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A morte em nome do deus proscrito

Por Marcos Faria Martins Filho

Acordo com o corpo todo dolorido e sem saber onde estou. Abro
os olhos lentamente e vejo um crucifixo pendurado na parede a
minha frente e dou um sorriso que tenho que fazer força para que
seja mal esboçado. Me pergunto: afinal, onde você estava quando
precisei de sua ajuda?
Meu corpo todo dói. Tento me levantar da cama onde estou, mas
me sinto muito fraco e cuspo sangue ao tossir, o que parece que
vai fazer explodir meu peito e minha cabeça juntos. O gosto do
sangue coalhado em minha boca se mistura com a droga de algum
remédio amargo que me deram. Preciso de um cigarro e de uma
dose de uma boa cachaça, mas não tenho forças. Não sei onde
estou, mas com certeza é um lugar melhor do que de onde vim...
Olho à minha direita e vejo uma mulher vestida de freira, jovem
aparentemente.
Ela demora em perceber que acordei, pois não consigo pronunciar
nenhuma palavra. Minha boca está ressecada e não consigo falar
ou esboçar algum sinal com minhas mãos. Somente os
pensamentos e lembranças de um horror mórbido e penetrante
me veem a mente. Desmaio e acordo várias vezes... falo palavras
desconexas que não consigo lembrar por mais que me esforce, mas
um nome me parece sempre claro e a cada lembrança, um frio
percorre minha espinha: Dagon!
Depois de algum tempo, que não saberia dizer se foram dias ou
horas, consegui me recobrar ao ponto de abrir os olhos e manter-
me acordado. Não sei se minha lucidez estava perfeita depois de
tudo o que passei, mas estava suficientemente desperto para
poder parar de me resignar e simplesmente viver a merda de vida
que tinha. Se tive sorte não sei, mas sabia que estava em algum
lugar longe de toda loucura que vivi.
Noviça Vanessa era o nome da jovem religiosa que estava cuidando
de mim. A moça, que fazia parte da Congregação das Irmãs
Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, me contou
quando se sentou-se em uma cadeira ao meu lado, que um capitão
português de um navio mercante me trouxera quase morto ao
Hospital Português de Salvador. Como estava de passagem, me
deixou aos cuidados do primeiro hospital de caridade que
encontrou. Pensei comigo que ainda havia um pouco de
humanidade nessa terra podre. A noviça era bonita... realmente eu
estava melhorando e voltando ao velho canalha que sempre fui....
Fiquei sabendo por ela que estávamos em março de 1927. Era dia
21. Já haviam se passado mais de um mês desde que todo o
pesadelo e horror havia começado e se apossado de minha mente,
mas ainda mantinha minha sanidade graças ao ódio que corria em
minhas veias. Ela estava curiosa em saber minha história e apesar
de não estar muito disposto a contar, achei que dividir com ela
tudo o que eu vivi, me renderia paz de espírito ou ao menos uma
ida sem volta ao manicômio. Dois dias depois, quando acordei por
completo e sem delírios, já me sentia mais forte o suficiente para
dividir com ela as dores e pavores que me assombravam mesmo
com olhos abertos.
Me chamo José dos Anjos. Sou do Rio de Janeiro e vivia até pouco
tempo pelas regiões do Cais e da Lapa, na Cidade Maravilhosa. Sou
marinheiro por mais de vinte anos, onde pude conhecer todo o
mundo e aprender muitas culturas e línguas. Mas sou mais
chegado a um carteado e uma boa cerveja gelada em terra. Prefiro
uma boa jogatina e uma cabrocha ao meu lado, do que ficar em
tempestades em alto mar com um monte de marmanjos. Mas não
se escolhe profissão nem amores, eles simplesmente entram em
nossa vida derrubando tudo o que encontram pela frente.
A alguns meses, estava na Lapa como costumeiramente fazia,
jogando meu carteado no boteco do turco Salim. Estava em uma
noite boa, ganhando um dinheiro que deixaria eu tranquilo por
umas duas semanas apenas curtindo a vida com algumas das
meninas que pairavam pelas ruas e casas de lazer da região. O que
eu não sabia é que minha sorte estava para mudar.
