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Conta a história que, No reino das Águas

do Velho Chico, o rio dorme quando é


meia noite; por dois minutos, ele para
de correr. As cachoeiras ficam mudas .
Os peixes adormecem. E todo dia, nesse
mesmo instante, do alto de um pé de
jatobá, Claraluz, a menina da carranca
encantada, segura seu lampião de vaga-
lumes, iluminando o reino, atenta a
qualquer ameaça ao rio.
Claraluz ainda era bebê quando fora abandonada
por seus pais às margens do Velho Chico, em uma
pequena canoa feita por uma tora de árvore. O
que se sabe, é que ela foi encontrada pelos
índios cariris, na Ilha do Fogo, no sertão do São
Francisco.

Ali, Claraluz cresceu e aprendeu com os indígenas


todas as delícias da caatinga.
Também ali a menina aprendeu a amar
Opara, o Rio são Francisco.

De olhos negros, sorriso doce e belas tranças,


Claraluz, agora com dez anos, nunca se
separava de Umburana, a carranca encantada,
sua mascote e protetora.
Quando certa noite Claraluz foi fazer
sua ronda rotineira para ver se as
Águas do Rio São Francisco
corriam tranquilamente em seu
leito, levou o maior susto! O rio
tinha sumido!

Em seu lugar, peixes desesperados debatiam-se ao


lado de pneus, sacos plásticos e muita sujeira.
Alguém tinha roubado o rio inteirinho, gota por gota.
Desesperada, Claraluz grita, chora e
clama pelo retorno do rio:

_ Minha Nossa Senhora da


Rapadura, valei-me, diga-me que
tudo isso não passa de um
pesadelo!Ah, meu Ri o São
Francisco, para onde você foi?
Claraluz sempre recorria à Nossa Senhora da Rapadura, santa
protetora do rio. Conta a lenda que Nossa Senhora da Rapadura vivia
na Ilha do Fogo com uma rapadura na cabeça. De lá, não saia, pois três
fios de seus cabelos amarravam a Serpente da Ilha, Jara Raca, e a
mantinha presa embaixo de uma rocha do mesmo tamanho da Ilha.
Se ela se soltasse, o rio inundaria Juazeiro e Petrolina.

Tentando resolver aquela situação e


percebendo que o problema era grande
demais para ela resolver sozinha,
Claraluz decide convocar uma
assembléia com todos e tudo que se
alimenta do Rio.
E assim, reuniu tribos de todos os
lugares, árvores generosas, bichos
da terra e do ar, amigas e amigos do
Velho Chico.

Mas Claraluz não contava com toda


aquela multidão. A ilha do Rodeadouro
ficara pequena. Faltava árvores para
tanto bicho. Chão para tantas espécies.
De repente, tudo parou: estalos vindos do chão
balançavam a Ilha e, como num passe de mágica,
árvores iam surgindo em volta dos ribeirinhos
reunidos. Era uma cena fantástica!

Pipocavam do solo, já em seu tamanho adulto, as


mais belas árvores sertanejas: pés de umbu, manga,
jatobá, buriti, caju, araçá, goiaba, tamarindo, pinha,
oiti, seriguela, romã, ingá, umburana, pau
d’arco, pau ferro...
E à medida que as árvores apareciam, os bichos iam
se acomodando em seus galhos.
Era assim no
Rodeadouro. Coisas
dessa natureza sempre
aconteciam quando se
tratava de proteger o
Chicão.

Dizem, que era lá que


vivia o Nego D’água, um
menino travesso que
costumava castigar os
que maltratavam o Rio.
_Todos reunidos, vamos começar a
assembléia – bradava Claraluz em cima
de um pequeno palanque improvisado
com tronco de quixabeira.
_
_Ribeirinhas e ribeirinhos, na noite
passada nosso Reino sofreu sua mais
trágica perda. Misteriosamente, levou
sumiço o nosso tesouro. Ele que é a
nossa maior riqueza, a fonte de nossas
vidas, desapareceu!
Olhares e vozes se
cruzam ao mesmo
tempo diante daquela
revelação
surpreendente. Todos
se vêm aflitos, tristes e
preocupados. E agora?
O que fazer?
Eis que no meio da multidão, surge uma voz :

_Eu vi, eu vi...Eu vi a serpente- grita o senhor


sapo coachando em alto e bom tom.

_Coach, coach... Vi a serpente toda


descabreada na direção da Ilha do Jatobá.
Rastejava sertão adentro, parecia uma
montanha caminhante. A danada
serpenteava, serpenteava até sumir, e eu não
consegui alcançar mais seu rastro!
_Esperem! Alertou a
lenhadora Iaiá – O que
vocês viram não pode
ter sido a Serpente da
Ilha! Se ela tivesse solta,
teria inundado as
cidades do Reino, mas
aconteceu o contrário!
Será o impossível?
Nesse momento, surge um movimento
em forma de minifuração no meio da
reunião. Era uma poeira misturada com
uma sombra preta.

