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DADOS DE ODINRIGHT

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Table of Contents

O Priorado da Laranjeira
Ficha Técnica
Nota da Autora
I
1
2
3
4
5
6
7
8
9
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II
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29
30
31
32
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37
III
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
IV
49
50
51
52
53
54
55
56
57
V
58
59
60
61
62
63
64
65
VI
66
67
68
69
70
71
72
73
74
75
76
Os Intervenientes
Glossário
Cronologia
Agradecimentos
I
Histórias de Outrora

E vi descer do céu um anjo, e


na sua mão tinha a chave do
abismo, e uma grande
corrente. Agarrou o dragão, a
antiga serpente, que é o Diabo
ou Satanás, e prendeu-o por
mil anos.

Lançou-o no abismo, que


depois fechou e selou, para não
enganar mais as nações, até
que se cumpram os mil anos.

— Apocalipse 20:1-3
1

Este

O estranho emergiu do mar como um fantasma da


água, descalço e com as cicatrizes da sua viagem muito
bem visíveis. Caminhava como se estivesse bêbedo,
através da névoa que se aferrava a Seiiki como uma teia
de aranha.

As histórias de outrora contavam que os fantasmas


da água eram condenados a viver no silêncio. Que as
suas línguas haviam murchado, assim como a sua pele, e
que tudo o que lhes cobria os ossos eram algas
marinhas. Que estavam destinados a rondar os baixios, à
espera da oportunidade de carregar os incautos para as
profundezas do Abismo.

Tané deixara de temer essas histórias assim que


abandonara a infân­cia. Agora, a sua adaga brilhava
diante dela, curvada como um sorriso, e o seu olhar
estava fixo sobre a figura na calada da noite.

Mas quando a figura a chamou, Tané estremeceu.


As nuvens libertaram o luar que haviam escondido,
o suficiente para que ela o visse como era. E para que
ele a visse.

Não era um fantasma. Era um forasteiro. Ela vira-o


e isso nunca iria mudar.

Estava queimado pelo sol, tinha o cabelo cor de


palha e a barba enso­pada. Os contrabandistas deviam tê-
lo abandonado na água e ordenado que nadasse o resto
do caminho. Era claro que ele não sabia a língua dela,
mas ela compreendia o suficiente da dele para saber que
estava a pedir ajuda. Que queria ver o Senhor da Guerra
de Seiiki.

Tané sentiu-se como se o seu coração fosse um


punho contendo trovões. Não ousou falar, pois mostrar-
lhe que conhecia a sua língua seria forjar uma ligação
entre eles, trair-se a si mesma. Revelar que, tal como ela
era agora testemunha do seu crime, também ele era
testemunha do dela.

Devia estar em reclusão. A salvo por trás das


paredes da Casa Sul, pronta para se levantar, purificada,
para o dia mais importante da sua vida. Agora, estava
manchada. Manchada sem possibilidade alguma de
redenção. E tudo porque decidira mergulhar nas águas
do mar uma última vez antes do Dia da Escolha. Corriam
rumores de que o grande Kwiriki favorecia aqueles que
possuíssem a coragem de se escapulir e procurar as
ondas durante a reclusão. Em vez disso, enviara-lhe este
pesadelo.

Ao longo da sua vida, fora sempre demasiado


afortunada.

Este era o seu castigo.

Manteve o forasteiro à distância com a adaga.


Confrontado com a morte, ele começou a tremer.

Um turbilhão de possibilidades invadiu a mente de


Tané, cada uma mais terrível do que a anterior. Se
entregasse o forasteiro às autoridades, teria de revelar
que quebrara a reclusão.

O Dia da Escolha poderia não prosseguir. O honrado


Governador de Cabo Hisan — aquela província de Seiiki
— nunca permitiria que os deuses entrassem num lugar
que pudesse estar contaminado pela doen­ça vermelha.
Poderia levar semanas até que declarasse a cidade
segura, e até lá já se teria decidido que a chegada do
forasteiro havia sido um mau presságio e que a próxima
geração de aprendizes, não a de Tané, deveria ter a
oportunidade de se tornar cavaleira. Isso custar-lhe-ia
tudo.
Não o podia denunciar. Nem podia abandoná-lo. Se
de facto ele tivesse a doença vermelha, deixá-lo vaguear
sem controlo seria um perigo para toda a ilha.

Havia apenas uma opção.

***

Ela enrolou-lhe uma tira de pano em torno do rosto


para o impedir de expelir a doença. Tinha as mãos a
tremer. Quando terminou, conduziu-o da areia preta da
praia até à cidade, mantendo-se tão próxima dele quanto
se atrevia, a lâmina pressionada contra as suas costas.
Cabo Hisan era um porto que nunca dormia. Guiou o
forasteiro pe­los seus mercados noturnos, passando por
santuários esculpidos em ma­deira flutuante, sob as
faixas de lanternas azuis e brancas penduradas para o
Dia da Escolha. O seu prisioneiro observava tudo em
silêncio. A escuridão obscureceu-lhe as feições, mas Tané
deu-lhe um toque na cabeça com a parte lisa da lâmina,
forçando-o a baixá-la. Enquanto isso, manteve-o o mais
afastado possível dos demais.

Tinha uma ideia de como o isolar.

Havia uma ilha artificial colada ao cabo. Chamava-


se Orisima e era uma espécie de curiosidade para os
locais. O posto de comércio tinha sido construído para
abrigar um punhado de comerciantes e estudiosos do
Estado Livre de Mentendon. A par dos lacustres do outro
lado do cabo, os mênticos eram os únicos autorizados a
continuar o comércio em Seiiki depois de a ilha ter sido
fechada ao mundo.

Orisima.

Era para lá que levaria o forasteiro.

A ponte iluminada por archotes que conduzia ao


posto de comércio estava protegida por sentinelas
armadas. Poucos seiikines tinham per­missão para entrar,
e Tané não era uma delas. A única outra forma de passar
a vedação era através do portão de desembarque, que
se abria uma vez por ano para receber mercadorias dos
navios mênticos.

Tané conduziu o forasteiro até ao canal. Não podia


levá-lo pessoal­mente para Orisima, mas conhecia uma
mulher que podia. Alguém que saberia o melhor lugar
para o esconder no posto de comércio.

***

Há muito tempo que Niclays Roos não recebia


visitas.
Estava a servir-se de um pouco de vinho — uma
pinguinha da sua mísera provisão — quando ouviu bater
à porta. O vinho era um dos poucos prazeres que lhe
restavam no mundo, e estivera concentrado em respirar
o seu aroma, em saborear aquele momento áureo que
antecede o primeiro gole.

Logo agora, tinham de o interromper. Claro. Com


um suspiro, levantou-se da cadeira e soltou um grunhido
ao sentir uma picada de dor no torno­zelo. Só lhe faltava a
maldita da podagra.

Voltaram a bater à porta.

— Já vai — murmurou.

A chuva tamborilou no telhado enquanto ele foi


buscar o seu cajado. Chuva de ameixas, como os
seiikines lhe chamavam nesta altura do ano, quando o ar
era espesso e húmido como nuvens e as árvores ficavam
carregadas de frutos. Coxeou através das esteiras,
praguejando entre-dentes, e abriu a porta apenas uma
fração de centímetro.

Lá fora, na escuridão, encontrava-se uma mulher.


Tinha o cabelo escuro até à cintura e usava um vestido
estampado com flores de sal. Estava encharcada,
demasiado molhada para ser apenas devido à chuva.
— Boa noite, erudito Doutor Roos cumprimentou-o.
Niclays ergueu as sobrancelhas.
— Desagrada-me sem igual receber visitas a esta
hora. Ou a qualquer hora. — Deveria curvar-se, para a
saudar, mas não tinha razoes para tentar impressionar
aquela estranha. — Como sabeis o meu nome?
Foi-me dito respondeu ela, sem mais explicações. —
Trago co­migo um dos vossos compatriotas. Ficará
convosco esta noite e amanhã venho buscá-lo ao pôr do
sol.
— Um dos meus compatriotas.
A visitante virou ligeiramente a cabeça e, por trás de
uma árvore próxima, surgiu uma silhueta.
— Os contrabandistas entregaram-no a Seiiki —
acrescentou a mu­lher. olhando por cima do ombro. —
Amanhã levá-lo-ei ao honrado Governador.
Quando a luz da casa iluminou a silhueta do homem,
Niclays congelou.
À sua porta estava um homem de cabelos dourados,
tão encharcado como a mulher. Um homem que ele
nunca vira em Orisima.
Viviam vinte pessoas no posto de comércio, e
Niclays conhecia cada uma delas, pelo rosto e pelo
nome. E não havia previsão de chegarem navios
mênticos com pessoas novas durante muito tempo.
De alguma forma, aqueles dois tinham conseguido
passar sem serem vistos.
— Não. — Niclays olhou-a fixamente. — Santo,
mulher, tentais envolver-me numa operação de
contrabando? — Agarrou desajeita­damente a maçaneta
da porta. — Não posso esconder um invasor. Se alguém
descobrisse...
— Uma noite.
Uma noite, um ano, ainda assim cortar-nos-ão as
cabeças. Boa noite.
Quando estava prestes a fechar a porta, a mulher
enfiou o cotovelo na abertura.

— Se o fizerdes — insistiu, agora tão perto que


Niclays podia sentir-lhe a respiração —, sereis
recompensado com prata. Tanta quanta conseguir­des
transportar.

Niclays Roos hesitou.

A prata era tentadora. Jogara demasiados jogos de


cartas bêbedo com as sentinelas e devia-lhes mais do
que conseguiria ganhar numa vida inteira. Até agora,
lograra apaziguar-lhes as ameaças com a promessa de
joias do próximo carregamento mêntico, mas sabia muito
bem que, quando chegasse, não haveria uma única
maldita joia a bordo. Não para alguém como ele.

Se fosse mais jovem, teria aceitado a proposta sem


hesitar, quando mais não fosse pela aventura. Mas antes
que o seu eu mais velho e sábio pudesse intervir, a
mulher afastou-se da porta.

— Estarei de volta amanhã à noite — disse ela. —


Não deixeis que o vejam.

— Esperai — silvou atrás dela, furioso. — Quem sois


vós?
Ela já se fora embora. Com um olhar de relance para
a rua e um rosnado de frustração, Niclays arrastou o
homem de ar assustado para dentro de casa.
Aquilo era uma loucura. Se os vizinhos percebessem
que estava a abrigar um invasor, seria levado ante um
Senhor da Guerra muito furio­so que não era
propriamente conhecido pela sua misericórdia.
No entanto, lá estava ele.
Trancou a porta. Apesar do calor, o recém-chegado
estava a tremer.
A sua pele era cor de azeitona, queimada nas faces,
e os seus olhos azuis estavam irritados do sal. Nem que
fosse apenas para o acalmar, Niclays foi buscar um
cobertor que trouxera de Mentendon e deu-o ao homem,
que o aceitou sem uma palavra. Tinha razões para estar
assustado.
— De onde vens? — indagou Niclay bruscamente.
— Perdoai-me — disse o convidado com uma voz
rouca. — Não per­cebo. Estais a falar seiikine?
Inysh. Eis uma língua que ele não ouvia há muito
tempo.
— Aquilo — devolveu Niclays, nessa mesma língua —
não foi seiikine. Foi mêntico. Presumi que também o
fosses.
— Não, senhor. Sou de Ascalon — respondeu com
timidez. — Permitis-me que pergunte o nome do homem
a quem devo agradecer por me abrigar?
Típico dos inysh. A cortesia acima de tudo.
— Roos — replicou Niclays. — Doutor Niclays Roos.
Mestre cirur­gião. A pessoa cuja vida estás a pôr cm risco
com a tua presença.
O jovem olhou para ele.
— Doutor... — Engoliu em seco. — Doutor Niclays
Roos?
— Parabéns, rapaz. A água do mar não te afetou a
audição.
O convidado libertou um suspiro trémulo.
— Doutor Roos — disse —, isto é providência divina. O
simples facto de o Cavaleiro da Camaradagem me ter
trazido até vós, de todas as pessoas...
— Até mim? — Niclays franziu o sobrolho. — Já nos
conhecemos?
Fez um esforço para se lembrar do último ano em
Inys, mas estava certo de nunca ter visto aquele homem.
A menos que tivesse sido duran­te uma das suas
bebedeiras. Que, em Inys, eram frequentes.
— Não, senhor, mas um amigo disse-me o vosso
nome. — O homem limpou o rosto com a manga. — Tinha
a certeza de que iria sucumbir ao mar, mas ver-vos
trouxe-me de volta à vida. Graças ao Santo.
— O teu santo não tem poder aqui — murmurou
Niclays. — Agora, por que nome respondes?
— Sulyard. Mestre Triam Sulyard, senhor, ao vosso
serviço. Era es­cudeiro na corte de Sua Majestade Sabran
Berethnet, rainha de Inys.
Niclays apertou o maxilar. Aquele nome despertou-lhe
uma raiva branca e incandescente nos intestinos.
— Um escudeiro — repetiu, sentando-se. — Sabran
cansou-se de ti como se cansa de todos os seus
súbditos?
Sulyard eriçou-se.
— Não ouseis insultar a minha rainha, ou eu...
— Ou tu o quê? — Niclays observou-o por cima da
armação dos óculos. — Talvez deva chamar-te Triam
Sulerdo. Tens alguma ideia do que fazem aos forasteiros
aqui? Foi por isso que Sabran te enviou, para morreres
uma morte particularmente terrível?
— Sua Majestade não sabe que eu estou aqui.
Interessante. Niclays serviu-lhe um copo de vinho.
— Toma — ofereceu, ressentido. Bebe tudo.
Sulyard esvaziou a taça.

— Agora, Mestre Sulyard, isto é importante —


continuou Niclays, dirigindo-se a ele com mais protocolo.
— Quantas pessoas vos viram?

— Fizeram-me nadar até à costa. Primeiro cheguei


a uma enseada de areia preta. — Sulyard estava a
tremer. — Uma mulher encontrou-me e conduziu-me para
uma cidade com uma adaga apontada às costas. Deixou-
me sozinho num estábulo... Depois veio outra mulher e
disse-me que a seguisse. Levou-me para o mar e
nadámos juntos até chegar­mos a um pontão. No final,
havia um portão.

— E estava aberto?

— Sim.

A mulher deve conhecer uma das sentinelas. Deve


ter-lhe pedido que deixasse o portão aberto.

Sulyard esfregou os olhos. O tempo que passara no


mar desgastara-o, mas Niclays via agora que não
passava de um jovem, talvez nem sequer tivesse vinte
anos.

— Doutor Roos... — disse ele. — Vim numa missão


de extrema im­portância. Tenho de falar com o...

— Desculpai-me, mas tenho de vos interromper,


Mestre Sulyard — interviu Niclays. — Não tenho o menor
interesse no que vos trouxe até aqui.

— Mas...

— Quaisquer que sejam os vossos motivos, viestes


até aqui sem per­missão de nenhuma autoridade, o que é
uma loucura. Se o Comandante vos encontrar e vos
arrastar para interrogatório, quero poder dizer com toda
a honestidade que não faço ideia do motivo que vos
trouxe à mi­nha porta a meio da noite e que pensei que
tínheis permissão para estar em Seiiki.

Sulyard piscou os olhos.

— O Comandante?

— O oficial seiikine responsável por esta lixeira


flutuante, embora pareça considerar-se um deus menor
ou algo assim. Sabeis sequer onde estais?

— Orisima, o último posto de comércio ocidental do


Oriente. Foi a sua existência que me deu esperança de
ser recebido pelo Senhor da Guerra.

