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Comédias da vida privada

Adaptado da obra homônima de


Luís Fernando Veríssimo.

Toda a ação se passa num edifício. Portaria, elevador, apartamentos, aéreas de circulação. O centro do
palco é reservado ao cenário do apartamento, estecenário se mantém mesmo quando os apartamentos
mudam.

Prólogo
Elevador e portaria.

Os personagens vão entrando um a um no elevador. As crianças vão para a escola,os adultos para o
trabalho,os velhinhos passear. Interagem. O elevador chega no térreo e todos saem. Comprimentos com o
porteiro. Uma secretária do lar (paquera do porteiro) está no térreo esperando para subir. Ela encontra
com a patroa que estava descendo no elevador.
Patroa – Bom dia, Janaína.
Janaína – Bom dia, Da Anna.
Patroa – Janaína, não esquece que hoje é a festa do Paulinho. Tem que enrolar os brigadeiros e encher os
balões.
Janaína – Pode deixar.
Patroa - E hoje é dia de feira. Precisa comprar ovos.
Janaína – Sim senhora.
Patroa – Tchau.
Janaína – Tchau.
(Janaína sobe no elevador)

Síndica - Bom dia, Sr.João.


Porteiro – Bom dia, Da Santinha.
Síndica – Vim fazer minha inspeção diária.
Porteiro – A Sra, como sempre, pontual.
Síndica – É que, o senhor sabe, como síndica eu não posso deixar correr frouxo.
Porteiro – Claro, claro...
Síndica – E então, relatório do prédio.
Porteiro – Movimentação padrão no edifício durante a madrugada.
Síndica – Nenhuma confusão?
Porteiro – O casal do 706, do Raimundão, teve uma briguinha, mas nada de mais.
Síndica – Sei... E, agora, pela manhã?
Porteiro – Quase todo mundo já saiu para o trabalho. As crianças já foram para a escola. O faxineiro disse
que vai se atrasar pro turno dele. Teve que ir com a mãe pegar o benefício do INSS. O Sr. João, do 407, não
foi trabalhar. Parece que está com dengue.
Síndica – Nada de água parada, heim, S.João.
Porteiro – Pode deixar. E a lâmpada do 2º andar precisa trocar, Da Santinha. O casal de idosos do 201, Sr.
Dedé e Da Aurora, já reclamaram.
Síndica – Mas isso é serviço seu.
Porteiro – Mas eu preciso da verba pra comprar a lâmpada.

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Síndica – O caixa está zerado. Outra coisa, quero que o Sr. esteja em trajes oficiais hoje. Vai ter uma festinha
na casa da Da Anna e quero essa portaria nos trinques. Incluindo o Sr.
Porteiro – Pode deixar. Ih..., quase esqueci.
Síndica – O que?
Porteiro – Sabe o casal do 507, os recém casados? A moça saiu daqui ontem de noite com mala e tudo.
Pediu que eu guardasse a correspondência dela que depois vinha buscar.
Síndica – (animada) Isso aqui parece até novela, heim, Sr.João? Viu o capítulo de ontem? A mocinha pegou
o noivo na cama com a irmã! Que capítulo!
Porteiro – A Sra. me desculpe, mas é que eu nem vejo televisão. E nem precisa, né. Trabalhando no meu
posto, minha distração é ao vivo mesmo. (ri)
Síndica – Sr. João! (repreendendo)
Porteiro – Estou só cumprindo minha obrigação. Como é que a Sra. acha que eu colho informações para o
relatório matinal?
Síndica – (interessada) Então me diga: é verdade que aquele rapaz do sexto andar está paquerando a vizinha
da frente?
Porteiro – Achei que a Sra. não se interessasse por essas coisas...
Síndica – Tudo pelo bem do prédio, Sr.João. É verdade?
Porteiro – É sim. Mas ele é um rapaz muito respeitador.
Síndica – Ai, que maravilha! Adoro esse clima de romance!!
Porteiro – Então se prepare.
Síndica – Por que?
Porteiro – Porque já já os dois pombinho vão chegar. Eles sempre se encontram por acaso aqui na lixeira do
prédio.
(Entra o rapaz do sexto andar. Cumprimenta os dois e se dirige à lixeira.)
Porteiro – Não disse.
(Entra a moça do sexto andar. Cumprimenta os dois e se dirige à lixeira.)
Porteiro – Num disse. (para o casal) Fiquem a vontade. Nós já estávamos de saída. (o potreiro precisa
arrastar a síndica que não quer sair.)

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1o Quadro - Lixo
Na área de serviço.
Dois personagens se encontram, cada um com seus pacotes de lixo.

Ela - Bom dia.


Ele - Bom dia.
Ela – Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
Ele – O meu quê?
Ela – O seu lixo.
Ele – Ah...
Ela – Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
Ele – Na verdade sou só eu.
Ela – Mmmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
Ele – É que tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
Ela – Entendo.
Ele – A senhora também...
Ela – Me chame de você.
Ele – Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo.
Champignons, coisas assim...
Ela – É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra...
Ele – A senhora... Você não tem família?
Ela – Tenho, mas não aqui.
Ele – No Espírito Santo.
Ela – Como é que você sabe?
Ele – Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
Ela – É. Mamãe escreve todas as semanas.
Ele – Ela é professora?
Ela – Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
Ele – Pela letra do envelope. Achei que era letra de professora.
Ela – O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
Ele – Pois é.
Ela – No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
Ele – É.
Ela – Más notícias?
Ele – É
Ela – Foi por isso que você recomeçou a fumar?
Ele – Como é que você sabe?
Ela – De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
Ele – É verdade, mas consegui parar outra vez.
Ela – Eu, graças a Deus, nunca fumei.
Ele – Eu sei, mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo.
Ela – Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
Ele – Você brigou como namorado. Certo?
Ela – Isso você também descobriu no lixo?
Ele – Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
Ela – É chorei bastante. Mas já passou. (pausa) Vejo muitas revistas de palavras cruzadas no seu lixo.
Ele – É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
Ela – Namorada?

