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HISTORINHAS DE HUMOR,

FÉ, BRINCADEIRAS
ANTIGAS E TERROR

GENIVALDO DO NASCIMENTO(ORG.)
HISTORINHAS DE HUMOR,
FÉ, BRINCADEIRAS
ANTIGAS E TERROR
CAPA:
GENIVALDO NASCIMENTO
ILUSTRAÇÕES:
J.BORGES
COAUTORIA:
EDITORA MAZALTI
PARTE 1
1. HISTÓRIAS DE TERROR EM PETROLINA-PE

ENILDA GOMES DE AMORIM DUARTE


MARIA AUXILIADORA DA SILVA ROMÃO
ROSYMARILETHE RIBEIRO DA SILVA
AMORIM

2. BRINCADEIRAS ANTIGAS

ROSENILDA V. DE FREITAS AMARIZ


MARINEIDE P. FERREIRA CAIANA

3. HISTÓRIAS COM BICHOS

MARIA DO SOCORRO DA SILVA FERREIRA


MARIA DO ROSÁRIO MACIEL MARTINS

4.RITUAL DOS PENITENTES DE JUAZEIRO-BA

AUDENORA BRITO DOS SANTOS


LOURENÇA ZURILDES NUNES FERREIRA
SIDELE SANTOS DA SILVA
PARTE 2
5. A CONSULTA DA MATUTA COM O DR. DA
CAPITAL (CORDEL)

EDINALDO TORRES

6. A PRINCESA MUNGANGA

GENIVALDO NASCIMENTO

7. O HOMEM QUE SAIU DE PETROLINA PRA


ENFRENTAR A MORTE NO RECIFE

GENIVALDO NASCIMENTO
APRESENTAÇÃO
Esse livro está dividido em duas partes: na primeira, fiz um
recorte de algumas das histórias coletadas por minhas ex-alunas
de um curso de Pós-Graduação em nivel de Especialização,
quando ministrei, em 2007, a disciplina Cultura Popular,
Cotidiano e Currículo Escolar na UPE Campus Petrolina.

Retirei as explicações acadêmicas, publicadas em outro livro, e


deixei apenas as histórias tradicionais, contadas pelo povo, as
quais falam de terror, fé, brincadeiras antigas e animais mágicos.

Na segunda parte, acrescentei duas histórias de minha autoria: A


princesa Munganga e O homem que saiu de Petrolina pra
enfrentar a morte no Recife.
Com a devida autorização, claro, incluí uma história da literatura
de cordel: “A consulta da matuta com o Dr. da capital”, de
Edinaldo Torres.

O registro dessa segunda parte está voltado, portanto, para a


linguagem (e seu contexto de uso) e também para elementos
da cultura sertaneja e catingueira.
APRESENTAÇÃO
Não é objetivo deste livro apresentar profundas análises
antropológicas, sociológicas e/ou linguísticas.

A intenção dessa obra, como o título sugere, é de apenas


divulgar boas histórias de lenda urbana, humor,brincadeiras
antigas e de fé.

Genivaldo Nascimento
Petrolina, maio de 2020, na quarentena por causa do
Coronavírus, pandemia que, até agora, já matou mais de 300
mil pessoas no mundo (mais de 20.000 no Brasil)
PARTE 1
HISTÓRIAS DE TERROR EM
PETROLINA-PE

Enilda Gomes de Amorim Duarte


Maria Auxiliadora da Silva Romão
Rosymarilethe Ribeiro da Silva Amorim

A serpente da Ilha do Fogo

Conta-se há muito tempo que entre os frades franciscanos,


que trabalhavam com índios, havia um que era muito
comunicativo. Eles o respeitavam muito e suas pregações eram
verdadeiras ordens. Um dia ele falou para os índios que na Ilha
do Fogo havia uma serpente que estava amarrada no Serrote
da ilha com um fio do cabelo de Nossa Senhora das Grotas, e
esta serpente dormia numa loca, e que enquanto as mulheres
fossem puras, não usassem roupas que deixassem visíveis as
partes do seu corpo e o povo respeitasse a Deus, cumprissem
seus mandamentos, a serpente continuaria dormindo, mas
que quando as mulheres usarem roupas que mostrem seu
corpo, deixarem de ser piedosas, os mandamentos de Deus
não forem cumpridos, a serpente acordará, sairá de sua loca e
sem mais respeitar os apelos de Nossa Senhora das Grotas,
destruirá Petrolina e Juazeiro em uma noite só.

A serpente do Rio

Nossa Senhora, mãe de Jesus, amarrou uma serpente


com três fios de cabelo. Na época em que a barragem de
Sobradinho abriu as comportas na década de 70 e a água
chegou até a Orla de Petrolina, dizem que um dos fios
quebrou-se e que quando quebrarem os outros dois fios, a
serpente irá fazer com que aconteça uma enchente pior e
toda a cidade ficará inundada e destruída.

O Nego d’água: várias versões


Numa versão...

Conta-se que o Nego d’água vive nos lugares mais


profundos do rio, dizem até que sua casa é uma gruta toda
de ouro e que ele é traiçoeiro. Geralmente ele é visto à noite,
no Serrote do Urubu, diverte-se em virar as embarcações e
quando tem raiva dos pescadores rasga as redes de pesca,
tirando os peixes dos anzóis. Seu aspecto físico é assustador,
tem couro duro e preto, olhos vermelhos, orelhas grandes e
pontiagudas, adora ver as moças quando aparece a elas no
rio. Conta-se que os meios mais fáceis de evitarem suas
maldades é lhe oferecer um pedaço de fumo e enfiar uma
faca bem amolada no fundo da embarcação.

Em outra versão...

Há muitos anos quando não existiam barcos maiores, uma


senhora agricultora, sua família e outros trabalhadores
vinham num paquete embarcado de Santa Maria da Boa
Vista trazendo mandioca para a Casa de Farinha de Petrolina.
Dizem que no meio da noite apareceu um “nego d’água” com
os olhos de fogo e todos do barco se assustaram de tal forma
que o barco virou. Com cinco minutos depois, o barco
misteriosamente voltou à sua posição normal e todos estavam
secos. O Nego d’água havia sumido. Até hoje ninguém
entende o que aconteceu.