— Garanto-vos que, sob nenhuma circunstância,


Pitosu Nadama acolherá um invasor na sua corte. O que
ele fará, se descobrir da vossa presença, é executar-vos.
Sulyard não respondeu.
Por breves instantes, Niclays considerou contar ao
seu convidado que a sua salvadora tencionava ir buscá-lo
no dia seguinte, talvez para alertar as autoridades da sua
chegada, mas decidiu contra isso. Sulyard podia entrar
em pânico e tentar fugir e não tinha para onde o fazer.
Era apenas um dia. Amanhã, ir-se-ia embora.
Foi então que ouviu vozes lá fora. Passos a ecoar no
chão de madeira das outras residências. Sentiu um
arrepio.
— Escondei-vos — advertiu, e pegou no seu cajado.
Sulyard agachou-se por trás de um biombo. Com as
mãos trémulas, Niclays abriu a porta.
Séculos antes, o Primeiro Senhor da Guerra de Seiiki
assinara o Grande Edito e cortara o acesso à ilha a
qualquer pessoa que não fos­se lacustre ou mêntica, para
proteger o seu povo da peste draconiana. Mesmo após o
fim da peste, a separação mantivera-se. Qualquer foras­‐
teiro que chegasse sem permissão seria executado.
Assim como qualquer pessoa que o ajudasse.
Não havia sinais das sentinelas na rua, mas vários
dos seus vizinhos haviam-se reunido. Niclays juntou-se a
eles.
— Em nome de Galian, que se está a passar? —
perguntou ao cozi­nheiro, que fitava um ponto acima das
suas cabeças, a boca tão aberta que a podia ter usado
para apanhar borboletas. — Recomendo que no futuro
evites essa expressão facial, Harolt. As pessoas podem
achar que és inepto.
— Olha, Roos — exclamou o cozinheiro, ainda
boquiaberto. — Olha!
— É bom que isto seja...
Interrompeu-te quando o viu.
Uma enorme cabeça erguia-se por cima da cerca de
Orisima. pertencia a uma criatura nascida da joia e do
mar.
As suas escamas fumegantes eram de selenite, tão
cintilantes que pa­reciam ter luz própria, e estavam
cobertas de gotículas semelhantes a pedras preciosas.
Cada olho era uma estrela brilhante e cada chifre era
como mercúrio, reluzindo sob o luar pálido. A criatura
flutuava com a graça de uma fita, passando pela ponte e
subindo até ao céu, leve e silenciosa como um papagaio
de papel.
Um dragão. Mesmo enquanto se elevava sobre Cabo
Hisan, outros ascendiam da água, deixando uma névoa
gelada no seu rasto. Niclays pressionou uma mão contra
a batida do tambor no seu peito.
— Mas que — murmurou Niclays — estão eles a fazer
aqui?
2
Oeste

Ele estava de máscara, claro. Como todos os outros.


Apenas um lou­co entraria na Torre da Rainha sem
assegurar o seu anonimato, e se ele tinha conseguido
chegar à Câmara Privada, isso decerto significava que
este assassino não era nenhum tolo.
Mais além, no Quarto de Leito Real, Sabran dormia
profundamente. Com o cabelo solto e as pestanas
escuras contra as faces, a rainha de Inys seria um retrato
de placidez. Esta noite, era Roslain Crest quem dormia a
seu lado.
Ambas estavam inconscientes da sombra que se
aproximava, deter­minada a matá-las.
Ao retirar-se naquela noite, Sabran deixara a chave do
seu cómodo mais privado com uma das suas Damas do
Leito Real. Agora, estava nas mãos de Katryen Withy, que
caminhava pela Galeria dos Chifres. Os aposentos reais
eram guardados pelos Cavaleiros do Corpo, mas a porta
do Quarto de Leito Real nem sempre era vigiada. Afinal,
havia apenas uma chave.
Nenhum risco de intrusos.
Na Câmara Privada, a última barreira que separava o
leito da ra­inha do mundo exterior, o assassino olhou por
cima do ombro. Sir Gules Heath havia regressado ao seu
posto do lado de fora, desconhecendo o perigo que se
infiltrara na torre durante a sua ausência.
Desconhecendo que Ead, escondida nas vigas, observava
o assassino a aproximasse da porta que o levaria até à
rainha. Sem um único som, o intruso puxou uma chave
do seu manto e inseriu-a na fechadura.
Virou-a.

Durante muito tempo, não se mexeu. A espera da


sua oportunidade.

Este era muito mais cuidadoso do que os outros.


Quando Heath, do lado de fora, teve um dos seus
acessos de tosse, o intruso abriu a porta para o Quarto
de Leito Real. Com a outra mão, desembainhou uma
adaga. O mesmo tipo de adaga que os outros haviam
usado.

Quando se moveu, Ead também o fez, descendo em


silêncio da viga atrás dele.

Os seus pés descalços brilharam sobre o mármore.


Quando o assas­sino entrou no Quarto de Leito Real de
adaga em riste, ela tapou-lhe a boca com a mão e
cravou-lhe a lâmina entre as costelas.

O assassino retorceu-se. Ead agarrou-o bem, tendo


cuidado para não derramar uma única gota de sangue.
Quando o corpo ficou imóvel, ela deitou-o no chão e
levantou-lhe a viseira, a mesma que fora usada por
outros antes dele.
O rosto que ocultara era muito jovem, o de um
rapaz. Olhos tão azuis como a água do lago fitavam o
teto.

Não era ninguém que ela reconhecesse. Ead beijou-


lhe a testa e deixou-o jazido sob o chão de mármore.
Um momento após ter regressado ao seu
esconderijo nas sombras, ouviu um grito de socorro.

***

O amanhecer encontrou-a ainda nos terrenos do


palácio. Tinha o cabe­lo preso numa trança dourada
adornada com esmeraldas.
Todas as manhãs seguia a mesma rotina. Ser
previsível era estar a salvo. Primeiro, foi ter com o Mestre
dos Correios, que confirmou que não havia cartas para
ela. Depois, foi até aos portões e olhou para a cidade de
Ascalon, imaginando que um dia caminharia por ela, e
continuaria a caminhar até chegar a um porto e a um
navio que a le­varia para casa, em Lasia. Por vezes, via
alguém que conhecia lá fora e cumprimentavam-se com
um leve aceno de cabeça. Por fim, ia para o Salão de
Banquetes quebrar o jejum com Margret, e depois, às
oito, começava as suas tarefas.
A primeira do dia era localizar a Lavadeira Real. Ead
não tardou a encontrá-la atrás da Cozinha Real,
encostada a uma moita. Um rapaz do estábulo parecia
estar a contar-lhe as sardas do decote com a língua.
— Bom dia aos dois — cumprimentou Ead.
O casal separou-se entre arquejos. O rapaz dos
estábulos, de olhar selvagem, desatou a correr como se
fosse um dos seus cavalos.
— Senhora Duryan! — disse a lavadeira, alisando a
saia enquanto se curvava em reverência, corando até às
raízes do cabelo. — Por favor, não conteis a ninguém,
senhora, ou ficarei arruinada.
— Não precisas de me fazer reverência. Não sou uma
senhora — respondeu-lhe Ead, sorrindo. — Achei que
seria prudente recordar-te de que deves comparecer
todos os dias a Sua Majestade. Tens sido algo descuidada
nos últimos tempos.
— Oh, senhora Duryan, confesso que a minha mente
tem estado noutro lugar, mas tenho andado tão nervosa.
— A lavadeira torceu as mãos calejadas. — Os criados
têm sussurrado. Dizem que um wyverling roubou gado
dos Lagos há menos de dois dias. Um wyverling! Não é
assustador pensar que os servos do Inominável estão a
acordar?
— Ora, é precisamente por isso que deves ser
cautelosa no teu tra­balho. Esses servos do Inominável
desejam o desaparecimento de Sua Majestade, pois a
sua morte traria o seu mestre de volta a este mundo —
disse Ead. — É por isso que o teu trabalho é essencial,
boa senhora. Não deves deixar de examinar os seus
lençóis todos os dias, atenta a quaisquer venenos, e de
te certificares de que a cama se mantém limpa e
perfumada.
— Claro, sim. Prometo que serei mais cuidadosa com
os meus deveres.
— Oh, mas não é a mim que o deves prometer. Deves
prometê-lo ao Santo. — Ead inclinou a cabeça em direção
ao Santuário Real. — Vai ter com ele agora. Talvez até
possas pedir-lhe perdão pela tua... indiscri­ção. Vai com o
teu amante e reza por clemência. Apressa-te!
Quando a lavadeira saiu a correr, Ead reprimiu um
sorriso. Era quase demasiado fácil deixar um inysh
embaraçado.
O sorriso depressa se desvaneceu. De facto, um
wyverling atrevera-se a roubar gado dos humanos.
Embora as criaturas draconianas estives­sem a despertar
do seu longo sono havia anos, os avistamentos per­‐
maneciam incomuns — pelo menos, até aos últimos
meses. Era mau presságio que se estivessem a tornar
audazes a ponto de caçar em áreas com povoação.
Mantendo-se à sombra, Ead percorreu o longo
caminho até aos apo­sentos reais. Contornou a Biblioteca
Real, esquivou-se a um dos pavões brancos a vaguear
pelos jardins e entrou nos claustros.
O Palácio de Ascalon — um colosso de calcário claro
— era a maior e mais antiga residência da Casa de
Berethnet, governantes do Rainhado de Inys. Os danos
sofridos durante a Ascensão das Sombras, quando o
Exército Draconiano lançara a sua guerra de um ano con­‐
tra a humanidade, há muito que haviam sido apagados.
Cada janela estava equipada com vitrais em todas as
cores do arco-íris. Os terrenos abrigavam um Santuário
das Virtudes, jardins com áreas sombreadas e a imensa
Biblioteca Real, com a sua torre de relógio em mármore.
No verão, era o único lugar onde Sabran recebia a corte.
Havia uma macieira no centro do pátio. Ead parou ao
vê-la, o peito a doer.
Fazia cinco dias que Loth desaparecera do palácio na
calada da noi­te, juntamente com o Lorde Kitston Glade.
Ninguém sabia para onde tinham ido ou porque haviam
abandonado a corte sem permissão. O rosto de Sabran
transparecera a sua preocupação, mas Ead sofrera-a em
silêncio.
Recordou o cheiro de madeira a arder do seu
primeiro Banquete da Camaradagem, quando conhecera
o Lorde Arteloth Beck. A cada ou­tono, a corte reunia-se
no Reino das Virtudes para trocar presentes e celebrar a
sua união. Fora a primeira vez que se haviam encontrado
em pessoa, mas, mais tarde, Loth dissera-lhe que havia
muito tempo que andava curioso quanto à nova dama de
honor. Ouvira rumores sobre uma jovem sulista de
dezoito anos, nem nobre, nem camponesa, recém-
convertida às Virtudes da Cavalaria. Segundo muitos
cortesãos, fora o Embaixador do Ersyr que a apresentara
à rainha.
Não vos trago joias ou ouro para celebrar o Ano
Novo, Vossa Majestade. Em vez disso, trago-vos uma
senhora para a vossa Casa Superior, dissera Chassar. A
leal­dade é o melhor dos presentes.
A própria rainha tinha apenas vinte anos. Uma dama
de companhia sem título ou sangue nobre era um
presente peculiar, mas a cortesia forçara-a a aceitar.
Apesar de se chamar Banquete da Camaradagem,
tinha pouco de fra­ternal. Naquela noite, ninguém
abordara Ead para a convidar para uma dança —
ninguém além de Loth. Ombros largos, uma cabeça mais
alta do que ela, pele negra profunda e um sotaque
caloroso do Norte. Não havia na corte quem não
soubesse o seu nome. Era o herdeiro de Goldenbirch — a
terra natal do Santo — e amigo próximo da Rainha
Sabran.
Senhora Duryan, dissera-lhe ele com uma reverência,
dais-me a honra de uma dança? Poupar-me-eis à
fastidiosa conversa do Chanceler do Tesouro e ficarei em
divida para convosco. Em troca, trarei o melhor vinho de
Ascalon e metade será vosso. Que me dizeis?
Ead precisava de um amigo. E de algo forte para
beber. Então, ainda que se tratasse de Lorde Arteloth
Beck, e ainda que ele fosse um com­pleto desconhecido,
dançaram três pavanas e passaram o resto da noite junto
à macieira, a beber e a conversar sob as estrelas. Antes
que ela desse por isso, florescera uma amizade.
Agora ele partira, e só havia uma explicação possível.
Loth nunca teria saído da corte por livre vontade, decerto
não sem avisar a irmã ou pedir permissão a Sabran. A
única explicação possível era que tinha sido forçado.
Tanto Ead como Margret haviam tentado avisá-lo.
Advertido de que a sua amizade com Sabran — uma
amizade que remontava aos seus dias de infância —
acabaria por torná-lo uma ameaça para os potenciais
pre­tendentes da rainha. Que agora que eram adultos,
deveria afastar-se dela.
Loth nunca dera ouvidos à razão.
Ead abanou a cabeça e voltou à realidade. Saiu do
pátio e afastou-se para dar lugar a um grupo de criados
ao serviço da senhora Igrain Crest, Duquesa da Justiça.
No seu tabardo, trazia bordado o seu brasão de armas.
O Jardim do Relógio de Sol deleitava-se com a luz da
manhã. O sol adoçava-lhe os caminhos e as rosas que
enfeitavam a relva exibiam um intenso rubor. Estátuas
das cinco Grandes Rainhas da Casa de Berethnet
guardavam um lintel e, sob elas, ficava a entrada para a
Torre Dearn, nas proximidades. Sabran sempre gostara
de passear em dias como este, de braço dado com uma
das suas damas de companhia, mas hoje os ca­minhos
estavam vazios — a rainha não estaria com disposição
para pas­seios depois de terem encontrado um cadáver
tão próximo do seu leito.
Ead aproximou-se da Torre da Rainha. As trepadeiras
que lhe serpenteavam as paredes estavam cobertas de
flores roxas. Subiu as várias escadas internas e abriu
caminho para os aposentos reais.
Doze Cavaleiros do Corpo, com as suas armaduras
douradas e man­tos verdes estivais, flanqueavam a
entrada da Câmara Privada. Nas suas braçadeiras,
usavam um padrão florido, e, nas suas couraças, o
brasão de Berethnet ocupava um lugar de destaque.
Ergueram o olhar brusca­mente quando Ead se
aproximou.

— Bom dia — disse ela.

Ao reconhecerem a Dama da Câmara Privada, o


momento de caute­la passou e afastaram-se para lhe
ceder passagem.

Ead viu de imediato a senhora Katryen Withy,


sobrinha do Duque da Camaradagem. Com vinte e quatro
anos, era a mais nova e mais alta das três Damas do
Leito Real, de pele castanha macia, lábios cheios e
cabelo crespo encaracolado de um ruivo tão profundo
que era quase preto.

— Senhora Duryan — saudou. Como todos os


outros no palácio, estava vestida de verde e amarelo
para o verão. — Sua Majestade ainda está no leito.
Encontrastes a lavadeira?

— Sim, minha senhora. — Ead fez uma reverência. —


Parece que... se deixou distrair por deveres para com a
família.
— Não há dever acima do nosso serviço à Coroa —
replicou Katryen, lançando um olhar para a porta. —
Houve outra intrusão. Desta vez, o patife era menos
desajeitado. Não só conseguiu chegar ao Quarto de Leito
Real como também tinha a chave da porta.
— O Quarto de Leito Real — repetiu Ead, fingindo
assombro. — Então, alguém da Casa Superior traiu Sua
Majestade.
Katryen assentiu.
— Cremos que subiu a Escadaria Real. Isso ter-lhe-ia
permitido con­tornar a maior parte dos Cavaleiros do
Corpo e ir direto para a Câmara Privada da rainha. E
dado que a Escadaria Real está selada desde... —
Suspirou. — O Sargento Porter foi dispensado pela sua
negligência. De agora em diante, a porta para o Quarto
de Leito Real deverá ter supervisão constante.
Ead assentiu.
— Que desejais que façamos hoje?
— Tenho uma tarefa especial para vós. Como sabeis,
o embaixador mêntico, Oscarde utt Zeedeur, chega hoje.
A sua filha tem sido algo des­cuidada na forma de vestir
— disse Katryen, franzindo os lábios. — A senhora Truyde
sempre se apresentou de forma impecável na corte, mas
agora... ora, ontem compareceu às orações com uma
folha no cabe­lo, e na véspera esqueceu-se da faixa. —
Lançou a Ead um olhar demo­rado. — Pareceis saber
como vos vestirdes de maneira adequada à vossa
posição. Certificai-vos de que a senhora Truyde está
pronta.
— Sim, minha senhora.
— Oh, e Ead, não mencioneis a intrusão. Sua
Majestade não deseja semear agitação na corte.
— Com certeza.
Quando passou pelos guardas uma segunda vez, Ead
fitou-lhes as expressões vazias.
Há muito que sabia que havia alguém na corte a
deixar entrar assas­sinos no palácio. Agora até lhes
fornecera uma chave para chegarem à rainha de Inys
durante o sono.
Ead estava determinada a descobrir quem.

