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Um novo amanhecer para um dia

esquecido

Parte 1: Você é a luz da minha escuridão

Há um novo amanhecer para cada novo amanhã. Sentimos o


tempo passar depressa a frente de nossos olhos; o presente escorre
por entre nossos dedos, a noite governa sobre o fim da tarde, e
assim, mais um dia se vai, sendo deixado para trás nas fronteiras
intransponíveis do passado. Entretanto, quando a escuridão da
noite está em seu apogeu, as trevas se dissipam e, lentamente, os
feixes de luz irradiam sobre a cortina celeste. Um novo alvorecer
desponta ao leste, anunciando, gloriosamente, a chegada de mais
um dia banhado pelo esplendor daquela luz áurea. E como
mágica, bem devagarinho, o sol vai despertando a vida por onde
passa, preenchendo de luz as casas e enviando convites a todos
para que desfrutem a experiência da vida novamente.
O amanhecer sempre foi a parte mais bonita de viver. É um
momento especial de beleza indescritível que só acontece uma
vez a cada dia, mas para mim, eram momentos raros que só
aconteciam apenas uma vez a cada ano, nos meus aniversários. Eu
nasci e cresci em um pequeno reino isolado chamado de Oprantis.
Um refúgio ideal para todas as criaturas insetóides e um
esconderijo perfeito para os Fantasmas, seres de grande
inteligência, capazes de transcender os limites entre corpo e alma.
Suas mentes complexas lhe tornaram seres mais reclusos, afinal,
seus conhecimentos e domínios profundos sobre a alma e as
emoções sempre foram objeto de muita cobiça e exploração.
Como um refúgio e um esconderijo, Oprantis foi erguida
com sangue e suor no interior de grandes cavernas com acesso
subaquático. Um lugar muito cativante, iluminado por suaves
brilhos bioluminescentes provenientes de estruturas cristalinas e
fungos, suas construções são exóticas desenhadas em pequenos
edifícios com altas torres e pináculos, todos construídos de
maneira uniforme a uma pedra negra circundante. Um local
realmente bonito, repleto de magias e cores. Porém, um lugar
onde o sol não era capaz de alcançar. Um lugar sem amanhecer.
Por isso, todo ano, na madrugada às vésperas do meu
aniversário, o meu pai me levava para o lado de fora. Eu e ele
navegávamos em uma pequena embarcação até uma pequena ilha
montanhosa às cercanias de Oprantis e assistíamos juntos o
nascer do sol no topo da montanha. Eu amava cada um de meus
aniversários porque eu podia presenciar esse fenômeno tão raro
em nosso cotidiano ao lado de pessoas que eu mais amava. A
minha família. Víamos a noite virar manhã e a escuridão virar luz.
Víamos os passarinhos cantarem a sua primeira música do dia e
víamos os seus vôos enfeitarem o céu azul com suas asas
multicores.
Eram manhãs repletas de felicidades e ficaram ainda mais
alegres quando conhecemos Aurora, nossa adorável borboletinha,
o destino nos fez irmãs. Brincávamos, cantávamos e o papai
contava histórias para nós duas até o fim do dia. No final da tarde,
quando o sol se despedia deixando um rastro de aquarela
vermelha e laranja no céu, comíamos um bolo solado, feito pelas
mãos desajeitadas de meu pai. Ele nunca acertava o ponto e nem
os ingredientes; Aurora também gostava de acrescentar alguns
ingredientes estranhos, mas mesmo assim, era o melhor bolo do
mundo, pois havia amor nesse singelo gesto. Não importava o
quão salgado parecesse, ainda que o papai tivesse o hábito de
confundir o açúcar com o sal, era o bolo mais doce que eu já
experimentei em toda minha vida.
Eu me lembro bem de todos esses preciosos momentos.
Todos eles estão carinhosamente guardados em minhas
lembranças e apesar do tempo ser cruel com as nossas memórias,
tornando-as passageiras em sua grande parte, eu sempre me
recordarei desses dias. Em especial, tenho memórias vividas sobre
o Amanhecer de meu décimo aniversário, quando perguntei pela
primeira vez o motivo de meu pai manter religiosamente essa
tradição natalícia.
—Papai? —Eu chamava sua atenção, a voz suave e pueril
de uma criança. Eu me lembro de estar trajando um adorável
vestido rosa, minha cor preferida; os cabelos eram longos e
completamente brancos, assim como o tom de minha pele. Os
olhos eram como prismas, refletindo a Luz que os cativava.
Adornos enfeitavam o meu cabelo e um rubor pueril pintava as
maçãs do meu rosto. Eu caminho até meu pai, buscando seus
atenciosos olhares.
—Sim, minha pequena princesa? Que tipo de pergunta
inteligente tem para hoje? —Ele atende ao meu chamado,
caminhando em minha direção, girando o meu corpo no ar com
seus braços protetores. Meu pai já era um homem maduro, um
homem em seus 40 anos, o que não era muito para um Fantasma
que costumam viver quase dois séculos de vida. Assim como eu,
meu pai também tinha cabelos brancos. Eles eram curtos; possuía
uma barba aparada e olhos azuis gentis. Sua alma era iluminada
como o amanhecer e calorosa quanto o sol em dias frescos. Ele
era como o sol da manhã.
—Por que gosta de vir aqui nos meus aniversários? É que
você sempre fica muito feliz, mas também parece meio triste.
—Ele abre um sorriso nostálgico, segurando em minhas pequenas
mãozinhas com ternura.
—A minha falecida esposa, sua primeira mamãe amava
assistir o nascer do sol—Ele explica e enquanto explicava sua voz
era serena e tranquilizante e seus olhares melancólicos e também
sorridentes, hoje eu entendo, demonstravam saudade. —Os olhos
dela brilhavam e seu sorriso era o mais belo de todos quando
estava feliz. Infelizmente, ela se foi tão cedo. E eu fiquei
desolado, tão perdido… tão…solitário.
—Então… mas… Deve ser doloroso demais vir aqui. Por
que? Por que continua fazendo isso?
—Porque eu estava perdido e um dia, em uma manhã como
esta, neste mesmo dia, fui encontrado… —Ele olha em minha
direção —Minha escuridão se foi e uma luz tão brilhante e bonita
entrou em minha vida que me fez lembrar que mesmo nas noites
mais longas e escuras o sol…nasce para todos. Todos os dias. A
escuridão nunca é para sempre. O motivo de eu vir aqui… É para
que eu nunca me esqueça… desse lindo milagre.
—Papai, você diz coisas muito complicadas, mas acho que
entendi um pouco… Eu sou a Luz da escuridão do papai?
—Você é realmente uma menina muito inteligente, Elektra.
É sim, minha querida, você me tirou da escuridão e preencheu
minha vida de luz e alegria. Você e nossa querida Aurora. Nunca
mais estarei no escuro com vocês na minha vida.
