarmos durante a marcha. Ele me fez várias perguntas, que respondi com
facilidade pela experiência que tinha. Expliquei que os três atributos eram de suma
importância: a verdade forja uma relação de confiança entre as partes; a inovação
permite possibilidades nunca antes imaginada e a utilidade torna a experiência
agradável.
Farid estava cada vez mais animado. A sua curiosidade me enchia de perguntas. Tudo
aquilo me entretinha e ofereci algumas ideias a respeito do que ele poderia fazer para
criar e consolidar uma marca ao seu negócio.
No meio do dia, a caravana fez uma rápida parada, como de costume, para uma refeição
ligeira e um breve descanso. Vi que Farid conversava com um dos peregrinos com quem,
há dias, eu tivera uma discussão. O fato me trouxe alguma estranheza pelo fato de o
mercador de grãos estar sempre sozinho. Afastei da mente os maus pensamentos por
saber os quão perniciosos são à vida. Quando a caravana retornou à marcha, notei que
Farid não parecia o mesmo. Falava menos, se limitava a respostas monossilábicas e
estava sisudo.
No final da tarde paramos para montar o acampamento e passar a noite. Na hora do
jantar procurei por Farid e o encontrei em uma animada conversa com o mesmo grupo
de peregrinos. Tentei me aproximar, mas fui desestimulado pela maneira como me
olharam. Passei na tenda onde as refeições eram servidas, enchi a cuia e me afastei para
comer sozinho. Uma desagradável sensação me envolvia. Não passou muito tempo,
Farid veio até a mim. Estava com as feições fechadas e os seus questionamentos
também tinham mudado. Mais pareciam acusações. Soube que eu cobrava caríssimo
pelos meus serviços e que a minha agência tinha um enorme histórico de fracassos. Falei
que não era bem assim, em nenhum momento tinha pensado em cobrar a ele por
qualquer consultoria, se tratava apenas de uma conversa amigável até como maneira
de tornar a viagem menos entediante. Sobre as campanhas sob responsabilidade da
minha agência, eram serviços que oferecíamos no melhor da nossa capacidade e o preço
cobrado era aquele que entendíamos como justo. O cliente tinha total de liberdade para
não aceitar. Sim, algumas campanhas não tinham atingido o objetivo pretendido. No
entanto, muitas outras se mostraram acertadas a ponto de alavancar algumas marcas a
níveis acima do imaginado. O risco faz parte do negócio; o risco faz parte da vida. Não
satisfeito, Farid disse estar horrorizado em saber que eu cobrava percentual nos lucros
auferidos pelas marcas trabalhadas. Rebati dizendo que aquilo era uma mentira.
Zangado, ele girou nos calcanhares e se foi.
Fiquei mal. Aquilo me pegou como uma tempestade de verão que chega de surpresa e
com intensidade. Tudo tão absurdo que parecia surreal. Eu precisava relaxar. Fui até o
bom homem do chá. Ele me atendeu com a delicadeza de sempre. Falou que percebia
em minha aura algumas alterações. Prontificou-se a preparar uma infusão que ajudaria
a me reequilibrar. No entanto, esclareceu, eu teria que fazer a minha parte: “Serenar o
coração e suavizar a mente. Esta é a essência de toda a cura; o chá é apenas um paliativo
de amor”. Falei que não precisava, mas ele insistiu. Quando ficou pronto, bebi devagar
e agradeci. Estava me sentindo um pouco melhor de que quando cheguei. Ao me retirar,
percebi que a bela mulher de olhos com cor de lápis-lazúli me observava de longe. Tentei
me aproximar, mas como havia algumas pessoas passando à minha frente, quanto
tornei a olhar para onde ela estava, a mulher havia desaparecido.
Sentei-me na areia em um lugar distante de todos. Aos poucos, sentimentos e
pensamentos foram sendo acomodados em seus devidos lugares. Eu não poderia deixar
que as tempestades alheias tivessem força para ofuscar o sol que brilhava em mim. Para
isto era preciso entender que o inconformismo dos outros quase nunca tem como causa
verdadeira as minhas escolhas. Sem esquecer que a recíproca sempre se aplica: a minha
intolerância em relação ao mundo não está no mundo, mas em mim. Isto me acalmou,
mas ainda restava uma ponta de desequilíbrio. Foi quando tomei um susto ao me dar
conta de que a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli estava sentada ao meu
lado. Perguntei o motivo de ela sempre sumir e aparecer como que por magia. Ela sorriu
e respondeu: “É uma das características da minha marca”. Dei uma gostosa gargalhada
e disse que o dia tinha sido terrível justamente por esse motivo: marcas. Ela apenas
voltou a sorrir em resposta. Em seguida, despejei cada detalhe de todos os
acontecimentos do dia, de como eu me sentia e de como já tinha conseguido melhorar.
Ela comentou sobre Farid: “A instabilidade emocional do mercador explica porque ele
tem dificuldade em fazer amigos. É também reflexo dos maus resultados em seu
negócio. Essas situações costumam andar casadas. Em verdade, ele flutua de um lado
ao outro, como uma nau sem leme, à deriva por não saber navegar. Ele escolheu como
destino uma situação abstrata. ‘Volto para casa quando enriquecer’ é se movimentar
pelo orgulho e pela vaidade. Não há nada de errado em ganhar dinheiro, mas há muitas
riquezas, bem mais interessantes, a serem descobertas na estrada de volta para a casa.
Voltar para a casa é retornar às origens e, de certa maneira, a si mesmo, onde o aguarda
o ouro da vida que ele, inconscientemente, tanto procura no mundo. Assim, por ter
dificuldade em descobrir quem é, fica sem saber para onde vai. É um homem quebrado;
é um homem sem rumo. É um homem sem uma marca”.
Em seguida, falou sobre o desconforto que eu sentia: “Não permitir que as sombras
alheias apaguem a nossa luz é um notável avanço e primordial à plenitude. Já temos
trabalho demais com as nossas próprias sombras. Não podemos alimentá-las com as
sombras do mundo”. Falei também como o bom homem do chá tinha sido gentil e
acolhedor. Ressaltei de como era aconchegante sentar para beber uma xícara de chá
com ele. A mulher explicou: “Faz parte da marca dele mostrar como o mundo pode se
tornar um bom lugar”.
Diante das minhas feições de espanto por ela insistir no assunto que foi gerador de todas
as controvérsias daquele dia, ela ampliou o raciocínio: “Viemos ao planeta para viver a
nossa essência. Cada qual a sua. Isto o torna uma marca única. Construir esta marca é a
parte que cabe a cada um de nós na arte da vida”.

“Você olha para o caravaneiro e encontra nele uma marca definida com solidez pela
segurança que o seu caráter transmite. O deserto, por sua vez, é uma marca destinada
a destruir marcas ultrapassadas e a construir marcas impensadas”.
Em seguida, perguntou: “Quais os atributos de uma marca”? Respondi que na
publicidade aprendemos que são três. Verdade, inovação e utilidade. Ela balançou a
cabeça em concordância e prosseguiu: “Na vida não é diferente”. Para minha surpresa,
repetiu as palavras que eu havia dito pela manhã ao mercador de grãos, em resumo a
esses três conceitos, como se tivesse me ouvido: “A verdade forja uma relação de
confiança entre as partes; a inovação permite possibilidades nunca antes imaginada e a
utilidade torna a experiência agradável”.
No entanto, aprofundou o raciocínio: “A verdade está ligada a sinceridade que temos no
trato pessoal e a honestidade com que nos portamos perante os outros. A verdade une
as partes. Ela fala da importância da simplicidade em ser e no viver; do valor da
humildade para não se perder na ilusão de se sentir maior do que os demais; da
necessidade da pureza para afastar as maledicências e os preconceitos no momento das
escolhas. Isto fortalece o espírito diante das adversidades inerentes à vida, perante as
maldades do mundo e cria um laço de confiança e bem-estar para com aqueles que
estiverem ao redor”.
“A inovação, por sua vez, se refere as indispensáveis transformações que precisamos
operar, cada um em si mesmo, para que possamos seguir em evolução. As marcas bem
construídas não encontram problemas em se aperfeiçoar à medida que os seus
criadores se transformam. Ampliar a consciência e expandir a capacidade de amar como
pilares para a construção de uma pessoa diferente e melhor a cada dia. Todos os dias
até o dia sem fim. Mas não basta. É preciso que, cada qual ao seu jeito, seja elemento
inspirador de mudança a quem estiver por perto. Mais pelo exemplo, menos pelo
discurso. Sempre pela livre vontade, jamais por imposição ou cobrança. O voo nos
inspira às asas. O que estimula a lagarta ao casulo são as borboletas”.
“Por fim, a utilidade. A utilidade nos fala sobre o amor. O amor por si e por toda a gente.
Ser útil é dar um sentido à existência, é plantar flores todos os dias nos jardins da
humanidade, ainda que a fronteira do planeta seja a esquina da sua casa. É a
misericórdia que transborda no coração daquele que se dispõe a dar a mão, a abrir a
porta, a sinalizar na estrada, a acolher na tempestade, a apagar o incêndio. Ao mergulhar
profundo para encontrar a si mesmo acaba por descobrir toda uma vida; ao oferecer a
outra face abre espaço para uma nova parte, ainda desconhecida. O cuidado com outro,
a utilidade que tiver para o mundo, por mais simples e humilde que seja, será sempre a
perfeita forja para a transformação da alma iluminada”.
“A vida tem que se tornar uma experiência verdadeira, inovadora e agradável por sua
utilidade”.
Fixou os seus olhos azuis em meus olhos tontos e concluiu: “Assim criamos as marcas
pessoais. Cada um com o seu jeito único e beleza incomparável de ser; todos
indispensáveis à obra. Veja o bom homem do chá ou o caravaneiro: não há nada que
esteja fora do indivíduo para a construção de uma marca bem-sucedida”. Em seguida
finalizou: “A propósito, você já começou a criar a sua marca pessoal”?
O décimo-terceiro dia da travessia – a Relatividade no deserto

O décimo-terceiro dia da travessia seguia modorrento. Sol, calor, o gingado enjoativo do


camelo e duna após duna, em um mar de areia sem fim. Peguei-me pensando que
algumas rotinas na caravana já estavam tão incorporadas aos viajantes que, se
porventura, alguma fosse suprimida, a maioria de nós sentiria falta. O café quente
servido no desjejum, a rápida parada no meio do dia para um breve lanche, o jantar ao
início da noite, o acender dos lampiões que iluminavam o acampamento, o bom homem
do chá, a ágil movimentação em montar e desmontar as tendas, a enigmática mulher
com os olhos da cor de lápis-lazúli galopando em seu cavalo negro, que aparecia e sumia
como que por encanto, eram alguns exemplos. Eu também já tinha me acostumado a
ver o caravaneiro, logo bem cedo pela manhã e ao final da tarde, se afastar com o seu
falcão pousado na grossa luva de couro que usava no braço esquerdo para o
adestramento matinal e vespertino da ave. Também me acostumara a vê-lo nesses
horários, sempre antes do treinamento, de joelhos na areia, em sua prece de duas
palavras, rogando por “luz e proteção”, conforme tinha me ensinado alguns dias antes.
Outro hábito que se tornara comum era a caravana parar em determinada hora do dia
para que os integrantes grupo fizessem as preces conforme os seus preceitos religiosos.
Naquele dia, quem tinha o camelo emparelhado ao meu era uma simpática e bonita
europeia que logo puxou conversa. Contei que seguia para conhecer um sábio dervixe,
“conhecedor de muitos segredos entre o céu e a terra”. Ela disse se chamar Ingrid e que
era astrônoma. Trazia em sua bagagem alguns telescópios para observar uma
determinada constelação, objeto dos seus estudos, em razão da posição privilegiada do
oásis no meio do deserto. Como as estrelas sempre foram motivo de enorme fascínio
para mim, me derramei em indagações, as quais ela respondeu com boa vontade.
Quando a caravana interrompeu a marcha para a oração, ela, sem qualquer traço de
agressividade, lamentou a perda de tempo. Acrescentou, sempre com delicadeza, que
não entendia como a humanidade ainda desperdiçava tempo e energia nessa busca que
considerava sem sentido. Disse se espantar que, mesmo após o avanço de séculos em
conhecimento, as pessoas continuavam amarradas em crenças absurdas ou no anseio
por algum insensato contato metafísico.
Em seguida, ela quis saber se eu acreditava em Deus. Apropriei-me de uma resposta
dada por um alquimista diante da mesma pergunta e respondi que “não é uma questão
de acreditar. Eu o sinto”. A simpática astrônoma disse não fazer sentido. Explicou que
qualquer divindade era resultado de conjunções psíquicas. A ciência, por tratar da
realidade precisava de elementos físicos para a sua compreensão e aceitação. Ou seja,
“o que não há na natureza, não existe na vida”. Para ela, Deus era uma ficção como
tantas outras. Questionei se ela acreditava em matemática. A astrônoma respondeu que
sim. Acrescentou que a matemática era a base da astronomia. Argumentei que a
matemática também era um produto psíquico elaborado pela mente humana, pois não
encontramos equações em árvores nem cálculos na beira da praia. No entanto, apesar
de também ser uma criação cerebral, logo, uma ficção, a matemática tinha a capacidade
de explicar a natureza e seus fenômenos. Ela rebateu dizendo que os romances de
ficção, meras criações mentais, comprovam a grande capacidade da humanidade em se
encantar com ilusões. Deus era somente mais uma dessas narrativas. Falei que as
histórias, mesmo as mais antigas, se sustentam em arquétipos que explicam o
comportamento padrão das pessoas, seja quanto às suas dificuldades, seja em relação
aos seus ideais. Por isto elas, as histórias, emocionavam pela identificação que
provocavam. Ingrid perguntou o que Deus tinha a ver com isso. Respondi que todas as
pessoas tinham, em graus de desenvolvimento distintos, o padrão de Deus em si, como
um arquétipo-mor. Mesmo aqueles que O negam com toda a força do consciente,
inconscientemente buscam os valores divinos existentes nas nobres virtudes e no amor
disseminados através dos tempos. Dos facínoras aos santos, há o sagrado em todos.
Acrescentei que sagrado era tudo aquilo que me tornava uma pessoa melhor e, em
essência, a busca de todos. É a percepção e a consequente manifestação de Deus,
sempre em movimento dentro de cada indivíduo. Assim, mesmo aqueles que não
acreditam, O buscam sem saber. No fundo, todos querem se afastar de círculos viciosos,
onde reinam a ignorância, o medo, o egoísmo, a inveja, o orgulho, a vaidade, o ciúme,
entre outras sombras, para viver em círculos virtuosos onde se pratica a humildade, a
compaixão, a sinceridade, a pureza, a generosidade, a justiça e, principalmente, o amor,
como exemplos de muitas outras virtudes. As virtudes são poderosas fontes de luz. Logo,
acreditar ou não em Deus, naquele momento da existência, não fazia diferença, desde
que o indivíduo incorporasse em si, a cada dia um pouco mais, cada uma das virtudes
como ferramentas indispensáveis à luz. Essa era a maneira como nos aproximamos de
Deus, sejamos ateus, sejamos religiosos.
A astrônoma argumentou que não sentia a menor vontade de conhecer Deus, embora
reconhecesse o valor das virtudes. Expliquei que o aprimoramento das virtudes é o
instrumento único da evolução. Muda o mundo na medida das mudanças pessoais;
transformar a si mesmo é a possibilidade singular de transformação da vida. A lapidação
das virtudes nos torna plenos. A plenitude se completa nos cinco pontos de luz
alcançados pelo ser na existência: a liberdade, a paz, a dignidade, o amor incondicional
e a felicidade. Em outras palavras, era o Graal procurado pelos templários, a Pedra
Filosofal que fascinava os alquimistas na tentativa de transformar o chumbo da
existência no ouro da vida, a Iluminação ensinada pelas tradições filosóficas orientais e
também a preparação para o encontro com Deus de que falam as religiões monoteístas.
Aperfeiçoarmo-nos em cada uma das virtudes é também o Caminho dos esotéricos.
Queira ou não, cedo ou tarde, isso muda a sua percepção sobre Deus por alterar o
entendimento quanto ao universo e em relação a si mesmo.
“Tão real, tão ilusório e tão metafísico como o mundo em que vivemos”, se intrometeu
na conversa, para a nossa surpresa, a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli, ao
passar por nós montada em seu vigoroso cavalo negro. Olhou-nos por instantes e seguiu
adiante.
A caravana parou para a oração diária. Eu fiquei observando o caravaneiro em sua prece.
Sempre afastado, ele tinha como ritual, ao ficar de joelhos, desenhar um círculo na areia,
para depois se curvar e rezar. Eu não sabia o que significava, mas na primeira
oportunidade iria perguntar. As pessoas que não foram rezar aguardaram em respeitoso
silêncio.
A astrônoma me puxou para um canto e, em tom de cochicho para não atrapalhar as
preces, perguntou se eu acreditava em sonhos. Respondi que o assunto era bem
complexo. Variava de meras ilações quanto a desejos e medos do ego no sono raso até
mensagens importantes trazidas pela alma, em viagem a outras esferas de existência,
quando desprendida do corpo, durante o sono profundo. Ela confessou que naquela
noite acordara sobressaltada com um terrível pesadelo. Sonhara que a caravana tinha
sido atacada por tribos nômades do deserto. Tudo lhe parecera tão real que não
conseguiu voltar a dormir. Deu de ombros e comentou que sonhos eram bobagens,
frutos de devaneios do inconsciente.
Em seguida, o caravaneiro, ao terminar a oração, se levantou e olhou com seriedade
para todos da caravana, como se procurasse por alguém. Como quem não encontra o
que procura, perguntou se alguém sonhara naquela noite. Não um sonho qualquer, mas
um sonho extraordinário. Antes que alguém pudesse se manifestar, por puro instinto,
apontei para a Ingrid ao meu lado. O caravaneiro a olhou por instantes e se aproximou.
Trazia consigo em firmeza inabalável. Ele quis saber sobre o sonho da astrônoma. Ela
disse que não passava de uma grande bobagem e, acreditava, não merecia ser contado.
O caravaneiro insistiu. Constrangida, ela narrou o pesadelo que tivera. Para a sua
surpresa, o caravaneiro inquiriu por mais alguns detalhes. Após ouvir a tudo com
atenção, sem hesitar, chamou um dos batedores mais experientes que compunha a
segurança da caravana e determinou que se adiantasse para avaliar o perigo.
Determinou que os demais aguardassem até a volta dele. Não demorou, o batedor
retornou aflito com a informação de que um bando estava escaramuçado no alto de um
desfiladeiro, onde a caravana passaria. Imediatamente o caravaneiro optou por uma
rota alternativa, mais longa, porém mais segura, dificultando a possibilidade de uma
emboscada.
O dia seguiu tenso, com todos os olhos atentos ao horizonte. Ao final da tarde, a
caravana parou para montar o acampamento e passarmos a noite. O caravaneiro
garantiu que, embora o risco fosse inerente à travessia, o perigo havia diminuído
consideravelmente. A sua credibilidade fez com que a tranquilidade voltasse a reinar
entre os viajantes. Jantei ao lado da astrônoma, embora tenhamos ficado em silêncio.
O caravaneiro se aproximou e agradeceu a ela. Em resposta, a astrônoma disse ter
apenas relatado um sonho, nada demais. Confessou que tinha ficado encantada com a
coincidência entre o sonho e o fato. O caravaneiro comentou: “O que você chama de
coincidência, em verdade, é sincronicidade.” Diante do olhar de espanto dela,
acrescentou: “Há mais coisa entre as estrelas e o deserto do que somos capazes de
imaginar.” E se foi.
De novo a sós, ela comentou comigo que estava surpresa de o caravaneiro falar em
sincronicidade, pois era um conceito polêmico e ainda muito discutido na ciência.
Explicou que foi criado pelo psicanalista Carl Jung e serviu de base para Albert Einstein
desenvolver a famosa Teoria da Relatividade, com a qual mudou e aperfeiçoou muitos
dos conceitos que temos sobre a Física e a Mecânica Quântica, pois mexe de maneira
radical, e ainda pouco entendida, com a ideia convencional de espaço e tempo,
tornando-os curvos e não mais lineares como estamos acostumados a lidar. Acrescentou
que na astronomia esses conceitos, embora cunhados há cerca de um século,
continuavam a trazer uma enorme revolução e muita discussão.
Foi quando, então, ouvimos uma voz a atrás de nós: “As realidades são distintas entre
as diversas esferas de existência. A realidade daqui se revela uma ilusão vista por outro
prisma. Alguns dos novos conceitos para os cientistas já são milenares para os
espiritualistas. Em diferentes esferas vibracionais as ideias de espaço e tempo lineares,
da maneira como as entendemos como realidade, se tornam relativas. No sono
profundo, quando cai o nível de vigília entre o corpo e o espírito, que estão integrados
em unicidade, enquanto aquele descansa este viaja a outras esferas de vida, onde o
espaço-tempo não existe como o compreendemos. Pode-se ir ao passado e ao futuro;
pode-se lembrar ou não. Podem os sonhos ser bons ou ruins, a depender do que foi
experenciado. No entanto, é preciso ficar atento, pois nem todo sonho é uma notícia
trazida pela alma. O mais comum é se tratar de criações oriundas dos medos e desejos
do ego, sempre bem atuante nos sonhos onde não houve, durante o sono, o
desprendimento necessário entre o corpo e o espírito.” Era a bela mulher de olhos da
cor de lápis-lazúli. Não a tínhamos percebido. A astrônoma se espantou muito; eu, por
estar acostumado a essas aparições súbitas, apenas um pouco. Em seguida, a mulher de
olhos azuis aprofundou um pouco mais a explicação: “Há outras formas disso acontecer,
como por exemplo através de práticas contemplativas como a meditação e a oração
profundas. Elas também abrem outras perspectivas, como a de levar a um estado
alterado de consciência, no qual, em verdade, se acessa o inconsciente. Neste está
guardado o arquivo das memórias ancestrais.”
Ainda sem nos refazer do susto, a mulher disse para a Ingrid: “Os bons espíritos do
deserto, aliados ao seu guardião pessoal, a conduziu durante o sono, em outra
frequência de tempo e espaço, ao momento em que a caravana sofreria o ataque pelos
nômades. Foi um aviso de proteção. Como você não entendeu a seriedade da situação,
por não acreditar no canal de comunicação, diante da iminência do perigo, tornaram a
avisar, dessa vez ao caravaneiro, quando ele abriu um portal com a prece. A ele,
caravaneiro, apenas foi permitido saber que alguém do grupo tinha tomado
conhecimento da tragédia que aconteceria com a caravana, sem saber exatamente
quem e qual. Até que ele chegou até você e nos foi possível escapar.”
Ingrid sacudiu a cabeça e falou que aquela história de espíritos do deserto e guardiões
pessoais era loucura. Pediu desculpas por sua sinceridade, mas o mero acaso entre um
sonho e a realidade não eram cientificamente suficientes para mostrar os novos
conceitos de espaço-tempo contidos na complexa Teoria da Relatividade. A mulher de
olhos azuis deu de ombros e respondeu de modo sereno: “Não tenho a intenção de
comprovar teses científicas ou de tentar convencer quem quer que seja sobre a vida
como a vejo. Apenas falo da maneira como sinto o universo funcionar, principalmente
o que está além do que podemos perceber com os cinco sentidos básicos. Pode ser a
verdade ou apenas uma conversa sem valor, mas é o meu olhar. Por favor, não me leve
a mal nem precisa me acompanhar. O encanto pela luz não deve ser fruto de uma mera
crença, mas do mais puro entendimento.” Fez menção em se retirar, quando a
astrônoma, de modo educado, quis saber por que “Deus ou os bons espíritos” a fizeram
interlocutora de um assunto tão importante, através do sonho que tivera, diante de
tantas pessoas religiosas, se justamente ela, Ingrid, não acreditava em suas existências?
A bela mulher de olhos da cor de lápis-lazúli arqueou os lábios em doce sorriso e disse:
“Acreditar é um detalhe de menor importância. O que vale é ter um bom coração.” Fez
uma pausa para finalizar: “E o seu coração é enorme. Isto torna segura a ponte para que
possam atravessar; isto a torna bem próxima a eles.” E se foi.
Naquela noite, eu e a astrônoma deitamos na areia e ficamos observando o manto de
estrelas no céu do deserto. Por um longo tempo não foi dita palavra. Ingrid quebrou o
silêncio. Era uma pergunta retórica: “Qual a razão de existir das estrelas?” Por não saber,
não respondi. Dormimos ali.
O décimo-quarto dia da travessia – as maravilhas da impermanência

Acordei com o céu do deserto ainda estrelado. Ao Leste o sol anunciava levemente a sua
hora colorindo uma pequena faixa do horizonte em tom pastel. Ingrid, astrônoma que
tinha adormecido na areia ao meu lado no dia anterior, estava com os olhos abertos,
encantada com as estrelas. Quando ela me percebeu também desperto, comentou do
seu fascínio pelos astros celestes e por todo mistério que o universo ainda encerra. Falei
que o mistério existe na proporção indireta do nosso conhecimento. Porém, curioso,
perguntei sobre o que ela pensava ao falar aquilo. “O nosso céu é o céu do passado”,
ela respondeu. Eu disse que não tinha entendido. Ingrid explicou que como as estrelas
estão a uma distância absurdamente grande, a muitos anos-luz de nós, significa que as
estrelas que estávamos vendo naquele momento já não estavam mais ali e podiam até
mesmo nem mais existir. A astrônoma falou que as estrelas explodem quando terminam
o seu ciclo de existência, mas em razão da enorme distância, a imagem de um fato
ocorrido no espaço demora anos para chegar até a Terra. Ou seja, aquilo que meus olhos
viam podiam não mais existir. Apontou para uma estrela qualquer e concluiu: “Aquela
estrela pode ser apenas uma ilusão em razão da possibilidade de, na realidade, não mais
existir. A ilusão permeia e se mistura à realidade por todo o tempo quando estudamos
astronomia.” Comentei que eu tinha a sensação de que na vida também era assim; nem
sempre era fácil discernir a ilusão da realidade. Permanecemos em silêncio, olhando
para as estrelas, pelo tempo de o sol escalar mais alguns poucos graus e o acampamento
despertar. Após levantar e arrumar as nossas coisas para partir para mais um dia de
travessia, fomos tomar o desjejum. Enquanto bebia um delicioso café fresco, observei
que uma enorme duna que havia à nossa frente na tarde anterior, quando acampamos,
tinha desaparecido, varrida pelo vento da noite. Confessei para a Ingrid que a
instabilidade das coisas me trazia desconforto. Ela apenas deu de ombros como quem
diz que é inevitável e se afastou para cuidar de alguns afazeres. Reservei um lugar para
a astrônoma alinhar o seu camelo ao meu. Eu tinha adorado conversar com ela e
desejava a sua companhia. Como até a hora de iniciar a marcha ela não tinha aparecido,
passei os olhos por toda a caravana a sua procura. Foi quando a vi pronta para prosseguir
ao lado de outra pessoa. De imediato, sentimentos ruins se apossaram de mim.
Esforcei-me para controlar o mal-estar que eu sentia. Em vão. Tentei me distrair com a
paisagem do deserto, mas tudo me pareceu de uma insuportável mesmice. Naquele dia,
quem seguiu com o camelo alinhado ao meu foi uma senhora de idade avançada, com
a pele maltratada pela intempérie do deserto, que, porém, aparentava gozar de boa
saúde. Percebi que ela me olhava como se fosse capaz de ver além de mim, além do
meu corpo; como se fosse possível ler a minha alma. Como isto me trazia um grande
incômodo, a olhei, com a expressão séria, fixamente nos olhos, para que parasse com
aquilo. Ela sorriu deixando à mostra um dente de ouro. Em resposta, virei o rosto para
frente como quem diz que quer ficar sozinho.
Quando eu esperava que a caravana parasse no meio do dia para um breve descanso e
uma leve refeição, como de costume, veio a ordem do caravaneiro comunicando que
seguiríamos sem a parada para que fosse possível acamparmos ao lado de um poço
onde nos reabasteceríamos com água. Esta mudança de rotina aumentou o meu já
enorme desconforto. Mesmo sem que eu nada perguntasse, a senhora que seguia ao
meu lado disse: “Escolha quem vai te acompanhar, não apenas na caravana, mas em
todos os dias da tua vida.” Falei que quem eu desejava que estivesse ao meu lado não
quis estar. Ela, como se soubesse que eu me referia a Ingrid, aconselhou: “Não me refiro
a outra pessoa, pois não somos nem devemos nos sentir donos de ninguém. Isto é
dominação, raiz de muito sofrimento. Para ser livre é indispensável respeitar a liberdade
alheia.” Fez uma pausa para prosseguir em seguida: “Digo quanto aos seus anjos e
demônios. Quem determina a aproximação, seja de uns, seja de outros, é você mesmo.
Luz ou sombras se definem em sua mente e em seu coração. Assim se constrói a
realidade; todo o resto é ilusão.” Tornou a pausar antes de concluir: “Aceite que as
circunstâncias mudam quando a vida precisa avançar em outra direção. Negar a
evolução é se aprisionar à ilusão; se opor à mudança é desperdiçar a melhor
oportunidade oferecida por uma nova realidade”. Sacudi a cabeça como quem diz que
ela não sabia nada sobre a minha vida e segui calado. A senhora também não disse mais
qualquer palavra.
Ao cair da tarde chegamos ao poço. O acampamento foi montado e toda a caravana se
abasteceu com água. No jantar, o delicioso guisado de carne-seca de carneiro com grãos
cozidos não foi servido como de costume, sendo substituído por uma sopa de aparência
estranha. Entre a decepção e a irritação, me recusei a jantar. Como se não bastasse,
reclamei com um dos cozinheiros, que me respondeu de modo grosseiro. Afastei-me
para ruminar a mágoa que eu sentia, agora não apenas de Ingrid, mas de toda a caravana
que parecia estar em complô contra mim. Não demorou, Ingrid se aproximou. Ela disse
que estava me procurando para conversar, pois queria contar da incrível conversa que
tivera durante o dia com um astrólogo que seguia para o oásis junto com a caravana.
Trazia uma cuia de sopa, que segundo o seu paladar, estava deliciosa. Animada, falou
que travou um embate teórico com o astrólogo entre a ciência e o misticismo;
astronomia versus astrologia. Sarcástico, perguntei se ela se sentia vitoriosa. A
astrônoma percebeu o tom da minha voz e, ao invés de responder a provocação, quis
saber a razão de eu estar magoado. Expliquei os meus motivos. Ela comentou que eu
estava sendo imaturo. Disse, ainda, que poderíamos conversar para esclarecer. Dando
vazão ao meu ressentimento, falei que não estava disposto naquele momento. Ingrid
falou que entendia e se foi. Fiquei ainda pior.
Naquele momento estar no meio do deserto seguindo em caravana para um oásis na
tentativa de conhecer um sábio dervixe, “conhecedor de muitos segredos entre o céu e
a terra”, me pareceu uma ideia absurda. Desejei imensamente estar no conforto da
minha casa, vivendo a rotina que me agradava, ao lado daqueles que me amavam,
quando vi a bela mulher de olhos da cor de lápis-lazúli sentada na areia, afastada de
todos, em posição de meditação. Cheguei próximo, mas hesitei em interrompê-la. Sem
abrir os olhos, ela me convidou para sentar. Ao me acomodar, eu quis saber como ela
tinha me percebido com os olhos fechados. A mulher respondeu como quem diz o óbvio:
“A energia densa que você está pulsando é perceptível como os ventos que antecedem
a uma tempestade”. Contei a ela que não tinha tido um dia bom e resumi os fatos. Ela
me olhou como quem olha a uma criança e comentou: “Não vejo nada de tão grave que
justifique a sua insatisfação”. Contestei sob o argumento que, no dia anterior, Ingrid
tinha despertado em mim um grande afeto, para depois trocar a minha companhia por
outra pessoa que ela acabara de conhecer. Citei o famoso trecho do livro de Saint-
Exupéry, no qual o notável escritor ensina que “és responsável por tudo aquilo que
cativas”. Logo, segundo o meu raciocínio, Ingrid tinha que ter sido mais atenciosa
comigo. A mulher de olhos azuis explicou: “O ensinamento é precioso, no entanto, como
toda a sabedoria, precisa de um contexto adequado e dos devidos limites. Ser
responsável por você não significa que ela tenha que suprir todas as suas carências nem
atender aos desejos oriundos de um quadro emocional instável. Cativar é oferecer amor,
isto não torna ninguém responsável pela felicidade alheia pela evidente impossibilidade
da empreitada. Ser responsável pelo outro é oferecer o melhor que temos, com o amor
que já possuímos, de maneira generosa e honesta. Isto é bem diferente de estarmos
obrigados a atender a todos os desejos alheios. Impor a alguém tamanha obrigação é
um abominável exercício de dominação, que deve ser rejeitado com firmeza e
delicadeza; não se pode aceitar a transferência de responsabilidade na busca pela
própria plenitude. O ensinamento do alquimista francês foi deturpado gerando
cobranças insensatas nas afeições, que por se tratar de amor, a cobrança, por si só, se
mostra indevida. Assim, conduzimos o raciocínio por vias tortuosas para que entreguem
a felicidade que nos cabe buscar. Atolados na inércia pelo medo do trabalho e do
desconhecido, ambos inerentes à busca e à evolução, reclamamos do mundo e
amaldiçoamos a vida”. Olhou me com seriedade e concluiu: “Na tentativa de manipular
a realidade acabamos aprisionados na ilusão.”
Balancei a cabeça em concordância, mas lembrei que Ingrid poderia ter sido um pouco
mais atenciosa e paciente comigo ao invés de simplesmente levantar e sair quando eu
disse que não queria conversar. A bela mulher questionou as minhas intenções: “Por
que ela tinha que insistir? Para te mimar como se faz com as crianças? É comum
negarmos o crescimento na ilusão de mantermos a permanente segurança que os
adultos nos transmitem na infância. No entanto, tudo na vida muda porque todos
precisam crescer. É necessário que seja assim. Sem transformação não há evolução. No
entanto, temos medo das novas circunstâncias da vida por não saber se conseguiremos
lidar com elas. Trazemos o vicio ancestral de dominar tudo e todos que nos cercam ao
invés de nos concentrar em equilibrar o universo que nos habita. Estamos condicionados
a impor ou manipular as escolhas alheias ao invés de simplesmente respeitá-las. Ao
ansiar pelo controle do mundo perdemos o poder sobre nós mesmos e desperdiçamos
as maravilhas da vida. Somente com a alma madura nos sentiremos seguros. Vivemos
no mundo o universo que nos habita; sejam os conflitos, seja a harmonia. Pensar que a
dor que sentimos é de responsabilidade dos outros é uma ilusão doce de realidade
amarga.”
Falei que, de certa maneira, era isso que a anciã tinha me dito sem que eu tivesse
entendido. Acrescentei, por curiosidade, que havia estranhado o dente de ouro que
aparecia quando ela sorria. A mulher de olhos azuis me olhou surpresa e comentou:
“Você não me falou nada sobre ela. Poderia descrevê-la para mim?” Eu o fiz em
detalhes, pois ela havia marchado ao meu lado por todo aquele dia. A bela mulher me
perguntou se eu vira a anciã na caravana em outro dia qualquer. Foi quando me dei
conta que, na verdade, apesar de duas semanas de convívio, todas as pessoas eram, ao
menos, conhecidas de vista. No entanto, eu não me recordava de tê-la visto. A mulher
com os olhos da cor de lápis-lazúli esclareceu para o meu espanto: “Não havia ninguém
marchando ao seu lado hoje. Melhor dizendo, nenhuma pessoa. A anciã a que você se
refere é um espírito; um bom espírito que acompanha e protege as caravanas. É uma
guardiã das areias conhecida como a Cigana do Deserto. Ela é muito sábia e tem muita
luz. Conversar com ela é uma oportunidade concedida a pouquíssimos viajantes.”
Tentei prosseguir a conversa, porém fui desaconselhado pela mulher que colocou o
dedo sobre os lábios em sinal de silêncio. Em seguida, passou a mão sobre os olhos como
quem pede para que eu os fechasse. Entendi que era momento de quietude e reflexão.
Atendi a sugestão. Não demorou, ao serenar a emoções, todos os acontecimentos do
dia se passaram como um filme em minha tela mental. As várias situações que estavam
fora das minhas previsões e desejos, desde a escolha de Ingrid em marchar ao lado de
outra pessoa até a mudança do cardápio no jantar se apresentaram com clareza. Ao me
recusar a viver as possibilidades que se apresentavam fora do meu controle e vontade,
me senti mal o dia todo. Deixei-me aborrecer pelo mero fato de não pararmos para
descansar no meio do dia, não conheci o sabor da sopa, briguei com o cozinheiro e, pior,
por estar envolvido no ciúme que sentia de Ingrid, desperdicei a rara oportunidade de
aproveitar melhor a conversa com uma guardiã do deserto. Enquanto eu invejava a
conversa da astrônoma com o astrólogo, não percebi o encontro fantástico que a magia
da vida me proporcionava.
Aos poucos os pensamentos se alinharam para compor um mosaico de ideias. Entendi
que ao tentar controlar o mundo eu perco a mim mesmo e a vida. Ao contrário, ao
harmonizar o meu universo interior, encontro comigo, me equilibro com o mundo e
abraço a vida. Apenas a impermanência de todas as coisas pode me ensinar isto. A
impermanência oculta a mestria da evolução ao descortinar o véu da ilusão.
O décimo-quinto dia da travessia – navegar sem água
O dia amanhecia. Sentado na areia com uma caneca de café fresco na mão, eu observava
o caravaneiro adestrar o seu falcão. Era encantador constatar que ela sempre retornava
com o seu alimento, apesar da aridez do deserto. Os olhos sagazes da ave conseguiam
encontrar algo onde, para olhos despreparados, não havia nada. Assim que o falcão
pousou na grossa luva de couro que o caravaneiro usava no braço esquerdo, me levantei
para me preparar para aquele dia da travessia. Enquanto eu colocava o meu alforje no
camelo, ouvi a conversa descontraída de um grupo de mercadores que também
integravam a caravana rumo ao oásis. Um deles, bem jovem, comentava que esperava
logo ter condições de comprar uma bela casa em um aprazível bairro de Marraquexe,
quando, então, pediria a sua namorada em casamento. Acrescentou que precisava de
um bom lugar para criar os filhos que planejavam ter juntos. Outro, disse que não tirava
férias há muitos anos. Estava cansado e precisava descansar. No entanto, somente faria
isso quando conseguisse abrir a sua sonhada loja de tapetes no mercado central da
cidade, pois queria ter condições de educar os filhos em boas escolas. Um terceiro
mercador, mais velho, que também fazia parte do grupo, contou que, apesar de ser
dono de várias lojas, também não tirava férias há muito tempo, quando almejava
peregrinar a Meca. Esperava que o filho voltasse do exterior, onde fora cursar a
universidade, para que assumisse o comando dos negócios da família. Alegou que não
confiava em mais ninguém. Tudo arrumado, a caravana aprumou para partir. Para minha
surpresa, quem alinhou ao meu lado foi Ingrid, a astrônoma, com quem eu tinha me
desentendido no dia anterior. A proximidade dela me alegrava o coração.
Logo começamos a conversar. Contei a ela a conversa dos mercadores que acabara de
ouvir e comentei o meu espanto pelo fato de as pessoas sempre estarem à espera de
um acontecimento futuro para fazer aquilo que, acreditam, as farão felizes. Ela me
perguntou o que eu faria quando retornasse do oásis, após o meu encontro com o sábio
dervixe, “conhecedor de muitos segredos entre o céu e a terra.” Falei que era difícil
responder, pois não tinha a menor ideia do que iria acontecer. Confessei que, no fundo,
esperava por algo transformador. Ingrid quis saber se eu precisava estar com o sábio
dervixe para mudar o rumo da minha vida, caso eu assim desejasse. Fiquei incomodado
com o questionamento da astrônoma. Contei que já tinha realizado transformações
angulares no curso da minha existência. Revelei que tinha formação em medicina, a qual
abandonei para trabalhar com publicidade. Acrescentei que fiz isso quando me dei conta
que o meu dom não era curar, mas criar. Falei, ainda, que eu estava triste e perdido
naquela época. Conhecer a Ordem foi primordial para as mudanças que eu precisava
fazer. Ela discordou. Falou que as mudanças já deveriam estar maduras em mim, mesmo
que inconscientes. O convívio no mosteiro apenas facilitou o florescimento delas. Ingrid
disse que, assim como na conversa dos mercadores, ficar à espera de algum
acontecimento para efetuar as mudanças que sentimos necessárias era um erro.
Argumentei que nem sempre temos as condições de fazer o que desejamos e que, sim,
algumas vezes precisamos esperar por algo que está fora do nosso alcance.

Perguntei a ela o que pensava em fazer na volta da caravana, após ter estudado a
constelação a que se propunha, visível apenas do oásis. A astrônoma explicou que, a se
confirmar as suas desconfianças, iria escrever um artigo sobre o assunto. No mais,
seguiria como professora. Aguardava a abertura de concurso para uma vaga na cátedra
da universidade, pois vinha se preparando há tempos para isto. Falei que, como todas
as pessoas, ela também esperava por algo, sem o qual não poderia realizar as
pretendidas mudanças em sua vida. Ingrid discordou. Explanou que havia uma diferença
entre as situações que estavam além das nossas escolhas e aquelas que estavam ao
nosso alcance, mas que adiávamos por medo, egoísmo ou ignorância quanto ao próprio
poder de transformação. Entender quando estamos verdadeiramente diante de um ou
outro momento era um ato de sabedoria. E de coragem.

Argumentei que ela estava sendo contraditória; a astrônoma negou. Em seguida, contou
que começou a sua carreira profissional como pesquisadora no observatório da sua
cidade. Seguia um plano de estudos traçado pelo coordenador da sua equipe. Após
alguns anos percebeu que tudo tinha ficado chato, pois o seu trabalho se limitava a
verificar um conhecimento já consolidado pela ciência. Falou que era um trabalho
importante, como são todos os trabalhos, mas que não era o seu dom. Disse que o seu
dom era descobrir, desbravar, para depois compartilhar os novos conhecimentos. Isto a
motivava, a tirava da cama todos os dias, animava a sua vida. Então, determinada da
transformação que precisava, apesar da opinião contrária de algumas pessoas próximas,
pediu demissão do observatório e partiu em viagem para a Antártica, decidida a realizar
observações em uma determinada nebulosa, apenas visível a partir do Polo Sul. Na volta
enviou o resultado dos seus estudos, em formato de artigo, para uma revista científica.
Após alguns meses, apesar das incertezas, não havia arrependimento. O seu coração lhe
dizia que tinha feito a coisa certa, pois tinha ido ao encontro com o seu sonho. A matéria
acabou sendo publicada e, em razão da boa repercussão, ela foi convidada para
ministrar aula na universidade na qual era professora. Acrescentou que amava o
magistério pela possibilidade permitida em realizar pesquisas e difundir o
conhecimento. Falei que ela tinha dado sorte, pois poderia estar desempregada e
passando por sérias dificuldades. Ela balançou a cabeça e disse que, sim, era possível
que isso tivesse acontecido. Porém, assumira o risco e os resultados que lhe são
inerentes. Havia o risco que tudo desse errado. No entanto, o risco de ser feliz e de viver
o seu sonho através do seu dom também era real. Então, fez uma escolha; a fez porque
queria mudar a rota da sua existência. Sempre existe uma possibilidade de escolha,
quase sempre fora das condições ideais de existência, quando se quer transformar a
própria vida. Entretanto, as condições ideais não estão no mundo, mas dentro de você.
Explicou que por ser uma mudança interna, em um lugar sagrado onde, salvo cada um
a si mesmo, ninguém tem autorização para impedi-lo e, melhor ainda, você possui toda
a permissão para criar.

Embora de alguma maneira as palavras de Ingrid me incomodassem, a conversa estava


interessante. Até que, para o meu espanto, e sem acreditar no que meus olhos viam, a
caravana se deparou com um navio encalhado no meio do deserto, a milhares de
quilômetros do mar. O caravaneiro avisou que ali era o ponto da breve parada para
descanso e uma ligeira refeição que costumávamos fazer no meio do dia. Todos os
integrantes da caravana, mesmo os mais experientes, estavam maravilhados diante da
cena improvável. Ouvi um turista, que viajava com frequência para visitar parentes que
residiam no oásis, que no ano anterior a caravana encontrara o navio em outro local,
que não aquele em que estávamos. Fato que, segundo esse turista, comprovava que o
navio não estava encalhado, mas seguia navegando mesmo sem água. “Mistério” era a
palavra mais ouvida naquele instante de êxtase.

Fotografamos o navio dezenas de vezes para que ninguém duvidasse da história que
iríamos contar quando voltássemos para casa. Comentei com a Ingrid que mesmo assim
muitos amigos não acreditariam em nossos relatos. A astrônoma sorriu e disse que ela
mesma ainda custava a crer naquilo que seus olhos estavam lhe mostrando. Falou que
estava com fome e iria pegar alguma coisa para comer. Sozinho, me afastei para
fotografar à distância, com maior amplitude, quando me deparei com a bela mulher com
olhos da cor de lápis-lazúli sentada na areia, quieta, observando a tudo de longe.
Perguntei se podia me aproximar. Ela balançou a cabeça em permissão e apontou com
o queixo um lugar para eu me sentar ao seu lado. Ficamos olhando para o absurdo navio
por algum tempo até que perguntei se ela sabia algo sobre aquele mistério. A mulher
explicou: “O navio faz parte das lendas do deserto.” Falei que lendas são histórias de
ficção. Já o navio, ao contrário, estava na minha frente e era real. Sem dar importância
ao meu comentário, como se a realidade também fosse naturalmente colorida com as
tintas do irreal, ela prosseguiu: “Narra a lenda que havia um intrépido marinheiro que
desde muito jovem esteve embarcado nesse navio. O seu sonho era viajar até um porto
longínquo chamado Morserus, por causa de um sonho que tivera certa noite. Neste
sonho, ao desembarcar em Morserus, encontraria a fortuna e a mulher da sua vida. Lá
encontraria toda a felicidade que almejava. Como era um mero marinheiro, sujeito às
ordens do capitão, não tinha como seguir para o destino desejado. Com o passar dos
anos acabou se tornando o comandante do navio. Podia, então, seguir na direção para
onde o seu sonho apontava. No entanto, agora tinha outras e maiores
responsabilidades. Ora não podia ir em razão de alguma carga que precisava entregar
em ponto distante do planeta; ora porque as condições meteorológicas não
aconselhavam. Sempre havia risco de tempestades e naufrágio. O tempo passou. Esse
capitão manteve o barco singrando placidamente pelos mares do mundo enquanto a
sua existência permitiu. Nunca naufragou, mas também nunca chegou em Morserus.”
“Nunca soube o que lhe reservava esse porto encantado. Entretanto, embora não
revelasse a ninguém, nunca esqueceu do sonho. Desculpava-se em razão de nunca ter
tido as condições adequadas para viajar para o porto do seu sonho. Convenceu a si
mesmo de que sonhos são bobagens, coisas de quem não entende as responsabilidades
da vida. Orgulhava-se de ser um homem sério e cumpridor dos seus deveres. Entretanto,
sem entender o motivo, aos poucos foi perdendo a alegria, se tornou ranzinza e a vida
restou mais sem graça a cada dia. Tornou-se um pessimista. Por não suportar a
amargura do comandante, a tripulação abandonou o navio. Sozinho, o capitão navegou
para outro mundo.”

Interrompi para dizer que não era errado ser responsável e cumpridor dos seus deveres.
Acrescentei que, esotericamente falando, a vida não acontece quando chegamos ao
cais, mas durante a travessia. A mulher balançou a cabeça em concordância: “Sim, é
tudo verdade. No entanto, os sonhos são primordiais; eles animam a alma. A
responsabilidade e os deveres não anulam os sonhos, ao contrário, os movimentam.
Não basta navegar, é preciso saber aonde vamos; não basta fazer a travessia, é
fundamental entender o propósito. Senão, restaremos abandonados e nunca
chegaremos ao cais.”

Argumentei que sonhos, muitas vezes, não passam de meros delírios. A mulher tornou
a concordar comigo e explicou: “Os delírios falam dos desejos de grandeza típicos de um
ego dominante. Os sonhos nos revelam tudo aquilo que é essencial para a alma se
libertar. Diferenciar um do outro define a direção na qual iremos aproar o navio; se rumo
a Morserus ou se navegaremos em círculos.”

Fiquei alguns minutos em silêncio enquanto olhava para o navio. A mulher de olhos azuis
tinha razão. É necessário, entre os muitos afazeres da existência, encontrar espaço e
tempo para viver o sonho. Falei para ela que a lenda era muito bonita e continha uma
bela lição, contudo, nem sempre é fácil, pois ora nos falta condições, ora falta coragem.
A mulher sorriu diante da minha conclusão apressada e perguntou: “A história não
acabou. Você quer saber como termina?” Pedi para ela continuar. A mulher concluiu:
“Ao chegar no outro mundo, em um lugar próximo às estrelas, os bons espíritos
trouxeram o capitão e o navio de volta. Só que agora ele tem que aprender a navegar
sem água, pelas areias do deserto, para aprender que cada um cria as próprias condições
para seguir o seu sonho. Somente assim, um dia, todos chegaremos a Morserus.”

Olhou-me profundamente e finalizou: “Quando partimos em busca do nosso sonho,


vivemos em sintonia com a nossa alma. A nossa alma está afinada com a alma do mundo.
Então, esta nos acolhe, protege e ilumina para que possamos navegar rumo ao destino
que nos aguarda.”

Tornei a me fixar no improvável navio que navegava pelo deserto enquanto me


encantava com todos os atributos proporcionados pela lenda. Quando me virei para
falar com a bela mulher de olhos da cor de lápis-lazúli, sorri comigo mesmo pela cena
recorrente: ela não estava mais ao meu lado.

O décimo-sexto dia da travessia – onde há vontade, há um caminho


O dia amanhecia no deserto. Afastado da caravana, sentado na areia com uma caneca
de café fresco na mão, eu observava o caravaneiro adestrando o seu falcão. Ingrid, a
astrônoma, se aproximou. Ela quis saber a razão para eu ficar de longe, todas as manhãs,
olhando o voo da ave. Respondi que não sabia ao certo, mas algo ali me fascinava. Disse
que talvez fosse pelo fato de, diante da aridez do deserto, do improvável, do impossível
para muitos, o falcão sempre retornar com a sua caça. Comentei que provavelmente era
o instinto de sobrevivência do animal, o seu determinismo biológico, porém a ave me
passava a sensação de que ela conseguia o seu alimento por acreditar que o encontraria.
Ingrid comentou: “Onde há uma vontade, há um caminho”. Aquela frase me impactou
pelo leque de interpretações que permitia. Falei isto para a astrônoma. Ela levantou a
manga da blusa e mostrou uma tatuagem no antebraço. Disse que era um símbolo viking
conhecido como Inguz. Ele representava essa mensagem. No entanto, ela já a tinha
ouvido também na filosofia chinesa. Explicou que a verdade está presente em todas as
tradições. Discordei de imediato. Não quanto a onipresença da verdade, mas do fato de
a vontade se tornar necessariamente um caminho. Ingrid apenas deu de ombros. Pediu
licença, pois a caravana não demoraria a partir e ela tinha algumas coisas para arrumar.
Eu vi quando o falcão retornou ao caravaneiro trazendo um pequeno roedor em suas
garras.

Não demorou muito a caravana seguiu o seu rumo. Guardei um lugar para a Ingrid
emparelhar o seu camelo ao meu, mas ela não o fez. Preferiu, mais uma vez, marchar
ao lado do astrólogo, com quem tinha conversado há dias. Fiquei sem entender, uma
vez que ela, como astrônoma, torcia o nariz para a astrologia. Enciumado, mas sem
admitir, decidi seguir sem ninguém ao meu lado naquele dia. As horas seguiram
modorrentas até que a bela mulher com olhos de cor de lápis-lazúli se aproximou
montada em seu cavalo negro, o Vento. Marchamos por algum tempo sem dizer palavra
até que quebrei o silêncio. Perguntei se ela não achava sem sentido uma cientista como
a Ingrid gostar de conversar com um místico como o astrólogo. Com os olhos fixos no
horizonte, a mulher disse: “Os opostos não se atraem, mas se explicam.”

Falei que ela estava enganada. As constelações, fundamento teórico da astrologia, em


verdade, são apenas ilusões de ótica formadas a partir do ponto de vista de quem está
na Terra. Ao olhar o céu de Marte ou Saturno, aquelas mesmas estrelas farão parte de
outras constelações que não existem para quem as olha daqui. Em verdade, as
constelações são peças de ficção, criadas pela imaginação humana na ilusão de um
olhar. Falei que Ingrid sabia disto. No entanto, me deixava pasmo por insistir em
conversar com o astrólogo. A bela mulher explicou: “O que a fascina não é a astrologia
em si, mas a entrega sincera e por inteiro do astrólogo ao seu ofício.” Fez uma pausa e
concluiu: “Onde há uma vontade, há um caminho.” Em seguida fez um movimento suave
com as rédeas do cavalo e se afastou.

Seguimos por mais algumas horas até que veio o comando, no meio do dia, para um
breve descanso e uma rápida refeição. Se engana quem pensa que o deserto é apenas
areia. Fomos avisados que pelo resto do dia atravessaríamos um trecho conhecido como
“Floresta de Pedras”, por causa das suas enormes rochas. Peguei algumas tâmaras e me
sentei na areia. Próximo, um homem que deveria ter a minha idade, também sentado,
me chamou atenção pelos olhos tristes. Ofereci uma fruta, ele recusou com educação e
um sorriso sem vida. Falei que seguia com a caravana para encontrar com o sábio
dervixe, “conhecedor de muitos segredos entre o céu e a terra”, que morava no oásis.
Ele contou que os seus parentes mais próximos também moravam no oásis, eram
tecelões. Olhou-me com os seus olhos foscos e confessou que esperava chegar ao oásis
para ser enterrado pelos seus parentes. Atônito, eu quis saber se ele estava acometido
por alguma doença incurável. O homem respondeu que não. Disse que a sua saúde era
boa, mas não via qualquer motivo para continuar a viver. Como se mantinha com o
dinheiro da herança deixado pelo seu pai, que havia sido um hábil mercador de tapetes,
achava mais sensato se despedir da vida ao invés de continuar a dilapidar o patrimônio
dia após dia sem que tivesse um motivo para viver. Deixaria o dinheiro para aqueles que
conseguiam encontrar graça na vida. Salomão era o seu nome.

Fiz várias perguntas, mais no intuito de tentar encontrar uma maneira de fazer com que
revisse as suas ideias, do que por curiosidade. Ele contou que após o falecimento do pai
assumiu os negócios. A sua falta de aptidão para o comércio o fez repassar as lojas para
não ir à falência. Sobrara um bom dinheiro, que escorria um pouco a cada dia, sem que
encontrasse qualquer razão que lhe desse alguma alegria. Tinha tomado uma decisão,
nem triste nem feliz, apenas uma decisão. Talvez a única que fizesse algum sentido na
sua vida.

Logo veio a ordem para a caravana seguir. Preocupado com o Salomão, fiz o resto da
marcha naquele dia ao seu lado. Tentei conversar mais um pouco com ele, porém as
suas respostas se tornaram monossilábicas. O silêncio dominou o restante daquele dia,
enquanto atravessávamos o trecho rochoso do deserto. Havia muitas pedras. Algumas
formavam construções enormes, do tamanho de um edifício. Estávamos ao final desse
trecho quando anoiteceu. Paramos para montar o acampamento em frente a um
conjunto de pedras que formava uma estranha caverna. Veio a orientação para que
ninguém entrasse na caverna, pois havia casos de viajantes que nunca mais foram
encontrados.

Afastei-me de Salomão para cuidar dos meus afazeres. Na hora do jantar, eu me servia
de um guisado de legumes quando ouvi um tiro. Espanto, correria e muitos gritos. Ao
longe percebi que dois homens atracados rolavam na areia. Eles disputavam a posse de
um revólver. Eram Salomão e o caravaneiro.

Diversos encarregados da caravana acudiram de maneira rápida e eficiente. Não havia


feridos. O caravaneiro tinha impedido que Salomão cometesse um suicídio. Ele não tinha
conseguido esperar até a chegada ao oásis para que seus parentes o enterrassem; a
tristeza era maior que a sua vontade. Por pouco, se não fosse a intervenção atenta do
caravaneiro, teria conseguido completar o desatino. Quando cheguei, Salomão chorava
de soluçar. Sentei-me ao seu lado e o abracei. Várias pessoas se aproximaram. Falei que
elas podiam ir, pois eu cuidaria dele. Ficamos a sós. Deixei que chorasse até esvaziar o
coração. Dizem que choramos quando a alma transborda de emoção. Aos poucos ele foi
se acalmando; eu o deitei na areia. Passou um tempo que não sei precisar, a caravana
se preparava para dormir. Salomão continuava desperto, com os olhos fixos nas estrelas
que enfeitavam o céu do deserto. Foi quando a bela mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli se aproximou.
Sem nada falar, entoou lindas canções. A música pareceu tranquilizar o ambiente. Fez
uma dança suave em volta do homem. Quando os meus olhos lhe perguntaram porque
ela fazia aquilo, ela mexeu os lábios em resposta sem som: “Para limpar a atmosfera.”
Depois, se ajoelhou ao seu lado. Com as mãos vazias, em movimentos circulares, sem
parar de cantar, enviou boas vibrações para o Salomão. Percebendo-o mais calmo,
perguntou se ele aceitaria um convite para fazer um passeio com ela. O homem
balançou a cabeça em anuência. Então, pediu para que ele se levantasse e a
acompanhasse. Iriam à caverna. Havia algo que o aguardava lá dentro. Salomão se
negou, confessou que sentia medo. A mulher estendeu a mão e disse: “Segure e confie.
Estarei ao seu lado.” Fez um movimento com a cabeça para que eu também fosse.
Pensei em falar dos perigos dos quais fomos avisados sobre a caverna, porém a suave
firmeza que a bela mulher de olhos azuis transmitia era arrebatadora.

Ela assobiava uma doce melodia quando entramos na caverna. Paramos por algum
tempo para que os nossos olhos aprendessem a ver na escuridão. Andamos por entre
pedras que formavam um labirinto até que, em determinado momento, onde parecia
se formar uma pequena porta, ela disse que apenas ao Salomão seria permitido passar
ali. Em seguida, acrescentou: “Alguém que você abandonou o aguarda. É um encontro
importante e esperado.”

Antes que ele entrasse, a mulher falou: “Você será perguntado pelo fato gerador do seu
desânimo.” Salomão interrompeu para saber o que era fato gerador. Ela explicou: “Fato
gerador é o vírus que precisa ser inoculado; é o motivo pelo qual você desistiu da vida.”
E fez uma importante ressalva: “Este encontro será movimentado pela verdade. Aqui a
ilusão se desmancha.” Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Quem irá conversar
contigo é a sua alma, a sua metade esquecida e reprimida, escondida nos cantos escuros
de si mesmo. Ela está entristecida pelos sonhos negados. Isto causa fraqueza e
desequilíbrio. Somente a alma pode iluminar os seus passos, renovar-lhe as ideias e
semear a alegria em seu coração. Quando a relegamos, abandonamos a nós mesmos
nos radicalismos do ego. Então, algum dia, cedo ou tarde, a depender da sensibilidade
de cada um, implodimos como um prédio que não tem mais forças em seus alicerces
para manter firme as suas paredes e teto.” Fez uma pequena pausa e explicou: “Isto não
é de todo ruim se soubermos aproveitar a oportunidade do momento para refazer a
construção da casa na qual moramos. Habitamos na casa em que construímos. O ego é
o pedreiro; a alma, o engenheiro. Eles devem trabalhar em comunhão. Isto transforma
um casebre em ruínas em uma fortaleza inexpugnável. O poder de construir a própria
beleza e solidez sempre foi e será seu.”

Fez com a cabeça um movimento para ele seguir. Salomão hesitou por instantes, olhou
para a mulher que lhe ofereceu um sorriso repleto de confiança. Ele soltou a mão dela
e atravessou a porta. Esperamos por um tempo que não sei precisar até ele retornar.
Tinha sido uma conversa silenciosa, na quietude de um coração que precisa se fazer
ouvir. Salomão trazia um rosto banhado em lágrimas. Ele teve dificuldade para falar por
causa do choro. A mulher esperou com infinita paciência que ele se acalmasse. Muito
emocionado, o homem contou que, a sós com a sua própria alma, lembrou que sempre
teve vontade de ser professor. A ideia de ampliar e compartilhar o conhecimento o
encantava desde sempre. A possibilidade de estar em sala de aula, de ensinar a crianças
e a adultos era fascinante para ele. No entanto, não conseguiu enfrentar ao próprio pai,
um homem que, embora carinhoso, era enérgico e dominador. Achava-se no direito de
decidir o que era melhor para o filho. Perpetuar gerações no comércio de tapetes era a
sua vontade, porém não era a vontade de Salomão. O sonho de Salomão era o
magistério. Contudo, o tempo passou sem que Salomão tivesse força para movimentar
a sua vontade. Agora ele se achava velho para resgatar o próprio sonho. E sem motivo
para viver.

A mulher de olhos azuis pediu para que Salomão olhasse para o lado. Havia outra porta
que não tínhamos percebido. Ela disse: “O seu pai está aí dentro, escondido em algum
lugar escuro. Use a lanterna para iluminar todos os cantos.” O homem disse que não
tinha nenhuma lanterna. A mulher orientou: “A lanterna surge quando substituímos o
medo de falhar ou de decepcionar os outros pela vontade de sermos nós mesmos. É a
coragem de ser único. Nas diferenças reside toda a luz; todo o poder e a beleza do ser.”

Percebendo a presença do medo, o ensinou: “Não tenha medo de sentir medo. O medo
é um vazio existente em todos nós a espera de ser preenchido pela coragem. Então,
tudo se transforma.” Logo em seguida complementou: “No mais, os anjos do deserto o
guardarão e iluminarão sempre que precisar e solicitar.” Tornou a fazer uma pausa e o
incentivou: “Vá! Eu estarei aqui para quando você voltar. Contudo, o mais importante é
saber que você sempre terá a si mesmo para se acompanhar, se alegrar e se encantar.”

Salomão respirou fundo e atravessou a outra porta. Após alguns minutos de silêncio
absoluto, ouvimos o seu choro. Ele falou lá de dentro: “É o meu pai, ele está aqui. Mas
tudo continua muito escuro.” A mulher prosseguiu nas orientações: “Aumente a
luminosidade da lanterna. Para tanto, não olhe para o seu pai com mágoa, rancor ou
ressentimento. Também não olhe com culpa nem para ele nem para si. Não existe culpa
nenhuma. Olhe para o seu pai com gratidão, com misericórdia, com compaixão, com
gentileza, com generosidade. Ele fez o melhor que sabia fazer naquele momento. Olhe
para o seu pai com amor. Com todo o amor que houver na vida”. Fez uma pausa e, como
se pudesse imaginar a cena que acontecia, aconselhou: “Abrace-o com vontade!”

