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UMA VIAJANTE DO FUTURO

LOVE TRAVELLERS
KARINA HEID
CONTENTS

Notas da autora e ERRATA

1. A hora
2. O antiquário
3. A adaga
4. O cavaleiro
5. A inimiga
6. A verdade
7. O vilão
8. A torre
9. O banho
10. A fuga
11. O ataque
12. A caverna
13. A revelação
14. O governador
15. O encontro
16. A noiva
17. A fagulha
18. A febre
19. A roupa
20. A atração
21. O beijo
22. A manhã seguinte
23. Os dias
24. O teimoso
25. A aliança
26. A cortesã
27. A investigação
28. Os preparativos
29. A decisão
30. O amor
31. O início
32. A dor
33. A descoberta
34. O ataque
35. Queda e Ascensão
Valeta, 1568
Valeta, 2036

Últimas palavras
AGRADECIMENTOS
Meus livros
Sobre a autora
Uma Viajante do Futuro - Love Travellers
Copyright© 2023 Karina Heid Rocha
Todos os direitos dessa obra são exclusivos da autora.
É expressamente proibida sua distribuição ou cópia,
parcial ou inteira sem prévia autorização.

Revisão: Elen Arcangelo


Trabalho de texto: Tábata Mendes
Arte da capa (imagem): Michaelly Amorim
Tipografia: Tatiana Mareto

Atenção:

Esta é uma obra de ficção. Embora alguns lugares e instituições descritas no livro existam e eu tenha
tentado me ater aos fatos históricos, nem tudo pode ou deve ser considerado verídico. O mesmo vale
para a Ordem dos Cavaleiros: qualquer menção a ela faz parte da narrativa ficcional. Sendo assim,
qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera
coincidência.

Created with Vellum


PLAYLIST

Para quem quiser saber que músicas me embalaram durante a escrita, aqui
vai a playlist!
AVISOS DE GATILHOS

Esse livro é a sequência de Um Guerreiro do Passado, e foi escrito para


ser lido na ordem certa. Embora o anterior seja leve, com toques de
comédia, esse aqui não é. Estamos no ano de 1565 e Malta está sob ataque.
Esquivar-me das descrições de luta deixaria o livro menos interessante,
portanto Sabrina entra na guerra com Aaron e Cristopher a partir do
capítulo 27.
Esperem algumas cenas de agressão (porém, não sexuais), lutas que
ocasionam mortes e descrição do tenebroso cenário de uma guerra do
século XVI.
Esperem também atos de bravura impensáveis, muita fidelidade, provas
de amizade e amor. Além, claro, de um último capítulo que mostra toda a
redenção de uma personagem fragilizada que cresceu com a dor.
Espero que amem essa família como eu já amo. Boa leitura!

Karina
NOTAS DA AUTORA E ERRATA

Como sempre, deixo aqui algumas informações relevantes e uma lista de


sites que me ajudaram a criar a história. Deixo também uma ERRATA, que
já corrigi no arquivo original de Um Guerreiro do Passado.

1. ERRATA: No livro 1, Um Guerreiro do Passado, Cristopher diz que não


sabia que Sabrina havia sido casada. Porém, na história dela, ele acaba
sabendo (eu não quis remover a cena, porque gosto muito dela). Removi a
frase no livro do Guerreiro, de forma que não confunda novos leitores. Caso
tenha o livro na biblioteca, pode atualizá-lo.
2. Sobre a Sabrina ser negra e a Isla, branca, e a desconfiança de
que ela fosse “moura.”
Confesso que achei que todo mundo chegaria à mesma conclusão que
eu ao ver a diferença entre irmãs — o pai delas era o mesmo, a mãe,
diferente —, mas como surgiram perguntas, explico: a mãe de Isla morreu
cedo e o seu pai se casou com a mãe da Sabrina, que era negra.
Ao imaginá-la acordando no passado, queria que ela fosse confundida
com uma muçulmana (na época, a briga se dava especialmente entre
cristãos e muçulmanos), vinda de Trípoli (hoje, na Líbia). A região no
Norte da África fazia parte do Império Otomano, mas tinha sido governada
algum tempo antes pela Ordem dos Cavaleiros, que acabaram sendo
expulsos de lá em 1551. Qualquer um vindo daquela região traria
desconfianças e seria visto como inimigo.
Chamava-se mouro (ou mauritano, mauro ou sarraceno) “todos aqueles
que vinham do Norte da África, praticantes do Islã, vindos do Marrocos,
Argélia, Mauritânia e Saara Ocidental, invasores da região da Península
Ibérica, Sicília e Malta durante a Idade Média.”
3. Sobre o forte São Elmo
https://themaltaexperience.com/virtual-tour/
Nesse link acima você pode ver como era São Elmo por dentro! (No
meu Instagram, postei bastante sobre Malta durante os meses em que
escrevi essas duas histórias. Dá uma conferida! @karinaheid)
4. Sobre as tumbas e epitáfios escritos na Co-Catedral de São João,
em Valeta.
https://www.amusingplanet.com/2016/05/the-tombstone-covered-floor-
of-st-johns.html
https://www.stjohnscocathedral.com/explore/tombstones-and-
monuments/
5. Sobre os fatos históricos relatados.
Embora o livro traga muita informação verdadeira sobre os dias em que
São Elmo resistiu, ele não deve ser considerado fonte de pesquisa. Para
quem quiser se aprofundar no assunto, recomendo esse livro aqui: https://
amzn.to/3hSSs40
6. Sobre as viagens nem sempre acontecerem nos sítios
arqueológicos
Quando eu e as outras autoras da série Love Travellers começamos a
pensar nas histórias, nos deparamos com algumas questões. Nem todo
mundo conseguiria situar seu personagem próximo de um círculo de pedras
no solstício. Então decidimos, em conjunto, que este não seria “o” fator
responsável pela viagem, e sim um deles. Em comum, todas as histórias
tem uma pedra mágica. A da Isla e da Sabrina são roxas; as das outras
autoras seguirão a cor de suas respectivas capas. Junto com a pedra, vocês
encontrarão outros elementos — um forte desejo, o momento certo (a hora
da morte, no caso de Cristopher), um círculo de pedras, uma data
específica (solstício), etc. O local onde cada um acordará no futuro ou no
passado dependerá do livro e das decisões da autora quanto à condução do
enredo.

Crédito da imagem do brasão: Mathieu CHAINE


Para todas as Sabrinas que emergem de mergulhos transformadas.
"Em grego nostalgia significa "a dor de uma velha ferida". É uma
pontada no coração muito mais poderosa do que a memória. Este
dispositivo não é uma nave espacial, é uma máquina do tempo. Vai
para trás, para a frente... leva-nos para lugares onde dói ir
novamente. Não é chamada de roda, mas de carrossel: ela nos
permite viajar em voltas, retornando sempre para casa, para um
lugar onde sabemos que somos amados.” — Don Drape
1
A HORA
SABRINA

E m um dos últimos verões que passei em Malta, ainda jovem e sem


preocupações, tomei coragem e saltei de uma escarpa nas redondezas
de Valeta, mergulhando nas águas transparentes do Mediterrâneo.
Ainda hoje me lembro da sensação de queda livre. De sentir o abraço
gelado da água, das bolhas se elevando ao redor e do meu corpo afundando
no oceano escuro. Naquele dia, além do coração explodindo e da adrenalina
eletrizando tudo, o que me chamou a atenção foi o imenso e profundo
silêncio lá embaixo.
Não sei quantos segundos permaneci envolta naquela imensidão sem
ruídos, ouvindo o coração bater com força. Enquanto o ar escasseava, ecos
abafados chegavam do meu grupo — risadas amortecidas, gritinhos das
amigas, o tom grave das vozes masculinas incentivando-as a pular também.
A impressão era de que os sons vinham de outro mundo, de trás de uma
barreira espessa e azul que eu, ao bater as pernas e impulsionar o corpo para
cima, aos poucos rompia.
Agora, a sensação que me vinha era a mesma: a de nadar para fora da
escuridão. Conforme me aproximava da luz, as vozes emergiam de todas as
direções, abafadas e sussurrantes, tingidas de uma pitada de desconfiança e
expectativa.
— Qed tqum 1? — uma voz masculina perguntou com um sotaque
carregado.
— Nahseb. Rajtha tiċċaqlaq. 2
Quando tentei mexer a perna, as vozes cessaram. A sensação de
formigamento provavelmente vinha dos olhares sobre mim. Era incômodo,
mas não o pior que sentia no momento.
Estava muito, muito frio. Minha calça jeans colava úmida às pernas e o
tecido segurava meus movimentos. Era um alívio estar vestida, foi meu
primeiro pensamento. Se ia acordar em um lugar estranho, era melhor estar
com roupa.
Abri os olhos, mas a súbita claridade me fez fechá-los de novo. Aquilo
era um hospital? A cabeça parecia pesar uma tonelada e mal conseguia
movê-la. Eu havia desmaiado? Talvez tivesse me envolvido em um
acidente, não sei. Tentei abrir os olhos de novo e consegui enxergar
algumas coisas: a luz que me cegava vinha da janela em frente à cama.
Definitivamente, aquele lugar não era um hospital. As paredes ao redor
eram de pedra e escurecidas nos cantos pela umidade. Além disso, estava
frio demais e bastante sujo para um ambiente controlado. Tateei ao redor e
encontrei um pano que cobria minhas pernas, sentindo a textura grossa e
áspera; a colcha parecia uma lixa.
— Onde… — Minha língua colou no céu da boca. Tentei engolir para
ver se melhorava a sensação, mas nada aconteceu. — Onde estou?
Ao virar a cabeça levemente para o lado, vi dois homens me encarando
como se vissem algo muito estranho em mim. Eles trajavam longos mantos
escuros e, por cima, uma peça clara com uma imensa cruz vermelha de oito
pontas, todas as peças amarradas na cintura por uma corda.
Balancei a cabeça dolorida. Calma, isso é só um sonho.
Com uma certa lentidão, levei a mão até a testa. Os dedos tatearam o
local de onde parecia vir toda a dor: do lado direito da têmpora. Descobri
um curativo de pano tampando uma protuberância dolorida acima da orelha,
e assim que deslizei o toque para baixo, notei um emplastro fedorento com
uma cor estranha na lateral do rosto, igualmente dolorido.
Fechei os olhos com força, tentando recordar onde estava antes de
acordar aqui. Eu havia entrado no carro, não? Antes disso, estava no
condomínio de Isla, com…
A adaga.
A explosão de lembranças me trouxe para a realidade, como quem
acorda com um balde de água fria. Eu estava em uma cela, ao lado de dois
homens fantasiados de monges. Um deles tinha uma longa barba branca e
os olhos leitosos; o outro era baixo e roliço, e a cabeça sem fios lembrava
um ovo descascado. Nada me incomodou tanto, contudo, quanto o fato de
que os dois fediam como cavalos molhados.
Quando tentei me levantar, o pano rústico que me cobria caiu no chão.
Os dois recuaram, mirando as minhas pernas em completo assombro.
— Quem são vocês?
Se fui sequestrada, que dissessem logo o que queriam.
O homem com a íris esbranquiçada chegou a responder algo, mas não
entendi direito o que disse. Aquela língua não era maltês, nem inglês, nem
sequer italiano. Parecia, na verdade, uma mistura arcaica dos três.
Estranhamente, a linguagem soou familiar.
A imagem de Cristopher, marido da minha irmã, surgiu em meio à
névoa da confusão. Aquela parecia a língua que meu cunhado desatava a
falar sempre que bebia um copo de vinho a mais.
Como ninguém disse mais nada, arrastei as mãos pelos braços gelados,
avaliando o ambiente. O frio permeava o ar como se estivéssemos em uma
gruta, a ponto de a respiração sair condensada.
Fechei os olhos com força e tentei me lembrar da última coisa que vi
antes de parar ali.
A questão era descobrir onde era ali. A breve varredura visual não me
deu pistas. O último lugar que eu lembrava de estar era no carro de Isla.
Mas como passei do veículo para cá? Eu parecia estar em uma cela
medieval, cuja única saída era uma porta de madeira com cara de pesada,
além da janela alta por onde entrava a luz fraca do dia nublado.
— Oqgħod kalm 3, senhora. — O monge mais alto fez um gesto brusco,
e me encolhi contra a parede. Meu coração voltou a bater forte. Pensei em
mandar que se afastassem, mas a verdade era que ambos os religiosos
estavam distantes e pareciam ter mais medo de mim do que eu, deles. —
Inti mill-familja Sir De Landa? De-Lan-da.
— Não entendo tudo que dizem — informei devagar. — Só quero saber
onde estou.
O mais alto tomou coragem e se aproximou, tirando do bolso uma
bainha de couro. Meu coração finalmente desabou no peito, e precisei me
apoiar na cama para não me desequilibrar.
Flashes do crime horrível que cometi explodiram na mente. Não
conseguia encarar a arma sem lembrar do calor do sangue nas minhas mãos
e da expressão chocada de Zach ao perceber o que fiz.
Meu corpo tombou na cama e os soluços finalmente chegaram.
Algumas coisas ainda estavam incertas, mas eu me lembrava do que a
adaga significava e do que fiz com ela.
— Levaremos a adaga conosco — o mais austero avisou devagar,
chamando o outro monge com um gesto. Os dois caminharam até a saída,
relanceando os olhos uma última vez para trás, mas eu não prestava mais
atenção neles. Eu só queria chorar.
Assim que eles fecharam a porta, ouvi um trinco ser passado pelo lado
de fora. Em prantos, olhei para as unhas ainda sujas de sangue e as escondi
em um punho, querendo desaparecer. Sumir do mundo. Eu estava sendo
punida, concluí afundando o rosto no tecido roto que cobria o colchão de
palha, ignorando o cheiro ruim e azedo que vinha dele.
Vozes soaram das lembranças, causando um estremecimento forte. A
mais alta era grossa e baixa, num tom ameaçador.
Não me diga o que posso ou não fazer, Sabrina! O que está escondendo
de mim? Fale, maldita! Fale!
A cobrança foi seguida pelo tapa que provocou a ardência no exato
local onde eu tocava agora. Minha bochecha ainda doía, assim como o
pescoço, que virou com a força do impacto. Na hora em que aconteceu, o
pânico me paralisou. Aquele foi o tempo que Zach precisou para unir seus
dedos ao redor do meu pescoço e apertar com força.
Gritei por ajuda, ou tentei, mas a minha voz saiu quebrada. Implorei
para que ele me soltasse, mas por que faria isso? Zach gostava do medo que
via no meu rosto toda vez que investia contra mim. Ele se revelou, com o
tempo, um sádico odioso, um mentiroso e manipulador.
Quase não tinha mais ar dentro de mim quando aconteceu.
Posso dizer que parte do que fiz foi sem querer — outra parte, não.
Enquanto ele apertava o meu pescoço, tirei a adaga do bolso e o machuquei
sem ver onde acertava. No desespero de tentar respirar e de finalmente me
defender, apunhalei o meu marido.
As lembranças seguintes traziam Cristopher esbravejando naquela
língua estranha enquanto minha irmã chorava copiosamente ao meu lado,
tentando me cobrir e me esquentar com um cobertor. Sedada pelo momento,
vi as paredes da sua casa ganharem tons vermelhos e azuis das luzes dos
carros de polícia e a sirene soar abafada nos ouvidos. Apenas ali, na
iminência de ser presa, é que minha alma começou a aceitar que havia feito
algo sério e precisaria lidar com as consequências.
Lembro de Cristopher e Isla repetindo que havia chegado a hora.
A hora do quê, me perguntei enquanto me arrastavam até o fundo da
casa e me enfiavam no carro. Continuei me perguntando muitas outras
coisas enquanto via as luzes dos postes passarem por nós, o carro voando
pelas estradas vazias.
Naquela madrugada, tive a certeza de que algo estava para mudar. Ter
reagido me fez cruzar um limiar, e separou tudo que eu conhecia entre um
antes e um depois.
O problema é que o depois era um borrão sem definição.
Lembro de Cristopher ao volante. De ter encostado a cabeça no vidro e
fixado o olhar nas estrelas. As sirenes haviam ficado para trás, assim como
a cidade. A estrada ia ficando cada vez mais escura, como uma grande boca
por onde só me lembro de cair e cair.
Agora, enrolada na coberta áspera e presa naquela cela suja, solucei até
adormecer. Não sei por quanto tempo apaguei, mas quando voltei a ouvir
vozes, me virei para a parede e fingi não estar acordada. Não queria
encontrar aqueles monges outra vez.
As vozes e passos indicavam que eles não vinham em dois, como antes
— um terceiro chegava com eles. Ouvi o rangido da porta e a conversa
cessou de repente. Fechando os olhos com força, cravei as unhas no
colchão; eu estava sozinha e cercada por homens que falavam uma estranha
variação da minha língua.
Passos pesados de bota se aproximaram. Mirei apavorada a parede,
retesando o corpo inteiro.
Ouvi um dos homens parar perto da cama.
Meu coração retumbava de tal maneira que ia acabar me denunciando.
Senti olhos correrem por mim, percorrendo o contorno do corpo sob as
cobertas. Virada para a parede, eu só rezava para que ele não me tocasse.
Vão embora. Deixem-me em paz.
Então, uma voz fria e áspera, como se alguém tivesse raspado um bloco
de gelo com uma lixa, perguntou:
— Vocês confirmam que ela tinha uma faca?
Murmúrios soaram pela cela. Continuei encarando a parede, cada
centímetro meu em alerta total. Embora o homem falasse a mesma língua
dos monges, sua pronúncia era diferente.
— E que o meu nome estava na lâmina? — o homem continuou.
— Sim, senhor. Aaron de Landa — alguém perto da porta respondeu.
Aaron de Landa?
— E no lado oposto tinha outro nome. “Sabrina de Landa”, certo?
Atordoada, movi os braços com um reflexo: erro fatal. Os homens
pararam de falar. Agora que havia sido descoberta, precisava me virar.
Contar que aquilo tudo era um erro, que eu não pretendia machucar
ninguém.
Novamente, foi a voz masculina mais próxima que fez meu corpo
inteiro congelar.
— E de quem é o sangue, vocês sabem?
Girei o corpo, respirando de maneira tremida e pronta para me defender.
As vozes silenciaram ao me verem sentar devagar, fazendo a estrutura
rústica ranger. Eu podia explicar tudo. Umedeci os lábios, pronta para
admitir que não tive a intenção de machucar ninguém, quando encarei as
botas surradas do homem parado ao lado da cama.
Subi as vistas pelas pernas compridas até alcançar a longa manta escura
de lã que quase chegava na altura dos joelhos. Engoli em seco ao perceber a
musculatura rígida das coxas, os ombros largos sob a blusa rústica de linho
e o pescoço robusto como uma tora, onde uma barba cerrada e escura
começava.
Nossos olhares se encontraram e meus braços amoleceram.
Deus do céu.
Ao perceber quem estava diante de mim, toda a minha postura entrou
em colapso, como se, de um instante para o outro, meus ossos fossem
incapazes de suportar o peso do corpo.
Não podia ser ele, mas era.

1 Ela está acordando?


2 Creio que sim. Eu a vi se mover
3 Fique calma, senhora.
2
O ANTIQUÁRIO

UM ANO E MEIO ANTES


SABRINA

O som do salto alto ecoava na ruela vazia, enquanto meus olhos


passavam pelas vitrines sem procurar nada em especial. Mais uma
vez, percorrer os caminhos estreitos do centro fazia meu estômago
se contrair sem parar, piorando o estado da minha úlcera de estimação. Os
sintomas seguintes eram os calafrios incontroláveis, os braços arrepiados e
os raios gelados que me riscavam inteira, da nuca até a última vértebra.
Andar pelas ruelas antigas de Valeta era como levar um pequeno
choque: não chegava a doer, mas assustava. O mais inquietante era sentir
como se um fio me ligasse àquele lugar, como se os meus déjà-vus fossem
mais do que uma reação fisiológica.
Ao redor, os nomes dos estabelecimentos já não eram mais os mesmos
que me lembrava da infância, quando ia com minha mãe até ali para
consertar o salto de uma bota ou recolocar as tachinhas soltas de uma bolsa.
Hoje os cartazes divulgavam picolés e sucos de fruta para aliviar o calor dos
verões insuportáveis; cerveja gelada para chamar turistas sedentos ou avisos
de reparo de celulares quebrados. No entanto, nem a aura turística e
moderna conseguia abafar meus arrepios, já que a cidade antiga continuava
lá, nos becos já não mais usados e nas portas de madeira que remontavam
séculos passados. Havia algo estranho nas pedras assentadas de maneira
irregular das ruas e nas paredes altas das fortalezas cada vez mais apertadas
entre a cidade que não parava de crescer.
Eu não tinha nada para fazer naquela rua em particular, mas por algum
motivo estava ali ao invés de estar no café, comemorando o anúncio de
gravidez de uma amiga. Alguma coisa me puxava para o local, um zumbido
estranho, um arrepio forte. Sem prestar atenção ao que escrevia, mandei
uma mensagem para elas explicando que Zach precisou de mim. Elas
sabiam que meu marido nunca precisava de nada — e muito menos de mim.
Nenhuma havia respondido até agora, nem mesmo com as frases clichês de
piedade, afinal, todas sabiam que eu andava evitando celebrações que
envolviam a chegada de bebês.
O telefone tocou, me despertando dos pensamentos. Atendi, sorrindo ao
ver quem era.
— Sabrina? Onde você está? — minha irmã perguntou sem nem mesmo
me dar um oi. Direta ao assunto, como sempre.
Girei ao redor, sem reconhecer a viela. Não podia estar muito longe da
parte turística, já que ainda ouvia os burburinhos ao redor.
— No centro. Perdida, mas ainda no centro — respondi, amansando a
voz. — Oi, Isla.
— Oi, Bine. Desculpe te incomodar, mas Zach acabou de me ligar.
Disse que não estava conseguindo falar com você.
Meu estômago se contraiu. Droga. Eu havia ignorado apenas uma única
ligação.
— Estou bem, não aconteceu nada. Vou ligar para ele — avisei em tom
baixo.
O silêncio do outro lado falava mais do que um milhão de palavras.
— Você sabe que Zach é um exagerado, Isla. Ele só está preocupado
comigo. Vou pedir que não fique ligando para você.
— Eu mesma deixei isso claro para ele — Isla respondeu, seca. —
Avisei também que ele precisa te dar algum espaço. A gente tem que
conversar sobre isso, Sabrina. Seu marido está cruzando alguns limites,
você não acha? Estou começando a ficar preocupada.
Meneei a cabeça em silêncio, concordando com ela: as coisas com Zach
andavam mesmo estranhas. Mesmo que eu afirmasse ser só o jeito dele,
aquele homem não era mais o marido com quem me casei há menos de dois
anos. A cada dia que passava, Zach se mostrava uma pessoa completamente
diferente da que conheci.
— Não se aborreça, Isla. É só o jeito dele de se preocupar comigo. Não
é nada de mais.
— Nunca é “não é nada.” Confie em mim, Bine, eu tenho mais
experiência nisso do que você. O dedo podre dessa família fui eu por muito
tempo.
Nem sei bem por que, mas a última frase me fez sorrir. Continuei
caminhando a esmo pelas ruelas, cada vez mais enveredada entre as
passagens estreitas, sentindo o cheiro característico de mar e gasolina
misturar-se ao de caixas de madeira empilhadas nos cantos e ao mijo de
bêbados boêmios. O único ruído continuava a ser o do meu salto contra o
chão de pedra.
— Ele só continua cismado com a história da tatuagem — confessei,
forçando uma risada. — Deve ser coisa da idade, não sei. Zach acha que por
eu ser muito mais nova, vou trocá-lo por outro, no futuro.
— Sabrina —, o suspiro de Isla misturava angústia e impaciência —,
isso não é legal. Não é algo que um marido deveria pensar.
Parei na frente de uma vitrine de antiguidades e refleti sobre a
insistência de Zach no casamento apressado, nas perguntas estranhas
surgidas à mesa, nas cobranças na cama e na desconfiança sobre meu
paradeiro em qualquer momento e lugar. Os olhos percorriam a vitrine sem
atentar para os móveis antigos e artefatos exóticos. Meu coração parecia tão
apertado quanto um punho.
— Isla, é só ciúmes. Já falei para Zach que isso é besteira, que vou
tatuar o nome dele também, assim como fiz com o do meu afilhado e como
farei com o seu e o de Laurinha. Ele só não se conforma de eu ter escrito o
nome de Aaron primeiro. Ele não entende.
Para falar a verdade, nem eu mesma entendia por que o som do nome do
primeiro filho da Isla tocava em cordinhas internas e profundas dentro de
mim. Desde que minha irmã contou que nome daria ao filho, eu o achei
sonoro, uma palavra que rolava fácil pelos lábios e que me aquecia o
coração.
Aaron me fazia pensar em heróis.
Afastei os pensamentos tolos, ouvindo-a dizer:
— Zach não tem o direito de questionar você, Bine. Isso é tudo tão
ridículo.
Eu concordava que era ridículo, e fiquei verdadeiramente chocada
quando, certo dia, Zach comentou que não achava que a tatuagem fosse
uma homenagem ao menino. Ao perguntar o que ele imaginava, então, ele
respondeu que Aaron era outra pessoa.
Não havia outro Aaron na minha vida, só um menininho fofo demais.
— Aliás — observei os arredores —, se conseguir achar um tatuador
aqui no centro, resolvo a questão agora mesmo. Escrevo o nome do Zach ao
lado e fim da história.
— Não! — O grito da minha irmã me parou no lugar. O som foi tão alto
que ela parecia estar do meu lado. — Não faça isso, Sabrina. Eu te proíbo!
— Calma, Isla, foi só uma ideia.
Uma que, sinceramente, talvez não tivesse coragem de levar adiante.
— Sabrina, não pode recompensar o comportamento ciumento do seu
marido. É ele quem precisa parar de acusar você de qualquer coisa!
Assenti em silêncio. Claro, ela tinha razão. Embora não soubesse da
missa um terço, Isla tinha razão. Eu estava sendo tola e meu estômago
eternamente machucado concordava com isso.
— Onde exatamente você está, Sabrina?
— No Centro, mas não sei bem onde. — Prendendo o celular entre o
ombro e o rosto, abri a bolsa para pegar meu antiácido mastigável. —
Talvez perto do Forte de São Elmo, não tenho certeza.
— O que você está fazendo aí outra vez?
— Vim espairecer e acabei aqui, mas não precisa se preocupar. Sou
grandinha para achar meu caminho para casa, está bem? Já estou de partida.
A verdade é que tinha uma celebração para ir, mas não queria ouvir de
novo sobre mais uma grávida no grupo ou suportar as perguntas sobre os
motivos de eu não conseguir engravidar.
Nem eu entendia por que precisava sentir a eletricidade misteriosa que
essa parte da cidade me trazia, especialmente nas proximidades das velhas
paredes do forte. Quando queria pensar, sempre acabava parando nas suas
redondezas.
— Você sempre retorna para o mesmo lugar, não é? — Isla perguntou,
tranquila.
Voltei a olhar para a frente, vendo novamente a vitrine do velho
antiquário. O sol batia em alguns itens dispostos atrás do vidro, chamando
minha atenção para todo tipo de quinquilharia.
— É verdade. E um pouco estranho, admito — concluí. — Mas vou
aproveitar para dar uma olhada em alguns enfeites para casa. Quer alguma
coisa?
— Não, meu bem, obrigada. Mas me liga à noite, pode ser? E, Sabrina?
— Isla pausou. — Não aceite ser acuada. Zach não é o seu dono. Ele não
é…
Uma boa pessoa, sei que Isla queria dizer, mas nunca dizia. Prometi que
ligaria de volta; mandei um beijo para as crianças mais lindas do mundo e
para o meu cunhado amado. Quando nos despedimos, ela estava com a voz
estranha.
Com o telefone desligado, encarei a tela e me perguntei se devia ter
comentado que sonhara novamente com Cristopher. Bem, Isla não precisava
ouvir aquela bobagem sobre mim e seu marido numa guerra.
Fazia tempo que não tinha aquele sonho. Sonho não — estava mais
para pesadelo. As cenas eram estranhas e recorrentes: Cristopher morrendo
pela lâmina de uma espada curva; eu ao seu lado, com medo de algo sem
nome.
O que o pesadelo significava, eu não sabia. Nem tinha ideia do porquê,
no meio do desespero, sentia o toque quente de uma mão me puxando para
um mergulho no mar. O rosto desse segundo homem estava sempre oculto
pelo véu de mistério típico dos sonhos, mas eu sabia que ele era bom. Uma
pessoa boa.
Tentei enxergar a decoração por trás do letreiro dourado da vitrine,
vendo as letras se ordenarem no título: “Antiquário de Valeta: viaje conosco
para o passado”.
Sem pensar, empurrei a porta de vidro.
O local era mais um entre centenas de outros que enchiam o Centro. A
diferença era que este não fora transformado em um corredor branco e
estéril com luzes embutidas no teto e prateleiras de laca. A loja era mantida
como um dia deve ter sido tudo naquela parte da capital — paredes de
pedras amareladas, estantes de madeira escura, cheiro de umidade
centenária.
Havia todo tipo de velharia lá dentro: livros com lombadas descascadas,
TVs de tubo, um PlayStation 1 empoeirado no canto. Jarras de porcelana
que devem ter pertencido a famílias abastadas repousavam ao lado de
pratarias escurecidas. Enquanto me apertava por caminhos de caixas
entulhadas de objetos, constatei que aquele não era um bom antiquário.
Tinha muita tranqueira envolta em cheiro de mofo e pouca coisa
memorável.
Um idoso me saudou do outro lado do balcão, mas não se deu ao
trabalho de se levantar. Continuou a mover a caneta sobre as palavras-
cruzadas, os óculos caídos na ponta do nariz, prontos para despencar sobre
a folha do jornal.
Bem na frente, onde a luz da rua incidia, uma toalha de mesa com
borboletas chamou a minha atenção. Atravessei o labirinto de sofás e
cadeiras lembrando como, mesmo anos depois da morte do meu pai, eu
ainda era fascinada por elas. Empurrei uma mesinha com uma máquina de
costura preta e pesada e consegui me enfiar entre duas prateleiras entupidas
de cacarecos.
Infelizmente, a toalha com as borboletas estava manchada. Passei a mão
pelo desenho bordado, sorrindo ao lembrar do ditado que papai costumava
repetir: o bater da asa de uma borboleta pode causar uma tormenta do
outro lado do planeta. Aquilo não fazia o menor sentido, mas era a cara
dele.
A saudade era sempre forte quando pensava no homem sonhador que
me deu uma infância tranquila e cheia de amor. Era por causa dele que eu
tinha uma meia-irmã que amava mais do que a vida. Isla era fruto do
primeiro casamento do nosso pai e, quando nasci, ela já tinha treze anos.
Fui sua boneca de carne-e-osso, e, mais tarde, me tornei um tipo de filha
mais velha e melhor amiga. Alisei a borboletinha com carinho, ponderando
se levava a toalha mesmo sabendo que estava danificada.
— Gostou de alguma coisa? — A voz do senhorzinho chegou de trás
das prateleiras.
— Estou apenas olhando, obrigada.
Girei no lugar, desistindo da toalha. Como fiz uma pequena bagunça
empurrando os móveis da frente para chegar até ali, seria bom levar uma
coisinha para não sair de mãos abanando.
Já tinha dado duas voltas em torno de mim mesma quando algo fez
meus sentidos vibrarem. Desci os olhos pela estante até uma bainha de
couro manchada, de onde despontava o cabo de uma velha adaga.
Curiosa, peguei o objeto na mão, sentindo o peso sólido e vendo cada
pelinho do meu braço se elevar. Puxei a empunhadura de osso e uma lâmina
fosca foi sendo revelada gradualmente, os desenhos no ferro me
transportando dali para longe.
Fui assaltada por um cheiro forte de feno, terra, pó de pedra e mato.
Pelo ruído do mar ao fundo e sons de gritos e vozes distantes. Em meio à
loja pouco iluminada, o luzir discreto da lâmina mostrou um nome:
De Landa.
— Precisa de ajuda com alguma coisa?
A voz do homem me sobressaltou de tal maneira que a adaga caiu no
chão, fazendo o metal retinir contra o assoalho.
O dono do antiquário estava parado na minha frente, embarreirando a
saída entre as duas estantes. Os óculos haviam voltado à ponte do nariz e os
olhos cansados me fitavam sem expressão.
Com o coração atarantado, neguei.
— N-na verdade, vou levá-la. — Abaixei e peguei a peça, catando a
bainha de couro com dedos afobados. Minhas mãos tremiam de um jeito
estranho, como se tudo ao redor pudesse me ameaçar. Quase não consegui
enfiar a adaga de volta no estojo.
— É uma peça bem antiga. — O antiquário fez um sinal para segui-lo.
Ele abriu uma portinhola e se colocou atrás do balcão, e eu abri a bolsa para
pegar a carteira. Sem chances de deixar aquela peça para trás. Não com
aquele nome na lâmina.
— E muito bonita — ele adicionou, abrindo um caderno e deixando
claro que seu modo de registrar as vendas era tão arcaico quanto os objetos
que vendia. — Muito, muito antiga e bonita — repetiu devagar, até erguer
as vistas e me encarar. — A senhora também acredita que objetos carregam
a história de quem os possuiu?
Quase abri a boca para dizer que não acreditava em nada, mas a verdade
era que nunca havia pensado no assunto.
— Talvez. — Tentei sair pela tangente. — Se isso for verdade, o senhor
tem um monte de histórias aprisionadas aqui.
Ele riu mansinho, cravando em seguida — figurativamente — a faca em
mim:
— São quinhentos euros.
Minha mão congelou dentro da bolsa.
— Quanto? — Estiquei o ouvido em sua direção.
— Quinhentos euros, senhora — ele repetiu com a tranquilidade de
quem falava cinco.
Uau. Sabia que a peça tinha certo valor, mas não esperava que fosse tão
cara. Olhei de novo para a adaga, lembrando do nome gravado.
— Eu e meu sócio não conseguimos estimar ao certo a idade da arma.
No entanto, temos certeza de que ela tem, no mínimo, trezentos anos.
Talvez mais. Uma peça rara de se encontrar, por isso o valor elevado.
A sensação dolorida de ter que pagar quinhentos euros por um objeto
que eu havia acabado de encontrar agitou meu estômago. Eu não tinha esse
valor na carteira. Também não queria passar a compra no cartão, porque
Zach controlava meus gastos. Merda, eu devia simplesmente dar meia-volta
e sair, mas tinha certeza de que a faca pertencera a um antepassado de
Cristopher. A peça seria o presente perfeito que fiquei devendo pelo décimo
primeiro aniversário de casamento dele e de Isla.
Arrastei a mão no rosto. O idoso aguardava minha decisão.
Apenas agradeça e saia, Sabrina.
Dei mais uma olhada para a adaga e simplesmente não consegui. Voltei
a abrir a bolsa e tirei da carteira cento e cinquenta e seis euros, tudo o que
eu tinha. Ia ser uma merda explicar para Zach o que me fez comprar aquilo.
— Posso passar o restante no cartão? — pedi sem firmeza.
Um minuto depois, estava com uma adaga enferrujada na bolsa, rumo à
minha casa. Por que raios comprei aquilo? Não fazia sentido, já que havia
coisas melhores para presentear um casal. Aliás, eu já tinha decidido que
nem queria mais dar a adaga para eles.
Uma pontada de dor começou a latejar na têmpora.
Nos dias seguintes, a compra daquela peça rompeu o caos na minha
vida. Assim que Zach descobriu o objeto, seu ciúme se multiplicou por mil
e suas acusações se tornaram mais constantes e afervoradas. Além disso,
passei a sonhar todas as noites com aquela cena antiga — eu e Cristopher
no mesmo lugar apertado, o estranho atrás de mim, o salto para o mar.
Só que, dessa vez, eu via quem me puxava para o salto: um estranho
guerreiro de olhos verdes, de toque gentil e olhar apaixonado.
3
A ADAGA
SABRINA

— É o seu—nome na faca, Sir Aaron.


Não sou cego. Eu vi.
— Porém, não vai conseguir se comunicar com ela — o monge avisou.
— Ela não nos entende.
Eu os entendia, mas com dificuldade. Eles falavam no antiquíssimo
dialeto da ilha, o mesmo que usavam nos filmes sobre o Cerco. Conseguia
discernir algumas palavras, se ditas devagar. A pergunta era: por que raios
aquelas pessoas estavam falando comigo naquela língua morta?
— Eu assumo daqui.
A voz rouca do cavaleiro fez os monges se afastarem. Em seguida, os
olhos verdes cravaram nos meus com uma intensidade para a qual eu não
estava preparada. Em reflexo, me arrastei até a parede.
Não fazia sentido reconhecer aquele rosto, não era plausível — e,
mesmo assim, reconhecê-lo não diminuía o meu medo. O homem era muito
alto e corpulento. O rosto anguloso tinha traços clássicos — nariz austero,
queixo marcado, boca generosa escondida por uma profusão de fios escuros
— e os olhos eram estranhos, profundos e intensos. Se ele me reconhecia de
volta, não demonstrava.
Ele desceu as vistas pela minha roupa, parecendo analisar o estado
imundo do meu jeans, o nome da universidade onde estudei, gravado no
moletom cor-de-rosa, e as meias brancas sujas de terra. Voltando-se para os
monges, o homem deu a ordem:
— Deixem-nos a sós.
Com os olhos arregalados, acompanhei os dois religiosos deixarem a
cela, encarando em seguida a expressão grave no rosto do que parecia ser
um guerreiro. Por que precisávamos ficar a sós?
Encolhi um pouco mais, querendo me fundir à parede. Seja lá quem
esse homem fosse, meus sonhos estavam enganados: ele não era um amigo.
— Qual é o seu nome, forasteira? — A voz soou totalmente desprovida
de emoção.
— S-sabrina.
— Sabrina de onde? — Ele desceu os olhos outra vez até minha calça
jeans. Encolhi os pés, sem entender onde estavam meus tênis. A meia
felpuda não aquecia nada e meus dedos doíam, de tão gelados.
— Sabrina Ruedas. E não venho de lugar algum, oras. Venho daqui.
Quando dei meu sobrenome, ponderei responder o completo —
Bonicci-Ruedas —, mas decidi que usar apenas o nome de família do meu
marido poderia ajudar a resolver a situação de forma mais rápida. Queria
que soubessem que não era uma qualquer e que não podiam me manter ali.
Ser uma Ruedas abria portas em Malta.
Só então me toquei que, ao dar meu sobrenome, deixaria vir à tona o
que fiz ao meu marido.
— Não minta para mim. Você não vem daqui.
— Como assim? — perguntei sem entender que brincadeira era aquela.
— Se eu não sou de Malta, de onde eu viria, então?
Por longos segundos os olhos verdes pareceram me segurar no lugar,
como mãos. Não, melhor: como garras, me imobilizando e me impedindo
de pensar. Como eu podia reconhecer aqueles olhos e aquele rosto, se nunca
o vi?
Não fazia sentido.
— Nós nos conhecemos de algum lugar? — perguntei de rompante. Se
sim, estava explicado por que tinha a sensação de já tê-lo visto antes. O que
parecia ter uma explicação mística ou mesmo mágica podia não passar de
uma lembrança sufocada, ressurgida de outra forma.
No entanto, ao invés de me dar uma resposta, ele levantou uma nova
questão:
— De quem é o sangue na faca?
À simples menção do assunto, recostei a cabeça na parede com vontade
de vomitar. Tapei a boca e comecei a procurar algum lugar, qualquer um,
onde pudesse colocar tudo para fora. Notando meu desespero, o homem
tirou, com a ponta da bota, um penico de debaixo da cama. À visão da louça
encardida, meu estômago não aguentou. Com uma mão apoiada no chão
enquanto a outra segurava na beirada do colchão de palha, derramei tudo
que ainda tinha na barriga.
Só de lembrar que o sangue era de Zach, meu mundo se revirava inteiro.
Aquelas manchas vermelhas eram do marido que eu talvez matara com uma
punhalada na barriga.
O homem aguardou que eu parasse de regurgitar, mas não foi cavalheiro
o suficiente para me oferecer água. Sem escapatória, limpei a boca com a
manga do moletom, voltando a encará-lo.
Meus pensamentos estavam caóticos. Aquilo era um sequestro? Uma
pegadinha? Algum método novo de interrogatório? Aquela gente não
parecia ser da polícia. Quem eram, então?
— De quem é o sangue na faca? — ele perguntou outra vez, bem
devagar.
— De um homem que me atacou — respondi baixinho.
Não era uma mentira; fui atacada várias vezes. Infelizmente, só decidi
me defender naquela noite, e acabei indo longe demais.
O estranho arrastou um banco até a beirada da cama e se sentou. Imenso
e assustador, apontou a adaga para mim.
— Onde a achou?
— E-eu a comprei.
— Não minta para mim, forasteira. Não pode ter comprado a arma,
porque não a vendi. Essa faca é minha. Eu a perdi dois dias atrás.
Como assim? Eu tinha a faca há mais de um ano. Como ele a perdeu há
dois dias? Meu coração voltou a socar no peito, mas a irritação por ser
considerada mentirosa falou mais alto.
— Se está insinuando que a roubei, saiba que eu jamais faria isso.
— Que prova tem, então, de que ela é sua? Veja bem, está vendo esse
nome aqui? — Ele apontou para a gravação em um dos lados da lâmina.
Não precisava olhar para o que seu dedo enorme mostrava, porque tracei
aquelas letras todos os dias do último ano sem entender, desde que mandei
limpá-la, por que estava escrito de um lado Aaron de Landa e do outro…
— Por que mandou gravar o seu nome na adaga? — ele perguntou.
— Não mandei gravar nada, já disse.
— Seu nome é Sabrina, não? — ele girou a lâmina. Olhei para o nome
Sabrina de Landa marcado do outro lado. — Vou perguntar só mais uma
vez, mulher, e é bom responder a verdade. Por que mandou gravar seu
nome na minha faca?
— Não fui eu! — respondi, irritada. — Meu nome é Sabrina Ruedas,
não De Landa! Isso foi só uma coincidência. Também fiquei assustada
quando mandei limpar a peça e achei a gravação!
O estranho não esperava a torrente de palavras. Bem, eu não me
mostraria mais frágil do que já estava. Também não contaria que conhecia
um De Landa, mas isso não vinha ao caso. Encontrar o nome Sabrina junto
ao sobrenome De Landa me deixou intrigada, claro, mas eu não era a única
Sabrina no mundo, ponto final.
— Não sou Sabrina de Landa — repeti com vigor — e não mandei
gravar nada. Aproveite e me devolva a peça, sim? Paguei quinhentos euros
por ela.
Estendi a mão, no aguardo. O homem ainda tinha o olhar vitrificado de
quem pensava a respeito do que falei. Então, sem aviso, ele se levantou e
colocou a arma na bolsa que levava amarrada à cintura.
— Certo, então de onde vem, Sabrina Ruedas? Da Sicília? De Trípoli?
— O quê? Não. Você é surdo? Já falei que venho daqui. Nasci em
Malta.
Ele percorreu mais uma vez os olhos por mim.
— Não pode vir de Malta. Você tem a pele dos mouros.
Arregalei os olhos, sentindo uma súbita vontade de rir. De onde aquele
homem tinha saído? Sério, isso só podia ser um parque temático ou as
gravações de algum filme, ou série.
— Tenho a pele dos mouros? De que século você saiu?
— Os monges acham que vêm de Trípoli. — O tal Aaron cruzou os
braços, ignorando novamente o que eu disse. — Você parece vir de lá.
— Ah, qual é.
Incomodada por não ser ouvida, tentei me levantar, mas a cabeça
rodopiou e precisei esticar os braços para me amparar em algo sólido. O
que achei foi uma mão estendida que me firmou no ar e me ajudou a
estabilizar. Ao erguer a cabeça, me vi diante de um peito absurdamente
largo, paralisada pelo rosto acima do meu, tão bonito quanto perigoso.
A pressão das mãos nos meus braços só afrouxou quando indiquei que
estava bem. O homem, que agora sabia se chamar Aaron — e que me
deixava inquieta —, me amparou de volta à cama, obrigando-me a sentar de
volta no colchão de palha.
— Você levou uma pancada na cabeça. Demorará alguns dias para se
sentir firme de novo.
Levei a mão ao machucado, lembrando do curativo que senti ali mais
cedo.
Ele deu um passo para trás, e vi seus dedos se mexerem de leve, como
uma daquelas plantas que se encolhem ao contato.
— Olhe, eu não sou “moura” — falei. — Não venho de Trípoli ou da
Sicília. Também não sei por que estão falando nessa língua arcaica comigo.
Sequer conheço você. — Eu tinha que considerar agora que a pancada
podia ter sido grave e eu estava tendo alucinações. — Sei que meu nome é
Sabrina Ruedas e que preciso falar com a polícia. Reportar o que fiz.
— O que quer reportar?
Arrastei a mão pelo cabelo, olhando para o limo na parede.
— Acho que… bem, é quase certo que machuquei um homem.
Seriamente. Tenho que ser presa.
— Não tenha dúvidas de que será — ele respondeu tranquilo.
— É o que imagino.
Sei que foi legítima defesa, mas tinha que seguir as leis. Havia
atenuantes, e eu pretendia contratar um advogado. Tudo ia dar certo.
Arrastando as mãos pelos braços frios, olhei ao redor.
— Onde está o meu casaco? Gostaria de saber o que fizeram com os
meus tênis, também.
— Com o quê?
— Meus tênis. Meus sapatos. — Apontei para as meias imundas.
O homem mais uma vez me ignorou.
— O que estava fazendo desacompanhada no sul da ilha?
Por que esse cara nunca respondia o que eu perguntava? Ele sequer me
ouvia?
Então sua frase me deixou confusa.
— Espere. Você disse sul?
Novos flashes da noite passada rebentaram nas memórias. Lembrei-me
de ter chegado na casa da minha irmã em pânico, com as mãos
ensanguentadas. Meu cunhado me recebeu e conversou comigo até Isla
descer e se juntar a nós. Quando ouvimos as sirenes, eles disseram que
havia chegado a hora. Do que, eu não sabia. Então me enfiaram no carro e
saímos da cidade. Os dois discutiam o tempo todo, e não me recordo mais
do que falavam, mas lembro-me de ter ouvido a palavra sul. Depois disso,
tudo virava um borrão.
“Tudo vai ficar bem, Sabrina”, eles disseram.
Eu confiei neles.
Ainda confiava. Com a minha vida.
— Não sei o que fui fazer lá. — Balancei a cabeça. — Não sei, juro.
— Seja o que for, alguém a feriu. Os monges estavam de passagem
quando a viram caída no chão. Pelo que disseram, você foi assaltada e
deixada com essas roupas estranhas. Decerto, alguém levou a sua capa e os
tais… tênis. — Os olhos do estranho desceram até as pernas delineadas pelo
jeans. — Parece que tentaram tirar mais algumas peças, mas não
conseguiram. Sua estranha vestimenta pode tê-la salvado de algo pior.
Permaneci em silêncio, congelada a cada frase. Fui assaltada? E de que
estranha vestimenta ele estava falando? Da minha calça?
— Os ladrões poderiam tê-la matado se a caravana não tivesse
aparecido. De qualquer forma, quando os monges a revistaram, acharam a
adaga. Pelo sangue, concluíram que pode ter lutado e ferido um dos
bandidos.
A explicação parecia razoável, mas eu não podia mentir. Neguei a
conclusão à qual ele chegara. O sangue nas minhas roupas pertencia a Zach.
Ele continuou:
— Enquanto procuravam por ferimentos, eles também encontraram…
— Seu tom diminuiu de volume, como se ele precisasse tomar cuidado com
o que diria — marcas de dedos no pescoço, assim como uma gravação na
sua pele.
Ele apontou para a própria escápula.
Voltei a respirar de maneira errática. Gradualmente, as lembranças do
que Cristopher e Isla disseram durante a viagem de carro retornavam.
O nome dele é Aaron, Bine. Mas acho que já sabe disso, não é?
É ele, Sabrina. Ele é o homem que deve procurar ao chegar. Ele
cuidará de você.
— Eu gostaria de vê-la, se não se importar. — A voz do estranho me
trouxe de volta.
Isla, o que você e Cristopher fizeram?
Eu tentava bloquear aquilo para não enxergar o que estava acontecendo,
mas ficou impossível: as lembranças da discussão com Zach, as palavras
enigmáticas de Cristopher, as promessas de paz. Foi como ser arrebatada
por um vagalhão de sentimentos que veio derrubando tudo. Isla e meu
cunhado haviam me tirado do país e me enviado para algum lugar. Eu era
uma fugitiva.
Olhei para o suposto homem que devia procurar. Se ele tinha sido
contratado para me ajudar, por que me mantinha numa cela escura?
E como era possível que ele fosse o mesmo que me assombrava noite
após noite? Como Cristopher podia ter arrumado esse encontro, se nunca
disse nada a ninguém sobre aqueles pesadelos? Pensar no que aconteceu era
como travar uma queda de braço com a realidade.
Quando o estranho deu um passo adiante, eu gritei:
— Não se aproxime! Não toque em mim!
Encolhi o corpo contra a parede, as mãos esticadas para frente tentando
bloqueá-lo, vendo sua sombra descer sobre mim e a mão firme, ainda que
gentil, afastar a gola do meu moletom. Ele parou de puxar quando achou,
gravado na minha pele, a pequena borboleta azul com o nome Aaron escrito
ao lado.
4
O CAVALEIRO
SABRINA

E u precisava fugir.
Não da minha consciência ou das consequências dos meus atos —
eu estava destinada a sofrer pelas duas e em paz com essa punição. O
problema era outro.
Precisava fugir dali. Da cela gelada, das pessoas estranhas e do tal
Aaron. Os monges me assustavam, mas ele, em particular, me deixava
inquieta.
Estava começando a pensar num plano para escapar. A primeira coisa
era ter certeza de que meus machucados não iriam interferir na fuga.
Removi a faixa ao redor da cabeça e toquei de leve a pele sensível. Tudo
parecia bem, mas quando me levantei, foi aos tropeções. O chão estava tão
gelado que sentia as solas doerem. Não dava tempo de procurar meus tênis,
nem queria arriscar chamar a atenção — se quisesse fugir, precisaria ser em
silêncio. Decidida a sair do jeito que estava, colei o ouvido na porta e tentei
identificar se vinha alguém. Ao não ouvir nada, movi a maçaneta de ferro e
atravessei o corredor escuro abraçada ao próprio corpo.
A cada passo eu ficava mais certa que estava em um tipo de mosteiro. A
austeridade dos móveis, as paredes de pedra, os vitrais no alto — tudo
indicava isso. Mas por que me trariam para um lugar desses? Para me
esconder até a polícia parar de me procurar? Assim que eu pisasse na rua,
correria até a delegacia mais próxima e me entregaria. Minha irmã e
Cristopher não seriam acusados de serem cúmplices da minha fuga. Aliás,
também denunciaria aquelas pessoas por cárcere privado. Se minha irmã
pagou para eu estar segura, não devia ter sido colocada em uma cela,
cercada por homens assustadores e ordenada a dar informação de onde
vinha e de onde comprei minhas coisas.
Parei abruptamente ao entender que sair dali significava ir para a
prisão, e só de pensar nisso, meu estômago ardeu. Lembrei de Zach caído
no chão da sala, as mãos na altura do umbigo, a mancha de sangue
crescendo na roupa. Quem iria acreditar que nunca tive a intenção de
machucá-lo?
Avistei uma porta alta de madeira maciça e vigas de ferro que parecia
levar à rua. Cruzes enfeitavam as paredes e os santos que eram dispostos
em suportes altos pareciam vigiar quem entrava e saía. Abri a porta pesada
respirando fundo, sabendo que a liberdade seria provisória. A luz e o vento
frio me acertaram como um tapa. Ainda tonta, pisquei, sentindo o coração
bater alucinado.
No entanto, antes que pudesse disparar rua afora, fui acertada por uma
visão aterrorizante: não havia rua.
Não havia nada. Onde estava a cidade? Os edifícios, os carros, as
buzinas? Até onde as vistas podiam alcançar, tudo que existia era uma
estrada estreita de terra que parecia levar a lugar algum, cercada por uma
vegetação esturricada e branca pela geada.
Minhas pernas falharam.
Para onde tinham me trazido?
Zonza, balancei as mãos a esmo atrás de um lugar onde me apoiar.
Antes que caísse ali mesmo, desnorteada demais para aceitar que estava no
local mais remoto do mundo, braços quentes me ampararam e o mundo
escureceu.

“Preste atenção, Sabrina, eu preciso que você ouça o que vou dizer.”
Eu devia ter estado mais atenta ao que Cristopher falava, mas estava em
choque. Nem mesmo me lembrava de como cheguei à casa da minha irmã.
Onde estava a cabeça naquela hora? Para onde ia nossa consciência quando
nos deixava?
De volta à cama dura da cela, recordei as palavras do meu cunhado
enquanto ele me enfiava no carro e me sacudia pelo braço para me manter
alerta:
“Durante todos esses anos, me perguntei quando você partiria.
Cheguei a temer que esse dia não chegasse, embora Deus seja testemunha
de que não queríamos que fosse. Tudo que sabíamos era que você queria ir,
que o seu destino estava lá. Sempre quisemos contar a verdade, mas você
nos pediu para não dizer nada.”
Uma lágrima quente rolou pela minha bochecha enquanto me encolhia
sobre o colchão fedido, sentindo as mãos do estranho me cobrirem com a
colcha áspera.
A voz grave do meu cunhado continuava a chegar:
“Há mais ou menos treze anos, eu recebi uma segunda chance. Era o
momento da minha morte, a data em que eu tombaria em batalha, mas uma
mulher me entregou um colar e disse que eu deveria procurar por Isla
quando chegasse. Acabei acordando em um mundo diferente, em um tempo
diferente. Está me ouvindo, Sabrina?”
As palavras pareciam vir de um lugar distante. Lembro que só
conseguia olhar para o céu e pensar no que minha vida havia se
transformado.
“Você me deu uma segunda chance naquela tarde, meu bem, e eu
entendi logo que precisaria retribuir esse presente na hora certa. A hora
chegou, Sabrina. Hora de deixar o presente para trás.”
Um soluço de Isla me fez questionar para onde estavam me levando.
Percebi a direção quando Cristopher fez a curva e pegou a autoestrada que
levava em direção à costa. Por que estávamos indo para a região mais
isolada do país àquela hora? Não havia lugar na ilha onde pudesse me
esconder, eu já tinha tentado isso antes. Infelizmente, Zach me achou todas
as vezes.
“Ouça, Sabrina: será um mundo diferente deste aqui, e nada,
absolutamente nada, será fácil”, Cristopher continuava a falar. “Mas sei
que vai ficar bem no final. Aaron é o homem mais valente e honrado que já
conheci. Confie nele e será muito feliz até o final dos seus dias, como eu e
Isla sabemos agora. É só por ter certeza de que estará bem amparada que
estamos fazendo isso.”
No banco de trás, Isla continuava a chorar baixinho e a secar os olhos
com a manga do pijama.
“Bine, você ainda tem o colar que eu te dei há alguns anos?” — ela
perguntou. — “Aquele da pedra roxa?”
Sacudi a cabeça confirmando. Jamais me afastava da pedra. Se ela não
estava ao redor do meu pescoço, levava-a na bolsa, num bolso, ou até
mesmo amarrada no pulso. Ela sabia disso.
Vi o alívio nos olhos de Isla quando tirei o cordão de dentro do
moletom.
Lembro-me de ter perguntado o que uma coisa tinha a ver com a outra,
e soado fora de mim. Descombinada, desajustada no meu próprio corpo.
Ignorando minha confusão, Cristopher continuou:
“Você me encontrará em breve, mas eu não saberei quem você é. Preste
atenção, Sabrina: eu a tratarei mal, e peço perdão por isso, está me
ouvindo? Não a reconhecerei, mas você saberá quem sou e tudo deve
permanecer dessa forma. Lembre-se, do mesmo jeito que você não quis que
nós te contássemos, eu também não posso saber de absolutamente nada, ou
mudarei todo o nosso futuro.”
Ele olhou novamente para a minha irmã.
“Nada pode mudar agora, porque o presente é o meu lugar.”
“Ouça, porque isso é importante: não posso desconfiar de onde vem.
Aaron saberá de tudo e ficará ao seu lado, porque ele é um maldito
bastardo de coração de ouro e com um senso admirável de justiça. E
quando eu a tratar mal…”, Cristopher limpou a garganta, os olhos fixos no
caminho, “apenas se lembre de que no futuro eu a amarei como uma irmã.
Você é sangue do meu sangue e parte da minha alma, meu bem.”
Parados num sinal, Cristopher se virou e apertou minha mão, mostrando
que ele queria que eu gravasse aquelas palavras. Que o perdoasse por um
comportamento que ainda não havia acontecido. Minha confusão só
piorava, porque jamais imaginei que meu cunhado pudesse ser rude comigo
por qualquer motivo. Juro que tentei me concentrar no que falava, mas ele
não fazia sentido algum.
“Eu lhe ensinei tudo que precisa saber: as saídas do forte, a sequência
de lutas, onde ficar em segurança e para onde fugir. Você é o nosso futuro.
É o começo de tudo.”
Lembro que ficamos em silêncio por uns minutos até que uma grade
surgiu na escuridão, com placas de “Proibida a Entrada”. Cristopher
acelerou o carro e ouvimos o baque do portão indo abaixo. Assim que freou
abruptamente no meio do pátio vazio e escuro, pegamos correndo a
pequena estrada que ligava Ħaġar Qim, o círculo de pedras que remontava à
Idade da Pedra, a Mnjadra, mais adiante. Meio que caminhei, meio que fui
arrastada, vendo o céu ganhar lentamente uma tonalidade mais cinza, sem
entender o que estávamos fazendo.
Enquanto andávamos, senti o abraço de Isla e o peso de sua testa em
meus ombros. Ela tinha um sorriso triste nos lábios, mas esperança no olhar.
Gaguejei algo sobre não querer matar ninguém, o que era verdade. Também
falei o quanto eles estavam certos sobre meu marido, mas as palavras foram
engolidas pelo ruído do oceano, metros abaixo.
Se eu pudesse prever o futuro, nunca teria me casado com Zach. Eles
estavam certos, e eu, errada.
Quando pedi perdão por tudo, minha irmã sorriu e respondeu que não
havia nada para perdoar. Caminhamos até chegar no círculo de pedras. Sem
saber o que aconteceria em seguida, eu me virei para Isla e Cristopher:
“Eu queria tanto poder voltar no tempo. Queria tanto acertar as coisas,
Isla.”
Para minha surpresa, a voz carinhosa da minha irmã me garantiu:
“Você pode. E vai.”

