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Table of Contents
O Priorado da Laranjeira
Ficha Técnica
Nota da Autora
I
1
2
3
4
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6
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9
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II
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III
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39
40
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42
43
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45
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47
48
IV
49
50
51
52
53
54
55
56
57
V
58
59
60
61
62
63
64
65
VI
66
67
68
69
70
71
72
73
74
75
76
Os Intervenientes
Glossário
Cronologia
Agradecimentos
I
Histórias de Outrora
— Apocalipse 20:1-3
1
Este
***
Orisima.
***
— Já vai — murmurou.
— E estava aberto?
— Sim.
— Mas...
— O Comandante?
***
***
— Senhora Duryan.
Pronunciou o nome como se fosse uma infâmia. Ead
esperava-o de certos membros da corte. Afinal, ela era
uma sulista, nascida fora do Reino das Virtudes, e isso
levantava suspeitas entre os inysh.
Truyde enrijeceu.
— Não.
— Então o que é?
Este
***
Sabia a pureza.
— Sim, talvez.
Tané preparou-se.
Sinos.
Soldados.
— Roos.
— Revistem as casas.
— Muito bem.
O olhar de Sabran voltou-se para a senhora Roslain
Crest, primeira dama da rainha, que usava um vestido de
seda esmeralda com renda branca. O seu broche exibia
um par de cálices, como todos aqueles que tinham o
Cavaleiro da Justiça como patrono, mas os dela eram
dourados, mostrando que era uma descendente direta
daquele cavaleiro.
— Intruso. Quem é?
— Pássaro maldito — murmurou Ead, sentindo uma
gota de suor a escorrer-lhe pelas costas. Levantou a saia
e puxou uma adaga da bainha amarrada à barriga da
perna.
O espião estava sobre um suporte do lado de fora da
porta. Quando Ead se aproximou, ele inclinou a cabeça.
— Intrusa — repetiu ele em tom sinistro. — Donzela
maldita. Fora do meu palácio.
— Ouve-me bem. — Ead mostrou a adaga, fazendo-o
arrepiar as penas. — Podes pensar que tens poder aqui,
mas, mais cedo ou mais tarde, Sua Majestade irá querer
uma tarte de pombo. Duvido de que ela repare se eu te
incluir no recheio.
Tinha de admitir que era um pássaro bonito. Um
mimético de arco-íris. As suas penas eram um borrão de
azul e verde e laranja, e a sua cabeça de um rosa
profundo. Seria uma pena ter de o cozinhar.
— Pagamento — disse ele com um toque de uma
garra.
Aquele pássaro possibilitara muitos encontros ilícitos
quando Ead era dama de honor. Ela guardou a adaga,
crispou os lábios e enfiou a mão na bolsa de seda da
faixa.
— Toma — disse, colocando três confites no seu
prato. — O resto dou-te se te comportares.
***
Estavam no jardim, deitados lado a lado sob a
macieira, como costumavam fazer no alto verão. Ao seu
lado, um jarro de vinho da Cozinha Real e um prato de
queijo temperado e pão acabado de cozer. Ead estava a
contar-lhe de uma partida que as damas de tinham
pregado à senhora Oliva Marchyn, e ele estava a rir-se
tanto que lhe doía a barriga. Quando contava histórias,
Ead era parte tola e parte poetisa.
O sol atraíra-lhe as sardas do nariz. O seu cabelo
preto estava espalhado na relva. Além do brilho do sol,
ele podia ver a torre do relógio acima deles, e os vitrais
nos claustros, e as maçãs nos galhos. Tudo estava bem.
— Meu senhor.
Kit resfolegou.
— Ele foi-se.
Tané lambeu os lábios.
— O forasteiro?
— E a doença vermelha?
— Claro.
— Boa. O medo far-te-á lutar. Não deixes que um
merdas como o Turosa te deite abaixo, seja quem for a
mãe dele. — Tané lançou-lhe um olhar de repreensão,
mas sorriu. — Agora, apressa-te. Lembra-te, não importa
para quão longe voes de Cabo Hisan, eu serei sempre tua
amiga.
— E eu tua.
***
— Sim, está bem, basta disso. Ela não quis vir para
Seiiki convosco?
Sulyard corou.
— Nós... não pedimos permissão a Sua Majestade.
Ninguém sabe.
— Dezoito.
Sulyard hesitou.
— Truyde.
— O Príncipe Aubrecht.
— E fazer o quê?
Oeste
— Oito, Majestade.
O Vigarista.
O sabor da verdade.
Silêncio.
Ead cruzou as mãos no colo e olhou diretamente para
Sabran. Aquela expressão fria era imperscrutável.
— A senhora Oliva estava certa — disse a rainha
finalmente. — Tens a língua de um contador de histórias,
mas suspeito de que já tenhas ouvido demasiadas
histórias e muito pouca verdade. Peço que prestes
atenção no santuário. — Pousou a sua taça. — Estou
cansada. Boa noite, senhoras.
Ead levantou-se, assim como Linora. Curvaram-se
numa reverência e saíram.
— Sua Majestade ficou descontente — disse Linora,
irritada, quando se encontravam fora do alcance de
ouvidos alheios. — Contaste a história muito bem no
início. Demónios, porque disseste que a Donzela rejeitou
o Santo? Nunca nenhum sanctário disse isso. Que ideia!
— Se Sua Majestade ficou descontente, lamento
muito.
— Agora talvez não nos volte a convidar para jantar
com ela — resmungou Linora. — Devias ter pedido
desculpa, pelo menos. Talvez devas rezar com mais
frequência ao Cavaleiro da Cortesia.
Felizmente, Linora recusou-se a falar depois disso.
Separaram-se quando Ead chegou ao seu quarto.
Lá dentro, acendeu algumas velas. O seu quarto era
pequeno, mas era dela.
Desamarrou as mangas e removeu o peitilho do
vestido. Assim que se viu livre dele, descartou o saiote e
o vertugado e, por fim, tirou o espartilho.
A noite era jovem. Ead sentou-se na sua mesa de
escrita. Lá dentro, estava o livro que ela levara
emprestado de Truyde utt Zeedeur. Não era capaz de
decifrar nenhum escrito oriental, mas carregava a marca
de um impressor mêntico. Deve ter sido publicado antes
da Ascensão das Sombras, quando ainda eram
permitidos textos orientais no Reino das Virtudes. Truyde
era uma herege em ascensão, fascinada pelas terras
onde os wyrms se deleitavam na idolatria humana.
No final do livro, numa folha de rosto, havia um nome
em tinta fresca, rabiscado em caligrafia cursiva.
Niclays.
Ead refletiu enquanto trançava o seu cabelo. Era um
nome comum em Mentendon, mas havia um Niclays Roos
na corte aquando da sua chegada. Ele destacara-se em
anatomia na Universidade de Brygstad e corriam
rumores de que praticava alquimia. Ead recordava-o
como barrigudo e alegre, amável o suficiente para a
reconhecer onde outros não o faziam. Houve algum
problema que resultou na sua partida de Inys, mas a
natureza do incidente era um segredo bem guardado.
No silêncio, ouviu o seu corpo. Da última vez, o
assassino quase a derrotara até ao Quarto de Leito Real.
Ela não sentira o brilho da sua proteção até ser quase
tarde demais.
— Senhora Duryan?
— Sim?
— Senhora Duryan, boa noite. Fui enviada para vos
informar de que o secretário principal deseja ver-vos
amanhã às nove e meia — disse a rapariga. — Eu
acompanhá-la-ei até à Torre de Alabastro.
— Apenas eu?
— A senhora Katryen e a senhora Margret foram
ambas interrogadas hoje.
A mão de Ead apertou-se em torno da maçaneta da
porta.
— Trata-se de um interrogatório, portanto.
— Creio que sim.
Com a outra mão, Ead puxou a sua camisola para
mais perto.
— Muito bem — disse ela. — É tudo?
— Sim. Boa noite, senhora.
— Boa noite.
Quando a criada se foi embora, a escuridão voltou a
assomar ao corredor. Ead fechou a porta e apoiou a testa
contra ela.
***
— Outro assassino?
Crest bufou.
— Dificilmente, minha querida — disse ela. — Este
protetor, seja ele quem for, também é um assassino, e
estes devem ser desmascarados. — A sua voz estava
fraca de frustração. — Assim como o assassino, essa
pessoa entrou nos aposentos reais sem ser convidada, de
alguma forma escapando aos Cavaleiros do Corpo. Então,
cometeu um assassinato e deixou o cadáver para ser
encontrado por Sua Majestade. Teria pretensões de
pregar à nossa rainha um susto de morte?
Risos.
Yscalin.
Loth.
— Minha senhora.
Ead tocou-lhe.
— Tu não.
Voltou a sentar-se.
***
Na cabina apenas cabiam dois beliches. Um mêntico
corpulento entregou-lhes um jantar de carne salgada, um
peixe do tamanho de um polegar e pão desfiado, rançoso
o suficiente para lhes lascar os dentes. Kit aguentou
metade da sua carne antes de sair a correr para o
convés.
A meio do seu pão, Loth desistiu. Aquilo estava
muito longe das ofertas sumptuosas da corte, mas a
comida vil era a última das suas preocupações. Combe
estava a enviá-lo para a sua perdição, e em vão.
Ele sempre soubera que o Falcão da Noite podia
fazer as pessoas desaparecer. Pessoas que via como uma
ameaça à Casa de Berethnet, quer se comportassem de
uma maneira que desgraçava as suas posições, quer
desejassem mais poder do que o devido.
— Precisas de cerveja.
Sombra Ocidental.
Este
— Sulyard.
— Sulyard?
Quando o raio iluminou a silhueta, Niclays olhou
para o rosto à sua frente.
— Niclays!
— Como se chamava?
— Zāla.
***
***
— Que quereis?
— Livros do Oriente.
— Sim. Os seus dragões são um com o ar e a água,
não com o fogo. O Oriente está afastado de nós há tanto
tempo que nos esquecemos da diferença. — Quando Ead
se limitou a fitá-la, incrédula, Truyde tentou uma
abordagem diferente. — Como uma estranha neste país,
ouvi-me. E se os inysh estiverem errados e a continuação
da Casa de Berethnet não for o que mantém o
Inominável à distância?
— Que estais a dizer, criança?
— Sabeis que algo mudou. O despertar das criaturas
draconianas, a separação de Yscalin do Reino das
Virtudes... isto é apenas o começo. — A sua voz baixou.
— O Inominável está a voltar. E eu acredito que ele
chegará em breve.
Por um momento, Ead ficou sem palavras.
E se a continuação da Casa de Berethnet não for o
que mantém o Inominável à distância?
Foi por isso que Ead fora enviada para Inys. Para
proteger Sabran, caso o mito fosse verdadeiro e o seu
sangue impedisse o inimigo de se erguer.
Truyde endireitou-se.
Fýredel.
Despertara.
— RAINHA SABRAN.
Ead congelou.
Um círculo perfeito.
Este
Oeste
Kit pestanejou.
— A sério?
— Nada mais?
Jaculi.
***
Passos.
— Meg.
— Claro.
Este
— E então?
Onren sorriu.
— Dumu — disse ela. — Estás a tentar distrair-me
para que eu não supere o teu desempenho?
Onren resfolegou.
— Claro.
Tané atravessou o corredor e pendurou o arco.
Turosa, que estava prestes a praticar combate
desarmado com os amigos, olhou para ela e bateu com o
punho na palma da mão.
Uma brisa húmida soprava pelos corredores, quente
como o vapor de uma sopa acabada de fazer. O chão
polido estalava sob os seus pés enquanto caminhava de
volta pela escola.
Lavou o suor e praticou sozinha no quarto com a sua
espada. Quando o seu braço finalmente se cansou,
sentiu-se abocanhada por um verme de apreensão. Não
havia motivo para o seu cavalo ter tropeçado durante o
julgamento. E se Turosa o tivesse sabotado de alguma
forma, apenas para a irritar?
No final, Tané regressou aos estábulos. Quando
encontrou o ferrador, ele garantiu-lhe que não havia
nada de errado. O chão estava molhado. Muito
provavelmente o cavalo teria escorregado.
Não deixes que um merdas como o Turosa te deite
abaixo, dissera-lhe Susa, mas a sua voz parecia muito
distante.
Tané passou o que restava da noite na sala de
treinos, a arremessar adagas contra espantalhos. Apenas
quando lhes conseguiu acertar nos olhos se permitiu
voltar para o quarto, onde acendeu uma lamparina a óleo
e começou a sua primeira carta para Susa.
***
— Calada — ordenou-lhe.
— Tenho a certeza.
Este
***
E, claro, a Aleidine.
Oeste
***
Ead assentiu.
— Quando?
— Há três meses.
Cárscaro.
***
***
***
— Um bom golpe.
— Exato.
Muitos soberanos procuraram a água da vida.
Explorar o medo da morte devia ser um negócio
lucrativo, e havia rumores na corte de que Sabran tinha
medo de dar à luz. Roos aproveitara-se de uma jovem
rainha, deslumbrando-a com os seus conhecimentos de
ciência. Um charlatão.
— Niclays não era um vigarista — disse a duquesa
viúva, como se pudesse ler a mente de Ead. — Ele
acreditava mesmo que o conseguia fazer. Aquele elixir foi
a sua paixão durante décadas. Sua Majestade concedeu-
lhe grandes aposentos e uma oficina no Palácio de
Ascalon. Pelo que ouvi, ele perdeu-se no vinho e no jogo.
E usava o salário da rainha para cobrir essas despesas.
— Fez uma pausa para encher a sua taça. — Passados
dois anos, Sabran decidiu que Niclays a tinha enganado.
Exilou-o e decretou que nenhum país que quisesse ser
seu amigo lhe poderia dar abrigo. O falecido Príncipe
Leovart decidiu mandá-lo para Orisima.
A estação de comércio.
— Suponho que Sua Majestade não cedeu desde
então. — Não. Ele está lá há sete anos.
Ead levantou as sobrancelhas.
— Sete?
Pelo que tinha ouvido, Orisima era uma ilha minúscula
(embora talvez «ilha» fosse um nome demasiado grande
para a descrever) que dependia do porto seiikine de
Cabo Hisan. Sete anos ali poderiam levar qualquer um à
loucura.
— Sim — confirmou a duquesa viúva, estudando a sua
reação. — Implorei ao Príncipe Aubrecht que o trouxesse
para casa, mas ele apenas o fará se a Rainha Sabran o
perdoar.
— Não o achais merecedor do exílio, Vossa Graça?
Depois de alguma hesitação, a duquesa respondeu:
— Acho que já foi suficientemente castigado. Niclays é
um bom homem. Se não tivesse ficado tão abatido com a
morte de Jannart, penso que não se teria comportado
assim. Ele queria afastar-se de tudo.
Ead pensou no nome que estava no livreto herético de
Truyde. Niclays, Pretendia a jovem usar Roos no seu
plano?
— Suponho que a vossa neta também conheça o Dr.
Roos — afirmou.
— Oh, sim. Niclays era como um tio para ela quando
era jovem. — A duquesa fez outra pausa. — Estou ciente
de que tendes alguma influência junto de Sua Majestade,
sendo uma das suas damas. Ela deve valorizar as vossas
opiniões.
Finalmente, Ead compreendeu porque quisera a nobre
falar com ela.
— Nós, Teldan utt Kantmarkt, entendemos de negócios
— disse a duquesa viúva, em voz baixa. — Se lhe
falardes de Niclays, posso tornar-vos rica, senhora
Duryan.
Devia ter sido o que acontecera a Roslain e Katryen.
Um pedido a meia voz, um elogio, uma sugestão
sussurrada a Sabran. O que Ead não entendia era o
porquê de ter sido ela a escolhida.
— Não sou Dama do Leito Real — disse ela. — Não
creio que Sua Majestade preste muita atenção ao que eu
digo.
— Sois demasiado modesta — respondeu a duquesa.
— Vi a rainha a passear convosco nos jardins esta
manhã.
Ead bebeu um gole de vinho para dar tempo a si
própria.
Não se podia envolver em assuntos como aquele.