***

A Casa de Berethnet, como a maior parte das casas


reais, sofrera algu­mas mortes prematuras. Glorian a
Primeira morrera envenenada por uma taça de vinho.
Jillian a Terceira governara apenas um ano antes de ser
apunhalada no coração por um dos seus próprios criados.
A própria mãe de Sabran, Rosarian a Quarta, morrera
com um vestido ensopado cm veneno de basilisco.
Ninguém sabia como a peça de vestuário fora parar ao
Toucador Real, mas suspeitava-se de traição por parte
dos yscals.
Agora, os assassinos haviam voltado pela herdeira da
Casa de Berethnet. A cada tentativa, aproximavam-se
cada vez mais da rainha. Um entrega­ra-se ao derrubar
um busto. Outra fora vista a entrar sorrateiramente na
Galeria dos Chifres, e outro ainda gritara coisas odiosas
nos portões da Torre da Rainha até os guardas o
apanharem. Não haviam encontrado ligação alguma
entre os aspirantes a assassinos, mas Ead estava convic­‐
ta de que tinham um líder comum. Alguém que conhecia
bem o palá­cio. Alguém em posição de roubar a chave,
fazer uma cópia e devolvê-la ao seu lugar no mesmo dia.
Alguém que sabia como abrir a Escadaria Secreta, que se
encontrava fechada desde a morte da Rainha Rosarian.
Se Ead fosse uma das Damas do Leito Real, uma
pessoa de con­fiança de Sabran, seria mais fácil protegê-
la. Desde que chegara a Inys que esperava pela
oportunidade de ocupar esse cargo, mas começava a
acreditar que isso nunca iria acontecer. Uma convertida
sem título não era uma candidata adequada.
Ead encontrou Truyde na Câmara do Cofre, onde
dormiam as damas de honor. Havia doze camas, lado a
lado. Os seus aposentos eram mais espaçosos ali do que
em qualquer dos outros palácios, mas desconfortá­veis
para as jovens nascidas em famílias nobres.
As damas de honor mais jovens estavam a brincar
com as almofadas, entre risos, mas pararam de repente
quando viram Ead entrar. A dama que ela procurava
ainda estava na cama.

A senhora Truyde, Marquesa de Zeedeur, era uma


jovem mulher sé­ria, de rosto pálido com sardas e olhos
cor de carvão. Fora enviada para Inys com 15 anos, havia
dois anos, para aprender a etiqueta da corte antes que
chegasse a altura de herdar o Ducado de Zeedeur do seu
pai. Havia nela um sentido de vigilância que lembrava a
Ead um pardal. Era muitas vezes encontrada na Sala de
Leitura, no meio das escadas ou a folhear livros antigos
com páginas esfareladas.
— Senhora Truyde — saudou Ead com uma
reverência.
— O que foi? — indagou a rapariga com ar
aborrecido. O seu sota­que continuava forte como
coalhada.
— A senhora Katryen pediu-me que vos ajudasse a
vestir — disse Ead. — Com a vossa permissão.
— Eu tenho 17 anos, senhora Duryan, e ainda
possuo inteligência suficiente para me vestir sozinha.
As outras damas sustiveram a respiração.
— Receio que a senhora Katryen discorde —
respondeu Ead cal­mamente.
— A senhora Katryen está enganada.
As damas voltaram a suster a respiração, e Ead
perguntou a si mesma se restaria algum oxigénio no
cómodo.
— Senhoras — dirigiu-se às raparigas —, encontrem
um criado e peçam-lhe para encher a bacia, por favor.
E elas foram. Sem fazer vénias. Ead tinha uma
posição mais elevada na corte, mas elas eram nascidas
nobres.
Truyde demorou-se uns momentos a olhar para a
janela vitral antes de se levantar. Deixou-se cair sobre o
banco ao lado da bacia.
— Perdoai-me, senhora Duryan — disse ela. — Estou
de mau humor hoje. Não tenho dormido muito
ultimamente. — Dobrou as mãos no colo. — Se for esse o
desejo da senhora Katryen, podeis ajudar-me a vestir.
Decerto parecia cansada. Ead foi para o fogo e
aqueceu algum li­nho. Após uma criada ter trazido água,
pôs-se atrás de Truyde e pe­gou nos seus abundantes
caracóis. Chegavam-lhe à cintura e eram de um ruivo
profundo. Tal cabelo era comum no Estado Livre de
Mentendon, que se estendia pelo outro lado do Estreito
do Cisne, mas muito raro em Inys.
Truyde lavou o rosto. Ead lavou-lhe o cabelo com
grialina, depois enxaguou-o e penteou-o,
desembaraçando-o. Durante todo o processo, a rapariga
não disse nada.
— Sentis-vos bem, minha senhora?
— Muito bem. — Rodou o anel no polegar, revelando a
mancha ver­de por baixo. — Apenas... irritada com as
outras damas e os seus me­xericos. Dizei-me, senhora
Duryan, sabeis do Mestre Triam Sulyard, escudeiro de Sir
Marke Birchen?
Ead secou o cabelo de Truyde com os panos de linho
aquecidos pelo fogo.
— Não muito — respondeu. — Apenas que deixou a
corte no inverno sem permissão e que tinha dívidas de
jogo. Porquê?
— As outras raparigas estão sempre a falar do seu
desaparecimento e a inventar histórias inacreditáveis.
Esperava silenciá-las.
— Lamento desapontar-vos.
Truyde ergueu os olhos sob as pestanas ruivas.
— Já fostes uma dama de honor.
— Sim. — Ead torceu os panos de linho. — Quatro
anos, depois de o Embaixador uq-Ispad me trazer para a
corte.
— E depois fostes promovida. Talvez um dia a Rainha
Sabran tam­bém me torne uma Dama da Câmara Privada
— disse Truyde, com ar absorto. — Assim não teria de
dormir nesta jaula.
— Aos olhos de uma donzela, o mundo inteiro é uma
jaula. — Ead pousou uma mão no seu ombro. — Vou
buscar o vosso vestido.
Truyde sentou-se junto ao fogo e penteou o cabelo
com os dedos. Ead deixou-a ali algum tempo para secar.

Do lado de fora, a senhora Oliva Marchyn, Genetriz


das Damas, es­tava a tecer as suas acusações com a voz
nasal e estridente que lhe era característica. Ao ver Ead,
saudou-a com rigidez:

— Senhora Duryan.
Pronunciou o nome como se fosse uma infâmia. Ead
esperava-o de certos membros da corte. Afinal, ela era
uma sulista, nascida fora do Reino das Virtudes, e isso
levantava suspeitas entre os inysh.

— Senhora Oliva — disse ela, calmamente. — A


senhora Katryen pediu-me que ajudasse a senhora
Truyde a vestir-se. Podíeis dar-me o seu vestido?

— Hum. Acompanhai-me. — Conduziu-a por outro


corredor. Uma madeixa de cabelo grisalho escapou-lhe
da coifa. — Aquela rapariga de­via comer mais. Vai
murchar como uma flor quando chegar o inverno.

— Há quanto tempo está sem apetite?

— Desde o Festim da Primavera Nascente. — Oliva


lançou-lhe um olhar desdenhoso. — Tratai de a deixar
apresentável. O pai dela ficará zangado se achar que não
alimentamos bem a filha.

— Ela não está doente?

— Conheço os sinais de doença, senhora.

— Doente de amores, talvez? — sugeriu Ead com


um sorrisinho.

Oliva firmou os lábios.


— Falais de uma dama de honor. E não tolero
mexericos na Câmara do Cofre.

— Perdão, minha senhora. Foi uma brincadeira.

— Sois uma dama de companhia da Rainha Sabran,


não o seu bobo da corte.

Com uma fungadela, Oliva tirou o vestido da prensa


e entregou-o. Ead fez uma vénia e retirou-se.

A sua própria alma abominava aquela mulher. Os


quatro anos que passara como dama de honor haviam
sido os mais miseráveis da sua vida. Mesmo após a sua
conversão pública às Seis Virtudes, a sua lealda­de à Casa
de Berethnet fora questionada.

Recordou os dias em que se deitava na sua cama


dura na Câmara do Cofre, os pés doridos, a ouvir as
outras raparigas a comentar o seu sotaque sulista e a
especular sobre as heresias que devia ter praticado no
Ersyr. Oliva nunca dissera uma palavra para as silenciar.
No seu coração, Ead sabia que aquilo acabaria por
passar, mas ferira-lhe o orgulho ser ridicularizada
daquela maneira. Quando abrira uma vaga na Câmara
Privada, a Genetriz das Damas mostrara-se encantada
por se ver livre dela. Ead deixara de dançar para a rainha
e passara a preparar-lhe o banho e a arrumar os
aposentos reais. Agora, tinha o seu próprio quarto e um
salário melhor.

Na Câmara do Cofre, Truyde estava à sua espera,


vestida de roupão. Ead ajudou-a a entrar num espartilho
e saiotes de verão, depois num vestido de seda preta
com mangas tufadas e um folho de renda. Sobre o seu
coração reluzia uma pregadeira com o brasão do seu
patrono, o Cavaleiro da Bravura. Todos os filhos do Reino
das Virtudes escolhiam o seu cavaleiro protetor quando
atingiam os doze anos.
Ead também usava uma. Um feixe de trigo, símbolo
de generosidade. Recebera-o no momento da sua
conversão.
— Senhora — disse Truyde —, as outras damas de
honor acusam-vos de heresia.
— Eu faço as minhas orações no santuário —
replicou Ead —, ao contrário de algumas dessas damas
de honor.
Truyde observou-lhe o rosto.
— Ead Duryan é realmente o vosso nome? —
perguntou de repente. — Não me soa ersyri.
Ead pegou num rolo de fita dourada.
— Falais ersyri, então, minha senhora?
— Não, mas li histórias do país.
— Ler — disse de forma descontraída. — Um
passatempo perigoso. Truyde ergueu o olhar penetrante
para ela.
— Fazeis pouco de mim.
— De forma alguma. Há um poder grandioso nas
histórias.
— Todas as histórias nascem de uma semente de
verdade — rebateu Truyde. — São conhecimento
procedente de figuração.
— Então, confio que usareis o vosso conhecimento
para o bem. — Ead deslizou os dedos pelos caracóis
vermelhos. — E já que pergun­tais... Não, não é o meu
nome verdadeiro.
— Foi o que pensei. Qual é o vosso nome
verdadeiro?
Ead separou dois fios do cabelo e trançou-o com a
fita.
— Nunca foi ouvido aqui.

Truyde arqueou as sobrancelhas.

— Nem por Sua Majestade?

— Não. — Ead virou a rapariga para a encarar. — A


Genetriz das Damas está preocupada com a vossa saúde.
De certeza que vos sentis bem? — Truyde hesitou. Num
gesto fraternal, Ead pousou uma mão no seu ombro. —
Agora, conheceis um segredo meu. Estamos vinculadas
por um voto de silêncio. Estais de esperanças, é isso?

Truyde enrijeceu.

— Não.
— Então o que é?

— Não é da vossa conta. Tenho um estômago


delicado, é isso, desde...

— Desde a partida do Mestre Sulyard.

Foi como se Ead lhe tivesse batido.

— Ele partiu na primavera — continuou Ead. — A


senhora Oliva diz que tendes tido pouco apetite desde
então.

— Presumis demasiado, senhora Duryan.


Demasiado. — Truyde afastou-se, as narinas dilatadas. —
Falais com Truyde utt Zeedeur, Marquesa de Zeedeur,
sangue de Vatten. A mera ideia de que eu me rebaixaria
ao cio com um qualquer escudeiro de baixa linhagem...
— Virou-se de costas. — Saí daqui, ou direi à senhora
Oliva que estais a espalhar mentiras sobre uma dama de
honor.

Ead sorriu brevemente e retirou-se. Já estava na


corte há demasiado tempo para se deixar intimidar por
uma criança.

Oliva observou-a a sair do corredor. Ao afastar-se


para a luz do Sol, Ead inalou o cheiro da relva recém-
cortada.
Uma coisa era clara: Truyde utt Zeedeur partilhara
intimidades se­cretas com Triam Sulyard — e Ead fazia
questão de conhecer todos os segredos da corte. E, se a
Mãe o permitisse, também descobriria aquele.
3

Este

O amanhecer estalou sobre Seiiki como o ovo de


uma graça a eclodir. Uma luz pálida adentrou o quarto.
As portadas haviam sido abertas pela primeira vez em
oito dias.

Tané olhou para o teto com os olhos irritados.


Passara a noite toda agitada, alternando entre o calor e o
frio.

Não voltaria a acordar naquele quarto. O Dia da


Escolha chegara. O dia por que esperara desde criança —
e arriscara, como uma tola, ao decidir quebrar o
isolamento. E ao pedir a Susa que escondesse o foras­‐
teiro em Orisima, pusera também as vidas de ambas em
perigo.

O seu estômago revirou-se como um moinho de


água. Agarrou no seu uniforme e na sua bolsa de asseio,
passou por Ishari ainda a dormir e saiu do quarto.
A Casa Sul ficava no sopé da Mandíbula de Urso, a
cordilheira que se elevava sobre Cabo Hisan. Tal como as
outras três Casas de Instrução, a Casa Sul treinava
aprendizes para a Alta Guarda do Mar. Tané vivia nos
seus corredores desde os três anos.

Sair foi como entrar num forno. O calor fez a sua


pele tornar-se pero­lada de suor e o seu cabelo parecer
mais grosso.

Seiiki tinha um cheiro próprio, o perfume do cerne


das árvores, desbloqueado pela chuva, e o verde de cada
folha. Por norma, Tané considerava aqueles cheiros
relaxantes, mas, naquele dia, nada a po­deria tranquilizar.

As fontes termais fumegavam na névoa da manhã.


Tané tirou a ca­misa de dormir, entrou na fonte mais
próxima e esfregou a pele com um punhado de farelo. À
sombra das ameixoeiras, vestiu o uniforme e escovou os
seus longos cabelos para um lado do pescoço, expondo o
dragão azul na sua túnica. Quando voltou a entrar, já
havia movimento nos quartos.

Tomou um pouco de chá e caldo para o pequeno-


almoço. Alguns aprendizes desejaram-lhe sorte à sua
passagem.

Chegado o momento, foi a primeira a partir.


Lá fora, os criados aguardavam com os cavalos.
Todos eles se curva­ram em uníssono. Tané montou o seu
corcel e, nesse momento, Ishari correu para fora da casa,
atordoada, e subiu para a sua sela.

Tané observou-a e sentiu um súbito caroço na


garganta. Havia seis anos que ela e Ishari partilhavam
um quarto. Depois da cerimónia, era possível que nunca
mais se voltassem a ver.

Cavalgaram até ao portão que separava as Casas


de Instrução do resto de Cabo Hisan, passando a ponte e
o riacho que descia das montanhas, para se juntarem aos
aprendizes de outras partes do distrito. Tané viu Turosa, o
seu rival, a olhá-la com um semblante presunçoso.
Susteve-lhe o olhar até que Turosa esporeou o cavalo e
avançou em direção à cidade, na sombra dos seus
amigos.

Tané olhou para trás uma última vez, contemplando


as colinas verde­jantes e as silhuetas dos lariços contra o
céu azul-claro. Depois, cravou o olhar no horizonte.