Enxuguei as lágrimas. A verdade começava a se insinuar na cabeça,


avançando dos cantos para o centro como uma trepadeira em direção à luz.
O homem de olhos verdes continuava sentado no banquinho ao lado da
cama, me encarando em silêncio. Ele não me deixaria fugir de novo,
embora soubesse que tentar escapar seria em vão. As roupas, o mosteiro, a
frase enigmática da minha irmã… tudo tentava empurrar uma conclusão
para o centro da minha consciência.
Não havia bem para onde fugir, havia?
No entanto, ao entender que aquele talvez fosse um lugar sem Zach, um
sopro de alívio me varreu. Eu estava livre dele.
— Não adiantará fugir — a voz masculina avisou. — Estamos distantes
demais da vila e do porto.
— Não quero fugir. Quero que abram a porta e me deixem ir embora.
— Na hora certa, permitirei que vá.
A frase me fez soltar um som de descaso. Mais um homem controlando
a minha vida, que novidade.
— E o que preciso fazer para sair daqui? — perguntei a contragosto.
— Contar a verdade sobre a sua procedência e por que tem uma arma
com o meu nome, já que afirma ser sua.
— Que inferno, eu já disse que venho de Valeta. Quanto à adaga, eu a
comprei em um antiquário. Já contei tudo isso! — Um silêncio interminável
se seguiu, e enquanto o encarava, o cabelo da minha nuca se arrepiou com a
intensidade da troca de olhares. Esse homem não sabia me observar sem
fazer essa expressão inquietante? — O que foi, não acredita? Não há
mistério em mim.
— Isso é o que diz. E o sangue?
Olhei para as minhas mãos num reflexo, encontrando resquícios secos e
vermelhos nos cantos das unhas. Quis recomeçar a chorar ao me lembrar de
tudo; quis xingar Zach e bater em mim mesma por ter deixado nosso
relacionamento se deteriorar até aquele ponto.
— Responda, mulher! — Aaron de Landa ordenou, a voz grossa
reverberando pela cela e pelo meu corpo.
— O sangue é de um homem! — gritei de volta. Seria chocante o
suficiente se dissesse que vem do meu marido? Eu não me importava mais.
— Se quiser me entregar para as autoridades, eu não ligo! Só me deixe sair
daqui. Preciso falar com a minha irmã! — As lágrimas agora rolavam mais
grossas. — Só quero fechar os olhos e desaparecer. Só isso. — Chateada
com a insistência idiota, limpei as bochechas. A cena deve ter causado
algum efeito no homem, porque sua voz amansou:
— Do mesmo homem que deixou essas marcas de dedos no seu
pescoço?
Não entendi a princípio o que ele queria saber. Então, devagar, desci a
mão até a garganta, sentindo uma fisgada de dor ao pressionar uma parte.
Assenti, paralisada, sem saber como esconder aquilo. Teria sido mais
fácil se eu tivesse deixado Zach acabar com tudo. Desistido de lutar e
deixado os dedos terminarem o que começaram. Pensei nisso enquanto o ar
me fugia, acreditei que era a única forma de encontrar paz, mas havia
aquela coisa em mim, um sangue que ebulia fácil e que trazia um ímpeto de
autodefesa que não me deixou capitular. No fim, eu não queria morrer.
Então lutei e afundei a lâmina na carne dele sem pensar duas vezes.
— Isso basta para mim. — O estranho se levantou sem mais
explicações, e o vi alcançar a saída. — A questão do sangue está encerrada:
foi autodefesa. Sobre isso, não tem nada a expiar. Agora, quando decidir me
contar a verdade sobre o resto, mande me chamar.
5
A INIMIGA
AARON

— P recisamos saber a verdade — monsieur Rubião, o abade, avisou


às minhas costas. — É imperativo que tenhamos certeza de que
não é uma espiã dos otomanos.
Eu precisava controlar o temperamento e me acalmar: meu peito estava
muito acelerado. Da janela do monastério, via o campo coberto pela geada,
achando aquela velocidade de batimentos incomum. Fazia tempo que isso
não acontecia e me deixava desconfortável voltar a senti-lo.
— Ela é uma espiã. — O tom agressivo do monge mais jovem me
incomodou.
Como ele poderia saber disso, se eu mesmo não tinha certeza?
Meus sentidos gritavam que ela não estava ao lado dos otomanos,
embora tudo indicasse que sim. Encontraram a forasteira desacordada e de
posse da faca, em um local de onde podia facilmente observar a rota que os
monges faziam toda semana. Além disso, trajava roupas ultrajantes e tinha
um sotaque de quem vinha de fora. Por certo não vinha da Sicília, porque
eu conhecia as mulheres de lá e elas não usavam trajes como aqueles.
Se fosse apenas pela cor da pele, eu apostaria que vinha de Trípoli. Isso
explicaria também o maltês melódico e carregado de vogais que os colonos
que se assentaram no país, durante a ocupação da Ordem, tinham ao falar.
Ainda assim, ela era uma escolha estranha para uma espiã. Com a altura
modesta e peso praticamente nulo, não seria um desafio se tivesse que lutar
pela própria vida. Quando a segurei, um pouco antes que desfalecesse na
tentativa de fuga, parecia estar carregando uma pena. Outro ponto que me
intrigava era aquela fragrância de flores exóticas que flutuava ao redor do
corpo pequeno, já que o cheiro não condizia com o suor azedo de nenhum
outro espião que encontrei — e eu já tinha encontrado alguns.
No mais, era notório que a mulher estava machucada e em profundo
sofrimento. E que tinha uma moral incorruptível, ao querer se entregar à
justiça pelos seus atos de legítima defesa.
— Ela não é espiã — decretei, virando-me para os três religiosos
sentados na sala escura —, mas é algo peculiar, e concordo que precisamos
descobrir o que antes de pensar no que fazer com ela.
— Chegou cedo demais a essa conclusão, Aaron. Geralmente você
decide algo depois de algumas surras nos interrogados. — Rubião ergueu
um canto da boca engelhada.
— Conclusões são tomadas com fatos, monsieur. Alguns demoram mais
a aparecer do que outros. Nesse caso, é óbvio que a moça estava sozinha e
sente medo de nós. Parece-lhe alguém enviado para nos observar?
— Talvez tenha sido mandada justamente por causa desses atributos
mentirosos — outro monge sugeriu. — Os venenos mais potentes
costumam ser guardados nos frascos mais simplórios.
Voltei a olhar para fora, pensando que de simplória aquela moça não
tinha nada. Contudo, não tinha tempo para aquilo. Não fazia sentido ter sido
chamado até ali apenas por causa dela.
— Bem, vocês mandaram me buscar para saber a minha opinião. Eu já a
dei. A mulher confessou que atacou um homem, provavelmente um dos
ladrões que a roubou na estrada. Legítima defesa não merece punição. —
Caminhei em direção à porta, evitando os rostos desconfiados dos três. —
Se isso é tudo, preciso voltar para o meu posto.
Os monges não se mexeram.
— Precisamos de você um pouco mais, meu amigo. — O mais velho
apontou para uma jarra no fim da mesa. — Beba conosco. Ajudará a
recolher esses espinhos.
— Não faço mais isso — avisei. — Sabem que parei com os
interrogatórios.
— Porém, um dia fez, e foi o melhor entre todos.
— Sir Aaron de Landa, o Arrancador de Confissões — o monge mais
jovem murmurou em um tom de devoção que me desagradou. — Temido
por inimigos e respeitado pelos companheiros.
— Aquele homem morreu, e eu o enterrei dois anos atrás — respondi de
forma brusca. — Não o ressuscitarei para machucar uma mulher ferida.
Sejam homens tementes a Deus e melhores do que isso.
— Ignore o frei Wurstmeyer, Aaron. — O abade apontou novamente
para a jarra de cerveja. — Ele é jovem e só havia ouvido falar de coisas
boas sobre você.
Enchi uma caneca de argila com o líquido, me perguntando como
alguém podia achar o que eu fazia bom. Enquanto matava a sede após horas
de cavalgada inútil, concluí que se um frei admirava o meu passado, fiz
bem em abandonar não só a Ordem, como a Igreja.
— Não desejo mais nada da antiga vida. — Limpei a boca na manga da
camisa. — Só paz.
— Se abandonou Cristo, como pode ter paz? — outro resmungou em
alemão.
— Seu Cristo me levou tantas vezes à guerra que abandoná-lo me
trouxe, sim, paz — devolvi tranquilo, dando mais um gole na bebida.
Aqueles malditos me enervavam, mas ainda eram os melhores fabricantes
de cerveja da ilha.
— Heresia — o mais jovem alfinetou.
Como não ia discutir aquilo com um rapaz que nunca viu a morte de
perto, mudei de assunto:
— Deveria oferecer dependências mais quentes a sua convidada,
monsieur. A mulher está com frio.
Não era a minha intenção parecer preocupado com o estado físico dela,
mas seus tremores me deixaram inquieto. Na verdade, da silhueta magra e
sofrida aos olhos profundos, tudo nela provocava reações estranhas em
mim.
— O sofrimento eleva a alma — o segundo monge, já com a cerveja na
mão, comentou.
— Levem mais cobertas e comida também — ordenei. — Ou ela
amanhecerá doente e vocês não terão como saber mais nada.
O silêncio desceu sobre o salão, franzindo testas e vincando bocas.
Continuei a beber, repetindo em pensamento que eu não tinha nada a ver
com aquilo. Fui tirado da minha reclusão por um pedido urgente e estava ali
para averiguar se a moça representava perigo. Minha opinião eles já tinham,
agora podia ir embora.
Dei mais um gole, preferindo não pensar nada sobre o nome na adaga
ou o gravado na sua pele. Como se lesse seus pensamentos, Rubião
questionou:
— O que ela disse sobre a adaga?
— Que a comprou. Não entendi onde, mas está claro que não é a minha.
Não sei por que o meu nome está na lâmina.
O abade suspirou, olhando para o frei sentado ao seu lado.
— A adaga parece antiga, então não poderia ser dele mesmo. Deve ser
apenas uma infeliz coincidência.
— Não se esqueçam do desenho na pele. — O mais novo se meteu outra
vez. — Ela tem o nome de Aaron escrito na escápula.
— Há outros homens com o mesmo nome que o meu — respondi o
óbvio.
— Mas só um Aaron tem um irmão chamado Cristopher — Rubião
murmurou. Franzi o cenho, sem entender. — A mulher sussurrou alguns
nomes enquanto estava desacordada. Chegamos a mencionar? Acho que
não.
— Que nomes?
— Isla — o jovem frei revelou. — Acho que era um nome, já que o
mencionou duas vezes.
— Além de Cristopher — o segundo completou. — Acreditamos que
ela conheça o seu irmão.
Aquilo já não parecia mais algo aleatório. Coincidências eram
ocorrências fortuitas que poderiam indicar, ou não, relações entre duas
situações implausíveis, porém, quando se avolumavam, nos faziam
suspeitar de intenções e propósitos. Havia algo de oculto na garota, isso
estava claro. Mas o quê?
— Sabe se Cristopher se casou? — o abade perguntou. — Se ela é
Sabrina de Landa, pode ter recebido o nome de…
— Claro que não. Meu irmão fez voto de castidade, como bem sabem, e
está na Sicília servindo a Ordem. Além disso, a moça não se chama Sabrina
de Landa. Seu nome é outro. Tudo isso deve ser uma grande coincidência.
— Não acha que são coincidências demais, Aaron?
Sim, eu achava, mas não ia confessar para aqueles beberrões sem
entender melhor o que estava acontecendo.
— Vocês me trouxeram aqui para descobrir se ela era uma espiã. Ela
não é, assunto encerrado. Conheci muitos deles e nada indica que a mulher
seja uma.
Eu me lembrava bem como essas missões clandestinas, muitas vezes
suicidas, se desenrolavam. Os enviados do Império Otomano sempre
tinham um brilho diferente no olhar, gestos que os denunciavam, uma
olhadela para baixo ao procurarem justificativas para as suas mentiras. A
jovem estava perdida, só isso.
— Continuaremos a tentar arrancar informações — o jovem murmurou
aos companheiros. — Posso assumir a missão, monsieur.
Eu e o abade trocamos olhares preocupados. Parecia que eu não era o
único ali a ler bem as pessoas. Um franzir de testa e ambos sabíamos que
deixar a jovem por muito tempo no mosteiro traria problemas.
— Aconselho a tratarem-na como uma convidada, e não uma
prisioneira. — Minhas últimas palavras foram dirigidas para o jovem afoito
por interrogatórios mais vigorosos.
— É melhor esperar, meu filho — Rubião murmurou para mim.
— Não tenho por que ficar.
— A ordem de Valette é que você fique de olho nela, Aaron.
Parei no lugar.
— Eu?
Rubião abriu uma gaveta e tirou um envelope de dentro, murmurando
que a mensagem havia acabado de chegar. Peguei o documento vendo o
lacre da Ordem quebrado.
— Ele quer que você assuma a tarefa.
Por assumir a tarefa, o frei queria dizer que eu deveria assumir a mulher.
— Por que Valette está envolvido nisso? — Corri os olhos pela
mensagem, estranhando o interesse do Grão-mestre em uma simples garota
encontrada sem sentidos na estrada.
— Isso só ele pode dizer.
Cocei a sobrancelha. Sei o que aquilo significava: Valette esperava
informações da estranha. Como? Usando todo e qualquer métodos que só
eu conhecia e sabia fazer bem para arrancá-las. É claro que eu poderia
simplesmente negar o pedido, mas o mero pensamento de que o Grão-
mestre poderia passar a tarefa para outro homem contraiu minhas entranhas.
Aquela mulher não precisava de novos torturadores e as marcas em seu
rosto e pescoço eram sinais disso.
Suspirei, cansado das armações da Ordem para me manter por perto.
Devia ter desconfiado que havia uma intenção maior ao me chamarem aqui.
— Sabe que não podemos manter a moça aqui, Aaron.
— Não posso acolher uma estranha só porque desconfiam que é uma
espiã. Por que raios o Grão-mestre está metido nisso?
— Não sabemos, porém, se alguém perguntar, alegue que a moça é uma
parente — o frei sugeriu devagar, esperando que eu entendesse que, se ela
fosse comigo, seria melhor para todos se achassem que ela era da família.
A ideia chegava a ser ofensiva. Por que eu deveria acolher a mulher? Só
porque ela tinha uma marca com meu nome na pele?
— Por Deus, eu moro em um posto de vigília!
— Talvez seja por isso que o Grão-mestre o escolheu. Ele não pode
levá-la para a capital.
Arrastei as mãos no rosto. Na boca, a palavra não rolava como um
pedaço de tabaco, pronta para ser cuspida. Ainda assim, algo a segurava.
Revivi a sensação perturbadora de sentir a fragilidade do corpo feminino
em meus braços, e do exótico perfume de flores.
O abade entendia meu ponto, mas não discutiria a ordem do governador
de Malta.
Cristo, como poderiam sugerir algo assim? Ela era uma mulher! Uma, a
propósito, muito bela. Baguncei o cabelo, olhando ao redor. Há muito
tempo não sabia o que era o toque de uma mulher, e dispensava a tentação.
— Se nossas desconfianças forem confirmadas, é melhor que ninguém
saiba onde está e qual foi o seu fim — um dos monges comentou.
Era por comentários como aquele que eu havia largado tudo.
— Não seria melhor ela ficar aqui? — o jovem frei insistiu. — Também
estamos longe de tudo e de todos, e podemos resolver a situação.
Claro que não. Aquelas mãos nojentas a encontrariam em dois tempos e
não seria apenas para interrogá-la. Só de pensar naquele homem encostando
em uma criatura tão vulnerável fez o meu sangue ferver.
Olhei para Rubião.
— Por que acha que Valette está interessado nela?
— Ele andou ouvindo rumores. Alegou ainda que você lê bem as
pessoas e que saberia o que fazer com ela.
Soltei um rosnado baixo. Era intragável que, mesmo após dois anos,
minha fama ainda fosse a de um homem cruel.
— E o que faço com ela depois que descobrir a verdade, caso seja a
verdade que vocês imaginam? — perguntei, sem acreditar que estava
cogitando dizer sim para aquela insanidade.
— Caso ela seja o que pensamos, faça o que sempre fez com os
inimigos, meu caro.
6
A VERDADE
SABRINA

C aso eu conseguisse me mover, teria corrido. Se conseguisse entender


o que estava acontecendo, teria chutado aquele homem no saco e
feito um estrago em seu rosto: eu ainda tinha unhas. No entanto,
quando deixei o mosteiro isolado ao seu lado e entendi que não havia nada
ao redor — absolutamente nada — fui tomada por um choque paralisante e
a certeza de que a melhor opção era me calar e seguir viagem. Pelo menos
até encontrar alguma cidade.
Os monges me deram uma manta para me proteger do frio e me
colocaram em um cavalo. Teria sido um bom momento para galopar para
longe, mas até onde a vista alcançava, não havia nada além de mato. Como
não sabia bem onde estava, podia acabar numa situação pior do que me
encontrava agora.
Além disso, estava muito frio. O céu, pesado por nuvens de chumbo,
parecia prestes a desabar sobre nós. Quase desejei que caísse de vez e me
esmagasse. Eu já me sentia um pouco morta.
Às vezes pegava Aaron me encarando. Seu olhar sombrio me
vasculhava de um jeito incômodo e lento, passeando por mim como se eu
fosse um mistério — um que cabia a ele decifrar. Suas vistas sempre se
demoravam no meu jeans apertado e nos pés calçados apenas por meias.
Para a minha surpresa, ele segurou na sela e montou atrás de mim, sem
dizer nada. Fui forçada a me encaixar contra ele, que já segurava as rédeas
pelos meus lados e colocava o cavalo para andar. Seu cheiro era de poeira e
terra, misturado a um vago aroma masculino e almiscarado.
— Para onde estamos indo? — perguntei pela enésima vez, sem ouvir
resposta. Remexi o corpo, tentando afastar as coxas das dele. Que inferno,
por que estavam me carregando dali? A cavalo, ainda por cima.
E por que eu não lutava com ele até convencê-lo a me levar para outro
lugar?
Porque não havia outro lugar, era a resposta, e cada vez que constatava
isso, meu cérebro voltava a paralisar em choque. Onde estavam as casas?
As pessoas? As cidades, os edifícios, os resorts, os hotéis e as autoestradas?
Tudo que havia era vento, aridez e um horizonte infinito. Estávamos no
interior de Malta, mas não reconhecia onde.
— Se não quer me contar para onde vamos, pode ao menos me dizer se
estamos perto de Mdina? — insisti. Precisava me localizar, se queria fugir
em algum momento.
— Mdina fica a três horas de cavalgada — Aaron finalmente apontou
para a direção.
— Três horas? — murmurei mais para mim do que para ele. Olhei para
a vasta planície vazia de construções que se estendia até o mar. Por que
alguém cavalgaria até lá?
Não. Eu não podia estar… ali.
Não onde eu achava que estava.
Eu me recusava a aceitar.
No fim, o que me convenceu não foi a falta das grandes estruturas
arquitetônicas, mas a ausência das pequenas. Já cavalgávamos há um tempo
por estradas estreitas, entre arbustos altos, e eu ainda não havia visto nada
que indicasse presença humana. Onde estavam as sacolas de plástico
emporcalhando o chão? As tampas azul-desbotadas de garrafinhas de água
jogadas a esmo, as estradas com marcas de pneus, o carro de algum turista
perdido durante a trilha?
Um frio polar tomou conta de mim, e a verdade ameaçou se infiltrar nas
certezas que possuía. Estremeci com tanta força que o cavaleiro se remexeu,
incomodado. Sempre me considerei uma pessoa racional, e foi por isso que
minha razão atestou o óbvio: eu não fui enviada para outro lugar. Isla e
Cristopher tinham me mandado para outro tempo. Só que aceitar isso
implicava em acreditar em coisas que eram impossíveis.
Minha respiração começou a falhar. Se as leis da natureza não podiam
explicar algo — como, por exemplo, viajar para o passado —, dependia de
mim me agarrar à realidade até a última força.
Eu estava sonhando e aquele homem era a prova disso, certo?
Levei a mão ao pescoço sentindo a pele colar, fria, com o suor do medo.
— Em que mês estamos? — murmurei tendo outra pergunta em mente,
uma que ainda não estava pronta para descobrir a resposta.
— Dezembro.
Mas de que ano?
A periferia da minha visão começou a escurecer, a mente me forçando a
aceitar algo impossível. Precisei escorar as mãos no pescoço do cavalo para
não desmaiar novamente. Não, Isla, você não fez isso comigo. Não fez, e eu
estou perdendo a razão por cogitar uma loucura dessas.
Deus… isso explicava as incongruências do Cristopher, e toda aquela
conversa no carro. Isso explicava tanta coisa. Era esse, então, o irmão que
Cristopher costumava mencionar com saudade, a quem homenageou ao
batizar o filho?
Antes que eu despencasse do lombo do animal, um braço me puxou de
volta para trás, e a manta quente e morna foi ajustada ao meu redor.
— Não desmaie novamente — Aaron de Landa alertou. — Se cair, vai
se machucar.
Como se eu pudesse escolher entre desmaiar ou não, pensei irritada,
sentindo o calor morno de seu peito se espalhar pelas minhas costas.
— Ainda temos duas horas de viagem. Aguente firme.
— Para onde está me levando? — sussurrei. Eu precisava de um lugar
estável para desmaiar sem quebrar o pescoço.
— Para o norte.
Virei o rosto para olhá-lo, mas o homem bateu as botas na barriga do
cavalo e o animal acelerou o galope.
— Por quê?
— Acredite, não ia gostar de ficar no mosteiro.
— Eu não sei nem por que estava lá!
— Estava lá porque não sabemos quem é de verdade, e até descobrir,
não posso deixá-la livre. Então, é bom começar a se lembrar do que
aconteceu, porque terá que me contar, se quiser ir embora.
Quis gritar que não era da competência dele me dizer com que
velocidade deveria me lembrar das coisas, mas desisti. Era melhor manter a
atenção à frente, mesmo que sentisse o chão e toda a sua segurança se
esfarelarem sob os meus pés.
A cabeça tentou voltar à fatídica noite. Recordei de ter sofrido uma
queda grande, de ter caído na escuridão e acordado sem saber onde estava,
ainda muito zonza. Consegui enxergar algumas pedras ao redor, mas nada
além disso. Então, levei uma pancada na cabeça e, antes de desmaiar, vi
homens na periferia da visão, falando em um dialeto estranho.
Só que antes disso tudo, Isla e Cristopher estavam comigo.
— Sabe se vim sozinha? — Virei novamente para trás. — A última
coisa que me lembro é de estar com a minha irmã e meu cunhado.
— Estava sozinha quando os monges a encontraram. — Os olhos verdes
desceram até os meus, e, pela primeira vez, percebi terem a mesma cor de
menta que os olhos do meu sobrinho.
Voltei a olhar para a frente, sentindo a respiração acelerada. Eu só podia
estar ficando doida. Para começar, aquele bruto não podia ser o mesmo
cavaleiro dos meus sonhos. Era provável que fosse apenas uma sensação de
dèja vu, uma pegadinha da mente.
Procure por Aaron.
Chacoalhei a cabeça, creditando aquela memória a mais um dos meus
devaneios. Eu precisava voltar para o círculo de pedras. Se viajei até ali,
poderia viajar de volta.
Horas depois, avistamos o mar. No lugar do horizonte salpicado por
navios e balsas que atravessavam o Mediterrâneo, não havia nada. Nem
ferries, nem cruzeiros transatlânticos ou lanchas. Uma costa sem casas,
edifícios ou hotéis. Uma paisagem completamente nua de sinais humanos
— a não ser por uma única torre cor de areia, solitária rente a um precipício,
que se erguia sombria contra um oceano vazio.
O coração voltou a falhar.
Aaron de Landa apeou do cavalo ao lado da torre e eu me virei para a
paisagem estéril, sem acreditar. Aquela era Malta mesmo. Eu reconhecia o
recorte da baía, pois já havia estado ali antes.
Só não era a minha Malta no ano de 2035, com suas ruas estreitas
irritantemente cheias de carros, onde passava meus dias ansiosa, andando
pelo centro em busca de um milagre. Aquele era um país irreconhecível,
que ainda engatinhava para se tornar o lugar de onde eu vinha.
Lentamente, aceitava a verdade do que Cristopher e Isla haviam feito.
Eles tinham me tirado a tempo de casa, antes que a polícia chegasse. Ambos
me enfiaram em um dólmen, agarrada à minha pedra roxa, e me desejaram
uma vida livre e feliz.
Como podiam ter me enviado para o passado? Questionei, assombrada
pela verdade que lentamente tombava sobre mim. E por que fazer uma
loucura dessas?
— É melhor entrar. — Ouvi a voz dura atrás de mim. — Seus lábios
estão azulados. Não quero ter que enterrá-la ou jogá-la ao mar antes do
tempo.
Que charme, pensei aborrecida.
Aos poucos, as peças começavam a se encaixar, mas não gostava do que
mostravam. Eu estava no lugar mais ermo do planeta, em um tempo que,
entendia agora, não era o meu. Embora eu devesse estar em surto, chorando
desesperada para retornar ao meu tempo, lembrava perplexa das palavras de
Cristopher antes que o primeiro raio de sol do inverno invadisse a câmara
de pedra e eu despencasse no vazio.
“Esta é a sua segunda chance, meu bem. A chance de viver o que
nasceu para viver.”
Eu não era mais Sabrina Ruedas, casada com Zachary Ruedas. A
mulher ameaçada e agredida. Estava em outra realidade, dura como a rocha
e misteriosa como o tempo. Como companhia, o homem que habitava os
meus sonhos muito antes de aparecer ali era um neandertal que
supostamente me protegeria.
Aaron de Landa. Irmão de Cristopher.
Eu havia sido enviada para o passado porque, ao que tudo indicava, eu
mesma pedi por isso.
Um pedido que fiz por acreditar que ali eu seria feliz.
7
O VILÃO
MALTA, DIAS ATUAIS.
ISLA

— É a última vez que vou perguntar, Isla. Onde está Sabrina?


O detetive ao lado de Zachary aguardava minha resposta, o
bloco de papel aberto e um lápis bem apontado na mão.
Há quanto tempo eu não via um lápis? Às vezes eu me perguntava
coisas assim: para onde iam os objetos quando seu tempo findava? Ficavam
guardados em gavetas escuras, como recordações de eras passadas? Ou só
permaneciam na memória de saudosistas irritados com os eletrônicos cada
vez mais finos e desagradáveis ao toque?
Eu não fazia ideia.
— Isla, acorde. — Meu ex-cunhado exalou de forma exagerada.
— Zachary, você já me perguntou isso milhares de vezes. Não adianta
trazer um detetive e me ameaçar, nada vai mudar.
— As câmeras desta rua mostraram a fugitiva saindo de carro com você
e o seu marido naquela noite, Sra. De Landa. Está tudo gravado — o
detetive falou. — Do ponto de vista policial, são considerados cúmplices na
fuga da Sra. Ruedas. Se querem se ajudar, digam para onde a levaram.
— Como dissemos antes, detetive, deixei minha irmã em uma esquina
próxima do Centro, como ela pediu. Como estávamos na rua, aproveitamos
para passear. Sabe como é, um casal aproveitando os momentos longe das
crianças. Depois, voltamos para casa.
A mão de Cristopher, quente contra a minha, me passava força.
Entretanto, força era o que eu mais tinha. Olhando para Zach, queria
debochar na cara daquele maldito e dizer que ele nunca mais tocaria na
minha irmã. Nunca mais a controlaria com seus joguinhos mentais.
Constatar a irritação desse imbecil era a segunda melhor parte da coisa
toda; a primeira era ver que ele ainda andava meio curvado, a mão sempre
protegendo a barriga que não se recuperara totalmente da facada.
Zachary se levantou com dificuldade, o rosto parecendo uma careta de
puro desgosto. Eu estragaria muito o meu carma se dissesse que não ligaria
se ele tivesse morrido? Que quando notei as marcas dos seus dedos no
pescoço da minha irmã, quis eu mesma matá-lo?
Como tinha medo de carma, suspirei, apagando o pensamento e
encarando meu ex-cunhado de volta. Se ele achava que podia me intimidar,
ia aprender uma lição.
Zachary murmurou alguma coisa para o detetive e o homem deixou a
sala. Ele permaneceu do outro lado da parede de vidro, no jardim, onde
podíamos vê-lo investigar a residência atrás de câmeras desconhecidas que
pudessem jogar luz sobre o desaparecimento de Sabrina.
Assim que se viu sozinho, Zachary mostrou as garras.
— O que vocês realmente fizeram com ela?
Cristopher continuava impassível ao lado, o polegar deslizando devagar
pela minha mão como se também tirasse imenso prazer do momento. Por
ele, Zachary teria sido desmembrado na primeira vez que atentou contra
minha irmã. Então ele teria pendurado suas partes em lugares diferentes de
Malta, para mostrar o que homens de bem faziam com abusadores de
mulheres. Um pouco bárbaro demais? OK, um pouco, mas definitivamente
mandaria um recado.
— Zach, querido, não fizemos nada que ela não quisesse. Nós a
deixamos em um lugar seguro e, de lá, ela seguiu sozinha — respondi pela
milésima vez. — Se ela não voltou, é porque não quer ser encontrada.
— Vocês vão continuar se fazendo de inocentes? Sei para onde a
mandaram.
— Se sabe, por que ainda está aqui? — questionei baixo. — A polícia
revirou nossos cartões de crédito atrás de gastos e não achou nada. Os
telefones da casa, do escritório e os celulares estão até hoje grampeados,
esperando que Sabrina seja idiota e nos ligue. Só que ela não entrou em
contato por três semanas. Acho que não entrará mais, na verdade. E, por
mais que eu sofra por não poder falar com ela, sei que agora ela está livre e
em paz.
— A questão não é “onde” a esconderam, e sim “quando,” não é, Isla?
Sei que Sabrina foi para o passado e vocês também sabem.
O polegar de Cristopher parou de se mover. Tentei não engolir a saliva
caudalosa, mas Zachary era uma raposa e obviamente percebeu meu
desconforto.
— Que ela foi, não é uma dúvida; eu só não sei como. Para falar a
verdade, sempre soube que ela iria. — A voz dele falhou e percebi que,
embora Zachary fosse um monstro, do seu jeito doentio e asqueroso ele
acreditava ter sentimentos pela minha irmã.
Quando abri a boca para rebater a ideia ridícula, Zachary ergueu a mão.
— Não me trate como um tolo, Isla. Sei que ela esteve em Malta
durante o Cerco de 1565.
Por uns bons dez segundos, ninguém se moveu. As palavras dele tinham
uma certeza impressionante, embora continuassem soando absurdas.
Um pânico crescente tomou devagarinho cada centímetro meu. O
sumiço de Sabrina havia nos colocado em maus lençóis. Ela ainda era dada
como desaparecida, mas sem corpo ou evidências de um crime, nada podia
ser provado. Além disso, como Zachary não prestou queixa da facada e não
tínhamos provas da violência que minha irmã sofria, a fuga era ainda mais
questionada. Ficamos numa situação de empate, mas, mesmo assim,
Cristopher e eu estávamos no centro de uma confusão que envolvia a mídia,
a reputação da empresa, os vídeos que nos mostravam cruzando a cidade
com ela no carro e uma desconfiança fraca — nunca comprovada — de que
poderíamos ter tido algo com a invasão do sítio turístico de Ħaġar Qim na
mesma noite em que Sabrina sumiu. Porém, sem nada concreto, restaria à
polícia aceitar que ela desapareceu porque quis.
— Tolice — Cristopher finalmente falou.
— Sei como isso soa — Zach continuou, os olhos às vezes em mim, às
vezes no meu marido. — Improvável, irreal, ridículo, até… porém inegável.
Eu a achei em um livro, Isla.
Fantasioso ou não, o interesse foi mais forte do que eu:
— Que livro?
Eu e Cristopher havíamos procurado por anos todo tipo de informação
sobre os De Landa daquela época sem nunca encontrar nada, além do
túmulo e da adaga que a própria Sabrina achou em um antiquário. Nada
provava que minha irmã viveu no passado além do que já conhecíamos.
Apostava que ele estava blefando.
Zachary arrastou a mão no cabelo, dando dois passos para o lado.
— Vejam bem, agora que aconteceu de verdade, não tenho porque não
contar. Muito antes de conhecer Sabrina, eu já era um estudioso de Malta.
Sabia que um ramo da família tinha participado do Cerco e servido à Ordem
dos Cavaleiros de São João, mas essa linhagem foi extinta devido a um
assassinato durante o embate com os otomanos. A história desse parente
distante sempre me interessou. Os Ruedas não aportaram com os Cavaleiros
na Ilha, por volta de 1530; eles já eram nobres malteses de ascendência
espanhola quando a Ordem chegou. Isso meu pai já sabia antes de mim,
assim como o avô do meu avô. Éramos uma família abastada, mas esse meu
ancestral entrou na Ordem e lutou em algumas batalhas. Há diversos relatos
sobre ele.
Cristopher estava pálido e tinha os olhos febris no rosto de Zachary.
— Durante as minhas pesquisas, nunca achei detalhes sobre a morte
desse ancestral. As únicas pistas que encontrei eram que, depois do Cerco,
os Ruedas não foram mais aceitos na Ordem e aquele foi o último cavaleiro
na minha família. — Ele pausou, olhando pelo janelão de vidro as crianças
brincarem no jardim com a babá. — Quando encontrei Sabrina, deixei essa
curiosidade de lado, mas logo ouvi falar sobre alguns documentos recém-
encontrados em um monastério. Era o relato de um monge que esteve em
São Elmo durante a batalha.
Cristopher relanceou os olhos para mim. Pela falta de cor em seu rosto,
essa história envolvia alguém que conhecia.
— No relato, o monge contava como Enrico Ruedas foi assassinado por
alguém que conhecia. — Zachary ajustou o terno escuro como se ele
mesmo não acreditasse no que diria a seguir: — Quando li o nome do
assassino, não acreditei. Não porque ele tinha o mesmo sobrenome do meu
concunhado — ele olhou para Cristopher, e uma fagulha de raiva brilhou
em seu olhar —, mas porque meu ancestral foi morto por uma mulher.
Sabrina de Landa — revelou, atento às reações do meu marido. — Pelo que
li, essa tal Sabrina assassinou um cavaleiro da Ordem a sangue-frio
enquanto lutavam contra os otomanos.
Cristopher negou discretamente. A gota de suor que escorria pelo seu
pescoço entregava, de alguma forma, que havia alguma verdade na história.
No entanto, aquilo não podia ter acontecido como Zach contava. A coisa
toda soava como um delírio.
— Quem diria que a doce Sabrina deixaria o presente para se tornar
uma assassina no passado?
— Minha irmã jamais faria isso! — soltei de rompante.
Zach ergueu um canto da boca, tomando minha defesa como uma
confissão de que estava certo sobre a viagem do tempo. É, ela estava no
passado e nós três sabíamos.
— Ela fez, Isla. — Ele pousou a mão na barriga. — E de novo.
Deus, eu ia acabar me incriminando com aquela conversa. Era melhor
rir e tratar a coisa toda com deboche. Chacoalhei a cabeça e forcei uma
risada.
— Espere. Está mesmo acusando a minha irmã de assassinar um
homem no passado? Tipo, quinhentos anos atrás? — Ergui as palmas para o
alto. — Onde está a sanidade dessa conversa?
— Por favor, Isla, nós já passamos dessa fase. — Zach ignorou meu
argumento, continuando. — Até aquele momento eu achava que era apenas
uma coincidência estranha, você sabe: Sabrina, De Landa, meu
antepassado, etc. Então, Sabrina chegou um dia com uma adaga antiga onde
estava escrito não apenas o seu, mas também o nome de um certo Aaron.
O olhar de rapina deslizou até um porta-retratos que mostrava uma foto
da nossa família de férias no Caribe. No centro da imagem, eu abraçava
meu filho mais velho enquanto Cristopher beijava o rostinho de Laura,
nossa caçula.
Não precisávamos nem comentar que Sabrina tinha uma tatuagem com
o nome do afilhado, e que tudo junto parecia muito suspeito para um
narcisista controlador como Zachary.
— Admito que fiquei incomodado ao ver o nome da minha esposa com
o de outro homem. Passei então a querer saber quem era a mulher que
matou meu ancestral, e imaginem a minha incredulidade ao descobrir que
ela era uma incógnita para a Ordem até mesmo na época. A assassina foi
uma feiticeira? Uma espiã otomana que mudou de lado? O tal monge
contou que a mulher surgiu do nada na ilha, sem procedência certa, mas que
logo foi acolhida pela Ordem. Por quem, não consegui descobrir. Seja lá
como a viam, ela tinha acesso ao alto comando. Há cartas de Valette em que
ele a menciona pelo menos duas vezes.
Meu coração começou a bater morno. Como podia haver registros
desses encontros e eu não ter descoberto?
— Foi procurando por informações sobre a assassina que cheguei ao
único De Landa entre os guerreiros sobreviventes do Cerco: Aaron. — Os
olhos de Zachary fincaram em Cristopher. — Sim, nos documentos
encontrados havia menções ao nome dele.
Meu marido chegou a inflar o peito com o orgulho que sentia do irmão.
Cristopher sempre deixou claro que Aaron era um homem excepcional, e eu
sabia que ele sentia muito a falta dele.
— Presumo que essa pessoa seja um antepassado seu, meu caro.
— Se é um De Landa, imagino que sim. Nunca fui muito aficionado em
linhagem familiar para descobrir — Cristopher respondeu, seco.
— Hu-hum… Espero que entendam que todas essas coincidências me
deixaram inquieto… Com medo do que poderia perder, sabem? — Zach
continuou a andar, as mãos cruzadas na frente do peito e os passos
comedidos pelo machucado no estômago. — Minha esposa se chamava
Sabrina, e tinha uma irmã casada com um De Landa… Que uma certa
Sabrina de Landa assassinasse a sangue-frio um antepassado meu poderia
ser apenas uma trágica coincidência. — Zachary parou no lugar, erguendo
um lado da boca como costumava fazer quando concluía algo. — Bem,
persistente que sou, e conhecendo as pessoas certas, continuei a investigar
essa mulher misteriosa. Acabei ouvindo que a Universidade de Malta havia
encontrado recentemente, no porão de uma igreja em Mdina, uma biblioteca
do tempo dos cavaleiros. Como eu poderia não querer ver esses achados?
Usei meus contatos para acessar tudo e achei, entre alguns escritos sobre o
Cerco, um livro sobre os fundadores da cidade. Nessa época eu já estava
casado com Sabrina… Conseguem imaginar a minha surpresa quando, ao
folhear o manuscrito, a encontrei ali, desenhada ao lado do novo marido,
lutando contra a investida otomana?
Os olhos frios de Zachary colaram-se aos meus, mesmo que ao meu
lado Cristopher bufasse como um touro.
— Sabrina de Landa… Informante de Valette, esposa do cavaleiro
Aaron e assassina do meu antepassado. Minha esposa.
Não sei quanto tempo levei para organizar os pensamentos, mas quando
consegui, soltei uma risada.
— Isso é uma grande fantasia da sua cabeça, Zachary. O mundo está
cheio de pessoas iguais. Já vi isso com vários atores de Hollywood, que são
a cara de algum aristocrata que viveu séculos antes.
— Será, Isla?
— Achar que é possível viajar para o passado é coisa de gente doida. —
Eu me levantei e Cristopher fez o mesmo. Zachary não ia fazer jogos
mentais conosco. Ele nunca conseguiria provar sua teoria. — Se não tem
mais nada a dizer, ponha-se para fora da minha casa. Agora.
O desgraçado sorriu, os gestos mansos como os de uma víbora se
preparando para o bote.
— Podem alegar o que quiserem, mas sei que a enviaram para o
passado, e que lá ela se tornou uma assassina. Já chegou a pensar no que as
pessoas faziam antigamente com assassinos? Naquela época, a sociedade
tinha uma predileção pela forca, se não me engano. Na verdade — ele levou
a mão até a barriga ferida —, por pouco a minha adorável esposa não
deixou o presente como matadora de maridos.
Só de ouvir aquilo, minhas pernas começaram a tremer. Seria possível
que Sabrina se tornasse mesmo…
A mão que ainda segurava a minha apertou de leve meus dedos. Não
caia na cilada, o toque de Cristopher dizia. Ele tinha razão. Eu não podia
deixar Zachary mexer com a minha cabeça.
A voz de Cristopher soou calma e acolhedora ao meu lado:
— Se Sabrina tivesse colocado um pouco mais de força na mão, girado
a adaga ou mirado no fígado ao invés da bexiga, teria dado certo. Que pena
que não a ensinei direito como matar um cretino.
Zachary respirou fundo, caminhando em direção à porta. Antes de
deixar a sala, parou e se virou, o sorriso detestável de volta.
— Não sei se estão acompanhando os jornais, mas chegaram a ouvir
sobre o desaparecimento de Mina Beringer 1?
— Mina Beringer? — Chacoalhei a cabeça, sem entender.
— Sim. Uma turista de vinte anos que veio passar alguns dias em Malta.
A moça simplesmente desapareceu. Puf. Ninguém sabe o destino que teve.
— Qual é a relevância disso? — Levei as mãos à cintura. — Tenho
certeza de que vão encontrá-la em algum momento, viva e bem. Essa
história só prova que pessoas desaparecem, mais nada.
— Desaparecem, não é? A questão é que dois colegas afirmam ter visto
a mulher sumir. Ela apertou a pedra que trazia no pescoço, uma igual à que
Sabrina tinha, pelo que vi na reportagem, e… desapareceu no ar. Na frente
deles.
Queria olhar para Cristopher e perguntar se ouviu falar sobre o caso,
mas não ia dar a satisfação a Zachary de me ver interessada na história.
Aquilo estava ficando perigoso.
— Podem alegar o que quiserem, mas sei exatamente onde minha
esposa está. Não sei por que a mandaram para o passado, Isla, mas foi isso
que fizeram naquela noite. Sabrina nunca desgrudava da pedra dela.
— Também tenho uma e nunca saí desse tempo — contrapus com uma
risada —, mas desejo boa sorte em contar isso para a polícia.
— Não planejo contar nada a ninguém. — O rosto tranquilo mal omitia
a raiva. — Contudo, espero que sua irmã pague pelo que fez. Que acabe
numa forca onde quer que tenha ido parar. — Como uma brisa, Zach mudou
a expressão do rosto e o sorriso cínico voltou ao lugar. — Eu tinha razão,
afinal, não tinha? Ela me abandonou para se casar com um Aaron. Alguém
que, por algum motivo, parece ser importante para vocês dois.
Meu ex-cunhado mirou pela última vez o rosto do meu filho mais velho,
então sorriu para Cristopher como se soubesse o porquê do menino ter
aquele nome.
— Se não sair daqui imediatamente, arrancarei seus olhos — rosnei.
Quando ele percebeu que eu não estava brincando e que Cristopher não
me pararia, Zach abriu a porta da sala.
— Vocês estão protegendo uma assassina.
— Infelizmente, Sabrina não o matou. Você, por outro lado, quase
conseguiu fazer isso com ela naquela noite.
Como todo bom psicopata, o maldito deu de ombros como se o assunto
não fosse nada e se desviou das acusações.
— Bem, se ela não matou ainda, em breve o fará. Estou torcendo para
encontrar, daqui a algum tempo, documentos mostrando como a traidora foi
castigada. Se ela voltar para o presente, fugida, talvez eu mesmo aplique a
punição que merece. Quem sabe? Mal posso esperar por esse momento.

1 A história da Mina será melhor explicada no livro “Um inimigo do passado”, da autora Liz Stein.
8
A TORRE
SABRINA

— E ssa é a torre de São Marcos — constatei, espantada, ao


reconhecer a escarpa e o arco de pedra que fazia um desenho em
meio ao oceano agora sombrio de inverno. Estávamos na ponta norte da
ilha. Um lugar remoto até mesmo em 2035, mesmo com a visita constante
de turistas procurando aventuras ou lugares exóticos para seus cliques e
postagens nas redes sociais.
Aquela só não era a torre que eu conhecia.
Com um gesto de cabeça, o estranho me mandou segui-lo. Caminhei
atrás dele encolhendo os pés, sentindo a terra machucar a pele sob a meia
imunda. Uma profusão de grama e mato crescia ao redor da entrada, sem
dar indicação de que alguém se preocupava em cuidar do lugar. Adiante,
um toco de árvore cercado de flores silvestres mostrava um machado
cravado em seu meio e, ao lado, uma pilha de lenha se ajuntava. Pelo jeito,
eu sentiria saudade dos aquecedores elétricos.
As paredes de pedras amarelas pareciam bem mais conservadas do que
as memórias que eu tinha do lugar. Aaron abriu a porta de madeira e um
rangido cortou o ambiente. O interior era escuro e gelado, bem pouco
convidativo. A torre era dividida em dois andares, com uma escada íngreme
de madeira escura que levava ao segundo patamar.
O cavaleiro pegou uma lanterna a óleo pendurada em um gancho
enferrujado e caminhou com passos firmes até a lareira. Remexendo nas
cinzas, encontrou uma brasa e acendeu o fogo. Tive vontade de me encolher
ao lado daquela chama minúscula e fechar os olhos, aguardando a hora de
despertar do pesadelo.
Não dava para saber se eu estava em uma cozinha. Pelo fogão no canto,
sim, mas também servia como um tipo de sala de jantar, um depósito e
outras coisas também. Nunca havia visto nada tão rústico na vida. O fogão
era um amontoado de pedras com algumas panelas de ferro e uma chaleira
de metal amassado dispostos por cima. As paredes escurecidas ao lado
exalavam um cheiro de fumaça e lenha.
O piso de tábuas de madeira desniveladas rangeu quando finalmente me
movi e cheguei perto do fogo. Com um olhar discreto para os meus pés,
Aaron desapareceu pela escada até o segundo andar. Só quando fiquei
sozinha é que pude expressar meu horror por estar ali. Mas ali aonde? E por
quê?
Céus, quando conseguiria fugir? E para onde iria?
A mesa de madeira simples mostrava duas cadeiras, mas uma tinha
tanta poeira em cima que duvidava que qualquer outro ser humano visitasse
aquele lugar além do dono. Sem falar das teias de aranha nos cantos.
Estava descobrindo mais sobre a torre quando finalmente vi algo que
me chamou a atenção: na parede à esquerda da porta, duas prateleiras
inseridas entre as pedras mostravam armas variadas. Consegui reconhecer
uma espada, uma faca e um imenso arco com uma aljava onde ficavam
algumas flechas afiadas.
A mão chegou a se mover sob a capa com vontade de me armar e lutar,
mas recolhi os dedos. O que eu poderia fazer contra aquele homem? Mesmo
com todos os ensinamentos de Cristopher, tinha dúvidas se seria o
suficiente para enfrentar um cavaleiro treinado. Se Aaron decidisse me
punir, não sei o que sobraria de mim.
Tremendo, voltei a me encolher sob o tecido grosso da manta e me
sentei na cadeira empoeirada, rezando a Deus para acordar logo. Tudo ao
redor era horrível e deprimente. A torre, aquele cômodo, a ideia de passado
e o vento, que mais parecia um lamento triste vazando por frestas e
trazendo o frio para dentro.
Acima da minha cabeça, passos duros e firmes fizeram as tábuas
rangerem. O homem estava descendo.
Eu me encolhi quando ele chegou perto, a mão estendida na minha
direção. Seus olhos continuavam sendo a visão mais assustadora dentre
todas, porque me faziam questionar a minha sanidade.
— O que é isso?
— Meias. Minha bota é muito grande para você. Até irmos à cidade e
providenciarmos roupas, isso manterá você aquecida.
Peguei as peças ásperas da mão imensa, pensando que não ficaria ali
tempo suficiente para precisar de roupas novas, apesar de que um casaco e
sapatos me ajudariam na fuga.
— Obrigada — murmurei, vendo-o se afastar e voltar a mexer no fogo.
Tirei minhas meias molhadas e vesti a peça, estranhando a textura
rústica. Lentamente — bem aos pouquinhos —, a torre foi ganhando calor.
A luz dourada do fogo trouxe cor à sisudez dos poucos pertences dispostos
no lugar.
Aquela não poderia ser a casa de um homem que possuía uma capa tão
refinada. Eu era professora de História, sabia uma ou outra coisa sobre
trajes e moradias em Malta nos séculos passados. Mas em que ano eu
estava? Lembrei que Cristopher deu a parecer que também vinha daqui, e
mencionou o Cerco. Se estivesse certa, Deus, isso explicava tanta coisa…
Na verdade, explicava tudo.
O conhecimento infinito do meu cunhado sobre a época. As aulas quase
cansativas de autodefesa, arco e flecha e cultura geral. Soltei um riso fraco
ao lembrar de quantas vezes, cansada, tentei prestar atenção no que ele
contava porque parecia que ele queria que eu ouvisse. Quando fui reclamar
para Isla que meu cunhado era muito eloquente sobre o passado de Malta,
ela me mandou prestar atenção redobrada. Sempre achei meio estranho, e
imaginava que havia algo por trás daquela insistência, porém, não aquilo.
A saudade da minha família logo se transformou em raiva. Como eles
puderam fazer isso comigo?
A raiva, misturava à profunda confiança que tinha nos dois, deixava
tudo mais confuso. Era como se meu cérebro não fosse aguentar a carga
emocional que aqueles pensamentos traziam.
“Você é o início de tudo.”
Aquela frase de Cristopher ficava martelando minha mente. Na hora
certa, daria um jeito de retornar para casa e dizer aos dois muitas verdades.
Aaron de Landa continuava em silêncio, tirando algumas batatas sujas
de terra de um cesto e as jogando na água agora fervente em uma das
panelas. Das janelas de vidro embaçado, a escuridão tomava a paisagem.
— Está com fome? — ele perguntou sem se virar.
Ajustei a capa ao redor do corpo, assentindo. Eu tinha finalmente
parado de tremer, e os pés estavam aquecidos de maneira celestial.
Quando o cavaleiro se virou, trazia dois pratos de cerâmica na mão.
Uma gordura dourada escorria da batata cozida, assim como o sal grosso
salpicado por cima. Aaron pousou a lanterna no centro da mesa e, ainda em
silêncio, sentou-se do outro lado. Com uma colher de madeira, começou a
comer.
Por um tempo observei seus modos pouco refinados, lembrando
vagamente de como Cristopher comia logo que o conheci. Sua preferência
por colheres e por alimentos rústicos, como… batatas. Lembro-me de ter
perguntado por que ele adorava tanto aquela comida simples, e ele
respondeu que gostava delas porque eram raras.
“Raras?” brinquei.
“Nós só as conseguíamos em épocas de paz, quando negociávamos com
os turcos.”
Na ocasião, Isla ralhou com ele, e ambos fizeram uma piada.
Mais uma peça encontrava lugar nesse confuso quebra-cabeças. Estava
claro que o homem na minha frente “era o irmão de Cristopher que morava
na Islândia.”
Um irmão que morava há mais de cinco séculos de distância, isso sim.
Saber que esse Aaron era, de certa forma, da família não me fazia sentir
mais protegida ao seu lado. Ele era grande demais para ser considerado
seguro. Tão alto quanto Cristopher, tinha os mesmos ombros largos e o
formato quadrado de rosto, com ângulos tão pronunciados que pareciam ter
sido feitos à régua. Entretanto, ele não era loiro nem tinha os olhos azuis
como o irmão. Seu cabelo castanho era escuro e cortado bem curto, quase
rente ao crânio, e um pouco espetado na frente.
Ele era também mais bonito.
Ao mirar a batata, o estômago avisou que aceitaria qualquer coisa. Na
primeira colherada a comida fumegante tinha gosto de… bem, comida.
Suculenta e simples, e isso bastava. Sem dizer nada, comi também.
Aaron não olhou para mim nem uma vez, ou me dirigiu a palavra.
Quando terminou, levantou-se arrastando a cadeira para trás e enfiou o
prato sujo em um balde de madeira cheio de água, que estava ao lado da
porta. Jogou a colher junto e limpou a boca com o braço, como se nunca
tivesse ouvido falar de modos na vida. Precisei enfiar correndo o resto da
comida na boca porque ele parou ao meu lado, aguardando meus utensílios.
Grosso, encaixou o prato no balde fazendo barulho, como se eu fosse um
estorvo e estivesse incomodando-o por vontade própria. Sei que ele não me
queria aqui; isso ficou bem claro desde o momento em que me informaram
no mosteiro que seria mudada de lugar. Bem, minha culpa não era. Também
não queria estar naquela torre.
— O que planeja fazer comigo? — exigi saber. Aaron abriu um baú,
removeu uma colcha de aspecto imundo de dentro e jogou sobre um banco
raquítico encostado em uma das paredes.
Então, me encarando pela primeira vez em horas, indicou com o queixo
que seria ali que eu dormiria.
Que maravilha. Presa no passado em uma torre com o Sr. Simpatia,
alimentada à base de batata com banha e prestes a dormir sentada sobre um
banquinho. Aquela cama de palha do mosteiro subitamente me pareceu o
Hilton.
Antes de subir para o seu andar, levando com ele a lamparina, Aaron
avisou:
— Há um penico sob o banco. É melhor não tentar fugir durante a noite.
— Por quê? Posso esbarrar no Waħx il-baqar pelo caminho? —
resmunguei.
Mencionar a criatura mitológica que vagueava pelo interior da ilha nas
noites próximas ao Natal o fez erguer uma das sobrancelhas. Recuperando-
se em uma fração de segundo, Aaron olhou para os meus pés e voltou a
ficar com o rosto impassível.
— Há cobras na região e, sem sapatos, seria picada. Eu não arriscaria,
mas se quiser morrer, sinta-se à vontade.
Encolhi os dedos, fechando a cara.
— Quando eu fugir, e aviso que farei isso, não irei sem sapatos.
O brilho em seus olhos mostrava que duvidava disso. Sem falar mais
nada, ele subiu as escadas e ainda o ouvi por um bom tempo caminhando no
andar de cima. Eventualmente, o ruído nas tábuas cessou e um corpo
tombou sobre sei lá o quê.
Eu ainda estava perplexa demais para me mover. A porta estava
destrancada — poderia simplesmente correr dali —, mas não gostei de
saber das cobras. Decidi que a minha fuga aconteceria de dia, assim que
descobrisse como retornar para o sul. Toda via de ida era um caminho de
volta. Eu voltaria para casa, disso tinha certeza.
Meu tempo não era aqui, nessa época bárbara. Não saberia viver sem
aquecedores, sem carros, sem eletricidade. Como eles tomavam banhos
quentes naquele lugar? Céus, será que havia toalhas? Qualquer coisa macia?
Balançando a cabeça, lembrei dos meus sobrinhos, de Isla e Cristopher. Da
minha casa. Do meu…
A lembrança de Zach me fez parar de pensar.
Mastiguei o interior das bochechas, a mente em branco ao encarar a
colcha que parecia uma estopa suja. Chacoalhei a cabeça: esse era o menor
dos meus problemas.
Sem sono, arrastei o banco até a beirada do fogo, ouvindo o crepitar das
toras sob as chamas. Ajeitei o pedaço de pano sobre ele, agradecendo
mentalmente pelo idiota ter deixado a manta e a capa luxuosa comigo. Sem
me despir, me deitei como consegui sobre a madeira, relaxando o corpo
tenso pelos últimos dias.
Eu precisava achar uma forma de fugir dali.
9
O BANHO
AARON

H á três dias compartilhava a casa com a forasteira, e há três dias eu


fazia silêncio. Era um jogo mental a que estava acostumado e no qual
era muito bom. O principal era nunca perder a paciência. Eu nunca
mostrava ansiedade em saber mais sobre a vida de quem estava
interrogando. Seguia com a rotina como se a presença dela não fosse nada;
nem mesmo uma sombra. Continuava, claro, servindo comida à moça
quatro vezes ao dia — geralmente faria isso apenas três, porque um pouco
de fome aumentava a agonia do prisioneiro —, mas ela era magra demais e
não aguentava ver seu abatimento. Quando ela finalmente baixasse a
guarda, entenderia que não corria perigo comigo. Aí a mulher afrouxaria as
defesas e começaria a falar.
Eles sempre falavam.
Que Sabrina Ruedas não era uma espiã, eu já sabia, mas havia algo mais
naquela história. Não porque havia matado um homem — eu faria o mesmo
com qualquer um que tentasse me sufocar ou me deixasse com a lateral do
rosto roxa. Era outra coisa que me deixava inquieto, mas não conseguia
decifrar ainda o quê. Por isso segui com a investigação. O abade mandaria
um mensageiro assim que descobrisse mais sobre a adaga. A empunhadura
e o desenho na lâmina pareciam muito com o trabalho de um ferreiro de
Mdina, o mesmo artesão que produzira a minha. Os religiosos também
prestariam atenção nos relatos sobre desaparecimentos ou rumores sobre
pessoas esfaqueadas — embora desconfiasse que a mulher era pequena
demais para sumir com um corpo ou conseguisse golpear alguém mais de
uma vez.
Eu concordava com todos os caminhos da investigação, só não entendia
por que deveria mantê-la isolada de todos, e por que raios o governante de
Malta estava metido nisso.
Cansado de tantas perguntas sem respostas, só me restava trabalhar.
Tump, desci a lâmina do machado sobre a madeira.
Se estava tudo correndo como deveria, por que sentia o peito tão
revoltoso?
Tump.
Mais uma tora caiu partida ao lado do tronco. Sequei o suor da testa
com o braço, estalando a mandíbula. Haviam sido noites bem mais geladas
do que a média para a época do ano, e sabia que a mulher estava passando
frio. Embora ela ficasse mais próxima da lareira, a temperatura no andar
inferior congelaria qualquer um. Nas três manhãs em que desci, a encontrei
dormindo, encolhida, tão pequena ao redor do fogo apagado que senti certa
piedade.
Naquela manhã, ela abriu os olhos ao me ouvir descer. Fingi não
perceber que tremia sob a capa, como se o assunto não me preocupasse — e
não deveria, afinal; o frio costumava acelerar as confissões — só que não
pude tirar o incômodo da cabeça. Acabei alimentando o fogo com mais
lenha, tentando não pensar que estava fazendo aquilo por ela.
Com a torre mais aquecida, ela se levantou, a roupa ainda manchada de
sangue e a expressão de quem havia chorado. Saí antes que pudesse me
pedir algo. O que ela tinha, que me deixava inquieto? Eu não entendia o que
estava acontecendo comigo. Sabia apenas que, se seu silêncio mexia com
algo em mim, o que uma súplica sua não faria?
Tump. Tump. Tump.
A lenha para partir estava acabando. E então? O que eu ia arrumar para
fazer, sozinho com ela na torre? Conversar? Evitá-la? Atirá-la do penhasco?
A cabeça retornava para ela o tempo todo e a situação estava me
enervando. Foi uma surpresa descobrir que ela era jeitosa com coisas
domésticas. A forasteira não falou nada, mas havia arrumado o primeiro
andar no dia anterior. Dobrado a manta para ficar perfeitamente encaixada
em um nicho vazio. Arrumado as panelas e limpado a louça acumulada no
balde. Ela não conseguia dormir cedo como eu, e não estava acostumada a
acordar no meio da madrugada, por isso parecia sempre cansada pela
manhã.
E seus trejeitos…
Deus, eu tinha me esquecido como as mulheres eram delicadas. Como a
doçura transparecia nos gestos e movimentos, nos detalhes mais ínfimos,
como o movimentar dos dedos, o piscar dos olhos, a forma como ela
arqueava a coluna, mostrando que dormir sobre o banco a machucava.
Vivi tempo demais entre homens e pouco entre elas. A única com quem
me relacionei partiu antes mesmo que tivesse tempo de aprender a amá-la.
Talvez viesse daí a minha ansiedade: era quase irresistível observar a
forasteira comer, piscar, se encolher novamente e observar, perdida, o mar
do lado de fora. Nesses momentos ficava livre para me demorar na
observação das linhas discretas do seu rosto e admirar o nariz bem-feito, a
curva do pescoço esguio, a orelha pequena e delicada. Nunca havia visto
uma mulher como ela, uma que me obrigava a domar o olhar antes de fitá-
la.
Precisava confessar, nem que no silêncio do meu coração, que tudo
nela, do cabelo aos olhos, da pele às curvas, do jeito de se mover até ficar
parada, parecia ter sido feito para acender uma chama apagada no meu
peito.
Tump.
Precisava, principalmente, parar de me importar em saber quem era o
Aaron marcado em sua pele.
O último golpe do machado foi tão forte que praticamente parti a base
ao meio. Voltei à casa com a lenha empilhada nos braços, vendo que a
forasteira não estava mais perto da lareira. Ela estava próxima dos
mantimentos, e ao me ver, paralisou no lugar. Olhei para os potes de argila
revirados e joguei a madeira no chão.
Ela tomou um susto.
— O que está fazendo? — perguntei, brusco.
— Nada, eu… só queria saber o que guarda nesses potes.
— Não pode mexer neles — rosnei, passando por ela e tampando o que
estava aberto. Coloquei o pote de argila de volta na estante e me mantive de
costas, tentando parar de ser um idiota. Eu nem me importava com os
malditos potes, então por qual motivo estava descontando a raiva dessa
forma?
— Também não pode me manter presa na sua torre, mas aqui estou!
— Não está presa.
— Eu me sinto bastante presa. Só queria saber o porquê.
Devo ter feito uma expressão e tanto, porque a mulher se encolheu.
Diabos, o que eu estava fazendo? Ela era uma moça sozinha, trancafiada em
um posto de observação isolado, na companhia de um homem calado há
três dias. É claro que ficaria com medo.
Suspirei fundo, tentando achar um tom de voz menos ameaçador.
— Você estava com fome? É por isso que estava mexendo nas coisas?
— Eu só… queria saber se tem algo quente para beber.
Cocei a sobrancelha, pensando se tinha algo para adicionar à água.
Sem explicar, me virei, peguei um dos potes em que ela não tocara e
tirei a caneca com água do canto do fogão, colocando-a sobre o fogo aceso.
Alguns gravetos bastaram para aumentar as chamas. Quando a água ferveu,
joguei o pó de qahwa dentro e deixei a mistura abaixar.
Sem dizer nada, ofereci para ela a caneca com o líquido preto e amargo.
Assim que o cheiro dominou o ar, a mulher pareceu ganhar vida. Os olhos
escuros reluziram, os cílios compridos tremularam e ela esticou as duas
mãos para acolher a bebida como se pegasse uma criança preciosa no ar.
— Você tinha café em casa? — Ela bebericou o líquido quente com uma
careta, continuando a ingerir a bebida até se sentar de volta à mesa, como se
aquilo apaziguasse uma dúzia de demônios em seu peito. — Meu Deus,
café. Não está coado, mas serve. Nunca pensei que essa maravilha existia
nessa época.
Não entendi muito bem como ela chamou a estranha bebida que os
otomanos apresentaram à Ordem, décadas atrás, durante a ocupação em
Rodes. Eu a vi levar a caneca até a pontinha do nariz para aspirar o vapor,
soltando um gemido de prazer.
Parece que tínhamos algo em comum, porque eu também gostava de
sentir o cheiro da bebida, mas o pó era tão raro que só a preparava em
momentos especiais: quando precisava de algo que aquecesse meu corpo ou
para acalmar o coração — embora o peito sempre parecesse mais agitado
após beber aquela coisa.
O qahwa era uma iguaria, mas Cristopher em breve retornaria do
Oriente com mais um carregamento, então poderia oferecer a bebida mais
vezes.
Era a primeira vez que a via demonstrar interesse em alguma coisa.
Assim que esvaziou a caneca, a mulher parecia outra pessoa.
— Aaron, certo? — ela repetiu meu nome como se tivesse medo de
pronunciá-lo em voz alta. — Gostaria de fazer um pedido.
Fiquei em silêncio, esperando que ela tentasse me convencer a levá-la
até a cidade. Estava pronto para negar, quando ela continuou.
— Preciso de um banho. Estou há três dias com a mesma roupa,
cheirando a fuligem e cinzas e me sentindo imunda. Fiquei esperando que
me oferecesse a cortesia, mas não aguento mais.
— Banho? Mas estamos no inverno.
— Acho que você não me entendeu. Preciso de um, e hoje.
— Não vejo necessidade. Além disso, ninguém toma banho no inverno
— ergui os ombros, sem entender.
Por um instante ela me observou de cima a baixo, com os olhos
arregalados. Em seguida, tampou a boca com as mãos, o corpo
convulsionando como se alguma coisa subisse pela sua garganta. Duas ou
três vezes ela tateou ao redor, acredito eu, procurando o penico.
Aquilo era nojo?
Foi minha vez de franzir a testa.
Esperei algum tempo até que ela se acalmasse. Então, amparando a mão
na mesa e se sentindo melhor, ela indicou o balde onde lavava os utensílios
de cozinha.
— De onde traz a água?
— Do poço atrás da torre, por quê?
— Pode pegar um balde para mim? Posso esquentar a água e… usar
para… me limpar. Lavar meu moletom, pelo menos. — Ela apontou para os
respingos de sangue no tecido estranho. Rapidamente lembrei do toque
daquela peça de roupa macia contra minhas mãos quando a peguei no colo,
no mosteiro.
Sacudi a cabeça para espantar os pensamentos e concordei com um
breve aceno, saindo de casa. Assim que me vi longe, cheirei minha roupa.
As peças já tinham visto dias melhores e realmente cheiravam a estábulo.
Quando voltei com o balde cheio, a forasteira esquentou mais água na
chaleira e assim que o sol fraco de inverno atingiu o pico, deixou a casa
tomando o cuidado de fechar a porta ao sair. Ouvi da cozinha ela resmungar
sobre a temperatura, o lugar, sobre Deus e o mundo. Imaginei que a ideia do
banho fosse ser esquecida e ela entraria de volta, frustrada, mas não foi isso
que aconteceu.
Como ela não voltou, caminhei até a janela a tempo de vê-la remover a
blusa manchada e jogá-la na água. A jovem a esfregou com sabão até tirar
as manchas e depois pendurou a peça sobre um arbusto. Então removeu a
curiosa veste interna sem mangas que usava por baixo, revelando a pele nua
e sem marcas das costas. Um estranho e estreito corselete escondia os seios,
mas por baixo do tecido branco e fino dava para ver muita coisa, inclusive o
formato dos montes. Eram seios firmes e pequenos, pontudos pelo frio que
a fazia saltitar.
Senti a saliva descer pesada enquanto um calor estranho se concentrava
na barriga. Aaron, o que está fazendo? Não pode observar uma mulher se
banhando. Aquilo era indigno e um pecado. No entanto, aquela não era uma
dama qualquer — era uma prisioneira e talvez espiã — e fazia parte do meu
trabalho vigiá-la.
Sentindo um pouco da inquietação sumir, continuei a vigília. Vi como
ela, com um pedaço de pano, molhou o braço, e as gotas escorreram pela
pele de aspecto macio. Observei-a lavar o pescoço e a barriga lisa, a pele
sem fios sob as axilas e o pequeno vale entre os seios. Quando desceu as
calças azuis e justas, senti meu membro enrijecer como um dos troncos que
precisei partir hoje cedo. Quase senti dor física ao ver a minúscula peça de
renda branca que ela vestia por baixo. Onde estavam as malditas calçolas?
O tecido translúcido maldito, não mais do que um mísero fio, não escondia
as bandas delicadas das nádegas, nem o triângulo escuro entre as coxas.
Essa coisa que ela vestia devia ser proibida por matar homens do
coração.
Quando a mulher ameaçou descer as alças finíssimas pelas ancas, deixei
a janela, tropeçando no balde de louça suja e caindo sentado no chão de
madeira, sentindo o osso do traseiro doer pelo baque. Isso só podia ser Deus
me punindo.
Arrastei o corpo pelo chão até as costas encontrarem uma parede, vendo
meu peito subir e descer enquanto sentia a calça melar com o súbito desejo.
O fogo empesteava o ar com o aroma de cinza e fuligem, mas de olhos
fechados, quase podia sentir o perfume discreto do sabão agora impregnado
em sua pele.
Que inferno, eu deveria saber controlar essas reações, mas quando foi a
última vez que vi curvas tão bonitas? Nunca encontrei uma mulher tão
delicada. Enquanto a ouvia resmungar de frio do lado de fora, sentia meu
sangue borbulhar como uma sopa no fogo. A mente canalha imaginou o
toque naquela pele. O deslizar de dedos pela cintura fina, abrindo as coxas
delicadas e arrastando a palma pelos seios empinados.
Diabos, a falta de sexo mexia com a cabeça de um homem. E, cavaleiro
ou não, eu sentia minha mente muito mexida.
Quando ela retornou, os lábios roxos de frio e o cabelo pingando sobre
os ombros, enrolada na minha capa, eu já tinha tudo sob controle. Fingi não
notar o seu retorno. Logo que ela se aproximou da mesa, botei a sopa à sua
frente, vendo com o canto do olho ela estender a blusa molhada no banco
perto do fogo.
— Se não se importa, usarei sua capa até que minha roupa seque — ela
explicou, apontando para o tecido.
— Não me importo.
Sabrina comeu toda a sopa, os gemidos de satisfação confirmando que
gostou da carne que tirei do defumadouro. Mais uma vez, comemos em
silêncio, mas ela parecia diferente. Teria sido a qahwa? Ou o banho
desajeitado? Quando ofereci, ela aceitou mais um pouco da bebida amarga e
voltou a se encolher no canto. Assim que coloquei os utensílios para lavar
mais tarde, saí para dar comida ao cavalo e alimentar a fumaça do
defumadouro.
Então, por motivos que não sei explicar, decidi me lavar também.
Arranquei a roupa encardida e, nu, removi o suor do pescoço, ensaboei o
cabelo e arranquei a crosta de sujeira das unhas. Esfreguei bem atrás das
orelhas e entre os dedos; as axilas e os pés. Também lavei o pau ainda duro,
tentando acalmar aquele desgraçado excitado.
Maldita. Aquela mulher havia entrado na minha cabeça. Se as coisas
continuassem assim, logo eu estaria a seus pés, contando os meus segredos
e me banhando toda semana. Por que não a amarrei logo que chegamos, a
pendurei de cabeça para baixo e exigi que confessasse o que estava fazendo
em Malta? Agora, a presença dela ali ia acabar me enlouquecendo.
Um louco limpo, que escárnio.
Cansado dos pensamentos ficarem dando voltas, recoloquei a roupa
ainda com o corpo molhado, sentindo os membros duros de frio, e retornei à
casa. Pelo menos teria um tempo de silêncio e descanso da tentação, já que
a mulher tinha se encolhido novamente em um canto no chão cheio de
fuligem.
Que insensata. Do que adiantava se banhar e depois se sujar toda nas
cinzas?
Estava pronto para oferecer minha cama no andar de cima quando, ao
avançar pela sala, notei que minhas botas de cavalgada haviam sumido.
Girei ao redor, sem encontrá-las em lugar nenhum.
Foi como um estalo: puxei o tecido de cima de Sabrina, e o que vi
foram os troncos que parti pela manhã posicionados de modo a parecerem
um corpo, revestidos com a manta que ela usava quando saí da casa.
— Diaba! — rosnei, entendendo tudo. A prisioneira havia fugido.
10
A FUGA
SABRINA