Aos poucos os soluços foram diminuindo de tom até darem lugar a cochichos que não
consegui entender. Então, ouvi gostosas risadas. Passado algum tempo, Salomão
retornou. Em uma mistura de lágrimas e sorrisos, percebi que o Salomão que voltava
era diferente do homem que tinha ido. O seu olhar trazia uma luz que dissipava a
escuridão da caverna. Agradecido, ele disse para a mulher, ao se referir a conversa que
acabara de ter com o pai: “Nós nos perdoamos. Ele por ter sido autoritário; eu por ter
permitido a dominação. Libertei-me; nos libertamos. Sinto-me digno; estamos em paz.”
Ela apenas sorriu em resposta. Saímos da caverna.

Sentamos na areia do deserto. Ainda seria preciso algum tempo para alocar todas as
ideias que cada um trouxe de dentro da caverna. O silêncio foi quebrado por Salomão.
Ele falou que quando chegasse ao oásis montaria uma pequena escola para alfabetizar
adultos que nunca tiveram a oportunidade de aprender a ler e a escrever. Como havia
uma lacuna na educação das crianças que moravam lá, também daria aulas de reforço
para elas. Disse que não queria mais morrer; a vida o encantava. Ofereceu-nos um lindo
sorriso, disse que precisava descansar e, feliz, se retirou para a sua barraca.

Comentei para a mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli que estava impressionado
com a mudança ocorrida naquele homem. Ela deu de ombros e disse: “Ele agora tem
uma vontade”. Olhou para as estrelas e falou: “Quando vivemos o nosso sonho nos
tornamos pessoas agradáveis, leves e confiantes. Vivemos impulsionados pela alma.
Então, a alegria se faz companheira.” Pediu para que eu também olhasse para as estrelas
e concluiu: “A vontade é a força que move todas virtudes, que por sua vez, devem
orientar as nossas escolhas. O amor é a vontade de ser um bom lugar para o outro
descansar; a fé é a vontade de movimentar universo dentro e através de mim; a
sinceridade é a vontade de viver a verdade da maneira como a entendo. Onde há
vontade, há um caminho.”

Encantado com as estrelas que ilustravam aquelas palavras, me deixei levar em reflexão
por breves instantes. Quando me virei, a cena recorrente das noites no deserto: a bela
mulher não estava mais ao meu lado. Tinha se desmanchado no ar.

O décimo-sétimo dia da travessia – a noite do deserto

O décimo-sétimo dia da travessia transcorria tranquilo. Emparelhado ao meu camelo


seguia um jovem mercador de utensílios, como facas e panelas, de muita necessidade
às pessoas que habitam no oásis. Ele me contava que era a sua segunda viagem. Farid
era o seu nome. Na primeira conseguira vender todo o estoque que levara, auferindo
um bom lucro. Dessa vez investira ainda mais na esperança de multiplicar o capital
empenhado. Explicou que a dificuldade em atravessar o deserto aumentava, em muito,
o custo final dos produtos comercializados, independente de quais fossem. Quando
soube que eu não levava nada na bagagem para reverter em dinheiro, que apenas seguia
para o oásis na tentativa de conversar com um sábio dervixe, disse que eu era um tolo.
Falou que, por mais preciosa que fosse a sabedoria contida nos “muitos segredos entre
o céu e a terra”, não seria suficiente para pagar a menor das minhas contas. Argumentei
que era inegável o valor do trabalho, não apenas como instrumento de sobrevivência,
mas também como ferramenta de progresso, não apenas material, mas também
espiritual. O trabalho é uma ponte que nos liga com o mundo, em constante intercâmbio
de conhecimento, de possibilidades de entender quem somos à medida que nos
deparamos com as dificuldades apresentadas pelas pessoas com as quais nos
relacionamos. No trabalho, independente de qual seja, sempre precisamos do outro
para que o ciclo produtivo se complete. Através do trabalho somos levados a buscar
diferentes maneiras de aprimorar o nosso dom e aprofundar no propósito de vida a que
cada qual se destina. Isto nos leva a infinitas transformações, sem as quais não há
evolução.

Acrescentei que eu sempre aprendera muito com o meu trabalho na agência de


propaganda. No entanto, em determinado momento, aquele ofício não foi mais
suficiente para alimentar as experiências necessárias para suprir a minha alma em sua
busca por evolução. Eu senti a importância de um conhecimento maior e mais específico
para impulsionar a difícil jornada para saber quem eu sou e naquele em que quero me
transformar; onde estou e para aonde vou. Ao mesmo tempo veio a vontade de escrever
sobre esse processo. No esforço de entendê-lo mais profundamente, na medida em que
precisava, através da palavra como ferramenta, dar forma às ideias, tarefa nem sempre
fácil, principalmente se você se propõe a transmiti-las de maneira simples e clara, para
que a compreensão seja possível a toda a gente, a narrativa me tornava autor e
personagem a um só tempo. Assim, eu ganhava a possibilidade de expandir as ideias a
cada página. Em verdade, eu entendia melhor a mim e ao mundo na medida em que
tentava decodificar a vida para os outros. Lembrei, também, da beleza e do valor de
compartilhar o que eu trazia de melhor em mim. Confessei que eu já tinha escolhido o
título do livro mesmo antes de escrevê-lo: Manuscritos. Farid me interrompeu para
perguntar se eu achava que teriam muitas pessoas interessadas nas minhas experiências
filosóficas e metafísicas. Mais ainda, questionou se eu acreditava que o livro me traria
fortuna. Por fim, como uma avalanche, ironizou ao dizer que se todos no planeta
resolvessem escrever sobre as suas próprias experiências não haveria bibliotecas
suficientes para guardar, livrarias para vender nem olhos para ler tantos livros.

Procurei não permitir que aquela sintonia de sarcasmo e fracasso me envolvesse. No


esforço para manter a calma, expliquei com serenidade que eu escrevia, antes de mais
nada, para mim. Escrever era o meu ritual pessoal de iluminação e proteção. Também
era uma terapia, pois eu me conhecia na medida em que tentava entender a vida.
Enquanto escrevia, eu tinha a sensação de descortinar o universo. Cada um tem um jeito
próprio de conseguir isso; escrever era o meu. Isto me ajudava a separar o que havia em
mim que eu não queria mais; a perceber as mudanças de rotas no pensar, no sentir e no
agir que deveriam pautar a minha caminhada, um pouquinho diferente a cada dia; as
lutas que eu teria de travar comigo próprio para ser quem eu queria ser, para alcançar
a sonhada plenitude entre as sombras e a luz que me acompanham. Portanto, mesmo
que ninguém lesse o meu livro, por esses motivos, para mim, ele já se justificaria. Se, na
ventura de que as minhas palavras pudessem servir de auxílio para orientar uma única
pessoa perdida na estrada da vida, eu já me consideraria um homem de sucesso.

Quanto ao livro se reverter em dinheiro, eu entendia a necessidade da sobrevivência,


no entanto, a agência de propaganda, embora estivesse muito longe de me fazer um
homem rico, me dava o suficiente para viver com dignidade e um pouco de conforto.
Estendi o raciocínio para dizer que os lucros auferidos por um trabalho nem sempre se
traduziam monetariamente. Falei de amigos que se vestiam de palhaço para cantar e
animar os dias de crianças hospitalizadas; de outros que ajudavam na alfabetização de
adultos; os que passavam a noite rodando a cidade levando alimentos e cobertores aos
moradores de rua. Lembrei de médicos que aproveitavam as férias para ir a zonas de
guerra levar socorro onde não havia sequer remédios, mesmo sob enorme risco de
morte. Eram trabalhos que não eram pagos com dinheiro, pois falavam diretamente à
alma. Era preciso entender a diferença entre riqueza e prosperidade para compreender
o valor de todos os trabalhos. Acrescentei que eu nada tinha contra trabalhar por
dinheiro; eu mesmo o fazia na agência de propaganda. No entanto, eu me alegrava por
ter outro cujo o pagamento era imaterial e incomensurável, que vinha do coração.
Por fim, eu disse que se todos resolvessem escrever livros, sem dúvida, teríamos livros
em excesso. Lembrei ao Farid que, de outro lado, se todos decidissem vender facas e
panelas também não teríamos quem as comprassem nem quem as produzissem. Daí a
importância e a beleza de todos os trabalhos, sejam quais forem. Mesmo aqueles não
remunerados em dinheiro; amor, leveza e alegria são moedas que enriquecem a alma.

Farid sacudiu a cabeça em negação e disse que eu era um sonhador e que como tal não
chegaria a lugar nenhum. Acusou-me de não entender o mundo em que vivíamos ou,
pior, de fugir da realidade. Eu não disse mais palavra e seguimos em silêncio até o final
da tarde, quando veio a ordem para montarmos o acampamento. Era onde passaríamos
a noite.

Toda aquela conversa com o mercador, embora eu percebesse e tentasse evitar, tinha
alterado o meu ânimo e me tirado do eixo. De um lado eu entendia que tínhamos
olhares distintos em relação à vida; de outro, me questionava se toda a minha busca
não era de fato uma fuga da realidade ou completo delírio que se mostraria infrutífero,
revelando dias e dias desperdiçados. Todas aquelas sensações e dúvidas começaram a
me corroer as entranhas como um veneno que contamina pouco a pouco até não mais
restar vida. O mal-estar foi tamanho que vomitei. Algo dentro de mim me adoecia.

Profundamente incomodado, eu não quis jantar. Afastei-me da caravana e, ao longe,


sentado na areia fiquei observando o caravaneiro no exercício vespertino de
adestramento do seu falcão. Desde o primeiro dia da travessia, eu tinha me encantado
com o treinamento da ave. No entanto, naquele momento eu questionei sobre a
utilidade do caravaneiro treinar um falcão. No fundo, pensei, era uma coisa tão idiota
como diversas outras que as pessoas faziam mundo afora.

“O que você sabe sobre a alma alheia?”, me perguntou uma voz atrás de mim. Sim, era
ela, a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli, que parecia adivinhar os meus
pensamentos. Como quem sabe que a conversa não seria fácil, a mulher de olhos azuis
se sentou ao meu lado e perguntou: “Você percebe como o olhar sombrio e superficial
do mercador de utensílios em relação à vida ofuscou os seus sonhos?” Eu disse que
talvez ele tivesse colocado os meus pés de volta no chão. Ela me corrigiu: “Ter a cabeça
nas estrelas não significa que não podemos manter os pés no chão. O sonho se constrói
a partir da realidade que se possui. Cada pessoa, sem exceção, possui o dom de
transformar a própria realidade na exata régua em que transforma a si mesmo. A
realidade se expande ou se retrai na medida do seu olhar e se altera no compasso das
virtudes que você conseguir, pouco a pouco, sedimentar em si.”

Argumentei que o mundo era um lugar difícil para se viver e que ela tinha que admitir
isto. A bela mulher concordou: “Sem dúvida o mundo é repleto de imperfeições; assim
como eu e você. Existe uma exata afinidade entre nós e o mundo. Negar as próprias
imperfeições, as dificuldades em lidar com as emoções decorrentes das frustrações
inerentes à vida é negar a própria essência. Não adianta transferir responsabilidades e
se esconder no quarto escuro da ilusão, ao alimentar em si as sombras da vaidade, do
orgulho e da inveja, apenas para ficar nas mais vulgares, e ficar apontando defeitos no
mundo e nos outros. Ou se deixar dominar pelas sombras da descrença e do desânimo.”
“Somente temos poder sobre nós mesmos. O indivíduo se transforma como único
mecanismo de alteração da realidade e como possibilidade real de mudar o mundo. Esta
é a magia pessoal.”

“Negar as sombras é negar uma parte importante de si mesmo e se restar incompleto.


Permitir que elas o dominem é uma escolha. As sombras, na verdade, são artifícios
usados pelo ego, quando ainda desalinhado à alma, para esconder daquele indivíduo o
inconformismo com as próprias imperfeições. Não recalque nem sufoque; abrace e
transmute as suas sombras. Para cada sombra existe ao menos uma virtude para
iluminá-la. Para a vaidade, a simplicidade é o bálsamo; para o orgulho a cura se encontra
na humildade; a inveja se extingue com a sinceridade, que é a virtude de viver a verdade
perante si mesmo; o ciúme nasce da tentativa absurda de aprisionar o amor. Acreditar
que o amor possa existir sem respirar os ares da liberdade e da dignidade é não entender
o amor.” Fez uma pequena pausa e prosseguiu: “O mundo é imperfeito por servir de
palco e espelho para as nossas imperfeições.” Olhou-me profundamente e disse: “As
imperfeições são muito valiosas, pois cada uma delas tem o poder de germinar em mim
uma virtude. Sem a mentira eu não entenderia o valor da honestidade; somente ao
perceber a insensatez do ciúme posso entender como as suas fronteiras estão distantes
do amor; sem as ofensas eu não sentiria como o orgulho me fragiliza e, por sua vez, a
humildade e a compaixão me tornam fortes. A vaidade é o aprisionamento pelos
aplausos alheios; a simplicidade nos liberta. A tristeza me permite perceber o poder da
alegria. Somente o desânimo me faz chegar à fé, a fantástica virtude de movimentar o
sagrado dentro de mim. Assim, agradeço às minhas imperfeições; apenas elas me
conduzem ao melhor que me habita; que existe no mundo e na vida. Sou grata a
escuridão da noite por me trazer, ao final do ciclo, a luz da manhã e me permitir toda a
sua beleza.”

Comentei que estava bem até o momento em que o discurso do mercador de utensílios
tinha conseguido inverter todo o meu fluxo de ideias e emoções. A bela mulher disse
com seriedade e doçura: “Encontramos pessoas com os diversos níveis de consciências
e respeitamos todos, pois as diferenças pessoais movimentam campos
eletromagnéticos, fenômenos da física também presentes na espiritualidade.
Entretanto, assim como encapamos um fio de alta tensão para não tomar um choque, é
preciso se proteger para não entrar em sintonia com o medo, a destruição do bem, os
lamentos e o desânimo, que tanto dificultam a travessia das inevitáveis noites do
deserto.”

“Ninguém precisa da autorização de ninguém para ser quem deseja ser. Quem tem que
acreditar no seu sonho é você. Isto te move; isto basta.”

Olhou para o crepúsculo e disse: “Não permita que a escuridão alheia apague a sua luz;
que a noite do mundo ofusque o seu sol pessoal. Não permita a ninguém o poder de
desmanchar os seus sonhos e de castrar os seus dons. As pessoas somente têm sobre
nós os poderes que concedemos a elas. Portanto, não conceda a ninguém o poder de
cortar as suas asas.” Fez uma pequena pausa antes de concluir: “De outro lado, vigie a
si mesmo para não fazer o mesmo com os outros.”
Ficamos um breve tempo sem dizer palavra até que o caravaneiro terminou o
treinamento e passou com o falcão pousado na grossa luva de couro que usava no braço
esquerdo. Como se a mulher soubesse o que eu pensara há pouco sobre o caravaneiro
e o falcão, ela explicou: “A caravana é o ofício do caravaneiro; a falcoaria, a sua arte.”
Argumentei que a arte terá a sempre a função de movimentar consciências e eu não via
como isto era possível no mero adestramento de falcões. Acrescentei que embora, por
algum motivo me encantasse, achava aquela atividade sem nenhum sentido. Ela
arqueou os lábios em leve sorriso de compaixão, como uma professora diante de um
aluno rebelde que recusa as lições, e disse: “A arte tem o poder de movimentar
consciências, mas também de alterar a realidade.” Diante do meu espanto por aquela
afirmação, ela prosseguiu: “Há anos o caravaneiro se viu diante da morte do melhor
amigo em razão de um acidente aéreo. A pequena aeronave em que o moço estava se
chocou com um bando de urubus ao decolar. Ninguém sobreviveu.” Fez uma pequena
pausa e explicou: “O aeroporto de Marraquexe foi construído próximo a um depósito
de lixo desativado, mas que ainda atrai essa espécie de ave. As autoridades, embora se
esforcem, têm encontrado dificuldade para sanear o problema. Após o desastre a noite
se abateu por algum tempo sobre o caravaneiro. Ele entendeu que precisava buscar o
sol se quisesse os seus dias de volta. Então, passou a treinar falcões. Todas as manhãs,
quando está na cidade, sozinho e anônimo, leva o falcão até cabeceira da pista do
aeroporto para afugentar os urubus e garantir uma melhor segurança dos voos naquele
dia. Nunca cogitou qualquer remuneração por esse serviço; também não faz questão de
comentar sobre a sua arte de alterar a realidade. Apenas a faz com o coração, como uma
conversa silenciosa e agradável entre a alma e o sagrado”

Enquanto olhava o caravaneiro se afastar com o falcão, falei que alterar a realidade é
magia. A bela mulher com os olhos de lápis-lazúli concordou: “Sim, cujo ingrediente
primordial do caldeirão é o amor. Também é arte, na qual cada cor de tinta representa
uma virtude. As virtudes têm o poder de colorir o amanhecer para por fim à noite do
deserto.”

As estrelas logo começariam a aparecer no céu. A mulher de olhos da cor de lápis-lazúli


acendeu uma lamparina e se despediu. Eu a vi andar até o alto de uma duna e bailar
para as estrelas até o momento em que me distraí, por segundos, e ela se desmanchou
no ar.

O décimo-oitavo dia da travessia – a tentação do deserto

O décimo-oitavo dia da travessia prometia ser diferente e animado. Iríamos fazer um


pequeno desvio em nossa rota rumo ao maior oásis do deserto para passar em outro,
bem menor, como o intuito de a caravana se abastecer de vários mantimentos
indispensáveis ao prosseguimento da travessia. Estava previsto desde o dia da partida.
Esse oásis era habitado por pessoas de diversas partes do mundo e, como um
entreposto, se mantinha do comércio com as caravanas que passavam por ali. Naquele
trecho do percurso, depois de muitos dias no deserto, sempre havia a necessidade de
repor muitos dos víveres que tinham se esgotado. Lá era possível, nos bares montados
em tendas, o consumo de bebidas alcoólicas, proibidas na caravana, além de iguarias
finas para o deleite do paladar, impossíveis de serem oferecidas nas simples, porém
saudáveis, refeições fornecidas pela caravana. Naquele dia, desde cedo, muitas pessoas
já se mostravam entusiasmadas com essas possibilidades. Ouvi, também, conversas de
mercadores que integravam a caravana, experientes de muitas travessias, entre
sussurros e risadas, se referindo, com malícia, sobre a beleza das mulheres que
trabalhavam nesses bares. Um pouco antes de chegarmos ao pequeno oásis, o
caravaneiro reuniu a todos para avisar dos perigos. Contou que havia muitas histórias
de ocorrências desagradáveis seja com bebida, seja com os habitantes locais,
principalmente com os comerciantes e as mulheres que trabalhavam nos bares. Relatou
casos de furtos, roubos e até mesmo de desaparecimento de viajantes, provavelmente
assassinados. Disse que ninguém estava impedido de circular no oásis, mas que cada um
seria responsável por si mesmo. Avisou que acamparíamos bem próximo e aconselhou
que deixassem dinheiro e documentos no acampamento sob a segurança dos
encarregados da caravana.

Chegamos ao final da tarde. Enquanto os encarregados montavam o acampamento,


muitos viajantes, ávidos por novidades, logo seguiram para o pequeno oásis. Separei
comigo um pouco de dinheiro para despesas eventuais e acompanhei um animado
grupo. A minha enorme surpresa foi o luxo das tendas e a simpatia dos moradores do
lugar. A maioria era fluente em inglês e francês. Todos se vestiam com elegância, eram
educados e nos convidavam a conhecer as suas tendas, onde vendiam diversos artigos.
Desde gêneros de primeira necessidade, como lâminas de barbear e remédios, até
roupas finas e joias sofisticadas, confeccionadas por alfaiates e ourives locais. Tudo era
caro, mas a ambiência era sedutora. Disperso do grupo, que tinha se espalhado pelas
várias tendas, entrei em uma que funcionava como restaurante. Acomodei-me em uma
confortável mesa, recostei em almofadas de seda, para apreciar vista deslumbrante do
pôr do sol no deserto enquanto examinava o cardápio. Decidi me presentear com um
bom jantar e uma garrafa de tinto de uma excelente safra. Não era barato, porém eu
entendia que, depois de tantos dias sob a intempérie do deserto, valia a pena. Fui
atendido como em um restaurante de luxo. O garçom era atencioso e logo de entrada
me serviram petiscos deliciosos. Com o início da noite, um sem número de velas foram
acesas pela tenda, me remetendo às Mil e Uma Noites, um clássico da literatura árabe.
Satisfeito, relaxei pelo maravilhoso momento desfrutado e já nem mais encontrava
motivos para me lembrar das palavras do caravaneiro. O jantar foi farto e saboroso.
Notei uma linda mulher, de beleza ímpar, com cabelos negros e pele morena, sentada
em uma mesa próxima, bebendo um drinque com os olhos perdidos no anoitecer. Tentei
fazer com que o meu olhar cruzasse com o dela, mas ela parecia não me perceber. Insisti
sem sucesso. Pedi para o garçom convidá-la a beber uma taça de vinho comigo. Vi
quando a moça sacudiu a cabeça em negativa. O rapaz me olhou e deu de ombros como
quem diz que nada podia fazer. Continuei a saborear o vinho, com os olhos divididos
entre as estrelas do céu do deserto e os encantos da bela morena. Sem vontade de sair
dali, pedi para o garçom abrir outra garrafa do tinto. Encorajei-me e fui até a mesa dela.
Pedi para me sentar. O pedido foi negado com educação. Sugeri que me permitisse
sentar por apenas alguns minutos para trocarmos poucas palavras. Após esse tempo, se
ela se sentisse desconfortável com a minha presença, eu prometia pagar a minha conta
e ir embora. Ela disse que eu tinha cinco minutos para mudar a vida dela ou desaparecer
para sempre.
Empolgadíssimo com o desafio da proposta, me sentei à sua frente. Comentei que ela
tinha um olhar melancólico. A moça me contou que tinha ficado viúva há alguns meses
e estava sem rumo na vida. Falei que talvez fosse bom para ela viajar um pouco. Contei
que a caravana seguia para o oásis maior, onde eu tentaria encontrar com um sábio
dervixe, “conhecedor de muitos segredos entre o céu e a terra.” A convidei para me
acompanhar. Argumentei que seria bom para ela respirar outros ares, conhecer outras
pessoas, viver uma realidade diferente daquela. Quando a caravana retornasse, ela teria
opção de ficar ali, no pequeno oásis, ou seguir conosco para Marraquexe. A moça disse
que tinha nascido naquele pequeno oásis, nunca tinha saído e gostava dali. Encontrava
e conversava com muitas pessoas que estavam de passagem e, de alguma maneira, não
precisa ir ao mundo se o mundo chegava até ela. Embora, confessou, muitas vezes
tivesse sonhado em conhecer outros lugares; imaginava como seriam as grandes
cidades. Falei que aquela era a oportunidade e insisti para que viesse comigo. Bastava
que arrumasse uma pequena bagagem; eu lhe providenciaria um camelo. A moça me
olhou profundamente e disse ter medo. Iniciei um discurso sobre a virtude da coragem
e a necessidade de viver os nossos sonhos, de ir além dos muros dos condicionamentos
socioculturais, do automatismo da existência. Acrescentei que cada pessoa estabelece
as fronteiras da própria vida. Sem me dar conta, os cinco minutos já tinham extrapolado
e ela ouvia atenciosa as palavras que, supostamente, mudariam a sua vida.

Na medida que a noite avançava, a moça me oferecia alguns sorrisos; eu me sentia, cada
vez mais, no comando da situação. A conversa ficou animada e solta. Em determinado
momento, ela tocou na minha mão, disse que era tarde e me convidou para acompanhá-
la até a sua tenda. Imediatamente pedi ao garçom a conta. Tomei um susto com o valor
cobrado; era quase todo dinheiro que eu trouxera, porém eu não queria perder minutos
preciosos discutindo o preço do jantar. Era uma noite memorável, pensei. Eu me
lembraria daquele jantar para sempre. Paguei sem reclamar e quando íamos nos
levantar, ela tornou a segurar a minha mão e disse: “São mil dinares.”

Atônito, pensando entender as palavras dela, falei que jamais pagaria para me deitar
com uma mulher. A moça disse que eu não tinha entendido. Aquele valor era por ter
passado a noite conversando com ela, pelo tempo dispensado a mim. Para eu terminar
a noite em sua tenda eram outros mil dinares. O encanto se desfez de imediato.
Decepcionado, fiquei com uma enorme vontade de ir embora e me juntar a caravana.
Agradeci a oferta, mas expliquei que a recusava. Educado, me despedi. Ela disse que eu
podia ir, desde que pagasse os mil dinares que devia. Antes que eu argumentasse que
nada devia, percebi a chegada de dois homens enormes e mal-encarados. Vasculhei o
restaurante com os olhos a procura de algum funcionário que pudesse me socorrer, mas
não tinha ninguém. As feições angelicais da moça também tinham desaparecido.
Expliquei para os brutamontes que eu não tinha sido avisado ou feito qualquer acordo
no sentido de pagar para conversar com a moça. Maliciosamente, ela disse com desdém
que eu tinha ficado mais de cinco minutos conversando com ela. Agora era a hora de eu
mudar a vida dela, se referindo ao dinheiro que eu supostamente devia.

Avisei que eu não tinha aquele valor comigo. Sugeri, malandramente, que me
acompanhassem até o acampamento da caravana, onde eu sabia que estaria seguro e
podia mudar o jogo. A resposta foi um soco no meu queixo que me levou ao chão. Era
uma maneira de dizer que se tinha algum otário ali, era eu. Comecei a ter certeza do que
eu já desconfiava. Pagar o preço cobrado era a única maneira possível de evitar algo
pior. Meti a mão no bolso para pegar todo o dinheiro que eu levava. Um pouco mais de
duzentos dinares. Falei que eles podiam ficar com tudo. Um dos homens apontou para
o meu relógio. Era de uma famosa marca suíça, tinha sido me entregue pelo meu pai um
pouco antes de ele viajar para as estrelas. Além de caríssimo, valia bem mais do que os
mil dinares, o relógio tinha valor incomensurável para mim. No entanto, eu entendi que
o melhor dos argumentos não sustentaria a menor das razões naquele momento.

Quando ia tirar o relógio do braço para entregá-lo aos homens, uma voz interrompeu o
meu movimento: “Não!” Era o caravaneiro. “Vou levá-lo comigo”, disse, com
impressionante firmeza na voz aos brutamontes, se referindo a mim. Ele estava sozinho,
no entanto, o seu olhar convicto o envolvia em uma aura de autoridade que o fazia
parecer maior do que na realidade era. Isso fez com que os brutamontes ficassem
indecisos por instantes. Logo, ao se perceberem em superioridade, um deles fez menção
em partir para cima do caravaneiro. Foi quando o caravaneiro pegou uma das muitas
velas acesas sobre as mesas e a levantou próximo ao teto de pano da tenda que servia
como restaurante. A expressão facial do caravaneiro dava a certeza de que ele estava
disposto a enfrentar um incêndio e uma tragédia de proporções impensadas para evitar
a minha queda pessoal. Lembrei de um conto fantástico que narrava a história de um
anjo que descia às profundezas do inferno para resgatar uma alma incauta, mesmo
diante dos maiores perigos que ele próprio, o anjo, corria. Anjos também são guardiões.

Foram instantes que pareceram uma eternidade. Aqueles homens, frente a frente, olhos
como punhais que ameaçavam; olhos como telescópios que vasculhavam os mínimos
gestos, uns aos outros, em busca de encontrar o medo, que os fariam recuar, ou a
coragem, em levar adiante ao que se propunham. Sejam os brutamontes, seja o
caravaneiro.

Foi quando surgiu o dono do restaurante acompanhado do garçom que tinha me


atendido. Ele reclamou que o caravaneiro estava se metendo nos seus negócios. Falou
que eu tinha pago pelo jantar e pelo vinho, mas não tinha acertado a conta pelo tempo
que me distraí conversando com a moça. O caravaneiro replicou: “E você nos meus”,
para em seguida definir a sua motivação: “O meu negócio é levá-lo em segurança até o
oásis maior. Desde que ele não atrapalhe, farei isto.” Fez uma breve pausa e explicou:
“No mais, tenho certeza de que o cardápio do restaurante é omisso quanto ao preço
cobrado pela conversa com a moça.” O dono da tenda contestou, apontando para mim,
ao dizer que somente um idiota poderia ser tão inocente. Todavia, não abria mão do
pagamento. O caravaneiro o olhou com seriedade e vaticinou: “A falta de clareza quanto
às nossas verdadeiras intenções é semente do mal. Se não a plantei, não me obrigo aos
seus frutos.”

O caravaneiro mantinha a vela acesa a centímetros do teto de pano da tenda; firme


como o seu olhar, inabalável como a sua determinação. O dono do restaurante
ponderou por alguns segundos e decidiu que podíamos ir, não sem antes me ameaçar
caso algum dia eu voltasse a entrar em qualquer estabelecimento de sua propriedade.
Ainda sob tensão, passei por entre os brutamontes com um desagradável gosto de
sangue na boca; um dente tinha se quebrado. Dei um último olhar para a moça. Ela me
olhava com desprezo e raiva. Apesar do medo que eu ainda sentia por estar ali, tive
sincera compaixão por ela e pelos demais. Pela existência miserável que tinham
escolhido para si.

Segui o caravaneiro por entre as tendas no trajeto de volta. Não trocamos palavras.
Quando estávamos à céu aberto, próximo ao acampamento da caravana, pedi desculpas
pelo transtorno e lamentei não ter dado ouvido aos seus conselhos. Acrescentei que eu
tinha sido bastante ingênuo. Disse, ainda, que o mundo era perigoso e cheio de
tentações. O caravaneiro me repreendeu: “Ingenuidade é a ignorância quanto as
próprias paixões que movimentam as escolhas e determinam o destino. As tentações
somente se tornam uma ameaça se eu as convido para dançar. A minha cobiça
determina se as tentações são perigosas ou meras paisagens do mundo.” Fez uma pausa
e ensinou: “Existe mais perigo dentro do que fora de mim.”

Falei que não podíamos ter medo em viver. Ele foi categórico: “É verdade, é impossível
viver com medo; os riscos são inerentes à vida. No entanto, as tentações nada têm a ver
com o medo. Elas falam sobre a luz. As tentações nos mostram o quanto estamos longe
da luz na exata medida do que nos atrai e nos seduz.”

Passamos pelos encarregados que vigiavam o acampamento. O caravaneiro seguiu para


a sua tenda. Deitei-me na areia do deserto sob o teto de estrelas. Um turbilhão de
pensamentos agitava a minha mente. Sim, o caravaneiro tinha razão. O quanto eu me
sinto atraído pelas tentações, sejam quais forem, determina o nível de perigo a que me
exponho. Quanto mais longe da luz, mais perto da queda. Quem me empurra não são
as tentações do mundo, mas a cobiça, a luxúria ou os vícios que trago em mim. Minhas
escolhas projetam o meu destino.

Sem sono, roguei para que a bela mulher de olhos com cor de lápis-lazúli aparecesse
para conversar um pouco comigo. Naquela noite ela não veio.

O décimo-nono dia da travessia – o médico do deserto e o mestre de todos dias


Em razão dos conflitos da noite anterior, acordei atrasado no décimo-nono dia da
travessia. Embora ainda não fosse tarde, o sol já se elevara acima do ponto habitual. A
caravana se movimentava para recolher o acampamento com a algazarra de costume.
Eu que gostava de levantar cedo para apreciar o caravaneiro no adestramento do seu
falcão, vi quando ele retornava após o exercício matinal com a ave pousada na grossa
luva de couro que usava no braço esquerdo. Arrumei as minhas coisas e as coloquei no
alforje sobre o meu camelo. Consegui uma caneca de café e fiquei observando os
preparativos finais para seguirmos a travessia. Quando alinhamos para a partida, quem
veio emparelhar comigo foi Ingrid, a bela astrônoma. Camelos lado a lado, me deixei
levar pelo ciúme e perguntei se ela não marcharia ao lado do astrólogo, como fizera nos
últimos dias. Sem se deixar envolver pelas minhas emoções pesadas, ela comentou, de
maneira despreocupada, que gostara de muito de conversar com ele e entender um
pouco do seu ofício, embora não concordasse com a linha de raciocínio. Admitiu,
entretanto, que poderia haver nesse conhecimento milenar algo que a ciência talvez um
dia pudesse explicar, mas disse que achava improvável que isso acontecesse.
Acrescentou que a ciência era o seu mestre.
Argumentei que “há mais coisa entre o céu e a terra do que a nossa imaginação pode
alcançar”, usando a citação de um famoso iluminista do século XVIII. Sustentei, ainda,
que ciência e espiritualidade deveriam andar juntas, como complemento e inspiração.
Ingrid disse que tudo o que não podia ser comprovado cientificamente, para ela, não
existia. Simples assim. Questionei em como seria a vida das pessoas há séculos em
função de muitos fenômenos somente terem uma explicação científica muito tempo
depois. Falei que as doenças existiam antes da descoberta dos vírus e das bactérias, e
muitos daqueles cientistas da época, mesmo os que se negavam acreditar na vida
microscópica, morreram contaminados. A lacuna entre acreditar e comprovar não torna
a verdade falsa. Lembrei que a famosa e inquestionável Lei da Gravidade formulada por
Isaac Newton tinha a sua fundamentação colocada em xeque com a Teoria da
Relatividade de Albert Einstein, em razão da comprovação de o deslocamento dos
corpos ocorrer por causa do espaço curvo ao redor do corpo ao invés da atração das
massas. Muitas vezes é uma mera questão de tempo para que o conhecimento avance
até o ponto determinado para a verificação possível e posterior reformulação de
conceitos. Falei que a ciência era exata para uma época específica, não pelo tempo todo.
Isto comprovava a sua inexatidão ou exatidão temporária. Eu disse que tinha ouvido de
um mestre que a ciência avança na exata régua do desenvolvimento espiritual da
humanidade. Argumentei que a espiritualidade era fonte de inspiração para a ciência.
Ingrid se mostrou impaciente com a minha lógica. Falou que eu devia dar menos ouvido
a pessoas que viviam deslocadas da realidade, algumas com claros desvios de
comportamento, outras com evidentes problemas psiquiátricos. Sem falar nos
charlatões e aproveitadores, bem conhecidos pela polícia e pelas vítimas que faziam.
Concordei que isto era um fato incontestável, mas repliquei dizendo que era preciso
separar a palha do trigo e que a realidade poderia, de outro lado, ir além das equações
matemáticas e laboratórios de pesquisa. Ela me provocou ao dizer que, às vezes,
questionava a minha sanidade. Acrescentou não achar saudável alguém atravessar o
maior deserto do planeta, como eu fazia, na tentativa de conversar com um suposto
sábio dervixe “conhecedor de muitos segredos entre o céu e a terra.” Devolvi a acusação
com o argumento de que, com milhões de estrelas no céu da cidade onde ela morava,
era preciso muita insensatez para atravessar o mesmo deserto com o intuito de observar
uma determinada constelação vista somente do oásis.

A conversa escalou tons para virar discussão. Como em toda discussão, ficamos
profundamente irritados. Quando a caravana parou no meio do dia para um breve
descanso e uma refeição ligeira, decidimos nos separar. Ingrid disse que estaria melhor
ao lado do astrólogo; embora místico como eu, era bem mais ponderado. Isto fez com
que a minha irritação subisse degraus para chegar à porta da raiva. Não demorou, a
caravana seguiu a sua marcha. Acabei emparelhado a um homem de idade avançada,
com a barba longa, porém bem aparada. Embora tivesse um jeito simples de se portar,
percebi que as roupas que ele vestia, assim como o seu turbante, eram confeccionadas
em tecidos finos. Ele se apresentou a mim. Era Abdul, um médico de origem muçulmana
que, de tempos em tempos, viajava até o oásis para prestar assistência aos enfermos do
lugar. Perguntei se ele seria bem remunerado por fazer aquela viagem tão desgastante.
Ele respondeu que ganhava muito bem em seu consultório em Marraquexe, onde tinha
muitos pacientes que pagavam regiamente pelas consultas. O atendimento que
prestava no oásis não era cobrado, pois era uma maneira de retribuir as oportunidades
oferecidas a ele ao longo de sua vida. Falei que não tinha entendido. Abdul explicou que
quando era um jovem acadêmico estagiou em um hospital público, sempre lotado de
pacientes pobres, onde teve a possibilidade de aprender muito graças ao grande
número de pessoas que atendeu, possibilitando um enorme avanço em sua carreira
profissional. Por isto, e graças a isso, pode se tornar um médico competente, renomado
e bem remunerado. Levar a cura onde se fazia necessário era uma espécie de oração.
Um agradecimento pela possibilidade que teve para desenvolver o seu dom; uma
maneira de colocar a sua ciência à serviço de Deus, em retribuição por ter aprendido
através dos filhos Dele. Acrescentou que as palavras têm muito valor, porém uma oração
precisa ir além do verbo.

Abdul comentou que minhas as feições pareciam transtornadas. Disse, ainda, que a
minha aura emanava um enorme desequilíbrio. Falei que tinha tido uma discussão
muito desagradável naquela manhã. Ele disse: “As pessoas apenas têm sobre nós o
poder que concedemos a elas; portanto, não devemos conceder a ninguém o poder de
nos irritar ou entristecer.” Em seguida, explicou que os equilíbrios mental, emocional e
espiritual eram de grande importância para não darem causas a doenças no corpo físico.
Disse que muitas enfermidades eram como expurgos de maus tratos em nossos corpos
mais sutis, afetados por paixões descontroladas e atitudes impensadas. Estas agressões
sempre se refletem em disfunção nos órgãos mais sensíveis do indivíduo ou abalam o
sistema imunológico, abrindo as portas para as infecções oportunistas. Ele tinha falado
em outros corpos? Estranhei. Falei que desconhecia a existência de outros corpos, além
do físico. O médico explicou que, embora ainda não fosse aceito pela ciência, temos sete
corpos, sendo o físico o mais denso deles. O perfeito equilíbrio entre os corpos imateriais
era fundamental para uma boa saúde no plano material. Por fim, comentou que as
emoções pesadas e escolhas insensatas, sempre trazem sérios prejuízos ao corpo físico,
pois são como marteladas nos corpos superiores, que empurram o impacto emocional
do sutil em direção ao denso, razão de muitas doenças. Contudo, podia ficar ainda pior.
Explicou que as paixões sombrias e as escolhas egoísticas nos deixam à mercê dos
espíritos igualmente desorientados que se aproximam, por afinidade, com os seus maus
conselhos e em busca de parceria. Disse que fazia parte da boa saúde prestar atenção a
quem nos acompanha e nos orienta.

Falei que achava estranho um médico com aquele discurso. Abdul disse que ciência e
espiritualidade conviviam dentro dele em plena harmonia, não como concorrentes, mas
como complementares. Em seguida, explicou que existiam os médicos que cuidavam
apenas do corpo físico do paciente; eles eram muito importantes. Havia os que se
preocupavam também com os demais corpos, relativos à alma do paciente; estes eram
essenciais. Embora, ressaltou, em qualquer dos corpos, cabia ao indivíduo a
responsabilidade final pela própria saúde. “O poder sobre si mesmo, maior ou menor, é
o poder que se tem sobre a vida”, ensinou.
Com o olhar perdido no horizonte, concluiu: “O exercício do poder da vida através do
próprio ser é o primeiro degrau para entender a força da Criação, latente em todas as
criaturas. Assim eu entendo a fé.”

Argumentei para Abdul que era impossível não se abalar com certas provocações.
Detalhei para ele a minha discussão com a Ingrid. Aos poucos, sem notar, fui novamente
subindo o nível da minha irritação. Falei por um longo tempo. Ao final, como o médico
estava em silêncio, perguntei se ele não faria nenhum comentário. Abdul disse que já
tinha falado tudo o que eu precisava saber. Naquele momento ele fazia uma prece para
que Deus me iluminasse e me protegesse. Rogava por luz para me mostrar o que eu
ainda não era capaz de ver e, dessa maneira, fazer com que eu me protegesse de mim
mesmo. Nada me oferecia tanto risco como as minhas emoções desenfreadas e ideias
distantes da luz.

Fizemos o restante da jornada diária sem dizer palavra. Ao final da tarde, quando
paramos para montar o acampamento e passar a noite, eu sabia que a minha irritação
não me deixaria dormir. Fui até Abdul e pedi um calmante que me induzisse ao sono.
Argumentei que nada melhor do que uma noite bem dormida para restabelecer o corpo.
O médico respondeu que nada melhor do que um bom incômodo para curar a alma.

Atônito, eu disse que não compreendia a sua fala. Abdul explicou que, embora os
medicamentos tivessem até mesmo um aspecto sagrado por aliviar dores e curar
moléstias, as dores da alma não podiam ser remediadas nem deveriam restar
anestesiadas. A alma apenas se cura com o enfrentamento do problema. Acrescentou
que existia apenas um tratamento: o autoconhecimento. Explicou que todo o
sofrimento é fruto de um olhar equivocado sobre determinada situação, um viés
apresentado pelas sombras que aceitamos desde sempre como único e verdadeiro. A
cura está em aprender a olhar pelas lentes da luz. Conhecer a si próprio para entender
a razão do sofrimento, ir até a origem da dor, compreender a sua motivação, as emoções
densas que se sobrepõem aos sentimentos elevados, as possibilidades, sempre reais e
verdadeiras, de modificar o jeito de ser e viver. É do veneno que se faz o antídoto.

Explicou que nos tempos atuais a cada desconforto da alma as pessoas fogem de si
mesmas através de calmantes, ansiolíticos ou outras drogas que prometem
entorpecimento ou uma alegria fugaz. Todo incômodo é o grito da alma que precisa
crescer, que está desconfortável dentro daquela maneira de viver. É como se a vida fosse
a roupa da alma. Quando a vida está pequena para aquela alma é preciso mudar o jeito
de ser para que a alma possa crescer. A vida acompanha e cresce junto.

Deixar de ser quem eu fui até agora para me tornar outro, uma pessoa diferente e
melhor. Isto não é fácil e costuma dar um bocado de trabalho. Pois é preciso aceitar
tudo aquilo que sempre fomos, mas, por obsoleto, não mais nos serve; mudar o olhar,
aceitar os equívocos, reparar os erros sempre que possível, trocar as escolhas,
transformar a vida.
Sem negar o passado, o envolver com amor, sabedoria e ânimo. Fomentar cada uma das
as virtudes como ferramentas da luz. Perdoar-se e perdoar o mundo. Reinventar-se a
cada dia até o dia sem fim.

Sim, é bem mais fácil tomar ansiolíticos na tentativa de fugir das dores emocionais. Mas
não resolve, não cura. O indivíduo apenas se perpetua no sofrimento.

Transmutar as sombras em luz é o único remédio que cura a dor da alma. Então, seguir
adiante até o próximo desconforto, quando iniciará um novo tratamento. Assim
conquistamos a plenitude. Isto se chama evolução.

Ressaltou que todo desconforto apenas se transforma em evolução quando tratado com
amor. Caso contrário, não haverá solução e continuará a incomodar. Até quando
explodir em raiva ou implodir em depressão, trazendo ainda mais sofrimento. Olhou nos
meus olhos e aconselhou, de maneira serena, como um pai faz com o filho, para que eu
tivesse cuidado de não desperdiçar a oportunidade oferecida por aquele dia, mestre de
todos os demais dias da minha vida.

Educado, Abdul pediu licença e se retirou. Afastei-me do burburinho da caravana e,


distante, me sentei na areia. Sem ansiolítico, me vi forçado a concatenar as ideias; eu
precisava entender. Aquele médico de origem mulçumana tinha me apresentado uma
quantidade grande de ideias e eu precisava analisar onde as encaixaria em mim.
Transcorreu um bom tempo até que um indescritível teto de estrelas me cobrisse a
cabeça. Sem me dar conta, adormeci ali mesmo. Acordei no meio da noite. A bela
mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli estava sentada ao meu lado como se zelasse
pelo meu sono. Surpreso, me sentei. Eu gostava de conversar com ela; embora fosse
algo que fugisse ao meu controle, pois nem sempre era possível encontrá-la. Contei da
briga que tive com a Ingrid e das coisas que Abdul me falou. A mulher de olhos azuis me
interrompeu para aconselhar: “Agora use uma coisa na outra.” Pedi para ela explicar
melhor. A mulher foi atenciosa: “Uma doença se instalou há dias em você. O médico lhe
prescreveu o remédio. A cura depende apenas de seguir o tratamento.” Perguntei se a
doença a que ela se referia era a Ingrid. A mulher foi veemente: “Claro que não!” Olhou-
me como a uma criança e explicou: “O ciúme, o orgulho e a vaidade são sombras que
sempre estiveram com você. Sem elas, as escolhas e opiniões da Ingrid seriam apenas
as escolhas e as opiniões da Ingrid. Não fontes de tanta briga e sofrimento. Lembre que
as suas sombras se manifestaram e o aprisionaram porque ainda prevalecem sobre a
sua luz. Eis a doença.”

Discordei de imediato. Argumentei que não havia porque falar em ciúme, pois a Ingrid
e eu nem mesmo éramos namorados ou tínhamos qualquer compromisso. A mulher de
olhos azuis sacudiu a cabeça, como quem diz que eu não tinha entendido, e tornou a
explicar: “O ciúme não se manifesta somente em uma relação sentimental. O ciúme é
fruto da nossa incapacidade de aceitar as escolhas e opiniões alheias. Embora mais
comum perante as pessoas próximas, o ciúme se apresenta todas as vezes que, quando
ainda orientados pelo condicionamento ancestral de dominação, temos dificuldade em
lidar com a liberdade de outra pessoa. Pode ser a liberdade de partir, de querer outra
coisa, de pensar em algo diferente ou o desejo de estar ao lado de alguém que não seja
a gente. O ciúme, em verdade, demonstra a nossa inadequação quanto à liberdade dos
outros e, por consequência, a nossa própria liberdade. Pois um carcereiro está impedido
de ser livre enquanto tiver que vigiar a cela do seu prisioneiro.”

“Por sua vez, a vaidade é o vício ancestral que temos pelos elogios. Na falta de
autoestima, no desconhecimento de quanta beleza existe em uma vida dedicada às
virtudes, quando perdidos no vazio da existência, precisamos que nos admirem. Na
ausência de aplausos sofremos de crise de abstinência como um viciado qualquer. Na
esteira das consequências vem a dor. Como temos uma enorme dificuldade em
identificar a sua origem pela incapacidade de olhar para um espelho que nos mostre
além daquilo que desejamos ver, decidimos pelo absurdo de responsabilizar os outros
pelo incômodo que provocam por se negarem a alimentar a dependência que criamos.”

“Quando ainda frágil na sua essência, o indivíduo se manifesta através do orgulho, em


reação conflituosa, nas vezes que alguém não se encanta com ele da maneira como
desejava. Na impossibilidade de convencer o mundo quanto a sua pretensa
superioridade, ele rasga em dor. Como um punhal, a sombra do orgulho corta as suas
entranhas pela suposta injustiça que cometeram ao não reconheceram a rainha das
ilusões: ‘somos melhores do que os outros’.”

Perguntei se ela achava que a minha briga com a astrônoma tinha sido por causa de
ciúme, vaidade e inveja. A mulher de olhos azuis colocou o dedo na cabeça como quem
diz para eu pensar. Argumentei que naquela manhã a Ingrid foi movida por sombras
iguais as minhas, pois tínhamos argumentos parecidos. Ela me corrigiu: “Deixe de perder
tempo com as sombras alheias. As suas já lhe são suficientes a ponto de você não
conseguir suportá-las. Cuide de vigiar a si mesmo; aprenda a abrir as grades da própria
prisão. Somente quando for livre você poderá colaborar na liberdade do mundo.”

Ela fez menção em se levantar para sair. Antes, comentei que eu tinha a doença, o
diagnóstico e o remédio. Para chegar a cura eu precisava seguir o tratamento.
Acrescentei que aquela seria uma noite difícil. Ela se virou e disse: “Um tratamento
pode ter um gosto amargo se você se envergonhar com os equívocos do passado; ou
pode demorar um longo tempo se você ficar paralisado diante de cada dificuldade. No
entanto, pode ter um sabor doce se você for capaz de perceber a beleza conquistada a
cada dia; e também pode não demorar tempo nenhum se entender a riqueza de todos
os dias. Um mestre por dia, cada dia como um mestre.”

Por fim, concluiu: “A cura depende apenas de você, como tudo o mais que
verdadeiramente tem valor na vida.”

Ela se se afastou aos poucos até sumir por entre as dunas, iluminada apenas pelas
estrelas. Pela primeira vez percebi o infinito poder de cura oferecido em cada
existência e senti o enorme amor da vida dedicado a mim. Sorri em gratidão. Tive
vontade de me abraçar. Foi uma noite inesquecível que passei comigo ao meu lado.
O vigésimo dia da travessia – o ponto sem volta
A travessia tinha chegado à metade. Naquele dia, todos na caravana, principalmente os
mais experientes, falavam do “ponto sem volta”. Um determinado ponto no deserto,
entre a cidade e o oásis, que quando atingido, em razão da distância, não mais
compensava voltar caso houvesse algum imprevisto. A partir dali era melhor seguir
adiante, qualquer que fosse a dificuldade. Enquanto marchávamos, eu percebia um
enorme burburinho entre os viajantes. Eles falavam de uma determinada lenda que
envolvia o ponto sem volta, sem que eu conseguisse ouvir a exatamente qual era história
sobre esse lugar. Quem tinha o camelo emparelhado ao meu nesse dia era George, um
peregrino como eu, que também viajava para conhecer o sábio dervixe, “conhecedor de
muitos segredos entre o céu e a terra.” George se mostrou muito simpático e falante.
Disse que dava aulas em uma escola esotérica e tinha inúmeros alunos. Declarou-se um
mestre, pois havia galgado vários degraus na escala evolutiva graças ao extraordinário
conhecimento obtido em muitos anos de dedicação aos “mistérios do mundo”. Contou-
me dos livros que tinha lido, muitos dos quais eu nem mesmo ouvira falar do título. Em
seguida, começou a demonstrar a percepção apurada que possuía, indicando as
dificuldades emocionais, morais e espirituais de cada integrante da caravana apenas ao
olhar para eles. As horas se passavam até que, quando tive a oportunidade, perguntei o
que ele esperava do encontro com o sábio dervixe. Ele revelou que esperava ter uma
conversa séria com o sábio pois, segundo o George explicou, o filósofo do oásis teria
dito, certa vez, que “assim como o ouro e a prata, os tesouros imateriais também
enferrujam.” Tal afirmação, de acordo o George, que explicava com muita segurança,
continha dois erros conceituais. O primeiro é que nem o ouro e a prata enferrujam,
como todos sabem; o segundo é que as conquistas imateriais jamais se perdem, como
ensina a tradição esotérica. O seu propósito era travar um debate com o sábio dervixe.
Tinha, inclusive, uma filmadora em seu alforje, pois pretendia registrar a conversa para
usar em suas futuras aulas e em redes sociais, onde divulgava o seu enorme
conhecimento. Aquilo me impressionou, seja pelo inesperado, seja pelo indelicado.
Tentei mudar de assunto e falei que tinha ouvido sobre a lenda que envolvia o “ponto
sem volta”, mas não sabia exatamente qual era. Perguntei se ele a conhecia. George
revelou que naquela manhã tinha visto o caravaneiro contar a lenda para alguns
viajantes. Mas como as lendas não passavam de bobagens do imaginário popular e o
caravaneiro não era mais do que um homem rústico do deserto, que nada sabia sobre
os segredos da vida fora do universo estreito e rotineiro da caravana, decidiu não perder
o seu tempo com histórias inúteis. Enquanto o professor falava sobre isso e outros
assuntos, chegamos ao ponto sem volta. Para a minha surpresa, que acreditava se tratar
de um lugar fictício no meio do deserto, havia um trem abandonado marcando o local.
Sim, uma grande locomotiva, sobre alguns poucos metros de trilhos além e aquém, jazia
sobre a areia escaldante. Absurdo? Se tinha algo que eu já tinha aprendido naquela
travessia, era a aceitar as possibilidades do impossível, entender a permanência da
impermanência e a conviver com o imponderável. Veio a ordem de parar para um breve
descanso e uma refeição ligeira. Antes de apearmos dos camelos, o caravaneiro avisou
a todos: “Podem tirar fotos à vontade, mas é proibido subir no trem. Ele é um
monumento a sabedoria dos povos do deserto. Portanto, guarda em si o aspecto do
sagrado para a nossa gente.”
Monumento? Sagrado? Estas palavras atiçaram ainda mais a minha curiosidade a
respeito da lenda que envolvia o trem que sinalizava o ponto sem volta. Quase todos os
viajantes, principalmente os que realizavam a travessia pela primeira vez, como eu,
pousaram com a locomotiva ao fundo, seja para guardar uma foto como lembrança, seja
para testemunhar a inacreditável história que contaríamos quando retornássemos às
nossas casas. Quando todos esgotaram as poses ao redor do monumento e se afastaram
para lanchar, George se aproximou de mim, com uma máquina fotográfica na mão.
Pediu para que eu tirasse algumas fotos dele. Mostrei-me solícito e, enquanto esperava
que ele se posicionasse, para o meu espanto, ele subiu no trem para que eu o
fotografasse. Lembrei a ele que não era permitido, mas George fez um gesto com a mão
como quem diz para eu deixar de bobagem. Insisti para que ele descesse e me recusei a
bater a foto. Diante da sua teimosia, ao longe, o caravaneiro observava a cena com os
braços cruzados e uma expressão séria no rosto. Ao perceber o caravaneiro, o professor,
em atitude de desafio, não apenas se recusou a descer, mas sentou sobre a locomotiva,
retirou do bolso uma tâmara e, como se estivesse na sua casa, cruzou as pernas e
mordeu fruta como quem saboreia um prazer sem pressa. Fiquei tenso.

Como se a minha tensão fosse o prenúncio de algo pior, naqueles momentos do breve
impasse, surgiram três tuaregues galopando os seus camelos em velocidade; estavam
armados com espingardas. Os tuaregues são nômades que habitam o deserto há
séculos. Com as armas apontadas para o George e bastante enfurecidos, gritaram para
que ele descesse do trem. Desta vez o professor obedeceu. Com braços para o alto, ele
foi alvo de palavras hostis. Tomaram a máquina fotográfica da minha mão e, embora eu
tentasse argumentar a minha inocência, sob a honesta alegação de que me recusara a
bater a foto, me colocaram ao lado do George, encostado na locomotiva. Um dos
tuaregues tirou do alforje um enorme chicote e não foi difícil entender, mais pelos
gestos do que pelas palavras, que seríamos punidos por desobediência e sacrilégio. É
impossível saber como reagiremos diante do medo provocado por um momento como
esse. Enquanto eu fiquei emudecido, sem conseguir falar uma única letra, o professor
tagarelava sem parar. Logo ele, tão culto e sábio, segundo os seus próprios conceitos,
alegava desconhecimento e ignorância naquele instante.

Sob a mira das armas de dois tuaregues, o terceiro se aproximou de nós com o enorme
chicote na mão. Ninguém da caravana chegou perto, nem mesmo os encarregados pela
segurança. Todos se limitaram a olhar apavorados. Apenas o caravaneiro andou em
nossa direção. Ela parecia não ter pressa nem medo; trazia consigo um olhar severo
como eu nunca tinha visto antes. Senti mais medo do caravaneiro do que dos tuaregues.
Um deles, o que parecia o chefe do grupo, disse que tínhamos violado o código do
deserto e seríamos punidos com dez chicotadas por isto. Era uma pena branda se
comparada com a punição extrema permitida pelas leis dos povos da areia. Contudo,
por consideração e respeito ao caravaneiro, poderiam deixar de aplicar a pena se ele
assim solicitasse. Imediatamente o garboso professor se ajoelhou e, em lágrimas,
implorou que o caravaneiro advogasse o seu perdão. E tornou a implorar muitas vezes.

Com sua a voz grave, quase rouca, o caravaneiro falou para o George: “Durante a
travessia, o que é seu eu não deixo que tomem; o que não é seu, eu jamais lhe
entregarei. Se quiser justiça, me peça. O perdão está além de mim.” Em seguida, sem
dizer palavra, fez sinal para que eu saísse dali e fosse me juntar à caravana, como se
declarasse a todos a minha inocência. Rapidamente me afastei do trem e corri para onde
estava a nossa caravana. O professor voltou a clamar por piedade. O caravaneiro
somente o olhou.

O tuaregue mandou que o George virasse de costas e apoiasse as mãos na locomotiva.


Sem demora, a primeira chicotada estalou no ar se misturando com muitos gritos. A
roupa do professor foi cortada nas costas. O tuaregue se aproximou e com as mãos
terminou de rasgar a blusa, expondo as costas nuas do professor ao castigo. Por
enquanto, havia apenas um grosso arranhão. Todos sabiam que o pior se avizinhava.

Foi quando, não tenho a mínima ideia de como, surgiu por detrás da locomotiva a bela
mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. Ela andava como se bailasse sobre as areias
do deserto. Tinha um sorriso indescritível no rosto. Um sorriso que falava sobre a beleza
da compaixão, da misericórdia e do perdão. Era um sorriso que revelava a grandeza do
amor e a capacidade de superação do amor sobre o mal. Qualquer mal; todo o mal.

Aproximou-se do chefe do grupo, tirou de dentro da manga comprida do seu vestido a


flor mais linda que eu já tinha visto e entregou a ele. Uma flor azul, da cor dos seus olhos.
Repetiu o gesto para os outros dois, como se houvesse um jardim por debaixo da manga.
Fez com que o tuaregue que portava o chicote segurasse a flor na outra mão. Oferecia
a flor azul em troca do açoite. Ofereceu o dilema de outra possibilidade. A possibilidade
da luz. O seu gesto, embora singelo, continha um enorme discurso sobre o amor e a
tolerância aos intolerantes, que por ignorância, se imaginam sábios.

Fez-se um silêncio absoluto. Até o vento parou para que todas as criaturas do deserto
pudessem testemunhar.

Os tuaregues aceitaram o presente e as palavras não ditas pela mulher. Ofereceram um


sorriso sincero de gratidão. Gratidão pela lição; pela oportunidade de transformarem
sombras em luz. Sem dizer palavra, cumprimentaram respeitosamente o caravaneiro
com um gesto de cabeça e partiram. O caravaneiro inclinou o corpo em reverência à
mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. Em seguida ele deu ordem para partirmos
imediatamente.

Com o camelo emparelhado ao meu, ao contrário daquela manhã, George seguiu o resto
do dia sem pronunciar um único som. Estava implícita à justiça aplicada naquele caso, a
função educativa que uma sentença precisa trazer em seu conteúdo para que seja
verdadeiramente justa, não um mero ato de vingança. Em reflexão e arrependimento,
tendo o enorme susto como punição, o professor iniciava um processo íntimo de revisão
de valores e conceitos. Pensei em como isto tornaria mais proveitoso o seu encontro
com a sábio dervixe.

Ao final da tarde, como de costume, a caravana acampou para passar a noite. Houve um
silêncio diferente no restante daquele dia. As pessoas quase não falavam, como se ainda
metabolizassem os acontecimentos presenciados, como se a lição, de alguma maneira,
servisse a todos. Afastei-me para olhar para estrelas e meditar. Sentado na areia, me
alegrei quando a bela mulher de olhos azuis sentou à minha frente. Falei que ainda
estava sob o impacto do ocorrido. Sentimentos e ideias novas procuravam um lugar para
morar dentro de mim. Pedi para ela contar a lenda que envolvia a locomotiva e o ponto
sem volta. Ela sorriu e balançou a cabeça como quem diz que esperava por isso.

“Há muito tempo atrás, um poderoso sultão se apaixonou perdidamente por uma
belíssima moça, a mais linda do oásis. Pediu a sua mão em casamento, ofereceu fortunas
em ouro e prata como demonstração das suas melhores intenções. A moça se confessou
encantada pelo sultão e disse que o aceitava como marido desde que ele jurasse nunca
deixar enferrujar o ouro e a prata que haviam em seu coração. O sultão aceitou de
imediato.”

“Ela tinha outro pedido. A moça gostaria de morar no oásis, onde fora criada de maneira
simples e pura, perto das pessoas que amava desde sempre. O sultão explicou que não
podia se afastar da cidade por longos períodos em razão dos suas obrigações e negócios,
mas que construiria uma ferrovia entre os dois lugares para que eles pudessem se
encontrar com a frequência desejada pelo amor que os unia. A moça aceitou a
proposta.”

“O sultão empenhou todos os esforços para que a ferrovia ficasse pronta o mais rápido
possível, o que não demorou muito. Com o casamento marcado mandou que o trem,
em sua primeira viagem, buscasse a moça e todos os que ela amava para a cerimônia
religiosa que se realizaria no palácio do sultão, um dos mais belos da cidade,
luxuosamente reformado por ocasião da festa. Reis e membros das monarquias dos
mais distantes lugares foram convidados. O trem, com o sultão que fez questão de
acompanhar a sua amada na viagem, partiu lotado do oásis rumo à cidade.”

“Durante a viagem, não demorou, a moça notou a maneira deselegante e grosseira


como o sultão tratava os seus subalternos e as pessoas pelas quais ele não nutria
nenhuma relação de afeto ou interesse. Explicou para o sultão que todos traziam dentro
de si uma enorme riqueza, os bons sentimentos. Falou que a verdadeira nobreza não
falava de dinheiro ou títulos, mas era uma questão de amor e bons sentimentos. Como
todas as coisas que possuímos, precisamos usar o coração para que não enferruje. O
sultão disse que as pessoas não eram iguais e, portanto, não podiam ser tratadas da
mesma maneira. Acrescentou que ela não precisava se assustar, pois ele era atencioso
com as pessoas que amava. A moça explicou que a virtude não estava em tratar bem
aqueles que apreciamos, mas na dignidade de respeitar e cuidar bem de cada pessoa,
indiferente da natureza das diferenças que se apresentavam. Por fim, disse que como
ele não era capaz de cumprir com a sua promessa, não haveria casamento.”

“Do alto do poder que imaginava ter, o sultão avisou que eles tinham passado do ‘ponto
sem volta’. Confessou que não podia obrigar a ela a se casar com ele, mas caso ela
insistisse em manter a decisão, mandaria parar o trem para que a moça e os seus amigos
descessem. Lembrou que retornar a pé ao oásis seria uma tarefa bem árdua, quase
impossível se levasse em conta que estavam no meio do deserto.”
“A moça se manteve firme. Ela respondeu ao sultão que ‘não existe ponto sem volta,
pois sempre é possível refazer as escolhas, ainda que pese o fardo das decisões
anteriores. O deserto acolhe a todos que amam a travessia e se guiam pelas estrelas que
iluminam a sua noite’”

Ansioso, eu quis saber pelo desfecho da aventura. A mulher tornou a sorrir e seguiu a
história: “Reza a lenda que o trem parou para que a moça descesse junto com os seus
amigos e parentes. Muitos dos empregados do sultão resolveram por acompanhá-los;
tinham aprendido a admirar os modos da moça e perceberam que era possível uma vida
diferente. Restaram o maquinista e os funcionários mais fiéis ao sultão, que ficou
apreciando da janela do vagão aquela gente se afastar a pé até aonde a vista alcançava.
Quando ele deu a ordem para partir, por algum motivo, o motor da locomotiva travou.
Após constatarem a impossibilidade do conserto, mandou um dos funcionários ir à
cidade para trazer cavalos e camelos necessários para o resgate. Tinham no trem
mantimentos suficientes para esperar. No entanto, no dia seguinte uma tempestade de
areia soterrou a todos e, sem completar a sua primeira viagem, deu cabo da ferrovia.
Exatamente no local onde conhecemos como ‘o ponto sem volta.’”