Seria uma loucura defender alguém que Sabran
detestava, agora que a rainha começava a demonstrar o
mínimo interesse por ela.
— Não vos posso ajudar, Vossa Graça. Seria muito
mais útil para si pedir à senhora Roslain ou à senhora
Katryen — respondeu, e fez uma vénia. — Perdoai-me.
Tenho assuntos para tratar.
E antes que a duquesa viúva pudesse insistir, dirigiu-
se para a porta.
***
A Donmata resfolegou.
— E pagou?
Tané enrijeceu.
— Boa noite.
***
Oeste
— Sab — sussurrou.
***
— Com certeza.
O Vestiário Real, onde Sabran se lavava e vestia
todos os dias, era uma divisão quadrada com um teto de
molduras elaboradas, a mais pequena dos aposentos
reais. As cortinas estavam corridas.
Sabran estava descalça junto à lareira, observando
as chamas enquanto tirava os brincos. O seu vestido de
noite já devia estar no seu Guarda-Roupa Real, pois já
estava de vestido interior. Katryen estava a tirar-lhe o
recheio das ancas.
Ead aproximou-se da rainha e afastou-lhe o cabelo
para descobrir a nuca, onde se encontrava o fecho do
seu colar.
— Ead — disse Sabran —, gostaste da cerimónia?
— Sim, Majestade. Estáveis esplêndida.
— Já não estou? — perguntou em tom de
brincadeira, mas Ead conseguiu detetar a dúvida na sua
voz.
— Estais sempre linda, minha senhora. — Ead abriu
o fecho e retirou as joias que lhe rodeavam a garganta.
— Mas aos meus olhos... nunca estivestes tão bela como
agora.
Sabran olhou para ela.
— Achas — disse — que o Príncipe Aubrecht
partilhará da tua opinião?
— Sua Alteza Real seria louco se não o fizesse.
Os seus olhares separaram-se quando Roslain
regressou ao quarto. Aproximou-se de Sabran e começou
a desapertar-lhe o espartilho.
— Ead — disse. — A túnica de noite.
— Sim, minha senhora.
Enquanto Ead procurava um braseiro para aquecer a
peça, Sabran levantou os braços, deixando Roslain puxar-
lhe o vestido interior pela cabeça. As duas senhoras
acompanharam a rainha ao banho, onde foi lavada da
cabeça aos pés. Quando vestiu a túnica, Ead olhou-a de
relance.
Uma vez despida de todos os seus adornos, Sabran
Berethnet não parecia descendente de nenhum santo,
falso ou verdadeiro. Era mortal. Ainda imponente,
elegante, mas não em toda a sua força.
O seu corpo era como uma ampulheta: ancas
arredondadas, cintura fina e seios fartos, com mamilos
salientes. Pernas longas, fortalecidas pela equitação. Ao
ver a parte escura entre as suas coxas, Ead sentiu um
friozinho na barriga.
Voltou a concentrar-se no que estava à mão. As inysh
eram muito modestas com a sua nudez. Há anos que não
via um corpo nu que não fosse o seu.
— Ros — disse Sabran —, vai doer?
Roslain secou-lhe a pele com panos limpos.
— A princípio pode doer, um pouco — respondeu. —
Mas não vai durar muito. E muito menos se Sua Alteza
Real for... delicado.
Sabran olhou em torno da sala, sem a ver. Rodou o
anel com o nó do amor.
— E se eu não conseguir conceber?
No silêncio que se seguiu a essa pergunta, nem o
hálito de um rato lhe teria escapado.
— Sabran — disse Katryen, com uma voz suave,
tomando-lhe o braço —, é claro que ides conceber.
Ead ficou em silêncio. A conversa parecia ser íntima,
mas ninguém lhe ordenara que se fosse embora.
— A minha avó demorou muitos anos a conseguir —
disse Sabran. — Os Sombras Ocidentais estão à espreita.
Yscalin traiu-me. E se Fýredel e Sigoso invadirem Inys e
eu não tiver uma herdeira...
— Tereis uma herdeira. A Rainha Jillian teve uma
filha linda, a vossa mãe. E em breve também sereis mãe.
— Roslain pousou o queixo no ombro de Sabran. —
Quando acabar, deitai-vos um pouco e dormi de costas.
Sabran encostou-se a ela.
— Quem me dera que Loth tivesse estado presente
— confessou. — Era ele quem me iria acompanhar ao
altar. Eu prometera-lhe. — Agora que a maquilhagem
desaparecera, as suas olheiras estavam mais escuras do
que nunca. — Agora está... perdido. Algures em Cárscaro.
E não tenho forma de o contactar.
— Loth irá ficar bem. Tenho fé de que voltará em
breve — disse Roslain, abraçando-a com mais força. — E
quando voltar, trar-vos-á notícias do vosso pai.
— Outro rosto de que tenho saudades. Loth e o meu
pai... e a Bella também. A minha fiel Bella, que serviu
três rainhas. — Sabran fechou os olhos. — É mau
presságio que tenha morrido tão perto deste dia. Na
cama onde...
— Sabran — interrompeu Roslain —, é a vossa noite
de núpcias. Não deveis ter pensamentos tão sombrios ou
escurecer-vos-ão a semente.
Ead esvaziou o braseiro de volta para a lareira.
Perguntou a si mesma se os inysh teriam alguma ideia do
que era a conceção, ou se os seus médicos baseavam os
seus diagnósticos em meras suposições.
Conforme a hora se aproximava, a rainha foi ficando
cada vez mais silenciosa. Roslain sussurrou-lhe conselhos
ao ouvido, enquanto Katryen lhe penteava o cabelo,
retirando todas as pétalas que se encontravam entre os
seus cabelos.
Vestiram-na com uma túnica de dormir e uma capa
forrada de peles. Katryen penteou-lhe o cabelo para
cima.
— Ead — disse Sabran, olhando para a porta. — É
assim que fazem no Ersyr?
A rainha franziu ligeiramente as sobrancelhas, tal
como quando descrevera o seu pesadelo, e Ead sentiu a
necessidade de a ajudar a suavizar o gesto.
— Algo do género, minha senhora — respondeu.
Lá fora ouviu-se o assobio de um fogo de artifício.
Começavam as celebrações na cidade.
Sabran foi conduzida para fora do Vestiário Real. Ia a
tremer, mas manteve a cabeça erguida.
Uma rainha não podia demonstrar medo.
Quando as portas do Quarto de Leito Real se abriram
diante delas, Roslain e Katryen ficaram ainda mais perto
da sua soberana. Sir Tharian Lintley e dois dos seus
homens, de guarda, ajoelharam-se perante ela.
— Vossa Majestade — disse Lintley —, para proteger a
vossa privacidade, não posso ficar de guarda diante do
Quarto de Leito Real na vossa noite de núpcias. Confio a
vossa proteção ao vosso companheiro e às vossas
damas.
Sabran pousou-lhe a mão sobre a cabeça.
— Bom Sir Tharian — disse ela. — O Cavaleiro da
Cortesia sorri para vós.
Ele levantou-se e os seus cavaleiros fizeram uma
vénia à rainha. Enquanto se afastavam, Katryen tomou a
chave da mão de Roslain e destrancou as portas.
Aos pés da cama encontrava-se o arquissanctário com
um livro de orações na mão. Aubrecht Lievelyn
aguardava com os seus criados no quarto. A sua camisa
de dormir, com uma faixa preta, continha uma abertura
no peito, expondo as suas clavículas.
— Vossa Majestade — saudou ele. À luz da lareira, os
seus olhos brilhavam. Sabran insinuou um pequeno
aceno de cabeça.
— Vossa Alteza Real.
O arquissanctário fez o sinal da espada.
— O Santo abençoa este leito. Que produza os frutos
de uma dinastia eterna. — Fechou o livro de orações. — E
agora, é altura de os amigos partirem, para que estes
novos companheiros se conheçam. Que o Santo nos dê a
todos uma boa noite, pois ele guarda-nos na escuridão.
— Ele guarda-nos na escuridão — repetiram em coro.
Todos, exceto Ead.
As damas e os criados fizeram uma vénia. No
momento em que Roslain levantou a cabeça, Sabran
sussurrou-lhe:
— Ros.
Roslain olhou-a nos olhos. E, evitando os olhares dos
homens, agarrou a mão de Sabran, com tanta força que
os dedos de ambas ficaram brancos.
Katryen acompanhou Roslain até ao exterior. Ead
seguiu-a, mas voltou-se uma última vez para a rainha e
trocaram um olhar.
Pela primeira vez, viu Sabran Berethnet como era, por
baixo daquela máscara: uma mulher jovem e frágil,
carregando nos ombros o peso de um legado milenar.
Uma rainha cujo poder absoluto dependia apenas da
possibilidade de gerar uma filha. Ead teria gostado de a
pegar pela mão e de a levar para fora daquele quarto,
mas nunca se atreveria. Deixou Sabran sozinha, como
todos os outros fizeram.
Margret e Linora esperavam-na. As cinco reuniram-se
na escuridão.
— Ela pareceu-vos bem? — perguntou Margret em voz
baixa.
Roslain passou as mãos pela saia.
— Não sei — respondeu, andando de um lado para o
outro. — Pela primeira vez na minha vida, não tenho a
certeza.
— É normal que esteja nervosa — sussurrou Katryen.
— Que haveis sentido em relação a Cal?
— Isso foi diferente. O Cal e eu ficámos noivos quando
éramos miúdos. Ele não era um estranho — argumentou
Roslain. — E o destino das nações não dependia do fruto
da nossa união.
Ficaram ali, de guarda, à escuta de qualquer ruído
estranho. Um quarto de hora depois, Katryen encostou o
ouvido à porta.
— O príncipe está a falar de Brygstad.
— Deixa-os falar — disse Ead, sem levantar a voz. —
Eles mal se conhecem.
— Mas e se a união não se consumar?
— Sabran cuidará disso — respondeu Roslain, o olhar
perdido. — Sabe que é o seu dever sagrado.
A espera prolongou-se. Linora, que estava sentada no
chão, adormeceu encostada à parede. Por fim, Roslain,
que até então se mantivera imóvel como uma estátua de
pedra, recomeçou a andar de um lado para o outro.
— E se... — Apertou os dedos. — E se ele for um
monstro?
Katryen aproximou-se dela. — Ros...
— Sabes... A senhora minha mãe contou-me que
Sabran a Oitava foi maltratada pelo seu companheiro. Ele
bebia, andava com prostitutas e dizia-lhe coisas cruéis.
Ela nunca contou a ninguém. Nem mesmo às suas damas
de companhia. Até que uma noite... — levou a mão ao
estômago — o homem desprezível lhe bateu. Quebrou-
lhe a maçã do rosto e partiu-lhe o pulso...
— E foi executado por isso — respondeu Katryen,
aproximando-se mais. — Escuta-me: não vai acontecer
nada a Sab. Já vi como Lievelyn trata as irmãs. Tem o
coração de um cordeiro.
— Ele pode parecer um cordeiro — disse Ead —, mas
os monstros geralmente parecem-se com cordeiros. Eles
sabem como se mascarar. — Olhou para ambas. —
Iremos vigiá-la. Manter os ouvidos abertos. Lembrai-vos
porque usamos adagas além de joias.
Roslain olhou para ela e acenou lentamente com a
cabeça. E Katryen também o fez, um momento depois.
Ead viu que elas fariam qualquer coisa por Sabran.
Levariam a vida de qualquer um, ou a sua própria.
Qualquer coisa.
Passada uma hora, algo mudou no Quarto de Leito
Real. Linora acordou e levou uma mão à boca.
Ead aproximou-se da porta. Foi apenas por um
momento, mas ouviu o suficiente para perceber o que se
passava lá dentro. Quando terminou, acenou com a
cabeça às Damas do Leito Real.
Sabran tinha cumprido o seu dever.
***
— Marion Angus
23
Sul
***
Chassar conseguira.
Ead sentiu o cansaço a instalar-se novamente. Atirou
a carta para o lume e, uma vez debaixo dos cobertores,
Sarsun enroscou-se no buraco debaixo da sua axila como
um pintainho. Ead acariciou-lhe a cabeça com um dedo.
A leitura daquela mensagem enchera-a de tristeza e
de alívio. A oportunidade de voltar para casa fora-lhe
oferecida de bandeja e, no entanto, ali estava ela, por
sua própria escolha, no mesmo lugar de onde passara
anos a querer fugir. Por outro lado, significava que os
anos passados na corte não seriam em vão. Poderia
acompanhar Sabran na sua maternidade.
Afinal, não importava quanto tempo passasse ali. O
seu destino era receber o manto escarlate. Isso não iria
mudar.
Pensou no toque frio de Sabran na sua mão. E
quando adormeceu, sonhou com uma rosa vermelho-
sangue nos seus lábios.
***
Finalmente.
— Minha senhora, isso é maravilhoso — disse Ead,
com entusiasmo. — Parabéns. Estou muito feliz por vós e
pelo Príncipe Aubrecht.
— Obrigada.
Sabran baixou o olhar, mas quando o pousou na
barriga, o seu sorriso desvaneceu-se. Ead viu-a franzir as
sobrancelhas.
— Ainda não deves contar a ninguém — avisou a
rainha. — Nem mesmo Aubrecht sabe. Só a Meg, os
Duques Espirituais e as minhas Damas do Leito Real.
Todos os meus conselheiros concordam que devemos
anunciá-lo quando começar a tornar-se evidente.
— E quando ireis contar a Sua Alteza Real?
— Em breve. Quero fazer-lhe uma surpresa.
— Certificai-vos de que há um escano por perto
quando o fizerdes.
Isso fez Sabran sorrir novamente.
— Certificar-me-ei. Terei de ser gentil com o meu
ratinho.
Uma filha asseguraria a sua posição na corte.
Decerto que faria dele o homem mais feliz do mundo.
***
— Cerca de duzentas.
Senhor,
Tomei conhecimento através dos registos do meu
falecido tio-avô que permaneceis num estado de exílio na
nossa estação de comércio de Orisima, e que pedistes
clemência à Casa de Lievelyn. Depois de rever o vosso
caso, lamento concluir que não vos posso dar permissão
para regressardes a Mentendon. A vossa conduta
ofendeu profundamente a Rainha Sabran de Inys, e
convidar-vos de volta à corte neste momento constituiria
uma ofensa para ela.
Se conseguirdes encontrar uma forma de apaziguar a
Rainha Sabran, terei todo o gosto em reconsiderar esta
situação infeliz.
Ao vosso dispor,
Aubrecht II, Grão-Príncipe do Estado Livre de
Mentendon,
Arquiduque de Brygstad, defensor das Virtudes,
protetor do Reino de Mentendon e de outras terras.
***
***
Tané encontrou um ponto de apoio e impulsionou-
se com todas as suas forças, em busca de algo a que se
agarrar. Sob ela, as ondas quebravam contra as rochas.
***
***
— Algo te apoquenta.
O Copeiro.
— Sabran... — murmurou.
Ela virou-se.
Este
***
***
***
Este
— Muito bem.
— Susa...
***
E outro.
— Caçadores?
— A Frota do Olho de Tigre. A grande Nayimathun
das Neves Profundas foi... capturada.
Tané sentiu-se a perder todo o contacto com o
mundo. Cerrou os punhos.
— A Alta Guarda do Mar fará tudo o que estiver ao
seu alcance para a resgatar, mas não é fácil para os
nossos deuses escaparem ao massacre que os espera em
Kawontay. — O maxilar da Governadora cerrou-se por um
momento. — Custa-me dizê-lo, mas é provável que
nunca mais consigamos recuperar a grande Nayimathun.
Tané estremeceu.
Sentiu o estômago cheio de veneno. Tentou não
imaginar o que Nayimathun deveria estar a sofrer. A ideia
era tão insuportável que a sua visão ficou turva e os seus
lábios tremeram.
— Sim.
Silêncio.
— Quem és tu?
***
Chassar uq-Ispad.
— Precisamente...
Jannart sorriu.
***
Á
— Pelo Santo... — A voz saiu-lhe rouca. — Água —
pediu ele em seiikine. — Por favor.
Ninguém respondeu.