***

Atravessaram Cabo Hisan em lenta procissão.


Muitos locais haviam ma­drugado para ver o percurso dos
aprendizes até ao templo. Atiraram flores de sal para as
ruas, enchendo todos os caminhos, esticando os
pescoços para obterem um vislumbre dos que em breve
poderiam ser os escolhidos divinos. Tané tentou
concentrar-se no calor do cavalo, no barulho dos seus
cascos... tudo para evitar pensar no forasteiro.

Susa concordara em levar o homem inysh para


Orisima. Claro que concordara. Faria qualquer coisa por
Tané, tal como Tané faria qual­quer coisa por ela.

Acontece que Susa tivera, em tempos, um caso


com uma das senti­nelas do posto de comércio, que
estava ansiosa por reconquistá-la. Pelo menos, o
suficiente para abrir o portão de desembarque. Susa
planea­ra nadar até lá com o estranho e deixá-lo com o
mestre cirurgião de Orisima, com a promessa vã de uma
recompensa em prata pela sua cooperação. Ao que
parecia, o homem tinha dívidas de jogo.
Se o intruso tivesse de facto a doença vermelha,
ficaria preso em Orisima. Terminada a cerimónia, Susa
denunciá-lo-ia anonimamente ao Governador de Cabo
Hisan. O cirurgião seria açoitado quando en­contrassem o
homem na sua casa, mas Tané duvidava de que o matas­‐
sem: isso comprometeria a aliança com o Estado livre de
Mentendon. Se a tortura lhe soltasse a língua, o intruso
poderia contar às autoridades sobre as duas mulheres
que haviam intervindo na noite da sua chegada, mas não
teria muito tempo para apresentar o seu caso. Seria de
imediato levado à espada para reduzir o risco de
propagação da doença vermelha.
O pensamento levou Tané a olhar para as mãos, onde
a irritação apareceria primeiro. Ela não lhe tocara na
pele, porém, a mera aproxi­mação a ele fora um risco
terrível. Um momento de verdadeira loucura Se Susa
tivesse apanhado a doença vermelha, Tané jamais se
perdoaria Susa arriscara tudo para garantir que aquele
dia seria tudo o que Tané havia sonhado. A amiga não
questionara os seus escrúpulos nem a sua sanidade.
Limitara-se a aceder a ajudá-la.
As portas do Grande Templo do Cabo foram abertas
pela primeira vez numa década. De ambos os lados,
erguiam-se duas estátuas colossais de dragões, as suas
bocas abertas num eterno rugido. Quarenta cavalos
trotearam entre elas. O templo, outrora feito de madeira,
fora queimado durante a Grande Desolação e
posteriormente reconstruído em pedra Centenas de
arandelas de vidro azul pendiam dos beirais, emanando
uma luz gélida. Pareciam boias de pesca.
Tané desmontou e continuou a pé com Ishari ao seu
lado, rumo ao portão de madeira flutuante. Turosa
alinhou-se com elas.
— Que o grande Kwiriki te sorria hoje, Tané — disse
ele. — Seria uma pena se acabassem por enviar uma
aprendiza do teu nível para a Ilha das Penas.
— Seria uma vida respeitável — rebateu Tané,
entregando as rédeas do seu cavalo ao cuidador dos
estábulos.
— Não duvido de que dirás isso a ti própria quando
tiveres de ir viver para lá.
— Talvez também o façais, honrado Turosa.
Turosa torceu o canto da boca antes de acelerar o
passo para se juntar aos seus amigos da Casa Norte.

— Ele devia falar-te com mais respeito — murmurou


Ishari. — A Dumu diz que tens melhores pontuações do
que ele em quase todas as formas de combate.

Tané não disse nada. Sentiu um formigueiro nos


braços. Ela era a melhor da sua casa, mas Turosa
também era o melhor da dele.

No pátio do lado de fora do templo havia uma fonte


esculpida com a imagem do grande Kwiriki, o primeiro
dragão montado por um hu­mano. Da boca da estátua
escorria água salgada. Tané lavou as mãos na fonte e pôs
uma gota nos lábios.

Sabia a pureza.

— Tané — disse Ishari —, espero que tudo corra


como desejas.

— Desejo-te o mesmo. — Ambas ansiavam pelo


mesmo resultado. — Foste a última a sair da casa.

— Adormeci — justificou-se Ishari, que realizou as


suas próprias abluções. — Ontem à noite, pensei ter
ouvido as portas do nosso quarto a abrir. Isso manteve-
me acordada durante algum tempo... Demorei a voltar a
adormecer. Saíste do quarto?

— Não. Talvez tenha sido o nosso erudito professor.

— Sim, talvez.

Dirigiram-se para o enorme pátio interior. O Sol


brilhava sobre os telhados e o chão de pedra.

Nos degraus, estava um homem de bigode


comprido com um elmo sob o braço. O seu rosto era
bronzeado e desgastado. Vestido com mangas e luvas de
armadura, uma cota de malha leve sobre um casaco de
um azul mais escuro e uma sobrecapa de veludo de
colarinho alto de seda brocada em ouro. Tratava-se
claramente de alguém de alta paten­te e de um soldado.

Por um momento, Tané esqueceu-se dos seus


medos. Voltara a ser uma criança, a sonhar com dragões.

Aquele homem era o honrado General do Mar de


Seiiki. Chefe do Clã Miduchi, uma dinastia de cavaleiros
de dragões unidos não pelo sangue, mas por um
propósito. Tané queria ter esse nome.

Quando chegaram aos degraus, os aprendizes


formaram duas filas, ajoelharam-se e pressionaram a
lesta contra o chão. Tané conseguiu ouvir a respiração de
Ishari. Ninguém se levantou. Ninguém moveu um
músculo.

Escama raspou contra a pedra. Tané sentiu cada


nervo do seu corpo a contrair.

Olhou para cima.

Havia oito deles. Passara tantos anos a rezar diante


de estátuas de dragões, estudando-as e observando-as à
distância… mas nunca os tinha visto tão de perto.

O seu tamanho era impressionante. A maior parte


era seiikine, de tons prateados, suaves e estilizados, em
forma de chicote, com corpos incrivelmente longos e
cabeças esplêndidas, e todos tinham quatro pernas
musculadas que terminavam em patas com três garras.
Grandes barbe­las enrolavam-se dos seus rostos,
arrastando-se como as linhas dos papa­gaios. A maioria
era bastante jovem, talvez com quatrocentos anos, mas
vários conservavam as cicatrizes da Grande Desolação.
Estavam todos cobertos de escamas e tinham marcas de
ventosas em forma anelar — lembranças das suas
disputas com a lula gigante.

Dois deles tinham um quarto dedo na pata. Aqueles


eram dragões do Império dos Doze Lagos. Um deles, um
macho, tinha asas. A maioria dos dragões não tinha asas
e voava por meio de um órgão na cabeça a que os
estudiosos chamavam coroa. Os poucos que
desenvolviam asas só as tinham depois de, pelo menos,
dois mil anos de vida.

O dragão alado era o maior. Se se esticasse por


completo, Tané alcan­çaria apenas metade do espaço
entre o seu nariz e os seus olhos. Embora as asas
parecessem frágeis, como se fossem feitas de teias de
aranha, eram suficientemente fortes para provocar um
tufão. Tané olhou de re­lance para a bolsa sob o seu
queixo. Como as ostras, os dragões podiam fazer pérolas,
mas apenas uma vez na vida. Nunca saíam da bolsa.

O dragão ao lado do macho, também lacustre, tinha


mais ou menos a mesma altura que ele. Era uma fêmea
com escamas de um verde pálido e turvo e uma crina
castanho-dourada como as algas do rio.

— Bem-vindos — disse o General do Mar, numa voz


semelhante ao som de conchas a serem sopradas numa
convocação de guerra. — Ergam-se — ordenou, e eles
obedeceram. — Estão aqui hoje reunidos para prestarem
juramento a uma de duas vidas: a dos membros da Alta
Guarda do Mar, para defender Seiiki da doença e da
invasão, ou a uma vida de aprendizagem e oração na Ilha
das Penas. Dos guardiões do mar, doze terão a honra de
se tornarem cavaleiros de dragões.

Apenas doze. Normalmente, eram mais.

— Como sabem — continuou o General do Mar —,


nenhum ovo de dragão eclodiu nos últimos dois séculos.
E vários dragões foram roubados pela Frota do Olho de
Tigre, que continua o seu repulsivo comércio de carne de
dragão sob a tirania daquela a quem chamam Imperatriz
Dourada.

Muitos acenaram com a cabeça.

— Para fortalecer as nossas fileiras, temos a honra


de receber estes dois grandes guerreiros do Império dos
Doze Lagos. Confio que isto marcará o início de uma
amizade mais estreita com os nossos aliados do Norte.

O General do Mar inclinou a cabeça na direção dos


dois dragões la­custres. Não estariam tão habituados ao
mar como os dragões seiikines, dado que preferiam viver
em água doce, mas dragões de ambos os países haviam
combatido lado a lado durante a Grande Desolação, e
tinham ancestrais em comum.

Tané pressentiu Turosa a observá-la. Se ele se


tornasse cavaleiro, de certeza que diria que o seu dragão
era o melhor de todos eles.
— Hoje, ficareis a conhecer o vosso destino —
anunciou o General do Mar, puxando um pergaminho do
sobretudo. — Comecemos.

Tané preparou-se.

A primeira aprendiza a ser chamada foi designada


para as nobres fileiras da Alta Guarda do Mar. O General
do Mar entregou-lhe uma túnica da cor do céu de verão.
Quando ela a aceitou, um dragão seiikine soltou um
sopro de fumo que a sobressaltou. O dragão chiou.

Dumusa, da Casa Oeste, neta de dois cavaleiros de


ascendência sulis­ta e seiikine, também foi nomeada para
a Alta Guarda do Mar. Tané observou-a enquanto ela
aceitava o seu novo uniforme, fazia uma vénia ao
General do Mar e ocupava o lugar à sua direita.

O aprendiz seguinte foi o primeiro a juntar-se às


fileiras dos estu­diosos. O seu cabelo era do vermelho
profundo das amoras e os seus ombros tremeram quando
se curvou. Tané sentiu a tensão nos outros aprendizes,
repentina como uma corrente.
Turosa foi para a Alta Guarda do Mar, claro. E depois
pareceu passar-se uma eternidade antes que Tané
ouvisse o seu nome:
— A honrada Tané, da Casa Sul.
Tané deu um passo cm frente.
Os dragões observavam-na. Dizia-se que os dragões
podiam ver os segredos mais profundos de uma alma,
uma vez que os humanos eram feitos de água e toda a
Água era deles.
E se conseguissem ver o que ela tinha feito?
Concentrou-se na posição dos pés. Quando se
apresentou perante o General do Mar, ele olhou para ela
durante o que pareceram anos. Tané precisou de todas
as suas forças para se manter de pé.
Por fim, o General pegou num uniforme azul. Tané
deixou sair um sopro, lágrimas de alívio a marejarem-lhe
os olhos.
— Pela vossa aptidão e dedicação — disse ele —,
fostes designada para as nobres fileiras da Alta Guarda
do Mar, e deveis jurar levar uma vida digna do caminho
do dragão até ao vosso último suspiro. — Depois,
aproximou-se e acrescentou, em voz baixa. — Os vossos
professores fa­lam muito bem de vós. Será um privilégio
ter-vos sob a minha guarda.
Ela curvou-se profundamente.
— Honrais-me, grande senhor.
O General do Mar sorriu.
Tané juntou-se aos quatro aprendizes à direita, ainda
atordoada de fe­licidade, sentindo o sangue a correr-lhe
nas veias como água através de seixos. Quando o
candidato seguinte foi apresentado, Turosa sussurrou-lhe
ao ouvido:
— Então tu e eu vamos enfrentar-nos nas provas da
água. — O seu hálito cheirava a leite. — Ótimo.
— Será um prazer combater um guerreiro do vosso
nível, honrado Turosa — respondeu Tané com uma voz
calma.
— Vejo o que escondes por trás da máscara, ralé de
aldeia. Vejo o que trazes no coração. É igual ao que há no
meu. Ambição. — Pausou quando um dos homens foi
enviado para o outro lado. — A diferença é o que cu sou,
e o que tu és.
Tané olhou-o nus olhos.
— Estais em pé de igualdade com tudo o que eu sou,
honrado Turosa.
O riso de Turosa causou-lhe arrepios na nuca.

— A honrada Ishari, da Casa Sul — anunciou o


General do Mar.

Ishari subiu as escadas lentamente. Quando o


alcançou, o General do Mar entregou-lhe um rolo de seda
vermelha.

— Pela vossa aptidão e dedicação — disse ele —,


fostes designada para as nobres fileiras de estudiosos, e
deveis jurar dedicar-vos a expan­dir as fronteiras do
conhecimento até ao vosso último suspiro.

Embora as palavras a tivessem feito estremecer,


Ishari pegou no feixe de pano e fez uma vénia.

— Obrigada, grande senhor — murmurou ela.

Tané viu-a a ir para o lado esquerdo.

Ishari devia estar devastada. Ainda assim, talvez se


saísse bem na Ilha das Penas, e talvez pudesse, um dia,
regressar a Seiiki como mestre professora.

— Que pena — disse Turosa. — Ela não era tua


amiga?

Tané mordeu a língua.

A primeira aprendiza da Casa Este foi a próxima a


juntar-se a eles. Onren era baixa e robusta, o rosto
salpicado de sardas e bronzeado pelo sol. Cabelos
grossos caíam-lhe sobre os ombros, secos pelo contacto
re­petido com a água salgada e quebradiço nas pontas.
Sangue de caramu­jo escurecia-lhe os lábios.

— Tané — disse, posicionando-se ao lado dela. —


Parabéns.

— E para ti, Onren.

Elas eram as únicas aprendizas que se levantavam,


sem falta, todos os dias ao amanhecer para um
mergulho, e esse hábito fizera florescer en­tre elas uma
espécie de amizade. Tané não tinha dúvidas de que
Onren também dera ouvidos aos rumores e se esgueirara
para um último mer­gulho antes da cerimónia.

O pensamento perturbou-a. Cabo Hisan era


recortado por peque­nas enseadas, mas o destino levara-
a a escolher a mesma que aquele forasteiro.
Onren olhou para a roupa de seda nas suas mãos.
Tal como Tané, também ela vinha de um lar pobre.

— São maravilhosos — sussurrou ela, gesticulando


para os dragões.

— Imagino que esperas tornar-te uma dos doze.

— Não és demasiado pequena para montar um


dragão, Onren? — perguntou Turosa, arrastando bem as
sílabas. — Embora suponha que possas montar na cauda
de um deles.

Onren dirigiu-lhe um olhar por cima do ombro.

— Pareceu-me ouvir-te falar. Já nos conhecemos? —


Ele abriu a boca, mas ela interrompeu-o. — Não
respondas. Não passas de um tolo, e não tenho interesse
em fazer amizade com tolos.

Tané escondeu o sorriso atrás do cabelo. Por uma


vez, Turosa mante­ve a boca fechada.

Quando o último aprendiz recebeu o uniforme, os


dois grupos voltaram-se para o General do Mar. Ishari, de
faces manchadas de lágrimas, não olhou para cima.

— Deste momento em diante, deixastes de ser


crianças. Os vossos caminhos abrem-se diante de vós. —
O General do Mar olhou para a direita. — Quatro dos
guardiões do mar tiveram um desempenho acima das
expetativas. Turosa da Casa Norte, Onren da Casa Este,
Tané da Casa Sul e Dumusa da Casa Oeste. Virai-vos para
enfrentar os nossos anciãos, para que eles vos conheçam
os nomes e as caras.

Eles assim o fizeram. Tané e os seus três


companheiros deram um passo em frente e voltaram a
pressionar a testa contra o chão.

— Erguei-vos — disse um dos dragões.

A voz fez tremer o chão. Era tão profunda, tão


grave, que no início Tané quase não a compreendeu.