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Ele – Não.
Ela – Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
Ele – Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
Ela – Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
Ele – Você já está analisando o meu lixo!
Ela – Não posso negar que o seu lixo me interessou.
Ele – Engraçado. Quando examinei o seu lixo,decidi que gostaria de conhecê-la.Acho que foi a poesia.
Ela – Não! Você viu meus poemas?
Ele – Vi e gostei muito.
Ela – Mas são muito ruins!
Ele – Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado! Eles só estavam dobrados.
Ela – Se eu soubesse que você ia ler...
Ele – Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é
propriedade dela?
Ela – Acho que não. Lixo é domínio público.
Ele – Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se
integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
Ela – Bem, ai você já está indo fundo de mais no lixo. Acho que...
Ele – Ontem, no seu lixo...
Ela – O quê?
Ele – Me enganei, ou eram cascas de camarão?
Ela – Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
Ele – Eu adoro camarão.
Ela – Descasquei, mas ainda não comi.Quem sabe a gente pode...
Ele – Jantar juntos?
Ela – É...
Ele – Não quero dar trabalho.
Ela – Trabalho nenhum.
Ele – Vai sujar a sua cozinha.
Ela – Nada. Num estante se limpa tudo e põe os restos fora.
Ele – No seu lixo ou no meu?
(saem)

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2o Quadro - Mendoncinha
Apartamento
Uma moça toca a campainha e o rapaz vai atender.
Eles se cumprimentam e sentam. Ela está bastante nervosa.

Ele - Tente relaxar...


Ela - Desculpe. É que tem uma parte de mim que... entende? Fica de fora, distanciada, assistindo a tudo.
Uma parte que não consegue se entregar...
Ele - Eu entendo.
Ela – É como se tivesse uma terceira pessoa aqui.
Ele - Certo. É o seu superego. O meu também está aqui.
Ela - O seu também?
Ele – Claro, todo mundo tem um. O negócio é aprender a conviver com ele.
Ela - Se ele ao menos fechasse os olhos!
Ele - Calma. Eu sei como você se sente. Nestas ocasiões, sempre imagino que a minha mãe está presente.
Ela - A sua mãe?!
Ele – É. Ela também está conosco aqui.
Ela - Você se analisou?
Ele - Estou me analisando. Pensando bem, ele também está qui.
Ela - Quem?
Ele - O meu analista. Meu Deus, ao lado da minha mãe!
Ela - Meu pai está aqui...
Ele - Seu pai também?
Ela - Meu superego e meu pai.
Ele - Mas sexo é uma coisa tão natural!
Ela - Diz isso pra eles.
Ele - Na verdade, nem nós somos só nós. Eu sou o que eu penso que sou, sou como você me vê...
Ela - E a gente também é o que pensa que é para os outros.
Ele - Quer dizer, cada um de nós é na verdade três.
Ela – Quatro, contando com o que a gente é mesmo.

Ele – Mas o que a gente é mesmo?


Ela – Sei lá. Eu...
Ele – Espere um pouco, vamos recapitular. Do seu lado tem você, e ai já são no mínimo três pessoas, seu pai
e o seu superego.
Ela - Do seu lado: vocês três, a mãe de vocês e o analista.
Ele - Mais ninguém?
Ela - O Mendoncinha.
Ele - Quem?!!
Ela - Meu primeiro namorado, foi com ele que...
Ele - Tira o Mendoncinha daqui!!
Ela - Mas...
Ele - Ou sai o Mendoncinha ou saímos eu e a minha turma!!
(Ele sai reclamando e ela sai atrás dele.)

Narrador - Enquanto isso, no 302...

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3o Quadro – Convenções
Apartamento.
Mirtes que se dirige ao apartamento de Lurdes.
Bate na porte a Lurdes vai atender. Mirtes tem algo sério a contar. Clima de suspense.

Mirtes - Viram teu marido entrando num motel. (Lurdes se espanta, arregala os olhos e abre a boca)
Lurdes - Quando? Onde? Com quem?
Mirtes - Ontem. No Discretissimu's.
Lurdes - Com quem? Com quem?
Mirtes - Isso eu não sei.
Lurdes - Mas como? Era alta! Magra? Loira! Puxava de uma perna?
Mirtes - Não sei Lu.
Lurdes - O Carlos Alberto me paga. Ah! Me paga!
(Congela a ação.)
Mirtes narra: Quando Carlos Alberto chegou em casa, Lurdes anunciou que ia deixá-lo. E contou por quê.
(Mirtes sai da casa de Lurdes e cruza com Carlos Alberto chegando do trabalho, interação de olhares.)
Carlos - Mas que estória é essa Lurdes? Você sabe quem era a mulher que estava comigo no motel. Era
você.
Lurdes - Pois é. Maldita hora em que eu aceitei ir. Discretissimu's! Toda a cidade ficou sabendo. Ainda bem
que não me identificaram.
Carlos - Pois então?
Lurdes - Pois então que eu tenho que deixar você. Não vê, é o que todas as minhas amigas esperam que eu
faça. Não sou mulher de ser enganada pelo marido e não reagir.
Carlos - Mas você não foi enganada. Quem estava comigo era você!
Lurdes - Mas elas não sabem disso!
Carlos - Eu não acredito, Lurdes. Você vai desmanchar nosso casamento por isso? Por uma convenção?
Lurdes - Vou.
(Toca o telefone. Carlos atende e tem pequena conversa.)
Carlos - Era o Dico.
Lurdes - O que ele queria?
Carlos - Fez mil rodeios, mas acabou me contando. Disse que, como meu amigo, tinha que contar.
Lurdes - O que?
Carlos - Você foi vista saindo do hotel Discretissimu's ontem, com um homem.
Lurdes - O homem era você.
Carlos - Eu sei, mas eu não fui identificado.
Lurdes - Você não disse que era você!
Carlos - O quê? Para que os meus amigos soubessem que eu vou ao motel com a minha própria mulher?
Lurdes - E então?
Carlos - Desculpe Lurdes, mas...
Lurdes - O quê?
Carlos - (tirando o cinto) Vou ter que te dar uma lição.
(Bate com o cinto no chão. Ela faz gritos, como se apanhasse. Ao fim os dois se abraçam e saem felizes.)

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4º Quadro – Vida em manchetes
Entram no elevador duas mulheres. Uma delas tem o aspecto muito neurótico.