Estava a escurecer. Ou a amanhecer. O céu estava
coberto de nuvens, mas o Sol deixara uma mancha
alongada de âmbar. Niclays pestanejou para tirar a água
da chuva dos olhos e viu as velas cor de laranja acima,
iluminadas por inúmeras lamparinas. Um navio fantasma
envolto em névoa. Um dos seus captores bateu-lhe na
cabeça e grunhiu qualquer coisa em lacustre.
— Está bem, está bem — murmurou Niclays.
Puxaram-no pela corda à volta dos pulsos e, sob a
ponta de uma adaga, fizeram-no subir uma escada. A
visão do navio foi de fazer cair o queixo e ficou
subitamente sóbrio.
***
Pouco depois do anúncio, Ead deu por si novamente
na Câmara Privada, a bordar rosas num gorro de bebé.
Agora que o perfume das rosas a ajudara a fugir aos
pesadelos, Sabran queria ver rosas em tudo o que a filha
usasse nos primeiros dias de vida.
A rainha estava deitada num divã, com a sua túnica
de noite. Ganhara peso nos dias que se seguiram à
emboscada em Ascalon, pelo que a sua barriga era agora
evidente.
— Não sinto nada — disse. — Porque não se mexe?
— É natural, Majestade — respondeu Roslain, que
estava a bordar a ponta de uma manta. Katryen estava a
trabalhar no lado oposto. — Talvez não a sintais durante
algum tempo.
Sabran continuou a explorar a protuberância da
barriga com os dedos.
— Acho que já tenho um nome para a minha filha.
A primeira dama olhou para cima tão depressa que
provavelmente deve ter dado um puxão no pescoço. De
repente, esqueceram-se do manto, e tanto ela como
Katryen correram para se sentarem ao lado de Sabran.
Apenas Ead ficou onde estava.
— Que notícia maravilhosa, Sab. — Katryen sorriu e
depositou uma mão sobre a dela. — Que nome haveis
escolhido?
Havia seis nomes históricos para as monarcas de
Berethnet: os mais populares eram Sabran e Jillian.
— Sylvan. Como o rio Sylvan — disse a rainha —,
onde pereceu o senhor seu pai.
Aquele nome não constava da lista.
Roslain e Katryen trocaram um olhar preocupado.
— Sabran... — começou Roslain. — Não é um nome
tradicional.
Acho que o vosso povo não o tomaria de bom grado.
— Não sou eu a sua rainha?
— A superstição não conhece soberanos.
Sabran olhou para a janela com frieza.
— Kate?
— Concordo, Majestade. Não deixeis a criança usar a
sombra da morte sobre a sua cabeça.
— E tu, Ead?
Ead queria apoiá-la. Sabran devia poder dar à filha o
nome que bem entendesse, mas os inysh não gostavam
de mudanças.
— Concordo — respondeu, puxando a agulha. —
Sylvan é um nome bonito, Majestade, mas pode tornar a
vossa filha melancólica. É melhor dar-lhe o nome de uma
das vossas antepassadas rainhas.
Sabran pareceu subitamente exausta. Virou-se de
lado e encostou a face à almofada.
— Glorian, então.
— Fui a Gulthaga.
***
***
— Muito bem.
— Chiu.
— Abre a janela.
— Vinde abri-la vós mesma.
Sabran soltou uma gargalhada curta e sombria.
— Poderia mandar queimar-te na pira por essa
insolência.
— Se isso vos fizesse sair da cama, teria todo o gosto
em dançar na fogueira.
O relógio da torre bateu a uma. Sabran estremeceu e
recostou-se nas almofadas.
— Eu devia ter morrido no parto — murmurou ela. —
Devia ter dado vida a Glorian, entregando a minha
própria.
Os seus seios vazaram durante dias após a sua
perda, e a sua barriga ainda estava redonda. Mesmo
enquanto tentava curar-se, o seu próprio corpo
continuava a abrir a ferida.
Ead acendeu mais duas velas. Tinha pena de Sabran,
tanto que pensou que as suas costelas se quebrariam
com isso, mas não conseguia suportar os seus acessos
de ódio por si mesma. Soberanas Berethnet eram
propensas ao que os inysh chamavam de neblina mental,
períodos de tristeza, com ou sem uma raiz discernível.
Carnelian a Quinta era conhecida como a Pomba de Luto,
e havia rumores na corte de que se tinha suicidado
entrando num rio. Combe havia encarregado as Damas
do Leito Real de garantir que Sabran não fosse pelo
mesmo caminho.
Naquela noite, haveria atividade na Câmara do
Conselho. Alguns dos Duques Espirituais argumentariam
que a verdade nunca deveria ser revelada. Enfiada sob
as suas saias. Uma órfã de cabelos pretos e olhos cor de
jade. Haveria quem aceitasse tal ideia, mas a maioria
não suportaria a ideia de se curvar perante alguém que
não fosse uma Berethnet.
— Eu tinha a certeza... — Sabran cerrou os punhos
no cabelo. — Devo ser a amada do Santo. Afastei o
Fýredel. Porque me abandonou agora?
Ead reprimiu uma onda de culpa. A sua proteção
alimentara a mentira.
— Senhora — disse ela —, deveis manter a vossa fé.
Não adianta ficar a pensar...
Outra risada triste interrompeu-a.
— Pareces a Ros. Eu não preciso de outra Ros. —
Sabran apertou as mãos. — Talvez deva pensar em
coisas mais leves. A Ros dir-me-ia isso. Em que devo
pensar, Ead? No meu companheiro morto, no meu útero
estéril ou no conhecimento de que o Inominável se
aproxima?
Ead obrigou-se a ajoelhar-se e a atiçar o fogo.
Sabran havia falado muito pouco nos últimos dias,
mas o pouco que dissera era doloroso. Repreendeu
Roslain por estar demasiado calada. Tinha implicado com
as damas de companhia quando lhe serviram a comida.
Disse a uma criada que não a queria ver mais, levando-a
às lágrimas.
— Serei a última Berethnet. Acabei com a minha
dinastia. — Agarrou os lençóis. — A culpa é minha. Por
ter adiado a maternidade tanto tempo. Por ter tentado
evitá-la.
Deixou cair a cabeça.
Ead aproximou-se da rainha de Inys. Puxou a cortina
para o lado e sentou-se na beira da cama. Sabran estava
meio deitada, encolhida, como se protegesse o seu
abdómen ferido.
— Fui egoísta. Queria... — Sabran respirou pelo nariz.
— Pedi a Niclays Roos que me preparasse um elixir, algo
que preservasse a minha juventude, para que nunca
tivesse de ter filhos. E quando ele falhou — acrescentou,
num sussurro —, mandei-o para o exílio, para o Oriente.
— Sabran...
— Virei as costas ao Cavaleiro da Generosidade, com
tudo o que ele me deu. Recusei-me a devolver-lhe o
mínimo.
— Basta — respondeu Ead, com voz firme. — Tínheis
um grande fardo nos ombros e havei-lo carregado com
coragem.
— É o destino. — As suas faces brilhavam. — Mais de
mil anos de governo. Trinta e seis mulheres da Casa de
Berethnet deram à luz filhas em nome de Inys. Porque
não posso fazê-lo eu também? Porque é que isto tinha de
acontecer?
Ead pegou-lhe no queixo com delicadeza.
— Isto não é culpa vossa. Lembrai-vos disso, Sabran.
Nada disto é da vossa responsabilidade.
Sabran encolheu-se, virando-se para trás.
— O Conselho das Virtudes tentará de tudo, mas o
meu povo não é tolo — disse. — A verdade virá ao de
cima. Sem os seus alicerces, o Reino das Virtudes cairá. A
fé no Santo irá diminuir. Os santuários esvaziar-se-ão.
Falhara.
— Quando o meu corpo apodrecer no chão, os
Duques Espirituais, que são descendentes do Sagrado
Séquito, irão todos reclamar o meu trono. — Resfolegou,
e um riso malicioso escapou-lhe. — Talvez nem sequer
esperem que eu morra para começarem a lutar. Eles
acreditaram no meu poder para manter o Inominável
acorrentado, mas esse poder agora morrerá comigo.
— Então, tenho a certeza de que é do interesse deles
manter-vos protegida — disse Ead, tentando tranquilizá-
la. — Para ganhar tempo e poderem preparar-se para a
chegada dele.
— Protegida, talvez, mas não necessariamente no
trono. Neste preciso momento, alguns deles estarão a
pensar se não deveriam agir agora. Não deveriam
escolher um novo governante antes que Fýredel volte e
nos destrua? — Sabran continuava a falar com uma voz
rouca. — Perguntar-se-ão se a história da minha
divindade não será totalmente falsa. Na verdade, já fiz
essa pergunta a mim mesma. — Pousou de novo a mão
sobre a barriga. — Já lhes mostrei que não sou mais do
que uma pessoa de carne e osso.
Ead abanou a cabeça.
— Pressionar-me-ão a nomear um deles como meu
sucessor. E mesmo que o faça, outros podem recusar-se
a aceitá-lo — continuou Sabran.
— Os nobres ficarão do lado de um ou de outro. Inys
dividir-se-á. Na sua fraqueza, o Exército Draconiano
regressará. E Yscalin aguarda a oportunidade para que
isso aconteça. — Fechou os olhos. — Não quero assistir a
isso, Ead. Não posso assistir à queda deste reino.
Ela devia ter temido aquele desfecho desde o início.
— Ela era tão... delicada... a Glorian — disse Sabran,
com a voz rouca. — Como os nervos de uma folha
quando perde o verde. — Olhou para o nada. — Eles
tentaram escondê-lo de mim, mas eu vi.
Outra dama de companhia ter-lhe-ia dito que a sua
filha ocupava um lugar de honra na corte celeste. Roslain
ter-lhe-ia feito um desenho de um bebé de cabelos
negros nos braços de Galian Berethnet, sorrindo para
sempre num castelo entre as nuvens.
Ead não o fez. Essa imagem não iria confortar Sabran.
Ainda não.
Pegou numa das suas mãos geladas e aqueceu-a com
a sua. Sabran, a tremer na enormidade da sua cama,
parecia mais uma criança do que uma rainha.
— Ead, há um saco de ouro naquela arca — disse ela,
apontando na direção do seu joalheiro. — Vai à cidade. O
mercado negro vende um veneno a que chamam viúva
negra.
Ead suspirou.
— Não sejais tola.
— Atreves-te a chamar tola à última Berethnet?
— Claro, quando falais como se o fôsseis.
— Peço-te — insistiu Sabran —, não como tua rainha,
mas como penitente. — O seu rosto estava tenso e o
maxilar tremia-lhe. — Não posso viver com o
conhecimento de que o meu povo está condenado à
morte pelo Inominável ou pela guerra civil. Nunca ficarei
em paz comigo mesma. — Voltou a apertar-lhe a mão. —
Pensei que irias compreender. Pensei que me ajudasses.
— Compreendo-vos mais do que julgais — disse Ead,
pousando a mão na face dela. — Tentastes transformar-
vos em pedra. Não tenhais medo de não o ser. Podeis ser
rainha, mas sois feita de carne e osso.
O sorriso de Sabran partiu-lhe o coração.
— Ser rainha é isso, Ead — disse ela. — O corpo e o
reino são a mesma coisa.
— Então não podeis matar o corpo pelo reino. — Ead
olhou-a diretamente nos olhos. — Então, não, Sabran
Berethnet. Não vos trarei esse veneno. Não agora, não
nunca.
As palavras surgiram-lhe de um lugar que tentara
manter trancado a sete chaves. Um lugar onde crescera
uma rosa.
Sabran olhou para ela com uma expressão que Ead
nunca tinha xisto.
Toda a melancolia desapareceu, dando lugar à
curiosidade e à determinação. Ead viu cada raio de verde
nos seus olhos, cada pestana, cada pequena chama
presa nas suas pupilas. A luz da fogueira iluminou-lhe o
ombro. Ead tocou nesses brilhos brincalhões com as
pontas dos dedos e Sabran inclinou-se para a frente,
aproximando-se.
— Ead — disse a rainha —, fica comigo.
A sua voz era quase impercetível, mas Ead sentiu
cada palavra na sua carne.
Os seus lábios estavam tão próximos que sentiu a
sua respiração. Ead não se atreveu a mexer-se, com
medo de destruir o momento. A sua pele estava sensível,
ansiosa por sentir a pressão do corpo de Sabran contra o
seu.
Sabran envolveu-lhe o rosto com as mãos. No seu
olhar havia uma pergunta e o medo da resposta.
Quando sentiu o cabelo preto a roçar-lhe a clavícula,
Ead pensou na Prioresa e na laranjeira. Pensou no que
diria Chassar se soubesse que o seu sangue reagia assim
à pretendente, aquela que rezou no túmulo vazio da Mãe.
Uma descendente de Galian, o Impostor. Sabran puxou-a
para perto de si, e Ead beijou a rainha de Inys como teria
beijado um amante.
O seu corpo era como uma figura de cristal. Uma flor
que acabava de se abrir para o mundo. Quando Sabran
afastou os lábios, Ead percebeu, com uma intensidade
que lhe tirou o fôlego, que havia meses que desejava
abraçá-la assim. Quando se tinha estendido ao lado de
Sabran para ouvir os seus segredos. Quando colocara a
rosa atrás da sua almofada. A verdade trespassou-a
como um furador em brasa.
Ficaram em silêncio, com os lábios pressionados um
no outro, mal se tocando.
O seu coração batia demasiado depressa, demasiado
cheio. A princípio não se atreveu a respirar, pois o mais
pequeno movimento poderia acabar com o momento,
mas depois Sabran abraçou-a, chamando o seu nome
com uma voz entrecortada. Ead sentiu o fraco bater do
coração dela contra o seu peito. Rápido e suave como
uma borboleta.
Estava perdida, ou talvez tivesse acabado de se
encontrar, ou talvez ainda não o soubesse. Perdida num
sonho. E, no entanto, nunca tinha estado tão acordada.
Os seus dedos moveram-se, reconhecendo Sabran,
correndo instintivamente sobre a sua pele. Seguiram a
cicatriz na coxa dela, perderam-se no seu cabelo,
passaram por baixo dos seus seios inchados.
Sabran afastou-se para olhar para ela. Ead teve um
breve vislumbre do seu rosto à luz da vela — a testa lisa,
os olhos escuros e determinados — antes de se voltarem
a juntar num beijo quente, novo e regenerador, a chama
de uma nova estrela que nasce com uma explosão. Eram
como dois favos de mel, frágeis e intrincados. Ead
estremeceu ao sentir o toque da noite na sua pele.
Sentiu os arrepios de Sabran. A túnica de dormir
caiu-lhe dos ombros, descendo até às ancas, de modo
que Ead pôde seguir a trajetória da sua coluna vertebral
e juntou as mãos no arco das suas costas. Beijou-lhe o
pescoço e atrás da orelha, e Sabran sussurrou o seu
nome, puxando-lhe a cabeça para trás e expondo-lhe o
pescoço. O luar cobriu-o de uma luz leitosa.
O silêncio do Quarto de Leito Real era imponente.
Imponente como a noite e todas as suas estrelas. Ead
ouvia o farfalhar da seda, o toque das mãos na pele e
nos lençóis. Respiravam em silêncio, à espera de uma
batida na porta, de uma chave na fechadura, de uma
tocha que aparecesse para trair a sua união. Isso
acenderia a chama de um escândalo, e o fogo espalhar-
se-ia e queimá-las-ia a ambas.
Mas Ead era uma amante do fogo e atirar-se-ia a
uma fornalha ardente por Sabran Berethnet, nem que
fosse para passar uma noite com ela. Depois, podiam vir
com as suas espadas e tochas.
Ela não se importava com isso.
***
***
***
***
Excelência,
***
— William Shakespeare
38
Este
Sul
***
***
***
— E a ti também.
***
Sul
***
Este
Sul
***
A extinção do Universo.
— O Inominável — disse Ead.
— E os seus seguidores. Eles são o fruto do
desequilíbrio. O caos. — Kalyba sentou-se numa pedra. —
As Prioresas sabem há muito tempo da ligação entre a
árvore e os wyrms, mas negam-na a si mesmas e às suas
filhas. Os magos podem criar fogo draconiano durante
uma Era do Fogo como esta... mas, claro, estás proibida
de o usar.
