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Conto

A MENINA DE PÉS PESADOS


Por Marcelle Guedes
“Perguntaram ao sábio o que é o perdão. Ele respondeu: é o
perfume que a rosa exala nos pés
de quem a esmagou.”
Autor desconhecido

O vale era florido, enfeitado por muitas borboletas brilhantes, e, lá no meio, uma casinha branca onde
morava um casal, que sonhava ter um bebê. O tempo não demorou, e foi abençoado com a chegada de
uma menina, de olhinhos bem negros e riso aberto, brilhantes como as borboletas do vale.
A cada aniversário, a menina ganhava uma viagem de aventura, que deveria fazer sozinha, mas nunca
voltar pelo mesmo caminho de ida. As primeiras viagens eram curtas e logo a menina estava de volta para
contar o que tinha visto. E depois foram ficando mais longas, duravam mais tempo. Ela se encantava cada
vez mais com as paisagens e as novas e mais intensas histórias que vivia.
Quando voltava, quantas novidades trazia!
Em cada viagem, ela conhecia pessoas sorridentes e vivia lindas histórias com elas. Mas nem todas as
viagens foram assim tão boas. Em algumas, ela conheceu quem a deixava triste: falava palavras enrugadas,
que faziam doer o coração. Depois desses encontros, seus pés ficavam muito escuros e pesados. Como se
carregassem correntes, que ela não via, mas sentia. Era como se a alma estivesse acorrentada, e cada vez
que voltava à sua casinha branca, estava mais pesada e desanimada. Nem queria mais contar de suas
aventuras...
Seus pais, preocupados, sem saber como resolver aquele problema, procuravam remédios
para pés pesados e alma acorrentada. E a menina foi ficando doente. Muito doente.
Até que um dia, chegando de uma de suas viagens, a menina viu, caído perto da casinha branca, um
livro brilhante. Refletia os raios do sol, e tinha letras douradas. Curiosa, começou a ler e viu que as
aventuras descritas nele se pareciam muito com as dela. E até falava sobre encontros com pessoas que
faziam os pés da gente pesados e a alma acorrentada...
Curiosa, queria logo saber o final... que contava um segredo, uma receita mágica para pés pesados e
alma acorrentada. E era bem simples: se a pessoa colocasse os pés na direção do sol nascente, pela manhã,
as borboletas viriam para enfeitar suas sapatilhas, deixando seus pés leves, livres como as borboletas do
vale, e ficaria livre daquelas palavras enrugadas que pareciam correntes na alma. Ela queria logo
experimentar. Na manhã seguinte, ao nascer do sol, pôs os pés em sua direção... e não é que deu certo...
Aprendeu a deixar os pés leves, enfeitados de borboletas brilhantes, e a alma sem aquelas correntes
pesadas. E podia agora viajar sem medo de novos encontros com gente de palavras enrugadas. Ela
aprendeu a perdoar. Agora era livre!
SOU JARDIM
(Claudine Bernardes)
Posso parecer uma muralha sombria, feita de ásperas pedras, enegrecida pelo
tempo. Mas, dentro conservo um jardim, onde vivem flores e pássaros. Dentro
de mim a vida sorri.
Ainda que pareça velha, porque sou velha, o tempo dentro de mim se
congelou. Se te atreves a olhar-me, despojado de preconceitos, verás que por
dentro sou um jardim. Que as flores nascem dentro de mim.
Sei que chegará o dia, em que meus movimentos se retardem, que meus
músculos se travem. Inclusive a memória, o bem mais precioso que tenho, se
irá e me deixará.
Ainda assim, se te atreves a olhar-me, despojado de preconceitos, verás que
dentro levo canção. Porque na minha vida, às vezes amarga, por momentos
tormentosa e afligida, sempre fui uma muralha, que guardava dentro um
jardim e uma bela canção.
Fora... fora deixei tudo o que é feio, mau e sujo. Tudo o que poderia matar o
jardim que guardo dentro.

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