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O estranho procedimento de dona Dolores

Luis Fernando Veríssimo.

Família jantando (Mãe, pai, filho) ambos felizes como em um comercial de margarina.
Som de fundo, criando a atmosfera da cena.
Mãe: (Olhando para o público) Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu
sirvo arroz Camil. Rende mais e é mais gostoso.
O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando.
Pai: O que é isso, Dolores?
Filha: Tá doida, mãe?
Dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. levantou-se da mesa, e vai nos
bastidores. Pai e filho se entreolharam.
Filho: Pai, a mamãe tá bem?
Pai: Estou preocupado. Desde que ela participou da plateia do Silvio Santos, ela voltou
diferente.
A mãe voltou dos bastidores carregando uma bandeja com taças de gelatina.
Mãe: Adivinhem o que tem de sobremesa? Acertaram! Gelatina Doutor Oetker, uma
festa de sensações. Agora com os novos sabores pitomba e macaxeira.
O pai e o filho começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentada à mesa,
dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:
Mãe: Bote esta alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Doutor Oetker. Dá gosto
comer.
A Mãe, pega uma garrafa de azeite na mesa e faz o seguinte comentário;

Mãe: A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso, azeito
do Gallo. Mais virgem do que nunca...
Pai: Dolores, mas oque é isso?
Sem olhar par o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.
Mãe: Eles vão gostar. Agora com novos sabores; extrato de goiaba e jambú.

O Pai, vai pegar uma cerveja no cooler, e a Mãe faz uma propaganda.
Mãe: Para você pau d’agua, chegou o novo mini cooler corote, agora com mais espaço
e de fácil manuseio. Mini cooler corote, do bar para a sua vida.
Pai: Você enlouqueceu de vez Dolores? Pare com isso.
Mas dona Dolores não ouvia, sai de cena. Pai e filho conversam.
Filho Você viu isso?
Pai: Não dá mais, vamos chamar Drauzio Varella.
Filho: É uma fase. Passa logo. É melhor nem chamar a atenção dela..
Volta Dona Dolores, fazendo uma propaganda.
Mãe: Pra você que quer ter a sensação da Disney em suas mãos, agora você pode, com
as novas pias temáticas do Mickey, da 25 de março direto para casa. Você pode usar
para amolecer as cutículas, comer miojo, dá banho no cachorro, ou só ficar olhando.
Pias temáticas Disney – estimulando sua imaginação.
Meu amigo e amiga de casa, não aguenta mais ficar sozinho, alugue hoje mesmo o seu
marido de aluguel, esse modelo não ronca, lava louça e não reclama de nada.
Pai: Não perca essa oportunidade e leve também a sua esposa de aluguel, não
reclama do seu futebol, da sua cervejinha diária e nem da toalha molhada largada na
cama.
Filho: Pra você que não aguenta mais sua família desestruturada, compre já sua
balinha de gengibre e ganhe uma caixinha de cloroquina, tá ok?
Criar um tema final (música)