—Eu não tenho medo do escuro se o papai estiver comigo.
Se eu e a Aurora somos a luz do papai, então o papai e a Aurora
também são a minha luz. Então, eu sempre saberei para onde
voltar! Nunca estarei perdida! É só seguir a Luz papai e a Luzinha
Aurora! —Eu volto meus olhares para o homem mais velho como
se tivesse me lembrado de uma peça que faltava em minha fala—
Vamos sempre ver o nascer do sol juntos para lembrar, né?
—Mas é claro, minha pequenina. Certíssimo —Ele brinca,
carinhosamente, beliscando as bochechas rosadas de meu rosto.
Envergonhada, a tez fica ainda mais corada.—Mas eu tenho
certeza que você sempre estará rodeada de muita luz porque… É
a menina mais brilhante que eu conheço. Assim como o papai
reconheceu sua luz… Você, minha querida, é capaz de ver muito
além das pessoas ao seu redor. Sempre estará envolvida de luz.
Basta olhar com atenção. Nunca se esqueça disso.
—Tá bom, papai. Eu prometo que nunca irei esquecer. Mas
você também me promete uma coisa?
—Hum, vejamos… O que seria essa promessa, mocinha?
— Se eu me esquecer da promessa que fiz ao papai e ficar
chorando no escuro, você me mostra de novo como faz? Quer
dizer… O papai pode me lembrar de novo sobre ver a luz?
—Ei! —Uma voz feminina ainda mais infantil exclama. Era
uma menina de 5 aninhos, metade do meu tamanho, cabelos
coloridos, olhos grandes e expressivos, anteninhas róseas no topo
da cabeça e um belo par de pequenas asas de borboletas, ambas
coloridas como o arco íris. Sua alma era como um aglomerado de
borboletinhas coloridas, frágeis, fofas, suave e sempre coloridas.
Uma menina carinhosa e cheia de afeição, extremamente sensível.
Seus olhinhos se encheram de lágrimas com a história e, por isso,
correu em nossa direção com seus bracinhos abertos. Eu e meu
pai abrimos nossos braços e nos abraçamos mutuamente. Eu,
papai e Aurora, em um emaranhado de carinho.
—Aurora também quer prometer! Aurora também não vai
deixar o papai sozinho e nem a maninha! Vai embora escuridão…
vai embora! Brilha luz, brilha! —Desde que ela percebeu que
ficava mais fofa falar em terceira pessoa, ela manteve
religiosamente o hábito. Ela estava certa. Ficava ainda mais
adorável. Não tinha como ficar triste perto da Aurora. Sua
inocência e alegria eram contagiantes.
—Então, eu e Aurora prometemos, papai… E o senhor?
Promete também? —Eu e Aurora voltamos nossos olhares
cintilantes para ele. Ele abre um sorriso caloroso, bagunçando
nossos cabelos.
—Eu sempre estarei com vocês. Não importa para onde
forem…lá estarei ao lado de vocês, afastando toda a escuridão e
mostrando o caminho… Para encontrar a luz mais uma vez
quando se sentirem perdidas. É uma promessa. —Ele nos acolhe
em seus braços mais uma vez, firmando sua promessa. Os seus
braços eram o lugar mais seguro de todos.
—Olha, papai! —Aurora exclamou apontando seu dedo em
direção ao céu. Eu e ele olhamos de imediato. Era o sol. —Está
nascendo… A bola amarela tá nascendo! Que bonito! Isso
significa… Feliz aniversário, maninha!!
—É um novo amanhecer para um dia importante. —Meu pai
diz, encarando o sol nascer com o mesmo encanto de cada ano,
ele se senta sobre a grama. Tanto Aurora quanto eu fazemos o
mesmo, cada uma de um lado. O papai envolve seus braços ao
nosso redor. E assim, nós três testemunhamos pela primeira vez
no ano, o amanhecer.
— Feliz aniversário, minha filha. Feliz aniversário, Elektra.
Todos esses momentos de felicidade não fazem mais parte
do meu presente. Quanto mais eu tento resgatá-los, mais eu
percebo que estão distantes. Quanto mais o tempo passa, mais
essas tradições se tornam memórias, lembranças fugidias que
jamais irão retornar. O papai e a Aurora se foram para sempre.
Ambos foram retirados de mim, ambos foram mortos por pessoas
ambiciosas e impiedosas. Eu fui a única a ficar para trás. Eles se
foram para sempre. Não tenho mais nada além de recordações
para me lembrar, mas eu não consigo… Aquele dia tão especial
para todos nós, tornou-se uma sombra. Um dia que não desejo
mais me lembrar porque dói. A partir de agora se tornará
apenas… Um dia esquecido.
É noite. Estou sentada sozinha, afastada de todos. Amanhã
é o meu aniversário, mas para mim, tornou-se o dia que eles se
foram para sempre. Todas as manhãs se tornaram escuras. Todo o
amanhecer já não possui o mesmo brilho. Mas eu continuo
acreditando e esperando que um dia, a luz que brilhava tão forte
em meu papai e em minha irmãzinha, me afastará dessa escuridão
e me guiará mais uma vez em direção a sua luz.

Parte 2: A Luz atrai luzes

Tudo que é luz brilha mais forte na escuridão. Tudo que é


Luz brilha mais forte em Oprantis. Quando a noite cai no reino, as
sombras pairam mais densas, tomando conta de cada canto,
mergulhando a grande caverna na escuridão mais profunda que se
conhece. A população se recolhe para suas moradas temerosos de
seus predadores, a guarda fica mais vigilante e os caminhos mais
desérticos. Quando tudo é escuridão, é natural que as pessoas se
reúnam em lugares onde a luz brilha. É um lugar confiável. Um
lugar seguro. Um lugar onde todos podem se reunir para ficar
juntos e se protegerem um ao outro.
Em Oprantis, um reino erguido sobre sangue e desconfiança,
enxergar a luz nas pessoas era um exercício desafiador. Tudo
parecia escuridão. Até mesmo as pequenas luzes mais suaves e
bruxuleantes ficavam ofuscadas e eram confundidas como parte
daquela mórbida penumbra. Não havia uma luz pela qual se podia
seguir. Não havia um farol para guiar os incautos e nem uni-los a
um só propósito em volta de uma única e singular
Luminescência. A ausência de luz tornou a todos inseguros e
individualistas. Não se sabia distinguir a luz da escuridão. E
muito menos a escuridão da Luz.
Por muito tempo, Oprantis foi um reino escuro e frio, mas,
então, uma luz forte sobreveio sobre a grande Caverna e trouxe
novamente a confiança para o povo. A luz, assim, se fez. Uma luz
brilhante o suficiente para que todos soubessem para onde ir
quando a sombra profunda pairasse sobre os seus corações
inseguros e temerosos. Assim, foi o pai de Elektra, Rei
Agamêmnon de Oprantis, para o seu povo. Uma luz protetora que
unificou os povos que ali residiam e que manteve por um bom
tempo a escuridão distante de seu reino.