Vizinha - Você soube do barraco no apartamento do Carlos e da Lurdes?


Neurótica – Parece que ela foi vista saindo de um motel...
Vizinha - A briga foi feia. Dizem que ele bateu nela com o cinto e tudo.
Neurótica – Nossa!
(Pausa)
Vizinha - Tem visto jornal? Caiu outro avião.
Neurótica – E desta vez foram 85 mortos.
Vizinha - Já tomei uma decisão, nunca mais entro num avião.
Neurótica – Bobagem.
Vizinha - Bobagem é morrer.
Neurótica – Então não entra mais em carro também. Proporcionalmente, morrem mais pessoas em acidentes
de carro...
Vizinha - Mas não entrar em automóvel eu já tinha decidido há muito tempo! Você não notou que eu ando
mais magra. É de tanto caminhar.
Neurótica – Você caminha por onde?
Vizinha - Como por onde? Pela calçada, ué?
Neurótica – Dá todo dia no jornal. "Ônibus desgovernado sobe na calçada e colhe pedestre. Vítima tinha
jurado nunca mais entrar em qualquer veículo." A chamada ironia do destino.
Vizinha - Quer dizer que na calçada...
Neurótica – É perigosíssimo.
Vizinha - O negócio é não sair de casa.
Neurótica – E, é claro, mandar cortar a luz.
Vizinha - Por que cortar a luz?
Neurótica – Pensa num dedo molhado e distraído na tomada do banheiro. "Caiu da escada quando trocava
lâmpada. Fratura na base do crânio."
Vizinha - Está certo. Corto a luz.
Neurótica – "Tropeça no escuro e bate com a testa na quina da mesa. morte instantânea." E você vai
cozinhar com quê?
Vizinha - Com gás.
Neurótica – Escapamento. "Vizinhos sentiram cheiro de gás e forçaram a porta: era tarde." Ou: "Explosão
de botijão arrasa apartamento."
Vizinha - Fogareiro a querosene.
Neurótica – "Tocha humana! Morreu antes que..."
Vizinha - Comida enlatada fria.
Neurótica – Botulismo.
Vizinha - Mando comprar comida fora.
Neurótica – "Espinha de peixe na garganta. Ossinho de galinha na traquéia. Comida estragada, diarréia
fatal."
Vizinha - Não preciso de comida. Vivo de injeções de vitamina....
Neurótica – Hepatite.
Vizinha -. . .e oxigênio.
Neurótica – Poluição. "Autópsia revela: pulmão tava pior que saco de café." estrôncio 90 francês.
Vizinha - Vou viver no campo, longe da poluição, do transito...
Neurótica – Picada de cobra, coice de mula. Médico não chega a tempo. Não há como escapar.
Vizinha - Mas eu escapo, a mim eles não pegam. Tenho um jeito infalível de escapar da morte.

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Neurótica – Qual é?
Vizinha - Vou me suicidar!

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5º Quadro – Festa de Aniversário
A Cena começa na portaria com as crianças subindo para a festa. Elas entram no elevador fazendo
bagunça. Tocam a campainha e entram no apartamento. Lá dentro, a festa está montada. Janaína, a
empregada, serve comida para os convidados. Movimentação de festa.

Janaína – (narrando) Uma boa festa de aniversário deve ter no mínimo vinte crianças, sendo uma de colo,
que chora o tempo todo, uma maior do que as outras, chamada Eurico, que bate nas menores e acabará
mordida pelo cachorro, para a secreta satisfação de todos; e uma de rosto angelical, olhar límpido e vestido
impecável, que conseguirá sentar em cima do bolo de chocolate. Esta deve se chamar Cândida. Boa festa de
aniversário é aquela em que, depois que todos foram embora, a mãe do aniversariante examina os destroços
com o mesmo olhar que Napoleão ao perder a batalha. Ela fica em dúvida entre chorar, fugir de casa ou rolar
pelo tapete dando gargalhadas histéricas. Mas desiste de rolar pelo tapete porque o tapete está coberto de
restos de comida.
Por fim, o pai e a mãe estão atirados no sofá, um para cada lado. Semiconscientes. Já é noite, mas a festa
ainda não acabou. Sobram três crianças que não param de correr pela casa.
Pai – Tenho uma idéia.
Mãe – Qual é?
Pai – Vamos mandar eles brincarem no meio da rua. Esta hora tem bastante movimento.
Mãe – Não seja malvado. Daqui a pouco eles vão embora.
Pai – Quando? Essas foram as primeiras a chegar. Acho que os pais deixaram elas aqui e fugiram para o
exterior. Essa aí é a pior. (aponta para uma das meninas) Quando chegou tinha o vestido mais engomado da
festa. Depois de um banho de guaraná e uma batalha de brigadeiro, parece uma veterana das trincheiras. Essa
baixinha é um terror!
Mãe – Coitada. É a Cândida.
Pai – Cândida?! É uma terrorista!
Mãe - Sshhh.
Pai – De onde é que saiu essa figura?
Mãe – É uma colega do Paulinho.
Pai – E aquele ranhento que não para de comer?
Mãe – É o Chico. Também é colega.
Pai – Será que não alimentam ele em casa? E o outro, que está pulando em cima da mesa?
Mãe – É o Paulinho! Você não reconhece o seu próprio filho?
Pai – Ele está coberto de chocolate.
Mãe – É que ele teve uma luta de brigadeiros, com a Cândida...
Pai – E perdeu, claro. A Cândida é imbatível. Guerra de brigadeiros, jiu-jitsu, vôlei com balão, hipismo com
cachorro. Ela foi a única que conseguiu montar no Tobias.
Mãe – Por falar nisso, onde anda o Tobias?
Pai – Fugiu de casa, lógico. Era o que eu devia ter feito.
Mãe – Ora, é só uma vez por ano.
Pai – Você precisa me lembrar disso?
(Chico se aproxima)
Chico – Tem mais cachorro-quente?
Mãe – Não, meu filho. Acabou.
Chico – Brigadeiro?
Mãe – Também acabou, Chico.
Chico – Puxa, não tem mais nada?!
Pai – Dá uma lambida na cabeça do Paulinho.
(Olhar de reprimenda da mãe sobre o pai. Chico se afasta reclamando.)