Estava limpando um marreco, que é como chamamos aqueles com
pouca intimidade no jogo, só que descobri tarde que o tal que
deixava seu salário em meus bolsos, era um escrivão do distrito
policial de Laranjeiras e que tinha as costas quentes. Mas aí já era
tarde. Um segundo depois, enquanto limpava os contos de réis que
estavam na mesa e colocava tudo em meu panamá, ele puxava
uma arma e somente pela interseção de Deus ou do diabo, eu
escapei de um tiro certeiro no meio de minhas fuças.
Achei estranho que a freirinha não se espantasse. Não amenizei o
tom ao contar a história, pois assim são os filhos de Iemanjá,
criados no duro arrebento do mar. Quando a questionei se minha
história lhe embrulhara o estomago, ela me confidenciou que já
vira de tudo, pois nascera na região do Trapiche, uma das mais
pobres de Salvador e que estava acostumada a violência e a dura
realidade da vida daqueles que pouco tem para viver.
Continuei a contar minhas desgraças, como em uma confissão,
pensando se realmente aliviaria minha alma atormentada ou se era
melhor sair daquela cama e ir beber no primeiro bar que cruzasse.
Enfim, segui contando, muito pelo interesse de minha cuidadora e
também para ver se ao final eu estaria me sentindo melhor.
Enfim, escapei do tiro e corri pela porta do bar. O meganha
demorou um pouco para se desvencilhar da mesa e cadeiras e dar
outro tiro, o que me foi providencial para correr. Dobrei a primeira
esquina à direita, no mesmo momento em que o barulho dos tiros
estourava na parede atrás de mim e passavam zunindo pelo meu
ouvido.
Tive azar quando caí ao tropeçar no calçamento solto do chão,
afinal já tinha tomando várias cervejas desde cedo e o equilíbrio e
atenção já não era o mesmo. O poliça me alcançou e enquanto eu
tentava correr mancando, ele atirou para cima e me mandou parar.
Achei que seria meu fim e resolvi virar e encarar, pois, um homem
do mar como eu não iria morrer como um cachorro sarnento e
cabisbaixo. Encarei o homem e quando ele veio enfiar a arma
embaixo de meu queixo para explodir meus miolos, entramos em
conflito e ao me atracar em luta com ele a arma disparou, mas não
foi a mim que aquela bala acertou. Ele caiu morto, agarrado a
minhas roupas com um olhar de pavor, enquanto eu olhava com
indiferença, afinal, melhor ele morto do que eu.
Enquanto me desvencilhava do corpo do homem, que ainda estava
agarrado ao meu paletó branco, que agora estava manchado de
sangue, dois dos amigos do agora falecido correram. Naquele
momento sabia que estava com muitos problemas, pois um
homem da lei tinha morrido nas minhas mãos e com certeza
ninguém ia querer saber a versão da história de um homem preto,
quando um meganha branco havia morrido.
Corri em direção ao cais, pois pensei em entrar no primeiro barco
que eu encontrasse, o que não foi difícil. Um barco chamado
Abigail estava carregando sacas de café para a América. Iria aportar
em Boston, o que achei ótimo, pois era longe o suficiente para
escapar da confusão e como trabalhei por seis anos para a
Companhia Lloyd Brasileiro, servindo de imediato a um capitão
inglês, aprendi com ele o suficiente para poder jogar cartas em
portos de vários países do mundo, principalmente na rota que
fazíamos, que saia do Rio de Janeiro com escalas até chegarmos
em Liverpool, na Inglaterra.
Por falar um pouco de inglês e soltar umas palavras aleatórias ao
capitão do Abigail, ele me levou na viagem, pois não entendia nada
do idioma e temia ser passado para trás pelos gringos. O homem
de meia idade, tinha como eu as marcas dos longos e duros anos
no mar, mas fazia uma rota pelo Atlântico para Buenos Aires e
Montevidéu. Era sua segunda viagem até a América e simpatizei
com o homem a quem todos chamavam com muito respeito de
Capitão Milton.
