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LOVE TRAVELLERS
KARINA HEID
CONTENTS
1. A hora
2. O antiquário
3. A adaga
4. O cavaleiro
5. A inimiga
6. A verdade
7. O vilão
8. A torre
9. O banho
10. A fuga
11. O ataque
12. A caverna
13. A revelação
14. O governador
15. O encontro
16. A noiva
17. A fagulha
18. A febre
19. A roupa
20. A atração
21. O beijo
22. A manhã seguinte
23. Os dias
24. O teimoso
25. A aliança
26. A cortesã
27. A investigação
28. Os preparativos
29. A decisão
30. O amor
31. O início
32. A dor
33. A descoberta
34. O ataque
35. Queda e Ascensão
Valeta, 1568
Valeta, 2036
Últimas palavras
AGRADECIMENTOS
Meus livros
Sobre a autora
Uma Viajante do Futuro - Love Travellers
Copyright© 2023 Karina Heid Rocha
Todos os direitos dessa obra são exclusivos da autora.
É expressamente proibida sua distribuição ou cópia,
parcial ou inteira sem prévia autorização.
Atenção:
Esta é uma obra de ficção. Embora alguns lugares e instituições descritas no livro existam e eu tenha
tentado me ater aos fatos históricos, nem tudo pode ou deve ser considerado verídico. O mesmo vale
para a Ordem dos Cavaleiros: qualquer menção a ela faz parte da narrativa ficcional. Sendo assim,
qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera
coincidência.
Para quem quiser saber que músicas me embalaram durante a escrita, aqui
vai a playlist!
AVISOS DE GATILHOS
Karina
NOTAS DA AUTORA E ERRATA
E u precisava fugir.
Não da minha consciência ou das consequências dos meus atos —
eu estava destinada a sofrer pelas duas e em paz com essa punição. O
problema era outro.
Precisava fugir dali. Da cela gelada, das pessoas estranhas e do tal
Aaron. Os monges me assustavam, mas ele, em particular, me deixava
inquieta.
Estava começando a pensar num plano para escapar. A primeira coisa
era ter certeza de que meus machucados não iriam interferir na fuga.
Removi a faixa ao redor da cabeça e toquei de leve a pele sensível. Tudo
parecia bem, mas quando me levantei, foi aos tropeções. O chão estava tão
gelado que sentia as solas doerem. Não dava tempo de procurar meus tênis,
nem queria arriscar chamar a atenção — se quisesse fugir, precisaria ser em
silêncio. Decidida a sair do jeito que estava, colei o ouvido na porta e tentei
identificar se vinha alguém. Ao não ouvir nada, movi a maçaneta de ferro e
atravessei o corredor escuro abraçada ao próprio corpo.
A cada passo eu ficava mais certa que estava em um tipo de mosteiro. A
austeridade dos móveis, as paredes de pedra, os vitrais no alto — tudo
indicava isso. Mas por que me trariam para um lugar desses? Para me
esconder até a polícia parar de me procurar? Assim que eu pisasse na rua,
correria até a delegacia mais próxima e me entregaria. Minha irmã e
Cristopher não seriam acusados de serem cúmplices da minha fuga. Aliás,
também denunciaria aquelas pessoas por cárcere privado. Se minha irmã
pagou para eu estar segura, não devia ter sido colocada em uma cela,
cercada por homens assustadores e ordenada a dar informação de onde
vinha e de onde comprei minhas coisas.
Parei abruptamente ao entender que sair dali significava ir para a
prisão, e só de pensar nisso, meu estômago ardeu. Lembrei de Zach caído
no chão da sala, as mãos na altura do umbigo, a mancha de sangue
crescendo na roupa. Quem iria acreditar que nunca tive a intenção de
machucá-lo?
Avistei uma porta alta de madeira maciça e vigas de ferro que parecia
levar à rua. Cruzes enfeitavam as paredes e os santos que eram dispostos
em suportes altos pareciam vigiar quem entrava e saía. Abri a porta pesada
respirando fundo, sabendo que a liberdade seria provisória. A luz e o vento
frio me acertaram como um tapa. Ainda tonta, pisquei, sentindo o coração
bater alucinado.
No entanto, antes que pudesse disparar rua afora, fui acertada por uma
visão aterrorizante: não havia rua.
Não havia nada. Onde estava a cidade? Os edifícios, os carros, as
buzinas? Até onde as vistas podiam alcançar, tudo que existia era uma
estrada estreita de terra que parecia levar a lugar algum, cercada por uma
vegetação esturricada e branca pela geada.
Minhas pernas falharam.
Para onde tinham me trazido?
Zonza, balancei as mãos a esmo atrás de um lugar onde me apoiar.
Antes que caísse ali mesmo, desnorteada demais para aceitar que estava no
local mais remoto do mundo, braços quentes me ampararam e o mundo
escureceu.
“Preste atenção, Sabrina, eu preciso que você ouça o que vou dizer.”
Eu devia ter estado mais atenta ao que Cristopher falava, mas estava em
choque. Nem mesmo me lembrava de como cheguei à casa da minha irmã.
Onde estava a cabeça naquela hora? Para onde ia nossa consciência quando
nos deixava?
De volta à cama dura da cela, recordei as palavras do meu cunhado
enquanto ele me enfiava no carro e me sacudia pelo braço para me manter
alerta:
“Durante todos esses anos, me perguntei quando você partiria.
Cheguei a temer que esse dia não chegasse, embora Deus seja testemunha
de que não queríamos que fosse. Tudo que sabíamos era que você queria ir,
que o seu destino estava lá. Sempre quisemos contar a verdade, mas você
nos pediu para não dizer nada.”
Uma lágrima quente rolou pela minha bochecha enquanto me encolhia
sobre o colchão fedido, sentindo as mãos do estranho me cobrirem com a
colcha áspera.
A voz grave do meu cunhado continuava a chegar:
“Há mais ou menos treze anos, eu recebi uma segunda chance. Era o
momento da minha morte, a data em que eu tombaria em batalha, mas uma
mulher me entregou um colar e disse que eu deveria procurar por Isla
quando chegasse. Acabei acordando em um mundo diferente, em um tempo
diferente. Está me ouvindo, Sabrina?”
As palavras pareciam vir de um lugar distante. Lembro que só
conseguia olhar para o céu e pensar no que minha vida havia se
transformado.
“Você me deu uma segunda chance naquela tarde, meu bem, e eu
entendi logo que precisaria retribuir esse presente na hora certa. A hora
chegou, Sabrina. Hora de deixar o presente para trás.”
Um soluço de Isla me fez questionar para onde estavam me levando.
Percebi a direção quando Cristopher fez a curva e pegou a autoestrada que
levava em direção à costa. Por que estávamos indo para a região mais
isolada do país àquela hora? Não havia lugar na ilha onde pudesse me
esconder, eu já tinha tentado isso antes. Infelizmente, Zach me achou todas
as vezes.
“Ouça, Sabrina: será um mundo diferente deste aqui, e nada,
absolutamente nada, será fácil”, Cristopher continuava a falar. “Mas sei
que vai ficar bem no final. Aaron é o homem mais valente e honrado que já
conheci. Confie nele e será muito feliz até o final dos seus dias, como eu e
Isla sabemos agora. É só por ter certeza de que estará bem amparada que
estamos fazendo isso.”
No banco de trás, Isla continuava a chorar baixinho e a secar os olhos
com a manga do pijama.
“Bine, você ainda tem o colar que eu te dei há alguns anos?” — ela
perguntou. — “Aquele da pedra roxa?”
Sacudi a cabeça confirmando. Jamais me afastava da pedra. Se ela não
estava ao redor do meu pescoço, levava-a na bolsa, num bolso, ou até
mesmo amarrada no pulso. Ela sabia disso.
Vi o alívio nos olhos de Isla quando tirei o cordão de dentro do
moletom.
Lembro-me de ter perguntado o que uma coisa tinha a ver com a outra,
e soado fora de mim. Descombinada, desajustada no meu próprio corpo.
Ignorando minha confusão, Cristopher continuou:
“Você me encontrará em breve, mas eu não saberei quem você é. Preste
atenção, Sabrina: eu a tratarei mal, e peço perdão por isso, está me
ouvindo? Não a reconhecerei, mas você saberá quem sou e tudo deve
permanecer dessa forma. Lembre-se, do mesmo jeito que você não quis que
nós te contássemos, eu também não posso saber de absolutamente nada, ou
mudarei todo o nosso futuro.”
Ele olhou novamente para a minha irmã.
“Nada pode mudar agora, porque o presente é o meu lugar.”
“Ouça, porque isso é importante: não posso desconfiar de onde vem.
Aaron saberá de tudo e ficará ao seu lado, porque ele é um maldito
bastardo de coração de ouro e com um senso admirável de justiça. E
quando eu a tratar mal…”, Cristopher limpou a garganta, os olhos fixos no
caminho, “apenas se lembre de que no futuro eu a amarei como uma irmã.
Você é sangue do meu sangue e parte da minha alma, meu bem.”
Parados num sinal, Cristopher se virou e apertou minha mão, mostrando
que ele queria que eu gravasse aquelas palavras. Que o perdoasse por um
comportamento que ainda não havia acontecido. Minha confusão só
piorava, porque jamais imaginei que meu cunhado pudesse ser rude comigo
por qualquer motivo. Juro que tentei me concentrar no que falava, mas ele
não fazia sentido algum.
“Eu lhe ensinei tudo que precisa saber: as saídas do forte, a sequência
de lutas, onde ficar em segurança e para onde fugir. Você é o nosso futuro.
É o começo de tudo.”
Lembro que ficamos em silêncio por uns minutos até que uma grade
surgiu na escuridão, com placas de “Proibida a Entrada”. Cristopher
acelerou o carro e ouvimos o baque do portão indo abaixo. Assim que freou
abruptamente no meio do pátio vazio e escuro, pegamos correndo a
pequena estrada que ligava Ħaġar Qim, o círculo de pedras que remontava à
Idade da Pedra, a Mnjadra, mais adiante. Meio que caminhei, meio que fui
arrastada, vendo o céu ganhar lentamente uma tonalidade mais cinza, sem
entender o que estávamos fazendo.
Enquanto andávamos, senti o abraço de Isla e o peso de sua testa em
meus ombros. Ela tinha um sorriso triste nos lábios, mas esperança no olhar.
Gaguejei algo sobre não querer matar ninguém, o que era verdade. Também
falei o quanto eles estavam certos sobre meu marido, mas as palavras foram
engolidas pelo ruído do oceano, metros abaixo.
Se eu pudesse prever o futuro, nunca teria me casado com Zach. Eles
estavam certos, e eu, errada.
Quando pedi perdão por tudo, minha irmã sorriu e respondeu que não
havia nada para perdoar. Caminhamos até chegar no círculo de pedras. Sem
saber o que aconteceria em seguida, eu me virei para Isla e Cristopher:
“Eu queria tanto poder voltar no tempo. Queria tanto acertar as coisas,
Isla.”
Para minha surpresa, a voz carinhosa da minha irmã me garantiu:
“Você pode. E vai.”
1 A história da Mina será melhor explicada no livro “Um inimigo do passado”, da autora Liz Stein.
8
A TORRE
SABRINA
C ada passo que dava para longe daquela torre era um mais perto da
liberdade. Precisava ser rápida. Para onde ia, não importava. Em
algum momento eu encontraria uma carroça, um peregrino, uma
mulher, uma vila, sei lá. Meu Deus, se encontrasse alguém, pediria que me
levassem para o sul e de lá voltaria para casa.
Tive tempo para pensar durante os três dias em que fiquei presa. Para
começar, deixei de questionar a realidade ou minha sanidade: elas estavam
corretas, e minha percepção não estava me pregando peças. Não sabia
como, mas estava no passado, nas mãos de Aaron, irmão de Cristopher, no
ano de sabe-Deus-quando.
Uma pena que meu cunhado não me avisou que seu irmão era um
homem frio, sem nenhuma centelha de empatia ou piedade. Eu não voltaria
a ser prisioneira dele por nada no mundo. Tinha medo do que me aguardava
no presente, mas não o suficiente a ponto de renunciar a ele.
Continuei a correr, embalada por um ímpeto renovado. A respiração
entrava e saía ruidosa à medida que eu ia saltando sobre os arbustos baixos,
desviando de pedras e escorregando na terra seca e gelada.
Uma coisa era certa: eu preferia uma prisão moderna onde me
permitiriam banhos diários do que viver enclausurada, dormindo sobre um
banco duro na presença de um homem que se comunicava por resmungos.
Um que não tomava banhos, valia a pena lembrar.
Sem falar que se descobrissem que eu não era otomana, mas de um
futuro distante, me queimariam em praça pública. A Inquisição ainda rolava
em alguns lugares, afinal. O presente não seria perfeito, mas lá eu
contrataria um bom advogado que me defenderia e faria o meu divórcio.
Zach não representaria mais um perigo, caso estivesse vivo.
No entanto, apesar das certezas, a cada passo que dava, sentia o peito
mais agoniado.
Espantei as dúvidas. Não podia ser mantida cativa por um estranho que
fazia joguinhos mentais. Vivi anos demais com Zach para não saber como
aquilo funcionava. Os silêncios punitivos e a desconfiança sem limite
haviam destruído muita coisa boa em mim, mas tinham me ensinado a
reconhecer quando um homem queria algo. A questão era: o que Aaron
queria?
Olhei ao redor, vendo apenas aridez, morros cobertos de vegetação
rasteira e mais nada.
Sem orientações ou estrada, eu tentava me guiar pela costa, às vezes me
aproximando mais dela, às vezes me afastando. Mesmo em meio ao
desespero, a vista era linda. As paisagens que no futuro mostrariam cidades
estavam, no momento, sob o domínio da natureza. Ondas bravias batiam
nas escarpas quase verticais, atestando a existência de um mar atormentado
lá embaixo. Tudo aquilo seria um dia tomado por cidades, mas nessa época,
não havia nada.