PAPOS
Um repórter em entrevista na rua. Falando sobre o COVID-19 (vários atores andando
no palco, um é parado) O câmera(alguém da plateia) segue o tempo inteiro.
Repórter: Oi, tudo bem? Você poderia nos dar uma entrevista em como o COVID
afetou sua vida?
Entrevistado: claro. Me disseram...
Repórter: Disseram-me
Entrevistado: Hein?
Repórter: O correto é ‘disseram-me’. Não ‘me disseram’.
Entrevistado: Eu falo como quero. E ti digo mais... Ou ‘digo-te’?
Repórter: O quê?
Entrevistado: Digo-te que você...
Repórter: O ‘te’ e o ‘você’ não combinam.
Entrevistado: Lhe digo?
Repórter: Também não. O que você ia me dizer?
Entrevistado: Que você tá sendo grosseiro, pedante, chato e antiprofissional. E que
vou ti partir a cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?
Repórter: Partir-te a cara.
Entrevistado: Pois é. Partir-la hei de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.
Repórter: É para o seu bem cidadão.
Entrevistado: Dispenso as suas correções. Vê se esquece- me. Falo como bem
entender. Mas uma correção e eu...
Repórter: O quê?
Entrevistado: O mato.
Repórter: Que mato?
Entrevistado: Mato-o. Mato-lhe. Matar- lhe- ei- te. Ouviu bem?
Repórter: Eu só estava querendo...
Entrevistado: Pois esqueça- o e pára- te. Pronome no lugar certo é para elitismo.
Repórter: Se você prefere falar errado...
Entrevistado: Falo como todo mundo fala. O importante é me entenderem. Ou
entenderem-me?
Repórter: No caso... Não sei.
Entrevistado: Ah, não sabes? Não o sabes? Sabes- lo não?
Repórter: Esquece. Vamos falar do efeito do COVID-19...
Entrevistado: Não. Como ‘esquece’ ou ‘esqueça’? Ilumine- me. Me diga. Ensines-lo me,
Vamos.
Repórter: Depende.
Entrevistado: Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar- me- lo- ias se o soubesse, mas
não sabes-o.
Repórter: Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser, mas vamos seguir a
entrevista.
Entrevistado: Agradeço-lhe a permissão para falar errado que me dás. Mas não posso
mais dizer-lo-te o que dizer-teeia.
Repórter: Por quê?
Entrevistado: Porque, como todo esse papo, esqueci-lo.” Isso que você tá fazendo é
um absurdo.
Repórter: E você é muito mal educado, só queria você me desse uma entrevista...
Entrevistado: Olha aqui, seu jornalista de meia tigela.
Repórter: Me respeita você seu boçal...
Os dois começam a trocar ofensas e tapas...
Repórter: Me ajuda aqui (Câmera). Socorroooooo
Luz vão apagando.

*Brincadeira

Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:

- Eu sei de tudo.

Depois de um silêncio, o outro disse:

- Como é que você soube?

- Não interessa. Sei de tudo.

- Me faz um favor. Não espalha.

- Vou pensar.

- Por amor de Deus.

- Está bem. Mas olhe lá, hein?


Descobriu que tinha poder sobre as pessoas.

- Sei de tudo.

- Co- como?

- Sei de tudo.

- Tudo o quê?

- Você sabe.

- Mas é impossível. Como é que você descobriu?

A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:

- Alguém mais sabe?

Outras se tornavam agressivas:

- Está bem, você sabe. E daí?

- Daí nada. Só queria que você soubesse que eu sei.

- Se você contar para alguém, eu...

- Depende de você.

- De mim, como?
- Se você andar na linha, eu não conto.

- Certo.

Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.

- Eu sei de tudo.

- Tudo o quê?

- Você sabe.

- Não sei. O que é que você sabe?

- Não se faz de inocente.

- Mas eu realmente não sei.

- Vem com essa.

- Você não sabe de nada.

- Ah, quer dizer que existe alguma coisa pra saber, mas eu é que não sei o que é?

- Não existe nada.

- Olha que eu vou espalhar...


- Pode espalhar que é mentira.

- Como é que você sabe o que eu vou espalhar?

- Qualquer coisa que você espalhar será mentira.

- Está bem. Vou espalhar.

Mas dali a pouco veio um telefonema.

- Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre nada daquilo.

- Aquilo o quê?

- Você sabe.

Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e


sussurrava:

- Você contou para alguém?

- Ainda não.

- Puxa. Obrigado.

Com o tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por um
amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.

- Por que eu? – quis saber.


- A posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei você.

- Por quê?

- Pela sua descrição.

Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a boca para
falar de ninguém. Além de bem-informado, um gentleman. Até que recebeu um
telefonema. Uma voz misteriosa que disse:

- Sei de tudo.

- Co- como?

- Sei de tudo.

- Tudo o quê?

- Você sabe.

Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu


desaparecimento repentino. Investigara. O que ele estaria tramando? Finalmente foi
descoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que a voz que uma noite vieram
muitos carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos.
Os vizinhos contam que mais se ouvia era a dele, gritando:

- Era brincadeira! Era brincadeira!

Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas as pessoas
que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.

Sabia demais.
(Luis Fernando Veríssimo. Comédias da vida privada. Porto Alegre: L&PM, 1995. P. 189-
91.)

O casamento
Apresentador: Boa noite pessoal, no quadro, “quem casa quer casa” de hoje, temos
uma história no mínimo interessante. Um casal nada convencional da freguesia do Ó,
resolveram se casar e fazer uma festa de casamento fora do comum. Vamos conferir
essa história.
Filha: Eu quero ter um casamento tradicional, papai.
Pai: Sim, minha filha.
Filha: Exatamente como você!
Pai: Ótimo.
Filha: Que música tocaram no casamento de vocês?
Pai: Não tenho certeza, mas acho que era Rick e Renner. Ou Amado Batista, é o
daquela música “Secretária, que trabalha o dia inteiro comigo
Estou correndo um grande perigo
De ir parar no tribunal” Não, era o Rick e Renner mesmo.

Filha: Amado quem? Acho que não conheço.


Pai: Ah minha filha. Era o que o estava na moda no meu tempo.
Filha: O nosso não vai ter essas coisas bregas.
Pai: Ah, não?
Filha: Não. Um amigo do Varum tem um amigo DJ, ele vai tocar na cerimônia. O Padre
Tuco já deixou. Só que esse tal de Amado, não sei,não...
Pai: É, acho que com o DJ não fica bem...
Filha: Quem sabe alguma coisa da Marilia Mendonça.
Pai: Quem?
Filha: A Marilia Mendonça, aquela que canta a música “Iêê
Infiel
Eu quero ver você morar num motel
Estou te expulsando do meu coração
Assuma as consequências dessa traição”

Pai: Nunca ouvi isso.