Os quatro obedeceram e endireitaram as costas. O


maior dragão seiikine baixou a cabeça até ficar ao nível
dos olhos deles. Uma língua comprida saiu-lhe como um
chicote entre os dentes.

Com um grande empurrão das pernas, ele levantou


voo. Todos os aprendizes se deixaram cair ao chão, e
apenas o general ficou de pé com uma gargalhada
estrondosa.

O dragão lacustre verde-leitoso exibiu os dentes


num sorriso. Tané deu por si presa naqueles remoinhos
de olhos selvagens.
O dragão foi juntar-se aos restantes dos seus
parentes sobre os telhados da cidade. Água em carne.
Enquanto uma névoa de chuva divina fluía das suas
escamas, encharcando os humanos abaixo, um homem
seiikine levantou-se, recuperou o fôlego e exalou,
gerando uma poderosa rajada de vento.

Todos os sinos do templo tocaram em resposta.

Niclays acordou com a boca seca e uma terrível dor


de cabeça, como já acontecera milhares de vezes.
Pestanejou e esfregou o canto do olho com os nós dos
dedos.

Sinos.

Fora isso que o acordara. Havia seis anos que


estava naquela ilha e nunca ouvira um único sino. Niclays
pegou no seu cajado e levantou-se, o braço trémulo
devido ao esforço.

Deve ser um alarme. Estavam em busca de


Sulyard, vinham para os prender a ambos.
Niclays virou-se e olhou em volta, desesperado. A
sua única hipótese era fingir que o homem se tinha
escondido na casa sem o seu conhecimento.

Olhou para trás do biombo; Sulyard estava a dormir


profundamente, de frente para a parede. Bem, pelo
menos morreria em paz.

A luz do Sol era demasiado forte. Perto da pequena


casa onde vivia Niclays estava Muste, o seu assistente,
sentado sob a ameixoeira com a sua companheira
seiikine, Panaya.

— Muste — gritou Niclays — Que raio de som é


este?

Muste limitou-se a acenar. Niclays praguejou, enfiou


as sandálias e aproximou-se de Muste e Panaya,
tentando ignorar a sensação de que caminhava em
direção ao seu fim.

— Bom dia, honrada Panaya — cumprimentou em


seiikine, curvando-se.

— Erudito Niclays — respondeu ela, sorrindo com os


olhos. Envergava um vestido leve de flores brancas sobre
um fundo azul, com um bordado prateado nas mangas e
no colarinho. — Os sinos acordaram-vos?
— Sim. Permitis-me que pergunte o que significam?

— Estão a tocar para celebrar o Dia da Escolha —


explicou. — Os aprendizes mais velhos das Casas de
Instrução concluíram os seus estu­dos e foram destacados
para o corpo académico ou para a Alta Guarda do Mar.

Portanto, nada que ver com o intruso. Niclays tirou


o seu lenço e en­xugou o rosto.

— Sentis-vos bem, Roos? — perguntou Muste,


utilizando a mão para proteger os olhos do sol.

— Sabeis como abomino o verão aqui. — Niclays


voltou a guardar o lenço no colete. — O Dia da Escolha é
celebrado uma vez por ano, não é? — quis saber,
voltando-se para Panaya. — Nunca tinha ouvido os sinos.
Os sinos não, mas ouvira os tambores. Os sons
inebriantes de alegria e folia.
— Oh — disse Panaya com um sorriso mais
determinado. — Mas este é um Dia da Escolha muito
especial.
— É?
— Não sabeis, Roos? — Muste exibiu um sorriso
divertido. — Estais aqui há mais tempo do que eu.
— Não é algo que lhe pudesse ter sido contado —
respondeu Panaya com gentileza. — Sabeis, Niclays, após
a Grande Desolação, ficou acor­dado que de cinquenta
em cinquenta anos, um número de dragões seiikines
aceitaria cavaleiros humanos, para que estivéssemos
sempre preparados para lutar caso a necessidade
voltasse a surgir. Aqueles que esta manhã foram
escolhidos para a Alta Guarda do Mar tiveram essa
oportunidade e agora terão de passar pelas provas da
água para decidir quem deles será cavaleiro de dragão.
— Estou a ver — disse Niclays, interessado o
suficiente para esquecer, por um momento, o pavor de
ter Sulyard em casa. — E depois irão voar nos seus
corcéis para lutar contra piratas e contrabandistas,
presumo.
— Não são corcéis, Niclays. Os dragões não são
cavalos.
— As minhas desculpas, honrada senhora. Uma pobre
escolha de palavra.
Panaya assentiu, e pegou no pingente em forma de
dragão à volta do seu pescoço.
Tal coisa seria destruída em qualquer Reino das
Virtudes, onde já não se fazia distinção entre os antigos
dragões do Oriente e os mais jovens, wyrms cuspidores
de fogo que outrora haviam aterrorizado o munda Ambos
eram considerados malévolos. O portão do Oriente
estava fechado há tanto tempo que haviam surgido
equívocos quanto aos seus costumes.
Niclays pensava assim antes de chegar a Orisima. Na
véspera da sua partida de Mentendon, estivera meio
convencido de que estava a ser eLivros para uma terra
onde as pessoas eram servas de criaturas tão perigosas
como o Inominável.
Como se sentira assustado nesse dia. Todas as
crianças mênticas conheciam a história do Inominável
desde o momento em que adqui­riam o conhecimento da
língua. A sua própria querida mãe levara-o às lágrimas ao
descrever em pormenor o pai e senhor de todas as
bestas draconianas — aquele que se erguera do Monte
do Pavor para tra­zer caos e destruição, apenas para
acabar gravemente ferido por Sir Galian Berethnet antes
que pudesse subjugar a humanidade. Mil anos mais
tarde, o espetro do terrível dragão ainda habitava os
pesadelos de muitos.

Nesse momento, cascos trovejaram na ponte que


conduzia a Orisima, acordando Niclays dos seus
devaneios.

Soldados.

As suas entranhas transformaram-se em água.


Vinham atrás dele — e agora que o momento chegara,
sentia-se mais atordoado do que assusta­do. Se aquele
seria o dia, então que assim fosse. Era isso ou a morte
pelas mãos das sentinelas por causa das suas dívidas de
jogo.

Santo, rezou ele, não deixeis que me mije quando


chegar a hora.

Os soldados usavam túnicas verdes sob a cota de


malha. Na dianteira, claro, estava o Comandante — o
bem-parecido e sempre bem-humorado Comandante —
que se recusava a dizer o seu nome a qualquer pessoa
em Orisima. Era trinta centímetros mais alto do que
Niclays e usava sempre uma armadura completa.

O Comandante desmontou e aproximou-se da casa


de Niclays. Estava rodeado por sentinelas e tinha uma
mão apoiada no cabo da espada.

— Roos! — Um punho coberto por uma manopla


bateu à porta. — Roos, abre esta porta ou deito-a abaixo!

— Não há necessidade de partir nada, honrado


Comandante — disse Muste. — O erudito Doutor Roos
está aqui.

O Comandante virou-se. Os seus olhos escuros


foram trespassados por um brilho e caminhou em direção
a eles.

— Roos.

Niclays gostava de fingir que ninguém jamais se


havia dirigido a ele com tanto desdém, mas dizê-lo seria
mentira.

— Sois livre de me chamar Niclays, honrado


Comandante — disse ele, parecendo o mais
despreocupado que podia. — Conhecemo-nos há muito
tempo...
— Silêncio — disparou o Comandante. Niclays
fechou a boca. — Ontem à noite, as minhas sentinelas
encontraram o portão de desem­barque aberto. Um navio
pirata foi avistado aqui perto. Se algum de vós esconder
intrusos ou mercadorias contrabandeadas, falai agora, e
talvez o dragão mostre misericórdia.

Panaya e Muste não disseram nada. Niclays, por


sua vez, travava uma violenta batalha interna. Sulyard
não tinha onde se esconder. Seria me­lhor declarar o que
fizera?

Mas antes que pudesse decidir-se, o Comandante


gesticulou para as suas sentinelas.

— Revistem as casas.

Niclays susteve a respiração.

Havia um pássaro em Seiiki com um canto que


lembrava os solu­ços de um bebé prestes a irromper em
pranto. Para Niclays, tornara-se um símbolo torturante da
sua vida em Orisima. A lamúria que nun­ca se
transformava em grito. A espera pelo golpe que nunca
chegava. Enquanto as sentinelas lhe revistaram a casa,
aquele pássaro maldito começou a cantar, e foi tudo o
que Niclays conseguiu ouvir.
Quando regressaram, as sentinelas estavam de
mãos vazias.

— Ninguém aqui — disse uma deles.

Niclays fez tudo o que pôde para não cair de


joelhos. O Comandante olhou para ele por um longo
momento, o seu rosto uma máscara impe­netrável antes
de passar para a rua seguinte.

E o pássaro continuou a cantar. Hic-hic-hic.


4
Oeste

Algures no Palácio de Ascalon, os ponteiros pretos


de um relógio de vidro de leite aproximavam-se do meio-
dia.

A Câmara de Presença estava apinhada para a


visita dos mênticos, como era costume quando os
embaixadores estrangeiros se deslocavam a Inys. As
janelas estavam abertas para deixar entrar a brisa que
carregava um aroma a madressilva, embora isso pouco
fizesse para atenuar o calor. Muitos tinham as
sobrancelhas vidradas de suor, e havia leques de penas
por todo o lado, dando a impressão de que a sala estava
cheia de pássaros.

Ead estava no meio da multidão com as outras


Damas da Câmara Privada. Margret Beck estava à sua
direita. As damas de honor estavam diante delas, do
outro lado do tapete. Truyde utt Zeedeur estava a ajus­tar
o carcanete. Ead nunca iria compreender o porquê de as
pessoas no Ocidente terem de usar tantas camadas de
roupa no verão.
Os murmúrios começaram a espalhar-se pelo
enorme salão. No seu trono de mármore, numa posição
elevada, Sabran a Nona observou os seus súbditos.

A rainha de Inys era a imagem cuspida da mãe, e


da mãe antes dela, e assim por diante durante gerações.
A semelhança era assombrosa. Tal como os seus
antepassados, possuía cabelo preto e olhos de um verde
lúcido que pareciam estalar à luz do Sol. Dizia-se que,
enquanto a sua linhagem perdurasse, o Inominável
jamais poderia acordar do seu sono.

Sabran observava os seus súbditos à distância, sem


olhar particular­mente para ninguém Tinha vinte e oito
anos, mas os seus olhos conti­nham a sabedoria de uma
mulher muito mais velha.

Para a ocasião, optara por um traje que


representava a riqueza do Rainhado de Inys. O seu
vestido era de cetim preto, no estilo mêntico, com uma
fenda na cintura que revelava um peitilho tão pálido
como a sua pele, bordado com fio prateado e pérolas.
Uma coroa de diamantes distinguia-lhe o sangue real.

As trombetas anunciaram a chegada da comitiva


mêntica. Sabran sussurrou algo à senhora Arbella Glenn,
Viscondessa de Suth, que sorriu e pousou a mão
manchada pela idade sobre a sua.
Primeiro entraram os porta-estandartes, exibindo o
Cisne Prateado de Mentendon sobre um fundo preto, com
a Espada da Verdade apon­tada para baixo entre as suas
asas.

Em seguida, vieram os criados e os guardas, os


intérpretes e os oficiais. Por fim, o Lorde Oscarde, Duque
de Zeedeur, entrou na sala a um rit­mo acelerado,
acompanhado pelo embaixador residente de Mentendon.
Zeedeur era corpulento, tinha barba e cabelo ruivo, e a
ponta do nariz ruborizada. Ao contrário da sua filha, tinha
os olhos cinzentos de Vatten.

— Vossa Majestade — saudou com uma reverência.


— Que honra é voltar a ser recebido na vossa corte.

— Bem-vindo, Vossa Graça — disse Sabran. A sua


voz era baixa, plena de autoridade. A rainha estendeu a
mão a Zeedeur, que subiu os degraus para beijar o anel
da coroação. — É um alívio para o nosso coração ter-vos
de volta a Inys. Fizestes boa jornada?

Ead ainda achava o nosso chocante. Em público,


Sabran falava por si e pelo seu ancestral, o Santo.

— Oh, Majestade. — A expressão de Zeedeur tornou-


se séria. — Fomos atacados por um wyvern adulto nas
Planícies — disse Zeedeur, a expressão séria. — Os meus
arqueiros derrubaram-no, mas se estivesse mais alerta,
poderia ter havido derramamento de sangue.
Murmúrios. Ead observou os olhares de choque que
varreram o cómodo.
— Outra vez — murmurou Margret. — Dois wyverns
em tão pouco tempo.
— Preocupa-nos por demais ouvi-lo — disse Sabran
ao embaixador. — Os nossos melhores cavaleiros
errantes escoltar-vos-ão de volta a Pedra Alta.
Trataremos que o vosso regresso seja mais seguro.
— Obrigado, Majestade.
— Agora, deveis estar ansioso por ver a vossa filha.
— Sabran olhou para a senhora em questão. —
Aproximai-vos, criança.
Truyde avançou sobre o tapete e fez uma vénia.
Quando se levantou, o pai abraçou-a.
— Minha filha — saudou-a, tomando-lhe as mãos nas
suas, sorrindo como se o rosto se fosse quebrar. — Estás
esplêndida. E como cresceste! Diz-me, como te tem Inys
tratado?
— Muito melhor do que eu mereço, pai — respondeu
Truyde.
— E o que te faz dizer isso?
— Esta corte é tão grandiosa — disse ela, apontando
para o teto abo­badado. — As vezes sinto-me muito
pequena e insignificante, como se até os tetos fossem
mais magníficos do que eu alguma vez serei.
Gargalhadas turbulentas encheram a câmara.
— Tão espirituosa — sussurrou Linora a Ead. — Não é?
Ead fechou os olhos. Esta gente...
— Disparate — disse Sabran a Zeedeur. — A vossa
filha é muito que­rida na corte. Será uma companheira
digna para quem quer que o seu coração escolha.
Truyde baixou o olhar e sorriu. Ao seu lado, Zeedeur
riu-se.
— Ah, Vossa Majestade, temo que Truyde tenha um
espírito de­masiado livre para casar tão jovem, por mais
que eu deseje um neto. Agradeço-vos por cuidardes tão
bem da minha filha.
— Não são necessários agradecimentos. — Sabran
agarrou os braços do seu trono. — É sempre um prazer
receber os nossos amigos do Reino das Virtudes na corte.
No entanto, estamos curiosos em saber o que vos trouxe
até aqui de Mentendon.
— O meu senhor de Zeedeur traz uma proposta, Vossa
Majestade. — Desta vez, foi o embaixador residente de
Mentendon a falar. — Uma proposta que, confiamos, irá
interessar-vos.
— De facto — confirmou Zeedeur, aclarando a voz. —
Sua Alteza Real, Aubrecht o Segundo, Grão-Príncipe do
Estado Livre de Mentendon, há muito que vos admira,
Vossa Majestade. Ele ouviu falar da vossa cora­gem, da
vossa beleza e inabalável devoção às Seis Virtudes.
Agora que o seu falecido tio-avô foi sepultado, ele anseia
por uma aliança mais forte entre os nossos países.
— E como tenciona Vossa Alteza Real forjar tal
aliança? — perguntou Sabran.
— Por meio de casamento, Majestade.
Todas as cabeças se voltaram para o trono.
Ao engravidar de um soberano Berethnet, precedia
sempre um pe­ríodo de fragilidade. A sua dinastia era
uma linha de sucessão feminina, uma filha para cada
rainha. Os seus súbditos diziam que esta era a prova da
sua santidade.
Esperava-se que todas as rainhas de Inys se
casassem e gerassem uma descendente o mais depressa
possível, para evitar a possibilidade de morrerem sem
uma herdeira. Em qualquer país seria um risco, dado que
poderia mergulhar o reino numa guerra civil, mas os
inysh acredita­vam que a queda da Casa de Berethnet
também causaria o regresso do Inominável e a
subsequente destruição do mundo.
Até à data, porém, Sabran recusara todos os pedidos
de casamento.
A rainha encostou-se ao trono, escrutinando
Zeedeur. E, como sem­pre, a sua expressão era
impenetrável.
— Meu caro Oscarde — disse ela. — Por grande
honra que nos afigu­re, parece-nos necessário recordar-
vos de que já sois casado.
A corte desatou a rir. Zeedeur, que antes parecia
nervoso, abriu um sorriso.
— Soberana Majestade! — Riu-se. — É o meu senhor
que procura a vossa mão.
— Continuai, por favor — disse Sabran, com a mais
leve sombra de um riso.
O wyvern foi esquecido. Claramente sentindo-se
confiante, Zeedeur deu mais um passo em frente.
— Senhora — começou —, como sabeis, a vossa
antepassada, a Rainha Sabran a Sétima, casou com o
meu antepassado Haynrik Vatten, que era Regente de
Espera de Mentendon enquanto estava sob domí­nio
estrangeiro. No entanto, desde que a Casa de Lievelyn
expulsou o Vatten, que não existe nenhuma ligação
formal entre os nossos países, exceto a religião que
partilhamos.
Sabran ouviu-o com um olhar de indiferença que em
nenhum mo­mento atravessou a fronteira do tédio ou do
desdém.