Tropecei nas raízes de alguns arbustos e xinguei alto. Que merda, a bota
de Aaron era grande demais para o meu pé. E onde estavam as malditas
trilhas? O povo desse século não se movia de uma cidade para a outra? Não
deixavam rastros?
Não estava confortável por roubar a capa e a bota de Aaron, mas ele não
me deixou saída. Peguei também uma faca, e esperava de coração que ele
não se importasse, já que ficou com a minha adaga.
Não sei por quantas horas caminhei, mas foram muitas. Ia me
protegendo do vento devido à roupa molhada, e espirrei várias vezes, o que
não era um bom sinal.
Desci um declive afastando os galhos secos da frente do rosto, vendo
surgir alguns sinais humanos: uma cerca de madeira caída, um rastro no
chão que parecia ser uma trilha. Aliviada, vi uma fumaça subir em algum
lugar e acelerei o passo. Graças a Deus. Se tudo desse certo, eu chegaria
em breve no círculo de pedras.
Lembro-me de Cristopher ter dito algo sobre a pedra roxa e o solstício.
Será que ela me permitiria viajar fora da data certa? Bem, eu precisava
apostar. Não ia conseguir esperar o mês de junho para tentar outra vez.
Pedra e lugar precisariam ser suficientes. Era isso ou permanecer ali, com
ele.
Sei que Isla e Cristopher fariam qualquer coisa para me mandar para
longe de Zach, mas, puta que pariu, não precisava ser tão longe. E por que
motivo?
Assim que me fiz a pergunta, o rosto de Aaron de Landa surgiu como
resposta. Duro, silencioso e belo. Rústico e definitivamente mal polido nas
arestas, mas deslumbrante, sem sombra de dúvida.
Em um gesto reflexo, pousei a mão no estômago, aguardando a
contração dolorida tão comum frente às adversidades, mas estranhei quando
não senti nada. Minha úlcera devia estar me matando àquela altura, com
tanto estresse e sofrimento, mas no momento meu estômago só crepitava
pela adrenalina da fuga.
Meu coração acelerou ao perceber os contornos de uma vila. Choupanas
de pedra e telhados de palha surgiram no horizonte. Pessoas! Não acredito!
Estou salva!
Enquanto caminhava abraçada à capa grossa, lembrei do homem que
deixei tomando banho. Embora o plano fosse fugir quando ele deixasse a
casa, não esperava vê-lo se despir inteiro e se banhar. Eu era testemunha de
que Aaron tinha o corpo mais magnífico que eu já tinha visto — sites
pornôs e filmes com estrelas de Hollywood inclusos.
Gomos marcados da barriga, coxas longas e musculosas, bunda
perfeitamente redonda. Um membro rijo tão grande e robusto que cheguei a
dar um passo para trás.
Por que ele estava com o pau duro?
Ralhei comigo pelos pensamentos doidos enquanto avançava na direção
do pequeno aglomerado de casebres escurecidos. Alguém teria uma carroça
ali. Girei a aliança de ouro no dedo, considerando oferecer a joia como
pagamento pela carona até onde precisava ir.
Limpei o suor da testa. Não faltava muito agora. A roupa colava pesada
no corpo e era desconfortável sentir a malha gelada contra a pele.
Ah, Isla, você me paga.
E de onde Cristopher tirou que seu irmão era “o homem mais valente e
honrado” que conheceu, ou achou que eu seria feliz aqui?
Que babaca.
Subi em uma pequena pedra usando as mãos, os pés escorregando na
bota imensa, quando vi dois homens adiante. Meu coração agora batia tão
alto que quase me ensurdecia. Ergui a mão para acenar, e estava me
preparando para gritar quando ouvi um galope rápido e um relincho atrás de
mim. Ao me virar, quase desmaiei ao avistar a montaria branca de Aaron, e
a face irada do meu sequestrador.
Com um golpe único, sem nem mesmo saltar do cavalo, ele me
arrebatou do chão, me jogando sobre a sela como se eu fosse um saco de
batatas. Caí de barriga sobre suas coxas, imprensada entre o pescoço do
animal e a odiosa barriga de gominhos.
— Não, seu idiota! — gritei, agitando as pernas. — Me deixe em paz!
Não tem o direito de me levar de volta! Não sou sua prisioneira!
A mão dele continuava pressionada contra as minhas costas, me
equilibrando sobre a sela. Seu rosto estava sério e sob a barba curta e
espetada, a boca era um arco virado para baixo. Aaron não parecia nada
feliz, e quer saber? Foda-se, porque eu também não estava!
— Maldita — ele rosnou, galopando mais rápido para longe, enquanto
eu sacolejava como um saco flácido.
— Me leve de volta! — gritei outra vez. — Quero ir embora daqui! —
implorei, mas era como falar com uma estátua. Não sei quanto tempo fiquei
pendurada sobre o lombo do cavalo, ondulando contra as coxas do homem
enquanto ele voltava na direção daquela maldita torre.
Tentei uma dezena de vezes me mexer, mas ele sempre me firmava no
lugar, espalmando a mão sobre mim — muitas vezes sobre a minha bunda.
Parei de lutar antes que aquilo se tornasse ainda mais perigoso do que
estava sendo. Era humilhante e errado ser mantida em cárcere. Assim que
encontrasse outra pessoa no planeta, eu o denunciaria por maus tratos e
sequestro!
— Você não tem o direito, sabia? — Virei uma última vez para ele,
odiando profundamente que o visse sorrir. — Vou vomitar, se não me
colocar sentada! Quer que eu suje o seu cavalo? Ou talvez a sua bota?
Ele havia me descalçado assim que nos afastamos da vila. Ou seja, eu
estava naquela posição humilhante com os pés apenas em meias.
Desgraçado idiota.
— Não confio em você — Aaron falou depois do que pareceram anos.
— A senhora roubou a minha capa e uma das facas. Além das botas.
— Só fiz isso porque me manteve presa na sua casa sem me dizer o
motivo!
— Ainda não contou o que está fazendo na ilha.
Ergui as mãos, estalando as costas doloridas e me ajeitando sobre o
animal.
— Não adiantará contar! Você não pode fazer nada com a verdade. Por
favor, apenas me devolva para o círculo de pedras. Preciso voltar para casa!
— Onde é casa? — O olhar afiado, que parecia enxergar tudo, cravou-se
no meu. Eu podia afirmar, com toda a certeza, que ele estava andando
devagar com o cavalo só para meu traseiro balançar mais forte para lá e
para cá. — E quem está esperando você por lá?
— Vou matar você — rosnei baixo, deixando a testa tombar no couro
suado do animal. Que fedor de cavalo, que ódio desse homem!
— Eu não tinha medo de você até há pouco, mas agora tenho — ouvi
sua voz gelada e masculina confessar. — Você não está perdida. Suspeito
que tenha um propósito, e mulheres com propósitos costumam trazer
problemas.
— Cale a boca e vá à merda — gemi fraca.
Com os braços balançando livres, meu peito estava comprimido contra a
sela e a respiração era rasa.
— Com esse vocabulário, deve vir de alguma cidade portuária. Talvez
seja uma taberneira. Ou uma meretriz.
Ergui a cabeça com uma careta.
— Por que tenho que ser uma dessas duas coisas? Sério, como você
pode ser… — Irmão de Cristopher, pensei em dizer, mas me calei. — Quer
saber? Espero que morra engasgado com as besteiras que diz!
— Brava e mal-educada. Talvez eu esteja errado, e você seja mesmo
uma espiã.
Ergui o dedo do meio para ele, sem me dar ao trabalho de levantar a
cabeça. Toda vez que girava o pescoço, ele doía.
— Responda para onde quer voltar e eu colocarei sentada na sela —
Aaron sugeriu, mais manso.
— Quero voltar para casa e nunca mais pôr os pés aqui.
— Você é moura?
— Mouros são muçulmanos e eu não sou nada! Nem em Deus acredito,
satisfeito? E por que fica repetindo que sou isso? — Quando Aaron desceu
o olhar para os meus braços descobertos, entendi de onde vinha sua grande
suposição. — Porque minha pele é escura e a sua, clara? Acorda, seu racista
idiota.
— É uma herege, sem dúvida.
— Vai tomar no cu.
O abusado teve a pachorra de descer as vistas até o meu traseiro e sorrir.
— Não sei bem o que isso significa, mas esse definitivamente não é um
vocabulário usado por damas.
— Pois vá tomar no cu novamente.
Quando percebi que Aaron mantinha o olhar na minha bunda, me
remexi querendo erguer uma perna e acertá-lo em qualquer lugar. Onde
quer que meus pés batessem, seria com tanta força que o machucaria.
— Pare de dar coices ou vai cair do cavalo, sua desbocada — ele se
aborreceu, o corpo oscilando para os lados também.
Pois era isso mesmo que eu queria. Mais um malabarismo de pernas, e
senti o calcanhar acertar um dos seus joelhos. O chute foi forte o suficiente
para me fazer escorregar do cavalo e cair com as mãos na terra cheia de
pedras. Machuquei as palmas que sustentaram meu peso, mas valeu pelo
grito de dor que arranquei daquele arrogante.
— Maldita! — Aaron saltou do cavalo, caindo de pé com certa
dificuldade. — Quase quebrou meu joelho!
Encarei o cavaleiro com raiva, enquanto me arrastava para longe dele.
Seria uma pena deixar um homem tão bonito manco, mas, mesmo assim,
motivo de celebração. Ele se aproximou puxando uma das pernas, a face
crispada de dor. Sem pensar duas vezes, me coloquei de pé, limpando as
mãos nas costas e andando para trás. Tentei me lembrar de algum golpe que
Cristopher me ensinou e que poderia usar ali. Outro maldito, concluí. Ainda
não conseguia acreditar que meu cunhado tinha me preparado para um dia
me mandar para cá e ficar com o idiota do seu irmão.
Quando pudesse, daria um chute no seu joelho também.
Com os dentes travados, Aaron avançou, mancando. Ele era grande e
forte, mas eu podia fazer um estrago naquele rosto, ah, podia, sim.
— Venha cá, sua arrumadora de confusão. — Ele investiu contra mim,
mas ameacei chutá-lo outra vez. Seus olhos voaram até os meus, onde tinha
um aviso claro de que se chegasse perto, poderia ser danificado ali
embaixo.
Uma pena para a população feminina da ilha no século XVI, no caso.
Não que eu me importasse.
Aaron não desistiu e tentou me pegar outra vez, mas desviei. Aquilo era
ridículo. Até uma semana atrás, eu andava de salto alto, dirigia uma SUV e
pedia cafés com desenhos de chocolate feitos na espuma. Como podia estar
naquela paisagem árida e isolada, séculos no passado, desviando do irmão
do meu cunhado, que também era um homem do passado?
A situação não era mais um pesadelo: era um delírio completo.
— Não vou retornar para a torre! Você disse que eu não era prisioneira!
Sou uma mulher livre e exijo ser levada até seu prefeito, governador, ou sei
lá o que tem aqui!
— Foi o governador que me mandou prendê-la — ele resmungou de
volta.
Aaron parou de avançar ao ver que eu preparava outro chute. Não sei se
estava com medo ou só com pena do meu medo. De qualquer forma, ele
parou, puxou o ar e apoiou as mãos na cintura.
— Você tem razão. Não é minha prisioneira.
— Se não sou, então exijo que me leve de volta — ordenei com a voz
mais firme que consegui.
— Para o mosteiro? Não gostará de voltar para lá.
— Qualquer lugar é melhor do que aqui.
— Não acho que os freis seriam tão respeitosos como estou tentando
ser.
— Ah, tá bom. Você também não é nenhum lorde inglês! Vi que ficou
me observando enquanto eu tomava banho.
Notei a sombra dele na janela, me vigiando enquanto me despia. Quase
desisti do banho, mas continuei porque não aguentava mais ter o sangue de
Zach no meu moletom, e precisava desesperadamente me limpar depois de
três dias.
— Não faço ideia do porquê deveria ser um inglês, mas se fui
comandado a vigiá-la, então é o que preciso fazer. Além disso — ele ergueu
as mãos —, nunca vi um ser humano com coragem para se banhar no frio!
— Mentira. Você é só mais um tarado.
— Não faço ideia do que seja um tarado, mas se está dizendo, então
sou. Vamos lá, senhora, deixe de ser teimosa. Está anoitecendo e precisa
secar as roupas, ou ficará doente.
Senti as pernas fraquejarem ao perceber que aquilo não ia dar em lugar
nenhum.
— Eu só quero voltar para casa.
— Não sem antes me dizer onde é casa e o que está pretendendo aqui.
— Aaron olhou para cima, vendo que a chuva fina e desagradável
recomeçava. — Se possível, vamos fazer isso longe da garoa, sim?
— Eu conto qualquer coisa se me ajudar a voltar — arrisquei.
O cavaleiro respirou fundo, voltando a me encarar tranquilo. Ficamos
alguns segundos nos observando até que ele assentiu.
— De acordo. Você me conta a verdade esta noite, e eu a levo aonde
quiser amanhã.
11
O ATAQUE
AARON
C ontar o que eu sabia sobre o Cerco não foi algo que fiz por impulso.
Pensei longamente no assunto durante a noite, enquanto fingia
dormir, e tomei a decisão ao ver Aaron jogar aqueles três homens
mortos do penhasco. As informações que eu possuía podiam salvar pessoas.
Talvez abrir o jogo sobre a guerra equilibraria a matemática de ter tirado
três vidas — talvez até mesmo uma quarta — e, quem sabe, me devolver a
tranquilidade na alma. Se salvasse pelo menos a vida de Aaron, me sentiria
menos mal.