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Pai – E ainda reclama, o filho da mãe!
(Toca a campainha e os pais levantam eufóricos.)
Mãe – Vieram buscar as crianças!
Pai – Graças a Deus.
(Os dois vão até a porta. A mãe abre.)
Mãe 2 – Oi, viemos buscar as crianças.
Mãe – Oi, podem entrar.
Pai – Não, não precisa nem entrar. (para as crianças) Criançada! (elas aparecem animadas) Papai e mamãe
chegaram. É hora de ir embora. (as crianças fazem muxoxo, não querem ir. Aos poucos os pais vão
convencendo elas e elas começam a se despedir. Todos saem. Ficam em cena só o pai com o filho. O menino
também está cansado. Segura um de seus presentes, uma espada.)
Pai – Quanto presente, heim, filho?
Paulinho – É.
Pai – E essa espada. Mas que beleza. Esta eu não tinha visto.
Paulinho – Pai...
Pai – E como pesa! Parece uma espada de verdade. É de metal mesmo? Quem foi que te deu?
Paulinho – Era sobre isso que eu queria falar com você.
(O pai estranha a seriedade do filho. O menino tira a espada da mão do pai.)
Paulinho – Pai, eu sou o Thunder Boy.
Pai – Thunder Boy?
Paulinho – Garoto Trovão.
Pai – Muito bem, meu filho. Agora, vamos para a cama.
Paulinho – Espere. Esta espada. Estava escrito. Eu a receberia quando fizesse sete anos. Hoje ela veio. É um
sinal. Devo assumir meu destino. A espada passa a um novo Thunder Boy a cada geração. Tem sido assim
desde que ela caiu do céu, no vale sagrado de Bem Tael, há sete mil anos, e foi empunhada por Ramil, o
primeiro Garoto Trovão.
Pai – Certo, filho. Agora, vamos...
Paulinho – Vou ter que sair de casa. Quero que você explique à mamãe. Vai ser duro para ela. Conto com
você para apoiá-la.
(o pai resolve entrar no jogo do filho e vai, sutilmente, empurrando ele para o quarto.)
Pai – Nós nunca mais vamos ver você?
Paulinho – Claro que sim. A espada está a serviço do bem e da justiça. Enquanto vocês forem pessoas boas e
justas poderão contar com a minha ajuda.
Pai – Ainda bem.
Paulinho – (ergue a espada e grita para os céus) Ramil!!
(Ouve-se um trovão)
Pai – Ah, não... Pra mim chega! Acabou essa história!Não tem mais festa de aniversário aqui em casa!
(o pai sai reclamando e o filho, que começa a choramingar, vai atrás.)

Narrador – Enquanto isso, no 905...

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6º Quadro – Férias
Outro apartamento. Ninguém em cena.
Entram as crianças discutindo e os pais logo atrás.

Filho - Praia!
Filha - Serra!
Filho - Praia!
Filha - Serra!
Pai – Acampamento.
Filha – Ah,não, pai...
Pai – Acampar sai mais barato.
Mãe – Podíamos ir num cruzeiro, num transatlântico de luxo. Drinques coloridos à beira da piscina. Lugares
exóticos com nomes românticos. Noites de luar no Caribe.
Filha - Galápagos...
Filho - Barbados...
Pai - Falidos...
Mãe - Fal... Como, Falidos?
Pai - É o que nós ficaríamos depois de uma viagem destas. Você sabe quanto custa?
Mãe - Você só pensa em dinheiro.
Filho - Praia, pai!
Filha - Serra!
Filho - Praia!
Pai – Chega!! Vamos para praia. (reação das crianças)
Mãe – E o cruzeiro?
Pai - O cruzeiro fica pra próxima. E arrumem as malas antes que eu mude de idéia.
(Movimentação. Todos arrumando as malas, menos o pai. A filha passa segurando um biquíni minúsculo
para por na mala. O pai pega o biquíni para examinar.)
Pai – O que é isso?
Filha – É o meu biquíni!
Pai - Você vai para a praia nua?
Filha – Não é nua, pai. É de biquíni.
Pai - Vou ter que aceitar sua palavra...
(Terminam de arrumar as malas. Entram no elevador com as malas e vão para o carro. Todos entram,
menos o pai)
Pai - Está tudo no carro?
Mãe - Está, Vilson, entra.
Pai - Pomada contra queimadura?
Mãe - Está.
Pai - Repelente contra inseto?
Filho - Está.
Pai - Quinino? Tabletes de sal? Ataduras? Rádio, para manter- mos contato com a civilização?
Filha - Vamos lá, pai!
Pai - Antibióticos? Lança-chamas, contra um possível ataque de formigas gigantes?
Mãe - Está tudo no carro, Vilson. Deixa de bobagem e entra. (Enérgica)
(O pai entra no carro. A viagem começa. Chegam na praia.)
Pai – Vou pedir alguma coisa para comer. Garçom, três porções de filé de peixe com molho de camarão.
Garçom – Sim, senhor.
Pai – E traz sal.

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Garçom - Ahn?
Pai - Sal.
Garçom - Ahn?
Pai - Sal. Aquela coisa branca que parece açúcar.
Garçom - Ah...
Pai - Não é possível. Ele não sabe o que é sal.
Mãe - Calma, Vilson. O hotel é novo. Ouvi dizer que eles estão aproveitando gente do local.
Pai - Mas o sal já deve ter chegado aqui. Já tem antena parabólica, e sal refinado é bem mais antigo.
Mãe - Ele só não ouviu o que você disse, Vilson.
(O pai chama o filho que brinca ao longe. O filho se aproxima.)
Pai - Meu filho, eu quero que você pense numa coisa. Você sabe o que pode acontecer se você continuar
indo tão longe no mar? Sabe?
Filho - Sei, pai. Posso morrer afogado.
Pai - Não é só isso, meu filho. Se você morrer afogado nós vamos ter que interromper o veraneio. E o hotel
está pago até o fim da semana!
(O garçom volta trazendo o pedido.)
Pai - Eu pedi peixe.
Garçom - O senhor pediu peixe.
Pai - Exato. E isto não é peixe.
Garçom - É, sim senhor.
Pai - Não, meu amigo. Isto é carne.
Garçom - É peixe.
Pai - É carne.
Filho - Pai...
Pai - O quê?
Filho - Pode ser peixe-boi.
Mãe - Vilson! Você levantou a mão pro menino!
Garçom - O senhor quer trocar de prato?
Pai - Não, não. Isto está ótimo. Bife com molho de camarão. A gente deve experimentar tudo na vida. E traz
o sal, por favor.
Garçom - Ahn?
Pai - Esquece.
(Pantomimas. Passa-se uma semana.)
Filha - Pai, vamos embora!
Pai – Vamos.
(Todos arrumam as coisas entram no carro, menos o pai.)
Pai - Está tudo no carro?
Mãe - Está, Vilson. Entra.
Pai - A prancha? As conchas? Tudo?
Mãe - Tudo, Vilson.
(Entram no carro. Voltam para casa.)

