Você está na página 1de 44

O ALFAIATE DO REI*

Um ato e oito cenas

* Esta peça foi apresentada pela primeira vez no Tablado, em 2004, com mú-
sica e direção musical de Márcio Trigo; coreografia de Renato Vieira; figurinos
de João de Freitas e Lidia Kosovski; cenografia de Lidia Kosovski; iluminação
de Nelson Leão; arranjos e execução musical de Nilton Cardoso; preparação
vocal de Malu Cooper; ilustração e programação visual de Rogério Cavalcan-
ti; chapéus, adereços e figurinos de Antonio Pedra; maquiagem de Viny Kiles-
se; adereços de cenografia de Dero Martin e Leo Bungarten. A assistente de
direção foi Ana Soares; os de cenografia, Leo Bungarten, Luciana Massena,
Julia Marina e Elisa Faulhaber; a de coreografia, Soraya Bastos. A produção
de ensaio foi de Ronald Carneiro, com assistência de Carlos Grum e Diana
Herzog. Antônio Paulo dos Santos Fernandes foi o cenotécnico responsável,

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1173 13.01.10 11:56:25


com assistência de Rivaldo Santos Faria. Montagem de luz: Paulo Roberto
e Anderson Peroba. Confecção de figurinos: Helena Torrubia. Alfaiataria:
Londoner. Sapatos: Ernesto Henrique Nieto Lopez. Perucas: Marcia Elias.
Camareira: Rosangela Fernandes. Contrarregras: Julia Marina, Claudia
Nunes, Ana Carolina Miranda e Remo Trajano. Fotografia: Silvio Pozatto.
Produção executiva: Lincoln Vargas. Direção de produção: Fernando do Val.
Elenco: Leonardo Brício, Daniela Ocampo, Débora Lamm, Marcelo Adnet,
Fernando Caruso, Pedro Kosovski, Gregório Duvivier, Érika Evanttini, Cris-
tina do Lago, Juliana Tillmann, Maria Júlia Garcia, Tatiana Köhler, Carlos
Grun, André Dale, Rodrigo Lopes, Ricardo Monteiro, Rafael Queiroga, Erik
Nako, Isabela Rescala, Juliana Berredo, Victoria Nunes de Paula, Luisa Lara,
Luiza Kosovski, Mariana Trigo, Elisa Nunes de Paula, Isabela Camero, Cecí-
lia Nunes Certo, Mateus Solano, Renata Tobelém, Lincoln Vargas, Henrique
Villela. Direção geral: Cacá Mourthé.

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1174 13.01.10 11:56:30


personagens

rei
rainha
alfaiate
ministro
rei africano
rei do oriente
tecelã
tecelão
bobo da corte
funcionário honesto
camareiros
conselheiros
capitães
povo da cidade

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1175 13.01.10 11:56:30


MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1176 13.01.10 11:56:30
1ª cena

A cortina está fechada, entra o Bobo da Corte, que se prepara para dar
uma cornetada. Para no ato (faz uma gracinha). Se prepara novamente
para tocar. Para no ato (faz outra gracinha). Finalmente toca, e do som
da corneta sai uma música orquestrada.

bobo — Para todos, boa tarde.


Eu, humilde, me apresento.
Faço isso sem alarde,
Pois daqui sai o meu sustento.
Bobo é como me chamam
e isso não me deixa perturbado,
Pois os ricos nunca reclamam
Quando ouvem as verdades de um jeito
[engraçado.
Portanto, é com grande prazer que apresen-
[tamos aqui no Tablado
O Alfaiate do Rei, de Maria Clara Machado.

(A cortina abre.)

bobo — Há muitos e muitos anos em um reino


distante...

(A luz acende no painel do fundo do palco mostrando o reino.)

bobo — ...existia um rei muito elegante.


Mas, além disso, era exibido e muito vaidoso.
Suas lindas roupas, com certeza, o deixa-
[vam muito vistoso.
Gostava de ser admirado e adorado pelo
[seu povo.
Por isso, sempre desfilava para exibir um
[traje novo.
Viajantes do mundo inteiro visitavam
[aquela cidade.
Só para ver as novas roupas de Sua Majestade.

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1177 13.01.10 11:56:30


(Mudança de luz entra na cidade.)

bobo — Tudo caminhava normalmente neste


[reino hospitaleiro
Quando, vindos de longe, chegaram dois
[forasteiros.

(Entram os tecelões.)

tecelão — Chegamos. É aqui, querida. Aqui vamos ga-


nhar muito dinheiro, nossa vida vai mudar.

tecelã — Dizem que este Rei é mais vaidoso que


um pavão. Adora se pavonear. Poderemos
enganá-lo facilmente.

tecelão — Vamos ficar quietos. O melhor é a gente


se misturar entre o povo.

(Falas do povo. Alguns vendem, outros barganham e outros conversam.)

mulher 1 (Para a outra que estava cochichando em seu


ouvido.) — Não me diga, é verdade?

mulher 2 — É o que dizem as más-línguas.

mulher 1 — Foi tudo escondido e ninguém ficou sa-


bendo?

mulher 2 — Todos souberam, viram e fingiram não


saber!

mulher 1 — Como são hipócritas!

homem 1 — O Rei estava com uma roupa linda!

homem 2 — Invejável, meu amigo.

homem 1 — Invejável o seu guarda-roupa. Ouvi dizer


que ele tem mais de mil pares de sapatos.
(O Tecelão se aproxima para escutar o que
eles estavam conversando.)

1178 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1178 13.01.10 11:56:30


homem 2 — Isso não é nada; as meias somam pra
mais de quatro mil pares.

tecelão — Nossa, quatro mil pares de meias! (O


Tecelão se espanta com a informação e corre
para falar com a Tecelã.)

homem 1 — Nosso Rei é formidável!

homem 2 — Como vai a cobra?

mulher 3 — Já viram a nova roupa do Rei?

(Mais duas pessoas se aproximam e comentam com ela.)

mulher 3 — Eu estou louca para ver a nova roupa do


Rei!