As vidas de Aaron e de Cristopher, me corrigi, tentando ver a
circularidade da situação. Meu cunhado vinha desta época, e, por razões
que jamais entenderia, me mandou para cá para ajudar o seu povo e o seu
irmão. Isso era tudo que eu podia concluir no momento. Qualquer outra
conjectura seria apenas isso: uma suposição. Além disso, a frase “você é o
início de tudo”, que Cristopher me disse naquela noite, não saía da cabeça.
Ele depositara esperança em mim, por mais incompreensível que isso
soasse.
A cavalgada pelo interior da ilha até São Ângelo foi feita com outros
olhos. Nessa viagem, não estava mais sendo carregada contra minha
vontade ou fugindo, mas indo de encontro à história. Ainda não conseguia
acreditar que conheceria Jean Parisot de Valette. O homem que deu o nome
à capital, chamado por muitos, depois do Cerco, de Escudo da Europa.
Deixei os pensamentos e o medo de lado para apreciar os arredores. O
interior da ilha era cortado por estreitas estradas de terra e poucos vilarejos
espaçados. O caminho seguia cheio de pedras e a vista do mar era de tirar o
fôlego. Se Aaron não tivesse usado mais uma vez sua capa para me
proteger, o vento teria me congelado. Porém, por mais que fosse agradável
sentir o calor do seu peito contra as minhas costas, o silêncio dele era
enlouquecedor. O homem simplesmente não falava. Depois da conversa na
torre, Aaron se fechou em um lugar inacessível e não retornou. Eu já tinha
notado essa capacidade que tinha de estar presente quando queria e, de
súbito, isolar-se dentro de si. No momento, ele estava tão distante de mim
quanto um homem do século XVI podia estar de uma mulher do século
XXI.
Mas não era exatamente isso que Cristopher e Isla eram? Um homem
do passado com uma mulher do futuro?
Aquilo fazia muito sentido, agora. O sotaque inexplicável do meu
cunhado, suas eternas visitas à sede da Ordem dos Hospitalários, onde
adquiriu a cidadania maltesa, o mistério sobre seu passado… Por que minha
irmã nunca me disse de onde — de quando — ele vinha?
Continuei a questionar muitas coisas enquanto acariciava a pedra
escondida por baixo do moletom. Por que justamente eu fui enviada para
aquela época, sem uma única explicação do que fazer? Contava apenas com
a minha bússola emocional para me guiar aqui, e ela sempre apontava para
o amor que sentia por Isla e Cristopher.
Consciente do calor atrás de mim, me perguntei se talvez não fosse com
esse Aaron que Zach insistia em dizer que fui casada. Pensar naquilo me
fazia pular para conclusões que não estava preparada para aceitar. Não
podia enveredar por esse caminho. Eu ia voltar para o futuro e enfrentar o
que aconteceu, estivesse o marido vivo ou morto. Além do mais, não estava
ali para suspirar por homens de um metro e noventa, porte de guerreiro e
olhos verdes profundos.
Encolhi discretamente as pernas ao sentir as suas contra as minhas,
consciente do roçar dos braços maciços ao meu redor, do hálito morno que
chegava no meu pescoço e da força dos seus músculos. Um arrepio me
tomou por inteiro, como um aviso. Precisei chacoalhar a cabeça para
afugentá-lo e voltar a focar no balanço do cavalo.
Não. Aquilo era tudo um delírio de Zach. Eu nunca viveria no passado,
e Cristopher e Isla sabiam disso. Minha missão envolvia apenas avisar
Aaron do perigo e depois partir para casa. Eu não saberia viver sem o
conforto da minha cama e do mundo onde havia descargas sanitárias,
delivery e internet.
No entanto, quando lembrava dos últimos dias, o brilho do meu tempo
desaparecia. A casa luxuosa nunca foi o meu lar, nem o homem com quem
me casei, alguém que sentiria falta. Nunca soube quem ele era de verdade, e
parece que, por consequência, nunca consegui enxergar quem eu era.
Embora a desejasse muito, minha vida nos últimos tempos era suportada à
base de antiácidos que minimizavam os efeitos de viver em eterna tensão.
Daquela vida eu não sentia falta.
Eu queria outro futuro.
Fechei os olhos, me concentrando no zumbido dos poucos insetos ao
redor, no som do casco do cavalo moendo os pedregulhos e na respiração
masculina atrás de mim. Senti o vento soprar no meu rosto, certa sobre uma
coisa: no novo futuro, eu seria livre. Não sentiria mais medo de ser quem eu
era, de falar o que queria, de lutar pelo que me importava. Quando voltasse,
eu me divorciaria, pagaria legalmente pela facada que dei no meu marido e
depois me mudaria para bem longe. Então voltaria a ser útil, a trabalhar,
talvez até mesmo conseguiria um dia amar novamente.
O sol finalmente vazou pelas nuvens e iluminou o mar azul. Então
percebi que se eu removesse o pavor de estar ali, o incômodo pela presença
daquele homem calado atrás de mim e o medo do que ainda estava por vir,
o que sobrava dentro de mim era um estranho e inexplicável sentimento de
liberdade.
— Você voltou a respirar.
Olhei para trás. O queixo masculino estava erguido, a linha da barba
escura correndo por todo o maxilar.
— Como? Não entendi.
— Você não estava respirando antes.
— Claro que estava. — Voltei a olhar para frente, tomada por um novo
arrepio. — Se não estivesse, não estaria viva, não é?
Ele soltou um ruído divertido.
— Tem a ver com a sensação de estar vivo — ele explicou e precisei me
virar de novo. — Acontece com muitos soldados depois de uma batalha.
Você acha que vai morrer, então sai vivo daquela que achou ser sua última
noite. O que acontece no dia seguinte é isso; nós respiramos de um jeito
diferente.
Voltei a olhar para a paisagem, pensativa, sentindo uma lufada de vento
remexer meu cabelo. Precisava admitir que estava respirando como há
tempos não fazia.
Talvez Aaron tivesse razão. Até o momento eu achava que só existia a
culpa pela noite em que feri Zach, mas percebi que também havia alívio. Eu
tinha me libertado. Eu reagi e me salvei, e isso não era pouca coisa. Era
muita coisa para quem só vivia com medo.
A chegada à cidade foi marcada por surpresas. Onde deveria haver
Valeta, a capital cheia de prédios e pessoas nas ruas abarrotadas de turistas,
via-se apenas poucas casas espalhadas por ruas emporcalhadas de dejetos e
lama gelada. Aldeões imundos passavam por nós, escondendo-se ao nos
verem. Quando o terceiro homem saiu apressadamente do caminho,
abaixando a cabeça e desviando o olhar, encarei Aaron.
— Por que estão fugindo da gente?
— Não tem nada a ver com você.
— Tem a ver com você?
Aaron parou o cavalo, olhando sério para os que permaneciam nas ruas
e nos observavam.
— Minha reputação não é das melhores — ele explicou, como sempre,
lacônico.
A visão dos olhos verdes e gelados me fez engolir em seco.
— Reputação pelo quê?
— É melhor não saber, Sabrina.
Aaron parou diante de uma choupana de pedra, saltou do cavalo e bateu
na porta estreita de madeira. Um homem de roupa encardida o atendeu e
eles conversaram brevemente em um dialeto indecifrável para mim. Aaron
estendeu a mão para me ajudar a descer do animal. Quando aceitei o apoio,
suas mãos me envolveram pela cintura e dedos quentes escorregaram pela
minha barriga, fazendo meu moletom subir discretamente. Pisquei,
arrepiada pelo contato de pele contra pele, vendo que ele também parecia
sem jeito.
Seguimos o homem em silêncio casa adentro, Aaron na frente e eu
atrás, abraçada novamente à sua capa. Atrás dele, notei como andava um
pouco curvado, porque quase não cabia sob o teto baixo. A casa continuava,
estreita e irregular, cada vez mais escura à medida que avançávamos.
Tinha visto muitas pinturas sobre moradias antigas, lido vários livros de
diferentes épocas, mas nada se comparava a ver as coisas. Fiquei
impressionada com os móveis simples de madeira, os pequenos enfeites
artesanais de palha, as tapeçarias feitas em tear manual e os cheiros que
pairavam no ar, como o de lenha queimada e a comida sobre o fogão de
tijolos. Detalhes que nem em mil anos conseguiria imaginar apenas com
pinturas, livros e filmes.
No fundo da residência, uma mulher bordava sentada em uma cadeira
de encosto alto. Uma janela estava aberta atrás dela e a luz inundava o
ambiente. Ela ergueu o rosto, ouvindo o homem que nos guiava para dentro
da casa e que deveria ser o seu esposo. Assim que percebeu nossa presença,
os olhos cansados se fixaram em mim. Não consegui entender uma única
palavra que trocaram.
— Quem são eles? — sussurrei para Aaron.
— Essa mulher costura. Você não pode circular pela vila com essas
roupas masculinas. — Ele desceu os olhos por mim como se pudesse ver a
calça jeans por baixo da capa. A mulher se levantou e tirou algo do baú,
deixando claro no tom dos resmungos que não gostou de ser interrompida.
Quando ela levantou o traje, reconheci imediatamente o que era. Ela
apalpou e ajeitou o capuz largo e arredondado, endurecido pelo amido e as
estruturas de osso de baleia, antes de entregá-lo para Aaron. Era uma
faldetta, o traje típico da ilha, usado no interior até meados do século
passado — do meu século passado, no caso. A túnica, uma mistura de
vestido com capa, era comum nas ilhas mediterrâneas e perfeita para
esconder roupas inapropriadas. A que a dona da casa nos mostrou era azul
bem escura e parecia feita de algodão, porém mais rústico. Aaron pegou a
peça, agradeceu e deixou a casa, jogando ao homem uma moeda antes de
sair.
Já na rua, Aaron parou abruptamente e se virou para mim. Com sua
economia rotineira de palavras, indicou com o queixo que deveria estender
os braços, o que fiz de pronto. Ele me vestiu com a peça e ajeitou o capuz
ao meu redor. A parte inferior chegava até a panturrilha e as mangas eram
bem largas. Passei as mãos pelo tecido frouxo ao redor do corpo e do
quadril, encantada. A última mulher que usou uma dessas na ilha foi há
quase cem anos (contando do meu tempo), e chegou a virar notícia nos
jornais quando morreu e a tradição se foi com ela.
— Quando caminhar, segure a borda para esconder as calças. Pedi que
eles me arrumassem alguns trajes apropriados para você, mas só ficarão
prontos mais tarde. — Aaron desceu as vistas por mim, tentando se manter
inexpressivo. O que vi em seus olhos, no entanto, me perturbou. Estava
claro que minha roupa o incomodava, mas havia algo mais.
— Depois da reunião voltaremos aqui.
Assenti em silêncio, arrastando a mão pelo moletom para tentar abaixar
o arrepio da pele. Não gostava de sentir aquele alvoroço todo sempre que
ele olhava para mim.
Enquanto caminhávamos, tentei memorizar tudo o que via. Outras
mulheres vestiam a faldetta, de modo que eu não destoava delas, a menos
que me olhassem demais. Era estranho não ter um celular para fotografar o
que encontrava de especial. Teria que me lembrar de tudo isso mais tarde,
detalhe por detalhe.
Notei, mais de uma vez, cavaleiros cumprimentarem Aaron com
reverência e alguns aldeões cochicharem sobre ele ao passarmos. Aaron
devia ser alguém respeitado na Ordem, mas que também assustava as
pessoas. Bem, não podia negar que o homem tinha mesmo uma forma
arrogante de se mover e uma expressão sombria, e não dava para descobrir
no que pensava. Pelo eterno semblante fechado, deviam ser coisas pesadas.
Ao mesmo tempo, ele era cheio de uma força que eu desconhecia; uma
certeza que o acompanhava a cada passo, como se merecesse estar onde
chegou ou tivesse conquistado cada gesto de respeito que lhe destinavam.
Portas foram abertas quando alcançamos o imenso forte e ninguém perdeu
tempo questionando quem eu era, já que o acompanhava.
— O que fazia antes de se isolar na torre? — questionei, tentando
entender todo aquele respeito e medo nos olhares.
— Eu interrogava pessoas.
— Como um policial? — perguntei, mas como ele não entendeu, tentei
achar uma palavra mais antiga. — Um tipo de guarda, de… patrulheiro?
— Como torturador.
Diante dessa resposta, não tive coragem de perguntar mais nada.
— Mas não faço mais isso — ele adicionou, seco, indicando com um
gesto que eu deveria segui-lo.
Era impossível não ficar surpresa à medida que entrávamos na ancestral
fortaleza de São Ângelo, sede do governo de Malta na época. Ela parecia
diferente da construção que conhecia no futuro. Embora já datasse de um
século, a edificação estava bem mais conservada, visto que ainda não havia
sofrido o ataque do Cerco nem os outros que a ilha suportou durante os
anos seguintes. Ela era relativamente nova e tão imponente como ainda era
no futuro.
Fomos levados até a sala onde Valette, o famoso Grão-mestre da Ordem
de São João e governador da ilha, prontamente nos recebeu. Nem mesmo
Isla acreditaria em mim se eu contasse que conheci pessoalmente o
fundador da capital. Isso era o mais surreal de tudo o que tinha me
acontecido até agora... bem, tirando o ataque dos otomanos... E viajar no
tempo.
Sem voz, vi o homem que apenas conhecia dos livros de história saudar
Aaron como se fossem velhos conhecidos. E eram, pelo que entendi. Os
pais de Aaron e Cristopher eram de Mdina e conheciam Valette há muitos
anos.
Jean Perisot de Valette era alto, tinha cabelo escuro penteado para trás e
era tão bonito quanto os livros afirmavam. A pele era dourada, curtida pelo
excesso de sol da ilha mediterrânea e pelos anos em que trabalhou no mar,
ora como capitão da frota dos Cavaleiros, ora como escravo de piratas
otomanos. Seu olhar intenso e sagaz correu brevemente por mim enquanto
falava com Aaron, como se minha presença ali não fosse exatamente uma
surpresa. Minutos depois, o escritório foi esvaziado dos secretários e
assistentes. Quando me virei, percebi que só restavam nós três.