A viagem transcorreu sem muitos problemas. Seguimos não muito
longe da costa do Brasil, até fazermos uma parada de um dia em
Recife para reabastecer e esticar as pernas. A tripulação era
composta de dez homens que em sua maior parte era gente bem,
experimentada na vida do mar e não precisavam de ordens para
fazer o correto. Seguimos viagem por mais quatro dias por mar
aberto e já estávamos na costa da América quando nossos
problemas começaram.
O tempo seguiu limpo até chegarmos a costa da Nova Inglaterra,
segundo os mapas que tínhamos à mão. Em uma noite escura,
cerca de dois dias antes de nosso destino final, o mar virou
repentinamente e pegamos uma tempestade que posso dizer que
jamais havia visto se formar. Era algo sinistro, macabro.... Em
minutos saímos de um mar calmo, para uma verdadeira tormenta.
Não estávamos mais com a proteção de Iemanjá. Aquele barco
haveria de pagar por um pecado que os malditos que estavam a
bordo não mereciam e nem faziam ideia do que estava ocorrendo.
Não demorou muito para a tempestade nos deixar à deriva e o
barco adernar à bombordo e bater em um recife. Apesar dos
esforços do capitão Milton, o barco não resistiu e em poucos
minutos ele afundou. Estava escuro e com a tempestade não
conseguia enxergar mais do que um palmo na frente de meus
olhos. Me agarrei a uma boia e saltei antes do navio afundar, pois
não ouve tempo de descer nenhum bote. Vi que alguns homens
saltaram, mas outros afundaram com o navio.
Não sei quantas horas passei naquelas águas escuras e geladas,
mas já com o sol alto, estava deitado em uma praia suja, cheia de
destroços do barco e fedendo a peixe podre. Olhei ao redor e não
encontrei ninguém, nenhum homem vivo ou corpo foi devolvido
pelo mar. Apesar de estar meio tonto, sentei-me e olhei ao redor.
Estava com muita dor de cabeça e ao colocar a mão em minha
testa, percebi que estava com um corte profundo e com muito
sangue, que naquele momento já estava emplastado e ressecado.
Resolvi procurar ajuda naquele lugar onde eu havia naufragado e
me surpreendi ao ver que estava nas margens de uma cidade
estranha e carcomida pelo tempo. Parecia abandonada, pois não
via uma alma viva, mas apenas algumas chaminés que emitiam
uma rala fumaça. Logo na saída da praia eu vi uma fábrica que
aparentava ser de processamento de pescado e cerca de meia
dúzia de casas antigas em mal estado. Olhei para uma das poucas
janelas sujas que não estavam fechadas e poderia jurar que algo
disforme estava me observando, mas devido a meu estado
momentâneo de naufrago, pensei ter visto coisas demais.
Subi uma rua larga com mais construções decrépitas e com janelas
fechadas com tábuas pregadas toscamente ou cerradas entre
caixilhos enferrujados e podres, buscando algum lugar que pudesse
meu auxiliar. Depois de virar à esquerda e andar meio quarteirão,
encontrei uma mercearia com aparente movimento. Fui em sua
direção, quando encontrei os dois primeiros moradores daquela
pequena cidade e quase cai duro de susto.
Eram pessoas muito feias, com um cheiro de peixe pior do que
toda cidade. Deduzi que deveriam ser pescadores ou que
trabalhavam naquela fábrica na foz do rio com o mar, porque
mesmo à distância, cheiravam como carne marinha apodrecida.
Andavam com um arrastar de pernas cambaleante, que não
parecia coxo, mas como que com uma deformidade que os
impeliam a andar cambaleando como bêbados. Tinham cabeças
estranhas e estreitas com narizes chatos e olhos grandes,
esbugalhados e fixos, como se não piscassem.
Tentei pedir uma informação, para saber onde estava ou se
poderiam me indicar uma farmácia, apesar de sentir asco de olhar
para aquelas figuras, mas quando ainda estava distante cerca de
dez metros, tentei me dirigir a eles, que me ignoraram por
completo. Decidi seguir até a mercearia aberta e tentar minha
sorte, afinal se tipos estranhos como aqueles não queriam papo,
era melhor me virar sozinho.