O vapor assombrado

Dizem que só aparece à noite, todo iluminado em vários


pontos do rio São Francisco. Quem o vê, fica paralisado na
expectativa de ouvir o apito, mas de uma hora para a outra a
visão desaparece.

A mãe d’água

Muitas pessoas contam que à meia-noite o rio dorme


por dois minutos, as águas param de correr nas cachoeiras e
os peixes deitam-se no fundo do rio, e nesse momento a Mãe
d’água sai das profundezas do rio e vai sentar-se em uma
pedra para pentear os longos cabelos. Com aspecto físico
bonito, da cintura para cima é uma linda mulher e da cintura
para baixo, um peixe com lindas escamas. Populares afirmam
que aqueles que morreram afogados e seus corpos não foram
resgatados, quando o rio para, suas almas sobem para viver no
meio das estrelas. As pessoas que andam no rio ficam com
muito medo e fazem de tudo para não acordar o rio, pois se
isso vier a acontecer, dizem que ocastigo dos seres que vivem
nas profundezas da água é muito grande.
O homem da boate

Conta-se que no início da década de noventa, numa boate


da cidade, existia um homem misterioso, que se vestia de
branco e usava um belo chapéu. De aspecto físico bonito, que
envolvia as moças na dança, tudo corria bem, até que a moça
olhava para seus pés e percebia que ele estava se transformando
em bicho.Seus olhos ficavam vermelhos e... (imagine o resto).
Rsrs.

A mulher da boate

Contam que houve um assalto no estacionamento a um


casal de namorados e a mulher foi levada ao banheiro e
assassinada lá. A partir desse episódio, quando aconteciam os
shows, o fantasma dessa mulher aparecia, com marcas de
sangue nos espelhos, recados aterrorizantes escritos de batom e
com ameaças de morte.

A perna cabeluda

Há algum tempo, entre 1988 e 1990, no tempo em que o


ritmo da lambada estava no auge, as pessoas contavam que
quando havia festas, principalmente se fossem em um lugar
onde tivesse lambada como música principal, aparecia uma
perna cabeluda que corria atrás das pessoas
convidando-as para dançar.

loira do Arrocha

Esse conto é um pouco mais atual. Refere-se a uma mulher


muito bonita e loira, que na época em que o “arrocha”, um ritmo
de dança, estava no ápice, ela aparecia no meio da rua na
madrugada perto das boates onde estavam acontecendo shows
com esse ritmo musical, pedindo carona para os rapazes
que estavam de moto. Assim que conseguia carona, os rapazes
olhavam pelo retrovisor e percebiam que ela estava se
transformando num bicho esquisito com rabo igual a um
dragão. Os homens ficavam enfeitiçados e em estado de
hipnose. Quando retomavam a consciência, estavam todos
machucados como se tivessem levado uma surra.

A dança da galinha

Essa narrativa se passou por volta dos anos 80, quando a


“dança da galinha” estava fazendo sucesso. Geralmente as
pessoas dançavam em círculo, fazendo movimentos com os
braços e as pernas. Dizem que quando as pessoas começavam
a dançar, aparecia um rapaz muito bonito, alto, de óculos, e
quando as pessoas começavam a dançar com ele, de repente
os pés do rapaz se transformavam em pés de patos e quando
este tirava o chapéu havia em sua cabeça dois chifres. As
pessoas ficavam com medo e saiam correndo. Isso ocorria em
qualquer lugar que se dançasse a dança da galinha.

A mulher do algodão

Os populares contam que uma mulher faleceu e necessitou


que fossem colocados algodões em seu nariz. Na hora em que
foram lacrar o caixão, esqueceram de retirá-los. Assim, ela foi
enterrada com o nariz tampado com os algodões. Depois
desse acontecido, dizem que ela aparece nos banheiros de
estabelecimentos e residências quando as luzes estão acesas,
pedindo para que as pessoas retirem os algodões. Segundo a
lenda, as pessoas que não acreditam nessa história, podem
receber a visita assustadora dessa senhora.
A velha do graveto

Uma senhora foi atropelada na estrada nas proximidades


do Curtume (Petrolina) e faleceu na hora. Então contam que
depois de três anos, as pessoas que passam naquele lugar
presenciam o aparecimento da alma da velha catando
gravetos, toda vestida de branco, e que no lugar dos olhos ela
só tem buracos que irradiam uma luz vermelha. Suas mãos são
longas e os dedos são curtos. Geralmente ela aparece de
costas. Diz o povo que quem a enxerga de frente, morre ou fica
louco. Sua aparição ocorre às 18h, quando as pessoas estão
voltando do Balneário de Pedrinhas e do Serrote do Urubu.

A velha do banheiro nas escolas

Esta velha costuma aparecer nos banheiros das escolas.


Para ela aparecer, os alunos têm que dar três chutes na porta,
e quando os chutes são dados ela surge dentro do vaso
sanitário e só desaparece quando forem dadas três descargas.

O bicho misterioso

Dizem que no interior de Rajada, num lugar chamado “Sítio


Manteiga”, uma mulher se apaixonou pelo compadre. Isto
constitui, segundo o povo do lugar, uma maldição. Pois bem,
toda quinta-feira esta senhora sumia de casa às 18h e no
momento em que ela saía aparecia um animal estranho que
rodava e pulava ao redor da sua casa e quando o animal sumia
a senhora aparecia dez minutos depois. Uma vez, numa dessas
quintas-feiras, este animal estranho foi ferido na perna pela
família que morava na residência, e quando a dita
senhora apareceu estava com um corte estranho na perna
dizendo que se arranhou no mato. Depois disso, as pessoas
ficaram desconfiadas de que o tal bicho era a mulher.

A mulher que pega carona

Esta história é mais contada nas proximidades da Serra


da Santa, na estrada em direção ao Projeto Bebedouro. Dizem
que há alguns anos, uma professora costumava pegar carona
para voltar à sua casa. Em uma dessas caronas, aconteceu um
acidente e ela não resistiu e faleceu. Contam que desde esse
dia ela aparece nos carros que passam em direção ao Centro
de Petrolina. Sempre depois que passam da Serra da Santa, os
motoristas olham pelo retrovisor do carro e a percebem no
banco de trás. Sua alma só desaparece quando o carro chega
na cidade.