C ada passo que dava para longe daquela torre era um mais perto da
liberdade. Precisava ser rápida. Para onde ia, não importava. Em
algum momento eu encontraria uma carroça, um peregrino, uma
mulher, uma vila, sei lá. Meu Deus, se encontrasse alguém, pediria que me
levassem para o sul e de lá voltaria para casa.
Tive tempo para pensar durante os três dias em que fiquei presa. Para
começar, deixei de questionar a realidade ou minha sanidade: elas estavam
corretas, e minha percepção não estava me pregando peças. Não sabia
como, mas estava no passado, nas mãos de Aaron, irmão de Cristopher, no
ano de sabe-Deus-quando.
Uma pena que meu cunhado não me avisou que seu irmão era um
homem frio, sem nenhuma centelha de empatia ou piedade. Eu não voltaria
a ser prisioneira dele por nada no mundo. Tinha medo do que me aguardava
no presente, mas não o suficiente a ponto de renunciar a ele.
Continuei a correr, embalada por um ímpeto renovado. A respiração
entrava e saía ruidosa à medida que eu ia saltando sobre os arbustos baixos,
desviando de pedras e escorregando na terra seca e gelada.
Uma coisa era certa: eu preferia uma prisão moderna onde me
permitiriam banhos diários do que viver enclausurada, dormindo sobre um
banco duro na presença de um homem que se comunicava por resmungos.
Um que não tomava banhos, valia a pena lembrar.
Sem falar que se descobrissem que eu não era otomana, mas de um
futuro distante, me queimariam em praça pública. A Inquisição ainda rolava
em alguns lugares, afinal. O presente não seria perfeito, mas lá eu
contrataria um bom advogado que me defenderia e faria o meu divórcio.
Zach não representaria mais um perigo, caso estivesse vivo.
No entanto, apesar das certezas, a cada passo que dava, sentia o peito
mais agoniado.
Espantei as dúvidas. Não podia ser mantida cativa por um estranho que
fazia joguinhos mentais. Vivi anos demais com Zach para não saber como
aquilo funcionava. Os silêncios punitivos e a desconfiança sem limite
haviam destruído muita coisa boa em mim, mas tinham me ensinado a
reconhecer quando um homem queria algo. A questão era: o que Aaron
queria?
Olhei ao redor, vendo apenas aridez, morros cobertos de vegetação
rasteira e mais nada.
Sem orientações ou estrada, eu tentava me guiar pela costa, às vezes me
aproximando mais dela, às vezes me afastando. Mesmo em meio ao
desespero, a vista era linda. As paisagens que no futuro mostrariam cidades
estavam, no momento, sob o domínio da natureza. Ondas bravias batiam
nas escarpas quase verticais, atestando a existência de um mar atormentado
lá embaixo. Tudo aquilo seria um dia tomado por cidades, mas nessa época,
não havia nada.
Tropecei nas raízes de alguns arbustos e xinguei alto. Que merda, a bota
de Aaron era grande demais para o meu pé. E onde estavam as malditas
trilhas? O povo desse século não se movia de uma cidade para a outra? Não
deixavam rastros?
Não estava confortável por roubar a capa e a bota de Aaron, mas ele não
me deixou saída. Peguei também uma faca, e esperava de coração que ele
não se importasse, já que ficou com a minha adaga.
Não sei por quantas horas caminhei, mas foram muitas. Ia me
protegendo do vento devido à roupa molhada, e espirrei várias vezes, o que
não era um bom sinal.
Desci um declive afastando os galhos secos da frente do rosto, vendo
surgir alguns sinais humanos: uma cerca de madeira caída, um rastro no
chão que parecia ser uma trilha. Aliviada, vi uma fumaça subir em algum
lugar e acelerei o passo. Graças a Deus. Se tudo desse certo, eu chegaria
em breve no círculo de pedras.
Lembro-me de Cristopher ter dito algo sobre a pedra roxa e o solstício.
Será que ela me permitiria viajar fora da data certa? Bem, eu precisava
apostar. Não ia conseguir esperar o mês de junho para tentar outra vez.
Pedra e lugar precisariam ser suficientes. Era isso ou permanecer ali, com
ele.
Sei que Isla e Cristopher fariam qualquer coisa para me mandar para
longe de Zach, mas, puta que pariu, não precisava ser tão longe. E por que
motivo?
Assim que me fiz a pergunta, o rosto de Aaron de Landa surgiu como
resposta. Duro, silencioso e belo. Rústico e definitivamente mal polido nas
arestas, mas deslumbrante, sem sombra de dúvida.
Em um gesto reflexo, pousei a mão no estômago, aguardando a
contração dolorida tão comum frente às adversidades, mas estranhei quando
não senti nada. Minha úlcera devia estar me matando àquela altura, com
tanto estresse e sofrimento, mas no momento meu estômago só crepitava
pela adrenalina da fuga.
Meu coração acelerou ao perceber os contornos de uma vila. Choupanas
de pedra e telhados de palha surgiram no horizonte. Pessoas! Não acredito!
Estou salva!
Enquanto caminhava abraçada à capa grossa, lembrei do homem que
deixei tomando banho. Embora o plano fosse fugir quando ele deixasse a
casa, não esperava vê-lo se despir inteiro e se banhar. Eu era testemunha de
que Aaron tinha o corpo mais magnífico que eu já tinha visto — sites
pornôs e filmes com estrelas de Hollywood inclusos.
Gomos marcados da barriga, coxas longas e musculosas, bunda
perfeitamente redonda. Um membro rijo tão grande e robusto que cheguei a
dar um passo para trás.
Por que ele estava com o pau duro?
Ralhei comigo pelos pensamentos doidos enquanto avançava na direção
do pequeno aglomerado de casebres escurecidos. Alguém teria uma carroça
ali. Girei a aliança de ouro no dedo, considerando oferecer a joia como
pagamento pela carona até onde precisava ir.
Limpei o suor da testa. Não faltava muito agora. A roupa colava pesada
no corpo e era desconfortável sentir a malha gelada contra a pele.
Ah, Isla, você me paga.
E de onde Cristopher tirou que seu irmão era “o homem mais valente e
honrado” que conheceu, ou achou que eu seria feliz aqui?
Que babaca.
Subi em uma pequena pedra usando as mãos, os pés escorregando na
bota imensa, quando vi dois homens adiante. Meu coração agora batia tão
alto que quase me ensurdecia. Ergui a mão para acenar, e estava me
preparando para gritar quando ouvi um galope rápido e um relincho atrás de
mim. Ao me virar, quase desmaiei ao avistar a montaria branca de Aaron, e
a face irada do meu sequestrador.
Com um golpe único, sem nem mesmo saltar do cavalo, ele me
arrebatou do chão, me jogando sobre a sela como se eu fosse um saco de
batatas. Caí de barriga sobre suas coxas, imprensada entre o pescoço do
animal e a odiosa barriga de gominhos.
— Não, seu idiota! — gritei, agitando as pernas. — Me deixe em paz!
Não tem o direito de me levar de volta! Não sou sua prisioneira!
A mão dele continuava pressionada contra as minhas costas, me
equilibrando sobre a sela. Seu rosto estava sério e sob a barba curta e
espetada, a boca era um arco virado para baixo. Aaron não parecia nada
feliz, e quer saber? Foda-se, porque eu também não estava!
— Maldita — ele rosnou, galopando mais rápido para longe, enquanto
eu sacolejava como um saco flácido.
— Me leve de volta! — gritei outra vez. — Quero ir embora daqui! —
implorei, mas era como falar com uma estátua. Não sei quanto tempo fiquei
pendurada sobre o lombo do cavalo, ondulando contra as coxas do homem
enquanto ele voltava na direção daquela maldita torre.
Tentei uma dezena de vezes me mexer, mas ele sempre me firmava no
lugar, espalmando a mão sobre mim — muitas vezes sobre a minha bunda.
Parei de lutar antes que aquilo se tornasse ainda mais perigoso do que
estava sendo. Era humilhante e errado ser mantida em cárcere. Assim que
encontrasse outra pessoa no planeta, eu o denunciaria por maus tratos e
sequestro!
— Você não tem o direito, sabia? — Virei uma última vez para ele,
odiando profundamente que o visse sorrir. — Vou vomitar, se não me
colocar sentada! Quer que eu suje o seu cavalo? Ou talvez a sua bota?
Ele havia me descalçado assim que nos afastamos da vila. Ou seja, eu
estava naquela posição humilhante com os pés apenas em meias.
Desgraçado idiota.
— Não confio em você — Aaron falou depois do que pareceram anos.
— A senhora roubou a minha capa e uma das facas. Além das botas.
— Só fiz isso porque me manteve presa na sua casa sem me dizer o
motivo!
— Ainda não contou o que está fazendo na ilha.
Ergui as mãos, estalando as costas doloridas e me ajeitando sobre o
animal.
— Não adiantará contar! Você não pode fazer nada com a verdade. Por
favor, apenas me devolva para o círculo de pedras. Preciso voltar para casa!
— Onde é casa? — O olhar afiado, que parecia enxergar tudo, cravou-se
no meu. Eu podia afirmar, com toda a certeza, que ele estava andando
devagar com o cavalo só para meu traseiro balançar mais forte para lá e
para cá. — E quem está esperando você por lá?
— Vou matar você — rosnei baixo, deixando a testa tombar no couro
suado do animal. Que fedor de cavalo, que ódio desse homem!
— Eu não tinha medo de você até há pouco, mas agora tenho — ouvi
sua voz gelada e masculina confessar. — Você não está perdida. Suspeito
que tenha um propósito, e mulheres com propósitos costumam trazer
problemas.
— Cale a boca e vá à merda — gemi fraca.
Com os braços balançando livres, meu peito estava comprimido contra a
sela e a respiração era rasa.
— Com esse vocabulário, deve vir de alguma cidade portuária. Talvez
seja uma taberneira. Ou uma meretriz.
Ergui a cabeça com uma careta.
— Por que tenho que ser uma dessas duas coisas? Sério, como você
pode ser… — Irmão de Cristopher, pensei em dizer, mas me calei. — Quer
saber? Espero que morra engasgado com as besteiras que diz!
— Brava e mal-educada. Talvez eu esteja errado, e você seja mesmo
uma espiã.
Ergui o dedo do meio para ele, sem me dar ao trabalho de levantar a
cabeça. Toda vez que girava o pescoço, ele doía.
— Responda para onde quer voltar e eu colocarei sentada na sela —
Aaron sugeriu, mais manso.
— Quero voltar para casa e nunca mais pôr os pés aqui.
— Você é moura?
— Mouros são muçulmanos e eu não sou nada! Nem em Deus acredito,
satisfeito? E por que fica repetindo que sou isso? — Quando Aaron desceu
o olhar para os meus braços descobertos, entendi de onde vinha sua grande
suposição. — Porque minha pele é escura e a sua, clara? Acorda, seu racista
idiota.
— É uma herege, sem dúvida.
— Vai tomar no cu.
O abusado teve a pachorra de descer as vistas até o meu traseiro e sorrir.
— Não sei bem o que isso significa, mas esse definitivamente não é um
vocabulário usado por damas.
— Pois vá tomar no cu novamente.
Quando percebi que Aaron mantinha o olhar na minha bunda, me
remexi querendo erguer uma perna e acertá-lo em qualquer lugar. Onde
quer que meus pés batessem, seria com tanta força que o machucaria.
— Pare de dar coices ou vai cair do cavalo, sua desbocada — ele se
aborreceu, o corpo oscilando para os lados também.
Pois era isso mesmo que eu queria. Mais um malabarismo de pernas, e
senti o calcanhar acertar um dos seus joelhos. O chute foi forte o suficiente
para me fazer escorregar do cavalo e cair com as mãos na terra cheia de
pedras. Machuquei as palmas que sustentaram meu peso, mas valeu pelo
grito de dor que arranquei daquele arrogante.
— Maldita! — Aaron saltou do cavalo, caindo de pé com certa
dificuldade. — Quase quebrou meu joelho!
Encarei o cavaleiro com raiva, enquanto me arrastava para longe dele.
Seria uma pena deixar um homem tão bonito manco, mas, mesmo assim,
motivo de celebração. Ele se aproximou puxando uma das pernas, a face
crispada de dor. Sem pensar duas vezes, me coloquei de pé, limpando as
mãos nas costas e andando para trás. Tentei me lembrar de algum golpe que
Cristopher me ensinou e que poderia usar ali. Outro maldito, concluí. Ainda
não conseguia acreditar que meu cunhado tinha me preparado para um dia
me mandar para cá e ficar com o idiota do seu irmão.
Quando pudesse, daria um chute no seu joelho também.
Com os dentes travados, Aaron avançou, mancando. Ele era grande e
forte, mas eu podia fazer um estrago naquele rosto, ah, podia, sim.
— Venha cá, sua arrumadora de confusão. — Ele investiu contra mim,
mas ameacei chutá-lo outra vez. Seus olhos voaram até os meus, onde tinha
um aviso claro de que se chegasse perto, poderia ser danificado ali
embaixo.
Uma pena para a população feminina da ilha no século XVI, no caso.
Não que eu me importasse.
Aaron não desistiu e tentou me pegar outra vez, mas desviei. Aquilo era
ridículo. Até uma semana atrás, eu andava de salto alto, dirigia uma SUV e
pedia cafés com desenhos de chocolate feitos na espuma. Como podia estar
naquela paisagem árida e isolada, séculos no passado, desviando do irmão
do meu cunhado, que também era um homem do passado?
A situação não era mais um pesadelo: era um delírio completo.
— Não vou retornar para a torre! Você disse que eu não era prisioneira!
Sou uma mulher livre e exijo ser levada até seu prefeito, governador, ou sei
lá o que tem aqui!
— Foi o governador que me mandou prendê-la — ele resmungou de
volta.
Aaron parou de avançar ao ver que eu preparava outro chute. Não sei se
estava com medo ou só com pena do meu medo. De qualquer forma, ele
parou, puxou o ar e apoiou as mãos na cintura.
— Você tem razão. Não é minha prisioneira.
— Se não sou, então exijo que me leve de volta — ordenei com a voz
mais firme que consegui.
— Para o mosteiro? Não gostará de voltar para lá.
— Qualquer lugar é melhor do que aqui.
— Não acho que os freis seriam tão respeitosos como estou tentando
ser.
— Ah, tá bom. Você também não é nenhum lorde inglês! Vi que ficou
me observando enquanto eu tomava banho.
Notei a sombra dele na janela, me vigiando enquanto me despia. Quase
desisti do banho, mas continuei porque não aguentava mais ter o sangue de
Zach no meu moletom, e precisava desesperadamente me limpar depois de
três dias.
— Não faço ideia do porquê deveria ser um inglês, mas se fui
comandado a vigiá-la, então é o que preciso fazer. Além disso — ele ergueu
as mãos —, nunca vi um ser humano com coragem para se banhar no frio!
— Mentira. Você é só mais um tarado.
— Não faço ideia do que seja um tarado, mas se está dizendo, então
sou. Vamos lá, senhora, deixe de ser teimosa. Está anoitecendo e precisa
secar as roupas, ou ficará doente.
Senti as pernas fraquejarem ao perceber que aquilo não ia dar em lugar
nenhum.
— Eu só quero voltar para casa.
— Não sem antes me dizer onde é casa e o que está pretendendo aqui.
— Aaron olhou para cima, vendo que a chuva fina e desagradável
recomeçava. — Se possível, vamos fazer isso longe da garoa, sim?
— Eu conto qualquer coisa se me ajudar a voltar — arrisquei.
O cavaleiro respirou fundo, voltando a me encarar tranquilo. Ficamos
alguns segundos nos observando até que ele assentiu.
— De acordo. Você me conta a verdade esta noite, e eu a levo aonde
quiser amanhã.
11
O ATAQUE
AARON

A silhueta da torre de pedra surgia devagar contra o céu do crepúsculo.


Em outras épocas, avistá-la trazia alívio, mas ultimamente o
isolamento andava me incomodando. Por muito tempo precisei dessa
sensação para acalmar o peito turbulento e esquecer toda a miséria que
causei, entendendo, de uma vez, que o meu destino era ser só. Fiz por
merecer. Em sua justiça divina, Deus me punira com a solidão e cabia a
mim aceitar seu sábio castigo.
A chegada, agora, trazia outro tipo de inquietação: uma que estava
relacionada à moça que me acompanhava. Ela não vinha mais jogada como
um fardo de feno sobre o lombo do cavalo; eu a tinha sentado na minha
frente. E embora um bom tempo tivesse se passado desde que a posicionei
colada a mim, não houve minuto em que a imagem do traseiro redondo
balançando ao sabor do trote não perturbasse meus pensamentos.
Sentado atrás dela, podia observar sem ser flagrado o desenho dos
ombros magros e a curva do rosto quando ela se virava para ver o mar, à
direita. Ela tinha um nariz atrevido e um queixo delicado; lábios cheios e
rosados, orelhas pequenas e ossatura frágil. O cabelo comprido descia
pesado até o meio das costas e cheirava ao meu sabão. Havia, contudo,
aquele resquício de perfume impregnado na sua pele que confundia meus
pensamentos. Quando observá-la se tornava um incômodo, voltava a olhar
para a frente, repetindo que a moça só era importante pelas informações que
eu precisava extrair. Uma vez revelado de onde vinha e o que pretendia na
ilha, eu a devolveria ao lugar aonde queria chegar. Se Valette mais tarde
perguntasse o que aconteceu a ela, diria que fugiu. Afinal, se o Grão-mestre
a quisesse presa, ela já estaria encarcerada. Por que ele a queria isolada, eu
não fazia ideia, porém, a minha torre não era uma prisão, pelo menos não
para ela.
Entretanto, algumas coisas me incomodavam. Sei que a forasteira vinha
de outro lugar, porque seu sotaque comprovava isso. Ela também era
desbocada e não tinha medo de homens. Outro ponto eram as curiosas
roupas masculinas com indícios de terem sido feitas em um lugar que não a
Europa. Onde se produziam tecidos tão macios, senão na Ásia?
E eu não podia esquecer que ela tinha uma aliança de ouro no dedo, o
que significava que era casada.
Quando o cavalo pegou o caminho que levava à torre e eu ainda
habituava a visão à penumbra, notei algo. Os pelos da nuca se arrepiaram, e
girei a cabeça primeiro para a direita, esquadrinhando a paisagem, depois
para a esquerda, tentando entender de onde vinha a sensação.
Estávamos sendo observados. Não sabia bem como discernia uma
presença em meio às moitas baixas e com tão pouca luz, mas tinha chegado
centenas de vezes naquele lugar e era a primeira vez que sentia alguém à
espreita.
— Que dia é hoje? — a mulher perguntou, quebrando o silêncio. Levei
imediatamente a mão até sua boca, tapando-a. Sem entender, ela agarrou
meus dedos para tentar reclamar, mas encostei os lábios em sua orelha,
afastando uma mecha do seu cabelo com o nariz.
— Shh. Há alguém aqui.
A mulher paralisou, os dedos agarrados aos meus. Ela não podia gritar
agora. Então, ela também notou que um vulto se escondia no escuro.
Tudo aconteceu rápido demais. O cavalo deu alguns passos para trás,
sentindo a tensão, e uma sombra imensa surgiu de detrás da torre,
empunhando uma espada curva. Outro homem, trajando um turbante, pulou
de trás das moitas e começou a correr na nossa direção. Eu só reagi:
empurrei a mulher do cavalo e gritei:
— Corra!
Com reflexos rápidos, Sabrina caiu em pé e fez o que mandei. Assim
que sumiu do meu campo de visão, tateei a cintura atrás da faca que havia
confiscado dela. Aquele pedaço minúsculo de metal não ajudaria por muito
tempo, e se quisesse sobreviver, precisaria de uma arma maior.
Um terceiro homem viu Sabrina disparar em direção à torre e se pôs a
correr atrás dela. Não, sua tola, é uma emboscada! Se entrasse em um lugar
fechado, iriam acuá-la!
Saltei do cavalo, e um rosnado masculino alertou que o golpe estava
próximo. Consegui desviar do primeiro, ouvindo um grito de raiva. Meu
cavalo empinou, galopando para longe. Éramos agora eu e o agressor, ele
com uma espada imensa e eu com uma reles faca. Desviei da segunda
tentativa de golpe e chutei o joelho do turco, que tropeçou para trás.
O segundo homem desceu a espada ao meu lado, e por pouco não
decepou meu braço. Enquanto o primeiro recuperava o equilíbrio, comecei
uma luta corporal com o segundo, mantendo sua mão afastada de mim.
Entre trocas de golpes e defesas, meu rosto virou com o soco que ele
desferiu, e o impacto na mandíbula estremeceu meu rosto. Uma dor
lancinante irradiou dali, parecendo apertar meu crânio. Andei para trás,
zonzo, acertando a barriga do oponente com outro chute quando ele se
aproximou. Preparei a faca para um golpe que o deixaria sangrando quando
ouvi os gritos femininos. O terceiro homem!
De onde esses malditos tinham saído? Por que estavam ali?
O otomano avançou outra vez. Na penumbra, tudo que via eram vultos
se movendo rápido demais. Acertei a lateral da cabeça do primeiro
enquanto suas mãos tentavam se fechar ao redor do meu pescoço. Caímos
no chão, eu por baixo e ele por cima. Enfiei com força os polegares em seus
olhos e ele gritou, seu corpo um escudo contra o ataque iminente do
segundo que se aproximava com a espada em riste.
Outro grito feminino ecoou à distância, dessa vez já dentro da torre.
Não! Maldição, não!
— Sabrina! — meu grito saiu estrangulado.
Possuído por uma ira descomunal, acertei o joelho na barriga do
homem, que se contraiu, sem ar. Ele afrouxou a mão ao redor do meu
pescoço no exato instante em que ouvi um urro masculino à distância. O
grito de guerra me causou um arrepio, mas ele foi interrompido
subitamente, seguido por um silêncio profundo.
Não podia deixar que matassem a mulher. Mesmo se ela fosse uma
infiel, uma espiã, ou uma esposa qualquer fugindo do marido, sabia agora
que ela e aqueles malditos não vinham do mesmo lugar. Se eles a pegassem,
a matariam com crueldade.
Tomado de fúria, levantei, encarando o homem que vinha com a espada.
Desviei do golpe da arma e espalmei com toda força o peito suado,
empurrando o miserável sobre o primeiro, que tentava se recuperar do chute
na barriga. Infelizmente, eles logo se colocaram de pé.
Eu precisava correr até a torre. Eles iam matá-la. Desonrá-la e depois
destroçá-la, como fizeram com tantas outras mulheres da ilha. Minha
corrida foi interrompida pelo peso de um corpo que colidiu contra as
minhas costas e me lançou ao chão. Voltei a rolar na terra, desferindo socos
e chutes, assim como levando alguns golpes também. O cheiro de suor
azedo se misturou ao das moitas úmidas e da terra gelada — o cheiro das
batalhas travadas no solo.
Vi, por cima do homem com quem lutava, as mãos do segundo otomano
se unirem ao redor da empunhadura e erguerem a lâmina, prestes a descer
sobre o meu peito. Tentei me desvencilhar das garras do que estava sobre
mim, mas recebi um soco no olho que me deixou desnorteado. A dor
pareceu me cravar ao solo, impedindo meus movimentos. Aquele era o meu
fim, mas ainda tive forças para gritar com meu último fôlego:
— Sabrina, fuja!
A espada se ergueu e tudo pareceu acontecer devagar — o homem
arreganhou os dentes, os olhos insanos brilharam de ódio, a ponta da lâmina
se ajustou sobre o meu coração. Porém, antes que ele pudesse descê-la, o
som de algo afiado cortou o ar e silenciou a noite outra vez.
Meu rosto foi salpicado por um líquido morno e de cheiro metálico.
Ao olhar para o inimigo, vi uma flecha transpassada em seu peito,
exatamente entre as costelas, e assisti seu corpo inerte tombar devagar para
trás, a boca aberta sem deixar nenhum som escapar.
O segundo turco, que tinha se afastado para deixar o golpe me acertar, já
não estava mais preocupado comigo, e sim com quem atirou a flecha. Ele
balbuciou uma palavra incompreensível, os olhos arregalados. Só tive
tempo de girar a cabeça para trás e ver, incrédulo, a silhueta magra e
feminina empunhar o arco com uma flecha retesada na corda. A ponta fina
estava apontada para o rosto do meu oponente.
Antes que eu pedisse para que Sabrina soltasse a flecha, ela zuniu no ar
e perfurou a garganta do maldito. O homem tombou, e seu peso caiu inteiro
sobre as minhas pernas.
Empurrei-o para o lado com o coração querendo saltar da boca, a
respiração entrecortada e rasa. Olhei ao redor, sem entender direito o que
aconteceu. Só quando me coloquei de pé e vi Sabrina descer o arco é que a
verdade se fixou.
Nem em meus dias de batalha perdi a voz como naquele momento.
Ergui os braços devagar, aguardando que ela apontasse a próxima flecha
para mim, mas ela abaixou o rosto e seu corpo frágil e pequeno começou a
espasmar, como se um choro há muito contido finalmente escapasse. O arco
desabou de sua mão fazendo um barulho abafado ao cair. Caminhei até ela e
coletei a arma enquanto olhava ao redor.
— Onde está o terceiro? — perguntei quase sem ar. Sabrina continuava
a tremer e a olhar para os dois otomanos abatidos no terreno, como se não
conseguisse acreditar no que fez.
Ergui seu queixo com os dedos, repetindo a pergunta:
— Onde está o terceiro?
Ela não estava em condições de falar. Deixei-a para trás olhando ao
redor e entrei na torre. O último otomano estava caído de costas ao lado do
fogão, uma flecha despontando do peito como um obelisco.
Bom trabalho, garota.
A forasteira entrou logo atrás de mim. Meu primeiro reflexo foi segurar
com mais força a empunhadura da faca. Estava claro que ela não era uma
qualquer, e que no momento não sabia se podia considerá-la inimiga ou
aliada.
— Meu Deus, o que foi que eu fiz?
Ela estava em choque.
— Não podemos ficar aqui. — Passei por ela sentindo um calafrio ao
lhe dar as costas. Ela tinha derrubado três homens sozinha com uma
precisão que nunca vi antes, e eu podia bem ser o quarto. — Eles não
vieram de Constantinopla em três. Logo os outros chegarão.
Sabrina começou a respirar com força. Seus olhos subiram até os meus,
apavorados. Inimiga ou não, ela sabia fingir um colapso como ninguém.
— Eu não tinha a intenção, Aaron.
— Sei que não. Vamos.
Vi o quanto ela estava prestes a desmoronar, mas não podíamos parar
agora. Como ela não se mexia, segurei seu pulso e a arrastei em direção ao
poço.
— Preste atenção — sussurrei, duro. — A descida é íngreme e exigirá
toda a atenção no escuro. Não faça um único barulho, nem mesmo se cair,
você me entendeu? Vou na frente para mostrar o caminho. Faça exatamente
o que eu fizer.
— Eu juro, eu não queria… — Sabrina tremia tanto que precisei
chacoalhá-la pelos ombros.
— Sei que não teve a intenção. Mas que bom que fez mesmo assim.
Não sei quem a treinou ou por que motivo fez isso, mas acabou de salvar a
minha vida. Muito provavelmente, a sua também. Mas agora não é hora de
mostrar fraqueza. Precisamos nos esconder, porque essa gente nunca viaja
sozinha.
Agachados, rodeamos o poço d’água. Olhei para os lados e abri a tampa
de madeira, entrando nele. Em um primeiro momento, Sabrina não se
moveu, e precisei puxá-la pela gola para que me seguisse. Ela também
entrou, escorando o pé em uma das pedras, como apontei. Com cuidado e
sem fazer barulho, puxei a placa de madeira sobre nossas cabeças, e a
escuridão completa nos engoliu.
— Preste atenção, forasteira — avisei-a no escuro com uma mão em seu
ombro. — Há pedras espalhadas na parede onde pode apoiar o pé. Precisará
procurá-las sem enxergar. Recomendo que só solte a pedra que segura
depois que achar apoio para os pés. As saliências são discretas e levam até
embaixo, como uma escada. O poço é uma via de fuga, mas tenha cuidado.
Se cair, será sobre mim e nós dois nos machucaremos. Você entendeu?
Senti o movimento de assentir que fez com a cabeça. Inferno, não dava
para ver nada e ela só tremia. Soltei-a e comecei a descer, amparado pelas
pedras, rezando para que ela mostrasse a mesma destreza na descida com a
qual manejara o arco. Agradeci aos céus quando a ouvi fazer o primeiro
movimento com cuidado e segurança.
Arrastando as mãos na superfície lodosa, achávamos as pedras
protuberantes que serviam de degrau. Elas eram ásperas e proviam suporte,
mesmo úmidas e viscosas. Havia muitas e eu já tinha usado aquele caminho
algumas vezes, então para mim era relativamente fácil. Ela logo entendeu
como procurar os apoios também, porém, sempre que podia, eu a segurava
pelos tornozelos e ajudava levando seus pés até as pedras salientes.
Sabrina só vestia meias, e me senti mal por tirar as botas dela. O tecido
estava molhado e os pés pequenos deviam estar rijos de frio.
Diabos, eu nunca tinha ouvido falar sobre uma emboscada tão ao norte
da ilha.
Um apoio após o outro, e continuamos descendo. Uma pergunta
continuava a latejar na mente: por que ela tinha me salvado? Sabrina tinha
um arco e flecha nas mãos, sabia usá-lo bem. Ela poderia ter matado os três
otomanos e acabado comigo na sequência. Ela escolheu não me matar. Ao
contrário, acabei sendo salvo por ela.
Quem era essa mulher?
Quando cheguei no fim dos apoios, já bem perto da linha da água, olhei
para cima.
— Chegou a hora de pular. Não se solte atrás de mim. Espere eu dar a
ordem e então a pegarei, certo?
— S-sim — ela murmurou de volta.
Saltei em direção ao fundo do poço e me agachei assim que senti a
lagoa rasa de água doce, fonte da nossa água potável. Sabrina permaneceu
agarrada à pedra, como ordenei. Olhei para cima, para o poço redondo,
vendo os discretos filetes de luz entrarem pelas emendas do tampo. A
silhueta feminina era fácil de enxergar, e estava tensa no aguardo da minha
ordem.
— Salte agora. Pegarei você.
Ela hesitou, mas por fim soltou as mãos e deixou o corpo cair. Segurei-a
no ar, as mãos se fechando contra a cintura fina antes que seus pés tocassem
no chão pedregoso. O corpo esbelto, ainda quente, estremeceu contra o
meu, e a desci com cautela, dolorosamente ciente do roçar dos seios firmes
contra o meu peito. Ela aterrissou em segurança e a água chegou até os seus
joelhos.
— Está firme? — Soltei-a devagar e meus dedos se curvaram para
longe do seu calor. Sabrina confirmou, fungando. — Posso segurar sua
mão?
Ouvi um sim baixo e tateei a escuridão. Seus dedos frios tremiam. Se
não chegássemos logo ao local seco, ela podia ficar seriamente doente.
— Precisamos avançar.
A caminhada foi rápida e logo saímos da pequena lagoa, alcançando um
banco de areia. Poucos conheciam aquela gruta ou sabiam do curso d’água
que brotava do solo. Quando os arquitetos da Ordem construíram a torre,
encontraram a passagem e acharam que ela poderia ser um bom lugar para
esconder provisões para o caso de um ataque. O poço fora construído para
prover água, mas também como rota de fuga. Quase ninguém sabia que ali
embaixo existia um mundo subterrâneo de fendas, entradas e saídas que
desembocavam na praia.
Continuamos a avançar por um tempo, esmagando conchas e moendo
pedrinhas sob as solas, ouvindo as rochas soltas sendo chutadas na
escuridão. Mesmo para mim, familiarizado com o caminho, era doloroso
avançar sem machucar a canela e as solas nas estalagmites salientes do
chão. Sentia Sabrina me seguindo, gemendo baixo toda vez que pisava em
uma pedra pontiaguda. Minha raiva por não ter providenciado sapatos para
ela aumentou.
— Estamos chegando. Aguente só mais um pouco. — Logo senti meu
pé encostar em uma superfície mole. Abaixei e tateei com cuidado, aliviado
por não ser um bicho morto e sim as provisões mantidas ali para o caso de
ataques à ilha. Havíamos chegado ao acampamento e agora tínhamos uma
chance de sobreviver.
12
A CAVERNA
SABRINA

M esmo depois de Aaron acender uma vela e, mais tarde, a fogueira, eu


ainda tremia. Não sei se de medo, de choque por ter matado três
pessoas ou pelo frio intenso que subia pelas pernas e já alcançava o
corpo todo. Sem saber o que fazer, olhei ao redor tentando entender
exatamente onde estávamos.
A sensação que tive ao ver o local se iluminar foi a mesma de quando
entrei em uma catedral antiga pela primeira vez e me espantei com seus
arcos imensos e suspensos. Lembro de ter me perguntado que grande
arquiteto tinha conseguido realizar aquela proeza em uma época tão sem
recursos, e agora me questionava o mesmo. A gruta não deixava de ser uma
grande construção, porém uma não feita por nós. Estávamos em uma
imensa caverna subterrânea, onde gigantescos paredões acidentados
erguiam-se ao nosso redor. Estalactites pontiagudas pendiam do teto e a
água da imensa piscina ondulava de tempos em tempos pelas gotas que
pingavam na superfície calma. Por todo o canto, passagens escuras levavam
a outras cavernas. O cheiro era de ar saturado e água velha, de lodo e
mistério.
— Pode beber a água, se estiver com sede — A voz de Aaron ecoou
mansa no imenso salão natural. Ele continuava a falar baixo, sinal de que
ainda corríamos risco de sermos ouvidos. — O cheiro de mofo vem das
paredes, não do lago — ele continuou a explicar, sem parar de tirar coisas
de bolsas de couro empilhadas no que parecia ser um pequeno
acampamento.
Das paredes esverdeadas de musgo desciam fios de água, mas todas as
bolsas estavam sobre estantes de madeira suspensas. Quando o espanto
inicial esvaneceu, voltei a abraçar o corpo frio. Sem saber o que fazer, me
agachei perto da piscina e encarei o meu reflexo na superfície da água. Eu
estava uma bagunça. Havia matado três homens a sangue frio… Pessoas
que eu não sabia quem eram, de onde vinham, ou suas histórias. Não
conhecia nada sobre eles, mas sabia exatamente onde eram vulneráveis e
que deveria lançar minhas flechas naqueles pontos fracos.
Meu rosto franziu e o choro guardado saiu de vez, o corpo inteiro
chacoalhando pela dor de tirar a vida de alguém. Aaron se levantou, deu a
volta na fogueira e parou ao meu lado. Ele era uma grande sombra contra o
fogo, mesmo assim via a camisa de linho gasta salpicada de respingos
vermelhos. Peguei um pouco da água e molhei o rosto, enxugando-o com as
mangas do moletom. Não sabia se o ferira também, ou se ele me manteria
presa porque eu era, agora, um perigo.
Logo eu, que nunca estacionei em uma vaga errada, deixei de pagar
uma conta ou machuquei alguém com palavras, tinha tirado a vida de quatro
homens em menos de uma semana.
— Não tive a intenção de matá-los, Aaron.
— Eles eram inimigos — ele respondeu, ríspido.
— Não meus. — Voltei a soluçar. Como podia ser fácil para ele aceitar a
morte de outras pessoas? Não importava a raça ou de onde vinham: eram
pessoas!
— Não seja inocente, forasteira. Sabe o que fariam se a tivessem
capturado viva depois de me matar?
Aaron se agachou ao meu lado. Contra a luz avermelhada da fogueira,
sua pele ganhava uma aura dourada, e o calor do seu corpo esquentava tudo
ao redor com mais potência do que o fogo.
— Para começar, eles a profanariam — continuou, seco, como se
listasse os atos de um manual maldoso. — Os três. Depois, a matariam de
forma vil. Talvez a deixassem viva e a levassem como escrava para
Constantinopla, onde, acredite, a colocariam em situações tão decadentes
que desejaria a morte todos os dias. Fez bem em matá-los. Deveria estar
orgulhosa, não em prantos.
Por longos segundos o encarei. Aquilo foi uma tentativa de me
consolar? O olhar do homem continuava duro, cheio de incompreensão pelo
meu estado. Segundo Aaron, eu deveria estar me regozijando pelo meu
feito.
Inacreditável.
Quando o vento assobiou através de rachaduras na pedra, despertei dos
pensamentos. Exigir empatia e compreensão de um homem das cavernas
talvez fosse demais.
Ele se deu por satisfeito e se afastou, voltando para perto da fogueira.
Nem mesmo entendi porque se aproximou, já que claramente não sabia
consolar ninguém. Entendo que estes eram tempos violentos; que não havia
leis como as que conhecia, nem direitos humanos, nem a quem recorrer no
caso de injustiças — como me manter presa naquela torre. Também não
veria ali compaixão pelos inimigos, nem muito menos compreensão pelo
meu estado.
Observei-o abrir uma manta sobre o chão, pensando também que, por
outro lado, não haveria grandes interessados em me prender por aquelas
mortes.
Aaron grunhiu alguma coisa, indicando o cobertor com um gesto de
mão. Sem opções, engatinhei até o lugar e me sentei, abraçando as pernas e
esperando que o fogo me esquentasse. Com a roupa úmida da cintura para
cima e completamente molhada do joelho para baixo, eu tremia de frio. A
capa de Aaron que eu usava como casaco havia caído na corrida até a torre,
me deixando sem nada para me proteger da temperatura. Apertei as mãos
para conter os tremores e tentei bater menos os dentes. O ar úmido da
caverna não colaborava.
Sem me destinar atenção, Aaron tirou as botas de couro encharcadas e
as meias grossas e rústicas. Não pude deixar de observar seus pés, longos e
bonitos, com as unhas bem-feitas e fios escuros sobre as falanges
compridas. Não sei o que deu em mim para começar a apreciar pés de
homens. Devia ser meu cérebro entrando em colapso.
Ignorando meu escrutínio, ele abriu uma das bolsas e tirou de dentro
meias secas. Ao invés de colocá-las, estendeu as peças para mim.
— Tire as suas e vista essas.
— Guarda roupas aqui embaixo? — perguntei, aceitando a bola de pano
mofada.
— O abrigo foi construído para situações como esta. A torre é um local
de vigília.
— O que isso significa? — Tirei as meias, mexendo os dedos
congelados dos pés. — Que não escolheu morar ali?
— Aqui é meu posto de trabalho.
Enxuguei meus pés com a mão e estiquei as pernas o máximo que pude
para que esquentassem perto do fogo. Aaron retirou mais coisas da sacola:
um tipo de mocassim feito à mão, de couro endurecido, e outro exatamente
igual, sem distinção do que era o pé direito ou o esquerdo. Depois, puxou
uma capa velha e um pedaço de linho dobrado e fedorento.
Então, finalmente, uma caixa de madeira cheia de castanhas e
amêndoas.
— Vai ajudar a amenizar a fome. — Ele abriu uma depois de bater a
sola por cima da casca, me estendendo a noz dourada e suculenta.
Aos poucos fui esquentando os pés e as pernas, matando a fome no
processo. Não conseguia olhar para o lado e encará-lo depois de tudo o que
aconteceu. Como ele também não parecia interessado na minha presença,
comemos em silêncio, atentos a qualquer ruído que viesse do lado de fora.
Às vezes não era nada, mas em outras, tenho certeza, eram o bater das asas
de um morcego se agitando entre as passagens escuras. O som da lenha
crepitante era o único barulho contínuo.
— Acha que descerão até aqui? — perguntei quando o vi tirar uma faca
do cinto e pousá-la ao lado da coxa larga.
— Ninguém sabe que isso aqui existe. Como agora é maré alta, a
entrada pela praia está submersa. Estamos seguros.
— E como sairemos? Não acho que consiga subir pelo poço de novo.
— Pela areia, do outro lado do penhasco. Há túneis acima e abaixo da
linha de água. — Ele pausou, umedecendo os lábios bem-feitos. — Amanhã
precisaremos ir até Birgu. Valette precisa saber que estamos sendo
espionados.
Voltei a mastigar a noz, engolindo a pele amarga que a revestia. Aquilo
significava que eu também precisaria ir, e por um tempo tentei me lembrar
como se chegava de Birgu até o círculo de pedras.
Com o tempo, o cheiro de água estagnada foi sendo substituído pelo da
fumaça. Observei quando o cavaleiro recostou na pedra procurando um
lugar para repousar o corpo. Ele tinha me dado o linho que tirou da bolsa e
eu agora estava novamente quente. Meus dedos não estavam mais gelados,
a calça jeans secara um pouco e o cansaço começava a se abater sobre o
corpo dolorido.
— Acha que eles pretendiam nos pegar de surpresa? — questionei
depois de uma eternidade de silêncio.
O rosto do homem girou na minha direção.
— Com certeza.
— Hm. E como sabe que eram otomanos?
— Pela língua. E as roupas.
Imitando a posição de Aaron, recostei em um estalagmite seco, tentando
encaixar as costas onde não me espetasse. Estávamos lado a lado,
seguramente afastados, porém ainda à distância de um braço. Às vezes ele
lançava um fragmento das cascas de nozes na fogueira, mergulhado em
pensamentos.
— Ainda pretende me levar até o círculo de pedras?
Precisava saber se a promessa estava de pé. Se não estivesse, teria que
pensar em outra forma de escapar, porque não podia ficar ali. Não com
homens assassinos se esgueirando por todo lado, me fazendo agir de
maneira impensável.
Lembrei de Cristopher e das aulas de arco e flecha. Ele costumava dizer
que essa era a melhor arma para mim, porque eu era pequena para embates
corporais e não conseguiria manejar por muito tempo uma espada. Sem
falar que, modéstia à parte, minha mira sempre foi boa. Quando Laura,
minha segunda sobrinha, nasceu, os treinos com meu cunhado diminuíram,
mas eu já tinha pegado o gosto pela arquearia. Troquei os treinamentos com
Cristopher por visitas frequentes aos clubes para praticar a modalidade. O
casamento com Zach, dois anos depois, me afastou do arco e flecha, mas
não me roubou a pontaria.
Eu ainda sabia mirar e atirar.
Quando baixei a cabeça e os olhos ameaçaram umedecer novamente, a
voz de Aaron me tirou das lembranças.
— Fizemos um trato e ele está mantido. Conte-me tudo sobre você e a
levarei até onde quer.
Peguei ar, pensando em como começar a história toda. Se eu, que vinha
do século XXI, já achava a ideia de viagem no tempo algo louco, imagina
um cavaleiro temente a Deus no século XVI? Precisava ter muita cautela
com o que ia dizer. Se soasse como mentira, Aaron poderia se zangar e
cancelar o acordo. Se acreditasse em mim, poderia querer usar as
informações que sabia sobre o futuro e me manter por perto mais tempo do
que eu queria ficar.
— Eu venho de Malta — comecei, mas assim que minha voz se
misturou ao rolar das toras no fogo, Aaron enrijeceu em um claro sinal de
irritação, como se sua paciência para aquilo estivesse esgotada. — Você
precisa me deixar terminar, Aaron.
Ele assentiu a contragosto e eu continuei.
— Eu venho de Malta, mas não da sua Malta. Meu tempo é outro.
Pronto, lá estava ele zangado outra vez. Com o rosto crispado, os sulcos
pronunciados em sua mandíbula um pouco piores do que já eram.
— Olha, quer saber? Se é a verdade que quer, precisa estar pronto para
ouvi-la. — Eu me destapei, irritada por precisar das meias, da capa e da
ajuda dele para escapar de otomanos enfurecidos. — Pois aí vai: eu fui
enviada para cá contra a minha vontade, por motivos que não sei. Minha
irmã e meu… cunhado me mandaram para cá. Eu me enfiei em um
problema de proporções incontornáveis no presente, e por causa dessa pedra
idiota — mostrei a ele o colar discreto, com a pedra roxa, sob o moletom
—, acabei parando aqui.
Aaron me encarou por um tempo e precisei controlar um tremor gelado.
Deus, ainda se queimavam mulheres na Europa nessa época.
— Considera-me um tolo? — ele perguntou finalmente. — Um parvo?
Mesmo depois de ter salvo a sua vida?
— Salvo a minha vida? Fui eu que salvei a sua! E como me paga? Você
me prende nesse fim de mundo, sendo que tudo que quero é retornar para o
lugar de onde vim!
— Para Trípoli? Constantinopla? Talvez os otomanos tivessem vindo
para matar a espiã antes dela contar tudo o que sabe. Como aqueles homens
a acharam aqui?
— Como vou saber? — Ergui os ombros, curiosa para que ele me
respondesse aquilo. — Nem eu mesma sabia que acabaria nesse fim de
mundo! Desde que cheguei, só consegui me comunicar com você e com
aqueles freis esquisitos! Estou tentando dizer que esse não é o meu tempo,
mas você não precisa acreditar em mim. Apenas me leve para as pedras e eu
cuido do resto, está bem?
Assim esperava, pelo menos.
— Pessoas não vem de outro tempo, senhora. Elas vêm de outro lugar.
— Não me diga! Estou tão surpresa quanto você, acredite! — Alisei a
pedra, sentindo-a estranhamente morna ao tato.
— Sua sanidade me preocupa, e agora que matou três homens, um
pouco mais.
— Eu não queria matar ninguém! Aconteceu. Eu só… — A voz de
Cristopher se infiltrou na minha mente como a água por entre aquelas
fendas: nas batalhas, não pense, Sabrina. Só aja. — Eu só agi — completei.
— Você agiu, e sem pensar — ele concordou. — Como qualquer
soldado treinado faria.
Deus, Cristopher havia me instruído como a um soldado. Ele sabia que
eu chegaria ali e precisaria lutar. Como pode me esconder algo dessa
magnitude?
O silêncio recaiu novamente sobre nós, e por um longo tempo
permanecemos calados.
— De que ano acredita vir?
— Do século XXI.
Aaron soltou um grunhido de descaso.
— Isso é impossível.
— Por que perguntou, se não acredita em mim? — resmunguei.
— Porque estamos no século XVI!
— Deu para perceber. — Desci os olhos por ele, reconhecendo o
detalhe dos discretos bordados na gola da camisa, no estilo de calças e das
botas. Assisti todos os filmes que Isla produziu sobre aquele século — que
ela e Cristopher me obrigaram a assistir mais de uma vez.
Só então me dei conta de algo.
— Ai, meu Deus. O Cerco. Em que ano estamos?
— No ano do Senhor de 1564.
Minha respiração foi interrompida no meio. Em 1564? Se o mês era
dezembro, estávamos a poucos meses do Cerco. Cheguei a abrir a boca para
falar aquilo, mas parei. Os filmes de viagem no tempo sempre diziam que
não se podia contar demais sobre o futuro, ou eu poderia me meter em uma
imensa confusão. Era melhor manter a boca fechada.
Que merda, que bagunça! Como esconder algo assim?
— Já contei o que queria saber. Vai me levar amanhã para o círculo de
pedras? — perguntei, precisando insistir na ideia de partir. Eu queria estar
ali quando a guerra começasse.
Os olhos frios deixaram meu rosto e voltaram a mirar a fogueira,
inertes. Assim, parado e irritado, suas feições não tinham qualquer traço
suave. Ele parecia uma estátua não finalizada, ou os primeiros traços de um
retrato.
— Não está me contando tudo. Você foi treinada. Tem mira e reflexos
rápidos. O homem caído na torre estava no seu encalço. Como conseguiria
pegar o arco na estante, encaixar a flecha no fio e atingi-lo antes que ele a
impedisse? Isso requer treinamento.
Fui encolhendo o corpo a cada palavra dura e verdadeira.
— Estão em guerra no futuro?
Neguei, sentindo a pedra arrastar atrás da cabeça.
— Como sabe então manejar tão bem uma arma?
Como não respondi, ele sacou a faca da cintura e apontou para mim.
Como fiz antes, levantei o punho esquerdo e empurrei sua mão com força
para longe. A lâmina caiu fazendo barulho no chão de pedra. Aaron já
parecia esperar aquela reação, e não ficou com medo quando peguei a faca
com a outra mão e apontei para ele.
Tudo aconteceu tão rápido que eu mesma me espantei. Aaron não se
moveu, mesmo com a faca apontada para o seu pescoço. Ele queria apenas
provar um ponto, e provou.
Não consegui evitar. Cristopher me ensinou a reagir.
No entanto, enquanto eu o olhava com um misto de medo e assombro,
Aaron observava atentamente a forma como segurava a empunhadura. Meu
cunhado sempre me disse que pessoas sem força, como eu, deveriam
segurar adagas e facas para ferir o oponente de cima para baixo, e não como
passávamos manteiga no pão, por exemplo, de baixo para cima.
— Eu fui treinada — confessei ao ver que segurava a faca como
Cristopher me ensinou.
Abaixei a arma e a entreguei de volta, voltando a recostar a cabeça na
pedra.
— Por quê? — Aaron questionou.
Porque meu cunhado queria que eu viesse preparada para cá.
Chacoalhei a cabeça, sem conseguir aceitar aquela verdade. Meus olhos
se encheram outra vez ao pensar no que minha família fez comigo.
Você nos pediu para não dizer nada.
Procure por Aaron.
Foi sua escolha permanecer no passado.
Voltei a me encolher sob a manta, abraçando os joelhos. Não conseguia
acreditar que o que estava acontecendo era real, que Cristopher premeditou
essa coisa de viagem ao passado, esperando que eu ficasse ali — na guerra,
ao lado daquele homem bruto.
Aaron não puxou mais assunto, nem tentou me acalmar. Tampouco
esperava que fizesse isso. Com o silêncio se estendendo, não restou nada a
fazer a não ser me deitar e aguardar o sono vir. Adormeci de lado, torcendo
para que amanhã o cavaleiro se mostrasse honrado e cumprisse o
prometido. Então, eu iria finalmente embora.
13
A REVELAÇÃO
AARON

E u a velei durante a noite toda, assombrado pelas coisas que vi e ouvi.


Quem era aquela mulher?
E por que não conseguia parar de olhá-la?
Ela não podia vir do futuro. Deus não permitia curvas no tempo ou
alterações no destino. Ela vinha de outro lugar — isso eu sabia. O século
XXI era algo longínquo demais para ser real.
No dia seguinte, quando Sabrina acordou, disfarcei que passei a noite
toda vigiando-a. Ela me ajudou a dobrar a manta e a deixar as coisas como
as encontramos ao chegar, já que outro cavaleiro da Ordem poderia precisar
do abrigo em outro momento. Mais tarde eu reporia as castanhas, as meias e
o sapato que ela agora usava.
Segui na frente, atravessando a caverna com passos firmes e pegando o
caminho escuro que levava à saída. À medida que caminhávamos, a luz ia
crescendo como a boca de um fosso. A maré havia regredido e foi fácil
alcançar a praia. Vimos, detrás de uma pedra, um barco solitário pendular à
deriva, indicando que ninguém voltou para pegá-lo. Fiquei mais tranquilo
ao me certificar que os três otomanos da noite passada haviam chegado
sozinhos nele, ou o barco não estaria mais ali.
Subimos as escarpas sem trocar palavras e encontramos tudo vazio;
apenas o cavalo pastava calmamente perto do estábulo. Sabrina vinha atrás
de mim, os braços finos apertados contra o corpo, observando o estrago que
fez.
Dois homens continuavam estirados no pátio, as expressões de espanto
congeladas nos rostos. Passei por cima do terceiro, no chão da torre, e subi
as escadas até o quarto no andar superior. Olhei com calma a cama estreita
no centro, a mesa e a cadeira de madeira opaca e os objetos sobre elas.
Nada parecia mexido. O baú onde colocava meus poucos pertences estava
fechado, e minhas peles continuavam dobradas e empilhadas no canto. O
quarto árido, um espelho da vida que levava, não fora mexido.
Aproveitei para olhar para o mar pela janela, constatando o que já tinha
visto na praia: não havia galés ou navios no horizonte. Desci, encontrando
Sabrina sentada em um canto, os olhos fixos no rosto do morto.
— Sei que precisa de mais tempo para se recuperar, mas precisamos
conversar sobre o que disse ontem à noite — falei, começando a encher o
bornal com suprimentos para a viagem. Cantil com água, uma manta de lã,
lascas de pão. O que ia achando, ia enfiando na bolsa.
— Não tenho mais nada para contar — ela murmurou e eu soltei uma
risada seca. Isso é o que você pensa. Botei a chaleira com água no fogão,
atiçando as brasas para alimentar as chamas. A bebida otomana a
incentivaria a compartilhar mais verdades.
Quando ficou pronta, ela aceitou a caneca, encolhendo-se novamente na
cadeira.
— Vou resumir tudo o que sei sobre você e espero que una todas as
pontas, ou eu mesmo farei isso.
Sentei-me na frente dela, encarando-a com dificuldade. Era mais fácil
olhar para o seu rosto adormecido. Desperta, sua delicadeza mexia de modo
estranho comigo. Agitava meus nervos, badalava meus sinos.
— Você foi encontrada perto das pedras antigas do sul. Estava
machucada, com um galo na cabeça, um hematoma no rosto e marcas de
dedos ao redor do pescoço. Tinha no bolso traseiro uma adaga com o meu
nome gravado na lâmina, bem como “Sabrina de Landa”, mas você afirma
que o sobrenome não é seu. Além disso, os monges me disseram que
mencionou outro nome durante a sua recuperação: Cristopher. Muito me
interessa saber quem é esse homem. — Encarei-a desconfiado, mas sem
mencionar que eu também conhecia um Cristopher que me era muito caro.
— Não me lembro do que falei — ela disse, escondendo o rosto dentro
da caneca.
— Você repetia o nome Cristopher e outra palavra incomum: isla.
Os olhos da cor da bebida escura encontraram os meus.
— Vou dizer agora o que concluí, Sra. Ruedas. Acho que o Aaron da
faca seja eu, assim como acredito que o objeto é meu. — Ela estremeceu de
leve e imaginei que não fosse só devido ao frio. — Mas não acho que sou o
Aaron marcado na sua pele.
Desci os olhos até a aliança em seu dedo, e ela fez o mesmo, calada.
— Creio que Aaron seja o homem que lhe deu essa aliança. Espero
apenas que ele não seja o dono das manchas de sangue na blusa ou dos
machucados na sua pele.
Ela abaixou a caneca.
— O Aaron da tatuagem é uma criança — ela explicou, devagar. — O
filho mais velho de Cristopher e Isla, que é o nome da minha irmã. — Ela
relanceou os olhos até os meus, mas o olhar não perdurou. — Já as marcas
no meu rosto e no pescoço são do homem que me deu essa aliança.
Enquanto ela voltava a beber o líquido amargo, moí os dentes dentro da
boca. Que desgraçado seria capaz de tocar em uma criatura tão frágil?
Afastei os pensamentos improdutivos e retornei ao que interessava.
— Também mencionou um cerco — continuei, notando que a palavra
pareceu sobressaltá-la. — Do que estava falando?
Ela se atrapalhou ao pousar a caneca na mesa.
— Por favor, Aaron, já contei tudo que queria saber. Sou daqui, apenas
de outro tempo. Nunca tive nada a ver com os otomanos. Se quer saber, na
minha época, o império deles acabou faz tempo. Só preciso de ajuda para
retornar para casa. Não pertenço a esse lugar e você também já notou.
— Sinto muito, Sabrina — Endureci, ciente de que as coisas tinham se
complicado. — Não posso mais levá-la até onde quer ir sem antes perguntar
ao governador por que diabos é tão importante. — Quando ela ameaçou
reclamar, pedi com um gesto que me deixasse terminar. — Eu nunca quebro
uma promessa e pretendo cumprir esta, mas terei que adiar a ajuda. Não
esperava que fôssemos atacados, nem que você me daria uma explicação
dessas. Prometo levá-la até onde precisa, mas agora terá que ir comigo até
São Ângelo.
Sabrina balançou a cabeça, negando. Ela sabia que tinha se enfiado em
um problema maior. Continuei, mantendo a voz calma:
— Há algo acontecendo na ilha e preciso reportar a situação ao Grão-
mestre.
— Você prometeu que me deixaria partir!
— Isso foi antes do ataque.
Sabrina passou a mão no rosto, esfregando os olhos. Então, negou
novamente.
— Não pode estar pensando em contar que venho do futuro. Não
acreditarão em você! — A voz dela ganhou um tom histérico. — Não
acreditarão em mim, e serei, sei lá, queimada em uma fogueira por causa
disso! Entenda, Aaron, eu não sou ninguém, apenas uma mulher perdida no
lugar e no tempo errado! Já imaginou o que pensarão de você ao contar essa
história?
Ela continuou negando, mesmo depois que me levantei e continuei os
preparativos para a partida. Não insisti mais no assunto. A experiência me
ensinou que o tempo era um dos muitos elementos ao meu favor. Eu podia
passar o dia inteiro à espera da sua revelação sem deixá-la ansiosa ou
apressá-la, porque sabia que o silêncio era intolerável e as pessoas faziam
de tudo para preenchê-los com palavras — e na maioria das vezes, com
verdades.
Sabrina falaria se eu lhe desse espaço e tempo.
Em silêncio, e ciente de que ela não falaria enquanto não desse cabo nos
mortos, arrastei o que jazia na cozinha para fora até a borda do penhasco,
buscando em seguida os outros no pátio. Então chutei um a um
despenhadeiro abaixo, sem me dar ao trabalho de ver as ondas levá-los.
Quando voltei, ela estava diferente.
— Aaron… — ela disse assim que entrei. — Sei que não pode, ou não
quer, mas por algum motivo, Cristopher achou que você me ajudaria.
— Cristopher? Você diz o marido da sua irmã?
Ela negou. Então assentiu, confusa. Fechei a porta e interrompi a
ventania gelada. Suas mãos abraçavam a caneca agora vazia e os olhos
estavam vagos em algum ponto da mesa. Ela parecia incerta em continuar,
mas o fez mesmo assim.
— Haverá em breve um ataque.
Não sei o que a fez mudar de ideia sobre revelar o resto. Talvez tenha
sido a inevitabilidade das minhas decisões, não sei. O importante era que
estava falando.
Ela olhou para cima, cada músculo do rosto bonito crispado.
— Céus, eu não deveria sequer estar mencionando isso, porque tudo o
que revelar vai se virar contra mim, mas por razões que não entendo… —,
ela baixou o rosto e seu olhar me segurou no lugar, me fazendo entender
pela primeira vez o que era ser acuado, e não acuar os outros — fui enviada
para passar essa mensagem. Na verdade, fui treinada para isso.
Ela chacoalhou a cabeça como se censurasse sabe lá quem a treinou.
Puxei a cadeira devagar, atento aos mínimos gestos. Nada deveria
assustá-la agora.
— Você poderia ser mais clara?
O que Sabrina estava dizendo era muito sério, embora soasse fantasioso.
— Vocês serão atacados — ela repetiu devagar, tentando ordenar as
palavras. — Será em breve. Era isso que Cristopher queria que eu fizesse,
eu acho. Que alertasse vocês. — Seus cílios escuros e longos se ergueram, e
encará-la causou um estardalhaço silencioso em meu peito. — Na verdade,
acredito que o seu irmão queria que eu alertasse especificamente você.
— O meu… — Balancei a cabeça. — O que meu irmão tem a ver com
isso?
— Foi ele quem me enviou para o passado.
Por longos segundos minha mente ficou em branco.
Se fosse um homem a me dizer aquelas mesmas coisas, ele estaria
deitado de bruços, amarrado e prestes a levar uma surra na sola dos pés.
— Meu irmão está na Sicília — respondi, seco.
— Ainda — ela devolveu, baixo.
Aquilo era completamente infundado. O suposto papel do meu irmão
poderia ser averiguado mais tarde — ela pode ter ouvido os monges falarem
sobre nossa relação próxima e estar usando Cristopher para me
desestabilizar. No momento, precisava saber mais sobre essa possível
invasão. Isso sim, eu acreditava agora, podia acontecer.
— Como sabe que seremos atacados?
— No futuro haverá livros que contam o que aconteceu aqui, em
detalhes. Muitos livros, na verdade. — Ela pegou ar. — Saberemos quase
tudo o que há para saber sobre Malta e seus conflitos, principalmente sobre
o Cerco. Aqueles homens que apareceram ontem estão estudando as defesas
da ilha. Aprendemos nas escolas que vários desses barcos visitaram a costa
nos meses anteriores ao ataque, procurando portos onde atracar, estudando
nossas fortalezas. Constantinopla está se preparando para essa investida há
muitos anos.
— Por Deus, mulher, fale mais devagar. Não entendo tudo o que diz! —
Eu deveria ter soado calmo, mas minha voz saiu ríspida e ansiosa. Pelo que
estava entendendo, algo imenso aconteceria em breve. Algo que poderia
mudar tudo. — De quanto tempo estamos falando?
— Estamos em dezembro de 1564, certo?
Assenti, inquieto.
— Cinco meses. Eles chegarão em maio.
Dava para ver em cada gesto e expressão da face de Sabrina que ela não
estava satisfeita com o que revelava. Aquela desconhecida estava afirmando
que em cinco meses seríamos atacados. Isso era uma alegação muito grave.
— Quem virá com eles? Quantos serão? Dragut virá comandando-os? O
que mais sabe sobre isso?
— Dragut Reis — ela assentiu, adicionando: — Junto com Piali
Padscha, Mustapha Pascha — recitou dois nomes turcos bem conhecidos
dos Cavaleiros. — Lembro deles porque o último foi interpretado pelo
Antônio Banderas.
— Antônio quem? Também é comandante da frota turca?
Sabrina sorriu de leve e fez um gesto para desconsiderar o último nome,
mas sustentou a vinda dos outros três. Em choque, só conseguia pensar no
que todos sabíamos há tempos: uma hora os otomanos chegariam. Se
fôssemos pegos despreparados, seria um massacre da população inocente da
ilha.
— Como sabe disso tudo? — perguntei, assombrado.
Sabrina só me encarou com firmeza. Então, como uma pedra que cai do
céu, a realidade me acertou trazendo uma pontada de dor nas têmporas: ela
vinha do futuro, apenas sabia. Assim como nós estudávamos as histórias do
passado, as pessoas no tempo dela tinham nos estudado.
— Aaron, precisa jurar por tudo que é mais sagrado que manterá
segredo sobre Cristopher. Ele não pode saber quem sou ou de todo o resto.
Nosso futuro depende disso ou tudo poderá mudar. Compartilhei essas
informações porque seu irmão me disse que me ajudaria e que você é um
homem honrado. Promete que manterá segredo?
Ignorei seu pedido, concentrado no que interessava agora.
— Preciso saber o que acontecerá com Malta. — Minhas mãos agora
estavam sobre a mesa, perto das dela. O contraste entre ambos os pares era
assustador: as dela eram finas e delicadas, como mãos de fada. As minhas,
ásperas e grossas, como as de um ogro malcuidado.
— Malta resistirá até o fim. — Ela recolheu os dedos, desconfortável,
voltando a abraçar a caneca. Demorou alguns segundos, mas, talvez
entendendo que dizer apenas aquilo era vago, completou: — Será um
massacre, Aaron. Os otomanos bombardearão São Elmo durante um mês. O
forte cairá, mas será o único. Eles não conseguirão tomar o resto da ilha.
— São Elmo cairá? — A informação me deixou completamente
desorientado.
O que aquela mulher era? Uma feiticeira? Uma profeta? Ou só uma
viajante do futuro, como dizia ser?
— Quantos de nós morrerão?
Sabrina fechou os olhos, pensativa, então os reabriu e respondeu:
— Por volta de mil e quinhentos, se me lembro bem.
— Mil e quinhentos o quê?
— Cavaleiros da Ordem.
Recostei as costas na cadeira, sem enxergar mais nada. Seríamos
atacados pelos otomanos em cinco meses. Mil e quinhentos dos nossos
morreriam. Como isso podia ser verdade?
— Valette saberá sobre o ataque. Talvez já saiba — ela murmurou,
ciente de que estava pisando em um terreno perigoso. — Ele ouvirá dos
seus espiões que os inimigos estão se preparando para a investida.
— Claro que ele não sabe. — Minha resposta saiu ríspida. Ninguém
estava se preparando para nada. Se estivessem, eu saberia.
Corri os olhos por Sabrina sem entender o seu papel naquilo, inquieto
por imaginar que pudesse ter razão.
— Os livros contam que ele sabia. Que a informação ajudou vocês a se
prepararem até maio. Terão tempo de consertar o que está quebrado, juntar
provisões e enviar mulheres e crianças para a Sicília. Vocês estarão prontos
quando eles chegarem.
Nada disso estava acontecendo. Deus, nós tínhamos apenas cinco
meses. Foi ali que entendi que podia pensar depois no absurdo da situação.
No momento, precisávamos agir.
— Levante-se — ordenei. — Temos que ir a São Ângelo,
imediatamente.
— Em Valeta? — ela perguntou, já rodeando a mesa para me obedecer.
— Onde? Não sei o que está dizendo. Temos que ir ao forte para falar
com Valette. Ele precisa ouvir o que me contou.
14
O GOVERNADOR
SABRINA