Perguntei se a moça e o seu pessoal tinham conseguido retornar às suas casas. A mulher
de olhos azuis concluiu: “Não andaram muito. Não demorou, encontraram um mercador
de camelos que levava os animais para negociar no oásis. Apiedado e generoso,
ofereceu os camelos para o transporte daquelas pessoas. Dizem que houve uma grande
festa quando chegaram.” Fez uma pausa e finalizou: “O deserto sempre acolhe aqueles
que amam a sua travessia e se guiam pelas estrelas que iluminam a sua noite.”

Encantado, eu só conseguia pensar na estranha sincronicidade entre a lenda e o motivo


da conversa que o professor gostaria de ter com o sábio dervixe, conforme ele tinha me
revelado naquele dia pela manhã. Aquela explicava e excluía esta. Falei que tinha sido
uma pena que o George não tivesse se interessado pela lenda. Talvez evitasse os
dissabores pelos quais passou. A mulher explicou: “Ele ainda fazia a travessia sem amor,
sem entender para onde seguia. De acordo com a tradição, o deserto sempre corrige a
rota daqueles que o percorrem sem rumo, usando do rigor necessário a cada caso. O faz
por amor.” Fez uma pausa e lembrou da lenda: “Para atravessar o deserto é preciso não
deixar enferrujar o ouro e a prata que trazemos no coração.” Falei que os ensinamentos
esotéricos ensinam que as conquistas morais e espirituais, ao contrário dos ganhos
materiais, jamais se perdem. Ela concordou, com uma ressalva: “Não as perdemos, mas
é indispensável que estejam sempre em uso. Caso contrário, em verdade, não a
teremos.” Abriu os braços como quem fala o óbvio e concluiu: “Ninguém perde aquilo
que não tem.” Olhou para as estrelas e disse: “Todos conhecem o amor”. Deu de ombros
e deixou no vento uma pergunta de simples retórica: “Mas do que adianta saber o que
é o amor sem amar?”

Fechei os olhos por instantes para concatenar em mim todas as ideias encapsuladas
naquelas palavras. Sim, quando tornei a abrir os olhos a bela mulher com os olhos da
cor de lápis-lazúli não estava mais lá.
O vigésimo-primeiro dia da travessia – o enigma do deserto
Eu acordara tarde, ainda cansado das emoções vividas no dia anterior. Embora tivesse
dormido profundamente, parecia que o corpo ainda estava cansado e pedia férias.
Arrumei rapidamente as minhas coisas e as coloquei no alforje sobre o camelo. Por
sorte, consegui uma xícara de café quando a tenda que servia de restaurante já estava
quase desmontada. Além das intempéries, em razão do clima, e de outras dificuldades,
como o desconforto de passar o dia sobre o gingado desajeitado de um camelo, o
racionamento de víveres e os perigos inerentes ao deserto, a travessia exigia um enorme
esforço o tempo todo. Naquele dia, pelo adiantado da hora, não avistei o caravaneiro
adestrando o seu falcão. A caravana partiu para mais um trecho da travessia rumo ao
maior oásis do deserto, onde morava o sábio dervixe, conhecedor de “muitos segredos
entre o céu e a terra”. Quem tornou a alinhar o seu camelo ao meu foi a Ingrid, a bela
astrônoma que viajava para observar determinada constelação, possível de ser avistada
apenas sob o céu do oásis. Como tínhamos discutido dias antes, fizemos as primeiras
horas da marcha em silêncio, como crianças birrentas. Em determinado momento, a
astrônoma quebrou o mal-estar ao comentar, com jeito travesso, que trocaria o seu
camelo por um sorvete de chocolate. Ri e devolvi que trocaria o meu camelo e os
telescópios da Ingrid por um quarto com colchão de molas, lençóis de seda e um potente
aparelho de ar condicionado. Divertidos, seguimos as horas expressando os nossos
desejos, como cinemas, restaurantes prediletos, hotéis luxuosos, praias paradisíacas,
esqui nos alpes ou mesmo a cafeteria na esquina de casa. Desejos simples, outros nem
tanto. Alguns tão inseridos em nossas rotinas que nem dávamos conta do quanto nos
proporcionavam de prazer. É preciso não ter para entender. De comum, a
impossibilidade de serem materializados sobre as areias do deserto.

Em razão da posição que a caravana seguia em relação ao sol, a astrônoma notou que
estávamos ligeiramente fora da rota. Comentei que que passaríamos em um poço para
nos abastecer de água, algo que fazíamos comumente em intervalos de poucos dias.
Não demorou, veio a notícia de que não teríamos o breve descanso no meio do dia,
como de costume, para que chegássemos mais cedo ao poço, onde montaríamos o
acampamento. Embora no imaginário popular qualquer deserto não passe de uma
paisagem monótona, o deserto se revelava mágico não apenas pela fauna e flora
surpreendentes, mas pela quantidade de momentos inesperados que proporcionava.
Na caravana tudo parecia nos levar além dos sonhos mais criativos que alguém ousasse
a imaginar. Naquele dia, próximo ao poço, tomei um enorme susto ao me deparar com
uma enorme pedra, do tamanho de um prédio de dez andares, na qual, em cuja uma
das faces, havia sido esculpida uma espécie de mansão ou castelo. Como se fosse a
cidade ancestral de Petra, no deserto da Jordânia, reduzida a um único prédio. Isto no
“meio do nada”, o que tornava ainda mais absurdo o entendimento das razões daquela
construção, assim como quem seriam os seus geniais arquitetos e pedreiros.

Acampamos ao lado do poço, com a antiga construção a centenas de metros de


distância. O caravaneiro explicou que nada se sabia quanto à obra, os autores ou as suas
motivações. Arqueólogos desconfiavam se tratar de um templo anterior às civilizações
da Mesopotâmia, Babilônia ou mesmo das pirâmides do Egito. Acrescentou que se
acreditava, embora sem qualquer registro histórico, fosse um templo construído por um
soberano muito poderoso para cultuar os desejos mais íntimos da humanidade. Por isso
tinha sido construído no meio do deserto, longe de qualquer outro lugar habitado, na
tentativa de o indivíduo estar distante de influências mundanas. Disse que podíamos
visitá-lo, mas que tivéssemos cuidado e voltássemos antes do anoitecer. Animadíssimos,
todos os viajantes de primeira travessia, como a Ingrid e eu, partiram para lá munidos
de curiosidade e máquinas fotográficas. Embora majestoso pelo primor da construção
vista pelo lado de fora, por dentro não havia nada mais do que enormes salas e
compartimentos, esculpidos na própria pedra, que levavam a outros, em um labirinto
sem fim. Qualquer objeto ou tesouro, que por ventura tenha existido, foi saqueado há
séculos. Um dos encarregados da caravana, que acompanhou o grupo, disse para termos
cuidado, pois havia caso de pessoas que se perderam no emaranhado das salas. Logo à
entrada, no alto do portal, havia dizeres insculpidos na pedra em um alfabeto
desconhecido. Uma voz atrás de mim sussurrou a tradução: “Seu desejo, sua alma; seu
desejo, seu destino.” Era a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli.

Sorri em agradecimento, mas ela logo sumiu no meio dos viajantes, andando para
dentro do templo. Após a animação inicial e as muitas fotografias, as pessoas
retornaram aos poucos ao acampamento. Ingrid entre elas. No entanto, algo me
mantinha estranhamente atraído àquela construção. Decidi passear por entre as salas
e, talvez, encontrar a mulher de olhos azuis. À medida em que passava pelas salas, eu
me permitia imaginar os diversos rituais ali consagrados em prol dos desejos. As
oferendas, as danças e os pedidos mais inconfessáveis de uma pessoa. Seguindo pelos
compartimentos com muito cuidado para não me perder, entrei em uma sala pequena,
mas que tinha algo de diferente das demais. Era o único compartimento circular da
construção. Em um plano mais alto, com uma pequena escada esculpida na rocha, havia
uma mesa, também de pedra, que me pareceu um altar. Percebi figuras e letras do
mesmo alfabeto desconhecido insculpidas nas paredes. Não tive dúvida de que estava
na sala principal do templo. Encantado e envolvido pela estranha vibração do lugar, fui
surpreendido pela entrada da bela mulher de olhos azuis. Ela anunciou: “Você tem
direito a um desejo. Apenas um. No entanto, para que seja realizado é indispensável
que também seja honesto. Não basta que seja um desejo qualquer, é preciso que seja o
maior de todos os seus desejos, o mais sincero deles. Aquele escondido ou negado até
de você mesmo. Caso contrário, ele se perderá nas brumas do tempo”. Em seguida,
permitiu: “Faça-o.”

Embora, confesso, tenha me ocorrido pedir investimentos bancários, posição de


destaque perante a sociedade, sucesso nos negócios e casamento com algumas belas
celebridades, de imediato falei que desejava a paz no mundo. Ela deu de ombros e
sacudiu a cabeça como quem diz que, além de clichê, o meu pedido não era honesto por
não ser, no fundo, o mais desejado. E saiu. Fui atrás dela. Não, eu não estava sendo
sincero, apenas queria impressionar, parecer altruísta e, talvez, enganar a mim mesmo.
Fui entrando e saindo das diversas salas, mas sem o devido cuidado para não me perder.
Eu não conseguia encontrá-la. O estranho é que independente de onde entrava ou saía,
eu sempre voltava para a sala circular onde havia o altar. Como já anoitecia e eu não
encontrava a mulher, decidi por retornar ao acampamento. No entanto, por mais que
eu buscasse a saída, sempre acabava por voltar àquela sala do altar.
Tentei, sem sucesso, sair do templo de pedra mais algumas vezes. De volta à sala
circular, comecei a ficar nervoso à medida que anoitecia. Do alto da construção, os raios
de sol, que clareavam os ambientes através de minúsculas fendas, se despediam
enquanto o crepúsculo se aproximava. Gritei por ajuda em vão. Todos já haviam
regressado ao acampamento. Assustava-me passar a noite ali dentro; mais ainda, a
possibilidade de a caravana partir no dia seguinte sem notar a minha ausência. Projetei
as próximas horas, depois os dias seguintes, sem água e alimentação, definhando até a
morte. Seria um desenlace sofrido e doloroso, por abandono. Apavorado, gritei e gritei.
De novo em vão.

Não sei quanto tempo se passou. A tragédia em meus pensamentos escalou tom sobre
tom até o desespero. Então, sentado no centro da sala do altar, gritei para mim mesmo
que o meu maior desejo era sair do templo de pedra. Eu estava sendo absolutamente
sincero. Após alguns instantes de intenso silêncio, ouvi o barulho de passos. Em seguida,
uma faixo de luz. Era a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli com uma vela
acesa na mão. Aliviado, pedi para que ela me levasse logo para o acampamento.

A pressa era minha, não dela. A mulher se sentou à minha frente e apoiou a vela no
chão. Alertei que temia que a chama exaurisse a parafina e, no escuro, não
encontrássemos a saída daquele labirinto. Ela ignorou a minha observação. Perguntei
por que ela tinha deixado que eu ficasse perdido. A mulher deu de ombros e disse: “Você
se perdeu sozinho quando quis acreditar na própria mentira.” Após alguns segundos,
falou: “O labirinto mais complexo, o mais difícil de encontrar a saída, não é o templo de
pedras, mas o próprio desejo. São nas veredas dos desejos que perdemos a vida e
esvaímos as melhores oportunidades. O desejo é o enigma da vida. Os nossos desejos
são a perfeita tradução de quem somos. Ou melhor, de quem ainda não somos. Quer
conhecer uma pessoa? Decifre os seus desejos. E estará diante de uma alma nua.”

“Um indivíduo se transforma na exata medida em que mudam os seus desejos.” Em


seguida ela me perguntou: “Os seus desejos são de ser ou de parecer?” Falei que não
tinha entendido. A mulher explicou ao jeito socrático, com novas perguntas: “O seu
maior desejo nasce de um ego exacerbado ou brota de uma alma serena? O seu maior
desejo está ligado à aparência sobre como se mostrará ao mundo ou a alegria pela
intimidade de estar diante de si mesmo? É um desejo por brilho ou por luz? Você deseja
os elogios de quem está à sua volta ou anseia por se sentir confortado pelo próprio
coração? O seu desejo mais íntimo é de superfície aparente ou de profundidade oculta?”

“Diga-me com quem andas, ou melhor, diga-me os desejos que te acompanham e eu te


direi quem és. Eis o enigma do ser.”

“Não aqueles desejos politicamente corretos. Estes são chatos, pois, em verdade,
embora não sejam mentirosos, estão guardados nas últimas gavetas no armário dos
desejos. Interessam-me os desejos mais vis, os desejos inconfessáveis. Estes, sim, nos
revelam por inteiro. Eles permitem entender a encruzilhada que estamos no Caminho.”

“Contam os antigos sacerdotes que esta sala, em tempos imemoriais, na época em que
o templo estava em uso, era toda revestida por espelhos.” Indaguei se era para que
fôssemos obrigados a olhar para nós mesmos, a nos enxergar por todos os ângulos, a
nos ver o tempo todo. A mulher confirmou com um simples movimento de cabeça e
completou: “Ajudava a entender a raiz de cada desejo.”

Com os olhos azuis iluminados pela chama da vela, ela me olhou fixamente e disse: “O
seu desejo de sair daqui foi sincero.” Em seguida quis saber: “O que o motivou?” O
medo, falei sem pestanejar. Ela prosseguiu: “Entende a razão de tanto sofrimento?
Enquanto os nossos desejos forem movidos pelo medo significa que continuamos a
escolher impulsionados pela dor, nos afastando dos bons desejos que poderíamos ter.”

“O desejo por admiração revela o medo de ser um verdadeiro aprendiz; o desejo em ter
poder sobre os outros revela o medo em relação a liberdade; o desejo por aplausos
revela o medo de ser esquecido. O medo nos conduz a desejos de ilusão existencial, na
vã tentativa de fugir do sofrimento, que, por efêmeros e inconsistentes em substância,
logo são trocados por outros e depois por mais outros, em escalas infinitas de
sofrimento e impossibilidades. Com isto, adiamos o combate para entender e superar
quem somos e, por consequência, a dor que nos aprisiona. Nessa fase os desejos nos
enganam. Decifrar o desejo é compreender a travessia do deserto. Somente assim será
possível chegar ao oásis.”

Perguntei qual deveria ser a mola dos desejos para nos afastar do medo e da dor. A
mulher deu um sorriso doce e respondeu: “A esperança, uma das filhas mais bonitas do
amor. A esperança acalma o medo.” Fez uma pequena pausa e ampliou o raciocínio:
“Com mais profundidade temos a fé, que, em essência, é a capacidade de movimentar
o amor dentro da gente. Ou como preferem alguns sábios, o poder de mover o sagrado
que nos habita. A fé dissolve o medo.”

“Assim os nossos desejos deixam de ser guiados pelo medo que temos em relação às
próprias capacidades e dons. Caso contrário, continuarão a se refletir através de vários
medos: o medo que temos dos outros, do mundo e do amanhã. É preciso que os desejos
passem a ser dirigidos pela vontade de aprimorar a si mesmo, de comungar com os
outros, de abraçar o mundo e de viver o dia de hoje. Os desejos guiados pelo medo nos
mostram o mundo como se fosse um objeto a ser conquistado. Como não conseguimos
pela impossibilidade da tarefa, amaldiçoamos o mundo. Mas o mundo não nos quer mal,
são os medos que nos convencem disto e nos levam a um confronto desnecessário. Os
desejos, quando orientados pela esperança e pela fé, revelam o mundo como um
parceiro com quem devemos bailar na grande sinfonia da vida. O mundo é um
instrumento de aperfeiçoamento do ser, da sua comunhão consigo próprio e com o
universo.”

Comentei que também era muito ruim, e bastante comum, os desejos oriundos do
egoísmo. A mulher balançou a cabeça em anuência e disse: “Sim, é verdade. Mas o que
é o egoísmo se não o medo que o indivíduo tem sobre a sua própria capacidade de
superação, a ignorância sobre quem ele é e o verdadeiro poder que traz consigo? O
egoísmo é o medo de amar. Amar é compartilhar o que trazemos de melhor; é a alegria
de abraçar o mundo por conseguir abraçar a si mesmo.”
Fez uma pausa e concluiu: “Os nossos desejos fazem com que nos percamos nos
labirintos do mundo. Porém, se prestarmos a devida atenção, os desejos podem
começar a nos orientar a achar o rumo de casa; a porta de volta para a vida.”

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Olhei para a vela, quase toda consumida
pela chama, sem mais me importar se chegaria logo ao fim. Uma sensação diferente me
envolvia e parecia mexer comigo de maneira estranha, embora agradável. Falei para a
mulher de olhos azuis que a única e verdadeira porta do labirinto era o coração. Eu tinha
de mantê-la aberta para que o amor pudesse transitar livremente e me mostrar o
mundo no compasso por revelar quem eu sou. A cada transformação ocorrida no âmago
do meu ser mudarão as cores na palheta dos meus desejos. Isto altera a realidade e
descortina a vida. Esta era a solução do enigma do templo, e também do deserto.

Ela sorriu satisfeita. Tomado por indescritível força consciencial, eu me levantei. Por não
mais precisar, deixei a vela com a mulher de olhos azuis. Sozinho andei pelos corredores
e salas. Embora estivesse muito escuro, eu não tinha qualquer dúvida; o labirinto tinha
sido desconstruído. Logo encontrei a saída do templo. Como se flutuasse, caminhei pelo
deserto até o acampamento da caravana. Naquela noite fiz questão de dormir fora da
tenda. Eu precisava olhar para as estrelas.

O vigésimo-segundo dia da travessia – os olhos do deserto


Nada como o dia seguinte à tempestade para entendermos o valor da calmaria. Assim
era o vigésimo-segundo dia da travessia. As horas se seguiam com encantadora calma
após alguns dias de extrema movimentação. No entanto, se engana quem pensa que
tranquilidade é necessariamente sinônimo de tédio ou estagnação. Eu tinha acordado
com os primeiros raios de sol da manhã. Arrumei rapidamente as minhas coisas e as
coloquei no alforje do meu camelo para ter tempo de usufruir de alguns hábitos que
tinham virado uma espécie de ritual matinal no deserto. Eu fazia uma prece breve e
sincera pedindo por luz e proteção, como o caravaneiro tinha me ensinado. Em seguida,
enchia uma caneca de café e me afastava do acampamento para ver, de longe, o
caravaneiro adestrar o seu falcão. Era o tempo para os encarregados desmontarem o
acampamento e seguirmos para mais um dia da travessia rumo ao maior oásis do
deserto, onde eu pretendia conversar com um sábio dervixe, “conhecedor de muitos
segredos entre o céu e a terra.” Por todo o tempo, eu tentava encontrar com a bela
mulher de olhos da cor de lápis-lazúli, mas ela não parecia à disposição dos meus olhos
e já me mostrara que ela tinha o seu próprio tempo para se aproximar e partir como
quem se desmancha no ar. Aquela travessia vinha me oferecendo uma percepção
alterada da realidade, ou ao menos aquilo que eu entendia por realidade. No deserto
todas as sensações pareciam superlativas, vividas ao extremo das emoções e das ideias,
como se fossem para estendê-las ao limite e, então, ao rasgá-las, pudessem se tornar
outras, em constantes processos de transmutações aceleradas.

Assim eu seguia naquele dia de travessia, envolvido em minhas reflexões. Quem alinhou
o seu camelo ao meu foi um homem da minha idade, que pelas roupas percebi se tratar
de um árabe. Seguíamos sem trocar palavra. Eu precisava de silêncio para vasculhar todo
o universo de acontecimentos dos últimos dias. Ele, por sua vez, me pareceu um
apaixonado pela quietude e um homem portador de uma calma bem estruturada em si.
Porém, algo nele me chamou atenção. Na caravana, por causa do sol forte que reflete
nas areias claras e também por causa do vento que espalha a areia, quase todas as
pessoas usavam óculos escuros para proteger os olhos. No entanto, percebi que as
lentes dos seus óculos estavam muito arranhadas, a ponto de eu duvidar se era possível
enxergar alguma coisa além delas. Contive-me para não me intrometer na vida do
homem. Por outro lado, eu trazia no alforje um par de óculos reservas. Era como se o
meu coração insistisse para que eu os oferecesse ao homem.

Não demorou, veio a ordem para a costumeira parada ao meio do dia para um breve
descanso e uma refeição ligeira. Na confusão da parada, me perdi do homem, vindo a
encontrá-lo algum tempo depois. Tomado por compaixão, me enchi de coragem e
ofereci os óculos sobressalentes que eu tinha. O homem estava sentado sobre um largo
tapete e, sem responder a minha oferta, me convidou para sentar ao seu lado. Quando
me sentei ele me ofereceu tâmaras e nozes em gesto de delicadeza e hospitalidade.
Apresentei-me e ele disse se chamar Mohamed. Comentei que me preocupava com as
lentes arranhadas e, em razão disso, da dificuldade que ele deveria ter para enxergar. O
homem sorriu com doçura e disse: “Agradeço com o fervor da minha alma, mas não é
necessário.” Antes que eu fizesse qualquer outra indagação, ele abaixou os óculos até a
ponta do nariz para me mostrar os seus olhos opacos e cinzentos. Ele era cego.

Pedi mil desculpas. Mohamed se virou para mim e quis saber: “Por que me pedes
desculpas?” Falei que lamentava o constrangimento que eu havia causado a ele naquele
momento. O homem sacudiu a cabeça e explicou: “Você não causou a minha cegueira
nem tinha conhecimento dela, logo não há constrangimento nem me deve nenhuma
desculpa.” Colocou uma noz na boca e disse: “Por favor, não se sintas mal. Todos temos
uma enorme dificuldade para ver a verdade. E para ver a verdade os olhos em nada nos
ajudam. No fundo, somos todos deficientes. Cada qual com o tipo e grau de dificuldade
que lhe é afim. Entender isto é a semente da compaixão e da paciência que devemos ter
para com o mundo. De outro lado, a deficiência pessoal é a alavanca da superação do
ciclo vivido naquele momento pelo indivíduo. É justamente a deficiência que o fará ver
aquilo que ele se negou a enxergar por todo o tempo.” Fez uma breve pausa e
prosseguiu: “Posso encarar a deficiência, seja qual for, como uma limitação definitiva,
então serei um desgraçado. Porém posso entender a deficiência como a ferramenta na
qual me tornarei um aprendiz de mestre. A diferença entre uma e outra está no olhar
que me permitirei. A escolha é minha.” Virou o rosto em minha direção, como se
pudesse me ver, e disse: “A cegueira em meus olhos não é a minha deficiência, na
verdade, ela foi um presente do deserto para mim.”

A minha mente foi movimentada por várias ideias. Por polidez não as expressei. Como
se Mohamed fosse capaz de adivinhar os meus pensamentos, ou se estes pensamentos
fossem comuns a muitos daqueles que conversavam com ele, o homem me explicou:
“Sei que você está pensando que me iludo na esperança de tentar encontrar algo de
bom diante de uma tragédia. Sim, ficar cego é uma enorme desgraça para todos que
enxergam bem e não conseguem se imaginar vivendo uma vida miserável pela
incapacidade de ver as cores do dia.” Sem jeito, falei que era mesmo assim ou parecido
com a descrição que ele oferecia. Com sincera humildade ele se propôs a me contar a
sua história, caso eu me interessasse. Falei que me sentiria honrado em ouvir. Mohamed
iniciou a narrativa: “Eu sempre tive os olhos com perfeita visão. Comecei a trabalhar
com o meu pai ainda adolescente. Ele era um próspero mercador de grãos e eu
costumava acompanhá-lo nas caravanas para negociar nos vários oásis do deserto.
Quando ele se foi, assumi o negócio sem nenhuma dificuldade. Vivia para vender grãos
e me divertir. Quando alguma coisa dava errado ou saía fora dos meus planos, eu
amaldiçoava a vida e ficava muito irritado. Aos poucos, sem perceber, fui me tornando
arrogante e impaciente. Os empregados não trabalhavam para mim com alegria, mas
apenas por necessidade. As coisas do mundo me encantavam pela distração
momentânea, mas não conseguiam me satisfazer por muito tempo. Os dias se tornaram
efêmeros, sem substância nem memória. Tudo à minha volta se tornava pesado; as
diversões não mais aliviavam o coração, que parecia sufocado, sem ar, desesperado para
respirar.” Tornou a dar uma pausa, como se os pensamentos estivessem distantes, fez
um muxoxo como quem conta um segredo: “Corações respiram amor e luz.”

“Tornei-me uma pessoa sisuda, séria, mal-humorada, que na verdade era uma máscara
para eu esconder do mundo, e até mesmo de mim, o quanto eu me sentia vazio e infeliz.
Até que um dia, durante uma das travessias pelo deserto, fomos pegos por uma forte e
repentina rajada de vento. Eu estava sem óculos. Os grãos de areia perfuraram a minha
córnea com uma violência destruidora.” Fomos interrompidos com a ordem para
prosseguir em nossa marcha. Emparelhamos os camelos e Mohamed continuou a sua
história: “Claro que no início me considerei um desafortunado e me projetei como um
eterno infeliz. Contudo, como eu tinha que continuar a negociar grãos, a única coisa com
a qual eu sabia trabalhar, para me manter, pois tinha me habituado a uma vida de gastos
e luxos, entendi que precisava me adaptar a uma nova realidade. Assim o fiz.”

“Pouco a pouco, por não poder mais desfrutar das cores do mundo, tive que aprender a
me encantar com as luzes da alma. Como eu não podia ver o rosto e as reações das
pessoas que conversavam comigo, aprendi a sentir a suas emoções, seja pelo tom das
palavras, pela pausa, pela respiração, seja pelo silêncio. Entendi que as letras caladas
expressam sentimentos mudos; as palavras não ditas gritam mais alto do que as palavras
faladas. Tive a oportunidade de conhecer a voz do silêncio; o verdadeiro discurso da
alma, aquele que, muitas vezes, se pronuncia sem nenhuma palavra.” Fez uma pequena
pausa para eu começar a concatenar o raciocínio e prosseguiu: “Pela dificuldade em
usufruir das diversões mundanas, passei a prestar mais atenção nas alegrias do coração.
Quanta diferença! Por não mais conseguir enxergar o que havia fora, comecei a ver o
que existia dentro. Dentro de mim; dentro do outro. Aprendi a descobrir a amplitude de
uma palavra, o discurso de uma respiração, o conteúdo de um gesto, todo um texto de
amor contido em um único abraço apertado. A linguagem do coração é a linguagem da
verdade, com a qual decodificamos a vida. Um verdadeiro tesouro que estava
desapercebido para mim em função das algazarras do mundo. A oportunidade de
encontrar comigo abriu os caminhos para eu conhecer a beleza dos outros e da vida.
Então, descobri um universo fantástico que precisava ser reconstruído, pois estava
prestes a desabar por falta ou inadequação de uso.”

“A cegueira nos olhos, ao menos para mim, foi a maior de todas as aventuras ao me
possibilitar as fantásticas transformações possíveis à alma. Ao perder os olhos encontrei
o coração. Não ter os olhos não me impede de olhar; apenas muda a maneira de ver. Ao
mudar o olhar, aprendi a sentir; isto modificou a maneira como eu fazia a travessia. Por
consequência, o deserto também se modificou para mim. Atravessá-lo ficou bem mais
suave.”

Segui o restante do dia com Mohamed me contando detalhes da sua história. Era uma
narrativa que mesclava a estranheza e a fascinação de outro olhar, mas também
revelava um homem alegre e doce. As passagens da sua vida eram narradas com leveza
e bom humor, despidas de qualquer ressentimento. A conversa continuou até pararmos
para montar o acampamento e passar a noite. Despedimo-nos e fui cuidar dos meus
afazeres.

Logo após o jantar, me afastei do burburinho do acampamento para rezar, meditar e


refletir. Tinha sido um dia diferente, sem as emoções fortes dos dias anteriores. Era uma
emoção mais serena, mas nem por isto menos profunda. Sentei-me na areia. Quando,
por puro instinto, fechei os olhos para mergulhar fundo em meu universo próprio de
emoções e ideias, foi inevitável não lembrar dos ensinamentos de Mohamed sobre a
cegueira. Sim, temos o costume de fechar os olhos quando queremos olhar para dentro,
para sentir e pensar de maneira clara, para encontrar consigo mesmo. Sim, a verdade
está disponível o tempo todo, mas teimamos em não ver. Agradecido, sorri sozinho.

Naquele dia tranquilo, diferente dos demais por causa de todas as aventuras já vividas
na travessia, eu pensava em como as artes precisam do realismo fantástico, ou mesmo
do absurdo, para mostrar uma realidade que existe além da realidade. É como se a
realidade mudasse o próprio rosto na medida que fôssemos abrindo cortinas até
encontramos a próxima cortina, com infinitas cortinas atrás. Antigas realidades se
tornam meras ficções no abrir e fechar das cortinas. Mas é preciso tanto para o encontro
com a verdade? Não. A profundidade oculta está também na simplicidade dos dias, na
aparente banalidade do cotidiano. Lá estão todas as respostas para qualquer pergunta.
Saber ver e entender o tempo de cada resposta é a parte que nos cabe na arte da
existência. Como se determina o tempo de cada resposta? Pela capacidade de mudar o
olhar… e ver por dentro… e ver além.

Passei um longo tempo envolto em meus pensamentos. Depois, com os olhos abertos,
contemplei o manto de estrelas que cobria o deserto. Tinha sido um dia e tanto. Pensei
na jornada de Mohamed, de como, aos olhos mais afoitos, tinha tudo para ser uma
existência triste; no entanto, se tornou uma história admirável. Quando ia me levantar
para retornar ao acampamento, ouvi uma voz conhecida atrás de mim: “Nada mais triste
do que a história de uma pessoa sem história. A grandeza de uma história não está nas
aventuras que vivemos no mundo, mas nas transformações que o mundo foi capaz de
nos aventurar.”

“A melhor história que alguém deve ter para contar é a história da sua própria vida; não
uma história de atitudes heroicas mundo afora, de títulos nobiliárquicos ou manchetes
de jornais, mas de superação mundo adentro. Indivíduos desconhecidos, de gestos
humildes, simples, desprovidos de publicidade, repletos de sinceridade e amor, em
verdade, são os autores da verdadeira história do mundo; são eles que sustentam o
mundo na luz.”
Antes que eu pudesse me manifestar, ela concluiu: “O mundo não precisa de heróis.
Bastam indivíduos que tenham a alma à flor da pele e o coração na ponta dos dedos.
Tudo começa com um olhar sensível.”

Girou nos calcanhares e se foi. Acompanhei a bela mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli desaparecer diante dos meus olhos na imensidão da noite do deserto.

O vigésimo-terceiro dia da travessia – a verdade do deserto

A caravana era um universo. A família, o trabalho, os amigos são alguns dos


pequeníssimos universos que coexistem na vida de todas as pessoas, com
particularidades, padrões, dificuldades, prazeres, lições entre outras características
evolutivas afinadas aos seus habitantes. Essa era a reflexão que me ocupava a mente
naquela manhã. Eu estava sentado na areia, um pouco distante da caravana, com uma
caneca de café na mão. O dia raiava. Eu acabara de fazer a minha prece e observava o
caravaneiro no adestramento matinal do seu falcão. Os pensamentos corriam livres ao
me recordar de todos os acontecimentos daquela travessia pelo deserto que pouco
tinha passado da metade. Estávamos no vigésimo-terceiro dos quarenta dias
necessários para chegar ao oásis, onde eu pretendia conversar com um sábio dervixe,
“conhecedor de muitos segredos entre o céu e terra.” Eu pensava não apenas nos fatos
ocorridos, fontes de valiosas lições, mas nas pessoas que eu ali tinha conhecido. Cada
uma delas era única e possuía a sua beleza peculiar. No entanto, era inegável que
algumas demonstravam uma enorme força, enquanto outras revelavam a sua
fragilidade. Por toda a filosofia que tinha estudado, por todas as experiências metafísicas
que havia vivido, eu me acreditava um apto conhecedor da alma humana. Nesse
momento, enquanto os pensamentos me encantavam, aconteceu uma agradável
surpresa. A bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se sentou ao meu lado. Sem
dizer palavra, apenas sorriu. Animado, logo puxei conversa e contei sobre as
observações que eu fazia sobre as pessoas. Comentei sobre aquelas que me pareciam
seguras de si, de seu lugar no mundo e daquelas que se mostravam perdidas, ainda sem
terem conseguido construir a própria personalidade.

Embora permanecesse calada, a bela mulher de olhos azuis me olhava com interesse.
Decidi ampliar o meu discurso com bons exemplos encontrados na caravana. Falei de
um rico mercador de tapetes, que seguia com um enorme séquito de empregados, se
mostrando firme em suas ordens, até mesmo duro no trato com as pessoas, mas como
tudo parecia funcionar a contento ao seu redor. Lembrei de uma linda espanhola,
conhecida repórter de um canal de televisão, de como ela se mostrava dona da própria
vontade, segura das suas decisões e de como as pessoas pareciam fascinadas pela sua
desenvoltura. Tinha também um homem muito popular, um bom contador de histórias,
todas engraçadas. Ele estava sempre rodeado por outros viajantes, que encantados, o
ouviam entre atenção e gargalhadas. Ele possuía uma enorme capacidade de responder
prontamente a qualquer indagação ou a contar um interessante caso diante de cada
comentário feito por alguém. Eram três exemplos de pessoas muito bem resolvidas.

De outro lado, tinha um jovem peregrino que também viajava para encontrar com o
sábio dervixe. Estava sempre com um livro na mão e não se cansava de perguntar sobre
tudo a todos. Parecia nunca saber sobre nada. Comentei que, talvez em razão da pouca
idade, me parecia um homem ainda sem rumo. Falei sobre uma senhora, já viúva e sem
filhos, que sempre estava pronta para ajudar quando alguém se sentia mal. Afirmei que
o fato de ela se preocupar com os outros era um jeito de preencher a ausência da família.
Não era necessariamente um ato de amor, mas de ocupação. Por fim, comentei sobre
um dos encarregados da caravana, um homem trabalhador, sempre solícito aos pedidos
dos viajantes. Ele vivia como se não tivesse uma vida própria; talvez por ter uma
existência miserável, atender aos outros fosse a maneira que encontrou de participar
da boa vida alheia, se mostrar útil ao mundo e atribuir algum valor a si mesmo. Mostrei
três modelos de pessoas frágeis e desorientadas.

A bela mulher de olhos azuis me perguntou se eu tinha convivido com essas pessoas.
Expliquei que não, porém garanti a ela que eu era um excelente observador. Ela apenas
balançou a cabeça como quem diz que entendia o que eu falava e não fez qualquer
comentário. Em seguida, veio o aviso de que caravana partiria para mais um trecho da
travessia. O dia transcorreu sem maiores novidades. Montado em meu camelo, segui
envolto em ilações a respeito da formação da personalidade, sobre a força e a
fragilidade da alma humana. Percebi que durante uma boa parte da marcha, a bela
mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli esteve com o seu cavalo emparelhado ao do
caravaneiro em uma conversa demorada.

Como de costume, paramos no final da tarde para montar o acampamento e passar a


noite. Antes que o jantar fosse servido, me chegou o convite para cear com o
caravaneiro. Às vezes, sempre à noite, ele chamava alguns integrantes da caravana à sua
tenda, com o intuito de estreitar o convívio entre todos os viajantes. A tenda era muito
simples, sem nenhum luxo, com muitas almofadas e iluminada com várias velas, que
conferiam um clima agradável ao lugar. Senti-me confortável quando entrei. Eu fui o
primeiro a chegar. O caravaneiro me recebeu com um sorriso sincero e pediu para eu
ficar à vontade. Sentei sobre um dos tapetes que revestia o chão da tenda e recostei em
uma enorme almofada. As chamas bruxuleantes das velas realçavam os estampados das
almofadas e tapetes; as estrelas que se avistavam pela entrada da tenda ajudavam a
criar um ambiente de magia à noite.

No centro da tenda uma enorme tábua redonda, sustentada por almofadas, continha
comidas e bebidas. Nada sofisticado, mas com ótima aparência. Incensos perfumavam
o ambiente. Logo começaram a chegar os demais convidados. Para a minha surpresa,
aos poucos, entraram o rico mercador de tapetes, o popular contador de piadas, a viúva,
o jovem estudante, a linda apresentadora de TV, quase ao mesmo tempo em que
chegou o solícito encarregado da caravana. Todos aqueles que eu havia mencionado à
bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli pela manhã. O caravaneiro, como
anfitrião, apresentou a todos apenas pelos seus nomes, sem nenhuma outra referência
pessoal ou profissional. As pessoas se mostraram gentis nos cumprimentos. Não
demorou, o rico mercador de tapetes começou a contar que, na verdade, não poderia
estar naquela travessia, pois grandes negócios dependiam da sua presença para serem
fechados em Marraquexe. A linda apresentadora de TV, que viajava para realizar uma
reportagem sobre o oásis, revelou que desejava logo retornar para que desse tempo de
fazer a cobertura da entrega de prêmios de um famoso festival de cinema na França. O
popular piadista não perdeu a oportunidade para contar uma engraçada história vivida
por ele ao lado de um amigo, um ator internacionalmente conhecido, que se envolveu
em uma situação constrangedora. Sem dúvida, aquelas eram pessoas muito
importantes e bem equacionadas em relação às próprias vidas. Cada um deles fez
questão de deixar isso bem claro logo no início da ceia. Sem se dar conta, os três
começaram a disputar a atenção de todos na tenda. Fui tomado pela estranha sensação
de que a tenda diminuía de tamanho a cada minuto que passava.

Pensei em falar sobre a minha agência de publicidade ou sobre os meus estudos sobre
filosofia e metafísica, mas percebi que não havia espaço para eu expor a minha vida
naquela tenda; era uma vida sem qualquer interesse para eles. Junto com a viúva, o
funcionário da caravana e o jovem peregrino, cabia a nós apenas a tarefa de ouvir os
outros três. Em determinado momento, quando o mercador pediu ao encarregado para
preparar-lhe um prato, a repórter aproveitou para solicitar que completasse a sua taça.
O caravaneiro interveio para lembrar que o funcionário estava na ceia como os demais
convidados. Com educação pediu para que cada um servisse a si mesmo, como maneira
de todos aproveitarem igualmente o convívio e a noite. Houve um pequeno mal-estar
que as pessoas se esforçaram para disfarçar.

Notei que o mercador, a apresentadora e o piadista não se mostravam interessados em


ouvir o que os outros falavam, mas ficavam atentos à menor pausa, para iniciar uma
nova história, na qual retornavam ao centro da narrativa. A tenda estava pequena e o
ar parecia pesado para respirar, algo comum onde encontramos egos exacerbados e
almas acanhadas. Foi quando entrou, sem aviso nem apresentação, a bela mulher com
os olhos da cor de lápis-lazúli. Todos se viraram para ela. Com uma flauta, começou a
entoar uma das melodias mais doces que eu me lembro de um dia ter ouvido. Ao mesmo
tempo em que tocava, ela bailava suavemente por entre os convidados. A canção calou
a todos. Eu tive a nítida sensação de que as notas musicais limparam a atmosfera densa,
renovando-a por outra, mais leve e sutil.

Após breves minutos, a mulher de olhos azuis cessou a música e se sentou ao lado
caravaneiro sem dizer palavra. Algo tinha mudado. Fez-se um silêncio constrangedor na
tenda. Em seguida, quase que ao mesmo tempo, o mercador, a repórter e o piadista
deram desculpas; alegaram motivos diversos para voltar para às suas barracas. O
caravaneiro se virou para todos os convidados e disse: “Agradeço muito a presença de
vocês em minha tenda, o que muito me honra e alegra. Se permitirem gostaria de fazer
uma prece de agradecimento aos bons espíritos do deserto pela noite de hoje.” Como
ninguém se opôs, ele pegou um pequeno tambor ao seu lado e recitou uma oração.
Cada palavra era compassada com o rufar do tambor. Os famosos tambores do deserto.
Todos se deixaram envolver pelas palavras e pelo ritmo do tambor. O ambiente restou
modificado; percebi as pessoas levemente alteradas.

Ao terminar, o caravaneiro pediu: “Se possível, gostaria que cada um, antes de sair, me
deixasse um presente.” Diante de olhares atônitos, ele explicou: “Que contem algum
detalhe sobre a própria vida. Porém não pode ser qualquer coisa. Gostaria de saber de
algo que nunca foi revelado a ninguém. Como, por exemplo, uma coisa que gostariam
de ter feito, mas não foram capazes de realizar, um medo não admitido ou um segredo
nunca confessado. Para mim será como receber um pedaço inestimável de cada um de
vocês.”

O tambor continuava rufando em compassos regulares como para ritmar as falas.

A famosa apresentadora de TV disse que era uma pessoa muito ousada, sempre fez tudo
o que teve vontade de fazer e não se arrependia de nada. A sua vida estava completa.
O rico mercador ressaltou que era um homem sem medo; nada temia nem o assustava.
O piadista falou que era um indivíduo transparente, que nada tinha a esconder ou
disfarçar. Foram unânimes em dizer que nunca pouparam palavra para dizer o que
pensavam. Enfim, eram as pessoas fortes e determinadas conforme eu tinha percebido.

No entanto, a minha convicção não era mais inabalável como pela manhã, embora eu
não soubesse a razão. Era como se eu sentisse algo que ainda não conseguia decodificar.
Como se o inconsciente enviasse incessantes mensagens ao consciente.

Na sua vez, a viúva contou que quando o seu marido e filho partiram para outra esfera
de existência, de início teve uma sensação de abandono existencial. Como se algo
tivesse deixado de existir dentro dela. Depois, prestando mais atenção, percebeu que,
ao contrário, não era um vazio; porém, um excesso. Tratava-se de todo um amor que
sempre ofertou, mas não sabia mais onde colocar. O amor que tinha pelos entes
queridos não podia se perder; precisava, em verdade, de outros destinatários para se
realocar. Aos poucos foi entendendo todo o poder desse amor. Pela própria experiência,
ela sabia que as dores da alma não encontram remédios nas farmácias. No entanto, o
amor é um bálsamo sem igual ou contraindicação. Ao usar esse amor para aliviar o
sofrimento da alma de outras pessoas, muitas das quais não conhecia, de alguma
maneira unia o seu coração aos delas, mesmo que nunca mais as visse. Revelou que a
sua vida passou a ter uma dimensão maior, como se o mundo pudesse encontrar abrigo
em seu coração. Seu único medo era ficar sem amor para compartilhar. Porém isto ela
não acreditava que fosse acontecer, pois percebia que quanto mais dava, mais amor
possuía. Esta era a sua força; um estranho e inabalável poder. Disse que desejava ter
descoberto isto há mais tempo e revelou que sonhava em administrar um orfanato.

O encarregado da caravana contou que sempre vivera de realizar serviços considerados


menores. No entanto, tinha percebido que apesar dos grandes feitos noticiados nas
manchetes de jornais, dos atos de heroísmo praticado pelos bravos e condecorados,
eram os trabalhos pequenos que formavam os pilares da humanidade. Tinha aprendido
que o mundo podia viver sem os heróis, mas não podia se sustentar sem o trabalho
humilde realizado com alegria pelas pessoas simples. Com impressionante autoestima,
e nenhum resquício de orgulho ou vaidade, revelou que não se importava como as
pessoas o viam, pois ele se considerava um autêntico construtor de pontes entre os
corações do mundo. Isto lhe preenchia a alma. Confessou que o seu sonho era um dia
estudar engenharia para aprender a construir pontes de concreto e aço, pois as de amor
ele já sabia como eram erguidas.

O jovem peregrino disse ser um apaixonado pelo conhecimento, pois era uma
importante ferramenta de libertação dos sofrimentos. Um instrumento de iluminação
das sombras pessoais e do mundo. Na medida que ele aplicava a teoria à prática, a vida
se tornava mais leve, as dificuldades viravam lições e os problemas desapareciam. Era
como se tudo e todos fossem seus mestres. Tinha uma enorme gratidão por isso. O seu
sonho era se capacitar para um dia se tornar um professor para servir como instrumento
de divulgação do saber e das suas incontáveis possibilidades de cura. No entanto,
confessou que ainda não estava pronto; era um aprendiz. A estrada era longa, mas a
percorria sem ansiedade, pois se alegrava por estar nela.

Fez-se um enorme silêncio. Tudo que era sólido começava a se desmanchar no ar. Era a
minha vez. Antes que eu pudesse me manifestar, a apresentadora de TV começou a ter
uma crise de choro. Depois de alguns minutos, mais calma, confessou que sentia muito
medo. Toda a sua carreira na televisão estava alicerçada na sua beleza física. No entanto,
o tempo é um inexorável algoz da pele e dos músculos. Repórteres jovens, bonitas e
talentosas, como ela foi um dia, chegavam a todo momento à emissora com a mesma
sede que ela teve no passado. Disse que a aparência tinha uma enorme influência na
televisão. Contou que todas as noites tinha a sensação de ter dado mais um passo rumo
ao cadafalso. Falou ainda que vivia a imagem da repórter implacável na busca pelo
esclarecimento dos fatos, como mote do programa que estrelava. Uma realidade muito
distante da verdade. Ela era uma pessoa insegura e frustrada. Nunca conseguira ser feliz
em um relacionamento afetivo, pois estava sempre desconfiada que os homens não se
apaixonavam por ela, mas pelo que representava. Evitou filhos para não prejudicar a
carreira; havia um enorme vazio que não sabia como preencher. Como não gostava de
ser vista como uma pessoa frágil, até para não macular a personagem que havia
construído de si mesma, se reprimia. Com os olhos banhados em lágrimas, disse que se
sentia como uma imponente mansão de bela arquitetura e um lindo jardim na fachada;
mas vazia, sem nenhuma vida em seus quartos e salas.

Em ato contínuo, com o rosto virado para o chão, o piadista confessou que desde
sempre vivera da herança deixada pelos pais. Nunca trabalhou, pois não precisava.
Contudo, percebia as pessoas construindo uma existência que ele imaginou ter recebido
pronta. Ledo engano. O tempo passava ao mesmo tempo em que crescia dentro dele
uma sensação de inutilidade. Era como se as pessoas escrevessem todos os dias mais
uma página da própria história. Contudo, o seu livro estava em branco, sem nenhuma
letra. Como se sentia incapaz de iniciar esse processo, achou mais fácil contar histórias
que criava ou adaptava da vida alheia como se fossem suas. Por isso as suas histórias,
aparentemente engraçadas, eram repletas de ironias e sarcasmos ao invés de serem
apenas bem-humoradas. Ele precisava ridiculizar os outros; ao diminui-los se sentia
maior. No fundo, a sua popularidade não provinha de boa semente.

Por fim, como em um ritual de catarse coletiva, o mercador disse que também queria
abrir o seu coração. Deixaria com o caravaneiro um segredo. Contou que desde moço
ganhara muito dinheiro em seus negócios. A fortuna mudou a sua vida. Então, passou a
ter medo de perder tudo que havia amealhado. Os seus dias serviam para vigiar o
próprio dinheiro, a tomar conta para que não fosse roubado. Tornou-se um funcionário
da fortuna, uma pessoa desconfiada de tudo e de todos. Envelheceu como uma pessoa
dura e rigorosa. Os seus filhos não suportaram trabalhar com ele e se afastaram. Com o
olhar perdido nas estrelas, admitiu que os seus prazeres eram apenas aqueles que o
dinheiro podia comprar. Confessou que era impossível ser feliz sem confiar nas pessoas.

O caravaneiro cessou com o tambor.

Um significativo silêncio se derramou sobre a tenda. Um silêncio que parecia gritar.


Todos estavam visivelmente emocionados. A bela mulher de olhos azuis usou a flauta
para entoar uma nova canção. Aos poucos a música serenou as emoções, alinhando-as
com as melhores razões. Ao final, o caravaneiro disse: “Foi uma noite sem igual. Um
autêntico cerimonial mágico do deserto, no qual, mais do que se revelar ou confessar
um segredo, cada um conseguiu estar diante de si mesmo, se abraçar, entender a
própria busca e o que deve ser modificado. Uma dádiva para mim; uma benção para
cada um aqui presente.”

Em silêncio, um a um, todos se despediram apenas com gestos e saíram da tenda. Eu


não segui para a minha barraca, pois sabia que não conseguiria dormir. Eram muitas
ideias para alocar na mente. Afastei-me e sentei na areia sob o manto de estrelas. Não
demorou, a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se aproximou. Estendeu a
mão para me dar de presente a flauta que usara naquela noite e explicou: “Coloque no
seu altar quando voltar para casa. Ela é sagrada, pois terá o poder de te lembrar para
nunca confundir a fragilidade da aparência com a força da essência.” Fez uma breve
pausa antes de prosseguir: “O orgulho é máscara que esconde o vazio; a vaidade é a
fantasia do efêmero; a arrogância é a muralha que guarda a fraqueza; o rigor é o
desconhecimento do perdão; o sofrimento é a negação do amor.”

Virou-se para as estrelas e concluiu: “Cuidado ao desejar a vida de alguém para si. Às
vezes, aqueles que têm tudo são os que nada possuem; os que muito aparentam nada
são; os que dão ordens nada entendem. A verdadeira beleza e força se mantêm ocultas
à superfície. São típicas à profundidade da alma.”

Então, finalizou: “Enquanto afastada da alma, a realidade restará distante da verdade.


A verdade não sobrevive sem amor. Longe do amor não se conquista a fortuna e a luz
da vida.”

O vigésimo-quarto dia da travessia – o infinito


O sol. O dia começava com a bola de fogo, ainda morna, me aquecendo o corpo ao surgir
por detrás das dunas. Sentado na areia, um pouco distante do burburinho da caravana,
com uma caneca de café na mão, eu esperava pelo caravaneiro no adestramento
matinal do seu falcão. Nesse dia ele não apareceu. Fiz a minha prece pedindo luz e
proteção. Como ainda restava algum tempo até que as tendas fossem recolhidas e
seguíssemos para mais um dia de travessia, me permiti ficar envolto em pensamentos.
O tempo. Fiquei pensando no tempo. A difícil incógnita que o tempo representa. Se o
universo é curvo como ensina a Física Quântica, deveria o tempo também se manifestar
de modo não linear e até mesmo errático? Veloz e lento; traiçoeiro e amigo; algoz e
mestre; implacável ou mera ilusão; certo ou variável; senhor ou ferramenta? Vi o tempo
demolir certezas absolutas para construir outras verdades; injustiças serem reparadas
mesmo diante de condenações eivadas em provas insofismáveis. Assisti a pessoas que,
com o passar do tempo, reconstruíram as suas histórias; projetos darem errado para
que pudessem dar certo, de maneira impensada anteriormente, ao seu devido tempo.
Alguns caminhos me levaram ao abismo. Quando achei que a queda era iminente, no
tempo oportuno, apesar dos maus momentos, as asas cresceram para que eu
sobrevoasse o precipício.

Olhando para aquele mar de areia que parecia sem fim, eu me perdia em devaneios.
Ilações à parte, eu tinha completado um tempo que acreditava ser a maior parte da
minha existência. Perguntava-me se a tinha aproveitado da melhor maneira. Como
direcionar o tempo restante? Quanto tempo eu ainda teria? Quais realizações ainda me
seriam possíveis diante do tempo que restava?

Dizem os sábios que devemos aproveitar cada dia como se fosse o último.

Diante desse raciocínio, lembrei das pessoas que eu amava, das palavras que eu gostaria
de lhes falar, dos beijos que faltavam dar, dos abraços que adiei. Pensei em algumas
pessoas com as quais eu tinha me desentendido há tempos por razões que não tinham
mais qualquer razão. Gostaria de me reconciliar com elas, de falar que estava tudo bem
e que eu as queria bem. Pensei em prazeres mundanos; desejei os beijos molhados da
minha namorada, quis almoçar um filé com fritas e ter sorvete de chocolate para a
sobremesa. Ansiei por estar com as minhas filhas, eu desejava ser um pai melhor. Queria
agradecer aos meus pais. Anotei que faltava pular de paraquedas, circunavegar o
planeta em um veleiro solitário e escrever um livro sobre a caravana, entre tantas coisas,
na minha lista de “as cem coisas para fazer antes de morrer.” Ri sozinho, mas também
fiquei melancólico. Tomei a firme decisão de que viveria cada dia como se fosse o último.
O tempo era um bem valioso e eu precisava aproveitá-lo da melhor maneira.

Foi quando soou a trombeta. Não a do final dos tempos, mas para avisar que a caravana
partiria para mais um dia de travessia rumo ao maior oásis do deserto. Eu estava ali na
esperança que um sábio dervixe, morador do oásis, compartilhasse comigo um pouco
do enorme conhecimento que tinha sobre “os muitos segredos do céu e da terra.” Quem
sabe ele não me revelaria os segredos do tempo? Coloquei as minhas coisas no alforje
e aprumei o meu camelo na longa fila para a marcha. Passei o dia envolto em reflexões
sobre o tempo. Foi impossível não lembrar que o tempo levara boa parte do meu corpo
esbelto e quase todos os cabelos que tive na juventude. A barba ficava mais branca a
cada dia. Considerei que sempre é possível recorrer a dietas rigorosas, exercícios
exaustivos, reposição hormonal estética, cirurgias e implantes para repor aquilo que o
tempo levara. Mas confesso que, embora respeite quem abrace essa luta, eu não me
animava a ela.

Com o passar das horas, nos passos lentos dos camelos, a agonia escalou vários graus
dentro de mim. Ali, no meio do deserto, eu nada podia fazer para começar a resgatar as
minhas dívidas emocionais, agravadas caso aquele fosse o dia derradeiro da minha
existência. Afinal, ninguém traz consigo a informação do dia da partida; é um bilhete de
passagem em aberto. Dei-me conta que eu não tinha que estar no meio do deserto,
enquanto uma série de coisas mais importantes me aguardavam. Como a agonia
costuma convidar a tristeza ou a irritação para lhe fazer companhia, não demorou, eu
estava profundamente sem paciência com a caravana e melancólico com as escolhas
que deveria ter feito, mas não fiz; com as coisas que deveria fazer naquele momento,
mas não podia. Eram muitos os resgates que o passado me exigia. Seria um péssimo
último dia, considerei. Contudo, no íntimo, eu acreditava ainda ter muito tempo para
equacionar os meus débitos comigo mesmo.

Foi quando notei uma movimentação diferente dos encarregados da caravana.


Movimentavam-se agitados em seus cavalos, pareciam conversar de maneira nervosa
entre eles. Lembrei que o caravaneiro não tinha treinado o seu falcão naquela manhã,
como também não o fizera no dia em que fomos pegos por uma tempestade de areia.
Achei que pudéssemos estar na iminência de risco semelhante, mas a tempestade era
outra. Bem mais perigosa. Ao longe, no alto das dunas, percebi inúmeros pontos pretos
que, de início, eu não soube identificar. Aos poucos os pontos pretos cresciam na
medida em que se movimentavam. No mesmo compasso, os encarregados da caravana
começaram a falar alto e a galopar mais rápido. Logo veio a ordem para a caravana se
fechar em círculo. Uma das várias tribos nômades do deserto, algumas famosas pela
selvageria, preparava um assalto.

A caravana se condensou em um único núcleo. Os encarregados, todos empunhando


armas, fizeram um cerco de proteção ao grupo. Entretanto, não era difícil de perceber
que os nossos protetores estavam em inferioridade numérica. Deus, o que eu estou
fazendo aqui? Esta realidade não é a minha, eu pensava de modo incessante. Eu não
precisava estar ali. Do outro lado do mundo uma série de assuntos bem mais
importantes me aguardavam; bem mais sérios do que uma conversa com um sábio
dervixe. Ele não me revelaria nenhuma sabedoria que já não estivesse catalogada em
algum livro, disponível para ser examinada em uma tranquila tarde de outono, no alto
das montanhas, aquecido por uma xícara de café e uma lareira aos pés. Uma maneira
estúpida de morrer; outra das muitas escolhas equivocadas que eu fizera no decorrer
da vida, pensei. Eu sentia muito medo naquele momento.

O medo é um vírus emocional de rápida disseminação. Logo vira uma epidemia, se torna
um pânico coletivo, uma densa nuvem energética que interfere na clareza da mente.
Era exatamente isso que se via nas feições dos mercadores e peregrinos da caravana.
Essa era a emoção que dominava o meu livre pensar e aprisionava os meus bons
sentimentos. Eu estava refém do medo. É uma sensação muito ruim. O medo tem o
poder de furtar todas as nossas forças; de secar as fontes claras que animam a vida.

Naquele momento o tempo deixou de fazer qualquer sentido para mim.

Roubos, estupros, assassinatos em série eram as possibilidades que eu considerava


prováveis naquele assalto. Ficar abandonado, sozinho, sem água, comida e montaria no
meio do deserto me parecia um belo presente dos céus diante do medo que insistia em
mostrar que o pior era inevitável. O medo é uma sombra poderosa. Tem gosto e cheiro;
fala com autoridade e se apresenta implacável. Eu sentia isto cada vez que respirava. O
medo reinava no ar. Estava no olhar opaco das pessoas, no suor frio que corria nos
rostos, nos lábios que secavam por desacreditarem na vida, nas mãos que tremiam de
impotência.
Estávamos cercados. À frente, os encarregados armados se posicionaram em defesa da
caravana. Foi um tempo que eu não sei precisar o tempo que durou. Talvez segundos
tenham demorado quase uma eternidade. De repente, para surpresa de todos, um
mercador escapou do grupo e correu para se apresentar diante do chefe do bando.
Ajoelhou-se e ofereceu um saco de dinheiro em troca da sua liberdade. Negociou a
permissão para ser liberado, de seguir sozinho com o seu camelo e víveres. Após alguns
momentos de tensão e indignação, o líder da tribo decidiu ficar com o dinheiro do
mercador, mas não permitiu que ele seguisse sozinho. Determinou que ele retornasse à
caravana. Foi uma sentença dura. De cabeça baixa, em uma mescla de frustração e
vergonha, o homem voltou ao nosso grupo. Os bandidos não estavam dispostos a
negociar. O medo cresceu ainda mais. Em mim e nos demais.

Tive a primeira lição do tempo. Ele tem o poder de encerrar a existência sem aviso
prévio. Quando acordei naquela manhã, embora refletisse sobre o tempo, eu não
acreditava que aquele seria o meu último dia. Para mim era um final de festa absurdo e
insensato. Eu tinha adiado a realização de muitas coisas importantes na minha vida. Eu
havia priorizado algumas por prazer ou vaidade, outras por necessidades imediatas. No
entanto, situações preciosas que falavam ao coração, como os meus sonhos, o exercício
do meu dom, os encontros e as reconciliações movidas por puro amor tinham ficado
para o dia seguinte. Um dia que não mais existiria. Sim, eu tinha amado, havia vivido
momentos sublimes, porém bem menos do que poderia; bem menos do que gostaria.
Eu tinha desperdiçado boa parte do tempo que tive em situações que, no momento
derradeiro, se revelavam sem qualquer importância primordial.

Entendi o que eu levaria na bagagem quando o tempo cessasse. E o que eu não levaria,
por mero descuido e estúpido descaso. Esta era a segunda lição do tempo. Algumas
situações ou pessoas, seja por parecerem sempre disponíveis, seja por representarem
um complexo desafio, eu havia colocado na lista de espera. Quem faz uma lista de
espera é porque não aprendeu a viver as suas prioridades. Eu tinha aberto mão da
profundidade da vida em troca da aparência de uma existência. Tudo por não entender
que eu era o meu próprio herdeiro; o legado de qualquer pessoa é tão e somente o amor
por ela vivido.

Lembrei de um verso de Manuel Bandeira: “A vida inteira que podia ter sido e que não
foi.” Sem dúvida o verso mais triste de toda a literatura, no qual o poeta sintetiza a
frustração pelo desperdício das oportunidades de uma existência. Não, nada pode ser
mais melancólico.

Eu tive a sensação que alguém me olhava. Como que atraído por um imã, o meu olhar
encontrou o olhar da bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. A uma certa
distância de mim, ela estava impávida sobre o dorso do seu vigoroso cavalo negro. Ao
lado do caravaneiro, ela se mostrava atenta a tudo. Entretanto, o que mais me chamou
a atenção foi perceber que ela não tinha nenhum traço de medo em suas feições. A
postura dela fez nascer um fiapo de ânimo em mim. Invejei a dignidade com que aquela
mulher se comportava diante de um momento tão difícil. Os movimentos dos seus lábios
me permitiram ler as palavras balbuciadas na minha direção: “Não é hora de se envolver
com o medo; é o momento certo para abraçar a esperança.”
Após alguns momentos de impasse, o chefe da tribo se adiantou. Em voz alta avisou a
todos na caravana que era bobagem resistir. Eles estavam em maior número e mais bem
armados. Acrescentou que era um bom homem e queria evitar uma carnificina. Caso
não houvesse reação, pegariam tudo que desejassem e não nos matariam. Cheguei a
pensar em se tratar de uma proposta generosa; o medo tem este poder.

Foi quando o caravaneiro posicionou o seu cavalo à frente do círculo de proteção


formado pelos encarregados armados. Em um tom de voz firme e ao mesmo tempo
estranhamente sereno, disse para que todos ouvissem: “Sem dúvida que vossa proposta
demonstra toda a sua grandeza em tentar evitar uma tragédia. A minha índole é mansa;
sou um apreciador da paz. No entanto, o meu gênio é de luta, a minha vida é de desafios.
Por respeito a mim, respeito as verdades do meu coração. Ele me diz que, quando não
me curvo aos desejos do medo, todos os dias são bons para morrer.”

O chefe do bando caçoou do discurso do caravaneiro. Disse que os heróis costumam


tombar por motivos tolos; um herói morto é apenas mais um defunto. Tornou a ressaltar
que era inútil resistir. Seria mais prudente se render. O caravaneiro replicou: “Existe
verdade quando falas que mancharemos o deserto com o nosso sangue. Com certeza a
caravana não sobreviverá. No entanto, ao menos um de vossa tribo deixará o sangue
misturado ao nosso.” Fez uma pausa e alertou: “Este será vós, o chefe da tribo. Talvez o
único. Se prestares atenção perceberás que todas as nossas armas apontam para a vossa
cabeça. Impossível que todas errem. Com certeza partiremos deste mundo hoje, mas
levaremos vossa alma conosco. Os seus homens retornarão a vossa aldeia com os
alforjes cheios de riquezas, porém vós não estareis com eles. As mulheres e filhos os
receberão com festa; para vossa mulher e filhos restarão apenas as lágrimas.” E
murmurou em voz baixa: “No dia seguinte outro chefe será eleito.”

O deserto foi tomado por um silêncio sepulcral. Como se a vida bailasse na fronteira
delicada de uma única palavra. O tempo parecia parado. Percebi nitidamente o medo
nos olhos do chefe do bando. O caravaneiro tinha manejado o medo com habilidade,
como se fosse uma peça sobre um tabuleiro de xadrez.