A sala tinha um teto abaulado e paredes de pedra amarela. Livros de
lombadas pretas e vermelhas enfeitavam as estantes e, sobre uma imensa
mesa de madeira polida, havia mais papéis, tinteiros e mapas estendidos
mostrando a ilha e o mar que a circundava. A luz entrava fraca por uma
janela alta de vidro, mas as velas ao redor ajudavam a iluminar o ambiente e
espalhavam um cheiro de cera, antigo e acolhedor.
Assim que os homens se calaram, o Grão-mestre caminhou na minha
direção. Ele vestia um doublet de cetim preto com mangas bufantes e uma
gola franzida, exatamente com as pinturas renascentistas que víamos nos
museus, além, claro, das típicas calças curtas que chegavam até os joelhos
com meias grossas por baixo.
— Então essa é a dama encontrada sem sentidos perto das pedras do
sul? — Valette perguntou a Aaron de maneira tranquila, a suavidade do tom
mal disfarçando a intensidade de sua personalidade. Era impressionante
como conhecíamos alguém pela voz: a dele era a que poucos líderes tinham.
— Sim, senhor.
Segurei o ar, subitamente temendo a mesma presença imponente que
tinha me fascinado segundos atrás.
— De onde vem, senhora?
A pergunta simples tinha uma resposta complexa. O que deveria
responder? A verdade? Seria um passo gigantesco e no escuro, sem saber se
o metro seguinte traria chão sólido ou abismo sem fundo.
Mais uma vez, segui a agulha que apontava para o coração.
— D-daqui mesmo, senhor.
O governador apertou os olhos, estudando a sinceridade das minhas
palavras, mas antes que me fizesse mais alguma pergunta, Aaron se colocou
entre nós.
— É melhor se sentar, Jean. É uma longa história.
15
O ENCONTRO
SABRINA
Após algum tempo de conversa, fui colocada para fora da sala sob os
cuidados de três cavaleiros mal-encarados. Todos vestiam um tipo de
casaco curto acolchoado sobre camisas de linho com babados nas golas e
nas mangas, e aquela estranha calça balonê que só chegava até os joelhos,
de onde meias grossas, brancas, seguiam até os sapatos de sola de madeira.
A ordem que Aaron me deu era de permanecer em completo silêncio.
Ninguém deveria ouvir meu sotaque e desconfiar de nada.
Eu estava perplexa por muitas coisas (quem diria que o Grão-mestre
acreditaria na minha história?), mas principalmente pela acurácia dos filmes
que Isla e Cristopher produziram durante os anos. Eles haviam recriado
aqueles dias de maneira inexplicável. Os lugares, a linguagem, as bandeiras
e brasões pendurados nas paredes de São Ângelo e até a figura do fundador
da capital. Mal conseguia acreditar em como meu cunhado revelou ao
mundo que vinha de outra época e ninguém — nem mesmo eu —
conseguiu enxergar.
Acabei me sentando em uma cadeira disposta no imenso corredor.
Enrolada à faldetta, fechei os olhos. Sei que fazer tudo aquilo era a coisa
certa, mas não estava conseguindo enxergar a dimensão disso ainda — até
por que estava agora mais presa naquela enrascada do que vislumbrei no
começo. Aqueles homens não me deixariam mais ir embora.
Por que tinha que tentar ajudar? Por que não calei minha boca
grande? Arrastei as mãos pelo rosto, sabendo a resposta: porque eu nunca
me perdoaria por não ter colaborado.
Já estava começando a sentir meus pés gelados quando Aaron deixou a
sala. Ele tinha uma lâmina de suor na fronte e os olhos um pouco
arregalados. Parecia ter ouvido algo muito assustador, algo inimaginável, e
assim que pisou no corredor e me viu, estancou no lugar.
Levantei, sobressaltada.
Pela ruga entre as sobrancelhas grossas, eu sabia que tinha sido o
assunto da conversa particular. Alguma decisão sobre o meu destino havia
sido tomada e não deveria ser boa, nem para mim, nem para ele, pelo jeito.
— E então? — perguntei baixo. Meu papel naquela história estava feito,
certo? Eu precisava ir embora daquele lugar antes que a guerra estourasse.
Aaron olhou para os três homens parados no corredor e se colocou na
frente deles para tapar a visão do que me diria. Dava para ver que ele não
estava bem.
— Não posso deixá-la partir agora, Sabrina. Sinto muito.
— Mas você me prometeu! — Eu o cobrei com um rosnado baixo. Não
ia me esquecer de todo aquele papinho sobre honra e cumprimento de
promessas.
— Valette acredita em você. Ele acha que se ficar mais um tempo, pode
nos ajudar mais.
Arrastei as palmas frias pelo rosto, com vontade de bater em mim
mesma. Claro que o Grão-mestre acharia isso. Inacreditável era que ele
acreditasse em mim.
— Eu já contei tudo o que sei, Aaron. Você disse a ele que ganharão a
batalha? Que vencerão os turcos? É isso que importa, não é? Isso e os
preparativos anteriores à chegada deles.
— Fale baixo — ele ordenou, mas eu não conseguia me conter. Quando
Aaron ordenou que partíssemos da torre, soube que falar a verdade me
causaria problemas. Aqueles homens iam querer ouvir mais, conhecer mais
sobre o futuro, mas não cheguei a pensar que talvez me quisessem por perto
por… meses. Talvez até por…
Não, eu não poderia participar daquela loucura. Eu era uma garota da
cidade moderna, com o estômago prejudicado e que precisava de
antiácidos.
— Não pode me forçar a ficar para presenciar o que vai acontecer,
Aaron. Será um massacre.
— Não ficará para a guerra. Valette só quer conversar mais vezes com
você. Não agora, porque precisa se sentar com alguns homens de confiança
e inventar a existência de um espião para começar os trabalhos. Ele não
quer provocar o caos antes de ter um plano.
Aaron me puxou pelo braço até um canto distante, longe dos ouvidos
dos outros. A pressão da sua mão na minha pele me fez retesar. Quando
meu corpo ficou rijo, ele percebeu e logo me soltou.
— Para começo de conversa, o governador não pode dizer que ouviu
essas previsões de uma mulher, especialmente uma que diz ser do futuro.
No entanto, por motivos muito pessoais, ele acredita em você. — Seu olhar
indicava que o Grão-mestre confessara algo e aquilo atiçou minha
curiosidade. — O fato é que Jean não pode ignorar que fomos atacados
ontem. Parece que houve um incidente parecido na torre de Santa Maria.
Um dos vigias desapareceu, e achamos que ele foi morto por alguém. São
sinais demais para descartarmos.
Em seguida, sua voz ganhou uma rouquidão que ecoou discreta entre as
paredes mal iluminadas:
— E isso não foi tudo o que ele me disse.
— Tenho até medo de perguntar o que mais conversaram.
Por um segundo que pareceu durar uma eternidade, Aaron me encarou.
Ele parecia procurar as palavras certas, e a cada fração de tempo que não as
encontrava, crescia em mim uma expectativa cega.
— Ele disse que nós…
— Que nós o quê?
A conversa foi interrompida por uma voz alta que retumbou no corredor
como um trovão. Aaron arregalou de leve os olhos, observando alguém que
vinha pelo corredor.
— Aaron? É você mesmo?
Eu reconhecia aquela voz. Eu amava o dono daquela voz. Ao me virar,
vi uma das figuras mais acalentadoras do meu mundo caminhar com passos
firmes em nossa direção. Ele vinha com um sorriso largo e amigo, de braços
abertos. Meus olhos se encheram de lágrimas e a confiança sólida fez meu
coração se aquecer.
Cristopher.
16
A NOIVA
SABRINA
O retorno foi tão desconfortável como a ida, mas dessa vez adormeci,
embalada pelo caminhar lento do cavalo, recostada no ombro largo
do meu captor. Só acordei quando Aaron murmurou no meu ouvido
que havíamos chegado. Desencostei do peito quente, me sentindo mal por
ter dormido boa parte do caminho. Se queria fugir, precisava aprender o
trajeto. Mais uma vez, não sabia como sair dali.
Durante a próxima hora, o cavaleiro me deixou quieta em um canto
enquanto ajeitava os mantimentos nas prateleiras, colocava a carne fresca
para defumar e coletava água no poço. O tempo inteiro ele trabalhou
calado.
Poderia ajudá-lo, mas não me sentia inclinada a isso. Entrei pisando
duro naquele lugar horrível, me encolhi perto do fogo baixo e ignorei-o.
Meu coração batia de maneira insana toda vez que me lembrava de voz
rouca anunciando que éramos noivos. Que agora era supostamente sua
amante.
Abracei o estômago pedindo silenciosamente que não voltasse a doer,
mas o órgão parecia responder que não era dor o que revirava ali. Tinha
cara de outra coisa. O fato era que Aaron despertava sensações estranhas
em mim. Deixava minhas pernas moles e meu cérebro cambaleando. Nas
horas mais silenciosas, seu rosto surgia diante dos meus olhos junto com as
pernas longas e fortes e músculos maciços. A simples imagem dele fazia
minha respiração mudar. De leve, de forma que só eu percebia. Meus
sentidos acordavam quando ele estava perto. Minhas partes íntimas, que
não sabiam o que era satisfação há tempo demais, pulsavam como um
sonar.
Já era noite quando me levantei de perto do fogo, aborrecida por não
saber onde o homem tinha se enfiado. Fui até a janela, imaginando que ele
estaria lá fora, e estava certa; ele havia feito uma fogueira com troncos
dispostos ao redor do fogo. Estava sentado, pensativo, as costas curvadas e
as mãos unidas acima das coxas.
Gastei um tempo observando a figura enrolada na capa escura, com o
rosto parcialmente iluminado pela luz das labaredas. Seu peito era largo
como o de um guerreiro e seus gestos precisos e potentes, como se ele
inteiro tivesse sido feito para batalhas. Por que diabos tinha essa sensação
de que seus braços eram uma promessa de segurança? Talvez porque era
aquilo que sentia toda vez que ele estava por perto: ao seu lado, eu estava
segura. Irritada, perdida, mantida naquele fim de mundo contra a vontade
— porém segura.
“Ele é o homem mais honrado que conheço”, lembrei da fala de
Cristopher.
Bem, de uma coisa eu sabia: não havia mais homens como aquele no
futuro.
Ele picava pedaços de palha e jogava de maneira displicente no fogo, os
olhos perdidos nas chamas. Um formigamento me fazia querer sair e me
juntar a ele, só que eu não tinha sido chamada e não me sentia confortável
em invadir o seu espaço. Mas, pensando bem, por que não? Não aguentava
mais a tensão do dia, a incerteza sobre a volta ou o que ia acontecer. Não
aguentava, principalmente, tanto silêncio.
Abri a porta devagar, ajeitando o cabelo antes de me enrolar na faldetta,
estranhando o coração acelerado. Acalme-se, órgão tolo, estou apenas
buscando companhia.
Aaron ergueu a cabeça quando me aproximei e se levantou, cavalheiro.
Ergui as mãos para mostrar que não trazia facas nem flechas. Ele sorriu pela
primeira vez desde que o conheci. Pelo menos eu não me lembrava de vê-lo
erguer o canto da boca antes, e o gesto me fez prender a respiração. Ele
indicou um pedaço do tronco ao seu lado e me sentei.
— Talvez você precise disso. — Ele me estendeu um cantil de couro.
— O que é?
— Algo para ajudar a esquecer o dia.
Peguei o frasco manchado, cheirando o bocal. Álcool, forte e doce, era
o que parecia ser pelo cheiro. Rum.
— Por que quer esquecer o dia, Aaron?
— Não acho que saber sobre um ataque iminente onde perderemos mil
e quinhentos dos nossos ilumine o dia de ninguém.
Concordei, virando o cantil e sentindo fogo percorrer a garganta. Fiz
uma careta, olhando para a bebida.
— Jesus, o que tem aqui dentro? Lava?
— É rum. Se não quiser, pode jogar na fogueira.
— Jogar fora? Não mesmo. — Dei outra boa golada naquilo. — Você
não bebe?
Aaron balançou a cabeça, negando.
— Trouxe para cá para me forçar a beber, mas não gosto nem do cheiro.
Prefiro enfrentar tudo o que me acontece sóbrio.
Sorri, achando aquilo engraçado.
— Você não bebe, não fuma, e, pelo que parece, não faz nada de errado
ou divertido. Parece que estou vendo seu irmão falar.
Ele ergueu os olhos, e uma sensação gelada e vagarosa se desenrolou
pela minha coluna. Sob a luz da fogueira, o verde da íris de Aaron era
hipnótico. Uma poção borbulhante e perigosa, que certamente queimava ao
toque.
Dei mais um gole, o coração acelerando pelo rumo da conversa.
— A forma como você olhou para Cristopher… — Aaron disse,
pensativo, os olhos vagos no chão. — É difícil acreditar que se conheceram
antes. Ele não faz a menor ideia de quem é você.
— Ainda — assenti, entristecida. — Ele me avisou que não me
reconheceria. Que iria me tratar mal, também.
— Ainda não entendo como essa viagem no tempo é possível, mas
acredito em você, Sabrina.
— O que o fez mudar de ideia? — perguntei baixo.
Ele endireitou as costas, olhando para o mar, muitos metros abaixo. O
oceano da cor de piche refletia o céu igualmente escuro com alguns pontos
brilhantes. Tão calmo que chegava a ser difícil imaginar como em breve
ficaria tomado por navios e manchado de sangue.
— Valette me contou uma história depois que você saiu.
— Sobre o quê?
— Ele conheceu um viajante do tempo, anos atrás.
Arregalei os olhos, chocada.
— Ele conheceu?
Isso explicava sua calma ao ouvir a narrativa estapafúrdia, além da sua
completa falta de reação. Também explicava seu interesse em mim e a falta
das perguntas óbvias sobre minha sanidade.