C ontar o que eu sabia sobre o Cerco não foi algo que fiz por impulso.
Pensei longamente no assunto durante a noite, enquanto fingia
dormir, e tomei a decisão ao ver Aaron jogar aqueles três homens
mortos do penhasco. As informações que eu possuía podiam salvar pessoas.
Talvez abrir o jogo sobre a guerra equilibraria a matemática de ter tirado
três vidas — talvez até mesmo uma quarta — e, quem sabe, me devolver a
tranquilidade na alma. Se salvasse pelo menos a vida de Aaron, me sentiria
menos mal.
As vidas de Aaron e de Cristopher, me corrigi, tentando ver a
circularidade da situação. Meu cunhado vinha desta época, e, por razões
que jamais entenderia, me mandou para cá para ajudar o seu povo e o seu
irmão. Isso era tudo que eu podia concluir no momento. Qualquer outra
conjectura seria apenas isso: uma suposição. Além disso, a frase “você é o
início de tudo”, que Cristopher me disse naquela noite, não saía da cabeça.
Ele depositara esperança em mim, por mais incompreensível que isso
soasse.
A cavalgada pelo interior da ilha até São Ângelo foi feita com outros
olhos. Nessa viagem, não estava mais sendo carregada contra minha
vontade ou fugindo, mas indo de encontro à história. Ainda não conseguia
acreditar que conheceria Jean Parisot de Valette. O homem que deu o nome
à capital, chamado por muitos, depois do Cerco, de Escudo da Europa.
Deixei os pensamentos e o medo de lado para apreciar os arredores. O
interior da ilha era cortado por estreitas estradas de terra e poucos vilarejos
espaçados. O caminho seguia cheio de pedras e a vista do mar era de tirar o
fôlego. Se Aaron não tivesse usado mais uma vez sua capa para me
proteger, o vento teria me congelado. Porém, por mais que fosse agradável
sentir o calor do seu peito contra as minhas costas, o silêncio dele era
enlouquecedor. O homem simplesmente não falava. Depois da conversa na
torre, Aaron se fechou em um lugar inacessível e não retornou. Eu já tinha
notado essa capacidade que tinha de estar presente quando queria e, de
súbito, isolar-se dentro de si. No momento, ele estava tão distante de mim
quanto um homem do século XVI podia estar de uma mulher do século
XXI.
Mas não era exatamente isso que Cristopher e Isla eram? Um homem
do passado com uma mulher do futuro?
Aquilo fazia muito sentido, agora. O sotaque inexplicável do meu
cunhado, suas eternas visitas à sede da Ordem dos Hospitalários, onde
adquiriu a cidadania maltesa, o mistério sobre seu passado… Por que minha
irmã nunca me disse de onde — de quando — ele vinha?
Continuei a questionar muitas coisas enquanto acariciava a pedra
escondida por baixo do moletom. Por que justamente eu fui enviada para
aquela época, sem uma única explicação do que fazer? Contava apenas com
a minha bússola emocional para me guiar aqui, e ela sempre apontava para
o amor que sentia por Isla e Cristopher.
Consciente do calor atrás de mim, me perguntei se talvez não fosse com
esse Aaron que Zach insistia em dizer que fui casada. Pensar naquilo me
fazia pular para conclusões que não estava preparada para aceitar. Não
podia enveredar por esse caminho. Eu ia voltar para o futuro e enfrentar o
que aconteceu, estivesse o marido vivo ou morto. Além do mais, não estava
ali para suspirar por homens de um metro e noventa, porte de guerreiro e
olhos verdes profundos.
Encolhi discretamente as pernas ao sentir as suas contra as minhas,
consciente do roçar dos braços maciços ao meu redor, do hálito morno que
chegava no meu pescoço e da força dos seus músculos. Um arrepio me
tomou por inteiro, como um aviso. Precisei chacoalhar a cabeça para
afugentá-lo e voltar a focar no balanço do cavalo.
Não. Aquilo era tudo um delírio de Zach. Eu nunca viveria no passado,
e Cristopher e Isla sabiam disso. Minha missão envolvia apenas avisar
Aaron do perigo e depois partir para casa. Eu não saberia viver sem o
conforto da minha cama e do mundo onde havia descargas sanitárias,
delivery e internet.
No entanto, quando lembrava dos últimos dias, o brilho do meu tempo
desaparecia. A casa luxuosa nunca foi o meu lar, nem o homem com quem
me casei, alguém que sentiria falta. Nunca soube quem ele era de verdade, e
parece que, por consequência, nunca consegui enxergar quem eu era.
Embora a desejasse muito, minha vida nos últimos tempos era suportada à
base de antiácidos que minimizavam os efeitos de viver em eterna tensão.
Daquela vida eu não sentia falta.
Eu queria outro futuro.
Fechei os olhos, me concentrando no zumbido dos poucos insetos ao
redor, no som do casco do cavalo moendo os pedregulhos e na respiração
masculina atrás de mim. Senti o vento soprar no meu rosto, certa sobre uma
coisa: no novo futuro, eu seria livre. Não sentiria mais medo de ser quem eu
era, de falar o que queria, de lutar pelo que me importava. Quando voltasse,
eu me divorciaria, pagaria legalmente pela facada que dei no meu marido e
depois me mudaria para bem longe. Então voltaria a ser útil, a trabalhar,
talvez até mesmo conseguiria um dia amar novamente.
O sol finalmente vazou pelas nuvens e iluminou o mar azul. Então
percebi que se eu removesse o pavor de estar ali, o incômodo pela presença
daquele homem calado atrás de mim e o medo do que ainda estava por vir,
o que sobrava dentro de mim era um estranho e inexplicável sentimento de
liberdade.
— Você voltou a respirar.
Olhei para trás. O queixo masculino estava erguido, a linha da barba
escura correndo por todo o maxilar.
— Como? Não entendi.
— Você não estava respirando antes.
— Claro que estava. — Voltei a olhar para frente, tomada por um novo
arrepio. — Se não estivesse, não estaria viva, não é?
Ele soltou um ruído divertido.
— Tem a ver com a sensação de estar vivo — ele explicou e precisei me
virar de novo. — Acontece com muitos soldados depois de uma batalha.
Você acha que vai morrer, então sai vivo daquela que achou ser sua última
noite. O que acontece no dia seguinte é isso; nós respiramos de um jeito
diferente.
Voltei a olhar para a paisagem, pensativa, sentindo uma lufada de vento
remexer meu cabelo. Precisava admitir que estava respirando como há
tempos não fazia.
Talvez Aaron tivesse razão. Até o momento eu achava que só existia a
culpa pela noite em que feri Zach, mas percebi que também havia alívio. Eu
tinha me libertado. Eu reagi e me salvei, e isso não era pouca coisa. Era
muita coisa para quem só vivia com medo.
A chegada à cidade foi marcada por surpresas. Onde deveria haver
Valeta, a capital cheia de prédios e pessoas nas ruas abarrotadas de turistas,
via-se apenas poucas casas espalhadas por ruas emporcalhadas de dejetos e
lama gelada. Aldeões imundos passavam por nós, escondendo-se ao nos
verem. Quando o terceiro homem saiu apressadamente do caminho,
abaixando a cabeça e desviando o olhar, encarei Aaron.
— Por que estão fugindo da gente?
— Não tem nada a ver com você.
— Tem a ver com você?
Aaron parou o cavalo, olhando sério para os que permaneciam nas ruas
e nos observavam.
— Minha reputação não é das melhores — ele explicou, como sempre,
lacônico.
A visão dos olhos verdes e gelados me fez engolir em seco.
— Reputação pelo quê?
— É melhor não saber, Sabrina.
Aaron parou diante de uma choupana de pedra, saltou do cavalo e bateu
na porta estreita de madeira. Um homem de roupa encardida o atendeu e
eles conversaram brevemente em um dialeto indecifrável para mim. Aaron
estendeu a mão para me ajudar a descer do animal. Quando aceitei o apoio,
suas mãos me envolveram pela cintura e dedos quentes escorregaram pela
minha barriga, fazendo meu moletom subir discretamente. Pisquei,
arrepiada pelo contato de pele contra pele, vendo que ele também parecia
sem jeito.
Seguimos o homem em silêncio casa adentro, Aaron na frente e eu
atrás, abraçada novamente à sua capa. Atrás dele, notei como andava um
pouco curvado, porque quase não cabia sob o teto baixo. A casa continuava,
estreita e irregular, cada vez mais escura à medida que avançávamos.
Tinha visto muitas pinturas sobre moradias antigas, lido vários livros de
diferentes épocas, mas nada se comparava a ver as coisas. Fiquei
impressionada com os móveis simples de madeira, os pequenos enfeites
artesanais de palha, as tapeçarias feitas em tear manual e os cheiros que
pairavam no ar, como o de lenha queimada e a comida sobre o fogão de
tijolos. Detalhes que nem em mil anos conseguiria imaginar apenas com
pinturas, livros e filmes.
No fundo da residência, uma mulher bordava sentada em uma cadeira
de encosto alto. Uma janela estava aberta atrás dela e a luz inundava o
ambiente. Ela ergueu o rosto, ouvindo o homem que nos guiava para dentro
da casa e que deveria ser o seu esposo. Assim que percebeu nossa presença,
os olhos cansados se fixaram em mim. Não consegui entender uma única
palavra que trocaram.
— Quem são eles? — sussurrei para Aaron.
— Essa mulher costura. Você não pode circular pela vila com essas
roupas masculinas. — Ele desceu os olhos por mim como se pudesse ver a
calça jeans por baixo da capa. A mulher se levantou e tirou algo do baú,
deixando claro no tom dos resmungos que não gostou de ser interrompida.
Quando ela levantou o traje, reconheci imediatamente o que era. Ela
apalpou e ajeitou o capuz largo e arredondado, endurecido pelo amido e as
estruturas de osso de baleia, antes de entregá-lo para Aaron. Era uma
faldetta, o traje típico da ilha, usado no interior até meados do século
passado — do meu século passado, no caso. A túnica, uma mistura de
vestido com capa, era comum nas ilhas mediterrâneas e perfeita para
esconder roupas inapropriadas. A que a dona da casa nos mostrou era azul
bem escura e parecia feita de algodão, porém mais rústico. Aaron pegou a
peça, agradeceu e deixou a casa, jogando ao homem uma moeda antes de
sair.
Já na rua, Aaron parou abruptamente e se virou para mim. Com sua
economia rotineira de palavras, indicou com o queixo que deveria estender
os braços, o que fiz de pronto. Ele me vestiu com a peça e ajeitou o capuz
ao meu redor. A parte inferior chegava até a panturrilha e as mangas eram
bem largas. Passei as mãos pelo tecido frouxo ao redor do corpo e do
quadril, encantada. A última mulher que usou uma dessas na ilha foi há
quase cem anos (contando do meu tempo), e chegou a virar notícia nos
jornais quando morreu e a tradição se foi com ela.
— Quando caminhar, segure a borda para esconder as calças. Pedi que
eles me arrumassem alguns trajes apropriados para você, mas só ficarão
prontos mais tarde. — Aaron desceu as vistas por mim, tentando se manter
inexpressivo. O que vi em seus olhos, no entanto, me perturbou. Estava
claro que minha roupa o incomodava, mas havia algo mais.
— Depois da reunião voltaremos aqui.
Assenti em silêncio, arrastando a mão pelo moletom para tentar abaixar
o arrepio da pele. Não gostava de sentir aquele alvoroço todo sempre que
ele olhava para mim.
Enquanto caminhávamos, tentei memorizar tudo o que via. Outras
mulheres vestiam a faldetta, de modo que eu não destoava delas, a menos
que me olhassem demais. Era estranho não ter um celular para fotografar o
que encontrava de especial. Teria que me lembrar de tudo isso mais tarde,
detalhe por detalhe.
Notei, mais de uma vez, cavaleiros cumprimentarem Aaron com
reverência e alguns aldeões cochicharem sobre ele ao passarmos. Aaron
devia ser alguém respeitado na Ordem, mas que também assustava as
pessoas. Bem, não podia negar que o homem tinha mesmo uma forma
arrogante de se mover e uma expressão sombria, e não dava para descobrir
no que pensava. Pelo eterno semblante fechado, deviam ser coisas pesadas.
Ao mesmo tempo, ele era cheio de uma força que eu desconhecia; uma
certeza que o acompanhava a cada passo, como se merecesse estar onde
chegou ou tivesse conquistado cada gesto de respeito que lhe destinavam.
Portas foram abertas quando alcançamos o imenso forte e ninguém perdeu
tempo questionando quem eu era, já que o acompanhava.
— O que fazia antes de se isolar na torre? — questionei, tentando
entender todo aquele respeito e medo nos olhares.
— Eu interrogava pessoas.
— Como um policial? — perguntei, mas como ele não entendeu, tentei
achar uma palavra mais antiga. — Um tipo de guarda, de… patrulheiro?
— Como torturador.
Diante dessa resposta, não tive coragem de perguntar mais nada.
— Mas não faço mais isso — ele adicionou, seco, indicando com um
gesto que eu deveria segui-lo.
Era impossível não ficar surpresa à medida que entrávamos na ancestral
fortaleza de São Ângelo, sede do governo de Malta na época. Ela parecia
diferente da construção que conhecia no futuro. Embora já datasse de um
século, a edificação estava bem mais conservada, visto que ainda não havia
sofrido o ataque do Cerco nem os outros que a ilha suportou durante os
anos seguintes. Ela era relativamente nova e tão imponente como ainda era
no futuro.
Fomos levados até a sala onde Valette, o famoso Grão-mestre da Ordem
de São João e governador da ilha, prontamente nos recebeu. Nem mesmo
Isla acreditaria em mim se eu contasse que conheci pessoalmente o
fundador da capital. Isso era o mais surreal de tudo o que tinha me
acontecido até agora... bem, tirando o ataque dos otomanos... E viajar no
tempo.
Sem voz, vi o homem que apenas conhecia dos livros de história saudar
Aaron como se fossem velhos conhecidos. E eram, pelo que entendi. Os
pais de Aaron e Cristopher eram de Mdina e conheciam Valette há muitos
anos.
Jean Perisot de Valette era alto, tinha cabelo escuro penteado para trás e
era tão bonito quanto os livros afirmavam. A pele era dourada, curtida pelo
excesso de sol da ilha mediterrânea e pelos anos em que trabalhou no mar,
ora como capitão da frota dos Cavaleiros, ora como escravo de piratas
otomanos. Seu olhar intenso e sagaz correu brevemente por mim enquanto
falava com Aaron, como se minha presença ali não fosse exatamente uma
surpresa. Minutos depois, o escritório foi esvaziado dos secretários e
assistentes. Quando me virei, percebi que só restavam nós três.
A sala tinha um teto abaulado e paredes de pedra amarela. Livros de
lombadas pretas e vermelhas enfeitavam as estantes e, sobre uma imensa
mesa de madeira polida, havia mais papéis, tinteiros e mapas estendidos
mostrando a ilha e o mar que a circundava. A luz entrava fraca por uma
janela alta de vidro, mas as velas ao redor ajudavam a iluminar o ambiente e
espalhavam um cheiro de cera, antigo e acolhedor.
Assim que os homens se calaram, o Grão-mestre caminhou na minha
direção. Ele vestia um doublet de cetim preto com mangas bufantes e uma
gola franzida, exatamente com as pinturas renascentistas que víamos nos
museus, além, claro, das típicas calças curtas que chegavam até os joelhos
com meias grossas por baixo.
— Então essa é a dama encontrada sem sentidos perto das pedras do
sul? — Valette perguntou a Aaron de maneira tranquila, a suavidade do tom
mal disfarçando a intensidade de sua personalidade. Era impressionante
como conhecíamos alguém pela voz: a dele era a que poucos líderes tinham.
— Sim, senhor.
Segurei o ar, subitamente temendo a mesma presença imponente que
tinha me fascinado segundos atrás.
— De onde vem, senhora?
A pergunta simples tinha uma resposta complexa. O que deveria
responder? A verdade? Seria um passo gigantesco e no escuro, sem saber se
o metro seguinte traria chão sólido ou abismo sem fundo.
Mais uma vez, segui a agulha que apontava para o coração.
— D-daqui mesmo, senhor.
O governador apertou os olhos, estudando a sinceridade das minhas
palavras, mas antes que me fizesse mais alguma pergunta, Aaron se colocou
entre nós.
— É melhor se sentar, Jean. É uma longa história.
15
O ENCONTRO
SABRINA

D urante a hora seguinte, Aaron contou ao governador tudo o que sabia


sobre mim. Onde fui achada, sobre a adaga suja de sangue e a
alegação de que vinha do futuro. Também mencionou a minha
tatuagem e deixou implícito que o sangue era de um dos homens que me
atacaram — e não o desmenti. Para meu alívio, como pedi, ele omitiu o
nome de Cristopher e o fato de que ele estava no futuro.
Pelo que entendi da conversa entre o Grão-mestre e o cavaleiro, fui
entregue a Aaron porque ele era bom em interrogar inimigos e, até que
provasse o contrário, seria considerada uma.
Curiosamente, Valette não demonstrou surpresa pelo relato ou
questionou a sandice sobre a viagem no tempo. No entanto, às vezes, os
olhos do governador desviavam da conversa e desciam por mim, parando
na manga do moletom rosa que aparecia sob o manto azul-escuro, voltando
então para a expressão tranquila de Aaron. Apenas seus dedos mostravam
algum tipo de reação: eles batiam cadenciados sobre o braço da cadeira, o
anel com o símbolo da Ordem se movendo a cada subida e descida.
Aaron finalmente contou sobre a investida dos três otomanos no dia
anterior — mas omitiu que fui eu quem os matei — além da minha
alegação de que Constantinopla estava preparando um grande ataque. Não
me escapou que a omissão sobre as mortes tinha como objetivo me
proteger. Aaron não queria que Valette me visse como um risco.
— Acha que os três faziam parte de uma expedição de observação? — o
governador perguntou.
— Tenho certeza disso, senhor.
— E essa senhora afirma que seremos atacados em breve pelos
otomanos?
Olhei para Aaron. Eles falavam rápido demais para compreender tudo,
mas aquela frase ficou bem clara. Aaron assentiu e respondi por ele:
— Sim, senhor. Duzentos navios chegarão em maio. — Minha voz tinha
uma segurança que poucas vezes eu sentira na vida.
Maldito seja você, Cristopher, que me fez decorar todas aquelas
informações.
O número silenciou a sala. Aaron não sabia desse detalhe, apenas que
seria uma frota grande.
— A senhora disse duzentos? — o Grão-Mestre insistiu.
Movi a cabeça devagar, esperando que aquele homem rústico, também
conhecido como “o flagelo da África e da Ásia” não me considerasse uma
feiticeira, uma bruxa ou outro tipo de oráculo do mal.
O silêncio na sala não terminava, embalado pelos olhares silenciosos
trocados pelos dois homens. Quando comecei a sentir a nuca úmida e as
mãos geladas, Aaron finalmente abriu a boca:
— Sei que tudo isso parece absurdo, Jean, mas pediu que eu a
interrogasse e o que descobri foi isso. Há algo na história da Sra. Ruedas
que… — ele pausou, continuando com cautela — que parece real, por mais
que não faça sentido.
Era estranho ver um homem sempre tão certo das palavras falhar na
busca delas.
O governador se ajeitou na cadeira e mais um extenso período de
silêncio se seguiu. Então ele pousou as mãos carregadas de anéis sobre a
mesa larga e olhou para mim de maneira tão firme que estremeci.
— Concordo que o que a Sra. Ruedas está dizendo beira o absurdo, mas
fatos são fatos. Ela tem razão sobre algo: há rumores de que os turcos estão
preparando uma campanha militar. Ouvi de carregadores que estiveram no
porto de Constantinopla e de escravos que fugiram de lá que alguma coisa
estava acontecendo, mas até o momento, não sabíamos o que pretendiam ou
para onde iam. O que está afirmando é que o destino dessa imensa operação
somos nós?
Engoli a saliva, sentindo meus nervos vibrarem na barriga.
— Sim, senhor.
— E, segundo Aaron, já deveríamos saber disso porque tenho espiões
em Constantinopla?
Assenti novamente.
— É isso que contam os livros de história. Que a Ordem… saberia com
antecedência sobre o ataque, por isso se preparou para a situação. O que foi
importante para a vitória — adicionei.
O Grão-mestre se recostou na cadeira.
— Não tenho espiões em Constantinopla, Sra. Ruedas.
Minha testa vincou. Como assim, não tinha?
— É isso que se conta no futuro, senhor. Que foi por causa deles que
conseguiu reformar a tempo as muralhas de São Elmo, avisar a população e
estocar provisões dentro dos fortes. Segundo os livros, tiveram tempo
durante esses meses de treinar camponeses para lutar. Enviaram mulheres e
crianças para a Sicília e reforçaram os muros que cercavam as cidades
principais. Tudo foi preparado para a chegada dos turcos porque souberam
da vinda deles meses antes do ataque.
A chegada das informações com antecedência foi o que permitiu os
preparos decisivos para a vitória e não havia livro que não atestasse esse
fato no futuro.
Valette trocou olhares com Aaron.
— Pelo jeito, acho que nosso espião acabou de se apresentar. — Valette
sorriu de leve para mim. — Ele só não vem de Constantinopla, como os
seus livros atestam, senhora, e sim do futuro.

Após algum tempo de conversa, fui colocada para fora da sala sob os
cuidados de três cavaleiros mal-encarados. Todos vestiam um tipo de
casaco curto acolchoado sobre camisas de linho com babados nas golas e
nas mangas, e aquela estranha calça balonê que só chegava até os joelhos,
de onde meias grossas, brancas, seguiam até os sapatos de sola de madeira.
A ordem que Aaron me deu era de permanecer em completo silêncio.
Ninguém deveria ouvir meu sotaque e desconfiar de nada.
Eu estava perplexa por muitas coisas (quem diria que o Grão-mestre
acreditaria na minha história?), mas principalmente pela acurácia dos filmes
que Isla e Cristopher produziram durante os anos. Eles haviam recriado
aqueles dias de maneira inexplicável. Os lugares, a linguagem, as bandeiras
e brasões pendurados nas paredes de São Ângelo e até a figura do fundador
da capital. Mal conseguia acreditar em como meu cunhado revelou ao
mundo que vinha de outra época e ninguém — nem mesmo eu —
conseguiu enxergar.
Acabei me sentando em uma cadeira disposta no imenso corredor.
Enrolada à faldetta, fechei os olhos. Sei que fazer tudo aquilo era a coisa
certa, mas não estava conseguindo enxergar a dimensão disso ainda — até
por que estava agora mais presa naquela enrascada do que vislumbrei no
começo. Aqueles homens não me deixariam mais ir embora.
Por que tinha que tentar ajudar? Por que não calei minha boca
grande? Arrastei as mãos pelo rosto, sabendo a resposta: porque eu nunca
me perdoaria por não ter colaborado.
Já estava começando a sentir meus pés gelados quando Aaron deixou a
sala. Ele tinha uma lâmina de suor na fronte e os olhos um pouco
arregalados. Parecia ter ouvido algo muito assustador, algo inimaginável, e
assim que pisou no corredor e me viu, estancou no lugar.
Levantei, sobressaltada.
Pela ruga entre as sobrancelhas grossas, eu sabia que tinha sido o
assunto da conversa particular. Alguma decisão sobre o meu destino havia
sido tomada e não deveria ser boa, nem para mim, nem para ele, pelo jeito.
— E então? — perguntei baixo. Meu papel naquela história estava feito,
certo? Eu precisava ir embora daquele lugar antes que a guerra estourasse.
Aaron olhou para os três homens parados no corredor e se colocou na
frente deles para tapar a visão do que me diria. Dava para ver que ele não
estava bem.
— Não posso deixá-la partir agora, Sabrina. Sinto muito.
— Mas você me prometeu! — Eu o cobrei com um rosnado baixo. Não
ia me esquecer de todo aquele papinho sobre honra e cumprimento de
promessas.
— Valette acredita em você. Ele acha que se ficar mais um tempo, pode
nos ajudar mais.
Arrastei as palmas frias pelo rosto, com vontade de bater em mim
mesma. Claro que o Grão-mestre acharia isso. Inacreditável era que ele
acreditasse em mim.
— Eu já contei tudo o que sei, Aaron. Você disse a ele que ganharão a
batalha? Que vencerão os turcos? É isso que importa, não é? Isso e os
preparativos anteriores à chegada deles.
— Fale baixo — ele ordenou, mas eu não conseguia me conter. Quando
Aaron ordenou que partíssemos da torre, soube que falar a verdade me
causaria problemas. Aqueles homens iam querer ouvir mais, conhecer mais
sobre o futuro, mas não cheguei a pensar que talvez me quisessem por perto
por… meses. Talvez até por…
Não, eu não poderia participar daquela loucura. Eu era uma garota da
cidade moderna, com o estômago prejudicado e que precisava de
antiácidos.
— Não pode me forçar a ficar para presenciar o que vai acontecer,
Aaron. Será um massacre.
— Não ficará para a guerra. Valette só quer conversar mais vezes com
você. Não agora, porque precisa se sentar com alguns homens de confiança
e inventar a existência de um espião para começar os trabalhos. Ele não
quer provocar o caos antes de ter um plano.
Aaron me puxou pelo braço até um canto distante, longe dos ouvidos
dos outros. A pressão da sua mão na minha pele me fez retesar. Quando
meu corpo ficou rijo, ele percebeu e logo me soltou.
— Para começo de conversa, o governador não pode dizer que ouviu
essas previsões de uma mulher, especialmente uma que diz ser do futuro.
No entanto, por motivos muito pessoais, ele acredita em você. — Seu olhar
indicava que o Grão-mestre confessara algo e aquilo atiçou minha
curiosidade. — O fato é que Jean não pode ignorar que fomos atacados
ontem. Parece que houve um incidente parecido na torre de Santa Maria.
Um dos vigias desapareceu, e achamos que ele foi morto por alguém. São
sinais demais para descartarmos.
Em seguida, sua voz ganhou uma rouquidão que ecoou discreta entre as
paredes mal iluminadas:
— E isso não foi tudo o que ele me disse.
— Tenho até medo de perguntar o que mais conversaram.
Por um segundo que pareceu durar uma eternidade, Aaron me encarou.
Ele parecia procurar as palavras certas, e a cada fração de tempo que não as
encontrava, crescia em mim uma expectativa cega.
— Ele disse que nós…
— Que nós o quê?
A conversa foi interrompida por uma voz alta que retumbou no corredor
como um trovão. Aaron arregalou de leve os olhos, observando alguém que
vinha pelo corredor.
— Aaron? É você mesmo?
Eu reconhecia aquela voz. Eu amava o dono daquela voz. Ao me virar,
vi uma das figuras mais acalentadoras do meu mundo caminhar com passos
firmes em nossa direção. Ele vinha com um sorriso largo e amigo, de braços
abertos. Meus olhos se encheram de lágrimas e a confiança sólida fez meu
coração se aquecer.
Cristopher.
16
A NOIVA
SABRINA

“P reste atenção, Sabrina, porque isso é muito importante.” A voz de


Cristopher voltou a se embrenhar nas minhas memórias. “Não
saberei quem você é, e não posso saber. Serei duro com você. Eu a
detestarei no momento em que a conhecer. Seremos nada mais do que
estranhos que não se gostam. Imploro que me perdoe por isso, querida.”
Lá estava eu de volta à noite da fuga, acompanhando sem reação a faixa
amarela da estrada surgir e desaparecer sob a luz dos faróis. Ao notar a
minha falta de reação, Cristopher bateu a palma no volante.
“Olhe para mim, Sabrina! Diga que está ouvindo com atenção!”
Não tive condições de entender muita coisa naquela noite. A mente
dava passeios sombrios até a inconsciência, onde o mundo ainda era calmo
e eu não precisava aceitar que esfaqueei meu marido.
“Não pode mostrar que me conhece, nem dizer a ninguém quem sou ou
onde estou nesse momento. Entendeu, Sabrina? Poderá confiar em Aaron,
mas ele também deverá manter segredo. Lembre-se da historinha da
borboleta, meu bem. Todo o nosso futuro será alterado, se você contar.”
Enxuguei uma lágrima discreta e me escondi atrás de Aaron, vendo-o
abraçar o irmão como eu gostaria de fazer. Lá estava o marido de Isla no
seu mundo, em seu elemento, vestindo as estranhas roupas coloridas e os
cintos apertados, a calça bufante e as golas espalhafatosas. Só de pensar em
quantos verões passei na companhia dele, amando ver o relacionamento dos
dois florescer, tinha vontade de voltar a chorar. Mas segurei a tristeza e a
saudade, me lembrando que era tudo temporário. Em breve eu estaria de
volta no presente e eu mesmo poderia abraçá-lo — logo depois que socasse
aquele nariz arrogante.
— Diga-me que voltou para a Ordem — Cristopher pediu alegre,
chacoalhando Aaron com gestos brutos.
— Não voltei — o outro respondeu baixo, cumprimentando um segundo
homem ao lado de Cristopher. — Estou aqui para tratar de um assunto com
Valette.
— Ah. — O cavaleiro loiro pausou, enfim notando a minha presença.
— E essa, quem é?
Evitei olhá-lo diretamente para não voltar a chorar, mas percebi que
esse Cristopher parecia dolorosamente jovem e sem a sombra que a dor da
guerra jogou sobre ele. Em que momento meu cunhado iria para o futuro?
Antes do Cerco? No meio? Não fazia ideia, mas pelo tanto que ele mostrava
saber sobre a batalha de São Elmo, só podia ser depois da sua queda.
— Esta é Sabrina, minha noiva.
Todos os rostos se viraram para ele, inclusive o meu.
— O quê? — Cristopher perguntou alto, abafando a minha surpresa.
Como assim, noiva?
Aaron evitou me encarar, mas eu estava pronta para repreendê-lo. O
silêncio se estendeu por tanto tempo que precisei conferir se Cristopher
ainda estava ali. Sim, estavam todos ali, mas tanto ele quanto o cavaleiro
esquisito ao seu lado pareciam chocados com a informação.
Bem, ninguém estava mais chocada do que eu.
— Noiva? — Cristopher soltou uma risada sem humor. — Mas… de
uma estrangeira?
A palavra “estrangeira” ressoou como desastre, revestida por uma
xenofobia que nunca ouvi o meu Cristopher soltar.
— Ela vem de Castela — Aaron revidou sem paciência, indicando estar
com pressa. — Irmão, preciso partir agora.
Cristopher negou, balançando a cabeleira loira e bagunçada.
— Não, espere. Você me apresenta a sua noiva e não diz mais nada?
Como ela veio parar aqui? Onde se conheceram? — Vi com o canto de olho
que ele me investigava. — E quando será o casamento?
— Quero me reunir em breve com você, mas não posso agora, está
bem? — Aaron estendeu o braço para mim.
Não consegui me mover. Aaron só podia estar brincando. Ele não podia
sair por aí dizendo que estávamos noivos! Eu era casada! Tinha uma aliança
na mão esquerda, caso ele não tivesse notado!
— Não sou sua noiva — grunhi baixo, pouco me importando com o que
os outros pensariam. Aquele homem precisava parar de me envolver em
situações que me prenderiam naquele tempo mais do que o necessário!
— Sabrina — Aaron me repreendeu, mas a reação de Cristopher e do
amigo nos fez parar de falar. Eles tinham uma expressão nojenta no rosto, a
boca aberta como se pronunciassem em conjunto um longo “ah” de
compreensão. Aqueles dois idiotas tinham chegado à conclusão mais
esdrúxula que alguém poderia chegar: se eu não era noiva, mas estava me
passando por uma, então, na sua lógica burra, só poderia ser uma prostituta.
Fechei o cenho e Aaron acelerou as despedidas.
— Eu o procurarei — Aaron assegurou ao irmão. — Prometo.
— Quando? — Cristopher abriu os braços, voltando a sorrir. — Acabei
de chegar de viagem. Vamos beber para comemorar o seu casamento!
Assim pode nos contar onde achou a sua futura esposa... — Ele afiou o
olhar para o irmão, acotovelando-o.
Urgh, que vulgar.
— Terei que recusar o convite por hoje — Aaron rosnou a resposta,
relanceando os olhos para mim. — Preciso voltar para a torre. Vamos, Srta.
Ruedas. — Ele insistiu com a história do braço, que finalmente aceitei,
caminhando ao seu lado.
Ao passar por Cristopher, quis erguer meu singelo dedo do meio e dizer
que contaria tudo a Isla quando voltasse.
— Ruedas? — A voz do outro cavaleiro, que até agora tinha se mantido
em silêncio, nos fez parar no lugar. Um arrepio subiu pela minha coluna
mesmo que eu não entendesse o motivo. — Oras, a senhorita é da família
Ruedas, das Espanhas?
Precisei me orientar por um instante. Nessa época, não havia a Espanha
como um país unificado, apenas alguns reinos espaçados, e a península
inteira era chamada de Espanhas. Para sustentar a mentira, assenti, vendo-o
abrir um riso debochado.
— Que coincidência fortuita. Também sou um Ruedas, mas de Aragão.
Um Ruedas de Aragão? O calafrio gelado aumentou, reverberando da
base das vértebras até o couro cabeludo. Senti a mão de Aaron se fechar no
meu pulso e me puxar sem dar explicação. Segui-o, olhando para trás
enquanto me perguntava se seria possível que aquele homem fosse um
antepassado de Zach. Chacoalhei a cabeça, espantando os pensamentos.
Seria coincidência demais.
Em uma das viradas de rosto, vi Cristopher me encarar com cara de
poucos amigos, como me avisou que faria. E, embora estivesse preparada,
doeu fundo não poder abraçá-lo e pedir ajuda.
Na hora seguinte, andamos para cima e para baixo, já que Aaron
aproveitou que estava na cidade para carregar o cavalo com mantimentos.
Durante todo o tempo em que abasteceu as cestas e bolsas de couro, fez
silêncio, como se tivessem costurado sua língua.
Eu também não queria conversar. A história do noivado tinha me
aborrecido. Sei que Aaron disse aquilo para evitar perguntas, mas devia ter
falado comigo antes. Eu entendia que não estávamos no século XXI e
mulheres não podiam simplesmente morar com homens sem ter o rótulo de
esposa, mas estar com ele daquela forma poderia me colocar em encrenca.
Mais encrenca.
— Vou buscar suas roupas na costureira. Não saia daqui — ele avisou
sem me dar chance de retrucar. Bem, eu precisava de um tempo a sós
mesmo. O reencontro com Cristopher havia mexido comigo um pouco mais
do que a história de noivado. A raiva ebulia sempre que pensava que ele
não tinha o direito de me mandar para cá. Não tinha!
Por que pensou que me interessava estar ali, naquela época? Por que a
polícia estava vindo e ele achou uma boa ideia me mandar para um século
diferente? Meu Deus, esse lugar estava prestes a explodir! Se Cristopher
queria que alguém avisasse aos amigos sobre a guerra, por que não voltou
ele mesmo e contou o que sabia?
Alisei minha escápula, onde tinha o nome de Aaron tatuado, me
perguntando se aquele seria o motivo. Será que Cristopher achou que talvez
pudesse rolar algo entre o seu irmão e eu?
Pff. Até parece.
Sentada em uma tora de madeira, olhei para o cavalo e me perguntei
quem estava me segurando ali, naquele lugar. Eu podia simplesmente
roubar o animal e fugir. O problema era que, sem saber como chegar ao
círculo de pedras, estaria à mercê de todo tipo de perigo. Além disso, algo
me dizia que Aaron me alcançaria antes mesmo que passasse dos limites da
vila.
Ergui a cabeça, vendo-o se reaproximar. Os olhos de águia estavam
novamente em mim. Aliás, Aaron não parava de me observar desde que
deixamos o forte.
Ele parou do meu lado e bateu de leve na minha perna com o pé.
— Peguei tudo. Vamos voltar para o norte.
— Por que preciso voltar para a torre? Se Valette acha que posso ajudar,
por que não ficar aqui?
Afinal, Ħaġar Qim era mais perto daqui do que de onde Aaron morava.
— Ele acha que você deve permanecer escondida.
— Se estarei escondida, por que então precisaria fingir que sou sua
noiva?
Aaron arrastou a mão no cabelo curto, investigando os arredores.
— Foi sugestão do governador dizer isso, está bem? Não foi ideia
minha. Também não gostei.
— Pelo que entendi, você não faz mais parte da Ordem, então não deve
satisfação alguma a ele!
— Eu concordei com ele quanto ao fato de que nada chama mais
atenção do que uma mulher solteira na casa de um homem solteiro, apenas
isso. A melhor maneira de abafar a sua presença seria dizer que nos
casamos. Mas agora, por sua própria culpa, todos acharão que é uma
meretriz!
Aaron voltou a ajeitar as bolsas no cavalo, resmungando baixo:
— Eu estava apenas seguindo ordens.
— Olha, pouco me importa o que achem de mim no seu tempo, está
bem? Você prometeu que me levaria ao círculo se eu contasse o que sei.
Cumpri a minha parte. Agora precisa garantir a minha volta, Aaron. — Eu
me aproximei, pousando a mão no braço que ajeitava as compras nos
alforjes. — Esse não é o meu tempo. Não posso ficar aqui.
Ele se afastou do toque, enfiou o pé no estribo e montou. Então
estendeu a mão para mim.
— E se eu me recusar a ir? — Dei um passo para trás, sentindo o
coração socar o peito.
A resposta dele foi se inclinar na sela e me avisar, sem humor:
— Sabe como será carregada, se negar. Vai ser um espetáculo na vila.
— Você é um idiota, sabia disso? Você e o seu irmão!
— Nunca disse que não era. E quanto ao meu irmão, você tinha razão.
Ele não gostou muito de você.
Estendi a mão para ele, sendo erguida como se não pesasse nada.
— Por que precisamos cavalgar juntos? — Ajustei a capa ao meu redor,
sentindo as costas colarem mais uma vez no peito largo e minha bunda ficar
próxima demais da virilha sempre ridiculamente estufada.
— Quer seu próprio cavalo para fugir? Prefiro ter apenas o meu, que sei
que não pode controlar.
— Você me subestima, Aaron de Landa — respondi, ouvindo-o estalar a
língua para fazer o cavalo andar.
— Eu a vi matar três homens em questão de segundos. Se há algo que
não faço é subestimar você, Sabrina.
17
A FAGULHA
SABRINA

O retorno foi tão desconfortável como a ida, mas dessa vez adormeci,
embalada pelo caminhar lento do cavalo, recostada no ombro largo
do meu captor. Só acordei quando Aaron murmurou no meu ouvido
que havíamos chegado. Desencostei do peito quente, me sentindo mal por
ter dormido boa parte do caminho. Se queria fugir, precisava aprender o
trajeto. Mais uma vez, não sabia como sair dali.
Durante a próxima hora, o cavaleiro me deixou quieta em um canto
enquanto ajeitava os mantimentos nas prateleiras, colocava a carne fresca
para defumar e coletava água no poço. O tempo inteiro ele trabalhou
calado.
Poderia ajudá-lo, mas não me sentia inclinada a isso. Entrei pisando
duro naquele lugar horrível, me encolhi perto do fogo baixo e ignorei-o.
Meu coração batia de maneira insana toda vez que me lembrava de voz
rouca anunciando que éramos noivos. Que agora era supostamente sua
amante.
Abracei o estômago pedindo silenciosamente que não voltasse a doer,
mas o órgão parecia responder que não era dor o que revirava ali. Tinha
cara de outra coisa. O fato era que Aaron despertava sensações estranhas
em mim. Deixava minhas pernas moles e meu cérebro cambaleando. Nas
horas mais silenciosas, seu rosto surgia diante dos meus olhos junto com as
pernas longas e fortes e músculos maciços. A simples imagem dele fazia
minha respiração mudar. De leve, de forma que só eu percebia. Meus
sentidos acordavam quando ele estava perto. Minhas partes íntimas, que
não sabiam o que era satisfação há tempo demais, pulsavam como um
sonar.
Já era noite quando me levantei de perto do fogo, aborrecida por não
saber onde o homem tinha se enfiado. Fui até a janela, imaginando que ele
estaria lá fora, e estava certa; ele havia feito uma fogueira com troncos
dispostos ao redor do fogo. Estava sentado, pensativo, as costas curvadas e
as mãos unidas acima das coxas.
Gastei um tempo observando a figura enrolada na capa escura, com o
rosto parcialmente iluminado pela luz das labaredas. Seu peito era largo
como o de um guerreiro e seus gestos precisos e potentes, como se ele
inteiro tivesse sido feito para batalhas. Por que diabos tinha essa sensação
de que seus braços eram uma promessa de segurança? Talvez porque era
aquilo que sentia toda vez que ele estava por perto: ao seu lado, eu estava
segura. Irritada, perdida, mantida naquele fim de mundo contra a vontade
— porém segura.
“Ele é o homem mais honrado que conheço”, lembrei da fala de
Cristopher.
Bem, de uma coisa eu sabia: não havia mais homens como aquele no
futuro.
Ele picava pedaços de palha e jogava de maneira displicente no fogo, os
olhos perdidos nas chamas. Um formigamento me fazia querer sair e me
juntar a ele, só que eu não tinha sido chamada e não me sentia confortável
em invadir o seu espaço. Mas, pensando bem, por que não? Não aguentava
mais a tensão do dia, a incerteza sobre a volta ou o que ia acontecer. Não
aguentava, principalmente, tanto silêncio.
Abri a porta devagar, ajeitando o cabelo antes de me enrolar na faldetta,
estranhando o coração acelerado. Acalme-se, órgão tolo, estou apenas
buscando companhia.
Aaron ergueu a cabeça quando me aproximei e se levantou, cavalheiro.
Ergui as mãos para mostrar que não trazia facas nem flechas. Ele sorriu pela
primeira vez desde que o conheci. Pelo menos eu não me lembrava de vê-lo
erguer o canto da boca antes, e o gesto me fez prender a respiração. Ele
indicou um pedaço do tronco ao seu lado e me sentei.
— Talvez você precise disso. — Ele me estendeu um cantil de couro.
— O que é?
— Algo para ajudar a esquecer o dia.
Peguei o frasco manchado, cheirando o bocal. Álcool, forte e doce, era
o que parecia ser pelo cheiro. Rum.
— Por que quer esquecer o dia, Aaron?
— Não acho que saber sobre um ataque iminente onde perderemos mil
e quinhentos dos nossos ilumine o dia de ninguém.
Concordei, virando o cantil e sentindo fogo percorrer a garganta. Fiz
uma careta, olhando para a bebida.
— Jesus, o que tem aqui dentro? Lava?
— É rum. Se não quiser, pode jogar na fogueira.
— Jogar fora? Não mesmo. — Dei outra boa golada naquilo. — Você
não bebe?
Aaron balançou a cabeça, negando.
— Trouxe para cá para me forçar a beber, mas não gosto nem do cheiro.
Prefiro enfrentar tudo o que me acontece sóbrio.
Sorri, achando aquilo engraçado.
— Você não bebe, não fuma, e, pelo que parece, não faz nada de errado
ou divertido. Parece que estou vendo seu irmão falar.
Ele ergueu os olhos, e uma sensação gelada e vagarosa se desenrolou
pela minha coluna. Sob a luz da fogueira, o verde da íris de Aaron era
hipnótico. Uma poção borbulhante e perigosa, que certamente queimava ao
toque.
Dei mais um gole, o coração acelerando pelo rumo da conversa.
— A forma como você olhou para Cristopher… — Aaron disse,
pensativo, os olhos vagos no chão. — É difícil acreditar que se conheceram
antes. Ele não faz a menor ideia de quem é você.
— Ainda — assenti, entristecida. — Ele me avisou que não me
reconheceria. Que iria me tratar mal, também.
— Ainda não entendo como essa viagem no tempo é possível, mas
acredito em você, Sabrina.
— O que o fez mudar de ideia? — perguntei baixo.
Ele endireitou as costas, olhando para o mar, muitos metros abaixo. O
oceano da cor de piche refletia o céu igualmente escuro com alguns pontos
brilhantes. Tão calmo que chegava a ser difícil imaginar como em breve
ficaria tomado por navios e manchado de sangue.
— Valette me contou uma história depois que você saiu.
— Sobre o quê?
— Ele conheceu um viajante do tempo, anos atrás.
Arregalei os olhos, chocada.
— Ele conheceu?
Isso explicava sua calma ao ouvir a narrativa estapafúrdia, além da sua
completa falta de reação. Também explicava seu interesse em mim e a falta
das perguntas óbvias sobre minha sanidade.
— Sim, no ano em que foi capturado pelos corsários otomanos —
Aaron continuou. — Segundo ele, enquanto era mantido preso, ouviu falar
sobre um homem que sabia tudo sobre o futuro de Constantinopla. Diziam
que os governantes o ouviam e ninguém sabia explicar como as previsões
sempre se mostravam certas. — O olhar de Aaron desceu até o meu
pescoço, onde um pedaço da corrente dourada do meu colocar ficava à
vista. — Valette chegou a encontrá-lo. Além de se vestir e falar de forma
estranha, ele também tinha uma pedra que imagino ser como a sua.
Meus olhos continuavam arregalados. Havia mais pessoas viajando no
tempo? Pessoas que se metiam no rumo da história? Aquilo era
inacreditável, até mesmo para mim. Como ninguém descobriu isso?
— Pelo que contaram a Jean, um dia roubaram a pedra do homem,
acreditando que o poder divinatório vinha dela. Foi quando descobriram
que ela só funcionava com a pessoa certa. O ladrão foi pego e decapitado, e
a pedra, devolvida para o forasteiro. Só que, depois disso, ele desapareceu
— Aaron concluiu a história. — Sumiu como se nunca tivesse existido.
— E Valette acha que sou como ele?
— Ele disse que sim. Que você tem o mesmo olhar assustado dos que
não estão no seu tempo.
Voltei a beber em silêncio, ligeiramente preocupada. Fazia sentido,
agora, ser mantida escondida. Não queria ter a pedra roubada por ninguém,
porque precisava dela para retornar.
Mais um silêncio interminável se passou até que Aaron virasse o rosto
na minha direção.
— Conte-me sobre o meu irmão — ele pediu num murmúrio.
— O que quer saber? — ofereci, ciente de como deveria ser difícil saber
que o próprio irmão partiria um dia para nunca mais voltar.
— Tudo. Desde o começo.
Nas próximas horas, contei como conheci Cristopher, quando voltei de
um intercâmbio na Inglaterra. Ele já morava com Isla e imediatamente me
acolheu como uma irmã mais nova, como se sentisse que precisasse ser
extrabondoso comigo. Contei como o achei estranho no começo, com
aquela fala enrolada e totalmente perdido no mundo. Compartilhei algumas
histórias engraçadas, sobre como ele implicava com as inovações
tecnológicas e foi se adaptando lentamente ao nosso tempo — sempre
lembrando do irmão chamado Aaron que deixou em um país distante e que
não tinha mais como ver.
— Será difícil para você entender, Aaron, mas Cristopher e a minha
irmã deram um jeito de contar a história verdadeira do Cerco para o mundo.
— Sorri ao pensar em como tudo fazia sentido agora. — Eles fizeram
vários filmes sobre o que vai acontecer.
— Filmes?
Expliquei de maneira simples o que era o cinema, as formas de arte do
futuro e as aulas que Cristopher dava, conhecido por ser um especialista em
combates da época. Aaron parecia perdido quando ouvia algumas palavras,
porém permaneceu atento, como se o mundo inteiro tivesse desaparecido e
ele tivesse embarcado comigo para o meu século. Eu entendia sua limitação
em imaginar algumas coisas, mas ele absorvia mesmo assim cada palavra
minha como se tivesse sede. Contei sobre os filhos que Cristopher e Isla
tiveram, sobre a nossa família e o garotinho chamado Aaron, a quem
dediquei a tatuagem.
Acho que ele gostou de saber disso, porque baixou os olhos e sorriu,
visivelmente emocionado.
Ocultei apenas que o menino tinha os mesmos olhos verdes do tio,
porque não saberia falar aquilo sem denunciar que os achava os mais
bonitos do mundo.
— Ele foi feliz, então? — Aaron perguntou, no fim.
— Ele não foi. Ele ainda é muito feliz.
Aquilo pareceu bastar. Voltamos a olhar para o céu, tão vasto e infinito,
e me questionei que formato teria o tempo, para poder ser dobrado e torcido
dessa forma. Por que levar e trazer pessoas para frente e para trás? O que
faria algo tão inexorável como o tempo se dobrar?
— Por que motivos Cristopher a mandaria para cá? — Aaron fez a
pergunta que me deixava incomodada até agora.
— Não sei. Já me questionei por que ele mesmo não veio dizer o que
aconteceria. Por que me enviar em seu lugar?
— Talvez meu irmão não pudesse mais retornar — ele comentou.
— Claro que não — rebati, brusca. Só de pensar naquilo, era tomada
por uma sensação gelada. — É óbvio que é possível retornar. O homem
misterioso de Constantinopla sumiu porque deve ter retornado para casa.
Cristopher me mandou para cá, e ele não teria feito isso se soubesse que eu
não podia voltar.
Ele nunca faria isso comigo, concluí, expulsando a possibilidade da
cabeça.
— Seu irmão me enviou para cá por outra razão — falei. — Assim que
estiver tudo certo, vou reencontrá-los.
Eu e Aaron nos encaramos por um tempo, tentando descobrir qual seria
esta razão. Não sei no que pensou durante aqueles segundos, mas a resposta
que apareceu para mim foi breve e inquietante.
Talvez eu estivesse olhando para o motivo.
Voltei a beber rápido e acabei me engasgando.
— Ele quis me proteger, foi isso — disse depois de limpar a boca no
braço. — Eu… estava com um problema complicado.
Os olhos de Aaron foram parar na minha mão esquerda.
— Com o homem da aliança?
Assenti devagar, recolhendo os dedos.
— É tão óbvio assim que foi com ele?
Ele voltou a lançar gravetos na fogueira.
— Mulheres não costumam matar estranhos, mas já vi esfaquearem
maridos e amantes. O sangue da sua roupa e da adaga vieram dele, não foi?
A pergunta foi tão direta que quase me engasguei de novo.
— Eu… — exalei, assentindo. — Não foi intencional. Eu não queria
machucá-lo, mas era ele ou eu, naquele dia.
— Pude imaginar, pelas marcas no seu pescoço.
Alisei a face e a pele abaixo, sentindo o local menos dolorido do que
quando cheguei. Não me via há dias em um espelho, mas acredito que os
hematomas já deviam estar menos roxos onde Zach me bateu e apertou.
— Nós vínhamos brigando há um tempo. Ele insistia em dizer que o
traí, ou melhor, que o trairia no futuro; que minha tatuagem não era uma
homenagem ao meu sobrinho, e sim a outro Aaron. Eu tinha muito medo
dessas explosões. Achava que ele estava ficando louco.
Eu podia ver os pensamentos ocultos dançando por trás dos olhos do
cavaleiro.
— Ele a acusou de ser a Sabrina de Landa da adaga?
Assenti, incomodada com as conclusões que ele poderia tirar daquilo.
— Nunca entendi de onde ele tirou a ideia de que eu seria aquela
mulher.
O silêncio interminável que se seguiu só podia significar que Aaron
tinha pensado no mesmo que eu.
— Mas veja bem: talvez a faca um dia pertença aos seus filhos —
sugeri, tentando afastar o olhar que me queimava a pele. — Você sabe, uma
de suas filhas pode se chamar Sabrina. Ou você pode conhecer outra
Sabrina. Ou… talvez alguém tenha gravado esse nome na sua faca por
agradecimento à minha ajuda. Eu não sei.
Aaron voltou a remexer o fogo.
Entornei outra vez a bebida forte, porque o incômodo agora tinha me
tomado inteira, dos dedos dos pés à nuca. Cristopher não me mandaria para
o passado para que eu vivesse um caso de amor temporário com o seu
irmão, não é? Aquilo seria ridículo. Não era possível que ele tenha nos visto
juntos e entendido que seria a amante dele. Aaron era feito de… pedra, sei
lá. Seu coração era uma rocha, seu trato comigo, polido e frio.
Continuei a beber, a cada não repetido nos pensamentos, uma golada no
rum. A bebida começava a anestesiar minha cabeça e eu dava graças ao
Bom Pai por isso.
Nesse meio tempo, Aaron removeu a carne do fogo e me estendeu um
pedaço. Pousei o cantil quase vazio do lado e estiquei a mão para pegar a
comida. Por segundos pareci uma malabarista tentando segurar a coisa
fumegante entre os dedos, e arrumei um jeito de segurar na beiradinha do
osso e morder o naco com a ponta dos dentes para não queimar a boca.
Faminta, devorei a carne, aproveitando que podia mastigar e não
conversar mais.
Não era o meu nome naquela adaga, fim da história.
Quando terminei de comer, comecei a sentir o corpo estranho. Limpei a
garganta e a senti arranhar, como se um pedaço de osso tivesse descido
torto por ela.
— No dia em que a interroguei, no mosteiro, disse que havia encontrado
a faca em um antiquário — Aaron comentou ao terminar de comer.
— Sim.
— Não sei o que é isso.
— É um local onde se vende coisas muito antigas. Coisas achadas na
casa de outras pessoas, ou penhoradas, por exemplo.
— Então a adaga veio, de fato, da minha época?
Movi a cabeça fazendo que sim e me enrolei melhor na capa. Alguma
coisa me dizia que aquele sereno da noite iria me resfriar.
— Matou o seu marido com ela?
A pergunta foi tão direta que meu coração deu um salto.
— Não sei. — Respirei fundo. — No meio da briga, reagi pelo instinto
e o acertei na barriga, mas não sei se o matei. Vim parar aqui antes de saber.
A medicina é avançada na minha época, ele pode muito bem ter
sobrevivido.
— Seus reflexos são rápidos — Ele desceu os olhos por mim e o meu
tremor foi tão violento que ele notou. — Mas não parece ter muita força nos
braços.
— O seu irmão me treinou bem.
Aaron quase sorriu.
— Parece algo que ele faria.
— Cristopher sabia que eu viria um dia para cá — afirmei com certeza.
— Ele me ensinou tudo, desde a manejar o arco até como segurar
corretamente facas.
Memórias sobre os passeios anuais pelo forte de São Elmo retornaram,
e entendi ali, com a respiração em suspenso, que Cristopher estava me
ensinando os passos para sobreviver ao Cerco. Olhei de relance para
Aaron.
Ele estava me ensinando uma forma de salvar o seu irmão.
Deus, Aaron nunca poderia saber disso, ou me forçaria a ficar ali até o
final da guerra. Eu precisava ensinar tudo que sabia sem comprometer a
volta. Quando os otomanos aportassem, precisava estar bem longe daquele
século.
Finalizei o cantil querendo encerrar a conversa, mas ao me levantar,
senti a cabeça rodar um pouco mais do que deveria.
— Está tudo bem? — Aaron se levantou também, apagando a pequena
fogueira com a sola da bota.
— Sim. Só bebi demais.
Ele sorriu de maneira discreta.
— Você parece ter sido acertada por um aríete.
Aceitei a mão estendida para que o chão deixasse de parecer uma cama
elástica. A textura da palma era áspera, porém morna. Sua mão era tão
grande que meus dedos desapareceram entre os seus.
— Se você fosse jogado para o passado, preso em uma torre com um
especialista em arrancar confissões, conhecido uma figura histórica famosa
e bebido um cantil inteiro de rum, também estaria tonto — comentei,
sentindo a língua pesada e um tanto frouxa.
Estávamos agora parados um diante do outro e a brisa fria já não me
incomodava mais. Só sentia o cheiro de fumaça e do orvalho típico das
noites da ilha. A silhueta de Aaron se destacava contra o céu e as milhares
de estrelas no horizonte pareciam contorná-lo. Ombros largos, ângulos
perfeitos, músculos por todo lado e uma força que poderia me dominar
completamente… Soltei um suspiro e me censurei por estar pensando em
me colocar à mercê dele.
— Está tudo bem? — Aaron baixou um pouco o rosto para me encarar.
— Algum dia considerou me torturar para arrancar alguma confissão?
Aquilo não era pergunta que se fizesse, mas bêbados costumavam dizer
coisas idiotas. A resposta dele foi me trazer para perto do seu corpo. Dei um
passo adiante, o coração martelando contra as costelas, a bagunça caótica
das pulsações se unindo à rara revoada de borboletas no estômago. Eram
centenas delas, milhares talvez; todas anunciando que o bater de suas asas
mudaria tudo.
— Você chegou machucada, Sabrina. Tudo o que desejei desde que a
encontrei foi protegê-la. — Minha saliva parecia conter areia e o meu peito
subia e descia de maneira visível. Ele esfregava um dedo com calma sobre a
pele da minha mão, como se para me acalmar, mas estava causando o efeito
contrário. — Quando entendi por quem foi ferida, prometi que, caso um dia
encontrasse o sujeito, separaria sua cabeça do corpo com um só golpe.
Aaron precisou me apoiar com a segunda mão, porque meus joelhos
falharam.
— É a bebida — expliquei, me colocando de pé novamente e dando um
passo para trás. — Rum faz isso comigo.
E não frases matadoras. Ou olhares como aquele.
O cavaleiro não falou mais nada, mas não fiquei para me certificar
disso. Caminhei atarantada para a entrada da torre antes que acontecesse
algo que não poderia ser mudado.
Precisava parar de pensar em como seria se...
Se ele e eu, nós…
Balancei a cabeça, ralhando comigo. Toda a minha concentração
deveria estar em escapar daquele século bárbaro. Tremer e tropeçar por
causa de palavras e toques gentis não estava no plano.
Estou reagindo assim porque não sinto desejo há tempo demais, a voz
da razão explicou.
Quando Zach mostrou sua verdadeira face, uns seis meses depois do
casamento, meu desejo por ele morreu. Nunca mais consegui fechar os
olhos e me entregar. Quando ele me bateu pela primeira vez, veio o asco, e
nem as tentativas pífias de pedir perdão, explicando os motivos que o
levaram a se alterar, conseguiram resgatar algum sentimento. Todo e
qualquer amor que eu poderia dar morreu em mim quando ele me agrediu.
O que me levava à questão: por que continuei com ele?
A resposta era complexa e até ingênua. Primeiro, achei que poderia
mudá-lo. Que dava para recuperar o que tínhamos. Depois veio a vergonha
em admitir que meu casamento tinha falhado. E, por fim, veio a culpa que
assola as mulheres machucadas. Com tudo isso acontecendo, não consegui
mais encarar minhas amigas em seus casamentos felizes e acabei me
afastando delas. Uma vez pensei em revelar quem Zach era, mas a verdade
é que ninguém acreditaria em mim.
Eu devia sentir pânico do contato masculino, mas não era isso o que eu
experimentava agora. Meu corpo tinha reagido ao toque da mão calejada, e
desejou que ele se prolongasse, se espalhasse pelo corpo. Que viesse
seguido de um beijo.
Deus, eu precisava ser mais esperta do que isso.
Subi a escada que levava à porta da frente, mas não consegui abrir a
aldrava. Aaron parou logo atrás de mim, o calor do corpo envolvendo tudo
como um incêndio. Um braço firme passou raspando pela minha cintura e
abriu a porta. Seus olhos reluziram no escuro, duas promessas de coisas
absurdas. Ou era apenas eu, bêbada, fantasiando com aquela boca bem
desenhada escondida pela barba?
Se Aaron um dia se deitasse sobre mim, seu peito me cobriria inteira.
Suas coxas me envolveriam de maneira deliciosa.
Pare-com-isso.
Ele deu um passo para trás, me libertando do transe sensual. Entrei feito
um raio, sentindo o corpo inteiro formigar como se mil dedos me fizessem
carícias.
— Durma no andar de cima — ele ordenou. — Ficarei aqui embaixo
hoje.
18
A FEBRE
AARON