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7º Quadro – Rosamaria
Cena começa no elevador, depois passa para o apartamento.

Odete - Qual é o seu andar?


Maria - O sétimo.
Odete - E o meu também. (Aperta o botão. Maria desce e procura o número.)
Odete - Que número você procura?
Maria - O 706.
Odete - É o meu também. (aperta a campainha)
Odete - Quem é que você está procurando?
Maria - O meu marido.
(abre a porta Raimundão enrolado numa toalha)
Odete - É o meu também.
Raimundão - (a Maria) O que é que você está fazendo aqui?
Maria - Preciso conversar com você sobre o...
(Raimundão segue Odete que entrou por dentro da casa. Maria vai atrás.)
Raimundo - Odete não entre no banheiro!
Odete - Por quê?
Raimundo - Eu acabei de tomar banho e está uma grande bagunça. (ela coloca o ouvido na porta)
Odete - Tem barulho de água. Ou você esqueceu de fechar o chuveiro, ou a grande bagunça ainda está
tomando banho.
Maria - Raimundo, nós precisamos conversar sobre o...
Raimundo - Você está insinuando que tem uma Rosamaria, ahn, uma mulher aí dentro?!
Odete - Rosamaria, a grande bagunça se chama Rosamaria. Muito bem.
Maria - (insistindo) Raimundo...
Raimundo - (para Maria) Só um pouquinho... (para Odete) Está bem tem uma mulher aí dentro. Mas não é
o que você está pensando.
Odete – Sei. Vocês são apenas bons amigos? Tão amigos que tomam banho juntos.
Maria - Raimundo, você precisa ter uma conversa com o Raimundinho.
Raimundo - Que Raimundinho?
Maria - Seu filho!
Odete - Rosamaria! Rosamaria querida, quer dar um pulinho aqui fora!?
Maria - O Raimundinho...
Odete - (interrompendo) Dá licença? Primeiro vamos resolver a minha crise conjugal, depois você cuida dos
seus problemas familiares. Acabo de descobrir que o meu marido tem outra mulher e que ele estava no
banho com ela. Acho que eu tenho prioridade.
Maria - Não é outra mulher. É a mesma.
Odete - Como a mesma?
Maria - Ele é amante da Rosamaria há anos. Já era antes de nos casarmos.
Raimundo - Você sabia?
Maria - Ora Raimundo eu não sou boba.
Odete - Não. A boba sou eu. Vou visitar a minha mãe, volto um dia antes por que não agüentava de saudade
e encontro uma Rosamaria no meu banheiro.
Maria - Minha filha, mulher que volta um dia antes está pedindo pra encontrar o marido com uma
Rosamaria. O segredo de um bom casamento é nunca voltar um dia antes.
Raimundo - Exatamente.
Odete - Seu... seu...
Maria - Crápula (assoprou Maria)

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Odete - Crápula!!
Maria - Cínico (assoprou Maria)
Odete - Cínico!! Vou embora e não volto mais! Fique com a Rosamaria e com essa, essa... ex-mulher! (sai)
Raimundo - Pronto. Lá se vai outra. A culpa é minha Maria Alice? Diz com sinceridade a culpa é minha?
Maria – Não, Raimundão, a culpa é nossa. Nós não entendemos você. Voltamos um dia antes, fazemos tudo
para atrapalhar sua vida. A única que entende você é a Rosamaria. Aliás, nunca entendi por que você não se
casou com a Rosamaria.
Raimundo - Tá doida! E estragar um relacionamento perfeito?
Maria - Podemos falar sobre o Raimundinho?
Raimundo - Espera aí, ainda não terminei meu banho!
(Ele volta para o banho e ela fica lixando unha.)

Narrador – Enquanto isso, no apartamento 601, uma família tem alguns problemas por ser muito...feliz.
(Maria se aproxima e os dois saem juntos.)

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8º Quadro – Lar desfeito
Apartamento. Entra a família feliz e congela.