(Enquanto isso a Tecelã se mete no meio da conversa.)

tecelã — Eu também!

homem 3 — Eu também!

homem 4 — Eu também!

homem 3 — Esta será a milionésima trigésima oitava


roupa que ele veste esse ano.

mulher 3 — Ah! Eu gostaria tanto de ver a roupa que


ele vai usar na festa dos oficiais estrangei-
ros…

tecelã — Festa?

(Tecelã se afasta e cochicha com o Tecelão.)

homem 3 — Se enxerga, mulher, isso não é pro seu


bico não, é só pra gente muito importante.

(Falatório de cidade. Entra Bobo da Corte e toca a corneta. Anuncia


o Rei.)

1179 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1179 13.01.10 11:56:30


bobo da corte — Atenção, atenção, povo desta cidade:
Vai começar o desfile de sua majestade.
Ele usará sua milionésima trigésima oitava
[roupa esse ano.
Reparem nos brocados e no caimento do pano.

(Desfile do Rei.)

tecelã — Festa?

tecelão — Roupa?

tecelã — Vaidade?

tecelão — Você está pensando no que eu estou pen-


sando?

tecelã — Você está pensando no que eu estou pen-


sando?

tecelão — Não, querida, estou pensando no que eu


estou pensando, afinal, fui quem pergun-
tou primeiro.

tecelã — Então diz.

tecelão — Não. Se você está pensando no que eu


estou pensando, então diz você primeiro.

tecelã — Não digo. Se você pensou primeiro, diz


primeiro.

tecelão — Não digo, diz você.

tecelã — Não, diz você.

tecelão — Diz você.

tecelã — Você.....

(Tecelões saem de cena.)

1180 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1180 13.01.10 11:56:30


2ª cena

Aparecem várias roupas penduradas no ar — Balé das Roupas. Entra o


Rei e confere as roupas. Entra Bobo da Corte.

bobo — O quarto de vestir era o lugar que o Rei


[mais gostava
De lá só saía para festas e desfiles, mas logo
[voltava.
Era no quarto de vestir que ele ouvia dos
[conselheiros suas opiniões
E de roupa em roupa tomava suas mais
[sábias decisões.

(Entram Ministro, Funcionário Honesto e os conselheiros.)

ministro — Linda roupa, Excelência!

conselheiros — Sim, sim, sim. Oh! Que linda roupa!

ministro (para os conselheiros) — Viva Sua Majestade


o Rei, o homem mais chique e elegante de
nosso país!

1º conselheiro — Orgulho nacional!

2º conselheiro — Patrimônio da elegância!

3º conselheiro — Tesouro de estilo!

4º conselheiro — O mais garboso Imperador!

homem honesto — Viva o mais impecável dos soberanos!

todos juntos — Orgulho nacional, patrimônio da ele-


gância, tesouro de estilo, o mais garboso e
impecável Imperador!

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1181 13.01.10 11:56:30


rei — Esta roupa é a milionésima trigésima
nona que visto este ano!

todos — Oh! Parabéns! Parabéns!

rei — Bem, vamos aos conselhos.

1º conselheiro — Eu o aconselho a ...

rei — Outro assunto, outra roupa. (Veste-se


com uma nova roupa.)

1º conselheiro — Eu o aconselho a desfilar para o povo com


um guarda-sol, Excelência!

rei — Não! O que você acha, Ministro?

ministro — Penso que é uma boa ideia, por que


não?

rei — E você, Funcionário Honesto?

funcionário — O tecido muito à mostra desbota Exce-


honesto lência!

rei — Bem-pensado. Preciso de um guarda-sol


urgentemente, um para mim e outro para a
Rainha!

2º conselheiro — Alteza...

rei — Novo assunto, nova roupa.

(Veste uma nova roupa, todos parabenizam-no.)

todos — Que arraso, Alteza!

2º conselheiro — Eu o aconselho a redirecionar o dinheiro


dos impostos para adquirir mais espelhos
para nosso reino.

rei — Não!

1182 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1182 13.01.10 11:56:30


todos — Não!

rei — Mais espelhos para nosso reino... (Se olha


no espelho.) É importante redirecionar o di-
nheiro dos impostos!

ministro e — Muito bem-elaborado, Alteza.


funcionário
honesto

3º conselheiro — Majestade.

rei — Novo assunto, nova roupa.

3º conselheiro — O reino vizinho está hostil às negocia-


ções da seda, e não estão querendo mais nos
fornecer as mariposas. Sem elas, diremos
adeus à seda.

todos — Oh!...

3º conselheiro — Proponho a Vossa Excelência inspecio-


nar a tropa, pois em caso de guerra...

rei — Guerra, novo assunto, nova roupa.

ministro — Não, Alteza, é o mesmo assunto, Exce-


lência.

rei — Creio que o melhor agora seja inspecio-


nar a tropa. (Vai saindo e se lembra de trocar
de roupa.) Uma roupa nova para inspecio-
nar a tropa.

ministro e — Muito bem-articulado, Alteza.


funcionário
honesto

4º conselheiro — Eu aconselho Vossa Excelência a descan-


sar... Corremos demais!

rei — Não, não! Não vou descansar. Não está


vendo que no momento me visto para ins-

1183 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1183 13.01.10 11:56:30


pecionar as tropas?! Esta é milionésima
quadragésima quarta roupa que visto este
ano.

todos — Oh! Parabéns! Parabéns!

rei — Tudo aprovado! Tudo muito bem-pensa-


do. Conselho encerrado! Vamos à tropa!!

ministro — Bobo, o toque para juntar a tropa!

bobo — Nesse reino eu faço tudo


Conto histórias, faço graça e fico mudo
Mas de todas as coisas que faço a mais porreta
É poder dar ordens com a minha corneta.

(Toca a corneta e sai uma música orquestrada.)