Ao entrar, um senhor de cerca de sessenta anos veio me atender.
Bill Abraham era seu nome. Era magro e com um olhar fundo e ar
cansado, como se não dormisse a dias. O cabelo loiro
esbranquiçado lhe escorria a fronte e sua magreza era mais
aparente devido as roupas encardidas que usava, que pareciam ter
servido a um homem com talvez três vezes o seu peso.
Comecei a falar com Bill lentamente, tentando me lembrar do que
sabia de inglês e explicar minha situação, o naufrágio e que era um
brasileiro querendo chegar a Boston ou outra cidade portuária
grande em busca de emprego. O velhote foi amável e falou comigo
de forma lenta para que eu também entendesse e me contou o
básico do que precisava saber daquele lugar e deixar claro que
deveria sair de lá urgentemente.
Innsmouth era o nome da cidade onde eu estava, segundo o velho
atendente. Era uma cidade dominada por uma família chamada
Marsh, que controlava os dois negócios da cidade, o de pesca e
processamento de ouro. Fiquei intrigado como uma cidade que
processava ouro era tão pobre. O homem gentilmente limpava
meu ferimento e me servia a dose de uma velha garrafa de whisky
que deixava atrás do balcão, enquanto me oferecia um cigarro e
contava sua história e do que sabia da sinistra cidade.
Me dizia a todo momento que estava indo embora da cidade
naquela semana. Que estava se aposentando e voltando para a
Carolina do Sul, que estava apenas aguardando a rede que
mantinha a única loja da cidade aberta mandar seu substituto e
que estava exausto daquelas pessoas profanas, estranhas e fedidas
de Innsmouth.
Naquele momento meu inglês já estava ótimo, principalmente
quando ele falava a palavra “gold”. Pagavam a venda com ouro
muitas vezes e isso acendeu minha cobiça, não tenho como negar.
Bill começou a tomar umas doses a mais e sei quando um homem
quer falar, a bebida facilita as silabas saírem de sua boca.
Ele dizia que Marsh e toda sua família blasfema e que pactuava
com o demônio havia contaminado a cidade toda. Aqueles dois
homens que encontrei eram como a maioria de todos os
habitantes daquela cidade fétida e com casas carcomidas, me
dissera. Quando crianças e jovens, os homens e mulheres eram
normais, mas com o passar dos anos começavam a aparentar
aquela estranha fisionomia e a viver cada vez mais reclusos. Alguns
dos cidadãos mais velhos da cidade sumiam ou ficavam vivendo em
suas casas como eremitas, cabendo aos mais jovens cuidar de seus
negócios.
Perguntei como eu poderia arranjar um emprego na fábrica de
processamento de ouro, mas o velho parou de falar no mesmo
instante. Ele tomou o gole que estava no copo, bateu ele no balcão
e olhou compenetrado para o vazio à sua frente dizendo:
- Estrangeiro, vá embora enquanto pode. Se teme por sua vida,
pegue o primeiro ônibus e suma daqui.
Fiquei ressabiado e um frio se apossou de minha espinha. Indaguei
ao homem quando sairia o próximo ônibus e se era possível o
motorista me dar uma carona, pois não tinha uma moeda para
passagem. Bill tirou do bolso umas três cédulas amassadas e me
deu junto com o que sobrou da garrafa e mais dois pães. Agradeci
muito seu auxílio e me despedi em direção a um hotel caindo aos
pedaços, muito diferente dos lugares que dormia lá no Rio de
Janeiro. Era na frente do hotel chamado de Gilman que o ônibus
partiria para a cidade mais próxima, Newburyport.
Entrei ao pequeno hotel, que parecia uma casa de madeira que iria
cair a qualquer momento. O atendente virou-se e quase pulei ao
olhar aquela face horrenda. Haviam moscas ao seu redor, mas ele
não parecia se incomodar. Mantinha o mesmo olhar vidrado em
uma cabeça grande, porém diferentemente dos dois que encontrei
na rua, sua pele era de uma cor doentia, meio verde acinzentada.