Filha: Como não pai? Fico cantando as músicas dela toda hora.
Pai: Ah, certo. Então Marília Mendonça remix.
Filha: Acho que vai ser top!
Pai: Só o DJ ou...
Filha: Não. Claro que precisa ter uma guitarra elétrica, um baixo elétrico...
Pai: Claro. Quer dizer, tudo bem tradicional...
Filha: Isso. Vou ver mais alguma coisa com o Varum...
Filha sai de cena, entra a mãe.
Pai: (dramático) Rosana eu sei que não é da minha conta. Afinal, eu sou só o pai da
noiva. Um nada. Na recepção vão me confundir com um garçom. Se ainda me derem
gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que chamam o nosso futuro genro
de Varum?
Mãe: Eu sabia...
Pai: O quê?
Mãe: Eu sabia que você já ia começar a implicar com ele.
Pai: Eu não estou implicando. Eu gosto dele. Eu até o beijaria na testa se ele algum dia
tirasse aquele capacete de motoqueiro.
Mãe: Eles nem casaram e você já está implicando.
Pai: Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça. Pelo menos eu
imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do capacete.
Mãe: É um bom rapaz.
Pai: E eu não sei? Há quase um ano que ele frequenta a nossa casa diariamente. É
como se fosse um filho. Eu às vezes fico esperando que ele me peça uma mesada. Um
belo rapaz. Mas por que Varum?
Mãe: E o apelido e pronto.
Pai: Ah, então é isso. Você explicou tudo. Agora você iluminou minha mente, muito
obrigado.
Mãe: Quanto mais se aproxima o dia do casamento, mais insuportável você fica.
Pai: Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um inseto. Me pisa. Eu mereço.
Mãe: Deixa de ser paranoico e vai dormir Osvaldo.
Mãe sai.
Varum: Aí véi!
Pai: Ôi, Varum, como vai? A sua noiva está se arrumando. Ela já desce. Senta aí um
pouquinho. Tira o capacete...
Varum: Essa novinha...
Pai: Vocês vão ao cinema?
Varum: Ela não te disse? Vamos no bailão.
Pai: Baile? Ainda existe essas coisas?
Varum: É. Qual foi? É baile da 17 lá na quebrada.
Pai: Não. E que... Sei lá.
Varum: Já sei o que você tá pensando, cara. Tô ligado parça.
Pai: É! Você sabe como é...
Varum: Saquei. Você está pensando que só nós dois bem loco, no meio do baile, pode
pintar um lance.
Pai: No mínimo isso. Um lance. Até dois.
Varum: Mas qualé, tio. Não tem disso não. E aí, gata!
Filha: Oi, Varum. O que é que você e papai estão conversando?
Varum: Não, o véi aí tá tretando que nós vai fazer besteira. Eu já disse que não tem
disso.
Filha: Ô, papai. Não tem perigo nenhum. E qualquer coisa o Varum me defende. Eu sou
Luísa e ele o Vitão. Vamos?
Varum: Vamlá?
Pai: Mas... Vocês vão de moto?
Varum: Vá-rum, vá-rum.
Mãe volta...
Mãe: Você não vai pra cama Osvaldo?
Pai: Descobri por que ele se chama Varum.
Mãe: O quê? Você novamente com essa conversa?
Pai: Disse que descobri por que ele se chama Varum.
Mãe: Você ficou acordado por causa disso?
Pai: Você estava dormindo?
Mãe: É o que eu costumo fazer à meia noite, todos os dias. Você não dormiu?
Pai: Ainda não. Sabe como é que ele a chama? Gata. Por um estranho processo de
degeneração genética, eu sou pai de uma gata. O Varum e Gata, a dupla dinâmica, está
neste momento, no baile da 17
Mãe: Então é isso que está preocupando você?
Pai: E não é para preocupar? Você também não devia estar dormindo. A gata é sua
também.
Mãe: Mas não tem perigo nenhum!
Pai: Como, não tem perigo? Nesses lugares tem tráfico de drogas.
Mãe: O que é que pode acontecer?
Pai: Se você já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo.
Mãe: Não tem perigo nenhum. O máximo que pode acontecer é eu virar vovó.
Pai: Ou você está falando em linguagem figurada ou eu é que estou ficando louco.
Mãe: Vai dormir Osvaldo.
Pai: Gata. Minha própria filha...
Mãe: Você também tinha um apelido pra mim, durante o nosso noivado.
Pai: Eu prefiro não ouvir.
Mãe: Você me chamava de Formosura. Pensando bem, você também tinha um
apelido.
Pai: Por favor. Reminiscências não. Comi faz pouco.
Mãe: Sr. Calhambeque. Você não se lembra? Você e o seu Calhambeque envenenado.
Pai: Tão envenenado que morreu. Um dia levei num mecânico e disse que a bateria
estava ruim. Ele disse que a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser
trocado.
Mãe: Viu só? E você se queixa do Varum. Sr. Calhambeque!
Pai: Mas eu nunca levei você para nenhum baile no meu Calhambeque.
Mãe: Não levou porque meu pai matava você.
Pai: Hmmmm.
Mãe: “Hmmmm” o quê?
Pai: Você me deu uma ideia. Assassinato...
Mãe: Não seja bobo.
Pai: Um golpe bem aplicado... Na cabeça não porque ela está sempre bem protegida.
Sim. Sr. Calhambeque ataca outra vez...
Mãe: O que você tem é ciúme. Nisso tudo, tem uma coisa que me preocupa acima de
tudo que é o que me tira o sono.
Pai: O quê?
Mãe: Será que ele tira o capacete para dormir?
Pai: É exatamente isso que eu penso, já pensou se ele é um foragido da polícia?
Mãe: Nunca pensei por esse lado. Osvaldo acho que você tem razão. Ele tem até nome
falso.
Pai: Vou atrás deles. Isso já foi longe demais. Cadê a chave do meu Calhambeque?
Mãe: Vou pegar a chave e vamos.
A mãe volta com as chaves e um pedaço de madeira.
Mãe: Formosura e Sr. Calhambeque atacam outra vez...
Saem. Fim.