1184 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1184 13.01.10 11:56:30


3ª cena

Música. As roupas sobem. Música para entrada da tropa. Os guardas en-


tram, o Bobo entra com o trono e, por fim, entram o Rei, a Rainha, o
Funcionário Honesto e o Ministro.

rei (sentado no trono) — O reino vizinho está


nos ameaçando, estão querendo cortar a
exportação de fios de seda para o nosso rei-
no. Isto representa o fim dos nobres tecidos
e dos trajes elegantes em nosso país; por
isso, caso seja necessário, entraremos em
guerra. Precisamos ver se o nosso exército
está em forma.

capitão — Majestade, é vergonhoso o estado em


que se encontra o exército. Sinto dizer, mas
a verba destinada à compra de novas armas
foi desviada para a compra de fios de seda.
Nosso galpão bélico, onde guardamos mu-
nições e armas, foi transformado em um
ateliê de alta-costura onde encontramos,
em vez de canhões, enormes máquinas de
costura; em vez de espadas, quilos de agu-
lhas finas; em vez de bombas, fios de ouro;
em vez de armaduras, fardas com o corte
da estação.

(Os soldados esboçam rir, mas se controlam. Rei confabula com o Minis-
tro e o Funcionário Honesto.)

rei — Podem rir. (para o exército) Capitão, isto


é um verdadeiro milagre: estamos salvos,
não precisaremos mais entrar em guerra.
Não existe nada mais maçante do que uma
guerra! Vamos ao que interessa, deixe-me
ver as fardas novas do exército! (Levanta-se
e passa em revista aos soldados.) Muito bem!
Muito bem! Meus fiéis soldados estão ele-
gantes e garbosos em suas lindas fardas.

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1185 13.01.10 11:56:31


Que corte perfeito! Isto é uma coisa que
me deixa profundamente emocionado; um
bom caimento, que corte excelente! Cha-
mem o Alfaiate do reino!

funcionário — Sim, Alteza! (para o Ministro) Chamem


honesto o Alfaiate do Rei!

ministro (para o general) — Chamem o Alfaiate do Rei.

general — Chamem o Alfaiate do Rei!

(Entra o Alfaiate.)

rei — Parabéns, sr. Alfaiate, pelo impecável


trabalho. O senhor está cada vez melhor.
Todo mérito tem que ter uma recompensa.
Na festa serás bem recompensado.

alfaiate — Obrigado, alteza.

rei (para a Rainha) — Querida esposa, preci-


samos festejar este momento solene, para
que se perpetue em nosso reino a lembran-
ça da importância de um bom traje! Todo
mérito tem que ter sua recompensa.

rainha (entre trêmula e eufórica) — A sua recom-


pensa.

(Todos aplaudem o Alfaiate. Tema do Rei:)

rei — Eu gosto muito de babados, brocados e


[bordados,
Eu fico sempre no topo, do topo, do top da
[moda.
Que arraso, que encanto, o meu mais novo
[manto.
Sou de sorte, sou de sorte, me agrada um
[bom corte.

rainha — Eu digo sim, sim. Sim, querido.

1186 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1186 13.01.10 11:56:31


todos — Dizemos sim, sim, sim, meu Rei.

rei — A agulha aqui costura enquanto lá o


[povo espera.
Com fome ou sem fome tecer é a minha guerra.
Eu venço e convenço, vim aqui pra convencer.
Sou belo, sou bonito, sou o que pareço ser.

rainha — Eu digo sim, sim, sim, querido.

todos — Dizemos sim, sim, sim, meu Rei.

funcionário — Quem parece sempre é,


Sempre parecendo ser.

ministro — A pergunta é: ser ou não ser?


Eu só quero parecer.

rei — A aparência é tudo, vestir é escolher...


É escolher o que sou e o que quero parecer.

todos — Ser ou não ser, só queremos parecer.


Ser ou não ser, só queremos parecer.
Ser ou não ser, só queremos parecer.
Ser ou não ser, só queremos parecer.

rei — Pareço... logo sou.

todos — Ser ou não ser, só queremos parecer.


Ser ou não ser, só queremos parecer.
Ser ou não ser, só queremos parecer.
Ser ou não ser, só queremos parecer.

rei (para a Rainha) — Agora, querida esposa,


vamos nos trocar para a festa.

rainha (entre trêmula e eufórica) — Festa!

rei (para o Ministro) — Sr. Ministro, prepare a


festa!

ministro — Funcionário, prepare a festa!

1187 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1187 13.01.10 11:56:31


funcionário (para o Bobo da Corte) — Prepare a festa!

(Saem o Rei e a Rainha, Ministro e Funcionário Honesto, o Alfaiate e a


tropa. O Bobo da Corte arruma o salão de festas e se coloca à porta de
entrada.)

bobo da corte — A festa era o lugar onde todos queriam


[se arranjar,
Os conselheiros visavam lucros, e as mo-
[çoilas, um bom partido para casar.
No palácio eram esperados dois reis de
[longínquos continentes,
o que deixou todos muito contentes.
O que eles não sabiam é que junto com os
[estrangeiros
Também chegariam aqueles dois estranhos
[forasteiros.

1188 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1188 13.01.10 11:56:31


4ª cena

Música (instrumental). Entram a corte. Entram o Rei e a Rainha.

rei — Repare como todos me olham, esta rou-


pa é a melhor que tenho, não se compara às
outras.

rainha — Outras...

rei — Parabéns, sr. Alfaiate, desta vez o senhor


se superou.

rainha — Se superou...

rei — Como fico feliz, Rainha, sabendo que a


última palavra é a do Rei.

rainha — A do Rei...

alfaiate — Obrigado, majestade.

bobo da corte — De além-mar, o Rei Mbalo Fumacé


Vindo do longínquo Reino de Bunda Lelê.

(Entra o Rei da África.)

africano — Balacobaco borabora mbata coala curici-


ca cabum vambora.

ministro — Sua Alteza, o Rei Fumacê elogiou sua


augusta roupa e disse que nunca viu rei tão
elegante.

rei — Agradeça as verdadeiras palavras do Rei


Fumacê e mande saudações ao povo bun-
da-lelense. (Enquanto o ministro traduz para
o africano, o Rei cochicha para a Rainha.)
Nossa, que vestimenta estranha!! Não sei

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1189 13.01.10 11:56:31


como um rei pode usar uma roupa dessas, é
muito vagabunda!

rainha — Bunda... (Se assusta com o que disse.)

bobo da corte — Do reino de Shitake, lá das terras do sol


[nascente
Veio o Rei Sashimi, representando toda a sua
[gente.

oriental — Shitake shimege sashimi sushi shaveco


shorisso.

ministro — Sua Alteza, o Rei Sashimi diz que seus


sapatos são muito chiques, e suas meias,
deslumbrantes. Afirma que Sua Alteza é o
rei mais elegante do mundo.

rei — Agradeça as palavras sensatas do Rei


Sashimi e mande lembranças aos Shitaka-
nos. (Enquanto o Ministro traduz, o Rei co-
chicha para a Rainha.) Mas que reizinho
cafona...

rainha — Cafona.

rei — Música! Vamos homenagear o Alfaiate!