Todas as irmãs sabiam que tinham a capacidade de
criar o fogo dos wyrms, mas não lhes era ensinado como
o fazer.
— As vossas ilusões vêm do sterren — murmurou Ead
—, por isso, com o siden, elas incendeiam-se e
desaparecem.
— O siden e o sterren podem destruir-se
mutuamente em circunstâncias particulares — admitiu
Kalyba —, mas também se atraem um ao outro. Ambas
as formas de magia são atraídas uma pela outra, princi‐
palmente, mas, também, pelo seu oposto. — Os seus
olhos negros brilharam de excitação. — Agora, o meu
enigma: se a laranjeira é o canal natural para os siden,
quais são os canais naturais para o sterren?
Ead refletiu.
— Os dragões do Oriente, talvez.
Pelo pouco que sabia sobre eles, eram criaturas
aquáticas. Não tinha a certeza, mas Kalyba sorriu.
— Muito bem. Eles nasceram do sterren. Quando a
Estrela de Crina Longa se aproxima, eles podem
conceder sonhos, mudar de forma e tecer ilusões.
Como que para demonstrar, a bruxa passou a mão
pelo corpo. De repente, apareceu vestida com um manto
de Inys de samito castanho e uma faixa incrustada com
cornalina e pérolas. Lírios abertos enfeitavam o seu
cabelo. A ilusão fora a sua nudez ou era aquilo?
— Há muito tempo, usei o meu fogo para remodelar a
poeira estelar que recolhera — disse Kalyba, passando os
dedos pelo cabelo — para criar a arma mais esplêndida
já forjada.
— Ascalon.
— Uma espada de sterren, forjada de siden. Uma
união perfeita. E quando a segurei nas mãos, quando
empunhei a espada que criara das lágrimas de um
cometa, soube que não era uma simples maga. — Ela
sorriu o mais ténue dos sorrisos. — No Priorado chamam-
me bruxa por causa dos meus dons, mas eu prefiro
encantadora. Soa melhor.
Ead tinha descoberto mais do que esperava, mas fora
lá para perguntar sobre a joia.
— Senhora — disse —, de facto, os vossos dons são
milagrosos. Nunca forjastes mais nada com o sterren?
— Nunca. Eu queria que Ascalon fosse algo único em
todo o mundo. Um presente para o maior cavaleiro do
seu tempo. Claro que isso não quer dizer que não
existam outros objetos... mas eu não os forjei. E se
existem, estão perdidos há muito tempo.
Ead estava tentada a contar-lhe sobre a joia, mas era
melhor manter Kalyba na ignorância, ou ela faria
qualquer coisa para lhe deitar as mãos.
— Nada me faria mais honrada do que ver a espada.
Todos os inysh falam dela — disse Ead. — Podeis mostrar-
ma?
Kalyba estalou a língua.
— Se a tivesse, adoraria. Procurei-a durante séculos,
mas o Galian escondeu-a bem.
— Ele não deixou nenhuma pista sobre o seu
paradeiro?
— Apenas que queria deixá-la nas mãos daqueles que
morreriam para me manter longe dela. — O seu sorriso
desvaneceu. — As rainhas de Inys também a procuraram,
pois é um objeto sagrado para elas... mas não a
encontraram. Se eu não consegui, ninguém consegue.
Que Kalyba forjara Ascalon para Galian Berethnet era
algo que todos no Priorado sabiam. Em parte, era por
isso que muitas das irmãs desconfiavam dela. Ambos
haviam nascido ao mesmo tempo e tinham vivido na
aldeia de Goldenbirch ou nos arredores, mas, além
desses factos, ninguém compreendia a natureza da sua
relação.
— A Rainha Sabran sonhou com esta Pérgula da
Eternidade — disse Ead. — Ela falou-me disso quando eu
era a sua dama de companhia. Só vós podeis tecer
sonhos, minha senhora. Fostes vós que lhos enviastes?
— Essa informação terá um preço mais alto.
Dito isto, a bruxa caiu da rocha, deslizando para baixo.
Nua outra vez, foi para junto dela, e a rocha sob os seus
pés transformou-se num canteiro de flores. Cheiravam a
creme e a mel.
— Vem ter comigo — disse ela, passando a mão pelas
pétalas. — Vem, deita-te comigo na minha pérgula e
cantar-te-ei sobre os sonhos.
— Senhora, nada mais desejo do que agradar-vos e
provar-vos a minha lealdade, mas o meu coração
pertence a outra pessoa.
— Com certeza que o segredo de como os sonhos são
tecidos vale o preço de uma noite. Há muito tempo que
não sinto o toque suave de um amante. — Kalyba passou
um dedo pela barriga, parando pouco antes de chegar às
virilhas. — Mas... admiro a tua lealdade. Por isso,
aceitarei outro presente teu. Em troca do meu
conhecimento sobre as estrelas e os seus dons.
— O que quiserdes.
— Não me deixam aproximar da laranjeira há vinte
anos. Uma vez que tenhas provado a magia, qualquer
mago morrerá por ela. A fome corrói-me as entranhas.
Gostaria muito de ter a minha chama de volta — disse
Kalyba, olhando para ela. — Traz-me a fruta e serás a
minha herdeira. Jura-me, Eadaz du Zāla uq-Nāra. Jura-me
que me trarás o que desejo.
— Senhora — disse Ead —, juro-vos pela Mãe.
***
***
Ead.
Ela olhava para ele como se visse um fantasma.
Tinha passado meses a percorrer aquelas galerias
numa espécie de semiletargia. Suspeitava de que lhe
tivessem posto algo na comida para o fazer esquecer o
homem que era antes. Começara a esquecer os por‐
menores do seu rosto, da sua amiga de um lugar
distante.
E agora, ali estava ela, com o seu manto vermelho e o
seu cabelo decorado com flores. E parecia... completa,
plena, renovada. Como se tivesse ficado muito tempo
sem água e agora estivesse a florescer.
Ead desviou o olhar. Como se não o tivesse visto. A
Prioresa, a líder da seita, tinha-a levado da câmara.
Assim que a viu, sentiu-se traído, mas aquele brilho nos
seus olhos e aqueles lábios entreabertos deixaram claro
que ela estava tão surpreendida por o ver como ele por
vê-la.
Não importava o que ela era; continuava a ser Ead
Duryan, continuava a ser sua amiga. Tinha de falar com
ela de alguma forma.
Antes que fosse tarde demais para se lembrar.
***
Chassar estava deitado na cama, lendo à luz de velas,
com os óculos empoleirados na ponta do nariz. Quando
Ead apareceu, como uma rajada de vento de
tempestade, ele olhou para cima.
— Que faz aqui o Lorde Arteloth? — perguntou, sem
fazer nenhum esforço para controlar o volume da sua
voz.
Chassar juntou as suas enormes sobrancelhas.
— Eadaz — disse ele —, acalma-te.
Sarsun, que estava meio a dormir, soltou um grasnado
de protesto.
— O Falcão da Noite enviou o Loth para Cárscaro —
disse Ead. — Porque é que ele está aqui?
Chassar soltou um longo suspiro.
— Foi ele que nos trouxe a caixa. A Donmata Marosa
deu-lha. — Tirou os óculos. — Ela disse-lhe para ele me
encontrar. Depois de a receber de Jondu.
— A Donmata é uma aliada?
— Parece que sim. — Chassar passou o roupão pelo
peito e deu um nó no cinto. — O Lorde Arteloth não devia
ter estado na câmara fúnebre esta noite.
— Então, puseste-o propositadamente fora do meu
caminho.
Tal engano, vindo de qualquer pessoa, teria doído,
mas ainda mais vindo dele.
— Eu sabia que não ias gostar — murmurou Chassar.
— Eu mesmo queria contar-te, depois da cerimónia.
Sabes que quando um estranho encontra o Priorado, não
pode partir.
— Ele tem família. Não podemos...
— Podemos. Pelo Priorado. — Lentamente, Chassar
levantou-se da cama. — Se o deixarmos ir, contará tudo
a Sabran.
— Não precisas de temer por isso. O Falcão da Noite
nunca o deixará regressar à corte.
— Eadaz, ouve-me. Arteloth Beck é um seguidor do
Impostor. Ele pode ter sido gentil contigo, mas nunca te
poderá compreender. A seguir vais dizer-me que estás
preocupada com Sabran Bereth...
— E se estiver?
Chassar examinou-lhe o rosto. A sua boca era uma
fissura nas profundezas da barba.
— Ouviste as blasfémias dos inysh. Sabes o que
fizeram com a memória da Mãe.
— Disseste-me para me aproximar dela. É de admirar
que o tenha feito? — atirou de volta. — Deixaste-me
sozinha naquela corte durante quase uma década. Eu era
uma estranha. Uma convertida. Se não tivesse
encontrado pessoas a quem me agarrar, para tornar a
espera suportável...
— Eu sei. E lamentá-lo-ei pelo resto dos meus dias. —
Pousou uma mão carinhosa no seu ombro. — Estás
cansada. E chateada. Podemos falar novamente pela
manhã.
Ela queria responder, mas aquele era Chassar, que
ajudara os Filhos de Siyāti a criá-la, que a fizera rir
quando era pequena, que cuidara dela quando Zāla
morrera.
— A Nairuj disse que a Prioresa me vai dar outra
tarefa em breve — disse Ead. — Quero saber o que é.
Chassar pressionou um dedo entre os olhos e
esfregou. Ela ficou parada, à espera.
— Protegeste Sabran do Fýredel quase nove anos
depois de deixares Lasia. Esse vínculo profundo com a
árvore que pode atravessar o tempo e a distância é uma
coisa rara. Muito rara. — Afundou de volta na cama. — A
Prioresa pretende tirar proveito disso. Pretende enviar-te
para as terras além do Portão de Ungulus.
O seu coração bateu com força.
— Com que propósito?
— Uma irmã trouxe-nos rumores de Drayasta. Um
grupo de piratas alega que Valeysa pôs um ovo algures
no Eria durante a Ascensão das Sombras — disse
Chassar. — A Prioresa quer que o encontres e destruas.
Antes que possa eclodir.
— Ungulus. — Ead não conseguia sentir a maior parte
do seu corpo. — Posso ficar fora durante anos.
— Sim.
O Portão de Ungulus era o limite do mundo conhecido.
Além dele, o continente sul era desconhecido. Os poucos
exploradores que se aventuraram ali falavam de um
deserto sem fim, que se chamava Eria — cintilantes
salinas, sol brutal e nem uma gota de água. Se algum
deles conseguiu chegar ao outro lado, nunca mais voltou
para contar a história.
— Sempre houve histórias a circular em Drayasta. —
Ead caminhou lentamente em direção à varanda. — Pela
Mãe, que fiz eu para merecer mais exílio?
— Esta é uma missão de verdadeira urgência — disse
Chassar. — Mas sinto que ela te escolheu para isso não
apenas por causa da tua resistência, mas porque essa
tarefa faria voltar a tua atenção para o Sul.
— Queres dizer que minha lealdade está em questão.
— Não — disse Chassar, mais gentil. — Ela apenas
acredita que podes beneficiar desta jornada. Isso dar-te-á
a oportunidade de te lembrares do teu propósito e de te
expurgares de impurezas.
A Prioresa queria-a o mais longe possível do Reino
das Virtudes para que não pudesse ver a turbulência que
em breve lá estouraria. Esperava que, quando Ead
voltasse, já não acreditasse que qualquer lugar que não
fosse o Sul importava.
— Há uma outra escolha.
Ead olhou por cima do ombro.
— Diz de uma vez.
Saiu do quarto.
— Vê-la.
— Não. — Ele não demorou a chegar ao corredor e
pôr-se em frente dela. — Eadaz, olha para mim. A
decisão está tomada. Contesta-a, e ela apenas estenderá
o teu tempo fora.
— Não sou uma criança que precisa de ser mandada
embora para pensar no que fez de errado. Eu sou...
— Que se passa?
Ead virou-se. A Prioresa, resplandecente em seda cor
de ameixa, parou na entrada do corredor.
— Prioresa. — Ead foi até ela. — Imploro-vos que não
me envieis nesta tarefa para lá de Ungulus.
— Já está decidido. Há muito que suspeitamos de
que os Sombras Ocidentais têm um ninho — disse a
Prioresa. — A irmã que o destruir deve sobreviver sem os
frutos. Tenho confiança de que farás isso por mim, filha.
Que irás servir a Mãe mais uma vez.
— Não é assim que estou destinada a servir a Mãe.
— Não aceitarás nada além da minha permissão
para regressares a Inys. Tens o coração nisso. Deverás
passar pelo Portão de Ungulus para te lembrares de
quem és.
— Eu sei muito bem quem sou — retrucou Ead. — O
que não sei é por que motivo, nos anos em que estive
ausente, esta nossa casa se tornou incapaz de ver além
do seu próprio nariz.
Soube pelo silêncio que se seguiu que tinha ido
longe demais.
A Prioresa olhou para ela por um longo tempo, tão
parada que poderia muito bem ter sido fundida em
bronze.
— Se voltas a pedir para renegares o teu dever —
disse ela por fim —, não terei escolha a não ser tirar-te o
manto.
Ead não conseguiu falar. Uma frieza percorreu-a.
A Prioresa trancou-se no seu quarto. Chassar lançou
um olhar pesaroso a Ead antes de se afastar, deixando-a
de pé e a tremer.
Uma sociedade tão velha e tão secreta precisava de
um manuseio cuidadoso. Ela, Eadaz du Zāla uq-Nāra,
agora sabia como era ser manuseada.
A sua jornada de volta ao quarto foi um borrão.
Caminhou até à varanda e viu o Vale de Sangue mais
uma vez. A laranjeira estava linda como sempre.
Temente à alma na sua perfeição.
A Prioresa não impediria a queda de Inys. Uma vez
que a guerra civil dividisse o Reino das Virtudes por
dentro, seria uma presa fácil para o Rei Terreno e o
Exército Draconiano. Ead não tinha estômago para isso.
O vinho do sol ainda estava na sua mesa de
cabeceira. Bebeu o que restava, tentando acalmar os
tremores de raiva. Depois de esvaziar a taça, deu por si a
olhar para ela. E quando a revirou nas suas mãos, algo
lhe despertou na memória.
As taças gémeas. O antigo símbolo do Cavaleiro da
Justiça. E a sua linhagem.
Crest.
Descendente do Cavaleiro da Justiça. Ela que pesava
as taças da culpa e da inocência, do apoio e da oposição,
da virtude e do vício. Um servidor de confiança da coroa.
Copeiro.
Igrain Crest, que sempre desaprovara Aubrecht
Lievelyn. Cujos lacaios haviam assumido o controlo da
Torre da Rainha mesmo quando Ead fugia dela,
aparentemente para proteger Sabran.
Ead agarrou a balaustrada. Loth enviara um aviso de
Cárscaro.
Cuidado com o Copeiro. Ele estivera a investigar o
desaparecimento do Príncipe Wilstan, que por sua vez
suspeitava do envolvimento de Vetalda no assassinato da
Rainha Rosarian.
Teria Crest providenciado para que Rosarian Berethnet
morresse antes do tempo, deixando uma jovem no
comando de Inys?
Uma rainha que precisava de uma protetora antes de
atingir a maioridade. Uma jovem princesa a quem Crest
se apresentara para moldar...
Mesmo enquanto o considerava, Ead soube que o seu
instinto parecia verdadeiro. Ficara tão cega pelo seu ódio
por Combe, tão determinada a torná-lo responsável por
tudo o que acontecera em Inys, que ignorara o que
estava mesmo diante dos seus olhos.
Como seria fácil para si, dissera Combe, colocar a
culpa por todos os males à minha porta.
Se fosse Crest, Roslain poderia estar envolvida. Talvez
a sua lealdade a Sabran tivesse desaparecido,
juntamente com a criança. Toda a família Crest poderia
estar em conspiração para a usurpar.
E tinham a Torre da Rainha.