Com habilidade ainda maior, para evitar o xeque-mate do constrangimento do chefe


perante ao bando, o caravaneiro ofereceu uma saída honrosa ou que ao menos não se
mostrasse vexatória para um chefe impiedoso na frente dos seus comandados: “Já tens
o dinheiro que o mercador vos ofereceu. No entanto, para demostrar o meu
reconhecimento pela sua generosidade em nos deixar passar sem qualquer mal ou
prejuízo, ofereço esse valioso colar.” Fez um gesto com a cabeça e a bela mulher com os
olhos da cor de lápis-lazúli trotou em seu cavalo para se postar ao lado do caravaneiro.
Retirou o colar do pescoço e estendeu as mãos. Indeciso entre os sentimentos e as ideias
que se misturavam dentro dele, o chefe da tribo quis saber se o colar era de ouro ou de
pedras preciosas. O Caravaneiro explicou: “Ele não foi feito com ouro nem com gemas
raras. Foi confeccionado com materiais simples, mas é sagrado. Pois tem a importância
de nos mostrar o valor da boa vontade entre os povos, das decisões que tomamos
orientadas pelo coração. Isto traz em si um poder incomensurável.” Visivelmente
confuso, inseguro e constrangido o chefe aceitou o presente. Disse que serviria como
oferenda aos deuses do deserto para que livrassem a sua tribo da fome, das pestes e
das tempestades de areia. Estava evidente que ele não acreditava naquilo, mas era a
justificava encontrada para disfarçar o próprio medo diante do bando. Em seguida,
partiram. A caravana rapidamente seguiu em outra direção.

O restante do dia foi tenso. Contudo, as pessoas traziam um brilho diferente no olhar.
Era como se fosse a luz de uma nova oportunidade surgida após aquela manhã. Ao final
da tarde, como de costume, paramos para montar o acampamento e passar a noite. Os
encarregados mais experientes garantiram que caravana não tinha sido seguida pelo
bando. No mais, explicaram, um forte vento que soprara durante o dia se incumbira de
apagar os nossos rastros. Eu não quis jantar. Afastei-me para pensar. Todos os
acontecimentos daquele dia tinham que ser compreendidos para que pudessem restar
aproveitados. Ter leveza não significa viver à toa. Foi quando vi a bela mulher com os
olhos da cor de lápis-lazúli encantada com o por do sol. Como não fez objeção quando
me aproximei, me sentei ao seu lado. Perguntei se podíamos conversar; ela anuiu com
um gesto de cabeça. Contei sobre a coincidência de naquela manhã ter meditado sobre
o poder e o mistério do tempo. Falei de como os fatos daquele dia iriam enriquecer o
meu entendimento sobre essas questões. Comentei sobre tudo o que tinha pensado e
sentido. Conclui dizendo que passaria a viver de acordo com o ensinamento dos sábios
que nos alertam para viver cada dia como se fosse o último. Afinal, não temos tempo a
perder. A mulher de ombros e me desconcertou: “Nem a ganhar.”

Diante do meu espanto, ela explicou: “Viver cada dia como se fosse o último preenche
a ideia de aproveitar cada segundo para que haja tempo de fazer tudo o que não fiz, de
viver aquilo que me falta sentir, de resgatar os meus débitos. Tenho a sensação próxima
do fim e tento aproveitar o tempo que me falta. Sempre como se me restasse pouco;
sempre como se eu estivesse atrasada para o último encontro. Quando vivemos cada
dia como se fosse o último, nos comportamos com pressa, ao ritmo do medo. Como em
um baile no qual a orquestra pode parar de tocar a qualquer momento. Vivemos como
eternos devedores da vida.” Como se adivinhasse os pensamentos que me ocorreram
minutos antes, ela complementou: “Não devemos viver à toa, mas precisamos ser leves;
a leveza é incompatível para os aflitos, apressados e agoniados. Quem consegue ser feliz
assim?”

“Eu vivo como se cada dia fosse o primeiro.”

“Assim me movimento aos encontros e abraços que um dia quero viver. Alio-me à
alegria do novo a cada manhã, ao encanto dos sonhos, às maravilhas de exercitar o meu
dom sem cansaço. Sei que o meu dom, como são os dons de todas as pessoas, é uma
ferramenta sagrada por me movimentar nos caminhos rumo à luz. Isto é beber na fonte
clara da fé. Torno-me digna. Não é uma estrada fácil, nem todas as vontades se realizam;
porém a percorro com a felicidade de perceber cada pequeno passo que consigo dar,
nas paisagens que mudam e embelezam o dia. Tenho consciência das minhas
prioridades, mas vivo cada uma delas sem pressa para não me perder em agonia; sem
medo para não me perder em mim; isto me inunda de paz. Sei que cada dia posso
começar de novo, que os erros não são prisões, porém lições; não precisam ser
carcereiros, pois podem se tornar mestres. Isto me faz livre.” Fez uma pausa e falou: “O
tempo não é algoz nem professor; estes papéis são escolhas minhas. Escolhas suas. O
tempo é amor. O tempo fala à plenitude. Ele fecha um ciclo de existência para que você
não se esgote em si; para que a vida se renove dentro de você. Ele permite o eterno
recomeço, em novas condições, para que possamos, em outro tempo, transformar o
rascunho em arte final. Aliar-se ao novo é trazer o infinito consigo. É entender que o
baile nunca termina. Em verdade, nem o tempo. Então, para que ter medo de viver?”

“Ao invés de temer o tempo, convide-o para dançar contigo. A orquestra sempre tocará
mais uma música. Depois outra. Ela toca as canções do amor sem fim. Ela faz o infinito
bailar dentro de mim.”

Os meus olhos estavam marejados. Sem mais palavra, a bela mulher com os olhos da
cor de lápis-lazúli me deu um beijo suave na face e se foi. Tinha sido um dia acre-doce.
O sol se deitava no deserto. O infinito se levantava em mim.

O vigésimo-quinto dia da travessia – o camaleão do deserto


Eu tinha acabado de fazer a minha prece. Ainda era bem cedo. Munido de uma caneca
de café, me sentei na areia para, mais uma vez, me encantar com o caravaneiro e o seu
falcão. Pousada na grossa luva de couro que o caravaneiro usava no braço esquerdo, a
ave parecia entender as palavras que lhe eram sussurradas. Ao comando, se lançava aos
céus. Voava alto em círculos longos, como se não tivesse pressa, até que recolhia as asas
para mergulhar vertiginosamente ao solo e capturar a presa. Serpentes ou pequenos
roedores eram as mais comuns. Daquela vez, trouxe em suas garras um camaleão. O
deserto, ao contrário do que muitos imaginam, não é um vazio de vida. Muitas espécies
coabitam as areias em simbiose contínua, embora nem sempre visível ao primeiro olhar.
Comentei esse fato como o caravaneiro. Ele me disse: “O que os olhos não veem, não
significa que não exista.” Fez uma pequena pausa e aprofundou: “Ainda que os olhos
vejam, não significa que compreenderam.”

Fiquei sem entender a fala do caravaneiro. Achei por demais enigmática. Perguntei se
ele se referia a algum animal. O caravaneiro me olhou como a um menino e foi sucinto
na resposta: “Também.” Desconcertado por não saber o que pensar, insisti em
perguntar de qual espécie ele se referia. O caravaneiro apontou com o queixo para as
garras do falcão e disse: “O camaleão é o exemplo mais elementar.” E seguiu para o
acampamento, que começava a ser desmontado para iniciarmos mais um dia de
travessia rumo ao maior oásis do deserto. Fiquei com aquela conversa na cabeça.
Embora qualquer criança aprenda nas primeiras aulas de ciências sobre o mimetismo de
algumas espécies, entre elas o camaleão, e o seu poder de disfarce, de aparentar aquilo
que não é, ora como estratégia de defesa, noutras como arma de ataque, o caravaneiro
costumava ser bastante direto em suas palavras. Porém, dessa vez, restou a sensação
de ter deixado um enorme texto nas entrelinhas da sua fala.

Quando alinhei o meu camelo na fila para a marcha, alimentava a esperança de que a
Ingrid, a bela astrônoma, emparelhasse comigo. Embora a sua companhia me alegrasse,
ela não mais tinha seguido ao meu lado desde que discutimos pela última vez. Eu sentia
falta dela. Os meus olhos vasculharam por toda a caravana à sua procura. A encontrei
alinhada para a marcha ao lado de um mercador em animada conversa. A fogueira do
ciúme me queimou as entranhas. Fingi que não a vi.
Quem seguiu ao meu lado naquele dia foi outro peregrino, que, assim como eu, também
viajava na intenção de encontrar com o sábio dervixe que morava no oásis. Muito
simpático, ele puxou conversa logo que a marcha começou. Falou que se iniciava nos
estudos da metafísica e, talvez, fosse prematuro estar na caravana, pois, ainda não se
considerava adequadamente preparado. De outro lado, confessou que há dias tinha
reparado em mim. Falou que uma aura de profundo conhecimento me envolvia. Bastava
prestar um pouco de atenção para perceber que eu era a pessoa com quem o sábio
dervixe mais se interessaria em conversar. Diante do ciúme que me incomodava,
aqueles elogios me trouxeram um pouco de conforto. Ele disse se chamar Juan. Em
seguida me fez várias perguntas sobre questões esotéricas. Todas bem básicas, as quais
eu não tive nenhuma dificuldade em responder. Juan se revelou encantado com a minha
grande sabedoria. Disse que, sem qualquer dúvida, eu já podia me considerar um
mestre. A conversa seguiu agradável até a costumeira parada que fazíamos no meio do
dia para um breve descanso e uma refeição ligeira. Juan notou que eu levava um punhal
no cós da calça. Era uma peça antiga, comprada em Damasco, confeccionada com o
famoso aço da região. O cabo era feito de ébano e tinha um valioso rubi incrustado na
guarda. Na bainha, em couro, havia uma prece árabe insculpida a fogo.

Ele me perguntou se eu usava o punhal como arma de proteção pessoal. Respondi que
sim, embora não necessariamente para uma luta física, mas para me resguardar das
vibrações deletérias. Expliquei que o aço, quando próximo ao corpo, tem a capacidade
de absorver boa quantidade da energia densa que nos ronda. Acrescentei que era
importante lembrar de descarregar o punhal na terra no final do dia. Funcionaria como
um para-raios, exemplifiquei. Falei que era um pequeno segredo esotérico; embora não
fosse fundamental que se usasse o aço como proteção, pois a mente e o coração, através
das boas ideias e sentimentos, eram escudos bem mais eficientes. Juan se mostrou
encantado com o ensinamento e pediu para ver o punhal. Com ele nas mãos, se revelou
fascinado por aquela peça que deveria ter atravessado séculos e pertencido a algum
sultão ou intrépido guerreiro. Perguntou se ele poderia mostrar a alguns amigos e logo
me traria de volta. Como negar um pedido tão simples de alguém tão simpático?
Respondi que tomasse cuidado, pois além de ser uma peça cara, ela me acompanhava
há anos.

Juan demorou a voltar. Quando retornou a caravana já reiniciava a segunda etapa da


jornada diária. Solicitei o punhal. Ele pediu muitas desculpas, mas como os amigos
também o tinham adorado, deixara com eles. Porém, que eu não me preocupasse, pois
à noite o devolveria para mim. A desconfiança, uma das filhas do medo, se infiltrou em
minhas veias. Esforcei-me para dominar a minhas emoções. Juan era uma boa pessoa e
merecia a minha confiança. No entanto, me senti desconfortável com a situação pelo
resto do dia.

Ao final da tarde, quando paramos para montar acampamento e passar a noite, Juan se
afastou a pretexto de buscar o punhal. O tempo passou e como ele não retornou, decidi
procurá-lo. Olhei por todos os cantos sem sucesso. Quando me aproximei de um grupo
de homens que, agachados, jogavam dados, vi um deles mostrando o meu punhal a
outro. Falei que aquele punhal era meu e o pedi de volta. O homem respondeu dizendo
que o tinha recebido como pagamento de dívida referente a apostas ocorridas mais
cedo. Argumentei que ninguém poderia pagar com algo que não lhe pertencia. O
homem disse que não me conhecia e me aconselhou a falar com a pessoa para quem eu
tinha “supostamente” entregue o punhal. Fiz menção em pegar o punhal, mas um
brutamonte se interpôs no meio em gesto de velada ameaça.

Tornei a rodar pelo acampamento em busca de Juan. Eu estava transtornado; o ódio


tem este poder. Eu me alimentava dos meus piores sentimentos. Vi a Ingrid, a bela
astrônoma, em animada conversa com outro grupo de pessoas. Ao me ver, ela percebeu
que havia algo de errado comigo e, atenciosa, veio ao me encontro. Quis saber o que
acontecia. O ciúme que eu sentia dela há dias tornou a aflorar. Naquele momento o
ciúme foi inflado pelo ódio. Respondi de modo grosseiro que não era da sua conta,
fazendo com que ela recuasse assustada. Senti-me ainda pior. Perguntei por ele a
diversas pessoas, mas ninguém o tinha visto. Desorientado, parei no meio do
acampamento olhando para todos os lados sem o menor sinal do Juan. Girei em círculo
e a caravana me pareceu uma massa desfocada de gente, tendas e camelos
emolduradas por céu e areia. Foi quando vi que alguém me observava ao longe, um
pouco além do acampamento. Era a bela mulher com olhos da cor de lápis-lazúli.

Fui até ela. Derramei toda a minha indignação e rancor pelo ocorrido. A mulher me ouviu
com as feições serenas como quem escuta uma criança narrar a descoberta de uma
triste novidade. Falei que o meu defeito era confiar nas pessoas. Acrescentei que nunca
mais confiaria em ninguém; me confessei desiludido com a humanidade. A bela mulher
de olhos azuis ponderou ao jeito socrático: “É possível ser feliz sem confiar nas relações
que construímos? Que tipo de pessoa me tornarei ao não confiar nos outros? É possível
existir uma relação verdadeira sem confiança?”

Abaixei os olhos. No íntimo eu sabia que era impossível. No entanto, eu ainda não estava
disposto a admitir.

Quando não encontramos o apoio esperado, a irritação aumenta; à medida que a


irritação escala tons, os argumentos descem degraus. Falei que era fácil ter um discurso
generoso e altruísta quando não somos os lesados de uma fraude. Ela balançou a cabeça
em concordância e disse: “Por isso as vítimas devem estar impedidas de julgar os seus
algozes: as emoções envolvem em névoas o melhor olhar, que carece da claridade para
uma análise isenta de paixões”.

Perguntei se ela gostaria de estar no meu lugar. A mulher deu de ombros e comentou:
“A estar no lugar do Juan, sim. Mil vezes ser o lesado a ser o ladrão.” Falei que não era
quanto a isso a que me referia. Perguntei o que ela faria no meu lugar. “Aproveitaria a
energia das minhas sombras e as inverteria em meu favor.”

Tomei um susto. Pedi para ela explicar melhor. A mulher disse para sentarmos na areia,
pois a conversa não seria fácil. Acomodados, ela falou: “Para começar é preciso que você
entenda a parte que lhe cabe nessa situação.” Discordei de imediato. Eu achava um
absurdo culpar a vítima pelo crime. Ela sacudiu a cabeça e disse: “Não é disto que falo.
Antes de qualquer reação é necessário que você entenda o quanto colaborou para que
a situação chegasse a esse ponto.” Falei que eu tinha confiado em Juan, apenas isto. Foi
a vez dela de discordar: “Para ser justo admita que não foi tão simples assim. Sem
dúvida, que você foi lesado pelo Juan. Ele agiu de má fé, mas você também foi vítima
das suas próprias sombras.”

Perguntei se ela dizia que as minhas sombras tinham sido coadjuvantes no crime
perpetrado contra mim. A mulher fez um gesto de anuência com a cabeça: “Exatamente
isso. As suas sombras colaboraram com o Juan. Ao derramar muitos elogios sobre você,
ao ressaltar o seu suposto conhecimento sobre metafísica, ele fez com que você se
sentisse grande e poderoso. Ele ativou o orgulho e a vaidade que habitam em você,
sombras que causam a sensação de força e poder, porém, têm pouca duração e os seus
efeitos nunca são benéficos. O conforto emocional proporcionado pelo orgulho e pela
vaidade o impediu de perceber a personalidade e as intenções de Juan. As suas sombras
as esconderam de você; sem a ajuda delas, provavelmente, ele não teria conseguido te
enganar.”

Fiz menção em continuar a discordar, contudo percebi que era inútil. A mulher de olhos
azuis tinha razão. A ilusão de me sentir poderoso tinha me tornado uma presa frágil.
Imediatamente me veio à mente a conversa com o caravaneiro pela manhã. Sim, o
camaleão e o mimetismo. Juan tinha se passado como um bom amigo apenas para me
enganar e furtar. Comentei com a mulher, fazendo a ressalva de como os “camaleões”
são perigosos e nocivos. Ela sorriu e me lembrou: “Não seja apressado em suas certezas.
Existem também os ‘camaleões’ que nos trazem boas surpresas. Pessoas que, por
exemplo, vivem envoltas em humildade, simplicidade e generosidade infinitas, que
diante dos condicionamentos culturais que distorcem a realidade e nos tornam míopes
para verdade, passam por insignificantes, quando, em essência, trazem em si o grande
poder da vida. Enquanto outras, repletas de honrarias, fama ou influência social, muitas
vezes vazias no âmago, ficam com os nossos aplausos e admiração.” Fez uma pausa e
concluiu: “Prestemos atenção aos camaleões de todos os tipos, há boa dose de
sabedoria nisto.”

Fiquei algum tempo em silêncio para concatenar a lição. Em seguida, pedi para ela falar
sobre “inverter o poder das sombras ao meu favor”, como tinha se referido há pouco. A
mulher explicou com paciência: “Dentro de nós habitam os melhores e os piores
sentimentos. Sem exceção. Ignorar as próprias sombras é se fragilizar por abdicar de
uma parte de si mesmo. É se negar a ser por inteiro. Reprimi-las é cultivar um jardim de
recalques. Iluminá-las é a libertação dos sofrimentos.”

“Como se ilumina uma sombra pessoal? Teimar para que ela desapareça é o exercício
dos tolos. Iluminar uma sombra, como indica o nome, é fazê-la trabalhar a favor da luz.
Como fazer isto? Trate-a como a um filho pródigo. Você cuida dele ou prefere expulsá-
lo de casa? Abrace as sombras com amor como se faz com um menino rebelde; depois
mostre a ela que não é preciso agir daquele jeito, pois sempre é possível fazer diferente
e melhor. Assim como um bom pai faz com os filhos. Iluminar é educar na luz.”

“Como se faz isso na prática? Todas as sombras geram uma enorme descarga de energia.
Tanta que nos impede até mesmo de dormir. Brigamos quando sentimos raiva,
vingamos no ciúme, amaldiçoamos na inveja, transferimos a responsabilidade na
decepção, apenas para ficar com alguns de inúmeros exemplos. Todos estes
comportamentos são fontes turvas que levam a um sofrimento ainda maior. Sem
exceção. Ao final, depois da revolta, temos a sensação de esgotamento e de vazio
interior.”

“O segredo é desviar a energia primária das sombras ao invés de reprimir, negar ou,
pior, dar-lhe vazão. É fundamental redirecionar e redimensionar a energia das sombras
no sentido da luz. Use a sua consciência como um aparelho transformador, semelhante
àqueles que existem nas hidrelétricas que aproveitam a força das águas para fazer a
magia da eletricidade.”

“As energias geradas pelas sombras não serão mais desperdiçadas nem usadas de
maneira destrutiva, porém, agora, transformadas em luz.”

Pedi para que exemplificasse. A mulher me ofereceu várias hipóteses: “Há quem sinta
raiva e quebre tudo à sua volta; existem aqueles que vão aproveitar a energia gerada
para fazer um bom treino de ginástica. Há quem sinta ciúme e seja agressivo; existem
alguns que pegam o violão para compor uma canção. Há os que aumentam as suas listas
de reclamações a cada frustração provocada por um mal; existe quem troque cada uma
delas por um ato de caridade em favor do bem. Há os que, diante de uma ofensa, pisam
duro com as botas do orgulho; existem os que aproveitam essa ventania para voar com
as asas da humildade. Há que os insistem em viver por vaidade; existem os que, em
algum momento, entendem a dimensão da fragilidade e se curam na simplicidade. Há
quem culpe o mundo por suas contrariedades; existem aqueles que as aproveitam como
fatores de estudo e aperfeiçoamento. Há os que se ofendem com tudo e com todos;
existem os que usam as mesmas situações como perfeitos espelhos para se conhecerem
melhor. Conhecendo a si mesmo, descobrem a verdade. A verdade traz consigo o poder
da plenitude.”

“Sofrem aqueles que ainda não sabem amar.”

“Assim, os que aprenderam a amar, ao invés de sucumbirem às sombras, se fortalecem


nelas. Tornam-se maiores por rasgarem a armadura que os impedia de crescer. A
sombra é a casca que impede o amor de florescer, porém pode ser também o solo fértil
que ajudará o amor a germinar. A sombra pode ser inimiga ou aliada da luz. Trata-se de
um olhar, um entendimento e, por fim, uma escolha.”

A sombra como aliada da luz? Isto era novo para mim. A depender de como irei
direcionar a energia emanada por ela? Isto me desconcertava, porém tinha de admitir
que era genial. Perguntei onde ela tinha aprendido isso. A mulher deu de ombros e
respondeu: “No deserto com os camaleões. Eles nem sempre são o que parecem”

Olhei para as estrelas por um bom tempo. Era preciso alocar os novos conceitos. Seria
necessário amadurecê-los em mim. Contudo, eles se mostravam consistentes e
sensatos. Quando tornei a olhar para o lado – eu tinha uma série de perguntar a fazer –
a costumeira surpresa: a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli tinha se
desmanchado no ar. Fiquei sentado por mais algum tempo. Eu revirava a mente na
tentativa de encontrar uma aplicação prática para aquelas palavras. Aos poucos as
novais ideias serenaram o meu coração. Até que um grande burburinho me chamou
atenção no acampamento. Já mais tranquilo, me encaminhei até lá. Encontrei Juan
seguro pelos braços por dois encarregados da caravana. Era acusado por outras pessoas
de tê-las enganado, como a mim. Também detidos por outros encarregados, estava o
grupinho que apostava nos dados. Entre eles o homem que tinha ficado com o meu
punhal e o brutamontes que lhe servia como guarda-costas. Desviaram o olhar quando
me viram. Era uma confusão danada; todos falavam e ninguém ouvia. Preferi não dizer
palavra; apenas observar.

Até que chegou o caravaneiro. Fez-se o silêncio. Um dos encarregados fez menção em
explicar os fatos. Com um gesto com as mãos o caravaneiro mostrou que não era
necessário. Em seguida, falou: “Todos poderão falar. Ninguém terá a permissão de
interromper a ninguém. Peço que não mintam, mesmo aqueles que estiverem em erro.
A verdade sempre protege.” Dos lesados aos apostadores, todos tiveram a
oportunidade de se expressar. Enquanto uns se diziam vítimas, os outros sustentavam
a própria inocência. Juan também teve direito a se defender. Confessou ser vítima do
próprio vício em jogo. Lamentou o mal que tinha causado. Ele me pareceu estar sendo
sincero. Mais um truque do camaleão? Naquele momento não me importava. De um
modo ou outro, ele sofria por ser quem ele era. A compaixão que senti por aquele
homem me envolveu em leveza; e me libertou dele. Sim, até há pouco eu estava
aprisionado ao ódio que me algemava ao Juan e consumia a minha alegria de viver.

Lembrei que antes de partir, o caravaneiro tinha me dito que durante a travessia ele
tinha o direito de vida e morte sobre todos os integrantes da caravana. Ele era a lei; esta
era a única lei. Temi pela vida de Juan. Depois que todos falaram, o caravaneiro pareceu
ponderar por alguns instantes. Em seguida, prolatou: “É necessário ordem para
recompor a tranquilidade da caravana. É preciso justiça para haver paz no coração.
Sendo assim, declaro o perdimento do camelo de Juan para que as vítimas sejam
ressarcidas. O camelo será vendido imediatamente a qualquer interessado por um valor
justo. O dinheiro que sobrar será devolvido a Juan, que terminará a travessia a pé, na
rabeira da caravana.”

O caravaneiro me olhou por um breve instante e perguntou se eu queria dizer algo.


Resumi os fatos vivenciados durante o dia com Juan e apontei quem estava com o meu
punhal. O homem se defendeu sob a alegação de que tinha ganho o punhal
honestamente no jogo. Portanto, o punhal era dele. Eu que me resolvesse com o Juan.
O caravaneiro falou para mim: “Sobrará dinheiro da venda do camelo. Você pode ser
ressarcido, basta que estabeleça um preço justo pelo punhal.” Ponderei que algumas
coisas na vida não valem muito ou pouco dinheiro; possuem outros valores. Disse que,
apesar de gostar do punhal, o homem poderia ficar com ele. Acrescentei que já tinha
recebido o bastante naquele dia. Mesmo sem entender, o homem pareceu ficar
satisfeito.

O caravaneiro me olhou com uma profundidade estranha, como se fosse capaz de ver a
minha alma. Em seguida, se virou para o homem e sentenciou: “O produto de um erro
não pode pertencer a ninguém, salvo a quem de justiça. Aqueles que aprenderam a abrir
mão de tudo em favor dos outros, desde que não lhe seja a essência e o essencial, são
os que merecem a brisa doce do deserto. Portanto, entregue-lhe o punhal.” Falou se
referindo a mim. As feições do homem se fecharam e ele fez menção em ensaiar alguma
reclamação, mas desistiu em razão da firmeza do caravaneiro. Coloquei o punhal no cós
da calça, agradeci ao caravaneiro com um gesto de cabeça e me retirei. Não esperei pela
venda do camelo nem pelo ressarcimento dos demais.

Mil pensamentos se movimentavam freneticamente em minha mente. Era preciso


quietude para acomodá-los em seus devidos lugares. Afastei-me e sentei em um lugar
distante para que o silêncio pudesse conversar comigo. Pensei nas metáforas e lições
dos camelões como mestres ocultos das sombras e da luz. Agradeci as oportunidades
de ensinamento proporcionados naquele dia. Agora era aprender a direcionar a força
das energias densas no sentido do bem, como maneira de, pouco a pouco, transformá-
las em vibrações sutis. Eu tinha acabado de experimentar essa nova possibilidade de
viver as minhas escolhas. Por fim, lembrei das palavras do caravaneiro logo pela manhã,
enquanto adestrava o falcão: “O que os olhos não veem, não significa que não exista.
Ainda que os olhos vejam, não significa que compreenderam.”

Pela primeira vez me senti no comando das minhas emoções. No entanto, sabia que
ainda faltava muito para tê-las devidamente pacificadas. A jornada era longa, mas era
um bom começo. Tirei um lápis e a caderneta de anotações do bolso. Decidi escrever
uma poesia para a Ingrid. Falei de como os meus sentimentos ainda eram camaleônicos;
tanto para mim quanto em relação a ela. O meu coração sorriu para mim.

Adormeci ali mesmo um sono tranquilo, protegido por um cobertor de estrelas, sob a
luz da lua crescente.

O vigésimo-sexto dia da travessia – uma fábrica no deserto

Era um dia diferente. Tínhamos alinhado para iniciar a marcha ainda com o céu escuro.
Quando o sol surgiu por detrás das dunas, hora que, em geral, a caravana acordava, já
marchávamos há três quartos de hora. O objetivo era chegar a um oásis intermediário
para nos abastecer de água e víveres. Esse oásis tinha um enorme lago de água doce e
limpa. Nas suas margens existiam várias pequenas fábricas, todas familiares e montadas
em tendas, de excelentes tapeceiros. Eram tapetes com belas estampagens,
confeccionados com difíceis pontos de costura, técnicas transmitidas através de muitas
gerações do deserto. Muitos mercadores de tapetes que estavam na caravana
realizavam ali os seus negócios, adquirindo as peças para a revenda. Daquele ponto
retornavam para Marraquexe, conduzidos por um grupo de encarregados. Outra parte
da caravana seguia em frente, rumo ao maior oásis do deserto, onde havia outros
tecelões de tapetes, que se utilizavam de diferentes técnicas de confecção. Eu, assim
como outros peregrinos, seguiríamos no intuito de encontrar com um sábio dervixe,
“conhecedor de muitos segredos entre o céu e a terra.” Saímos mais cedo para que
chegássemos no meio do dia, oferecendo tempo suficiente para a caravana se
abastecer. Como isto demoraria um pouco, dormiríamos aquela noite naquele oásis.
Com o sol à pino, avistamos ao longe o enorme lago. Não demorou muito, fomos
recebidos pelos hospitaleiros moradores locais. Algumas tendas ofereciam pratos
típicos, bom para fugir da rotina simples das refeições da caravana. Almocei e, em
seguida, fui conhecer as fábricas e os tapetes. As pessoas eram muito gentis; as fábricas,
rudimentares; os tapetes, belíssimos. Passei um bom tempo por entre as tendas. Já
próximo ao final da tarde, reparei em uma tenda situada numa ponta distante do lago.
Não havia nenhuma outra tenda próxima. Perguntei a um homem se aquela tenda
também era uma fábrica. Ele me olhou por instantes e sacudiu a cabeça dizendo que
não sabia. Estranhei, ao passo que tive a curiosidade despertada. Tornei a perguntar,
desta vez, a uma mulher. Sem me olhar nos olhos, ela se limitou a responder que não
valia a pena eu ir até lá. Claro que fui.

Foram uns dez minutos de caminhada. Era uma tenda simples, mas bem arrumada e
limpa. Um ancião de pele morena colocava algumas ervas em infusão para um chá. De
costas para mim, sem se virar, deve ter percebido a minha presença, pois me convidou
para acompanhá-lo em uma xícara. Aceitei. Foi quando ele se virou e sorriu. Assim como
o seu cabelo, os seus dentes eram perfeitamente brancos, algo raro de se ver em alguém
da sua idade. Pegou um punhado de outras ervas para acender como incenso. Um
delicioso perfume impregnou a tenda. Ao seu convite me recostei em uma confortável
almofada. Ele se sentou em um banquinho de madeira ao meu lado e acendeu um
cachimbo enquanto esperava o chá ficar pronto. Falei que eu estava visitando as fábricas
de tapete do oásis. Mesmo sabendo que a resposta seria negativa, perguntei se ele
também confeccionava tapetes. O ancião sacudiu a cabeça em negativa e disse: “Tenho
uma fábrica de alegrias.”

Estranhei. Falei que não tinha entendido. Ele me explicou com paciência: “As pessoas
acreditam que podem comprar alegria.” Deu de ombros e concluiu: “Iludem-se”. Fez
uma pausa e prosseguiu: “Confundem alegria com diversão.”

“Estar com a família, encontrar com os amigos, cantar e dançar são algumas coisas
maravilhosas que a vida oferece. Faz muito bem ao coração e eu recomendo. Contudo,
são apenas diversões. A alegria é diferente.”

Pedi para ele explicar melhor. O ancião foi gentil: “Posso me divertir todos os dias, e não
há qualquer contraindicação nisto, porém não significa que serei um homem alegre.
Posso ser uma pessoa agradável, polida e até mesmo engraçada, a ponto de arrancar
risos de quem estiver ao meu lado. No entanto, nada disso me torna, necessariamente,
um homem alegre.”

Falei que havia uma contradição. Se alegria não se vendia, não fazia sentido ele ter uma
fábrica de alegria, uma vez que nada teria para oferecer. O ancião explicou: “Sim, você
não está errado. Na verdade, eu ajudo a você a montar a sua própria fábrica de alegrias.
Tenho uma fábrica que fabrica fábricas de alegrias.” Achei esquisito.

Desconfiado, eu perguntei quanto ele cobrava. Tomei um susto ao ouvir o preço. Quase
dava para comprar um camelo. Um camelo, por sua enorme utilidade, possui um alto
valor no deserto. Agradeci, mas recusei a oferta. O ancião não insistiu. Ao contrário,
manteve a mesma simpatia que lhe era característica. Levantou-se, retirou as ervas em
infusão e serviu o chá. Trouxe o chá em duas xícaras de porcelana sobre uma bandeja
de prata arrumada com capricho. Estava delicioso. Eu quis saber se os moradores do
oásis frequentavam a tenda do ancião. Ele me respondeu que nenhum deles. Perguntei
se ele tinha muitos clientes. O ancião possuía uma honestidade apaixonante: “Bem
poucos. No máximo um a cada dois ou três anos.” Comentei que a pequena clientela se
dava em razão do alto preço cobrado. Ele concordou: “Acredito também”, mas em
seguida fez uma ressalva: “De outro lado, pelo fato de as pessoas não entenderem a
alegria, não lhe dão o devido valor.”

Discordei. Falei que não existia uma única pessoa que não reconhecesse a importância
da alegria. O ancião me ofereceu um olhar de compaixão e questionou: “Não duvido,
mas é uma importância abstrata. Como entender o verdadeiro valor de algo que não
conhecemos ou, experimentamos tão pouco durante a vida, que as lembranças acabam
arrefecidas quanto à sensação e ao sentido?”

Calei-me por instantes. Aquelas palavras me tocaram de maneira diferente. Lembrei da


distinção entre divertimento e alegria que o ancião tinha falado no início da conversa.
Em silêncio, questionei a mim mesmo se eu conhecia a alegria. Quanto ao divertimento
eu não tinha qualquer dúvida. Falei que se não fosse tão caro eu compraria uma fábrica
de alegrias para mim. Confessei que temia não conseguir a fabricação da alegria
esperada. Acrescentei que o risco era alto, uma vez que dependeria de habilidades
pessoais que eu não podia afirmar se as tinha. O ancião sorriu, como se esperasse por
aquilo, e me fez uma proposta: “Você apenas paga se ficar satisfeito com o resultado.”
Falei que satisfação é um conceito subjetivo e bem variável. O ancião admitiu: “O risco
agora é todo meu.” Quando me dei conta o meu rei estava acuado no canto tabuleiro.
Xeque-mate!

Sem ter como recusar, lembrei ao ancião que a caravana partiria logo cedo no dia
seguinte. Ele disse que tínhamos tempo de sobra. Levantou-se e voltou logo depois com
um tambor. Os tambores do deserto. Instrumentos famosos na ritualísticas para alterar
o estado de consciência, nos permitindo viajar a lugares fantásticos. Na maioria das
vezes, dentro de nós mesmos. Jardins floridos que nos trazem boas recordações e
sempre desejamos voltar; porões escuros que tentamos esquecer e, que por este
motivo, precisam ser revisitados para restarem limpos, arejados e iluminados. Os porões
também fazem parte da casa do ser.

Eu sabia de tudo isso. Contudo, sabia também que a viagem precisa ser conduzida
adequadamente para não ficarmos aprisionados em celas sem grades. Não raro, isto já
acontece. Porém há prisões mais cruéis que outras. Viajar é preciso, mas há que se ter
cuidado.

O ancião me pediu que não tivesse medo. Ele seria o meu guia. O engenheiro da fábrica
de alegrias. Havia algo nele que transmitia uma inexplicável bondade. Lembrei dos
camaleões do deserto. Não, o ancião não era um camaleão. Confiei no amor que
emanava dele. À sua orientação, fechei os olhos e me deixei embalar pelo rufar
inebriante do tambor. O tambor parecia falar e embalar o meu coração. Passado algum
tempo, o tempo despareceu. O meu coração pulsava no ritmo do tambor, como se
dançassem juntos.

O ancião pediu para que eu lembrasse de um dia em que me senti muito feliz. A primeira
lembrança que me ocorresse era a melhor. Falei da minha festa de aniversário de doze
anos. Foi na casa do meu avô. Todos os meus amigos da escola foram. Jogamos futebol
e brincamos muitos. Os meus pais ainda estavam juntos; todos estavam felizes. Naquela
noite, quando fui dormir, eu senti uma felicidade tão grande que parecia não caber em
mim. O ancião me disse que eu tinha o direito de me lembrar desse dia todas as vezes
que quisesse animar um dia triste. As lembranças existem para isso e também para nos
mostrar que, se esse bem-estar aconteceu uma vez, pode acontecer em outras
oportunidades. Basta que eu me movimentasse nesse sentido.

Perguntei se essas recordações eram uma fábrica de alegrias. O ancião respondeu: “Não.
São apenas instrumentos de bem-estar, importantes para colorir momentos tristes.
Apenas para colorir. Não podem servir como fuga da realidade. Para superar a tristeza
é preciso compaixão para com todos e entendimento quanto a si mesmo.”

Em seguida me veio a lembrança que, logo após aquela festa, os meus pais se
separaram. Lembrei das brigas e de que fui passar as férias na casa de uma tia no
interior. Foram dias tristes, de muita insegurança e medo. Falei que tentaria afastar essa
recordação da minha mente. O ancião me corrigiu: “Não. Fugir das nossas memórias é
fugir de nós mesmos. Elas fazem parte da nossa vida, apenas temos que nos reconciliar
com elas. Não tente esquecer ou reprimi-las. Abrace-as com amor. Se elas vieram à
mente é porque anseiam por cura, estão prontas para iniciar o tratamento. Entenda que
os seus pais, por motivos que cabe a eles, não eram felizes no casamento. E que você
não tem qualquer culpa nisso.” Interrompi para falar que foi um período muito difícil
para mim. O ancião explicou: “Entenda que essa dificuldade ajudou a forjar quem você
é, a torná-lo mais forte. Quando superamos um sofrimento intenso descobrimos que é
possível superar todas as outras dores. O aço atinge a melhor têmpera no fogo intenso.
O ancião ensinou: “Tudo o que acontece em nossas vidas é para o nosso bem.
Absolutamente tudo.”

Por que não esquecer os momentos tristes? Eu queria saber. O ancião seguiu a
explicação: “Porque não o esquecemos nunca. Pode-se ficar um tempo sem lembrar,
então, inesperadamente, eles nos tomam de assalto. Não é assim?” Balancei a cabeça
concordando. Uma lágrima escorreu em minha face. Ele aprofundou: “Todas as
situações complicadas que passamos na vida tem uma razão de existir. Claro que
naquele momento temos uma enorme dificuldade em entender. Mas os dedos do
universo são longos e somente mais à frente iremos compreender para, então,
agradecer.” Fez uma pausa e concluiu: “As tristezas não podem nem devem ser
esquecidas, pois precisam de superação. Apenas possível com entendimento e
transformação do nosso jeito de ser e de viver. São os alicerces da fábrica de alegrias.”

Chorei muito. O ancião apenas mudou o ritmo do tambor. As batidas do meu coração
acompanharam. Um pouco mais calmo, admiti que passado alguns anos os meus pais
refizeram as suas vidas, ao jeito deles, se tornaram pessoas melhores. Quanto a mim,
tive uma maturidade prematura, mas que me ajudou a chegar até aqui. Sim, eu era grato
pela minha história; ela me tornava único. O ancião sorriu.

Seguindo o ritual, lembrei de outros momentos da minha vida. O futebol de rua com os
amigos, a emoção do primeiro beijo, o ingresso na universidade. Recordei também
situações difíceis. O diretor da escola que me acusou de algo que não fiz, uma namorada
que me trocou por um colega, a demissão inesperada de um emprego. O ancião
continuou a me orientar: “Não olhe o passado como um jogo tristeza versus alegria. Veja
como lições que o aperfeiçoaram. Então, não haverá perdas”.

Eu segui vasculhando o baú de memórias. Em determinado instante, seguindo as


orientações do ancião, todas as lembranças, até mesmo aquela que inicialmente eram
tristes, me pareceram boas por eu entender a razão delas em minha vida. Uma
agradável sensação me invadiu. Perguntei se aquilo era alegria. Achei que sabia a
resposta. Ele me surpreendeu: “Não”. Como assim? Falei que estava decepcionado, pois
achava que a fábrica de alegrias estava pronta. A paciência do ancião em me guiar nessa
construção parecia sem fim: “O prédio da fábrica ficou pronto. No entanto, você ainda
não tem ideia de como colocar os seus motores para funcionar. Lembre, é preciso
fabricar as alegrias.”

Ele insistiu que eu tornasse a buscar por lembranças agradáveis. Eu consegui lembrar de
várias outras situações que já imaginava ter esquecido por completo. Perguntei se eu já
tinha conseguido colocar os motores da fábrica em funcionamento. O ancião apenas
sacudiu a cabeça em negativa. Com o queixo pediu que eu prosseguisse na construção
da fábrica, enquanto ele continuava a ritmar o tambor do deserto. Vieram outras
recordações, nenhuma que alterasse a atenção do engenheiro da fábrica. Até que
lembrei de um momento, ainda no ensino médio, de que as minhas notas em
matemática estavam muito ruins. A reprovação era iminente. Para eu passar de série
teria que tirar nota dez na prova final. Não poderia errar nenhuma questão. Se eu fosse
reprovado perderia a bolsa e a chance de prosseguir os estudos em uma escola de
excelência. Senti muito medo de desperdiçar a oportunidade que eu tinha. Contei que
durante três semanas eu esqueci da vida para me entregar profundamente ao estudo
da matemática. Foram dias e noites movidos pela esperança de atingir a meta. Lembrei
dos instantes de tensão que antecederam o resultado e a alegria incomensurável que
senti ao saber que estava aprovado. Neste momento o ancião parou de tocar o tambor
e disse: “Isto é alegria! Houve a entrega. Você colocou o seu coração à frente. A alegria
não veio de fora, mas nasceu dentro de você. Os motores da fábrica começaram a
funcionar. Prossiga!” Determinou, para em seguida intensificar o ritmo do tambor.

Então, mudaram as recordações. Eu comecei a me lembrar de momentos da vida nos


quais eu tinha me doado por inteiro. E da alegria florescida em cada um deles. Falei de
quando troquei algumas noites de sábados ao lado de amigos para ir com o pessoal da
igreja levar alimentos a pessoas que moravam pelas ruas da cidade; das férias que segui
com um grupo de médicos para um país da África assolado pelas misérias de todos os
tipos ao invés de passear pela Europa. Ressaltei da alegria que eu sentia por cada olhar
e abraço que eu recebi dessas pessoas. Tornei a chorar, mas agora eram lágrimas de
alegria, compaixão e amor.
Naquele momento me dei conta uma coisa muito importante. Um detalhe que
modificava o todo. Confessei ao ancião que, na verdade, o que tinha me impulsionado
a fazer a caridade, não era o amor que eu tinha. Mas, ao contrário, era o amor que eu
não tinha, o vazio imenso que me habitava. Ele sorriu e levantou os braços: “Perfeito!”
Bradou, para logo explicar: “A alegria tem que ser movimentada pelo amor. Não pelo
amor que tenho, mas pelo amor que busco. Não nos outros, mas através dos outros em
mim. Assim coloco o outro dentro do meu coração. O amor que tenho é o amor que
ofereço, não o amor que recebo. Antes de oferecer amor ao outro pela necessidade dele
em receber, o faço pela minha necessidade em ofertar o amor. Não ofereço amor pela
necessidade do outro, mas, primordialmente, por precisar dar amor para sentir o amor
pulsando em mim e, então, ser feliz. Pratico a caridade porque preciso fomentar o amor
em mim. Percebo-me pequeno e me torno humilde.”

Questionei se não era uma atitude egoísta. Ele aprofundou: “Egoísta é desejar apenas
receber amor. Que os outros se obriguem a suprir um amor que não quero fabricar.”

Tornou a ritmar o tambor, agora em tom bem suave, e disse: “Quando ofereço amor,
seja de modo puramente afetivo, como uma palavra ou um abraço, seja através de um
bem material, tenho que fazer por mim, pela oportunidade do indispensável exercício
do amor que eu preciso sentir no coração. Se faço pelo outro irei me sentir superior a
ele. Então o amor se esgota nos ralos da vaidade e do orgulho. Amo a você porque amo
a mim; faço bem ao mundo porque faz bem para mim. Desta maneira me sinto igual e
do tamanho daquele que receberá o amor que tenho para dar. Assim não caberão
cobranças futuras nem restarão dívidas de ninguém para com ninguém. Apenas amor.”

“Só existe alegria onde há amor. Apenas existe amor onde há a entrega de si por inteiro.
Esta é a alegria do mundo!”

O tambor do deserto parou de rufar. A minha fábrica de alegrias tinha começado a


funcionar. Fez-se silêncio e quietude. O ancião foi buscar mais duas xícaras de chá.
Sentou-se em uma almofada à minha frente e colocou as xícaras sobre uma mesa baixa
que estava entre nós. Da minha mochila tirei um maço de dinheiro e entreguei ao
ancião. Ele recusou: “Você não me deve nada. Não fiz por você, fiz por mim.”

Ofereceu-me um sorriso do qual me lembrarei até o dia do dia sem fim. Eram como se
os seus dentes brancos fossem estrelas do deserto. Fiz menção em contestar, em dizer
que não era justo, pois eu estava muito satisfeito com a fábrica. O ancião fez um gesto
com a mão para eu não insistir: “Apenas lembre que a alegria é uma virtude que possui
um grande segredo: ela exige entrega absoluta. Para tê-la como companheira é preciso
que sejamos inteiros em qualquer coisa que fizermos.”

Olhou-me profundamente e disse: “Agora vá.” Em seguida, finalizou: “Nunca esqueça


que o amor é a matéria-prima da alegria. Ambas têm a mesma origem; bebem da mesma
fonte. Isso é fundamental para se ter uma fábrica cada dia mais próspera”.
O vigésimo-sétimo dia da travessia – o veneno do deserto

O falcão ficou um logo tempo planando em círculos, como se apenas flanasse


despreocupadamente pelo deserto. De repente, recolheu as asas para mergulhar
vertiginosamente até a areia em ataque fulminante. Trouxe uma serpente em suas
garras. Por descuido, um pouco antes de pousar, o réptil lhe escapou. Em frações de
segundo, movida por instinto de sobrevivência, a cobra se escondeu dentro de uma
pequena toca entre as pedras. Com o falcão pousado na grossa luva de couro que usava
no braço esquerdo, o caravaneiro se retirou. Um pouco afastado, com uma caneca de
café fresco à mão, eu observava o caravaneiro e o falcão. Acompanhar o adestramento
matinal do falcão tinha se tornado parte da minha rotina diária. Em seguida, fiz a minha
prece rogando por luz e proteção. O acampamento estava sendo desmontado e logo
seguiríamos para mais um dia de travessia. Guardei as minhas coisas, ajeitei o alforje
sobre o camelo. Para a minha surpresa, quem tornou a alinhar ao meu lado para a
marcha foi a Ingrid, a bonita astrônoma. Animado, puxei conversa. Tive o cuidado de,
naquele dia, não polemizar com ela para não acabarmos em discussão como ocorrera
outras vezes. Ela era apaixonada por mecânica quântica e quanto à sua aplicabilidade
tanto na astronomia como na construção da realidade. Dizia que o nosso cotidiano tem
mais em comum com as estrelas do que a nossa tosca filosofia era capaz de imaginar.
Agradável e inteligente em seus modos e argumentos, embora eu discordasse de vários
deles, ela fez com que a manhã transcorresse mais rápida do que eu desejava. Quando
me dei conta, já estávamos no meio do dia, hora que costumávamos parar para um
breve descanso e uma refeição ligeira. Desmontamos dos camelos, estendemos um
pequeno tapete para sentar e me ofereci para buscar algumas tâmaras com os
encarregados da caravana. Ela aceitou com um sorriso. Eu tinha dado poucos passos
quando ouvi um grito. Eu sabia que era a voz da Ingrid. Virei-me rapidamente e, ao
mesmo tempo que vi a sua expressão de dor, observei uma serpente fugir com
impressionante agilidade pelas areias após morder a astrônoma.

Desorientado e aflito, gritei por socorro. Logo várias pessoas se aproximaram. Nervosos,
todos falavam ao mesmo tempo. Sem demora, um dos encarregados pela segurança
matou a cobra e confirmou o que todos temiam. Era venenosa. Troquei um olhar de
medo com a Ingrid. Desejei do fundo do coração que tivesse soro antiofídico na
caravana. Pensei que a organização teria o zelo de trazer alguns remédios para situações
previsíveis como essa. Claro que teria. Não tinha.

Esbravejei diante da falta de cuidado. Os acusei duramente por negligência. Foi quando
o caravaneiro se aproximou. Ele trazia em si uma estranha tranquilidade. Repeti as
acusações de maneira ainda mais veemente quando senti que ele não compartilhava do
meu nervosismo. Ele me ouviu sem se alterar. Ao perceber que eu não cessaria de
reclamar, me interrompeu. O tom de voz dele mesclava firmeza e serenidade: “Tudo
que a moça não precisa agora é que percamos o controle da situação”. Falei que não
podíamos perder aquilo que não tínhamos; a situação já estava fora de controle e a
culpa era dele. Se fossem um pouco mais previdentes teriam o soro na caravana. O
caravaneiro se manteve impassível diante das duras palavras proferidas. Em seguida,
me corrigiu: “Não tenho como controlar os acontecimentos ao meu redor. É impossível
para mim prever e dominar todas as situações externas que podem influenciar a minha
vida. No entanto, posso controlar o universo de emoções que me habitam. Tenho como
oferecer uma boa razão para acalmar cada paixão que me assola. As tempestades do
mundo estão fora do meu domínio; as da alma apenas acontecem com a minha
permissão.”

Antes que eu retrucasse, Ingrid me tocou no braço. Em seguida disse que não era hora
do medo, mas da esperança. Ofereceu-me um sorriso para alegrar o meu coração.
Abaixei os olhos. Ele tinha razão; ela também. Tudo o que não precisávamos naquele
momento era do meu destempero. Eu precisava me orientar pelas virtudes ao invés de
seguir o impulso das minhas emoções. Em silêncio, lamentei comigo mesmo de não ter
tido um comportamento melhor. Eu estudava com o intuito de aplicar o conhecimento
adquirido em momentos cruciais como aquele, porém, mais uma vez, deixava escapar a
oportunidade. Calei-me.

O caravaneiro pediu para trazerem a serpente. Na frente de todos, abriu o ventre do


animal com o seu punhal. Extraiu um líquido viscoso, vertendo-o para uma taça. Depois
solicitou que colocassem uma determinada mistura de ervas em infusão. Tudo aquilo
era desconhecido para mim. Enquanto aguardávamos, vi a Ingrid quase desfalecer e
tentei animá-la. Ela começava a arder em febre. Quando chegaram com o chá, ele
misturou ao líquido retirado da cobra. Mexeu com o punhal. Em seguida entregou para
a astrônoma beber. Ela não hesitou. Fez uma careta revelando o gosto amargo do elixir.

O caravaneiro orientou aos encarregados que fizessem uma maca para ser transportada
entre dois camelos emparelhados. Não queria que Ingrid fizesse nenhum esforço.
Mandou que a envolvessem com vários cobertores. Era importante, não só pela febre,
mas que ela transpirasse bastante, na esperança que o organismo dela, estimulado pelo
elixir, expelisse o veneno pelos poros. Esperei que ele saísse e fui ao seu encalço. Eu
queria saber se ela ficaria bem. O caravaneiro foi sincero: “Não sei.” Insisti em saber
quais as chances de ela sobreviver. Mais uma vez a honestidade imperou: “Pequenas.
Muito pequenas. Aquele tipo de serpente possui um veneno muito agressivo.” Eu não
estava pronto para ouvir aquilo. As palavras têm o poder de enfeitiçar, tanto para o bem
quanto para o mal. De imediato as emoções se avantajaram e por pouco não tornaram
a me aprisionar mentalmente. Tive que fazer um esforço enorme para impedir que elas
me dominassem mais uma vez. Embora soubesse que naquele momento seria inútil
insistir, não consegui deixar de ponderar que seria prudente que a caravana trouxesse,
nas próximas viagens, algumas doses de soro antiofídico devido a grande quantidade de
cobras que existem no deserto. Eu queria deixar registrado a minha insatisfação com o
que considerava uma falha grave de planejamento. O caravaneiro, talvez por sentir o
meu sofrimento, me olhou com profunda compaixão. Havia misericórdia em seus olhos.
Ele explicou: “Não foi por esquecimento. A razão é outra e bem simples. O soro precisa
estar refrigerado para não estragar. Seria difícil transportar uma geladeira na caravana;
impossível mantê-la ligada. Este é o motivo.” Ele tinha razão. Calei-me. O caravaneiro
aconselhou: “Mesmo que tivesse ocorrido um erro, não é hora de desperdiçarmos
energia, tempo e tranquilidade com o que não foi feito. O momento é de concentrar
esforços naquilo que podemos fazer; nas soluções possíveis.” Ele concluiu: “Fizemos
tudo o que sabíamos. Agora temos que formar uma corrente de pensamentos bons em
torno da moça. Oferecer o nosso coração para que, unidos, sirvam de alicerces para
ponte pela qual os bons espíritos do deserto irão transitar. Quanto maior o amor, mais
carga a ponte conseguem suportar.” E me deixou um aviso: “Uma boa ponte tem o
tráfego interrompido quando um dos seus pilares se mostra frágil. É como cortar o fio
condutor para interromper a passagem da eletricidade. Quem não se achar firme o
suficiente para manter o fluxo energético entre as dimensões que se afaste neste
momento. É também um jeito de ajudar.” E saiu.

A caravana retomou a marcha. Preocupado, alinhei o meu camelo logo atrás dos
camelos que transportavam a Ingrid na maca. As palavras do caravaneiro não me saiam
da cabeça; eu tinha alguma dificuldade de alcançar a extensão delas. Ideias e emoções
duelavam dentro de mim. Ao mesmo tempo em que eu desejava a cura da astrônoma,
eu tinha dificuldade em acreditar que aconteceria. As condições eram muito precárias.
Foi quando fui surpreendido por uma voz: “O que determina se o andarilho prosseguirá
na jornada não são as intempéries da estrada, mas o poder que ele traz consigo. As
batalhas de um guerreiro não se definem na sua destreza com a espada, as vitórias
nascem na mente. Para vencer não se pode temer a derrota; para se viver, ao menos
com a intensidade que a vida merece, não se pode temer a morte. A vida se molda na
consciência.” Era a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. Ela emparelhou o seu
vigoroso cavalo negro ao lado do meu camelo sem que eu percebesse.

Brinquei que ela tinha de parar de ler os meus pensamentos. A mulher sorriu e
prosseguiu: “Não basta entender, é preciso aceitar; na existência temos o indispensável
exercício com a verdade. A verdade se constrói na amplitude da consciência. Ambas são
traços de uma mesma régua.”

Eu disse que não tinha entendido. Ela começou a explicar: “Somos bem mais do que os
nossos corpos físicos. Somente ao aceitar esta realidade nos será possível viver de
acordo com outro nível de percepção. Fora disto, todo o resto é ilusão e cotidiano.
Conhecimento, quando aliado à prática, permitem ir, desde que de maneira amorosa,
além dos cinco sentidos básicos. É quando deixamos a infância das sensações para
conhecer as infinitas possibilidades de outra realidade. Bem menos física, bem mais
poderosa.”

“Toda cura tem origem na consciência. Por sua vez, posso ter o inconsciente como aliado
ou inimigo, a depender de como será utilizado. O mesmo martelo que utilizo na
construção também posso usar na demolição.” Interrompi para falar que o discurso
continuava complicado. Pedi para ela explicar melhor. A mulher de olhos azuis teve
paciência: “O inconsciente, movido por memórias ancestrais, aprisionado por
condicionamentos culturais, responde por nós mais do que costumamos nos dar conta;
ele é responsável pelo automatismo de quase todas as reações que temos. Isto faz com
que também sirva de limitador às novas possibilidades. O inconsciente, enquanto
selvagem e dominador, impede o consciente de se expandir e conhecer todo o seu
infinito poder. Educar o inconsciente é primordial para a liberdade da consciência. A
amplitude do olhar leva à transformação do ser. A realidade ao seu redor se modifica à
medida que você a entende de maneira diferente.”
“Era sobre isso que o caravaneiro falava contigo. A consciência, embora perceptível no
corpo físico, está também fora dele. Este é o indício inicial para conhecer novas
capacidades ao permitir a interação entre planos de existência. Se a parte mais
importante do ser está além do corpo, algumas outras funções vitais também podem
ser alteradas fora da esfera física. Claro que vários fatores, como o carma, por exemplo,
afetam o resultado pretendido. Pois evolução está intrinsicamente ligada ao
aprendizado. Contudo, não veja o carma como um bloqueador, mas como um
estimulante. O aprendizado irá movimentar o incomensurável poder que, por ora, está
fora de uso, proporcionando uma vida mais plena em liberdade, dignidade, paz,
felicidade e amor. Se carma é uma lição ainda não aprendida, ele, em verdade, é um
aliado à evolução. É do veneno que se extrai o antídoto para a cura.”

“Para tanto, não se veja como um corpo, mas como um espírito. Não se acredite uma
mera matéria andante, porém, uma sofisticada energia pulsante. Está é a diferença
entre o estar e o ser; entre o meu e o eu; entre a estética e a ética; entre o finito e o
infinito. Você é um espírito que neste momento precisa de um corpo físico para as suas
devidas lições evolutivas, principalmente as de ordem emocionais; para entender
melhor sobre a força mais poderosa do universo, o amor. Em geral, os espíritos que
necessitam de um corpo físico ainda sabem muito pouco sobre o amor. Embora
acreditem conhecer tudo sobre o assunto, quase todos são desequilibrados
amorosamente. Todos os carmas, direta ou indiretamente, falam sobre o amor. Com
forte influência dos sentimentos, somos cada um dos nossos pensamentos. A harmonia
daqueles são imprescindíveis ao equilíbrio e à evolução destes. Assim moldamos a
realidade através da consciência. Nem mais nem menos.”

“Ideias alicerçadas em sentimentos que se materializam em escolhas. Uma após outra,


as escolhas desenham quem sou a cada momento. Emoções equilibradas ajudam a
aperfeiçoar as escolhas ao buscar inspiração nas boas virtudes. O exercício das virtudes
me aproxima da luz; não há outro Caminho. Aos poucos, a plenitude se instala no ser,
mantendo-o além das tempestades mundanas. Assim temos uma vida diferente e
melhor daquela na qual fomos educados por padrões que privilegiam o plano material
em detrimento às conquistas invisíveis. É a diferença entre as grades e as asas; entre o
veneno e o antídoto.”

“A cada fração de segundo emitimos vibrações de acordo com o pensar daquele


instante. Os pensamentos formam ondas que navegam pelo espaço gerando efeitos. Luz
e sombras se alimentam deles. Cada onda tem uma frequência própria: ondas longas
quando as vibrações são densas; ondas curtas nas mais sutis. Isto determina a qualidade
da nossa energia; define quem somos e as forças com as quais estamos em sintonia.
Estabelece o poder que temos a cada momento da existência.”

“As ondas longas formam abismos nas rotas do universo; as curtas funcionam como
pontes. Assim determinamos aonde podemos ir; se estamos aprisionados ou se somos
capazes de prosseguir. Quem define o alcance da jornada é você; o seu olhar e o seu
pensar. A sua consciência. As vibrações sutis, por serem de ondas menores, possuem
uma maior capacidade de penetração. Logo, de transformação. Esta é a força do bem.
Quanto mais leve o pensamento, maior o poder da luz em você e ao seu dispor.”
“O que concede leveza ao pensamento é a esperança na vida, é a fé em si mesmo. A
generosidade, a delicadeza e a paciência que tenho comigo e com todos. A humildade
em ser e a compaixão em sentir. A simplicidade no viver. A alegria por perceber cada
momento pulsando em minhas veias. A sinceridade da palavra e a pureza de intenções
que pavimentam todas as relações. O amor que floresce em meu coração e eu
compartilho com o mundo. Assim alcançamos as estrelas.”

“Quando você se envolve com os desejos passionais, com a ignorância, com o orgulho,
a vaidade, o egoísmo, o ciúme, a intriga, a inveja, a ganância, a vingança, a vitimização,
com as conquistas meramente materiais, acaba por criar dependências e relações
dominadoras de desejo e poder. O medo de não conseguir o desejo e, em seguida, o
medo de perdê-lo. Ao final, resta um imenso poder sobre a ilusão.”

“Tudo que você tiver medo de perder não vale a pena conquistar.”

“As verdadeiras e preciosas conquistas não podem ser roubadas; não se desmancham
no ar nem se deterioram pelo tempo. Este entendimento amplia a capacidade do seu
consciente em agir além da realidade física por oferecer as pontes para atravessar os
abismos dos poderes mundanos que, em verdade, não passam de realidade aparente.
A realidade consciencial se vive concomitante ao mundo, mais está além do mundo. O
mel da vida acontece na essência do ser quando no exercício das virtudes. Este é o poder
da vida. A luz.”

“O mais curioso é que quando você se autobloqueia porque, em razão de


condicionamentos obsoletos, tem foco exclusivamente na aparência, em uma
convivência de superfície, apenas perceptível aos cinco sentidos básicos, abre mão de
usar o poder consciencial para a alteração da realidade. Perde os ganhos verdadeiros e
profundos. Cercado de abismos e nenhuma ponte, resta impossibilitado de seguir a
viagem pela negação das possibilidades a que se impôs.”

A mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli foi mais longe: “Trazendo essa retórica para
a situação da Ingrid, o caravaneiro tentou explicar que é justamente o medo e a
desesperança que impedem você de ajudar a astrônoma.” Contestei de imediato. Era
um absurdo pensar que a Ingrid morreria por minha causa. A mulher de olhos azuis
sacudiu a cabeça: “Não foi isso que eu falei. Apenas disse que na atual esfera de vibração
em que você se encontra em nada irá auxiliar na melhora do estado de saúde dela. O
caravaneiro tentou explicar, entre outras coisas, que o seu medo e a ignorância quanto
ao próprio poder podem romper o elo da corrente. A corrente de luz que tentamos
envolver em torno da Ingrid na expectativa de potencializar a sua cura.”

Tornei a discordar. Argumentei que o medo era natural. A Ingrid corria sério risco e eu
temia por sua vida. A mulher foi didática: “Sim, o medo é natural. Mas o que fazer com
ele, o medo, é uma escolha. Você pode permitir que ele domine os seus pensamentos,
bloqueando os movimentos da esperança e da fé ao se depararem com abismos astrais
que você mesmo criou. De outro lado, tem a possibilidade de mostrar para o medo que
a vida é um ato de coragem, por indispensável aos desafios inerentes à existência e ao
aprendizado. Isto, por sua vez, inicia o processo de mudança. A coragem encorpa a
esperança por acreditar nas infinitas oportunidades da vida. Ela sabe que sempre, de
um jeito ou outro, haverá uma nova chance. Nem mesmo a morte esgota as
possibilidades; apenas as transforma.”

“Não perca a oportunidade de agigantar a fé surgida a cada dificuldade. A fé, embora


muito falada, é a virtude mais desconhecida entre nós; também uma das mais
poderosas. A fé, ao contrário do que muitos imaginam, não se trata de uma crença ou
de somente acreditar em Deus, na Luz ou no Universo. Este é apenas o degrau raso da
fé. A fé atinge a sua maior potencialidade quando percebo que ela, assim como o amor
e as demais virtudes, é parte do sagrado que me habita. No entanto, a fé é bem mais do
que a esperança e a firmeza, embora delas se fortaleçam e lhes sejam essenciais. A fé
se caracteriza pelo poder que cada indivíduo tem de mover a força incomensurável que
traz dentro de si em favor de si mesmo e do mundo; o verdadeiro poder da luz. Isto faz
com que você passe a acreditar em si mesmo e no poder infinito de transformação que
possui. Acreditar em si mesmo, desde que com o mais puro amor, equivale a acreditar
em Deus.”