Parecia doente e a respiração ofegante, juntamente com as
cicatrizes que tinha nos dois lados do pescoço, davam a mim uma
impressão de nojo e medo. Pensei se aquela cidade não teria algo
contagioso, talvez na água ou no ar, o que fez resignar-me a tomar
apenas o whisky enquanto estivesse lá.
Com muita dificuldade, entendi que o ônibus só partiria no dia
seguinte de manhã, pois o atendente falava com a dificuldade
típica daqueles que tiveram um derrame e não se recuperaram
completamente. Eu teria que passar a noite naquela merda de
lugar e sem dinheiro para uma refeição quente e uma cama para
esticar as pernas, tive a ideia de perguntar onde era a igreja mais
próxima, pois sabia por experiência que sempre encontramos
abrigo e às vezes um pouco de sopa quente na casa do Senhor.
O homem deformado me apontou para eu subisse uma pequena
ladeira. Saí do hotel Gilman pisando com cuidado para evitar que o
assoalho se abrisse sob meus pés e rumei para a igreja, pois já
começava a ver o céu alaranjado do prenúncio da noite e não ia
querer ficar no relento naquele lugar.
Ao chegar à frente da igreja fiquei assustado. Ela estava
parcialmente queimada e com o campanário caído. Resolvi
verificar se a porta estava aberta e entrar com cuidado. Dentro da
igreja abandonada, parecia que tudo havia sido revirado e
quebrado com violência. Olhei com espanto, pois nunca vira algo
tão violento feito em uma igreja. Levantei com um pouco de custo
um dos bancos para eu descansar e coloquei outros dois
represando a porta. Resolvi que não dormiria até que
amanhecesse, pois poderia dormir em segurança em um ônibus,
bem longe dali.
Entretanto a vida não é como desejamos e de tanto cansaço por
tudo que havia passado na noite anterior e naquele dia, eu dormi
naquele banco duro, depois de comer os pães e tomar mais alguns
goles de whisky, pois afinal Deus não iria se importar naquele
momento que eu bebesse em uma de suas casas na terra que fora
esquecida até mesmo por ele.
Depois disso eu lembro apenas que uma mão forte tocou meu
ombro e quando me virei para ver, levei uma pancada na cabeça
que me fez desmaiar. Ela foi bem no lado oposto onde eu havia
tido o corte e me produziu um galo que carrego até hoje.
Quando acordei minha surpresa e espanto me deixaram sem fala.
Notei que estava bem amarrado, com cordas novas, tanto nas
mãos quanto nos pés, mas que por este fato eu poderia tentar
lacear as amarras com um pouco de força e machucando meus
pulsos um pouco mais. Achei que delirava, que sonhava um
pesadelo pela batida na cabeça e pela bebida, pois eu estava em
um salão com teto muito alto e que pelas luzes parcas que vinham
de claraboias rente ao teto, estava abaixo do nível da rua. O cheiro
do salão daria nojo até a quem está acostumado a trabalhar em
um depósito de lixo, o mesmo cheiro de peixe podre, mas muito
mais forte, pois o lugar estava fechado e o ar tornara-se pesado.
Na minha frente, uma imagem gigantesca de cor verde escura,
iluminada por dois archotes de uma coisa, uma entidade grotesca,
com cabeça de peixe, olhos grandes, arregalados, guelras no
pescoço e corpo de homem, mas arcado em suas penas e com
braços longos como os de um símio de pés e mãos enormes.
As paredes mofadas tinham escritos em uma linguagem
desconhecida em uma faixa pintada de amarelo desbotado dando
volta em torno do salão. Completava o lugar um grande altar de
granito negro, um pouco mais alto que a altura de uma cama, de
onde havia buracos em seus quatro cantos que pendiam para
quatro potes manchados de vermelho no chão. Eu estava com
muito medo e não demorou para que começassem a entrar
diversas figuras deformadas e com o mesmo cheiro de peixe podre,
mas em diversos níveis de deformação, que remetiam todas ao
mesmo ídolo profano que dominava aquela sala.