O fantasma do padre

Um padre da Vila do Carneiro se apaixonou por uma moça


e ela morreu afogada no rio. Assim que a enterraram, nasceu
no seu túmulo uma planta popularmenteconhecida como “pé
de bucha”.Todo dia o padre ia chorar no túmulo dela. Com o
tempo, ele morreu de tristeza e foi enterrado no mesmo
cemitério ao lado da moça. Dizem que à meia-noite a alma do
padre passa pelo “pé de bucha” e vai de encontro à moça, e
nesse período de tempo a planta some, só reaparecendo pela
manhã. Muitas pessoas afirmam que ao passar em frente ao
cemitério de madrugada, presenciam a aparição do espírito do
padre chorando pela moça.
O lobisomem do Alto Cheiroso

No final da década de 50 e início dade 60, contam os mais


velhos que no bairro São José, antigo Alto Cheiroso, um rapaz
batia na sua mãe e que na sexta-feira à meia noite sumia de
casa. As pessoas o viam se transformando em lobisomem,
aterrorizando a todos que passavam no bairro. Depois de um
tempo, sua mãe lhe deu o perdão e ele foi embora para o
estado de São Paulo.

O lobisomem do Serrote do Urubu

Há muitos anos surgiu um lobisomem na comunidade do


Serrote do Urubu e Porto da Ilha, que ataca as casas que têm
crianças pagãs. Ele chega batendo à porta à meia noite.
Quando não consegue entrar pra pegar as crianças, ele come
os filhotes de cachorro. Um adolescente da comunidade
afirma que a tia dele viu o lobisomem há mais ou menos um
mês e que no outro dia foi encontrado um crânio de um
cachorro que ele comeu. Moradores dizem que quando ele
está nas proximidades, os cachorros começam a latir
desesperadamente.

O bicho do N-10

Na estrada do N-10, no Projeto Senador Nilo Coelho,


aparece um bicho que ninguém consegue defini-lo direito.
Sabe-se apenas que é um vulto preto que ataca as pessoas que
passam pela estrada à meia noite. Certo dia, um senhor da
comunidade do Serrote, passando por lá, foi atacado e, para se
defender, puxou uma grande faca para furar o bicho,mas...
(termine a história,imaginando o que aconteceu).
O couro velho que rolava

Dizem que entre 1935 e 1940, nas proximidades da matriz,


havia um couro velho (muitos couros juntos que ficavam em
forma de bola) e que quando as pessoas passavam sozinhas,
principalmente se fossem a cavalo, o couro velho saía do mato
(naquela época aquele lugar não tinha muitas residências) e ia
crescendo e perseguindo a pessoa. Enquanto a pessoa não se
afastava do local, o couro velho não parava de persegui-la.

O carro preto

Contam que um carro preto passa na rua sempre depois


das 18h carregando criancinhas que estejam soltas no meio da
rua. Depois nunca mais os pais têm suas crianças de volta.

O homem da moto preta

Um homem muito bonito com olhos azuis anda numa


moto preta na frente das escolas. Suas preferências são as
mocinhas. Ele oferece uma carona e desaparece como que por
um encanto com elas. Ninguém sabe ao certo o destino das
vítimas. Dizem que ele pode ser um fantasma.
BRINCADEIRAS ANTIGAS
Rosenilda V. de Freitas Amariz
Marineide P. Ferreira Caiana

O Casamento Francês

Uma das mais antigas brincadeiras, tinha como finalidade


divertir os jovens nas noites de luar. Os mesmos reuniam nas
ruas, calçadas ou nos terreiros das casas, das fazendas,
formando grupo de pares do sexo oposto, organizando em duas
fileiras, uma de frente para outra, sendo uma das mulheres e
outra dos homens. Era improvisado um confessionário e
caracterizado um rapaz para ser o padre. Para iniciar a
brincadeira, cada jovem ia até o confessionário e o padre lhe
determinava o nome do rapaz que seria o seu pretendente,
após todas confessarem e retomar seus lugares. O primeiro
rapaz da fila iniciava a brincadeira escolhendo uma das moças.
Num gesto de bom paquerador, perguntava: -“Sou eu o seu
pretendente”? ou “Você aceita cassar comigo”? Se a resposta
fosse sim, eram aplaudidos e desfilavam de mãos dadas, caso
contrário era motivo de risos, voltando para seu lugar de cabeça
baixa, ou seja, envergonhado.Continuava a brincadeira até
todos encontrarem seus pares.
A Viuvinha

Outra brincadeira teatral muito interessante, na qual os


jovens formavam pares de gêneros diferentes e se organizavam
em circulo. Um jovem era escolhido para ser o viúvo, ficando
no centro do círculo. Então o viúvo, sutilmente, paquerava um
dos pares sem que seu parceiro percebesse,ou seja, através de
aceno, quando o paquerado percebia tentava fugir para os
braços do viúvo, mas era impedido por seu par, que o agarrava.
Caso não conseguisse segurá-la, ficava viúvo e assim
continuava a brincadeira.

O Rodeiro

Não havia muita opção de festa para jovens naquela


época. Então era comum se reunirem para brincar de rodeiro,
uma dança em forma de trancelim existente na quadrilha.

(Refrão)
Lá vem o dia
O dia lá vem
Entrei na roda
Para ver meu bem

Versos
Candeeiro de dois bicos
Que alumia duas salas
Clareai meu benzinho
Que passa por mim
Chove,chove miudinho
Na copa do meu chapéu
Quando tô com os meninos
Penso até que tô no céu

Laranjeira pequenina
Carregadinha de flor
Eu também sou pequenino
Carregadinho de amor

Andorinha no coqueiro,
Sabiá à beira-mar
Andorinha vai e volta
Meu amor não quer voltar

Esta noite eu tive um sonho,


Mas que sonho atrevido.
Sonhei que era o babado
Da barra do seu vestido

Eu quero bem,
Mas não digo a quem
Quero tanto bem
Quero que saibam
Que eu quero,
Mas que não saibam a quem

Boca de Forno

Para brincar, primeiro era escolhido um adulto, um jovem ou


uma criança maior para comandar a brincadeira. Em seguida,
eram escolhidas duas crianças para serem os líderes de cada
grupo.Cada líder escolhia seus participantes, não havendo
limites, a exemplo da gincana dos dias atuais.
O comandante da brincadeira iniciava com versos em forma
de jogral sincronizado.