Diante do meu espanto, me olhou profundamente e murmurou como quem conta um


segredo: “Sim, você pode.”

Falei que mesmo com toda fé existente eu não poderia impedir a morte. A mulher de
olhos azuis concordou: “Claro que não. E é bom que não possamos, pois seria um ato de
profundo egoísmo.” Discordei; ela explicou: “A morte é um ato de amor. Um bonito e
sábio gesto de amor da Vida em relação à vida. Desde, é claro, que se entenda todo o
amor que há na vida.”

“Ela, a morte, encerra um ciclo de aprendizado para proporcionar o início de outro, em


diferentes condições de existência. A morte não toma nada de ninguém, salvo dos que
insistem em seus sentimentos de egoísmo e dominação. Assim, além de um gesto de
amor, se torna também um ato de sabedoria e justiça.”

“A morte apenas altera a programação da vida, oferece uma nova chance de evolução
com diferentes ferramentas.” Tornou a falar como quem conta um segredo: “A morte
também faz parte do processo de cura e de encantamento pela vida. A morte é uma
benção. Sempre será, ainda que tenhamos dificuldade para compreender.”

“Quando entendo que a minha morte não é inimiga da minha vida, mas uma aliada,
torno-me um guerreiro sem medo. Invencível pelo poder que assumo.”

Ponderei que, se aquelas palavras fossem verdadeiras, de nada serviria mentalizar ou


rezar pela cura de Ingrid. A morte é inexorável e tem a sabedoria de estabelecer a hora
da partida. A mulher concordou, em parte: “Na grande maioria das vezes é impossível.
Entretanto, em algumas poucas ocasiões é permitido um adiamento como exercício à
espiritualidade das pessoas envolvidas. A morte é um dos nossos melhores mestres,
desde que se ame e entenda a vida. Caso contrário, continuará sendo um problema e,
pior, um instrumento de ameaça disponível para aqueles que se deixam manobrar pelas
sombras.”
Eu tinha uma série de perguntas a fazer a ela, quando veio a ordem para pararmos.
Estávamos no final da tarde. Iríamos acampar ali naquela noite. A mulher com os olhos
da cor de lápis-lazúli tocou com o calcanhar no dorso do vigoroso cavalo negro,
movimentou as suas rédeas e logo sumiu do meu alcance. Aquela conversa tinha
oferecido uma nova ótica, mas que necessitava, como tudo mais na vida, do devido
amadurecimento; outras questões ainda restaram sem explicação para mim. Como tudo
mais na vida, um passo de cada vez.

A Ingrid foi acomodada em uma tenda com todo o cuidado. Fui autorizado a ficar ao
lado dela, que, de olhos cerrados, parecia em sono profundo. Em vigília, sem nenhuma
fome, recusei o jantar. Mas tarde, quando o burburinho do acampamento silenciou,
vieram à tenda o caravaneiro, a mulher de olhos azuis, o bom homem do chá e a sábia
anciã com quem eu tinha enfrentado uma tempestade de areia há dias. Sentados,
formaram um círculo em torno da astrônoma deitada sobre tapetes e almofadas.
Perguntaram se eu me sentia apto a participar. Eu sabia que não podia ser o elo fraco
da corrente. Portanto, tinha que estar disposto a me entregar por inteiro àquele
momento; tinha que oferecer todo o meu amor. Anui com um movimento de cabeça. O
caravaneiro entoou uma sentida oração em forma de canção. Os demais o
acompanharam. Como era desconhecida para mim, apenas me deixei envolver pela
agradável vibração que a música ancorou naquele instante na tenda. Todos estenderam
as suas mãos acima do corpo da astrônoma. Acompanhei o movimento. Tive a estranha
sensação que das minhas mãos pulsavam ondas que eu nunca sentira. Em parte,
originavam em mim; em parte, vinham através de mim. Apesar da situação difícil da
Ingrid, havia beleza e leveza inegáveis naquela tenda. Não sei precisar o tempo que
durou aquele cerimonial simples e poderoso. Como a fé, igual ao amor.

Ao final, o caravaneiro sussurrou: “Que os bons espíritos do deserto permitam que


aconteça, não os nossos desejos, mas o que for melhor para a Ingrid.” Dei-me conta,
naquele instante, que, em verdade, nem sempre os melhores desejos, ainda que puros
e sinceros, representam as melhores escolhas. Aos poucos, um a um, todos deram um
beijo suave no rosto da astrônoma e se retiraram em silêncio.

A sós com a Ingrid na tenda, pensei na frase dita pelo caravaneiro antes de sair: “Que
aconteça o melhor…” Havia sabedoria, amor e justiça naquelas palavras. Quantas vezes
não nos enganamos quanto ao melhor? Como os nossos desejos são egoístas; os medos
montam armadilhas traiçoeiras. A visão de curto alcance nos traz um sofrimento
desnecessário por não entender o que existe além da curva, onde os meus olhos ainda
não podem alcançar. Não tinha como saber o que aguardava por Ingrid na próxima
estação. Era pretensioso da minha parte acreditar que eu sabia o que era melhor para
ela, quando muitas vezes nem sou capaz de saber o que é melhor para mim. Sim, a morte
é parte importante do ciclo da vida por permitir a sua renovação em outros níveis e
planos de existência. Amar a vida consiste em entender a grandeza e a sabedoria da
morte; estar em paz com a morte nos permite viver os dias com intensidade, coragem e
amor.

Lembrei que do veneno da cobra se extrai a essência do remédio que salva do próprio
veneno; a doença ensina tudo sobre a cura. A coragem nasce na forja do medo; a fé se
origina do desamparo. As sombras, no fundo, se tornam a semente da luz. A morte não
é um mal, tampouco deve ser temida; ela não é um veneno. A morte não mata nem é
um fim. A morte é a cura pela renovação, desde que haja respeito e amor pelo ciclo vida.
A morte me fala sobre o valor da vida. Portanto, jamais devemos chamar ou desejar pela
morte em respeito à vida. Porém, aceitá-la na sabedoria da própria hora, como um
mestre que encerra uma aula. O meu coração serenou de maneira absoluta; as ideias
ficaram claras como eu nunca as tinha percebido. Senti uma paz desconhecida. Passei
as costas da mão com carinho no rosto de Ingrid e lhe desejei o melhor, de modo sincero,
ainda que fosse distante do meu desejo.

Tive a firme sensação de que, independente do que viesse acontecer, nada me abalaria.
A vida evolui em ciclos de aprendizado, transmutações, compartilhamentos e infinitas
viagens. Senti-me digno, livre e em paz. Em comunhão comigo mesmo como forma de
estar comunhão com a perfeição da vida. Uma estranha leveza pareceu capaz de me
sustentar no ar. Quando a morte não mais assusta; a vida floresce em impensável
beleza. O veneno da morte me oferecera o antídoto para a morte. Tinha me ensinado
uma, apenas uma, das infinitas possibilidades de cura através da vida.

Então, quando eu não mais esperava, o inesperado aconteceu. A astrônoma abriu os


olhos e balbuciou por um pouco de água. Quando voltei com o cantil, Ingrid sorriu para
mim. Era um sorriso lindo e repleto de vida. A febre cessou. Os seus olhos brilhavam.
Naquele instante não tive nenhuma dúvida de que a viagem dela ainda prosseguiria
pelas areias do deserto. Naquela caravana. Ao meu lado.

O vigésimo-oitavo dia da travessia – a consciência do deserto


Acordei bem cedo, com o céu ainda naquele tom de rosa típico de quando o dia
amanhece sem que o sol tenha despontado no horizonte. Ingrid, a bela astrônoma
nórdica, que quase morrera envenenada pela mordida de uma serpente no dia anterior,
sentada ao meu lado, sorriu para mim. Senti-me aliviado. Embora ainda enfraquecida,
ela estava bem. Apanhei duas canecas de café e me sentei ao seu lado. Ela agradeceu
com os olhos sem dizer palavra. Falei que estava preocupado de como ela suportaria
mais um dia de travessia. As condições do deserto são severas e eu temia que ela
piorasse. Com o queixo, Ingrid apontou para um dos encarregados da caravana. Era Rafi.
Eu já o tinha notado pelo fato de, mesmo sem ter um dos braços, era uma das pessoas
mais solícitas, gentis e trabalhadoras do grupo. Eu entendi o que ela queria me dizer, no
entanto, ponderei que apesar de Rafi não ter um dos braços, o seu organismo era forte
e acostumado àquelas condições. Entretanto, ela ainda estava visivelmente debilitada.
Ponderei que ela seguisse deitada, como no dia anterior, em uma maca montada entre
dois camelos, pelo menos por mais um dia. Ingrid se negou. Disse que iria sentada sobre
o seu camelo. Insisti que ela estava equivocada e que se arrependeria. Ela deu de
ombros e disse que a consciência molda a realidade; ao se acreditar fraca, seria fraca.
Acrescentou que o inverso também era aplicável. Ser forte será sempre uma escolha.
Uma simples escolha. Rafi era um bom exemplo disso, ressaltou.

No mais, explicou, ninguém gosta de errar. Porém, errar quando nos deixamos levar pela
opinião de outra pessoa, ainda que a intenção dela seja sincera, na contramão da nossa
consciência, é muito pior. Somente ao respeitar as próprias escolhas o indivíduo outorga
a si o poder sobre a sua vida. Significa aplicar a consciência como mestre, em exercício
constante de erros e acertos na busca pela verdade. A verdade se ilumina à medida que
a consciência se expande. Para tanto, é necessário estudo e prática.

Falei que eu apenas queria o bem dela. A astrônoma me ofereceu um belo sorriso e
disse que não tinha nenhuma dúvida quanto a isso. Disse, também, que todas as
opiniões eram bem-vindas e ela agradecia por cada uma delas, pois permitiam outras
óticas sobre uma mesma questão. Era como receber flores de sabedoria, uma bonita
maneira de amar. Todas eram levadas em consideração, podendo ou não modificar o
seu olhar. Contudo, respeitar a verdade da própria consciência faz florescer a liberdade
individual. Isto ensina o indivíduo a se responsabilizar por si, por suas escolhas e, por
consequência, a aprimorá-las. Seguir a orientação da própria consciência é a maneira
única de passar da infância à maturidade do ser.

Não quis insisti para não fazer o papel do chato. Oferecer uma opinião era um direito
meu; a decisão cabia a ela. Tão e somente. Respeitar as escolhas alheias estabelece a
fronteira das relações saudáveis, germina a paz e também fala muito sobre a liberdade.
Quando imponho a minha opinião sobre alguém ficamos ambos na mesma cela. Afinal,
prisioneiro e carcereiro estão impossibilitados de sair de onde estão; um cerceia o outro.
Para ser verdadeiramente livre não posso aceitar a função de me tornar o carcereiro da
liberdade de ninguém. Em contrapartida, não posso conceder tal poder a ninguém sobre
as minhas escolhas. Digo o que penso, sempre de maneira serena e clara; o outro decide
por seus próprios conceitos e valores. De outro lado, escuto o que todos têm a me dizer;
então decido pela luz da minha consciência e assumo, sem lamentar, as dores e delícias
das consequências.

Apenas, por cuidado, emparelhei o meu camelo ao da Ingrid. Ela, ao perceber o carinho,
sorriu em agradecimento. Com o passar das horas, notei que a astrônoma falava cada
vez menos. Os seus olhos quase sempre fechados revelavam um claro desconforto, um
cansaço além do que ela sentiria caso estivesse bem.

Quando paramos no meio dia para um breve descanso e uma refeição ligeira, Ingrid
parecia quase desfalecer. Deitou-se na areia para descansar. Bebeu um longo gole de
água do cantil. Perguntei se ela queria comer alguma coisa. Ofereci um punhado de
castanhas e tâmaras desidratadas que sempre levava no alforje do camelo. A astrônoma
sorriu e aceitou. Depois que comeu ela me pareceu um pouco melhor. Em seguida, com
um jeito maroto, disse que eu deveria estar pensando que teria sido melhor para ela
seguir os meus conselhos de fazer a travessia deitada em uma maca entre dois camelos.
Respondi que era exatamente isso. Ingrid se sentou e me convidou a sentar ao seu lado.
Disse que não morreria mais da mordida da serpente, porém o veneno, ao menos em
parte, ainda circulava em suas veias. Acrescentou que ela tinha que entender todo o
significado do fato.

Falei que ela parecia complicar o que era simples. Afinal, ela tinha sido envenenada por
uma cobra e estava curada. Agora precisava apenas recobrar o vigor aos poucos. Simples
assim. Nada mais precisava ser entendido. Ingrid sacudiu a cabeça como quem diz que
eu estava enganado.
Ela lembrou que tinha sido envenenada. Interrompi para sugerir que poderia ter
acontecido com qualquer outra pessoa da caravana. Ingrid concordou e acrescentou
que, porém, foi com ela. Nada é por acaso, tudo que acontece na vida é para o nosso
bem. Discordei de imediato. Falei que um desastre, uma doença ou, como no caso dela,
um envenenamento que quase a levou ao óbito, não guardavam nada de bom. A
astrônoma me olhou com doçura. Em seguida, explicou que todos os problemas
escondem um mestre em si. Encontrar o mestre ou deixá-lo fugir é a função de cada um
que vivencia a experiência. Significa uma lição agregada ao ser ou uma mera
aporrinhação.

Sorriu ao falar que não podia desperdiçar essa maravilhosa oportunidade. Perguntei o
que ela tinha aprendido com aquele episódio. Ela disse que ainda não sabia, mas que
tinha uma pista de onde o mestre estava escondido. Uma pista? Estranhei. Falou que
teve o corpo envenenado. Para que a sua existência prosseguisse precisou filtrar o
sangue no antídoto feito com a própria substância nociva. Caso contrário, se apagaria a
luz da existência. Processo que ainda não chegara ao fim; ao menos se ela entendesse
que aquela jornada não estava limitada ao corpo. Porém, poderia ter também
significados metafísicos. Cabia a ela escolher o alcance da experiência vivenciada.

O veneno da serpente envenenara o seu corpo. Era preciso entender o que envenenava
a sua alma. Os problemas no físico são espelhos de questões íntimas mal resolvidas.
Diante de um problema, os sábios agradecem a oportunidade; os tolos se lamentam.

Falei que aquilo era um absurdo, pois, seguindo a sua lógica, pessoas com problemas de
visão teriam questões primordiais em sua vida que se negavam a ver. Indivíduos com
lesões na coluna vertebral, eixo central do corpo, teriam situações estruturais do ser a
serem resolvidas, apenas para citar algumas possibilidades. A astrônoma balançou a
cabeça como quem diz que é exatamente isso. Em seguida, explicou que a alma expurga
para o corpo as emoções e realidades mal digeridas. Falei que aquela retórica era insana.
Ingrid apenas sorriu e deu de ombros.

Confesso que fiquei atônito com aquele raciocínio. Achei que ela procurava significados
em algo desprovido de qualquer significado. Calei-me diante do devaneio da astrônoma.
Considerei que seriam delírios ainda como efeitos do envenenamento. Veio a ordem
para que a caravana seguisse a sua marcha. Continuamos com os camelos
emparelhados. Ingrid evitou conversar. Os olhos, ora fechados, ora abertos, se
alternavam por longos períodos. Quando fechados, eu tinha a sensação de que ela
olhava para si mesma; abertos, parecia vagar nas areias infinitas do deserto. Por vezes
sorria para os próprios pensamentos; em outros momentos as lágrimas lhe escapavam
pelos cantos dos olhos, como se, ao lavar o coração as emoções recorrentes
transbordassem do próprio ser.

Ao final da tarde paramos para montar o acampamento e passar a noite. Ofereci-me


para pegar o jantar para ela na tenda do refeitório. Ingrid aceitou. Quando voltei com
duas cuias fumegantes de guisado de carne-seca de carneiro com legumes, a astrônoma
estava deitada na areia. A bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli tinha sentado
ao seu lado. Parei, mas a mulher fez um sinal com o queixo para que eu me aproximasse
e sentasse. Elas conversavam.

A mulher de olhos azuis pediu para que a Ingrid ficasse com os olhos fechados: “É hora
de olhar para si. Sem este movimento não existirá cura. Não falo do corpo, me refiro à
alma. Relaxe por alguns minutos. Em seguida, mergulhe no fundo de si mesma e traga à
tona todas as memórias e emoções que ainda envenenam o seu coração.”

Passado alguns momentos, a astrônoma começou a falar como em catarse, situações


vividas desde a infância que lhe faziam mal. O fato do pai privilegiar o seu irmão em
detrimento a ela; um relacionamento em que o namorado a trocou por uma amiga; uma
injustiça por ter sido preterida no trabalho por um colega bem menos capacitado. Além
destas, outras memórias de tristes lembranças e nocivas emoções. Algumas delas, Ingrid
achava nem mais se lembrar, mas naquele momento percebeu que ainda a
atormentavam no inconsciente. A mulher de olhos azuis explicou: “As mágoas são
venenos que nos intoxicam enquanto durarem. Os ressentimentos roubam as cores da
vida; nos matam por aprisionamento. São subtipos da raiva ou do ódio. Venenos
agressivos que enfraquecem a alma; impedem a conquista de todas as cinco plenitudes,
mormente a felicidade e a liberdade.”

Ingrid disse que entendia que tais emoções a impedissem de alcançar a felicidade.
Porém não entendia quanto à liberdade. A mulher foi didática: “Ninguém é feliz com o
coração afogado em tristes lembranças.” A astrônoma concordou e interrompeu para
perguntar se devia esquecer esses fatos geradores de tantas mágoas. A mulher
aprofundou a explicação: “Em verdade, ninguém esquece. Tampouco deve esquecer. A
tentativa de reprimir a memória, de recalcar o passado gera desajustes no ser. A alma
não consegue evoluir enquanto preferir a negação ao invés da superação. Superar é
evoluir para ir além; além de si mesmo, além dos fatos externos que jamais podem ter
a força de impedir a conquista das plenitudes. A liberdade é uma delas. Ninguém é livre
enquanto estiver acorrentado a um ressentimento. A liberdade, muito mais do que um
movimento de ir e vir do corpo, é a livre viagem por todo o seu passado, por todos os
momentos da vida sem qualquer sofrimento que a aprisione. Somente assim poderá
aproveitar toda a beleza do presente e projetar o futuro com sabedoria. Para tanto é
preciso olhar para cada um desses fatos que geraram algum tipo de sofrimento e abraçá-
los com amor. Entender que cada indivíduo agiu ou age no limite da sua capacidade; no
estreito âmbito do nível de consciência e no extremo das suas possibilidades de amar.
Tenha certeza de que o outro se comportou como sabia. Se não fez melhor foi porque
não era capaz naquele momento da existência. Talvez ainda não seja, mas não importa.
Você não precisa esperar que o outro se arrependa, peças desculpas ou mude o
comportamento para que você possa seguir em liberdade. Ser livre sempre será uma
atitude pessoal independente de qualquer fator externo ao ser.”

“Contudo, não esqueça que você também poderia ter agido de maneira diferente com
outras pessoas em diferentes situações da sua vida. No entanto, naquela época você
não conseguiu. Não tenha dúvidas que várias pessoas ficaram magoadas por diversas
escolhas que você já fez. No entanto, veja isso sem a culpa que paralisa; enfrente com a
responsabilidade que transforma.”
“O problema é que nos arvoramos no direito de nos magoar com as escolhas alheias e,
ao agir de acordo com a consciência que já alcançamos, ainda longe da pura luz,
exigimos que todos compreendam as nossas decisões. Somos rigorosos com os outros e
pedimos que sejam tolerantes conosco. Assim nos mantemos em eteno conflito. Não
esqueça, por justiça, a recíproca sempre será aplicada. Entende como a mágoa tem uma
absurda ligação com a liberdade? No fundo, a mágoa ainda demonstra o quanto ainda
estamos ligados aos condicionamentos ancestrais de dominação. Desejamos que os
outros escolham as nossas escolhas; que todos sejam permissivos aos nossos desejos.
Constantemente nos iludimos que a nossa consciência é a verdadeira ou a única. Isto
não é possível, justo ou digno. Seja conosco, seja com o mundo.”

“Esse entendimento, de respeitar as próprias escolhas e, por consequência filosófica,


aceitar as escolhas alheias pavimenta a estrada para uma das mais sublimes virtudes,
pelo tanto de amor, sabedoria e coragem que contém: o perdão.”

“O perdão é o antídoto para todos os venenos oriundos da mágoa, do ressentimento,


da raiva ou do ódio. Como todo antídoto é elaborado a partir do próprio veneno, o
perdão nasce a partir do entendimento dos meus equívocos em relação a outras pessoas
em diferentes momentos da existência.”

“Como exigir a perfeição de quem ainda não a entende? ‘Perdoai-os Pai, eles não sabem
o que fazem’, esta frase é parte do maior legado de amor, sabedoria e coragem da
História. Aprofundando o tema, como exigir a perfeição dos outros se eu mesmo ainda
não a tenho em mim para oferecer a eles? Perceba toda a dignidade que existe neste
raciocínio.”

“No mesmo diapasão, o perdão nos ensina que a dor só faz sentido quando a
envolvemos com amor. Caso contrário não haverá avanço; será apenas um sofrimento.
Para ser amor não pode haver taxas ou tributos; há que ser incondicional. Isto, por
consequência, redimensiona a verdadeira liberdade. A liberdade forjada no âmago do
ser sem nenhuma dependência das coisas do mundo.”

“O perdão nunca é espontâneo ou vem como um passe de mágica. Ele é uma construção
interna. O perdão se sustenta através dos pilares da consciência; com a argamassa do
coração. O perdão, nascido da ofensa proferida, é o elixir que transmutará toda a
tristeza que sufoca a alma.”

“Lembre sempre que não basta perdoar os atos sofridos, mas também aqueles
praticados. Os erros não são privilégios de ninguém e fazem parte das escolhas de todos.
Sem exceção.” Olhou para Ingrid e ensinou: “Perdoe a si mesma para ser capaz de
perdoar alguém. Somente ao entender as suas dificuldades de escolhas você será capaz
de compreender e aceitar os equívocos alheios. Entenda também, isto é muito
importante, que muitas vezes sofremos porque concedemos a alguém um poder
indevido sobre a nossa vida. Então, torne a perdoar a si mesma por não ter conseguido
impor os limites que deveria e assuma perante ao próprio coração a responsabilidade
de na próxima vez – e sempre haverá uma próxima vez, nem que seja para testar se de
fato existiu a superação – agirá de maneira diferente e melhor do que fez anteriormente.
Isto lhe concede o poder da vida. Isto fará se sentir em paz consigo e com o mundo.”

“Esta paz é o atestado de cura.”

Ficamos sem dizer palavra por um tempo que não sei precisar. O céu mudou para que
as estrelas se derramassem como um manto sobre a astrônoma. As suas amadas
estrelas. Aos poucos Ingrid começou a balbuciar fatos tristes da sua infância; enquanto
os narrava, se esforçava para o entendimento consciencial das dificuldades de todas as
pessoas envolvidas em cada episódio, inclusive ela mesma. O perdão é avesso à
vitimização. Depois vagou pela adolescência até chegar aos dias da idade adulta. À
medida que os fatos chegavam à mente, chorava; então, os abraçava com amor para
iluminar as possibilidades de entendimento e superação. Então, sorria. Sorria para si;
sorria para as estrelas. Isso aconteceu várias vezes naquela noite.

As horas se passaram sem pressa. Até o momento em que a astrônoma olhou para a
bela mulher de olhos com cor de lápis-lazúli e disse que não havia mais nada, que estava
vazia. Vazia de mágas. Falou que se sentia leve. Uma estranha e agradável leveza. Agora
Ingrid podia revisitar as suas memórias como quem assiste a um filme de amor; de amor
pela beleza da vida, pelas possibilidades infinitas de superação; não mais a um doloroso
drama. A mulher de olhos azuis sorriu satisfeita e explicou: “Todo o veneno foi
expurgado da sua alma. Agora você está pronta para a seguir na conquista das cinco
plenitudes: a dignidade, a paz, a liberdade, o amor incondicional e a felicidade.”

Ingrid sorriu e deu um beijo sincero de agradecimento no rosto da mulher. A astrônoma


disse que sentia vontade de dançar. Pegou um lampião, se afastou alguns passos, o fixou
na areia e começou a rodopiar em volta dele. Bailava para si, para nós, para as estrelas,
para a vida; comemorava por ter encontrado o mestre oculto daquele problema que lhe
ensinara um pouco mais sobre todas as curas da alma. Desta vez, ele, o mestre, não
tinha escapado. Sentada ao meu lado, a mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se
divertia e batia palmas para ritmar a dança de Ingrid. Perguntei a mulher se toda dor
traz a resposta que necessitamos. Ela se virou para mim e disse: “Não. A dor traz o
mestre; nele, a resposta. Obter a resposta certa exige duas coisas: primeiro, envolver o
problema com amor. Depois, fazer a pergunta certa. Senão o mestre escapará e restará
apenas o sofrimento.” Fez uma pausa antes de falar: “Não raro, fugimos das perguntas
essenciais por medo, comodidade ou ignorância. A exata pergunta ilumina a consciência
na busca pela verdade.” Olhou para a astrônoma e concluiu: “A cura da alma reflete a
vitória da luz sobre as próprias sombras.”

Ideias nova circunvagavam a minha mente a procura de um lugar para morar. Antes que
o dia acabasse, perguntei a mulher qual a definição de consciência. Ela me olhou com
os seus olhos azuis por alguns instantes e disse: “Consciência é a percepção de si mesmo
acrescida do seu olhar em relação ao mundo”. Tornou a pausar para finalizar: “Quanto
mais profundo for o seu conhecimento sobre si próprio mais ampla será a sua janela
para a vida.”
O vigésimo-nono dia da travessia – quando o deserto te arranca de ti.

Acordei com a Ingrid, a bela astrônoma nórdica de cabelos ruivos, me entregando uma
caneca de café fresco. Agradeci. Ela sorriu com os olhos para mim. Depois do ocorrido
nos dois últimos dias, não era difícil perceber que os seus olhos tinham um brilho
diferente. Uma luz típica daqueles que se alegram por ver o que antes não conseguiam.
Ingrid disse que iria providenciar algumas coisas junto à caravana e saiu. Sentado na
areia, fiz a minha prece diária e bebi o café sem pressa, enquanto observava o
movimento da manhã. Com a caneca vazia, me dirigi à tenda que servia de refeitório
para me servir de um pouco mais de café. Um grupo de homens conversava na entrada.
Embora não fossem meus amigos, depois de tantos dias quase todos nos conhecíamos
de vista. Cumprimentei-os. Um deles era alto e bem forte, apesar da idade avançada. A
característica que mais chamava a atenção eram as feições que demonstravam
desconfiança sobre tudo e todos. Ele sempre fazia comentários sarcásticos, como se o
fato de ridicularizar os outros, de alguma maneira o alimentasse. Diziam que tinha
servido no serviço de informações de um país da extinta Cortina de Ferro, do bloco
soviético existente à época. Chamava-se Ivan. Havia algo nele que emanava perigo.
Talvez fosse isto que me incomodasse na sua presença. Talvez fosse uma intuição. Não
raro confundimos as intuições com os nossos desejos e receios. Saber discernir uma dos
outros costuma evitar dissabores.

Os homens reunidos na entrada da tenda devolveram o meu cumprimento com polidez,


menos Ivan. Ele fez um comentário de duplo sentido em relação à Ingrid. Por instinto,
sem qualquer resquício sabedoria, respondi com acidez. Eu não permitiria que ele
zombasse da minha relação com a astrônoma. Como a presença dele já me trazia
desconforto, a sua ironia foi suficiente para me irritar. Respondi em tom de
enfrentamento. Ivan se sentiu ultrajado, pois todos os viajantes pareciam sentir medo
dele. Por sua vez, ele adorava esta atmosfera de temor que o envolvia. Para manter a
aura sombria que cultivava, Ivan me ameaçou. Na estranheza comum ao seu
comportamento, não fez uma ameaça direta. Aliás, nada nele era claro; todas as suas
palavras pareciam trazer uma mensagem subliminar. A ameaça foi velada, bem ao seu
estilo de ser. Falei que se ele tivesse algo contra mim, que resolvêssemos ali, naquele
instante. Nada deveria ficar para depois. Os seus olhos me apunhalaram com fúria. Ele
proferiu ofensas e deu um passo na minha direção. Mantive o olhar firme. Mais por
orgulho, nem tanto por valentia.

Fui salvo pela chegada do caravaneiro. Ele se colocou entre nós dois, nos olhou e nada
disse. Não precisava. No deserto o caravaneiro era a lei. Todos, sem exceção, o
respeitavam. Nem mesmo Ivan ousava desafiá-lo. Diante de um silêncio repleto de mal-
estar, enchi a caneca com café e saí. Antes, porém, olhei para o caravaneiro e vi uma
postura de firmeza e serenidade. Quando olhei para o Ivan percebi o desdém em suas
feições, como se enviasse um recado de que eu era muito frágil para ele. Senti, também,
que as minhas atitudes foram dardos que lhe feriram o orgulho e a vaidade. Tive a
certeza de que haveria troco.

Atos e fatos são fábricas vibracionais; ondas energéticas de sombras ou luz que atingem
a todos os envolvidos. Ficar imune às sombras ou aproveitar a luz requer conhecimento
e exercício. No entanto, somos bem menos do que sabemos. Temos por hábito apenas
reagir diante de uma situação, impulsionados por nossos condicionamentos ancestrais
e culturais. Então, reagimos pelos instintos que nos moveram até ali, guiados pelas
sombras que ainda não educamos dentro de nós. Sombras geram aprisionamento. Se
eu colocasse em prática o que sabia, teria permitido que as virtudes, aquelas que já
possuía, se manifestassem em ação. Poderia, também, aproveitar a ocasião para
germinar outras virtudes ainda em semente. Virtudes são fontes de luz. Eu sabia disso
tudo, mas eu não conseguia ser isso tudo.

Como consequência justa, fiquei me sentindo mal. As minhas sombras estavam no


domínio; medo, orgulho ou raiva se alternavam através de ideias e emoções. Tudo tão
denso dentro de mim que não existia uma pequena brecha por onde entrar um mísero
facho de luz. Quando o desequilíbrio se instala no ser; a nitidez dos pensamentos nobres
e a clareza dos bons sentimentos desaparecem. Tudo passa a incomodar. Quando Ingrid
se aproximou para comunicar que faria a travessia deste dia ao lado do bom homem do
chá, a quem todos consideravam um sábio, pois ela tinha vários assuntos que gostaria
de conversar com ele, enciumado, dei uma resposta atravessada à astrônoma, em total
desrespeito à sua liberdade. Ela me olhou sem entender e se afastou. A razão desse meu
comportamento era o desentendimento com o Ivan, na superfície. Em profundidade,
era por não saber lidar com as minhas emoções quando alguém se mostrava hostil a
mim. Montei em meu camelo; ninguém alinhou ao meu lado. Um pouco depois, após
alguns minutos de travessia, o caravaneiro se aproximou, em seu cavalo branco, me
olhou fundo por breves segundos, e disse: “O deserto te arrancou de ti.” Fez uma pausa
antes de concluir: “Para não naufragares em tempestades de agonia, será preciso voltar
para ti mesmo. Não há melhor abrigo.” Tocou com os calcanhares no ventre do cavalo,
moveu as rédeas com destreza e sumiu de vista.

Como se o caravaneiro tivesse a capacidade de ler a minha alma, atravessei a primeira


parte da marcha afogado em enorme agonia. Foi como se mais nada existisse ao redor.
Pior, era como se eu não fosse mais senhor de mim. Eu não conseguia pensar em outra
coisa que não fossem as possibilidades de desdobramento do conflito. Possibilidades
desastrosas, por qualquer viés que eu conseguisse enxergar. As sombras – as minhas
próprias sombras – tinham total poder sobre mim. Medo, raiva e orgulho formavam o
triunvirato que me comandavam.

No meio do dia não paramos para descansar como de costume. Marchamos por mais
duas horas até um pequeno poço para nos abastecer com água. Veio a ordem para
acamparmos. Ficaríamos ali o resto do dia, onde também dormiríamos. Enchi os meus
cantis. Em seguida me afastei do grupo. Sentei na areia e fechei os olhos. Eu precisava
pensar, porém não conseguia. As ideias se mostravam confusas, como em colisão com
as emoções. Tudo em mim parecia disperso. Sentia-me desanimado. Quando abri os
olhos a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli estava sentada ao meu lado.
Como se adivinhasse, ela explicou: “O desânimo surge quando deixamos secar as fontes
internas de luz. Então, bebemos nos riachos das sensações turvas. Restamos
envenenados e na escuridão.”

Confessei que aquela sensação era mais forte do que eu. Sentia-me incapaz de sair de
onde estava. A mulher ponderou: “A nossa consciência molda a realidade. É preciso que
você se acredite forte o suficiente para enfrentar qualquer situação na sua vida. Do
contrário, não conseguirá.” Falei que o argumento era válido, no entanto, me parecia
insuficiente. Ela concordou: “Trata-se apenas do primeiro degrau. No entanto, ele é
essencial para que haja a escalada ao topo.” Perguntei qual era o topo. Ela respondeu
de pronto: “A prevalência das virtudes em forma de ação ao invés dos instintos
mecânicos de reação; o sábio sobre o selvagem, ambos habitam em todos nós; as
sombras transformadas pela luz. A integralidade do ser; a conquista das plenitudes.”

Apesar de ter esse conhecimento, admiti a sua ineficácia, ao menos para mim, nas
relações do cotidiano. A mulher se mostrou generosa: “Sem a devida prática, a teoria se
desmancha nas noites do tempo.” Fez uma pausa e revelou: “Vou lhe ensinar um
exercício. Foi como eu aprendi a me fortalecer, a reencontrar o meu eixo e não me
perder das fontes de luz em momentos de conflitos, semelhantes ao qual você
atravessa.” Perguntou se eu estava disposto. De imediato respondi que sim. Ela pediu
para que eu deitasse na areia e fechasse os olhos. Tirou uma pequena flauta da bolsa
que usava à tiracolo. Em seguida começou a tocar uma suave melodia. Pediu para que
eu tentasse me desligar de tudo ao meu redor, inclusive dos fatos recentes e também
dos pretéritos. Isto ajudaria a esvaziar as emoções e a ideias que me dominavam. Eu
deveria me deixar conduzir pela música. Era preciso deixar que cada nota entrasse em
meu corpo e, como se fosse uma vassoura ou esponja, limpar qualquer resquício de
sujeira que me impedisse a clareza das ideias e a leveza dos sentimentos. A canção
prosseguiu por algum tempo até que a mulher de olhos azuis cessou com a música e
quis saber como eu me sentia. Falei que um pouco melhor, pois tinha conseguido, por
breves minutos, me desligar dos fatos que me perturbavam. Mas apenas um pouco
melhor, reiterei. Ela me situou com a sua voz suave: “Não permita que a ansiedade
escureça a estrada. Começamos agora. A jornada é longa.”

A mulher de olhos azuis me perguntou em qual lugar eu me sentia melhor, acolhido e


em segurança. Respondi que em casa. Ela pediu: “Imagine-se em casa em um encontro
consigo mesmo. Sentem-se frente a frente. Busque por todo o conhecimento adquirido
até hoje para transmitir a você mesmo as bases de sustentação das suas próximas
atitudes daqui por diante. Um comportamento repleto de virtudes. O medo, o orgulho,
a vaidade, a inveja, o egoísmo, os desejos insensatos e a desesperança darão lugar à
coragem, à humildade, à compaixão, à mansidão, à misericórdia, à pureza e à fé. Uma
troca que provocará uma inimaginável transformação no ser.”

“Antes de qualquer decisão, tenha em mente que você deve tratar os outros como gosta
de ser tratado, levando em consideração que as dificuldades são comuns a todos,
inclusive a você. Entenda que não apenas a força, mas também a clareza, estão na
consciência, além de quaisquer circunstâncias externas e materiais. O bom combate
começa dentro de si. Ele é travado por aquele que usa as virtudes como espada. As
virtudes se manifestam através das escolhas sem as quais não existe avanço na travessia
pelo deserto.” Fez uma pausa antes de encerrar a primeira etapa: “Firme um
compromisso consigo mesmo e aceite a responsabilidade que acabou de firmar. Assim
a luz consagra os seus guerreiros.”
Senti a minha casa como se fosse um templo sagrado. Foi como se todo o poder da luz
ancorasse em mim. De alguma maneira, comecei a me sentir diferente e melhor.

Ela prosseguiu: “Agora, em sua tela mental, se encontre com alguém em quem você
confie, cuja a presença traga conforto e a sabedoria seja admirada. Pode ser alguém que
você conheça, um grande mestre da humanidade ou mesmo um personagem admirável
da literatura, cuja saga e o enorme conhecimento tenham como viga principal o amor.”
De imediato, pensei no Velho, o monge mais antigo do mosteiro, por sua serenidade e
sabedoria. A mulher continuou: “Se imagine sentado ao lado dele, em uma conversa
amigável na qual você expõe os seus problemas e ouve os conselhos desse mestre.
Escute as palavras, compreenda os conceitos, descortine os véus da ilusão.”

“Após esse encontro, vá à procura da pessoa que o incomoda ou assusta. Olhe nos olhos
dela. Veja-o sem raiva nem ressentimento. Caso sinta medo, não recue, o medo é
normal; apenas permita que a sua coragem se manifeste e, aos poucos, ocupe o lugar
do medo. Jamais seja agressivo; apenas os covardes são violentos. Seja manso, porém
firme; a mansidão é uma virtude permitida aos melhores guerreiros. Dispa-se do seu
orgulho e vaidade. Não leve o ciúme no bolso, tampouco a inveja escondida na manga.
Esteja puro para estar inteiro. Ser puro não significa ser tolo; ser puro é estar livre de
subterfúgios. Imagine todas as possibilidades de atitudes cabíveis por parte dessa
pessoa. Recuse-se a reagir por impulso ou por instinto diante de cada possibilidade; isto
você sempre fez e nada lhe trouxe de bom. Ao invés de apenas reagir ao movimento
dessa pessoa, aja de maneira a não mais aceitar as regras de um jogo obsoleto. Não se
permita mais jogar nas regras das sombras. A partir de agora serão as regras da luz.
Lembre, ninguém consegue caminhar pelas noites do deserto. Nesse cenário, imagine
como você agirá diante da provocação ou da ofensa proferida; considere todas as
possibilidades que você consiga; seja criativo e pense em algo nunca antes imaginado.
Sem esquecer que agora você agirá com as armas com a qual se compromissou, a luz.”

Essa etapa demorou um tempo que não sei precisar. A cada possibilidade eu tendia a
reagir no mesmo tom, a “devolver na mesma moeda”. Era preciso refazer os conceitos
e a devida ação futura; a fazer diferente e melhor; a me permitir a outra face. A tão
incompreendida outra face, a face da luz. Não foi fácil, mas foi transformador. A mulher
com os olhos azuis esperou com infinita paciência eu me declarar pronto.

Por fim, ela sugeriu: “Agora volte ao seu lugar sagrado para se encontrar de novo consigo
mesmo. Analise toda a trajetória. Olhe para dentro sem esquecer de olhar para fora;
seja bom para si, mas ofereça aos outros algo que eles não tenham ou não conheçam.
O deserto será sempre um perfeito reflexo do andarilho. Entenda as próprias razões,
mas lembre que o outro, assim como você, também vive na fronteira da própria
consciência. Não raro, cada um traz uma parte da verdade. Analise se você foi digno em
seu comportamento ao oferecer aquilo que gostaria de receber; se a sua atitude foi a
de um indivíduo livre de preconceitos, condicionamentos e dependências; se houve
esforço em semear uma ideia de amor; se você ficou feliz com as suas escolhas e, ao
final, em paz consigo mesmo.” Fez uma pausa e concluiu: “Então, você estará pronto
para o bom combate.” Ponderei sobre o imponderável; eu não saberia como agir diante
de uma atitude imprevista. Ela me tranquilizou: “O maior perigo é o de você agir fora da
luz. O poder que o ilumina é também aquele que o protege.”

A mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se levantou e saiu.

Mais tarde, encontrei com a Ingrid e lhe pedi desculpas pelo comportamento que tive
pela manhã. A astrônoma foi carinhosa e disse que todos têm os seus maus momentos.
Disse que eu era uma pessoa muito importante para ela. A Ingrid tinha o dom de fazer
do seu coração um bom lugar para estarmos. Todos se sentiam bem ao seu lado. Exigir
a sua presença com exclusividade não era uma atitude digna de pessoas livres por ficar
aprisionado à liberdade alheia. Nunca será um gesto de amor por impor condições ao
amor. Afinal, nenhum privilégio é justo; sem sermos justos em todas as nossas relações
não nos sentiremos felizes nem em paz. Sorri para mim mesmo. Eu nunca tinha me dado
conta de como situações aparentemente banais do dia a dia podem nos ensinar tanto
em relação às plenitudes.

À noite, na hora do jantar, me dirigi à tenda do refeitório. Enchi uma cuia com sopa de
ervilha e, como de costume, fui me sentar afastado. No trajeto encontrei com o Ivan.
Estávamos a sós. Ele me provocou fazendo novas insinuações em relação à Ingrid. Em
seguida, tornou a me ofender. A primeira emoção foi a raiva; as sombras impressionam
por sua enorme velocidade. No entanto, desta vez eu tinha me preparado. Eu dominei
a raiva ao invés dela se apossar de mim. A raiva, assim como qualquer emoção sombria,
gera energia. No entanto cabe a mim direcionar essa força em outra direção para
aproveitá-la para o bem. Para tanto tenho que envolvê-la em alguma virtude para que
se transforme em luz. Então, posso usar a energia, agora modificada, para melhores fins.

Usei a compaixão para alterar a frequência da minha raiva. Naquele instante, descobri
um amor que eu mesmo não conhecia. Senti-me com entranha força a partir do
momento em que eu me mantive irredutível no meu compromisso com a luz. Ali
comecei a entender um pouquinho sobre a fé, em como movimentar a luz através de
mim.

Eu não queria falhar logo no primeiro combate. Na verdade, percebi que batalha
aconteceria primordialmente, não perante ao Ivan, mas dentro de mim. Eu somente
poderia ajudar ao Ivan em relação às suas sombras se eu fosse capaz de superar as
minhas. A compaixão utilizada para modificar a raiva apenas foi acessível quando admiti
que as dificuldades de Ivan são familiares às dificuldades que tive ou tenho. Os graus e
os tipos podem ser diferentes, mas o parentesco é inevitável.

Olhos nos olhos, eu sabia que não podia haver qualquer resquício de soberba ou
superioridade. A humildade é a virtude primordial sem a qual nenhum avanço será
possível. Falei com honestidade que havia algo nele, Ivan, que eu admirava. Ele me olhou
surpreso. Eu disse que ele transmitia a todos à sua volta uma força incomensurável e
muito importante pelo seu poder de construir e proteger. No entanto, em razão do seu
jeito agressivo, aquela força gerava medo; logo, repulsa. Ponderei que se aquela força
fosse melhor direcionada, passaria a gerar respeito e admiração; logo, aconchego. Uma
impressionante força nata que precisava ser trabalhada de maneira diferente. Propus
que eu o ajudasse; considerei que ele, sem nenhuma dúvida, também tinha muito a me
ensinar.

Atônito, Ivan desviou o olhar. Manteve-o longe, muito além das dunas ou das estrelas
do deserto. Quando tornou a me olhar, vi sofrimento em seus olhos. Por trás daquele
homenzarrão existia um menino solitário pedindo ajuda. Disse que ninguém tinha
conversado com ele daquela maneira. Afastados do burburinho da caravana, sentamos
na areia.

Ivan contou a sua infância sofrida e as dificuldades de sobreviver em um país pobre sob
regime totalitário, no qual os direitos e garantias pessoais eram quase inexistentes. O
medo imperava; a força bruta era valorizada. Então, aprendera a utilizar o medo para se
impor. Era a única ferramenta que ele conhecia e sabia usar. Acostumara-se assim, como
se não existisse outra maneira de ser e viver.

Ivan se comportava como aprendera desde sempre. Agressividade era a maneira


inconsciente de ele esconder dos outros, ou admitir para si mesmo, as suas fragilidades,
as fraquezas morais e emocionais com as quais não conseguia lidar. Ele acuava as
pessoas por temer questionamentos. A violência era como um escudo para se proteger
de questões internas com as quais não sabia lidar. Tornara-se um homem temido, mas
não era feliz. O medo não permitia o florescimento de amigos. Os homens se
aproximavam por interesses escusos, nunca por sincera afeição. As mulheres se
aproximavam quando desejavam proteção, nunca por admiração. Confessou que estava
cansado. A sua força era também a sua fraqueza, ou seja, a sua agressividade era mera
expressão da sua covardia. Covardia de enfrentar a si mesmo.

Ivan me perguntou como deixaria de provocar medo para causar respeito. Expliquei que
força e violência são manifestações distintas; o amor e as virtudes as diferenciam. Usei
o caravaneiro como exemplo. Era um homem que emanava uma inquestionável força,
porém o aprimorado senso de justiça que o orientava fazia dele uma pessoa respeitada
e agradável pelo clima de confiança proporcionado.

Ficamos um tempo em silêncio. Ivan, com os olhos mareados, confessou que sempre se
sentiu fora de si, como se em algum momento da existência alguém o arrancara do seu
eixo para viver um personagem inventado. Disse que era hora de voltar para dentro
dele, encontrar quem era de verdade. Pois, apesar da idade avançada, ainda não sabia.
Sincero, me agradeceu a ajuda. Falei que a conversa só ganhara aqueles contornos pelo
fato de ele já estar pronto para a mudança que se anunciava. Eu apenas o tinha
despertado de um sono demorado. Ele tornou a agradecer, disse que gostaria de me ter
como amigo. Falou que tinha muito para pensar. Levantou-se e foi embora. Aos meus
olhos, vi um menino se afastar.

Eu também tinha muita coisa para pensar. O deserto tinha me arrancado de mim, mas
quando voltei a me encontrar algo havia se modificado. Percebi que, guardadas as
devidas diferenças, o medo e a agressividade usados como ferramentas por Ivan tinham
algo em comum comigo. Por toda a minha existência eu alimentei enorme vaidade e
orgulho pela minha criatividade profissional. Usei-a ilimitadamente para acuar clientes,
depreciar a concorrência e, com isso, conseguir vantajosos contratos. Uma ferramenta
que, mal-usada, serviu às sombras por magoar muita gente, me permitir conquistas
indevidas e, para piorar, me iludir maior do que os outros, além de me tornar um
dependente em elogios e aplausos. Embora as sombras do Ivan pudessem estar mais
visíveis para a maioria das pessoas, elas não eram mais inocentes do que as minhas,
tampouco eu tinha sido um homem melhor do que ele. No fundo, entre nós, havia mais
semelhanças do que diferenças.

Os iguais se atraem. As diferenças explicam aquilo que não entendemos em nós.

Uma bela lição do deserto restara agregada em meu ser. Fiz uma prece; agradeci pelo
problemas e conflitos, valiosas alavancas de transformação. Era preciso agradecer
também a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli pelos exercícios ministrados.
Quando abri os olhos, a vi ao longe, no alto de uma duna. Ela dançava para as estrelas.

O trigésimo dia da travessia – a arte do deserto

Há dias que parecem existir apenas para nos contrariar. Ou nos testar. Acordei feliz
pensando na Ingrid, a astrônoma nórdica de cabelos ruivos. Fui à tenda que servia de
refeitório para buscar uma caneca de café e todos comentavam sobre a tradicional festa
do trigésimo dia da travessia, que se realizaria naquela noite. Imaginei-me dançando
com a astrônoma sob o lindo céu de estrelas do deserto. Foi quando vi a Ingrid
conversando com um peregrino que, assim como eu, viajava para o maior oásis do
deserto com o intuito de conversar com o sábio dervixe, “conhecedor de muitos
segredos entre o céu e a terra.” Ingrid dava boas risadas. Ele se chamava Paolo, um
italiano muito popular na caravana. Era bonito, simpático e gentil. Tinha uma conversa
agradável, eu mesmo já tinha dado gargalhadas das suas histórias, sempre bem-
humoradas. Paolo era o braço-direito e herdeiro do pai, um rico industrial de Milão.
Tinha a idade de Ingrid e, assim como a astrônoma, parecia ter o dom de seduzir. Eles
conversavam como se nada mais importasse no mundo. No mesmo instante me senti
mal. Um gosto amargo na boca e um azedume nas entranhas sinalizaram a dança do
ciúme dentro de mim. Embora não namorasse ou tivesse qualquer compromisso formal
com a Ingrid, eu cultivava esta esperança. A plantação ardeu em fogo quando eles
emparelharam os camelos para fazerem juntos a travessia daquele dia. Enjoado, cuspi
o café.
Sem vontade de falar, segui solitário na marcha. Eu procurava transmutar o ciúme, pois,
já havia aprendido muito sobre as sombras. Em vão. Ao mesmo tempo em que eu dizia
para mim mesmo que ninguém é dono de ninguém; que devemos respeitar as escolhas
alheias, ainda que contrárias às nossas vontades; que embora necessitemos dos
relacionamentos como aprimoramento e compartilhamento das virtudes, a felicidade
não exige a presença de ninguém ao nosso lado, pois é uma conquista interna. Qualquer
dependência emocional será sempre uma cruel prisão a impedir o encontro com a
imprescindível liberdade. Conceitos verdadeiros e valiosos que eu tinha aprendido no
decorrer da minha jornada cósmica. Contudo, de outro lado, o ciúme me contestava
dizendo que a Ingrid era uma ingrata, parecia ter esquecido os bonitos momentos que
juntos tínhamos compartilhados. A astrônoma também não levava em consideração a
dedicação que eu tivera com ela quando foi mordida por uma serpente, há poucos dias,
e quase faleceu. O ciúme também me sugeria um suposto interesse da Ingrid por uma
vida maravilhosa que teria ao lado de Paolo. Mostrou-me a astrônoma cercada de luxo
e facilidades, passeando na belíssima Costa Amalfitana, com seus ótimos restaurantes
de chefs renomados e confortáveis hotéis, em camas revestidas por finos lençóis de
linho. O ciúme me dizia que eu nunca poderia proporcionar a ela uma vida parecida. O
ciúme me questionava se seria possível outra mulher me completar como a Ingrid.

Era uma batalha de vida e morte, como supostamente são os embates travados no
âmago do ser. Em primeiro momento parece existir apenas uma entre duas opções:
tudo ou nada. Assim eu me sentia quando veio a ordem para a caravana parar no meio
do dia para um breve descanso e uma refeição ligeira. Quando desmontei do camelo
pensei que não me restaria nada. As minhas pernas fraquejaram; eu me sentia fraco,
como se a vida tivesse escorrido de dentro de mim. Restava-me o vazio. Eu me sentia
oco.

Sentado na areia, tentei comer uma tâmara. A fruta, sempre doce, me pareceu azeda e
intragável. Eu sabia que tinha de resgatar a força da minha alma, o ânimo pela vida.
Nesse momento, ao longe, vi Paolo e Ingrid conversando. Sem dúvida, era um casal
bonito e alegre. O ciúme me disse que sem o italiano era eu quem estaria rindo ao lado
da astrônoma. Ele cruzara a minha existência para me desafiar e tomar a minha fonte
de prazer. Era hora de partir para o “tudo” ou ficaria sem “nada”. Senti ódio do italiano.
Instintivamente passei a mão nas minhas costas e toquei no punhal que sempre levava
no cós da calça. A fraqueza foi substituída por uma força ácida, a raiva. Ideias e emoções
estavam confusas, porém, agora eu me sentia forte por encontrar uma possibilidade de
agir para ocupar o lugar da impotência inicial. Contive-me quando vi o caravaneiro me
olhando profundamente. Ele parecia adivinhar o que eu pensava. Eu sabia que a lei do
deserto era implacável. Desviei o olhar.

Marchei o segundo trecho da travessia daquele dia dividido entre pensamentos e


sentimentos. Um guerreiro lutava contra outro guerreiro. Eu era ambos; luz e sombras.
O campo de batalha, ensanguentado naquele momento, era o âmago do meu ser; a
minha consciência. Deserto e caravana eram meras paisagens para um duelo decisivo
que se anunciava.

À noite, eu não quis jantar. Por entre as lamparinas que iluminavam o acampamento da
caravana, eu procurava pelo italiano. Ele estava ao lado de Ingrid, afastados de todos,
deitados na areia. A astrônoma parecia lhe falar sobre as estrelas, como já fizera comigo.
De tocaia os observei por algum tempo. Em determinado momento a Ingrid se levantou
para fazer ou buscar algo. Sozinho, Paolo continuou deitado na areia. A hora se mostrava
oportuna. Procurei pelos olhos implacáveis do caravaneiro; não os vi. Eu não sentia
medo, no entanto também não conseguia sair do lugar, como se os meus pés estivessem
enterrados no deserto. Metade de mim queria atacar; a outra parte não deixava. Foi
quando percebi que a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli me observava. Ela
estava com as feições serenas, mas os seus olhos refletiam uma tristeza sem fim.
Envergonhado, corri dali para o alto de uma duna.
Ofegante, sentei na areia. De lá a caravana parecia um brinquedo de criança. As tendas,
os lampiões, os camelos e as pessoas. Não se ouvia som. “Apenas a voz sábia do
silêncio”, ouvi alguém atrás de mim. Era a mulher de olhos azuis. Sem pedir autorização,
ela se sentou. Trazia consigo um pequeno tambor. Um tambor do deserto. Ela ficou
quieta ao meu lado por um tempo que eu não sei precisar, sem dizer palavra, sem mexer
no tambor. Até que perguntei a razão de ela estar ali. A mulher foi delicada em sua
resposta: “Espero o seu coração se acalmar. Depois, caso você queira, conversaremos”.
Balancei a cabeça como quem diz “sim” e comecei a chorar. Foi um choro convulsivo.
Em seguida comecei a desabafar. Falei muito. Confessei que estranhava a mim mesmo,
como se eu não me conhecesse nem tivesse aprendido nada em minha caminhada. Os
meus conhecimentos e sentimentos virtuosos e iluminados eram alternados com os
conselhos insistentes oferecidos pelas sombras do ciúme, do ódio e do egoísmo. Ela
apenas ouvia. Ouvia sem interferir; como quem sabe que o tempo, em verdade, não tem
fim. Ouviu com infinita paciência até eu me cansar de ouvir a própria voz.

Então, pediu para eu me deitar na areia e fechar os olhos. Ela começou a tocar o tambor,
um instrumento sagrado para o magismo na tradição do deserto. Era um ritmo
compassado, como se rufasse no compasso do coração do deserto. Ela pediu:
“Concentre-se apenas no rufar do tambor. Permita que o seu coração bata no mesmo
compasso do coração do deserto. Sinta os dois corações batendo como se fossem um
só coração. Assim, todo o poder e sabedoria do deserto também serão seus.” Passado
algum tempo falei que já não sabia se o coração que eu sentia era o meu ou o do deserto.
A mulher perguntou: “O que você vê neste instante?” De olhos fechados, confessei que
eu me via correndo pelas areias do deserto, como um personagem de um filme,
perseguido por um bando que tentava me aprisionar. Quanto mais eu corria, mais eles
se aproximavam. Em seguida falei que o bando me encurralara na beira de um estreito
beco de pedras. Acrescentei que eu não tinha saída e teria que me entregar ao bando.
Falei que eu sentia medo. Medo da prisão, medo do desconhecido, medo do vazio, medo
de me perder de mim mesmo. Argumentei que fazer parte do bando talvez desse algum
sentido à minha vida. A mulher explicou: “O bando é formado pelo seu ciúme, ódio e
egoísmo. Entregar-se ao bando é se deixar aprisionar. Não deixe que o medo domine as
suas escolhas. Lembre, as suas escolhas irão te aprisionar ou te libertar.” Gritei que eu
não tinha saída. O bando era poderoso. Ela disse com serenidade: “Sempre temos
escolhas. Logo, sempre há uma saída.” Fez uma pausa antes de continuar: “Enfrente ou
se entregue. Será sempre uma escolha. Morra de medo ou viva com coragem. Repita os
velhos erros ou faça diferente e melhor.” No passado eu já tinha sido aprisionado nos
cárceres, não apenas do ciúme e do ódio, mas também da inveja e da ganância. Não, eu
não queria mais viver experiências parecidas. Sim, para ser livre eu teria, cedo ou tarde,
de enfrentar cada uma das minhas sombras, seja em separado, seja em bando. Não fazia
sentido adiar o combate se a coragem e todas as demais virtudes, as armas das quais
preciso para a primordial luta pela vida sempre estarão dentro mim, pensei. Respirei
fundo e decidi acordar a coragem adormecida. Mas não bastava. Respirei fundo de novo
para trazer também a compaixão, a humildade e o amor. Impulsionei um dos pés na
enorme pedra que fechava o beco e corri em sentido contrário. Embora ainda com
medo, comecei a me sentir forte; as virtudes trazem em si este poder. Parti de encontro
ao bando. Eu tinha decidido lutar. Neste instante tudo pareceu mudar. A cada passo algo
se transformava em mim. Na medida que me aproximava do enfrentamento com o
ciúme e o ódio, eu ganhava velocidade. Não, eu não estava mais veloz, exclamei para a
mulher de olhos azuis. Em verdade, eu ficava mais leve a cada movimento.

Bem próximo ao início da batalha o medo tinha desaparecido de dentro de mim. No


momento do choque para o início da luta que eu acreditava de vida e morte, outra
surpresa. Eu não atropelei o ciúme e o ódio como quem se acredita forte como um
destruidor tanque de guerra. Eu me senti forte por outro fundamento: eu os tinha
sobrevoado. As minhas asas tinham crescido. O bando não podia mais me alcançar nem
me fazer nenhum mal. As suas flechas não me atingiam; eram inofensivas. A coragem, a
humildade, a compaixão e o amor me sustentavam no ar além da capacidade de alcance
das sombras. Eu estava livre, gritei para a mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. Ela
me alertou: “Sim, você está livre, mas apenas por hoje. Se voltar a se arrastar, as
sombras tornam a se agigantar e te aprisionam de novo.”

O tambor ainda rufou por algum tempo. Foi diminuindo o ritmo até cessar. Sentei. Disse
que me sentia estranho, mas bem melhor. Falei que não mais sentia ciúme nem ódio.
Também não sentia desânimo. Eu me sentia livre. A mulher arqueou os lábios em breve
sorriso e me corrigiu: “Apenas metaforicamente. Em verdade, ainda não.”

Diante da minha surpresa, ela explicou: “O cerimonial mágico do tambor não transmuta
as sombras de ninguém em luz. Esta é a batalha da vida de todos. Uma batalha que
precisa ser vivida no plano físico. Embora possamos ter algumas ajudas sutis, ninguém
ficará dispensado de travá-la com a própria consciência, através de cada escolha, até o
último dia da travessia. O ritual do deserto facilita a nossa luta ao afastar as energias
densas e influências de má vibração que atrapalham o livre pensar. Pensar com
liberdade é movimentar a consciência expandido os limites da própria verdade,
orientada pelas virtudes, sem condicionamentos, preconceitos, medos ou dependências
de qualquer espécie.”

“A metáfora da cerimônia que você vivenciou não o faz vencedor de nenhuma batalha.
Apenas o deixa em melhores condições para iluminar as próprias sombras. Não existe
vitória sobre ninguém, salvo sobre si mesmo. Vale salientar que a vitória sobre si mesmo
não significa a morte das suas sombras. Não faria sentido matar uma parte do próprio
ser, pois você restaria incompleto. As sombras não morrem; elas são transmutadas em
virtudes. No entanto, este processo quase nunca ocorre de uma única vez; tenha
paciência, a natureza não dá saltos. Porém, a travessia é muito rica. Cada sombra, depois
de bem trabalhada, se transformará em uma ou mais virtudes. A fragilidade do orgulho
nos ensina sobre a força da humildade, por exemplo.” Fez uma pausa antes de concluir:
“Por isto, não podemos negar as sombras, pois abdicaríamos das valiosas virtudes. Sem
as virtudes restaremos incapacitados para seguir a travessia pelo deserto.”

“O ciúme, por sua vez, nos ensina muito sobre a maturidade do ser. O ciúme pode se
tornar o mestre ou o algoz do respeito, da liberdade e da dignidade. Qualquer tentativa
de domínio sobre o desejo alheio é um ato de desrespeito à liberdade e à dignidade do
outro e a você mesmo. Será preciso aceitar as escolhas alheias como atitude de respeito
às suas próprias escolhas. Sem respeitar a si não se respeita nada nem ninguém. Perde-
se o norte, o ânimo e o sentido da vida. Estaciona-se na infância da existência.” Falei que
eu mesmo estranhara a dimensão e o descontrole das minhas emoções naquele dia.
Confessei não ter me reconhecido. Acreditava já ter superado algumas das emoções
densas que tinham me dominado. Tornei a admitir a surpresa pelo meu descontrole que
quase me levou ao desatino. A mulher me lembrou de uma antiga lição: “Céu e inferno
são criações da sua consciência. Céu e inferno te pertencem. Acreditar-se além do mal
é um grande perigo. A cada dia, todos os dias, você terá de escolher aonde vai morar.”

Fez uma pausa antes de concluir: “O cerimonial do tambor deixou você com um vazio.
Aproveite a oportunidade para preenchê-lo com luz. Ou as trevas voltam a ocupar o
antigo templo.”

“Agora é contigo; é a parte que te cabe na arte da vida.” Levantou-se e me deixou


sozinho com o silêncio do deserto. Era preciso voltar para o acampamento. A festa pelo
trigésimo dia da travessia já tinha começado. Do alto da duna eu podia ver as pessoas
dançando, mas eu não ouvia o som das músicas. O vento soprava às minhas costas e
levava o burburinho da caravana para longe dos meus ouvidos. Ao retornar eu
encontraria com a Ingrid e o Paolo. Provavelmente dançando, felizes e aos beijos. Uma
situação fora do meu controle, que não me caberia nenhuma escolha legítima. Nem por
isto, e justamente por isto, eu não poderia me furtar da alegria pela vida. Quando a
escolha é do outro cabe a ele suportar ou levitar sobre os efeitos da própria decisão.
Assim também é comigo. Era hora de viver com isso. Era hora de superar os
condicionamentos ancestrais de domínio sobre a vontade dos outros para aprender a
ser digno e livre. Somente sendo digno e livre eu poderia viver em paz, ser feliz e amar
incondicionalmente.

Acreditar que eu sofria por que a Ingrid era indispensável à minha vida, por me
completar como mulher nenhuma tinha conseguido antes era uma ilusão. Se a
incompletude era minha, logo, cabia a mim completá-la sozinho, com virtudes que eu
ainda desconhecia. Somente assim me tornaria completo, inteiro e pleno. Era preciso
parar de transferir a responsabilidade sobre qualquer questão da minha vida para os
outros, sob o risco de continuar a viver inseguro, repleto de dependências emocionais.
Ninguém completa ninguém. Este é o engano que mantém a humanidade em longos
aprisionamentos de sofrimento e dor. O ciúme não é apenas resquício ancestral de
dominação, mas também uma absurda tentativa de preencher o próprio jardim com as
flores alheias. Quando faço isto deixo de ser as flores do meu jardim; a luz da minha
alma. Em verdade, eu me completo através da mudança do olhar, no exercício das
virtudes, na transformação do viver, na conquista por bens abstratos e intangíveis. Nas
plenitudes. Então compartilho com quem as queira e sigo adiante. Sem depender de
ninguém; sem autorização de ninguém. Livre, em paz, feliz, digno. Amando a mim, ao
mundo e a vida. Esta é a minha força; este é o poder do universo pulsando através de
mim.