— O Príncipe Aubrecht está dente de que o pedido


do seu falecido tio-avô foi recusado por Sua Majestade...
e, oh, também pela Rainha-Mãe — Zeedeur clareou a
garganta —, mas o meu senhor acredita ofe­recer um tipo
diferente de companhia. Ele também acredita que
haveria muitas vantagens numa nova aliança entre Inys
e Mentendon. Somos o único país com uma presença
comercial no Oriente, e agora que Yscalin caiu em
pecado, ele acredita que uma aliança que una os dois
povos numa só fé é essencial.

A sua declaração levantou alguns murmúrios. Não


há muito tempo, o Reino de Yscalin ao sul também fora
parte do Reino das Virtudes. Antes de tornarem o
Inominável no seu novo deus.
— O Grão-Príncipe gostaria de lhe dar um presente
como sinal do seu afeto, se Vossa Majestade tiver a
gentileza de o aceitar — acrescen­tou Zeedeur. — Ele
ouviu falar da sua devoção às pérolas do Mar do Sol
Trémulo.

Ele estalou os dedos. Um criado mêntico


aproximou-se do trono com uma almofada de veludo e
ajoelhou-se. Na almofada havia uma ostra aberta e no
seu interior uma pérola negra iridescente, grande como
uma cereja, com matizes verdes. Brilhava como o aço de
uma espada ilumi­nada pelo sol.

— Esta é a melhor pérola trémula que possui,


colhida na costa de Seiiki — disse Zeedeur. — Vale mais
do que o navio que a transportou sobre o Abismo.

Sabran inclinou-se para a frente. O criado segurou a


almofada um pouco mais alto.

— É verdade que gostamos de pérolas trémulas, e


que são muito raras concordou a rainha —, e aceitá-la-
emos de bom grado. Mas isso não significa que
aceitamos a sua proposta.

— Claro, Vossa Majestade. Um presente de um


amigo do Reino das Virtudes, nada mais.

— Muito bem.
O olhar de Sabran voltou-se para a senhora Roslain
Crest, primeira dama da rainha, que usava um vestido de
seda esmeralda com renda branca. O seu broche exibia
um par de cálices, como todos aqueles que tinham o
Cavaleiro da Justiça como patrono, mas os dela eram
dou­rados, mostrando que era uma descendente direta
daquele cavaleiro.

Roslain fez um gesto pouco percetível a uma das


damas de honor, que se apressou a pegar na almofada.

— Embora estejamos tocados pelo vosso presente,


o vosso mestre deve saber do nosso desdém pelas
práticas heréticas dos seiikines — salientou Sabran. —
Não desejamos estabelecer diálogo algum com o Oriente.

— Claro — respondeu Zeedeur. — Ainda assim, o


nosso mestre acre­dita que a origem da pérola nada faz
para apagar a sua beleza.

— Talvez o vosso mestre tenha razão — disse


Sabran, encostando-se ao trono. — Ouvimos dizer que
Sua Alteza Real estava a treinar para sanctário antes de
se tornar Grão-Príncipe de Mentendon. Falai-nos das suas
outras... qualidades.

Ouviram-se gargalhadas nervosas na corte.


— O Príncipe Aubrecht é muito inteligente e gentil,
senhora, pos­suidor de grande perspicácia política —
disse Zeedeur. — Tem trinta e quatro anos, e um cabelo
ruivo mais macio do que o meu. Toca muito bem o alaúde
e dança com grande vigor.

— Com quem, perguntamo-nos?

— Muitas vezes com as suas nobres irmãs,


Majestade. Ele tem três: a Princesa Ermuna, a Princesa
Bedona e a Princesa Betriese. Todas elas estão ansiosas
por vos conhecer.

— Ele tem o hábito da reza?

— Três vezes por dia. É especialmente devoto ao


Cavaleiro da Generosidade, que é o seu patrono.
— O vosso príncipe tem algum defeito, Oscarde?
— Ah, Majestade, todos os mortais têm defeitos...
exceto vós, claro.
A única falha do meu senhor é preocupar-se tanto
com o seu povo.
A seriedade regressou ao rosto de Sabran.
— Nisso — disse ela — ele já é parecido connosco.
Murmúrios espalharam-se como fogo pelo salão.
— A nossa alma foi tocada. Iremos considerar o
pedido do vosso mestre. — Irrompeu uma explosão de
aplausos hesitantes. — O nosso Conselho das Virtudes
tomará as providências necessárias para prosse­guir com
este assunto. Mas antes, ficaríamos honrados se vós e a
vossa comitiva vos juntásseis a nós para um banquete.
Zeedeur fez outra reverência.
— A honra seria nossa, Vossa Majestade.

Toda a corte se uniu num movimento ondulante de


saudações. Sabran desceu as escadas, seguida pelas
suas Damas do Leito Real e, um pouco mais atrás, pelas
damas de honor.

Ead sabia que Sabran nunca se casaria com o


Príncipe Vermelho. A rainha fazia sempre aquilo. Prendia
os seus pretendentes como peixes numa linha, um após
o outro, aceitando presentes e lisonjas, mas nunca
concedendo a sua mão.

Enquanto os cortesãos se dispersavam, Ead saiu


por outra porta com as suas colegas. A senhora Linora
Payling, loira e de faces rosadas, era uma dos catorze
filhos do conde e condessa de Monte Payling. O seu
passatempo preferido era espalhar mexericos. Ead
considerava-a um aborrecimento constante.

A senhora Margret Beck, por outro lado, era uma


boa amiga havia muito tempo. Juntara-se ao serviço da
rainha três anos antes e fizera amizade com Ead tão
rapidamente como o seu irmão Loth, que era seis anos
mais velho. Ead logo descobriu que ela e Margret tinham
o mesmo sentido de humor, que lhes bastava um olhar
para saber o que a outra estava a pensar, e que
partilhavam as mesmas opiniões sobre a maioria das
pessoas na corte.

— Temos de trabalhar depressa hoje — disse


Margret. — Sabran espera que marquemos presença no
banquete.

Margret era muito parecida com o irmão, com a sua


pele de ébano e feições marcantes. Passara-se uma
semana desde o desaparecimento de Loth, e as suas
pálpebras ainda estavam inchadas.

— Um pedido — disse Linora enquanto caminhavam


pelo corre­dor, fora do alcance dos ouvidos do resto da
corte. — E do Príncipe Aubrecht! Pensei que ele era
demasiado devoto para casar.

— Nenhum príncipe é demasiado devoto para casar


com a rainha de Inys — declarou Ead. — É ela quem é
demasiado devota para se casar.

— Mas o reino deve ter uma princesa.

— Linora — disse Margret com firmeza. — Um


pouco de temperança, por favor.
— Bem, mas é assim que as coisas são.

— A Rainha Sabran ainda não tem trinta anos. Tem


tempo de sobra.

Estava claro para Ead que elas não tinham ouvido


falar da tentativa de assassinato, ou Linora pareceria
mais séria. Embora também fosse verdade que Linora
nunca parecia séria. Para ela, as tragédias eram apenas
uma ocasião para mexericos.
— Ouvi dizer que o Grão-Príncipe é incrivelmente rico
— continuou ela, inflexível. Margret suspirou. — E
podíamos tirar proveito do seu posto de comércio no
Oriente. Imaginem ter todas as pérolas do Mar do Sol
Trémulo, a melhor prata, especiarias e joias...
— A Rainha Sabran despreza o Oriente, e assim
devemos fazer todos nós — disse Ead. — Eles são
adoradores de wyrms.
— Inys não precisa de negociar diretamente, tonta.
Podemos comprar todas essas coisas aos mênticos.
Ainda assim, era uma troca corrupta. Os mênticos
negociavam com o Oriente, e o Oriente idolatrava os
wyrms.
— O que me preocupa são as suas afinidades —
salientou Margret. — O Grão-Príncipe esteve prometido a
Donmata Marosa durante algum tempo. Uma mulher que
é agora a princesa de um reino draconiano.
— Sim, mas esse noivado foi dissolvido há muito
tempo. Além disso — contrapôs Linora, atirando o cabelo
para trás —, duvido de que ele gos­tasse muito dela. Ele
deve ter sido capaz de ver o mal no coração dela.
As portas da Câmara Privada, Ead virou-se para as
outras duas mulheres.
— Senhoras — disse —, cuidarei dos nossos deveres
hoje. Deveriam ir para o banquete.
Margret franziu o sobrolho.
— Sem ti?
— Ninguém dará pela falta de uma camareira. — Ead
sorriu. — Vão as duas. E aproveitem o banquete.
— Que o Cavaleiro da Generosidade te abençoe, Ead.
— Linora já estava a meio do corredor. — Quanta
bondade!
Assim que Margret estava prestes a segui-la, Ead
agarrou-a pelo cotovelo.
— Tiveste notícias do Loth? — murmurou.
— Nada ainda. — Margret tocou-lhe no braço. — Mas
algo se passa. O Falcão da Noite convocou-me esta noite.
O Lorde Seyton Combe. O próprio espião mestre.
Quase todos o cha­mavam Falcão da Noite porque ele
caçava as suas presas sob o manto da escuridão. Não
conformistas, senhores sedentos de poder, pessoas que
namoriscavam demasiado com a rainha... ele podia fazer
desaparecer qualquer problema.
— Achas que ele sabe de alguma coisa? —
perguntou Ead baixinho.

— Parece que vamos descobrir em breve —


respondeu Margret, que apertou a sua mão antes de ir
atrás de Linora.

Quando Margret Beck sofria, sofria sozinha. Ela


detestava ser um far­do para outras pessoas. Até para os
seus amigos mais próximos.

Ead nunca procurara estar entre esses amigos.


Quando chegara a Inys, estava determinada a manter-se
o mais discreta possível; era a melhor forma de proteger
o seu segredo. No entanto, crescera numa sociedade
muito unida, e não demorou a começar a sentir-se
afetada pela falta de companhia e conversa. Jondu, sua
irmã em tudo menos no sangue, es­tivera ao seu lado
quase desde que nascera, e ficar repentinamente sem
ela deixara Ead desolada. Assim, quando os irmãos Beck
lhe ofereceram a sua amizade, ela cedeu, e não se
arrependia.

Voltaria a ver Jondu quando finalmente fosse


chamada para casa, mas perderia Loth e Margret Ainda
assim, se o silêncio do Priorado conti­nuasse, esse seria
um dia que demoraria a chegar.

O Quarto de Leito Real do Palácio de Ascalon tinha


tetos altos, pa­redes claras, piso de mármore e uma vasta
cama de dossel no centro. As almofadas e a colcha eram
de seda marfim com brocado, os lençóis eram de linho
mêntico da mais alta qualidade e havia dois conjuntos de
cortinas, uma leve e outra pesada, usadas de acordo com
a quantidade de luz que Sabran desejava.
Ao pé da cama repousava uma cesta de vime, e o
pênico estava ausen­te do seu armário. Parecia que a
Lavadeira Real regressara ao trabalho.

Os criados tinham estado tão ocupados com os


preparativos para a vi­sita dos mênticos que a tarefa de
despir a cama fora adiada. Ead abriu as portas da
varanda para deixar sair o calor abafado, removeu os
lençóis e a colcha e deslizou as mãos sobre os colchões
de penas em busca de quaisquer lâminas ou frascos de
veneno que pudessem ter sido cosidos no interior.

Mesmo sem Margret e Linora para a ajudar,


trabalhou com rapi­dez. Enquanto as damas de honor
estivessem na festa, a Câmara do Cofre estaria vazia. Era
o momento ideal para investigar a suspeita de
familiaridade entre Truyde utt Zeedeur e Triam Sulyard, o
escudeiro desaparecido. Valia a pena manter-se a par de
tudo o que se passava na corte, desde as cozinhas até ao
trono. Apenas com conhecimento abso­luto seria capaz de
proteger a rainha.

Truyde era de sangue nobre, herdeira de uma


fortuna. Não haveria motivo para se interessar
demasiado por um escudeiro sem título. No en­tanto,
quando Ead insinuara uma relação entre ela e Sulyard,
Truyde pa­recera assustada, como um rato-de-carvalho
apanhado com uma bolota.

Ead conhecia o cheiro de um segredo. Usava-o


como um perfume.

Depois de garantir a segurança do Quarto de Leito


Real, deixou a cama a arejar e dirigiu-se para o edifício
que albergava a Câmara do Cofre. Oliva Marchyn estaria
no Salão de Banquetes, mas ela tinha um espião. Ead
subiu as escadas e atravessou a soleira.

— Ora — resmungou uma voz. — Quem vem aí?

Ela parou. Ninguém mais a teria ouvido, mas o


espião tinha uma audição aguçada.

— Intruso. Quem é?
— Pássaro maldito — murmurou Ead, sentindo uma
gota de suor a escorrer-lhe pelas costas. Levantou a saia
e puxou uma adaga da bainha amarrada à barriga da
perna.
O espião estava sobre um suporte do lado de fora da
porta. Quando Ead se aproximou, ele inclinou a cabeça.
— Intrusa — repetiu ele em tom sinistro. — Donzela
maldita. Fora do meu palácio.
— Ouve-me bem. — Ead mostrou a adaga, fazendo-o
arrepiar as penas. — Podes pensar que tens poder aqui,
mas, mais cedo ou mais tarde, Sua Majestade irá querer
uma tarte de pombo. Duvido de que ela repare se eu te
incluir no recheio.
Tinha de admitir que era um pássaro bonito. Um
mimético de arco-íris. As suas penas eram um borrão de
azul e verde e laranja, e a sua cabeça de um rosa
profundo. Seria uma pena ter de o cozinhar.
— Pagamento — disse ele com um toque de uma
garra.
Aquele pássaro possibilitara muitos encontros ilícitos
quando Ead era dama de honor. Ela guardou a adaga,
crispou os lábios e enfiou a mão na bolsa de seda da
faixa.
— Toma — disse, colocando três confites no seu
prato. — O resto dou-te se te comportares.

Ele estava demasiado ocupado a bicar os doces


para responder.

A porta para a Câmara do Cofre nunca estava


fechada. As jovens se­nhoras não deviam ter nada a
esconder. Lá dentro, as cortinas estavam corridas, o fogo
extinto e as camas feitas.

Havia apenas um lugar para uma dama de honor


inteligente esconder os seus tesouros secretos.

Ead levantou o tapete e usou a sua adaga para


erguer a tábua solta do soalho. Por baixo estava uma
caixa de carvalho polido coberta de pó. Ead pousou-a
sobre o joelho.

No seu interior, encontrava-se uma coleção de itens


que Oliva teria de bom grado confiscado. Um livro grosso
com o símbolo alquímico do ouro inscrito na capa. Uma
pena e um fiasco de tinta. Pedaços de per­gaminho. Um
pingente esculpido em madeira. E um monte de cartas,
amarrado com uma fita.