Versos:
Comandantes – Boca de forno?!...
Participantes – Forno.
Comandantes – Jacarandá?!...
Participantes – Já.
Comandantes – Quando eu mandar?!...
Participantes – Vou.
Comandantes – E se não for?!...
Participantes – Bolo.

Comandante: “Seu rei mandou buscar o alfoge do seu


Pedro”. Neste momento todas as crianças saem à busca da
prenda pedida. E assim sucessivamente. Ganhava o jogo a
equipe que juntava mais prendas solicitadas pelo rei...

Lagarta Pintada
Sentadas em círculo, todas as crianças expõem as duas
mãos com as palmas no chão. Inicia-se a brincadeira cantando
e beliscando o dorso da mão de cada criança.

Música
Lagarta pintada
Quem foi que pintou?

Foi a velha cachimbeira


Que por aqui passou
No tempo das areias fazia poeira
Tire essa lagarta
Da ponta da orelha.

Quando todas as mãos estiverem nas orelhas, as crianças


levantam e giram cantando os mesmos versos.
Passa o Anel

Sentados em círculos, uma pessoa ia passando o anel nas


mãos de cada participante. Após o anel ser passado em todas
as mãos, era deixado na mão de alguém que mais gostava. Em
seguida fazia a seguinte pergunta:
Quando vim da... (nome de um lugar)
Onde deixei meu anel?

Em seguida, as crianças vão respondendo: “Na mão de fulano”.


Quem responder certo, recebe o anel para continuar a
brincadeira. Quem errar, paga uma prenda.

O Grilo

Em fila, não tinha limite de participantes, o primeiro


menino perguntava para o segundo da fila: Cadê o grilo? O
mesmo respondia baixinho: Está lá atrás. O grilo tinha que
correr imediatamente para frente e passava a ser o primeiro da
fila, caso contrário era castigado. O segundo da fila repetia a
pergunta para o terceiro e assim dando a sequência até ficar
monótono.

Mão Direita
Em círculo, deixa-se uma cadeira vazia do lado da mão
direita de um participante. Esse participante começa a
brincadeira anunciando a seguinte frase:“Minha mão direita
está desocupada”. O grupo pergunta: “Quem ocupa?”O
participante escolhe a pessoa que ocupe. Dessa forma, a
brincadeira prossegue até que o grupo perca o interesse.
HISTÓRIAS COM BICHOS
Maria do Socorro da Silva Ferreira
Maria do Rosário Maciel Martins

A cobra preta

Esta é conhecida por cobra sem veneno e que não faz mal a
ninguém. Em certo dia, a vizinha de uma mulher deu à luz a
uma linda menina. Depois de alguns meses numa madrugada,
enquanto a vizinha dava de mamar ao seu bebê, adormeceu.
Nisso veio uma cobra preta e trocou de lugar com o bebê,
mamando em seu seio enquanto enganava o bebê com a
ponta do seu rabo.

A jararaca

Tudo aconteceu quando uma senhora caminhava


normalmente pela caatinga, e deparou-se com uma enorme
jararaca em seu caminho. Desesperada, atirou várias pedras,
mas não conseguiu matá-la. Depois de algum tempo
passando novamente por aquele caminho, viu uma grande
árvore com um “oco” no meio e o volume como de uma
jararaca, só que morta e seca. A senhora creditou que a
jararaca a esperou no lugar estratégico, para se vingar, só que
esperou tanto, que morreu.
A hora das almas

Em um cemitério localizado em meio à caatinga, um senhor,


todos os dias, ia para sua lida (a roça), em sua carrocinha,
puxada pelo jumento. Isso cedo da manhã e só voltava lá pelas
17h, antes do anoitecer, pois depois das 18h, era considerado a
hora das almas. Certo dia, depois de muita labuta, o senhor
Dionísio e seu jumento perderam o horário, já era quase 18h30,
passando frente ao cemitério, quando o senhor avistou um
pano branco que balançava por cima de uma árvore, isso em
frente ao cemitério. O jumento, como se adivinhasse o dito
popular, empacou e não saía do lugar. Seu Dionísio, que já
tremia até os fios de cabelos, chicoteou o jumento, até este
sair do lugar, desempacou e foram embora. Para nunca mais
passar por aquele lugar....

A menina e os ratos

Em um certo dia, na cidade de Salgueiro, uma moça


dormia sossegada em uma rede. O seu sono era tão profundo
que vieram uns ratos, desceram pelo punho da rede que a
mesma dormia, e roeram as unhas dos pés. A menina só
percebeu o acontecido quando amanheceu o dia, e seus pés
estavam sangrando.
RITUAL DOS PENITENTES DE
JUAZEIRO - BA