Vamos dançar!

(Música — minueto. Cantam dois Capitães:)

dois capitães — Como é lindo esse traje


Do nosso elegante Rei.
Propomos a Sua Majestade
Que o bem-vestir seja lei.

(Cantam outros dois conselheiros:)

dois conselheiros — Somos leais conselheiros


E damos opinião:

1190 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1190 13.01.10 11:56:31


Propomos que o Alfaiate
Receba um medalhão.

(As quatro senhoritas em coro:)

quatro senhoritas — Achamos a festa legal


Porque vemos no Rei o nosso ideal.
Por isso estamos vestidas
Com lindos tecidos, com rendas e fitas.

1ª senhorita — O Rei é elegante.

2ª senhorita — Ele é estonteante.

3ª senhorita — O Rei é muito charmoso.

4ª senhorita — Ele é bonito e pintoso.

as quatro juntas — Queremos que o Alfaiate nos faça um


vestido de noiva.

1ª senhorita — Quero um vestido ousado.

2ª senhorita — Quero um decote nas costas.

3ª senhorita — Vou deixar a vergonha de lado.

4ª senhorita — Vou deixar minhas pernas à mostra.

as quatro juntas — Com meu vestido de noiva vou arrasar.

(Todos param. Os dois estranhos se aproximam do Rei fazendo reverên-


cias.)

bobo — É nessa hora que chegam os forasteiros.


Mas antes de falar com vocês, preciso fazer
meu trabalho primeiro. (para os tecelões)
Ei, sou Bobo, mas não sou tapado. Vocês
entraram sem serem anunciados.

(Tecelão cochicha no ouvido do Bobo.)

1191 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1191 13.01.10 11:56:31


bobo — Vindos de outro continente, os Tecelões
do Oriente.

1º tecelão — Não carecemos de apresentação, pois


somos os mais conhecidos e cobiçados te-
celões do mundo.

tecelã — Somos os Tecelões de Ouro.

todos — Oh!!!

tecelã — É uma honra para nós, Alteza, estarmos


diante de tão nobre e elegante criatura.

(Várias reverências são feitas.)

tecelão — Viajamos incessantemente meses e me-


ses só para conhecê-lo.

tecelã — Como o senhor sabe, a agulha puxa a li-


nha e a linha puxa a agulha.

tecelão — Somos ricos e conhecidos, pois ao alfaia-


te pobre a agulha se dobra, Excelência.

(Todos riem sem graça.)

tecelã — Nosso currículo é enorme, Excelência.

tecelão — Fomos nós que tecemos o pano e fizemos


a roupa do augusto Rei do distante reino do
Xuxuquistão.

todos — Ohhh!

tecelã — Fomos nós que tecemos e bordamos o


manto sagrado dos cavaleiros oblíquos da
segunda jornada.

todos — Ohhh!!

tecelã — Todos nos querem, Alteza.

1192 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1192 13.01.10 11:56:31


tecelão — Eu diria mais: todos clamam por nosso
trabalho.

tecelã — Confeccionamos um tecido especial.

tecelão — Que tem uma rara qualidade. Não só as


cores e os padrões são extraordinariamente
atraentes...

tecelã — Esse tecido tem uma característica sin-


gular.

os dois juntos — Dizemos ou não dizemos o nosso segre-


do? (olhando um para o outro)

todos — Oh! Oh! Digam! Digam!

os dois — Só é visto por pessoas inteligentes e


competentes...

tecelã — ...ou por aqueles que estejam à altura do


seu posto. (misteriosos)

tecelão — Os bobos e incompetentes não conse-


guem ver nosso maravilhoso tecido.

todos — Oh! Oh!

rei — Deve ser extraordinário! Fantástico!


Incrível!!! Um tecido só visto por pessoas
inteligentes...

tecelã (à parte) — Se fizermos um traje para o Rei


não precisaremos trabalhar nunca mais!

tecelão — Vamos ficar milionários.

rei — Eu não disse? Vestir bem leva sempre a


um bom governo! Estes tecelões são mara-
vilhosos! Daqui por diante, com este teci-
do extraordinário vou ficar sabendo quem
é competente e inteligente no meu reino!

1193 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1193 13.01.10 11:56:31


Funcionário Honesto, traga e entregue aos
tecelões dinheiro bastante para que pos-
sam dar início ao trabalho!

funcionário — Sim, Alteza.


honesto
(Funcionário Honesto sai e volta trazendo um saco de dinheiro, que dá
ao Ministro. O Ministro entrega ao Rei, que entrega para o Funcionário
Honesto, que entrega para o Ministro, que entrega para o Rei. Enquanto
isso, os tecelões disfarçadamente tentam pegar o dinheiro.)

rei — Recebam esse dinheiro para que possa


ser confeccionado o mais extraordinário de
todos os tecidos.

(O Funcionário Honesto puxa um recibo e uma pena do bolso.)

funcionário — Por favor, assinem o recibo.


honesto
rei — Comecem imediatamente o trabalho, é
muito importante!

(Música. Saem todos, menos o Bobo, o Rei e a Rainha.)

bobo — Já dá para imaginar o que está para


acontecer. O Rei pensou que tinha achado
uma maneira dos outros conhecer, mas o
que ele não sabia é que o medo é primo da
agonia e quem antes duvida da inteligência
dos outros vai questionar a sua própria aos
poucos.

rei — Sou realmente um homem de sorte.


Agora poderei ver who is who no meu reino,
quem é quem.

rainha — “Quem-quem.” (como patinho)

rei — Quem-quem! Ah... Sou realmente um


homem de sorte, no meu reino a Rainha
tem sempre a última palavra: a do Rei.