Quando já havia cerca de umas 20 pessoas naquela sala iniciou-se
um ritual que envolvia cânticos em uma língua estranha, que
parecia um coaxar de sapos. Aquilo me encheu de pavor e me
deixou em um pânico que me faltava palavras para gritar, forças
para tentar fugir ou mesmo desmaiar.
De repente os cânticos impronunciáveis cessaram e uma jovem
amarrada foi trazida carregada por quatro seres com as mãos
palmadas e com a mesma pele esverdeada que vi no atendente do
hotel até o altar negro. Eles tinham a cabeça ainda mais
protuberante que os demais presentes e colocaram a jovem
amarrada naquela pedra escura e profana.
Um daqueles seres abomináveis começou a proferir sua reza
demoníaca enquanto segurava em sua mão esquerda uma faca
estranha e após alguns segundos de transe, cortou o peito da
jovem e arrancou seu coração, que foi depositado nos pés da
estátua enquanto entoavam um mantra repetindo o nome daquela
bestialidade de pedra – Dagon, Dagon, Dagon!
Rapidamente, o sacerdote recolheu os quatro potes com sangue e
dirigiu-se a estátua e passou todo o sangue de um dos baldes em
sua base. Outros três de seus serviçais pegaram cada um pote,
subiram por uma escada lateral e derramaram o sangue no ídolo
amaldiçoado e quando terminaram, viraram-se para mim, o que
fez com que entrasse em pânico, imaginando meu destino.
Quando vieram até mim para me carregar eu não resisti e desmaiei
pelo pavor e cansaço que tomavam conta de mim. Não me lembro
muita coisa a partir desse ponto, apenas que eu estava em uma
sala com muitas mulheres, dezenas de mulheres, que hora eram
belas e perfeitas e ora se transformavam em abominações com
aqueles corpos deformados e o fétido odor de peixe.
Elas me seduziam e davam de beber uma bebida doce e agradável
e quanto mais eu bebia mais elas ficavam lindas e mais força e
vitalidade eu adquiria. Elas queriam que eu copulasse com elas e
fosse o criador de uma raça mais forte, pois diziam que seus
homens eram velhos e doentes e que queriam meu corpo para
satisfaze-las e gerar uma nova vida em cada uma delas.
Nesse sonho ou alucinação eu fiz amor com todas elas e digo a
mim mesmo que não foi real, pois jamais teria forças para
conseguir atender a todas aquelas mulheres. Acho que vivi tantos
horrores naquela cidade, que comecei a ter sonhos e pesadelos
misturados. Ao menos é o que eu quero acreditar.
Quando acordei estava sozinho na igreja. Era de manhã e resolvi
correr até o hotel para pegar o ônibus e por pouco não perdi sua
saída. Quando paguei o motorista vi que ele tinha o mesmo
aspecto horrendo dos demais moradores daquela maldita
cidade, embora com traços mais atenuados da deformidade. Não
consegui pregar o olho até chegar em Newburyport e de lá entrar
de clandestino em um trem de carga até Boston. Foi no porto
dessa cidade que encontrei um navio que estava vindo para
Buenos Aires e consegui voltar para nossa terra.
Acabei adoecendo pela falta de sono e pavor que ainda sinto. Acho
que foi por isso que o português me deixou aqui em Salvador. Sei
que tudo o que conto para a senhorita pode parecer loucura, mas
eu vivi tudo isso. Talvez você possa acreditar ou duvidar, não me
importo. Pode ser castigo por ter tirado a vida de um homem por
acidente ou pode até ser que existe mais de um deus ou mais de
um diabo que assola esta terra. Mas jamais conseguirei esquecer o
horror que passei em Innsmouth e a face da mulher que morreu
em nome da devoção de aberrações a seu ídolo pagão.
A jovem noviça nada me disse. Ela apenas levantou, retirou o véu
branco de seu hábito, deixando ele na cadeira onde permanecera
sentada e saiu pela porta sem olhar para trás.

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