Audenora Brito dos Santos


Lourença Zurildes Nunes Ferreira
Sidele Santos da Silva

Durante a quaresma, a partir da quarta-feira de cinzas,


algumas ruas de Juazeiro são percorridas por cinco cordões de
penitentes, que saem noite adentro, cantando e rezando benditos
e ladainhas, praticando flagelação em favor das almas, segundo a
crença, que padecem no purgatório. Os penitentes são divididos
em dois grupos: Alimentadeiras de Almas e Disciplinadores. Eles se
envolvem em lençóis alvos, dos pés a cabeça, com cordões de São
Francisco na cintura, e velas acesas na mão, formando filas
indianas, em visitas aos cemitérios e cruzeiros, tendo sempre à
frente um grande madeiro. Esse ritual representa a peregrinação de
Jesus na Terra, além do seu sofrimento. Os rituais dos penitentes se
intensificam durante a Semana Santa, e na quarta-feira maior
acontece a bonita cerimônia do “Encontro dos Madeiros”. Os
cordões das “Alimentadeiras de Almas” encontram-se entre os dois
cemitérios, onde existe um grande cruzeiro, e cantam pranto de
“Nossa Senhora”, enquanto os madeiros são incensados e as
matracas batem ininterruptamente.
Esse ritual é composto de sacrifícios, benditos, súplicas de
lamentações, arrependimento e doação fraterna.
Os disciplinadores formam um grupo fechado, ao contrário
das “Alimentadeiras de Almas”, que saem às segundas, quartas e
sextas, fazendo penitência, e diariamente, durante a Semana
Santa até a sexta-feira da Paixão. Enquanto os cordões das
“Alimentadeiras de Almas” fazem o ritual percorrendo sete
estações até chegar ao cemitério, cantando benditos e Pai-Nosso
pelas almas do purgatório, além de ladainhas, os Disciplinadores
se cortam, derramando o próprio sangue, procurando imitar o
sofrimento de Cristo e redimir-se dos pecados cometidos.
Durante a quaresma, semanalmente, eles disciplinam-se com
um instrumento cortante de dois gumes, conhecido como
“disciplina”, cortam as costas e coxas, enquanto rezam nos
sepulcros e em casas de amigos. Trajam-se apenas com uma
tanga e uma toalha branca sobre a cabeça, cobrindo o rosto para
não ser reconhecido.
A autoflagelação é praticada com a “disciplina”, cujo
instrumento, preso a uma correia de couro de veado, é enrolado
na mão do disciplinador e açoitado pelos lados em direção às
costas nuas, provocando cortes profundos. A “disciplina” serve
também para afugentar os curiosos. Portanto, é também uma
arma composta de duas lâminas de aço, contra aqueles que
tenta identificar o disciplinador. O flagelo é praticado sob o
comando de um chefe, ou guia, durante a quaresma, pelo alívio
das almas do purgatório.Na quarta e quinta-feira da Semana
Santa, durante o cortejo, eles recebem esmolas, para o jejum da
sexta-feira da Paixão.
A esmola do penitente é composta de pão e sabão,
entregue ao salgueiro que guarda as vestes ensanguentadas. O
pão é para o jejum e o sabão para lavar as vestes no rio São
Francisco após o ritual, onde também se banham. Por ordem
do guia, os disciplinadores começam a penitência, cortando-se
com a “disciplina” que para eles é uma arma sagrada.
Geralmente o ritual é feito de joelhos, com cânticos. Já na
Sexta-feira da Paixão, eles não se disciplinam, e fazem o ritual
apenas com cânticos e oração pelos mortos, vestidos com a
roupa manchada do sangue derramado no dia anterior. No
Sábado de Aleluia, passam pelas casas de amigos com roupas
bem limpas em comemoração à ressurreição de Cristo.

Segundo as normas da penitência, a “disciplina” é usada


durante a quaresma e em ocasiões especiais (enterros de
adeptos da penitência) ou espirituais (visita-de-cova). Nessas
ocasiões eles se flagelam ao pé da sepultura, com choros e
lamentações. E o sangue corre até o encerramento da visita.
Os ferimentos cicatrizam sem uso de remédios, e quando há
riscos de infecção, é colocado sobre o ferimento sal moído.

Os três grupos de penitentes “Alimentadores de Almas” não se


flagelam como os “disciplinadores”. O ritual é feito com
cânticos, benditos e ladainhas, além de Pai-Nosso em favor das
almas que tiveram mortes violentas e penam no purgatório.
Ao contrário dos “disciplinadores”, que fazem o ritual
ocultamente, não aceitando a presença de curiosos, as
“Alimentadeiras de Almas” percorrem as ruas de Juazeiro,
saindo da casa de oração até o cemitério, fazendo paradas nas
sete estações.
Cada uma das estações tem um significado que a
caracteriza. Na primeira, dona Aurora foi esmagada pelo trem
de ferro em décadas passadas, exatamente na lateral da banca
em frente à Praça Dom Thomás; na segunda, próximo à Rua do
Mussambê, o senhor Passos foi eletrocutado; próximo ao
cemitério, uma mulher foi assassinada pelo marido ciumento.
E assim por diante, até alcançar a sétima estação, onde um
homem foi morto a cacetadas. Já dentro do cemitério velho, os
cordões fazem quatro estações: no cruzeiro, na cova de dona
Neves, na sepultura das donzelas (filhas de um ricaço, vítimas
de uma peste) e na sepultura de João Pereira. Ainda no
cemitério, visitam os túmulos dos penitentes falecidos. Os
penitentes acham-se na obrigação de fazer sacrifícios e rezar
pelas almas que tiveram mortes violentas, como desastres,
suicídios, homicídios e afogamentos.Acreditam eles que,por
meio desse ritual, vão redimir os pecados daqueles que não
tiveram oportunidade de arrepender-se.
Como os “Disciplinadores”, as “Alimentadeiras de Almas”
obedecem a alguns princípios básicos.
O grupo de “Disciplinadores” é composto apenas de homens,
enquanto as “Alimentadeiras de Almas” têm homens,
mulheres e crianças a partir de 7 anos de idade.

Um período de penitência compreende sete anos. Se um


penitente morrer antes de completar o tempo, outro deverá
substituí-lo e pagar o período que não foi cumprido pelo
falecido.
Os cordões só entram no cemitério durante a Semana Santa.
Ao acontecer a morte de um chefe, o madeiro é depositado
em sua sepultura.
O féretro é acompanhado por todos os penitentes devidamente
trajados com a roupa da penitência. A matraca e o madeiro são
conduzidos durante a cerimônia. O novo chefe que assume o
cordão tem que providenciar outro madeiro.