Maria, narrando - José e Maria estavam casados há vinte anos e eram muito felizes um com o outro. Tão
felizes que um dia, na mesa, a filha mais velha reclamou. (Movimentação)
Vera - Vocês nunca brigam?
José - Não minha filha. Sua mãe e eu não brigamos.
Vitória - Nunca brigaram?
José - Claro que já brigamos. Mas sempre fizemos as pazes.
Maria - Na verdade, brigas, mesmo, nunca tivemos, desentendimentos, como todo mundo. Mas sempre
nos demos muito bem...
Vilminha - Coisa mais chata. (congela a cena)
Vera, narrando – Vera, a filha mais velha, tinha um amiga, Nora, que a deixava fascinada com suas
histórias de casa. Os pais de Nora viviam brigando. Era um drama. Nora contava tudo pra Vera. Vera
consolava a amiga, mas no fundo tinha uma certa inveja. Nora era infeliz. Devia ser bacana ser infeliz assim.
Vitória, narrando - Vitória, a filha do meio, freqüentava muito a casa da Flávia, sua melhor amiga. Os pais
de Flávia estavam separados. O pai de Flávia tinha um dia certo para sair com ela, domingo. Ele também
namorava uma moça de teatro. A mãe tinha um namorado que trazia presentes pra ela. O sonho de Vitória
era ser irmã de Flávia.
Vilminha, narrando - Vilminha, a filha menor, também tinha amigas com problemas em casa. A mãe da
Julia tinha se divorciado do pai e casado com outro cara divorciado, que já tinha um outro filho. O garoto era
muito chato e comia meleca. A mãe da Julia gritava muito com ela. Bacana. (Volta à movimentação)
Vera - Eu não agüento mais essa situação.
Maria - Que situação minha filha?
Vera - Essa felicidade de vocês!
Vitória - Vocês deviam pelo menos ter o cuidado de não fazer isso na nossa frente.
Maria - Mas nós não fazemos nada.
Vera – Exatamente! (Vilminha bate com os talheres pedindo: “Briga! Briga”! Congela a cena.)
Maria, narrando - Maria e José concordavam que aquilo não podia continuar.
José, narrando - Precisavam pensar nas crianças.
Maria, narrando - Manteriam uma fachada de desacordo, ódio e desconfiança na frente deles para esconder
a harmonia. Trocariam acusações fictícias e insultos, tudo para não traumatizar os filhos. (Descongela, a
ovimentação.)
Maria - Víbora não!!
José - Víbora sim!! (Os dois batem na mesa. As crianças se afastam amedrontadas, mas comemorando)
Vilminha - Não mamãe!
Vera - Pai! (Os pais entram para o quarto brigando. Eles choram num misto de alegria e desespero.
Congela)
Vera - Depois daquela cena, nada mais havia a fazer.
Vitória - O casal teria que se separar.
Vilminha - Os advogados cuidariam de tudo.
Todas - Papai e mamãe se odiavam!! (E correm para ver o que se passava no quarto. Lá de dentro, ouve-se
barulhos de coisas quebradas)
(Os dois reaparecem fora do apartamento disfarçados.)
José - Elas desconfiaram de alguma coisa?
Maria - Acho que não.
José - Será que fizemos certo?

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Maria - Acho que sim. As crianças, agora, não se sentem mais deslocadas no meio dos amigos. Fizemos o
que tinha de ser feito.
José – Será que algum dia vamos poder viver juntos outra vez?
Maria – Quando as crianças saírem de casa.
José – É.
Maria – É...Me beija.
José – Aqui não. Podem nos ver.
(saem)

(Narrador se entra em cena e se prepara para falar. Mas antes que ele fale, todos os atores saem da cochia
e falam: “Enquanto isso”. O narrador leva um susto e sai aborrecido.)

16
10º Quadro - A Descoberta
Apartamento.
O pai já estão em cena, ele acaba de chegar de viagem.
O filho vem de dentro do apartamento para recebê-lo. O filho está surpreso.

Filho - Papai!
Pai - Meu filho. Dá um abraço. Há quanto tempo...
Filho - Quando foi que o senhor chegou?
Pai - Agora há pouco. A empregada abriu a porta. Quando soube que eu era seu pai mandou entrar, me serviu
cafezinho. Aliás, essa empregada, não sei não.
Filho - Por quê?
Pai - Você, um rapaz solteiro, num apartamento sozinho, com uma empregada assim...
Filho - Ela só vem durante o dia. Quase não nos encontramos.
Pai - Você parece ótimo, meu filho.
Filho - Estou muito bem.
Pai - Esperei encontrar você bem mais magro...
Filho - Não, estou muito bem. E a mamãe, o pessoal lá em casa ?
Pai - Tudo bem. Sua mãe lhe mandou cuecas e goiabada.
Filho - Ótimo. Mas por que o senhor não me avisou que vinha?
Pai - Quis fazer uma surpresa.
Filho - E fez mesmo. Nunca que eu esperava ver o senhor aqui.
Pai - Pois até parece que esperava. Este apartamento bem arrumado, livros por toda parte... Eu pensei que
fosse entrar aqui tropeçando em mulheres.
Filho - O que é isso, papai...
Pai - E, num tapete de seios e nádegas. Do jeito que está, até parece que você passa todo o tempo estudando.
Aposto que, atrás dos livros, tem mulher. Hein? Hein?
Filho - Ora, papai...
Pai - Aquela estante ali é, na verdade, uma porta secreta para o teu harém particular. A gente aperta uma
lombada e aparece a Rose di Primo. É ou não é? Onde e que elas estão?
Filho - Quem papai?
Pai - As mulheres, rapaz, as mulheres.
Filho - Aqui não tem mulher, papai. Quer dizer, a esta hora não.
Pai - Ah, então elas têm hora para chegar? Daqui a pouco chega o turno da noite, é isso? Sim, porque pelas
suas cartas eu entendi que era mulher dia e noite, sem parar. Horário integral.
Filho - Não, não. Para falar a verdade...
Pai - Não tem uma bebida aí para o seu velho? Quero estar preparado para quando elas chegarem.
Filho - Papai, o senhor não está falando sério!?
Pai - Como não? Eu não estou pagando por tudo isto, pelo apartamento, pelas suas roupas, pelas boates, pelos
presentes para as suas mulheres, pela aparelhagem de som, por tudo? Quero aproveitar um pouco também,
ora. Pensando bem, eu ainda não vi a tal aparelhagem de som que você falou na sua carta. A não ser que
esteja disfarçada atrás de outra estante de livros.
Filho - Papai...
Pai - E a minha bebida?
Filho - Bebida. Pois é. Acho que só tem guaraná.
Pai - O quê? O bar deste apartamento foi estocado - e muito bem estocado, segundo as suas cartas - com o
meu dinheiro, rapaz. Aliás, também não vi bar nenhum por aqui. Onde está o uísque estrangeiro?
Filho - Papai, as minhas cartas...