1194 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1194 13.01.10 11:56:31


rainha — A do Rei.

rei — Adorei!

rainha — Adorei!

rei — Agora poderei ver quais funcionários


não servem para os seus cargos, com quem
realmente poderei contar.

rainha — Cargos.

rei — Agora poderei ver quem é burro e inteli-


gente no meu reino.

rainha — No meu reino.

rei — No nosso reino... E eu, será que sou inte-


ligente?

rainha — Inteligente.

rei — Será que sou competente?

rainha — Competente.

rei — Será que sou sábio?

rainha — Sábio.

rei — Ou será que sou burro?

rainha — Burro.

rei — Burro!

rainha — Burro.

rei — Burro eu ou burro você?

rainha — Burro você.

1195 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1195 13.01.10 11:56:31


rei — Será que tenho cérebro de galinha? Será
que na minha cabeça só tenho titica?!

rainha — Só titica!

rei — Quer dizer que eu sou uma anta?!

rainha — Anta.

rei — Anta é você! Se olha no espelho!

rainha — Se olha você!

rei (em crise) — Não sou apto para o meu car-


go? Não mereço ser Rei?! Será que eu não
conseguirei ver o tecido? Ai, meu Deus!

rainha — Meu Deus.

rei — Já sei!

rainha — Já sei!

rei — Mandarei o Ministro. Ele é o homem


certo: sensato como ele só, ninguém pode
reclamar de seu serviço. Ao mesmo tempo
verei se ele está à altura do cargo que ocu-
pa. Isso! É isso que eu vou fazer. (animado)
Como eu sou esperto.

rainha — Esperto.

rei — Chame o Ministro!

rainha — Ministro!

rei — “Quem-quem”!

rainha — “Quem-quem”!

(Entra o Ministro.)

1196 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1196 13.01.10 11:56:31


ministro — Estou à sua disposição, Majestade.

rei — Há quantos anos você vem me servindo


de uma forma leal e honrosa?

ministro — Há muitos anos. Tantos que já quase es-


queci minha língua natal.

rei — Você sempre foi correto, sensato, com-


petente, chique e charmoso.

ministro — Obrigado, Majestade. Não exagera.

rei — Sua inteligência aguçada sempre com as


soluções precisas nos momentos certos.

ministro — Não exagera, Majestade.

rei — Meu amigo, você é a única pessoa aqui


no reino em que sou capaz de confiar esta
missão. Sei que conseguirá ver o tecido,
por isso peço que vá aos tecelões e verifi-
que como está sendo gasto o dinheiro dos
impostos.

ministro — Eu, Majestade?

rei — Não há outra pessoa no reino em que eu


confie mais.

ministro — Eu lhe agradeço pela confiança. Estou


muito lisonjeado. (Reverência. À parte.)
Falo cinco línguas vivas e duas mortas e al-
gumas moribundas, sou chique e charmo-
so. Verei o tecido.

(Sai Ministro.)

rei (para Rainha) — Agora vou chamar o Fun-


cionário Honesto. Você está entendendo
meu plano, Rainha?

1197 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1197 13.01.10 11:56:31


rainha — Rainha.

rei — Aquele que conseguir ver o tecido terá


a minha confiança. Mandarei os dois, pois
assim não haverá chance de ser enganado.
Chame o Funcionário Honesto.

rainha — Funcionário Honesto.

funcionário — Sim, Alteza.


honesto
rei — Há quantos anos você vem me servindo
de uma forma leal e honrosa?

funcionário — Há muitos anos: meu pai serviu o seu pai


honesto rei; meu avô, seu avô rei; meu bisavô, seu
bisavô rei. Há gerações, Alteza, que este
reino conta com a linhagem dos Funcioná-
rios Honestos.

rei — Você sempre foi correto, sensato, com-


petente, chique e charmoso.

funcionário — Obrigado, Majestade.


honesto
rei — Sua inteligência aguçada sempre com as
soluções precisas nos momentos certos.

funcionário — Mais uma vez obrigado, Majestade. Faço


honesto o que posso, e se não posso mando fazer.

rei — Meu amigo, você é o único aqui no reino


em que eu sou capaz de confiar esta mis-
são. Sei que conseguirá ver o tecido, e por
isso peço que vá aos tecelões e verifique o
andamento dos trabalhos.

funcionário — Pode confiar em mim, Alteza; manterei


honesto a honra de minha família, os Honestos.

rei — Não há outra pessoa no reino em que


eu confie mais. Ah! Funcionário Honesto,

1198 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1198 13.01.10 11:56:31


peça para eles confeccionarem a mais linda
roupa com o tecido.

funcionário (saindo) — Nasci honesto, sou honesto e


honesto morrerei honesto. Sou chique e charmoso,
verei o tecido. (Sai.)

rei — Ai, meu Deus! E agora? E se eles conse-


guirem ver o tecido e eu não? Ai! Estou tão
aflito!

rainha — Aflito!?

(Entra o Bobo.)

bobo — Como no mundo há a lei da compensação,


Para um lugar com tristeza haverá outro
[com animação.
Enquanto o Rei morria com suas aflições
Tudo corria bem na casa dos tecelões,
Que nada faziam a não ser contar o dinheiro
[recebido.
Não mexeram uma palha para confeccionar
[o tal tecido.

1199 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1199 13.01.10 11:56:31


5ª cena

Sala dos tecelões. Pouca luz. O tear está coberto com um pano. O tecelão
conta as moedas do saco e vai passando para a mulher, que guarda no
outro saco.

tecelã — As moedas são de ouro!

tecelão — De onde essas vieram virão mais!

tecelã — Há uma semana que só contamos di-


nheiro. Muito dinheiro!

tecelão — Nunca foi tão fácil dar um golpe.

tecelã — Calma lá, marido! A batalha está venci-


da, mas a guerra ainda não. Lembre-se que
a qualquer momento tudo poderá ir por
água a baixo.

(Tecelão tenta falar.)

tecelã — Um momento! Está vindo alguém, lem-


bre-se que são burros. Vamos fingir que te-
cemos.

(Entra o Ministro.)

tecelã — Quanta honra, Excelência. (Faz reverência.)

tecelão — Ministro, que bons ventos o trazem


aqui?

ministro — O Rei me mandou vir aqui pessoalmente


para ver o tecido. (Confidencia.) Ele confia
em mim, sou o mais inteligente, chique e
charmoso homem do reino, tirando o Rei,
é claro.

tecelão — O senhor está querendo ver o tecido?