Ead caminhou no escuro. Apesar do calor húmido da
Bacia de Lasia, estava com tanto frio que o seu queixo
tremia.
Se voltasse para Inys, seria um anátema para o
Priorado. O seu nome não dito, a sua vida perdida.
Se não voltasse para Inys, abandonaria todo o Reino
das Virtudes.
Parecia-lhe uma traição a tudo o que sabia ser certo
e a tudo o que o Priorado representava. Ela era leal à
Mãe, não a Mita Yedanya.
Tinha de seguir a chama no seu coração. A chama
que a árvore lhe concedera.
A perceção do que tinha de fazer entalhou os
pedaços da sua alma. Sentiu um sabor a sal nos lábios.
As lágrimas escorreram-lhe até ao queixo e caíram em
gotas gordas.
Aquele era o lugar onde havia nascido. Era onde
pertencia. Tudo o que sempre quisera, durante toda a
sua vida, fora um manto vermelho. O manto que agora
teria de deixar para trás.
Continuaria o trabalho da Mãe. Em Inys, poderia
acabar o que Jondu começara.
Ascalon. Sem a espada, não teria hipóteses de
derrotar o Inominável. As Damas Vermelhas haviam-na
procurado. Kalyba procurara-a. Em vão.
Nenhuma delas possuía a joia minguante.
Ambas as formas de magia são atraídas uma pela
outra, principalmente, mas também pelo seu oposto.
A joia tinha de ser sterren. Ascalon poderia responder
a isso, e a lâmina, por sua vez, responder-lhe-ia apenas a
ela.
Ead olhou para a árvore, a garganta dorida. Caiu de
joelhos e rezou para que aquela fosse a decisão certa.
***
***
***
Sul
***
***
— Lu Qingzi
49
Oeste
***
***
Ead trepou pela videira da Torre da Rainha, como
fizera antes. Quando chegou à altura da Cozinha Real,
impulsionou-se contra a parede e agarrou-se ao peitoril.
Enfraquecida pela pressão, a trepadeira partiu-se sob a
sua bota e caiu sobre a estufa.
Trepou até à janela, passou para o outro lado e
deixou-se cair de cócoras. Algures, lá fora, um sino tocou.
Deviam ter encontrado o corpo no poço.
Para Lintley, o alarme era uma boa notícia. Ele e os
seus guardas podiam aproveitar a distração para ir
buscar as espadas ao arsenal. Para Ead, no entanto, nem
tanto. A agitação acordaria todos os que estavam de
guarda na Torre da Rainha.
Apenas alguns quartos a separavam de Sabran.
A Galeria do Sangue Real estava vazia. Passou pelos
retratos das mulheres da dinastia Berethnet. Aqueles
olhos verdes pintados pareciam segui-la conforme se
aproximava da escadaria. Havia diferenças entre as
rainhas — um caracol, uma sarda, um maxilar bem
definido —, mas eram tão parecidas umas com as outras
que bem podiam ser irmãs.
O seu siden latejava, e ela escutava: conseguia ouvir
tudo o que se passava mesmo lá em cima. Os passos
aproximavam-se. Quando um grupo de lacaios vestidos
de verde desceu as escadas a correr, ela já estava
escondida, de costas para uma tapeçaria.
O sino atraíra-os para fora dos aposentos reais. Era a
sua oportunidade de chegar a Sabran.
No andar de cima, ficava o corredor onde vivera
antes, como Dama do Leito Real. Ead parou quando
ouviu uma voz lá em baixo.
— Para a Torre da Rainha! — Era Lintley. —
Cavaleiros do Corpo!
Protegei a rainha com as vossas espadas!
Tinham sido vistos, e demasiado cedo. Ead correu
para a janela e olhou para baixo.
Com os seus sentidos apurados, conseguiu ver todos
os pormenores do confronto. No Jardim do Relógio de Sol,
os lacaios de Crest chocavam as suas espadas contra os
Cavaleiros do Corpo, já armados. Viu Loth, de espada em
punho, e Margret, de costas para o irmão.
A chama clamou por se libertar. Pela primeira vez
desde que era criança, Ead conjurou um punhado de fogo
draconiano, vermelho como o sol da manhã, e atirou-o
para o Jardim do Relógio de Sol, onde os traidores
estavam reunidos. O pânico espalhou-se. Os lacaios
correram de um lado para o outro como loucos,
procurando a fonte do fogo, sem dúvida convencidos de
que um wyrm pairava sobre eles. Loth aproveitou o
momento e derrubou o adversário com o cotovelo. Ead
viu o seu rosto endurecer, a sua garganta apertar-se e o
seu punho cerrar-se.
— Pessoas da corte! — gritou. — Ouvi-me!
Com aquele barulho, o palácio já estaria acordado. As
janelas começaram a abrir-se em todos os edifícios.
— Eu sou o Lorde Arteloth Beck, eLivros de Inys pela
minha lealdade à coroa. — Loth caminhou até ao centro
do Jardim do Relógio de Sol e ergueu a sua voz acima do
choque das espadas. — Igrain Crest rebelou-se contra a
rainha. Permite que os seus lacaios usem as suas cores e
carreguem armas. Cospe na cara do Cavaleiro da
Camaradagem, permitindo que os seus servos lutem
como cães raivosos na corte. Isto são atos de traição!
Parecia um homem renascido.
— Peço-vos que mostreis a vossa lealdade e devoção,
que vos levanteis em defesa da rainha! Ajudai-nos a
chegar à Torre da Rainha e a garantir a sua segurança!
Das janelas, gritos furiosos surgiram.
— Tu. Que fazes aqui?
Ead virou-se. Mais doze lacaios haviam surgido.
— É ela — gritou um deles, e correram na sua direção.
— Ead Duryan, larga as armas!
Não podia encantá-los a todos.
Teria de derramar sangue.
Já tinha duas espadas nas mãos. Deu um grande salto
e aterrou, como um gato, no meio deles, cortando dedos
e dilacerando barrigas. A morte caiu sobre eles como um
vento do deserto.
As suas espadas tinham lâminas tão vermelhas como
o manto que tivera de abandonar. E quando se viu
rodeada de cadáveres, olhou para cima, com o sabor do
ferro na boca e as mãos encharcadas.
A senhora Igrain Crest encontrava-se ao fundo do
salão, ladeada por dois guardas.
— Basta, Vossa Graça — disse Ead, embainhando as
espadas. — Já chega.
Crest parecia não ter sido afetada pela carnificina.
— Senhora Duryan. — Ergueu as sobrancelhas. — O
sangue, minha querida, nunca é a resposta.
— Belas palavras — respondeu Ead — vindas de
alguém com tanto sangue nas mãos.
Crest não vacilou.
— Desde quando é que vos considerais uma juíza de
rainhas? — Ead deu um passo na sua direção. — Há
quanto tempo as castigais sempre que se afastam do
que considerais ser o caminho da virtude?
— Estais a delirar, senhora Duryan.
— O homicídio é contra os preceitos dos vossos
antepassados. E, no entanto, julgastes as Berethnets e
pronunciastes a sentença. A Rainha Rosarian tinha um
amante, e aos vossos olhos isso era uma mancha
insuportável. — Ead fez uma pausa. — Rosarian está
morta porque vós assim o decidistes.
Fora uma flecha disparada no escuro, movida pelo
instinto e pouco mais. E, no entanto, Crest sorriu.
E Ead soube.
— A Rainha Rosarian — respondeu a Duquesa da
Justiça — foi morta por Sigoso Vetalda.
— Com a vossa aprovação. Haveis ajudado por dentro.
Ele foi o bode expiatório e a arma do crime, mas vós
fostes a instigadora. Suponho que quando vistes que
tudo corria bem, percebestes o poder que tínheis.
Esperáveis moldar a filha de Rosarian e torná-la mais
obediente do que a mãe. Tentastes que Sabran
dependesse dos vossos conselhos e que vos amasse
como uma segunda mãe. — Ead espelhou aquele
pequeno sorriso. — Mas, claro, Sabran aprendeu a tomar
as suas próprias decisões.
— Sou a herdeira da grande senhora Lorain Crest,
Cavaleira da Justiça — disse Crest, o seu tom contido. —
Ela que se certificava de que o grande duelo da vida era
jogado de forma justa, que pesava a taça da culpa contra
a taça da inocência, punia os indignos e fazia os justos
triunfar sobre os pecadores. A mais estimada pelo Santo,
cujo legado defendi durante toda a minha vida.
Um fervor incontido ardia-lhe nos olhos.
— Sabran Berethnet — disse em voz baixa — destruiu
a dinastia. É uma estéril. Uma bastarda. Não é herdeira
legítima de Galian Berethnet A coroa deve ser usada por
um Crest, para glorificar o Santo.
— O Santo não aceitaria uma tirana no trono de Inys
— disse uma voz nas costas de Ead.
Sir Tharian Lintley apareceu ao seu lado, juntamente
com nove Cavaleiros do Corpo, que rodearam Crest e os
seus protetores.
— Igrain Crest — declarou Lintley —, estais presa por
suspeita de alta traição. Vireis connosco para a Torre
Dearn.
— Não podes prender ninguém sem um mandado de
Sua Majestade — disse Crest — ou meu. — Parecia altiva,
como se todos estivessem abaixo dela. — Quem és tu
para usar as tuas espadas contra alguém de nascimento
nobre?
Lintley não se deu ao trabalho de responder.
— Ide — disse ele a Ead. — Ide ter com Sua
Majestade.
Ead não esperou que lhe dissessem duas vezes.
Olhou uma última vez para Crest e caminhou pelo
corredor.
— Podemos iniciar uma transição pacífica agora ou
esperar que a guerra seja declarada quando a verdade
for conhecida — disse-lhe Crest enquanto se afastava. —
E acontecerá, senhora Duryan. Os justos triunfam
sempre... no fim.
Ead cerrou os dentes e continuou a andar.
Assim que soube que ninguém estava a olhar,
começou a correr, deixando um rasto de sangue pelo
caminho que havia percorrido tantas vezes no passado.
Correu para a Câmara de Presença. Estava frio e
escuro. Virou a esquina e deu por si em frente às portas
do Quarto de Leito Real. As portas que abrira tantas
vezes para ver a rainha de Inys.
Algo se moveu na escuridão. Ead travou a fundo. À
luz ténue da sua chama, distinguiu uma figura agachada
junto à porta. Com olhos azul-cobalto transparentes e
cabelo escuro.
Roslain.
— Fora. — A lâmina da sua faca brilhou. — Corto-vos
a garganta se lhe tocardes, avó. Juro-vos...
— Sou eu, Roslain. Ead.
A primeira dama da rainha finalmente viu além da
chama.
— Ead. — Manteve a faca levantada, respirando com
dificuldade. — Não queria dar ouvidos aos rumores sobre
a tua feitiçaria... mas talvez sejas realmente a Dama da
Floresta.
— Como bruxa, sou muito mais humilde do que ela,
garanto-te.
Ead aproximou-se de Roslain, baixou-se e pegou-lhe
na mão direita. Roslain estremeceu. Três dos seus dedos
estavam tortos num ângulo pouco natural, e uma lasca
de osso sobressaía por cima do anel do nó do amor.
— Foi a tua avó que te fez isto? — perguntou Ead
baixinho. — Ou estás com ela?
Roslain esboçou uma gargalhada amarga.
— Pelo Santo, Ead.
— Cresceste à sombra de uma rainha. Talvez estejas
ressentida com ela.
— Não cresci à sombra dela. Eu sou a sua sombra —
disse Roslain. — E esse tem sido o meu privilégio.
Ead olhou-a fixamente, mas não viu nenhum artifício
naquele rosto cheio de lágrimas.
— Vai vê-la, mas não baixes a guarda — sussurrou
Roslain. — Se a minha avó voltar...
— A tua avó foi presa.
Ao ouvir aquilo, Roslain soltou um soluço sufocado.
Ead apertou-lhe o ombro. Depois levantou-se e, pela
primeira vez numa eternidade, deu por si diante das
portas do Quarto de Leito Real. Cada fibra do seu corpo
estava tensa como uma corda de violino.
Uma escuridão sinistra reinava no seu interior. A
chama soltou-se da sua mão e pairou no ar e, na luz
pálida, Ead conseguiu distinguir uma silhueta aos pés da
cama.
— Sabran.
A figura moveu-se.
— Deixa-me — protestou. — Estou a rezar.
Ead já estava ao seu lado. Levantou-lhe a cabeça com
a mão e o corpo trémulo de Sabran encolheu-se.
— Sabran — repetiu, quase sem voz. — Sabran, olha
para mim.
Quando Sabran olhou para cima, Ead recuperou o
fôlego. Sabran Berethnet estava abatida e descaída;
parecia mais um cadáver do que uma rainha. Os seus
olhos, outrora cheios de vida, mal viam o exterior, e a
sua túnica de dormir cheirava a dias não lavados.
— Ead — reconheceu, tocando-lhe com os dedos no
rosto. Ead pressionou a mão gelada contra a sua face. —
É
Não. És outro sonho. Vieste para me atormentar. —
Sabran virou as costas. — Deixa-me em paz.
Ead olhou para ela, depois riu-se pela primeira vez em
semanas, um riso que surgiu das profundezas do seu
estômago.
— Maldita sejas, tola intransigente. Atravessei o Sul e
todo o Ocidente para voltar para o teu lado, Sabran
Berethnet, e é assim que me recebes?
Sabran olhou para ela durante mais um momento,
suavizando a expressão, e de repente desatou a chorar.
— Ead — disse ela, com a voz embargada.
Ead abraçou-a com força, envolvendo-a com os
braços. Sabran encolheu-se contra o seu corpo como um
gatinho.
Não havia nada dela. Ead tirou a colcha da cama e
cobriu-a com ela. Teria tempo para explicações. E para
vingança. Por enquanto, tudo o que queria era confortá-
la e fazê-la sentir-se segura.
— Ela matou Truyde utt Zeedeur. — Sabran tremia
tanto que mal conseguia falar. — Aprisionou os meus
Cavaleiros do Corpo. Igrain. Tentei... tentei...
— Shh — disse Ead, beijando-lhe a testa. — Eu estou
aqui. Loth está aqui. Vai correr tudo bem.
51
Este
***
***
— Até onde sabemos, a Ilha das Penas foi o único
lugar no Oriente que permaneceu intocado durante a
Grande Desolação — disse o cantor de ossos enquanto
caminhavam. — Muitos documentos antigos foram en‐
viados para cá, para serem protegidos do infortúnio.
Infelizmente, desde que as bestas de fogo acordaram e
descobriram o nosso paradeiro, esses documentos estão
agora em perigo.
— Algo se perdeu no ataque?
— Um punhado — disse ele. — Organizamos os
nossos arquivos por reinados. Sabeis quem procurais?
— A muito honrada Imperatriz Mokwo.
— Ah, sim. Uma figura misteriosa. Dizia-se que tinha
ambições de trazer todo o Oriente sob o domínio do
Trono do Arco-Íris. Que o seu rosto era tão lindo que
todas as borboletas choravam de inveja. — O seu sorriso
apareceu-lhe nas faces. — Quando a história falha em
lançar luz sobre a verdade, o mito cria a sua própria.
Tané seguiu-o escada abaixo, por um túnel.
O repositório erguia-se como uma sentinela numa
caverna atrás do eremitério. Estátuas de Altos Eruditos
do passado enchiam recantos nas paredes e incontáveis
gotas de luz azul pendiam do teto, como fios de seda de
aranha.
— Não corremos o risco de pegar fogo aqui — disse o
cantor de ossos. — Felizmente, a caverna tem as suas
próprias luzes.
Tané ficou fascinada.
— O que são?
— Gotas de lua. Ovos da mosca leve. — Virou o
repositório. — Todos os nossos documentos são tratados
com óleo de crina de dragão e deixados para secar nas
cavernas de gelo. A estudiosa Ishari estava a tratar com
óleo algumas das nossas mais novas adições ao
repositório quando as bestas de fogo chegaram.
— Estudiosa Ishari — ecoou Tané. O seu estômago deu
um nó. — Era ela... no eremitério?
— Infelizmente, a estudiosa foi ferida no ataque
enquanto tentava salvar os documentos. Morreu de
dores.