A primeira coisa que notei ao acordar foi que estava duro como uma
espada. Afastando o rosto da claridade que entrava da janela, estiquei
o corpo ao lado da lareira. Minhas costas estavam doloridas em mil
lugares, e todas as extremidades — menos uma —, geladas. O fogo havia se
extinguido durante a noite e a manta fina não ajudara muito.
Massageando o pau duro dentro da calça, me questionei como pude
deixar Sabrina dormir ali, no chão, por dias a fio. Mas era isso ou na minha
cama, e só de pensar nela espalhada entre as minhas peles, voltei a fechar os
olhos, gemendo de frustração.
A mulher era mel para os sentidos. Os olhos grandes e escuros, a pele
da cor de amêndoa, o aspecto frágil e delicado, tudo me deixava maluco.
Sentia vontade de colocar as mãos nela o tempo inteiro, de tocá-la com a
ponta dos dedos. Depois que tivesse traçado todos os contornos, então faria
o mesmo caminho com a boca, lambendo e cheirando para descobrir qual o
aroma tinha.
Sacudi a cabeça. De onde vinham esses desejos?
A necessidade carnal não me perturbava há tempos, e agora não me
deixava em paz. Desde o dia em que a coloquei na minha sela e precisei
ficar horas com as coxas coladas às dela, andava pensando em besteiras.
Olhei para cima, onde devia estar a minha cama. Sabrina devia estar
dormindo, porque a torre se mantinha em completo silêncio.
Como o melhor antídoto para pensamentos tolos ainda era o trabalho,
levantei-me, botei a chaleira sobre o fogo e saí para buscar mais água.
Ainda no poço, aproveitei para lavar o rosto e as mãos. Antes de voltar para
a torre, conferi as carnes e alimentei o cavalo. Enquanto aguardava Sabrina
acordar, tirei a chaleira do fogo e misturei a água com a qahwa que ela tanto
gostava. Esperava que, ao sentir o aroma, a mulher descesse, mas ela não
veio.
Estranhei, já que o sol estava alto e ela sempre acordava quando eu
descia. Subi as escadas fazendo barulho, avisando com meus passos que
estava chegando, mas assim que pisei no último degrau, vi algo que me
deixou alarmado: Sabrina estava enrolada na cama em todas as peles
disponíveis, e seu corpo inteiro tremia.
— Sabrina?
Removi as cobertas, vendo-a estremecer, encolhida.
— O que aconteceu?
— Eu… não sei — ela murmurou, fraca. Ao pousar a mão em sua testa,
vi que estava pelando.
— Diabos. — Trouxe a moringa até ela e segurei sua cabeça. Os lábios
ressecados se abriram quando a ergui de leve. — Precisa beber alguma
coisa. — Encostei a borda da peça em sua boca e ela reagiu de leve,
reclamando como se cada movimento doesse. Assim que tomou um gole,
voltou a fechar os olhos com um gemido.
— Acho que é… uma virose. Das fortes — gemeu.
Sabe Deus o que seria uma virose, mas entendi a palavra forte. Voltei a
deitá-la com cuidado. Seu corpo estava mole como um pedaço de pano.
Talvez tenha sido o sereno da noite, ou outro mal desconhecido. Droga, ela
não era dali, podia ser uma reação a qualquer coisa. Sem saber o que fazer,
passei a manhã subindo e descendo até o segundo andar, confirmando se
sua situação havia mudado.
Nada. Na verdade, mostrava estar pior.
Ela tinha removido o casaco que vestia e trajava agora uma blusa branca
e justa no corpo. Eu caminhava há minutos de um lado para o outro diante
da cama, vendo-a acordar de tempos em tempos, gemer e voltar a dormir.
Quando Sabrina parecia mais desperta, eu a servia de água. Atormentado,
tentei me lembrar de que maneira as amas costumavam baixar febres altas
durante a minha infância.
Compressas de pano molhadas, é claro.
Rasguei um pedaço de linho em tiras e as dobrei. Busquei mais água
fresca e voltei para o quarto. Banhei-a no rosto, no pescoço e nos braços
enquanto observava da janela estreita o céu perder toda a cor. O alívio que
ela sentia era imediato, mas não importava quantas vezes molhasse sua
testa, a temperatura voltava a subir e os tremores aumentavam de
intensidade. Várias vezes encostei os lábios na pele do seu rosto, como
minha mãe costumava fazer com Cristopher, sentindo um calor perigoso
emanar dela.
Sabrina precisava melhorar.
Ela era valiosa por causa das informações que sabia, sem dúvidas, mas
também porque ela era... ela. Minha preocupação não era só porque ela
vinha do futuro — havia algo mais. Algo que nasceu quando aceitei que os
nomes gravados na lâmina da adaga pertenciam a nós dois. Por algum
motivo, Cristopher sabia disso. Ele não a mandaria para cá se não soubesse
de algo.
Com um medo inédito crescendo em mim, aninhei-a contra meu peito,
tentando absorver um pouco do calor excessivo. A cabeça pendeu para trás
e mirei demoradamente a face bonita e os olhos fechados, sentindo um
aperto no peito ao me lembrar que, caso acontecesse, aquela não seria a
minha primeira perda. Alguns anos atrás, havia decidido me isolar por
muitos motivos, e um deles foi para nunca mais sentir aquela mesma
impotência. Agora aqui estava eu, agoniado como um pobre diabo, sem
saber como evitar uma nova tragédia.
Quando a noite veio e ela começou a delirar, entendi que precisava
abaixar sua febre ou ela morreria. Desci mais uma vez, retornando com um
balde cheio de água e novos panos. Ergui sua blusa até a metade da barriga
e molhei-a ali, ouvindo-a gemer.
— Sabrina, preciso despir você — avisei, esperando por um
consentimento que ela não tinha como dar. Ela soltou algo incompreensível,
mas insisti. — Vai morrer, se não esfriar.
Sua roupa colava úmida à pele, e que inferno, eu nunca havia despido
uma mulher desacordada antes, e não esperava começar por aquela.
— Consegue tirar sua roupa sozinha?
Ela negou de olhos fechados, um vinco profundo em sua testa. Vi
homens com o dobro de seu tamanho morrerem após episódios de febre tão
fortes como aquela. Ela não estava ferida como eles, mas não podia deixar
de recear que algo lhe acontecesse.
— Farei isso por você, então — informei, sentindo a saliva descer
grossa. — Tenho sua permissão? — Balancei-a de leve e repeti a pergunta:
— Sabrina, tenho a sua permissão? Confia em mim?
Ela indicou com um gesto mínimo que sim.
Iniciei o trabalho de livrá-la daquele monte de peças apertadas. Como
conseguiam se mover no futuro, embrulhados assim, como salsichas? Com
um das mãos a mantinha contra o corpo enquanto tentava, com dificuldade,
tirar um dos braços de dentro do algodão. Com a paciência no limite, soltei
o segundo braço, e puxei a peça por cima da cabeça. Sabrina tombou na
cama, flácida.
— Assim que remover a roupa, eu a tamparei, não se preocupe.
Por que eu estava me justificando tanto? Oras, porque eu me sentia
culpado por não conseguir afastar os olhos dela.
Sacudi a cabeça e voltei a me concentrar na tarefa. Lancei a blusa
molhada no balde vazio, deixando-a apenas com o estranho e minúsculo
corpete.
De material delicado e transparente, o suporte para seios não escondia
nada. Tentei não notar os mamilos escuros e redondos sob a renda,
pequenos como botões de uma flor exótica, mas minha reação dentro das
calças foi imediata. Diabos. Isso não era uma provação de Deus, e sim uma
provocação dos infernos.
A partir daí, evitei olhá-la do pescoço para baixo, me concentrando
unicamente na tarefa de despi-la.
A calça, fechada de maneira estranha por botões duplos e
acompanhados de um intricado sistema de metal, se abriu praticamente
sozinha, revelando uma penugem quase transparente sob o umbigo que
desembocava em uma peça que parecia fazer par com o suporte de seios. A
peça era exótica, minúscula e, por Deus, me faria sonhar por dezenas de
anos com todo tipo de pecado proibido.
Tirei as meias grossas e puxei o tecido justo e úmido. Nada se moveu.
Voltei para a cintura e tentei descer a calça a partir dali. Consegui chegar
apenas no topo do quadril antes que minha paciência acabasse. Eu nunca ia
conseguir tirar aquilo.
Irritado, peguei uma adaga no baú e passei a lâmina entre o tecido e a
pele, começando pelo tornozelo até em cima, na lateral das pernas. Terminei
de soltá-la em dois segundos, arrancando a peça do corpo e jogando longe.
Tenho certeza de que ela ia me agradecer por livrá-la daquele tormento.
Quando olhei de novo para a cama, a respiração ficou em suspenso. Pernas
longas e perfeitamente delineadas estavam em contraste com o linho rústico
da minha cama. Membros compridos que culminavam no minúsculo
triângulo de tecido transparente que deixava à mostra toda a intimidade
dela. Por causa do frio, Sabrina se encolheu, e o que vi na parte traseira me
fez dar um passo desnorteado para trás. A calçola. Havia me esquecido de
como era fina, praticamente um fio de renda que atravessava as bochechas
das nádegas e não tapava nada.
Pai celeste, ajude-me.
Deixei-a sobre a cama para esfriar, precisando fazer o mesmo no
momento. Desci as escadas tropeçando nos degraus, e por longos minutos
andei de um lado para o outro no andar de baixo, a porta aberta para deixar
o ar gelado do inverno entrar, alisando o membro duro dentro das calças.
Desinche, é uma ordem.
Já de volta ao juízo normal, levei a tina de banho até o quarto e a enchi,
fazendo dezenas de viagens até o pátio para buscar água. No fim, adicionei
duas chaleiras de água quente e me preparei para jogá-la ali dentro.
O tempo todo trabalhei recitando o lema dos cavaleiros da Ordem de
São João, fazendo orações contra a tentação e prometendo retornar à capela
para agradecer pelas virtudes da honra e do autocontrole. Implorei também
a Deus que não mandasse mais nenhuma provação, porque eu já estava
perdido e não valia a pena ser testado.
Sabrina às vezes gemia imóvel sobre a cama, como se falasse com
alguém.
— Por que, Cristopher? — Parei no lugar ao ouvi-la chamar pelo meu
irmão. — Por quê? — Seus olhos continuavam fechados, mas a voz tinha
um tom choroso e agoniado. — Não quero morrer aqui.
— Você não vai morrer, Sabrina — murmurei, ajoelhado ao lado da
cama.
— Por que Aaron? — ela gemeu baixinho.
Não houve pausa depois do “por que”, e sim um único e sincero
questionamento sobre por que eu.
Sem saber responder àquela pergunta, ergui-a nos braços e a imergi na
banheira. Sabrina soltou um grito, se retesou e abriu os olhos.
— Ahhh! — Ela começou a bater as pernas. — Está frio! Me tire daqui!
— Sei que está frio, mas não posso tirá-la agora, Sabrina. Aguente só
um pouco, sim? Você precisa esfriar, ou dormirá e não acordará mais.
Para piorar, assim que a coloquei na água, com um braço em suas costas
e o outro evitando que batesse no fundo da tina, fiquei frente a frente com o
par de seios. Engoli a saliva e voltei a me concentrar no seu rosto, fingindo
não notar as duas pontas arrebitadas quase tocando em mim.
— Me tire daqui, Aaron — ela pediu numa lamúria, entre o som de
dentes batendo. — Está tão frio…
— Não está tão ruim, meu bem. É você que está muito quente.
Ela abraçou meu pescoço e tentou sair da tina, mas não a deixei.
Ajoelhei ao seu lado e acariciei seu cabelo, parando imediatamente ao
perceber o que estava fazendo.
— Precisa me largar, Sabrina, e permanecer um pouco na água.
Quanto mais eu tentava afastá-la, mas ela me abraçava, tirando força eu
não sabia de onde.
— Me tira daqui, por favor. Me leve para a cama.
Rolei os olhos, pedindo a Deus que simplesmente parasse: eu não valia
o esforço.
— Só mais um pouco, meu bem. Assim que sua temperatura baixar, a
deitarei de volta nas cobertas, está bem?
Sabrina continuou grudada ao meu pescoço, a cabeça enfiada embaixo
do meu queixo, a pele quente tocando minha garganta. Nessa posição, meus
olhos estavam dolorosamente cientes da curva de suas costas e do indecente
aparato com formato de gaivota que tapava precariamente o traseiro
redondo.
A vontade de deslizar a mão pelas costas delicadas e delinear com os
dedos cada centímetro de pele era avassaladora. No entanto, resisti. O
máximo que me permiti foi acariciar uma vez suas mechas macias — uma
única vez.
Erro fatal. Por motivos insondáveis, bastou aquele toque único de
carinho para entender que meu coração vazio não teria chance contra sua
presença bonita e misteriosa.
19
A ROUPA
AARON

A última coisa que me lembrava era de ter recostado na parede ao lado


da cama e fechado brevemente os olhos, preocupado com Sabrina.
Havia sido uma noite difícil, cheia de palavras desconexas que
tinham me deixado intrigado.
Em algum momento da noite, perdida em meio a um sonho agitado,
ouvi Sabrina dizer: "por que achou que eu o amaria?”. Juntando dois e
dois, concluí que perguntava isso para meu irmão. Era óbvio que eu era
aquele que ela não amaria.
Por que Cristopher achou que sim, diabos? Agora, além de preocupado
com sua saúde, também me sentia levemente ferido. Que inferno, eu sabia
que não era o cavaleiro mais correto, nem o melhor homem que uma
mulher bonita merecia, mas não gostei de ouvir aquilo. Adormeci ofendido,
lutando para me convencer de que não nasceria nenhum tipo de sentimento
entre nós.
Despertei do sono agitado ouvindo sua voz me chamar:
— Aaron?
O quarto estava novamente claro, e eu, deitado ao lado dela na cama.
No meio da noite, devo ter escorregado no colchão e, agora, estava ali, com
seu nariz afundado em meu peito e meus braços ao redor das costas
estreitas, como se quisesse protegê-la ou trazê-la para perto de mim.
Puxei de maneira brusca o braço e me levantei, coçando os olhos de
sono. Esperava que ela não olhasse para baixo e visse que meu corpo inteiro
havia acordado comigo.
— Acho que acabei dormindo. — Bocejei. Meu flanco esquerdo estava
morno pelo contato prolongado, mas minha face era de longe a superfície
mais quente do planeta. — Como está se sentindo?
Sabrina parecia atordoada. Agradeci por estar viva, pelo menos. Ao
encará-la, vi a mudança no olhar, passando de impactada para desconfiada
e, então, confusa. Parecia não se lembrar de que estava no meu quarto, nem
do que acontecera nas últimas 24 horas. Ela estalou a boca de sede, olhando
para o cenário de guerra ao redor: bacias, panos, todos os baldes que eu
tinha, marcas de poças para todo lado. Estendi uma caneca com água e ela
aceitou, tentando se sentar sob as cobertas. A pele arrepiou e deve ter sido
isso que a fez notar que estava sem roupa.
Os olhos escuros se arregalaram e ela quase deixou a água cair ao puxar
as peles para cima do corpo.
— O que aconteceu? — gritou.
Peguei a caneca, pousando-a na mesa ao lado da cama.
— Você não lembra que teve febre ontem o dia inteiro e a noite toda?
Ela balançou a cabeça e voltou a percorrer o ambiente com os olhos. A
bagunça talvez a tenha convencido dos meus cuidados, mas mesmo assim
Sabrina ergueu a coberta para constatar o que desconfiava.
— Eu estou sem roupa?
— Tive que baixar sua temperatura, não lembra? Você precisou de um
banho e eu as removi, mas estão quase enxutas, veja. — Apontei para onde
as duas blusas repousavam. Infelizmente, a calça estava perdida. Os trapos
amontoavam-se no chão, ao lado da cadeira onde secavam as peças íntimas,
minúsculas e resplandecentemente alvejadas.
Como sabia que ela também olhava para a calçola e o corpete, me
apressei em explicar:
— Você manteve a roupa de baixo no banho, mas não podia deixar você
dormir com elas. Estavam molhadas e podiam trazer a febre de volta.
— Você tirou a minha roupa?
— Com a sua permissão — falei rápido. — Quem abriu o corselete, ou
sabe Cristo o que é aquilo, foi você! — Apontei para a pecinha pendurada.
— Eu, na verdade, não consegui. Nunca vi um fecho desses.
— Eu me despi para você? — Sabrina fez uma careta, puxando a
coberta até o pescoço. Ela parecia revisitar as lembranças, sem conseguir
entender o que aconteceu. Se ela lembrasse, veria que a deitei
respeitosamente sob a colcha e tentei olhar o mínimo possível quando
soltou o corselete. A parte de baixo foi retirada por ela mesma quando já
estava coberta. Juro que não vi nada.
Funguei, tentando permanecer impassível e não reagir como um tolo à
lembrança da peça entre os dedos enquanto a lavava. A verdade era que
nunca vi nada tão pequeno, delicado ou macio. Dava para enfiar aquela
coisinha em um dedal. Esconder dentro de um bolso ou passá-la entre as
tábuas de madeira do chão.
Sabrina olhou para a calçola como se ouvisse meus pensamentos e um
leve rubor tomou seu rosto. Então, com um gemido, voltou a cair na cama,
olhando para o teto enquanto se cobria até o nariz.
— Não me lembro de muita coisa. Só de ter bebido demais e começar a
sentir calafrios durante a noite. Mas sim, eu me recordo vagamente de ter
tirado a calcinha e tê-la estendido a você — resmungou.
Calcinha. O nome no diminutivo combinava muito com o traje mínimo.
— Se a apazigua saber, eu não vi nada, nem mesmo tentei. Sou um
homem de honra, Sabrina, mas precisava fazer algo ou ia perdê-la. Você
permaneceu inconsciente boa parte da noite de ontem.
— Deve ter sido uma virose, ou algum tipo de gripe desconhecida —
ela murmurou.
Continuava não fazendo ideia do que era aquilo, e pouco me
interessava. O importante era que Sabrina estava viva.
Ela pousou a mão na testa, primeiro com a palma, depois com o dorso.
— A febre passou, assim como o mal-estar. Só sinto o corpo fraco e um
pouco de dor de cabeça. — Ela girou o rosto para mim. — Obrigada,
Aaron. Não quis acusá-lo de nada, é só que… situações como essa, na
época em que vivo, me deixariam em pânico.
— Não me ofendi com a sua desconfiança. Faz bem em manter o seu
pudor com estranhos. — Meneei a cabeça e desci, prometendo voltar com
uma xícara de chá.
Assim que ela ficou confortável e alimentada, saí da torre disposto a só
voltar à noite. Pelo resto do dia lidei com o turbilhão das duas últimas
noites cortando lenha e carregando pedras para lá e para cá, gastando
minhas forças para tentar combater os desejos.
Talvez eu não fosse tão bom assim em resistir.
20
A ATRAÇÃO
SABRINA

O retorno de Valette, Aaron me disse, poderia levar semanas. Foi assim


que entendi que a vida passava diferente em 1564. Ao invés da
correria agitada que era o fluxo de acontecimentos no meu tempo,
ele aqui corria manso, como um grande rio. Era possível, por exemplo,
imergir naquelas águas e explorar suas profundezas, aprendendo a assar o
próprio pão, entender sobre salmouras e observar, da praia deserta, as
estrelas se moverem no firmamento. Em meio ao ar fresco, longas
caminhadas e café turco, meu corpo se recuperava devagar do que pareceu
ser uma gripe forte.
A diferença, agora, era que eu orbitava ao redor de Aaron como um
satélite silencioso. Passava os dias observando-o quando ele não percebia.
Via-o cortar a lenha com os braços desnudos, meus olhos fixos nos
músculos marcados, sentindo um calor estranho subir por mim. Nas horas
das refeições, conversávamos sobre trivialidades, mas de noite nos
separávamos tão rápido que quase não dava tempo de dar boa noite. Eu
subia ligeira para o quarto e ele permanecia no primeiro andar, como se não
nos atrevêssemos a ficar muito tempo na companhia um do outro.
Ninguém queria que a fagulha virasse um incêndio.
Em breve nos despediríamos de vez e era melhor não dar corda para o
que o corpo pedia. A tentação era grande, especialmente depois que lembrei
como o desejo podia nos dominar de forma tão poderosa.
Na minha frente, Aaron remexia na comida, sem fome. Ele evitava me
olhar, mas eu sabia que andava sendo observada. Não com os olhos de
antes, de quem não podia me deixar fugir; Aaron agora me observava por
outros motivos.
Desde a noite em que fiquei doente, sei que povoava seus pensamentos
também. Via isso na sua expressão, no corpo — aquelas estranhas calças
largas não escondiam direito o que acontecia por baixo — e na sua insônia,
logo que comecei a dormir no segundo andar. Ouvi-lo caminhar inquieto no
andar de baixo se tornou rotineiro.
O fato era que não estávamos mais no mesmo lugar de antes — dois
estranhos repartindo a torre, um querendo prender e o outro fugir. Ambos
agora desejávamos o mesmo: algo que envolveria toques e línguas, abraços
e beijos, partes duras e quentes entrando em outras úmidas e moles.
Voltei a comer a sopa, tentando afastar a sensação de eletricidade que
sempre enchia o ar quando começava a pensar em sexo. Foi quando me dei
conta em qual noite estávamos. Pelos meus cálculos, era 31 de dezembro,
dez dias depois da minha chegada.
Se fosse 2035, por volta desse horário, estaria no imenso banheiro de
mármore iluminado por spots de luz amarela me arrumando para uma festa
da nata da sociedade de Malta. Estaria parada diante da minha caixa de
maquiagem gigantesca, escolhendo que sombra ou blush passar. Então Zach
se aproximaria e eu forçaria um sorriso. Ele colocaria uma joia no meu
pescoço, daria um beijo no ombro oposto ao da tatuagem e perguntaria se
estávamos novamente bem um com o outro.
Eu sorriria e diria que sim, é claro.
No entanto, quando ele deixasse o banheiro, meu sorriso morreria e só
voltaria a aparecer quando entrássemos na celebração e eu fosse cercada por
gente estranha e esnobe. Seria mais uma noite infeliz, longe das pessoas que
eu amava de verdade.
Como me permiti prolongar por tanto tempo aquela vida de aparências?
Como aceitei que meu sofrimento valesse menos do que a satisfação das
outras pessoas?
Quando retornasse para casa, depois de pagar pelo meu erro, nunca mais
frequentaria um lugar onde minha alma não estivesse. Quando voltasse a
ser livre, prestaria mais atenção no mundo, começaria a frequentar praias e
a fazer caminhadas. Cortaria os laços com metade das pessoas que eu
conhecia e detestava.
E eu retornaria a dar aulas de História — mas agora, com outros olhos.
— Aconteceu alguma coisa? — A pergunta me acordou. Não tinha
percebido que estava planejando a vida enquanto fitava Aaron.
— Não, está tudo bem. — Voltei a comer. — Só estava pensando.
— Posso perguntar no quê? — Ele arrastou a colher no prato fundo de
sopa, sem me encarar.
— Lembrei que hoje é o último dia do ano. Não sei se comemoram a
passagem nessa época, mas não acho que ouvirei fogos de artifício
eclodirem na praia, não é?
Aaron apertou os olhos, que reluziram na chama fraca da lamparina.
— Nem sempre costumo entender o que diz, mas nesse caso, sei o que
são esses fogos. Só não compreendo como isso seria importante. Já vi
alguns poucos explodirem, mas em campos de batalha, para anunciar algo.
Fiquei curioso, agora: para quem estariam mandando uma mensagem?
Meu riso saiu aberto.
— Não é isso. No futuro, a passagem do dia 31 para o dia primeiro de
janeiro é uma data especial. A gente celebra a troca de ano, e é costume
soltarmos fogos coloridos e barulhentos, como se… déssemos boas-vindas
para o novo ciclo.
Quando percebi que ele se espantou com a informação, lembrei que
nessa época Malta ainda adotava o calendário Juliano e que esta era uma
noite qualquer.
— Nessa exata noite, nos reunimos em família ou com amigos. Muitos
fazem promessas de mudar ou melhorar algo no ano seguinte. — Larguei a
colher e me recostei na cadeira, correndo os olhos por Aaron. — Não
costumam, nesse século, espalhar cal nas soleiras ou algo que indique
purificação ou um novo começo?
Ele negou, como se a tradição não lhe dissesse nada. Aaron vinha de um
tempo muito anterior a ela e não a conhecia.
— Bem, essa é a nossa tradição no futuro. Confesso que adoro ver os
fogos de artifício explodindo, coloridos, no horizonte. Também gosto que a
noite ganhe o aroma das bebidas e comidas típicas do Ano-Novo. O ar fica
perfumado com cheiro do cacau… do cravo e das raspas de frutas cítricas
da imbuljuta, uma bebida servida depois da missa da meia-noite e no
primeiro dia do ano.
— Parece uma tradição bonita.
— É mesmo — assenti. — Cristopher passou a gostar de fogos com o
tempo, sabe? — adicionei. — Adorava apontar para eles com as crianças no
colo, e fazer a contagem regressiva até o momento da virada.
Aaron sorriu, imaginando o irmão no futuro que nunca conheceria.
Deus, ele ficava tão atraente quando sorria que cheguei a sentir calor.
— Bem, acho que vou descer até a praia e tentar, sei lá, aproveitar o
momento. Mesmo sem fogos.
— Você se importaria se eu fosse junto? — ele perguntou.
Outro tipo de fogos explodiu na barriga.
— Nem um pouco.
Quando terminamos de comer, ajeitamos a louça no balde e descemos a
trilha pelo caminho conhecido. Estendi uma manta na areia e nos sentamos,
respeitando uma certa distância. Aaron estava envolto em sua capa de lã, e
eu, na minha. Sobre nós, o céu mais estrelado do mundo girava tranquilo,
mostrando a beleza singela de galáxias distantes. No horizonte, nada além
de mar. A noite só era cortada pelo som das respirações e das ondas que
quebravam mais abaixo.
— Sente falta do barulho do futuro? — Aaron questionou, talvez
curioso pelo tempo em que seu irmão viveria. Quando contei, alguns dias
atrás, sobre o nosso barulho e como Cristopher sempre reclamava dele,
Aaron ficou assustado em imaginar um mundo onde não se ouvia mais o
silêncio.
— Não — respondi. — Sinto saudade de muitas coisas, mas não do
barulho.
Virando-me para ele, devolvi a pergunta:
— E você, sente falta de ter a torre apenas para si? Tenho ouvido você
se revirar no chão durante a noite. Ele é desconfortável, eu sei.
Aaron sorriu de maneira discreta.
— Não há o que fazer. Posso tentar arrumar um novo colchão, mas isso
levaria semanas. Como seremos chamados a São Ângelo a qualquer
momento, não vale a pena.
— Por que escolheu servir aqui, longe de tudo? — questionei, abraçada
aos joelhos. Ele poderia estar em qualquer lugar da costa, ou mesmo na
capital, Mdina, mas estava ali, no lugar mais remoto que conhecia.
Aaron pausou antes de responder:
— Eu quis deixar a Ordem, dois anos atrás.
— Você? Por quê?
Ele hesitou antes de responder.
— Perdi a fé. Cansei de lutar.
Lembrei de algo que ouvi do meu cunhado e entrei com cuidado no
assunto.
— Cristopher uma vez comentou que o irmão era recluso porque sofreu
uma grande perda e isso o mudou. — Aaron abaixou a cabeça, limpando a
areia presa às botas. — Desculpe, Aaron — pedi. — Se não se sentir
confortável em me contar, não precisa.
— Não me importo em falar sobre isso. Eu estive com alguém, uma
vez. Uma jovem da vila. Não foi nossa intenção, mas ela engravidou e
acabou morrendo no parto, com a criança.
— Cristopher comentou que se casou com ela.
— Na verdade, não chegou a dar tempo — ele respondeu, estalando o
pescoço e encarando o mar escuro. — Eu e ela nos encontramos algumas
vezes. Ela descobriu a gravidez tarde e prometi casamento assim que
retornasse da missão em que estava. Infelizmente, a tarefa se estendeu e
acabei voltando tarde demais. Cheguei a tempo do parto, mas ela e o nosso
filho não resistiram. Eu já vinha questionando a minha vida, mas acho que a
tragédia acelerou a decisão.
— Sente falta dela?
— Não tive tempo de conviver com ela, Sabrina. O amor viria, tenho
certeza, e sei que seria um bom pai — a voz soou inchada de certezas —,
mas desde que morreram, parei de acreditar que o sentimento pudesse
chegar um dia. O ciclo era apenas de dor, nunca de benesses. Quando
achava que as coisas iam mudar, padecia um pouco mais. Foi quando pedi
para sair da Ordem e Valette, em contraproposta, me ofereceu a torre. Eu
precisava de distância e tempo para me curar, por isso aceitei.
Abaixei a cabeça, mexendo no laço de couro do sapato, concordando. O
tempo e a distância curavam muita coisa. E se não curavam tudo,
amenizavam muito.
— Não pretendia lutar de novo até você aparecer.
Olhei para ele e sorri sem jeito.
— Desculpe por bagunçar sua vida.
— Não se desculpe. Você trouxe notícias preocupantes. De qualquer
forma, assim que os otomanos fossem vistos, eu voltaria para a Ordem.
Compreendia a sua decisão e não esperava nada além disso. Malta
estava na iminência de passar sua maior provação e sua gente morreria aos
milhares. Era óbvio que um cavaleiro honrado como ele se juntaria às
forças de defesa.
No entanto, talvez ele perecesse durante o Cerco também.
Curiosamente, Aaron nunca perguntou se eu sabia o que aconteceria a si
mesmo. Homens como ele não precisavam saber. Entrariam em guerra
independente da resposta, porque suas almas eram feitas de coragem e seus
propósitos, inegociáveis.
Como o silêncio se estendeu demais, falei algo idiota, só para competir
com o barulho das ondas:
— E depois dessa moça, não houve mais ninguém?
Ele negou com um movimento curto de cabeça.
— Nenhuma Sabrina, se é o que quer saber.
Meu rosto avermelhou por ter sido lida com facilidade. Alisei o
pescoço, cansada de lutar contra algo que vinha se tornando uma certeza:
talvez fosse eu, sim, naquela faca, e ele, por fim, o homem por trás da
minha tatuagem. Eu não sabia como ou quem fiaria uma trama daquelas,
cruzando uma linha perdida em um século com outra, num tempo distante.
Precisaria crer que algumas pessoas estavam predestinadas e que as mãos
que teciam o destino poderiam cometer deslizes.
Estar ali, então, era o acerto de um erro?
Sempre achei que existia uma força “lá fora”, uma entidade divina que
nos colocou no mundo e nos deixou em paz para aprendermos sozinhos
algumas lições. Que nossas vidas eram determinadas por nossas próprias
ações e escolhas, e não por cordinhas sobre nossas cabeças, manejadas por
algo superior.
Eu acreditava nisso até encontrar naquele cavaleiro discreto alguma
coisa sem nome. Algo que minha alma procurava e só encontraria nele.
— Acho que você já sabe, certo? — Aaron sussurrou.
As palavras pairaram suspensas no ar, iluminadas apenas por estrelas
distantes e uma lua prateada demais.
O que eu já deveria saber? Que me tornaria importante para ele? Não
para Malta, ou para Ordem — mas para ele?
Com a respiração em suspenso, capitulei à força maior e assenti. Acho
que sempre soube.
Sem fazer barulho, Aaron se moveu, ajoelhando-se na minha frente.
Não foram gestos sorrateiros, apenas lentos e pensados. Às vezes eu me
reconhecia nessa maneira silenciosa de atravessar o mundo, como se não
quisesse tropeçar na vida ou bater a dor nas quinas. Eu o entendia melhor
do que ele mesmo imaginava.
— Em toda a minha vida, nunca pensei que pudesse me tornar um
covarde diante de alguém, Sabrina, mas frente à sua presença, sou o oposto
da valentia.
Nem as ondas, nem a brisa incansável do oceano, nem mesmo meu
coração agitado podiam ser ouvidos sob a rouquidão da sua voz. Pensei em
dizer que ele não era um covarde, mas todos os meus pensamentos estavam
perdidos em meio aos fogos que estouravam, coloridos, dentro de mim.
— Ando fingindo que não sei o que se tornará para mim, e tento, a todo
momento, não pensar que cruzou cinco séculos para estar sob os meus
cuidados. Porém, não posso deixar de considerar, e não apenas por causa da
adaga, do meu nome na sua pele ou da intenção do meu irmão em enviá-la
para cá, que se tornará única na minha vida. Há mais por trás da decisão de
me ajoelhar diante de você do que motivos que outras pessoas me deram.
Desci as vistas devagar para os joelhos afundados na areia, ouvindo-o
concluir:
— Sua chegada partiu o tempo em dois, Sabrina, e não há mais antes ou
depois sem que exista, no meio, você. Diga-me que essas desconfianças são
infundadas e nunca mais a aborrecerei. Afirme que nunca cogitou, em
algum momento, ter sido dividida ao meio por um criador displicente que
entregou um fragmento do seu espírito no seu século e outro pedaço, no
meu. Fale que não pensou, nem por um instante, que talvez esse não fosse
um encontro, e sim um reencontro. E confesse, principalmente, se estou
assustando-a, por que se assim for, eu me afastarei. No entanto — Aaron
pausou —, se permitir que eu a toque para mostrar que sua essência e a
minha são a mesma, então…
Deslizei as mãos pelos braços duros de músculos e subi os dedos até o
peito largo. Aaron parou de falar, os olhos fixos no movimento.
Se havia palavras nesse mundo para descrever o que estava sentindo
depois do que ouvi, elas se recolheram. Arrebatada por emoções que ainda
desconhecia, falei a única coisa que poderia:
— Tem a minha permissão, Aaron.
21
O BEIJO
SABRINA

N ão era amor — ainda —, mas se tornaria, e essa era uma certeza que
eu compartilhava com Aaron. No entanto, no momento, era paixão.
O primeiro toque de lábios se tornou rapidamente um beijo
intenso. As mãos enormes se embrenharam no meu cabelo e firmaram
minha face para que sua língua encontrasse a minha. Nossos rostos se
ajustaram e seus dedos se curvaram ao redor da minha cabeça, mostrando
todo o seu ímpeto de se conter. Aaron era um homem rústico e tinha a mão
pesada. Era também muito maior do que eu e dez vezes mais forte, o que
ficava claro em cada toque.
Ajoelhei na areia, abraçando-o enquanto tentava fechar as mãos em suas
costas. Aaron era largo demais e tudo que consegui foi puxá-lo para mim.
Caímos na areia, seu peito largo contra o meu, pressionando os meus seios,
e sua mão áspera desceu pelo meu rosto. Seu suspiro morno aqueceu minha
pele; ele tinha retido o ar até ali e finalmente o soltava.
Não queria pensar no que essa noite significava, apenas senti-la. Fechei
os olhos quando os dedos grossos desceram pela minha cintura e coxas
firmes se encaixaram entre as saias rodadas do vestido. A virilha inchada,
pressionada contra a minha intimidade, mostrava que ele estava pronto para
me dar o prazer que eu tanto queria. A sensação de que logo seria
preenchida me fez soltar um suspiro alto.
— Não posso tomá-la aqui. — Aaron se ergueu, me levantando junto
consigo, me carregando com facilidade pela trilha em direção à torre.
Meu coração saltava desordenado enquanto ia beijando-o pelo caminho,
primeiro no peito largo, depois no pescoço, e por fim, quando fui colocada
em pé diante da porta da torre, novamente na boca. Algo me dizia que
entregaria a ele naquela noite não só meu corpo e meus beijos, mas também
o acesso à minha alma — e Aaron não avançava manso pelo caminho.
— Quero tê-la na minha cama — decretou, jogando-me sobre seu
ombro como um saco flácido. Desatei a rir ao ser carregada pelas escadas
até o segundo andar.
Atirando-me na cama, ele se deitou sobre mim, lindo e assustador.
Apertei as coxas que estavam em volta da sua cintura, pressionando o
volume da virilha estufada entre elas, perdida no seu rosto bonito.
Aaron, repeti baixinho, sentindo seu nome deslizar na minha língua,
querendo que nossas roupas desaparecessem num passe de mágica. Há
quanto tempo não me permitia sentir o toque prazeroso de um homem? Há
quanto tempo não desejava que alguém me acariciasse?
Arrastei a face na dele, e a aspereza da barba e o cheiro masculino me
amoleceram em seu abraço. Os dedos acharam o caminho que a imaginação
já havia aberto e revelaram, ao desatar o laço da camisa, um peito cheio de
músculos. As ondulações nos braços eram duras como pedras e deliciosas
ao contato. Ele se afastou um pouco, e toda a emoção que não demonstrava
em palavras, estava ali, reluzindo em meio ao verde escuro dos olhos, me
chamando como um feitiço.
Um estremecimento delicioso anunciou que minha intimidade pulsava,
úmida, viva, melando o meio das minhas coxas a ponto de escorrer pelas
pernas. Aquele era o meu desejo sobrevivendo ao relacionamento ruim,
ditando que ainda podia escolher. Eu queria aquele homem. Queria senti-lo
se movimentar dentro de mim. Sei que não seria delicado ou romântico,
porque desconfiava que tudo que Aaron podia dar ou fazer dessa forma,
usou nas palavras que despejou em mim lá nas areias da praia, e eu não me
importava nem um pouco. Seria duro e rude como ele próprio era,
exatamente o que meu coração ansiava.
O olhar trocado durou pouco. Aaron voltou a descer a boca até a minha
e meus dedos procuraram o pênis intumescido. Acariciei-o, sentindo o
volume inchado sob a calça de tecido grosseiro, as unhas curtas indo e
voltando dos testículos até a ponta, fazendo-o grunhir dentro da minha
boca.
— Sabrina… — Meu nome saiu entre mordidas leves e movimentos
bruscos dos lábios. Aaron ergueu o tecido da saia e desamarrou a própria
calça, ao mesmo tempo que minha mão encontrava os fios crespos que
levavam ao seu pênis. Ele era tão imenso e grosso que cheguei a engolir em
seco. Seu peito por baixo da camisa aberta mostrava fios escuros e
levemente encaracolados. Senti a mão possessiva se embrenhar entre as
minhas coxas e encontrar o clitóris — sem preâmbulos ou desvios.
Um som rouco brotou da garganta dele, um som de desejo contido e de
espera findada. Imitando o movimento um do outro, movemos as mãos, ele
introduzindo o dedo em mim devagar, molhando as pontas para espalhar a
umidade, e eu com as palmas pela superfície sedosa e quente do membro
rijo. A sensação deliciosa trouxe arrepios ao meu corpo e um desejo
primitivo de querer ser tomada por inteiro.
Arqueei as costas, gemendo baixo quando o dedo chegou até o final do
meu canal, e a boca faminta desceu até meus seios. Eu já tinha imaginado
como seria sentir o toque da língua dele na minha pele, mas aquilo excedia
qualquer passeio da imaginação. Aaron era bruto nos gestos, mas não me
machucava; era intenso sem ser ríspido, e definitivamente não era a rocha
fria que parecia. Seu hálito era gostoso, seu beijo, uma loucura, e a visão de
seus ombros e bíceps volumosos sobre mim, a causa de tremores contínuos.
Minha imaginação era boa, mas o homem de carne e osso era melhor.
Eu estava sendo beijada e tocada com fome por aquele guerreiro
imenso, sentindo seus cílios varrerem minha pele devagar, os lábios bem
desenhados, escondidos por aquela barba espessa, roçarem por mim. A voz
áspera, que parecia ter sido lixada antes de sair da garganta, gemeu no meu
ouvido, indicando que o que eu fazia estava bom.
E ele era quente. Uma fornalha. Sentir seu peso me colar à cama ao se
deitar sobre mim me fez soltar um arquejo de satisfação. Abri as pernas
para que ele enfiasse os dedos até o fim na minha intimidade, sentindo uma
contração interna engoli-lo, puxando-o para dentro, querendo abrigar seu
membro. A escuridão era quase completa, assim como o silêncio. Tudo que
se ouvia eram nossos gemidos e suas arfadas pesadas.
Voltei a fechar os olhos, sentindo o calor da boca de Aaron se fechar ao
redor do bico do seio, sobre o tecido. Ele sugou através do linho até molhá-
lo, mordiscando a ponta e chupando-o por cima do pano, me enlouquecendo
com o atrito. Mordi os lábios para não soltar um gritinho quando a ponta do
dente puxou a pele do mamilo.
Contraí as pernas, sentindo uma fome arrebatadora. Queria sexo cru,
faminto e desejoso. Sem mais pedidos de desculpa ou tentativas de fazer as
coisas ficarem bem de novo. Precisava daquele tipo de relação, que me
deixaria mole e entregue, finalmente saciada.
Ansiosa, abaixei a calça de Aaron e removi todo o membro de dentro,
alisando as bolas macias, quentes, o pau sedoso e duro, a ponta molhada.
Removendo os dedos de mim, Aaron segurou o próprio membro, a mão
por cima da minha, como se precisasse controlá-lo.
— Você foi uma tentação desde o dia um, Sabrina.
— Você escondeu bem. — Sorri para o rosto agora próximo.
— Não pareço, mas sou um cavalheiro. Achei que era bom em resistir.
Descobri que com você, não sou.
— Eu sei. — Beijei seu queixo. Nunca achei que ele não fosse um
cavalheiro, mas saber que ele não conseguia resistir a mim encheu meu
peito de coisas boas.
Aaron soltou minha mão e se afastou. Ajoelhando-se sobre as minhas
coxas, abriu o vestido com gestos precisos e agitados, quase arrancando os
botões. O ar frio envolveu os mamilos úmidos, arrepiando cada gomo da
pele ao redor.
— Onde está aquela peça bonita de renda? — ele perguntou baixinho.
Apontei para um dos baús, fazendo-o sorrir de volta. O gesto mostrava
claramente que ele gostou de não a encontrar tanto quanto gostaria de vê-la
em mim outra vez.
Deitada, tinha a visão privilegiada da calça aberta e do membro robusto
repousado sobre o meu ventre. As mãos imensas se fecharam ao redor dos
meus seios, pequenos para o tamanho delas. Aaron os massageou com
delicadeza, os olhos hipnotizados pelo formato. Então, desceu a boca e os
lambeu, lenta e vagarosamente, como se há dias quisesse sentir o gosto e a
textura deles. Também havia partes dele que eu queria experimentar, mas
deixaria para outro momento.
Acariciei os braços pousados ao lado, com saudade da sensação de
fechar os olhos e confiar no toque de um homem. Era irônico que a
confiança viesse de alguém de outro século, conhecido por ser um bom
torturador. Confesso que também sentia falta de me entregar para o que não
tinha nome; da sensação de completude que só um desejo satisfeito era
capaz de dar. Os pensamentos evaporaram quando a língua morna arrancou
de mim suspiros intervalados, me preparando com calma e lentidão para o
que viria a seguir. A falta de pressa daquele rio lento que era o passado
nunca foi tão perfeita.
A lambida no seio direito se tornou uma chupada vigorosa e sufoquei
um gemido de êxtase quando ele o largou e fez o mesmo com o outro.
Deslizei o dedo pela barriga dura até tocar a ponta do membro, espalhando
vagarosamente o líquido melado pela cabeça redonda. Toda vez que Aaron
sugava forte demais um dos seios, eu apertava o pau entre os dedos, numa
dança de toques e línguas que não sabia mais se eram causa ou
consequência de novas investidas.
As chupadas não se resumiam aos mamilos, mas a toda a carne em
volta. Aaron tinha fome, uma pegada vigorosa e um desejo primitivo que
deixou algumas marquinhas. Se continuássemos com aquela brincadeira,
poderia chegar ao orgasmo antes do que imaginei. Pelo jeito como Aaron
respirava, ele também.
Então, como forma de se controlar, ele se deitou sobre mim e começou a
beijar meu pescoço, espalhando toques carinhosos de um lado para o outro.
Sei que refazia, naquela trilha úmida, o caminho das marcas de dedos com
que me viu chegar. Como se fosse uma forma de me compensar pela
tristeza e a dor que já tinha sofrido. Aquilo me enterneceu. As lambidas e
passeios de lábios ali foram delicadas como aquele homem nunca era.
Quando achei que fosse finalmente me tomar, Aaron parou as carícias.
Ele encostou a testa na minha como se precisasse acalmar o corpo e a
respiração, e ergueu as vistas. Eu entendia sua necessidade de contenção; eu
mesma precisava de um tempo para entender o que estava acontecendo.
Acariciei seu cabelo e a lateral da face, sentindo a barba crescida pinicar a
ponta dos dedos. O que estava acontecendo ali era puro desejo — e, ao
mesmo tempo, muito mais.
Durante todos os anos em que me contive, em que neguei meu prazer,
mais do que toques em partes erógenas, sentia saudade de beijos. Por isso o
puxei e beijei-o profundamente, sentindo sua respiração acelerada, seu
desejo cru, mas também a carência doce de nossas línguas. Aaron também
sabia que nem de longe seria apenas sexo.
Assim que parei de beijá-lo, empurrei de leve seu ombro para baixo,
como se mostrasse o que queria. Precisava muito chegar ao orgasmo, tanto
que sentia agonia. Necessitava daquele homem bonito me beijando mais
abaixo, mordiscando a pele da minha barriga, sua língua escorregando para
dentro de mim e eu me derretendo contra ela. Queria a barba entre a pele
sensível das coxas enquanto ele engolia meus fluidos, e mais tarde eu faria
o mesmo com ele.
Aaron parou com a boca sobre o meu ventre, respirando forte, os dedos
apertados com força contra a carne da cintura. Por favor, Aaron, continue.
Eu queria tudo. A penetração, a cadeia de espasmos rítmicos que tomaria o
meu corpo e me faria ondular sob a sua força e pressão. Queria gemer e
gozar outra vez.
Por que ele havia parado? Aaron respirava com força, imóvel, e me
perguntei pelo que esperava.
Então entendi: ele me lembrou um arqueiro antes do lançamento. A
energia posta no arco, a tensão do fio, a força da flecha. A concentração no
objetivo e no que precisava fazer.
Como se tivesse puxado o máximo que sua força de vontade aguentaria,
Aaron se libertou.
Ele separou minhas pernas com as duas mãos, esfregou a ponta do
membro contra mim e entrou de uma só vez. Largo, grande, propelindo-se
adiante com propósito e vontade. Soltei um gemido, que foi calado pela
boca que me devorava, ao me abraçar melhor para entrar até o fim. A
liberação de energia, a força acumulada e o desejo insano me fizeram
derreter ao redor daquele homem. Fechei os olhos e me deixei levar,
sentindo a invasão romper minhas últimas defesas. Com a mão embrenhada
entre as minhas mechas, Aaron grunhiu e estocou com força, mordiscando
meu queixo erguido, molhando a pele com o seu suor, erguendo meu
traseiro para se caber inteiro.
Nunca havia sido tomada daquela maneira, de forma tão intensa e total.
Quando, no fim do atrito divino um orgasmo me partiu em duas, precisei
entender, imóvel, que uma daquelas partes já não me pertencia mais.
Ele a tinha pego para si.
22
A MANHÃ SEGUINTE
SABRINA

E u tinha acabado de misturar o café na água fervente quando Aaron


entrou na torre, de volta dos afazeres no quintal.
Da mesma maneira que enrijeci ao lado do fogão, ele fez o
mesmo na soleira da porta.
Era estranho como desde ontem algo entre nós havia mudado. Menos de
24 horas atrás, trocaríamos cumprimentos educados e olhares furtivos de
quando em quando. Eu sentiria borboletas voando no estômago toda vez
que ele passasse por perto. Eu acompanharia seu afastamento e torceria para
que voltasse a vê-lo em breve.
Agora, todo meu corpo parecia em espera, vibrando com a tensão.
Revê-lo depois da noite era como colidir a 80 km por hora contra um muro
de pedras. Aaron havia deixado a cama cedo, antes de eu acordar, e era a
primeira vez que nos víamos depois de tudo. Meu coração batia de um jeito
insano, a respiração estava presa nos pulmões e as mãos tremiam como as
de uma adolescente que encontra o garoto que adora pela primeira vez.
Olhos verdes se fixaram em mim, vagamente perturbados, como se a
eletricidade do encontro depois da noite tórrida também lançasse choques
por ele. A indecisão durou pouco. Ele entrou, fechou a porta e murmurou
um bom dia que pareceu um grunhido.
— Qahwa? — ofereci, sem jeito.
— Sim, obrigado.
Enchi a caneca de argila com os dedos trêmulos, meio em antecipação,
meio em temor. Temor do que, eu não sabia, mas aqueles olhares
enviesados vindos do homem silencioso não colaboravam para o dilema.
Estendi o café e ele aceitou, pegando a xícara por cima dos meus dedos.
Era difícil permanecer coerente, especialmente depois de tudo o que Aaron
fez comigo na noite passada.
Uau, pensei enquanto sorvia um gole da bebida encorpada e recordava.
Uau, uau e mais uau.
Sem imaginar o que passava pela minha cabeça, ele se recostou na
mesa.
— Estou pensando em pedir a Valette que a coloque sob os cuidados de
outra pessoa.
Paralisei com a caneca na frente da boca. Por longos segundos, não
reagi, chocada com a sugestão.
— Você o quê?
Aaron inspirou fundo, como se tirasse honra das profundezas da sua
alma.
— Estou a um fio de me tornar um perigo — avisou baixo. — Mostrei-
me indigno da tarefa de mantê-la em segurança. Você é valiosa, Sabrina,
muito mais do que eu. E… não poderia ter feito o que fiz a você.
Ainda estava boquiaberta. Aquele homem estava querendo me afastar
porque era um perigo para mim? Deus, e que outro ser humano usaria para
uma atitude tão honrada a palavra indigno?
Alheio ao fato de que eu estava me derretendo em pé, Aaron ergueu
carrancudo o recipiente até os lábios e disse antes de se esconder atrás dele:
— Meu comportamento foi deplorável.
— Deplorável? — Segurei o riso. — Eloquente, talvez?
— Ríspido — ele corrigiu. — Impulsivo, irresponsável.
— Acho que está mais para excitante. E tórrido.
— Não! Foi imprudente e insensato! Eu a machuquei.
— Bem… Concordo que estou latejando e ardendo em alguns lugares,
mas preciso corrigir de novo suas palavras. Foi quente e vulcânico.
— Vulcânico? — Aaron arregalou os olhos. — Você está sob meus
cuidados, e não vejo como um vulcão pode tomar conta de alguém.
Eu ainda segurava a risada. Que tipo de diálogo era aquele? Só podia
ser coisa dos homens do século XVI.
— Meus desejos bestiais não podem interferir na missão, que é nobre e
importante demais. Você sabe coisas que salvarão o país e eu lhe devo
respeito, Sabrina.
Só balancei a cabeça, negando tudo que ele dizia. Aceitar meus desejos
e satisfazê-los deliciosamente também era uma forma de respeito, na minha
opinião.
— Não quero que pense que sou uma criatura indomável. Sei me
controlar. Posso me controlar — ele pareceu dizer aquilo para si mesmo.
Arrastando a mão pelo cabelo e bagunçando os fios na frente, continuou,
solene, como se conversasse comigo de um púlpito, ou de um
confessionário: — É apenas que… sua presença é uma tentação grande
demais. Agi impulsivamente. Com força demais. Tenho a mão pesada.
Voltei a beber meu café, escondendo um sorriso.
— Está achando graça? — Ele tentou enxergar minha expressão atrás da
caneca. — Estou falando sério, Sabrina.
— Não sou uma donzela casta em perigo e nem você um predador
incontrolável, Aaron.
Suas sobrancelhas franziram, como se achasse que éramos exatamente
aquilo.
— Eu a machuquei. — Ele desceu o olhar angustiado até a pele do meu
pescoço, esfolada pela barba e pelos beijos intensos, seguindo até os seios e
a cintura, parando por fim nas minhas coxas, onde, sob todo aquele tecido,
ele deixou algumas marcas de dedos afoitos. — Eu a marquei onde foi
machucada. Não consegui me conter. Você é frágil e eu fui uma besta
descontrolada.
— Há diferença das marcas que me deixou para as anteriores, e você
sabe disso.
— Uma mulher como você merece cavalheirismo e respeito, e eu… sei
que continuarei a ser um perigo para o seu bem-estar, se continuar aqui.
— Não vou a lugar nenhum — avisei de forma definitiva, pousando a
caneca bem longe da mesa, porque conhecia aquele descontrole e sabia
onde ia dar.
Céus, eu queria Aaron exatamente como era. Um bruto gentil. Um
gigante de mão pesada. Uma besta descontrolada, que fosse. Queria o furor,
o brilho malvado do seu olhar, as mãos afoitas sobre mim outra vez, os
lábios sedentos e o desejo incandescente.
Lá estava eu, derretida, sentindo um universo de sensações desabar
sobre nós. Só que, desta vez, Aaron me encarava bem menos contido do
que antes.
Dei um passo para perto e parei ao seu lado. Sua mão foi diretamente
para a minha cintura.
Deplorável, ríspido, imprudente e insensato… nada daquilo exprimia o
que estava acontecendo ali. E sei que ele concordava que vulcânico era,
sim, um adjetivo muito mais condizente para descrever a noite de ontem.
Aaron me puxou para o seu peito, como quem admite a contragosto que
não saberia resistir, e nem queria. Meus olhos encontraram seu queixo. Ele
cheirava a fumaça e suor, a sabão rústico e àquele cheiro masculino e
terroso que me deixava louca.
— Por que está fazendo isso? — sussurrou no meu ouvido. — Eu a
esfolei.
Ah, o poder das palavras.
— Sim, você me esfolou — concordei, sorrindo de leve. Os mamilos
estavam sensíveis, as coxas marcadas e o meu interior ardia, porém de
desejo. — E quero mais.
— Não deveria querer. — O murmúrio delicioso veio acompanhado de
um passeio de dedos que delineou o círculo dos meus seios, que se
arrepiaram imediatamente com a intimidade do toque. Ops, sem sutiã outra
vez, sorri. Aaron me censurou, o polegar traçando o desenho da aréola. —
Não consegui me controlar.
— Eu também quis, Aaron — respondi ao senti-lo puxar a gola da
camisa de linho para o lado, descendo-a pelo ombro e revelar um seio nu.
Ele aninhou-o entre as mãos, voltando a me observar.
— Tem certeza de que não prefere a segurança de um castelo? — Aaron
perguntou em meio a massagem, seus olhos implorando para que negasse.
— Posso enviá-la para o palácio do governo, em Mdina. Garantir um
esconderijo melhor.
— Estará nele? — perguntei. Sem me responder, ele desceu sem hesitar
a cabeça até o seio para lambê-lo, primeiro com cuidado, e depois de um
jeito faminto, chupando a ponta até o limite da dor. Agarrei seu cabelo e
mordi o lábio inferior. Ele não estava brincando quando disse que o que
sentia era intenso.
— Não — o homem verbalizou após um tempo. — Não posso ficar
perto de você.
— Então não quero ir.
Aaron voltou a ficar de pé, a face dura na minha. Pegou então cada um
dos meus mamilos entre os polegares e os indicadores e os torceu devagar,
como se me punisse. Arfei alto. O toque era forte e preciso, fazendo as
pontas doerem, porém, ao invés de pedir que parasse, eu queria mais.
Com os dentes travados, senti as pontas me soltarem e se moverem em
direção às pernas, infiltrando-se sob o vestido, trazendo-me para perto.
Rocei a cintura contra seu quadril e recebi um apertão promissor na bunda
em resposta.
— Gosto do seu corpo, Sabrina — confessou, rouco.
— Eu sei — gracejei, arrastando as mãos pelo cabelo escuro e curto. As
mãos espalmaram minha bunda nua e me trouxeram com fome para mais
perto, para me esfregar contra a ereção confinada pela calça rústica.
— Eu a quero tanto que me envergonho. Quero coisas que nem sabia
poder querer com uma mulher.
Senti meu vestido subir pelas coxas e suas mãos acharem o caminho sob
os metros de pano até os lábios quentes e agora inchados da vulva. Um
dedo subiu e desceu sobre a fenda, cheio de interesse e pressão. A
massagem nada suave enviava correntes de desejo pela minha coluna. O
toque era dolorosamente provocante e me fazia arder. Como se assolado por
um ímpeto novo, Aaron me sentou na mesa, ergueu as saias e abriu minhas
pernas. Eu podia ver o brilho de seus olhos escondidos por uma névoa
sensual e faminta, como se nada fosse capaz de pará-lo agora.
Aquilo era tão primitivo… Tão cru e não planejado.
Sem conseguir pensar direito, puxei os botões da sua camisa até
arrancá-la, correndo os olhos ávidos pelo peito marcado por cicatrizes, os
mamilos planos e pequenos, e pelos fios escuros que desciam como um
funil em direção ao umbigo. Aaron era todo músculos, nervos e veias
ressaltadas. Queria beijá-lo e mordê-lo por todo aquele caminho que levava
até o membro.
Sua língua deliciosa tracejou do pescoço aos meus seios, desceu pelas
costelas até o estômago, então pulou o amontoado de tecido e seu rosto
sumiu das minhas vistas. A saia agora o tapava, mas senti quando, com os
polegares, abriu meus lábios internos e abocanhou o clitóris.
Mea culpa, mea máxima culpa. Desci sem calcinha também.
O calor da língua se infiltrou na minha intimidade e embrenhei os dedos
pelo cabelo macio, puxando-o em agonia. Podia sentir a palma áspera
pressionar minhas coxas com força, afastando-as, e a língua sorver meus
líquidos. Não fazia ideia se sexo oral era algo comum naquela época, mas
Aaron era a prova de que existia.
Ele encostou num ponto com a língua e senti o corpo espasmar. A partir
dali o homem só chupou e chupou o pontinho sensível, me fazendo
sussurrar seu nome e engasgar pedindo mais.
Deitei-me na mesa, os pés apoiados na borda, e arqueei a coluna. Nada
mais existia. Nem o tempo, nem minha vida pregressa. Nada. Também não
fazia sentido compará-lo com homem algum do futuro, porque nenhum me
chupou com tanta lentidão e paciência, com tanta vontade e vigor. Segurei
na beirada da mesa, extasiada pela eletricidade que a ponta da língua e os
lábios duros provocavam, quase gritando quando a barba pinicou o feixe de
nervos e eu saltei no lugar. Com o movimento, as mãos passaram a acariciar
minha bunda, a barriga, os seios. Quando estremeci com violência e soltei
um gemido de prazer, Aaron deixou o meio das minhas pernas e se colocou
como um gato em cima de mim. O volume dentro da sua calça era
indecente.
Meu coração agora dava saltos ao ver seu rosto másculo sobre o meu,
ainda mais bonito com aquele sorriso maldoso nos lábios. Eu podia sentir o
cheiro da minha excitação vindo da sua boca e isso despertou uma nova
onda de desejo. Meu peito subia e descia, aproveitando o calor morno do
orgasmo. Os olhos verdes, tão belos como o de um felino, corriam as
minhas feições agora relaxadas.
— Eu nunca tinha feito isso antes — ele falou.
Foi impossível não rir.
— Difícil acreditar. Você pareceu um mestre na arte.
Uma carreira impecável de dentes brancos e perfeitos se abriu, desta vez
completa.
— Como pedirei perdão a Deus por isso — Aaron alisou minha cintura,
as mãos possessivas gritando fome —, se tudo que mais quero é fazer de
novo?
Minhas pernas o envolveram, trazendo-o para perto. Confesso que não
havia uma única parte minha preocupada ou arrependida de fazer sexo com
aquele homem bonito. A única culpa que pairava no ambiente era a dele.
Como pude achar que estava estragada para o amor? Que toque algum
poderia me fazer sentir prazer outra vez? Estava muito enganada. Sentia o
corpo vivo, respondia aos beijos e carícias de Aaron e sabia discernir muito
bem onde estava a verdade entre dedos falsamente delicados e os firmes
daquele homem.
Meu corpo sabia, meu espírito sabia, minha alma sabia em que toque
havia amor.
Ele tirou o membro rosado da calça, duro e riscado de veias, e encaixou
na minha entrada, esfregando-o lentamente para cima e para baixo. Um
gemido escapou do fundo da minha garganta quando Aaron se empurrou de
vez. Suas últimas palavras antes de se concentrar em arremeter foram
“minha perdição”.
Eu não estava preparada para a intensidade daquilo, e nem para as
estocadas secas e brutas. Só que isso não significava que não estava
adorando.
Perdida no calor sexual, devaneei sobre os motivos que fizeram minha
família me enviar para o passado. As ideias erráticas não se conectavam,
quebradas e misturadas com gemidos e pedidos por mais. No último
segundo antes de me perder no momento, naquele instante em que os pés
estão na borda do precipício e o corpo preparado para saltar, cogitei se em
um futuro muito breve eu não diria ou ouviria a palavra amor.
Ao erguer o rosto, encontrei os olhos de Aaron nos meus, enquanto ele
se movimentava devagar. Eu podia ler em cada raio daquela íris bonita as
mesmas questões.
O beijo apaixonado que se seguiu, antes que ele se esvaziasse dentro de
mim, foi a resposta: aquela palavra sempre esteve entre nós, mesmo quando
pertencíamos a séculos diferentes.
23
OS DIAS
SABRINA