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1200 13.01.10 11:56:31


ministro — Sim.

tecelã — Está querendo ver as tramas?

ministro — Sim.

tecelã — As urdiduras?

ministro — Sim.

os dois juntos — Está preparado para ver, Ministro?

ministro — É claro! Sou o mais inteligente, chique


e charmoso do reino. Se eu não conseguir
ver, quem verá?

(Tecelões tiram o pano de cima do tear, revelando o tecido.)

ministro — Oh! Que lindo tecido!! Chique, charmo-


so, nunca vi nada igual.

(Enquanto os tecelões mostram e falam sobre o tecido em slowmotion,


o Ministro fala à parte.)

ministro — Mon Dieu! (gromelô francês) Não estou


vendo nada! O tear está vazio. Será que sou
tão burro assim? Será que sou incapaz de
ser Ministro? Nunca me considerei incom-
petente... É melhor que ninguém saiba. Não
posso dizer que não consigo ver o pano.

tecelão — E então, não é lindo?

tecelã — Gostou? Reparou nos rococós?

(Ministro surta em francês. Entra o Funcionário Honesto.)

tecelão — Funcionário Honesto, que surpresa!

tecelã — Quanta honra!

(Funcionário Honesto chama os tecelões para um canto.)

1201 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1201 13.01.10 11:56:31


funcionário — Não posso falar nada na frente do Ministro.

tecelões — É mesmo?

funcionário — Há gerações minha família serve ao Rei.


Sou seu homem de confiança, seu braço di-
reito. Ele me pediu para ver como andam
os trabalhos. Mas conto com a discrição de
vocês. Peço que não falem nada ao Minis-
tro. Sabe como é que é, né? Inveja.

tecelões — Seu pedido é uma ordem.

(Caminham para o tear. Funcionário Honesto para em frente ao tear e


espera para que lhe traguem o tecido. Nada acontece, todos aguardam.
Depois de um tempo o Tecelão pergunta com delicadeza:)

tecelão — E então. O que o senhor acha?

ministro (saindo do estado de choque) — Nunca vi


nada tão chique e tão charmoso. (testando)
E o senhor, Funcionário, o que acha?

funcionário (em choque, à parte) — Não sou burro, mas


talvez apenas não seja um homem capaz
como meu avô foi... Que horror, não estou
vendo nada! Nós, os Honestos, somos inte-
ligentes e capazes; não posso dizer que não
estou vendo. Tenho que ver. (para todos) É
indescritível. Nunca vi nada igual, tão chi-
que e charmoso.

ministro — Comunicarei ao Rei como o dinheiro dos


impostos está sendo muito bem-utilizado.

funcionário — Peço aos senhores que confeccionem


uma linda roupa com este tecido de rara
beleza o mais rápido possível, pois o Rei
pretende vestir no seu centésimo quinqua-
gésimo quinto desfile mensal.

(Vão saindo.)

1202 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1202 13.01.10 11:56:32


tecelão — Um momento, senhores. Infelizmente
não poderemos atender ao pedido do Rei.

tecelã — Com certeza os senhores repararam no


quanto fomos obrigados a gastar, em nome
da boa costura, para fazermos os detalhes
da tecelagem.

tecelão — Foram quinhentos metros de fios de ouro.

tecelã — Cem metros de fios da mais pura seda.

tecelão — Duzentos quilos de brocados platinados.

tecelã — Tudo isso nos custou muito esforço e


muito dinheiro.

tecelão — Foram noites e noites de trabalho.

tecelã — Dias e mais dias na busca do mais rico


material.

tecelão — Queremos pedir um aumento...

ministro — Claro! Sim! Sem dúvida, este trabalho é


de suma importância para o reino. (O Mi-
nistro e o Funcionário Honesto saem apressa-
dos. Para o funcionário.) O que é que você
está fazendo aqui?

funcionário — Eu é que pergunto! O que é que você


honesto está fazendo aqui?

ministro — Vim a pedido do Rei.

funcionário — Eu também. O Rei confia em mim.


honesto
ministro — O Rei confia em mim. Ainda bem que vi
o tecido.

funcionário — Ainda bem que vimos o tecido.


honesto

1203 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1203 13.01.10 11:56:32


(Saem o Ministro e o Funcionário Honesto. Tecelões cantam e dançam.)

tecelões — Eu teço, eu urdo e pedalo,


puxo e repuxo... o vento!
Com fios de seda, algodão e ouro,
nossa trama é um estouro.
O Rei não é de nada, é só uma piada.
Aqui não tem nada....
somente o vento!

São burros, lesados,


idiotas, coitados.
Incompetentes, medrosos,
incoerentes.
Inventam pra agradar e
mentem pra se poupar.
Aqui não tem nada, é só a piada
Do vento!

Eu teço, eu urdo e pedalo,


puxo e repuxo... o vento!
Somos espertos, não temos decoro.
Nossa trama é um estouro.

1204 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1204 13.01.10 11:56:32


6ª cena

A cidade.

bobo — O Rei, Sua sereníssima Alteza,


convoca toda a cidade para ver o cortejo de
[rara beleza
onde será apresentado o novo traje.
A quinquagésima roupa de Sua Majestade.
Feita de um raro tecido
ornado por fios até então desconhecidos.
Este tecido só é visto por pessoas inteligentes
e também por aqueles que são competentes
A roupa está sendo confeccionada como
[um tesouro
pelos gloriosos e famosos Tecelões de Ouro.
A procissão será daqui a uma semana
E todos deverão assistir Sua Alteza soberana.
Neste dia estará à venda em vários pontos
[de nossa cidade
“imitações reais”, joias da rainha, anéis de
[Sua Majestade.
A partir de amanhã haverá aulas de graça,
para aguçar a inteligência, aqui mesmo na
[praça.