Falava da morte da maneira que só os cantores de
ossos fariam, com aceitação e quietude. Tané engoliu a
cinza do arrependimento. Ishari tinha 19 anos, e a maior
parte deles fora gasta a preparar-se para uma vida que
ela nunca tivera a hipótese de levar.
O cantor de ossos abriu uma porta no repositório.
— Os documentos aqui referem-se ao reinado da
muito honrada Imperatriz Mokwo. — Não eram muitos. —
Pedir-vos-ia para lidar com eles o mínimo possível. Voltai
para dentro quando quiserdes.
— Obrigada.
Ele virou-se e deixou-a. No brilho azul calmo, Tané
avaliou os pergaminhos. Ao piscar das gotas de lua,
desvendou o primeiro pergaminho e começou a ler,
esforçando-se por não pensar em Ishari.
Era uma carta de um diplomata da Cidade das Mil
Flores. Tané era fluente em lacustre, mas aquela era uma
antiga escrita clerical. Traduzir fez-lhe doer as têmporas.
Dirigimo-nos a Neporo, a
autoproclamada Rainha de Komoridu,
cujo nome ouvimos pela primeira vez,
para vos agradecer o envio de uma
embaixada e dos vossos tributos.
Embora apreciemos a vossa deferência,
a vossa inesperada reivindicação de um
território no Mar Infinito é um insulto ao
vizinho Seiiki, com cujo povo estamos
unidos como adoradores de dragões.
Lamentamos não poder reconhecer-vos
como rainha soberana enquanto a Casa
de Noziken discordar. Mesmo assim,
atribuímos-vos o título de Senhora de
Komoridu, amiga do povo lacustre.
Esperamos que governeis o vosso povo,
conduzindo-o para a paz e mostrando
respeito e devoção tanto à nossa nação
como a Seiiki.
***
No último andar da Torre Dearn, na mesma cela onde
Truyde utt Zeedeur passara os seus últimos dias, Igrain
Crest rezava. A única luz entrava pela estreita abertura
de uma fresta. Quando Loth chegou, ela não levantou a
cabeça, nem abriu as mãos.
— Senhora Igrain — disse Loth.
Ela permaneceu imóvel.
— Venho fazer-vos algumas perguntas.
— Responderei pelo que fiz apenas em Halgalant.
— Não vereis a corte celestial — respondeu Loth,
imperturbável.
Por isso, mais vale começarmos aqui.
53
Oeste
***
***
Este
Oeste
***
***
***
***
Subiram até à entrada da toca e refizeram o caminho
pela floresta. O céu já estava coberto de estrelas.
Ascalon, sem bainha, parecia absorver a sua luz. Na
câmara, quase parecera de aço, mas agora não havia
dúvidas da sua origem celeste.
Nenhum navio partia durante a noite. Teriam de
passar a noite em Serinhall e partir ao amanhecer para o
porto de Caliburn do Mar. Ead não tinha vontade de
atravessar a floresta novamente. Mesmo com a espada
na mão, Haithwood era capaz de penetrar no coração de
todas as suas criaturas e espremer toda a sua energia.
— Alto! Quem está aí?
Ead olhou para cima. Margret estava ao seu lado e
levantou a lamparina.
— Sou a senhora Margret Beck, filha dos Condes de
Goldenbirch, e este é o território dos Beck. Não tolerarei
ultrajes na floresta. — Margret falou com uma voz firme,
mas Ead conhecia-a suficientemente bem para sentir o
medo que escondia. — Vinde cá e revelai-vos.
E foi então que Ead a viu. Uma figura entre as árvores,
indistinguível na escuridão de Haithwood. Um momento
depois, desaparecera nas sombras, como se nunca
tivesse existido.
— Viste-a?
— Vi — disse Ead.
O vento farfalhou por entre as árvores. Voltaram para
os seus cavalos a passo rápido. Ead amarrou Ascalon à
sela.
A lua cheia brilhava sobre Goldenbirch, iluminando a
neve enquanto cavalgavam de volta à estrada fúnebre.
Tinham acabado de passar por uma das pedras
cerimoniais de delimitação quando Ead ouviu um grito.
Era Margret. Puxou as rédeas e deu a volta ao cavalo.
— Meg!
Ead suspirou. O outro cavalo não estava em lado
nenhum.
E Margret estava de pé, uma lâmina pressionada
contra a sua garganta, nas mãos da Bruxa de Inysca.
É uma magia fria e esquiva, elegante e evasiva.
Aquele que a domina pode criar ilusões, controlar a
água... pode até mudar de forma...
— Kalyba.
A bruxa estava descalça. Usava um vestido
transparente, branco como a neve, apertado na cintura.
— Olá, Eadaz.
Ead estava tão tensa como uma corda de arco.
— Seguiste-me desde Lasia?
— É verdade. Vi-te fugir do Priorado e vi-te partir de
Córvugar com o lorde de Inys — disse Kalyba, o rosto
sem expressão. — Soube então que não tinhas intenção
de regressar à minha pérgula. Que não cumpririas a tua
palavra.
As mãos de Margret tremiam.
— Tens medo, minha querida? A tua ama contou-te
histórias da Dama da Floresta? — Passou-lhe a lâmina ao
longo da garganta e ela estremeceu. — Parece que foi a
tua família que escondeu a minha espada para que eu
não a encontrasse.
— Larga-a — exigiu Ead. O seu cavalo deu um coice
no chão. — Ela não tem nada que ver com qualquer
afronta que eu te possa ter causado.
— Afronta. — Apesar do frio cortante, a bruxa não se
arrepiou. — Juraste-me que me trarias o que eu desejava.
Nesta ilha, há muito tempo, quebrar esse juramento ter-
te-ia custado a vida. Tens sorte em ter algo mais para me
oferecer.
Ascalon voltou a brilhar. E também a joia minguante,
por baixo do seu manto.
— Esteve sempre aqui. Na minha floresta. — Os olhos
de Kalyba estavam em Ascalon. — A minha espada,
escondida sob a terra, na escuridão. E mesmo que não
estivesse enterrada onde eu não pudesse perceber o seu
chamamento, teria de rastejar como uma cobra. Galian
troça de mim mesmo depois da morte.
Margret fechou os olhos. Os seus lábios moveram-se
numa oração silenciosa.
— Suponho que tenha feito o mesmo antes de partir
para Nurtha. Para o seu fim. — Kalyba olhou para cima.
— Dá-ma agora, Eadaz, e terás cumprido o teu
juramento. Ter-me-ás dado o que eu desejo.
— Kalyba... Sei que quebrei o meu juramento e
recompensar-te-ei. Mas preciso de Ascalon. Usá-la-ei para
derrotar o Inominável, já que Cleolind não o fez. Mitigará
o fogo do seu interior.
— Sim — disse Kalyba. — Mas não serás tu a
empunhá-la, Eadaz.
A bruxa atirou Margret para a neve. De repente,
Margret apertou os braços com força e começou a
ofegar, a vomitar, como se tivesse água nos pulmões.
— Ead... — balbuciou. — Ead, os espinhos...
— Que é que lhe estás a fazer? — Ead desmontou. —
Deixa-a em paz.
— É só uma ilusão — disse Kalyba, contornando
Margret. — Ainda assim, julgo que os mortais são
vulneráveis aos meus feitiços. Às vezes, os seus corações
são bloqueados pelo medo. — Estendeu a mão. — Esta é
a tua última oportunidade de me dares a espada, Eadaz.
Não deixes que a senhora Margret Beck pague o preço do
teu juramento quebrado.
Ead manteve a sua posição. Não lhe iria dar a espada.
Nem tinha intenção de deixar Margret morrer por ela.
A laranjeira não lhe concedera o poder do seu fruto
em vão.
Virou as palmas para cima. Um jato de fogo mágico
brotou-lhe das mãos, cobrindo Margret e a bruxa,
acabando com a ilusão.
Kalyba soltou um grito agudo e contorceu-se. As suas
madeixas ruivas desapareceram. A carne dos seus
membros foi consumida e, quando arrefeceu,
apareceram braços e pernas pálidos no seu lugar. Uma
cabeleira preta caía-lhe desordenadamente até à cintura.
Ead teve de se esforçar para fechar as mãos. Quando
as chamas desapareceram, viu Margret de joelhos, com
uma mão na garganta e os olhos injetados de sangue.
E ao seu lado estava Sabran Berethnet.
Ead olhou para as suas mãos, depois para Kalyba, que
também era Sabran. Margret virou-se para trás.
— Sabran? — disse ela, tossindo.
Kalyba abriu os olhos. Verdes como salgueiros.
— Como? — disse Ead, ofegante. — Como é que tens
a cara dela? — Desembainhou a espada. — Responde-
me, bruxa.
Não conseguia desviar o olhar. Kalyba era Sabran, até
à ponta do nariz e à curva dos lábios. Não tinha nenhuma
cicatriz na coxa ou na barriga, mas tinha uma marca que
Sabran não tinha no lado direito, debaixo do braço; de
resto, podiam ser gémeas.
— Os seus rostos são as suas coroas. E a minha é a
verdade. — A voz naqueles lábios era a da bruxa. —
Disseste que querias aprender, Eadaz, naquele dia na
minha pérgula. Tens diante dos teus olhos o maior
segredo do Reino das Virtudes.
— Tu — murmurou Ead.
Quem foi a primeira rainha de Inys?
— Isso não é um feitiço. —. Com o coração a
martelar, Ead levantou a espada. — Essa é a tua forma
real.
Margret conseguiu pôr-se de pé e correu para trás de
Ead, com o punhal na mão.
— Querias a verdade, e a verdade recebeste — disse
Kalyba, ignorando as suas armas. — Sim, Eadaz. Esta é a
minha verdadeira forma. A minha primeira forma. A
forma que tinha antes de alcançar a mestria do sterren.
— Juntou as mãos diante da barriga, parecendo-se ainda
mais com Sabran, se é que isso era possível. — Nunca o
teria revelado. Mas já que o viste... contar-te-ei a minha
história.
Ead manteve os olhos cravados nela, a espada
apontada para a sua garganta. Kalyba virou-lhe as costas
e encarou a lua.
— Galian era meu filho.
Não era o que Ead esperara ouvir.
— Não é que ele tenha nascido do meu ventre —
continuou Kalyba. — Eu roubei-o de Goldenbirch quando
ainda era um bebé. Na altura, pensei que o sangue dos
inocentes me poderia ajudar a dominar uma magia mais
profunda, mas ele era um bebé adorável, com olhos
azuis como a centáurea... Confesso que me deixei levar
pelos meus sentimentos e criei-o como meu em Nurtha,
no oco de um espinheiro.
Ead abraçou Margret tão perto que podia sentir-lhe o
tremor.
— Quando fez vinte e cinco anos, deixou-me para se
tornar um cavaleiro ao serviço de Edrig de Arondine.
Nove anos depois, o Inominável emergiu do Monte do
Pavor. Havia muitos anos que eu não via Galian. Mas
quando ele soube da peste e que o Inominável estava a
espalhar o terror por Lasia, veio até mim, implorando-me
que o ajudasse. O seu sonho era unir os reis e príncipes
guerreiros de Inys sob uma coroa, e governar um país
sob a fé das Seis Virtudes da Cavalaria. Para isso, teria
de conquistar o seu respeito com um grande feito. Queria
matar o Inominável e, para isso, precisaria da minha
magia. Eu, como uma tola, concedi-lha, pois nessa altura
já não o amava como uma mãe. Amava-o como os com‐
panheiros se amam. Em troca, ele jurou-me que seria só
meu.
» Cega de amor, ofereci-lhe Ascalon, a espada que
forjei com a luz das estrelas e do fogo. Ele cavalgou até
Lasia e chegou à cidade de Yikala. — Soltou um suspiro
zangado. — Mas eu não compreendi as verdadeiras
intenções de Galian. Para unir os governantes de Inysca
e fortalecer a sua posição, ele queria uma rainha de
sangue real, e quando viu Cleolind Onjenyu, desejou-a.
Não só era solteira e bonita, como nas suas veias corria o
sangue ancestral do Sul.
» Sabes o que aconteceu a seguir. Cleolind recusou o
meu cavaleiro e tomou-lhe a espada quando ele caiu,
atingido. Feriu o Inominável e desapareceu com as suas
damas para a Bacia de Lasia, onde ficaria para sempre
ligada à laranjeira. Tive esperanças de que Galian voltas‐
se para mim, mas ele quebrou a sua promessa e partiu-
me o coração.
Estava louca de amor e fiquei furiosa. — Kalyba virou-
se. — Galian regressou a casa sem glória e sem noiva. Eu
segui-o.
— Não pareces ser do tipo que se padece com a
rejeição — disse Ead.
— O coração é uma coisa cruel. Dominou-me. — A
bruxa caminhava em redor delas. — Galian estava
devastado pelo seu fracasso, pleno de ódio e raiva. Eu
não sabia como mudar a minha imagem na altura. O que
eu dominava eram sonhos e armadilhas. Saí das árvores,
pus-me à frente do seu cavalo e os seus olhos
iluminaram-se. Sorriu... e chamou-me Cleolind.
Ead não conseguia desviar o olhar.
— O quê?
— Não te posso contar os mistérios da magia das
estrelas, Eadaz, Tudo o que precisas de saber é que o
sterren me concedeu o poder de entrar na sua mente.
Através de um encantamento, consegui que ele
acreditasse que eu era a princesa que o tinha rejeitado.
Meio adormecido, com a memória turva, não se lembrava
de como era a Cleolind, nem que ela o tinha rejeitado ou
que eu alguma vez existira. O seu desejo tornou-o
maleável. Precisava de uma rainha, e ali estava eu. Fi-lo
desejar-me, como desejava Cleolind desde que a vira. —
Um sorriso aflorou-lhe aos lábios. — Levou-me para as
ilhas de Inysca, onde fez de mim a sua rainha, e eu
consegui trazê-lo para a minha cama.
— Ele era como um filho teu — disse Ead. A repulsa
acumulou-se-lhe no estômago. — Tu criaste-o.
— O amor é complexo, Eadaz.
Margret levou a mão à boca.
— Engravidei muito cedo — sussurrou Kalyba, e levou
as mãos a barriga. — Dar à luz a minha filha fez-me
perder muita força. Também perdi muito sangue. E
enquanto estava febril, quase a morrer, perdi o controlo
da mente de Galian. Quando ele finalmente abriu os
olhos, enviou-me para as masmorras. — O seu tom
tornou-se sombrio. — Ele tinha a espada. Eu estava
enfraquecida. Um amigo ajudou-me a fugir... mas tive de
deixar a minha Sabran para trás. A minha pequena
princesa.
Sabran a Primeira, a primeira rainha de Inys.
Todos os fragmentos desconexos da verdade
estavam a tomar forma, explicando o que o Priorado
nunca havia entendido.
O Impostor fora enganado.
— Galian retirou todos os retratos e esculturas da
minha imagem e proibiu que mais fossem criados.
Depois foi para Nurtha, onde eu o criara, e enforcou-se
no meu espinheiro. Ou o que restava dele. — A bruxa
envolveu-se com os próprios braços. — Certificou-se de
que levava a sua vergonha para a sepultura.
Ead ficou em silêncio, sentindo náuseas.
— Tive de ver uma dinastia de rainhas tomar o seu
lugar. Grandes rainhas, cujos nomes se tornaram
famosos em todo o mundo. Todas elas possuíam muito
de mim, e nada dele. Uma filha cada uma, sempre de
olhos verdes. Uma consequência inesperada do sterren,
suponho.
Era uma história tão estranha que chegava a ser
inacreditável. E, no entanto, o fogo mágico não lhe
queimara aquele rosto.
O fogo mágico nunca mentia.
— Perguntas-te porque Sabran sonha com a minha
pérgula? — perguntou a Ead. — Se não acreditas na
verdade dos meus lábios, acredita na dos dela. O meu
Primeiro Sangue vive nela.
— Atormentaste-a — disse Ead, com a voz rouca. —
Se tudo isto é verdade, se todas as rainhas de Berethnet
são tuas descendentes diretas, porque a fizeste sonhar
com sangue?