O grupo só anda com o guia, a quem cabe a tarefa de ensinar o


uso da “disciplina” aos novatos, depois de benzer o instrumento.
A este compete açoitar o novato com a “disciplina”, em caso de
resistência ao serviço.
PARTE 2
A CONSULTA DA MATUTA COM O DR.
DA CAPITAL

EDINALDO TORRES

Como tudo anda difícil


E o desemprego é geral
O Doutor da capital
Veio para o interior
Antes de chegar aqui
Muito bem se preparou
Também se especializou
Fez residência e mestrado
Tem título de doutorado
De tanto que estudou

Nascido lá em São Paulo


Também estudou por lá
Nunca veio passear
Em cidades do Nordeste
Conhece todo Sudeste
América, França e Japão
Fala inglês com correção
E um português perfeito
Só nunca falou de direito
Com um matuto do sertão

Um dia no consultório
A secretária anunciou
Sua paciente chegou
Já posso mandar entrar?
O nome dela é Josefa
Tem setenta e cinco anos
E veio fazendo planos
De sair daqui curada
Com receita detalhada
Pra todos seus desenganos

Bom dia dona Josefa


Se antecipa o Doutor
Eu estou a seu dispor,
Querendo impressionar!
Eu sei que vou lhe curar
Pois sou muito preparado
Não tenha nenhum cuidado
Que vou lhe deixar sarada
Disposta e recuperada
Com um remédio acertado
Adeus, diz dona Josefa
De modo muito singelo
Com um sorriso amarelo
E um tanto desconcertada
Pois ao falar com doutor
O matuto fica pequeno
E a voz já sai tremendo
Por falta de experiência
Precisa ter paciência
Para acabar se entendendo

E então dona Josefa


Precisamos conversar
Sou doutor, vou ajudar
A resolver seu problema
Fazer algumas perguntas
Faz parte do meu sistema
Pra consulta concluir
E eu tratar a amiga
É preciso que me diga
O que é que lhe trouxe aqui?

Eu saí lá da Caeira
Onde fica minha roça
Fui andano de carroça
Inté chegar na Rajada
Dispois vim cum Vitorino
Do posto de gasolina
Chegano em Petrolina
Lá na Cohab eu fiquei
Finalmente aqui cheguei
No oimbu na Joalina

A senhora não entendeu


O que eu quis lhe perguntar
Diz o Doutor a falar
Com muita perseverança
Procurando outra instância
Usando de paciência
E com muita inteligência
Calmo a raciocinar
Passou a lhe perguntar
Qual é a sua doença?

Mas doutor se eu soubesse


Responder essa sentença
Juro pela providênça
Não vinha me consultar
Eu paguei particular
Pra mode falar com cê
E o senhor quer saber
Qual é a minha doença
Tenha santa paciência
O amigo estudou pra quê?
Tenha calma dona Josefa
É só um mal entendido
Pois tudo que lhe digo
O sentido é diferente
E devagarinho a gente
Vai tentando se acertar
Mas pra consultar alguém
Esse alguém tem que dizer
E eu preciso saber
O que é que a senhora tem?

Tenho uma vaca amojada


Um lindo pai de terrêro
Dez galinha no pulêro
Que todo dia põe ovo
Pra sustentar o meu povo
Um vaso chei de feijão
Cinco quarta de arrois
Batata, farinha e mie
Pois sustentei os meus fie
Pensando bem no depois

O doutor respirou fundo


Passou a mão no cabelo
Mas como ele tinha zelo
E amor à profissão
Foi retomando a conversa
Falando muito sem pressa
E ainda sorridente
Me diga dona Josefa
Só o que me interessa
O que é que a senhora sente?
Doutor o que sinto mermo
É vontade de ir embora
Qui já faz bem meia hora
Qui entrei pra me consultar
E o senhor a preguntar
Só coisa de fofoqueiro
E de mim não quis saber
Os incômodo que eu sinto
Que eu tenho muito, não minto
Alguns vou lhe dizer

Eu tenho um rejeto inchado


Na passarinha um repuxo
Uma gastura no buxo
Desarranjo, féu virado
Dá um farnizim do lado
Do osso do mucumbu
Eu dou muito passamento
Pra caminhar eu arquejo
E num posso comê quêjo
Que saio soltando vento

Mas vou consultar com Belo


Que mora na Maiadareia
Curandeiro de mão cheia
E entende o que a gente fala
Já vou sair dessa sala
Que é chegada a minha hora
Foi andando sem demora
Abriu a porta e saiu
Pro doutor ainda sorriu
Deu adeus e foi embora
Sem acreditar naquilo
O médico ficou parado
Pensativo ali sentado
Rabiscando num papel
Não é só título que conta
Por tudo que viu passar
Pro matuto consultar
Ele precisa entender
Tem muito que aprender
Com a cultura popular
Fim

Nota: existem versões em outras linguagens desse cordel no


YouTube, a exemplo de uma radionovela e dramatizações. Na
busca, escrever “A consulta da matuta com o Dr. da Capital-
cordel”.
A PRINCESA MUNGANGA

GENIVALDO NASCIMENTO

Era uma vez...


Era uma vez uma princesa. Loira. Muito loira. Usava sempre
um vestido branco. Longo. Tipo uma noiva. Uma princesa loira,
de vestido branco e sempre noiva. Olhos azuis. Brilhantes e
grandes. Filha de um Rei de um mundo muito distante. Um
dia ela dormiu e acordou...Na Caatinga. No sertão. Na zona
rural de Petrolina. Entre Pau Ferro e Rajada. Mas não acordou
“na rua” desses lugares. Foi no mato brabo, fechado, entre os
marmeleiros, umbuzeiros, umburanas de cambão, xique-
xiques, juremas pretas, catingueiras e cascudos, lagartixas e
calangos. Estava deitada no chão, perto de um buraco de
peba. E de um formigueiro.

A princesa abre os olhos bem devagar. Vão aparecendo galhos


retorcidos, secos, estranhos para ela. Abre mais ainda os olhos
e movimenta a cabeça para o lado. Tenta entender onde está.
Sente aquela confusão mental comum quando acordamos
atordoados. Com olhos bem abertos, levanta e vê muitas
árvores desconhecidas. Pega em uma que tem pequenos
espinhos finos e folhas verdes. Aperta na mão. O espinho fura
na ponta do dedo dela e solta um líquido que arde bastante.
Ela: “Ai, planta horrorosa”.A planta: “ Quem mandou mexer
com quem tá quieta. Prazer: Favela. Você é nova aqui”. A
princesa: “sim. Você é muito agressiva com as pessoas”. A
Favela: “não é verdade. Não saio por aí furando as pessoas. Só
faço isso com quem me aperta de forma descuidada como
você fez. E só faz isso quem não me conhece, pois quem me
conhece, sabe como pode tocar em mim para eu não ferir.
Eu não furo os bodes, por exemplo. Sirvo de alimento para eles
e nenhum até agora foi agredido por mim”.

