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“ Por favor… Por favor… Deixe-me ir.. Eu não contarei a ninguém!

” — O homem gritava e
se debatia, mas a criatura apesar de não ter um aperto forte, parecia estar sendo movida
por uma fome voraz.”

(...)

“ Droga, o carregamento para Novigrad está atrasado.” — O homem barbudo bufou, com
uma clara irritação no rosto, enquanto olhava para o papel e os outros marujos.

“Disseram que só chega em 6 dias senhor, contando que quando chegar o mar estará ao
nosso favor, não atrasaremos tanto assim.” — Um dos marujos falou, tentando apaziguar a
situação.

“Que se dane o carregamento, ele pode esperar, o problema é que tenho que deixar minha
filha em Novigrad, a mãe dela vai passar um longo período em Nilfgaard resolvendo
algumas questões e pediu para ter um tempo com ela antes de viajar.” — O homem
barbudo suspirou, tentando pensar numa solução.

“Mas se transporte é problema, ouvi dizer que Bravard saí hoje de Faroe, e você sabe que
ele não recusaria um pedido seu, ela pode ir com ele.” — O marujo falou, encarando o
barbudo.

“Você tem razão, vou lhe pedir esse favor, e aquele velho rabugento adora ela.” — Ele deu
um sorriso.

Ajudando a jovem ruiva a carregar as malas, o ar fresco que somente Skellige trazia entrava
em seus pulmões, a jovem ruiva sorriu abraçando o homem grande e barbudo, que a
apertou e a levantou rindo.

“Pai! Não tenho mais 6 anos..” — Ela falou em um tom brincalhão, apenas para apertar
ainda mais o homem no abraço.

“Para mim é como se nunca tivesse crescido.” — Ele falou acariciando a bochecha dela
uma última vez antes de se despedir.

A garota entrou no barco, onde cumprimentou Bravard com uma risada animada, cujo o
velho retribuiu no mesmo gesto. E eles partiram de viagem, e certamente chegariam ao seu
destino.

(...)

Os primeiros dia de viagem foram relativamente tranquilos, apesar de um passageiro


esquisito, e o tempo parecia colaborar com a navegação, seus limpos e ventos fortes. Mas
quando as coisas tem que dar errado, elas dão de uma vez. O mar começou a ficar irritado,
o clima ficou fechado, os marujos distraídos demais tentando controlar as velas não
notaram o que estava por vir, um vulto os derrubava um por um, o sangue espirrando pelo
convés, como um verdadeiro banquete.
A garota ruiva estava na cabine do capitão Bravard, conversando com ele e jogando um
pouco de Gwent, e apesar do barulho lá fora, eles estranharam o repentino silêncio
ensurdecedor, sem nenhum marujo cantando, apenas o leve soar de passos se dirigindo até
a cabine, Bravard levantou-se tirando a espada da bainha, preparando-se para qualquer
movimentação, enquanto a jovem ruiva parecia confusa e atônita. Um homem entrou, ele
andava calmamente, como se não se importasse com Bravard esbravejando e ameaçando
a espada contra ele, sua boca estava coberta de sangue, e ele tinha um olhar curioso, e ele
falava baixo.

“Ele andou pelas ruas da cidade…


Descendo de sua colina no alto…
Sobre os caminhos e os degraus e as pedras..
Ele cavalgou para o suspiro de uma mulher…”

Ele sussurrou, e avançou em cima de Bravard.

“Corra!” — Bravard gritou para a garota ruiva cuja as pernas tremiam, Bravard tentou usar o
peso de seu corpo para ir contra o homem, tentando dar tempo para a jovem, que corria
freneticamente pelo convés nervosa tentando achar uma solução, foi quando ela prestou
atenção ao convés, corpos e mais corpos de marujos, rasgados… drenados, o olhar opaco
em seus rostos e o cheiro enjoativo de sangue, seu corpo paralisou por um momento em
pânico com a visão, e ela ouviu a voz rouca novamente, ainda recitando o poema.

“Pois ela era seu tesouro secreto…


Ela era sua vergonha e sua felicidade…
E uma corrente e uma fortaleza não são nada…
Comparado ao beijo de uma mulher…”

Ela aproximou-se dela, o seu toque frio passeando pelo seu pescoço.

“Pois as mãos de ouro são sempre frias, mas as mãos das mulheres são quentes…”

Ele murmurou antes de cravar as presas no pescoço dela, era uma dor excruciante, como
se tivessem injetado veneno em suas veias, ardia como o fogo do inferno, e ele apertava
com uma força que ela sentia seus ossos quebrarem, como se ele fosse uma cobra
constritora, a dor alucinante junto a perda de sangue fizeram sua visão ficar turva, como em
um estado entorpecido, ela sentia ele a balança em direção a borda do barco.

“Você é tão bonita… Um sangue jovial.. Simplesmente a safra perfeita… É uma pena que
não posso mantê-la.” — Aquela voz rouca chegou em seus ouvidos.