— Sim, no ano em que foi capturado pelos corsários otomanos —
Aaron continuou. — Segundo ele, enquanto era mantido preso, ouviu falar
sobre um homem que sabia tudo sobre o futuro de Constantinopla. Diziam
que os governantes o ouviam e ninguém sabia explicar como as previsões
sempre se mostravam certas. — O olhar de Aaron desceu até o meu
pescoço, onde um pedaço da corrente dourada do meu colocar ficava à
vista. — Valette chegou a encontrá-lo. Além de se vestir e falar de forma
estranha, ele também tinha uma pedra que imagino ser como a sua.
Meus olhos continuavam arregalados. Havia mais pessoas viajando no
tempo? Pessoas que se metiam no rumo da história? Aquilo era
inacreditável, até mesmo para mim. Como ninguém descobriu isso?
— Pelo que contaram a Jean, um dia roubaram a pedra do homem,
acreditando que o poder divinatório vinha dela. Foi quando descobriram
que ela só funcionava com a pessoa certa. O ladrão foi pego e decapitado, e
a pedra, devolvida para o forasteiro. Só que, depois disso, ele desapareceu
— Aaron concluiu a história. — Sumiu como se nunca tivesse existido.
— E Valette acha que sou como ele?
— Ele disse que sim. Que você tem o mesmo olhar assustado dos que
não estão no seu tempo.
Voltei a beber em silêncio, ligeiramente preocupada. Fazia sentido,
agora, ser mantida escondida. Não queria ter a pedra roubada por ninguém,
porque precisava dela para retornar.
Mais um silêncio interminável se passou até que Aaron virasse o rosto
na minha direção.
— Conte-me sobre o meu irmão — ele pediu num murmúrio.
— O que quer saber? — ofereci, ciente de como deveria ser difícil saber
que o próprio irmão partiria um dia para nunca mais voltar.
— Tudo. Desde o começo.
Nas próximas horas, contei como conheci Cristopher, quando voltei de
um intercâmbio na Inglaterra. Ele já morava com Isla e imediatamente me
acolheu como uma irmã mais nova, como se sentisse que precisasse ser
extrabondoso comigo. Contei como o achei estranho no começo, com
aquela fala enrolada e totalmente perdido no mundo. Compartilhei algumas
histórias engraçadas, sobre como ele implicava com as inovações
tecnológicas e foi se adaptando lentamente ao nosso tempo — sempre
lembrando do irmão chamado Aaron que deixou em um país distante e que
não tinha mais como ver.
— Será difícil para você entender, Aaron, mas Cristopher e a minha
irmã deram um jeito de contar a história verdadeira do Cerco para o mundo.
— Sorri ao pensar em como tudo fazia sentido agora. — Eles fizeram
vários filmes sobre o que vai acontecer.
— Filmes?
Expliquei de maneira simples o que era o cinema, as formas de arte do
futuro e as aulas que Cristopher dava, conhecido por ser um especialista em
combates da época. Aaron parecia perdido quando ouvia algumas palavras,
porém permaneceu atento, como se o mundo inteiro tivesse desaparecido e
ele tivesse embarcado comigo para o meu século. Eu entendia sua limitação
em imaginar algumas coisas, mas ele absorvia mesmo assim cada palavra
minha como se tivesse sede. Contei sobre os filhos que Cristopher e Isla
tiveram, sobre a nossa família e o garotinho chamado Aaron, a quem
dediquei a tatuagem.
Acho que ele gostou de saber disso, porque baixou os olhos e sorriu,
visivelmente emocionado.
Ocultei apenas que o menino tinha os mesmos olhos verdes do tio,
porque não saberia falar aquilo sem denunciar que os achava os mais
bonitos do mundo.
— Ele foi feliz, então? — Aaron perguntou, no fim.
— Ele não foi. Ele ainda é muito feliz.
Aquilo pareceu bastar. Voltamos a olhar para o céu, tão vasto e infinito,
e me questionei que formato teria o tempo, para poder ser dobrado e torcido
dessa forma. Por que levar e trazer pessoas para frente e para trás? O que
faria algo tão inexorável como o tempo se dobrar?
— Por que motivos Cristopher a mandaria para cá? — Aaron fez a
pergunta que me deixava incomodada até agora.
— Não sei. Já me questionei por que ele mesmo não veio dizer o que
aconteceria. Por que me enviar em seu lugar?
— Talvez meu irmão não pudesse mais retornar — ele comentou.
— Claro que não — rebati, brusca. Só de pensar naquilo, era tomada
por uma sensação gelada. — É óbvio que é possível retornar. O homem
misterioso de Constantinopla sumiu porque deve ter retornado para casa.
Cristopher me mandou para cá, e ele não teria feito isso se soubesse que eu
não podia voltar.
Ele nunca faria isso comigo, concluí, expulsando a possibilidade da
cabeça.
— Seu irmão me enviou para cá por outra razão — falei. — Assim que
estiver tudo certo, vou reencontrá-los.
Eu e Aaron nos encaramos por um tempo, tentando descobrir qual seria
esta razão. Não sei no que pensou durante aqueles segundos, mas a resposta
que apareceu para mim foi breve e inquietante.
Talvez eu estivesse olhando para o motivo.
Voltei a beber rápido e acabei me engasgando.
— Ele quis me proteger, foi isso — disse depois de limpar a boca no
braço. — Eu… estava com um problema complicado.
Os olhos de Aaron foram parar na minha mão esquerda.
— Com o homem da aliança?
Assenti devagar, recolhendo os dedos.
— É tão óbvio assim que foi com ele?
Ele voltou a lançar gravetos na fogueira.
— Mulheres não costumam matar estranhos, mas já vi esfaquearem
maridos e amantes. O sangue da sua roupa e da adaga vieram dele, não foi?
A pergunta foi tão direta que quase me engasguei de novo.
— Eu… — exalei, assentindo. — Não foi intencional. Eu não queria
machucá-lo, mas era ele ou eu, naquele dia.
— Pude imaginar, pelas marcas no seu pescoço.
Alisei a face e a pele abaixo, sentindo o local menos dolorido do que
quando cheguei. Não me via há dias em um espelho, mas acredito que os
hematomas já deviam estar menos roxos onde Zach me bateu e apertou.
— Nós vínhamos brigando há um tempo. Ele insistia em dizer que o
traí, ou melhor, que o trairia no futuro; que minha tatuagem não era uma
homenagem ao meu sobrinho, e sim a outro Aaron. Eu tinha muito medo
dessas explosões. Achava que ele estava ficando louco.
Eu podia ver os pensamentos ocultos dançando por trás dos olhos do
cavaleiro.
— Ele a acusou de ser a Sabrina de Landa da adaga?
Assenti, incomodada com as conclusões que ele poderia tirar daquilo.
— Nunca entendi de onde ele tirou a ideia de que eu seria aquela
mulher.
O silêncio interminável que se seguiu só podia significar que Aaron
tinha pensado no mesmo que eu.
— Mas veja bem: talvez a faca um dia pertença aos seus filhos —
sugeri, tentando afastar o olhar que me queimava a pele. — Você sabe, uma
de suas filhas pode se chamar Sabrina. Ou você pode conhecer outra
Sabrina. Ou… talvez alguém tenha gravado esse nome na sua faca por
agradecimento à minha ajuda. Eu não sei.
Aaron voltou a remexer o fogo.
Entornei outra vez a bebida forte, porque o incômodo agora tinha me
tomado inteira, dos dedos dos pés à nuca. Cristopher não me mandaria para
o passado para que eu vivesse um caso de amor temporário com o seu
irmão, não é? Aquilo seria ridículo. Não era possível que ele tenha nos visto
juntos e entendido que seria a amante dele. Aaron era feito de… pedra, sei
lá. Seu coração era uma rocha, seu trato comigo, polido e frio.
Continuei a beber, a cada não repetido nos pensamentos, uma golada no
rum. A bebida começava a anestesiar minha cabeça e eu dava graças ao
Bom Pai por isso.
Nesse meio tempo, Aaron removeu a carne do fogo e me estendeu um
pedaço. Pousei o cantil quase vazio do lado e estiquei a mão para pegar a
comida. Por segundos pareci uma malabarista tentando segurar a coisa
fumegante entre os dedos, e arrumei um jeito de segurar na beiradinha do
osso e morder o naco com a ponta dos dentes para não queimar a boca.
Faminta, devorei a carne, aproveitando que podia mastigar e não
conversar mais.
Não era o meu nome naquela adaga, fim da história.
Quando terminei de comer, comecei a sentir o corpo estranho. Limpei a
garganta e a senti arranhar, como se um pedaço de osso tivesse descido
torto por ela.
— No dia em que a interroguei, no mosteiro, disse que havia encontrado
a faca em um antiquário — Aaron comentou ao terminar de comer.
— Sim.
— Não sei o que é isso.
— É um local onde se vende coisas muito antigas. Coisas achadas na
casa de outras pessoas, ou penhoradas, por exemplo.
— Então a adaga veio, de fato, da minha época?
Movi a cabeça fazendo que sim e me enrolei melhor na capa. Alguma
coisa me dizia que aquele sereno da noite iria me resfriar.
— Matou o seu marido com ela?
A pergunta foi tão direta que meu coração deu um salto.
— Não sei. — Respirei fundo. — No meio da briga, reagi pelo instinto
e o acertei na barriga, mas não sei se o matei. Vim parar aqui antes de saber.
A medicina é avançada na minha época, ele pode muito bem ter
sobrevivido.
— Seus reflexos são rápidos — Ele desceu os olhos por mim e o meu
tremor foi tão violento que ele notou. — Mas não parece ter muita força nos
braços.
— O seu irmão me treinou bem.
Aaron quase sorriu.
— Parece algo que ele faria.
— Cristopher sabia que eu viria um dia para cá — afirmei com certeza.
— Ele me ensinou tudo, desde a manejar o arco até como segurar
corretamente facas.
Memórias sobre os passeios anuais pelo forte de São Elmo retornaram,
e entendi ali, com a respiração em suspenso, que Cristopher estava me
ensinando os passos para sobreviver ao Cerco. Olhei de relance para
Aaron.
Ele estava me ensinando uma forma de salvar o seu irmão.
Deus, Aaron nunca poderia saber disso, ou me forçaria a ficar ali até o
final da guerra. Eu precisava ensinar tudo que sabia sem comprometer a
volta. Quando os otomanos aportassem, precisava estar bem longe daquele
século.
Finalizei o cantil querendo encerrar a conversa, mas ao me levantar,
senti a cabeça rodar um pouco mais do que deveria.
— Está tudo bem? — Aaron se levantou também, apagando a pequena
fogueira com a sola da bota.
— Sim. Só bebi demais.
Ele sorriu de maneira discreta.
— Você parece ter sido acertada por um aríete.
Aceitei a mão estendida para que o chão deixasse de parecer uma cama
elástica. A textura da palma era áspera, porém morna. Sua mão era tão
grande que meus dedos desapareceram entre os seus.
— Se você fosse jogado para o passado, preso em uma torre com um
especialista em arrancar confissões, conhecido uma figura histórica famosa
e bebido um cantil inteiro de rum, também estaria tonto — comentei,
sentindo a língua pesada e um tanto frouxa.
Estávamos agora parados um diante do outro e a brisa fria já não me
incomodava mais. Só sentia o cheiro de fumaça e do orvalho típico das
noites da ilha. A silhueta de Aaron se destacava contra o céu e as milhares
de estrelas no horizonte pareciam contorná-lo. Ombros largos, ângulos
perfeitos, músculos por todo lado e uma força que poderia me dominar
completamente… Soltei um suspiro e me censurei por estar pensando em
me colocar à mercê dele.
— Está tudo bem? — Aaron baixou um pouco o rosto para me encarar.
— Algum dia considerou me torturar para arrancar alguma confissão?
Aquilo não era pergunta que se fizesse, mas bêbados costumavam dizer
coisas idiotas. A resposta dele foi me trazer para perto do seu corpo. Dei um
passo adiante, o coração martelando contra as costelas, a bagunça caótica
das pulsações se unindo à rara revoada de borboletas no estômago. Eram
centenas delas, milhares talvez; todas anunciando que o bater de suas asas
mudaria tudo.
— Você chegou machucada, Sabrina. Tudo o que desejei desde que a
encontrei foi protegê-la. — Minha saliva parecia conter areia e o meu peito
subia e descia de maneira visível. Ele esfregava um dedo com calma sobre a
pele da minha mão, como se para me acalmar, mas estava causando o efeito
contrário. — Quando entendi por quem foi ferida, prometi que, caso um dia
encontrasse o sujeito, separaria sua cabeça do corpo com um só golpe.
Aaron precisou me apoiar com a segunda mão, porque meus joelhos
falharam.
— É a bebida — expliquei, me colocando de pé novamente e dando um
passo para trás. — Rum faz isso comigo.
E não frases matadoras. Ou olhares como aquele.
O cavaleiro não falou mais nada, mas não fiquei para me certificar
disso. Caminhei atarantada para a entrada da torre antes que acontecesse
algo que não poderia ser mudado.
Precisava parar de pensar em como seria se...
Se ele e eu, nós…
Balancei a cabeça, ralhando comigo. Toda a minha concentração
deveria estar em escapar daquele século bárbaro. Tremer e tropeçar por
causa de palavras e toques gentis não estava no plano.
Estou reagindo assim porque não sinto desejo há tempo demais, a voz
da razão explicou.
Quando Zach mostrou sua verdadeira face, uns seis meses depois do
casamento, meu desejo por ele morreu. Nunca mais consegui fechar os
olhos e me entregar. Quando ele me bateu pela primeira vez, veio o asco, e
nem as tentativas pífias de pedir perdão, explicando os motivos que o
levaram a se alterar, conseguiram resgatar algum sentimento. Todo e
qualquer amor que eu poderia dar morreu em mim quando ele me agrediu.