Mais tarde, essa luz brilhou tão forte que se desdobrou em
duas e, como uma benção, trouxe ainda mais felicidade para
Oprantis. Elektra era seu nome. A princesa legítima do reino. E
por onde a menina passava, sabia reconhecer a luz nas pessoas.
Sempre fez questão de se rodear dessa Luz, de pessoas iluminadas
e valiosas, pois sabia que eram jóias raras. Por isso, sempre esteve
próxima e rodeada pelo seu povo, cultivando o que havia de mais
brilhante em cada uma daquelas almas perdidas, apontando para a
luz que alguns já não sabiam mais reconhecer.
Ela era capaz de enxergar na completa escuridão o que
cada um era em sua essência mais pura. Enxergava valor nos mais
modestos, entre homens, mulheres e em indivíduos
marginalizados pelo povo por pré concepções errôneas. Quando
todos se achavam perdidos e sem confiança, a princesa
demonstrava que havia mais luz ao nosso redor que poderíamos
sequer mensurar. A Luz que reconhece outra luz jamais ficará por
tanto tempo em meio a escuridão, pois sua natureza tão límpida
sempre, inevitavelmente, atrai mais luz para perto de si e, como
sempre, olhará para o mais profundo de cada íntimo e saberá
reconhecer quem é luz e quem é trevas, ainda que tudo pareça
escuridão.
Porém, a pobre princesa enlutada, órfã de pai e de mãe,
perdeu tudo que tornava sua luz mais vívida e fulgurosa. Perdeu
seu pai, perdeu sua irmã, perdeu o seu reino. Perdeu as luzes mais
preciosas de sua vida. A escuridão pairou sobre seus olhos e,
desde então, sente-se sozinha como um farol solitário brilhando
forte em meio às trevas. A jovem princesa se esqueceu que era
capaz de ver a luz e, mesmo agora, rodeada de tanta beleza,
escolheu se afastar e passar pela sua dor na completa escuridão.
Sozinha. Apesar de estar rodeada de amigos queridos que tanto a
estimam.
—Galera, como prometido fiz as últimas decorações que
estavam restando lá nos fundos do quintal. Graças aos esforços de
vocês, está tudo pronto e antes do tempo! A cabana na floresta foi
uma ótima ideia. Acho que ela vai amar…—Uma jovem menina
que aparentava ser a mais nova no grupo pontua. Os cabelos eram
curtos e castanhos, os olhos alaranjados e suas características
físicas denunciavam que possui traços semelhantes a de uma
barata —Aliás… onde ela está? Já está quase na hora… Disse que
iria caminhar um pouco pelo riacho mas… Tá demorando
bastante já… Estranho ela não ter voltado ainda.
Não há resposta. Dessa forma, a Jovem menina caminha
em direção a um rapaz que se encontrava estático. Seus olhares
estavam distantes, quase contemplativos, olhando fixamente em
uma única direção: a floresta por onde o riacho cortava.
—Benjy? Você viu a… princesa? —Ela tenta invocá-lo,
mas os olhos vermelhos do menino permanecem resolutos em um
só propósito. Peri já o conhecia há anos, sabia quando algo o
incomodava, apesar de Benjy ser sempre muito sutil em
demonstrar suas emoções, ela era perita em todas suas nuances.
De maneira tenra, a menina põe uma de suas mãos sobre o ombro
do rapaz. Um toque cheio de ternura
—Ei, está tudo bem? — A menina tenta novamente. Com
sucesso, pois o jovem distraído a encara. Seus olhos vermelhos
ainda aéreos, pensativos.
— Sim, Eu estou bem, mas essa sensação…—Ele pensa.
Em seu íntimo, sabia a resposta. —Eu acho que temos que ir
buscar a princesa…
A voz de Benjy era mansa e seu rosto demonstrava
melancolia enquanto observava a princesa que, aos olhos, parecia
cada vez mais distante e cada vez mais entranhada para dentro da
floresta. O jovem rapaz não parecia ser tão mais velho que
Elektra. Diferentemente dela, sua pele era de um azul escuro
profundo, seus olhos eram duas orbes vermelhas intensas e sua
aparência era humanóide com traços mesclados a um aracnídeo.
A princesa estava distante, mas a visão dele era aguçada e
perceptiva. Mais do que isso. Ele conhecia aquele sentimento. O
sentimento de solidão.
—Aconteceu alguma coisa com ela? —Peri olha na mesma
direção, mas sua vista não era tão ampla e nem tão aguçada assim,
mal enxergava a princesa. Via apenas um borrão. Por isso,
demonstra preocupação dada a reação de Benjy.
Geralmente, Ben tinha Peri ao seu lado para orientá-lo.
Ele era bastante sensível, sentia demais, mas nunca soube lidar
bem com suas emoções e nem como demonstrá-las muito bem.
Peri era uma ótima mediadora. Porém, dessa vez, foi diferente.
Ele tinha plena certeza do que via, pois o que Elektra sentia, já fez
parte de suas experiências. Ele também já sentiu.
—Eu vou até ela… Eu acho que ela… precisa da gente.
Acho que ela… não quer mais ficar sozinha.
— Tem certeza? Ela tava tão bem mais cedo. A gente
sempre fica colada nela. Vai ver só quer apreciar um pouco de
tempo sozinha. Às vezes eu também gosto de ficar sozinha. Vai
ver é só isso. —Diz a jovem baratinha, sem muita convicção em
suas próprias palavras. Ben parecia estar certo. — Mas só às
vezes. Ficar sozinho o tempo todo não faz bem a ninguém.
— É como se ela estivesse pedindo socorro…—Ele aponta
novamente e percebe que a silhueta da princesa estava mais
distante. Cada vez mais longe de sua vista. —Em um ato
impensado, instintivo, o rapaz aracnídeo se levanta, caminhando
em direção a princesa com passos apressados, sem falar mais
nenhuma palavra. A Jovem moça que também tinha apreço e
amizade pela princesa segue ao lado do rapaz, tentando manter o
ritmo de seus passos. No entanto, um homem mais velho os
impede, bloqueando o caminho com seu braço. Seus olhares eram
sérios e frios, tinha cicatrizes por todo corpo e diferentemente dos
demais, parecia um humano. Um humano guerreiro.
—Deixem ela. —Sua voz forte e autoritária— A princesa
lida melhor com as coisas em sua solidão. Será mais difícil para
ela passar por tudo se vocês se envolverem nisso. Se ela souber
que estão tristes por causa dela… Ela..
—Tá falando isso por você mesmo ou por ela? —Peri, a
baratinha eleva sua voz. Antes tão doce, agora, dada a situação,
seu tom de voz se torna mais desafiador. Ela o encara com
olhares inquisitivos. — É assim que você protege ela? O Benjy
disse que ela precisa de nós. Abra o caminho. Se você não protege
ela. Então, a gente protege.