— Fi-la sonhar com o parto para que ela soubesse o
que eu sofri ao dar à luz a sua antepassada. E fi-la
sonhar com o Inominável, e comigo, para que
conhecesse o seu destino.
— E qual é o seu destino?
— Aquele que eu lhe forjei.
A bruxa virou-se novamente para eles e de repente o
seu rosto transformou-se. A sua pele dividiu-se em
escamas e os olhos tornaram-se afiados. O verde fundiu-
se com o branco e reluziu. Uma língua bifurcada passou
por entre os seus dentes.
Quando a última peça do quebra-cabeças se
encaixou, Ead sentiu o mundo a desfazer-se debaixo dos
seus pés. Estava de volta ao palácio, com Sabran nos
seus braços, encharcada de sangue.
— O Wyrm Branco — murmurou. — Aquela noite.
Eras tu. Tu és a sexta Sombra Ocidental.
Kalyba recuperou a sua verdadeira forma, a de
Sabran, e sorriu.
— Porquê? Porque desejas a destruição da Casa de
Berethnet, quando foste tu que a criaste? Isto é tudo um
jogo para ti, algum tipo de vingança elaborada contra
Galian?
— Eu não destruí a Casa de Berethnet — disse Kalyba.
— Não. Naquela noite, a noite em que ataquei Sabran e a
sua filha por nascer, salvei-a. Ao acabar com a linha de
sucessão, conquistei a confiança de Fýredel, que me
elogiará perante o Inominável — disse, com uma se‐
riedade mortal. — O Inominável voltará a erguer-se,
Eadaz. Ninguém o poderá deter. Mesmo que lhe craves
Ascalon no coração, mesmo que a Estrela de Crina Longa
regresse, ele voltará sempre a erguer-se. O desequilíbrio
do Universo, o desequilíbrio que o criou, existirá sempre.
Não pode ser corrigido.
Ead agarrou a espada com ainda mais força. A joia
gelou-lhe o peito junto ao coração.
— Dentro em breve, o Inominável permitirá que eu
seja a sua Rainha Terrena — disse Kalyba. — Oferecer-
lhe-ei Sabran como um presente e tomarei o seu lugar no
trono de Inys. O trono que Galian me roubou. Ninguém
irá notar. Direi ao povo que sou Sabran, e que o
Inominável, na sua misericórdia, permitiu que eu
mantivesse a coroa.
— Não — disse Ead em voz baixa.
Kalyba estendeu a mão mais uma vez. Margret
colocou a sua em Ascalon, ainda amarrada à sela.
— Dá-me a espada — disse Kalyba — e a tua
promessa será cumprida. — Olhou de relance para
Margret. — Ou talvez tu ma devolvas, minha filha, e
compensar-me-ás o mal que a tua família me fez ao
escondê-la.
Margret olhou fixamente para a Dama da Floresta, a
personagem que tanto temera em criança, sem tirar a
mão de Ascalon.
— Os meus antepassados foram suficientemente
corajosos para te impedirem de chegar até ela, e eu não
ta darei por nada deste mundo.
Ead olhou para Kalyba. A que enganara Galian, o
Impostor. O Wyrm Branco. A antepassada de Sabran. Se
ela recuperasse a espada, não haveria vitória.
— Muito bem — disse Kalyba —, se tivermos de o
fazer da maneira difícil, que seja.
E, diante dos seus olhos, começou a transformar-se.
As suas pernas tornaram-se mais compridas,
curvadas. As suas costas alongaram-se, com uma série
de estalidos, como tiros, e a sua pele retesou-se entre os
novos ossos. Em momentos, ficou do tamanho de uma
casa, e, diante delas, surgiu o Wyrm Branco, colossal e
imponente. Ead empurrou Margret para o lado, mesmo a
tempo de se desviar dos dentes afiados que caíram sobre
o cavalo, apagando a luz de Ascalon.
As asas de pele como cabedal golpearam o chão,
levantando uma rajada de vento quente. A neve ficou
manchada com o sangue do cavalo, enquanto Kalyba se
elevava para o céu noturno.
O bater de asas do wyrm foi-se desvanecendo ao
longe, e Ead tombou, afundando-se de joelhos, os
ombros caídos. Margret, salpicada de sangue, ajoelhou-
se ao seu lado.
— Tinha espinhos — disse ela, a tremer — na
minha... na minha garganta. Na minha boca.
— Não era real. — Ead encostou-se a ela. —
Perdemos a espada. A espada, Meg.
As suas mãos ardiam, mas manteve os punhos
cerrados. Iria precisar de todo o seu siden para a luta que
se avizinhava.
— Não pode ser verdade. — Margret engoliu com
força. — Tudo o que ela disse sobre o Santo. O rosto que
mostrava era um truque.
— Expus a sua verdadeira imagem com o fogo mágico
— murmurou Ead. — O fogo mágico é revelador. Mostra
apenas a verdade.
Algures nas árvores, uma coruja piou. Margret
estremeceu. Ead viu o medo nos seus olhos; pegou-lhe
na mão e apertou-a.
— Sem a Espada da Verdade, não podemos matar o
Inominável. E, a não ser que consigamos encontrar a
segunda joia, não o poderemos subjugar, mas talvez
consigamos reunir um exército grande o suficiente para o
afastar.
— Como? — Margret estava desolada. — Quem nos irá
ajudar agora?
Ead levantou-se, puxou Margret para que ficasse de
pé, e prostraram-se ambas ao luar, rodeadas de neve
manchada de vermelho.
— Tenho de falar com Sabran — disse Ead. — Está na
altura de abrir outra porta.
56
Oeste
***
Oeste
***
— Anónimo, de Man’yōshū
58
Oeste
***
Este
***
***
***
***
***
— Libertar um prisioneiro.
Este
***
***
***
Quando era criança, Tané imaginara muitos futuros
possíveis. Nos seus sonhos, derrotava os demónios
cuspidores de fogo montada no seu dragão. Tornara-se a
maior cavaleira de Seiiki, maior até do que a Princesa
Dumai, e as crianças rezavam para ser como ela um dia.
O seu retrato adornava as paredes das grandes casas e o
seu nome entrara para a história.
Mas em todo esse tempo, nunca se atreveu a sonhar
que um dia caminharia ao lado do Imperador Eterno dos
Doze Lagos, na Cidade das Mil Flores.
O Imperador Eterno usava uma túnica revestida de
peles. Seguiram Pelo caminho, livre de neve, com os
guarda-costas do soberano atrás deles. Quando
chegaram a um pavilhão junto ao lago, o Imperador
Eterno indicou-lhe uma das cadeiras com um gesto.
— Por favor — disse. Tané sentou-se, e ele também. —
Pensei que poderíeis acompanhar-me.
— Será uma honra para mim, Majestade.
— Sabeis que pássaro é aquele?
Tané olhou para onde ele apontara. Muito próximo
dali, um cisne cuidava do seu ninho.
— Sim, claro — respondeu ela. — É um cisne.
— Ah, sim, mas não é um cisne qualquer. Em
lacustre, chamamo-los de cisnes mudos. Diz-se que o
Inominável lhes roubou a voz e que só voltarão a cantar
quando nascer um soberano destinado a derrotá-lo de
uma vez por todas. Dizem que na noite em que eu
cheguei a este mundo, eles cantaram pela primeira vez
em séculos. — Ele sorriu. — E as pessoas depois
perguntam-se porque têm os soberanos uma opinião tão
elevada de si mesmos. Tentam fazer-nos acreditar que
até os pássaros se importam com o que fazemos.
Tané esboçou um sorriso tímido.
— Acho a vossa história fascinante. Soube que no
passado haveis sido uma promissora guardiã do mar,
mas que um mal-entendido em Ginura vos levou ao exílio
na Ilha das Penas.
— Sim, Majestade — disse Tané.
— Adoro histórias. Quereis fazer-me o favor de me
contardes tudo o que vos aconteceu?
As mãos de Tané suavam.
— Aconteceram-me muitas coisas — respondeu ela.
— Talvez leve a maior parte da manhã, Majestade.
— Ah, não tenho nada para fazer além de observar
os meus conselheiros enquanto retorcem as mãos
debatendo a proposta do Lorde Arteloth.
Os criados chegaram, serviram o chá e trouxeram
pratos de comida: tâmaras embebidas em mel vermelho
das montanhas, peras em calda, maçãs em folhas de
ameixeira, frutos secos ao vapor, tigelas de arroz preto.
Cada prato estava coberto com um paninho de seda
bordado com estrelas. Tané jurara não falar mais sobre o
seu passado, mas o sorriso afável do Imperador Eterno
tranquilizou-a. Enquanto ele comia, contou-lhe como
havia saído aquela noite e testemunhado a chegada de
Sulyard, e como Susa pagara pela sua imprudente
tentativa de esconder o ocorrido, e tudo o que
acontecera depois.
Tudo, exceto a joia costurada no seu corpo.
— Então, haveis escapado ao vosso exílio para libertar
o vosso dragão, com poucas esperanças de sucesso —
murmurou o Imperador Eterno. — Isso é digno de
admiração. E parece que também encontrastes a ilha
perdida. — Secou a boca. — Dizei-me... como
conseguistes encontrar a amoreira de Komoridu?
Tané olhou para cima e encontrou os seus olhos
brilhantes.
— Havia uma árvore morta — disse ela. — Morta e
retorcida, coberta por uma inscrição. Não tive tempo de
lê-la.
— Dizem que o espírito de Neporo vive nessa árvore.
Quem comer do seu fruto absorve a sua imortalidade.
— A árvore não tinha frutos, Majestade.
No rosto do soberano surgiu um lampejo de uma
emoção indescritível.
— Não importa — disse ele, estendendo a sua
chávena para ser servido com mais chá. Um criado
encheu-a. — Agora que conheço o vosso passado,
intriga-me o vosso futuro. Que pretendeis fazer de agora
em diante?
Tané cruzou os dedos no colo.
— Primeiro, quero participar na destruição do
Inominável. Depois, quero regressar a Seiiki — disse,
hesitante. — Se Vossa Majestade Imperial me pudesse
ajudar a fazer as duas coisas, ficar-lhe-ia muito grata.
— E como poderia ajudar?
— Intercedendo em meu nome junto do honrado
Senhor da Guerra. Se lhe disserdes que resgatei
Nayimathun, súbdita do esplendoroso Dragão Imperial,
talvez ele queira rever o meu caso e permitir-me
regressar.
O Imperador Eterno bebeu um gole do seu chá.
— É verdade que resgatastes um dragão das mãos da
Frota do Olho de Tigre, arriscando a vossa própria vida.
Não é uma tarefa fácil — reconheceu. — Para
recompensar a vossa coragem, farei o que me pedis, mas
sabei que não posso permitir que regresseis a Seiiki
antes de obter uma resposta. Seria negligente da minha
parte permitir que uma fugitiva voltasse sem permissão.
— Compreendo.
— Muito bem.
Ele levantou-se e dirigiu-se para a balaustrada. Tané
foi com ele.
— Parece que o Lorde Arteloth deseja que sejais vós a
levar as notícias a Inys se eu concordar com a proposta.
Estais assim tão ansiosa por ser minha embaixadora?
— Isso iria acelerar as coisas, Majestade. Se
permitirdes que um cidadão de Seiiki seja o vosso
mensageiro nesta ocasião.
Sentiu o peso da joia junto ao seu corpo. Se o
Imperador Eterno recusasse, não poderia fazer aquele
desvio e passar pelo sul.
— Seria pouco convencional. Não sois minha súbdita,
e haveis caído em desgraça — o Imperador Eterno
refletiu —, mas algo me diz que estamos destinados a
mudar as coisas. Além disso, gosto de desafiar as con‐
venções de vez em quando. Nenhum governante fez
progressos a jogar pelo seguro. E isso mantém os meus
oficiais superiores em alerta. — A luz do Sol brilhava no
seu cabelo escuro. — Nunca esperam que governemos
de facto, sabeis? Se o fizermos, acusam-nos de sermos
loucos.
Mantêm-nos envoltos em algodão, distraem-nos com
luxos e riquezas desmedidas, para que não causemos
problemas. Esperam que fiquemos tão aborrecidos com o
poder que os deixaremos governar no nosso lugar. Atrás
de cada trono há um servo mascarado que procura
apenas fazer de quem nele se senta um fantoche. A
minha querida avó ensinou-me isso.
Tané esperou, sem saber o que dizer.
O Imperador Eterno juntou as mãos atrás das costas.
Respirou fundo, e os seus ombros moveram-se para cima
e para baixo.
— Haveis-vos provado capaz de realizar tarefas
difíceis, e não temos tempo a perder — disse. — Se
estais disposta a levar a minha mensagem para o
Ocidente, como Lorde Arteloth deseja, não vejo razão
para o negar. Especialmente porque este é um ano para
quebrar tradições.
— Ficaria honrada, Vossa Majestade Imperial.
— Apraz-me ouvi-lo. — Fitou-a. — Deveis estar
cansada depois da viagem. Por favor, regressai aos
vossos aposentos e descansai. Sereis informada quando
tiver tomado uma decisão sobre a mensagem a levar a
Sabran.
— Obrigada, Vossa Majestade Imperial.
Tané deixou-o com a sua refeição e voltou a percorrer
o labirinto de corredores. Não restava muito a fazer além
de esperar, por isso deitou-se na cama.
A noite já ia avançada quando uma batida na porta a
acordou. Abriu-a e fez entrar Loth e Thim.
— Sim?
— O honrado Imperador Eterno tomou a sua decisão
— anunciou Thim em seiikine. — Concordou com a
proposta.
Tané fechou a porta.
— Ótimo — disse. Loth deixou-se cair numa cadeira. —
E porque é que ele está tão desanimado?
— Porque lhe foi pedido que ficasse no palácio.
Também me pediram para ficar, para ajudar a liderar o
exército até ao local onde deixámos o Rosa Eterna.
Um ligeiro arrepio percorreu Tané. Pela primeira vez
na sua vida, iria deixar o Oriente. Noutros tempos, a ideia
tê-la-ia angustiado, mas pelo menos não estaria sozinha.
Com Nayimathun ao seu lado, poderia fazer qualquer
coisa.
— Tané — disse Loth. — Vais para o sul antes de ires
para Inys?
Tinha de salvar a senhora Nurtha do veneno. Tinham
de ser capazes de usar as duas joias contra o Inominável.
— Sim. Diz-me onde encontrar a casa dos assassinos
de dragões.
Ele explicou o melhor que pôde.
— Deverás ter cuidado — advertiu Loth. — Aquelas
mulheres provavelmente matarão o teu dragão se o
virem.
— Não lhe tocarão — disse ela.
— A Ead disse-me que a atual Prioresa não é de
confiança. Se fores apanhada, deverás falar apenas com
o Chassar uq-Ispad. Ele preocupa-se com o que acontece
à Ead. Estou confiante de que te ajudará se souber que
tencionas curá-la. — Loth retirou a corrente à volta do
pescoço. — Leva isto.
Tané pegou no objeto que estava pendurado na
corrente. Um anel de prata. Tinha uma pedra vermelha,
rodeada de diamantes.
— Pertence à Rainha Sabran. Se lho deres, ela saberá
que vem de mim. — Loth estendeu uma carta lacrada. —
Quero que lhe dês isto também. Para que saiba que
estou bem.
Tané assentiu, meteu o anel na bolsa e enrolou a carta
num tubo suficientemente fino para caber lá dentro.
— O honrado chefe do Conselho Real receber-vos-á de
manhã para vos entregar uma carta de Sua Majestade
Imperial para levardes à Rainha Sabran. Partireis desta
cidade na calada da noite — disse Thim. — Se fordes
bem-sucedida nesta missão, senhora Tané, ficaremos
todos em dívida para convosco.
Tané olhou pela janela. Outra viagem.
— Fá-lo-ei, honrado Thim — disse. — Podeis ter a
certeza disso.
64
Este
***
***
Foge.
***
***
— Edmund Spenser
66
Oeste
— Ead.
Ead.
Um riso entrecortado.
***
— Sim.