Detalhes

Luis Fernando Veríssimo.

O velho porteiro do palácio chega em casa, trêmulo. Como faz sempre que tem um
baile no palácio, sua mulher o esperava com café reforçado. Mas desta vez ele nem
olha para a xícara fumegante, o bolo, a manteiga, as geléias. Vai direto à aguardente.
Atira-se na sua poltrona perto do fogão e toma um gole da bebida, pelo gargalo.

__ Helmuth, o que foi?

__ Espera, Helga. Deixa eu me controlar primeiro.

Toma outro gole de aguardente.

__ Conta, homem! O que houve com você? Aconteceu alguma coisa no baile?

__ Co-começou tudo bem. As pessoas chegando, todo mundo de gala, todos com
convite, tudo direitinho. Sempre tem, claro, o filhinho de papai sem convite que quer
me levar na conversa, mas que estou acostumado. Comigo não tem conversa. De
repente, chega a maior carruagem que eu já vi. E puxado por três parelhas de cavalos
brancos. Cavalões! Elefantes! De dentro da carruagem salta uma dona. Sozinha. Uma
beleza. Eu me preparo para barrar a entrada dela porque mulher desacompanhada
não entra em baile do palácio. Mas essa dona é tão bonita, tão, sei lá. Radiante, que eu
não digo nada e deixo ela entrar.

__ Bom, Helmuth, até ai...

__ Espera. O baile continua. Tudo normal. Às vezes rola um bêbado pela escadaria,
mas nada demais. E então bata a meia-noite. Há um rebuliço na porta do palácio. Olho
para trás e vejo uma mulher maltrapilha que desce pela escadaria, correndo. Ela perde
um sapato. E o príncipe atrás dela.

__ O príncipe?

__ Ele mesmo. E gritando para eu segurar a esfarrapada. “Segura! Segura!” Me


preparo para segurá-la, quando ouço uma espécie de “vum” acompanhado de um
clarão. Me viro e ...

__ E o que, meu Deus?

O porteiro esvazia a garrafa comum último gole.

__ Você não vai acreditar.

__ Conta!

__ Atal carruagem. A de ouro. Tinha se transformado numa abóbora.

__ Num o quê?!

__ Eu disse que você não ia acreditar.


__ Uma abóbora?

__ E os cavalos em ratos.

__ Helmuth...

__ Não tem mais aguardente?

__ Acho que você já bebeu demais por hoje.

__ Juro que não bebi nada!

__ Esse trabalho no palácio está acabando com você, Helmuth. Pede para ser
transferido para o almoxerifado.

Luis Fernando Veríssimo

O nariz

Era um dentista respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase
na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes, mas de uma
sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz
postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um
daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sobrancelhas e bigodes que
fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava
imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa de almoço – sempre almoçava em casa –
com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.

- O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.

- Isto o quê?
- Esse nariz.

- Ah, vi numa vitrina, entrei e comprei.

- Logo você, papai...

Depois do almoço ele foi recostar-se no sofá da sala como fazia todos os dias. A mulher
impacientou-se.

- Tire esse negócio.

- Por quê?

- Brincadeira tem hora.

- Mas isto não é brincadeira.

Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e
dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou:

- Aonde é que você vai?

- Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.

- Mas com esse nariz?

- Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros
sem lentes. – Se fosseuma gravata nova, você não diria nada. Só porque é um nariz...
- Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.

Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas (“Logo


o senhor, doutor...”), fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e
saíram do consultório com dúvidas.

- Ele enlouqueceu?

- Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. –


Nunca vi “ele” assim.

Naquela noite, ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois,
vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.

- Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher.

Vou. Aliás, não vou mais tirar este nariz.

- Mas, por quê?

- Porque não!

Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para o nariz de borracha. De
madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava
acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo
trocado por um nariz postiço.