(Bobo sai.)

mulher 1 — Não estou me aguentando de curiosida-


de. Já estou até vendo como será o novo tra-
je real, pois sou trabalhadeira e inteligente.
Meu q.i. é altíssimo!!! Mas tenho a certeza
que muita gente não verá.

homem 1 — Acho que muita gente vai ter que se ma-


tricular nas aulas de inteligência para poder
ver... eta povo burro !

mulher 2 — Eu terei o privilégio de ver. Inteligência


é o que não falta em nossa família. Nosso

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1205 13.01.10 11:56:32


q.i. é muito alto, mais ou menos... uns cin-
co metros... de altitude.

homem 2 — Parabéns, que beleza!

mulher 1 — Desconfio, querida, que se quiser mes-


mo ver a roupa do Rei deverá se matricular
rapidamente na aula de inteligência. Eta
povo burro!

(O povo sai cantando.)

povo — Neste teste passarei,


Temo por eles
Que não são letrados,
Que não são letrados.

Lá em casa somos todos


Bem-mandados e letrados.
Fazemos o que nos mandam,
Fazemos o que nos mandam.

1206 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1206 13.01.10 11:56:32


7ª cena

Mudança de cenário: o quarto do Rei. Dois camareiros entram trazendo


o trono e um grande espelho. Entram o Rei e a Rainha. O Rei senta-se.
Sinais de impaciência.

rei — Há dois dias que o Ministro e o Funcio-


nário Honesto foram ver o trabalho dos tece-
lões; preciso saber se eles viram ou não viram
o tecido. Se viram são inteligentes e compe-
tentes, se não viram é porque são burros e in-
competentes. Será que eu conseguirei enxer-
gar o tecido? Como estou nervoso. Chamem
o Ministro e o Funcionário Honesto.

(O Ministro e o Funcionário Honesto entram rapidamente.)

rei — E então, vocês conseguiram ver o tecido?

ministro e — Sim, Excelência.


funcionário
honesto
rei — E o tecido é deslumbrante, realmente?

ministro e — Sim, Excelência.


funcionário
honesto

rei — É brilhante?

ministro e — Sim, Excelência.


funcionário
honesto

rei — E os fios, a urdidura, a trama? Vocês viram


um fio entrelaçado a outro fio formando o
mais raro tecido?

ministro e — Sim, Majestade.


funcionário
honesto

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1207 13.01.10 11:56:32


rei — E o que vocês acharam?

(Os dois esboçam falar algo.)

rei — Me digam: o tecido é realmente indes-


critível?

ministro e — Sim, Excelência.


funcionário
honesto

rei — Agora me digam, meus amigos: qual é a


sua cor?

ministro — Azul.

funcionário (ao mesmo tempo que o Ministro) — Amarelo.


honesto
os dois juntos — Verde. (Se entreolham.) Furta-cor.

rei — Me deixem em paz.

(Os dois se escondem atrás do trono.)

rei — Não suporto mais...

rainha — Mais... (A Rainha tenta fazer carinho no Rei.)

rei — Não! Agora não!

rainha — Agora não.

rei — Sem essa roupa não serei nada.

rainha — Nada.

(Aparece atrás do trono o Funcionário, que lhe oferece um lenço.)

funcionário — Majestade, é puro algodão!

(Aparecem cabecinhas pela coxia; conselheiros e camareiras comentam:)

conselheiro 1 — A situação está negra!

1208 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1208 13.01.10 11:56:32


conselheiro 2 — Eu não entendo mais nada!

conselheiro 3 — Está tudo muito diferente!

conselheiro 4 — O povo está insatisfeito, querem saber para


onde está indo o dinheiro dos impostos!

conselheiro 1 — Francamente, eu estou cansado dessa


situação. Esse reino não é mais como anti-
gamente.

conselheiro 2 — Nunca mais tivemos reunião do Conselho.

conselheiro 3 — É verdade, o Rei não quer saber de mais


nada.

conselheiro 4 — É... só quer saber da tal roupa nova!

camareira 1 — O Rei está triste!

camareira 2 — O Rei não quer vestir nenhuma outra roupa.

camareira 3 — O Rei só quer saber da roupa nova e o


povo está danado!

rei — Não consigo suportar mais esperar a


hora de vestir meu traje magnífico, divino!
Sem esse traje nada serei. Nunca serei um
imperador! Estou impaciente. Impaciente.
Muito impaciente. Conselheiros!

(Os conselheiros entram, fazem reverências.)

rei — Queridos conselheiros, estou muito im-


paciente.

todos — Estamos todos impacientes, Majestade!

(O Ministro, o Funcionário Honesto, os quatro conselheiros começam a


andar de cá para lá, de lá para cá.)

camareira (em off) — Chegou a roupa nova do Rei.

1209 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1209 13.01.10 11:56:32


camareira (entra correndo) — Chegou a roupa nova
do Rei! Chegou a nova roupa do Rei!

(Correria, mudam o cenário. Entra o Bobo e vai tocar, quando é inter-


rompido com a entrada precipitada dos dois tecelões, seguidos de quatro
camareiras com quatro caixas.)

todos — Oh!

rei — Depressa! Aproximem-se! Depressinha!

tecelão — Majestade, enfim conseguimos terminar


o nosso trabalho.

tecelã — Nossas mãos estão calejadas.

tecelão — Nossos braços, doloridos...

tecelã — Nossos olhos lacrimejam.

tecelão — Foram horas de penúria.

tecelã — Dias de sofrimento...

tecelão — Noites de insônia!

os dois — Mas enfim...

rei — Enfim!?

rainha — Enfim.

todos — Enfim...

tecelões — Preparem-se para o maior espetáculo ja-


mais visto no mundo da moda.

rei — Meu coração não aguenta mais tamanha


emoção. Mostrem imediatamente minha
roupa!

1210 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1210 13.01.10 11:56:32


tecelão — Aqui está, Excelência... O calção! (Abre a
caixa na frente do Rei, que fica paralisado.)

general — Que beleza!

todos — Que beleza!

(a mesma mímica com o segundo pacote)

tecelã — Eis aqui, meu senhor, a camisa.

conselheiro 2 — Que assombro!

todos — Que assombro!

(a mesma movimentação para o terceiro embrulho)

tecelão — Aqui está o sobretudo!

conselheiro 3 — Deslumbrante!

todos — Deslumbrante.