—A senhorita não faz ideia do que está dizendo. —O
homem responde. Sua voz um pouco mais alterada. —Eu a
conheço o suficiente para saber o que é melhor para ela. Eu a vi
crescer… Ela sabe que o destino dela é reinar. O lugar dela é no
trono! Eu sei o que é melhor para ela e ela também sabe. Isso vai
passar. É só uma fase difícil. Ela está bem.
—Tem certeza mesmo que você sabe o que é melhor para
ela? Nesses últimos dias, o senhor só parece estar tomando uma
atitude que é melhor para você, para as suas prioridades. É mais
conveniente, não é? Dar voz ao sentimento dela só faria ela perder
tempo e não focar com o que é importante, não estou certa? —O
homem se cala. Um silêncio inquietante paira na equipe. Pela
primeira vez, Benjy parecia demonstrar algo além da melancolia.
Ele estava confuso. A princesa precisava deles, então por que os
dois estavam brigando, quando a resposta na cabeça dele parecia
bem mais simples e objetiva? Isto é; ajudá-la, salvá-la. Não é o
que fazem os amigos?
—Eu não entendi… por que vocês estão brigando? Temos
que ir ver a princesa. O que aconteceu com vocês? Foi porque o
senhor Yôr comeu seu pudim, Peri? Eu falei que ela não ia gostar,
senhor Yôr. Agora ela levou para o coração—Comenta Benjy.
—Mas… não é melhor vocês verem isso depois? A princesa…
ela…
—Bem lembrado —Interrompe Peri —eu ainda não esqueci
daquele pudim que você comeu todo, senhor Yôr. Mas agora
essa? Com a nossa amiga? —Peri e o homem cruzam olhares
faiscantes um contra o outro. Cada um permanecia de braços
cruzados, emburrados. Em resposta, Benjy suspira
profundamente, colocando-se no meio dos dois para chamar
atenção para si. Era uma situação urgente. Assim, ele sentia.
— Olha, pessoal, eu posso não conhecer a princesa quanto
o senhor Yôr, mas se tem algo que eu percebi é que ela sempre
fica ainda mais triste quando estamos brigando.. Brigar…Isso não
muda o fato de que ela tá sozinha… E sofrendo. —Um novo
silêncio se faz, mas dessa vez, os semblantes estavam menos
rígidos, pelo contrário, pareciam mais solícitos a ouvir.
— Eu sei que a Peri não foi tão doce com as palavras,
mesmo comendo tanto doce pela manhã, mas o que ela falou está
certo, senhor Yôr. Eu sei que se importa com ela. Mas a sua
resposta, não pareceu com a de alguém que se importa. Então,
prefiro acreditar, pelo bem dela, que o senhor só se expressou
muito errado. Às vezes isso acontece mesmo. —O jovem
aracnídeo fixa seu olhar ao do homem. Geralmente, costumavam
ser aprazíveis, mas dessa vez, estavam mais sérios. —Sabe,
somos uma equipe. Se a princesa não está bem…é claro que não
vamos ficar também. Ela é nossa amiga.
—Isso mesmo! Se tudo isso aqui é às custas da felicidade
dela… Então algo precisa mudar. —Completa Peri, mais enérgica
em suas palavras.
—Por isso que ela prefere ficar só… —Yôr tenta se explicar,
sua voz estava menos rígida, menos altiva, mais trêmula, as
barreiras caiam pouco a pouco, mas ainda tentava apresentar um
pouco de resistência em sua própria convicção. —Ela sabe disso e
não quer que vocês fiquem chateados, não quer que vocês se
incomodem com isso. Ela é forte. Para ela, sempre foi mais fácil
assim. Ela sempre foi muito auto suficiente. —Tanto Benjy
quanto Peri, a jovem moça baratinha, olham em direção ao
homem, surpresos.
—A princesa está lá e a todo momento parece estar pedindo
por ajuda. —Diz Benjy — Consegue mesmo saber disso e não
fazer nada? Você é o mais próximo dela entre nós. Consegue ficar
tranquilo sabendo que ela está chorando sozinha?
—Do que adianta todo sacrifício se no final ela é a única
infeliz? Não queremos isso. Eu não quero ser cúmplice disso. A
nossa amiga precisa se curar primeiro do que é que esteja
machucando ela. —Complementa Peri. O homem mais velho
desvia seu olhar em direção a princesa. Ele testemunhou a menina
crescer até se tornar uma jovem forte. Para ele, Elektra era a
esperança de Oprantis, a Razão que retomará a ordem no que se
tornou desordenado, a Luz que afastará a escuridão que
novamente permeou no Reino. Sua obstinação em trazer de volta
a honra a imagem do homem justo que um dia serviu, fez com
que ele se esquecesse que além de uma princesa, Elektra é só uma
jovem que perdeu sua família e sua casa. Yôr abaixa a cabeça,
suspirando forte, percebendo seu próprio egoísmo. Finalmente,
ele deixa seu orgulho ser vencido e cede a razão.
—Ela não quis falar… —Ele começa —Mas o pai e a
irmã… Que ela tanto amava… Eles morreram no dia do
aniversário dela. Ela se culpa desde então… Acha que se tivesse
chegado a tempo de ir ver o amanhecer com eles… Eles estariam
vivos.
—Por que ela guardou tudo isso para si? —Peri quase
sussurra ao falar. — Ninguém merece passar por tamanha tristeza
sozinho. Quando foi minha vez… Eu tive o Benjy… E depois, eu
também tive ela ao meu lado. Nenhum dos dois me deixaram
sozinha. Isso foi muito injusto com ela!
—A princesa já não lida com muita coisa não? Sempre
pensando em tudo, sempre tomando as dores de tudo para nos
fazer sorrir… Nós sempre contamos com a princesa…Ela precisa
saber que pode contar com a gente também. Precisamos mostrar
que ela não está sozinha.
O homem se cala perante as palavras do rapaz e da jovem
moça. Ficava cada vez mais envergonhado de ter sido cúmplice
desse afastamento. Tinha ciência de que, desde que houve o
acontecimento no reino, a princesa carregava todas as
responsabilidades; não teve e não cedeu seu tempo para o luto.
Sacrificou-se a si mesma em prol do bem geral. Afundava-se no
trabalho para que a tristeza não lhe consumisse, mas assim que o
trono foi usurpado, assim que foi considerada morta aos olhos de
seu povo, vagava por aí e a brecha no seu tempo fizera-na ser
consumida, de pouco em pouco, pela melancolia.