Sentia-me pronto. Com o ego alinhado aos valores da alma retornei ao acampamento.
Violinos e sanfonas animavam a festa. Todos bebiam, comiam, dançavam e se divertiam.
Não demorou, encontrei com a Ingrid abraçada ao Paolo. Eles acenaram para mim. Ao
menor sinal do ressurgimento do ciúme o acalmei com os conceitos da luz com os quais
eu tinha firmado compromisso em mim há pouco. Essa luz passou a ser minha. Senti-me
pleno. Ofereci ao casal um sorriso. Não um sorriso qualquer, mas o meu melhor sorriso.
Eu estava sendo sincero, eles tinham o direito de estar juntos; eles tinham escolhido um
ao outro. De coração, eu desejei a eles o melhor da vida.

A resposta é imediata. Percebi a força da vida ainda mais forte pulsando em minhas
mãos; um poder oriundo da luz. Uma sensação maravilhosa de leveza e transcendência.
Eu sorria para todos na caravana, o meu coração sorria para mim. Uma bonita morena
de cabelos encaracolados, vestido vermelho e enormes argolas nas orelhas me olhou
faceira. As boas vibrações encantam e aconchegam outras almas na mesma sintonia.
Dançamos por toda a noite em volta da enorme fogueira que clareava a festa.

Em certo momento vi o caravaneiro. Ele me observava. Aproximei-me e o agradeci pela


reprovação que havia em seu olhar quando beirei às trevas. Falei que o seu olhar me
ajudou a retornar à luz. Ele sorriu e comentou: “A escolha é o mais precioso dom que
possuímos; também o mais perigoso. Em cada uma encontraremos as dores e as delícias
do deserto. A escolha é um instrumento primordial à criação, mas também a ferramenta
usada para a destruição. Confie na luz que traz em ti, porém não despreze a influência
das sombras. Da luz às trevas ou das trevas para a luz possui a distância de uma única
escolha. Apenas através delas se consegue completar a travessia. Aprender a construir
uma escolha é a mais pura arte do deserto.”

O trigésimo-primeiro dia da travessia – um voo sobre deserto

A travessia entrava em sua reta final. Um mês se passara. Restavam exatos dez dias para,
no quadragésimo dia, chegarmos ao maior oásis do deserto, onde eu pretendia
conhecer um sábio dervixe, sabedor de “muitos segredos entre o céu e a terra.” Tinham
sido dias tensos e intensos; dias atribulados, de muito aprendizado. Eram suficientes,
pensei. Desejei um atalho para chegar mais rápido ao destino desejado.
A festa da noite anterior não impediu a caravana de despertar antes do sol subir à linha
do horizonte. O acampamento foi desmontado e, sem demora, todos estavam
perfilados. Logo iniciamos a marcha. A manhã estava agradável. Uma brisa suavizava o
clima severo do deserto. Era hora de começar a interiorizar todas as valiosas lições
vividas naquelas areias para que a travessia se justificasse. Caso conseguisse, eu me
tornaria um homem melhor, além de ficar mais preparado para o encontro com o
dervixe. Pensei em como seria bom ter alguns dias calmos para a reflexão; de outro lado,
considerei sobre esta desnecessidade. Tudo aquilo vivido restava aprendido; os fatos se
impunham como lições. Não havia nada a acrescentar. Tornei a desejar, agora com mais
intensidade, que a última etapa da travessia fosse suprimida.
Foi quando um burburinho na caravana me chamou a atenção. As pessoas apontavam
para o céu. Um improvável balão sobrevoava o deserto. Seguimos em frente. Depois de
algum tempo ficou claro que o balão acompanhava a caravana. Quando paramos no
meio do dia para o habitual e breve descanso, o balão, após algumas manobras
circulares, aterrissou a pouca distância de onde estávamos. Dois homens
desembarcaram. Vestiam-se como os antigos aviadores do início do século XX. Outra
surpresa, eram gêmeos. Aproximaram-se. Ofereceram curtos passeios no balão. Foram
cercados por muitos viajantes, a maioria curiosa pelo inusitado. Fizeram muitas
perguntas, todas respondidas pelos irmãos, sempre de maneira educada. Os poucos
que, de fato, tinham vontade de fazer o passeio, desistiram ao saber do preço cobrado.
Era caro. Afastado, eu observava o movimento com interesse. Uma ideia me ocorreu.
Ponderei que a caravana estava repleta de peregrinos com o mesmo interesse de
conhecer o sábio do oásis. Se eu chegasse antes, maior seria a possibilidade de ele
aceitar me receber; mais tempo eu teria para conversar com o dervixe. Aguardei o
momento em que um dos gêmeos ficou sozinho para abordá-lo. Sem expor as minhas
reais intenções, falei que eu estava cansado da travessia e desejava apressar a minha
chegada ao oásis. Perguntei se me levariam até lá e quanto me custaria. O homem me
olhou profundamente por alguns instantes e disse que antes teria de conversar com o
irmão, pois a proposta era bem diferente da apresentada por eles.
Retornou depois de poucos minutos acompanhado do irmão. Disseram se chamar Dario
e Mário. Eram quase iguais fisicamente. Mário era mais calado; Dario, mais desinibido.
Além disso, Mário usava um lenço vermelho amarrado no pescoço; o de Dario era verde.
Nada mais parecia diferenciá-los. Dario disse que eles me levariam e propôs um valor
igual ao cobrado por um breve passeio aos demais viajantes da caravana. Comparados
os preços, me propunham um inegável bom negócio. Contudo, estranhei e perguntei a
razão da oferta. Ele explicou que o objetivo deles era visitar um amigo que foi morar no
oásis depois de casar com uma moça de lá. Portanto, se eu fosse com eles, ainda que
por um valor menor, seria um bom negócio para todos. Eu quis saber quando
chegaríamos. Dario disse que naquela mesma noite; Mario lembrou que dependeriam
do vento nos ajudar, um fator do qual não tinham controle. Dario falou que o vento
soprava ao nosso favor e deveríamos partir logo para não desperdiçar a oportunidade.
Mario me atentou sobre o meu camelo. Dario sugeriu que eu pedisse para um dos
encarregados o levar até o oásis. Argumentou que, inclusive, o animal seria útil para
distribuir melhor a carga levada pela caravana. Todos ficariam satisfeitos. Falei que eu
precisava pensar, pois era uma situação inimaginável há poucos minutos. Dario disse
que partiriam em instantes. Eu tinha que me decidir.
Olhei para os lados em busca do caravaneiro ou da mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli. Eu precisava de um conselho; eu queria ouvir uma opinião. Não os vi. Era a
oportunidade de encurtar a viagem. Uma travessia, embora rica de experiências, muito
atribulada. Eu estava esgotado do deserto. Lembrei de como eu desejara aquela
situação pela manhã. Tudo parecia se encaixar. O preço era bom, a chance de encontrar
com o dervixe cresceria bastante. O camelo ainda ajudaria a distribuir a carga da
caravana. Era o universo conspirando a favor. Tornei a procurar o caravaneiro e a mulher
de olhos azuis. Pareciam ter desaparecido. Eu teria que decidir sozinho. Os sinais
apontavam para uma inegável direção. Contudo, algo dentro de mim dizia para eu não
aceitar a oferta. De outro lado, eu não podia deixar que o medo me impedisse. Eu ainda
estava inseguro quanto a qual decisão tomar quando o Dario avisou que partiriam
naquele momento. O tempo para me decidir tinha encerrado. Ele me questionou, com
inegável sarcasmo, se eu aproveitaria a oportunidade única de voar sobre o deserto ou
“seguiria na areia com a manada”. Tive vergonha de parecer um tolo e de me arrepender
se recusasse a oferta.
Sem demora, tomei as providências sobre o camelo. Deixei acertado que eu o pegaria
no oásis. Embarquei no balão. Quando estava a poucos metros do solo, vi o caravaneiro
e a mulher de olhos azuis. Eles me olhavam. De maneira que eu mesmo não entendi
naquele instante, por algum motivo me senti envergonhado e desviei o olhar.
Em pouco tempo já tínhamos alcançado uma considerável altura. A sensação de voar
era inebriante e eu me senti poderoso. No entanto, algo em mim estava desconfortável.
A sensação externa de euforia não combinava com o sentimento interno de equívoco.
Ego e alma pareciam desencaixados. Pensei no fato de estar abdicando da travessia e
das eventuais lições inerentes a ela. Procurei afastar o pensamento. Disse para mim
mesmo que eu não podia deixar o medo atrapalhar a minha vida. Já havia aprendido
muito naqueles dias de caravana. Bastavam.
A primeira hora de voo foi fantástica. Eu voava enquanto os demais homens andavam
pelas areias. Uma inegável vantagem. Superioridade e poder. Considerei que eu era
merecedor de tamanha condição; regozijei-me por ter sido o escolhido das Terras Altas.
Quando finalmente senti a convicção de ter tomado a decisão correta, respirei fundo de
satisfação. Então, o vento mudou.
Percebi, pela posição do sol, que navegávamos em sentido oposto. Falei que estávamos
nos afastando do oásis. Mário explicou que as possibilidades de manobras com o balão
eram limitadas. O vento era determinante para manter o plano voo e nos permitir seguir
na rota pretendida. Os irmãos pouco podiam fazer. Dario alegou que naquela região o
vento mudava a todo momento, logo tornaria a nos colocar no rumo certo. À medida
que o tempo passava a tensão crescia. Desisti de qualquer comentário quando os irmãos
começaram a discutir. Falavam em um idioma desconhecido para mim. Eu apenas
olhava para o céu e rezava para os Céus não me abandonarem.
Passado mais algum tempo, o vento desmanchou a minha euforia inicial e a tensão se
transformou em medo. Os irmãos não mais discutiam, apenas trocavam palavras,
embora eu não as entendesse, percebia que não eram animadoras. A tarde avançava e
a noite não demoraria. Falei isto para eles. Mário e Dario apenas se olharam. O balão
começou a perder altura. Eles manobravam para isto. Até que pousamos na areia. Eu
não tinha dúvidas, aquilo era prenúncio de uma notícia ruim. Mário disse que eu devia
desembarcar. Perguntei se apenas eu desceria do balão. Dario confirmou a minha
suspeita. Explicou que o vento estava traiçoeiro e imprevisível, o que limitava as
manobras e tornava o voo perigoso. Precisavam ficar mais leves para navegar com mais
segurança. Tinham tomado a decisão para o meu bem; queriam me preservar. Não vi
motivo para agradecer. Dario explicou que com menos peso teriam melhores condição
para manobrar. Pedi para que um deles ficasse comigo. Mário disse que não, pois
precisavam de dois para pilotar o balão até o oásis. Então, pediriam para que viessem
me resgatar. Que eu não me apavorasse, pois era um fato corriqueiro. Argumentei que
ficasse um deles ali; como passageiro eu teria prioridade para seguir a viagem no balão.
Mário ponderou que as condições de voo estavam bem complicadas e eu nada conhecia
sobre como dirigir balões. Eu mais atrapalharia do que ajudaria. Juntos, os irmãos teriam
mais chances. Insistiram para que eu mantivesse a calma. Prometeram que não me
abandonariam. Ameacei não descer do balão. Mário jogou a minha mochila com roupas,
pertences, cantil e documentos na areia. Temei em não descer. Dario me mostrou o
coldre de um revólver sob o casaco. Pediu para eu não complicar. A prudência foi maior
do que a raiva. Desci.
Como um tolo, pedi o dinheiro que tinha pago por uma viagem cancelada. Dario disse
que eles não tinham culpa se o vento não colaborara. Irritado, gritei que o argumento
era absurdo. Mário lembrou que o dinheiro seria usado para pagar o meu resgate.
Assim, a viagem se completaria. Partiram. Fiquei olhando o balão até sumir ao longe. A
raiva voltou com intensidade, apenas amansada por eu me sentir um idiota.
O sol ainda me daria algumas horas de dia claro. Eu precisava pensar. Para tanto, era
necessário me acalmar para que as ideias fluíssem com sensatez. Sentei na areia. O
primeiro pensamento foi que eu estava sentado onde há poucos minutos me orgulhava
por sobrevoar. Sorri com amargura da lição de abertura. Deixei que a respiração
normalizasse. Fiz uma prece sentida por luz e proteção; eu sabia que precisaria muito
de ambas. Eu não acreditava no resgate prometido pelos irmãos. Um pouco mais calmo,
ponderei que, embora tivesse uma noção para qual direção seguir, tendo o sol como
referência, seria insensato sair dali, ao menos naquele momento. As razões eram
algumas. Poucos graus de diferença na direção poderiam me distanciar ao invés de me
aproximar do destino. Um cantil de água me daria sobrevida por dois, talvez três dias,
se parado; me restaria um dia, no máximo, andando no calor inclemente do deserto. De
outro lado, ficar parado na expectativa que algo de bom acontecesse, dava a sensação
de ter desistido da luta pela vida. Algo inadmissível para mim. Como a noite não
demoraria, decidi ficar ali até o amanhecer do dia seguinte. Então, decidiria se esperaria
ou seguiria na tentativa de encontrar alguma ajuda ou, ainda, alcançar a caravana, uma
vez que estaríamos na mesma rota rumo ao oásis.
Recostei-me em uma enorme pedra e comecei a meditar. Era a hora de usar o
conhecimento adquirido para que houvesse fundamento em sua busca. Para começar
eu precisava me esvaziar do medo e dos condicionamentos de impotência diante dos
infortúnios da existência. É preciso encolher antes de expandir. Era necessário abrir
espaço para as novas ideias, a criatividade, o inusitado e, principalmente, para virtudes
se manifestarem; isto me traria leveza e força. Humildade, prudência, firmeza, coragem
e fé. A meditação me ajudaria também a sincronizar o meu coração com o coração do
deserto, para que batessem em um mesmo ritmo, como um só coração. Assim, eu me
tornaria parte do deserto; o seu poder fluiria através de mim.
Enquanto eu meditava, era inevitável que me viesse a mente os episódios e as escolhas
daquele dia. Pela manhã, havia o desejo em suprimir a parte final da travessia na
arrogância de que eu já sabia tudo. Também influenciou o condicionamento
sociocultural por atalhos, sempre na tentativa de evitar o indispensável esforço pelo
verdadeiro crescimento. Além do vício por vantagens e privilégios. De como o ego,
quando ainda nos primórdios da jornada cósmica, se encanta por tais truques e se deixa
envolver pelas sombras. Não as sombras do mundo, porém as suas próprias sombras.
Egoísmo, orgulho, comodismo e medo eram as principais naquele dia. Em um primeiro
momento tentei afastar esses pensamentos para pensar em possíveis soluções para a
difícil situação na qual eu me encontrava. Contudo, lembrei de ter aprendido que as
feridas são as portas abertas por onde a luz entra, cura e revitaliza o ser. Evidentemente,
se eu assim permitir. Ou continuarão apenas como fontes turvas de negação, recalque,
amargura e sofrimento.
Abracei os fatos para analisá-los pelo viés da luz. Para tanto, era necessário ser justo.
Sem dúvida que os irmãos não tinham sido honestos comigo pela falta de clareza diante
de todas as possibilidades do voo. Todavia, pouco importava. Em verdade, o importante
era resolver o problema comigo mesmo. Isto é digno e libertador. Para tanto,
sinceridade é fundamental. O ego tinha que confessar à alma as suas verdadeiras
intenções, seja quanto às vantagens indevidas, seja em relação aos desejos insensatos.
Então, haveria uma chance para luz.
Ah, os desejos! Malditos desejos, pensei. “O problema não são os desejos, mas os
desequilíbrios pessoais que transfiro aos meus desejos”, uma voz soou dentro de mim.
Sim, eu conversava comigo mesmo. Não, não era loucura. Era a sensatez de colocar as
minhas metades para um diálogo franco. Ego e alma precisam se alinhar. O ego, quando
ainda na infância da vida, se move orientado pelos enganos das sombras. No fundo, as
sombras são mecanismos de proteção ao avesso. Elas concedem a ilusão de poder para
que não percebamos o quanto somos frágeis. Nascem do medo e da ignorância. O que
são o orgulho, a vaidade, a ganância, o ciúme, a agressividade? Não passam de grossas
cortinas para que ninguém descubra, em verdade, quem somos. Nem mesmo nós.
“A alma traz em si toda a luz do mundo”. Toda? “Sim, absolutamente”. Peguei um
punhado de areia e deixei escorrer por entre os dedos. O grão é parte do deserto; logo,
ele traz o deserto em si. Como parte do todo temos o todo em nós. Por isto os sábios
ensinam que cada um tem dentro de si as respostas para todas as perguntas; basta
aprender como as encontrar. Se é verdade, me questionei, por que fazemos tantas
escolhas equivocadas? Como temos tamanho poder se em diversas situações nos
sentimos impotentes? Qual a razão de tanta luz se muitas vezes tudo parece escuro e
nos vemos diante de um vazio abismal?
“Temos a luz em nosso DNA. Contudo, essa luz precisa ser acesa; esse poder,
adormecido na alma, necessita despertar. Depois, aprimorá-lo todos os dias para que
ilumine cada vez com maior intensidade. Este é fogo da criação em primeiro plano; o
fogo da transmutação em estágio intermediário; o fogo da evolução em essência final.”
Voltei aos desejos e o motivo de tanto cairmos em função deles. Eu estava abandonado
no deserto em razão dos meus desejos. Os problemas são os desejos ou serão os
sentimentos, ideias e intenções que estão encapsulados neles?
Oculto em cada desejo existe a vontade de me integrar ao mundo ou de possuí-lo? Ser
com ele ou me sentir dono dele? Virtudes ou sombras, quais os elementos que
constroem os meus desejos? Os tão desejados bens econômicos são objetivos finais ou
simples consequências da existência? Os maiores desejos se concentram em conquistas
abstratas ou materiais? Qual delas me é verdadeiramente tangível?
Perguntas, perguntas e mais perguntas. É preciso sempre buscar a pergunta certa.
Somente a pergunta certa me levará à melhor resposta. A cada resposta um pedaço de
mim. Aquelas eram as perguntas que me ajudavam a entender aonde cada desejo me
levou ou, se preferir, deixou de me levar. Desejos definem destinos; explicam muito
sobre quem sou. E quanto ainda me falta ser.
Desejos são fantásticos motores da existência. Impulsionam para o bem ou para mal. O
comando é pessoal e intransferível. A responsabilidade também.
Não há viagem maior nem mais bela do que aquela feita através do conhecimento sobre
si próprio; o voo em busca da plenitude. Anoiteceu. Embora sozinho no meio do deserto,
eu não me sentia abandonado. Aos poucos eu me tornava uma boa companhia para
mim mesmo. Ego e alma entravam em comunhão; encontravam harmonia em seus
propósitos de vida e sintonia de desejos. Percebi que o problema não eram os desejos,
mas a qualidade deles. Os desejos estão no campo das intenções. As intenções
alimentam os desejos, seja pelo poder das virtudes já sedimentadas, seja pela força das
sombras ainda dominantes. Assim os meus desejos me oferecem uma perfeita
fotografia da minha vida.
Ficou triste na foto? Troque os desejos.
Desejos nada são além de escolhas. A diferença é que os desejos se caracterizam por
escolhas sobrecarregadas pelas emoções densas de um ego desequilibrado. Porém, com
amor e sabedoria, podem aprender a levar a bagagem leve de um espírito livre.
Eu estava ali porque eu tinha escolhido estar ali. Entrei no balão por vontade própria e
desejos obscuros. Era preciso ser sincero comigo se eu quisesse avançar. Transferir a
responsabilidade aos irmãos criaria um empecilho, pois me deixaria aprisionado à vida
deles. A consciência da responsabilidade por minhas escolhas me conduz a maturidade
do ser. Com a maturidade vem a integralidade. Em seguida, as plenitudes. Uma estranha
e agradável serenidade permeou todo o meu corpo. Não quis pensar sobre em quão
difícil seria o dia seguinte. Quando acordasse teria tempo para isso. Queria aproveitar
aquela noite em total integração com o deserto. Ele tinha me ensinado muito sobre
mim; eu estava agradecido a ele.
Deite-me na areia. Fiquei observando beleza do céu salpicado de estrelas. Quando
estava quase adormecendo tive a sensação de que uma delas se movia. Cocei os olhos
por achar que era reflexo do cansaço. Fixei o olhar e notei a sua aproximação. Parecia
vir ao meu encontro. Quando chegou bem perto, uma surpresa. Repleto de lanternas, o
balão manobrava para aterrissar. Tive dificuldades para acreditar nos meus olhos. Mário
desceu e disse para eu embarcar. Pediu para eu me apressar, pois tinham que aproveitar
o vento favorável. Dario me cumprimentou com um movimento de cabeça. Levantamos
voo. Confessei que considerava uma opção improvável a volta deles para me resgatar.
Dario deu de ombros; disse que por ele, não voltariam. Porém, algo de novo deveria ter
acontecido, pois o deserto assim tinha ordenado. Diante das minhas feições atônitas,
Mário explicou que como eles viajavam com a permissão do deserto, ficavam sujeitos
às suas ordens. A princípio uma conversa de loucos, mas naquele dia fez todo o sentido
para mim.
Passados alguns momentos, vi um acampamento com inúmeras lamparinas e tochas
acesas. Era a caravana. Pedi para que eles me deixassem ali. Mário ponderou que
seguiam para o oásis, meu local de destino. Falou que era insensato. Insisti em ficar com
a caravana para completar a travessia através das areias do deserto. Poucas decisões
eram mais sensatas do que aquela. Expliquei que no deserto não há atalhos; que no
Caminho apenas se voa com as próprias asas.
Desembarquei. Agradeci a viagem e os vi tornar a subir pelos ares. A caravana dormia,
apenas os encarregados pela segurança estavam de sentinelas. Quando entrei no
acampamento vi o caravaneiro na ponta oposta, em cima de uma pequena duna. Ele
estava de pé, com os braços cruzados, como um guardião iluminado pelas estrelas. O
seu olhar sério estava fixo em mim. Fiz um gesto pedindo permissão para entrar. Ele
balançou a cabeça em anuência. Não tenho certeza, mas acho que vi os seus lábios se
arquearam em discreto sorriso. Peguei o saco de dormir e fui deitar a céu aberto. Olhei
para a noite do deserto e agradeci pelo voo daquele dia. O voo do corpo e da alma.

O trigésimo-segundo dia da travessia – a sabedoria do deserto

Acordei com os primeiros raios de sol da manhã lambendo o meu rosto. Sorri pelo
carinho recebido. Eu tinha dormido pouco nas noites anteriores; os dias tinham sido
intensos. Levantei bem-disposto. A minha alma estava alegre no caldeirão de
transformações que fervia em mim. Eu conseguia perceber as mudanças se
anunciando, mas ainda não conseguia definir como elas alterariam o meu
comportamento e, por consequência, a minha existência. Vivemos o que somos; o
quanto consigo ser limita ou expande o mundo. Esta é a fronteira da vida. A semente
de amor está disponível para todos; fazê-la germinar nos campos da alma depende
do fazendeiro que cada um já consegue ser. Quando me transformo muda a semente
que plantarei na próxima estação. Mesmo quando os frutos são de luz; difere a
intensidade, a clareza e o alcance. Defino a mudança das semeaduras vindouras não
por desejo, mas por escolha. Mas como diferenciar um desejo de uma escolha? A
escolha é uma vontade livre e consciente da alma, sem as contaminações do medo,
do egoísmo e das suas demais variantes. É a decisão de querer diferente por já ser
diferente. Não basta querer ser bom, é preciso ser bom. Não há nada de errado em
querer ser bom, faz parte dos degraus na escada da iluminação. Contudo, querer ser
bom é apenas um desejo. Ser bom é uma escolha.
Eu amava o deserto. Dei-me conta naquela manhã quando sentei na areia com uma
caneca de café para rezar, refletir e meditar, ainda que por poucos minutos. O
caravaneiro treinava o seu falcão. Há dias eu não acompanhava essa rotina. A ave
flutuava em círculos sustentada pelo ar; eu pensava nas coisas da vida. Eu queria ter a
leveza necessária para voar sobre as coisas do mundo, pensei.
“Os pássaros não voam por serem livres. Voam por determinismo biológico como
atributo da espécie. Não são melhores nem piores do que as serpentes que se arrastam
pelo chão. O leão é o rei da floresta apenas no imaginário popular. Porém, tudo que
existe pode apenas existir; pode também servir de inspiração para as poesias da vida. A
arte pode apenas ficar pendurada na parede de um museu; de outro lado, tem o poder
de acender o fogo no qual o caldeirão das transformações depura a essência de luz ainda
misturada e oculta pelos sabores das sombras. Os livros podem acabar devorados pelos
cupins em uma estante qualquer; podem, de outro lado, oferecer o fogo do
conhecimento no qual o caldeirão arde. Isto torna todas as coisas comuns; ou as faz
sagradas.” Disse a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli, ao se aproximar por
trás sem que eu percebesse. Sem pedir autorização, se sentou ao meu lado e prosseguiu.

“A metáfora das asas é destinada àqueles que conseguem sentir sensação de flutuar no
ar, mesmo diante da densidade planetária. As coisas do mundo não lhes são obstáculos,
mas funcionam como tochas que aguardam para arder em luz. O fogo manso do amor,
sereno da sabedoria e incansável da vontade. O fogo da transformação.”

“Um antigo cientista ensinou que ‘nada se perde, nada se cria; tudo se transforma.’ Ele
não falava apenas da química da matéria; também se referia a magia da vida. Contudo,
a sua frase mais famosa é apenas o início da lição. Falta ensinar nas escolas que para se
modificar algo é necessário passar por um processo, sem o qual não se chega a um
resultado satisfatório. Nada surge ou acontece por acaso. Indispensáveis são os
fundamentos e a preparação; em seguida, a experiência levada à termo. Aprender,
transmutar, compartilhar e seguir rumo à uma nova jornada são as etapas de um ciclo
evolutivo nascido de uma escolha. Não basta o mero desejo de fazer uma travessia. A
iluminação não será jamais um ato de orgulho, de vaidade, de medo, de egoísmo, de
emoções desequilibradas ou de fuga do mundo. Estas são motivações comuns aos
desejos.”

“Ninguém se ilumina por frequentar um templo, assistir um filme, tomar um chá,


conversar com um monge, ter um sonho ou uma intuição. Não se confunde a ferramenta
com a obra. A leveza do ser é uma escolha por estudo, exercício, esforço, persistência e
superação. Não basta ler, meditar, rezar e fazer o bem. É preciso mais; é necessário
entender, interiorizar, transformar a si mesmo como uma escolha equilibrada e
consciente; então, viver as mudanças do ser.”
“A escolha tem de estar compromissada com a evolução; tem a responsabilidade da
transmutação através das virtudes que compõem a luz. Ser leve é um atributo
conquistado pela alma quando despertada; disponível às consciências que alcançam as
plenitudes. As virtudes são o mapa, a bússola e as sandálias; no entanto, atravessar o
deserto é uma escolha. Todo o resto é desejo.”

Brinquei dizendo que ela parecia adivinhar os meus pensamentos. A mulher sorriu e deu
de ombros como resposta. Expus para ela as ideias que me envolviam naquela manhã.
Ela aprofundou: “Fazer o bem por temer uma viagem ao inferno não torna uma pessoa
boa, não é uma escolha. Mas somente um desejo impulsionado pelo medo. Fazer o bem
para se ter uma boa imagem de si ou perante à sociedade, também não é virtude.
Porém, vaidade.”

“Ser bom é compartilhar os frutos semeados nos campos da alma, na simples alegria de
oferecer aquilo que se tem de melhor. Amanhã um pouco diferente, um pouco mais.
Através de uma virtude qualquer contida em um gesto espontâneo; um ato de puro
amor. Por ser amor, nada se exige em troca nem se deixa contaminar pelo orgulho de
fazer o bem.”

“O amor é humilde por entender que apenas existe em si para ser indissociável ao todo.
Amar o outro como a si mesmo é entender que o outro é parte de mim; somos peças
únicas de algo em comum. Amo você porque amo a mim por inteiro. Se amo a mim sem
amar a você, o amor que há em mim ainda está incompleto. Ainda resta luz para
acender.” A mulher de olhos azuis me olhou e perguntou: “Complicado?”

Respondi que um pouco. Fiquei esperando para ela explicar melhor, mas ela não o fez.
Para minha surpresa, a mulher se levantou. Antes que ela saísse, indaguei se o segredo
para a plenitude era compartilhar o melhor de mim com o mundo. Ela disse: “Não, isso
é a consequência natural de um ser pleno. Distribuir os frutos é primordial para que os
campos da alma se fertilizem e continuem prósperos. No entanto, é apenas a fase
posterior.” Como ela era envolvida em mistérios, fiquei aflito que ela se fosse antes de
dirimir as minhas dúvidas. Eu precisava saber qual era a etapa inicial. Antes que eu
perguntasse, a mulher parou, se virou e falou ao seu jeito: “É preciso apurar o sabor do
fruto para si e, depois, o gosto do doce para o mundo.”

E concluiu de maneira enigmática: “O caldeirão que depura a alma tem que ser mantido
no fogo da luz. Você será sempre um resultado de si mesmo. A cada estação um ser
diferente. Você vai ao mundo e volta ao caldeirão. De lá, uma novo ser. Sempre melhor.”
Fez uma pausa antes de concluir: “Ou não conseguirá caminhar nas terras mais elevadas
das escolhas, mantendo-se nas planícies dos desejos.” E se foi.

Fiquei um tempo em reflexão. Eram palavras que me impulsionavam a pensar, no


entanto, tive dúvidas se eu as tinha entendido em toda a sua extensão. Arrumei as
minhas coisas e logo a caravana estava em marcha. Seguimos sem fazer a usual parada
no meio do dia para um breve descanso e uma refeição ligeira. Era preciso chegar cedo
a um lago para nos abastecer com água, onde também acamparíamos para passar a
noite. O dia transcorreu tranquilo. Ao final da tarde chegamos ao lago.
Tinha sido um dia bem calmo, sem acontecimentos agitados, ao contrário dos demais
dias. Afastei-me do burburinho do acampamento. Eu precisava de quietude e solidão.
Sentado na areia, refletia sobre as palavras da mulher de olhos azuis. Se repartir o
melhor de mim era consequência da plenitude, qual seria o ato gerador desse efeito?

“A pura sabedoria permanece oculta no tempo, atrás das pesadas cortinas fechadas
pelas sombras.” Era a mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli, mais uma vez me
surpreendendo com a sua chegada inesperada e repentina. Falei que eu não tinha
entendido. Ela explicou: “Toda a sabedoria se resume ao se aprofundar nos dois
mandamentos primordiais do Livro Antigo. ‘Ame a Deus acima de todas as coisas. Ame
as outras pessoas como a si mesmo.’” Deu de ombros e concluiu: “Todo o resto é apenas
comentário.”

“Todos os livros escritos desde tempos imemoriais são explanações, ilações e versões
romanceadas extraídas dessa sabedoria primordial e absoluta, ensinada pelos antigos
sábios durante a travessia no deserto.”

Protestei. Argumentei que aquelas poucas palavras não eram suficientes para iluminar
a vida de ninguém. Pareciam-me inalcançáveis e subjetivas. Confessei que eu precisava
de explicações mais claras. Ela sacudiu a cabeça como quem diz que eu não tinha jeito
e disse com bom humor: “Nem que atravessasse o deserto mil vezes você seria capaz de
entender.” Em seguida teve paciência para me explicar: “Outros sábios já tentaram
facilitar esse entendimento para a humanidade, que insiste em não se interessar.
Sócrates alicerçou toda a sua filosofia no primeiro mandamento, ‘amar a Deus acima de
todas as coisas.’” Contestei. A filosofia socrática se baseava na frase insculpida no portal
de pedras da Ilha de Delphos: “Conheça a si mesmo e conhecerá a verdade.”

Nada tinha a ver com o ensinamento bíblico. O filósofo grego ressaltava a importância
do autoconhecimento, insisti. A mulher abriu os braços e disse: “Não percebe que eles
falavam a mesma coisa através de um discurso diferente, cada qual alinhado ao seu
tempo?” Diante do meu olhar atônito, ela prosseguiu: “Quando Sócrates aconselha a
conhecer em si mesmo, ele orienta a duas coisas básicas. A primeira é mergulhar
profundamente no oceano da própria essência. Encontrar consigo para ter um discurso
coerente e consciente quanto à própria realidade. Aceitar as sombras para ter condições
de buscar a luz.”

“Revelar a si e se transformar na luz são as consequências do mergulho essencial. O


indivíduo descobre que todo o universo está dentro dele. Ali reside todo o poder de
transformação. Perguntas em respostas; sombras em luz; conhecimento em evolução.
Toda a verdade, poder ou força que alguém precisa está dentro de si, adormecida, a
espera de ser despertada; pronta para se iluminar ou movimentar a vida. A luz se acende
aos poucos, à medida que você avança no deserto. O mundo é o mapa de volta para
casa. É preciso entender a si mesmo para entender o mundo; é preciso amar a si mesmo
para amar o mundo. Da margem ao eixo. Depois, em sentido contrário, de dentro para
fora. O ser é o caminho que ele próprio percorre até a luz.” Fez uma pausa e concluiu:
“O ser é a estrada da alma; a luz é o seu poder e o seu destino. Deus o aguarda ali; Ele
habita em você.” Olhou-me com delicadeza e falou: “Conhecer a si mesmo é a
verdadeira travessia do deserto. A cada passo um pouco mais de luz em você. Quando
radiante em luz, a verdade.”

Eu estava desconcertado com aquelas palavras. Contudo questionei do risco de me


sentir egoísta, vaidoso, orgulhoso e arrogante pelo motivo de descobrir que Deus está
mim. “Não. As virtudes são os pilares da ponte que o levará até a luz; a sustentação é
sutil. Na possibilidade da menor sombra, ela ruirá. Para fazer a travessia é necessário a
leveza das virtudes impulsionando o ser. A ponte que leva à luz não suporta o peso de
qualquer densidade.”

“Contudo, para afastar definitivamente esse perigo e, mais importante, colocar em ação
os valores do autoconhecimento, algum tempo depois do filósofo grego, veio o mestre
nazareno com a indispensabilidade do segundo mandamento, ‘ame o próximo como a
si mesmo.’ Ele nos orientou à autorealização, ao uso das virtudes como instrumento da
luz. Mostrou o valor do abstrato sobre o concreto; o poder infinito do amor e a realidade
no invisível; a luz como antídoto para as sombras. A beleza de transformar o deserto do
mundo através das flores que germinam nos jardins da alma. Apenas a luz permanece
tangível enquanto tudo que é sólido se desmancha no ar.”

“Pela dificuldade que temos em acreditar na possibilidade de viver o segundo


mandamento, ‘ame o próximo como a si mesmo’, ele nos mostrou a sua importância e
necessidade: ‘Conheça a verdade e a verdade o libertará’. Com esse imprescindível
ensinamento, Jesus, o mestre das virtudes, orienta a usá-las como ferramentas da
verdade para abrir as grades emocionais que aprisionam a alma; como remédios para
curar as feridas que sangram em mágoas. Todas as dores da alma surgem de nossos
relacionamentos com os outros. Todas, sem exceção. Logo, preciso me pacificar com o
mundo para encontrar a paz em mim. Para tanto, indispensável é o amor. A plenitude
ocorre após o grande encontro. De si com si; ali, a luz. Nela, a verdade. A verdade fala
da dignidade, da liberdade, da paz, da felicidade que procuramos no mundo, mas apenas
encontraremos dentro de nós. Desde que haja amor. Na plenitude está a libertação.”

A mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se calou por breves instantes e repetiu, para
a minha surpresa, o mesmo raciocínio que tinha exposto pela manhã: “O amor é humilde
por entender que apenas existe em si para ser indissociável ao todo. Amar o outro como
a si mesmo é entender que o outro é parte de mim; somos peças únicas de algo em
comum. Amo você porque amo a mim por inteiro. Se amo a mim sem amar a você, o
amor que há em mim ainda está incompleto. Ainda resta luz para acender.” A mulher
me olhou profundamente e tornou a repetir a pergunta: “Complicado?”

Agora, ao contrário do que ocorrera mais cedo, tudo estava claro. “Ame os outros como
a si mesmo” e “Conheça a verdade e a verdade o libertará” não eram lições que se
completavam, porém, a mesma lição que se explicava. Conhecer a mim mesmo para ser
capaz de me amar por inteiro, sem subterfúgios, compromissado com todas as fases do
processo evolutivo. Ali, no caldeirão que arde no fogo da luz, na depuração do ser rumo
à libertação, em etapa essencial, está força do amor, que apenas atinge todo o poder
quando envolve o outro como a mim mesmo; o fim das prisões sem grades. A luz
absoluta; a libertação plena.
Ela prosseguiu me mostrando que as palavras proferidas pela manhã explicavam o
ensinamento oferecido ao entardecer: “Encontrar a luz em si faz surgir as asas; aprender
a voar é um atributo da alma. Iluminar o mundo com o seu o voo se tornará um destino
inevitável.”

“‘Amar a Deus sobre todas as coisas; amar os outros como a si mesmo.’ Este é o resumo
da lei ditada há milênios durante uma longa travessia no deserto.” Fez uma pausa antes
de concluir: “‘Conheça a si mesmo e conhecerá a verdade’; ‘Conheça a verdade e a
verdade o libertará.’ É a releitura da mesma lição.”

“Conhecer a si mesmo para ser pleno; eis a verdade em síntese e o poder em essência.
Ser todo para ser com todos; o sentido, a razão e a força da luz. Todas as estrelas em si;
o poder do universo manifesto em suas mãos.”

“Todas as lições em uma. A verdade do deserto.”

Sem dizer mais palavra, a mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se levantou e saiu.
No deserto, mesmo nos dias em que nada acontece, tudo acontece. Os dias calmos
também são bastante intensos. Vi quando a mulher subiu no alto de uma duna. Tendo
o deserto como salão, dançou com as estrelas.

O trigésimo-terceiro dia da travessia- o Estranho do deserto

Não acordei bem. Uma insatisfação se fazia presente. Em geral desperto bem-
humorado, sem que precise de qualquer esforço para me sentir otimista em relação à
vida. Sempre fui assim. No entanto, tinha dias que um azedume invadia as entranhas e
predominava nas sensações. Não havia necessidade de ter acontecido algo em
particular para que eu me sentisse assim. Era esporádico. Acontecia às vezes sem que
eu conseguisse identificar a origem do mal-estar. Antes do café, me afastei para a minha
prece e meditação diária. Eram poucos, porém, importantes minutos dessas duas
práticas, as quais eu não dispensava. A meditação me permite encontrar e conversar
comigo; o outro que me habita. Me conhecer melhor e entender as mudanças que me
são necessárias. A prece me conecta com os meus mestres e guardiões pessoais do
plano invisível, os quais todos temos. Ocorre que nesses dias em que eu acordava mal,
era comum situações de incômodas memórias insistirem em se intrometer em minha
mente para atrapalhar, seja a prece, seja a meditação. E isto me deixava ainda pior, com
a sensação de não ter completado uma tarefa.

Naquela manhã, a falta de concentração me fez demorar um pouco mais do que de


costume em minhas práticas diárias. O café já estava frio quando cheguei na tenda que
servia de refeitório. A caravana levantava o acampamento para partir. A insatisfação
comigo mesmo ou com a vida, eu não sabia exatamente identificar, embora fosse a
mesma coisa, aumentou. Na formação em fila, quem voltou a emparelhar o camelo ao
meu lado foi Abdul, o médico com quem eu conversara há dias. Ele sorriu e fez um aceno
com a cabeça. Cumprimentei-o da mesma maneira. Seguimos sem dizer palavra por
algum tempo. Abdul, com os olhos fechados, parecia rezar. Fiquei prestando atenção no
médico mulçumano. Quando ele abriu os olhos, perguntei se, por vezes, incômodas
memórias invadiam a sua mente durante a oração. Abdul admitiu e explicou: “São
situações que já estamos aptos a lidar e prontas para serem pacificadas no coração. Um
dos aspectos da plenitude é a possibilidade de visitar todo o seu passado sem qualquer
sofrimento, mágoa ou vergonha. Quando uma memória se tornar recorrente, abrace-a
como a um filho que volta para casa após uma briga; faça as pazes com ela. É a sua
consciência em expansão que já está pronta para a superação daquele fato doloroso.
Ilumine-o para sempre dentro de você.”

Aquelas palavras me tocaram. Fiquei algum tempo em reflexão sobre elas. Adiante,
decidi por quebrar o silêncio e o perguntei sobre qual aspecto a medicina mais o
fascinava. Ele respondeu sem pestanejar: “A cura.” Falei que todos os médicos eram
assim. Abdul sacudiu a cabeça em negativa: “Há os magistrados que amam a profissão,
existem aqueles que amam a justiça. Estes estão em outro patamar. Há os médicos que
adoram a medicina; existem os curadores.” Fez uma breve pausa e concluiu: “Quero me
fazer crer que pertenço a estes últimos ou terei desperdiçado a melhor parte do meu
dom.” Em seguida tornou a abordar a minha pergunta: “Nos últimos anos tenho me
dedicado ao estudo do inconsciente.”

Falei que não entendia a razão de tanto fascínio pelo inconsciente para quem se dedica
à cura. O médico me alertou: “É o inconsciente que traz as difíceis memórias que tanto
sofrimento causam. Aprender a usar o inconsciente é fundamental à integralidade do
ser. Contudo, por ignorância, temos por hábito tratá-lo como a um sótão poeirento onde
guardamos aquelas coisas que não sabemos o que fazer com elas em casa. Porém, o
inconsciente é bem mais do que isto. Como uma parte viva e atuante do ser, ele irá
sempre se manifestar de acordo com o tratamento que receber. Adoentado por
abandono, pedirá por cura. Quando saudável, será um importante aliado para a
expansão da consciência.”

Confessei que tinha dificuldade em entender. Abdul se esforçou para me explicar: “O


cérebro é como um iceberg. O consciente é a parte que fica visível, acima da linha
d’água. No entanto, é a sua menor parte.” Em seguida, resumiu a base do seu raciocínio:
“Portanto, ao abandonar o inconsciente abdicamos do nosso potencial absoluto;
vivemos menos do que somos.”

“No inconsciente está o imponderável de nossas capacidades”, afirmou. Pedi para ele
aprofundar. Abdul foi generoso: “Abaixo da linha d’água está oculto muito do que
somos, mas não percebemos. Nem por isto deixa de fazer parte de quem somos. As
frustrações que negamos; as decepções que sangram, mas fingimos ignorar; as revoltas
que reprimimos sem conseguir pacificar. Situações que tentamos aprisionar para que
não venham à tona, pois incomodam. No entanto, somos um todo. É uma ilusão
acharmos que temos um sótão para esconder os incômodos da alma para sempre.
Podemos nos esforçar para esquecer essa preciosa parte do ser, mas ele nunca deixará
de se manifestar, ainda que sorrateiramente, na alteração de uma reação involuntária
qualquer, ou em manifestações incontroláveis de tristeza e agressividade.” Olhou o
deserto ao longe e disse: “Temos mais do inconsciente em nossas atitudes do que
imaginamos.”
“Não há como falar em expansão de consciência sem trazer o inconsciente à tona, sem
fazer com que ele se integre de maneira equilibrada e harmoniosa ao consciente. É
fundamental que o inconsciente se manifeste em luz, acima da linha d’água. Afinal, o
inconsciente não guarda apenas problemas; lá também se oculta uma poderosa fonte
de soluções. A criatividade é um dos bons exemplos. Os artistas devem agradecimentos
sinceros ao inconsciente por suas obras”, lembrou.

“Toda expansão é uma viagem ao desconhecido. O inconsciente, à medida que for


compreendido, sem pressa nem atropelos, sem medo nem preconceitos, porém com
simplicidade e equilíbrio, nos protegerá e iluminará, ampliando as possibilidades de ser
e de viver.”

“O inconsciente é uma jornada muito além das fronteiras do atual conhecimento


científico.” Fez uma pausa e seguiu com a explicação. “Nele trazemos os
registros akáshicos, onde ficam guardadas as memórias de existências ancestrais,
facilitando o entendimento dos carmas, situações experienciais relativas ao
aprendizado pessoal.” Interrompi para dizer que aquilo não era medicina. Abdul
explicou: “É espiritualidade. A medicina sempre bebeu nesta fonte de águas claras, que
está muitos degraus acima. Como um rio cuja nascente está nas montanhas, as águas
da vida usam desse desnível para se movimentar rumo aos mares da existência.”

Pedi para ele falar mais sobre o assunto. Abdul o fez com boa vontade: “O consciente
trabalha de maneira linear, como se o pensamento fosse uma reta com começo, meio e
fim. Bem diferente, o inconsciente funciona de modo quântico. Por isto permite navegar
tanto aquém da memória desta existência, em mares ancestrais, como além da
realidade aparente, em oceanos futuros de imponderáveis curvaturas que ainda não
conseguimos explicar, como as premonições que, por ventura, ocorrem. Saltos para trás
e à frente, por vezes, simultaneamente. Sigmund Freud, o neurologista austríaco,
criador da psicanálise, em certa ocasião admitiu que ‘o inconsciente é atemporal’.”

Declarei ao Abdul que as suas palavras me encantavam, contudo, me enchiam de


vontade em saber mais. Perguntei como eu podia a acessar o inconsciente: “Meditação,
oração ou terapia”, respondeu. Nesse momento veio a ordem para a caravana parar.
Era o momento do habitual descanso diário. O médico pediu licença, pois precisava ver
algumas pessoas que não se sentiam bem. Prometeu que continuaríamos aquela
conversa sobre o inconsciente em uma próxima ocasião. Peguei o cantil e algumas
tâmaras secas; me afastei. Eu precisava pensar em tudo aquilo. Quanto dos meus dias
azedos não tinham ligação com o inconsciente que pedia por atenção? O quanto das
minhas reações agressivas ou as sensações de tristezas, ambas aparentemente
intempestivas e incontroláveis, nada mais eram do que uma parte renegada de mim,
por mim, querendo o seu justo quinhão em minha vida e desejosa por mostrar o seu
valor e utilidade? As ideias criativas e geniais, além das boas soluções surgidas
repentinamente, teriam agora uma coautoria assumida?

Eu estava envolto em os meus pensamentos, quando percebi um andarilho que se


aproximava, solitário, ao longe. Parecia vir de lugar nenhum em minha direção. Quando
chegou bem perto, notei que não trazia bagagem; nem mesmo um cantil, para o meu
total espanto. Embora castigadas pelo vento e pelo sol, as suas feições rudes mostravam
uma certa beleza; uma beleza melancólica. Ele me pediu um pouco de água. Estendi o
cantil em suas mãos. Foi um gole demorado, como quem há muito o desejava. Ofereci-
lhe um punhado de tâmaras. Ele pegou apenas uma. Fechou os olhos ao colocá-la na
boca. Saboreou a fruta com uma satisfação desconhecida para mim. Aquela tâmara me
pareceu bem mais do que uma tâmara.

Perguntei quem ele era. “Ninguém”, ele respondeu. Diante do meu olhar atônito,
complementou: “Mas posso ser quem você quiser”. Falei que ele era estranho. Ele sorriu
com timidez, como quem se reconhece em um elogio involuntário e concordou: “Sim,
Estranho é um bom nome.”

Eu quis saber aonde ele ia. “A lugar nenhum; a todos os lugares”, falou. Deu de ombros
e acrescentou: “Depende.” Falei não entender ao que se referia. O Estranho se explicou,
não menos enigmático: “Depende de para onde o vento soprar.” Em seguida,
prosseguiu: “Hoje o vento me trouxe até você.” Perguntei o que ele queria comigo. O
Estranho apenas tornou a dar de ombros.

Ficamos algum tempo sem dizer palavra. Considerei levantar para me juntar à caravana.
No entanto, algo me manteve ali. O Estranho, de alguma maneira, me trazia um fascínio
que, naquele momento, embora inegável, eu não conseguia explicar; embora alguns
sentidos me alertassem do perigo, outros me diziam para eu ficar. O Estranho apontou
para um conjunto de dunas não muito distante. Pareciam formar, entre elas, uma
espécie de corredor ou alameda. Ele me convidou a percorrer com ele o que denominou
“viés desconhecido do deserto”. Confessei o meu receio. O estranho revelou: “São as
entranhas do deserto. Não é sempre que o deserto nos permite conhecer o seu âmago.
Atravessar o deserto e recusar esse convite é desprezar a melhor parte, o todo e a arte.”

O estranho se levantou e me deu a mão. Deixei-me conduzir. No início eram apenas


paredes de areia. Dobrávamos à esquerda e a direita de maneira que me senti como em
um labirinto. “Sim, é um exato labirinto”, disse o estranho como se lesse o meu
pensamento. Tornei a admitir que sentia medo; confessei a vontade de sair. Ele explicou:
“Temos que prosseguir. O medo do que está à frente impede a cura do medo que ficou
atrás. É uma ilusão acreditar que a saída do labirinto está nas bordas. Em verdade, a
porta nos aguarda no miolo.”

A intuição de seguir foi mais forte do que o instinto de fugir. Aos poucos, na medida dos
passos dados, as paredes de areia começaram a formar imagens, como se fossem
gigantescas telas. Como em um filme fantástico, repleto de efeitos especiais, os grãos
de areia se mexiam para formar personagens e cenas. Vi um garoto ser duramente
repreendido por tirar uma nota baixa em matemática. Fracasso e vergonha o
dominaram. Parei; aquela cena não me era desconhecida. Reconheci-me no garoto, no
seu sofrimento por se sentir incompreendido em sua dificuldade em lidar com números
e fórmulas. Naquele instante fiz uma óbvia conexão com a minha aversão em conviver
com novas tecnologias, como se a cada necessidade em aprender a usar uma nova
máquina fizesse arder em mim uma ferida que eu nem mais lembrava. Ou,
estranhamente, acreditava que não.
Vi um adolescente perdido diante da separação dos seus pais. Como se sentiu
desamparado por uma família que não conseguiu lhe ofereceu a estrutura necessária
para o orientar diante da vida adulta que se avizinhava. E como isso o deixou inseguro e
influenciaria, sem que aquele jovem percebesse, todos os seus futuros relacionamentos
afetivos. Uma insegurança que deixou sequelas. Não era caso de distribuir culpas, mas
de procurar por tratamento e cura. Percebi algo de familiar naquelas imagens. O quarto
onde o adolescente chorava escondido era o meu próprio quarto. Sim, eu era o
adolescente do filme. Falei ao Estranho que achava estranho em me ver ali, pois não
lembrava de ter sofrido na separação dos meus pais, então, uma situação bem resolvida
na minha cabeça. Em resposta, o Estranho me ofereceu um sorriso repleto de
compaixão.

Assustei-me ao ver uma cena violenta, como em um filme de época. Um escravo, após
ter assassinado a esposa do seu proprietário, ateou fogo nas plantações da fazenda.
Perseguido e capturado, foi açoitado até a morte pelo viúvo inconsolável. Embora em
corpos diferentes, algo em mim me trazia a convicção de que se tratava de mim e do
meu irmão. Vidas entrelaçadas em uma existência no passado? Será que isso explicava
a animosidade que nutríamos um pelo outro desde o berço? Será que era uma das
batalhas que eu precisava pacificar através do amor? Olhei para o Estranho. Ele abaixou
os olhos em resposta.

Assisti a muitas outras imagens. A cada cena era a exigência por um tratamento a
sofrimentos que eu negava, oprimia ou recalcava. Porém que me faziam reagir
desmedidamente em agressividade ou tristeza, a depender do momento. Eram
situações pretéritas que ainda me impediam algumas importantes transformações e,
por consequência, atrasavam a minha jornada evolutiva e a conquista das plenitudes.
Percorrer o labirinto era como a uma terapia de cura e de pacificação do ser. Vi refletido
nos olhos do Estranho a parte mais insólita do deserto; a parte da luz e da vida não
percebidas por mim. Em mim.

Tudo aquilo tinha me deixado esgotado. Falei que não conseguiria prosseguir naqueles
corredores de areia com as suas imagens estranhas e terapêuticas a um só tempo. O
Estranho apontou com o queixo uma porta. Sem me dar conta, eu havia chegado ao
âmago do labirinto. Ele disse: “Atrás da porta está saída. Basta abrir e atravessar”. Com
as minhas últimas forças empurrei a porta. Ela estava fechada. Procurei pela maçaneta,
em vão. Não tinha maçaneta. Atônito, olhei para o Estranho em busca de uma solução.
Ele, sem pronunciar qualquer som, apenas movimentou os lábios em palavras: “A
senha”. De joelhos, abri os braços em desespero, eu não sabia do que ele falava;
ninguém tinha me fornecido nenhuma senha. Ele apenas olhava para mim, como se na
luz dos seus olhos estivesse a resposta. O impasse demorou um tempo que não sei
precisar; tive a sensação de uma eternidade. Vi o mundo na luz dos seus olhos; vi
tristezas e alegrias; vi a infinitude da vida. Até que percebi haver amor em seus olhos;
muito amor. Sim, o amor é uma chave-mestra a abrir todas as portas. Foi quando, “do
nada”, uma ideia me ocorreu. Uma ideia simples e genial. Olhei para a porta e pronunciei
com todas as letras, e de todo coração, que eu me perdoava assim como perdoava a
todos que me tivessem ofendido.
A porta se abriu. Apaguei de cansaço.

Quando abri os olhos o céu estava salpicado de estrelas. Ao meu redor, no


acampamento iluminado por lamparinas e tochas, a caravana se preparava para dormir.
Abdul ajoelhado ao meu lado, apoiava a minha nuca em suas mãos e me ofereceu um
pouco de chá. Explicou que era medicinal. Ele quis saber como eu estava. Respondi que
sentia uma estranha leveza. Perguntei pelo Estranho. O médico disse não saber a quem
eu me referia. Eu quis saber quem tinha me tirado dos corredores de areia. Abdul
sacudiu a cabeça e explicou que inexistiam corredores de areia: “Na parada no meio do
dia alguma coisa aconteceu que você ficou com febre alta e entrou em transe. Você fez
o resto do percurso de hoje como em delírio, falando frases desconexas e estranhas”.
Olhei para as estrelas. Pedi desculpas pelo trabalho e agradeci os cuidados. Ele disse
para eu não me preocupar. O médico se mostrou sinceramente feliz por eu me mostrar
saudável. Agradeci também pela conversa que tivemos naquela manhã, pois seria de
enorme valia em minha vida. Abdul sorriu e se foi.

Sozinho, tornei a olhar às estrelas. Percebi alguém se aproximando. Não, não era o
Estranho, embora estranhamente, agora, ele me parecesse íntimo e fosse bem-vindo.
Era a mulher com olhos da cor de lápis-lazúli. Ela sorriu ao me ver bem. Pela primeira
vez fez um breve carinho em meus cabelos. Depois, com a uma pequena harpa tocou
uma melodia doce e suave. Perguntei pelo Estranho. Ela explicou: “O Estranho sempre
esteve em você. No entanto, por distanciamento, era apenas um estranho. Não é mais.
Aproveite a sua companhia; é um importante aliado.” Perguntei se ela se referia ao meu
inconsciente. Ela sorriu e balançou a cabeça em anuência. Em seguida, concluiu: “Este
foi apenas um dos diferentes encontros que cada um tem que ter consigo para que a
travessia se complete. Agora você conhece os corredores de areia, sabe onde está a
porta e como ela se abre. Outros encontros se farão necessários.” Sorri em
agradecimento pelo entendimento permitido. Ela finalizou: “Agradeça ao deserto pela
permissão. Um merecimento simples, porém de incomensurável valor e poder.”

Voltou a tocar a sua harpa. Sem perceber, adormeci

O trigésimo-quarto dia da travessia – a cruz

Acordei bem-disposto. E tarde. O caravaneiro já retornava com o falcão pousado na


grossa luva de couro do braço esquerdo quando enchi uma caneca com café fresco na
tenda que servia de refeitório. O acompanhei com o olhar. Ele entregou o pássaro aos
cuidados de um encarregado e remexeu nas suas coisas em busca de algo. Já tinha me
chamado atenção o fato de o caravaneiro carregar tão poucas coisas na sua bagagem.
Poucos na caravana levavam um alforje tão leve. De quanto eu menos precisar mais livre
serei, era um ensinamento que, pelo visto, ele cumpria à risca. Aproximei-me. Como ele
olhou sem fazer objeção, me encorajei a chegar mais perto. Comentei sobre a minha
observação. Ele disse: “As desnecessidades sobre as coisas do mundo são fatores que
ajudam e sinalizam a conquista da liberdade por evitar as relações de dependência.
Contudo, não basta. Pois posso estar além dos cárceres da matéria, mas aprisionado nas
esferas das emoções. A liberdade é um estado por inteiro do ser. Uma conquista
profunda”, com a mão fez no ar um traço na vertical, “E ampla”, e desenhou outro traço
na horizontal. Uma cruz. Não entendi a razão do gesto.
Ele se virou e voltou a se concentrar no que estava fazendo. Continuei de pé ao seu lado.
Falei que eu tinha relação de amor e ódio com o deserto. A cada dia me era permitido
uma lição. No entanto, às duras penas. O caravaneiro olhou para mim e aconselhou:
“Quando o deserto estiver por demais inóspito, se deixe encantar pela luz das estrelas.
Contudo, não se satisfaça com elas a ponto de esquecer de prosseguir na travessia.” E
tornou a se virar. Acrescentei que percebia que o deserto era a metáfora da vida; a
travessia representava os percalços e as delícias da existência de todos nós. O
caravaneiro continuava agachado revirando os seus pertences. Ele voltou a me olhar e
disse: “Uma flor traduz todo o universo e as manifestações da existência. Mesmo assim
continua sendo apenas uma flor”. Comentei que das duas, uma. Ele não tinha entendido
a minha observação ou eu não havia compreendido a sua resposta. O caravaneiro pegou
a bússola que procurava, fechou o alforje, se levantou e disse: “A travessia não é apenas
o deserto” e tornou a fazer o movimento horizontal com a mão, “Mas também é as
estrelas” e fez a linha vertical no ar. A cruz, de novo. Prosseguiu: “Entenda algo, um
assunto, um conceito ou a si mesmo. Mas, principalmente, entenda que nada restará
limitado na fronteira da sua percepção, salvo você próprio.” E saiu.

Fiquei pensando nas palavras do caravaneiro enquanto esvaziava a caneca de café. Eu


estava atrasado. Arrumei as minhas coisas no alforje e aprumei o camelo na fila para a
marcha de mais um dia. Quem alinhou ao meu lado foi um europeu. Um homem que eu
já conhecia de vista, como todos naquela altura da travessia, mas com quem eu nunca
conversara. Julius, como se chamava, era muito gentil, simpático e educado. Uma
pessoa bastante agradável de conviver. Sem demora, puxou assunto. Perguntou sobre
a minha atividade profissional. Respondi-lhe. Ele mostrou interesse em saber sobre a
agência de propaganda. Fez vários questionamentos sobre o funcionamento. Ele quis
saber se a travessia tinha algum intuito comercial. Falei que não; apenas me interessava
conhecer o sábio dervixe, “conhecedor de muitos segredos entre o céu e a terra.” Ele
nada perguntou sobre isto. Em seguida, revelou que era mercador de remédios. Tinha
feito fortuna como representante dos principais laboratórios da Europa nos “confins do
mundo”, como se referiu aos lugares pelos quais viajava oferecendo os medicamentos.
Viajava ao oásis à negócio. Falou que era um privilegiado, pois tinha a oportunidade de
conhecer os lugares mais insólitos do planeta, onde os outros representantes se
recusavam a ir. De sobra, ficava rico enquanto se divertia e aproveitava a vida.
Enriquecia com dinheiro e histórias, fez questão de acrescentar. Contou a experiência
vivida no ano anterior em um campo de refugiados dentro de uma zona de guerra na
região central da África. Um país dividido por etnias, mas principalmente, e infelizmente,
cortado pelo ódio. Explicou que apesar de terem vários aspectos culturais em comum,
e isto os tornava uma nação, as diferenças se manifestavam em intolerância, sangue e
morte. Um povo destruído econômica e afetivamente. Nessa ocasião, quando chegou
ao campo de refugiados, encontrou muitas pessoas, entre adultos e crianças, mutiladas
pelas tribos rivais para que não servissem mais para o combate nem para o trabalho e,
assim, no ápice da maldade, se tornassem um ônus para os seus parentes pelo resto da
existência. Para piorar, além de diversas doenças, uma perigosa epidemia se alastrava
em razão das precárias condições de saúde e higiene. Não havia hospitais, todos
destruídos na guerra absurda. Alimentos e água potável eram racionados. Uma
organização não-governamental humanitária, formada por médicos de todo o mundo,
que durante os seus períodos de férias viajavam para lá, pagando todos os custos do
próprio bolso, com o objetivo de levar a assistência e o atendimento possível à região e
àquele povo, mantinham a vida possível. Viu cirurgias sendo feitas em tendas e curas
alcançadas pela inenarrável determinação, competência e amor daqueles profissionais.

Eu ouvia atentamente. Nesse momento comentei que Deus os iluminasse e os


protegesse. “Deus? Que Deus? Qual o Ser repleto de amor, sabedoria e justiça permitiria
aquele descalabro? Por que Ele não soluciona aquele suplício desumano?”, deixou
transparecer a sua revolta e a descrença em um mundo invisível que permeia e interage
ao visível. Narrou que a organização daqueles bondosos médicos já não tinha mais
dinheiro para comprar uma nova remessa de remédios na tentativa de conter a infecção
generalizada que se alastrava. Então ele, o mercador de remédios, o homem que
ganhava a vida vendendo remédios, pela primeira vez na vida, não apenas abriu mão da
sua comissão, mas negociou com os laboratórios uma doação de medicamentos. Ainda
mais, Julius arcou com toda a despesa do transporte para que a medicação chegasse à
zona de conflito. Por fim, olhou para mim, sorriu e confessou que era muito feliz com a
profissão que tinha escolhido, pois levava a cura para muita gente através dos remédios,
sejam os vendidos, sejam os doados, aos recantos esquecidos do mundo. Duvidava que
houvesse outra profissão melhor.