— Surpreende-me que tenha confiado em ti. O
Priorado não vê com bons olhos os adoradores de wyrms.
***
***
Este
***
***
***
Ead.
— Onde está o Roos? — perguntou Tané em voz
baixa.
***
Tané lançou um jato de fogo que atravessou o Desafio.
As chamas dançaram pelo convés, alcançando os charcos
de sangue draconiano. Quando Kalyba respondeu ao
ataque com o seu próprio fogo, vermelho e tão quente
que eliminou toda a humidade do ar, Tané agarrou com
firmeza a joia crescente. A água do mar bateu no navio,
que balançou sob os seus pés, e os fogos extinguiram-se.
Todos os soldados e arqueiros haviam fugido da cena
do duelo. O navio era o seu campo de batalha.
Kalyba mudava de forma, ora mulher, ora pássaro, à
velocidade da luz. Tané gritou, furiosa, ao sentir um bico
a rasgar-lhe a face e uma espora quase a furar-lhe o olho.
Cada vez que a bruxa mudava de forma, Ascalon mudava
com ela. Quando assumia a forma humana, empunhava
a espada, e quando Tané lutava contra ela e as suas
lâminas se chocavam, a joia crescente ressoava em
resposta.
— Consigo ouvi-la — sussurrou Kalyba. — Dá-ma.
Tané deu uma cabeçada e golpeou-a com uma faca
oculta, fazendo-lhe um corte na face. Kalyba retrocedeu,
os olhos desorbitados e o rosto manchado de vermelho.
Do seu crânio emergiu um par de chifres, e de repente
era um enorme veado branco, abominável e colossal, a
sangrar, A espada voltara a desaparecer.
Tané usou a joia para repelir o ataque de uma
cocatriz. O siden aguçava-lhe os sentidos, fazia-a mover-
se mais rápido do que acreditava ser possível, evitando o
enorme animal que trotava estrondosamente pelo
convés. Viu que um dos chifres tinha a ponta prateada, e
no momento em que a besta baixou a cabeça para
investir contra ela, Tané levantou a espada e cortou-o.
Kalyba colidiu contra o convés, novamente na sua
forma humana. Sangrava pelo ombro, onde lhe faltava
um pedaço de carne, e a seu lado jazia Ascalon, com o
brilho de um rubi. Tané lançou-se para ela, mas a bruxa
já tinha fogo nas mãos.
Tané refugiou-se atrás do mastro principal. Um fogo
vermelho roçou-lhe a coxa, tão ardente — era como ferro
fundido sobre a sua pele — que a fez gritar. Tinha os
olhos cheios de lágrimas, mas engoliu a dor e disparou a
correr pelo convés. Estava quase na popa quando parou
de repente.
A Rainha Sabran estava no Desafio. Loth encontrava-
se ao seu lado, de espada em punho, e doze guarda-
costas espalhavam-se ao redor deles. Estavam todos
encharcados.
— Sabran — sussurrou Kalyba.
A rainha olhou para a sua antepassada. Os seus rostos
eram idênticos.
— Vossa Majestade — balbuciou um dos guardas.
Todos olhavam para a rainha e para a sua dupla. — Isto é
bruxaria.
— Recuem — ordenou Sabran aos guardas.
— Sim, obedecei, nobres cavaleiros. Fazei o que minha
descendente vos ordena. — Kalyba cerrou os dedos ao
redor da chama que queimava na palma da sua mão. —
Não vedes que eu sou a vossa Donzela, a matriarca de
Inys?
Os cavaleiros não se moveram. Nem a rainha, que
apertava o cabo da espada.
— Não passas de uma imitação minha — disse Kalyba,
venenosa. — Assim como a tua espada não passa de
uma imitação barata desta.
Ergueu Ascalon e Sabran estremeceu.
— Não queria acreditar em Ead — respondeu —,
mas agora vejo que a semelhança entre nós é inegável.
— Deu um passo em direção a Kalyba. — Roubaste-me a
minha filha, Bruxa de Inysca. Diz-me, depois de te dares
a tanto trabalho para fundar a Casa de Berethnet, porque
decidiste destruí-la?
— Que voz?
Ela não me pode ouvir. Apenas aqueles que
provaram o fruto das árvores do conhecimento o podem
fazer, disse o Inominável. Tané soluçou, retorcendo-se de
dor. Eu nasci do fogo oculto, forjado na fornalha da vida
que apenas te deu uma faísca. E enquanto eu viver,
viverei dentro de ti, em todos os teus pensamentos e
recordações.
— Tané!
***
Encontra a espada.
Filha de Zāla.
Sabia que aquela voz lhe ecoava na mente. Era tão
clara, tão suave, como se o seu interlocutor estivesse
próximo o suficiente para sentir a sua respiração. Mas
debaixo de água, era como se viesse do próprio Abismo.
A voz do Inominável.
Conheço o teu nome, Eadaz uq-Nāra. Os meus
servos sussurraram-me com vozes cheias de temor.
Falam da raiz de uma laranjeira, uma raiz que se pode
espalhar pelo mundo e ainda assim queimar com uma luz
dourada como o Sol.
Eu sou a serva de Cleolind, serpente. De alguma
forma, sabia como lhe responder. Esta noite completarei
o seu trabalho.
Sem mim, não tereis nada que vos una. Mergulhareis
em guerras por riqueza e religião. Estareis em conflito
uns com os outros. Como sempre fizestes. E acabareis
por vos matardes a vós próprios.
Ead nadou, ouvindo o som da joia branca a zumbir
contra a sua pele.
Não precisas de desistir da tua vida. A sua cabeça
quebrou a superfície e continuou a nadar. Há outro fogo a
arder dentro de ti Sê a minha donzela, e pouparei a vida
de Sabran Berethnet. Se não o fizeres, disse a voz,
acabarei com ela.
Terás de acabar comigo primeiro. E já provei que não
é fácil.
Subiu para o barco e levantou-se.
Assim seja.
E assim, o Inominável, o pesadelo de todas as nações,
lançou-se contra o navio.
Todas as chamas do Abismo se apagaram. O único
som que Ead ouvia eram os gritos de terror ao
aproximarem-se da morte, na forma de uma sombra que
caía do céu. Apenas a luz das estrelas pontuava a escu‐
ridão, e, à luz das estrelas, Ascalon brilhava.
Ead atravessou o Pérola Bailarina em corrida. O seu
mundo eclipsou-se até que restassem apenas as batidas
do seu coração e a espada. Pediu à Mãe que lhe desse a
força que tivera naquele dia em Lasia.
Um metal sobrenatural, que ganhava vida ao toque. O
Inominável abriu as suas mandíbulas, e um sol branco
surgiu de dentro dele. Ead viu o ponto onde parte da sua
armadura fora arrancada. Ergueu a espada forjada por
Kalyba, empunhada por Cleolind, que vivera na lenda por
mil anos.
E afundou a lâmina na carne.
Ascalon brilhou com uma luz ofuscante. Ead teve
apenas um momento para ver a pele das suas mãos
banhadas de suor — um momento, uma eternidade ou
algo intermediário — antes que a espada lhe fosse arran‐
cada das mãos. Foi arremessada pelo convés, pela borda,
para o mar. Um monstro de escamas caiu sobre o Pérola
Bailarina, partindo-o ao meio.
As forças abandonaram-na com a mesma rapidez com
que haviam surgido.
Cravara a lâmina no coração do Inominável, algo que
a Mãe não havia conseguido fazer, mas não fora
suficiente. Teria de o acorrentar ao Abismo para que
morresse. E ela tinha a chave.
A joia apareceu diante dela. A estrela no seu interior
reluzia na escuridão. Como desejava poder dormir
eternamente.
Outra luz brilhou entre as sombras. Um relâmpago,
aprisionado num enorme par de olhos.
Tané e o seu dragão. Uma mão aproximou-se,
atravessando a água, e Ead agarrou-a firmemente.
Elevaram-se acima do oceano, em direção às estrelas.
Tané segurava a joia azul numa mão. O Inominável
afundou-se no Abismo, com a cabeça para trás, cuspindo
fogo pela boca como lava expelida do manto da terra,
com Ascalon ainda afundada no peito.
Tané segurou firmemente a mão de Ead e apertou-lhe
os dedos, fazendo-os passar entre os dela, de modo que
ambas segurassem a joia minguante, pressionada contra
os seus corações, que batiam cada vez mais fracos.
— Juntas — sussurrou Tané. — Por Neporo. Por
Cleolind.
Devagar, Ead aproximou a outra mão e os seus dedos
entrelaçaram-se em torno da joia crescente.
A cada respiração, a sua mente enfraquecia, mas o
seu sangue sabia o que tinham de fazer. Era algo
instintivo, tão arraigado e tão antigo quanto a própria
árvore.
O oceano elevou-se obedecendo aos seus comandos.
Jogaram aquela partida final por turnos, nunca se
separando uma da outra.
Envolveram-no como um casulo, costurando a
superfície das ondas como habilidosos alfaiates. Entre
fumo e vapor, o Inominável foi amarrado ao fundo do
mar, e a escuridão sufocou a chama ardente do seu
coração.
Ele ergueu o olhar e olhou para Ead pela última vez, e
ela olhou para ele. Do ponto onde Ascalon havia
penetrado, surgiu um clarão cegante, e a Besta da
Montanha emitiu um último grito antes de desaparecer.
Ead sabia que se lembraria daquele som até ao seu
último suspiro. Ressoar-lhe-ia nos sonhos mais inquietos,
como uma canção pelo deserto. Os dragões do Oriente
mergulharam atrás dele, para vê-lo afundar-se até à sua
sepultura. O mar fechou-se sobre eles.
E o Abismo ficou em silêncio.
72
Oeste
***
— Tudo.
Querida,
Não tenho palavras para expressar o orgulho que
sinto com o que ouvi das tuas proezas no Abismo, nem o
alívio ao saber que o teu coração bate com a mesma
força de sempre. Quando a Prioresa enviou a tua irmã
para te silenciar, não pude fazer nada. Sou um cobarde, e
falhei-te, apesar de ter prometido a Zāla que nunca o
faria.
Embora isto me lembre, como tantas outras vezes,
que nunca precisaste da minha proteção. Tu és o teu
próprio escudo.
Escrevo-te para comunicar a notícia que tanto
esperávamos. As Damas Vermelhas desejam que
regresses a Lasia e que vistas o manto da Prioresa. Se
aceitares, irei ao teu encontro em Kumenga no primeiro
dia do inverno. As Damas Vermelhas beneficiarão da tua
mão firme e mente clara E, acima de tudo, irão beneficiar
deter o teu grande coração a seu lado.
Espero que me possas perdoar. De qualquer forma, a
laranjeira está à tua espera.
***
O ORIENTE
Ancião Vara: Curandeiro e arquivista na Casa Vane
na Ilha das Penas.
Comandante: O oficial responsável pela segurança
do posto de comércio mêntico de Orisima.
Dranghien VI: Imperador Eterno dos Doze Lagos,
atual líder da Casa de Lakseng. Como toda a sua
linhagem, afirma ser descendente do Portador da Luz,
que os lacustres acreditam ter sido o primeiro humano a
tornar-se amigo de um dragão quando este caiu dos
céus.
Dumusa: Aprendiz principal da Casa Oeste, de
ascendência Miduchi. O seu avô paterno era um
explorador do Sul, executado por desafiar o Grande
Edito.
General do Mar: Comandante da Alta Guarda do Mar
de Seiiki. Líder do Clã Miduchi. Atual cavaleiro de Tukupa,
a Prateada.
Ghonra: Herdeira da Frota do Olho de Tigre, filha
adotiva da Imperatriz Dourada e capitã do Corvo Branco.
Autodenominada «Princesa do Mar do Sol Trémulo».
Governador de Cabo Hisan: O oficial encarregado
de administrar a região seiikine de Cabo Hisan. É
responsável por garantir que os colonos lacustres e
mênticos seguem a lei seiikine.
Governadora de Ginura: A oficial encarregada da
administração da capital seiikine de Ginura. É também a
chefe magistrada de Seiiki. Tradicionalmente, este cargo
é sempre ocupado por um membro da Casa de Nadama.
Grande Imperatriz Viúva: Membro da Casa de
Lakseng por casamento. Foi regente oficial do seu neto, o
Imperador Eterno dos Doze Lagos, antes de este atingir a
maioridade.
Ishari: Aprendiza da Casa Sul. Companheira de
quarto de Tané.
A Imperatriz Dourada: Líder da Frota do Olho de
Tigre — a frota pirata mais formidável do Oriente,
composta por cerca de 40 mil piratas — e capitã do seu
maior navio de tesouro, o Perseguição. Ela controla o
comércio ilegal de carne de dragão.
Kanperu: Aprendiz da Casa Oeste.
Laya Yidagé: Intérprete da Imperatriz Dourada. Foi
feita prisioneira pela Frota do Olho de Tigre após tentar
seguir o seu aventureiro pai até Seiiki.
Moyaka Eizaru: Médico de Ginura. Pai de Purumé.
Amigo e ex-aluno de Niclays Roos.
Moyaka Purumé: Anatomista e botânica de Ginura.
Filha de Eizaru. Amiga e ex-aluna de Niclays Roos.
Muste: Assistente de Niclays Roos em Orisima.
Companheiro de Panaya.
Nadama Pitosu: Senhor da Guerra de Seiiki e atual
líder da Casa de Nadama. É descendente do Primeiro
Senhor da Guerra, que empunhou armas para vingar a
caída Casa de Noziken.
Onren: Aprendiza principal da Casa Oriente.
Padar: Navegador do Perseguição.
Panaya: Residente de Cabo Hisan e intérprete dos
colonos de Orisima. Companheira de Muste.
Susa: Residente de Cabo Hisan e amiga de infância
de Tané. Vivia na rua até ser adotada por um
estalajadeiro.
Turosa: Aprendiz principal da Casa Norte,
descendente de Miduchi, famoso pela sua habilidade com
lâminas. Rival de longa data de Tané.
Vice-rei de Orisima: O oficial mêntico que
supervisiona o posto de comércio de Orisima.
O SUL
Chassar uq-Ispad: Mago do Priorado da Laranjeira e
seu elo principal com o mundo exterior. Faz-se passar por
um embaixador do Rei Jantar e da Rainha Saiyma do
Ersyr para ter acesso a cortes estrangeiras. Ajudou a
criar Eadaz uq-Nāra após a morte repentina da sua mãe
biológica. Chassar tem o dom de domesticar pássaros,
muitas vezes usando Sarsun e Parspa para realizar o seu
trabalho.
Cleolind Onjenyu (a Mãe ou a Donzela): Princesa
herdeira do Domínio de Lasia e filha de Selinu, o
Guardador de Promessas. Fundadora do Priorado da
Laranjeira. A religião das Virtudes da Cavalaria professa
que se casou com Sir Galian Berethnet e se tornou a
rainha consorte de Inys depois de ele ter derrotado o
Inominável para a salvar. Os membros do Priorado
acreditam que foi Cleolind quem venceu a besta, e
muitos acreditam que ela não partiu com Galian. Cleolind
morreu após deixar o Priorado para tratar de negócios
desconhecidos, pouco depois da sua fundação.
Jantar I (o Esplêndido): Rei do Ersyr e atual líder da
Casa de Taumargam. Marido da Rainha Saiyma e aliado
do Priorado da Laranjeira.
Jondu du Ishruka uq-Nāra: Amiga de infância e
mentora de Eadaz uq-Nāra. Foi enviada para Inys para
encontrar Ascalon. Como Eadaz, é descendente de Siyāti
uq-Nāra.
Kagudo Onjenyu: Alta Governante do Domínio de
Lasia e atual líder da Casa de Onjenyu. Descendente de
Selinu, Guardador de Promessas, por meio do filho, o
meio-irmão de Cleolind Onjenyu. Kagudo é aliada do
Priorado da Laranjeira e tem sido guardada por Damas
Vermelhas desde o dia em que nasceu.
Mita Yedanya: Prioresa da Laranjeira. Anteriormente,
era a munguna, ou herdeira presuntiva.
Nairuj Yedanya: Uma Dama Vermelha do Priorado da
Laranjeira e sua presumível munguna.