E nquanto os dias passavam lentos à espera de uma mensagem do


Grão-mestre, meu coração ia se curando. Quem ditava a hora de
levantar da cama era o sol, que também decidia quando dormir. Meu
estômago não doía mais, a mente desacelerou e o ritmo da natureza se
impôs. Muitas das coisas que sabíamos sobre essa época, no futuro, eram
corretas — a vida dura, a luta constante por segurança, comida, lugar no
mundo — e eu não queria nem pensar no que teria acontecido se tivesse
saltado no tempo e encontrado pessoas ruins. Entretanto, não foi o que
aconteceu. Quando fui enviada para cá, Cristopher sabia que eu encontraria
meu caminho até Aaron, ou ele me acharia.
Enquanto coletava água do poço, olhei para trás, vendo-o terminar de
colocar os peixes que pescou no dia anterior no defumadouro. Deslizei as
vistas pelas costas eretas e os ombros incrivelmente largos. Pela curva da
bunda marcada pela calça apertada nos lugares certos e pela destreza com
que realizava qualquer tarefa — fosse lutar, rachar lenha ou fazer sexo.
Como aquele era um posto de vigília, Aaron nunca afastava os olhos do
mar. Às vezes, parava o que estava fazendo e, enquanto limpava as mãos
em um pano encardido, mirava o horizonte, atento ao mínimo surgimento
de sinais na água. Ele explicou que mantinha uma fogueira grande e num
lugar mais alto pronta para ser acesa caso navios fossem avistados. Era uma
forma inteligente de avisar o posto seguinte de que algo acontecera e fazer
com que uma mensagem chegasse logo às cidades.
Quando percebia que eu o observava, Aaron parava tudo que estava
fazendo e se aproximava. Insaciável, me levantava no colo e, sem dizer
nada, me conduzia de volta para a torre, onde me despia como quem abre o
pacote de uma iguaria deliciosa e me fazia gemer e alcançar sempre mais de
um orgasmo.
Estremeci ao pensar nas últimas noites. Que tipo de loucura dava
naquele homem quando colocava as mãos em mim? Ele era voraz. Intenso.
Delicioso, diligente, afetivo nos atos, gentil, cavalheiro, e tinha um pênis do
tamanho do…
Suspirei.
Cansada, pousei o balde de madeira no chão e estiquei as costas. Ainda
não tinha me acostumado ao sono picado em duas partes. Como anoitecia
muito cedo, dormíamos (às vezes não) de sete da noite à uma da manhã.
Então Aaron saía para observar o mar. Quando via que estava tudo
tranquilo, voltava para a cama e conversávamos até as três da madrugada.
Geralmente os assuntos remetiam ao mundo no futuro e ao que eu sabia
sobre Malta. Então ele me deixava muito satisfeita outra vez e voltávamos a
dormir enroscados um no outro até o sol surgir.
Não era raro eu ter sono à tarde, como agora.
Entrei na torre com o balde cheio d’água. Assim que o coloquei sobre o
banquinho de madeira da cozinha, Aaron entrou. O cabelo estava molhado,
assim como parte da roupa, revelando os músculos torneados. Abri um
sorriso ao ver gotas deslizarem pela face e pingarem sobre os ombros.
— Tomou outro banho?
Ele entrou e fechou a porta, encerrando a lufada gélida. Quando se
aproximou, senti sua pele fria e vi que os lábios já estavam um pouco azuis.
— Não entendi o tom. Zomba de mim por isso, mulher?
— Eu? Imagine. — Sorri, presunçosa. — Mas para quem não gostava
de tomar banho no inverno, você está me surpreendendo.
Ele passou por trás de mim, e o frio que o rodeava foi trocado por calor.
Cheguei a fechar os olhos ao senti-lo parar quase colado às minhas costas, e
estremeci quando as mãos se fecharam ao redor dos meus braços.
— Hora do seu banho, agora.
— Ah, sim? — suspirei quando o peito largo encostou no meu corpo e
ele depositou um beijo discreto na curva do meu pescoço. Aaron gostava do
meu cabelo solto. Tinha prazer em tirá-lo do caminho com o nariz e deslizar
a barba por ali, me deixando sensível e arrepiada. — Você anda gostando de
me dar banho.
— Sim — os braços deslizaram até meu ventre, apalpando e arrastando
os dedos e unhas contra o tecido grosso do vestido. — É bom te banhar.
Você é macia e dócil.
Sim, eu era dócil, mas só para ele.
Senti os dedos grandes desamarrarem os laços dos tecidos, envolta em
uma nuvem de aromas masculinos: sabão, ervas, madeira queimada. O
corpo, sabendo o que viria, se incendiava de maneira deliciosa. Aaron
empurrou a manga de linho pelo meu ombro, beijando a curva do pescoço e
me fazendo segurar na mesa para não perder o equilíbrio. Minha intimidade
latejava, ansiosa pela penetração brusca e robusta, pelo ardor das paredes se
acostumando ao seu tamanho, a sensação de completude quando Aaron se
despejava dentro de mim. Nunca pensei em proteção, porque ele confessou
ser praticamente um monge e eu nunca consegui engravidar.
Levei a mão até sua cabeça atrás da minha, acariciando o cabelo macio,
tentando não pensar que em outra vida eu era casada, que jurei fidelidade a
outro homem. Já não pensava todos os dias em voltar para o presente — um
mundo de vidro e aço escovado, sacolas de compras e alimentos
empacotados no supermercado, luz elétrica, celulares e internet ultrarrápida
que nos enchiam de notícias inúteis e nos faziam sofrer de insônia e falta de
foco. Parecia quase natural estar agora cercada das texturas ásperas e da
vida rudimentar do século XVI, com seus tecidos feitos em tear manual e
não alvejados, utensílios de cerâmica, velas, lamparinas e comidas simples
e saborosas.
Virei, então, para encarar Aaron, o melhor que havia no passado.
O homem lindo que me fez descobrir como mãos podiam ser gentis e
acolhedoras, e que conseguiam me moldar como argila mole em contato
com elas.
— Estou feliz aqui, Aaron — confessei, vendo-o hesitar. Algo passou
diante das suas vistas, mas ele não parou. A boca colou de maneira delicada
na minha.
— Saber disso me deixa feliz também. — As mãos imensas me
ergueram sem dificuldade pelo traseiro e me ajustaram sobre a mesa,
afastando as pernas com movimentos lentos do quadril. Aaron se
posicionou na minha frente, e, ao deslizar as mãos pelo peitoral molhado,
ainda sobre a camisa, senti a pele eriçada, os mamilos escuros tesos, e desci
até a virilha estufada sob a calça, já desamarrada.
— Você foi toda feita para mim, għasel tiegħi.
Embora a palavra fosse linda — eu já tinha ouvido meu cunhado
chamar Isla assim —, seu tom era de tristeza.
— Sei que sim. — Enlacei-o pelo pescoço e Aaron mordiscou o canto
da minha boca. — Gosto dessa palavra. Ela me passa carinho.
— Sabe o que significa? — ele perguntou.
— Meu mel.
Aaron assentiu sorrindo e me afastei para encará-lo.
— As coisas que você fala são pura joia, sabia? Elas me fazem derreter.
De verdade.
— Você merece palavras bonitas, Sabrina. Sinto muito não saber dizer
mais delas.
Acariciei seu rosto. Ele não fazia ideia de como os poucos elogios que
me dedicava mexiam comigo. Era cedo demais para dizer que estava
apaixonada por aquele maltês de temperamento mediterrâneo, de sangue
quente e alma feroz? Talvez.
Porém, eu estava definitivamente inflamada por ele. Acordava com seu
rosto no meu pensamento e dormia querendo o toque quente da sua pele.
Aaron também continuava a me fitar, como se pensasse em coisas
parecidas.
Talvez não devesse dizer nada antes de saber o que aconteceria em
breve.
Sem perceber meus dilemas, ele já tinha abaixado a camisa pelo meu
outro ombro e agora afagava ambos os seios desnudos. Aaron se abaixou
lentamente e beijou um, e depois o outro. Circulou o bico franzido e o
lambeu de leve, vendo as marcas das sugadas mais ávidas ao redor.
— Já falei como amo a cor deles? Como não resisto a como ficam
quando os chupo?
— Já — sussurrei no seu ouvido. O que Aaron fazia de silêncio no
mundo, falava na cama.
Os dedos acharam caminho sob a saia e se embrenharam entre os meus
lábios internos, sentindo o líquido morno e íntimo chamá-los. Arfei em seu
ouvido, suspirando alto quando ele molhou cada um dos dedos da mão com
o que saía de mim. Ele ia lambê-los, um a um; eu sabia, porque já tinha
feito aquilo antes. Maldito homem rústico, mas gentil na cama, que me
deixava mole e fraca. Só de pensar naquele contraste abençoado eu me
desmanchava, úmida e desejante.
— Está cedo para tomá-la sobre a mesa outra vez, meu mel?
— Não sei, mas quero fazer algo diferente.
O olhar de Aaron se iluminou quando saltei da mesa e, ágil, desci suas
calças. O pau ereto e orgulhoso estava apontado para mim, pulsando a
ponto de explodir.
Foi minha vez de ajoelhar diante dele e apresentar algo que sabia que
iria gostar. Com os dedos ao redor do membro ainda úmido do banho, levei
a boca até a ponta e beijei-o com carinho. Aaron apoiou as duas mãos na
mesa, os dedos segurando com força na borda, a cabeça jogada para frente.
Ele grunhiu e suas pernas tremeram de leve — eu vi.
Engoli toda a extensão bonita vendo-o pressionar mais os olhos e
gemer, indefeso, quando movimentei a língua ao redor da cabeça. Senti o
gosto, molhei-o de saliva, chupei e deixei que penetrasse minha boca
devagar. O cheiro, a textura… ele era delicioso ao toque de dedos e língua.
A cada arquejo e suspiro, a cada respiração acelerada, sentia que Aaron se
aproximava, por isso esperava que se derramasse inteiro, quando de súbito
ele parou, congelado dentro de mim.
Só então ouvi o relincho próximo de um cavalo.
Imediatamente o tirei da boca e me levantei. Ele amarrou a calça,
caminhando com passos duros até a janela; eu ajeitei minha blusa, indo logo
atrás.
— Quem vem? — questionei, tentando ver a janela.
— Que diabos ele está fazendo aqui?
— Ele quem?
— Fique aqui dentro — Aaron ordenou. — Porque vou matá-lo.
Enquanto Aaron saía, consegui ver o visitante pela janela. Cristopher?
Meu coração começou a bater mais rápido. Arrumei o cabelo sem jeito,
tímida como se tivesse sido pega pelo irmão fazendo coisas proibidas na
sala dos pais. Tentando enfiar na cabeça que aquele não era o mesmo
homem que conhecia, alisei o avental e saí da casa atrás de Aaron.
Aaron caminhou em direção ao dois recém-chegados que apeavam do
cavalo. Ele ia lambendo a mão como se tivesse tocado em um doce e
precisasse tirar o açúcar dos dedos.
Pelo amor de Deus, criatura tarada.
Do pátio, à distância, o olhar que Cristopher me lançou congelaria um
continente.
Aaron
— O que ela está fazendo aqui? — Foi a primeira coisa que meu irmão
temperamental e impaciente falou.
— Bom dia, Cristopher. Perdeu-se pela região?
— Não sabia que havia trazido a moça para cá.
— Talvez não soubesse porque não precisava saber. — Peguei a rédea
do seu cavalo, trazendo-o até o coche para beber água.
— Você está cheio de mistérios e isso não me agrada, Aaron —
Cristopher reclamou.
— Está vendo coisas onde não existem. Apenas prometi a Valette que a
manteria isolada até ele decidir o que fazer com ela. Que mistério há nisso?
— Acariciei o animal, sentindo meu irmão me observar, desconfiado.
— Está acobertando uma infiel?
Precisei suprimir um sorriso, sem poder culpá-lo. Também achei que ela
fosse uma no começo.
— Por que acha isso?
— Valette me contou. — Ele olhou desgostoso por cima do meu ombro
para a torre. — Aquela mulher não me inspira confiança. Há algo de
estranho nela.
— Ela não precisa lhe inspirar nada, irmão. É o Grão-mestre que decide
o futuro dela.
Enquanto esquadrinhava as suspeitas de meu irmão, lembrei-me do que
Sabrina contou sobre Cristopher. Ela o conheceu no futuro, quando era mais
nova. Quando veio para cá, ela não sabia ao certo qual o momento o levaria
para o presente, só o seu papel na viagem. Ele também recomendou que
nunca deveria ser informado disso, e fazia todo o sentido. Teimoso como
uma mula velha, se meu irmão chegasse a acreditar na ideia, certamente a
rejeitaria.
— Ela é confiável — eu o acalmei.
— É por isso que a mantém aqui? Essa mulher devia estar presa, se sabe
de alguma coisa!
Olhei para trás, vendo Sabrina parada na soleira da porta, atenta à
conversa. Era inquietante como meu coração batia mais forte à mera visão
dela. Como sentia o peito inchar e esquentar com uma sensação quente e
morna. Estava me apaixonando por aquela mulher cada dia mais, de um
jeito misterioso e desconhecido, sem possibilidade de rédeas que me
controlassem.
E, ao assumir isso, sabia que não aceitaria que ninguém a magoasse ou
ferisse. Voltei a encarar meu irmão.
— Ninguém tocará nela enquanto eu viver — avisei, deixando clara a
minha posição.
As sobrancelhas de Cristopher se uniram e ele fez uma careta, como se
eu tivesse me transformado no próprio diabo na sua frente.
— Espero que só esteja vigiando-a, Aaron.
— O que estou fazendo não é da sua conta.
— Ah, pois está muito enganado, meu irmão. Quando isso envolve
Valette, um ataque noturno em diferentes torres, uma adaga cheia de sangue
e isso… — Cristopher enfiou a mão no bornal e tirou de dentro um
envelope —, a situação se torna da minha conta também. Precisamos
conversar, mas só falarei longe dos ouvidos da forasteira.
24
O TEIMOSO
AARON

E m uma torre de um só cômodo onde qualquer som ou gemido fazia


eco, só podíamos conversar do lado de fora. Chamei Cristopher para
uma caminhada até a escarpa, de onde víamos todo o horizonte do
mar e o barulho das ondas abafavam os sons. As águas estavam escuras
pelo dia nublado e a rebentação batia com violência nas pedras. Fizemos o
trajeto em silêncio e quando estávamos longe o suficiente da construção,
Cristopher me entregou o envelope.
Quebrei o lacre e li a mensagem do Grão-mestre.
— Ele está nos chamando para uma reunião em São Ângelo.
— Eu não fui convidado — Cristopher resmungou. — Ruedas não foi,
muito menos Martinez. Nenhum de nós foi convocado. Por que justamente
você e ela?
Voltei a dobrar o papel, entendendo que a reunião decidiria os rumos
daquela resistência e o dia da partida de Sabrina. Não era a intenção de
Valette retê-la na ilha. Talvez algum outro líder manteria uma fonte de
informações como ela bem próxima ou mesmo trancafiada, mas o Grão-
mestre ouvira sobre um viajante parecido e a história era cercada de
superstições. Saber pouco nos matará, mas saber demais também, Aaron.
Saber o suficiente basta. Essa frase ecoou na minha cabeça por um tempo,
depois de ouvi-la no escritório do governador. Agora, percebia que ele tinha
razão.
Abaixei a mensagem, sentindo o peito apertado. Sabrina iria embora.
— Não posso explicar as decisões de Valette, Cristopher. Só as cumprir.
— Como não? Somos irmãos! Não acha que devo saber se algo estiver
acontecendo?
— Não agora — respondi, apoiando o pé em uma pedra no solo. —
Quanto menos souber, melhor.
— Desde quando esconde as coisas de mim, Aaron?
— Desde que Valette me pediu para manter segredo.
— Você abandonou a Ordem. Por que deve ouvir o que Valette pede?
Isso não faz sentido. — Como não respondi, Cristopher bufou. — Aaron,
sei que ela é uma espiã. Que Valette tem planos para a mulher. O que quero
entender é por que essa forasteira perigosa não está em um calabouço, e sim
na sua cama.
O olhar duro exigia uma resposta.
— Não há nada para você entender, como falei.
— Está fornicando com ela?
Chacoalhei a cabeça, segurando o riso. Sim, e muito.
— Ela é uma meretriz, Aaron. Uma rameira inimiga. Está pensando
com a cabeça de baixo?
— Está tirando conclusões precipitadas demais — alertei-o, erguendo o
envelope. — Veio aqui só para isso?
Cristopher rangeu os dentes, mas enfim balançou a cabeça, negando.
Ele abriu irritado o bornal e tirou de dentro a adaga encontrada com
Sabrina. A lâmina prateada reluziu sob a luz fraca do dia quando a puxou
do estojo de couro.
— Os monges pediram para que lhe entregasse isso e avisasse que
encerraram a investigação. Antes de falar do assunto, você pode me
explicar o que diabos essa gravação quer dizer?
Girei a faca, vendo os nomes gravados pela mesma mão e feitos na
mesma letra rebuscada.
Aaron e Sabrina de Landa.
— Casou-se em segredo com a prostituta?
Ergui os olhos, me perguntando se eu socava aquele queixo arrogante
ou o ignorava — ambas as reações irritariam Cristopher da mesma maneira.
Mantive a boca fechada e meu irmão entendeu que podia continuar a falar:
— Sei que ela deu outro nome para Valette e para nós, quando fomos
apresentados, mas na adaga está escrito Sabrina de Landa e não há muitas
Sabrinas nem De Landas ao redor.
— Não me casei com ela — respondi, ocultando, por mais que me
doesse, que nunca me casaria.
Talvez aquele De Landa fosse apenas um desejo. Em algum momento
dessa estranha linha do tempo, eu gravaria aquele nome com o simples
propósito de deixar algo que perdurasse e chegasse um dia até suas mãos,
duro e imutável como o sentimento que já nutria por ela.
— Graças ao bom Deus, o juízo não lhe abandonou de todo! Mas se não
quer contar o que o Grão-mestre pretende com ela, explique por que me
alocou em São Elmo e ordenou que eu coordenasse o reforço das muralhas.
O que está havendo?
Estava pronto para mentir que não sabia quando meu irmão levantou a
mão para continuar:
— O que está vindo por aí, Aaron?
Nos encaramos por um longo tempo. Pesei a decisão de não contar nada
a ele, mas não aceitava que Cristopher tivesse sido designado a São Elmo.
Valette sabia que o forte cairia. Por que condenar um grande cavaleiro
como meu irmão à morte? E do que valia saber sobre o futuro, se não
podíamos mudá-lo?
— Algo muito ruim está vindo — avisei baixo, entendendo agora que
precisaria me envolver nos assuntos da Ordem se quisesse proteger
Cristopher.
— Ela falou isso?
— Ela sabe disso.
— Por que é uma espiã? A mulher talvez esteja jogando com todos
vocês! Talvez esteja inventando tudo.
— Sabrina não é uma espiã, está bem? E está tentando nos ajudar,
inferno! — Perdi a paciência. — Diabos, terei que falar com Valette sobre
isso. — Olhei para o envelope agora amassado entre meus dedos.
— Se ela não é uma espiã, como tem essas certezas? O que a mulher é?
— Meu irmão ergueu os braços, como se perguntasse isso aos céus. — Uma
feiticeira? E por que diabos começou a imprecar tanto?
Já não existiam mais condições de conduzir aquela conversa. Eu
precisava falar com Sabrina a sós e ajudá-la a se lembrar mais do que o
Cristopher do futuro disse sobre o Cerco. Precisávamos mudar a
possibilidade de ele ficar na linha de frente. Eu precisava agir, se não
quisesse que aquele tolo irritante acabasse morto.
— Ela não é uma feiticeira, está bem? Não saia espalhando injúrias.
Sabe como o povo reage.
— Não vejo de que forma essa mulher poderia saber o que está
acontecendo, se não fosse uma.
— A mulher tem nome, e é Sabrina. Ela apenas sabe, contente-se com a
resposta. Por Deus, quando vai aprender a confiar nas pessoas? — Encarei-
o. — Saberá de tudo na hora certa, mas essa hora não é agora. O que mais
os monges descobriram sobre a faca? — mudei de assunto.
Cristopher arrastou a mão pelo cabelo comprido, baixando o tom de
voz.
— Eles confirmaram que a adaga é velha. Bem velha. Que não pode ter
pertencido a você.
— Se sabia disso, por que me acusou de ter me casado com a moça e
gravado seu nome na lâmina?
— Não sei, está bem? — ele respondeu, emburrado. — Fiquei
incomodado com a semelhança. Que outra família De Landa conhece? No
mais, aqueles freis são um bando de atrapalhados. Não confio no que
dizem. — Ele cruzou os braços, fazendo cara feia para o mar. —
Geralmente as investigações que fazem só os beneficiam, ou nunca levam a
nada.
Observei a faca, tentando traçar a trajetória daquela peça que um dia foi
minha — e conteve apenas meu nome —, e como ela chegou ao futuro com
o nome de Sabrina.
— O que aqueles cabeçudos irritantes me disseram foi que o desenho na
empunhadura se parecia com o de um ferreiro do norte, mas o homem
negou ter trabalhado na adaga. Ele também confirmou a idade da peça e
confidenciou que, embora seja antiga, o desenho traz a sua marca. Isso sim
é um mistério. Os monges ficaram bastante confusos a respeito disso.
Ainda olhava para a arma nas minhas mãos quando perguntei:
— Acha que o nome dela poderia ter sido gravado quando a arma já era
antiga?
— O homem acha que não. Pela ferrugem e desgaste das letras, lâmina
e nomes têm a mesma idade.
Coloquei a adaga entre o cós da calça e a pele.
— Bem, acho que temos um mistério, então.
— Pouco me importa este mistério. — Cristopher deu um passo adiante,
apontando o dedo para o meu peito. — Quero saber mais do que está me
contando, Aaron. Para começar, de onde ela vem? Os monges me falaram
que estava ensanguentada. De quem era o sangue? Por que a maldita está
aqui, e por que inferno não está compartilhando o que sabe comigo?
Que sujeito chato. Pelo jeito, ele nunca pararia de investigar Sabrina.
— Contente-se em saber que o Grão-mestre sabe as respostas, mas
preferiu não as compartilhar, por enquanto. Pare de fazer perguntas e apenas
cumpra com o seu dever: faça o que Valette pediu em São Elmo.
— Até quando manterão sigilo sobre isso?
— Em breve não será um segredo.
Cristopher chacoalhou a cabeça, decepcionado.
— Não vai cometer o mesmo erro de antes, vai? Envolver-se com uma
mulher e depois se isolar quando ela se for? Porque uma coisa sinto como
verdade — seu dedo tocou o meu peito e os olhos azuis fervilharam de
raiva —, não importa de onde ela veio, ela voltará para casa, Aaron. E aí, o
que acontecerá a você? Brigará novamente com seus amigos, dará as costas
para a Ordem outra vez, se enfurnará em outra torre isolada e se recusará a
retornar para o mundo?
Dei um safanão no seu dedo atrevido.
— Sabe que não abandonei a Ordem por causa do que aconteceu.
Apenas cansei de tanta dor, Cristopher. Queria uma vez na vida construir
algo ao invés de destruir. Nunca sentiu vontade de fazer isso? De achar a
paz?
— Paz? — ele questionou, como se a palavra fosse algo impossível.
Por um longo tempo, encarei o meu irmão, sem saber se ele entenderia a
profundidade daquele desejo. Cristopher ainda estava imerso no mundo da
luta, da defesa e do ataque. Eu não queria mais entrar naquelas águas.
Estava buscando outra vida.
— Não vivemos tempos de paz.
— Isso não diminui a minha vontade de achá-la.
— Se quer a paz, não a encontrará em uma mulher — ele revidou. —
Espero que tenha percebido aquela imensa aliança no dedo dela. Isso só
trará confusão para a sua vida.
— Já notei a joia, não se preocupe comigo.
Para Cristopher, eu estava acobertando alguma esposa fugida do marido
que poderia vir atrás dela e causar problemas para mim. Uma espiã-infiel-
feiticeira-fugitiva de algum lugar.
— O homem com quem ela se casou não existe mais.
— Por que ela ainda usa a aliança, então?
— Sabrina decidirá quando for a hora de tirá-la. Não sou eu que devo
exigir isso.
Embora soubesse que eu estava certo, Cristopher soltou um rosnado de
desistência e indicou que estava de partida. Ele deu dois passos para longe,
então retornou para o meu lado.
— Como pude um dia chamá-lo de Invencível? — questionou; no rosto,
uma expressão de asco. — Que decepção, Aaron. O Cavaleiro Invencível se
transformou em um mingau aguado frente à simples presença de uma
mulher.
Se ele esperava que eu rebatesse a afirmação, frustrou-se.
Juro que queria sentir raiva dele, mas não consegui. Em breve
Cristopher desapareceria da minha vida; partiria em direção à paz que ainda
não queria. E, pela história que Sabrina me contou, seria tão mingau aguado
quanto eu. Claro que nada disso me impedia de derrubá-lo com um soco,
tanto que estava para deixá-lo com uma lembrança roxa da conversa quando
ouvi o grito feminino.
Tudo ao redor desapareceu — a conversa, a raiva, meu irmão. Saí
correndo até a frente da casa, onde vi o idiota que acompanhava Cristopher
segurar Sabrina de um jeito que fez meu sangue ebulir.
O cavaleiro a erguia pela gola da camisa, como se fosse um pedaço de
trapo. Ela se debatia, chutando a esmo e tentando se livrar das mãos que a
prendiam.
— Largue-a. AGORA — rosnei.
Nunca tinha ouvido minha voz sair tão seca e dura, mas o urro assustou
até mesmo Cristopher, que imediatamente se adiantou na corrida antes que
eu pudesse assassinar seu amigo.
Meu irmão se colocou entre nós, os braços tentando apartar o meu
avanço.
— Ruedas, não! O que está fazendo, seu imbecil?
— A vagabunda estava bisbilhotando vocês!
— Eu não estava bisbilhotando nada, seu cretino! — Sabrina esticou a
mão em direção ao rosto do homem e tentou arranhá-lo, sem sucesso.
— Lugar de mulher é em casa, de preferência na cama, meretriz — ele
respondeu entre os dentes, trazendo-a pela gola até próximo do seu rosto.
Eu e Cristopher nos encolhemos ao ouvir o estalo da palma na lateral da
face de Ruedas. Antes que ele revidasse, os olhos do homem encontraram
os meus. Se ele ousasse tocar nela, cortaria sua mão fora e depois o mataria
com requintes de crueldade.
Eu não era conhecido como O Invencível à toa.
Notando a violência com que eu o encarava, Ruedas soltou Sabrina de
maneira brusca. Ela se afastou e ajeitou a camisa, enfiando-a raivosamente
dentro da saia. Como eu, Cristopher também encarava irritado o amigo.
Embora meu irmão fosse um idiota de marca maior, jamais tocaria em uma
mulher daquele jeito.
— Perdeu a sanidade, homem? — Cristopher empurrou Ruedas, que
tropeçou para trás.
— Ela estava ouvindo a conversa de vocês!
— Não importa. Nada lhe dá o direito de segurar uma mulher assim!
A discussão foi encerada com um cascudo na cabeça do idiota. Sabrina
continuou encarando o homem com raiva, enquanto meu irmão o levava
sem qualquer gentileza de volta ao pátio.
Quando ficamos a sós, me aproximei, passando o braço pela sua cintura.
Ela estava corada e visivelmente abalada pela cena.
— Você está bem? — Meu coração batia errático pelo medo dela ter se
machucado.
— Estou. Aaron, eu não estava bisbilhotando. — Seus olhos antes
assustados caíram, tristes. — Eu só precisava ver Cristopher.
Assenti, ajeitando com cuidado a gola da blusa branca, inundado por
uma sensação viscosa e inédita de ciúmes.
— Sei que gostava dele. Que gosta do meu irmão — resmunguei baixo.
— Embora ainda não entenda o porquê.
Ela observou os dois homens conduzirem os cavalos até a saída da
propriedade e então se virou para mim. Por alguns segundos apenas me
observou, atenta à forma como não conseguia parar de alisar o botão da sua
blusa nem a costura da roupa sobre o ombro delicado.
— Está com ciúmes de mim, Aaron de Landa?
Sua voz era divertidamente melodiosa e me fez travar a boca em uma
tromba.
— Não.
Sim.
Sem dizer mais nada, mas com um sorriso que dizia tudo, Sabrina
voltou para a torre enquanto eu respirava fundo, carcomido pelo sentimento
irritante. Era melhor despachar aqueles dois idiotas da propriedade antes de
virar um mingau ainda mais aguado.
25
A ALIANÇA
AARON

E stava tudo embalado e disposto sobre o cavalo, no aguardo da partida.


Provavelmente não voltaríamos mais para cá — ou melhor, ela não
voltaria. Depois da guerra, talvez eu retornasse, caso a torre ainda
estivesse de pé e eu, vivo. Sabrina me contou que o local ainda existia no
futuro, caindo aos pedaços de tão velho. Contudo, não sabia dizer se fora
reformado nos anos seguintes ao Cerco ou mesmo se resistiu à invasão. Não
importava. Se a torre ficasse de pé, eu voltaria, sozinho. Portanto aquele era
um momento de despedida para ela.
Encontrei-a na beira do penhasco, a capa negra tremulando pela brisa,
assim como o cabelo escuro e solto. Caminhei devagar, sem a intenção de
assustá-la, enfiando as mãos no bolso.
— Oi — disse baixinho, vendo-a se virar.
— Oi.
Não havia vez que a olhasse e não visse a face de um anjo. Quando
sorriu, seu rosto inteiro acompanhou a boca, mas o brilho nos olhos era
triste. Sabrina também sabia que não voltaria mais para cá.
— Pronta?
— Quase. — Ela descruzou os braços e estendeu a mão esquerda
adiante, a palma voltada para o mar. Seu anel reluzia, grosso e dourado,
uma visão que sempre me causava incômodo.
— Já faz dias que me pergunto por que nunca tirei a aliança. Se nós
estamos juntos, não deveria usá-la, certo? Se estou distante 500 anos do
homem que me presenteou com ela… se já não o amo mais há tempo, não
deveria tirar?
Desci as vistas até os dedos delicados, que beijaria com carinho em
breve.
— Nunca me senti casada com ele, aqui no passado. — Ela voltou a
mirar o mar, descendo a mão. — Aqui eu fui muitas mulheres, mas não a
que ele conheceu. Fui a que precisou sobreviver a um salto impossível no
tempo. A que precisou lidar sozinha com um estranho que a prendeu numa
torre...
Sorri, observando-a em silêncio.
— …a que precisou matar três homens com o que sabia fazer de
melhor: apontar e atirar, e a que sabe segredos que podem mudar a história
do país. — Sabrina chacoalhou a cabeça, séria. — Não sou a esposa-troféu
daquele homem, nem a mulher que cruzava Valeta no SUV imenso, bem-
vestida e maquiada. Não sou a professora de História que precisou deixar o
emprego para acompanhar o marido rico. E, definitivamente, não sou a
mulher que ele poderia segurar pela garganta e bater quando queria.
Seu suspiro marcou a mudança de rumo na conversa.
— Meu marido não tinha um coração, Aaron. Ele estava comigo porque
gostava de me atormentar.
— Sempre foi assim? — questionei, tentando entender o que fazia um
homem agredir a mulher que dizia amar.
— Oh, não. Não era assim no começo. Os começos sempre são bons.
Olhei para baixo, arrastando a sola da bota na terra.
— Você um dia o amou?
— A ponto de dizer sim para ele em frente a um altar — ela respondeu
baixo. Então exalou, impaciente. — Ele é um homem poderoso. Ajudou a
minha irmã no trabalho e eu o admirei por isso. Ele também era bem mais
velho do que eu. — Sabrina se virou para me encarar antes de prosseguir.
— E vinha de uma das famílias mais distintas e conhecidas do país.
— Você só não conhecia o seu lado ruim.
— Eu sequer desconfiava que tinha um quando me casei, mas ele logo
deu indícios de quem era. Coisas pequenas, desimportantes para serem
comentadas com a família ou com os amigos. — Ela remexeu na aliança. —
A gente sempre acha que pequenos gestos são isso: coisas bobas, mas nos
esquecemos de que é da natureza das coisas crescer. O pequeno sempre se
tornará grande, se deixarmos acontecer.
Dei um passo para perto dela, querendo abraçá-la, mas faria isso na hora
certa, quando Sabrina sentisse que meu peito era seu para repousar a cabeça
— ou morar nele.
— No começo via as tentativas de controle como gestos de carinho. “Eu
cuido do seu dinheiro”, ele falava. “Cuido também da sua rotina”. “Sei
quem são as melhores pessoas para serem suas amigas”. “Não precisa de
ninguém além de mim”. Quando vi, estava respondendo a perguntas sobre
onde estive, com quem, e por que gastei tal quantia em um restaurante. Por
que abasteci em determinada área da cidade. Por que estava colocando
batom vermelho. Ele tinha ciúmes de mim. Muito ciúmes.
Ciúmes eu também tenho, Sabrina.
— O sentimento era sufocante… e então, aconteceu. — Vi sua testa
franzir pelas lembranças. — Achei a adaga naquele antiquário e comprei-a
por impulso. Não sei se sabe, mas cheguei até a peça por causa de uma
toalha com borboletas. — Sabrina tocou a tatuagem bonita da escápula,
onde meu nome estava ao lado de uma. — Sempre achei que borboletas
eram sinais, e nunca estive enganada. Vi o sobrenome De Landa gravado na
lâmina sem desconfiar que esse homem não era o meu cunhado, mas você.
Ela se virou de frente para mim e seus olhos estavam úmidos.
— Como pude entender, antes mesmo de saber, que era você?
Puxei-a finalmente para um abraço. Sabrina veio, apertando-me forte
como se temesse, como eu, que um simples sopro do tempo pudesse nos
separar. Senti o calor do seu peito contra o meu e beijei o cabelo
perfumado. Dentro de mim, palavras urgiam para sair — eu te amo por
dois. Meu amor por você compensaria tudo que não recebeu — mas não
fazia sentido dizer aquilo agora. Talvez nunca fizesse.
— Conte o resto. — Acariciei o topo de sua cabeça.
— Nunca consegui entregar a faca para Cristopher, especialmente
depois que raspei a crosta de sujeira da lâmina e achei o meu nome. — Ela
ergueu o queixo. — Sou eu ali, Aaron. Eu sei disso. Você sabe disso, porque
do outro lado é você.
Assenti, contendo uma emoção estranha no peito. Sempre soube, meu
amor.
— A adaga desengatilhou sonhos em que você aparecia para mim. Você
sempre veio carregado dessa energia que nos envolve quando estamos
juntos. Essa certeza bendita de encaixe. De completude.
Ela arrastou as mãos pelas minhas costas até segurar firme o tecido da
blusa.
— Você aparecia inteiro durante as noites. — Seus dedos subiram pela
minha barba, e beijei sua mão. — Chegava em meio à bruma da manhã. Eu
ansiava por você. Não posso mais negar isso, Aaron.
— Negar o que, meu mel?
— Que era o meu destino vir para o passado.
Sabrina pegou minha mão e a levou até a pedra roxa em torno do
pescoço, mostrando como estava morna.
— Ela diz o mesmo para mim. Que estou onde preciso estar.
Sei aonde ela queria chegar, mas não continuei a conversa. Não porque
não desejava, mas porque sua segurança era a minha principal preocupação.
Se ela ficasse, encararia uma guerra e a grande possibilidade de morte, e
isso eu não podia permitir. Mesmo sentindo o peito esmagado, falei:
— Você cumprirá o que veio fazer aqui. Estamos garantindo isso.
Seu olhar escuro me avaliou de um jeito franco e tranquilo. Sabrina
sempre parecia tão calma comigo. Embora soubesse que sua turbulência
existia, assim como uma força descomunal, comigo ela era a mulher mais
doce do mundo. Eu a adorava por isso.
— Continue a sua história, meu bem. Parte da sua dor está em guardá-la
para si.
Sabrina assentiu, continuando:
— Quando Zach descobriu sobre a adaga, começou a me acusar,
afirmando que o trairia com um homem chamado Aaron. Não tinha sentido
na época, e eu negava sem parar, mas aquilo só alimentava seu ciúme
doentio. Foi então que nossas brigas escalaram e meu marido partiu para a
agressão física. Um empurrão quando contestei a loucura, um tapa no rosto
quando o chamei de paranoico.
Ainda abraçado a ela, rocei a lateral dos dedos em sua pele.
— É impressionante o medo que um homem pode colocar em uma
esposa — Sabrina confessou baixinho. — Nunca fui uma mulher mansa e
tentei fugir algumas vezes, eu juro. Na primeira vez, peguei um trem e disse
a mim mesma que nunca mais voltaria, mas ele me achou e me fez retornar.
Zach ameaçava destruir o negócio da minha irmã. Então chorava, pedia
perdão, dizia estar arrependido. Acreditei no início, mas a confiança se
tornou medo bem rápido. Sabendo que eu podia sumir de novo, ele passou a
controlar meus passos e a me trancar em casa.
— Sinto muito por ter feito o mesmo no começo — pedi, arrependido.
Se soubesse de tudo, teria agido de maneira diferente.
Sua resposta foi sorrir.
— Você nunca me trancou de verdade, bobinho. A porta sempre esteve
aberta.
Beijei-a longa e demoradamente na testa, querendo compensar aquele
início.
— Então um dia nós discutimos e ele surtou. Quando vi, suas mãos
estavam em volta do meu pescoço, tirando todo o meu ar.
Desci o beijo até o local que um dia mostrou essas marcas. Deixei ali
meu amor em forma de toques delicados.
— Eu estava com a adaga nesse dia — murmurei. — Andava sempre
com ela porque me fazia sentir próxima de alguma coisa.
Sabrina me encarou. O sol subia devagar ao longe e a enseada
gradualmente se enchia de cor. A luz dourada a deixava parecida com uma
rainha de um país distante, e nunca quis tanto chamá-la de minha como
naquele momento.
— Não quero pensar no que deixei para trás, Aaron. Prefiro pensar no
futuro e no que posso fazer para que ele não mude para a minha irmã. E
quero fazer isso. — Ela levou os dedos até a aliança e a removeu.
Afastando-se de mim, vi Sabrina erguer o braço e arremessar com força
a joia metros abaixo, despedindo-se de vez daquela memória ruim e
declarando-se, em gesto, livre de Zach Ruedas. A partir de hoje seu marido
seria apenas uma lembrança manchada, um obstáculo que ela precisou
superar para encontrar seu lugar no mundo.
Sabrina entrelaçou a mão à minha e demos as costas para a enseada, e
depois para a torre. Juntos deixamos o ermitério rumo a Mdina, onde um
grupo de homens nos aguardava.
26
A CORTESÃ
SABRINA

S ituada em uma colina no centro da ilha e confinada entre muralhas


milenares, a capital de Malta no passado mostrava a mesma
atmosfera pacífica que tinha no futuro. Mesmo em 2035, Mdina era
considerada uma cidade sonolenta. As ruas eram estreitas e vazias, o ritmo
das pessoas era letárgico e a cidade sempre dava a impressão de não ter
mudado muito nos últimos mil anos.
Agora, cavalgando por entre as vielas de terra, constatava que muito
dela continuava lá: os muros altos, as lanternas medievais, os becos
sinuosos e a vista magnífica dos morros ao redor. Pelo que me lembrava, foi
por causa dessa tranquilidade, longe das costas perigosas devido aos
corsários e piratas, que a nobreza da ilha a tinha escolhido como lar.
Quando contei a Aaron que no futuro pessoas fariam encenações sobre
os Cavaleiros de Malta na praça, ele riu. Sorri, gostando de ver que ele tinha
achado aquilo engraçado.
Ele andava rindo com frequência. Entregando-se mais.
Meu coração parecia querer explodir toda vez que o pegava me
observando. Meu corpo doía, ansiando seus toques. Antes de chegarmos,
Aaron me garantiu que estar na cidade comigo traria julgamentos e que
certamente me chamariam de cortesã, mas eu não me importava.
— Está preparada para isso? — ele perguntou quando finalmente
alcançamos o centro de Mdina.
— Estou. — Nem eu nem ele tínhamos tempo para nos importar com o
julgamento equivocado das outras pessoas. Nosso propósito era muito
maior do que simples fofocas.
Ele me ajudou a descer e corri os olhos pelo imenso sobrado de paredes
amarelas, janelas arqueadas e varandas de madeira.
— É aqui que encontraremos Valette e os comandantes? — perguntei,
voltada para a construção de influência catalã, vendo uma senhora deixar a
casa e saudar Aaron com uma pequena reverência.
— Mestre Aaron? — a senhora baixinha e de cabelos grisalhos falou. —
É bom vê-lo novamente.
Olhei para um e para outro, e depois para o palacete amarelo. Foi então
que entendi que ele havia me trazido para a sua casa.
Assim que a mulher me viu, franziu o cenho. Aaron se adiantou, sem
deixar tempo para suposições.
— Senhora Velasquez, essa é a Srta. Sabrina Bonicci. — Ele olhou para
mim e aprovei o uso do meu nome de solteira. — Por favor, peça que levem
nossas coisas para dentro.
— As da moça vão para o quarto de visitas? — A mulher parecia
apavorada, afastando-se para Aaron passar e entrar na casa.
Segui-o, suprimindo o sorriso ao ouvi-lo dizer:
— Não. Para o meu quarto.
Eu era oficialmente uma cortesã. A meretriz de Aaron de Landa.
À medida que entrava na residência, ia deixando o queixo cair. Claro
que Aaron e Cristopher seriam de uma família importante da ilha — como
não pensei nisso antes? Fazia sentido, já que cavaleiros, para ingressarem
na Ordem, precisavam ter quatro linhagens nobres. Mesmo assim, era
curioso vê-lo como um herdeiro. Eu achava que a torre era a sua vida, que
Aaron era um eremita, mas aquele era apenas um posto, um lugar para a sua
reclusão. Ele vinha de Mdina.
Assim que a senhora deixou a casa para buscar nossos pertences, meu
belo cavaleiro — meu agora nobre cavaleiro — prostrou-se diante de mim,
alto e vistoso.
— Você está bem?
Assenti, querendo muito beijá-lo. Embora sentisse no peito o eterno
aperto melancólico de quem estava vivendo um sonho, aquele era um
momento feliz.
— Ótimo. Preciso de você bem para o que pretendo fazer — afirmou e
um sorriso cresceu no canto dos lábios.
E sem aviso ou recato, Sir Aaron de Landa me ergueu no colo e me
carregou escadarias acima, arrastando carinhosamente o nariz pelo meu
pescoço e murmurando que só me deixaria sair da sua cama quando eu
pedisse.
Por dois dias seguidos não pedi.

Cruzamos a residência oficial do governo e paramos diante de uma


enorme porta, no aguardo de sermos anunciados. Assim que fomos
deixados sozinhos, Aaron se virou para mim.
— Escute, Sabrina, antes de entrarmos, preciso conversar com você.
Minhas mãos estavam frias de nervoso. Há dias esperávamos sermos
chamados, e a ideia de falar para vários homens me deixava atribulada.
— O que foi?
— Preciso contar a verdade para Cristopher.
Meu coração começou a bater mais forte.
— Aaron, não pode falar sobre a viagem no tempo. Ele me pediu.
Deixou bem claro que eu podia confiar que você faria isso.
— Prometo que não mencionarei esse detalhe — jurei, e ela sabia que
podia acreditar na minha palavra. — Ele não saberá que você vem do futuro
e nem que vai para lá com você.
Espere.
Que Cristopher ia comigo? Não entendi a frase, mas Aaron agora
olhava para os dois lados do corredor e só voltou a falar quando um
cavaleiro passou, cruzando os confusos corredores do castelo, e
desapareceu em uma curva. Aproveitando a solidão dos ambientes escuros,
ele tocou meu rosto. Sua mão estava quente e a prendi entre a face e o
ombro.
— O que quis dizer com…
Aaron pousou o dedo enluvado sobre os meus lábios.
— Meu irmão precisa saber de algo. Porque, mesmo sabendo que São
Elmo cairá, Valette o alocou lá dentro. Cristopher precisa saber que suas
chances são pequenas. Se souber o que vai acontecer, pode ser discreto e
questionar a própria presença lá. Pode pedir para servir em outro lugar.
Afastei a mão dele da minha pele.
— Nada pode ser mudado, Aaron. Isso dói em mim o tanto que dói em
você, mas Cristopher esteve em São Elmo e é lá que ele precisa estar.
Lembra-se da história da borboleta? Cristopher me disse aquilo, com todas
as palavras. Ou eu falei aquilo um dia para ele, não sei mais e isso não vem
ao caso. — Chacoalhei a cabeça, organizando as ideias. — Ele não pode ir
para outro forte. É só porque esteve naquela batalha que eu sei de tudo isso.
Teimoso, Aaron negou.
— Você me disse que apenas cinco pessoas sobreviveram à queda.
— Ele será um deles. — Meu coração implorava para que isso fosse
verdade. Eu não podia afirmar com certeza, mas era isso que a história
dizia.
Aaron não podia mudar a ordem das coisas. Tudo poderia se descarrilar
no futuro se algo saísse fora do planejado. Por mais que me doesse mandar
meu cunhado para o lugar que ruiria primeiro sob o peso dos canhões e das
espadas, tudo precisava ser assim.
— E tem outra coisa que não está levando em conta. Conheço
Cristopher também — falei, o peito agora batendo mais fraco. — Quando
ele souber da provação, se oferecerá para o cargo. Ele se coloca na frente de
quem ama. O teimoso escolherá entrar naquele forte porque seus amigos
estarão lá.
Aaron chacoalhou a cabeça.
— Todos os dias me surpreendo com as coisas que fala dele, como se o
conhecesse tão bem quanto eu.
Pela primeira vez, vi seus olhos verdes umedecerem. Saber da sua
agonia partiu meu coração.
— É exatamente isso que ele faria — Aaron riu, fungando. — Fico…
feliz por saber que ele continuará o mesmo idiota no futuro. Sua irmã é uma
mulher de sorte.
Meu rosto crispou, mas tentei não chorar também.
— Ela é, e eles serão muito felizes. E é porque os amo tanto que nada
pode mudar. Preciso assegurar que as coisas aconteçam como precisam
acontecer, Aaron. Principalmente, achar uma forma de convencê-lo a não
me contar que tudo isso vai acontecer. Se ele me disser que a pedra me trará
para cá, Isla jogará as pedras fora. E se eu não vier, Cristopher jamais a
encontrará.
Aaron não teve tempo de responder. A conversa foi interrompida pelo
ruído da porta de madeira.
— Senhores, por favor — um lacaio indicou a entrada, mas Aaron
segurou meu pulso antes que eu seguisse o homem.
— Preciso de um último minuto a sós com ela — avisou, e fomos
deixados sozinhos. Virando-se para mim, Aaron concluiu: — Conte a
Valette e seus homens tudo que puder se lembrar. Absolutamente tudo.
Então — ele pegou ar, como se as próximas palavras lhe machucassem —,
estará livre.
— Eu achei que já estava.
Encaramo-nos em silêncio e o tempo que o lacaio nos deu se encerrou.
Entramos no grande salão do governo cientes da ampulheta sobre as nossas
cabeças, sabendo que precisávamos fazer aquilo dar certo.
Na sala, ao redor da mesa redonda, seis homens grisalhos, com anos de
experiência em luta, nos observavam. Pareceram surpresos, a princípio, pela
minha aparência, depois pelo que falei, e então por tudo o que as
informações significavam.
Pelas horas seguintes, contei tudo o que sabia enquanto um escrivão
tomava nota. As datas, os números, os ocorridos, o total de baixas. Contei o
que sabíamos sobre os generais turcos, as armas que usariam e como estaria
o tempo naqueles dias. Confiei que os filmes de Isla e Cristopher
retratassem a verdade de maneira fiel, porque eram tanto um expurgo das
dores do meu cunhado quanto um recado. Se ele sabia que eu um dia
voltaria, posso dizer que aqueles filmes foram feitos com precisão por
minha causa.
Não conseguimos concluir tudo no primeiro dia, por isso voltei no dia
seguinte, e no outro. Ficamos trancados naquela sala por dias, das primeiras
horas da manhã até que lamparinas precisassem ser acesas e a tinta e penas
se esgotassem.
Então, por fim, as decisões foram tomadas. O envio de mulheres e
crianças para a Sicília começaria em breve. Os camponeses teriam que
receber aulas de luta de cavaleiros despachados para ensiná-los. Paredes
teriam que ser reforçadas por aqueles dispostos a fazer o trabalho pesado.
Como pude imaginar depois de passar dias ao lado daqueles homens,
ouvindo-os falar e conjecturar sobre as perdas, foi sem surpresa que percebi
que todos, sem exceção, se alistaram para lutar em São Elmo. Eles cairiam
primeiro porque tinham honra e sabiam o que viria. Por tudo isso, acharam
correto estarem lá para serem a linha de frente, defendendo a terra e as
pessoas que prezavam.
No último dia saí da sala com os olhos inchados de tanto chorar. Havia
chegado a hora de narrar o que se sabia sobre o fim do Cerco, quando os
turcos deixaram a ilha às pressas. Relatei como Malta foi coberta por
moscas e como as águas da costa ficaram infestadas por corpos putrefatos
que boiavam ao sabor das ondas fracas. Chorei também porque sabia que,
no futuro, nós e aqueles contra o qual lutaríamos agora não éramos mais
inimigos, mas minhas palavras precisavam dizer que sim — eles eram
mesmo, nessa época.
E chorei muito mais porque Aaron também se alistou para São Elmo.
Era o jeito de ele jamais deixar o irmão sozinho, mesmo ciente de que, em
algum momento, Cristopher viajaria. Aaron garantiria que o irmão iria
sobreviver para encontrar a felicidade.
Quando me levantei para deixar a sala, ouvi a voz do Grão-mestre:
— Senhora…Senhorita Bonicci, poderia permanecer, por favor?
Gostaria de lhe falar a sós.
Aaron hesitou, mas Valette o mandou se retirar com um aceno de
cabeça. Assim que a porta se fechou, o homem de cabelos escuros
penteados para trás, bigode imponente e postura altiva pegou ar, mirando as
folhas cheias de palavras nas suas mãos.
— Agradeço muito por tudo o que fez por nós. Precisaremos de alguns
dias para traçar os próximos planos, mas gostaria de avisar que partirá no
último navio com o resto de nossas esposas e filhos.
Abaixei a cabeça, sem concluir se isso me deixava aliviada ou infeliz.
Valette hesitou por um minuto, então continuou, mais firme do que
antes:
— Nunca é uma decisão fácil abrir mão de alguém com o seu
conhecimento — os olhos escuros encontraram os meus, cansados —,
porém, vi o que acontece quando tentamos segurar os oráculos por tempo
demais. Às vezes me pergunto se sua presença aqui foi um presente dos
céus ou um teste às nossas almas. Se estamos fazendo o certo em usar seus
conhecimentos, se não deveríamos deixar o destino seguir o curso sem
segurar suas águas. Veja bem, srta. Bonicci, acredito que o tempo é um rio
que não se deixaria oprimir pelas margens, por isso temo não saber se estou
fazendo a coisa certa.
Eu não tinha aquela resposta. Duvidava que alguém tivesse. Mantive o
silêncio, esperando que o Grão-mestre concluísse.
— Por que vocês viajam, me perguntei um dia, depois de conhecer um
homem que também estava deslocado do seu tempo — Valette contou,
tranquilo. — Por destino? Por acaso, ou mesmo por um ajuste de contas?
Não faço ideia. Mas vi que saber demais altera o nosso mundo e não sei se
isso é benéfico. Por isso o conselho decidiu, em unanimidade, saber apenas
o necessário.
— Foi uma decisão sábia, senhor. — Todo aquele conhecimento, caso
caísse nas mãos erradas, poderia fazer ruir o futuro. Fiz menção de me
afastar, mas parei, lembrando que a futura capital de Malta carregaria o
nome do Grão-mestre, anos depois da partida dos turcos.
— Nunca me perguntou se vai sobreviver, senhor — questionei baixo.
— Sim, essa foi outra questão que debati. Não sei se quero saber isso.
— O homem esboçou um sorriso gasto. — Saber que venceremos basta.
Dei dois passos para trás, ainda sem virar de costas, porém, antes que
deixasse a sua sala, Valette perguntou:
— Se não se importa com a minha pergunta, senhorita, estou curioso
sobre uma coisa. Como chegou até aqui?
Não entendi de imediato. O Grão-mestre, melhor do que ninguém,
soube da minha chegada e me colocou aos cuidados do monges até Aaron
me pegar. Ele sabia como vim parar ali.
— Através do círculo de pedras do sul, como o senhor já sabe.
— Não é a isso que me referi. Deixe-me reformular a pergunta: quem a
enviou para cá? Quem lhe deu essa pedra? — Ele apontou para o colar que
sempre mantinha escondido sob a roupa, e que nos últimos dias segurei
mais do que o normal.
Meu coração voltou a bater rápido. O que ele diria se soubesse que foi
Cristopher quem me mandou para cá? Isso poderia mudar alguma coisa?
— Eu… já tinha essa pedra há muitos anos. Ganhei de minha irmã
quando era mais nova.
— Mas a pessoa que a enviou para cá sabia para qual época a estava
enviando?
Assenti devagar, insegura sobre dar muitas informações.
— Essa pessoa devia se importar conosco, então.
— Sim, senhor. Ele se importava.
— Deduzo que pelo nome na adaga que achamos com a senhorita e a
marca na sua pele, posso assumir que veio enviada para encontrar alguém
específico, certo? — Valette relanceou os olhos até a minha mão esquerda,
notando a falta do anel no meu dedo. — Presumo que seja alguém que essa
pessoa conhecia e em quem confiava.
Minha respiração ficou em suspenso. O silêncio era tanto que eu podia
ouvir o barulho da chama dentro da lamparina, o vento uivando ao passar
pelas frestas da janela e o meu próprio coração denunciando a verdade.
Valette cruzou as mãos e se inclinou, me perfurando com a sua atenção
intensa.
— Sei que essa pessoa saiu do passado e lhe enviou para cá porque
precisávamos de ajuda. — Abri a boca para dizer algo, negar, confirmar,
não tenho certeza, mas o governador continuou: — Não precisa me dizer
quem é, mas acho que posso imaginar.
Prendi a respiração. Cheguei a achar que Valette ia dizer o nome de
Cristopher, porém ele apenas continuou.
— Não sei se sabe, senhorita, mas toda viagem é feita solitária.
Por longos segundos nos encaramos, e então baixei as vistas. Eu não
sabia.
— Infelizmente, não conseguirá partir levando alguém consigo, srta.
Bonicci. Nem se estiverem lado a lado. Já vi acontecer antes. Um se foi, o
outro ficou. Quem viaja no tempo precisa estar preparado para dar adeus,
seja a alguém ou a alguma coisa.
Assenti, imóvel, os olhos parados em um ponto qualquer.
— Acredito que Aaron ainda não saiba disso, mas sugiro contar apenas
quando for a hora certa. Bem, isso é tudo. Obrigado novamente. Sei que
guarda muito mais informações sobre o nosso futuro, mas se Deus quisesse
que o conhecêssemos por inteiro, o teria deixado por escrito. Temos ainda
alguns meses pela frente, mas garanta a sua partida em algum momento
antes do dia 18 de maio, está bem?
Assenti, reconhecendo a data: o dia da chegada dos otomanos à ilha.
27
A INVESTIGAÇÃO
ISLA

2035

Cristopher e eu atravessamos os longos corredores da sede da Ordem


Hospitalária, atrasados para o encontro com a bibliotecária-chefe. O
senhorzinho que nos ajudou, treze anos atrás, havia falecido há algum
tempo, mas uma jovem animada e falante, que adorava a história sobre
Cristopher ser descendente da única família De Landa da ilha, continuava a
tagarelar enquanto ia batendo os saltos e acenando para quem conhecia.
— É sempre um prazer recebê-los. — A moça indicou a sala dos
computadores. — Adoro que tenham nos creditado tão gentilmente nos
últimos filmes. — O sorriso dela quase rasgava o rosto em duas partes. — E
fico feliz que estejam pesquisando para os próximos. Sobre o que será? —
perguntou enquanto entrávamos na sala reservada para as consultas.
— A queda de Constantinopla — Cristopher respondeu orgulhoso,
como se estivesse prestes a derrubar o império ele mesmo, com a própria
espada. — Será épico.
— Ah, eu posso imagi…
— Cristopher? — Indiquei com o queixo que ele deveria entrar. —
Desculpe, é que as gravações ainda não começaram e há toda aquela
questão do sigilo — lembrei-o de que muitos contratos nos forçavam a
manter silêncio sobre o assunto.
— Ah, puxa, que pena. — A mocinha soltou uma risada. — Bem, fico
feliz que possamos ajudar em novas pesquisas, embora — a testa dela
franziu — não saiba como os cavaleiros podem ter se envolvido nesta
queda, já que…
Limpei a garganta, querendo dar o assunto por encerrado. Ela percebeu
meu desconforto e voltou a se concentrar no que viemos fazer ali.
— Bem, desculpe. É que me empolgo toda vez que lançam um novo
filme. Como estava dizendo, o novo sistema permite uma varredura
completa dos arquivos e os entrega traduzidos e prontos para serem
enviados para o número que desejarem.
Chacoalhei o celular fino e transparente, mostrando que estava contando
com isso.
O programa que executava a leitura de manuscritos antigos ajudou
muito na decifração de documentos escritos à mão, e deixou as últimas
descobertas — como a da biblioteca em Mdina, com os arquivos que
Zachary mencionou, por exemplo — muito mais acessíveis. Tinha certeza
de que encontraríamos o que estávamos procurando.
A garota nos deixou a sós na sala de computadores, ligando o aquecedor
antes de sair. Antes que ela batesse a porta de vidro, o ar encheu-se de calor.
— Faça a sua mágica, Isla. Não temos muito tempo. — Cristopher
puxou uma cadeira para mim e se sentou na da frente. — Faça o log-
alguma-coisa nessa máquina, porque temos pressa.
Mesmo após tantos anos, ele ainda era um cara inteiramente analógico,
para não dizer puramente mecânico. Nunca quis saber de computadores e
tinha pouca paciência para a agilidade das telas.
Nossa pressa vinha da curiosidade dos funcionários da Ordem. Em
breve a sala se encheria de curiosos e eles sempre tinham muitas perguntas.
Ninguém sabia tanto sobre a instituição como Cristopher, por isso, sempre
que pisávamos ali, meu marido acabava cercado de pesquisadores e
interrogado. Tentávamos escapar dos mais desconfiados alegando que nossa
rotina era apertadíssima e precisávamos partir, mas por que arriscar, não é?
Entrei no computador, mas parei no campo onde digitaria o que
procurava.
— O que digito primeiro? — Olhei para ele. — Sabrina de Landa? Ou
Enrico Ruedas?
Desde que Zachary revelou a morte do homem — Cristopher o conhecia
bem — e disse que foi Sabrina quem o matou, não parávamos de pensar se
aquilo poderia ter um impacto na nossa vida, ou a levado à prisão no
passado. Perguntei a Cristopher como pode não ter ligado o nome de Zach
ao amigo do passado, mas quinhentos anos não eram cinquenta. Muitos
outros sobrenomes, de outros cavaleiros que ele conheceu, até, haviam
sobrevivido até o presente e poderiam — ou não —, ser do mesmo ramo
familiar. Ele não viu ligação entre eles.
Só de pensar em Zach, minha respiração se alterava. Aquele psicopata
tinha conseguido fazer com que eu nunca mais dormisse direito. E se
Sabrina tivesse se envolvido em uma confusão grande demais para se safar?
E se ela, ao invés de ficar ao lado de Aaron, estivesse em uma cela gelada?
Só de pensar nisso eu queria me bater.
— Digite Sabrina de Landa — Cristopher murmurou, igualmente
preocupado.
— Mas nunca achamos nada sobre os De Landa. Apenas o túmulo
deles.
— Não estávamos procurando por Sabrina, na época — ele me lembrou.
Voltei ao computador, digitando seu nome. A espera era longa cada vez
que digitava uma palavra nova.
Nada. Tentei apenas “Sabrina Landa”.
“Sabrina De”
“De Landa, Sabrina”
Nada.
Digitei sem esperanças “Aaron de Landa e esposa” e dei enter. Então
abri uma nova aba e digitei “Enrico Ruedas”.
— Não acredito que estamos caindo nos esquemas de Zachary —
Cristopher resmungou, vendo que me recostei na cadeira, à espera dos
resultados. — Nem sei por que acreditamos no que ele contou. Conheci
Ruedas, Isla. O homem era um bruto, mas justo como qualquer cavaleiro.
Sabrina tinha a metade do tamanho dele e jamais conseguiria machucá-lo.
Além disso, se me lembro bem, ele partiu dois dias antes da queda para São
Ângelo, a pedido de Valette. Zachary está inventando tudo isso.
— Ela conheceu o tal Ruedas, então — murmurei. — Como foi que ela
teve contato com aquele homem?
Olhei para Cristopher, que mantinha os braços cruzados enquanto via
documentos antigos passarem em alta velocidade pela tela. Ele continuava
em silêncio, estalando as costas e me olhando de soslaio.
— Ele… um dia me acompanhou até a torre onde Sabrina viveu com
Aaron por um tempo. Ruedas não gostou quando a pegou ouvindo a nossa
conversa e… — Meu marido estalou o pescoço. Quando começava a se
esticar assim, sabia que ia me desagradar com o rumo da conversa. —
Pode-se dizer que não foi um bom contato.
Apertei as vistas na direção dele.
— Defina “bom”.
— Ele… e eu… antipatizávamos com ela, na época. Ruedas a tratou
mal naquele dia.
Estalei um tapa no braço do meu marido, sem acreditar que ele o levara
até ela!
— Como pode ter deixado seu amigo tratá-la mal?
— Eu não a tratei mal, amor, entenda isso! Só não a tratei bem! Eram
tempos difíceis para homens e mulheres. Não éramos essas flores delicadas
que vocês são hoje em dia!
— O que ele fez com a minha irmã? — perguntei, ríspida.
Cristopher limpou a garganta. Mais estalos, dessa vez das falanges dos
dedos.
— Ele a pegou pela gola e a chacoalhou.
— Ele o quê? — Dei outro tapa estalado na sua mão, apontando o
indicador para ele. — Isso é por ter permitido que seu amigo chacoalhasse
Sabrina pela gola!
Como Cristopher viu que eu estava prestes a cair no choro, me abraçou.
— Ei, ei, acalme-se, está bem? Aaron quis matá-lo na mesma hora. Sei
que o assunto mexe com você, minha vida, mas eu te garanto que Ruedas
não chegou perto de Sabrina em São Elmo.
— Como pode saber? — perguntei chorosa. — Você não estava em
todos os lugares.
— Aaron não deixaria, amor. Ele tinha gente vigiando-a o tempo todo.
Funguei, assentindo. Eu confiava em Aaron mesmo não o conhecendo,
apenas pelas coisas que Cristopher me dizia. Tenho certeza de que ele a
protegeria com a vida. O problema era que aquele forte virou o inferno
durante o mês de junho de 1565. Tudo pode ter acontecido.
— O tal Ruedas então sobreviveu a São Elmo? — questionei.
— Acho que sim. Quando perguntei um dia por ele, me disseram que
fora enviado para São Ângelo.
— E depois não soube mais do seu paradeiro?
Cristopher negou. É claro que nunca mais ouviu falar dele nem de
ninguém, porque acordou no futuro, sendo carregado, ainda zonzo, para
uma festa de casamento.
— Ele foi muito grosso com ela? Na torre? — Enxuguei as lágrimas,
precisando perguntar aquilo outra vez. Eu sentia tantas saudades da minha
irmã. Não havia dia que não me perguntasse se fiz a coisa certa, embora
toda vez que pensasse em Zach, me convencesse de que sim.
— Sabrina não se relacionava com nenhum de nós. Além disso,
precisava ver como Aaron a tratava.
Sorri, pensando que talvez fosse um pouco parecido com o jeito com
que Cristopher lidava comigo. Meu coração amansou e voltei a sorrir.
— Fale novamente. Como ele era com Sabrina? — Acariciei o rosto
hoje liso do meu marido. Eu adorava quando ele me contava aquelas
histórias.
— Ele era um leão, Isla. Ninguém mexia com ela. Além disso, todos a
respeitavam pela pontaria. — Ouvi um certo orgulho em sua voz. — E,
obviamente, ninguém queria estar sob a sua mira. — Ele pausou para
afastar a minha franja do rosto. — Eles se amavam muito, amor. Meu irmão
daria a vida por ela.
Eu precisava que aquelas palavras entrassem em mim para voltar a ter
paz. Levei a mão ao peito, sentindo uma pedra ali dentro.
— Mesmo assim, estou com uma sensação ruim, Cristopher. De que
algo está para acontecer.
— Seja lá o que for, não podemos mudar o passado. Eles lidaram com
isso sozinhos.
Sim, ele tinha razão. O que aconteceu no passado tinha suas provas e
repercussões no presente. Sabrina estava lá, repousando ao lado do esposo
em seu sono eterno, com a paixão deles escrita em suas lápides.
Entretanto, se o passado tivesse sido alterado… Não apenas ela
desapareceria daquela tumba como Cristopher também poderia sumir da
minha vida.
— Quero visitar a igreja mais uma vez — pedi, angustiada, mirando os
olhos azuis que agora ganhavam ruguinhas delicadas dos lados. — Preciso
saber se estão bem, se continuam enterrados no mesmo jazigo, se as
palavras continuam as mesmas.
Cristopher assentiu.
— Podemos ir assim que sairmos daqui, que tal? — Ele alisou meu
cabelo, depois meu rosto. Com o passar dos anos, seus gestos foram se
tornando mais doces, mais gentis e menos explosivos. Eu amava aquele
novo Cristopher como amava o outro, mais rústico, também.
Voltei a olhar para o computador, e como esperávamos, a busca por
Ruedas não deu em nada. No entanto, na outra aba, havia um resultado para
“Aaron de Landa e esposa”.
Não consegui acreditar quando encontrei o documento que Zachary
mencionara.
Sabrina.
Eu e Cristopher aproximamos o rosto da tela. Lá estava ela, desenhada
em traços coloridos e com um arco na mão, ao lado de um homem bem alto
e de aparência robusta. Aaron de Landa e sua esposa, Sabrina.
Tapei a boca, emocionada, pensando em seguida que pelo menos sobre
aquilo Zachary não mentira.
Por que mentiria então sobre o assassinato?
Após enviar o documento para o meu e-mail, deixamos a Ordem e
dirigimos até a catedral de São João. Estacionamos na frente da igreja,
vendo homens de capacete andando de um lado para o outro e placas
interditando a entrada.
— O que está acontecendo? — perguntei, girando ao redor, enquanto
Cristopher abordava o que parecia ser o responsável pela coordenação da
obra. Alcancei-os a tempo de ouvir o homem assentir que sim, estavam
reformando a igreja e as visitas ao subsolo, provisoriamente proibidas.
— Por que interditaram o subsolo? — Meu peito se contraiu de aflição.
— Há algo acontecendo com os túmulos mais antigos — o homem
respondeu. — Algum tipo de erosão, ainda não sabemos. Os nomes estão
desaparecendo das lápides e há uma equipe investigando o fenômeno.
28
OS PREPARATIVOS
SABRINA