Veio a ordem para a habitual parada no meio do dia. Um breve descanso e uma refeição
ligeira eram necessários. No momento de alinhar os camelos na fila para a outra metade
da marcha daquele dia, quem emparelhou comigo foi um religioso, quase um asceta.
Um homem dedicado à meditação, à oração e a caridade espiritual. Embora nunca
tivéssemos nos falado, assim como o Julius, eu também o conhecia de vista. Muito
amável, transparecia uma enorme serenidade. As suas palavras eram sempre em voz
mansa, claras e traziam inegável conforto. Assim como Julius, era muito simpático e
também me senti bem ao seu lado. Disse isso a ele, que sorriu e falou se chamar Naim.
Acrescentou que o seu nome, de origem árabe, significava tranquilidade. Logo me
perguntou qual a religião eu professava. Respondi que todas. Contei que eu tinha forte
influência cristã desde a infância, ensinamentos preciosos que fui enriquecendo à
medida que conhecia as outras tradições filosóficas e religiosas, ocidentais e orientais.
Acrescentei que todas as palavras de amor e sabedoria me interessavam, independente
da origem. Mostrei no cordão que eu usava sob a blusa, a cruz que transpassava o
círculo. Era o símbolo da irmandade esotérica dedicada ao estudo da filosofia e da
metafísica da qual eu fazia parte, cujo o eixo central era o Sermão da Montanha. Naim
sorriu com o coração. Perguntou sobre os meus estudos; nada quis saber sobre a minha
atividade profissional. Em seguida, falou que percorria os “confins do mundo” levando
uma palavra que pudesse trazer algum conforto a qualquer alma sofredora. Esta era a
sua enorme riqueza. O seu patrimônio, ao contrário, se resumia na túnica que vestia e
outra que trocava quando lavava aquela. “Ah, também estas sandálias”, disse
apontando para os pés. Calçados que usava até “se desmancharem”.
A conversa se estendeu. Naim confessou que as histórias vividas também eram parte da
sua riqueza. Contou que no ano passado esteve na parte central da África, em país
repartido pela guerra civil. A disputa pelo poder por diversas tribos, divididas em facções
étnicas, tinha levado o povo à miséria material, mas principalmente, à miséria espiritual.
As pessoas sofriam tanto que já estavam descrentes de tudo. Acrescentou que quando
perdemos a esperança a fé não sobrevive. Então, não resta nada. Fica difícil para o amor
germinar. Estava em um campo de concentração onde uma perigosa epidemia se
alastrava com rapidez em razão das precárias condições de sobrevivência, mas também
por causa de um baixo padrão vibracional, gerado pelo medo e pelo pessimismo, que
enfraquecia o sistema imunológico daquelas pessoas. Uma organização de médicos
dispendia todos os recursos humanos e financeiros para atender aquele povo sofrido,
mesmo sob diversos riscos. Pessoas que poderiam usufruir das férias em lugares
paradisíacos, mas que como na mitologia, iam ao inferno como anjos guardiões resgatar
almas desamparadas, sob o perigo real de receberem um tiro, serem aprisionados por
uma das facções ou de também se contaminarem.

Era preciso novos medicamentos para conter a infecção bacteriológica que se


generalizava. Não havia mais recursos; todos os canais de ajuda tinham sido acionados
e nenhuma solução se mostrara possível. O desânimo também era contagiante.
Preocupou-se em animar as pessoas com boas palavras e abraços aconchegantes.
Também rogou a Deus por Sua intervenção. No dia seguinte o acampamento foi
invadido por uma das violentas facções. O filho do chefe estava muito doente. O garoto
sofria de um mal que os médicos não conseguiam identificar. O menino estava com a
vida por um fio. Alguns dias atrás, o chefe tinha tirado o filho do acampamento, onde
estava sob o cuidado dos médicos, e o levado para a tribo. Lá o garoto esgotaria as suas
últimas forças. Voltou para se vingar das pessoas que, segundo o chefe, tinham
contaminado o seu filho. Naim pediu uma chance para tentar curar o garoto. Uma única
oportunidade. Caso não conseguisse, o chefe executaria o plano. Alegou que, do
contrário, o pai retiraria a última chance do filho. Mesmo desconfiado, o chefe aceitou,
não sem antes ameaçar Naim com uma morte cruel e dolorosa caso não obtivesse êxito.
Quando chegou à tribo Naim logo sentiu a energia densa do lugar e percebeu que o
garoto tinha as suas forças vitais sugadas por espíritos sombrios que, por afinidade
vibracional, tinham se instalado no local. Os médicos não conseguiam curar o filho do
chefe porque não era uma doença física, mas espiritual. Promoveu um ritual de
purificação e equilíbrio energético. Em poucos dias o menino estava bem, brincando
com as outras crianças como se nada tivesse acontecido.

Agradecido e feliz, o chefe disse que Naim poderia pedir o que quisesse. Naim pediu que
o campo de refugiados nunca mais fosse atacado. Sob nenhuma hipótese. Explicou que
já havia sofrimento demais. O chefe lhe garantiu o pedido. O religioso explicou que as
doenças do corpo estão, em geral, ligadas à alma enfermiça. Naim pediu também que
fosse conduzido de volta para o acampamento, pois estava preocupado com a epidemia
que se alastrava. O chefe prometeu que ele seria levado imediatamente. Contudo, falou
que as suas preocupações arrefecessem, pois soubera que após a saída deles chegara
um europeu. Este homem providenciara o medicamento necessário para debelar a
infecção. Naim contou que passou a noite em oração de agradecimento a Deus pelo
atendimento aos seus pedidos e por Sua pronta intervenção. “Naquele momento a mão
de Deus se fez presente através desse europeu”, disse com os olhos mareados. Um
homem que, mesmo sem acreditar, mas envolvido em um gesto de amor, se tornou uma
ferramenta sagrada, pensei sem nada dizer. Naim revelou que quando retornou ao
campo de refugiados o tal europeu, que tanto gostaria de conhecer, já tinha partido.
Com os novos remédios que logo chegaram e o fim do medo de serem constantemente
atacados, a cura se sustentou.

Estávamos no final da tarde. Veio a ordem para encerrar a marcha e levantar o


acampamento para passarmos a noite. Naim agradeceu a tarde que passamos juntos e
se despediu. Havia pessoas que precisavam dele. “Sou um curador de almas”, se definiu.
Declarou-se um homem abençoado pelo trabalho que exercia. Também agradeci pela
conversa e nada falei sobre a sincronicidade dos fatos daquele dia. A caravana era
envolta em magia.

Não era difícil imaginar que o deserto me deixara com a incumbência de ser o elo de
ligação entre as duas pontas de uma mesma história. Sob ângulos e olhares distintos,
pontas que se encontravam em algum ponto. “No ponto em que o deserto se encontra
com as estrelas”, ouvi a voz da bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli soprando
em meus ouvidos. Virei a cabeça para os lados, não havia ninguém. “A cruz”, tornei a
ouvir a voz dela. Mais uma vez, não havia ninguém. Considerei que aquela travessia
inóspita logo me traria outras alucinações.

Vi o caravaneiro se afastar para o treinamento vespertino do falcão. Sentei na areia, um


pouco distante, para apreciar o voo do pássaro; e pensar. Eu precisava pensar. Aqueles
dois homens me contando as suas aventuras em um mesmo dia. Homens que tinham as
suas existências entrelaçadas, mas não se conheciam. O acaso não existe; eu sabia disto.
Ao longe o caravaneiro me observava. Quando nossos olhares se encontraram ele
tornou a fazer o sinal da cruz com a mão. Abri os braços como quem diz que não
entendeu o gesto. Ele se virou para cuidar do falcão.

“Quando se anda pelo deserto há que se ter a preocupação em caminhar para as


estrelas. Concomitantemente.” Era a bela mulher de olhos azuis. Desta vez não apenas
a sua voz, mas ela em pessoa. Sem pedir licença, se sentou ao meu lado. Perguntei se
ela tinha visto o sinal da cruz que o caravaneiro tinha feito para mim. A mulher balançou
a cabeça em anuência. Falei que ele repetiu aquele gesto várias vezes durante o dia,
desde que conversamos pela manhã. Ela explicou: “A cruz é um símbolo que existe
desde tempos imemoriais. Foi usada na Suméria, no Egito Antigo, na Índia, na Pérsia e,
posteriormente, renasceu em Jerusalém. Possui vários significados, todos preciosos,
interligados em si. O mais conhecido, e dos mais belos, é o da libertação através das
virtudes aplicadas à vida, ensinado pelo maior dos mestres que já andou por este
mundo. Contudo, há outros mistérios; todos precisam de esclarecimentos.”

Falei que já tinha visto em meus estudos diversas cruzes, com pequenas alterações de
formato, como a cruz alçada no Egito ou a cruz em giro na Índia. A famosa cruz dos
celtas, além de outras com diferentes geometrias, algumas usadas também no
cristianismo, como a cruz em T de Francisco de Assis ou a cruz invertida de Pedro, o
apóstolo. A mulher tornou a balançar a cabeça e disse: “Todas trazem em si
conhecimentos ocultos que precisam vir à luz.”
“Penso que a cruz simétrica, aquela em que a linha horizontal possui o mesmo tamanho
da linha vertical, possui uma valiosa lição. Não se caminha para cima sem caminhar para
os lados; não se chega ao Céu sem se envolver com o mundo.”

Pedi para ela explicar melhor. A mulher foi generosa: “Veja as histórias de Julius e de
Naim. Ambos são bons homens. Um sempre conduziu a vida em função dos negócios,
da sobrevivência do corpo, dos interesses ligados ao ego. Um homem do mundo; o traço
horizontal da cruz. O outro, vive em função do intangível, da elevação do espírito, em
razão dos interesses da alma. Um homem do Céu; o traço vertical da cruz. Cada um com
as suas prioridades. No entanto, para salvar os mesmos refugiados, para salvar as
mesmas vidas, ambos foram igualmente imprescindíveis. Sem os remédios
providenciados pelo Julius, a epidemia de bactérias ceifaria a existência de muitos
refugiados; sem as medicações espirituais de Naim a epidemia de ódio imporia aos
refugiados uma pena semelhante. Encontraram-se no ponto central da cruz, onde os
traços se entrelaçam. Este ponto se chama amor.”

“Julius é o deserto; Naim, as estrelas. Juntos se completam e se expandem, longitude e


latitude, na perfeição da cruz.”

“Quando se caminha pelo deserto sem olhar as estrelas não se chega a lugar nenhum.
Quando apenas se olha para as estrelas sem caminhar pelo deserto também não.” Fez
uma pausa e finalizou: “A existência se passa pelo mundo para se fortalecer no campo
de provas. A vida precisa das estrelas para iluminar na superação dessas provas.
Amplitude e profundidade. Não se separa o deserto das estrelas. Julius e Naim em um
único homem. Em verdade, a travessia apenas se completa quando realizada em cruz.”

A bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se levantou e saiu. Acompanhei os seus
passos. Ela passou pelo caravaneiro e o cumprimentou; ele sorriu em agradecimento
para ela. Depois desapareceu por trás das dunas. Entardecia. Esperei anoitecer
enquanto alocava aquelas ideias e pensava nas modificações que se faziam necessárias
para eu viver em cruz. Quando as estrelas do céu tocaram as areias do deserto no infinito
do meu olhar, me levantei a procura de Julius e Naim. Eu queria apresentar um ao outro.
Eu veria irromper a luz ao unir os traços da cruz.

O trigésimo-quinto dia da travessia – a anciã do deserto

Eu tinha acordado bem-disposto. Era muito cedo. A caravana ainda dormia. A leste o
céu começava a ganhar o tom rosado que antecede ao azul. Sem demora as estrelas se
retirariam de cena. Em verdade, estariam lá, apenas ocultas pela cortina do dia. Os
sentidos permitem ou limitam as percepções à medida de como lidamos com eles.
Sentei na areia em local um pouco afastado e fiquei pensando sobre a verdade que está
por trás dos nossos sentidos. O mundo e, por consequência, a vida nos é concebido da
maneira como entendemos tanto o mundo quanto a vida. Quantas e quais cortinas
preciso abrir para encontrar a verdade? Quanto da vida eu perco por não a perceber em
toda a sua amplitude e sutileza? Eu estava envolto em minhas reflexões quando fui
interrompido por uma anciã. Ela parecia ter uma idade avançada ao analisar por sua
pele bastante enrugada. Não conseguia me recordar dela na caravana. As suas feições
não eram nem tristes nem alegres; apenas serenas. A anciã me perguntou se eu podia
acompanhá-la. Imaginei que ela precisava de ajuda e, sem hesitar, me coloquei à
disposição. Ela me levou até a tenda mais distante do acampamento.

Quando entrei vi sobre uma mesa baixa, típicas dos acampamentos no deserto, um bolo
coberto com frutas secas. Ela me acomodou em uma confortável almofada e se sentou
em outra à frente. Serviu-me uma fatia de bolo com uma caneca de café. Uma
combinação maravilhosa. Tudo muito gostoso. A anciã pegou uma pequena harpa e
começou a tocar uma música suave. Tudo muito agradável. Quando acabei, a anciã
tornou a colocar outra fatia em meu prato. Pedi mais um pouco de café para
acompanhar o bolo. Ela disse que o café tinha acabado. Sugeriu que eu experimentasse
um dos chás que ela fazia. Aceitei. Ela me serviu em uma xícara de fina porcelana. A
minha língua ficou adormecida após eu provar o chá. Quando coloquei um pedaço de
bolo na boca percebi que o mesmo bolo, que minutos antes havia me deliciado, tinha
perdido todo o sabor. O chá tinha anestesiado as minhas papilas gustativas. Pensei que
aquele não era um bom chá, pois furtava o sabor do bolo; ou talvez o bolo não fosse tão
bom quanto imaginei. A anciã continuava a tocar a harpa. Porém, acelerou o ritmo. A
música rápida acrescida do bolo sem sabor tornou, de um momento para outro, o
ambiente desagradável. Nada falei. Apenas agradeci a hospitalidade, me despedi sob a
alegação de que eu tinha que arrumar as minhas coisas e saí. A anciã não fez qualquer
objeção; apenas sorriu.

Quando eu passava por entre as tendas fui interrompido por uma jovem e bela mulher.
Ela pediu a minha ajuda para abrir uma pequena caixa. Era uma tenda confortável,
repleta de almofadas estampadas ao estilo árabe e com um agradável perfume de
incenso. A moça estava sozinha. A chave parecia emperrada. Pedi um pouco de óleo. Ela
perguntou se azeite serviria. Falei que sim e ela me passou um vidro. A chave azeitada
girou na fechadura da caixa sem qualquer dificuldade. A caixa estava repleta de joias de
ouro e pedras preciosas. A mulher se mostrou agradecida e disse para eu escolher algo
da caixa. Recusei. Ela insistiu. Diante da minha irredutibilidade a mulher escolheu um
anel de fina ourivesaria, adornado com um precioso rubi, e tentou colocar em um dos
meus dedos. Tornei a recusar. A minha resistência foi quebrada pelo seu belo sorriso e
modo carinhoso pelo qual segurou na minha mão. Eu me senti no céu. Neste instante
entrou na tenda um homem. Ele estava zangado. Os dois discutiram em um idioma que
eu não conhecia. Não foi difícil perceber que o homem reclamava pela caixa. A discussão
subiu de tom. O homem apontava para o anel que a mulher tinha me dado e gritava. A
anciã, que há pouco tinha me servido o bolo, entrou no momento em que eu devolvia o
anel, me puxou pegou pelo braço e me retirou da tenda. Senti-me aliviado de sair
daquele lugar que mais parecia o inferno.

Caminhei até a tenda que servia de refeitório. O simples fato de já ter café pronto me
alegrou. Enchi uma caneca e bebi ali mesmo. Eu bebo muito café, principalmente
quando acordo. Após completar a segunda caneca, ouvi um grupo de homens
conversando sobre o caravaneiro. Falavam que ele se casaria assim que a caravana
chegasse ao oásis. Seria uma grande festa, mas apenas alguns integrantes da caravana
teriam sido convidados. Todos do grupo se declararam convidados e que
providenciariam os presentes sem demora. Eu não tinha recebido qualquer convite.
Uma enorme insatisfação corroeu as minhas entranhas. Não ter sido convidado para o
casamento me entristeceu e, pior, fui tomado por um misto de inveja e ciúme. Um dos
homens ressaltou a insistência do caravaneiro para que ele não faltasse à festa; outro
contou que também tinha sido convidado para apadrinhar o primogênito quando
nascesse. Aquela conversa me fazia mal, mas por algum motivo, eu não conseguia me
afastar. Como se o veneno que começou a correr em minhas veias precisasse de mais
veneno para me manter de pé. Emoções insensatas e raciocínios absurdos. Foi quando
a anciã tornou a me pegar pelo braço. Com um movimento suave tentou me retirar
daquele espiral negativo de sensações. Resisti. Ela olhou firme para os meus olhos. Nos
seus olhos havia uma luz muito forte, inversamente proporcional ao seu corpo
alquebrado. Eram olhos que pareciam falar. Eles insistiam para que eu saísse dali, porém
também me diziam que não podiam me obrigar; a escolha sempre seria minha. Decidi
por acompanhá-la. Sem dizer palavra, nos afastamos do acampamento. Ela me conduziu
para perto de onde o caravaneiro realizava o treinamento matinal com o seu falcão.
Falei que eu não queria ficar ali. A presença dele a me incomodava. Naquele momento,
na bagunça do meu coração, eu o considerava arrogante e estúpido. A anciã insistiu que
permanecêssemos. Passado alguns instantes, ele nos viu e fez sinal para que nos
aproximássemos. Chateado com o caravaneiro, hesitei. Ela me conduziu até o
caravaneiro com a força da sua suavidade. A anciã possuía uma mansidão encantadora.
Eles se cumprimentaram como velhos conhecidos. Ela se despediu, fiz menção em
acompanhá-la, mas a anciã disse que iria sozinha. O caravaneiro arqueou os lábios em
leve sorriso. Enquanto observava o falcão voar em círculos, quase sem bater as asas,
sustentado no ar pela brisa da manhã a procura de uma caça, eu esperava pelo convite,
ainda que tardio, para o casamento. O caravaneiro não tocou neste assunto.

Eu estava perdendo tempo ali. Falei que era melhor eu ir para não me atrasar, pois ainda
tinha que arrumar as minhas coisas antes de partirmos. O caravaneiro me perguntou se
eu queria aprender sobre a arte da falcoaria. Fiquei surpreso, eu sabia que tal
ensinamento era um privilégio. Não havia uma escola que alguém pudesse se matricular
para conhecer essa arte. Os mestres falcoeiros escolhiam os seus aprendizes; os
conhecimentos eram transmitidos há séculos pela tradição oral. Naquele instante, os
sentimentos e ideias que eu tinha pelo caravaneiro ficaram ainda mais confusos. De um
lado, zangado por ter sido preterido da sua festa; de outro, alegre por ter sido convidado
para algo tão importante. Embora magoado, não consegui recusar a incomensurável
oferta. Apenas balancei a cabeça em concordância. Ele retirou a grossa luva de couro
que usava em seu braço esquerdo e a colocou no meu. Era o ritual simbólico de iniciação.
Com o silvo de um apito, inaudível ao ouvido humano por causa da alta frequência
sonora, chamou o falcão de volta. Quando a ave se aproximava ele me orientou a
manter o braço, no qual estava a luva de couro, bem levantado para que o pássaro não
tivesse qualquer dúvida quanto ao local de pouso. Sem que me machucasse, senti a
força das garras firmes do falcão em meu antebraço. Uma sensação agradável. Em
seguida me entregou uma espécie de touca que tinha por objetivo tapar os olhos da ave.
Pediu para que eu cobrisse a cabeça do animal com delicadeza. Ele explicou: “É para que
o falcão não se distraia e possa se concentrar nas suas palavras. Diga para ele que apenas
encontrará aquilo que conseguir ver. No entanto, fale também que enxergamos melhor
quando vemos além dos olhos.” Diante do meu olhar atônito, acrescentou: “Por mais
apurados que sejam os olhos de uma ave de rapina.” Em seguida, explicou: “Sempre
podemos ouvir sem qualquer palavra; se deliciar sem usar o paladar. É preciso sentir
além dos sentidos.”

Achei tudo aquilo muito estranho. O primeiro pensamento foi de como encontrar a
melhor maneira para aconselhar um falcão sem me sentir ridículo. Em seguida me
ocorreu que talvez fosse uma limitação pessoal desprezar a inteligência e o instinto
alheio, mesmo que de um animal. Assim, procurei as melhores palavras para aconselhar
o pássaro. O caravaneiro me mostrou o movimento que eu teria de fazer com o braço
como sinal para que a ave alçasse voo. Assim aconteceu. O falcão voou em círculos por
minutos que me pareceram intermináveis. Comentei que aquela região do deserto era
inóspita ao extremo, imprópria para a vida. Não haveria qualquer caça ali. O caravaneiro
voltou a soar o apito inaudível. Falcão retornou. Levantei o braço esquerdo com a luva
de couro para ele pousar. O caravaneiro colocou a toca sobre a cabeça do animal.
Porém, ao invés de pedir para que eu falasse, ele próprio aproximou a sua cabeça ao
falcão e movimentou os lábios como se conversasse com o pássaro. Não em palavras
faladas, mas em pensamento. Achei esquisito. Fez sinal para eu liberar o animal para um
novo voo. Quando retirei a touca da cabeça da ave, ela virou a cabeça e olhou para o
caravaneiro por um breve instante como se dissesse que tinha compreendido aquilo que
não foi dito. O pássaro ganhou o céu. Após planar por algum tempo, o falcão recolheu
as asas para mergulhar vertiginosamente até o solo. De longe vimos a ave escavar as
areias do deserto e trazer em suas garras uma serpente que, escondida, se acreditava
protegida sob o piso arenoso e sem vida.

O caravaneiro disse que era hora de encerrar. Por aquele dia bastava: “Hoje
marcharemos até mais tarde. Não haverá o treino vespertino. Caso queira prosseguir se
apresente amanhã bem cedo.” Agradeci, disse que ele podia contar comigo no dia
seguinte. No entanto, algo ainda me incomodava. Antes de sair para arrumar as minhas
coisas, desejei que ele fosse feliz em seu casamento. O caravaneiro sorriu, deu de
ombros e disse: “Eu sou feliz no meu casamento. Tenho esposa e filhos; amo a minha
família. Não vejo a hora de retornar para casa e me aconchegar.” Surpreso, me despedi
e saí sem falar mais nada. Coloquei tudo no alforje e o ajeitei sobre o camelo. Procurei
a anciã por todos os lugares, pois eu queria alinhar ao seu lado na marcha. Eu tinha
muitas perguntas para fazer. No entanto, não tive sucesso. Indaguei por ela a várias
pessoas; ninguém a tinha visto.

Naquele dia ninguém emparelhou comigo. Segui acompanhado apenas dos meus
pensamentos e sentimentos. Quando encerramos a marcha a noite se avizinhava. O
acampamento foi erguido e me afastei um pouco enquanto esperava o aviso para o
jantar. Eu meditava sobre a necessidade de perceber além dos sentidos; sentir além das
emoções; entender além das razões. Sim, existia algo de verdadeiro e valioso a ser
percebido, sentido e entendido para uma vida plena que naquele momento eu deixava
escapar.

“A paz”, ouvi uma voz doce atrás de mim. Não era a anciã. A bela mulher com olhos da
cor de lápis-lazúli se aproximou sem eu perceber e, mais uma vez, parecia adivinhar o
que acontecia comigo. Ela se sentou ao meu lado e disse: “Enquanto permitirmos que a
densidade do mundo afete a sutileza da alma ficaremos distantes da paz. Acreditar que
a paz depende dos fatos da vida é uma tola ilusão. Quando ainda rumo à maturidade
acreditamos conhecer as delícias pelo paladar, o perfume pelo olfato, a beleza pelos
olhos, a música pela audição e a textura pelo tato. A vida é mais. A verdade está bem
distante dos sentidos básicos.”

“O bolo deixa de ter sabor se eu estiver gripada. A música cessa de tocar se eu me negar
a ouvir. A beleza se desmancha se eu fechar os olhos. Ou será que continuam a existir
além dos meus sentidos, da minha capacidade de perceber e compreender tudo o que
há?”

“Tentar entender a vida apenas através dos sentidos básicos é desperdiçar a sua grande
e melhor parte. As minhas limitações não podem impedir a minha caminhada. O
Caminho muda quando o andarilho se transforma. Qualquer um pode ser mais, mas é
preciso treino para ver a serpente que se oculta sob a areia”, disse em explicita alusão a
experiência vivida naquela manhã, mas também em clara metáfora.

Falei que tanto o mundo quanto a vida são maiores quando eu me permito os
sentimentos e a razão para entendê-los. Assim os percebo além dos sentidos básicos.
Coração e mente são indispensáveis para a compreensão de tudo e de todos. A mulher
de olhos azuis concordou apenas em parte: “Sim, no entanto, temos que aprender a
sentir e a raciocinar sem a areia das sombras que esconde a paz. Um assunto no qual já
falamos várias vezes durante esta travessia, mas que nos persegue diariamente. Amor
ou ódio não dependem da informação oferecida, mas da antena que a captar e do canal
que a codificar. A sua opinião e sentimento sobre o caravaneiro mudou quando a
mentira e a intriga estimularam a vaidade, o orgulho, o ciúme e a inveja. Uma cortina se
fechou e a beleza desapareceu.”

“Quando o coração e a mente estão pacificados pela humildade, compaixão,


simplicidade, mansidão, sinceridade, entre outras virtudes cuja raiz é o amor, tudo e
todos se tornam diferentes. Tudo fica claro e sereno, todos se tornam belos e
interessantes mesmo diante das enormes dificuldades inerentes à vida. As cortinas se
abrem.” Fez uma pausa e concluiu: “Em suma, sim, precisamos do coração e da mente
para entender a exata verdade e a perfeita beleza da grande escola. Contudo, não basta
usá-los. O amadurecimento se faz indispensável. Precisamos de um coração puro e uma
mente profunda. Há os que ainda estão em sementes; existem os que já se
compartilham em frutos.”

“Os canais de entendimento e percepção são muitos; todos têm o seu valor. Alguns,
entretanto, se mostram extremamente poderosos. Há aqueles que chegam prontos
como a audição, a visão, o tato, o olfato e o paladar, por isto são considerados básicos.
Coração e mente, através das emoções e das razões, são considerados pelos eruditos
como fundamentais para o entendimento do mundo e da vida. No entanto, embora
importantíssimos, necessitam de aprimoramento. São sentidos de nível intermediário
devido à extensão do alcance.”

Se coração e mente eram intermediários, quais seriam os essenciais? A mulher explicou:


“A intuição é a quintessência dos sentidos enquanto estivermos na terceira dimensão.
A intuição, quando bem desenvolvida, é um canal valioso de comunicação com os planos
superiores. Quando mal trabalhada acaba servindo às esferas turvas da existência. Não
raro os andarilhos imaturos costumam confundir a intuição com os seus desejos e
medos. Para discernir uma dos outros é preciso amor e sabedoria, através de muito
conhecimento e exercícios, para que todas as cortinas se abram. Nada é fácil.”

“Contudo, não é só. Alguns sentidos são próprios do ego, pois nos dizem muito sobre a
sobrevivência; outros são permitidos apenas através da alma ao nos orientar quanto à
transcendência. A intuição são os olhos, a voz, o ritmo, a percepção, o gosto, os
sentimentos e a razão da sua alma. Isto é muito importante e poderoso. A alma é a sua
parte sagrada no todo universal. Ela o torna um ser cósmico. A alma conhece a origem
da vida. Através da intuição a alma tem o poder de te levar à zero-dimensão, onde tudo
é cristalino e as plenitudes aguardam. Apenas com ela à frente poderemos chegar à
verdade.”

Ficamos em silêncio por algum tempo. A mulher disse que tinha coisas a fazer e se
levantou. Agradeci a conversa. Falei que eu tinha muito o que pensar e me esforçaria
para amadurecer a minha intuição como ferramenta evolutiva. A mulher sorriu. Antes
de ela sair, perguntei sobre a anciã. A mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli explicou:
“Ela é uma mensageira da paz. De todas as plenitudes, a paz é a mais difícil de se
conquistar. Parece escondida ou perdida sob tanta areia que colocamos sobre ela. Assim
como a felicidade, o amor, a dignidade e a liberdade, a paz está em semente dentro de
cada um de nós. Para encontrar a paz é preciso perceber além dos sentidos, sentir além
emoções, entender além da razão. A semente da paz é uma semente sutil, porém
poderosa. Perceptível apenas à sensibilidade da alma.”

“Como um pequenino, e aparentemente frágil e sem vida, grão de trigo. Além do


invólucro da casca do grão, para quem aprendeu a ver, existe o pão. Para que o grão
germine em vida a casca inerte precisa se romper. Algumas cascas se rompem com o
equilíbrio das emoções, outras com a clareza da razão. Contudo, há invólucros que
precisam de uma força maior para que o pão da vida se manifeste através da paz. A fé é
este poder. Não se alcança a fé sem a intuição.”

“O fruto parece inexistir quando não vemos além do caroço; o fruto está ali, apenas
ainda é invisível aos olhares inflexíveis e intangível à percepção superficial. São os véus
que precisam ser descortinados. Mas, não tenha dúvida, todo o fruto um dia esteve
oculto atrás de um véu em forma de caroço.”

Falei que gostaria de encontrar a anciã de novo. A mulher de olhos azuis sorriu, sacudiu
a cabeça como quem diz que eu não tinha jeito e finalizou: “Passe a prestar mais atenção
à sua volta. Você a encontrará todos os dias. Ela sempre esteve ao seu lado. Assim se
disfarçam os anjos.”

O trigésimo-sexto dia da travessia – as estrelas do deserto

A travessia se aproximava do fim. À medida que os dias se passavam eu me sentia mais à


vontade no deserto. Eu o entendia, ele me acolhia. De um lado, o desejo pela chegada; de
outro, uma saudade que já se anunciava. Um relacionamento de início tormentoso, mas
que, aos poucos, se tornava apaixonante, como tudo o que é valioso, mas que causa
estranhamento até o momento do exato entendimento. Não à toa a travessia se alongara
por quarenta dias. Era preciso haver tempo para que valores e conceitos arraigados em
mim, já sem nenhuma serventia, pudessem ficar pelas areias. Aos poucos, trocados por
outros, mais adequados à pessoa que eu me transformava, impossível sem a ajuda do
deserto. Mesmo que o sábio dervixe se recusasse a me receber a travessia já teria valido a
pena. Ainda era madrugada quando despertei. As noites no deserto são encantadoras. Um
manto de estrelas se estende por todo céu. De tão brilhantes temos a maravilhosa sensação
de que ao subir nas dunas tocaremos nas estrelas mais próximas. Sentei na areia e peguei
algumas tâmaras secas no alforje. Planejava meditar e rezar até a hora de a caravana
acordar. Tomaria algumas canecas de café e iria para segunda aula de falcoaria com o
caravaneiro. Eu estava bastante animado. Foi quando percebi que a Ingrid, a bela
astrônoma nórdica de cabelos ruivos, estava ao longe com um dos seus telescópios
montados sob o tripé observando alguma constelação. Ela parecia alegre ao dar explicações
ao Paolo, o bonito namorado italiano que conhecera na caravana. Formavam um belo e
interessante casal. Embora o ciúme inicial que eu sentira tivesse ficado para trás, confesso
que tornei a pensar que poderia ser eu a estar ouvindo as explicações sobre a Via Láctea.
Dominei a emoção selvagem e a pacifiquei em mim. Fiquei bem; me senti leve. Eles me
viram e acenaram para eu me aproximar.
Fui recebido com os melhores sorrisos. Eles estavam felizes. Ingrid contou que a posição
era ótima para avistar Órion, uma constelação típica do equador celeste. Pude ver com
enorme clareza Rígel e Betelgeuse, estrelas gigantes das cores azul e vermelha,
respectivamente, que junto com as estrelas Bellatrix e Saiph compõem o quadrilátero
principal. Era impossível não ficar maravilhado. Ingrid disse que algumas constelações
eram austrais, outras boreais, acessíveis apenas dos hemisférios sul ou norte. Brincou
dizendo que por isto os telescópios faziam parte da bagagem de todo astrônomo: “Não
é mania, é necessidade.” Ela tornou a falar algo que já tinha me chamado atenção antes:
“As constelações são criações humanas. Não passam de ilusões de ótica. As mesmas
estrelas avistadas de diferentes pontos do planeta formam outros conjuntos.” Entre
diversas lições, as estrelas nos ensinavam a ver, a separar a ilusão da realidade.
Conversamos mais um pouco e a aproximação da manhã encerrou as observações. A
caravana acordava. Agradeci os momentos agradáveis e me despedi. Eu estava sedento
por uma caneca de café.

Ainda bebia a primeira caneca de café quando avistei o caravaneiro se afastar com o
falcão para o treinamento matinal. Fui atrás. Ele me entregou uma grossa luva de couro.
Disse que aquela era minha. A coloquei em meu braço esquerdo. Conforme tinha
aprendido na aula do dia anterior, me aproximei da ave, disse em pensamento para que
ela visse além dos olhos para encontrar o inimaginável, retirei a toca sobre a sua cabeça
e a impulsionei com o movimento do braço. O falcão alçou voo. Ficou alguns minutos
planando em círculos em grande altitude. Enquanto aguardávamos, comentei o fato de
as constelações não passarem de meras ilusões, segundo a Ingrid me ensinara. Ele disse:
“Há os olhos de ver o mundo; existe o olho de ver a vida.” Eu pedi para ele falar mais
sobre o assunto. O caravaneiro explicou: “Os iniciados nas tradições orientais, desde
sempre, alertam quanto à terceira-visão. Como se referia o mestre galileu: ‘Quando o
seu olho é simples todo o universo é luz’.”
Falei que conhecia o ensinamento do Sermão da Montanha, texto muito utilizado na
irmandade esotérica da qual eu era membro. Muito embora, observei, as traduções que
eu havia lido falavam em “se os seus olhos forem bons todo o seu corpo resplandecerá
em luz”, com algumas insignificantes diferenças a depender do tradutor e da editora.
Pedi para ele aprofundar o seu entendimento. O caravaneiro foi humilde: “Sei pouco.”
Fez uma pausa, olhou para o falcão no céu azul e disse: “Buda denominava de samadhia
conquista desse olhar despertado no interior do próprio ser. É um estado de êxtase,
como a sensação permitida a um cego diante da visão desconhecida. É a saída da
escuridão da caverna no encontro com o sol na famosa alegoria narrada por Platão, o
filósofo grego.”

Perguntei se ele achava possível alcançar essa visão extraordinária. O caravaneiro me


lembrou: “No treinamento de ontem, através da linguagem da vida, o falcão conseguiu
ver a caça enterrada na areia, invisível aos olhos do mundo”. Considerei a possibilidade
do apurado instinto predador de uma ave de rapina. Lembrei a ele que animais não têm
intuição nem consciência. O caravaneiro balançou a cabeça em concordância, porém
não disse mais qualquer palavra. O falcão se alongou em sua busca e quando retornou
o seu voo tinha se mostrado infrutífero. O caravaneiro me alertou que tínhamos que
arrumar as nossas coisas. A travessia não tardaria a começar naquele dia.

Alinhei ao lado de uma mulher alegre e falante. Assim como eu, Beatriz era latino-
americana. Ela também seguia rumo ao oásis para conhecer o sábio dervixe.
Engrenamos uma animada conversa sobre espiritualidade e mística. Beatriz se declarou
estudiosa em magia. Acreditava que o dervixe teria muitos conhecimentos para
transmitir a ela. Confessou que aguardava o encontro com ansiedade. A Beatriz quis
saber o que eu esperava da conversa com o sábio. Confessei que os meus interesses se
modificaram no decorrer da travessia. Eu já não me reconhecia o mesmo da partida. Ela
disse que eu não poderia ser tão volúvel e deveria ficar mais atento à minha essência.
Ponderei que talvez a essência tenha permanecido imutável, em verdade, apenas mais
desnudada. Isto tornava diferente o mundo que eu percebia à minha volta. Falei que
naquele momento eu estava intrigado com as possibilidades permitidas pela terceira-
visão. Beatriz sorriu e me revelou que era mais fácil do que eu acreditava. Falou que a
magia tinha a chave daquele acesso. Contou que povos ancestrais das Américas usavam
a mescalina, um fungo extraído de uma espécie de cactos, o peyote, para ativar o
terceiro olho, localizado etereamente no centro da testa, entre as sobrancelhas.

Falei que tinha tomado conhecimento dessa prática através da leitura dos livros de
Castanheda, além das experiências narradas por algumas pessoas próximas. Tão e
somente. Beatriz contou que trazia alguma quantidade de mescalina em seu alforje e,
se eu estivesse disposto, naquela noite ela me iniciaria à terceira-visão. Não neguei toda
a minha dúvida. Não apenas quanto à eficácia, mas também à insegurança em vivenciar
tal experiência. Eu soube que algumas histórias não tiveram finais felizes, com os
experimentadores marcados por traumas. Beatriz explicou que cada um tem tanto o céu
quanto o inferno dentro de si. Eu concordei, acrescentando que eu não tinha nenhuma
dúvida quanto a isto; luz ou trevas será sempre uma questão pessoal. Beatriz disse que
tudo dependeria de quem conduzisse a experiência; o facilitador, como ela designou.
Falou, ainda, que era uma prática conhecida por ela desde a adolescência e que,
portanto, poderia me conduzir a um universo inimaginável. Claro, se eu assim a
permitisse.

Não respondi. Emendei uma pergunta em outras até para evitar qualquer compromisso.
Todavia, ela se mostrou bastante animada em me mostrar os seus conhecimentos. Mais
uma vez a caravana não fez a habitual parada no meio do dia para um breve descanso e
uma refeição ligeira. O caravaneiro se mostrava determinado a cumprir o prazo dos
quarenta dias de travessia. Ao final da tarde, quando veio a ordem para cessar a marcha
e montarmos o acampamento para a noite, eu estava cansado e com fome. Beatriz me
orientou a não comer nada, pois eu poderia vomitar. Disse, também, que o cansaço logo
passaria e eu me sentiria revigorado assim que experimentasse o peyote. Esclareceu que
eu viveria uma enorme sensação de introspecção e as cores se tornariam mais
brilhantes. Também seria tomado por incrível sinestesia. Eu quis saber o que significava.
Beatriz explicou que se trata de uma incrível experiência de inversão e mistura dos
sentidos sensoriais, como sentir o cheiro de uma cor ou ouvir o som de um gosto. As
portas da percepção se abririam para mim; o tempo e a realidade se revelariam em
inacreditáveis dimensões.

Eu não disse palavra. De um lado, tinha a Beatriz com um discurso empolgante e se


mostrando segura em suas promessas. De outro, uma voz silenciosa fortalecia em mim
a ideia de recusar o convite. Beatriz disse para eu a esperar em um ponto distante da
caravana enquanto ela pegava no alforje a mescalina e os demais apetrechos
ritualísticos. Afastei-me e me permiti ouvir melhor o silêncio dessa voz interna que me
orientava. Aos poucos a convicção se sedimentou em meu âmago. Quando a Beatriz
retornou, eu não tinha qualquer dúvida. Agradeci a oportunidade, mas declinei a oferta.

Ela era uma pessoa educada e culta. Não se mostrou zangada, apenas se revelou
decepcionada com a minha recusa. Deu a entender que eu era um fraco. Falou que eu
não deveria deixar que o medo me conduzisse pelo Caminho. Acrescentou que o medo
faz prevalecer o poder das sombras sobre a luz.

Beatriz se despediu e saiu. Afastei-me um pouco mais da caravana. As noites do deserto


são sempre lindas e iluminadas pelas infinitas estrelas. Sozinho, andei até me deparar
com uma pequena duna, do tamanho de uma casa. Sentada sobre ela, como se
tivéssemos um encontro marcado, estava a bela mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli. Como ela não fez qualquer objeção, subi a duna e me sentei ao seu lado. Contei
o ocorrido. Embora não estivesse me sentindo mal, pois estava firme quanto a escolha
feita, falei que ninguém gosta da acusação de covardia. A mulher ponderou: “Este é um
olhar. O olhar pelo qual a Beatriz enxerga o mundo. Tudo e todos têm a forma e a
substância possíveis ao olhar do observador. Circunstâncias que não representam
necessariamente a verdade. Trata-se, neste caso, apenas dos limites da realidade da
Beatriz. Não da sua, da minha, do caravaneiro ou de qualquer outro integrante da
caravana. Cada qual vive na fronteira da própria consciência. Daí a importância de
expandi-la.”

Perguntei se ela me considerava um covarde por me negar as experiências com a


mescalina. Ela respondeu sem hesitar: “De jeito nenhum. Muitas vezes é mais fácil se
deixar levar pelas correntezas do mundo para evitar a reprovação alheia. Isto, sim, é
medo. Sem dúvida que o medo é o mestre das sombras. No entanto, outro mestre das
sombras, ainda mais graduado, é a ignorância. Fazer-se surdo à voz da alma é se permitir
a manipulação pelas sombras. A intuição sempre trabalha à favor da luz.” Eu questionei
como eu saberia se voz ouvida era proveniente da intuição ou do medo. Pois, isto
sempre esclarece se a decisão tomada tem as suas raízes nas sombras ou na luz. Ela
dirimiu a questão: “A voz virtuosa, repleta de prudência e sabedoria, é calma e bem
diferente dos gritos do medo. A prova disto consiste no simples fato de você estar
sereno e se sentir bem mesmo diante da acusação de covardia feita pela Beatriz.”

A mulher de olhos azuis se aquietou por um breve tempo, como se lembrasse de uma
ideia profunda. Depois sorriu e disse com sapiência: “Em verdade, me sinto mais
tranquila quando me acusam injustamente”. Eu só fui entender o teor deste raciocínio
muito tempo depois.

Em seguida, disse com convicção: “Não há atalhos no Caminho.” Questionei se


realmente não existiam atalhos. Como eu saberia não ter desperdiçado uma
oportunidade de expansão de consciência, perguntei. A mulher respondeu: “Nenhum
artificialismo funciona para a alma. Acreditar que possamos alcançar a luz através de
mecanismos forçados por substâncias químicas, psicotrópicas ou não, seria o mesmo
em crer em uma pílula do amor verdadeiro.”

“É a obsoleta lei do menor esforço. Não se cura o medo com chás, não se evita o ciúme
com comprimidos, não afastamos a inveja, o orgulho e o egoísmo pela receita de
laboratórios farmacêuticos. A ferida da alma é a escuridão na qual o ego se encontra.
Para isto, apenas a luz cura. Luz em forma de virtudes; virtudes apenas possíveis através
fantástica viagem ao centro do ser.”

“Conhecer a si mesmo revela a verdade. A verdade leva à plenitude. A plenitude concede


a terceira-visão; o olhar além da ilusão que esconde a realidade. Pois o ego, quando
desequilibrado, ofusca a alma. A alma fica opaca quando precisa estar cristalina. Perde-
se o poder do todo contido na parte.”

Imediatamente lembrei da conversa com o caravaneiro pela manhã. Sobre os iniciados


nas tradições orientais, de Buda, dos filósofos gregos e de mestre Jesus. A necessidade
dos meus olhos bons para que meu corpo resplandecesse em luz. A mulher comentou
sobre as alterações do texto sofridas por sucessivas traduções através dos séculos.
Alegou que a versão original dizia que “se o seu olho for simples todo universo será luz”.
Argumentei que não percebia diferença significativa. Ela explicou: “Ele não falou olhos,
mas olho. O mestre se referia ao olho cósmico; ao olhar da alma, não aos olhos físicos.
‘Corpo em luz’ dá ideia de sobrevivência no plano material; ‘universo em luz’ transmite
o conceito de transcendência através do espírito.” Fez uma pausa e concluiu: “Esta é
uma jornada possível apenas quando se faz consciência adentro para expandir os limites
existência afora.”

Foi inevitável eu lembrar dos dizeres contidos no emblema da OEMM: “Aprender,


Transmutar, Compartilhar e Seguir”. Sim, ali estava o mapa da evolução que não permite
qualquer alternativa que não seja o aprimoramento através do autoconhecimento
refletido nos relacionamentos pessoais. Isto exige muito esforço. Somente assim
despertamos o olhar cósmico.

Ficamos algum tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para comentar sobre o
conceito de “olho simples”. Não me parecia tão simples assim. Pedi para ela explicar
melhor. A mulher de olhos azuis ficou quieta por alguns instantes como se procurasse
por uma metáfora. Depois, explicou: “Michelangelo, o gênio da Renascença, quando
questionado pelo seu extraordinário talento em esculpir no mármore, dizia que tudo
para ele era muito simples: ‘Olho para pedra e vejo a estátua que está escondida dentro
dela. Então, retiro as aparas que escondem a obra. A arte se revela’.”

Em seguida, finalizou: “Ter um olho simples é tirar o excesso que oculta a essência.
Então, estaremos diante da beleza da vida; a imensidão da luz. Eis a verdade revelada.”

A mulher de olhos da cor de lápis-lazúli se despediu com um aceno de cabeça e saiu. Eu


a vi caminhar pelo deserto até os limites permitidos aos meus olhos para se misturar
com as estrelas e desparecer na noite. Pensei se a Ingrid, a astrônoma nórdica, a
encontraria mais tarde, através das lentes do seu telescópio, bailando em uma das
infinitas constelações.

O trigésimo-sétimo dia da travessia – o rádio do deserto

Quando o caravaneiro chegou com o falcão para o treino da manhã eu já o aguardava.


Ele arqueou os lábios em leve sorriso e me cumprimentou com um aceno de cabeça.
Coloquei a grossa luva de couro e senti as garras firmes da ave em volta do meu braço
esquerdo. Em pensamento, falei ao pássaro que apesar dos olhos privilegiados que
possuía não deveria se deixar guiar apenas por eles. Era preciso ver além da visão. Retirei
a touca da cabeça do animal e fiz o movimento de impulso. O falcão alçou voou e logo
ganhou o céu. No alto, planou em círculos por longos minutos. Fiquei apreensivo por um
mergulho vertiginoso na captura de uma pequena presa. Olhei para o caravaneiro; ele
estava impassível e sereno como um padre em uma missa de domingo. Parecia ter tudo
sobre controle. O silêncio era quase absoluto; o ruído distante do acampamento e o
sopro de uma suave brisa compunham a cantiga daquela manhã. Pensei em como
algumas pessoas demonstravam enorme serenidade diante da imprevisibilidade dos
dias. Tudo pode acontecer; de bom e de ruim. Naquele canto do deserto poderíamos
ter um dia calmo de travessia, mas sempre existia a possibilidade do imponderável. Um
assalto por selvagens tribos nômades que habitam no deserto; um ataque por grandes
felinos, como leões e leopardos, também comuns desde sempre na região; uma picada
de serpente ou de escorpião, animais que têm a areia e as pedras como habitat natural;
uma devastadora tempestade de areia; uma enorme confusão entre os integrantes da
caravana, um motim ou mesmo uma epidemia de rápida disseminação. Entre outras
possibilidades que nem ao menos me ocorriam naquele momento. Entretanto, as suas
feições eram como se ele estivesse inalcançável a qualquer mal. Comentei isto e
perguntei a razão de tamanha serenidade. Sem tirar os olhos do falcão, o caravaneiro
foi monossilábico em sua resposta: “Fé.”
Ponderei que grande parte da humanidade, através das mais diversas tradições
religiosas, acredita em um poder superior que rege o universo, porém, nem por isto,
consegue manter a calma. Assim também acontece com os eruditos, estudiosos de
muitas vertentes filosóficas; conhecem as letras, mas a ansiedade nascida da incerteza
dos dias perdura. O receio que alguma espécie de mal pudesse se avizinhar era causa
endêmica de crises de pânico, depressão e agressividade. Medo, pessimismo e
desesperança em diferentes escalas, a depender do indivíduo, pareciam cada vez mais
presentes a quase todas as pessoas. Eu conhecia pouquíssima gente que conseguia se
manter além dessa sensação sombria, independente da classe social, nível cultural ou
continente de moradia. O caravaneiro, sem tirar os olhos do falcão, apenas me ouvia.
Falei que, apesar de ter lido muitos livros de filosofia e metafísica, além de também
acreditar em Deus, nem por isto deixava de me incomodar com a mera possibilidade de
vivenciar situações desagradáveis e tristes. Eu não conseguia conviver com o
imponderável ao ponto de me sentir plenamente confortável com o dia de amanhã.
Apesar, acrescentei, de nunca, nem por um único momento, ter deixado de acreditar
em Deus. Neste instante o caravaneiro virou o rosto para mim e arqueou as
sobrancelhas. Em seu olhar não havia espanto nem indignação, porém o sentimento de
compaixão e paciência que temos quando nossos filhos dão os primeiros passos ou, na
infância terna, nos perguntam o significado de todas as coisas que existem no mundo.

Contudo, não disse palavra. Os minutos se passaram até que o falcão retornou para
pousar na grossa luva de couro que eu usava no braço esquerdo. Fiquei preocupado,
pois tinha sido mais um dia que, sob o meu comando, o falcão não conseguira nenhuma
caça. O caravaneiro pareceu não se alterar com o fato. Tínhamos que retornar ao
acampamento, a caravana não poderia tardar em partir. Em silêncio, passei o pássaro
para o caravaneiro. Antes de voltarmos ele disse: “Crença não significa fé. São conceitos
distintos.”

Como ter fé é diferente de acreditar em um poder divino? Fiquei pensando nisso


enquanto arrumava as minhas coisas no alforje e o colocava sobre o camelo. Alinhei
para a marcha. Naquele dia quem emparelhou comigo foi um morador do oásis que
retornava de um tratamento de saúde que fora realizar em Marraquexe. Logo
começamos a conversar. Zayn era um homem simpático e estava alegre por faltar
poucos dias para reencontrar a sua esposa e seus filhos. Falou que o período de
internação no hospital tinha sido muito difícil, mas os médicos e as enfermeiras que
cuidaram dele eram muito dedicados. Falei que acreditava terem sido dias de muita
ansiedade e incerteza. Zayn explicou que ninguém fica feliz por estar doente, todavia,
não se sentiu triste nem inseguro durante o tratamento. A fé manteve o seu ânimo em
alta. Acrescentou que isto tinha auxiliado muito na cura, além de tornar o tratamento
mais tranquilo. A fé ajudara a tornar mais suave o tempo que passara no hospital. Contei
uma breve história de uma pessoa que disse ter sido visitada por Deus quando esteve
internada. Perguntei se isto tinha acontecido com ele. Zayn sacudiu a cabeça e explicou:
“Não foi necessária nenhuma visita. Deus mora em mim. Trago em mim uma parte Dele.
Estamos conectados por todo o tempo.” Aquela resposta me instigou. Eu quis saber se
ele temeu a morte e, por consequência, a situação na qual ficaria a sua família. Zayn me
ofereceu um olhar parecido com o do caravaneiro mais cedo, como se tivesse que falar
o óbvio e disse: “Faço o meu melhor no dia de hoje. Do amanhã Ele cuida.”
Interrompi para dizer aquela frase me incomodava. Confessei que eu tinha alguma
dificuldade em aceitar que eu não era o artesão do meu destino. Zayn me corrigiu: “Não
falei isto. Sem dúvida que cada um molda o próprio destino. A existência é o barro
universal; a Lei da Ação e Reação é a espátula cósmica. Este é o poder sagrado das
escolhas. Terei o amanhã na exata dimensão das minhas necessidades evolutivas.” Virou
o rosto em minha direção e disparou: “Não tenha dúvida, frequenatmos em uma escola
de excelência.”

Falei que as coisas não eram simples assim. Eu já tinha presenciado muita desgraça.
Assisti a vida de pessoas viradas ao avesso de uma hora para outra. Tempestades
existenciais varreram a alegria de muita gente conhecida. Alguns nunca conseguiram se
recuperar. Zayn ponderou: “Nunca é um tempo que não existe para que o mal perdure”.
Em seguida prosseguiu: “Entenda que cada um tem as suas próprias lições; quem
determina o tempo de duração delas é o aluno. Aprendeu, segue em frente; não
entendeu, novas explicações da mesma lição. Aceite a sabedoria, a justiça e o amor da
vida, ainda que não seja capaz de compreender a beleza daquele momento. Acredite,
sempre há uma boa razão para todos os acontecimentos. Não lamente, aproveite a
oportunidade e cresça.” Falei que entendia a profundidade das suas palavras, porém,
me intrigava ver pessoas boas passarem por sofrimentos inexplicáveis e imprevisíveis.
Zayn, embora enigmático, foi mais fundo no raciocínio: “A existência é apenas um
recorte. A vida é a imagem por inteiro.”

Ato seguinte, perguntou se eu tinha filhos. Falei que era abençoado por ter duas filhas,
já maiores de idade. Ele perguntou seu eu já as tinha maltratado. Respondi que jamais
me ocorrera absurda ideia. Eu nunca tinha maltratado sequer um desconhecido, como
imaginar em maltratar pessoas que eu amava com toda a força do coração. Zayn disse:
“Não tenho a menor dúvida quanto às suas palavras. Contudo, você e eu, apesar de
amarmos profundamente nossos filhos, os educamos à medida da sabedoria e firmeza
necessárias para que cresçam nos trilhos da luz. Negamos desejos insensatos,
repreendemos nos erros, aconselhamos dentro da ética, ensinamos as virtudes,
envolvemos com amor. Mesmo assim há situações de equívocos e de rebeldia por parte
deles. Então, temos que ser ainda mais firmes para que não restem deseducados pelas
sombras que são inerentes à humanidade. Esta firmeza, muitas vezes manifestadas em
forma de repreensão e de negativas, seria um ato de maldade ou de amor? De descuido
ou de cuidado?” Eu me mantive calado. Claro que, apesar do rigor, era um ato de amor.
Ele prosseguiu: “Situações que acontecem todos os dias em lares do mundo habitados
por pais amorosos. Pois é preferível que sejam encaminhados com afeto de casa a serem
moldados pela aspereza do mundo. Por que imaginamos que o Pai Maior, com a sua
infinita capacidade de amar, enorme sabedoria e senso de justiça, faria menos ou pior
do que fazemos você e eu? Como todo bom pai, zeloso em ensinar os seus bons valores
e conceitos, Ele nos orienta à sua imagem e semelhança. A cada dia é preciso ser mais
parecido. Não no corpo, mas nas ideias e no coração. Um pouco mais próximo a Sua
imagem e semelhança em nossa alma e nas escolhas de todos os dias.”

“Faça o seu melhor hoje; amanhã um pouco mais. No mais, sem demais, nada lhe será
negado.”
Questionei se essa linha de raciocínio não induzia as pessoas a negociar um futuro
promissor. Zayn sorriu diante da minha malícia e lamentou: “Apenas os tolos agem
assim”. Olhou as areias sem fim por breves instantes e tornou ao tom enigmático: “Não
se negocia com o deserto.”

Pedi para ele explicar melhor. Zayn foi generoso: “De nada serve fazer o bem sem ser
bom. Nenhum valor tem a caridade por interesse grosseiro e sem amor. É a aparência
em detrimento da essência. O Paraíso não está disponível na prateleira de um mercado.
O motivo é simples: o céu está dentro de você. O passaporte para as Terras Altas é
confeccionado pelo próprio coração através das mãos que acodem, dos braços que
abraçam, dos lábios que consolam e beijam.”

Tornou a olhar o deserto e disse: “O deserto não aceita barganha nem se deixa enganar.
Consigo me enfeitar para você; diante do deserto, não tenha dúvida, estarei sempre nu.”
Fez uma pausa e disse como se falasse consigo mesmo: “Todos os reis estão nus.” Virou-
se para mim e ensinou: “Ao deserto apenas importa assistir e auxiliar ao pequeno grão
de trigo a crescer até se transformar no pão que alimentará a humanidade em suas ceias
espirituais. Todo o resto não passa de retórica na vã tentativa de ludibriar o deserto.
Sem amor não se avança na travessia. Contudo, o amor, apesar de ser uma virtude
comum a todos, não é de fácil compreensão quanto à sua extensão e poder. Apenas a
fé permite a percepção de toda a amplitude possível ao amor.”

Em seguida, concluiu: “Confundimos apego com amor; crença com fé. Por isto nos
sentimos desconfortáveis e desorientados com a impermanência dos dias no deserto.”

Mais uma vez a questão da fé diferenciada da crença. Eu tinha muitas perguntas para a
fazer ao Zayn, porém veio a ordem para a habitual parada para um ligeiro descanso no
meio do dia. Zayn pediu licença, pois tinha de encontrar com Abdul, o médico que seguia
com a caravana para atender as pessoas no oásis. Abdul o acompanhava clinicamente
durante a travessia. Peguei o meu cantil, um punhado nozes e me afastei para pensar
sobre a questão da fé. Foi quando vi o caravaneiro sozinho, agachado e compenetrado
sobre um objeto. Aproximei-me. Ao sentir a minha presença, ele se virou e não fez
qualquer objeção. Cheguei mais perto e notei que ele mexia em um rádio. Sem que eu
nada perguntasse, ele comentou que como estávamos próximos ao oásis era de praxe
fazer contato através do rádio. Explicou que no oásis funcionava uma estação amadora
de rádio que transmitia música, notícias e orientava as caravanas que passavam ao largo.
Percebi que o caravaneiro enfrentava dificuldade em sintonizar o seu rádio na
frequência da estação do oásis. Ele se mantinha sereno e afável. Aproveitei para indagar
sobre o que havia na fé e na crença que eu achava não ter entendido. O caravaneiro foi
generoso: “É muito comum as pessoas confundirem os conceitos de crença com os da
fé. A crença surge da percepção sensorial de um mundo invisível que permeia e interfere
no mundo visível. Em verdade, se trata de um mesmo mundo, apenas em distintas
dimensões, nem sempre accessível à medida dos desejos, mas da necessidade e do
aprimoramento.”

“Neste ponto a fé começa a se tornar tangível. A fé surge do conhecimento e do exercício


das virtudes, simples e complexas, todas tendo o amor como raiz e fruto. Como o todo
está contido na parte, a fé é a virtude que move o poder do universo através de cada
pessoa. Por isto se diz que a fé faz o inacreditável.”

“A crença é uma percepção; a fé, uma construção. A crença é sensorial; a fé, uma
virtude. Todas as virtudes reunidas concedem o poder da luz. A fé, sem dúvida, embora
banalizada em discursos de religiosidade superficial, é uma virtude profunda e nem
sempre fácil para se conquistar. Antes, o andarilho precisa sedimentar em si outras
virtudes para servirem de alicerces para fé. A fé é a ponte pela qual o sagrado se
manifesta em você.”

Eu falei que a explicação era boa, mas restava a sensação de que ainda faltava algo a ser
compreendido quanto à fé. O sentimento traduzido em palavras simples para a plena
captação do conceito. Afinal, as palavras são cápsulas que trazem em si a clareza e o
poder de uma ideia.

Fui interrompido pela chiadeira do rádio que aumentou de volume. Como se viesse a
sugestão para eu me calar um pouco. Rimos. Ficamos alguns instantes em silêncio
enquanto o caravaneiro tentava encontrar as ondas da estação do oásis. De repente, ele
se virou me olhou com a aquela expressão de quem é assaltado por uma ideia e disse:
“Somos como um rádio. As pilhas são a energia vital que nos anima durante a existência.
A crença é como ligar o rádio na expectativa de ouvir uma música. Sem sintonizar em
uma estação transmissora não ouviremos nenhuma melodia, o rádio será apenas ruído.
O sagrado é a estação transmissora. O amor é o botão de frequência ou dial. A sintonia
entre o rádio e a estação se chama fé.”

“Transmissor e receptor precisam estar em conexão pura, livre de interferências


indevidas para uma melhor comunicação. Um rádio fora de frequência apenas faz
barulho. Em sintonia, traz a música que transforma a vida.”

Neste instante, não por acaso, o ruído cessou e uma doce melodia árabe pode ser ouvida
através do rádio. O caravaneiro tinha conseguido alinhar o seu rádio à estação do oásis.
Ele arqueou os lábios em leve sorriso e sussurrou como quem conta um segredo: “A fé
permite a música que nos faz bailar na grande sinfonia cósmica.”

Em seguida o caravaneiro disse para eu me aprontar, pois estava na hora da travessia


prosseguir. Zayn emparelhou o seu camelo ao meu. Ele falou que Abdul tinha verificado
a sua pressão arterial e estava tudo bem. Sorrimos. Seguimos um longo tempo em
silêncio até que comentei que eu tinha entendido a sofisticação da fé através da
metáfora simples de um rádio, uma linguagem disponível a qualquer pessoa todos os
dias. Zayn comentou: “Assim é o amor e a sabedoria. Através das coisas simples e
corriqueiras o deserto nos mostra a sua sofisticação e importância.”

No entanto o alertei que, embora tenha entendido o conceito da fé por intermédio da


figura do rádio, algo ainda restava incompreendido em mim. Na prática, como usar a fé
para me sintonizar com as ondas cósmicas? Zayn se valeu da mesma metáfora para
encerrar a lição: “Ligar o rádio é o passo inicial. Mas isto não basta; você precisa
sintonizar o rádio para ouvir a música. A estação lança a música no ar para todos, mas
apenas uma antena ativada conseguirá captar as ondas da estação e, por consequência,
a música. Esta antena se chama coração. Para ouvir a canção das estrelas tenho que
despertar o amor em mim.”

Fez uma pausa e prosseguiu: “Preciso ativar a beleza em mim. Esta é a frequência sem
a qual não conseguirei sintonizar a beleza que existe em você e no universo. A beleza a
que me refiro é aquela plena em pureza e em amor; eis a canção das estrelas, a música
da vida. Se eu não ouvir essa melodia a minha existência se esgotará nos bueiros dos
dias ralos, tristes e assustados. A música da vida traz consigo a poesia que dissolve os
medos e nos alegra; a serenidade diante das impermanências inerentes ao cotidiano.
Sem a fé não se ouve nenhuma melodia na rádio do deserto; entretanto, com ela, tenho
todo o poder e a força do deserto em mim. Não temo a escuridão, sou a luz.”

Não se disse mais palavra até o final da marcha daquele dia. Não quis jantar. Peguei o
saco de dormir e fui dormir sozinho, distante do acampamento. Deitei olhando para as
estrelas, pensando em quantas possibilidades de sintonia me eram possíveis para ouvir
as suas canções. Adormeci com uma inacreditável sensação de força e poder que
poderiam ser meus. Uma certeza inabalável.

O trigésimo-oitavo dia da travessia – o motim

Como todo aprendiz dedicado, eu já aguardava o caravaneiro quando ele chegou com o
falcão para o treinamento matinal. Era muito cedo, o acampamento despertava. Ter sido
convidado para aprender a arte da falcoaria muito me animava. Contudo, era preciso
honrar o convite; em dois dias, sob o meu comando, o falcão voltara sem nenhuma
presa. Isto me preocupava. Vesti a grossa luva de couro, presente do caravaneiro, e
recebi o pássaro. Senti a força das garras do pássaro de rapina no meu braço esquerdo.
Avaliei o quão difícil seria para um animal de pequeno porte escapar daquele predador.
Conforme o caravaneiro tinha me ensinado, e demonstrado, me aproximei do falcão
para transmitir em pensamento as orientações para a caçada daquele dia. Sem dizer
palavra, falei para ele ver além dos olhos para que pudesse encontrar as presas
escondidas além das aparências do deserto. Retirei a touca que cobria a cabeça da ave;
ela manteve o olhar fixo para frente. Em seguida, a impulsionei com o braço. O falcão
ganhou os céus. Planou em círculos por longos minutos; momentos de muita ansiedade
para mim e absoluta serenidade para o caravaneiro. Quando retornou ao meu braço
não trazia nenhuma caça. Mais uma vez. Aguardei algum comentário do caravaneiro,
mas ele nada disse a respeito. Apenas falou para retornamos ao acampamento, pois
estava na hora de arrumarmos as nossas coisas para a caravana seguir para mais um dia
da travessia. Comentei que estava chateado com o fato de o falcão ainda não ter tido
sucesso em nenhuma caçada sob o meu comando. O caravaneiro disse: “Você está
preocupado com a glória do caçador, por consequência, a sua. Esta é a razão do falcão
não encontrar nada.” Fez uma pausa antes de explicar, ao seu estilo, de modo
enigmático: “Esqueça a caça e se concentre em viver o mecanismo da busca. Então, toda
a procura irá se revelar. O troféu não é a presa, mas o perfeito voo.”