Ead desenrolou uma. Embora a tinta estivesse


borrada, pôde ver que datava do verão anterior.

Precisou de alguns momentos para decifrar o


código. Era ligeiramen­te mais sofisticado do que os
usados na maior parte das cartas de amor da corte, mas
Ead passara a infância a aprender a decifrar códigos.

Para vós, dizia a carta, em caligrafia descuidada.


Comprei-o no Ponto Albatroz. Usai-o de vez em quando e
pensai em mim. Voltarei a escrever em breve. Ead pegou
noutra, escrita em papel mais grosso. Esta tinha mais de
um ano. Perdoai-me se for demasiado direto, minha
senhora, mas não penso em mais nada senão em vós.
Outra. Meu amor. Encontremo-nos por baixo da torre do
relógio, depois das orações.
Não demorou muito a perceber que Truyde e
Sulyard estavam a ter um caso e que haviam consumado
o seu desejo. O luar de sempre na água. Mas Ead fez
uma pausa para refletir sobre algumas das frases.

O nosso empreendimento vai mudar o mundo. Esta


missão é vontade divina. Não seria possível para dois
jovens apaixonados descrever a sua apaixonada história
como uma «missão» (a menos, claro, que não fossem tão
bons nas relações como na retórica). Devemos começar
a Jazer planos, meu amor.

Ead continuou a folhear as conversas de almofada


e as charadas até encontrar uma carta datada do início
da primavera, quando Sulyard já havia desaparecido. A
tinta estava manchada.

Perdoai-me. Tive de partir. Em Pedra Alta, falei com


uma marinheira e ela fez-me uma oferta que não pude
recusar. Sei que planeávamos partir juntos, e talvez me
odieis para o resto das nossas vidas, mas í melhor assim,
meu amor. Podereis ajudar de onde estiverdes, na corte.
Quando enviar notícias do meu sucesso, convencei a
rainha da necessidade do nosso empreendimento. Fazei-
a perceber o perigo.
Queimai esta carta. Não permitais que ninguém
descubra o que estamos a fazer até o termos Jeito. Um
dia, celebrar-nos-ão como lendas, Truyde.
***

Pedra Alta. O maior porto de Inys e a sua principal


porta de entrada para o continente. Então, Sulyard fugira
num navio.
Havia algo mais por baixo da tábua. Um livro fino,
encadernado em couro. Ead passou um dedo por cima do
título, escrito no que era in­questionavelmente o alfabeto
oriental.
Truyde não poderia ter encontrado aquele livro numa
biblioteca de Inys. Buscar o conhecimento do Oriente era
heresia. Se alguém o en­contrasse, ela receberia algo
muito pior do que uma reprimenda.
— Alguém se aproxima — resmungou o espião.
Uma porta fechou-se lá em baixo. Ead escondeu o
livro e as cartas sob o manto e devolveu a caixa ao seu
esconderijo.
Passos ecoaram pelas vigas. Ead pôs a tábua no
lugar. Quando passou pelo poleiro do pássaro, verteu o
resto dos confites na tigela.
— Nem uma palavra — sussurrou ao espião — ou
transformarei essas lindas penas numa almofada.
O espião soltou uma gargalhada sombria enquanto
Ead saltava pela janela.

***
Estavam no jardim, deitados lado a lado sob a
macieira, como costu­mavam fazer no alto verão. Ao seu
lado, um jarro de vinho da Cozinha Real e um prato de
queijo temperado e pão acabado de cozer. Ead es­tava a
contar-lhe de uma partida que as damas de tinham
pregado à senhora Oliva Marchyn, e ele estava a rir-se
tanto que lhe doía a barriga. Quando contava histórias,
Ead era parte tola e parte poetisa.
O sol atraíra-lhe as sardas do nariz. O seu cabelo
preto estava espalha­do na relva. Além do brilho do sol,
ele podia ver a torre do relógio acima deles, e os vitrais
nos claustros, e as maçãs nos galhos. Tudo estava bem.

— Meu senhor.

A memória despedaçou-se. Loth olhou para cima e


viu um homem desdentado.

O vestíbulo da estalagem estava cheio de


camponeses. Algures, um lutenista tocava uma balada
sobre a beleza da Rainha Sabran ao acom­panhamento de
um alaúde. Uns dias antes, acompanhara-a numa ca­‐
çada. Agora, estava a quilómetros de distância, ouvindo
uma música que falava dela como se ela fosse um mito.
Tudo o que sabia era que estava a caminho de uma
morte quase certa em Yscalin e que os Duques
Espirituais o odiavam o suficiente para o terem enviado
para lá.

Como era fácil desmoronar uma vida em segundos.


O estalajadeiro deixou sobre a mesa uma bandeja
com duas tigelas de guisado, queijo de corte bruto e um
pão de cevada.

— Desejam mais alguma coisa, meus senhores?

— Não — disse Loth. — Obrigado.

O estalajadeiro fez uma vénia. Loth duvidava de


que estivesse habituado a receber os nobres filhos de
Condes Provinciais no seu estabelecimento.

No outro banco, Lorde Kitston Glade, seu querido


amigo, partia o pão com os dentes.

— Oh, por favor — atirou, cuspindo-o. — Duro como


um livro de orações. Atrevo-me a provar o queijo?

Loth tomou um gole do seu hidromel, esperando


que estivesse frio.

— Se a comida na tua província é assim tão má —


disse ele —, talvez devesses falar com o senhor teu pai.

Kit resfolegou.

— De facto, ele é apreciador deste tipo de


monotonia.

— Devias estar grato por esta refeição. Duvido de


que nos deem algo melhor no navio.
— Eu sei, eu sei. Sou um nobre de mãos delicadas
que dorme em colchões de penas de cisne, adora
cortesãs além da conta e se empanturra de doces. A
corte arruinou-me. Foi o que o pai me disse quando me
tornei poeta. — Kit remexeu o queijo com cautela. — O
que me lembra que deveria escrever algo enquanto
estamos aqui, um poema pastoral, talvez. Não é
encantador este meu povo?

— Deveras — respondeu Loth.

Não podia fingir despreocupação naquele dia. Kit


estendeu a mão sobre a mesa e agarrou-lhe o ombro.
— Fica comigo, Arteloth — disse ele. Loth grunhiu. O
cocheiro disse-te o nome do nosso capitão?
— Harman, creio.
— Não queres dizer Harlowe? — Loth encolheu os
ombros. — Oh, Loth, deves ter ouvido falar de Gian
Harlowe. O pirata! Toda a gente em Ascalon...
— Acontece que eu não sou toda a gente em Ascalon.
— Loth esfre­gou a ponta do nariz. — Por favor, esclarece-
me sobre que tipo de patife nos leva para Yscalin.
— Um patife lendário — disse Kit em voz baixa. —
Harlowe veio para Inys ainda criança, vindo de terras
distantes. Juntou-se à marinha aos nove anos e aos
dezoito já era capitão de um navio... mas mordeu o anzol
da pirataria, como tantos jovens oficiais promissores
fazem. — Verteu mais hidromel nas suas canecas. — O
homem navegou todos os mares do mundo, mares que
nenhum cartógrafo alguma vez mencio­nou. Ao saquear
navios, dizem que aos trinta anos acumulou riquezas
para rivalizar com os Duques Espirituais.
Loth bebeu mais uma vez. Tinha a sensação de que
precisaria de ou­tra caneca antes de partirem.
— Pergunto-me então, Kit — começou —, porque nos
leva esse infa­me fora da lei para Yscalin.
— É provável que seja o único capitão corajoso o
suficiente para fazer a travessia. É um homem sem medo
— respondeu Kit. — A Rainha Rosarian favorecia-o, sabes.
A mãe de Sabran. Loth ergueu os olhos, finalmente
interessado.
— A sério?
— Sim. Dizem que ele estava apaixonado por ela.
— Espero que não estejas a sugerir que a Rainha
Rosarian foi infiel ao Príncipe Wilstan.
— Arteloth, meu amigo carrancudo do norte, eu nunca
disse que ela retribuía o amor — disse Kit com
serenidade. — Mas gostava do ho­mem o suficiente para
lhe conceder o maior navio blindado da sua frota, ao qual
ele deu o nome de Rosa Eterna. Agora, ele denomina-se
corsário impunemente.
— Ah. Corsário. — Loth soltou uma leve gargalhada.
— O título mais procurado em todo o mundo.

— A sua tripulação capturou vários navios yscali


nos últimos dois anos. Duvido de que lhes agrade a
nossa chegada.

— Imagino que sejam muito poucas as coisas que


agradam aos yscals hoje em dia.
Os dois homens permaneceram sentados em
silêncio por algum tem­po. Enquanto Kit comia, Loth
olhava para fora da janela.

Acontecera na calada da noite. Lacaios vestindo o


livro alado de Lorde Seyton Combe entraram nos seus
aposentos e ordenaram que ele os acom­panhasse. Sem
dar por isso, fora enfiado numa carruagem com Kit —
que também havia marchado dos seus aposentos sob o
manto da escuridão — e fora-lhe mostrado um bilhete a
dar conta das suas circunstâncias.

Lorde Arteloth Beck,


Vós e Lorde Kitston sois agora embaixadores
residentes de Inys no Reino Draconiano de Yscalin. Os
yscals foram informados da vossa chegada.
Fazei perguntas sobre o último embaixador o
Duque da Temperança. Observai a corte de Vetalda. Mais
importante ainda, descobri o que eles estão a planear e
se pretendem montar uma invasão a Inys.
Pela rainha e pelo país.

O bilhete fora-lhe arrancado das mãos em poucos


instantes e, prova­velmente, levado para ser queimado.
O que Loth não conseguia entender era o porquê.
Porque estava ele, dentre todas as pessoas, a ser
enviado para Yscalin. Inys precisava de saber o que
estava a acontecer em Cárscaro, mas ele não era um
espião.

O desespero pesava-lhes nas costas, mas não podia


deixar que isso o prendesse. Não estava sozinho.

— Kit — disse. — Perdoa-me. Foste forçado a juntar-


te a mim no meu exílio, e tenho sido uma péssima
companhia.

— Não ouses pedir-me desculpa. Sempre gostei de


aventura. — Kit alisou os seus caracóis loiros com as
duas mãos. — Já que finalmente te dignaste falar, seria
propício discutirmos a nossa... situação.

— Não. Não agora, Kit. Está feito.

— Não deves pensar que a Rainha Sabran ordenou


o teu banimento — disse Kit com firmeza. — Garanto-te,
tudo isto foi organizado sem o seu conhecimento. Combe
ter-lhe-á contado que saíste da corte por vontade
própria, e ela terá dúvidas sobre o seu espião mestre.
Deves contar-lhe a verdade — insistiu. — Escreve-lhe.
Revela-lhe o que eles fizeram e...

— Combe lê todas as cartas antes que cheguem a


ela.

— Não poderias usar algum código?

— Não há código que escape ao Falcão da Noite. Há


um motivo para Sabran tê-lo nomeado seu espião
mestre.

— Então escreve à tua família. Pede-lhes ajuda.

— Não lhes será concedida uma audiência com


Sabran a menos que passem por Combe. Ainda que
consigam — disse Loth —, nessa altura será tarde demais
para nós. Já estaremos em Cárscaro.

— Eles ainda deviam saber onde estás. — Kit


abanou a cabeça. — Santo, começo a achar que queres ir
embora.

— Se os Duques Espirituais acreditam que sou a


melhor pessoa para descobrir o que aconteceu em
Yscalin, então talvez seja.

— Oh, vá lá, Loth. Sabes o motivo disto. Toda a


gente tentou avisar-te.
Loth esperou com a testa franzida. Com um suspiro,
Kit esvaziou a sua caneca e inclinou-se para mais perto.

— A Rainha Sabran ainda não se casou —


murmurou. Loth ficou tenso. — Se os Duques Espirituais
lhe favorecem um casamento estran­geiro, a tua presença
ao lado dela... bem, isso complica as coisas.

— Sabes que a Sab e eu nunca...

— O que eu sei é menos importante do que o que o


mundo vê — afir­mou Kit. — Permite-me ceder a uma
pequena alegoria. Arte. A arte não é um grande ato de
criação, mas muitos pequenos atos. Quando lês um dos
meus poemas, não consegues ver as semanas de
trabalho cuidadoso que levei para o construir: o
pensamento, as palavras riscadas, as páginas que
queimei por nojo. Tudo o que vês, no final, é o que eu
quero que vejas. É assim que funciona a política.

Loth franziu a testa.

— Para garantir uma herdeira, os Duques


Espirituais devem pintar um certo quadro da corte inysh
e da sua rainha elegível — continuou Kit — Se
acreditaram que a tua intimidade com a Rainha Sabran
estra­garia essa imagem, dissuadiria pretendentes
estrangeiros, isso explicaria o porquê de te terem
escolhido para esta missão diplomática específica.
Precisavam que te fosses embora, por isso... apagaram-
te do quadro.

Outro silêncio. Loth apertou os dedos cheios de


anéis e encostou a testa contra eles.

Que grande tolo.

— Agora, se o que sinto estiver correto, a boa


notícia é que podere­mos voltar sorrateiramente à corte
assim que a Rainha Sabran se ca­sar — disse Kit — Eu
digo que vamos aguentar as próximas semanas,
encontrar o pobre velho Príncipe Wilstan, se for possível,
e então voltar para Inys por todos os meios necessários.
Combe não nos impedirá, as­sim que tenha o que quer.

— Esqueces-te de que, se voltarmos, seremos


capazes de expor os seus planos a Sabran. Ele tê-lo-ia
considerado. Não conseguiremos aproximar-nos dos
portões do palácio.

— Podemos escrever a Sua Graça com


antecedência. Faz-lhe uma oferta. O nosso silêncio, e em
troca ele deixar-nos-á em paz.

— Não posso ficar calado — replicou Loth. — A Sab


deve saber se o seu Conselho das Virtudes conspira pelas
suas costas. O Combe sabe que lhe vou contar. Acredita
em mim, Kit. Ele quer que fiquemos em Cárscaro para
sempre. Os seus olhos estão na corte mais perigosa do
Ocidente.

— Maldito seja. Encontraremos um caminho para


casa — garantiu Kit. — Não é isso que o Santo nos
promete a todos?

Loth esvaziou a caneca.

— Por vezes, és muito sábio, meu amigo. —


Suspirou. — Só posso imaginar como a Margret se deve
sentir neste momento. Poderá ter de herdar Goldenbirch.

— A Meg não deve sobrecarregar aquela sua mente


brilhante. Golden­birch não precisará dela como herdeira
porque estaremos de volta a Inys antes que dês conta.
Esta missão pode parecer impossível de sobreviver —
disse Kit, retomando a sua atitude jocosa —, mas nunca
se sabe. Podemos regressar como príncipes do mundo.

— Nunca pensei que terias mais fé do que eu. —


Loth respirou fundo pelo nariz. — Vamos acordar o
cocheiro. Já nos demorámos aqui por tempo suficiente.
5
Este

Os novos soldados da Alta Guarda do Mar foram


autorizados a pas­sar as suas últimas horas em Cabo
Hisan como lhes aprouvesse. A maioria foi despedir-se de
amigos. A nona hora da noite, partiriam de palanquim
para a capital.
Os estudiosos já haviam partido no navio para a Ilha
das Penas. Ishari não ficou no convés com os outros para
ver Seiiki desaparecer.
Havia anos que elas eram próximas. Tané cuidou de
Ishari durante uma febre que quase a matou. Ishari foi
como uma irmã quando Tané sangrou pela primeira vez,
mostrando-lhe como fazer tampões de papel. Agora,
talvez nunca mais se vissem. Se ao menos Ishari tivesse
estudado mais dado mais de si nos seus treinos —,
poderiam ter sido cavaleiras juntas.
Por agora, Tané precisava de voltar a sua mente para
outra amiga. Manteve a cabeça baixa enquanto
avançava pelo clamor de Cabo Hisan, onde dançarinos e
percussionistas haviam saído à rua para cele­brar o Dia
da Escolha. As crianças passavam aos saltos, rindo com
os seus papagaios de papel que lhes sobrevoavam as
cabeças.
As ruas estavam apinhadas de gente. Enxugavam os
rostos com te­cido de linho. Enquanto Tané se esquivava
dos mercadores a vender bugigangas, respirou o
tempero do incenso, o cheiro da chuva no suor da pele e
a aragem de peixe fresco. Ouviu os funileiros e
comerciantes gritarem e os suspiros de alegria quando
um pequeno pássaro amarelo gorjeou uma canção.
Aquela poderia ser a sua última vez a caminhar em
Cabo Hisan, a úni­ca cidade que alguma vez conhecera.