A princesa mostra-se indiferente. Não quis saber que


animal era o bode. Nem ficou sabendo que ele é guerreiro. Até
em época de grandes secas, sabe se virar. Quando as folhas da
favela caem e as verdes ficam altas, ele se levanta, usa as duas
patas dianteiras como apoio pra segurar nos galhos e alcançar
as folhas. É pra não morrer de fome. Por isso não se vê bode
morto na beira da pista quando tem seca braba. Agora vaca
tem muito. Com a fome, ela cai e, por causa do peso, não
consegue se levantar e buscar alimentos na caatinga como o
bode faz. Ali ela seca, morre e serve de comida para os urubus.
Mas voltemos ao drama da princesa perdida na caatinga.
A princesa olhou para a Favela e, com um sorriso de
vendedor, aquele que parece nota de 3 reais, pergunta onde
estava. Aquelas árvores não eram as mesmas que ela via nos
bosques do reino de seu pai. As de lá eram grandes, altas, com
sombras imensas que serviam para descanso. Não eram como
aquelas que ela via ali. Pareciam mortas. A Favela:
-Elas não estão mortas. Estão dormindo. É época de seca.
Pouca chuva. Soltam as folhas para precisarem de menos água
e assim atravessarem esse período.Quando a chuva vem, as
folhas voltam e recomeça o ciclo. Como acontece em muitas
regiões do seu reino com árvores grandes e altas (esse
“grandes e altas” a favela disse com um tom de ironia e
fazendo, com dois galhos servindo de braços e mãos, aquele
gesto de aspas). A favela continuou: "Sim, respondendo à
pergunta: você está na Caatinga, único bioma desse tipo no
mundo. Por isso você não reconhece as plantas e os bichos
daqui."
A princesa, então, agradeceu com aquele “obrigada” sem
gosto, sem vida, como se fosse um bombom com embalagem
plástica. E saiu desnorteada. Trôpega. Misturando esquerda
com direita e baixo com cima. Tipo bêbado que-faz-que-vai-e
não vai. Não andava em linha reta. Andava como um galo que
bebe mão de poeira (um líquido que sai da mandioca no
processo de farinhada. Quando ingerido, deixa o galo tonto,
andando sem direção e pode até matar). Ela anda, anda, anda
e...anda. Desviando dos galhos retorcidos das plantas. Já no
fim do dia, toda arranhada, com fome e com sede, reclama da
falta de sorte por ter se perdido em um mato feio que nem
floresta é. Não tem muitas árvores grandes com muita sombra.
Princesa só se perde em florestas. Deve ter sido um castigo
daquela bruxa invejosa que vivia atazanando todos do reino
de seu pai. Mas aí teve uma ideia:
-Vou gritar bem alto por socorro. Deve ter algum príncipe
por perto. Aí ele vem no seu cavalo branco e enorme me salvar.
Todo príncipe reconhece o grito de uma princesa em apuros.
Aí, apesar da fraqueza, ela puxa com muita força o ar do peito
e grita bem alto:
-SOCORRO, SOCORRO, SOCORRO!!! MEU PRÍNCIPE, VENHA
ME SALVAR!
Silêncio na mata. Ela esperando a resposta. De novo:
-SOCORRO, SOCORRO, SOCORRO!!! MEU PRÍNCIPE, VENHA
ME SALVAR!
Silêncio na mata. Ela esperando a resposta. Começou a
anoitecer. De novo:
-SOCORRO, SOCORRO, SOCORRO!!! MEU PRÍNCIPE, VENHA
ME SALVAR!
Então, de longe, veio uma voz bem alta que invadiu a
Caatinga:
-CALA A BOCA, MUNGANGA! OS BICHOS DA CAATINGA
PRECISAM DORMIR.
A princesa dormiu. Cansada. Triste. Chorando. No outro dia, ela
acorda. Abre os olhos bem devagar. Pedindo a Deus que seus
olhos vissem a floresta com árvores grandes e com muita
sombra. E...
Ainda estava na Caatinga. E ficou mais desesperada ainda
porque sentiu algo estranho em suas pernas. Quando olhou
para elas...
Viu que seus pés estavam virados para trás. Mas aí já é outra
história...
Fim

Nota: essa história era contada por mim a Brenda e Lucas,


meus filhos, quando eram crianças. Brenda dizia a fala da
princesa pedindo socorro e Lucas respondia, com as mãos em
concha na boca, a resposta da Caatinga. E ríamos muito da
princesa Munganga: loira, muito loira, sempre noiva, muito
besta e perdida na Caatinga.
O HOMEM QUE SAIU DE PETROLINA
PARA SE ENCONTRAR COM A MORTE
NO RECIFE