(a mesma movimentação para o quarto pacote)

tecelã — E... para encerrar: o manto de nosso Rei!


O manto!

todos — Oh! Oh! Oh!

ministro e — Des... des... desbundante!


funcionário
todos (aos gritos) — Desbundante! Desbundante!...
Desbundante! Bundante!

(O Rei se levanta. A Corte continua excitada em slow motion. O Rei vai


à frente da cena.)

rei (à parte) — Isso é terrível. Não consigo


enxergar nada! Serei estúpido? Serei in-
competente para ser rei? Todos são compe-
tentes, menos eu! Que ideia pavorosa. Não

1211 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1211 13.01.10 11:56:32


devo pensar assim. Todos estão vendo, me-
nos eu. (A cena volta ao normal e o Rei volta
ao seu lugar.) Este é o mais lindo traje do
mundo, digno de um rei, digno de mim.

tecelão (sério, respeitoso) — O tecido é mais leve


que teia de aranha, Excelência.

tecelã (séria, respeitosa) — Vossa Excelência não


vai nem mesmo senti-lo no corpo.

rei — Impossível me conter! Vou vesti-lo ago-


ra! Agora mesmo! Camareiro, me vista!

(Atrás do espelho o Rei é vestido.)

tecelão — Os calções estão perfeitos! O corte é im-


pecável!

rei — É deslumbrante!

todos — Deslumbrante!

tecelã — A camisa não tem uma dobra, assentou-


-lhe como uma luva!

rei — Divina!

todos — Divino!

tecelão — O paletó, que beleza! As costuras estão


perfeitas!

rei — Maravilha!

todos — Maravilha!

tecelã — O manto! O manto sublime do Senhor


Rei! (emocionada)

rei — Sublime!

1212 maria clara machado

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1212 13.01.10 11:56:32


todos — Sublime!

homem honesto — Parabéns, nunca em toda minha vida vi


um trabalho como este.

ministro — Vocês são verdadeiros gênios do corte,


da costura e da tecelagem. Parabéns.

tecelã — Isto é porque vocês não viram a roupa


que fizemos para o Grão-vizinho do Impé-
rio Otomano.

todos — Oh!

tecelão — Mas o que mais me emocionou foi quan-


do presenciei o Sheik de Agadir desfilando
em seu camelo e o povo todo chorando lá-
grimas de ouro.

todos — Oh!

rei (Fala sem ser visto.) — Ministro, reúna o


povo imediatamente. Desfilarei pela cida-
de. Desejo que todos chorem lágrimas de
ouro ao me ver passar com este traje ini-
gualável e compreendam como foi bem-
-aplicado o dinheiro dos impostos! Já!

1213 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1213 13.01.10 11:56:32


8ª cena

Cidade. Toca música solene: pompas e circunstâncias. O povo espera ansio-


so, entra o Bobo. O Rei e a Rainha desfilam em sua biga, de guarda-chuva.
Ministro e o Funcionário andam atrás.
O povo, esfuziante, aplaude a nova roupa do Rei. Comentários.

menina (ao passar o Rei) — O Rei está nu! Mamãe!


Olha! Olha, mamãe!

o pai e a mãe — É mesmo! Ele está nu! A menina tem


razão!

mulher 2 — Deus fala pela boca das crianças. O Rei


está nu! Olhem! Olhem! O Rei está nu!
Olhem! Olhem! O Rei está nu! Olhem!
Olhem!

(Todos do cortejo se entreolham sem graça.)

rei — Meu Deus! Que vergonha! Que vergo-


nha! Eu estou nu, nu!

rainha — Nu.

rei — É verdade. A criança disse certo.

rainha — Disse certo.

(O Rei olha para todos, ergue a cabeça, endireita o corpo, respira fundo e,
cheio de pose, recomeça a andar, dizendo:)

rei — Vou ter de fingir até o fim. Manter a dig-


nidade diante do meu povo. Não vou dar o
braço a torcer.

todo o cortejo — Temos que fingir até o fim. Manteremos a


dignidade. Não vamos dar o braço a torcer.

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1214 13.01.10 11:56:32


(A procissão continua dizendo isto e andando enquanto o povo ri e aponta
o cortejo. O povo canta e dança.)

povo — O Rei está nu,


O Rei está nu,
Nuzinho! Nuzinho!

A verdade sempre aparece,


As coisas são como são,
A criança tem razão.
As coisas são o que vemos,
A criança tem razão.
Incompetentes em sua função,
O Rei, a Rainha e cortesãos.
A criança tem razão.

(Em cima do instrumental e da dança o Bobo fala:)

bobo — O Rei caiu no golpe dos espertos tecelões,


Que agora estão longe gastando seus milhões.
Devem ter ido por esse mundo afora
Enganar outros tolos sem demora.
Pois na vida há muita gente como a dessa
[cidade
Que mais importância dá a futilidade.
O Rei teve a lição merecida,
Foi humilhado e não teve outra saída:
Aprender a realmente governar
E para o seu povo olhar.
Aqui me despeço, humilde e sagaz,
Pois sei que o teatro de tudo é capaz.
Um trapaceiro pode vencer,
Um rei pode aprender,
O Bobo pode sorrir
E a plateia se divertir.

(Voltam o canto e a dança.)

FIM

1215 teatro infantil completo

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1215 13.01.10 11:56:32


Editora responsável
Izabel Aleixo

Produção editorial
Daniele Cajueiro
Ana Carla Sousa
Phellipe Marcel

Revisão
Anna Carla Ferreira
Fernanda Cosenza
Fernanda Machtyngier
Isabela Fraga
Marília Lamas
Rachel Rimas
Ricardo Freitas
Rosana Moraes
Thaís de Araújo
Thiago Escobar

CAPA
Leandro B. Liporage

FOTO DE CAPA
Tablado

Diagramação
Filigrana

Este livro foi impresso no Rio de Janeiro, em janeiro de 2010,


pela Singular Editora e Gráfica, para a Editora Nova Fronteira.
A fonte usada no miolo é Whitman, corpo 10/12.
O papel do miolo é offset 63g/m2, e o da capa é cartão 250g/m2.

MCM_Infantil_PNBE_V04.indd 1216 13.01.10 11:56:32

Você também pode gostar