— Eu sinto muito por não contar sobre isso… Eu só… Eu
tomei uma decisão no que eu achava ser o certo a se fazer. Fui
egoísta. Deveria ter falado com ela. E deveria ter falado com
vocês. Eu…
—Por que não fala isso para ela depois? — questiona
Benjy— Não é tarde demais, senhor Yôr. E Acho que ela vai
ficar bem feliz em ver o senhor sendo sincero também. Ela
sempre enxerga as nossas verdades. Vai enxergar a sua também.
Vai saber… que fala a verdade.
—Arrependimento sem atitude não passa de algo sem valor.
—Diz Peri, afiada em seus dizeres—Se está arrependido. Então,
deve demonstrar escolhendo fazer o certo.
—Vocês estão certos. Eu preciso falar com ela e, de fato, o
arrependimento não fará nenhum efeito se eu não tomar atitudes.
Logo irá amanhecer. Vamos trazer ela de volta. —Yôr finalmente
abre um sorriso em seu rosto carrancudo. Os demais também se
animam e ficam felizes em perceber que suas barreiras não eram
tão ofensivas assim. Normalmente, ele era frio, distante e
intransigente, mas até os homens mais frios, distantes e
inflexíveis sabem reconhecer seus próprios erros quando isso
significa fazer alguém estimado e querido sorrir. Não se tratava
mais de sua própria obstinação mas da princesa. A menina que era
como uma filha, mas também a menina que foi capaz de
reconhecer sua luz quando todos ao redor julgaram-no escuridão
infinita e sem valor. Essa jovem menina, forte e responsável,
também merecia ser feliz.
—Nós temos a oportunidade de tirá-la da escuridão. O que
nós estamos esperando? Vamos buscar a nossa amiga. —Diz Peri,
a mocinha barata, entusiasmada.
—Eu não a deixarei sozinha novamente. Ela foi capaz de me
enxergar quando mais ninguém o fez. — responde Yôr com
convicção. — Não irei deixá-la no escuro.
—É o aniversário dela. Os aniversários devem ser felizes, não
é? Então, vamos fazer que este seja um dia feliz de novo. —
Benjy dá sua resposta. Um sorriso gentil bem discreto paira em
seu rosto. Estava satisfeito em ver que todos estavam
prontificados a resgatar a jovem que enxergou as suas escuridões,
mas que também, foi sensível para afiar os seus olhares e perceber
que em cada um deles, uma luz forte emanava. Enxergou as suas
almas quando ninguém mais o fez.
Ele se levanta, abrindo o caminho pela floresta. Era mais
rápido e mais perceptivo, por isso avançava na frente para evitar
que qualquer perigo entrasse no caminho de seus amigos. Yôr e
Peri vinham logo atrás. Ambos atentos. A princesa estava a uma
distância considerável, mas alguns minutos de caminhada foi o
suficiente para que eles a alcançasse. Ela estava aos pés do riacho,
sentada em uma rocha revestida de musgo escorregadio, seu
vestido branco estava encardido e seus olhos estavam fechados.
Elektra estava mais pálida do que o comum. Algo estava muito
errado. Benjy olha ao seu redor, procura nos lugares mais
improváveis, até mesmo debaixo de uma folhinha caída de uma
árvore, ou dentro de um ninho de passarinho.
—Ela não está… aqui? —Diz o rapaz ainda tentando
processar a informação em sua mente. Ele fica em silêncio por um
tempo. Isso nunca tinha acontecido antes.
—Mas é claro que está… Ela está logo aí… —Diz Yôr
caminhando em direção a princesa. Tocando em sua pele. Estava
fria. Muito fria. E seu corpo, sem força, sem vitalidade, desfalece
em seus braços. —Princesa? —Ele começa suave, balançando o
corpo da jovem —Princesa??! —Ele exclama mais alto. Nenhuma
resposta.
—Não… Ela não está aqui. Ela não está em lugar nenhum.
Não neste plano.

Parte 3: Um lugar Iluminado

Há muito tempo, quando eu ainda era criança, aprendi que


um lugar nunca estará realmente escuro se olharmos para as
pessoas certas. Em outras palavras, um lar nunca realmente será
escuro se o construirmos e o valorizarmos com pessoas queridas e
valiosas. Não é preciso de muitas. Um lar, mesmo modesto, ou
talvez, mesmo levantado na completa penumbra em uma viela
isolada, fria e solitária, sempre estará preenchido de luz se as
pessoas certas compartilharem a jornada da vida juntas no berço
de um lar. Por isso, sempre encontraremos um lugar iluminado
naqueles que escolhemos para viver ao nosso lado pelo resto de
nossas histórias efêmeras. Essas pessoas… Elas são o nosso lugar
iluminado.
Foi o meu pai quem me ensinou. E esse aprendizado se deu
em uma noite escura e tempestuosa no interior do reino de
Oprantis. Nesse dia, eu escapei do castelo. Talvez, essa atitude lhe
pareça inconcebível, mas não fui exatamente a criança mais
tranquila na infância e quando eu tinha nove anos, costumava me
empenhar para receber a atenção e afeição de pessoas erradas.
Naquela época, eu queria que meu irmão mais velho pudesse me
dar atenção, como também, desejava que a rainha pudesse me
amar como filha, pois nunca havia conhecido o amor de uma mãe
antes. Jamais tive nada de ambos, então, em uma tentativa
inocente de conseguir a atenção deles para mim, eu fugi, correndo
para bem longe como uma típica criança travessa e rebelde. Em
vão, mas dessa peripécia…pude aprender uma valiosa lição.
Era noite, o reino de Oprantis declinava em plena escuridão;
algumas poucas luzes amareladas bruxuleavam em candeeiros nas
sacadas das casas para guiar os caminhos dos corajosos e das
almas viajantes. Entretanto, não era uma noite como as outras, era
noite tempestuosa. Tempestades sempre foram assustadoras na
Grande Caverna. As ondas que banhavam e circundavam o reino
se agitavam, a maré subia e com selvageria invadia alguns
trechos, mais ainda, os estrondos dos trovões soavam mais
poderosos, reproduzindo ecos macabros e repetitivos. Todas essas
circunstâncias, no entanto, não foram efetivas e nem suficientes
para me fazer mudar de ideia: fechei meus olhos, senti a linha
tênue entre meu pequeno corpo e minha pequena alma e a projetei
para fora de mim. Antes de sair, eu observo meu corpo relaxado
sobre o carpete do meu quarto, hesitando por alguns instantes,
mas criando coragem, eu atravesso as paredes do castelo.
Nenhum obstáculo pode travar uma intrépida alma motivada.
Atravessei todos eles, passeando e me divertindo sozinha na noite
desértica, desbravando um pequeno fôlego de liberdade até
perceber que estava tudo escuro ao redor. Todas as luzes
amareladas das casas haviam desaparecido, restando apenas o
breu frígido e a sensação inquietante de estar completamente
sozinha em solo desconhecido. Eu estava sozinha. E estava
perdida.
—Papai? Mamãe? — Choramingando, eu chamava por eles.