“E eu acabei te quebrando não foi..? Mas não se preocupe… Dizem que afogamento é uma
morte que se torna pacífica… Depois que você parar de lutar é claro.” — Ele falou a dando
um beijo e a levantou, as ondas estavam enormes e agitadas, e ele a jogou contra o
oceano.

(...)
A jovem lutava para respirar, os últimos resquícios de oxigênio deixando seus pulmões, o
momento era tão desesperador, que seus olhos brilharam, em um momento tão crítico sua
magia estava tentando reagir a algo, mas o brilho logo se apagou, seu corpo parou de
reagir, e sua visão finalmente escureceu, enquanto era levada pelo oceano.

E ficou ali, durante quem sabe, minutos, horas, dias, meses, mas o curioso é que ele não
havia entrado em estado de decomposição, e os animais marinhos pareciam evitá-lo, ele
estava dentro do mar em uma posição perfeitamente deitada e estranha, e a pele parecia
porcelana, e não demorou muito para um dos predadores mais famosos das ilhas de
Skellige encontrar aquele espécime, a nixa aproximou-se com curiosidade, inicialmente ela
estava ali para devorar, mas ficou intrigada com o estado do corpo, ela observou as feições
da jovem ruiva e ela não sabia o porquê da palavra “uma beleza imortalizada” veio na sua
cabeça. Ela nadou de um lado para o outro, circulando o corpo, e passou a mão no rosto da
jovem ruiva, tanto tempo na água gelada, a pele estava fria, mas macia como a do corpo de
um vivo, e não rígida, e nenhuma bolha de oxigênio subiu.

A nixa se prendeu ainda mais aquilo, era incomum ter tanto tempo para observar uma
criatura da terra daquela forma, ela passou a mão no pescoço da jovem, onde tinha uma
mancha de sangue persistente e a esfregou, até que ela viu uma leve contração das
pálpebras, e uma mão tocando a sua que estava no rosto do corpo, e os olhos abriram,
revelando um violeta brilhoso. A nixa espantada com o movimento repentino, começou a se
transformar em sua forma monstruosa, e soltou um daqueles gritos agudos, mostrando os
dentes que mais pareciam navalhas, mas olhar que ela viu na jovem ruiva era apenas de
angústia. Não de medo, pânico, apenas uma angústia vazia, um olhar perdido, como se não
soubesse se estava entre sonho ou realidade, apenas olhando para o mar profundo.

A nixa voltou a sua face normal, aproximando-se devagar da criatura, a circulando. A jovem
ruiva a olhou, agora demonstrando um pouco mais de curiosidade, mas ainda parecendo
confusa, e estendeu a mão novamente na direção da nixa, que deixou, era incomum
alguém do povo da terra ter coragem de tentar tocá-las. A nixa abriu a boca falando, mas
para os ouvidos da ruiva soava como uma mistura de élfico com o canto de uma baleia.

A nixa impressionada pelo ser que nunca parecia perder o fôlego, e elas ficaram ali, se
circulando por alguns minutos, a nixa resolveu estender seu ombro, indicando para a jovem
ruiva segurar, ela segurou no ombro da nixa, que começou a nadar, levando ela junto, e só
então a mente da jovem foi se esclarecendo, era uma nixa.. ela estava nadando ao lado de
uma nixa.. Uma sereia, criaturas de reputação mortal.

(...)

Ela deixou a nixa puxá-la durante bastante tempo, às vezes ela apontava para algo e fazia
aquele barulho, com uma ou outra palavra compreensível, por se parecer como élfico
antigo.

Algumas soavam como “perto.. coral, o verão, ou um segura”, até que ela se sentiu em
águas rasas, mas seu corpo estava pesado, e apesar de curado, ela sentia seus membros
fracos, seus ossos haviam sido quebrados, e a pressão da água junto a ausência
prolongada de oxigênio, fez com que eles não se recuperasse adequadamente. A nixa
vendo isso, ergueu as asas e puxou o corpo dela um pouco mais para a areia.
“O-obrigada…” — A ruiva murmurou, a nixa pareceu compreender, porque retribuiu com um
daqueles sons peculiares. A nixa continuou a observar enquanto a ruiva estava deitada na
areia, sua garganta seca, ansiando por algo que ela não sabia que era. Mas a nixa
reconheceu aquilo, fome.. uma fome voraz.

A nixa fez um barulho novamente, e mergulhou, voltando novamente com um peixe grande
e fresco, a ruiva não sabia muito bem o que havia acontecido, mas seu corpo moveu-se
automaticamente e abocanhou o peixe, não o mastigando, mas enfiando presas retráteis
que saíram repentinamente e sugando o pouco sangue que o peixe tinha. A nixa fez outro
som, ficando surpresa, ela nunca tinha visto um terreno comer daquele jeito. A ruiva sugou
todo o peixe, e apesar de ter aliviado sua sede, não parecia ser o ideal… O suficiente para
dar conforto… Mas não o ideal.