O que me levava à questão: por que continuei com ele?
A resposta era complexa e até ingênua. Primeiro, achei que poderia
mudá-lo. Que dava para recuperar o que tínhamos. Depois veio a vergonha
em admitir que meu casamento tinha falhado. E, por fim, veio a culpa que
assola as mulheres machucadas. Com tudo isso acontecendo, não consegui
mais encarar minhas amigas em seus casamentos felizes e acabei me
afastando delas. Uma vez pensei em revelar quem Zach era, mas a verdade
é que ninguém acreditaria em mim.
Eu devia sentir pânico do contato masculino, mas não era isso o que eu
experimentava agora. Meu corpo tinha reagido ao toque da mão calejada, e
desejou que ele se prolongasse, se espalhasse pelo corpo. Que viesse
seguido de um beijo.
Deus, eu precisava ser mais esperta do que isso.
Subi a escada que levava à porta da frente, mas não consegui abrir a
aldrava. Aaron parou logo atrás de mim, o calor do corpo envolvendo tudo
como um incêndio. Um braço firme passou raspando pela minha cintura e
abriu a porta. Seus olhos reluziram no escuro, duas promessas de coisas
absurdas. Ou era apenas eu, bêbada, fantasiando com aquela boca bem
desenhada escondida pela barba?
Se Aaron um dia se deitasse sobre mim, seu peito me cobriria inteira.
Suas coxas me envolveriam de maneira deliciosa.
Pare-com-isso.
Ele deu um passo para trás, me libertando do transe sensual. Entrei feito
um raio, sentindo o corpo inteiro formigar como se mil dedos me fizessem
carícias.
— Durma no andar de cima — ele ordenou. — Ficarei aqui embaixo
hoje.
18
A FEBRE
AARON
A primeira coisa que notei ao acordar foi que estava duro como uma
espada. Afastando o rosto da claridade que entrava da janela, estiquei
o corpo ao lado da lareira. Minhas costas estavam doloridas em mil
lugares, e todas as extremidades — menos uma —, geladas. O fogo havia se
extinguido durante a noite e a manta fina não ajudara muito.
Massageando o pau duro dentro da calça, me questionei como pude
deixar Sabrina dormir ali, no chão, por dias a fio. Mas era isso ou na minha
cama, e só de pensar nela espalhada entre as minhas peles, voltei a fechar os
olhos, gemendo de frustração.
A mulher era mel para os sentidos. Os olhos grandes e escuros, a pele
da cor de amêndoa, o aspecto frágil e delicado, tudo me deixava maluco.
Sentia vontade de colocar as mãos nela o tempo inteiro, de tocá-la com a
ponta dos dedos. Depois que tivesse traçado todos os contornos, então faria
o mesmo caminho com a boca, lambendo e cheirando para descobrir qual o
aroma tinha.
Sacudi a cabeça. De onde vinham esses desejos?
A necessidade carnal não me perturbava há tempos, e agora não me
deixava em paz. Desde o dia em que a coloquei na minha sela e precisei
ficar horas com as coxas coladas às dela, andava pensando em besteiras.
Olhei para cima, onde devia estar a minha cama. Sabrina devia estar
dormindo, porque a torre se mantinha em completo silêncio.
Como o melhor antídoto para pensamentos tolos ainda era o trabalho,
levantei-me, botei a chaleira sobre o fogo e saí para buscar mais água.
Ainda no poço, aproveitei para lavar o rosto e as mãos. Antes de voltar para
a torre, conferi as carnes e alimentei o cavalo. Enquanto aguardava Sabrina
acordar, tirei a chaleira do fogo e misturei a água com a qahwa que ela tanto
gostava. Esperava que, ao sentir o aroma, a mulher descesse, mas ela não
veio.
Estranhei, já que o sol estava alto e ela sempre acordava quando eu
descia. Subi as escadas fazendo barulho, avisando com meus passos que
estava chegando, mas assim que pisei no último degrau, vi algo que me
deixou alarmado: Sabrina estava enrolada na cama em todas as peles
disponíveis, e seu corpo inteiro tremia.
— Sabrina?
Removi as cobertas, vendo-a estremecer, encolhida.
— O que aconteceu?
— Eu… não sei — ela murmurou, fraca. Ao pousar a mão em sua testa,
vi que estava pelando.
— Diabos. — Trouxe a moringa até ela e segurei sua cabeça. Os lábios
ressecados se abriram quando a ergui de leve. — Precisa beber alguma
coisa. — Encostei a borda da peça em sua boca e ela reagiu de leve,
reclamando como se cada movimento doesse. Assim que tomou um gole,
voltou a fechar os olhos com um gemido.
— Acho que é… uma virose. Das fortes — gemeu.
Sabe Deus o que seria uma virose, mas entendi a palavra forte. Voltei a
deitá-la com cuidado. Seu corpo estava mole como um pedaço de pano.
Talvez tenha sido o sereno da noite, ou outro mal desconhecido. Droga, ela
não era dali, podia ser uma reação a qualquer coisa. Sem saber o que fazer,
passei a manhã subindo e descendo até o segundo andar, confirmando se
sua situação havia mudado.
Nada. Na verdade, mostrava estar pior.
Ela tinha removido o casaco que vestia e trajava agora uma blusa branca
e justa no corpo. Eu caminhava há minutos de um lado para o outro diante
da cama, vendo-a acordar de tempos em tempos, gemer e voltar a dormir.
Quando Sabrina parecia mais desperta, eu a servia de água. Atormentado,
tentei me lembrar de que maneira as amas costumavam baixar febres altas
durante a minha infância.
Compressas de pano molhadas, é claro.
Rasguei um pedaço de linho em tiras e as dobrei. Busquei mais água
fresca e voltei para o quarto. Banhei-a no rosto, no pescoço e nos braços
enquanto observava da janela estreita o céu perder toda a cor. O alívio que
ela sentia era imediato, mas não importava quantas vezes molhasse sua
testa, a temperatura voltava a subir e os tremores aumentavam de
intensidade. Várias vezes encostei os lábios na pele do seu rosto, como
minha mãe costumava fazer com Cristopher, sentindo um calor perigoso
emanar dela.
Sabrina precisava melhorar.
Ela era valiosa por causa das informações que sabia, sem dúvidas, mas
também porque ela era... ela. Minha preocupação não era só porque ela
vinha do futuro — havia algo mais. Algo que nasceu quando aceitei que os
nomes gravados na lâmina da adaga pertenciam a nós dois. Por algum
motivo, Cristopher sabia disso. Ele não a mandaria para cá se não soubesse
de algo.
Com um medo inédito crescendo em mim, aninhei-a contra meu peito,
tentando absorver um pouco do calor excessivo. A cabeça pendeu para trás
e mirei demoradamente a face bonita e os olhos fechados, sentindo um
aperto no peito ao me lembrar que, caso acontecesse, aquela não seria a
minha primeira perda. Alguns anos atrás, havia decidido me isolar por
muitos motivos, e um deles foi para nunca mais sentir aquela mesma
impotência. Agora aqui estava eu, agoniado como um pobre diabo, sem
saber como evitar uma nova tragédia.
Quando a noite veio e ela começou a delirar, entendi que precisava
abaixar sua febre ou ela morreria. Desci mais uma vez, retornando com um
balde cheio de água e novos panos. Ergui sua blusa até a metade da barriga
e molhei-a ali, ouvindo-a gemer.
— Sabrina, preciso despir você — avisei, esperando por um
consentimento que ela não tinha como dar. Ela soltou algo incompreensível,
mas insisti. — Vai morrer, se não esfriar.
Sua roupa colava úmida à pele, e que inferno, eu nunca havia despido
uma mulher desacordada antes, e não esperava começar por aquela.
— Consegue tirar sua roupa sozinha?
Ela negou de olhos fechados, um vinco profundo em sua testa. Vi
homens com o dobro de seu tamanho morrerem após episódios de febre tão
fortes como aquela. Ela não estava ferida como eles, mas não podia deixar
de recear que algo lhe acontecesse.
— Farei isso por você, então — informei, sentindo a saliva descer
grossa. — Tenho sua permissão? — Balancei-a de leve e repeti a pergunta:
— Sabrina, tenho a sua permissão? Confia em mim?
Ela indicou com um gesto mínimo que sim.
Iniciei o trabalho de livrá-la daquele monte de peças apertadas. Como
conseguiam se mover no futuro, embrulhados assim, como salsichas? Com
um das mãos a mantinha contra o corpo enquanto tentava, com dificuldade,
tirar um dos braços de dentro do algodão. Com a paciência no limite, soltei
o segundo braço, e puxei a peça por cima da cabeça. Sabrina tombou na
cama, flácida.
— Assim que remover a roupa, eu a tamparei, não se preocupe.
Por que eu estava me justificando tanto? Oras, porque eu me sentia
culpado por não conseguir afastar os olhos dela.
Sacudi a cabeça e voltei a me concentrar na tarefa. Lancei a blusa
molhada no balde vazio, deixando-a apenas com o estranho e minúsculo
corpete.
De material delicado e transparente, o suporte para seios não escondia
nada. Tentei não notar os mamilos escuros e redondos sob a renda,
pequenos como botões de uma flor exótica, mas minha reação dentro das
calças foi imediata. Diabos. Isso não era uma provação de Deus, e sim uma
provocação dos infernos.
A partir daí, evitei olhá-la do pescoço para baixo, me concentrando
unicamente na tarefa de despi-la.
A calça, fechada de maneira estranha por botões duplos e
acompanhados de um intricado sistema de metal, se abriu praticamente
sozinha, revelando uma penugem quase transparente sob o umbigo que
desembocava em uma peça que parecia fazer par com o suporte de seios. A
peça era exótica, minúscula e, por Deus, me faria sonhar por dezenas de
anos com todo tipo de pecado proibido.
Tirei as meias grossas e puxei o tecido justo e úmido. Nada se moveu.
Voltei para a cintura e tentei descer a calça a partir dali. Consegui chegar
apenas no topo do quadril antes que minha paciência acabasse. Eu nunca ia
conseguir tirar aquilo.
Irritado, peguei uma adaga no baú e passei a lâmina entre o tecido e a
pele, começando pelo tornozelo até em cima, na lateral das pernas. Terminei
de soltá-la em dois segundos, arrancando a peça do corpo e jogando longe.
Tenho certeza de que ela ia me agradecer por livrá-la daquele tormento.
Quando olhei de novo para a cama, a respiração ficou em suspenso. Pernas
longas e perfeitamente delineadas estavam em contraste com o linho rústico
da minha cama. Membros compridos que culminavam no minúsculo
triângulo de tecido transparente que deixava à mostra toda a intimidade
dela. Por causa do frio, Sabrina se encolheu, e o que vi na parte traseira me
fez dar um passo desnorteado para trás. A calçola. Havia me esquecido de
como era fina, praticamente um fio de renda que atravessava as bochechas
das nádegas e não tapava nada.
Pai celeste, ajude-me.
Deixei-a sobre a cama para esfriar, precisando fazer o mesmo no
momento. Desci as escadas tropeçando nos degraus, e por longos minutos
andei de um lado para o outro no andar de baixo, a porta aberta para deixar
o ar gelado do inverno entrar, alisando o membro duro dentro das calças.
Desinche, é uma ordem.
Já de volta ao juízo normal, levei a tina de banho até o quarto e a enchi,
fazendo dezenas de viagens até o pátio para buscar água. No fim, adicionei
duas chaleiras de água quente e me preparei para jogá-la ali dentro.
O tempo todo trabalhei recitando o lema dos cavaleiros da Ordem de
São João, fazendo orações contra a tentação e prometendo retornar à capela
para agradecer pelas virtudes da honra e do autocontrole. Implorei também
a Deus que não mandasse mais nenhuma provação, porque eu já estava
perdido e não valia a pena ser testado.
Sabrina às vezes gemia imóvel sobre a cama, como se falasse com
alguém.
— Por que, Cristopher? — Parei no lugar ao ouvi-la chamar pelo meu
irmão. — Por quê? — Seus olhos continuavam fechados, mas a voz tinha
um tom choroso e agoniado. — Não quero morrer aqui.
— Você não vai morrer, Sabrina — murmurei, ajoelhado ao lado da
cama.
— Por que Aaron? — ela gemeu baixinho.
Não houve pausa depois do “por que”, e sim um único e sincero
questionamento sobre por que eu.
Sem saber responder àquela pergunta, ergui-a nos braços e a imergi na
banheira. Sabrina soltou um grito, se retesou e abriu os olhos.
— Ahhh! — Ela começou a bater as pernas. — Está frio! Me tire daqui!
— Sei que está frio, mas não posso tirá-la agora, Sabrina. Aguente só
um pouco, sim? Você precisa esfriar, ou dormirá e não acordará mais.
Para piorar, assim que a coloquei na água, com um braço em suas costas
e o outro evitando que batesse no fundo da tina, fiquei frente a frente com o
par de seios. Engoli a saliva e voltei a me concentrar no seu rosto, fingindo
não notar as duas pontas arrebitadas quase tocando em mim.
— Me tire daqui, Aaron — ela pediu numa lamúria, entre o som de
dentes batendo. — Está tão frio…
— Não está tão ruim, meu bem. É você que está muito quente.
Ela abraçou meu pescoço e tentou sair da tina, mas não a deixei.
Ajoelhei ao seu lado e acariciei seu cabelo, parando imediatamente ao
perceber o que estava fazendo.
— Precisa me largar, Sabrina, e permanecer um pouco na água.
Quanto mais eu tentava afastá-la, mas ela me abraçava, tirando força eu
não sabia de onde.
— Me tira daqui, por favor. Me leve para a cama.
Rolei os olhos, pedindo a Deus que simplesmente parasse: eu não valia
o esforço.
— Só mais um pouco, meu bem. Assim que sua temperatura baixar, a
deitarei de volta nas cobertas, está bem?