GENIVALDO NASCIMENTO

Contam os antigos que um dia um homem saiu de Petrolina


pra se encontrar com a morte no Recife. E a história era mais
ou menos assim:
Ele pega o elevador. Vai se encontrar com a Morte. Uma
Morte velhaca, irresponsável. Fraude das pessoas sérias. Uma
Morte Profana por ter violado o código Sagrado de não avisar
quando vinha. Não saber o dia quando vai morrer é um direito
do ser humano e uma obrigação moral da Morte.Sempre foi
assim e assim deveria ser sempre. Desde criança aprendeu isso
quando morava em Rajada e ouvia, no terreiro escuro, as
histórias de terror. Mas não. A Morte resolveu violar esse direito
naquele dia e avisou que estava aguardando-o no sétimo
andar, apartamento 704, daquele prédio feio do feio Recife.
Não gostava daquela cidade que, para ele, estava sempre suja,
quente e com aparência decadente .
Não que Petrolina fosse fria, claro. Não achava tão bonitas as
pontes da capital pernambucana quanto a que liga Petrolina a
Juazeiro nem os rios recifenses (poluídos) tinham a magia do
Velho Chico.
Todas as coisas imorais eram odiadas por ele naquela fase
da vida. Tinha quarenta e três anos e um homem, a partir de
quarenta anos, deve obedecer a certas coisas da vida, como
não mentir deliberadamente, trair, roubar ou matar. Para ele,
um homem de quarenta anos deve ser Belo com proporção,
harmonia e grandeza. Isso porque entrar nos quarenta é
começar o segundo tempo do jogo da vida (ele não gostava
dessa expressão “jogo da vida” porque tinha desprezo pelos
clichês. Achava que eles fazem a mente ser preguiçosa).
Então, para o homem que atravessa a ponte dos quarenta, a
última chance de não ficar se remoendo com a angústia
espiritual no leito de morte quando tiver perto do fim do jogo
(70, 80 anos) por não ter sido Belo, é fazer o que deve ser feito
conforme as lições aristotélicas. E ele não tinha conseguido ser
Belo como gostaria nos primeiros quarenta anos (no primeiro
tempo do jogo). Pausa: ele avisa ao leitor que ainda tem
vergonha de dizer aqui as coisas feias que fez até os 40 anos.
Aquela Morte, então, representava tudo de feio que ele tinha
raiva naquela fase da vida: irresponsabilidade, canalhice,
velhacaria, traição, mentira.
Sobe e pensa nessas coisas. Eram 9h da manhã.
Sobe...sobe...sobe...
A porta do elevador se abre como uma boca de um
monstro e vomita-o para o corredor do prédio (essa imagem
do elevador-monstro também é clichê literário. Não gosta
dela). Ele olha o número pintado de vermelho na porta dos
apartamentos: 602, 603,........604. Ninguém no corredor.
Nenhuma testemunha de sua angústia e revolta. Ele se dirige
ao 704 como se fosse a um duelo dos filmes de Faroeste. Só
um sobrevive. Ele ou a Morte (mais clichê). Caminha devagar.
Ainda tem raiva da Morte por ter descumprido o acordo e
avisar que viria. Não tem medo dela.
Do elevador ao apartamento, ele dá uns dez passos. Olha
fixamente para aquela porta com o número gravado. Sabe
que, ao abri-la, quem atenderá será Ela. Aperta a campainha.
Ouve barulho de sandálias se arrastando. Tchec, tchec, tchec...
A fechadura se move. O coração dele fica acelerado (como a
mãe dele dizia, dá um baticum danado). A porta se move
lentamente. Começa a abrir e para. Ele fica sem coragem de
empurrar para que ela se abra toda. Ele entra. Pensa em voltar
para o elevador. A porta se abre. Em sua frente, uma jovem
senhora o recebe. Fica feliz em vê-lo. Uma das melhores
imagens é ver o afeto nos olhos de uma pessoa. “Só se gosta
com os olhos”, disse uma amiga dele uma vez. A sincera
amizade brota nos olhos. Ele gosta dela. -Oi, tudo bom?
Não é a Morte, claro.
Ele a beija no rosto e, ato contínuo, abraça-a. Um abraço
cordial e rápido. Por sobre os ombros da jovem senhora, ele a
enxerga: a Morte Canalha.Violou o acordo de vir sem avisar.
Ela está no corpo de uma mulher de personalidade forte e
muito inteligente. Uma amiga dele e irmã da jovem senhora
que o atendeu na porta.
-Olá, meu amigo.
-Olá, minha amiga.
Estranha a sensação de abraçar alguém que tem a Morte
dentro de si.
Logo lembra que todos nós temos a Morte dentro do nosso
corpo. Nascemos e percorremos o caminho em direção à
morte, como um boi levado ao matadouro.
Ela convida-o para tomar café. Oferece um pão doce com
manteiga e leite. A jovem senhora pergunta se ele quer um ovo
atropelado. Os três riem com a imagem do ovo atropelado.
Naquela hora em que a amiga abre a boca e sorri, ele percebe a
fraqueza da Morte: o sorriso.Trama então, a cada possibilidade,
dizer uma graça para a amiga sorrir. E consegue. Durante todo
o tempo, ele aproveitava as chances para fazer isso. Tem
sucesso na maioria das vezes. Tomam café e conversam sobre a
empresa onde ela é
sócia. Ele é assessor dela. Ela dá algumas ordens para ele
cumprir. Imaginam o futuro da empresa sem a mulher madura,
forte, bonita, inteligente, apaixonada por literatura e cinema.
Ela tem um tipo de câncer raro, extremamente agressivo.
Sentados em um sofá em frente à televisão, os dois
conversam sobre gente que supera traumas épicos. É o tema
de um programa de televisão que está sendo exibido. Ele olha
para a amiga e se assusta com o fato de que, dali a alguns anos,
aquela voz dela poderá sumir, o corpo deixará de existir como
vela que se acaba. Como assim?
A visita termina. São 12h. Ele precisa pegar o avião de volta
para Petrolina, uma cidade de luz acesa, estourada, diferente
da escuridão e do nublado do Recife naquele dia. Sente
vontade de ficar mais ali, assistindo à televisão com a
amiga e jogando conversa fora. Na porta, antes de sair,diz algo
que faz a amiga sorrir de novo. Ele sai. Ela dá um leve tchau,
sem muita convicção e sem vida, tipo aquele que as misses dão
nos desfiles. Ele volta com um bolo no peito.Uma angústia
sufocante.
Todo calor abafado, pesado e úmido do Recife entra no seu
peito. Difícil de respirar.

Assopra. O peso continua. Revoltado com a Morte Canalha que


avisa quando vai chegar. A porta do elevador se abre. Ele entra.
Olha para o espelho decadente dentro do elevador. Vê um
resto de sorriso. Menos de um ano depois daquela visita, a
amiga morreu. Levou com ela o brilho e som estridente da
gargalhada. O bolo nunca mais saiu do peito dele. A Morte
Canalha venceu. Ela sempre vence.
Fim

Em homenagem a Simone Ramos

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