Com a agora sua sede acalmada, a ruiva finalmente conseguiu pensar com clareza para
chegar em uma conclusão, ela não se lembrava de nada. Apenas vestígios de memórias,
como a barba de um homem robusto, um abraço, a voz acolhedora de uma mulher,
pedaços de infância rasgados, rostos borrados e vozes distantes.

Ela estava numa ilhota no meio do nada, com a cabeça dolorida, sem memórias, e na
companhia de uma nixa.

(...)

Os dias se passaram, a nixa sempre aparecia, a trazendo algo, ou para conversar, mesmo
que não se entendessem perfeitamente.

“Qual o seu nome..?” — A ruiva um dia perguntou, falando devagar para a sereia
compreender.

Os sons que a sereia falou soavam como “Nerissa”, e em seguida, ela fez outro som,
apontando para a ruiva, como se perguntasse o dela.

A ruiva ficou pensativa, olhou para baixo, e depois gesticulou para a sereia.

“Eu não lembro.” — Ela falou.

A sereia olhou para ela por um tempo e aproximou-se, segurando com ambas as mãos no
rosto dela, fazendo aqueles sons que a ruiva passou a achar adorável, e formulou algo
como “Aleera”.

“Aleera?” — A ruiva pigarrou numa pequena risada.


“Bem.. Se eu não lembro meu nome e você está disposta a me dar um, quem sou eu para
negar?”

(...)
Mais dias se passaram, Aleera muitas vezes entrava no mar, ela não sabia nadar direito,
mas pelos menos afogada não seria, Nerissa a fazia segurar em seu ombro e a levava por
aí por alguns minutos, e foi no primeiro dia que ela dormiu junto com Nerissa, que ela sentiu
aquela fome… Aquela fome ser saciada. Ela encostou a cabeça contra a da sereia, os
sonhos de Nerissa entrando em sua cabeça como um turbilhão de deleite.

Ela ficou confusa, mas também aliviada, pelo que parecia ela não precisaria
necessariamente machucar alguém para conter o que quer que fosse aquilo que habitava
agora em si.

(...)

O tempo passou, ela e Nerissa se aproximavam cada vez mais, e ela compreendia
vagamente o que a sereia falava, Nerissa até mesmo a ensinou a tocar lira e a cantar, para
passar o tempo.

Mas Aleera precisava conviver em civilização terrena, ela precisava de um equilíbrio, e ela
pediu a Nerissa para levá-la próximo de algum lugar, alguma vila, cidade. Nerissa, não
querendo ver Aleera infeliz, atendeu seu pedido, e elas viajaram pelo grande mar.

Depois de dias de viagem, Nerissa levou Aleera próximo a vila com um pequeno porto, ela
soltou o ombro da sereia, que ficou de frente a ela, fazendo um daqueles sons que faziam o
coração sem batidas de Aleera inchar.

“Preciso descobrir quem eu fui Nerissa..” — Ela falou acariciando o rosto da sereia, que
soltou uma melodia melancólica, e Aleera levou a mão dela até seu peito.

“A terra pode ter minha presença, mas mesmo que meu coração estranhamente não bata
mais, ele pertence a você, e meus ouvidos e acordes serão sempre preenchidos pelas suas
melodias.” — A sereia soltou outro som melódico, se abraçando a Aleera, e envolvendo
parte de sua cauda nela.

“Tentarei todo verão… Visitar essa costa, seja no continente ou em Skellige, mesmo que
alguma vez não consiga, tentarei todo ano passar uma parte do verão ou ele inteiro ao seu
lado. Ou qualquer época que eu consegui… Eu tocarei para você.. Soprarei sua concha,
cantarei durante horas se for preciso só para encontrá-la.” — Ela falou, e ambas deram um
beijo suave, a sereia a apertou no abraço, e sorriu para ela, e elas se despediram.
Aleera começou a tentar se adaptar a uma vida sem passado, e passou a trabalhar em
tavernas, e viajar, algumas vezes roubando os sonhos das pessoas enquanto elas dormiam,
e ao mesmo tempo tentando lembrar e entender quem ela já foi.

E sempre que ela podia, ela ansiava e voltava até a costa, para cantar em busca de
Nerissa, e elas se encontravam, pondo um fim temporário a sua saudade. Aleera sempre
mostrava suas composições novas,e ouvia Nerissa cantar. Naquele momento tão
perturbado de sua vida, Nerissa era a única coisa que Aleera chamou de porto seguro.

(...)

Em algum lugar, a notícia que o barco de Bravard havia naufragado ecoou, um pai chorou,
afogando toda sua dor em rum.

E em um porto, uma mãe esperou, e esperou sua filha… Sua filha que nunca chegou.

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