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– Você chegou a conhecê-la?

– Eu lembro da risada. Eu sei que eu não deveria, mas lembro.


– Isso é mais do que a maioria temm.
– Não sei se isso é bom ou não.
Silêncio.
– Quanto tempo você quer ficar aqui? Precisamos voltar logo. Illiana não pode saber.
– Nada na Promessa me proíbe de visitar os mortos.
Sabia que deveria estar sentindo algo. Via o monolito branco que florescera tão cedo do
chão, marcando o ponto exato da acrópole onde sua mãe jazia enterrada. Centenas deles se
espalhavam pelo terreno, âncoras para as almas, protegendo-as da mitológica fome dos noninfernos.
Ajoelhou-se, por mais difícil que fosse o fazer em sua armadura pesada, sentindo o nome gravado
em baixo relevo na pedra. Seus dedos demoraram-se nas crevices, passando do nome para a família.
Vlacha. Nunca ousara usar seu nome, colocar depois do seu, assumir o passado. Para renascer, teve
de abrir mão.
A mão tentou lhe confortar, acariciando seu ombro, por mais que as placas de metal
bloqueassem o calor humano.
– Maya, eu sinto muito. Mas isso não te faz bem. Melhor sair daqui, de verdade. Nós somos
sua família. Eu sou sua família.
Sabia que era verdade. Trombara com sua mãe três vezes desde que proclamara a Promessa.
Na primeira tinha doze anos, e a viu cruzando a Rota Dourada dentro de uma nobre e cintilante
carruagem divina; que era apenas comum, mas reluzia na mente infantil. Chorou no travesseiro
aquela noite. Na segunta, tinha dezessete, e a percebeu na multidão enquanto escoltava o monarca
de Argenia, Corydon. A rigidez do ferro se manteve. Mas a terceira fora cinco dias atrás. Os olhos
se cruzaram, a mulher que achava ter enterrado fundo nas Mandíbulas de suas entranhas até sorriu
de volta. Achou ter ouvido a risada que nunca existiu. Podia ter aproximado. “Se lembra de mim?
Sua filha? Consegue me reconhecer?”.
Uma Prometida não tem família.
Uma Prometida não tem amarras.
Uma Prometida não tem amores.
Uma Prometida não tem nada além de Argenia, pois isso é tudo que ela precisa. Assim foi
visto, assim foi escrito, assim sempre foi. Ela não foi, não correu para o imaginário gargalhar sem
saber que era a última chance de entender, a única pessoa que compartilhava de seu rubro licor
sanguíneo.
Levantou-se, retirando do rosto o cacheado cabelo negro que cobria tão céticos olhos, que
nada deixavam fluir. Queria estar sentindo mais, queria chorar. No fundo achou que estar frente a
frente com o túmulo despertaria algo a muito adormecido, ecoando dentro de si. Não o fez.
– Você está certa, claro. Vamos embora.
– Eu sempre to certa.
– Certo, e eu ia agradecer, já desisti da ideia. Parabéns.
Alexandra deu de ombros, o riso tossido acompanhando o tintilar metálico tão característico.
Ofereceu a mão, e alçou Maya para cima quando ela aceitou, colocando a amiga de pé. O sol já
ameaçava se por, lançando os últimos reluzires dourados enquanto sumiu por detrás das muralhas
oeste. Haviam nuvens no horizonte, o profético aproximar-se da tempestades. Deveria estar sobre
Argenia em alguns poucos dias.
Caminharam lado a lado em silêncio, nenhuma das duas ousando comentar. As pessoas
abriam espaço nas largas ruas enquanto completavam seus afazeres diários. Deveriam seguir direto
para o grande centro da Promessa, mas ninguém sabia que estavam fora. Ninguém sabia onde
estavam. Ninguém se importava.
– Quer ir ver o mar? – Maya não queria voltar. Não queria olhar nos olhos de Illiana e
perguntar se havia alguma ordem. Por um momento, queria acreditar que Argenia seria capaz de
sobreviver sem seu olhar vigilante. Sobreviver por séculos, gloriosa desde a queda dos deuses. Não
seria um dia de folga por parte de duas de suas guardiãs que destruíria a ordem das coisas.
– Você não sossega?
– Não é um crime ir pra costa.
– Porque ainda com você mesmo? Se eu estivesse em patrulha com Cybele e Korrina eu…
– Estaria morrendo de tédio. Vamos lá, por favor. Eu preciso, de verdade. O som das águas
me faz bem.
– Acho que ou os Oráculos erraram ao te trazer pra nós, ou o destino gosta de foder comigo.
– Tu me adora.
– Cala a boca e acelera o passo. Meia hora, máximo. Quero estar de volta pro jantar.
O oceano Vatílico sempre tinha um tom esverdeado, abraçando e protegendo o sul de
Argenia, seu cheiro salino forte e característico. Alguns poucos barcos terminavam de mover
mercadorias no movimentado porto, aproveitando os últimos momentos de luz do dia. Gritos,
xingos, tropeços, bêbados tilitando garrafas. Som da vida.
Sussurros de respeito, reverências desajeitadas, o terror tão familiar no rosto daqueles
tentando esconder um contrabando ou outro. Alexandra proferiu algumas respostas rápidas, sempre
violenta, sempre ao ponto, permitindo que Maya só andasse, pensando forte no próximo passo e
apenas nele, pois ideias doíam tanto. Apenas ousou andar até tocar a areia e deixar o frenesi humano
para trás.
As botas impediam que sentisse os grãos contra sua carne. Sentou-se, sabia como era a
sensação, mas apenas sabia. Não usava apenas uma couraça.
Sua companheira se manteve em pé, braços cruzados, olhos travados na amiga que flertava
com o horizonte infinito. Maya era dois anos mais velha, tinha uma patente mais alta, mas era a
pessoa mais infantil que conhecia. Era maleável demais, era resistente à forja. – Você vai ficar bem,
né? – Mas mesmo assim, não conseguia não se importar. – As pessoas morrem. O mundo assim foi
feito. Existem coisas mais importantes pra se pensar. Argenia precisa de nós. Maya, se tu não me
responder eu vou esmurrar sua cara.
Conseguiu arrancar um sorriso furtivo. Era o suficiente.
– Você nunca quis ir atrás da sua família?
– Gente simples do Rochedo. Não sangue heroíco como você. Ter sido escolhida por
Grigorios foi uma benção.
– Eu começei a me perguntar como eu estaria se ele não tivesse me visto.
– Nojentíssima. Declamando uma poesia pior que a outra na Casa Celeste. Fomos todos
salvos de mais uma intelectual inútil.
Riu. – Talvez.
O sol já havia sumido, e o verde escurecia, as ondas tão calmas que todo o mar parecia
morto. Morto como ela. Morto mas vivo. Morto mas ecoando.
Sentiu o corpo sentar ao seu lado, o ombro contra ombro, metal contra metal, égide contra
égide. Não realmente sentiu nada. O mar continuava a lhe chamar, as águas começavam a prometer
muito. Mas ela era a Promessa. Quem prometia, quem se entregava, quem carregara o bastião
daqueles que outrora mataram os divinos e construiram a humanidade por cima de suas tumbas.
Daqueles que ceifaram Ssyvos, e sobre ele declararam Argenia.
Sobre ele fizeram a Promessa.
Sobre ele mataram os sonhos.

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