Andávamos lado a lado, já bem próximos ao acampamento, eu estava para comentar


que não via a mulher com olhos da cor de lápis-lazúli há dois dias, quando notamos uma
enorme confusão. Liderados por Omar e Jamil, um pequeno grupo formado por alguns
encarregados amotinados mantinha sob a mira de armas os outros encarregados, além
dos demais viajantes da caravana. Eles ameaçavam matar sumariamente quem os
desobedecesse. Omar e Jamil tinham personalidades distintas. Enquanto Omar era
calado e carrancudo, Jamil era falante e popular. Omar nos apontou o rifle quando nos
aproximamos. Foi Jamil quem fez a ameaça verbal. Disse que se houvesse reação
teríamos uma tragédia. Acrescentou que estavam insatisfeitos com o comando do
caravaneiro, pela divisão dos lucros provenientes da caravana. O caravaneiro, sem
demonstrar qualquer resquício de nervosismo e nenhuma pressa, passou o falcão para
mim. Somente depois se manifestou. A sua voz era clara, mansa e sem medo: “Todas as
condições foram expostas antes de a caravana partir. Ofereci o que considero justo.
Ninguém foi obrigado a aceitar ou a vir. Quem o fez deve honrar o compromisso ou tem
a opção de se desligar dos serviços da caravana. Pode retornar, seguir para o oásis, não
mais como encarregado, mas na condição de viajante ou, ainda, partir para onde
desejar.” Fez uma breve pausa para prosseguir: “Ninguém precisa fazer aquilo que não
concorda. Apenas não pode, através da violência, obrigar os outros a fazer o que não
querem ou subtrair os seus pertences.”

Jamil disse que os encarregados se sentiam explorados e maltratados. Aquela era a


revolta dos oprimidos, bradou. O caravaneiro ponderou: “As condições do deserto são
muito inóspitas; a travessia pode se frustrar a qualquer erro. Cabe a mim manter a
ordem e a harmonia na caravana. Estamos a três dias de chegar ao oásis. Lá
encontraremos um tribunal com magistrados afeitos às leis do deserto. Os insatisfeitos
podem propor as reparações que considerarem devidas. No entanto, eu os alerto, pelas
leis do deserto todo caravaneiro tem direito absoluto sobre a caravana; as dificuldades
encontradas no deserto exigem firmeza sob o risco de a travessia não se completar. Em
contrapartida, todo caravaneiro tem o compromisso de oferecer a própria vida para
levá-la em segurança até o destino. Assim são as leis do deserto. Todos aqui foram
avisados das regras antes de a caravana partir.” Olhou nos olhos de cada rebelde e
sibilou: “Isso não é uma insurreição. Em verdade, não passa de coação e um roubo
vulgar.”

O caravaneiro avisou a eles que o tribunal do deserto seria implacável quando


chegássemos ao oásis. Todavia, concederia o perdão se desistissem espontaneamente
do crime que cometiam. O circunspecto Omar, que se mantivera calado, tomou a frente
para dizer que era tarde demais para o arrependimento. Acrescentou que não eram
ingênuos a ponto de se dirigirem para o oásis, onde sabiam que encontrariam olhares
de censura. Mudariam de rumo em sentido a uma aldeia tuaregue a menos de um dia
de marcha. O líder dos aldeões aguardava a caravana. Lá, sim, todos seriam julgados. O
caravaneiro arqueou os lábios em leve sorriso, como se já esperasse a malícia de Omar
e disse: “Um julgamento, para ter a dignidade de assim se denominar, pressupõe uma
análise honesta dos fatos, uma defesa ampla em possibilidades e uma decisão
descompromissada de quaisquer interesses alheios à verdadeira justiça. Caso contrário,
nessa aldeia encontraremos somente a divisão do butim e a retórica tortuosa para
justificar os lucros da pilhagem.”
O caravaneiro não opôs reação quando as suas mãos foram amarradas. Omar tentou
seguir no cavalo branco do caravaneiro, no entanto, o animal, aparentemente dócil, não
permitiu outra montaria. Vigiado de perto pelo mal-humorado Omar, o caravaneiro
seguiu a pé, ao lado do cavalo e dos demais encarregados leais a ele. Jamil garantiu a
todos da caravana que, se não criassem problemas, seriam liberados após o julgamento
na aldeia. Nada falou sobre a destinação dos seus bens e pertences. Os encarregados
rebeldes seguiram ao lado da caravana com as suas armas apontadas de modo
ameaçador para os demais viajantes montados em seus camelos. Eu fiz questão de ir
junto ao caravaneiro, embora Jamil dissesse que não era necessário. Insisti. Eles riram,
porém, permitiram. Segui a pé, embora desamarrado nas mãos. Na avaliação deles eu
não oferecia perigo. O caravaneiro sorriu com os olhos para mim. Em suas feições não
se encontrava um único traço de ódio, apenas serenidade e atenção. Passado algum
tempo que andávamos, comentei com ele que me surpreendia com tamanha
tranquilidade. O caravaneiro disse: “Não tenho controle sobre as tempestades do
mundo, mas tenho total domínio para que elas não alcancem o meu coração.” Fez uma
pausa e acrescentou: “No mais, o momento envolve muito perigo e atenção. Preciso da
mente clara para as decisões exatas em tempo e conteúdo, sem as interferências
sombrias de um coração afogado em ódio.”

Assim como quase todos na caravana, eu estava com medo. Eu percebia medo até
mesmo nos homens insurgentes e armados. Perguntei se o caravaneiro não sentia nem
mesmo uma ponta de medo. Ele disse com sincera humildade: “A hora do medo passou.
O momento é de coragem, esperança e fé.”

Ele tinha razão. Para isso servem as virtudes. Qualquer aprendizado apenas faz sentido
se aplicado às situações do cotidiano; o conhecimento precisa de exercício para se
transformar em sabedoria. Estamos condicionados a sentir medo diante das dificuldades
que se apresentam. Contudo, o medo, por se tratar de uma sombra, é um fator
ocultador das virtudes, das boas ideias e melhores escolhas. O medo ofusca a
manifestação da luz. Diante disto, me esforcei para dominar as minhas emoções nos
trilhos das palavras do caravaneiro. Aos poucos também me acalmei, comecei a
raciocinar melhor e a percepção se mostrou mais apurada. Foi quando me dei conta de
que eu não tinha visto a bela mulher de olhos da cor de lápis-lazúli. Vasculhei com os
olhos por toda a caravana sem o menor sinal dela. Perguntei ao caravaneiro se ele a
tinha visto. Ele apenas sacudiu a cabeça em negativa. Por uma fração de segundo, achei
que a vira montada em seu vigoroso cavalo negro, o Vento, observando a caravana no
alto de uma duna distante. Forcei os olhos, não havia nada. Considerei que não passara
de uma miragem típica do deserto.

Seguimos por mais algumas horas. A habitual parada no meio do dia foi desautorizada
por Omar, embora Jamil a desejasse. O insurgente carrancudo insistiu em apressar a
chegada até a aldeia. Houve uma breve discussão; a vontade de Omar em seguir parecia
que prevaleceria, quando o caravaneiro se intrometeu para dizer que era preciso parar.
Ponderou que na caravana havia pessoas mais velhas e outras que não estavam bem de
saúde. A parada seria providencial. Omar argumentou que por vários dias a caravana
seguiu direto sem qualquer descanso. O caravaneiro, com a fala pausada e tranquila,
explicou que aquele não era um dia comum. A tensão corrói a resistência física, explicou.
Omar tornou a negar. O caravaneiro disse que não daria mais um passo. Sentou-se na
areia. Diante do espanto geral, um gesto de rebeldia dentro da insurreição.

Omar apontou a espingarda para a cabeça do caravaneiro. O ameaçou de morte se ele


não se levantasse de imediato. O caravaneiro apenas o olhou profundamente nos olhos.
Não disse palavra nem se levantou. Neste instante, tomado por uma estranha calma,
proveniente de uma convicção profunda eivada no âmago da minha alma, também me
sentei. Em seguida, os encarregados leais ao caravaneiro também se sentaram, mesmo
com as ameaças escalando tons. Um a um, todos os demais viajantes se acomodaram
pelas areias do deserto. De pé apenas os insurgentes diante daqueles que se insurgiam
face a insurreição inicial.

Jamil ameaçou matar a todos caso continuassem a desobedecer. Ele estava visivelmente
descontrolado. Ninguém se manifestou. Jamil estava frente a um impasse. Para valer a
sua autoridade teria que tomar uma atitude que demonstrasse, de forma inequívoca, o
seu poder. No entanto, assassinar toda a caravana no meio do deserto seria uma atitude
tão extrema que, em verdade, mostraria a sua fraqueza e inabilidade em lidar com a
situação. Jamil sabia que restaria desmoralizado perante a aldeia de tuaregues da qual
dependiam de apoio. Liderança e autoridade são conceitos distintos. A liderança brota
do bom exemplo; a autoridade surge em razão da lei ou da força bruta. O caravaneiro
era um líder por causa das leis do deserto, mas também pela admiração que as suas
atitudes geraram perante a caravana; Omar e Jamil não passavam de pessoas
autoritárias que se impunham diante do pavor que provocavam. Contudo, a violência, à
régua da exacerbação, demonstra sempre descontrole, medo e ignorância. Com a
resiliência à medida da ética pessoal, todos, sem exceção, têm um código de conduta
no qual estabelecem limite ao mal. Com os tuaregues não era diferente; dificilmente
compactuariam com um extermínio insensato envolvendo pessoas comuns e indefesas.
O deserto era um solo sagrado para esse povo. No entanto, diante de um desatino
qualquer, o risco que corríamos era enorme e todos estavam cientes disto. Alguns, no
entanto, percebiam algo além; sabiam estar na fronteira entre a tragédia e a redenção.

Fez-se um silêncio, ao mesmo tempo, abismal e celestial; de sepulcro e de vida em


botão. Instantes que pareceram demorar uma eternidade. Os próximos movimentos
definiriam as sombras ou a luz daquele dia.

Foi quando Kalil, o bom homem do chá, uma pessoa sábia com quem eu tinha aprendido
muito sobre a alma do mundo, além do valor da simplicidade e da humildade, se
levantou, disse que iria colocar algumas ervas em infusão e perguntou se alguém estava
servido. Diante da tensão e do inusitado, todos riram. Menos Jamil e, principalmente,
Omar. Este, irritado, pegou o homem do chá pelo braço, encostou a arma na sua cabeça
e ameaçou que o mataria se todos não se levantassem de imediato e reiniciassem a
marcha. Disse, ainda, que mataria um por vez até que fosse obedecido. Ninguém se
levantou, exceto o caravaneiro. Não para obedecer a ordem de Omar, porém para
aconselhar: “Cortar a cabeça é o modo mais eficaz para se matar um animal. Mate a
mim e terá todo o corpo da caravana à disposição.”
Omar ficou atônito. Ele não tinha se programado para aquelas reações. Em sua cabeça
o roteiro daquele dia teria de narrar uma história bem diferente, uma narrativa na qual
o horror imporia a submissão. Tudo parecia fora de controle. Mais por instinto do que
por raciocínio, Omar empurrou o homem do chá para o chão, apontou a arma para o
caravaneiro e mandou que se aproximasse. Este, em resposta, foi monossilábico e
desafiador: “Não.” Ele não faria qualquer movimento para facilitar o trabalho do
carrasco; era ousadia, coragem e fé, jamais um suicídio.

Um tiro.

O barulho me fez fechar os olhos. Ouvi alguns gritos de susto e pavor. Quando reabri os
olhos me surpreendi com as feições de surpresa no rosto de Omar. Virei-me para a
direção aonde o seu olhar assustado se dirigia. Então, entendi. O tiro não tinha saído da
arma de Omar nem de ninguém da caravana. Tinha sido um tiro dado para o alto,
disparado pelo líder dos tuaregues de cima de uma duna não muito distante. Ladeado
por seu bando, ele se aproximou.

Como o inesperado não se cansava de se fazer presente naquele dia, cavalgando altiva
com o seu vigoroso cavalo negro por entre o bando, estava ela. Sim, a bela mulher com
os olhos da cor de lápis-lazúli. Omar e Jamil se mostraram servis diante de Ali, o chefe
tuaregue. Jamil, de pronto, ofereceu a sua versão dos fatos. Falou que o caravaneiro era
um homem impiedoso e injusto. Era também insensível e explorava a todos na caravana,
cobrando valores abusivos pela travessia. Como se não bastasse, extorquia os
encarregados, os remunerando com um salário miserável. Ali era um homem de poucas
palavras, mas a situação parecia inspiradora. Ele disse: “Essa foi a história que Omar me
contou quando, há meses, me procurou pedindo por apoio para interceptar a caravana.
No entanto, não é isto que vejo. Tampouco esta é a história que essa mulher me contou”
e apontou para a mulher de olhos azuis. O chefe tuaregue prosseguiu: “Omar também
não me falou que o caravaneiro em questão era este.” Com o queixo apontou para o
homem sereno que estava de pé, com as mãos amarradas, ao meu lado. Ali continuou:
“Eu o conheço. Esse caravaneiro é um homem de lei. Ele segue as leis do deserto. Leis
que o povo tuaregue também está sujeito, assim como todo ser vivo que habita ou
atravessa essas areias desde tempos imemoriais.”

“Somos selvagens porque não nos submetemos a ninguém, salvo as leis do deserto. As
leis permitem justiça, jamais roubo. Habitamos o deserto desde que no mundo se fez
vida. Cobramos pedágios daqueles que atravessam os nossos domínios sagrados. Mas
não somos ladrões. Nos fazemos firmes com aqueles que acreditam que não precisam
de autorização e respeito para atravessar o deserto. Também aplicamos a justiça aos
moldes da lei e de nossa consciência. Todavia, somos doces com aqueles que merecem
o mel da vida.” Olhou para a caravaneiro e quis saber se era verdadeira a história
contada por Jamil e Omar. O caravaneiro tornou a dar uma resposta monossilábica:
“Não.” Inesperadamente, acrescentou: “No entanto, para todo fato existe no mínimo
duas versões.” Fez uma pausa proposital para acrescentar: “Além da verdade” Deu de
ombros e concluiu: “Fique à vontade para apurar.”
O chefe tuaregue sorriu diante da honestidade que beirava o atrevimento. Eu tinha
aprendido durante aquela travessia que a verdade sempre protege; a alma do mundo
ama a verdade. Ali apeou do camelo, se aproximou do caravaneiro, puxou um punhal
da cinta de sua túnica e cortou as cordas que amarravam as mãos do caravaneiro. Houve
uma troca de olhares significativa entre os dois. Disse que a partir daquele ponto faria a
vigília da caravana até o oásis. Acrescentou que estávamos em território tuaregue e a
nossa segurança estava assegurada. Em seguida, perguntou o que o caravaneiro faria
com os rebeldes. O caravaneiro não hesitou: “Eles ficarão. Serão julgados pelo seu povo
de acordo com as leis do deserto. Que seja uma sentença de caráter educativo para que
vir permeada em justiça; nenhuma vingança é desejada nem acolhida pelo deserto.”

Sem demora a caravana retomou a travessia. Sobre o meu camelo, no meio da grande
fila, avistei, bem à frente, a mulher de olhos azuis cavalgando ao lado do caravaneiro.
Havia um grande burburinho durante a marcha daquele dia. Todos conversavam sobre
a aventura e as emoções sentidas. Aos poucos fui deixando que outros passassem por
mim. Quis ficar na rabeira da fila, sozinho, para alocar os sentimentos e concatenar as
ideias de tudo que me foi permitido viver. Todos os dias um mestre nos aguarda com
uma nova lição. Aos poucos o mestre daquele dia se fazia visível e a lição ficava
inteligível.

Considerei várias hipóteses e fiz muitas reflexões. Talvez o caravaneiro tivesse percebido
o movimento insurgente antes de eclodir. Isto explicaria o sumiço da mulher de olhos
azuis que partira em busca de apoio junto aos tuaregues, fazendo-os entender a justiça
dos fatos. Pensei também no comportamento do caravaneiro; do risco que se permitira
correr no limite das consequências entre o mal e o bem. Eu tentava entender como,
mesmo diante da possibilidade de o pior acontecer, ele se manteve com inabalável
serenidade; como se nada nem ninguém pudessem atingir a sua alma.

Pensei por muitas horas até clarear o raciocínio. O risco é inerente à vida. Tudo poderia
ter dado errado; seria uma tragédia. De outro lado, os acontecimentos se
desenvolveram de maneira favorável. Como o caravaneiro se movia em prol da luz, por
consequência teria a proteção do deserto. Isto é uma lei. Mesmo assim algo poderia ter
se mostrado desastroso naquele dia? Sem dúvida. Porém, apenas na aparência. As
manifestações de amor, sabedoria e justiça do deserto nem sempre são de fácil
entendimento.

Contudo, como se manter firme e sereno diante de um final indesejado? A resposta era
de uma simplicidade absurda: A tristeza tem a sua raiz nas frustrações e decepções. Isto
somente acontece quando vivemos em busca das recompensas da existência. O
caravaneiro não vivia em busca dos prêmios; ele apenas se empenhava em fazer a coisa
certa. Tão e somente. Isto o tornava pleno; livre, digno e em paz. Daí brotam todo o
amor e felicidade. Então, nada falta.

Mas o que é a coisa certa? A coisa certa é viver o seu melhor a cada dia, com leveza e
alegria, à medida da sua consciência, nos trilhos das virtudes já iluminadas em si. A
consciência é a percepção que cada um tem de si e do deserto. Assim, cada qual ao seu
passo faz a travessia rumo à luz; assim se chega ao oásis. Lá, a verdade. Este é todo o
poder.

Ao final da tarde a caravana parou para acampar e passar a noite. Vi quando o


caravaneiro passou com o falcão para o treinamento vespertino. Fui atrás. Como se me
esperasse, sem dizer palavra, me passou a ave. Pousado sobre a grossa luva de couro
que eu usava no braço esquerdo, me aproximei do pássaro para falar, apenas em
pensamento, que era preciso que visse além dos olhos para encontrar tudo aquilo que
estava oculto à aparência. Mas não só. Independente de capturar uma presa, sugeri ao
falcão que subisse o mais alto que as suas asas suportassem, pedi por um voo perfeito;
com leveza, pela simples alegria de sentir o vento do deserto impulsionando e mantendo
o seu corpo no ar.

Tirei a touca da cabeça da ave. O falcão se virou para mim por uma fração de segundo
como se tivesse entendido cada palavra que não falei. Com o movimento do meu braço
o pássaro se lançou às alturas. Planou pelo azul do céu por um bom tempo, como se
nada mais importasse, salvo voar pela precisão de voar. Voar é preciso; viver não é
preciso. Naquele instante foi impossível não lembrar do famoso poema do alquimista
lisboeta.

Inesperadamente o falcão recolheu as asas para um mergulho vertiginoso até o solo. Em


seguida trouxe em suas vigorosas garras um pequeno roedor. O caravaneiro me olhou
e arqueou os lábios em leve sorriso. Em silêncio, balancei a cabeça em agradecimento
por aquela inestimável lição.

Adormeci deitado na areia, distante do acampamento, olhando as estrelas e à espera da


bela mulher com os olhos da cor da lápis-lazúli. Tanta coisa para conversar. Ela não veio.

O penúltimo dia da travessia – o voo do falcão

Era o penúltimo dia da travessia. Desde muito cedo eu estava de pé. O céu tinha a
tonalidade rosada, típica de quando o sol ainda não venceu a linha do horizonte. Eu
andei com o caravaneiro para um local afastado do acampamento. Ele avisou que seria
o último treinamento antes de chegarmos ao oásis. Em seguida me passou o falcão.
Senti a pressão das garras em torno da grossa luva de couro que eu usava no braço
esquerdo. Em pensamento, enviei à ave as orientações quanto a ver além dos olhos,
mas, principalmente, quanto à simples alegria de se sentir em pleno voo. Retirei a
touca que lhe cobria a cabeça. O pássaro me olhou por um breve instante, em seguida
fiz o movimento de impulsão e o falcão logo ganhou altura no céu. Planou em círculos
por longos minutos até que repentinamente recolheu as enormes asas junto ao corpo
em posição aerodinâmica instintiva para um mergulho vertiginoso ao solo. Retornou
com uma serpente em suas garras. O caravaneiro se manteve impassível, atitude que
interpretei como um sinal de aprovação. Sem nada dizer, eu sorri para mim.
Retornamos ao acampamento que despertava. Fui à tenda do refeitório e me servi de
uma caneca com café fresco. Tornei a me afastar do acampamento. Com os olhos
vasculhei os arredores em busca da bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. Há
dias não conversávamos. Muitas coisas importantes tinham acontecido. Eu sentia falta
de falar com ela e, principalmente, de ouvi-la. A sua maneira de pensar era peculiar e
interessante. No entanto, não a vi naquela manhã. Quem se aproximou foi a Ingrid, a
astrônoma nórdica de cabelos ruivos, ao lado do Paolo, o seu simpático namorado
italiano. Traziam nos rostos a expressão de encantamento típica dos casais
apaixonados. Ofereceram-me alguns biscoitos para acompanhar o café. Aceitei e os
convidei para sentarem ao meu lado. Acomodados na areia, Ingrid comentou que logo
que chegássemos montaria os telescópios para iniciar os seus estudos sobre a
constelação apenas visível do oásis. Paolo brincou dizendo que ela não precisava ter
pressa, pois as estrelas a esperariam por alguns milhões anos. Rimos. Em seguida, ele
quis saber se eu me considerava pronto para encontrar com o sábio dervixe. Também
brincando, lembrou que, ao contrário das estrelas, eu não teria tanto tempo para fazer
aquilo a que me propunha. Concordei com ele. Contudo, ponderei que o tempo,
embora fosse um limitador da existência, nunca seria um adversário, a depender de
como nos relacionamos com ele.
Paolo ponderou que não era bem assim. Como era um homem polido, pediu desculpas
antecipadas pelo que falaria, mas lembrou que o encontro com o dervixe poderia se
frustrar por vários motivos. Doença, morte, viagem inesperada, compromissos
urgentes, há situações imponderáveis a impedir a conversa que eu desejava ter. Então
a cansativa viagem se mostraria improdutiva. Concordei que eu tinha me proposto à
travessia em razão dos enormes conhecimentos sobre as coisas do céu e da terra que
o sábio poderia compartilhar comigo. Era inegável que tal encontro poderia nunca
acontecer. Todavia, cada dia no deserto tinha sido de incomensurável sabedoria a
ponto de não deixar qualquer rastro de perda ou de decepção se a conversa não fosse
possível. “Penso que a caravana foi como um grão de trigo que a cada dia cresceu em
mim. Sinto o grão pronto para se transformar em pão. Pão que me alimentará e que
levarei sempre comigo para oferecer em todas as demais travessias que vier a fazer. Se
eu encontrar com o dervixe o meu coração ficará em festa; caso contrário, nada
também me faltará. Aprendi a encontrar em mim, quando alinhado à luz, o suficiente à
ceia de cada dia”, argumentei. Em seguida, conclui: “Somente com a minha permissão
os fatos do mundo terão força capaz de atormentar a minha alma.”

Paolo questionou se não era um olhar arrogante perante mim mesmo. Eu propus a ele
um raciocínio diferente: “Penso que dependerá sempre dos olhos com os quais eu me
perceber. Se eu me enxergar repleto em sabedoria não passarei de um estúpido a
incorrer em antigos erros. Se eu entender o exato tamanho que tenho me permitirei
os novos erros; com eles a possibilidade dos conhecimentos ainda inimagináveis.”
Olhei para a imensidão do deserto e expliquei: “O que não posso é condicionar a
minha paz ou felicidade aos acontecimentos da caravana ou do oásis. Isto seria uma
concessão indevida sobre a minha vida.”

“A mim cabe a vigilância sobre as minhas escolhas para que sejam sempre manifestas
em virtudes. Ao me iluminar embelezo a caravana e o oásis. Mesmo que ninguém
perceba, o deserto me reconhecerá. Isto me basta.”

“Um fato pode me desagradar, posso desaprovar determinada atitude alheia, pode
uma escolha não satisfazer a ninguém na caravana ou o dervixe do oásis não entender
as razões que me movem, porém entendo que isso faz parte de um mundo onde todos
estão em processo de aprendizado. Os equívocos serão inevitáveis. Inclusive os meus.
Não raro, erro em escolhas sobre algo que já conheço. Entretanto, saber não significa
ser; trata-se apenas do passo inicial. Todavia, nada disso pode me descontrolar, abater
ou paralisar. Evito a culpa que aprisiona em função da dependência que gera. Escolho
trabalhar com a responsabilidade pessoal de fazer diferente e melhor da próxima vez.”

“Este é o único poder que tenho. Contudo, é de uma força incomensurável; ele muda o
mundo por transformar a mim mesmo. Com ele sou invencível como o pequeno grão
de areia que traz a alma do deserto em si e a manifesta. Esse é o exercício pelo qual
tenho a possibilidade de, a cada dia, me aproximar um pouco mais da imagem e da
semelhança de Deus. Esta é a travessia para luz. A caravana parte todos os dias bem
cedo.”

Aproveitando a metáfora que eu fazia, Paolo lembrou que no deserto há severas


tempestades de areia que costumam fazer enormes estragos às caravanas. Balancei a
cabeça em concordância e disse: “Sem dúvida. As tempestades movimentam os grãos
de areias, soterram algumas caravanas, porém, passam. O deserto permanece
incólume.” Fiz uma pausa para prosseguir: “Em suma, as tempestades nunca destroem
o deserto, apenas atingem o que está fora dele.”

“Assim, não posso condicionar a plenitude do ser à obtenção de algum bem material;
de algo ou condição externa a mim. Preciso das coisas concretas para atravessar a
existência; todavia, apenas o que é abstrato interessa à vida. No concreto, o tangível;
no abstrato, a verdade. Logo, não preciso esperar o acontecimento de algum fato, seja
na caravana, seja no oásis, para viver a felicidade, em paz, com liberdade, dignidade e
amor.”

“Se eu viver cada dia na dependência do que ainda não tenho ou na espera de alguma
realização – além das minhas próprias transmutações – o tempo será em vão; as
tempestades se comportarão com uma fúria destruidora. A mais terrível das
tempestades, quando bem aproveitada, somente servirá para impulsionar o pequeno
grão de areia para longe, a um ponto ainda inimaginável, além de fantástico. Há
muitos recantos no deserto, longe dos oásis, com impensadas maneiras de ser e viver.”
Olhei para o horizonte e conclui: “Faça a travessia, aproveite a caravana, se divirta no
oásis; mas seja o grão de areia que é parte do deserto e, por isto, traz em si todo o
poder do deserto.”

Estava na hora de partirmos. A Ingrid falou para o Paolo realizar aquele trecho da
travessia ao meu lado para continuarmos a conversa. Ela aproveitaria para seguir a
marcha ao lado do astrólogo com quem gostava de discutir sobre as estrelas. Brincou
ao dizer que astrônomos gostavam de conversar sobre o céu com os astrólogos, apesar
de não concordarem em quase nada. Rimos. Deu um beijo no namorado e se foi. O
italiano emparelhou o seu camelo ao meu. Partimos. Passados alguns minutos, Paolo
pediu para eu explicar melhor a teoria sobre qual eu me referia. Ofereci o melhor que
pude: “Existem muitos tipos de vícios. Drogas e jogos de azar são os mais comuns por
serem os mais visíveis pelos estragos aparentes que proporcionam. No entanto, há
outros, talvez mais perigosos, por serem de sofisticada percepção, não nos permitem
entender a dependência que nos aprisiona.” Citei uma frase conhecida na Ordem
Esotérica dos Monges da Montanha da qual eu era membro: “‘A pior prisão é aquela
que não tem grades.’” Em seguida, prossegui: “Quem não se percebe preso não sente
falta da liberdade. Não esqueçamos que as únicas grades que têm força para nos
manter cativos são aquelas que nós próprios criamos ou permitimos que nos
imponham. São todas meramente conceituais, frutos da ignorância e do atavismo
dominador. As grades de ferro podem conter um corpo; jamais uma alma livre. As
grades intelectuais, emocionais e espirituais mantêm uma alma cativa por milênios.
Por exemplo, ‘apenas serei feliz se fulano agir de determinada maneira; se beltrano
aprovar a minha escolha’ são situações comuns e desnecessárias. Em verdade, nocivas.
Mas há outras subespécies que condicionam a felicidade à conquista de um diploma, à
compra de uma casa ou à realização de uma viagem. Não que haja algo de errado em
querer um diploma, uma casa ou em fazer uma viagem. O que não pode é ficar na
dependência da ocorrência de um fato externo para viver a leveza da plenitude apenas
possível no âmago do ser.”

“Assim acontece com a paz. Aguardamos que alguém faça algum movimento para que
alcancemos a sonhada paz. Preciso do consentimento de fulano para que os dias sejam
serenos; necessito da aceitação de beltrano para que a vida se pacifique em mim.
Mentiras a nos enganar, as quais repetimos para nós mesmos todos os dias! Não
passam de dependências; como tais, todas inúteis. Não é diferente com a dignidade.
Nada além do que há em mim a impede. Para ser digno basta que eu trate os outros
como gosto que me tratem. Nada mais é necessário. Não há nada a se esperar, em
absoluto; é uma simples escolha. Como as demais plenitudes, depende somente da
maneira como irei me relacionar comigo mesmo.”

O italiano me interrompeu para saber quais eram as plenitudes de que eu tanto falava.
Eu lhe disse: “A plenitude total é composta das cinco plenitudes básicas: a liberdade, a
paz, a dignidade, o amor incondicional e a felicidade. Nenhuma delas reside em
qualquer fato externo a você. Todas estão em sementes no âmago de cada pessoa.
Fazer com que floresçam é o sentido da vida.”

Ao longe, à frente da caravana, vi o caravaneiro cavalgando sobre o seu cavalo branco


levando o imponente falcão sobre as grossas luvas de couro que usava no braço
esquerdo. A imagem me lembrou do ensinamento e serviu de inspiração: “Nada do
que existe ou acontece além do falcão pode impedir a beleza do seu voo. Não importa
a caça ou o clima; vale a leveza de voar e a verdade oculta além dos olhos.”

Paolo me perguntou como tornar as plenitudes uma realidade. Respondi sem titubear:
“Através das escolhas. Tão e somente. A plenitude é o céu azul; as virtudes são as asas
do falcão.”

O italiano quis saber de quais virtudes eu me referia. Especifiquei: “Humildade,


simplicidade, compaixão, sinceridade, generosidade, delicadeza, firmeza, mansidão,
honestidade, coragem, pureza, justiça, misericórdia, alegria, fé, entre algumas outras.
Todas tendo o amor como o vento que lhes sustentam o voo.”
“Os nossos relacionamentos e os fatos do mundo são alimentos ou são venenos à
medida da capacidade do falcão em lidar com o quanto do deserto já consegue
sobrevoar e enxergar.”

Paolo lembrou das doenças e da morte como fatores impeditivos à plenitude. Tornei a
oferecer outro olhar: “As doenças são cármicas, logo estão ligadas ao nosso
aprendizado. Podem nos falar sobre as existências passadas; nestes casos as trazemos
como herança hereditária. Outras estão em sintonia à existência atual. São situações
que nos abalaram emocionalmente e não restaram devidamente absorvidas na
essência do ser. Na busca incessante por pureza e cura a alma expurga aquilo que a
intoxica. Pode ser em agressividade ou depressão; as chamadas ‘feridas da alma’.
Pode, de outro lado, desencadear o funcionamento deficiente de algum órgão ou
mesmo um tumor; as denominadas ‘enfermidades do corpo’. Para uma pessoa
desatenta será uma desgraça sem precedentes. Para o indivíduo conectado à evolução
será uma maravilhosa oportunidade de aprendizado e superação. Ainda que haja
sequelas ou o perecimento físico haverá a cura do espírito, a quintessência do ser,
desde, é claro, que ele tenha encontrado o mestre oculto que traz a lição inerente
àquela dificuldade. As doenças das existências têm por finalidade nos conduzir à cura
para a vida.”

“A morte do corpo, por sua vez, embora seja uma certeza incontestável, permanece
incompreendida. A morte, em verdade, é um ato de amor do universo pela vida.” De
amor? Paolo estranhou. Tentei explicar: “Um gesto de amor por cada um de nós, pela
possibilidade de prosseguir no processo evolutivo em renovadas condições. Quando
assim entendemos, o tempo finito da existência se torna ato de profunda sabedoria
nos impulsionando à infinitude da luz. Então, podemos abraçar o tempo como fazemos
a um amigo.”

“Se eu viver cada dia como uma fonte inesgotável de virtudes, sejam nas manhãs
aconchegantes de sol, sejam nas noites frias de inverno, o tempo se mostrará como
um animado mestre de cerimônias quando me informar que o show terminou. Sem
dúvida o espetáculo valerá tanto o preço da luta cobrado pela existência quanto o
valor da luz ensinado pela vida.”

Veio a ordem para a caravana parar para o habitual descanso breve e uma refeição
ligeira. Apeamos dos camelos. A Ingrid veio ver como o namorado estava. Paolo disse
que estava bem. Ela trouxe um cantil com água e algumas tâmaras desidratadas.
Bebemos e comemos em silêncio. Quando a marcha foi retomada, Ingrid se afastou.
Tornamos a emparelhar as montarias e o italiano pediu que eu me alongasse no
assunto:

Prossegui: “Aproveitar em cada dia a possibilidade de se conhecer um pouco mais, de


tentar algo diferente, de fazer um pouco melhor do que antes; eis a magia da vida. Em
todos os dias portas se abrem a outros patamares da existência na oportunidade de
realizar em si algo não tentado até então. As escolhas aparentemente impossíveis
através de olhares impensados. Quando nos permitimos essa possibilidade acabamos
por descobrir que podemos ir mais; que podemos ver além dos olhos; que podemos
voar mais alto. Que podemos ser o mestre e o aprendiz; o falcoeiro e o falcão. Isto, de
modo inevitável, se refletirá no mundo. Na transformação do ser está a fortuna da
existência, a riqueza da evolução, a revolução do mundo, a nossa herança ao planeta.
Quando vivemos assim não resta vício nem vazio. Todo o momento importa, cada
acontecimento agrega valor pelo aprendizado que traz. Nada falta nem excede;
quando completos transbordamos para a vida.”

“Assim os alquimistas transformam o chumbo em ouro.”

“Não importa o que aconteça no mundo; o importante é aquilo que no mundo


aconteceu e teve força de transformação íntima. A história de uma pessoa não se
narra pelos seus atos heroicos mundo afora, mas pelos fatos que o levaram a
transmutar a si mesmo universo adentro.” Calei-me por alguns instantes antes de
prosseguir: “A lição é para todos; contudo, o aprendizado é pessoal. A exata dimensão
do mundo está na medida da compreensão de si próprio; daquilo que o envolve e o
impulsiona. Assim funciona a consciência a nos moldar a realidade.”

“Aprender, transmutar, compartilhar e seguir, estes são os quatro capítulos do manual


de cada dia no deserto. Esta é a grande lição da caravana; também é o poder
incomensurável do viajante. Um poder que se expande ou se encolhe nas réguas das
virtudes aplicadas. Toda a luz apenas começa a iluminar quando aprendemos a
acender o próprio fogo. Depois cabe continuar alimentando a chama; aos poucos, o
entorno irá se clarear em alcances cada vez maiores. Qualquer coisa além disso não se
se faz necessária; é mera peça de decoração.”

Paolo argumentou que lamentavelmente quase nunca conseguimos realizar tudo o


que projetamos. Tentei mostrar a ele outro olhar: “Se olharmos apenas o quanto ainda
não realizamos sempre restará uma frustração pela infinitude do todo em si. Qualquer
realização no mundo está vinculada a acidentes extrínsecos, ou seja, dependem muitas
vezes de fatores alheios à sua vontade. Assim, não há porque sofrer se o efeito está,
em parte, desvinculado ao esforço dedicado. Vale o aprendizado, a transformação, o
compartilhamento e prosseguimento da travessia sem fim; infinito é o deserto.
Entretanto, se nos alegrarmos em fazer o melhor dentro do oferecido a cada dia
teremos uma diferente e pequena parte do todo acrescida a nós diariamente. Nada
será em vão ou restará desperdiçado. Nenhuma decepção, apenas a alegria da serena
plenitude.”

O italiano não disse mais palavra. Ele precisava de silêncio para alocar aquelas ideias
em si; aproveitar as que julgasse úteis e descartar aquelas que acreditasse
desnecessárias. As ideias são sazonais; algumas se apresentam em tamanha perfeição
por já estarem maduras, outras não prestam ou ainda não estamos prontos para elas.
Seguimos calados por incontáveis minutos. Quando nos demos conta, entardecia.
Chegou a ordem para a caravana parar e montar o acampamento. Era a última noite.
Afastei-me para, em oração, agradecer ao deserto por aquela travessia. Não havia
faltado nem luz nem proteção. A quietude foi interrompida por Paolo. O italiano
retornou para questionar sobre uma das plenitudes, o amor incondicional. Lembrou
que eu havia falado da liberdade, da paz, da dignidade e da felicidade. Nem uma
palavra sobre o amor. Ele acrescentou da importância do amor em nossas vidas, em
como a ausência de amor nos impede a uma existência plena. Tive uma estranha
sensação, pois, de alguma maneira, eu esperava que o Paolo voltasse com essa
questão. Embora estranha, era uma sensação boa. Sorri para mim; sorri para ele. Em
seguida, abordei o tema: “O amor é a virtude mais sofisticada que existe, pois, para ser
alcançada necessita de todas as demais virtudes a lhe sustentar. Apesar disto, o amor é
essencial a cada virtude isolada.” Paolo me interrompeu para dizer que aquilo era um
paradoxo. Eu expliquei: “Todo paradoxo é apenas aparente. Cada virtude se move e se
orienta através de um impulso próprio de amor. Todas juntas se manifestam em
magnitude máxima, o amor em forma de pura luz. A iluminação cósmica.” Para melhor
compreensão usei uma analogia: “As virtudes são como as pétalas de uma flor. O amor
é o miolo que as sustentam. Sem o miolo as pétalas perecem; sem as pétalas não há
flor. Esta flor se chama luz.” O italiano quis saber seu eu me referia ao amor
incondicional. Ponderei: “Amor incondicional, em verdade, é um pleonasmo. Todo
amor, para assim ser, é incondicional por definição e pressuposto. O amor não impõe
condições, não se sujeita às reações, não cobra taxas nem deixa dívidas. Não é credor,
tampouco cria devedores.” Paolo tornou a interromper para falar que era muito triste
ver pessoas que não conheciam o amor por nunca terem encontrado alguém que as
amassem. Acrescentou que ele tinha muita sorte por ter o amor da Ingrid. Eu fiz as
correções que entendia cabíveis: “O amor que você recebe da Ingrid não é seu; é dela.
Tanto que ela pode decidir por nada mais lhe oferecer. Então, nada restará. Em
verdade, o amor que você tem é tão e somente o amor que você compartilha. Este
nasce em você. Com isto você pode dimensionar, orientar e sustentar a própria vida.
Assim, nada faltará.”

“Não haverá dependências externas nem existirá sofrimento pelas escolhas alheias.
Apenas liberdade, dignidade, felicidade e paz oriundas do amor cuja a fonte
inesgotável é o próprio coração.”

“Esperar pelo amor dos outros é o dilema do amor; o equívoco na arte de amar. Raiz-
mor de todas as dependências e sofrimentos.”

Mais uma vez fui interrompido. Desta vez pela Ingrid. A astrônoma veio buscar o
namorado para jantar. Antes de ir, o italiano apertou a minha mão e me agradeceu
pelos ensinamentos daquele dia. Eles se afastaram. Sozinho, me percebi na outra
ponta de onde eu sempre estivera. Lembrei da inúmeras conversas que tivera com
aqueles com os quais eu considerava os meus mestres. O Velho, o Loureiro, o Canção
Estrelada e o Li Tzu formavam o quarteto mágico a me indicar as inúmeras maneiras
para eu encontrar o meu jeito pessoal de acender a minha própria luz, sem precisar da
luz alheia a me iluminar nas noites comuns ao Caminho. Ou à travessia.

Não! Afastei a ideia da mente. Eu gostava da prática de ter os mestres, não para
decidir por mim – este é o papel odioso dos gurus que geram tantos vícios emocionais,
intelectuais e espirituais ao afundar os seguidores em crises existenciais. Prometi a
mim mesmo que jamais me permitiria tamanho ardil – mas para indicar diferentes
possibilidades de olhares e de escolhas. Eu nunca me consideraria um mestre nem
teria qualquer aprendiz; uma ideia que eu afastava com sincera repulsa. Fiquei mais
algum tempo envolto em meus pensamentos quando o caravaneiro se aproximou com
o falcão pousado na grossa luva de couro que usava no braço esquerdo. Comentei que
ele dissera que o treino da manhã teria sido o último da travessia. Ele nada disse,
apenas fez um sinal para acompanhá-lo. Afastamo-nos um pouco mais. De pé ao seu
lado, vi o caravaneiro falar ao pássaro, em pensamento. Por instantes, achei que
tivesse ouvido as palavras não ditas. Quando ele tirou a touca, a ave olhou para mim e,
em seguida, para o caravaneiro. Era como se estivesse agradecendo. E se despedindo.

Com o impulso do braço o falcão ganhou altura. Dessa vez não planou em círculos.
Voou para longe, para além da última duna, para um lugar no céu onde os meus olhos
não conseguiam enxergar. De uma maneira que não saberia explicar, eu não me
surpreendi, assim como eu tinha certeza de que nunca mais veria aquele falcão. Ao
contrário do que eu mesmo acreditaria até então, me alegrei por isto.

O caravaneiro comentou como se falasse consigo: “A leveza de conquistar sem


possuir”. Houve uma rápida troca de olhares entre nós. Um entendimento profundo,
difícil de ser medido em palavras. Sorri para o deserto.

O caravaneiro enterrou a sua grossa luva de couro nas areias do deserto. Entendi que
ele não mais a usaria. Aquela missão terminara. Fiz menção em fazer o mesmo com a
minha luva. Ele me olhou nos olhos, sacudiu a cabeça para que eu não fizesse o
mesmo e avisou: “A sua missão começa aqui.” Em seguida, retornou ao acampamento.
Preferi ficar a sós com o silêncio e a quietude. Passado algum tempo, senti saudade da
bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli, das conversas que tínhamos. Há dias
eu não falava com ela. Ela não apareceu naquela noite. Em sua homenagem decidi
subir uma enorme duna que tinha à minha frente. Ela gostava de bailar no alto das
dunas, de se sentir próxima às estrelas quando queria entrar em comunhão com o
deserto. Escalei a duna. Lá de cima, bem ao fundo, me foi possível avistar o oásis.

O último dia da travessia – o encontro

A expectativa era enorme. A caravana entrou no oásis após quarenta dias de travessia,
por volta do meio-dia. Era o maior oásis do deserto; era lindo. Diferente de tudo que
eu imaginava. Era uma pequena, próspera e improvável cidade perdida em um mar de
areia sem fim. Entre tamareiras, damasqueiros e pessegueiros tinha um enorme lago
de água doce ao centro. Vários poços de água potável estavam distribuídos por todo o
perímetro e eram de livre acesso. Com o solo fértil em função da água, uma
sustentável agricultura de grãos e legumes, como grão de bico e cenoura, abastecia a
população do lugar. Uma brisa constante e suave, além das fartas sombras
proporcionadas pelas muitas árvores, amenizava a temperatura, tornando-a bem
agradável. Uma vegetação rasteira cobria uma grande parte do oásis, emprestando
uma bonita tonalidade de verde que contrastava com o azul firme do céu e o amarelo
típico da areia. As casas possuíam grandes janelas para aproveitar a ventilação e em
quase todas funcionavam alguma oficina ou loja. Identifiquei com facilidade, logo no
primeiro passeio de reconhecimento que fiz, pequenas mercearias, ateliers de tapetes,
alfaiatarias, cutelarias e até mesmo uma escola. As pessoas eram simpáticas e
tranquilas; viviam em harmonia com o deserto. Como não havia acomodação para
todos, a caravana acampou na periferia do oásis, em local apropriado, com poços de
água disponíveis e muitas árvores. Sem demora, tentei localizar o dervixe com quem
eu pretendia conversar e compartilhar da sua afamada sabedoria. No entanto, para a
minha surpresa, os moradores eram vagos em suas respostas. Quando perguntados
onde ele estava, respondiam que “em todos os lugares; em lugar nenhum.”
A exata localização da casa do sábio também se mostrava um enigma. “Onde o vento
destrói as velhas formas”, “Onde o sol encerra com a noite” eram as respostas mais
comuns que eu recebia. Na busca pelo dervixe, entrei em um armazém atrás de
alguma informação. Era um lugar que vendia todo o tipo de coisas, em maior parte
usadas, negociadas pelos viajantes das caravanas que tinham aquele oásis como um
importante entreposto em suas rotas de comércio. As paredes eram cobertas por
enormes prateleiras que continham os objetos comuns e úteis, como óculos de sol,
mas também os mais esdrúxulos que a imaginação alcançava; fiquei sem acreditar ao
me deparar com um escafandro exposto em uma das estantes. Um pequeno grupo de
peregrinos que, como eu, chegara com a caravana estava sentado em torno da única
mesa do lugar. Uma mesa comprida e coletiva. No armazém também se servia chá. Fui
convidado a me juntar a eles. Os comentários à mesa versavam sobre a dificuldade em
se localizar o dervixe. Estavam desanimados, convencidos de que o sábio não existia;
tudo não passava de uma lenda muito bem alimentada pelos moradores do oásis no
intuito de fomentar o turismo local.

Alguns, mais irritados, se declaram enganados. Lembraram que o caravaneiro os


alertara que a caravana não garantia o encontro com o dervixe. Acusaram-no de
participar e lucrar com aquilo que consideram um ardil. Outros ponderaram, não sem
razão, que a travessia era o grande sábio. Cada qual aprendera e se transformara à
medida das suas possibilidades; todos retornariam às suas cidades de origem com as
transmutações que conseguiram alcançar. Deveríamos nos dar por satisfeitos com essa
conquista pessoal. Agora cabia aplicá-las ao cotidiano.

Eu apenas ouvia enquanto bebia o saboroso chá servido pelo proprietário. Era um
homem que combinava com a imagem peculiar do armazém. Assim como tudo mais
naquele lugar, era uma figura atípica. Com a idade avançada, ele usava um pano
enrolado na cabeça, parecido com o estilo dos tuaregues, sendo que um dos olhos
restava tapado, enquanto o outro tinha o auxílio de um óculo. Alheio aos comentários,
parecia não ouvir, ou não se importar, com as acusações que partiam da mesa. Aos
poucos, um a um, os peregrinos foram saindo. Enquanto alguns retornavam ao
acampamento, outros foram passear e conhecer melhor o oásis. Fiquei sozinho. Pedi
outra xícara de chá. Comecei a prestar atenção àquele local. Percebi que uma das
estantes estava repleta de livros usados. Eram livros dos mais variados idiomas.
Apaixonado por livros, comecei a vasculhar as prateleiras em busca de títulos
interessantes. Encontrei vários. Um em especial me chamou a atenção, O livro de
areia, do alquimista argentino Jorge Luis Borges. Tinha lido-o na adolescência. Lembro
que muito me impressionara, principalmente um dos contos, intitulado O outro.
Porém, o meu exemplar havia se perdido após muitas mudanças de casas e alguns
casamentos. Pela capa me dei conta que eram de uma mesma edição. Retirei o livro
surrado da estante e quando comecei a folheá-lo tomei um susto. Encontrei a
dedicatória escrita por uma antiga namorada para me presentear no Natal de muitas
décadas atrás. Uma sensação indescritível me percorreu as entranhas diante da
imponderável situação de um livro desparecido há quase quarenta anos no Rio de
Janeiro retornar às minhas mãos em uma estranha mercearia em um oásis no meio de
deserto. Não tive dúvida que levaria o livro como uma inacreditável lembrança
daquela fantástica viagem. Perguntei ao dono quanto custava. “Um livro”, ele
respondeu. Falei que não tinha entendido. O ancião esclareceu: “Qualquer livro da
prateleira custa outro livro. Os livros não têm preço em dinheiro. Você pega um livro e
deixa outro para quem chegar depois. Assim o conhecimento circula. Este é o seu
único e verdadeiro valor.”
Expliquei a ele: “Eu vim com a caravana. Foi uma travessia difícil desde o início. Para
ser aceito tive que aprender e começar a exercitar o desapego em uma rotina de
simplicidade logo no primeiro dia. Até tinha alguns livros na minha bagagem, sem
negar-lhes a sua fundamental importância, me desfiz deles, pois, embora sejam fontes
indispensáveis de conhecimento, para esta travessia específica eram dispensáveis. Não
me sobraria tempo para a leitura”, esclareci. Abri a carteira e tirei uma nota que me
permitiria comprar uns dez exemplares novos em qualquer boa livraria. Antes tive o
cuidado de pedir que não levasse tal gesto como ofensa. Humilde, o ancião disse que
compreendia o meu desejo, entendia as minhas argumentações, deu de ombros como
quem lamenta uma situação na qual não pode ajudar e tornou a explicar como quem
fala o óbvio: “Um livro custa um livro. Nem mais nem menos.” Insisti narrando para ele
a incrível trajetória daquele exemplar que em um dia distante me pertenceu. Sem
dizer palavra, ele apenas me olhou com bondade e paciência como quem está diante
de uma criança teimosa. Resignado, guardei o dinheiro e recoloquei o livro na estante.

Tudo naquele armazém me fascinava; do teimoso proprietário aos objetos inusitados


repletos de histórias. Pedi mais um chá enquanto vasculhava as prateleiras. Encontrei
um antigo punhal forjado em aço Damasco com o cabo confeccionado em chifre de
carneiro. Com exceção dos livros, tudo o mais podia ser comprado com dinheiro. Nada
era caro. Fiquei com o punhal para mim. Tornei a me sentar à mesa quando ele me
serviu o chá. Perguntei qual era o seu nome. “Hani”, ele me respondeu. Tirei do bolso
da calça um caderninho sem pauta e um lápis que desde jovem tive o hábito de levar
para anotações. Como eu não tinha uma máquina fotográfica, comecei a desenhar o
armazém pelo ponto de vista de onde eu estava sentado. Desenhei tudo em detalhes,
sem nenhuma pressa. No centro da folha de papel estava o livro do Borges que, da
prateleira, insistia em olhar para mim. Por algum motivo eu não sentia vontade de sair
dali.

Longos minutos se passaram. Ninguém entrou no armazém, não trocamos palavra. Em


determinado momento me dei conta que eu não fizera a Hani a pergunta que faria
quando entrei no armazém. Mais para conversar do que por acreditar que pudesse
obter ajuda, indaguei se ele conhecia o misterioso dervixe. A resposta de Hani fez com
que eu parasse de desenhar: “Cada dia um pouco melhor”, ele me disse.

Incrédulo, eu quis saber como eu poderia encontrá-lo. A resposta de Hani foi um quase
imperceptível sorriso. Eu não acreditei. Não, aquele rabugento, e ao mesmo tempo
gentil ancião, não podia ser o sábio que todos procuravam e ninguém encontrava. Os
peregrinos tinham passado parte da tarde sentados ao lado dele dizendo que ele não
existia. Seria de uma ironia absurda. Horas atrás, naquela mesma mesa, todos se
lamentavam da inexistência do dervixe enquanto ele ouvia os comentários em silêncio
por detrás do balcão do armazém. Considerei que talvez Hani debochasse de mim com
uma brincadeira sem graça. De outro lado, considerei que ele era a única pista
disponível naquele instante. Supliquei por ajuda. Hani foi enigmático: “Todos que
estiveram aqui se perderam no barulho das próprias palavras e nas veredas do
desânimo. Você apenas ouviu com paciência e manteve o silêncio interno. Esta
perseverança vai te conduzir ao encontro.”

Falei que não tinha entendido. Hani disse que estava na hora de fechar o armazém,
que eu fosse à sua casa ao anoitecer. Ainda atordoado com os fatos, me despedi e
prometi que lhe encontraria mais tarde. Vaguei a esmo pelo oásis, como um animal
sem lar; mais na tentativa de acelerar o relógio e concatenar as ideias do que para
chegar a algum lugar. Quando anoiteceu retornei à casa anexa ao armazém. Hani me
esperava. Era um lugar simples. A sala não tinha nenhuma mobília, salvo almofadões
coloridos encostados por todos os cantos. As paredes estavam repletas de quadros e
imagens de diversos tipos e tamanhos. Tantos que cobriam as paredes por inteiro,
como se fossem um inventário das histórias vividas pelo ancião. Uma imagem me
chamou a atenção. Era uma inacreditável fotografia na qual Hani estava ao lado do
Dalai Lama em frente ao armazém no oásis. Havia uma dedicatória escrita pelo monge
budista que dizia “Ao menos uma vez por ano devemos visitar um lugar que não
conhecemos.”

Brinquei com o ancião ao apontar para a foto: “Este ano cumpri a orientação do Dalai
Lama”, ao me referir ao fato de também visitar o oásis. Hani franziu as sobrancelhas e
me alertou, mais uma vez, ao seu jeito enigmático: “Ainda não.” Em seguida, pediu
para eu me acomodar e esperar um pouco. Voltou com um tambor. Os famosos
tambores mágicos do deserto, reconheci. Entendi que haveria um cerimonial. Em um
dos cantos da sala o ancião rufou o tambor em compasso lento que aos poucos se
intensificou. Por um tempo que não sei precisar fui me deixando envolver por aquele
ritmo. Quando me dei conta, eu ouvia o tambor sem que o Hani o tocasse. Embalado
por dois chocalhos que levava nas mãos, ele rodopiava incessantemente no meio sala
como fazem os dervixes em seus rituais para alcançar um estado alterado de
consciência. É um método próprio para entrar em contato com os bons espíritos e se
banhar em vibrações luminosas para tentar entender um pouco mais além do véu da
ilusão. Em verdade, também serve para conectar o inconsciente ao consciente como
modo de ser inteiro.

Em algum momento me percebi girando como se fosse um dervixe. Dancei até a


exaustão. Sentei em uma das almofadas. O tambor silenciou. Hani não estava mais na
sala. Eu estava sozinho. Sozinho? Não. Percebi um jovem de cerca de vinte anos de
idade sentado no canto oposto. Ele tinha os cabelos compridos e usava óculos de grau
com aro redondo. O jovem me olhava sem muito interesse, talvez por não reconhecer
em mim nada que lhe pudesse acrescentar. No entanto, eu o achei muito parecido
comigo quando eu tinha aquela idade.
Perguntei se ele estudava medicina. O jovem me olhou com curiosidade e respondeu
afirmativamente. Perguntei-lhe o nome apenas para me certificar. A resposta foi a
esperada. Sem ponderar as consequências, o alertei: “Você abandonará a medicina
depois de alguns anos de formado. Irá trabalhar com publicidade. Será mais feliz
assim.” O jovem sorriu para mim com ironia e foi afirmativo: “Não me imagino
exercendo outra profissão fora da medicina. Tenho mãos de cura.” Havia uma ponta
de arrogância e outra de provocação em suas palavras. Sorri para mim por me
reconhecer. Eu podia ajudá-lo. “Não é o seu dom. Você descobrirá isso”, falei. Ele riu e
questionou: “E como sabemos que não exercemos o verdadeiro dom?” Sem me
permitir a condução aonde eu não queria ir, expliquei com serenidade: “A tristeza, a
impaciência, a irritação e a amargura que nos permeiam quando o trabalho é mera
obrigação. São emoções contrárias àqueles que se movem pela alegria do amor.” O
jovem sacudiu a cabeça como quem diz que eu não sabia sobre as coisas que eu
mesmo falava e me desafiou: “Um afamado vidente me disse que tenho mãos de cura.
O que faço com elas? Corto e lanço fora?” Diante do sarcasmo eu não tive qualquer
dúvida de que eu falava comigo. Recusei-me a sair dos trilhos: “Sem dúvida que as suas
mãos são de cura. Médicos, enfermeiras e psicólogos precisam ter mãos de cura.
Padeiros, pedreiros e escritores também.” Antes que ele rebatesse, acrescentei:
“Pense nisso com calma. Onde há amor existe a cura.”

Ficamos algum tempo em silêncio. Ambos precisavam ficar à vontade ao encontro. O


jovem me contou: “Tive uma infância e adolescência com muitas dificuldades, tanto
financeiras quanto emocionais. Daqui para frente quero uma vida diferente, quero as
coisas boas que o mundo tem a oferecer. Serei um médico reconhecido e respeitado.
Terei uma enorme clientela; a minha fama correrá o planeta.” Lembrei de como esses
anos foram difíceis e atormentados para mim. Eu tinha tudo, mas não tinha nada. Eu o
orientei: “Esses conceitos não retratam necessariamente uma vida boa. Todos os dias
nos deparamos diante das bifurcações inerentes aos caminhos. De um lado, o brilho;
do outro, a luz. Escolhemos a todo instante. Escolha sempre por amor para não
precisar voltar à mesma encruzilhada.” Ele não entendeu a extensão do conselho. Eu
sabia disto. Sabia também que mais à frente, quando estivesse pronto, aquelas
palavras seriam como sementes a iniciar o processo de transformação. Há o tempo da
semeadura; existe a estação da colheita. Aquelas palavras brotariam em sua mente
como que por magia na hora certa. Então lhe seriam como flor e fruto pelo resto da
vida.

Adiantei que ele seria um bom pai, pois entenderia a importância da responsabilidade
e o ajudaria a entender sobre o amor. Ele riu e me avisou: “Não quero filhos. Apenas
trazem preocupações e aporrinhações. Limitam a liberdade dos pais. Já tive problema
demais com os meus.” Balancei a cabeça como quem, agora ao longe, pode se ver
abraçado a um equívoco na ilusão da certeza; ignorei o comentário e prossegui: “Serão
duas meninas. Cada qual com a sua personalidade e individuação. Lindas como somos
todos nós. Uma, apaixonada pelas letras, será jornalista na cidade do Porto e estudará
para se tornar uma editora de livros, por onde trilhará a vida através do seu dom.
Diferentes e belas em si, a outra será afeita aos números, amante das ciências. Cursará
o Instituto de Tecnologia da Georgia.” Naquele momento me dei conta que no pátio
desta Universidade há um conjunto de esculturas que retratam Rosa Parker, a ativista
das liberdades; jovem e anciã, à mesa, em conversa consigo mesma. Ela mostrara ao
mundo que, muito mais do que ir e vir, a liberdade se enraíza nas escolhas atreladas à
ética. Agradeci pela sincronicidade e oportunidade oferecidas. Tentei apaziguar o
coração do jovem: “Ao contrário do que acredita, mesmo entre preocupações e
dificuldades, as suas filhas serão inestimáveis presentes da vida a você. Aprenda com
elas sobre o amor para depois viver o amor no mundo. Aproveite cada momento com
alegria e fé. A vida nunca nos abandona; somos seus filhos.”

Eu tinha muita coisa para falar ao jovem; podia evitar uma infinidade de sofrimentos
que ele teria, pessoas que magoaria, tombos que lhe aplicariam. Mas a imagem dele
foi esmorecendo à minha frente, como se perdesse a definição. Antes de desaparecer,
ele me questionou: “Como saberei se este encontro aconteceu?” Respondi de pronto:
“Não saberá até chegar ao dia de hoje. Apenas acordará como se tivesse visitado uma
realidade distante.” Curioso, ele quis saber mais: “Como em um sonho?” Expliquei que
era exatamente isto que estava acontecendo. Ele sonhava com ele mesmo em uma
diferente época da sua vida. O ancião auxiliando a si quando jovem. Ele duvidou: “Não
podemos estar no passado e no futuro ao mesmo tempo.” Tornei a explicar: “O tempo
é linear apenas na superfície. Em profundidade é quântico; permite encontros de
tempos distintos através de saltos vibracionais, assim como os elétrons de um átomo
podem girar em várias elipses simultaneamente.” Ele me olhou como se estivesse
diante de um louco e me inquiriu: “Como sabe disso?” Falei antes que ele se fosse:
“Você aprenderá durante a travessia do deserto.”

Visivelmente preocupado, fez a última inquirição: “Tudo dará errado comigo, é isso?”
Eu o consolei: “Algumas coisas precisam dar errado para que, então, em verdade,
possam dar certo.”

Nossas mãos se tocaram de leve em despedida. Fechei os olhos por longos minutos. Eu
precisava metabolizar aquele encontro. Percebi o quanto de mim ainda precisava
restar iluminado; a jornada encantada não tem fim. Quando abri os olhos me deparei
com a foto do Dalai Lama ao lado de Hani pendurada na parede. Entendi a dedicatória.
“Ao menos uma vez por ano precisamos visitar um lugar desconhecido.” O monge
budista se referia a um lugar dentro de si.

Sem muita demora, Hani entrou na sala. Trazia um bule com chá e duas xícaras.
Sentados ao chão, ele nos serviu. Bebemos em silêncio. Eu sabia que não era preciso
lhe contar sobre o encontro. Estava na hora de partir. Agradeci ao dervixe pela
oportunidade fantástica daquele encontro. A sabedoria sufi, que eu apenas conhecia
pelos textos e poesias de Rumi, estaria para sempre agregada ao meu ser. Lembrei que
a travessia se iniciara através de um poema do filósofo persa. Hani apenas sorriu como
se dissesse que nada é por acaso. Antes de ir, eu quis saber um pouco mais sobre o
caravaneiro e a mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. Eles seguiam como um
mistério para mim. Sem fugir a pergunta, mas sem abandonar os enigmas, o dervixe
explicou: “Ambos são guardiões. Ele é o guardião de fora; te protege dos perigos do
mundo. Ela é uma guardiã de dentro; pacifica as suas emoções; te protege de você
mesmo. Para isto se faz necessário que você esteja alinhado à luz, pois eles nada
podem fazer fora das leis cósmicas.” Fez uma pausa antes de concluir: “Não se
atravessa o deserto sem os guardiões.”

Flanei pelo oásis com o olhar repartido entre a beleza das coisas e as estrelas do céu.
Percebi uma agitação. Era o movimento de outra caravana que partiria em instantes. O
oásis faz parte da rota de todas as caravanas. Dei-me conta que eu tinha aprendido,
transmutado e compartilhado; era hora de seguir para fechar o ciclo. Sem hesitar,
negociei um camelo e um lugar na nova caravana. Como eu pouco carregava, logo
aprontei o alforje e o coloquei sobre a montaria. Partimos. Eu estava tomado por uma
maravilhosa sensação de bem-estar e leveza; como se as plenitudes se avizinhassem.
Marchamos por quase uma hora noite adentro quando uma enorme lua cheia surgiu
por detrás de uma duna iluminando a caravana. Sem qualquer surpresa, vi à frente do
grupo o caravaneiro cavalgando ao lado da bela mulher com os olhos da cor de lápis-
lazúli.

Eles ainda me acompanhariam por muitas travessias.

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