Sabrina continuou grudada ao meu pescoço, a cabeça enfiada embaixo
do meu queixo, a pele quente tocando minha garganta. Nessa posição, meus
olhos estavam dolorosamente cientes da curva de suas costas e do indecente
aparato com formato de gaivota que tapava precariamente o traseiro
redondo.
A vontade de deslizar a mão pelas costas delicadas e delinear com os
dedos cada centímetro de pele era avassaladora. No entanto, resisti. O
máximo que me permiti foi acariciar uma vez suas mechas macias — uma
única vez.
Erro fatal. Por motivos insondáveis, bastou aquele toque único de
carinho para entender que meu coração vazio não teria chance contra sua
presença bonita e misteriosa.
19
A ROUPA
AARON
N ão era amor — ainda —, mas se tornaria, e essa era uma certeza que
eu compartilhava com Aaron. No entanto, no momento, era paixão.
O primeiro toque de lábios se tornou rapidamente um beijo
intenso. As mãos enormes se embrenharam no meu cabelo e firmaram
minha face para que sua língua encontrasse a minha. Nossos rostos se
ajustaram e seus dedos se curvaram ao redor da minha cabeça, mostrando
todo o seu ímpeto de se conter. Aaron era um homem rústico e tinha a mão
pesada. Era também muito maior do que eu e dez vezes mais forte, o que
ficava claro em cada toque.
Ajoelhei na areia, abraçando-o enquanto tentava fechar as mãos em suas
costas. Aaron era largo demais e tudo que consegui foi puxá-lo para mim.
Caímos na areia, seu peito largo contra o meu, pressionando os meus seios,
e sua mão áspera desceu pelo meu rosto. Seu suspiro morno aqueceu minha
pele; ele tinha retido o ar até ali e finalmente o soltava.
Não queria pensar no que essa noite significava, apenas senti-la. Fechei
os olhos quando os dedos grossos desceram pela minha cintura e coxas
firmes se encaixaram entre as saias rodadas do vestido. A virilha inchada,
pressionada contra a minha intimidade, mostrava que ele estava pronto para
me dar o prazer que eu tanto queria. A sensação de que logo seria
preenchida me fez soltar um suspiro alto.
— Não posso tomá-la aqui. — Aaron se ergueu, me levantando junto
consigo, me carregando com facilidade pela trilha em direção à torre.
Meu coração saltava desordenado enquanto ia beijando-o pelo caminho,
primeiro no peito largo, depois no pescoço, e por fim, quando fui colocada
em pé diante da porta da torre, novamente na boca. Algo me dizia que
entregaria a ele naquela noite não só meu corpo e meus beijos, mas também
o acesso à minha alma — e Aaron não avançava manso pelo caminho.
— Quero tê-la na minha cama — decretou, jogando-me sobre seu
ombro como um saco flácido. Desatei a rir ao ser carregada pelas escadas
até o segundo andar.
Atirando-me na cama, ele se deitou sobre mim, lindo e assustador.
Apertei as coxas que estavam em volta da sua cintura, pressionando o
volume da virilha estufada entre elas, perdida no seu rosto bonito.
Aaron, repeti baixinho, sentindo seu nome deslizar na minha língua,
querendo que nossas roupas desaparecessem num passe de mágica. Há
quanto tempo não me permitia sentir o toque prazeroso de um homem? Há
quanto tempo não desejava que alguém me acariciasse?
Arrastei a face na dele, e a aspereza da barba e o cheiro masculino me
amoleceram em seu abraço. Os dedos acharam o caminho que a imaginação
já havia aberto e revelaram, ao desatar o laço da camisa, um peito cheio de
músculos. As ondulações nos braços eram duras como pedras e deliciosas
ao contato. Ele se afastou um pouco, e toda a emoção que não demonstrava
em palavras, estava ali, reluzindo em meio ao verde escuro dos olhos, me
chamando como um feitiço.
Um estremecimento delicioso anunciou que minha intimidade pulsava,
úmida, viva, melando o meio das minhas coxas a ponto de escorrer pelas
pernas. Aquele era o meu desejo sobrevivendo ao relacionamento ruim,
ditando que ainda podia escolher. Eu queria aquele homem. Queria senti-lo
se movimentar dentro de mim. Sei que não seria delicado ou romântico,
porque desconfiava que tudo que Aaron podia dar ou fazer dessa forma,
usou nas palavras que despejou em mim lá nas areias da praia, e eu não me
importava nem um pouco. Seria duro e rude como ele próprio era,
exatamente o que meu coração ansiava.
O olhar trocado durou pouco. Aaron voltou a descer a boca até a minha
e meus dedos procuraram o pênis intumescido. Acariciei-o, sentindo o
volume inchado sob a calça de tecido grosseiro, as unhas curtas indo e
voltando dos testículos até a ponta, fazendo-o grunhir dentro da minha
boca.
— Sabrina… — Meu nome saiu entre mordidas leves e movimentos
bruscos dos lábios. Aaron ergueu o tecido da saia e desamarrou a própria
calça, ao mesmo tempo que minha mão encontrava os fios crespos que
levavam ao seu pênis. Ele era tão imenso e grosso que cheguei a engolir em
seco. Seu peito por baixo da camisa aberta mostrava fios escuros e
levemente encaracolados. Senti a mão possessiva se embrenhar entre as
minhas coxas e encontrar o clitóris — sem preâmbulos ou desvios.
Um som rouco brotou da garganta dele, um som de desejo contido e de
espera findada. Imitando o movimento um do outro, movemos as mãos, ele
introduzindo o dedo em mim devagar, molhando as pontas para espalhar a
umidade, e eu com as palmas pela superfície sedosa e quente do membro
rijo. A sensação deliciosa trouxe arrepios ao meu corpo e um desejo
primitivo de querer ser tomada por inteiro.
Arqueei as costas, gemendo baixo quando o dedo chegou até o final do
meu canal, e a boca faminta desceu até meus seios. Eu já tinha imaginado
como seria sentir o toque da língua dele na minha pele, mas aquilo excedia
qualquer passeio da imaginação. Aaron era bruto nos gestos, mas não me
machucava; era intenso sem ser ríspido, e definitivamente não era a rocha
fria que parecia. Seu hálito era gostoso, seu beijo, uma loucura, e a visão de
seus ombros e bíceps volumosos sobre mim, a causa de tremores contínuos.
Minha imaginação era boa, mas o homem de carne e osso era melhor.
Eu estava sendo beijada e tocada com fome por aquele guerreiro
imenso, sentindo seus cílios varrerem minha pele devagar, os lábios bem
desenhados, escondidos por aquela barba espessa, roçarem por mim. A voz
áspera, que parecia ter sido lixada antes de sair da garganta, gemeu no meu
ouvido, indicando que o que eu fazia estava bom.
E ele era quente. Uma fornalha. Sentir seu peso me colar à cama ao se
deitar sobre mim me fez soltar um arquejo de satisfação. Abri as pernas
para que ele enfiasse os dedos até o fim na minha intimidade, sentindo uma
contração interna engoli-lo, puxando-o para dentro, querendo abrigar seu
membro. A escuridão era quase completa, assim como o silêncio. Tudo que
se ouvia eram nossos gemidos e suas arfadas pesadas.
Voltei a fechar os olhos, sentindo o calor da boca de Aaron se fechar ao
redor do bico do seio, sobre o tecido. Ele sugou através do linho até molhá-
lo, mordiscando a ponta e chupando-o por cima do pano, me enlouquecendo
com o atrito. Mordi os lábios para não soltar um gritinho quando a ponta do
dente puxou a pele do mamilo.
Contraí as pernas, sentindo uma fome arrebatadora. Queria sexo cru,
faminto e desejoso. Sem mais pedidos de desculpa ou tentativas de fazer as
coisas ficarem bem de novo. Precisava daquele tipo de relação, que me
deixaria mole e entregue, finalmente saciada.
Ansiosa, abaixei a calça de Aaron e removi todo o membro de dentro,
alisando as bolas macias, quentes, o pau sedoso e duro, a ponta molhada.
Removendo os dedos de mim, Aaron segurou o próprio membro, a mão
por cima da minha, como se precisasse controlá-lo.
— Você foi uma tentação desde o dia um, Sabrina.
— Você escondeu bem. — Sorri para o rosto agora próximo.
— Não pareço, mas sou um cavalheiro. Achei que era bom em resistir.
Descobri que com você, não sou.
— Eu sei. — Beijei seu queixo. Nunca achei que ele não fosse um
cavalheiro, mas saber que ele não conseguia resistir a mim encheu meu
peito de coisas boas.
Aaron soltou minha mão e se afastou. Ajoelhando-se sobre as minhas
coxas, abriu o vestido com gestos precisos e agitados, quase arrancando os
botões. O ar frio envolveu os mamilos úmidos, arrepiando cada gomo da
pele ao redor.
— Onde está aquela peça bonita de renda? — ele perguntou baixinho.
Apontei para um dos baús, fazendo-o sorrir de volta. O gesto mostrava
claramente que ele gostou de não a encontrar tanto quanto gostaria de vê-la
em mim outra vez.
Deitada, tinha a visão privilegiada da calça aberta e do membro robusto
repousado sobre o meu ventre. As mãos imensas se fecharam ao redor dos
meus seios, pequenos para o tamanho delas. Aaron os massageou com
delicadeza, os olhos hipnotizados pelo formato. Então, desceu a boca e os
lambeu, lenta e vagarosamente, como se há dias quisesse sentir o gosto e a
textura deles. Também havia partes dele que eu queria experimentar, mas
deixaria para outro momento.
Acariciei os braços pousados ao lado, com saudade da sensação de
fechar os olhos e confiar no toque de um homem. Era irônico que a
confiança viesse de alguém de outro século, conhecido por ser um bom
torturador. Confesso que também sentia falta de me entregar para o que não
tinha nome; da sensação de completude que só um desejo satisfeito era
capaz de dar. Os pensamentos evaporaram quando a língua morna arrancou
de mim suspiros intervalados, me preparando com calma e lentidão para o
que viria a seguir. A falta de pressa daquele rio lento que era o passado
nunca foi tão perfeita.
A lambida no seio direito se tornou uma chupada vigorosa e sufoquei
um gemido de êxtase quando ele o largou e fez o mesmo com o outro.
Deslizei o dedo pela barriga dura até tocar a ponta do membro, espalhando
vagarosamente o líquido melado pela cabeça redonda. Toda vez que Aaron
sugava forte demais um dos seios, eu apertava o pau entre os dedos, numa
dança de toques e línguas que não sabia mais se eram causa ou
consequência de novas investidas.
As chupadas não se resumiam aos mamilos, mas a toda a carne em
volta. Aaron tinha fome, uma pegada vigorosa e um desejo primitivo que
deixou algumas marquinhas. Se continuássemos com aquela brincadeira,
poderia chegar ao orgasmo antes do que imaginei. Pelo jeito como Aaron
respirava, ele também.
Então, como forma de se controlar, ele se deitou sobre mim e começou a
beijar meu pescoço, espalhando toques carinhosos de um lado para o outro.
Sei que refazia, naquela trilha úmida, o caminho das marcas de dedos com
que me viu chegar. Como se fosse uma forma de me compensar pela
tristeza e a dor que já tinha sofrido. Aquilo me enterneceu. As lambidas e
passeios de lábios ali foram delicadas como aquele homem nunca era.
Quando achei que fosse finalmente me tomar, Aaron parou as carícias.
Ele encostou a testa na minha como se precisasse acalmar o corpo e a
respiração, e ergueu as vistas. Eu entendia sua necessidade de contenção; eu
mesma precisava de um tempo para entender o que estava acontecendo.
Acariciei seu cabelo e a lateral da face, sentindo a barba crescida pinicar a
ponta dos dedos. O que estava acontecendo ali era puro desejo — e, ao
mesmo tempo, muito mais.
Durante todos os anos em que me contive, em que neguei meu prazer,
mais do que toques em partes erógenas, sentia saudade de beijos. Por isso o
puxei e beijei-o profundamente, sentindo sua respiração acelerada, seu
desejo cru, mas também a carência doce de nossas línguas. Aaron também
sabia que nem de longe seria apenas sexo.
Assim que parei de beijá-lo, empurrei de leve seu ombro para baixo,
como se mostrasse o que queria. Precisava muito chegar ao orgasmo, tanto
que sentia agonia. Necessitava daquele homem bonito me beijando mais
abaixo, mordiscando a pele da minha barriga, sua língua escorregando para
dentro de mim e eu me derretendo contra ela. Queria a barba entre a pele
sensível das coxas enquanto ele engolia meus fluidos, e mais tarde eu faria
o mesmo com ele.
Aaron parou com a boca sobre o meu ventre, respirando forte, os dedos
apertados com força contra a carne da cintura. Por favor, Aaron, continue.
Eu queria tudo. A penetração, a cadeia de espasmos rítmicos que tomaria o
meu corpo e me faria ondular sob a sua força e pressão. Queria gemer e
gozar outra vez.
Por que ele havia parado? Aaron respirava com força, imóvel, e me
perguntei pelo que esperava.
Então entendi: ele me lembrou um arqueiro antes do lançamento. A
energia posta no arco, a tensão do fio, a força da flecha. A concentração no
objetivo e no que precisava fazer.
Como se tivesse puxado o máximo que sua força de vontade aguentaria,
Aaron se libertou.
Ele separou minhas pernas com as duas mãos, esfregou a ponta do
membro contra mim e entrou de uma só vez. Largo, grande, propelindo-se
adiante com propósito e vontade. Soltei um gemido, que foi calado pela
boca que me devorava, ao me abraçar melhor para entrar até o fim. A
liberação de energia, a força acumulada e o desejo insano me fizeram
derreter ao redor daquele homem. Fechei os olhos e me deixei levar,
sentindo a invasão romper minhas últimas defesas. Com a mão embrenhada
entre as minhas mechas, Aaron grunhiu e estocou com força, mordiscando
meu queixo erguido, molhando a pele com o seu suor, erguendo meu
traseiro para se caber inteiro.