Minha voz soprava como vento e tal como o vento também se
dissipou. Eu não podia ser ouvida. Ficaria perdida para sempre
naquele lugar escuro e ausente de cor. —Eu tô com medo…
Alguém… Irmão? Papai? —Sem respostas.
—Eu não quero ficar sozinha! Eu quero ir pra casa… Eu
quero o papai! Eu quero brincar com a Aurora… — Se eu ficasse
perdida, nunca mais veria minha irmãzinha. Ela tinha apenas 4
anos, mas me amava, era carinhosa e sempre brincava comigo.
Ela e o papai era tudo que eu tinha de mais precioso no mundo. E
agora, eu tinha perdido os dois. Meus olhos prismáticos refletiam
o vazio à minha volta e eu sentia que a minha voz não seria
alcançada. O lugar parecia cada vez mais frio e opressor. Logo, a
solidão era substituída pelo medo, pois vultos cinzas me
circundam como em uma ciranda sinistra. Eu estava viva. Eles
não. Eu tinha um corpo. Eles não tinham um corpo. Eu era o alvo
perfeito para que um deles retornasse ao mundo dos vivos.
— Maninha! Por favor, volte para casa! Vamos brincar
de novo! Aurora jura que fica colada em Elektra pra sempre!
—Era a voz de Aurora. Estava distante, mas eu conseguia ouvi-la.
Eu olho para um lado e para o outro, e novamente, eu a ouço
chamar meu nome. Sua voz vinha pela direita.
— Não abandone a Aurora, maninha! Aurora nunca
mais pega suas bonecas escondida! Eu juro!
—Aurora! Aurora! Eu quero voltar para casa! Eu nunca
mais reclamo das bonecas que você pega de mim —Em
desespero, eu começo a correr mais rápido. Em direção àquela
voz que continuava a invocar meu nome continuamente. Quanto
mais eu corria, mais almas errantes se aglomeravam ao meu
redor, agarrando-se a mim.
— Saiam daqui! Me deixem em paz! —Eu tento correr.
Todos os vultos, todas as almas errantes e sem rumo deflagram
em minha direção. Eu fecho meus olhos, as lágrimas cedem e eu
continuo a correr, sem rumo e sem esperança. Sozinha e com
medo. Porém, um som estrondoso corta o ar, dissipando todas as
vozes. Um trovão. Eu abro meus olhos mais uma vez e percebo
que estava de volta ao plano dos viventes. E não mais sozinha.
Meu pai estava comigo. Ele me achou e me trouxe de volta.
— O verdadeiro amor é como os fantasmas. Todos falam
nele, mas ainda ninguém o viu. — meu pai recita. Sua alma era
amarela como a Luz do sol. — Uma linda frase, mas há também
um belo equívoco, considerando que onde meu amor estiver, eu
sempre estarei olhando por ela… Sempre a veria, não importa a
distância, não importa a forma e nem o tamanho.… Eu a verei
sempre, minha menina…
— Papai! —Eu vou até ele. As lágrimas coloridas desciam
pelos meus olhos espectrais. Duas almas emaranhadas em um
abraço no reino de Oprantis em meio a uma tempestade. — Eu
senti sua falta… Eu senti tanto medo! Eu quero voltar para casa.
— Estava se sentindo solitária, querida? —Ele pergunta com
sua voz paciente e suave, ele me acolhia em um abraço,
acariciando minhas madeixa. Eu faço que sim com a cabeça,
esfregando os olhos, agora amarelos. Algumas lágrimas desciam e
meus lábios se estreitaram em um biquinho manhoso.
— Eu só queria que eles gostassem de mim… A mamãe
Clitemnestra e o irmão… eu queria que eles me olhassem um
pouquinho… Eu me sinto sozinha sem eles… Nossa família é
grandona! você, a mamãe, o irmão e a maninha. Mas os dois…
Eles nem olham para mim! —
— Pode ser verdade, mas ainda que eles não olhem para você,
tem pessoas que olham, que te amam, que se preocupam… E que
fazem o possível para fazer você ser a garotinha mais amada do
mundo. Está triste porque são poucas pessoas? Por elas serem só
eu e sua irmãzinha? —Eu abaixo a cabeça, envergonhada,
fazendo um maneio positivo.
— Desculpa, papai… Desculpa, eu amo você. Amo a
Aurora. Eu senti falta de vocês. Muita! Do tamanho do mundo!
—Ual! É um tamanho bem grande para uma menina
pequeninha como você. —Ele brinca, desarrumando os meus
cabelos. — Mas assim é nosso amor por você também… Enorme
como o infinito. Por isso, quando se sentir sozinha e no escuro,
lembre-se do quanto nós te amamos. Podemos ser pouquinhos em
comparação ao tanto de pessoas que vivem nesse lugar, mas… é o
suficiente, quando estamos ao lado de pessoas que nos guiam
pelos bons caminhos e que nos amam. —Eu abro um sorriso
iluminado em meu rosto, os olhos refletiam a cor calorosa e
alegre da alma de meu pai e cada vez mais tomavam um brilho
mais vivo neles.
—Venha… Vamos caminhar um pouco. —Ele entrelaça
suas mãos nas minhas e, então, começamos a caminhar pelas
vielas da Grande Caverna. A tempestade se amainou e os trovões
foram substituídos pelo som de gotas finas sobre a rocha da
enorme gruta. Ao passo que avançávamos, víamos as luzes
amareladas guiar os nossos caminhos de volta para o nosso lar; os
fungos com seu brilho azul neon também cintilavam quando
passávamos por eles, o chão era escorregadio, mas não havia
possibilidade de cair sendo eu e ele duas almas caminhando
juntos sob o silêncio da noite.
Depois de um tempo de caminhada, a chuva finalmente se
dissipa, restando apenas a noite e sua escuridão. Meu pai
interrompe o caminho e me aponta para as casas pelas quais já
havíamos passado. Em cada uma das janelas, que mais pareciam
olhos sonolentos observando o mundo afora, havia uma família.
Em cada lar, uma luz brilhava na porta, indicando vida, e olhando
mais de perto, podia-se ver famílias pequenas, vivendo sozinhas,
solitárias, dentre tantas outras pela vastidão complexa do mundo.
—Cada luz… uma história, uma vida… E a vida, é como
um sopro… Precisamos aproveitar cada jornada, cada história,
cada pessoa querida, cada instante, como se fosse a última vez…
—Meu pai me guia até uma das casas. Éramos almas solitárias,
invisíveis, então, não podíamos ser percebidos. Olhamos eu e ele
pelo umbral da janela e vemos uma casinha modesta. Nela, um
casal em idade avançada vivia. O velhinho contava histórias sobre
suas aventuras da vida, enquanto sua esposa, uma velhinha feliz
com um sorriso no rosto, costurava suas roupas. Os dois sorriam.