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Pai - Não se preocupe. Sua mãe não viu nenhuma. Não foi fácil, mas consegui esconder todas dela. Por falar
nisso, ela mandou reclamar que você não escreve nunca.
Filho - Eu exagerei um pouco nas minhas cartas.
Pai - Como, exagerou?
Filho - O dinheiro que eu mandava pedir para comprar presentes para as mulheres...
Pai - Sim?
Filho - Era para comprar livros de estudo, para mim.
Pai - Meu filho. Não!
Filho - Era, papai. Menti nas minhas cartas.
Pai - E o dinheiro para as noitadas em boates?
Filho - Gastei em material de pesquisa.
Pai - Meu Deus. Você quer dizer que o dinheiro que eu tenho mandado todos os meses, muitas vezes com
sacrifício...
Filho - Está indo todo para a Universidade e para material didático.
Pai - Não acredito. Você não faria isso com seu pai.
Filho - Papai...
Pai - E pensar que eu mostrava suas cartas para os amigos, com orgulho... Aquela que você mandou dizendo
que ia sair com a Sandra Bréa e precisava de...
Filho - O dinheiro foi para comprar um livro estrangeiro.
Pai - E aquele aborto que você precisava pagar com urgência?
Filho - Nunca houve aborto nenhum. Tudo mentira.
Pai - Meu filho, que decepção...
Filho - Papai... Papai, você está bem? Papai! Dona Janaína, venha ligeiro!
Janaína - Que foi?
Filho - Traga um copo d'água, rápido.
Pai - Pode ser um refrigerante, meu filho.
Filho - Um guaraná, rápido!
Janaína - Mas não tem guaraná.
Pai - NEM GUARANÁ?!
Filho - Calma, papai. Traga a água, Dona Janaína.
Pai - E essa bruxa velha que você tem em casa, meu filho. Pelo menos uma empregada bonitinha você podia
ter...
Janaína - Aqui está a água, doutor.
Filho - Obrigado.
Janaína - Olhe, o senhor não precisa se preocupar com este seu filho, doutor. Cuido dele como se fosse um
filho. Ele é um santo!
Pai - Aahnn...
Filho - Obrigado, Dona Janaína. Pode ir.
Pai - Meu filho, e a aparelhagem de som? O dinheiro que eu mandei para a aparelhagem de som acoplada
com o sistema de luz indireta e pisca-pisca?
Filho - Foi para comprar um microscópio, papai.
Pai - AAHNNN!
(O pai sai de cena passando mal e o filho acudindo.)

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10º Quadro – Artista de cinema
Portaria.
Casal de velhinhos entra na portaria e espera pelo elevador.

Porteiro – Boa tarde, Sr. Dedé. Da Aurora.


Da Aurora – Boa tarde, Sr. João.
Sr. Dedé – Ai, Sr. João, todo na beca.
Porteiro – É que hoje teve uma festinha no 301 e a síndica mandou eu estar em trajes oficiais.
Sr. Dedé – Assim o Sr. parece até um artista de cinema.
Porteiro – Que isso, Sr.Dedé...
Sr. Dedé – É verdade. E eu digo isso com propriedade de causa. Não sei se o Sr sabe, mas eu já fiz um filme
em Hollywood.
Porteiro - O senhor fez um filme em Hollywood, seu Dedé?
Sr. Dedé - Apareço numa cena.
Porteiro - Que filme era?
Sr. Dedé - Você não deve ter visto. Não é do seu tempo. O nome em inglês era ailand ovilovi.
Porteiro - Como é?
Sr. Dedé - Ailand ovilovi.
Da Aurora – Island of Love. (corrigindo)
Sr. Dedé - Ailand ovilovi. Acho que nunca passou no Brasil.
Porteiro - Com quem era?
Sr. Dedé - Dorothy Lamour. Não é do seu tempo.
Porteiro - E como foi que o senhor entrou no filme?
Sr. Dedé - Eu fazia parte de um conjunto, "Los Tropicales".
Da Aurora – Ah, essa história de novo não... Pelo amor de Deus.
Porteiro - Deixa ele contar Da Aurora. Afinal, recordar é viver.
Sr. Dedé – E a vida passa tão rápido, meu filho, que se a gente não aproveita não tem o que recordar. (O Sr.
Dedé passa a mão em Da Aurora que fica escandalizada. Ele ri.)
Sr. Dedé – Pois bem. No"Los Tropicales" eu tocava bongô e cantava. Isso foi lá por quarenta e poucos.
Época da guerra. Mas o conjunto se desfez em Los Angeles porque a cantora, Lu-pe, uma cubana, descobriu
que o marido dela, que tocava pistom e se chamava, sabe como? Rafael Rafael. Assim mesmo, um nome
duplo. Descobriu que o Rafael Rafael estava namorando uma pequena americana, aliás um pedaço...
Porteiro – Mas e o filme? O Sr. aparecia muito?
Da Aurora – Que nada! Era só uma cena e olhe lá.
Sr. Dedé – Eu era figurante. Mas a cena em que eu aparecia era forte. Era num bar em que a Dorothy
Lamour cantava. Ela passava pela minha mesa, cantando, tirava o cigarro da minha boca e me dava um beijo.
Da Aurora – Mas que pouca vergonha!
Sr. Dedé – Até ficamos amigos!
Da Aurora – Mas era só o que me faltava!
Sr. Dedé – Não fica com ciúme brotinho...
Da Aurora – Eu, com ciúme! Ah, por favor... Vamos embora antes que você invente mais história. Até logo,
Sr. João.
Porteiro – Até logo, Da Aurora. Bom dia, Sr. Dedé.
(O casal entra no elevador. Continua a briga. Chegam em casa.)

19
11º Quadro – A Volta
Apartamento do Sr. Dedé e Da Aurora

Sr. Dedé – Eu vou para o quarto descansar um pouco.