Nunca havia sido tomada daquela maneira, de forma tão intensa e total.
Quando, no fim do atrito divino um orgasmo me partiu em duas, precisei
entender, imóvel, que uma daquelas partes já não me pertencia mais.
Ele a tinha pego para si.
22
A MANHÃ SEGUINTE
SABRINA
2035
1 Na arquitetura militar, construção externa de duas faces, que formam ângulo saliente, para defesa
das fortificações.
2 atiradores dessa arma chamada arcabuz, um tipo de espingarda antiga.
33
A DESCOBERTA
ISLA
2035
23 DE JUNHO DE 1565
DIA DA QUEDA
Naquela última noite, sonhei com uma criança. Ela tinha pele cor de
amêndoas e olhos de primavera. Sorria para mim com o olhar e a boca,
enquanto seus dedinhos gorduchos passeavam pela minha face. No sonho,
beijei a pontinha de cada um deles, cada unha translúcida e delicada,
maravilhada pelo milagre da vida.
Fui acordada do breve cochilo pela explosão final.
A beleza se dissipou entre a chuva de pó que caiu do teto e fui inundada
pelo conhecido medo de ser soterrada sob toneladas de pedras.
Chegara o dia, e os gritos de dor do nosso lado e os urros de vitória, do
outro, indicavam isso. Tudo que aconteceria hoje, de bom e de ruim, seria
resultado das minhas ações.
— Fique comigo. — Segurei com força o pulso de Anna, ordenando
que deixasse os feridos para trás. Não havia mais o que fazer por eles, a não
ser administrar a dor. Entreguei para cada um que ainda estava lúcido uma
espada e uma garrafa de bebida, agradecendo por tudo que fizeram.
Mais um estrondo, e eles nos mandaram correr.
No caminho, entre o caos de gritos e barulhos das bolas de ferro
estourando contra os muros, Anna encontrou Belchior, que se juntou a nós.
Atravessamos encolhidos os corredores agora vazios, sem saber de onde
viria o próximo estouro. Meus olhos escaneavam cada canto do forte atrás
de sobreviventes, mas todos estavam na linha de defesa. Os otomanos
tinham finalmente aberto um rombo no muro e uma horda deles invadia a
fortaleza com as espadas erguidas e os gritos de guerra.
— Sabrina! — ouvi Aaron berrar do pátio.
Ao olhar para baixo, precisei tapar a boca para não deixar escapar um
soluço. Bravura e valentia em níveis incompreensíveis, de uma forma que
nunca vi e nem veria depois, tomava o espírito de cada homem daquele
lugar.
Os feridos que ainda conseguiam se mover, mas não fugir, haviam
pedido cadeiras e se sentado diante do portão principal, espadas erguidas, à
espera de quem vinha. Quem podia correr, foi ordenado a sair; quem não
conseguia se uniu a eles. Entre os muitos feridos estava um dos oficiais que
sabia o que aconteceria desde o começo. Como comandantes que
naufragavam com seus navios, aqueles homens vinham abaixo com a
fortaleza.
O olhar que troquei com Aaron indicou que precisávamos encontrar
Cristopher. Agora.
Não foi difícil localizá-lo. Meu cunhado passou correndo, chamando os
sobreviventes para a capela, onde planejavam explodir o lugar com todos os
inimigos que conseguissem juntar.
Não, aquilo estava errado!
“Lembre-se, Sabrina: todos que estiverem na capela serão capturados e
mais tarde, decapitados. Você sabe para onde correr.”
— Aaron! — berrei ao entender para onde estavam indo. — A torre! —
Apontei para o alto. — Precisamos chegar na torre! Não na capela!
A torre que dava para o mar. Era para lá que devíamos ir.
Cristopher negou e resistiu, mas o irmão o pegou pela gola e o
chacoalhou até que finalmente obedeceu. No caminho, encontrei Luigi, já
sem a túnica de monge, portando desajeitadamente uma espada. Assim que
me viu, se uniu ao grupo.
— Eles nos acuarão na torre! — Cristopher subia as escadas discutindo
com o irmão, mas agora era tarde para retornar. Vozes estrangeiras
indicavam que um grupo inimigo subia atrás de nós.
No pátio, gritos de vitória misturavam-se aos últimos gemidos de dor, e
nossa bandeira foi arrancada do muro.
São Elmo havia tombado.
Subi as escadas arfando, segurando nas paredes, lembrando de cada
cena assistida e lição aprendida em todos esses anos. Anna tentava me
ajudar, me forçando a ser mais rápida, mas ela mesma não tinha mais
forças. Aaron vinha atrás com o irmão, espadas em punho para dar cabo de
quem se aproximasse.
— Eles estão subindo — os dois confirmaram.
A pequena torre se encheu com o grupo — Anna, Belchior, Luigi,
Aaron e eu. Olhei ao redor, procurando a abertura que meu cunhado me
mostrou em um dos nossos passeios por São Elmo, quando eu ainda era
adolescente. Uma janela improvisada, colocada no lugar para proteger os
defensores de flechas, impedia o salto. Apontei para o local e Aaron nos
ultrapassou, arrebentando a madeira com os punhos.
Cristopher chegou no final, os olhos injetados de adrenalina, o peito
subindo e descendo.
— Chegou a hora, meu irmão — gritou, empunhando a espada.
Ele achava que era hora de morrer.
Só então Cristopher percebeu que Aaron havia escancarado a janela.
— O que estão pretendendo?
— Não vamos morrer. Vamos saltar — Aaron avisou a todos.
— Ficou louco? — A espada pesada hesitou na mão do meu cunhado.
— Se não morrerem com a queda, morrerão com as flechadas nas costas!
— Talvez não.
Por um único segundo, os estouros dos canhões e os gritos de vitória do
lado de fora desapareceram. Esqueci o cheiro do sangue, a dor, o cansaço e
a desesperança, o último mês passado no inferno, e me concentrei no fato
inquestionável de que agora era comigo. Olhei para Cristopher e lembrei da
vida feliz que o aguardava ao lado da minha irmã, e do sonho recorrente
que eu tinha, hoje, a chance de mudar.
Quase estraguei tudo com a minha emoção.
Um soldado surgiu da porta empunhando uma cimitarra, e todos
gritamos. Cristopher reagiu rápido: sua lâmina colidiu com a da arma curva,
seguido por um empurrão. O turco se chocou contra a parede mas logo se
recuperou, erguendo a arma e propulsionando o corpo adiante.
A espada de Cristopher atravessou seu corpo com destreza. Ao puxá-la
de volta, vermelha e molhada, virou o rosto para nós.
— Se vão pular, tem que ser agora!
Eu podia ver o peito de Aaron subir e descer, como se um milhão de
palavras engasgadas tentassem subir pela sua garganta. Seus olhos
transbordaram e achei por um momento que ele não conseguiria fazer o que
precisava.
— O que estão esperando, Aaron? Vocês precisam ir! AGORA!
— Não sem você!
Segurei o pulso de Aaron, tão dolorida por dentro quanto ele, impedindo
que andasse até o irmão. Aquele era o momento de dizer adeus.
— Alguém precisa ficar. — A voz de Cristopher estava trêmula. Ele
fingiu limpar o sangue das vistas, mas vi que era uma lágrima. — Tire a
armadura ou afundará como um martelo.
Sorri para um Aaron angustiado e repeti:
— Chegou a hora, meu amor.
Ele se livrou da placa de ferro do peito, fazendo o mesmo com as das
pernas.
Sons da língua estrangeira cresceram em volume e todos olhamos para a
porta.
— Vão! — Cristopher berrou.
Belchior e Anna deram as mãos e saltaram, seguidos por Luigi.
— O que está esperando, maldito? — Cristopher gritou por trás do
ombro, empunhando a espada.
Agora era questão de segundos.
— Cristopher?
Meu chamado o fez olhar para trás.
Tirei o colar da roupa e andei até ele, sentindo o peito desabar em queda
livre. Eu não sabia bem como a magia funcionaria; como decidia aonde nos
levar. Minhas suspeitas? Eu nunca saberia. Esperava apenas que a junção do
meu desejo, do instante certo e a pedra, quente em contato com a minha
mão, o levassem até Isla.
Isso é o que eu desejo. O que você ainda não sabe, mas anseia também.
Com um só gesto, enfiei o pingente no espaço entre o seu pescoço e a
armadura e ouvi, aliviada, a pedra se alojar no seu peito.
— O que fez, mulher?
— Achei que viajaria dois dias atrás, mas o momento é agora —
murmurei, sentindo as lágrimas descerem. Para seu espanto, pousei a mão
na lateral do seu rosto e sorri. — Assim como guardei segredo sobre nós,
precisará fazer o mesmo por mim, Cristopher. Nada do que passamos aqui
pode ser revelado cedo demais. Nada do que sabe sobre mim deve alterar
meu futuro. Esqueça até mesmo meu nome, ou Isla não me deixará partir, e
nossos destinos nunca vão se cruzar.
Dando um passo para trás, entrelacei os dedos aos do meu marido e
caminhamos de costas até a janela. Aaron levou pela última vez a mão ao
peito em um gesto de despedida.
Em choque, Cristopher fez o mesmo.
— O nome dela é Isla. É ela quem deve procurar ao chegar — lembrei-
o, vendo brotar do chão um redemoinho luminoso da cor da pedra violeta.
Em uma fração de segundo, uma luz intensa tomou a torre. A pequena
área foi iluminada por um brilho forte, e se Aaron não tivesse me puxado,
teria ficado ali, perdida na beleza que era a partida.
Do outro lado da espiral, turbantes coloridos invadiam o lugar e eles não
seriam parados pela visão.
— Venha, amor. Hora de pular.
E foi isso que nós fizemos: saltamos no vazio.
Não lembro quanto tempo caí, mas pareceram ser anos. Os pés
encontraram primeiro a água gelada e tudo que me lembro a seguir foi de
ter sido dragada para o fundo de uma escuridão abissal.
O frio me envolveu com o seu abraço e bolhas subiram ao redor.
A mão de Aaron se soltou da minha e me vi sozinha, achando que como
todos os finais dolorosos, o meu seria gelado e solitário.
Então abri os olhos e, para a minha surpresa, fui inundada de azul. Um
tom claro e luminoso, silencioso, rico, abundante e infinito.
O coração que antes explodia em batidas frenéticas amansou. A
respiração ficou em suspenso, a pele em choque, e os pés pararam de se
agitar.
Olhei para cima com o ar preso nos pulmões, vendo espadas de luz
descerem sobre nós — raios luminosos de sol que varavam a água de forma
tranquila. Se a paz pudesse ser pintada, teria aquela visão.
Foi inevitável lembrar dos verões passados na ilha, quando ainda era
jovem e sem preocupações, e dos mergulhos nas águas transparentes com o
meu grupo de amigos. Em como a vida era simples e alegre, de como as
preocupações eram poucas e nada grandiosas.
Não sei quantos segundos permaneci envolta naquela imensidão
pacífica, ouvindo o coração voltar a bater. Nada de gritos de dor, choros ou
preces. Protegida pela barreira espessa e azul, a guerra não podia mais me
ferir.
Estava livre.
Eu tinha sobrevivido.
Senti uma mão encontrar a minha e vi o rosto de Aaron sob a água,
urgindo para que eu batesse as pernas rumo à superfície.
Bati, usando também as mãos, os pulmões implorando por ar.
Enquanto subia, lembrei dos anos perdida, em que me senti presa e
machucada, sem saber como mudar a vida. Hoje, vinha à tona comigo uma
sensação inexplicável de que nada mais seria como antes. Eu não estava
sozinha. Qualquer dor que surgisse deste momento em diante encontraria
uma nova Sabrina.
Quando irrompi na superfície, ouvi a risada de Aaron. Ele ria e chorava,
dando braçadas para longe do forte, olhando para trás para me incentivar a
continuar.
Ri alto também, vendo mais adiante Belchior, Anna e Luigi
gargalharem, aproveitando a sensação maravilhosa que era estar vivo.
A chuva de flechas nunca chegou. Talvez tenham sido dragadas pela
espiral violeta e lançadas magicamente para outro tempo e lugar. Nunca
saberia onde foram parar, e nem queria. Esperava apenas que não
machucassem mais ninguém, porque havia gente ferida o suficiente no
mundo.
Adiante, a península e São Ângelo nos esperavam. São Elmo havia
tombado, mas eu me sentia vitoriosa. Agora, nos refugiaríamos até o final
do Cerco. A guerra estava longe de acabar e ainda tínhamos meses de luta,
mas a minha missão no passado estava completa: eu havia enviado um
guerreiro de presente para a minha irmã, e agora estava em paz.
FIM
VALETA, 1568
TRÊS ANOS DEPOIS
SABRINA
Fantasia
Romance Adulto
A Última Peça
Sessenta Noites em Trindade
Meu Capitão: Sessenta Noites 2
Cowboy Sem-vergonha
O Lado Bom do Inferno
A Garota da Música
Xeque & Mate: O Clube da Vingança
Alices no País dos Romances
Romances de Época
Lady Audácia
Lady Malícia
Lady Romance
As Doze Noites de Lady Malícia
Lady Escândalo
Série Enfeitiçados
Um Libertino Enfeitiçado
Um Forasteiro Enfeitiçado
Um Marquês Enfeitiçado
O Duque Perdido
O Libertino Domado
O Lorde do Nilo
O Conde Encantado
Contos e Antologias
Três Milagres de Natal
Spin-off de Selvagens: a história de June e João
Homens de Farda
Doze por Doze:“Janeiro”
Publicitária, professora de alemão, psicóloga e escritora — tudo que é legal ser, já fui. Sou também
mãe de duas crianças lindas e esposa parceirona. Hoje moro na Ásia, porém, amanhã… Quem sabe?
Se quiserem bater papo comigo, sabem onde me encontrar!