Felizes. Na casa adjacente, uma mulher brincava com seu bebê,
um menininho que nem havia completado a primeira idade. Seu
filho era tudo que ela tinha. Mesmo com os olhos cansados, ela se
divertia com o sorrisinho de seu menino, fazendo gestos e caretas
para que ele continuasse a sorrir. Eles só tinham um ao outro. E o
lar continuava cheio de brilho como um lar iluminado.
Assim continuou a nossa jornada até o castelo. Eu e ele
em silêncio, observando cada luz, cada história e cada vida. Tudo
à nossa volta nos ensinava um pouco mais sobre o que era viver,
sobre o verdadeiro significado de um lar.
—Eles pareciam solitários para você, Elektra? —Ele me
pergunta, enquanto entrávamos no castelo. — Eu balanço a
cabeça dizendo que não. Em cada lar, as paletas de cores
vibravam vividas em tons amarelos e quentes. E os sorrisos
espontâneos, diziam por si só.
—Eles estavam felizes… sorrindo como eu, o papai e a
Aurora quando estamos juntos.
—Isso mesmo, querida. Como nós três. Às vezes, não temos
mais ninguém além de poucas pessoas ao nosso redor que nos
amam e nos valorizam. Mas não é preciso de muitas, basta
escolhermos estar perto das pessoas certas, darmos valor a cada
uma delas… E então teremos uma jornada cheia de brilho e vida.
Sem escuro e sem solidão. E elas sempre serão a nossa força…
Até nos momentos mais difíceis.
—Agora… —Ele me beija no topo da cabeça. — Agora…
Abra os olhos, minha filha, olhe ao seu redor e perceba… que em
meio a escuridão, o seu Lugar Iluminado permaneceu ao seu lado
do início ao fim.
Ele sorriu uma última vez e sua alma se dissipou,
deixando-me bem à frente de uma porta. O meu quarto. Eu a
atravesso até adentrar ao seu interior e, então, encolhida sob os
pés da calma, deitada sobre o meu peito, Aurora esperava por
mim a madrugada inteira com seus olhinhos bem abertos e
chorosos, murmurando meu nome. Eu abro um sorriso. As
lágrimas descem pelos meus olhos, em um turbilhão de emoções.
As lembranças fizeram o seu papel e, assim, aquelas doces
memórias se dissipam, voando para bem longe. Eu me vejo
naquele mesmo lugar desconhecido, naquele mesmo lugar escuro
e sem vida, mas dessa vez, não era a pequena Elektra, mas a
jovem Elektra. Aquela que fugiu para longe, aquela que se sentiu
sozinha e desolada apesar de estar rodeada por luzes brilhantes.
Eu aprendi a mesma lição duas vezes, em momentos
distintos de minha vida. Nossas memórias nos pregam peças; o
tempo passa e as lembranças que nos tornaram mais fortes
esmorecem como nuvens de chuvas passageiras. Por isso, não
nascemos para sermos solitários, mas para nos tornarmos fortes
juntos, buscando constantemente o caminho que nos guia em
direção a luz. Eu aprendi a lição novamente, eu me lembrei, mas
temo não saber retornar; temo não saber voltar para o meu lugar
iluminado. Estou perdida outra vez e, como antes, não sei como
voltar.
Eu me encolho em meio a escuridão, abraçando minhas
pernas, sentindo o frio me envolver. Meus olhos se fecham e
meus lábios tremem. Estou com medo… Eu quero voltar pra
casa… Quero voltar para os meus amigos… Quero aprender a
passar por isso com eles. Quero…
— Traga ela para a frente da cabana. Aqui é Mais visível.
Vamos, amiga, reaja! Volte para nós, por favor… —Eu começo
a ouvir. Era a voz de Peri. Pela sua voz, era perceptível que estava
chorando.
— Eu sinto muito, princesa… Se eu não tivesse sido tão
egoísta e negligenciado seus sentimentos, estaríamos passando
por isso juntos e logo… você estaria sorrindo novamente. É
culpa minha! —Era a voz de Yôr. Eu ergo o meu semblante
descaído, olhando em direção ao som. As vozes… Elas me
guiavam.
— Não…—Eu falo baixinho. — não precisa se desculpar,
Yôr. Você também estava sozinho por todo esse tempo… Eu só
quero… que sorria novamente… —Com dificuldade, eu tento me
levantar, as pernas estavam trêmulas e o coração batia forte em
meu peito. Os vultos naquele mórbido plano começam a flutuar
agitados, farejando a minha presença.
— Ela reagiu… Ela mexeu o dedo… Eu acho… que ela
pode nos ouvir. Continuem falando! — Era a voz de Benjy.
Estava mais suave do que nunca. Eu abro um sorriso, criando
forças para dar o primeiro passo. E com o primeiro passo, os
incautos moribundos, em busca de uma fagulha de vida, também
criam motivação para dar o seu primeiro passo.
— Se está triste… Não precisa mais esconder a dor,
princesa… Você se lembra? Quando eu estava sofrendo… Você
me abraçou e me fez sorrir novamente… Ainda dói, o
passado… ainda dói, mas tudo é mais leve porque vocês estão
ao meu lado, porque você está ao nosso lado princesa… não
desista! Você consegue! Estamos aqui com você!
—Eu sei… Estou triste, Peri! Está doendo! — Eu avanço
mais um passo. E mais outro passo. As lágrimas descem
copiosamente de meu rosto. —Sinto falta do meu pai… Sinto
falta da minha irmãzinha… Sinto falta de assistir o amanhecer ao
lado deles…
— Princesa…
— Benjy… Benjy… Por favor, continue a falar. Deixe-me
ouvir sua voz — Os passos se apressam e eu começo a correr. As
lágrimas acompanhavam meu caminho, enquanto eu seguia em
direção às luzes que clareavam a minha jornada e aquecia o frio
que entorpece meus sentidos.
— Não tenha medo da escuridão. —Era Benjy novamente —
Quando nos conhecemos pela primeira vez e até agora, Você
sempre olhou para ela… para a escuridão, e soube enxergar a
luz. Você… não teme a escuridão… Você ilumina os nossos
caminhos, princesa. Sempre iluminou. Mas se você esqueceu…
— Nós iremos iluminar o seu caminho… para que se lembre
mais uma vez… —Yôr eleva sua voz, falando com convicção. —
E nunca mais deixarei você se esquecer… Irei te acompanhar
nos dias de sol e também nos seus dias de escuridão… Você
sempre foi a minha esperança… Saiba que desejamos ser a sua
também. —Eu abro um sorriso, iluminando meu rosto
mergulhado em lágrimas. Eu corro o mais rápido que eu consigo
em meio a escuridão. Os vultos cinzas das almas perdidas me
seguiam como uma fera acossando sua presa. Elas interpelam
meu caminho, agarram a minha perna, puxam-me na direção
contrária, mas aquelas vozes eram minha força. Então, eu
continuo, apesar de não ser nada fácil superar as adversidades,
mas enfrentá-las é o que nos resta. Como deve ser a vida.