C onforme as semanas passavam, assistia de longe os preparativos do


país para resistir a um ataque, e eles eram frenéticos, incansáveis e na
maioria das vezes, brutais. Campos foram ceifados. Todos os poços
de água limpa, envenenados. A cavalaria da Ordem foi enviada para Mdina,
e os fortes que davam para o mar receberam os cavaleiros mais experientes.
Fevereiro passou em meio a um interminável carregamento de pedras e
confecção de rejuntes para os reforços das muralhas, sem falar dos treinos
intensivos sobre manejo de armas e funcionamento de aparelhos de guerra.
A maioria dos camponeses nunca havia segurado uma espada ou sabia
como lutar, mas com suas casas sendo demolidas para prover pedras para o
reforço das muralhas, só lhes restava ir para as cidades e participar dos
preparativos para a batalha. A cada rosto que cruzava comigo nas ruas, me
perguntava quem deles sobreviveria. Quem voltaria a ver a esposa e os
filhos. De quem seriam os descendentes que chegariam até a minha época.
Março se foi em meio ao fluxo intenso de carroças vindo em direção às
cidades fortificadas, enquanto o interior se esvaziava de gente e de comida.
No mar, uma grande corrente foi estendida entre Senglea e Birgu para
fechar o trajeto entre as duas cidades.
Abril chegou com notícias a princípio promissoras. O vice-rei da Sicília,
em uma breve visita à cidade, prometeu enviar ajuda. Como prova de sua
palavra, e uma forma de passar confiança na Ordem, deixou seu próprio
filho aos cuidados de Valette, ciente de que o destino do jovem seria a
morte ou a escravidão, caso os turcos tomassem a ilha. O vice-rei partiu no
dia 9 de abril levando em seu navio um grande número de mulheres e
crianças, sem saber que seu menino morreria no dia 15 de julho pelas mãos
dos turcos, em Senglea.
Olhei para o campo aberto tomado por homens, sentindo o coração
pesado e os olhos úmidos, mas decidida a ocultar que conhecia aquele
destino. A maioria daquelas pessoas que tanto se esforçava em conjunto não
sobreviveria.
Mais adiante, sobre a campina enlameada, avistei Cristopher
compenetrado na tarefa de treinar um grupo de adolescentes a manejar
algumas armas e cravá-las fundo em um empilhado de blocos de feno.
Ao me ver sobre o cavalo, observando-o, ele fingiu que eu não estava
ali. Eu sentia o seu olhar hostil toda vez que aparecia no treinamento.
Cristopher não entendia o meu papel na guerra, meu acesso aos capitães de
Valette, a confiança cega de Aaron em mim. Principalmente, não entendia
por que eu ainda estava ali e não tinha sido enviada para longe, com as
outras mulheres.
Cheguei a ouvi-lo comentar com Aaron que as prostitutas tinham sido
despachadas no último carregamento, e vi, encolhida de pena, Aaron acertar
com força a lateral das suas costelas com a espada pesada. Cristopher caiu
de joelhos no chão, gemendo e xingando como nunca o ouvi fazer antes. No
entanto, ao invés de me sentir ofendida pelo comentário — bastante rude,
porém nada destoante das coisas que se ouvia naquele tempo —, juntei-me
ao grupo de garotos que caiu na risada quando o arrogante foi derrubado
por Aaron.
Que era, a propósito, invencível.
Enquanto Cristopher lutava bem, o irmão havia nascido para aquilo.
Aaron tinha um controle sobre a espada que fazia até mesmo o mais
experiente cavaleiro parar tudo que estava fazendo para observá-lo. Os
braços tinham o ângulo certo no ataque e o foco era o de uma ave de rapina.
Os golpes eram confiantes e, em todas as vezes, fatais. Suspirei um pouco
aliviada: ninguém sairia vivo de um embate corpo a corpo com ele.
Estalei a língua e o cavalo avançou pelos campos de treinamento.
Precisava passar a Aaron um recado de um dos capitães e me distraíra
observando o esqueleto de uma guerra se formar.
Mais adiante, ferreiros abasteciam a tropa com espadas e alabardas, uma
lança medieval de haste longa com um tipo de machado do outro lado.
Bolas de canhões entravam sem parar dentro dos fortes. Pistolas, arquebas
— uma espécie de espingarda — e outras armas eram disparadas contra
alvos montados em cavaletes distantes.
Foi ao passar por um grupo de monges que resolvi apear do cavalo.
Cinco deles, vestidos com as túnicas compridas e as mantas com a cruz de
oito pontas, ensinavam a alguns camponeses como manusear os
equipamentos que costumavam defender os monastérios quando eram
atacados. Era estranho ver religiosos lidarem com armas com tanta perícia,
mas havia um íntimo entrelaçamento entre guerra e Deus, na época. Um
imenso arco feito de madeira clara chamou a minha atenção. Ele tinha um
suporte de chão, podia ser movimentado para cima e para baixo e também
para os lados. A estrutura não usava elasticidade para lançar flechas, e sim
torção para ejetar lanças de metal.
Parei ao lado de um dos monges. Ele informava a um pequeno grupo
que as lanças poderiam ser disparadas contra a massa de inimigos a longa
distância e empalar até dois ou três de uma vez. A imagem me assombrou
de tal forma que senti a bile subir à garganta. Afastei-me do grupo e
procurei apoio no cavalo, vomitando na relva pisoteada o pouco do mingau
que havia conseguido engolir no café da manhã. Lentamente, a realidade da
guerra se entranhava em mim — mas fazia isso à força, rasgando as
vísceras.
Respirei fundo, acalmando o estômago enquanto ignorava a continuação
das lições.
Então, como se alguém diminuísse o volume das conversas, elas foram
morrendo à medida que passos indicavam a aproximação de alguém.
— Está tudo bem por aqui?
Levantei a cabeça, limpando a boca. A voz não perguntara se eu estava
bem; a preocupação de Cristopher era com as lições. Os monges assentiram.
Ele passou por mim, fingindo não me enxergar.
— O manejo de uma balista não é difícil, mas requer treino — o monge
continuou, mas Cristopher o interrompeu.
— Os meninos são muito fracos para manejá-la, senhor — disse,
afastando o religioso da frente da arma para engatilhá-la. Ele girou uma
manivela até que o cabo fosse tracionado. Então, enfiou um arpão no sulco
da madeira e estendeu a mão, pedindo algo ao monge do lado. O homem
lhe entregou uma marreta.
Cristopher girou a enorme besta para um alvo distante.
— É melhor que ela seja operada por alguém com força — afirmou,
golpeando a trava e liberando o arco. A lança zuniu em linha reta, atingindo
o alvo com precisão. Não apenas eu, mas todos congelamos por alguns
momentos, vendo o estrago que a ponta afiada causou no cavalete metros
adiante.
— A balista serve para derrubar cavalos, danificar catapultas e debilitar
torres móveis. Ao contrário dos arcos, seu lançamento é horizontal. O
disparo é direto e causa grande dano. Para os meninos, é melhor que usem
os arcos menores.
Rolei os olhos, respondendo em um sussurro:
— Lógico que não.
Não percebi que tinha sido ouvida até Cristopher se virar devagar para
trás. Ele queria saber quem o tinha contradito.
Senti o coração parar quando o olhar sombrio encontrou o meu. Embora
soubesse quem ele era no futuro, seu eu do passado era assustador. Engoli
em seco, vendo-o se aproximar.
— O que foi que disse?
O silêncio era tanto que dava para ouvir as moscas voarem ao redor.
Aaron, seria uma boa hora para você aparecer.
Os olhos azuis de Cristopher me queimavam. Não só ele queria ouvir de
mim o que havia dito, como várias cabecinhas atrás dele também. Eu era
uma louca desvairada por questionar um cavaleiro da Ordem ou apenas uma
imprudente sem medo da morte?
Peguei ar, lembrando que estava certa, já que foi o próprio quem me
ensinou a arte da arquearia. Cristopher sempre disse que colocar um arco na
mão de um despreparado era como enfiar uma espada na mão de uma
criança e mandá-la brincar: ia dar merda.
— A arquearia exige prática — murmurei, fitando-o. — Sabe disso.
Lançamentos oblíquos são difíceis. Requerem exercícios sem fim.
Como todos me olhavam, expliquei para quem parecia disposto a ouvir:
— Para acertar um alvo a muitos metros é necessário atirar ligeiramente
para o alto. Acertar requer ajuste e muita prática.
A boca dele se ergueu no canto, em deboche.
— Está me dizendo como ensinar esses homens a usar um arco,
senhorita Bonicci?
Babaca. Se eu não amasse tanto aquele cabeça dura, juro que pediria a
besta gigante emprestada e meteria uma lança naquela bunda folgada.
— O que estou dizendo é que falta pouco para a chegada dos turcos, e
esses rapazes não terão tempo para ajustarem a mira.
Os olhos de Cristopher viraram fendas estreitas.
— Como sabe quando os turcos chegarão?
Merda. Aaron, onde você está? Eu ia acabar me metendo em uma
grande encrenca se não controlasse a minha língua comprida.
— Não sei de nada. Estou apenas supondo.
— Pois faça suas suposições em silêncio, senhorita — ele respondeu,
grosso, virando-se para o grupo e encerrando o momento com ordens: —
Peguem os arcos! Precisamos treinar a mira.
Só pela maneira como aqueles jovens tocaram nas armas, tive vontade
de chorar. Que desastre. Implicante, Cristopher olhou para mim, concluindo
como se falasse para o grupo:
— Prestem atenção como se faz.
Ele caminhou até um determinado ponto, posicionou o arco na altura do
queixo e ergueu os cotovelos. Fui inundada por lembranças de treinos e
horas passadas na sua companhia, aprendendo a mirar, atirar, recolher a
flecha e repetir mil vezes aquilo até me tornar o que era hoje.
A flecha zuniu pelo campo, acertando o centro do cavalete que trajava
morbidamente um turbante. Os garotos balançaram a cabeça, animados,
aguardando Cristopher caminhar até o alvo e remover a flecha. O caminho
de volta foi feito com uma carranca na minha direção, que significava, mais
ou menos, “fique quieta e volte para a cozinha”, ou algo assim.
Ah, mas eu não ia a lugar algum sem dar uma lição naquele cretino.
Caminhei até o grupo, ignorando o enjoo, o medo, a provocação barata
e os inúmeros badalares internos de alerta que gritavam “não se meta nisso,
Sabrina!”. Peguei um dos arcos disponíveis sob seu olhar espantado, as três
últimas flechas da aldrava e caminhei até o mesmo lugar de onde ele atirou.
Os arcos modernos tinham sistemas de roldanas e polias feitos para
ajudarem atiradores que, como eu, não tinham muita força física, mas
Cristopher sempre fez questão que eu treinasse com arcos como aquele.
Ajustei a saia comprida ao redor das pernas e enfiei as flechas no bolso,
pontas para baixo. Afastei do ombro o rabo de cavalo que sempre se soltava
das fitas sem elástico e estalei as juntas. Os olhares de todos estavam nas
minhas costas, desejando que o lançamento fosse um fiasco. Todos queriam
o ajuste de contas tardio pela briga entre os irmãos que acabou com
Cristopher rolando de dor no chão.
Que esperassem para ver.
Ergui o arco em um ângulo preciso, elevando o cotovelo e esticando a
corda. Sempre adorei a sensação de estudar o vento e calcular as condições
do arremesso, de ouvir o barulho do fio se esticando, de sentir a força da
flecha contra os dedos.
Soltei o ar devagar, imersa nos meus próprios sentidos, ouvindo nada a
não ser um completo silêncio. Então abri os dedos, e a flecha voou.
O zunido fez as cabeças acompanharem a trajetória até a flecha derrubar
o turbante. Então, sem esperar, viram outra atingir rapidamente o centro do
cavalete, e logo depois outra, em uma das pernas de madeira. O cavalete
tombou sobre o gramado, o corpo das flechas erguidos para o ar, como
braços esqueléticos erguidos em vitória.
Baixei o arco, vendo Aaron observar de um canto meu pequeno show.
Ele tinha um sorriso discreto e o olhar divertido, mas não chegou a se
aproximar. Eu que me entendesse com aqueles brucutus com quem havia
mexido.
Vendo que ninguém me desafiaria, Aaron fez um gesto indicando que
deveria segui-lo. Obedeci calmamente, devolvendo o arco para um dos
meninos e relanceando os olhos para Cristopher, que agora tinha as
sobrancelhas unidas sobre o nariz.
Fiz uma pequena mesura, que ele, talvez por susto ou inédita educação,
finalmente retribuiu. Sorri, olhando para baixo.
Sabrina, um. Cristopher, zero.
29
A DECISÃO
SABRINA

A aron saiu da banheira preparada no nosso quarto, na residência nos


arredores de Birgu, sério e calado. Sabia que não escaparia da
conversa definitiva que teríamos naquela noite. Durante todo o mês
de abril, ignoramos o assunto, como se estivesse claro que eu, em algum
momento, me uniria às mulheres que estavam sendo despachadas para o
continente. Havíamos deixado o interior da ilha em fevereiro e ocupado o
casarão com todos os criados e seus filhos, enviando-os aos poucos para a
Sicília até restarmos só nós e um casal mais jovem. O rapaz, Belchior,
auxiliava Aaron durante os treinamentos, vestindo-o e tirando a armadura
de batalha. Sua esposa, Anna, me fazia companhia e ajudava no serviço da
casa. Havia cada vez menos coisas a fazer, já que a comida escasseava, o
pequeno comércio local havia fechado as portas e as ruas estavam cada vez
mais vazias.
Não tínhamos nos visto o dia inteiro e seu silêncio era um mau sinal.
Sempre que podia, tentava acompanhar Aaron até os campos de
treinamento, mas andava me sentindo enjoada pelas manhãs. A essa altura,
eu já desconfiava do que estava acontecendo, mas o furor no ar e a agitação
impalpável e elétrica que permeava cada canto para onde virasse, me
impedia de dizer em voz alta o que estava me deixando adoentada todas as
manhãs. Aquela não era uma notícia que faria ninguém feliz no momento,
ao contrário. Ela só traria mais preocupações aos dias já cheios delas.
— Você não foi no navio que partiu hoje, mas irá no próximo — Aaron
advertiu, sério, ainda de costas.
O quarto pequeno, bem mais austero do que o elegante casarão de
Mdina, era iluminado por uma única vela. A luz fraca e dourada banhava o
corpo perfeito como um véu difuso, ressaltando as curvas masculinas da
bunda bem formada, das costas poderosas cobertas de hematomas e das
pernas longas e ornadas por fios escuros.
Aaron também tinha evitado o assunto. As circunstâncias dos
preparativos eram perfeitas para não se pensar em nada além da guerra.
Muito trabalho, muita preocupação, muitos problemas acontecendo. Mesmo
assim, algumas coisas precisavam ser faladas.
— Acho que chegou a hora de conversarmos sobre a minha partida,
Aaron.
Ele continuou secando o cabelo molhado com um pano, virado para a
bacia. Ao me ouvir, imergiu a esponja na água limpa e espremeu-a. Então,
abriu um pequeno pote de argila, passou a esponja na mistura de sal com
alecrim e levou aos dentes, esfregando-os. Cuspiu a saliva no penico ao
lado e bochechou a boca com água fresca.
Só então respondeu:
— Já falei o que é preciso. Você não pode mais ficar na ilha.
— Não vou deixar você para trás.
— Isso está fora de discussão, Sabrina. — Nu, ele caminhou até a cama
e se deitou ao meu lado, levemente úmido, puxando a coberta até o peito.
Os cravos que Anna colocava na água do banho deixavam a pele
perfumada e atrativa. Deslizei as vistas pelo peito machucado, querendo
tocá-lo e deixar o assunto delicado de lado. Talvez fosse mais importante
perguntar se aquelas manchas roxas doíam, se havia algo que pudesse fazer
para não voltar mais tão ferido dos treinamentos.
Partia meu coração vê-lo sempre tão cansado, mas não era hora de
sentimentalismos ou mostras de fraqueza. Todos haviam endurecido na ilha;
todos escondiam os medos atrás de uma muralha. Tentei endurecer também,
mas não consegui o suficiente. Não raramente precisava me esconder para
que não me vissem chorar pelas famílias que se despediam sem saber se
voltariam a se encontrar de novo; pelas terras deixadas para trás, os animais
abatidos ou soltos para que se virassem sozinhos, os meninos que tinham
acabado de sair das fraldas e agora precisavam empunhar espadas com
ordens de matar o máximo de inimigos. Não havia mais paz ou beleza ao
redor: fora tudo contaminado pelo medo e a raiva, os dois principais
elementos na complicada receita da guerra. Até mesmo Aaron, tão
cuidadoso e reverente, tão amável e delicado no trato comigo, havia
mudado. Sua ideia fixa de me mandar para a Itália só competia com outra:
de me fazer retornar ao meu tempo.
Suspirei. Precisávamos finalmente falar sobre as duas opções.
Pousei a mão sobre o peito morno, sentindo o coração bater contra a
palma.
— Está chegando a hora e você sabe — ele afirmou, me olhando com
uma dor intensa.
— Eu sei, amor.
— Você levará Anna junto. Precisará dela quando chegar à Sicília.
Tenho amigos que as acolherão, podem ficar lá até agosto. É isso ou… a
outra solução.
— A outra solução não vai acontecer, Aaron. Não vou voltar para o meu
tempo.
As palavras meu tempo e futuro mudavam toda a nossa dinâmica. Era
como se todo o equilíbrio que eu e Aaron tínhamos sofresse um pequeno
abalo sísmico quando elas surgiam; como se nossos cantos se desajustassem
e desencaixássemos do outro. Sei que já deveríamos ter falado sobre esse
retorno antes, mas nós dois andávamos evitando o assunto.
— Não vou deixar você morrer aqui, Sabrina.
— Não vou morrer. — Puxei seu rosto na minha direção, pois queria
que o teimoso entendesse de uma vez. — Eu vou viver. Assim como você e
o seu irmão.
— Não há garantias. Cristopher só disse que o mandará para o futuro,
mas não falou quando. O resto é inferência nossa. A verdade é que ele não
sabe o que aconteceu depois que partiu. Nem mesmo temos certeza quando
isso vai acontecer!
— Acontecerá em algum momento de junho.
— Junho durará um século, Sabrina.
Aaron tinha razão. As frases de Cristopher eram enigmáticas e foram
esmiuçadas por nós. Elas revelavam pouco — apenas que viajaria no
momento em que eu decidisse que era a hora. Poderia ser logo depois da
queda de São Elmo — e eu supunha, portanto, que estava com ele lá dentro,
porém, poderia ser depois. Quanto depois? Não sabia.
Aaron insistia em dizer que levaria a pedra com ele e assumiria o meu
lugar no envio de Cristopher, mas não acho que as coisas eram simples
assim.
Pensei nos filmes que meu cunhado ajudou a produzir e que mostravam
os poucos sobreviventes da queda do forte — exatamente cinco — se
salvando ao pular no mar. Lembro que ele não gostou da cena final de um
deles, quando foi lançado. Ele dizia que o diretor alterou o enredo e,
querendo corrigir a discrepância, me levou, um tempo depois, para um tour
por São Elmo.
Preste atenção, Sabrina — disse, — a cena está errada. Não foi na
capela que a última luta aconteceu, como mostra o filme. Foi na torre.
Naquela torre, você está me entendendo?
Depois de repassar a conversa tantas vezes, entendi que, se Cristopher
sabia disso, era porque esteve no final do Cerco — e eu, ao seu lado.
Além disso, o sonho que insistia em vir, noite após noite, naquela vida
que parecia ter sido há milênios atrás, não era apenas um devaneio da
minha cabeça. Cansei de ver Cristopher ficar para trás na luta e morrer sob
o golpe de uma espada. O sonho era uma mensagem.
Só eu poderia conduzir a perigosa coreografia daquelas últimas horas. A
questão era que eu não só precisava ficar, como lutar ao lado deles e estar
dentro do forte que, sabíamos, cairia.
Por Cristopher, Aaron e Isla, eu precisava me preparar para aquilo.
— Onde está a sua fé, cavaleiro? — murmurei, tentando sorrir.
— Não preciso de fé. Só de você.
A tentação de abraçar Aaron era grande, mas precisávamos finalmente
conversar.
— Não estarei segura na Sicília, meu amor, e você sabe. Sou uma
mulher de pele negra em meio a uma convulsão social. Você mesmo me
confundiu com alguém de Trípoli. É tão arriscado me mandar para a Itália
quanto me deixar ficar.
A testa dele ganhou um vinco, e logo seu rosto inteiro estava contraído.
— Nunca entendo por que confunde a Sicília com a Itália.
— Não mude de assunto.
Aaron respirou fundo e soltou um bufo.
— Resta-nos a outra opção, então — ele insistiu.
— Quem viajará com essa pedra é Cristopher, não eu.
— Você não sabe até acontecer. Quero que, no momento em que
ocorrer, vá junto.
— De acordo com Valette, apenas um pode viajar. Eu falei isso, Aaron.
— Que seja você, então! — Ele perdeu a paciência, se remexendo para
sair da cama. — Não vou deixar você morrer em uma guerra que não é sua.
Você pode ter salvado essa ilha, mas se sucumbir, nada terá valido para
mim, Sabrina!
— Pare. Aaron, pare e me ouça. — Cheguei mais perto dele na cama,
abraçando seu rosto. — Só eu sei o que fazer para sair de lá. Preciso estar
em São Elmo com vocês.
Ele se sentou aborrecido.
— Cristopher pode ter dito algumas coisas, mas você não sabe de cada
flecha que será atirada, que espada será erguida ou que parede será posta
abaixo! Sabe das grandes coisas, das quais se lembra de ter visto ou lido,
mas não se sairá ilesa depois que tudo acontecer! Cristopher irá antes de
vivenciar o final da guerra, Sabrina, e no final você pode estar…
Ele parou de falar, os olhos hesitantes. Ninguém queria ouvir a palavra
“morta”.
— Não quero perdê-la. Não posso perder você.
— Então precisa garantir a minha segurança lá dentro.
Ele rosnou, impaciente.
— Mulher, você é teimosa como uma mula. Se soubesse que insistiria
nessa sandice, teria te jogado à força dentro da última galé! O vice-rei faria
esse favor para Valette. Ele a protegeria!
— Eu não iria, Aaron. — Acariciei seu peito.
— Para de tentar me distrair. Precisamos nos preparar para esse
momento — ele decretou, sério, com um vinco entre as sobrancelhas. —
Vai acontecer e eu… preciso estar pronto.
— Que momento? O de dizer adeus? — Minhas mãos paralisaram sobre
os fios macios. — Não há por que se preparar para isso.
A decisão de ficar fora tomada meses atrás, mas adiada por uma questão
de agonia. No fundo, nós dois sabíamos que eu não iria mais embora. Aaron
tinha razão quando disse que não nos encontramos por acaso: nós nos
reencontramos. Eu nunca mais deixaria aquele lugar.
Nunca mais o deixaria.
— Se fosse verdade, você conseguiria se despedir de mim? — perguntei
baixinho.
Aaron coletou minha mão e beijou demoradamente os dedos.
— Não, Sabrina. Nunca. Mas em momento algum quis que
testemunhasse a dor que recairá sobre esse país.
— Não tenho para onde escapar. Este é o meu país também.
— Você tem a pedra. Pode ir quando quiser. Tenho certeza de que se
Cristopher pudesse escolher, diria o mesmo. Deve ir, nem que seja sozinha.
Talvez fosse a hora de revelar o que estava acontecendo comigo.
— Bem, eu não estou mais sozinha.
— Como assim?
Então, como se de repente algumas coisas fizessem sentido, vi o eterno
vinco de preocupação na testa de Aaron se dissolver. Os olhos se alargaram
e a boca se entreabriu, enquanto ele descia as vistas pela camisola fina de
algodão e notava, aqui e ali, algumas mudanças no meu corpo.
— Por causa do racionamento de comida, não percebi os inchaços
também. — Desci os olhos até a barriga, tão discreta no momento. — Mas
isso explica os enjoos.
— Desde quando desconfia que…
— Já faz um tempo. Achei que minhas regras não tinham descido por
causa da loucura que estamos vivendo, mas as náuseas não deixam dúvida.
Estou esperando um bebê.
Um filho seu.
A respiração de Aaron se alterou enquanto olhava para o meu corpo, se
perguntando como pôde não ter percebido. Talvez tenha sido a mente
racional expulsando a ideia, porque esses cinco meses foram os mais
difíceis da nossa vida. Talvez fosse apenas sua incapacidade em acreditar
que o mundo ainda podia lhe oferecer algo bom.
— Sabrina, isso é…
Segurei a minha emoção para que Aaron pudesse viver a dele. Meu
amado cavaleiro não sabia, nem eu sentia mais vontade de contar, mas
desejei muito um bebê em minha antiga vida. Achava que a beleza de um
nascimento espantaria as nuvens pesadas do meu horizonte e me faria
finalmente feliz. Uma criança chegava agora em meio ao caos e aos
preparativos de uma guerra, e não havia mais uma única nuvem de tristeza
diante dos meus olhos.
Amava aquela criança e o pai dela como nunca amei nada na vida, e
faria com que nosso bebê vivesse até o fim do Cerco, ou não me
chamaria…
Olhei para Aaron, pedindo de rompante:
— Case-se comigo.
O mundo poderia ter se aberto sob nossos pés e aquele homem não teria
se assustado mais. Ele abriu e fechou três vezes a boca antes de assentir,
confuso. Apostava que era a primeira vez que ouvia uma dama pedir um
cavalheiro em casamento. Provavelmente, seria a única.
— Quero ser sua esposa, Aaron. Quero me tornar Sabrina de Landa.
Os olhos arregalados aos poucos foram dando espaço para um sorriso.
No entanto, como ele não se mexia, me aconcheguei contra o peito
convidativo, sentindo-o por um bom tempo paralisado contra mim. Aaron
precisava de espaço para sentir as novidades, eu entendia isso. Quando ele
finalmente me abraçou de volta, a umidade do seu rosto molhou o meu, e eu
soube ali, que nada — nem o medo, nem a guerra, nem mesmo o fim do
mundo — me roubariam o que cabia naquele abraço.
30
O AMOR
AARON

P or longos segundos, no quarto iluminado pela chama de uma única


vela, refleti sobre a novidade: Sabrina estava esperando um filho
meu.
Um filho.
A imagem do menino que perdi se embrenhou nas memórias. Tentava
não pensar nele, no peso quase inexistente do seu corpo sem vida nos
braços, e precisei de tempo para afastar o medo que a notícia trouxe.
Eu estava tendo uma segunda chance. Mesmo diante de um futuro
nebuloso, reluzia uma pequena promessa de felicidade e redenção.
Talvez devido a isso, tenha vindo a vontade de falar sobre o passado.
Com Sabrina segura e aconchegada em meus braços, ouvi minha voz
cortar o silêncio:
— Nunca contei por que larguei a Ordem.
Ela arrastou o rosto para cima, preguiçosa.
— Teve algo a ver com a perda da moça e da criança, não teve?
Assenti devagar, deslizando os dedos pelos ombros macios. Ela sabia
que o anúncio da sua gravidez faria velhas feridas doerem.
— Mas não só — Eu a olhei de relance. — A perda teve um impacto
grande sobre mim, sem dúvida, mas não foi o que decidiu a saída.
— O que foi, então?
— Dor — respondi, devagar. — Foi a dor que me fez desistir da Ordem,
e principalmente, da Igreja.
Ela se ajeitou ao meu lado para me olhar melhor.
— Como assim?
— Eu passei a sentir a dor do outro. Talvez apenas… sentir.
— Cristopher me disse certa vez que tinha perdido a fé.
— Completamente — admiti. — Na época em que a mulher e a criança
morreram, já andava questionando as guerras, as mortes e a crueldade. Não
entendia como podíamos ouvir pregações sobre amor e viver causando e
sofrendo perdas. Então, um dia, fui chamado até São Ângelo para interrogar
um turco capturado nas redondezas da ilha.
Senti o corpo enrijecer só de mencionar o fato. Costumava me afastar da
emoção quando falava nisso, mas desde que deixei minha armadura cair e a
culpa penetrou na alma, nunca mais lidei com algumas lembranças da
mesma forma.
— Precisa entender que o meu trabalho era cruel, Sabrina, mas que eu
tentava exercê-lo com mais inteligência do que força. Sempre tive a
paciência que os outros não tinham. Sabia que o silêncio arrancava muitas
verdades, que podia deixar o próprio medo do inimigo agir contra eles. —
Olhei para o teto. — Havia violência, claro, mas muitos a exerciam melhor
do que eu. Quando me chamavam, esperavam outros métodos. Mesmo
assim, não me orgulho das coisas que fiz e do que vi nas celas escuras desse
país. Contudo — pausei —, sempre acreditei que meus atos serviam a Deus,
à Ordem e à ilha.
Sabrina assentiu, como se compreendesse. Eu questionava o que uma
mulher torturada poderia saber sobre o trabalho de um torturador, mas era
bom ser compreendido.
— Eu já não queria mais fazer aquilo. A dor do outro começou a me
ferir. Suas súplicas aos seus deuses me confundiam. Que Deus era aquele
que permitia tanto sofrimento? O inimigo, porventura, não era uma pessoa
temente também?
Suspirei, retornando ao dia que mudou tudo.
— Naquela tarde, no subsolo do forte, fui levado até um garoto que não
devia ter mais do que 16, 17 anos. Segundo me contaram, era filho de um
capitão importante da frota inimiga e talvez soubesse segredos. Eu tinha
acabado de perder o meu próprio filho, e andava questionando tudo.
Quando olhei para o menino, o primeiro pensamento que tive foi: ele é filho
de alguém. Um pai o criou com amor e aguardava, em algum lugar do
mundo, o seu retorno. Aquilo foi a gota d’água. Sabia que, se o libertasse,
ele contaria sobre o que viu e ouviu. Porém, se o matasse, alimentaria
aquele ciclo de ódio que estava me adoecendo. Então mandei soltá-lo e o
enfiei em um barco para o continente. Desde então, entendi que falhei com
a Ordem e precisava sair. No meu coração, no entanto, não via mais
dignidade nela ou nos preceitos que a guiavam.
— Aaron, eu…
— Está tudo bem. — Eu a abracei, querendo que sentisse que eu não era
mais o mesmo homem. Eu mudei muito antes de nos conhecermos.
— Eu teria medo de quem você era — ela disse baixinho, me enlaçando
forte.
— Mais uma prova de que o que eu fazia era errado.
Sabrina beijou meu peito, murmurando contra a minha pele:
— Amo quem se tornou. Que tenha tomado essa decisão.
Eu também gostava. Parecia certo até hoje ter decidido aquilo.
— Acho que finalmente fiz as pazes com Deus — falei, soltando um
exalar retido há tempo demais.
A frase pairou por longos instantes no ar, rodopiando entre nós com a
leveza das confissões.
— Fez, amor?
— Sim. — Olhei para ela. — Ele me mandou você. Que Criador
colocaria nas minhas mãos uma responsabilidade tão enorme? Ou teria me
dado a chance de amar e ser amado, e salvar, no processo, o meu irmão? —
Entrelacei os dedos aos seus, sentindo um caroço na garganta. — Quem
faria isso, senão um Ser piedoso e disposto a dar segundas chances?
Os olhos de Sabrina marejaram.
— Viu, Aaron? Tudo que você diz é pura joia. Cá estou eu chorando de
novo.
Ela se arrastou sobre mim, doce e perfeita, e envolvi suas curvas com
carinho. Era a primeira vez que falava em voz alta sobre a minha saída da
Ordem e gostei de constatar que minhas certezas continuavam intactas.
Acariciei os braços de Sabrina. Seu rosto delicado, limpando no
processo as lágrimas nos cantos dos olhos. As mechas escuras do seu
cabelo. Ela estava mais luminosa, mais radiante… Como pude deixar de
notar o quanto estava ainda mais linda? Como pude ter perdido aqueles
sinais?
Ela arrastou as unhas curtas pelo meu peito e seus olhos se inflamaram.
— O que você quer, futura Sra. De Landa? — perguntei rouco.
— Sabe o que eu quero.
Ah, eu sabia.
Com gestos lentos, ergui-a até que se sentasse sobre a minha barriga.
Suas coxas envolveram a lateral do meu tronco e suas mãos repousaram
sobre o meu peito.
— Tire a roupa — ordenei. — Quero ver você.
Ela cruzou as mãos e segurou na bainha da camisola, erguendo o tecido
e revelando a pele lisa e macia. Meus olhos acompanharam fascinados a
curva discreta do ventre, os seios mais redondos e os mamilos inchados. A
mudança era discreta, mas mesmo assim, a prova de um milagre.
Tracei o caminho que os olhos fizeram com a ponta dos dedos, vendo-a
se arrepiar. Circulei o umbigo, a lateral da cintura, a curva de um seio,
depois o outro. O bico do peito inchou, arrepiado. Em breve os beijaria
longa e demoradamente.
— Terá que ser delicado a partir de agora, Sr. Mão-pesada.
— Não sei ser delicado — Abri as mãos ao redor da sua cintura e a
apertei, de leve no começo, então mais forte, movendo-a para frente e para
trás sobre o meu membro latejante e duro como pedra.
— Sabe sim — ela gemeu de leve, se excitando com o movimento.
Eu conseguiria lidar com a delicadeza?
Mordi o lábio inferior, olhando para o contato de nossas peles. A junção
das bandas da sua intimidade percorriam o caminho entre o meu umbigo e a
base do pau, umedecendo tudo por onde passava. Céus, eu amava o seu
corpo. Tinha loucura pelo seu gosto.
Ela se inclinou sobre mim, os cachos do cabelo roçando meu rosto, e
seus lábios encostaram na minha face. Beijei sua pele quente, seu nariz
atrevido e tomei sua boca. Explorei-a com a língua, segurando sua cabeça
contra a minha, sentindo seu quadril girar, provocante, contra a minha
excitação. O paraíso tinha aquele toque e aquele gosto, e eu podia apostar a
minha alma nisso.
Seus beijos desceram pela curva do meu pescoço; ela beijou meu
ombro, e cada um dos meus hematomas e machucados. Sentindo uma
urgência louca, segurei as bandas da bunda redonda e puxei-a sobre mim
até que ela se sentasse sobre o meu peito. Ela arquejou, sabendo o que eu
queria.
— Segure-se na parede — falei.
Ela obedeceu. Colocando-se de joelhos e espalmando a parede atrás de
mim, aproximou a vulva da minha boca. Lambi a fenda molhada, traçando
com a língua os vales e cumes da minha paisagem preferida. Mordisquei
cada pedaço tenro e macio; chupei uma banda, depois outra, me
concentrando, a seguir, na crista deliciosamente inchada e rosada.
Os movimentos eram lentos e rítmicos, e a doçura de seus gemidos,
devastadora. Entre arfadas, ouvi-a dizer:
— Amo tanto você, Aaron.
Absorvi aquelas palavras com o corpo inteiro. Cada vogal e consoante,
cada ínfimo significado delas. Elas amornaram o centro do meu peito;
aceleraram o coração, mas também intensificaram meus temores.
Quem amava sentia medo.
Continuei sugando-a, tomando faminto cada gota de néctar que ela
podia me dar. Sabrina tombou a cabeça para a frente, as costas arqueadas,
as pernas abertas ao redor do meu rosto, trêmulas e fracas. Seu cabelo caía
como cascata sobre nós, os seios arrepiados como botões de flor. Ela
começou a espasmar. A arquear mais as costas e perder a força das pernas.
Beijei seu centro com carinho enquanto a ouvia gemer alto, sentindo as
coxas pressionarem, fracas, as laterais da minha cabeça.
— Amo o seu cheiro — falei quando ela parou de arfar e se afastou,
sentando-se sobre o meu peito de novo. Seu cabelo estava desalinhado e o
peito subia e descia, procurando por ar.
Tirei-a de cima de mim e a girei com cuidado na cama, deitando- me
sobre ela com cuidado para não colocar peso demais sobre o seu ventre.
Sabrina sorriu, os olhos luminosos de prazer.
— Amo cobri-la inteira, meu bem, e entrar fundo em você.
Os joelhos da minha futura esposa tombaram para os lados, me dando
total acesso. Continuei, atento a como se entregava sem luta:
— Amo sua boca, sua pele, seus olhos, sua alma doce e valente. —
Aproximei os lábios do ouvido dela, encaixando o quadril contra suas
coxas. — Amo sentir sua entrada abraçar meu membro e senti-lo desbravar
cada milímetro úmido.
— Aaron… — ela disse derretida, enlaçando meu pescoço.
— Amo estar dentro de você. A sensação do seu corpo sob o meu. De
saber que é minha. Que será para sempre minha e de mais ninguém.
Gostava de amar, na verdade.
De amá-la.
Meu membro a invadiu de maneira gentil, ou, pelo menos, com o
máximo de gentileza que um bruto como eu saberia fazer. Ela fechou os
olhos, voltando a respirar de maneira profunda, saindo do estado saciado
para o desejoso, outra vez.
— Acho que está tentando dizer que me ama também, Aaron.
Sorri. Ela não fazia ideia do quanto.
Arremeti de maneira lenta, sentindo sua carne se abrir ao me envolver.
As mãos de Sabrina passearam pelas minhas costas. Mesmo sob a luz fraca
da vela, notava as reações mais ínfimas da sua face à medida que ia e vinha.
A contração da testa. O olhar semicerrado. A boca úmida e entreaberta.
Fui e voltei de maneira mansa e lenta, testando os limites da delicadeza,
e descobri que sabia ser gentil quando, sob o meu toque, estava o tesouro
mais precioso de todos.
Os tesouros, agora. No plural.
O amanhã era uma incógnita e o prenúncio no horizonte, o pior
possível, mas enquanto eu a tivesse, restava a fé de que as coisas poderiam
voltar a ser boas e eu, feliz.
Não sei quanto tempo se passou, mas de um instante para o outro, o
quarto pareceu tremer. As costas enrijeceram e meus braços ficaram fracos.
Ela sorriu ao me ver espasmar, beijando minha testa.
— Vou entender essa reação como um “sim”.
Tombei de lado, semiparalisado pela explosão celestial, concluindo,
devagar, que um “eu te amo” jamais daria conta do que eu sentia. Meu amor
por ela me excedia em tamanho. Ele me fazia temer o futuro o mesmo tanto
que o almejava.
Trouxe sua mão à boca e beijei-a — uma, duas, três vezes, tentando
achar outra forma de explicar meus sentimentos.
— Meu corpo será para sempre seu escudo, Sabrina. Meu peito,
enquanto desejar, sua morada.
31
O INÍCIO
SABRINA

N o dia 18 de maio a frota turca foi finalmente avistada, e tiros e sinais


de fumaça anunciaram o início do ataque. Em hordas volumosas,
malteses do campo e das cidades entraram com o que conseguiram
carregar em Mdina, no interior, e em Birgu e Senglea, na costa. Cheguei em
São Elmo ao lado de Anna e Belchior, sob olhares atordoados de todos. Os
homens se perguntavam o que a cortesã-feiticeira-suposta-espiã, e agora
esposa do cavaleiro Aaron de Landa, estava fazendo em um forte ao lado de
uma imensa maioria masculina de guerreiros?
Que vivessem para saber, e por mais que doesse pensar naquilo, apenas
cinco conseguiriam.
O encontro com Cristopher, em um dos largos corredores que
bifurcavam em escadarias para os outros andares, inaugurou a animosidade.
— O que ela está fazendo aqui? — ele esbravejou com o irmão,
ignorando minha presença ao lado. Cristopher vestia o peitoral da armadura
que no futuro enfeitava a sua sala e tinha o elmo apoiado sob o braço.
Assim como os homens que desciam e subiam correndo as escadas, levando
e trazendo equipamentos, mensagens e os últimos baús cheios de armas, seu
olhar mostrava toda a adrenalina circulando no sangue.
Aaron pousou o baú que carregava no chão.
— Mais uma vez, isso não é da sua conta.
Como Cristopher não seria louco de tirar o irmão novamente do sério,
apenas cravou os olhos em mim. Entretanto, para minha surpresa, ao invés
de dar coices e zurrar como uma mula velha como sempre fazia, ele se
endireitou e disse, aborrecido:
— Soube que se casaram.
— Sim. Na semana passada — Aaron respondeu.
Cristopher desejou uma felicitação arcaica em meio a resmungos, e sem
querer comparar, mas já comparando, aquele parabéns mal-humorado soou
bem mais simpático do que o que me presenteou quando avisei que me
casaria com Zach.
Aaron balançou a cabeça em agradecimento, e vi todo tipo de mágoa no
olhar azul do meu cunhado. Cristopher deu a entender que diria mais
alguma coisa, mas mudou de ideia.
Senti a falta dele na cerimônia, que não foi mais do que alguns
segundos na presença do abade. Por muitos anos, aquele homem foi a
minha família, e quando mencionei isso para Aaron, ele comentou que tinha
sido melhor dessa forma. Aquele seria o nosso último momento de paz
antes do caos e Cristopher não viria sem barulho, perguntas e amolações.
A verdade é que Aaron não conseguiu localizar o irmão a tempo.
Cristopher tinha ido até o campo soltar seu cão para que não fosse morto e
não retornou à cidade naquela noite. Como o tempo estava contra nós, não
conseguimos adiar a cerimônia.
O casamento simples, “um desperdício de minutos preciosos”, segundo
alguns, foi um fiapo de tempo que enchemos de amor. Casei-me com um
vestido simples, segurando um ramo de flores coletadas no campo. Ele,
trajando roupas de treinamento e com o semblante cansado. Nada encheu
meu peito com mais esperança do que aqueles poucos minutos. Eu era
oficialmente de Aaron, e ele, meu.
Ao voltar a observar Cristopher, me surpreendi ao vê-lo tão sentido.
Tudo em sua expressão indicava que teria comparecido — dando coices e
tudo —, mas sabia que mereceu a falta de convite por seus últimos atos.
Virando-se para mim, ergueu o queixo e disse, engolindo o orgulho:
— Alguém precisará protegê-la, além do idiota do seu marido. Não
posso prometer que conseguirei no meio do caos que isso virará, mas saiba
que está entre as pessoas por quem darei a vida, se precisar.
Aquelas palavras roubaram meu chão.
Levei a mão à boca para suprimir a frase — eu sei, meu amigo —, e por
um instante quis abraçá-lo com tanta força que amassaria aquela lata em seu
peito. Quis beijá-lo no rosto e agradecer por ter sido tão bom para mim.
Quis chamá-lo de irmão uma única vez, e dizer que em breve ele conheceria
toda a felicidade do mundo, e eu faria de tudo para entregá-la na hora certa.
Mas o que consegui fazer foi sentir os olhos se encherem e fios de lágrima
escorrerem pelas bochechas como rios.
Virando para o lado, solucei baixinho, fazendo papel de tola. Não sei
como Cristopher reagiu à cena, mas acredito que só pode ter sido com
choque e paralisia. Por longos segundos ninguém disse nada. Ao redor,
apenas sons de vozes masculinas e ordens sendo dadas.
Os dedos de Aaron se moveram no vazio entre nós, tocando de leve a
minha cintura para indicar que estava tudo bem, que ele estava ali.
Que droga, como não amar aqueles dois?
— Apenas tome cuidado, está bem? — Aaron pediu ao irmão.
— Sempre.
Quando Cristopher se foi, Aaron alisou minhas costas até garantir que
eu estava melhor. Então, pegou o baú no chão e eu sequei o rosto como se
não tivesse acontecido nada. Só eu sabia o que aquele mês traria. As
provações que nós três passaríamos. O que viria depois.
Só eu e meu coração.
— Ele teria ido à cerimônia — Aaron comentou ao voltar a caminhar,
pegando a direita em uma escadaria iluminada por uma única lamparina. —
Cristopher é um cabeça-dura sem modos, mas é um bom homem.
— Eu sei, Aaron — murmurei com o coração partido.
Caminhei atrás dele por corredores que não reconhecia. Em algum
momento precisaria me situar por aquele labirinto. Aprender caminhos: isso
é o que eu faria nos próximos dias.
— Arrumei um lugar para você e Anna na enfermaria. — Ele me olhou
de esguelha, como se já soubesse que eu ia reclamar.
Óbvio que foi o que fiz.
— Aaron, não sei trocar um band-aid. Tem certeza de que não posso
ficar nas ameias com vocês? Sou boa de mira.
— Meu amor, não sei o que é um isso aí que falou, mas só de imaginá-
la na linha dos tiros, chego a ficar doente. Seu lugar é no subsolo com os
feridos. E acredite: precisará aprender rápido a ajudar, porque eles chegarão
às dezenas.
A despeito de minhas reclamações e pouca experiência, fui alocada na
enfermaria com um grupo de monges para trabalhar com um garoto com
metade da minha idade, chamado Luigi.
Ao contrário do que pensava, os Hospitalários não praticavam uma
medicina totalmente desprovida de ciência. Eles tinham grande experiência
na área, já que a Ordem tinha se originado para cuidar dos doentes e feridos
durante as Cruzadas na Idade Média.
Nos dias seguintes, aprendi muitas coisas. Por exemplo, que o vinho era
usado como antisséptico para limpar as feridas e misturado com outras
substâncias para criar remédios. Que utilizavam óleos para tratar
machucados, mel como anti-inflamatório e antibacteriano, e emplastros de
ervas feitos de arnica, alecrim e lavanda para aliviar as dores e melhorar a
cicatrização. Além disso — e nessa parte percebi que o que veria no
próximo mês exigiria de mim um estômago bom —, eles tinham grande
experiência em amputação de membros e no uso de suturas para fechar
feridas. Por sorte, também valorizavam a higiene e a limpeza, sem saber
que muito do sucesso em seus tratamentos vinha dessas práticas.
Dias depois, testemunhei ao lado de Aaron, de cima das muralhas, trinta
galés aportarem em Marsaxlokk e começarem o desembarque. Pela nuvem
de poeira e fumaça, a tropa turca avançava terra adentro.
— Pelo que nos contou, eles estão considerando nesse momento
atacarem Gozo e Mdina primeiro, e então Birgu e Senglea ao mesmo
tempo… Estou correto, Sra. De Landa? — o capitão do forte questionou,
baixo, ao meu lado.
Assenti em silêncio, olhando a movimentação hostil no horizonte.
— Por um erro estratégico, Piale decidirá atacar São Elmo primeiro,
porque acha que cairemos em poucos dias — respondi —, mas resistiremos
por um mês.
— Que venham, então — o capitão decretou depois de uma longa
pausa.
A partir desse dia, fui proibida de subir ao terraço e orientada a me
esconder com outras mulheres longe das muralhas assim que ouvíssemos o
primeiro canhão ser disparado.
Descemos as escadarias em silêncio, eu e Aaron. Ele nunca me deixava
atravessar sozinha os longos corredores escuros e sempre me acompanhava
de volta até a companhia dos monges.
Antes de chegarmos à enfermaria, ele me parou entre patamares
escurecidos ao ver que estávamos sós.
— Terei que vê-la um pouco menos a partir de agora, meu amor, mas
não quero que vá atrás de mim, entendeu? Por motivo nenhum. Virei até
você todos os dias.
— E se não vier?
Ele arrastou a mão pelo cabelo agora comprido, e a voz saiu trêmula:
— Se eu não aparecer… faça o que precisar para continuar viva.
Precisei segurar o ar nos pulmões e piscar os olhos muitas vezes para
não chorar.
— Não estava esperando essa resposta.
— Só existe um único motivo para não aparecer. — Ele colou a boca
em minha testa e permanecemos em silêncio por algum tempo, até que o
ouvi de novo. — O que mais posso dizer que apazigue o meu peito, além de
cuide-se, porque agora é dona do coração que bate nele?
Afastei o rosto, pousando as palmas na lateral de sua face.
— Ouça, amor. Não vou a lugar algum sem você, entendeu? Você e seu
irmão sairão daqui vivos.
Mais uma vez, Aaron ignorou minhas certezas.
— Se as coisas ficarem muito ruins, pegue esse colar e… apenas vá,
entendeu?
Olhei para os lados para conferir se vinha alguém, e quando vi que
estávamos sozinhos, abracei-o.
— Não sem você.
Aaron retribuiu o carinho, me enlaçando com força.
— Você é tão teimosa. Se vocês dois morrerem, nada mais fará sentido
para mim. Precisa ficar bem, Sabrina.
— Precisa aprender a confiar em mim, sabia?
Ele exalou profundamente, acariciando o meu cabelo, enquanto eu
ouvia seu coração bater cadenciado contra a face. Sua solidez era pura
segurança naquele momento. Senti as mãos me firmarem mais fortes e o
abraço perdurar mais do que esperava. Então Aaron suspirou, e a voz
vibrou de dentro do seu peito:
— Meu coração não é como o resto de mim. Não há coragem nele
quando se trata de você. Preferiria mil vezes nunca mais vê-la, se soubesse
que está em segurança no futuro, do que perdê-la sob os meus cuidados.
Uma guerra pode esmagar a alma de um homem, Sabrina. Não suportaria se
isso acontecesse a você.
— Não vou deixar que isso aconteça, e mais uma vez, repito: confie em
mim.
Confie no seu irmão, que fez de tudo para que eu nos salvasse no
momento certo.
Aaron deslizou o polegar áspero pela lateral do meu rosto.
— Você tem a coragem de um exército, għasel tiegħi.
— Ela vem de você, Aaron. — Repousei a boca na camisa de linho,
sentindo toda a sua tensão. — Todos os dias rezo para sobrevivermos a esta
queda. Que eu consiga enviar Cristopher para a vida feliz da qual fui
testemunha. E, principalmente, para que um dia possa criar essa criança ao
seu lado.
— Confio em você, Sabrina. E confio no futuro, e o que ele reserva para
o meu irmão. Da minha parte, saiba que darei a vida para tirar vocês daqui.
Quem diria que naquele passado de história sangrenta, de guerras e
lutas, de embates sem fim, eu acharia a minha metade, a cura das minhas
feridas e a chance de ter uma família? Que ali estaria aquele cavaleiro
machucado, de olhos doces e verdes como a menta, que me amaria com
todas as forças e me prometia uma vida feliz?
Aaron se afastou e ergueu meu queixo, murmurando, rouco:
— Se é aqui que deseja ficar, resta a mim transformar esse mundo em
um lugar bom para você. Prometo que nunca lhe faltará nada, que será a
dona de cada batida do meu coração. Você será amada, cuidada, e minha. —
Sua voz ganhou a doçura que adquiria entre os lençóis. — Minha esposa,
minha amante e a mãe dos meus filhos. Enquanto eu viver, estará ao meu
lado, como igual.
Alisei com carinho o peito onde aquele coração de ouro estava. Selamos
as palavras com um beijo delicado e só nos afastamos quando ouvimos um
ruído.
Havia alguém nas escadarias.
— Venha, tudo vai começar logo. — Aaron me puxou e deixamos o
corredor em direção ao subsolo, enquanto eu olhava para cima com a
impressão de que tínhamos sido ouvidos.
32
A DOR
SABRINA