_Corram! É o Nego D’água – gritou


Umburana causando um verdadeiro
pega pra capar.
_Esperem, cambada de medrosos, eu
não quero assustar vocês! Trago
notícias do Alto do Serrote do Urubu.

Eu vi a Serpente Jara Raca fugindo na


direção das Pedrinhas. Só pode ter
sido ela a responsável por esta
tragédia! A peçonhenta engoliu o rio!
Foi ela.
_Enganou todo mundo. Desatou os fios
dos cabelos de Nossa Senhora da
Rapadura e deu o bote. A perigosa se
arrastava com o rio dentro do barrigão!
Eu, euzinho mesmo, a ouvi resmungar
coisas chocantes do tipo “cuspir o rio
todinho no mar”!
• _Ohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!! –
parecia um trovão de vozes!
_Você tem certeza, Nego
D’água? Como saberemos
se essa não é mais uma
de suas travessuras? –
perguntou Claraluz.

_Oxente, vocês não estão vendo meu desespero?


Acreditem! Eu vi a serpente fugindo com o rio na
barriga! Vamos, temos que agir rápido. Se a Serpente
fugir com o rio, nosso Reino morrerá de sede – presumiu
o menino, desesperado e quase chorando?
E partiram para a batalha contra a
Serpente da Ilha.
Quase uma hora depois, encontraram o
esconderijo da Serpente e formaram
uma ciranda gigante em torno dela, que
tirava um cochilo aos roncos, escondida
embaixo da rocha.

_Liberte o rio, Serpente jara Raca, você


não tem saída! Gritava bravamente a
menina Claraluz, despertando a
Serpente, que acordava meio molenga.
_Não, não e nãããããããooooooo!!!!!!- erguia-se a
Serpente estufando o peito e fazendo a ciranda
recuar.
_Fiquei muito tempo presa na Ilha do Fogo. Chegou a
hora da onça... Hum... digo, da cobra beber água!
Pensaram que as cidades seriam completamente
inundadas, pois, muito bem! Surpreendi todo
mundo.

_Aproveitei o sono de Nossa Senhora da


Rapadura e desatei os fios dos seus cabelos.
Haaaa, ha, ha, ha, ha, haaaa. Cuspirei o Chicão no
mar!!! Haaaa, haaa, haaaa
A gargalhada da Serpente da Ilha
foi um estrondo tão grande que
arrepiou as árvores, despetalou
as flores e deu um frio no
estômago de todos..

_Não tenham medo! Calma! Mantenham-se na roda! –


implora a menina Claraluz – Escute, Jara Raca, o que
deu em você pra engolir o rio todinho com tanta
voracidade? Como um rio tão grande coube dentro de
você? Diga-nos, por que quer destruir nosso Reino?
_Você disse destruir! Muuuuito engraçado!!! O rio já
está quaaaaase destruído! Ou vocês não repararam na
lixarada no leito? Nos agrotóxicos jogados
diretamente no Chicão envenenando a vida da água...
Não viram isso? Não sentiram a falta da mata ciliar? O
rio está assoreado de fio a pavio! E os esgotos
vergonhosamente jogados lá dentro! É isso o que eu
chamo de destruição! Vocês estão matando o rio! Pois
agora vou dar uma lição em vocês! A minha ira é tão
grande, que dentro dela coube o rio todinho! Vou-me
embora morar no marzão e levo comigo o Chicão.
O tempo ficou nublado. Tudo e todos murchavam de
vergonha! Pois é. ninguém tinha parado para pensar
nessa situação sinistra. Não é que a Serpente
chamou a atenção para a verdade? Mas... espere aí...
_Ora essa, Serpente, do que nos acusa?
Não fomos nós que causamos nenhum
mal ao rio. Muitíssimo pelo contrário,
nós cuidamos dele! – reclamou
indignado o remeiro rouxinol.
E foi aquele bate boca. Cada um queria dizer uma coisa
tentando convencer a Serpente de que o melhor seria
devolver o rio de uma vez por todas!

E assim, um cochicho geral


circulava entre os presentes,
até que chegaram a um
consenso, explicado pela
pequena Claraluz!
_Veja, Jara, os bichos podem morrer de sede.
Você também morrerá de sede no mar . Você
sabia que a água do mar é salgada. O melhor
para todo mundo é fazermos um acordo:

_Salgada, é? Bom... Eh... Que acordo?-


desconfiada e curiosa, mas ainda endurecida,
a Serpente se propôs a ouvir a menina.
_Bom, decidimos salvar o rio em mutirão. Antes do
anoitecer, limparemos seu leito, recomporemos
sua mata ciliar e toda a poluição lançada sobre o
Chicão será interrompida por determinação da
assembléia do Reino. Feito?
_Hum! É, parece bom! Mas eu só acredito
vendo. Quero a palavra de vocês. De tudo,
todos e todas!

Num coro só, a ciranda cirandou,


cantarolando a cirandinha:
MEU RIO SÃO FRANCISCO,
VAMOS TODOS O SALVAR.

VOCÊ É A NOSSA VIDA


E AO REINO VAI VOLTAR.