— Me deixem em paz! — Eu tropeço no meio do caminho.
Uma das almas errantes envolvia minha perna e com ela, todas as
demais se aglutinam em cima de minha alma, absorvendo minha
energia de pouco em pouco — Me soltem! Eu tenho que voltar…
Eu não posso ficar aqui para sempre! Eles são… a minha família!
Por favor… Por favor… Me deixe voltar…
Quando eu achei que estava tudo perdido outra vez, um
clarão repentinamente inunda toda a escuridão à minha volta.
Uma luz gentil, calorosa e tranquilizante. Era linda. Receptiva.
Como a luz do sol. Tudo se torna nítido outra vez e as almas
afastam-se, incomodadas com a força daquela luminescência.
Meus olhos tomam aquele brilho amarelado. Aquele brilho
apaziguador e sereno. Borboletinhas coloridas voavam ao meu
redor, brincavam e me recepcionavam com sua energia alegre e
inocente. Pousam delicadamente na ponta de meus dedos, nas
mechas de meus cabelos e finalmente, começam a me guiar de
volta para o meu lar. A luz do sol e as borboletas. Desenhando o
caminho. Como eles me prometeram em um dia igualmente
iluminado como esse. Os dois me fizeram lembrar de como em
meio a escuridão é possível enxergar a luz. Os dois me fizeram
lembrar de meu lugar iluminado.
— Obrigada papai… Obrigada, Aurora. Obrigada por me
permitirem viver uma parte dessa jornada ao lado de vocês.
Obrigada por terem sido minha luz. Vocês brilharam intensamente
e essa luz… brilhará para todo sempre em meu coração—Eu falo
com sorriso e lágrimas no rosto. — Obrigada… E… Adeus.

Final: Um novo amanhecer para um dia


esquecido
Cada luz, uma história. Cada luz, uma vida. Ao longo de
nossa existência, nossas jornadas se cruzam com inúmeras luzes
que iluminaram nossos caminhos, acompanharam parte de nossas
jornadas e marcaram nossas vidas. Algumas luzes se apagam,
seguem seu rumo, cumpriram seu papel nesse mundo, mas como
o amanhecer, elas permanecem em nossas memórias como
fantasmas que só podem ser vistos aos nossos olhos. A vida é
assim: um encontro entre jornadas, uma união de propósitos. E
Nenhuma escuridão é tão árdua quando compartilhamos a nossa
luz uns com os outros. Nenhuma escuridão é tão escura se dela
enxergarmos suas lições. Tudo passa. A escuridão passa. A vida
passa. E tudo que nos resta são os rastros daqueles que por ela já
passaram. Tudo que nos resta é continuar nossa jornada. No fim,
tudo é luz. Tudo é uma passagem. Tudo é aprendizado. E por isso,
eu escolhi seguir as luzes que ainda permanecem ao meu lado, as
luzes que comigo também compartilham um fragmento da vida.
Aos poucos, meus olhos se abrem. As lágrimas desciam
singelamente pelo meu rosto, à medida que eu começava a
perceber que estava de volta. Todos eles aguardavam o meu
retorno com expectativa e esperança, segurando em minhas mãos,
mantendo-me em segurança. Em nenhum momento, deixaram-me
para trás. Eu pisco os meus olhos lentamente, abrindo um sorriso
genuinamente feliz.
— Seja bem vinda de volta, Princesa! — Yôr toma a
iniciativa. Sua voz estava menos pesada, mais leve. Havia um
sorriso discreto em seu rosto carrancudo de sempre.
— AMIGA!! —Peri me abraça com força, deixando as
lágrimas rolarem pelo seu rosto. —Eu senti tanta sua falta!
— Ei, calma lá, menina, com essa força ela vai desmaiar!
— Meu protetor exclama, tentando afastar a Peri.
— Se quiser abraçá-la vai ter que esperar sua vez, seu
engraçadinho!
— Que história é essa? Eu vim antes de você! —Ambos
continuam debatendo um com o outro como costumavam fazer
sempre. Meu corpo sendo puxado de um lado para o outro como
cabo de guerra. Eu realmente estava de volta. Eu realmente estava
em meu lar. Logo, o choro se verte em um riso. Todos voltam
seus olhares para mim e com um sorriso eu puxo os dois para um
abraço.
— Seus bobos! Estou de volta… Estou de volta. —Eu os
mantenho em meus braços, enquanto eu apreciava a presença dos
dois. Mas ainda faltava alguém. Benjy.
Eu o procuro com meus olhos. Sem encontrá-lo, o meu
coração fica ansioso para revê-lo. Eu me levanto, procurando pelo
rapaz. A cabana era modesta e pequena, erguida com madeira
desgastada e tomada por trepadeiras. Era modesta, mas era nosso
lar. Eu sigo por um corredor ladeado por arbustos e flores
silvestres. O som suave das folhas sob os pés cria uma sensação
acolhedora. Yôr e Peri me seguem, garantindo que eu ficaria bem.
O corredor me guia até os fundos. Tudo estava adornado. No
centro dos Fundos da cabana, uma mesa rústica de madeira
descansava. Sobre ela, um arranjo de flores do campo em um
jarro transparente. A disposição das flores, meio desajeitadas,
fazia-me pensar que foram feitas por Benjy. Velas pequenas
espalhadas pela mesa, criavam ponto de luzes suaves. Lanternas
de cristais prismáticos estavam erguidas no topo das árvores,
balançavam com o vento, esperando o momento tão esperado.
—Ah… Vocês lembraram… —Eu falo baixinho…
contendo as lágrimas.
— Não teríamos como esquecer de um dia importante, não
é mesmo? — Peri apoia uma de suas mãos em meu ombro e Yôr
o faz no outro ombro.
—É um dia importante para você… E também para todos
nós… É mais um ano que você está em nossas vidas.
—Estou tão feliz… Estou tão feliz de estar com vocês nesse
dia. Eu…
— Olhem! — Peri aponta em direção aos céus. O sol
timidamente nascia em meio a cortina de nuvens brancas, dando
adeus a noite e nos convidando para um novo dia. As lanternas
prismáticas são iluminadas a medida que a Luz do sol tocava,
formando um arco, que em seu esplendor, pintava o lugar cm as
cores do arco-íris. O tão esperado momento chegou e Benjy abre
caminho, andando em passos lentos, tímido, sendo acompanhado
pelo sol que brilhava cada vez mais belo e glorioso, trazia consigo
um bolo simples, caseiro, decorado com chantilly e morangos
frescos. Com ele, nossa família estava completa. Todas as luzes
estavam reunidas. E com ele ao nosso lado, um Novo Amanhecer
despontava para um dia que se tornou esquecido e escuro e voltou
a ser importante, feliz e iluminado.
— Feliz aniversário, princesa.

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