C omo Aaron dissera semanas atrás, junho parecia durar um século. Os


bombardeios que começaram no dia 28 de maio continuavam, 24
canhões, pelo que podíamos contar, lançando dia e noite bolas de
oito quilos contra as muralhas.
Os dias avançavam cheios de perdas, atos de heroísmo e dor — muita
dor.
Ninguém conseguia se preparar para o horror cru que assombrava cada
hora de sol ou de noite; para a brutalidade, as condições terríveis dentro das
muralhas, a morte e a destruição causadas pelos tiros de canhões e as
chuvas de flechas. Principalmente, para as consequências físicas e
psicológicas dos combates. A própria humanidade parecia perdida em meio
ao caos. Guerras, não importava de que lado estivéssemos, eram uma
experiência de desumanização. Éramos treinados para odiar o outro, sem
nos importarmos com quem ele era.
O outro era aquele que deveria ser morto rápido, antes que acabássemos
sendo mortos por ele.
A notícia no começo de junho de que o vice-rei não tinha conseguido
reunir a tropa que esperava trouxe uma nuvem pesada sobre os ânimos de
todos. Do lado de fora das muralhas, os otomanos avançavam, cavando
trincheiras cada vez mais próximas, e tudo que podíamos fazer era atirar na
direção deles, murados dentro de São Elmo.
Na metade de junho, o revelim 1 foi capturado.
Aquilo foi um baque para os cavaleiros, assim como para o resto dos
malteses que ainda resistiam. Os inimigos estavam tão perto que ouvíamos
os gritos na língua que não entendíamos. Os turcos tentavam agora
construir uma ponte para atravessar a vala até o Forte, e quando isso
acontecesse, invadiriam São Elmo como um enxame.
Um dos soldados me contou que a madeira usada na construção vinha
dos próprios barcos otomanos. Com a morte dos soldados às centenas, os
turcos iam desmontando as galés supérfluas e usando a madeira para
necessidades mais urgentes. Eles também construíam barricadas, impedindo
que nossas granadas incendiárias os atingissem.
Por volta do dia 16 de junho, Cristopher se voluntariou para liderar uma
missão. Um grupo deixou o Forte na calada da noite, e as horas seguintes
foram um completo pesadelo para todos. Só respiramos quando vimos o
fogo subir pelos suportes das pontes. Foi uma missão perigosa, ousada, com
grandes chances de dar errado. O brilho laranja que clareou a escuridão
acordou o inimigo e por pouco os nossos não foram mortos. Os otomanos
apagaram o fogo, mas a ponte foi condenada. Por causa da jogada
inteligente, ganhamos mais alguns dias.
Àquela altura, começava a faltar água, a comida estava chegando ao fim
e a munição, sendo racionada. Todos estavam um pouco loucos pelas
explosões incessantes e ninguém conseguia respirar sem panos na frente do
nariz e da boca. Bolas de canhão de oito quilos explodindo o dia todo contra
as paredes estavam transformando-as em pó, moendo os esforços que
tivemos para reforçá-las. Os cavaleiros continuavam a remendar os buracos,
mas os turcos eram mais rápidos em destruí-las do que nós em repará-las.
Nem mesmo no subsolo estávamos livres da poeira dos destroços. Os
abalos eram sentidos o dia todo, incessantemente. Às vezes eu olhava para
cima e me perguntava como todas aquelas toneladas de pedra nunca ruíram
sob os ataques.
Estar na enfermaria era uma experiência enlouquecedora. Todos
trabalhávamos de maneira incansável dia e noite. Se não fosse pela
presença calma de Anna e a ingênua, porém corajosa, de Luigi, eu teria
perdido a sanidade durante aquele período.
A contagem de mortos e feridos só aumentava. Por mais que Valette
continuamente mandasse centenas de homens para nos ajudar, eles
tombavam em seguida. Os cavaleiros da Ordem estavam sendo destroçados.
Os mortos estavam por todos os lados, assim como suas partes,
apodrecendo aos poucos nos pátios, cobertos por nuvens de moscas e
exalando um odor fétido piorado pelo sol inclemente. Nos últimos dias eu
passava mais tempo vomitando do que de pé, ajudando nas operações dos
feridos.
Era desesperador de uma forma que nunca mais conseguiria suportar.
Às vezes, de noite, ouvia gritos de dor vindos da enfermaria,
acompanhando como eles iam ficando mais fracos durante as horas da
madrugada até as vozes escassearem, roucas, implorando por ajuda dos
céus.
Mas, dos céus, só chegavam mais tiros e flechas.
Os cavaleiros assistiram exaustos os atiradores turcos montarem dois
canhões no revelim que fora tomado dias antes. A estrutura que deveria nos
defender agora servia como suporte para novos ataques. Ouvimos sugestões
de que cavássemos trincheiras dentro do forte, ou não sobreviveríamos.
Mas onde? Para onde fugir, quando se estava murado?
Tudo que eu sabia — e eles aos poucos entendiam — era que São Elmo
estava condenado. O escudo de Malta caía, e o significado disso para a
Ordem e para o país era enorme.
Uma vez por dia, como prometido, Aaron fugia do posto e aparecia na
enfermaria. Sua aparência era péssima e ficava cada dia pior. Mesmo com
as olheiras pronunciadas, sujo e respingado de sangue alheio, eu sempre o
abraçava e perguntava se ele estava se cuidando, se protegendo, trajando a
armadura horrível que limitava movimentos, mas que o salvaria no caso de
um ataque.
Também o lembrava, enquanto o abraçava forte, que não importava o
que ouvisse dos homens, o trabalho daquele Forte moribundo era resistir.
Fazer com que aquela queda fosse longa, exaustiva e custosa para o outro
lado. Manter a bandeira da Ordem hasteada pelo maior tempo possível,
como um farol de esperança. Então ele assentia, perguntava baixinho como
eu estava e geralmente reclamava de Cristopher, sempre se oferecendo para
as tarefas mais suicidas.
— O anjo da guarda do seu irmão não o aguenta mais — brinquei em
um momento raro de humor, e vi o canto da boca de Aaron se erguer.
O sorriso logo morreu, tomado por um olhar melancólico. Então ele se
despediu e partiu, me deixando a sós com meu tormento. Esses poucos
minutos juntos era a única chama de alegria que ainda sobrevivia nesse
mundo e o que me mantinha de pé hora após hora vendo o pior que a
humanidade podia produzir.
No dia seguinte, Aaron apareceu completamente coberto de pó. O rosto
estava mais magro, as bochechas sulcadas de fome e os olhos opacos.
Estávamos todos assim — famintos, exaustos e imundos. Desta vez não
perguntou como o bebê estava, ou eu. Ele só precisava me abraçar.
Admito que não andava melhor do que ele ou os cavaleiros que ficavam
lá em cima. Não havia mais recursos na enfermaria, e havíamos passado a
escolher quem tinha esperanças e quem seria apenas desperdício de
remédio. Para os últimos, eu oferecia minha mão e os meus ouvidos,
prometendo passar para suas famílias as mensagens que me falavam entre
os últimos gemidos. Tentava me lembrar bem dos seus nomes — Maas,
Miranda, Zalotti, Cuervo — para não me esquecer de nenhum. Seus filhos e
esposas receberiam aquelas mensagens. Geralmente as palavras eram
interrompidas por desmaios ou apenas o último suspiro. Raros eram os que
chegavam ao final.
— Como você está? — perguntei baixo no ouvido de Aaron, querendo
ouvir sua voz outra vez.
— De pé.
— Consegue resistir um pouco mais?
— O tempo que precisar.
Ao me soltar, ele me entregou a adaga, a que tinha os nossos nomes na
lâmina. Sua expressão era sombria.
— O que é isso, Aaron?
— Está chegando a hora do embate corpo a corpo, Sabrina. — Vi seu
pomo de Adão subir e descer. — Não a tire da cintura a partir de agora. Se
alguém se aproximar, crave-a até o fundo, entendeu?
Assenti devagar, lembrando da última vez que a segurei, sentindo um
estremecimento tomar meus dedos.
— Não seja fraca na hora de empurrá-la. Use toda a força dos braços.
Mais uma vez concordei sem olhá-lo. Se antes a morte já deixava um
gosto amargo na boca, depois desses dias na enfermaria, pensar em matar
alguém era inconcebível.
Ele beijou minha testa e se foi. Obedientemente, enfiei a adaga no bolso
do vestido, sabendo que o pior ainda estava por vir.
Ao cair do sol do dia seguinte, a agitação das vozes dos soldados
muçulmanos indicou que a invasão de São Elmo aconteceria a qualquer
momento. Os cavaleiros mal podiam arriscar a olhar por cima do muro, sob
risco de perderem o olho ou a vida. O barulho ritmado de tiros mostrava
que os arcabuzeiros 2, a postos no muro, trabalhavam sem parar, em grupos.
Aaron e Cristopher estavam entre eles, um atirando, o outro recarregando,
repetindo incansavelmente o mesmo movimento por horas a fio.
Em meio ao cheiro de enxofre queimado, suor e sangue, sete horas
depois do início do ataque recebemos a notícia de que no fim daquele dia
quarenta cristãos haviam perecido. A contagem do outro lado ultrapassava
quinhentos. Os feridos eram tantos que mal se esperava um corpo esfriar
para ser removido da enfermaria: homens machucados não paravam de
chegar.
Naquela noite, quando Aaron finalmente apareceu, pensei que fosse
desmaiar em seus braços, mas quem precisou ser amparado foi meu marido.
Ele não conseguia se manter de pé.
Ajudei-o a sentar-se no canto da enfermaria, entre panos sujos de
sangue e urina. Com calma, auxiliei na remoção das placas pesadas do
peitoral da armadura. Ele mal conseguia falar. A roupa estava imunda e os
braços jaziam moles sobre as coxas mais magras.
— Onde está Cristopher? — perguntei angustiada, temendo que o pior
tivesse acontecido e eu não o tinha enviado a tempo para o futuro.
— Ainda no muro. Não vá até lá, entendeu? — Sua mão tentou me
segurar, mas caiu novamente sobre a perna. Aaron não estava bem.
— O que ele está fazendo lá? — Chacoalhei seus ombros, vendo-o
piscar, desorientado. Ele parecia em choque, em meio a um ataque de
claustrofobia depois de sete horas dentro daquela armadura quente. O
homem mal conseguia se manter acordado. — O que aquele idiota está
fazendo desta vez? — insisti, tentando fazê-lo ganhar um pouco de lucidez.
— Ele vai deixar o forte com um grupo.
— De novo?
Precisei fechar os olhos e respirar profundamente para não mentalizar o
pior: Cristopher em um último ato insano de bravura, confrontando a horda
inimiga ao lado de outros malucos para levar, consigo, o maior número de
soldados para a morte.
Foi mais forte do que eu.
Deixei Aaron semi-inconsciente e se recuperando no chão, peguei o
arco e a aljava guardados sob a maca onde eu dormia e marchei pelos
corredores rumo ao muro.
— Se não morrer antes, esganarei você quando retornar, seu filho da
mãe.
O céu estava da cor do piche. A lua fina, um rasgo de luz na imensidão
escura, não deixava ver nada do lado de fora da muralha. O acampamento
dos turcos mostrava luzes, mas entre eles e nós só havia escuridão. Metros
abaixo vi os reflexos prateados das armaduras se esgueirando por entre os
corpos estraçalhados nas valas. O cabelo loiro de Cristopher reluziu.
Pousei o arco no muro e olhei para os lados. Cerca de dez soldados,
agachados contra a mureta e alinhados como eu, vasculhavam os arredores
prontos para abater quem se aproximasse.
— O capitão permitiu isso? — sussurrei para o soldado ao lado.
O homem negou. Bufei, entendendo tudo. Cerca de vinte cavaleiros
deixaram o castelo para matar os escavadores otomanos que dormiam na
vala próxima e destruir a ponte que estavam construindo.
Olhei para o alaranjado das fogueiras à distância e todos os pelinhos do
meu corpo se levantaram.
— O que acha que os turcos estão planejando? — perguntei virada para
a campina, o cotovelo erguido e o fio com a flecha, esticado.
— Nada bom — o soldado ao lado respondeu, sucinto. — Está tudo
quieto demais.
Ouvi um ruído e meu arco se inclinou para direita, assim como a ponta
das armas dos soldados. Depois, de sobressalto, para a esquerda. Estava
escuro demais para achar Cristopher entre os outros. Meu coração socava as
costelas com tanta força que sentia as pulsações reverberarem na corda do
arco. Se Aaron soubesse que eu estava ali, enlouqueceria, mas como podia
deixar Cristopher descoberto?
Um som de machadadas ecoou no silêncio. Uma fogueira foi acesa aos
pés da ponte de madeira, mostrando Cristopher entre os outros. Lá estava
ele, destruindo a ponte quase completa que permitiria a travessia dos turcos.
Tudo que eu precisava fazer era cobrir seu caminho de volta.
Ia dar certo.
Tinha que dar.
Então, tudo aconteceu muito rápido.
Com um grito de guerra, sons de muitas vozes se elevaram. Os turcos
estavam de tocaia, no aguardo deles. Enquanto vinham correndo por todos
os lados, flechas começaram a voar sobre as cabeças dos que estavam em
solo. Dois cavaleiros foram derrubados e tiros começaram a explodir ao
lado. Perdida no meio do caos e fumaça da pólvora, olhei veloz para lá e
para cá. Eu só tinha seis flechas e não podia errar.
Cristopher, corra!, gritava internamente, incapaz de respirar e mirar em
quem vinha. Não conseguia enxergar nada! Meu coração martelava, as
mãos suavam, o arco girava para um lado e para o outro. Eu não distinguia
quem era quem na confusão acelerada. A ponte pegou fogo e só então
enxerguei Cristopher correndo agachado, segurando um companheiro
ferido. Com o canto do olho avistei o reflexo de uma espada curva próxima
demais, e meu dedo soltou o fio.
O otomano caiu para trás.
Cristopher continuou a correr, o amigo apoiado em um ombro e a
espada em punho na outra mão, enquanto eu e os outros soldados
continuávamos a livrar seu caminho de qualquer um que se aproximasse.
Uma bola de canhão estourou no muro e precisamos nos encolher. Assim
que ela fez seu estrago, voltei à beirada.
Meu arco ia e vinha, escaneando a noite, as flechas derrubando,
certeiras, os que chegavam perto. Cristopher entregou o amigo a um outro e
começou a lutar corpo a corpo com um homem de turbante. Não podia
atirar agora, eu poderia errar o alvo. Logo os dois foram engolidos pela
escuridão e só ouvimos a luta se desenvolver feroz no solo. Eu segurava
minha última flecha, tremendo agoniada por ouvir os gemidos e berros de
dor. Um solavanco indicou que o portão foi aberto e corri com os demais
até o outro lado do muro. Os sobreviventes entraram carregando feridos,
enquanto outros matavam todo inimigo que se aproximava.
Quase chorei de alívio quando vi Cristopher atravessar o pátio com
outros dois, os últimos, puxando um quarto, ferido.
Foi quando alguém assoviou atrás de mim e apontou à distância. O
alaranjado que havia visto há pouco não eram fogueiras: eram pavios.
Meu coração ainda bateu três vezes antes de entender o que ia
acontecer. Foi quando gritos explodiram por todo lado: Abaixem-se!
Protejam-se!
O estrondo chacoalhou o solo. A explosão foi tão forte que fiquei surda
por segundos, sentindo rocha pulverizada chover sobre nós. Fomos
acertados por uma bala de canhão e mais seguiriam àquela.
Senti meu corpo ser balançado por mãos, e quando abri os olhos, vi o
rosto de Aaron. Não conseguia escutar sua voz. Via a boca se mover, mas só
tinha um zumbido forte ao fundo. Os olhos dele eram uma mancha negra, as
pupilas dilatadas tomando toda a íris. Estouros vermelho-brasa faziam voar
coisas ao redor — partes humanas? — e ao olhar para baixo, vi sangue
escorrer da camisa do meu marido.
Ele me ajudou a levantar, ainda zonza, surda e mal conseguindo ver em
meio a poeira. Com o coração parado no peito, tateava o peitoral de Aaron
em busca de ferimentos. Eu morreria ali, se algo assim acontecesse. Um
alívio que nunca vou conseguir descrever me tomou: o sangue não vinha
dele. Aaron me puxou dali e minhas pernas obedeceram antes da cabeça
entender para onde íamos.
Homens gritavam enquanto uma tempestade de flechas atravessava o
céu escuro, caindo sobre quem ficou para trás. Aaron me empurrou para a
escadaria coberta e trombou contra mim, esmagando meu corpo contra o
chão. Quando me virei para olhar para os soldados que antes atiravam ao
meu lado nas ameias, ele não deixou. Continuou me empurrando degraus
abaixo, e quase fomos atropelados por uma horda de cavaleiros que subia
para atacar de cima.
Os sons voltavam aos poucos, se misturando ao retumbar do coração.
As pernas falhavam e o único suporte eram as mãos firmes ao redor da
minha cintura, me forçando a avançar. No térreo, soldados traziam feridos e
o chão estava escorregadio como se coberto de lodo. Ao olhar para baixo,
senti a bile subir e queimar a garganta. Era sangue. Agora os rosnados,
gritos, berros desesperados e choramingos chegavam aos meus ouvidos.
Havia tantos homens machucados que os monges não sabiam mais onde
colocá-los.
Ao ver a profusão deles, me assustei; nem sabia que ainda tínhamos
tantos cavaleiros vivos no Forte. Meu coração se partiu um pouco mais ao
ouvir as orações e os soluços desesperançados. Nomes sendo chamados em
vozes febris. Lamúrias que apertavam o coração de qualquer um. Sem
tempo para me despedir de Aaron, assim que um monge me viu, encheu
minha mão de pano e me mandou estancar o esguicho de uma artéria aberta
da perna de alguém. Entrei no automático, correndo até o homem cujo
sangue jorrava sobre minha saia. Pressionei todo o pano na perna do pobre
coitado, sabendo que nada o salvaria.
Aaron já tinha desaparecido atrás de Cristopher. Finalmente entendi que
não tinha direito a um tempo para recuperação; se estava de pé, precisava
ajudar no lugar de quem não podia mais. Reconheci o cavaleiro sobre o
qual pressionava os panos: era um dos capitães que estavam na reunião em
que contei que vinha do futuro.
Ele agarrou minha saia com dedos fracos e murmurou algo, o sangue
escorrendo do canto da boca.
— Crave uma adaga no meu peito, senhora. Acabe com a minha dor.
Sou um peso morto.
Segurei sua mão, sentindo as lágrimas descerem grossas, e ouvi a prece
morrer em seus lábios até desaparecer. Os olhos embaçaram aos poucos, até
que a última fagulha de vida sumiu.
Só então soltei seus dedos, soluçando convulsivamente.
Não sei como aguentei o fim daquele dia; não me lembro de muita
coisa. Ajudei como consegui, tremendo a princípio, mas me tornando mais
ágil à medida que a madrugada avançava. Meu coração estava tão acelerado
que achei que teria um ataque cardíaco. Quando o último dos enfermos
morreu e o local ficou completamente em silêncio, agarrei o colar,
pousando a mão na barriga.
Estaria mentindo se dissesse que a ideia de usá-lo não cruzou a mente.
Poderia simplesmente partir. Voltar a viver no presente, em meio a um
período de paz, onde havia muito menos dor.
No entanto, soltei a pedra devagar, lembrando quais felicidades eu
estaria arruinando se fizesse isso: as de todos.
Só precisava suportar mais alguns dias.
— Sabrina, deite-se — o jovem Luigi ordenou ao me substituir na
primeira hora da manhã. — Não há mais nada a ser feito.
Enquanto ele ajudava outros homens a carregarem os cadáveres para o
pátio, estiquei o corpo na maca que fazia de cama. Eu só conseguia sentir o
cheiro de sangue e morte. Nauseante, metálico e pungente, misturado à
podridão dos membros sépticos que passaram por ali. Durante o sono curto,
ouvi novos gritos vindos da enfermaria. Mais guerreiros chegavam. Ouvi
Anna falar com eles, assumindo meu lugar de ouvinte. Então me virei para
a parede e solucei ao som de ossos sendo partidos para que membros
pudessem ser serrados, até que desmaiei de cansaço e exaustão extrema,
rezando para que aquele inferno acabasse.
Horas depois, cambaleei até a enfermaria, zonza pela náusea e mãos
sobre a cabeça, para ver quem eram os moribundos. Meu coração estava tão
despedaçado que não sei como sobreviveria se encontrasse Aaron entre
eles. Reconheci muitos dos rostos ali, notando que apenas dois ainda
viviam. Era simplesmente dolorido demais saber que ninguém escaparia
desse inferno.
A porta abriu e Cristopher invadiu o salão com a armadura coberta de
sangue e o rosto cadavérico. Seus olhos correram pelos feridos como se
chacoalhassem cada um deles, mas ao me ver, congelou.
— Ele não está aqui — murmurei.
Vi os ombros dele caírem e a cabeça tombar para trás em um gesto de
puro alívio. Então, sem se despedir, deixou a enfermaria marchando com o
mesmo vigor com que entrou.
Por um longo tempo ainda olhei para a porta, as pernas cansadas de me
sustentar, os braços fracos ao lado do corpo, a roupa manchada de sangue
escuro e seco, sentindo a vida no peito murchar.
O dia estava se aproximando.
Quando um dos monges passou por mim, perguntei com voz fraca:
— Que dia é hoje, senhor?
— Dia vinte, Sra. De Landa.
Tive que me corrigir: o dia não se aproximava.
Ele havia chegado.

Naquela noite, deixei a enfermaria com o peito comprimido. Aaron


aparecera mais cedo para me tranquilizar e voltara para a vigília em uma
das torres, seguro das flechas, mas não dos canhões. Desci as escadarias
vazias, ouvindo do lado de fora os ecos dos estrondos. Nossa munição
estava no fim, havia mais cadáveres no pátio do que vivos no forte e os
lamentos dos feridos não saíam mais dos ouvidos.
Todo meu corpo tremia sem parar há horas. Eu estava no fim das forças
e tinha que fazer o que era preciso antes que não conseguisse mais. Alisei a
pedra, sentindo-a morna. Ela também me dizia que estava chegando a hora.
Cruzei a acomodação dos sobreviventes e parei na frente da porta em
que achava ser o dormitório de Cristopher. Precisaria ser rápida e quieta. A
melhor maneira de fazer com que ele não lutasse comigo seria enfiar a
pedra dentro da sua armadura enquanto dormisse. Precisaria ser ao nascer
do sol, como foi comigo. Ou assim eu achava.
A tranquilidade calma que vinha da pedra me dava certeza. Era como se
ela me avisasse que devia confiar na mágica do tempo. Que seu propósito
misterioso seria sempre insolúvel, mas eficaz: ela levaria Cristopher aonde
tinha que levar. Da mesma forma que ele confiou que a pedra me entregaria
a Aaron, eu sabia que o tempo o entregaria a Isla.
Voltei a chorar ao me lembrar da minha irmã.
Talvez só ela e Cristopher um dia entenderiam minhas razões. O motivo
de ter deixado a vida moderna, onde o céu parecia ser o limite, e as asas,
feitas para voos mais altos. Muitos se perguntariam como pude abrir mão
daquele céu tão vasto para planar em um tão limitado, onde mulheres eram
vigiadas, tolhidas e podadas. Onde guerras e muralhas, piratas e ataques
inimigos faziam parte da história.
Não sei se alguém mais entenderia o que me fez decidir ficar. Até hoje
não sabia como consegui avisá-los que esse era o meu desejo final. Sei
apenas que entre céus largos e estreitos, voar era o que importava, no fim.
No meu tempo, quando tentei decolar, tive minhas asas cortadas. Neste,
conheci um homem que as devolveu para mim.
Respirei fundo e prendi o fôlego ao entrar no cômodo escuro,
procurando o corpo cansado de Cristopher estirado em algum lugar —
todos dormíamos no chão, vestidos e em turnos, prontos para correr caso
fôssemos atacados. Entrei pisando devagar para não fazer barulho, olhando
ao redor. Onde ele estava?
Porém, ao invés de encontrar Cristopher, uma voz maliciosa soou de
trás da porta:
— Finalmente, Sabrina.
Ouvi a madeira bater atrás de mim, e a escuridão me engoliu.

1 Na arquitetura militar, construção externa de duas faces, que formam ângulo saliente, para defesa
das fortificações.
2 atiradores dessa arma chamada arcabuz, um tipo de espingarda antiga.
33
A DESCOBERTA
ISLA

2035

— Você é doida, sabia? — Cristopher apontou a lanterna para a minha cara.


— Ai! — Movi sua mão para o outro lado, cega pela luz.
— Não podemos sair por aí invadindo igrejas! Tem polícia vigiando a
gente até hoje e você sabe. — Assim que meus olhos se acostumaram à luz,
vi o rosto sisudo do meu marido.
— De novo essa discussão? Pois acho que podemos, sim.
Principalmente quando a minha irmã está enterrada nesse subterrâneo,
desaparecendo aos poucos. Tenho o direito de saber o que está acontecendo.
— Pode ter sido só uma infiltração, como eles disseram. Nada
excepcional. É um túmulo muito antigo.
— Ah, tá bom. — Olhei para os lados e chamei-o para me seguir.
Atravessamos o pátio gramado que circulava a catedral curvados como
dois gatunos, só parando diante da imensa porta trancada. A noite era alta e
as estrelas apareciam salpicadas no céu escuro em meio a nuvens leves e
transitórias, que ajudavam a nos esconder com suas sombras.
Apontei para a porta.
— Você é o bárbaro aqui. Arrebente-a sem fazer muito barulho, por
favor.
Cristopher alisou o peito, olhando para a fechadura.
— Sabe que parte meu coração quando me chama assim. — Um risinho
ergueu um dos cantos da sua boca. — Sou tão civilizado quanto qualquer
almofadinha desse tempo.
— Você não reclama quando te chamo de bárbaro em certos momentos.
— Faz tempo que não me chama assim, a propósito. — Ele me lançou
um olhar cheio de malícia e cobrança.
— Prometo te chamar assim no instante em que liberar essa entrada.
Ele ajeitou a camisa com as mangas enroladas na altura do cotovelo,
mais disposto agora do que há alguns minutos. Abaixando-se para estudar o
ferrolho, comentou:
— Sou um nobre maltês, a propósito. Não um arrombador de portas.
— Se não abrir, chutarei eu mesma essa madeira até colocá-la abaixo —
avisei. O tom era de brincadeira, mas eu estava falando sério.
— Quem é a bárbara aqui? — Meu marido se ajoelhou na frente da
fechadura e tirou uma chave mestra do bolso. Quando mexeu e mexeu e não
funcionou, tirou um alicate do bolso traseiro e partiu o cadeado, acabando
com aquela tortura.
— Por que não abriu logo com isso? — Entrei atrás dele pela fresta.
Curvados e em silêncio, fomos engolidos pela escuridão da igreja.
O cheiro de madeira e tinta denunciava as obras de reparação.
Fechamos a porta tentando não fazer ruídos, conferindo se estávamos
mesmo a sós ou se havia algum vigia adormecido em algum banco. Igrejas
em reformas não eram lá os estabelecimentos mais visados de Malta, então
prosseguimos pelo corredor escuro da nave esbarrando em cavaletes e
bancos de madeira fora de lugar.
— Ai — resmunguei quando minha coxa encontrou uma quina.
Cristopher reclamou que eu era atrapalhada, mas segurou na minha mão e
passou a nos guiar, se machucando na dianteira para poupar as minhas
pernas. Treze anos e meio depois, e eu ainda amava aquele bárbaro com
alma de cavalheiro com todas as minhas forças.
— Acho que a porta que dá no subsolo está destrancada.
Tirei duas máscaras de pano das crianças do bolso quando o cheiro de
tinta ficou insuportável e estendi uma para ele. A dele, do gato listrado de
Alice no País das Maravilhas, mostrava um sorriso rasgado e aberto. A
minha, de um desenho animado sobre bebês sendo chefões, tinha o desenho
de uma chupeta. Sei que estávamos ridículos, mas aquelas eram as duas
últimas máscaras que consegui achar em casa depois que a pandemia
acabou e as descartáveis se esgotaram.
— Você está engraçado. — Ri quando ele olhou para mim e vi, mesmo
na escuridão, aquele sorriso esticado contrastar com o gênio esquentado.
— Você, ao contrário, está muito charmosa com essa chupeta.
Afastamos alguns cavaletes e plásticos da frente da parede, achando a
entrada para o andar de baixo.
Apesar das brincadeiras, sentia o peito apertado por uma sensação
estranha. Algo me dizia que as coisas estavam dando errado para Sabrina.
Eu tentava me convencer de que a nossa parte tínhamos feito: mantido
completo segredo sobre o assunto e a enviado para o passado na hora certa,
antes que fosse levada de nós. Sei que minha irmã encontrou o amor e uma
nova chance ao lado de Aaron, mas o que explicava, então, aquela angústia
que mal me deixava respirar?
As circunstâncias da época na qual foi parar eram imensamente mais
difíceis. Se Cristopher tivesse razão, Aaron tentaria protegê-la a todo custo,
eu sabia disso, mas havia uma guerra em seu caminho. Como sobreviver
àquilo?
E se algo — uma mínima coisa — não tivesse saído como planejado? E
se Sabrina não conseguisse enviar Cristopher para o futuro, ou fosse
enviada de volta para o presente? Eu nunca soube, ou encontrei alguém que
me explicasse, se eventos passados podiam ser mudados. O óbvio seria
acreditar que, se Cristopher estava ali, tudo dera certo… No entanto, e se
não fosse exatamente assim que as coisas aconteciam? E se o fato de saber
sobre os eventos do passado alterasse o futuro?
E se algo desse errado, e Sabrina não conseguisse me enviar Cristopher?
Toda a vida como conheço desapareceria.
Ela nunca partiria.
Eu nunca conheceria o meu marido.
Ele morreria em São Elmo naquele 23 de junho de 1565.
Sabrina não estaria mais enterrada ao lado de Aaron.
E, por fim, nenhum de nós se encontraria.
Só de pensar nisso, enquanto descia as escadas estreitas e geladas,
sentindo o cheiro da tinta fresca penetrar no nariz, meu coração despencava
no peito.
Assim que pisamos no subsolo, Cristopher ergueu a lanterna,
procurando o caminho entre as lápides. Havia uma série de contenções até a
deles — fitas isolantes, plásticos, material de medição.
Apontei o facho da lanterna para o invólucro, ouvindo o coração bater
nos ouvidos. Aquilo não podia ser um bom sinal. Havíamos vindo diversas
vezes ali no decorrer dos anos para saber se estava tudo bem. Sempre
esteve. A face de Sabrina, bonita e imutável em pedra, os dizeres
desenhados nos contando a história corajosa, o descanso final do casal que
viveu feliz por muitos anos.
Cristopher se ajoelhou ao lado da tumba e eu senti, como sempre
acontecia, vontade de chorar. Não conseguia nem pensar em perdê-lo. Eu o
amava tanto que chegava a doer. Abaixei ao lado dele, mas ao invés de
destampar o plástico, eu o abracei. Apoiei a testa no seu braço e entrelacei
os nossos dedos.
— E se…
— Shhh, Isla — Cristopher murmurou calmo, acariciando meu cabelo.
— Não vamos sofrer antes do tempo, está bem? — Sua voz estava
embargada como a minha.
Sofrer antes do tempo? De que tempo ele falava? O de Sabrina, que não
sabia como corria, se mais rápido ou mais devagar, ou do nosso, acelerado?
A guerra já havia começado em sua época? Ou minha irmã ainda estaria
acordando em algum lugar, confusa sobre onde estava, se perguntando por
que fizemos aquilo com ela? Essas eram respostas impossíveis de
conseguir. Aliás, qualquer resposta era. A vida de Sabrina já tinha
acontecido. Ela tinha sido muito feliz com Aaron, já estava enterrada ali.
Não existia sofrer antes ou depois quando se viajava no tempo: se sofria
pelo tempo. Para sempre ele seria meu amigo e meu inimigo, me dando e
tomando pessoas.
— Só queria dizer uma coisa antes que puxe esse plástico. — Olhei para
o rosto do meu companheiro e pai dos meus filhos. — Eu te amo. Nunca
vou deixar de te amar. Você chegou na hora certa para mim, como um
presente, e eu sempre tentei dar àquele momento a importância que teve. Se
pudesse escolher um instante para repetir eternamente, eu voltaria àquele
dia no campo de golfe, Cristopher. Ao momento em que te recebi.
A expressão do rosto dele, iluminada pelo facho da lanterna no chão,
pesou. Ele assentiu, os olhos agora úmidos.
— Muitos sacrifícios foram feitos para que eu despencasse aos seus pés,
naquela tarde. Assim como você, espero muito que tenha valido a pena para
Aaron e Sabrina como valeu para mim. — Os dedos de Cristopher
encontraram os meus. — E eu também te amo, minha ilha. Você sabe disso.
Eu sabia.
Então, nós nos viramos para o jazigo e Cristopher puxou o plástico, e
tudo o que temíamos se revelou.
Os nomes de Aaron e Sabrina estavam desaparecendo. Os dizeres no
mármore já eram indiscerníveis, e as faces estavam derretidas como se
fossem de cera e repousassem no sol quente do verão.
34
O ATAQUE
SABRINA

A sombra alta de um homem deixou o esconderijo escuro atrás da porta.


A princípio não consegui saber quem era, e imaginei ser um inimigo.
Assim que ergui a mão à procura da adaga, ele acendeu uma vela
curta e o reconheci.
— Ruedas?
— Eu sabia que você viria. — O amigo de Cristopher ergueu um canto
da boca, satisfeito por estar certo. — Algo me dizia que seria exatamente
nesta noite.
Olhei ao redor, confusa. Aquele era o dormitório de Cristopher, não era?
Vi meu cunhado entrar ali diversas vezes, tão exausto que tombava no chão
e apenas fechava os olhos, para logo despertar, assustado pelo barulho dos
canhões.
Porém, ele não estava ali; seu amigo, sim.
— Estou procurando por Cristopher — disse, olhando para a porta,
buscando um jeito de passar pelo cavaleiro. Não sei por que deveria temê-lo
quando tantas outras coisas mais perigosas existiam ao redor, mas tudo em
meu corpo gritava em alertava que deveria evitá-lo e fugir.
Os olhos do homem desceram por mim, avaliativos.
— Tantas coisas fizeram sentido nos últimos dias. — Sua voz era de
desgosto, como se a conclusão a que chegasse o desagradasse. — As
reuniões secretas. O contato direto com Valette e com os capitães. A
proteção excessiva de Aaron. Sei que você é uma feiticeira.
Bufei, perplexa. Não tinha tempo para discutir aquelas superstições
tolas.
— Deixe de bobagens e saia da minha frente. Preciso achar meu
cunhado.
— Cristopher está na torre. Eu me certifiquei de que ele estivesse longe
nesse momento.
— Que momento?
Seu olhar era hostil, duro como um punhal.
— Na verdade, algo ainda me intriga. Por que Aaron aceitaria se casar
com uma bruxa, quando deveria tê-la enviado para a fogueira?
Segurei a respiração. Algo me dizia que aquilo poderia não acabar bem
para mim.
— Para ter acesso a conhecimento? — Ruedas continuou, erguendo os
dedos conforme enumerava as possibilidades. — Para ser o único a partir
com você quando esse inferno ruísse sobre as nossas cabeças?
Um novo estrondo fez o chão tremer. São Elmo estava mesmo caindo
sobre nós — porém não ainda, e nem naquele dia.
— Aaron não vai a lugar algum, muito menos eu — respondi, seca,
investigando o trajeto até a porta, a única saída do cômodo. Não estava
gostando das coisas que o homem estava falando.
Ele sabia. Como, não tinha a menor ideia.
— Quando ouvi a conversa de vocês nas escadarias, não entendi de
imediato sobre o que conversavam. Então testemunhei dois capitães
conversando sobre uma pedra… e de súbito compreendi.
Meu coração, acelerado, ameaçou parar. O que ele tinha ouvido?
Ruedas continuou:
— No decorrer desse mês, ficou tão óbvio o seu cuidado com
Cristopher. Você e Aaron o vigiavam. Seu marido o protegia onde quer que
estivesse, e acredite, o idiota esteve em todos os lugares nos últimos dias.
Vocês o querem longe daqui… a salvo, por motivos que não entendo.
O homem pousou o toco da vela sobre uma mesa rústica, e sua sombra
se esticou contra a parede de pedra, imensa e assustadora.
— Vocês pretendem tirá-lo do forte antes do fim, não é?
Dei um passo para trás ao vê-lo avançar alguns centímetros na minha
direção. Eu precisava sair daquele quarto, mas como? Com todos aqueles
estrondos, ninguém me ouviria gritar. Nunca poderia vencê-lo em um
confronto.
Por que não avisei que estava descendo? Por que não pedi para Aaron
me acompanhar?
A postura de Ruedas, com os braços soltos ao lado do corpo e os dedos
se mexendo de leve mostravam que ele estava pronto para atacar. O
desgraçado só estava escolhendo como e quando faria isso.
— Claro que Cristopher jamais deixaria esse lugar sem Aaron. Na
verdade, o imbecil está pronto para morrer aqui. Então, supus que o
salvamento seria feito contra a sua vontade.
Os olhos dele desceram até o meu pescoço, afiados à procura de algo.
Em um gesto reflexo, tapei a pedra que repousava entre meus seios, como
se assim pudesse impedi-lo de querê-la. Como aquele covarde sabia sobre
ela?
Assim como o homem de Constantinopla, ele queria roubar a joia.
Ruedas estendeu a mão.
— Passe-me a pedra, Sabrina. Nunca tive a intenção de ser um herói
morto. Seja lá para onde esse feitiço me enviará, eu aceito, desde que seja
para longe desse tormento. Não vou morrer aqui e perder todas as riquezas
e glórias que minha família conquistou. Além disso, com Malta perdida
para os otomanos, poderei largar essa Ordem dos infernos — praguejou. —
Não sei onde estava com a cabeça ao me alistar para servir nesse calvário.
Eu deveria estar em segurança na Sicília.
— Céus, como conseguiu enganar a todos? — murmurei, perplexa. —
Onde está a sua honra?
— Honra? — Ele riu. — Se foi, juntamente com a minha paciência. Há
dois dias troquei de quarto com Cristopher, esperando por esse momento.
Estou cansado de esperar.
— E desde então tem me aguardado aqui, sozinho? — Minha voz saiu
tremida, porém incrédula. — Tanta dor e morte acontecendo, seus amigos
tombando para defender o Forte e você escondido? — Deixei escapar um
som de desprezo. — Como pode ser tão mesquinho e pequeno?
Dei um passo em direção à porta, mas entendi, finalmente, que Ruedas
não me deixaria passar.
Ele avançou, e eu corri até dar de frente com a parede contrária. Desviei
de outra tentativa de ser pega, mas o quarto era pequeno e fui imobilizada
pelo braço, com força.
Tentei gritar, mas a frustração, vinda do fundo da garganta, foi abafada
por palmas ásperas e imundas. O cheiro das mãos fez meu estômago
queimar, como não acontecia há meses, desde que cheguei aqui.
— Passe essa porcaria para cá — ele rosnou ao lutar comigo, me
envolvendo com seu hálito de merda fedida. Tentei chutá-lo, mas Ruedas
puxou o cordão e o fio de prata se rompeu.
— Não! — gritei, dando braçadas ao redor para tentar recuperar a
pedra.
O medo explodiu dentro de mim. Eu precisava daquela joia! Precisava
recuperá-la, porque sem isso não haveria viagem alguma, nem para o
futuro, nem para o passado. Nem eu, nem Isla conheceríamos Aaron ou
Cristopher. — Devolva! Ruedas, por favor, me devolva a pedra! É a última
coisa que tenho da minha irmã! — E isso não era uma mentira.
Sem dar ouvidos, o cavaleiro me manteve presa pela gola, e com a
outra, levantou a pedra roxa em formato de meia-lua para apreciá-la. Em
seguida, seus olhos viraram para mim, e um sorriso lento e medonho mudou
suas feições.
Parei de lutar quando percebi que não era só a pedra que lhe interessava.
O olhar cruel e cheio de desprezo indicava que não deixaria
testemunhas do que fez.
Fui assaltada por uma confusão de pensamentos. Tanta dor e morte nos
esperando do lado de fora, e eu estava trancada em um cômodo com um
inimigo. A mente se recusava a registrar o significado das intenções dele,
um cavaleiro da Ordem, irmão de armas do meu marido.
Ruedas percebeu meu medo.
— Não sei como esse feitiço vai acontecer, mas preciso contar com a
possibilidade de você não ser mesmo uma feiticeira, e essa pedra mixuruca
não ser nada demais. — Ele exalou, sério, como se detestasse pensar nessa
opção. — Desculpe, meretriz, mas não posso deixá-la viver para me delatar.
Ruedas me empurrou até que minhas costas colassem à parede fria. As
mãos grandes e fétidas se fecharam ao redor do meu pescoço, trazendo uma
explosão de lembranças.
Zach e seus ciúmes doentios. As vezes em que fui agredida e não disse
nada. As marcas em locais não visíveis, as palavras que me rebaixavam e
humilhavam. As tentativas de fuga e a vergonha de ter que voltar por não
ser forte o suficiente para proteger quem eu amava, e todo o resto que
culminou na discussão final que levou aos acontecimentos daquela noite.
As luzes dos carros de polícia.
Cristopher e Isla falando comigo durante o trajeto até as pedras.
O medo que só escalava e crescia à medida que entendia o que fiz.
A diferença é que eu não era mais o coelho assustado do futuro, nem
uma dama desprotegida.
Enquanto os dedos apertavam com força a minha garganta e o ar faltava
nos pulmões, encarei Enrico Ruedas como não consegui fazer com o meu
ex-marido. Eles não se pareciam, mas tudo o que eu via ali era Zach.
Dessa vez, fiz com intenção.
Ao perceber o que aconteceu, o olhar de Ruedas passou do puro ódio
para a completa surpresa. O meu, de assustado para atento.
Clinc.
A pedra quicou no chão, ao mesmo tempo em que suas mãos se
afrouxaram em torno do meu pescoço e desceram em direção à barriga.
Ruedas deu alguns passos para trás. Ao erguer de novo o rosto para
mim, um fio de sangue escorreu do canto da boca entreaberta.
Só então me aproximei e puxei a adaga de dentro dele. Meu corpo
tremia como se convulsionasse, sentindo o ar novamente abundante. Minha
garganta doía em muitos lugares.
Dessa vez, tinha usado a força e a torção necessárias.
O corpo de Ruedas perdeu a firmeza e tombou de joelhos diante de
mim. Seus olhos desceram até a adaga que brilhava entre os meus dedos,
lustrosa pelo sangue fresco.
— O que…
Ele não chegou a terminar a frase. O corpo tombou de frente, fazendo
barulho ao encontrar o chão.
Da porta agora aberta, Luigi me encarava com olhos esbugalhados. Um
pensamento tão breve quanto um lampejo me fez constatar que nunca estive
sozinha na enfermaria, ou em lugar algum. Aaron não deixaria.
Assim que desencostei da parede, a adaga escorregou da minha mão e
caiu aos meus pés.
Aaron entrou logo atrás do jovem monge. Sua atenção foi da minha mão
ensanguentada para o corpo de Ruedas. Então, para a pedra largada adiante.
Senti as forças se esvaírem das pernas, começando nos tornozelos e
subindo até fazer os joelhos bambearem. Eu precisava me escorar em
alguma coisa.
— Aaron — chamei-o quase sem voz, esticando a mão coberta de
sangue na sua direção. Meu marido atravessou o cômodo em poucos passos,
o olhar cravado nas marcas ao redor do meu pescoço e os braços prontos
para me amparar.
Abracei-o com força, enquanto ele me acalmava com sua solidez.
— Estou aqui. Estou aqui — ele repetia sem parar.
— Ruedas queria a pedra — murmurei contra o peito firme. — Ele
pretendia fugir com ela.
— Não temos tempo para explicações. — Sua mão firme envolveu
minha nuca e seus lábios pressionaram de leve a minha testa. Então,
virando-se para Luigi, ordenou:
— Pegue as pernas dele, que eu pego as mãos. Jogaremos o corpo na
rebentação para que o mar o leve.
— O que diremos se amanhã alguém perguntar o que aconteceu? — O
garoto, que acabara de se unir à Ordem, questionou baixo, já pegando nas
pernas do morto.
— Diremos que ele partiu para São Ângelo.
Àquela altura, ninguém sentiria a sua falta.
— Onde está Cristopher? — Caminhei até o colar, enfiando-o dentro da
gola. Mais tarde tentaria acertar o fecho.
— Ele acabou de se juntar de novo ao grupo no muro. — O olhar de
Aaron era desolador. — Os otomanos estão escalando as muralhas.
Eu e Luigi nos entreolhamos, entendendo que aquele era o fim. Tudo
que nos separava do inimigo era o muro, mas ele não aguentaria muito.
— Ele vai morrer? — Aaron largou as mãos flácidas de Ruedas para me
encarar.
— Não sei, Aaron.
Não sabia em que momento Cristopher partiria, a partir de agora. Temia,
mais do que a morte, ter deixado o momento passar, e me perguntava a todo
instante se não devia fazer isso agora, enquanto tínhamos tempo.
O problema era que Cristopher precisava ser enviado na hora certa —
nem antes de nos ajudar a escapar, nem depois.
Aaron virou-se para Luigi.
— Se quiser sobreviver ao que está por vir, fique conosco. Confie em
Sabrina, em tudo o que ela disser, principalmente.
O monge assentiu, afoito.
— Quando não confiei? — murmurou baixinho.
O corpo de Ruedas foi jogado pela janela enquanto eu corria até a saída
para ver, entre uma chuva de betume e fogo, a luta ensandecida nas
muralhas.
A batalha durou seis horas, e o saldo das mortes foi desolador. Quando
os turcos finalmente recuaram, éramos não mais do que poucas dezenas na
fortaleza, a maioria muito ferida.
Sem munição, sem escape e sem esperanças.
Quando Cristopher nos encontrou no salão principal, entre outros
sobreviventes, não chegou a saudar ninguém. Apenas se virou para Aaron e
avisou:
— Acabou, meu irmão. Não sairemos daqui vivos. Pegue a espada e dê
uma para cada pessoa que conseguir ficar de pé. Tentaremos abater o
máximo deles, por Malta e pelo povo daqui. Cairemos lutando até o fim.
Antes de deixar o salão para se juntar aos últimos cavaleiros, Cristopher
olhou para mim. Descendo os olhos até meu ventre, murmurou um sinto
muito e partiu em direção às torres, onde era necessário.
35
QUEDA E ASCENSÃO

A experiência fica melhor com música <3


SABRINA

23 DE JUNHO DE 1565
DIA DA QUEDA

Naquela última noite, sonhei com uma criança. Ela tinha pele cor de
amêndoas e olhos de primavera. Sorria para mim com o olhar e a boca,
enquanto seus dedinhos gorduchos passeavam pela minha face. No sonho,
beijei a pontinha de cada um deles, cada unha translúcida e delicada,
maravilhada pelo milagre da vida.
Fui acordada do breve cochilo pela explosão final.
A beleza se dissipou entre a chuva de pó que caiu do teto e fui inundada
pelo conhecido medo de ser soterrada sob toneladas de pedras.
Chegara o dia, e os gritos de dor do nosso lado e os urros de vitória, do
outro, indicavam isso. Tudo que aconteceria hoje, de bom e de ruim, seria
resultado das minhas ações.
— Fique comigo. — Segurei com força o pulso de Anna, ordenando
que deixasse os feridos para trás. Não havia mais o que fazer por eles, a não
ser administrar a dor. Entreguei para cada um que ainda estava lúcido uma
espada e uma garrafa de bebida, agradecendo por tudo que fizeram.
Mais um estrondo, e eles nos mandaram correr.
No caminho, entre o caos de gritos e barulhos das bolas de ferro
estourando contra os muros, Anna encontrou Belchior, que se juntou a nós.
Atravessamos encolhidos os corredores agora vazios, sem saber de onde
viria o próximo estouro. Meus olhos escaneavam cada canto do forte atrás
de sobreviventes, mas todos estavam na linha de defesa. Os otomanos
tinham finalmente aberto um rombo no muro e uma horda deles invadia a
fortaleza com as espadas erguidas e os gritos de guerra.
— Sabrina! — ouvi Aaron berrar do pátio.
Ao olhar para baixo, precisei tapar a boca para não deixar escapar um
soluço. Bravura e valentia em níveis incompreensíveis, de uma forma que
nunca vi e nem veria depois, tomava o espírito de cada homem daquele
lugar.
Os feridos que ainda conseguiam se mover, mas não fugir, haviam
pedido cadeiras e se sentado diante do portão principal, espadas erguidas, à
espera de quem vinha. Quem podia correr, foi ordenado a sair; quem não
conseguia se uniu a eles. Entre os muitos feridos estava um dos oficiais que
sabia o que aconteceria desde o começo. Como comandantes que
naufragavam com seus navios, aqueles homens vinham abaixo com a
fortaleza.
O olhar que troquei com Aaron indicou que precisávamos encontrar
Cristopher. Agora.
Não foi difícil localizá-lo. Meu cunhado passou correndo, chamando os
sobreviventes para a capela, onde planejavam explodir o lugar com todos os
inimigos que conseguissem juntar.
Não, aquilo estava errado!
“Lembre-se, Sabrina: todos que estiverem na capela serão capturados e
mais tarde, decapitados. Você sabe para onde correr.”
— Aaron! — berrei ao entender para onde estavam indo. — A torre! —
Apontei para o alto. — Precisamos chegar na torre! Não na capela!
A torre que dava para o mar. Era para lá que devíamos ir.
Cristopher negou e resistiu, mas o irmão o pegou pela gola e o
chacoalhou até que finalmente obedeceu. No caminho, encontrei Luigi, já
sem a túnica de monge, portando desajeitadamente uma espada. Assim que
me viu, se uniu ao grupo.
— Eles nos acuarão na torre! — Cristopher subia as escadas discutindo
com o irmão, mas agora era tarde para retornar. Vozes estrangeiras
indicavam que um grupo inimigo subia atrás de nós.
No pátio, gritos de vitória misturavam-se aos últimos gemidos de dor, e
nossa bandeira foi arrancada do muro.
São Elmo havia tombado.
Subi as escadas arfando, segurando nas paredes, lembrando de cada
cena assistida e lição aprendida em todos esses anos. Anna tentava me
ajudar, me forçando a ser mais rápida, mas ela mesma não tinha mais
forças. Aaron vinha atrás com o irmão, espadas em punho para dar cabo de
quem se aproximasse.
— Eles estão subindo — os dois confirmaram.
A pequena torre se encheu com o grupo — Anna, Belchior, Luigi,
Aaron e eu. Olhei ao redor, procurando a abertura que meu cunhado me
mostrou em um dos nossos passeios por São Elmo, quando eu ainda era
adolescente. Uma janela improvisada, colocada no lugar para proteger os
defensores de flechas, impedia o salto. Apontei para o local e Aaron nos
ultrapassou, arrebentando a madeira com os punhos.
Cristopher chegou no final, os olhos injetados de adrenalina, o peito
subindo e descendo.
— Chegou a hora, meu irmão — gritou, empunhando a espada.
Ele achava que era hora de morrer.
Só então Cristopher percebeu que Aaron havia escancarado a janela.
— O que estão pretendendo?
— Não vamos morrer. Vamos saltar — Aaron avisou a todos.
— Ficou louco? — A espada pesada hesitou na mão do meu cunhado.
— Se não morrerem com a queda, morrerão com as flechadas nas costas!
— Talvez não.
Por um único segundo, os estouros dos canhões e os gritos de vitória do
lado de fora desapareceram. Esqueci o cheiro do sangue, a dor, o cansaço e
a desesperança, o último mês passado no inferno, e me concentrei no fato
inquestionável de que agora era comigo. Olhei para Cristopher e lembrei da
vida feliz que o aguardava ao lado da minha irmã, e do sonho recorrente
que eu tinha, hoje, a chance de mudar.
Quase estraguei tudo com a minha emoção.
Um soldado surgiu da porta empunhando uma cimitarra, e todos
gritamos. Cristopher reagiu rápido: sua lâmina colidiu com a da arma curva,
seguido por um empurrão. O turco se chocou contra a parede mas logo se
recuperou, erguendo a arma e propulsionando o corpo adiante.
A espada de Cristopher atravessou seu corpo com destreza. Ao puxá-la
de volta, vermelha e molhada, virou o rosto para nós.
— Se vão pular, tem que ser agora!
Eu podia ver o peito de Aaron subir e descer, como se um milhão de
palavras engasgadas tentassem subir pela sua garganta. Seus olhos
transbordaram e achei por um momento que ele não conseguiria fazer o que
precisava.
— O que estão esperando, Aaron? Vocês precisam ir! AGORA!
— Não sem você!
Segurei o pulso de Aaron, tão dolorida por dentro quanto ele, impedindo
que andasse até o irmão. Aquele era o momento de dizer adeus.
— Alguém precisa ficar. — A voz de Cristopher estava trêmula. Ele
fingiu limpar o sangue das vistas, mas vi que era uma lágrima. — Tire a
armadura ou afundará como um martelo.
Sorri para um Aaron angustiado e repeti:
— Chegou a hora, meu amor.
Ele se livrou da placa de ferro do peito, fazendo o mesmo com as das
pernas.
Sons da língua estrangeira cresceram em volume e todos olhamos para a
porta.
— Vão! — Cristopher berrou.
Belchior e Anna deram as mãos e saltaram, seguidos por Luigi.
— O que está esperando, maldito? — Cristopher gritou por trás do
ombro, empunhando a espada.
Agora era questão de segundos.
— Cristopher?
Meu chamado o fez olhar para trás.
Tirei o colar da roupa e andei até ele, sentindo o peito desabar em queda
livre. Eu não sabia bem como a magia funcionaria; como decidia aonde nos
levar. Minhas suspeitas? Eu nunca saberia. Esperava apenas que a junção do
meu desejo, do instante certo e a pedra, quente em contato com a minha
mão, o levassem até Isla.
Isso é o que eu desejo. O que você ainda não sabe, mas anseia também.
Com um só gesto, enfiei o pingente no espaço entre o seu pescoço e a
armadura e ouvi, aliviada, a pedra se alojar no seu peito.
— O que fez, mulher?
— Achei que viajaria dois dias atrás, mas o momento é agora —
murmurei, sentindo as lágrimas descerem. Para seu espanto, pousei a mão
na lateral do seu rosto e sorri. — Assim como guardei segredo sobre nós,
precisará fazer o mesmo por mim, Cristopher. Nada do que passamos aqui
pode ser revelado cedo demais. Nada do que sabe sobre mim deve alterar
meu futuro. Esqueça até mesmo meu nome, ou Isla não me deixará partir, e
nossos destinos nunca vão se cruzar.
Dando um passo para trás, entrelacei os dedos aos do meu marido e
caminhamos de costas até a janela. Aaron levou pela última vez a mão ao
peito em um gesto de despedida.
Em choque, Cristopher fez o mesmo.
— O nome dela é Isla. É ela quem deve procurar ao chegar — lembrei-
o, vendo brotar do chão um redemoinho luminoso da cor da pedra violeta.
Em uma fração de segundo, uma luz intensa tomou a torre. A pequena
área foi iluminada por um brilho forte, e se Aaron não tivesse me puxado,
teria ficado ali, perdida na beleza que era a partida.
Do outro lado da espiral, turbantes coloridos invadiam o lugar e eles não
seriam parados pela visão.
— Venha, amor. Hora de pular.
E foi isso que nós fizemos: saltamos no vazio.
Não lembro quanto tempo caí, mas pareceram ser anos. Os pés
encontraram primeiro a água gelada e tudo que me lembro a seguir foi de
ter sido dragada para o fundo de uma escuridão abissal.
O frio me envolveu com o seu abraço e bolhas subiram ao redor.
A mão de Aaron se soltou da minha e me vi sozinha, achando que como
todos os finais dolorosos, o meu seria gelado e solitário.
Então abri os olhos e, para a minha surpresa, fui inundada de azul. Um
tom claro e luminoso, silencioso, rico, abundante e infinito.
O coração que antes explodia em batidas frenéticas amansou. A
respiração ficou em suspenso, a pele em choque, e os pés pararam de se
agitar.
Olhei para cima com o ar preso nos pulmões, vendo espadas de luz
descerem sobre nós — raios luminosos de sol que varavam a água de forma
tranquila. Se a paz pudesse ser pintada, teria aquela visão.
Foi inevitável lembrar dos verões passados na ilha, quando ainda era
jovem e sem preocupações, e dos mergulhos nas águas transparentes com o
meu grupo de amigos. Em como a vida era simples e alegre, de como as
preocupações eram poucas e nada grandiosas.
Não sei quantos segundos permaneci envolta naquela imensidão
pacífica, ouvindo o coração voltar a bater. Nada de gritos de dor, choros ou
preces. Protegida pela barreira espessa e azul, a guerra não podia mais me
ferir.
Estava livre.
Eu tinha sobrevivido.
Senti uma mão encontrar a minha e vi o rosto de Aaron sob a água,
urgindo para que eu batesse as pernas rumo à superfície.
Bati, usando também as mãos, os pulmões implorando por ar.
Enquanto subia, lembrei dos anos perdida, em que me senti presa e
machucada, sem saber como mudar a vida. Hoje, vinha à tona comigo uma
sensação inexplicável de que nada mais seria como antes. Eu não estava
sozinha. Qualquer dor que surgisse deste momento em diante encontraria
uma nova Sabrina.
Quando irrompi na superfície, ouvi a risada de Aaron. Ele ria e chorava,
dando braçadas para longe do forte, olhando para trás para me incentivar a
continuar.
Ri alto também, vendo mais adiante Belchior, Anna e Luigi
gargalharem, aproveitando a sensação maravilhosa que era estar vivo.
A chuva de flechas nunca chegou. Talvez tenham sido dragadas pela
espiral violeta e lançadas magicamente para outro tempo e lugar. Nunca
saberia onde foram parar, e nem queria. Esperava apenas que não
machucassem mais ninguém, porque havia gente ferida o suficiente no
mundo.
Adiante, a península e São Ângelo nos esperavam. São Elmo havia
tombado, mas eu me sentia vitoriosa. Agora, nos refugiaríamos até o final
do Cerco. A guerra estava longe de acabar e ainda tínhamos meses de luta,
mas a minha missão no passado estava completa: eu havia enviado um
guerreiro de presente para a minha irmã, e agora estava em paz.

FIM
VALETA, 1568
TRÊS ANOS DEPOIS
SABRINA

A vila de Valeta, situada na pequena península aos pés do Monte


Sceberras, ainda era uma criança. Ela crescia a passos lentos, cada dia
um pouquinho mais. As construções que no futuro comportariam
sorveterias e lojas de reparos de celulares ainda eram apenas pedras
assentadas sobre pedras. As paredes altas das fortalezas pareciam distantes
e o mato e os arbustos baixos cobriam boa parte do que mais tarde se
encheria de casas.
Após o fim do Cerco, os sobreviventes se fixaram em diferentes pontos
da ilha, e um povoado começou a se desenvolver ao redor das fortalezas de
São Elmo e São Ângelo. Torres foram adicionadas aos fortes, muros
erguidos para proteger de novos ataques e a cidade começou a ser planejada
no papel.
Caminhando pelas ruas recém-fundadas, ia escolhendo com cuidado
sobre quais pedras pisar, ouvindo ao fundo o barulho das marretas e vozes
dos trabalhadores, sentindo o cheiro de feno, terra, pó de pedra e mar. Ao
largo do caminho, uma mulher e uma criança plantavam mudas de árvores,
e acenaram quando passei.
Queria aproveitar a cidade antes que, em breve, não pudesse mais deixar
a casa. Minha segunda gravidez estava adiantada e mulheres grávidas se
recolhiam no final. Não por imposição de ninguém, descobri sozinha, mas
porque quedas e machucados ocorriam com certa frequência e aqui eu não
contava mais com ambulâncias na porta. Para falar a verdade, depois dos
horrores que vivenciei no Cerco, fiquei mais cautelosa e ciente da
fragilidade da vida. Eu amava viver e não custava me cuidar nesse final.
Enquanto pensava nisso, vi uma pequena borboleta cruzar meu
caminho. Acompanhei distraída o zigue-zague do inseto delicado até que
desaparecesse em uma viela. Por segundos permaneci parada no lugar,
pensando em primaveras.
Foi quando reconheci o pequeno conjunto de casinhas baixas, feitas de
pedras amareladas.
Girei ao redor, sem acreditar na coincidência. À distância, as paredes do
Forte se erguiam altas, como me lembrava. A rua estreita também parecia a
mesma. Tirando a cidade que crescia em volta das lembranças e a falta de
árvores, percebi estar diante da construção que um dia se tornaria a rua de
comércio onde, não muito tempo atrás, entrei em uma loja intrigada pelo
seu nome.
No presente, o local era apenas uma casa. Uma que resistiria por cinco
séculos e seria reforçada por novas pilastras, remodelada, refeita e mudada
até se tornar uma testemunha da história.
Pensei na adaga e uma sequência de eventos desfilou pelas memórias.
Os sonhos com Aaron, os nomes em cada lado da lâmina, as explosões de
ciúmes de Zach e o crime que culminou na minha vinda para cá. Pousei a
mão no pescoço, sentindo falta da pedra.
Deslizando a ponta do dedo para o lado, acariciei a borboleta e o nome
ao lado dela.
A verdade? Eu sempre soube sobre Aaron. Em algum lugar profundo da
minha alma, ele sempre existiu e eu já o procurava.
— Sabrina?
A voz masculina me despertou dos devaneios. Adiante, vi meu marido
bonito caminhar com passos decididos na minha direção.
Não conseguia conter o sorriso ao vê-lo com aquelas calças bufantes
vermelhas, o colete justo delineando o peitoral avantajado e as pernas
cobertas pela meia branca de lã. Mas o que me causava a explosão de fogos
na barriga era o olhar que nunca me abandonava. Seus olhos me seguiam
em silêncio, tranquilos, garantindo o meu bem-estar e minha paz. Eram
atentos, porém, nunca limitadores. Olhos de dono, coração de escravo, ele
me confessou certa vez quando mencionei essa sensação. Ao rir, Aaron
reconheceu que não foi ele quem cunhou a frase: foi Cristopher, dias antes
da viagem para o futuro.
“Você a olha desse jeito”, ele disse na ocasião. “Como se fosse seu
servo, e ela sua rainha. Tornou-se um devoto a prestar-lhe adoração.”
Segundo Aaron, havia na voz dele uma boa dose de crítica, mas também
de vontade de entender o que deixara o irmão assim.
No dia, garanti ao meu marido perfeito que Cristopher olharia dessa
mesma forma para Isla, com a exceção de que não usaria mais aqueles
termos, por passarem a ideia de posse e colonização. Ele não só entendeu o
motivo como concordou, mas nunca mudou o jeito de me olhar — ou de se
doar por inteiro para mim.
Era por isso que, se um dia me perguntassem se tinha vontade de
retornar para o futuro — com seus carros velozes, celulares sempre na mão,
luz elétrica e banhos de chuveiro —, responderia a verdade: não. Ainda
desconhecia por que motivos me adaptei tão bem ao passado, às suas
questões políticas complexas, ao adormecer às sete da noite e o despertar às
seis, à falta de cinema e rádio, viagens de avião e comidas elaboradas, mas
posso garantir que o amor de Aaron era grande parte da razão.
Não tenho palavras para explicar a sensação de familiaridade que sinto
em viver aqui, neste vilarejo que ainda engatinhava para se tornar uma
grande capital. Eu me sentia parte da história. Parte da vida de um homem
que combinava com aquela época. Parte de uma vida que estava esperando
por mim.
Só sentia saudades de Isla, de Cristopher e dos meus sobrinhos. Pensava
neles todos os dias e em como gostaria de compartilhar minhas alegrias
com a família. Eles adorariam conhecer Vittória, nossa filha que nasceu um
mês após o fim do Cerco, nos escombros de um país arrasado — porém
vitorioso. Às vezes olhava para ela e meu peito se enchia de um sentimento
tão dolorido quanto bom.
O que minha família querida estaria fazendo no futuro? Passeando pelo
mundo, rodando mais filmes, revelando a história?
Será que pensavam em nós com a mesma frequência com que
pensávamos neles?
Com a aproximação de Aaron, deixei os pensamentos de lado. Ele parou
na minha frente, alto e imponente, me observando como se tivesse passado
500 anos longe, e não apenas uma hora.
— A reunião demorou mais do que imaginava — explicou, sorrindo de
forma tranquila. — Perdão por deixá-la esperando.
— Minha ida à costureira ocupou todo o tempo. Não precisa se
desculpar.
Ele me estendeu o braço que logo enlacei com o meu. Ao se inclinar
para pegar a cesta que eu carregava, senti seu cheiro familiar. Aaron sorriu e
beijou com carinho meu rosto, sabendo o que o brilho em meu olhar
significava. Juntos, caminhamos devagar pelas pedras irregulares.
— Será um verão bem quente — ele comentou olhando para o céu azul-
anil, alisando distraidamente o dorso da minha mão. — Sente-se bem em
caminhar? — Sempre preocupado, ele desceu os olhos até a barriga que
despontava sob o vestido claro. — Posso trazer a charrete até aqui. Ou
carregá-la em meus braços.
Ri, negando.
— Estou me sentindo muito bem. O bebê não para de chutar, o que é um
bom sinal.
Ele se inclinou, arrastando o nariz pelo meu cabelo.
— Assim que chegarmos em casa, poderei despi-la e sentir com as
minhas próprias mãos sua barriga bonita.
Em seus olhos havia promessas de ternura, mas também borbulhas de
segundas intenções.
— Pois vou cobrar o carinho, cavaleiro.
VALETA, 2036
468 ANOS DEPOIS
ISLA

A aron e Laura caminhavam na frente, tomando cada um uma


casquinha de sorvete, enquanto eu e Cristopher íamos atrás. Era o
primeiro dia de primavera e em breve o calor nos espantaria do
Centro. Passeios como esse, só na praia.
Enquanto andava, ia pensando na burocracia que o próximo filme
exigiria, na rematrícula das crianças na escola e no barulho diferente que o
carro andava fazendo ao frear. Também pensei na nota que li recentemente,
em uma página de fofocas, sobre o comportamento cada vez mais errático
do meu ex-cunhado psicopata. Nela, a colunista alfinetava como o antes tão
poderoso Ruedas era hoje uma piada nos círculos sociais da cidade, sempre
mencionando abduções temporais e figuras históricas há muito esquecidas.
Tanto tempo depois, e ele ainda era obcecado por Sabrina.
A mão seguia entrelaçada à de Cristopher, enquanto ele observava as
lojinhas que davam para a rua.
Só senti que ele havia parado quando meu braço foi esticado para trás.
Notei que encarava uma vitrine fixamente, e ao ler os dizeres em dourado,
paralisei também.
“Antiquário de Valeta: viaje conosco para o passado.”
Por longos segundos, enquanto o sol passava filtrado pelas árvores
centenárias que corriam ao largo da ruela, senti um calafrio tomar meu
corpo inteiro. Cristopher, pelo jeito, também.
Uma brisa bagunçou meu cabelo e as folhas das árvores pareceram
sussurrar nomes. O cheiro de oceano, de pedra e sorvete; as vozes dos
turistas, dos trabalhadores reformando lojas antigas e a música que vinha
dos estabelecimentos comerciais temporariamente desapareceram.
Como um milagre que perfurava o tempo, senti Sabrina passar por nós.
Não mais do que um sopro, um lampejo breve ou uma sombra fraca. Senti
sua alegria tranquila e sua presença doce como se fossem palpáveis.
Senti, acima de tudo, sua paz.
Os gritos das crianças nos acordaram do momento. Pisquei, acenando
de maneira automática para os dois e pedi que nos esperassem. Minha alma
precisou de um segundo para voltar: a sensação era de que ela havia me
deixado a fim de tocar algo — ou alguém — em outro tempo e lugar.
Com os olhos arregalados, olhei para Cristopher. Ele esfregava a mão
no braço, como se precisasse dar conta do próprio arrepio, e o vi deslizar a
mão até o peito, como se fizesse um antigo cumprimento.
Sabrina e Aaron.
Um amor sem tamanho fez as lágrimas descerem devagar. Tampei a
boca para não deixar escapar um soluço, sentindo o peito inchado de
saudade. Fazia tanto tempo que ela havia partido e eu ainda não conseguia
pensar na minha irmã sem chorar.
Sabendo o que se passava comigo, Cristopher me abraçou. Seu corpo
colou inteiro ao meu, mas ele manteve o rosto longe o suficiente para me
encarar.
— Eu sei. Também senti, amor.
— O que acha que foi isso? — perguntei, perplexa, sem entender.
— Não sei. — Ele beijou a minha testa enquanto olhava para o vazio.
— Às vezes os sinto perto de mim. Como na torre, anos atrás. Ou toda vez
que piso em São Elmo. Mas foi a primeira vez que senti aqui.
Abracei-o com força, encostando meu ouvido em seu peito, esperando
que o vibrar da sua voz me acalmasse.
— Dessa vez foi diferente — ele afirmou.
A única vez em que senti algo igual foi quando voltamos à catedral e
encontramos seus túmulos milagrosamente intactos — pelo menos, o
quanto túmulos tão antigos conseguiriam ser. Não tive palavras na época
para explicar a sensação que me tomou. Nunca havia feito aquilo antes, mas
chorei lá embaixo como uma criança, entendendo finalmente que o passado
havia corrido seu curso e nada mais tiraria Cristopher de mim.
— O que acabei de sentir foi felicidade — murmurei contra a camisa
dele. — Felicidade pura e verdadeira. Ela está feliz, Cristopher. Muito
feliz.
O peito dele vibrou, e ao erguer o queixo, vi que estava rindo.
Comecei a rir em meio ao pranto também, abraçada àquele homem
gigante, no meio da rua, como uma tola. Uma grande tola sortuda.
— Feliz nós já sabíamos que eles seriam, não é? — Seus polegares
enxugaram as minhas lágrimas.
— Eu não mandaria minha irmã para o passado se não confiasse em
você.
— Fui testemunha daquele amor — ele disse sério — e ele era imenso.
Assenti, sentindo no fundo da alma que tudo estava bem.
A expressão no rosto de Cristopher mudou de saudosa para convencida.
— Agora… não acha que poderia confiar mais vezes em mim? Por
exemplo, podia me deixar sugerir o nome do Banderas para a próxima
produção.
Empurrei-o, rindo.
— Meu Deus, você é impossível. O Banderas não deve aguentar mais
ser procurado pela gente. “Olhe, outro e-mail daquela produtora de Malta.
Urgh, delete.”
— Ah, vai. Ninguém interpretaria o califa melhor do que ele. Eles têm a
mesma idade. Ele sabe disso, minha ilha.
— Não posso me meter nesse elenco — respondi, rindo, sentindo seu
abraço outra vez.
— Você poderia me tentar deixar, vai.
— Jesus, faço ideia do que significa ‘tentar’!
Cristopher me soltou entre risadas.
Em paz, e mais certos do que nunca de que tudo estava no seu devido
lugar, voltamos a entrelaçar os dedos. E enquanto íamos negociando a
presença do Banderas na nova produção, vimos Laura perseguir, com o
sorriso banguela, uma borboleta que ziguezagueava pela rua, saltitando
atrás da bichinha até ela desaparecer, plácida, entre a folhagem das árvores
centenárias.
ÚLTIMAS PALAVRAS

Enquanto escrevia esse livro, o mundo via assombrado prédios ruindo na


Turquia e na Síria por causa de um terremoto que matou milhares de
pessoas. Embora todas as cenas tenham sido doloridas de ver, nunca quis
tanto poder realizar uma viagem no tempo e avisar um certo pai, que vi
segurando a mão sem vida da filha, que naquele dia 7 de fevereiro de 2023
ele deveria abraçar sua garotinha e correr para bem longe de casa.
Meus mais sinceros sentimentos a todos os turcos e sírios atingidos pela
tragédia.
AGRADECIMENTOS

A todas que compraram a ideia da viagem no tempo, o meu mais sincero


obrigada! Meu agradecimento especial vai para as meninas do Love
Travellers e nossas discussões animadíssimas sobre o assunto! Que venha
2023 e todos os livros da série!

OUTROS DA SÉRIE LOVE TRAVELLERS:

Um Romance do Passado, Chiara Ciodarot

Um Guerreiro do Passado , Karina Heid

Um Highlander do Passado, Lígia Dantas

Um Inimigo do Passado, Liz Stein

Uma Princesa do Passado, Narjara Pedroso

Um Duque do Passado, Stefany Nunes

Um Lorde do Passado, Tatiana Mareto


MEUS LIVROS

Se quiserem conhecer minhas outras obras, aqui estão elas:

Fantasia

A Jornada das Bruxas


O Príncipe Vampiro
Um Guerreiro do Passado
Uma Viajante do Futuro

Romance Adulto

A Última Peça
Sessenta Noites em Trindade
Meu Capitão: Sessenta Noites 2
Cowboy Sem-vergonha
O Lado Bom do Inferno
A Garota da Música
Xeque & Mate: O Clube da Vingança
Alices no País dos Romances

Romances de Época

Série Damas de Aço

Lady Audácia
Lady Malícia
Lady Romance
As Doze Noites de Lady Malícia
Lady Escândalo

Série Enfeitiçados

Um Libertino Enfeitiçado
Um Forasteiro Enfeitiçado
Um Marquês Enfeitiçado

Série Kaiser Kinder

O Duque Perdido
O Libertino Domado
O Lorde do Nilo
O Conde Encantado

Série América- Hamburgo

A Dama perfeita (em breve)

Contos e Antologias
Três Milagres de Natal
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SOBRE A AUTORA

Publicitária, professora de alemão, psicóloga e escritora — tudo que é legal ser, já fui. Sou também
mãe de duas crianças lindas e esposa parceirona. Hoje moro na Ásia, porém, amanhã… Quem sabe?
Se quiserem bater papo comigo, sabem onde me encontrar!

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