- Papai...

- Sim, minha filha.

- Podemos conversar?
- Claro que podemos.

- É sobre esse seu nariz...

- O meu nariz, outra vez? Mas vocês só pensam nisso?

- Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra, um homem
como você resolve andarde nariz postiço e não quer que ninguém note?

- O nariz é meu e vou continuar a usar.

- Mas por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço
do prédio? Eu não possomais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem
mais vida social.

- Não tem porque não quer...

- Como é que ela vai à rua com um homem de nariz postiço?

- Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o
mesmo homem. Um nariz deborracha não faz nenhuma diferença. Se não faz
nenhuma diferença, por que não usar?

- Mas, mas...

- Minha filha.

- Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!
A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que
trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um
homem que usava nariz postiço. Evitava

Aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais


chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar
um psiquiatra.

- Você vai concordar – disse o psiquiatra depois de concluir que não havia nada
de errado com ele – queseu comportamento é um pouco estranho...

- Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo.


Noventa e dois por centodo meu corpo continua o que era antes. Não mudei a
maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar. Continuo sendo um ótimo
dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do fluminense, tudo como
antes. Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz
de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?

- É... – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão...

O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou.
Continua a usar o nariz postiço. Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora
é uma questão de princípios.

Veríssimo, Luís Fernando. O nariz e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1994.p.73-74.
Coleção para gostar de ler.

O ATOR

O Homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os filhos,


alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para jantar e dirige-se
para o seu quarto. Vai tomar banho, trocar de roupa e preparar-se para algumas horas
de sossego na frente da televisão antes de dormir. Quando está abrindo a porta do seu
quarto ouve uma voz que grita:

- Corta!

O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é sua casa, é um cenário.
Vem alguém e tira o jornal e a pasta das suas mãos. Uma mulher vem ver se a sua
maquiagem está bem e põe um pouco de pó em seu nariz. Aproxima-se um homem
com um script na mão dizendo que ele errou uma das falas na hora de beijar as
crianças.

- O que é isso? – pergunta o homem. – Quem são vocês? O que estão fazendo dentro
da minha casa? Que luzes são essas?

O que, enlouqueceu? – pergunta o diretor. – Vamos ter que repetir a cena. Eu sei que
você está cansado, mas...

Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar meu pijama. Saiam da
minha casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos! Saiam!

O diretor fica de boca aberta. Toda a equipe fica em silêncio, olhando para o ator.
Finalmente o diretor levanta a mão e diz:

- Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um pouquinho e ...

- Estava coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha... A minha família! O
que vocês fizeram comela? Minha mulher! Os meus filhos!

O homem sai correndo entre os fios e os refletores, à procura da família. O diretor e


um assistente tentam segurá-lo. E, então, ouve-se uma voz que grita:

- Corta!
Aproxima-se outro homem com um script na mão. O homem descobre que o cenário,
na verdade, é um cenário. O homem com um script na mão diz:

- Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.

- Que- quem é você?

- Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem que
transmitir melhor odesespero do personagem. Ele chega em casa e descobre que sua
casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no meio de um filme. Não
entende nada.

- Não entendo...

- Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não.

- Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde está minha
mulher? Os meus filhos? Aminha casa?

- Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar. Volte para sua marca.
Atenção, lues...

- Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou eu! Ninguém me
dirige. Eu estou na minhaprópria casa, dizendo as minhas próprias falas...

- Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está bom.

- Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é filme. E
mais, se é um filme, é umaporcaria de filme. Isto é simbolismo ultrapassado. Essa de
que o mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que
atores... Porcaria!

- Boa, boa. Está convincente. Mas espere começar a filmar. Atenção...


O homem agarra o diretor pela frente da camisa.

- Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha casa.

O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouve-se uma voz que grita:

- Corta!

Veríssimo, Luis Fernando. Comédias da vida privada: crônicas escolhidas. 19. Ed. Porto
Alegre: L&PM, 1996. P. 194-95.

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