(Toca a campainha)
Sr. Dedé – Ué. Quem será?
Da Aurora – Não sei. Deixa que eu atendo. Pode ir para o quarto.
(Sr. Dedé sai. Da Aurora tem dificuldade em atravessar o salão da velha casa para chegar até a porta. A
campainha não para. Ela pede paciência. Quando abre a porta, dá com um homem que sorri para ela com
expectativa.)
Valter - Titia...
Da Aurora - O quê?
Valter - Sou eu, titia.
Da Aurora - Você! (exclama a velha.)
(Mas em seguida se dá conta que não sabe quem é.)
Da Aurora - Quem é você?
Valter - Não está me reconhecendo, titia?
Da Aurora - (examina o homem com cuidado. Depois exclama) Não pode ser! (Vai recuando, espantada.
Repetindo) Não pode ser. Não pode ser! (Depois volta e diz) Não pode ser mesmo. Ele já morreu. Quem é
você?
Valter - Pense, titia. Você gostava muito de mim.
Da Aurora - Sim?
Valter - Eu era a coisa mais importante da sua vida. A senhora cuidava de mim, me alimentava, me dava
banho...
Da Aurora - Sim, estou me lembrando...
Valter - Um dia eu desapareci e nunca mais voltei. Mas estou voltando agora.
Da Aurora - Você voltou. Oh, Rex!
Valter -Rex?
Da Aurora - Meu cachorrinho, Rex. Meu peludinho. Minha paixão. Você voltou!
Valter -Não, titia. Eu não sou o Rex.
Da Aurora - Então quem é?
Valter -Titia, prepare-se. Eu sou... o Valter!
Da Aurora - Não!
Valter -Sim!
Da Aurora - NÃO!
Valter -Sim, titia. Sim!
Da Aurora - EU NÃO CONHEÇO NINGUÉM CHAMADO VALTER!
Valter -Seu sobrinho favorito. A senhora me criou. Tente se lembrar, titia!
Da Aurora - Eu nunca criei sobrinho nenhum. Principalmente chamado Valter.
Valter -Tem certeza?
Da Aurora - Absoluta.
Valter -Aqui não é o número 1201?
Da Aurora - Não. É o 201.
Valter -Puxa. Me enganei. Olhe, desculpe, viu?
Da Aurora - Tudo bem.
(A velha fecha a porta. Daí a instantes, ouve outra batida. Ela abre. É o Valter.)
Valter -Escute...
Da Aurora - O quê?

20
Valter - A senhora nunca teve um sobrinho chamado Valter, mesmo?
Da Aurora - Nunca.
Valter -E... não gostaria de ter?
Da Aurora - Bem...
Valter -É que o 1201 fica tão longe. Se a senhora não se importar...
Da Aurora - Está bem. Entre. Mas vou logo avisando: banho, não. (Para o marido que está dentro do
quarto) Dedé, olha quem chegou!! (os dois se dirigem para o quarto. Saem)

21
12º Quadro - Rápido
Portaria
Janaína está saindo do elevador.

Janaína – Tchau, Sr. João. Já estou indo.


Porteiro – Tchau. (ele está pensativo)
Janaína – Que foi, homem? Que cara é essa?
Porteiro – É que eu estava conversando com o Sr. Dedé e a D a Aurora. É tão bonito ver um casal que está
junto a tanto tempo...
Janaína – É verdade...
Porteiro – Quando a gente gosta de alguém de verdade o tempo passa rápido e parece que 50 anos passam
em 5 minutos.
Janaína – E como é que você sabe? Já esteve casado por 50 anos?
Porteiro – Não. Mas já gostei de alguém de verdade.
Janaína – A é...?
Porteiro – É.
(Pausa. Eles se olham. Começa a tocar música romântica.)
Porteiro – Quer dançar?
Janaína – Obrigada.
Porteiro – Você vem aqui sempre?
Janaína – Venho.
Porteiro – Vamos namorar firme?
Janaína – Bom... Você tem que falar com o papai...
Porteiro – Já falei com seu pai. Agora é só marcar a data.
Janaína – 26 de julho?
Porteiro – Certo.
Janaína – Não esqueça as alianças...
Porteiro – Você me ama?
Janaína – Amo.
Porteiro – Mesmo?
Janaína – Sim.
Porteiro – Sim.
Janaína – Parece mentira. Estamos casados. Tudo está acontecendo tão rápido...Você estava nervoso?
Porteiro – Não. Foi bom?
Janaína – Mmmm. Sabe de uma coisa?
Porteiro – O quê?
Janaína – Eu estou grávida.
Porteiro – É um menino!
Janaína – A sua cara...
Porteiro – Aonde é que você vai?
Janaína – Ele está chorando.
Porteiro – Deixa... Vem cá.
Janaína – Meu bem...
Porteiro – Hmm?
Janaína – Estou grávida de novo.
Porteiro – É menina!
Janaína – O que é que você tem?
Porteiro – Por quê?

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Janaína – Parece distante, frio...
Porteiro – Problemas no trabalho.
Janaína – Você tem outra!
Porteiro – Que bobagem.
Janaína – É mesmo... Você me perdoa?
Porteiro – Vem cá.
Janaína – Aqui não. Olha as crianças...
Porteiro – O Júnior saiu com o carro. Ia pegar uma garota.
Janaína – Você já falou com ele sobre...
Porteiro – Já. Ele sabe exatamente o que fazer.
Janaína – O quê? Você deu instruções?
Porteiro – Na verdade ele já sabia melhor do que eu. Essa geração já nasce sabendo. Só precisei mostrar
como se usa o macaco.
Janaína – O quê?!
Porteiro – Ah, você quer dizer... Pensei que fosse o carro. E a Beti?
Janaína – Parece que é sério.
Porteiro – Ela e o analista de sistemas?
Janaína – É. Aliás...
Porteiro – Estão vivendo juntos. Eu sabia!
Janaína – Ela está indo para o hospital.
Porteiro – Já?!
Janaína – São gêmeos!
Porteiro – Sabe que você até que é uma avó bacana?
Janaína – Quem diria...
Porteiro – Vem cá.
Janaína – Olha as crianças.
Porteiro – Que crianças?
Janaína – Os gêmeos. A Beti deixou eles dormindo aqui.
Porteiro – Ai.
Janaína – Que foi?
Porteiro – Uma pontada no peito.
Janaína – Você tem que se cuidar. Está na idade perigosa.
Porteiro – Já?!
Janaína – Sabe que a Beti está grávida de novo?
Porteiro – Devem ser gêmeos outra vez. O cara trabalha com o sistema binário.
Janaína – Esse conjunto do Júnior precisa ensaiar aqui em casa? Que inferno.
Porteiro – E o nome do conjunto? Terror e Êxtase.
Janaína – Vão acordar os gêmeos.
Porteiro – Ai!
Janaína – Outra pontada?
Porteiro – Deixa pra lá. Olha, essa música até que eu gosto. Não é um rock-balada?
Janaína – Não. Eles estão afinando os instrumentos.
Porteiro – Quer dançar?
Janaína – Não! Você sabe o que aconteceu da última vez.
(Eles dançam. A luz cai. Cai o pano.)

FIM

23

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