SUA MATA CILIAR


NÓS VAMOS RECUPERAR.

TIRAREMOS TODO O LIXO


PARA O PERPETUAR.

POR ISSO, DONA SERPENTE,


ENTRE DENTRO DESTA RODA

SOLTE O NOSSO VELHO CHICO,


SEJA AMIGO NESTA HORA!
A Serpente, pela primeira vez em sua vida, chorou
de emoção; Mas tratou de disfarçar as lágrimas e,
logo esticou-se todinha para frente com cara de
durona.

_É... bonito, muito bonito! Só tem


uma coisinha!!! – gritou a Serpente
causando um clima de assombroso
suspense.
_Quero minha
liberdade de volta-
disse ela! –Vocês
limpam o leito do
rio, eu solto o rio e
depois fico soltinha
da silva.
_Eu posso até voltar a
morar na Ilha do Fogo,
mas não fico mais
amarrada. Entendeu?
Tenho mais de
trezentos anos de
vida, já passei mais de
duzentos anos
amarrada. Não
aguento mais! – falou
com voz chorosa a
Serpente.
Zum-zum –zum; ti-ti-ti;
blá-blá-blá... o maior
bafafá na ciranda.
Mas Claraluz tratou de acalmar a todos e
fecharam, finalmente, o acordo com a
Serpente

Ficou decidido que fariam um mutirão e limpariam


.

todo o lixo do rio, da nascente à foz. E, em troca, a


Serpente devolveria o rio ao Reino.
A agonia daquele dia estava perto de
acabar: como mágica, tudo foi cumprido
pela ciranda. Toneladas e toneladas de
lixo foram recolhidos do leito do Velho
Chico.
As matas ciliares foram devolvidas às
margens do rio, que voltavam a ficar
verdinhas! A partir daquele dia, estava
proibido jogar esgoto e agrotóxico no
rio. De volta à Ilha do Fogo, era hora
da Serpente cumprir com a sua parte
do acordo!
Neste instante, a Serpente abriu a boca,
empinou o barrigão para a frente e....
Chuááááááááááááaáááááááááááááá!!!!!
– o Reino do Velho
Chico recebia de volta
seu líquido precioso.
Quanta felicidade! Os passarinhos bailavam em
torno da Ilha, bichos subiam nas árvores,
crianças brincavam e a multidão se divertia
embalados ao ritmo do samba de veio que
prometia fazer a festa sem hora para acabar.
ORA VIVA, ORA REVIVA!
VIVA SÃO GONÇALO, VIVA!
VIVA SÃO GONÇALO, VIVA!
A roda parou quando viram o rio balançando e
fazendo ondas. Era a Serpente que acabara de
chegar, Ninguém teve medo. Afinal, a água do
Chicão estava cristalina, a mata que protegia o
rio, toda verdinha, as leis de proteção ao rio
seriam mais rigorosas... Tudo por causa da
serpente. Ela merecia uma chance.

Quando saiu da
água foi logo
falando sua idéia,
com uma carinha
tão meiga:
_Aí, turma! Tudo bem que eu não vá
morar no mar... mas eu queria conhecê-
lo. Que tal se fizéssemos um passeio de
vapor até o Recife?

_Massa!- comemorou o Jacaré Pilé.


_ Legal!- gritou o Bode Buiú.
_Boa, Jara! Festejou a Cobra Coralina.

Combinaram então que embarcariam


cedinho nos vapores.
No percurso, acenavam para todas as comunidades
ribeirinhas das comunidades quilombolas, de
tribos indígenas, dos trabalhadores sem-terra.
Em pouco tempo,
avistaram a
cachoeira de
Paulo Afonso.
Já estavam para lá da divisa entre
Sergipe e Alagoas quando o Nego
D’água gritou, dando pulos de euforia:

_ O mar... o mar... O mar... Venham ver o


mar, minha gente! – corram toos para
ver o encontro do rio com o mar!
Abraçaram-se emocionados ao chegar ao
município alagoano Piaçabuçu, onde,
mansamente, o Rio São Francisco
encontra o Oceano. E assim, os vapores
seguiram para o Recife pelo mar.Já
anoitecendo, foram recebidos pelos
bonecos gigantes de Olinda e pelos
maracatus.
Sambaram até o amanhecer. Na
despedida, muitos abraços. Na volta,
ficaram em silêncio

Entraram no Reino já anoitecendo,


quando avistaram a lua cheia
despontando, prateando aquele dia
inesquecível.
À meia noite, o rio
dormia por dois
minutos, como
sempre aconteceia. A menina Claraluz,
segurava seu lampião
de vaga-lumes,
protegendo o Velho
Dessa vez, Chico.
passados os dois
minutos, o rio
continuou a
correr.
Claraluz levou seu rosto e bebeu água
fresquinha e cristalina. Dormiu ao som do
canto da coruja
O Reino ganhou sua paz e o Rio
São Francisco ganhou seu
merecido respeito e amor
verdadeiro dos ribeirinhos e
de todas as pessoas.

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