Sempre fora um risco lá ir. A cidade era um lugar


perigoso, onde os aprendizes podiam ser tentados a agir
de forma que fossem corrompidos. Havia bordéis e
tabernas, jogos de cartas e rixas de galos, recrutadores
enviados para os pressionar a aderir à pirataria. Por
várias vezes, Tané perguntou a si mesma se as Casas de
Instrução tinham sido construídas tão perto de tudo
aquilo para lhes testar a vontade.

Quando chegou à pousada, soltou a respiração. Não


havia sentinelas.

— Com licença! — gritou através das barras.

Uma menina veio até ao portão. Ao ver Tané e a


túnica azul da Alta Guarda do Mar, a criança ajoelhou-se
de imediato e colocou a testa entre as mãos.

— Estou à procura da honrada Susa — disse Tané


gentilmente. — Poderíeis trazê-la a mim?
A menina correu de volta para dentro.

Nunca ninguém se curvara a Tané daquela maneira.


Ela nascera na aldeia empobrecida de Ampiki, no
extremo sul de Seiiki, no seio de uma família de
pescadores. Certo dia frio de inverno, um incêndio
deflagrara na floresta das redondezas e engolira quase
todas as casas.

Tané não tinha memória dos seus pais. Apenas


evitara compartilhar da sua morte porque perseguira
uma borboleta para fora de casa, para o mar. A maioria
dos enjeitados e órfãos acabaram no exército terrestre,
mas a borboleta fora interpretada por uma mulher
sagrada como uma intervenção dos deuses, e foi
decidido que Tané deveria ser treinada como cavaleira.

Susa chegou ao portão com uma túnica de seda


branca, ricamente bordada. O seu cabelo caía-lhe solto
sobre os ombros.

— Tané. — Deslizou o portão para o lado. —


Precisamos de falar.

Tané reconheceu o corte na sua sobrancelha.


Entraram no beco ao lado da casa, onde Susa abriu o
guarda-chuva e segurou-o sobre ambas.

— Ele foi-se.
Tané lambeu os lábios.

— O forasteiro?

— Sim. — Susa parecia nervosa. Ela nunca ficava


nervosa. — Havia mexericos no mercado, mais cedo. Foi
avistado um navio pirata na cos­ta de Cabo Hisan. As
sentinelas revistaram toda a cidade em busca de cargas
de contrabando, mas quando partiram, não encontraram
nada.

— Procuraram em Orisima — percebeu Tané, e Susa


assentiu. — Encontraram o estranho?

— Não. Mas lá não há onde se esconder. — Susa


olhou para a rua, os seus olhos refletindo a luz dos
postes. — Ele deve ter escapado enquanto as sentinelas
estavam distraídas.

— Ninguém poderia cruzar a ponte sem que as


sentinelas percebes­sem. Ele ainda deve estar lá.

— O homem deve ser meio fantasma para se


conseguir esconder tão bem. — Susa apertou ainda mais
o guarda-chuva. — Tané, achas que ainda devemos
contar ao honrado Governador sobre ele?

Tané andara a questionar o mesmo desde a


cerimónia.
— Eu disse ao Roos que iríamos buscá-lo, mas...
talvez, se ele ficar escondido em Orisima, seja capaz de
evitar a espada e fugir no próximo navio de volta a
Mentendon — prosseguiu Susa. — Talvez o confundam
com um colono legal. Ele não era mais velho do que nós,
Tané, e talvez não estivesse aqui por escolha própria.
Não tenho nenhum desejo de o condenar à morte.

— Então não o faremos. Ele que siga o seu próprio


caminho.

— E a doença vermelha?

— Ele não tinha nenhum dos sinais. E se ele ainda


estiver em Orisima, e não consigo pensar no contrário, a
doença não pode ir longe. — Tané falou baixinho. — É
demasiado arriscado voltarmos a associar-nos com ele,
Susa. Tu levaste-o para um lugar seguro. O que acontecer
agora e com ele.

— Mas se eles o encontrarem, não lhes contará


sobre nós? — sussurrou Susa.

— Quem iria acreditar nele?

Susa respirou fundo e os seus ombros descaíram.


Fitou Tané de cima a baixo.

— Parece que o risco compensou. — O seu sorriso


fez brilhar os seus olhos. — O Dia da Escolha foi tudo o
que imaginaste?

A necessidade de falar vinha crescendo havia


horas.

— E mais. Os dragões eram tão lindos — disse Tané.


— Conseguiste vê-los?

— Não. Eu estava a dormir — admitiu Susa. Devia


ter ficado acorda­da a noite toda. — Quantos cavaleiros
serão este ano?

— Doze. O honrado Imperador Eterno enviou dois


grandes guerrei­ros para aumentar os nossos números.

— Nunca vi um dragão lacustre. São muito


diferentes dos nossos?

— Têm corpos mais grossos e mais um dedo do pé.


Seria um privi­légio voar com qualquer um deles. — Tané
aproximou-se mais sob o guarda-chuva. — Tenho de ser
uma cavaleira, Susa. Sinto-me culpada por querer tanto
quando já recebi tantas bênçãos, mas...

— Tem sido o teu sonho desde criança. Tens


ambição, Tané. Nunca peças desculpa por isso. — Susa
fez uma pausa. — Estás com medo?

— Claro.
— Boa. O medo far-te-á lutar. Não deixes que um
merdas como o Turosa te deite abaixo, seja quem for a
mãe dele. — Tané lançou-lhe um olhar de repreensão,
mas sorriu. — Agora, apressa-te. Lembra-te, não importa
para quão longe voes de Cabo Hisan, eu serei sempre tua
amiga.

— E eu tua.

O portão da pousada abriu-se, levando a que


ambas se assustassem.

— Susa — chamou a menina. — Tens de entrar


agora.

Susa olhou para a casa.

— Tenho de ir. — Olhou para Tané e hesitou. —


Deixar-me-ão escrever-te?

— Terão de deixar. — Tané nunca conheceu um


plebeu que mantivesse amizade com um guardião do
mar, mas rezou para que elas fossem a exceção. — Por
favor, Susa, tem cuidado.

— Sempre. — O seu sorriso estremeceu. — Não vais


sentir tanto a minha falta. Quando voares acima das
nuvens, todos nós aqui parecere­mos pequeninos.

— Onde quer que eu esteja — disse Tané —, estarei


contigo.
Susa arriscara tudo por um sonho que não lhe
pertencia. Esse tipo de amizade apenas se encontrava
uma vez na vida. Alguns poderiam nem mesmo encontrá-
la.

O espaço entre elas estava repleto de lembranças,


e a humidade dos seus rostos já não se devia apenas à
chuva. Talvez Tané voltasse a Cabo Hisan para proteger a
costa este, ou talvez Susa pudesse visitá-la, mas, pela
primeira vez na sua vida, nada era certo. Os seus
caminhos estavam prestes a separar-se e, a menos que
fosse essa a vontade do dragão, poderiam nunca mais se
encontrar.

— Se acontecer alguma coisa, se alguém associar o


teu nome ao forasteiro, vem com toda a rapidez para
Ginura — disse Tané com sua­vidade. — Vem ter comigo,
Susa. Proteger-te-ei sempre.

***

Num espaço diminuto para uma oficina em Orisima,


um lampião der­retia enquanto Niclays Roos segurava um
frasco na sua luz. A etiqueta manchada dizia MINÉRIO DE
RIM. Tudo o que podia fazer era manter Sulyard longe da
sua mente, mas a maneira mais certa de lidar com isso
era deixar-se perder no seu grandioso trabalho.

Não que estivesse a trabalhar muito, grandioso ou


não. Estava com uma perigosa falta de ingredientes e o
seu equipamento alquímico era tão antigo quanto ele,
mas decidira tentar uma última vez antes de voltar a
pedir suprimentos. O Governador de Cabo Hisan era
simpático, mas muitas vezes contido na sua
generosidade pelo Senhor da Guerra, que parecia saber
tudo o que acontecia em Seiiki.

O Senhor da Guerra era quase mítico. A sua família


assumira o po­der depois de a Casa imperial de Noziken
ter sido destruída na Grande Desolação. Tudo o que
Niclays realmente sabia sobre o homem era que vivia
num castelo em Ginura. Todos os anos, o vice-rei de
Orisima era transportado para lá num palanquim
trancado para prestar tributo, oferecer presentes de
Mentendon e receber presentes em troca.

Niclays era a única pessoa no posto comercial que


nunca fora con­vidada a acompanhá-lo na viagem. Os
seus companheiros mênticos mantinham a educação à
sua frente, mas, ao contrário do resto deles, a sua
presença ali devia-se ao exílio. O facto de nenhum deles
saber o motivo não os tornava queridos para ele.
Às vezes, desejava desmascarar-se, apenas para
ver os seus rostos. Contar-lhes que ele era o alquimista
que convencera a jovem rainha de Inys de que poderia
preparar-lhe um elixir da vida, eliminando qualquer
necessidade de casamento ou herdeira. Que ele era o
perdulário que usara dinheiro de Berethnet para
sustentar anos de suposições, experiên­cias e
libertinagem.

Quão horrorizados ficariam. Quão escandalizados


pela sua falta de virtude. Não imaginariam que mesmo
quando ele fizera o seu caminho até Inys, dez anos
antes, uma caixa de fogo ambulante de dor e rai­va,
permanecera fiel, em alguma câmara oculta do seu
coração, aos princípios da alquimia. Destilação, Ceração,
Sublimação — as únicas divindades que ele alguma vez
exaltaria. Não imaginariam que, enquan­to ele trabalhara
arduamente com o crisol, certo de que poderia desco­brir
uma maneira de deixar um corpo no auge da juventude,
também tentara derreter a lâmina de dor que lhe fora
enterrada no peito. Uma lâmina que finalmente o levara
para longe do crisol, de volta ao conforto e oblívio do
vinho.

Não teve sucesso em nenhum dos casos. E por isso,


Sabran Berethnet fizera-o pagar.
Não com a sua vida. Leovart dissera-lhe que devia
ser grato por essa dita gentileza de Sua Inimizade. Não,
Sabran não lhe tirara a cabeça — mas levara-lhe tudo o
resto. Agora, Niclays estava preso na borda do mundo,
cercado de pessoas que o desprezavam.

Eles que fiquem com os seus sussurros. Se aquela


experiência funcio­nasse, todos eles estariam a bater-lhe
à porta pelo elixir. Com a língua presa entre os dentes,
despejou o minério de rim no crisol.

Poderia muito bem ser pólvora. Antes que


percebesse, a corrente de ar estava a ferver. Borbulhou
na mesa e soltou uma nuvem de fumo fedorenta.

Niclays olhou desesperadamente para o crisol. Tudo


o que restava era um resíduo preto de alcatrão. Com um
suspiro, esfregou a fuligem dos óculos. A sua criação
parecia-se mais com solo noturno do que com o elixir da
vida.

O minério de rim não era a resposta. Por outro lado,


o pó poderia não ter sido minério de rim. Panaya
comprara-o a um comerciante em seu nome, e os
comerciantes não eram famosos pela sua honestidade.
Que o Inominável leve tudo isto. Niclays teria
desistido de fazer o maldito elixir se não fosse pelo facto
de não ter meios de escapar daquela ilha, a não ser
comprar o seu caminho de volta para o oeste com ele.
Claro, não tinha a menor intenção de o dar a Sabran
Berethnet. Por ele, a rainha bem que poderia ser
enforcada. Mas se dissesse a qualquer governante que o
possuía, providenciariam para que ele fosse levado de
volta a Mentendon e tivesse permissão para viver o resto
da sua vida com luxo e riqueza. E ele certificar-se-ia de
que Sabran saberia o que ele podia fazer e, quando ela
viesse até ele, implorando-lhe por um gole de
eternidade, não haveria prazer mais doce do que negá-lo
a ela.

Ainda assim, encontrava-se muito longe daquele


dia feliz. Precisava das substâncias caras que
governantes lacustres há muito falecidos ha­viam
procurado para prolongar as suas vidas, como ouro,
orpimento e plantas raras. Mesmo que a maior parte
desses governantes se tivesse envenenado na sua
tentativa de viver para sempre, havia uma possibili­dade
de que as suas receitas para o elixir pudessem acender
uma nova chama de inspiração.

Chegara a hora de voltar a escrever a Leovart e


pedir-lhe que bajulasse o Senhor da Guerra com uma
carta bonita. Apenas um príncipe poderia ser capaz de o
persuadir a entregar o seu ouro para ser derretido.

Niclays terminou o seu chá frio, desejando que


fosse mais forte. O vice-rei de Orisima barrara-o da
cervejaria e limitara-o a duas taças de vinho por semana.
Havia meses que as suas mãos tremiam.

Estavam a tremer naquele exato momento, mas


não com a necessidade de esquecimento. Ainda não
havia sinal de Triam Sulyard.

Os sinos soaram na cidade mais uma vez. Os


guardiões do mar de­viam estar a caminho da capital. Os
outros aprendizes seriam despacha­dos para a Ilha das
Penas, uma ilha alta no Mar do Sol Trémulo, onde toda a
sabedoria conhecida sobre os dragões era guardada.
Niclays es­crevera várias vezes ao Governador de Cabo
Hisan, pedindo permissão para viajar para lá, mas fora
sempre rejeitado. A Ilha das Penas não era para
forasteiros.

Os dragões ainda podiam ser a chave do seu


trabalho. Podiam viver por milhares de anos. Algo nos
seus corpos devia permitir que continuassem a renovar-
se.

Mas eles não eram como antes. Na lenda oriental,


os dragões possuíam habilidades místicas, como mudar
de forma e criar sonhos. A última vez que eles exibiram
esses poderes foi nos anos seguintes ao fim da Grande
Desolação. Naquela noite, um cometa atravessou o céu
e, en­quanto os wyrms do mundo inteiro mergulhavam
num sono de pedra, os dragões orientais descobriram-se
mais fortes do que haviam sido em séculos.

Agora, os seus poderes haviam diminuído


novamente. E, ainda assim, permaneciam vivos. O elixir
encarnado.

Não que essa teoria fosse de grande ajuda a


Niclays. Pelo contrário, a compreensão conduzira o seu
trabalho a um beco sem saída. Os ilhéus viam os seus
dragões como sagrados. Consequentemente, o comércio
de qualquer substância proveniente dos seus corpos foi
proibido, sob pena de uma morte particularmente lenta e
horrível. Apenas os piratas se arriscavam.

Com os dentes cerrados e uma forte dor de cabeça,


Niclays mancou para fora da sua oficina. Ao pisar o
tapete, o seu queixo caiu.

Triam Sulyard estava sentado ao lado da lareira,


ensopado até aos ossos.

— Pela braguilha do Santo... — Niclays fitou-o. —


Sulyard!

O rapaz parecia ferido.

— Não devíeis rogar às partes íntimas do Santo em


vão.
— Segurai a língua — atirou Niclays, o coração a
martelar. — Palavra, mas sois um desgraçado de sorte.
Se encontrastes forma de sair deste lu­gar, dizei-me
agora.

— Tentei ir embora — disse Sulyard. — Consegui


fugir dos guardas e sair da casa, mas muitos estavam
perto do portão. Entrei na água e escondi-me por baixo
da ponte até o cavaleiro oriental se ir embora.

— O Comandante não é um cavaleiro, seu tolo. —


Niclays soltou um grunhido de frustração. — Santo,
porque tínheis de voltar? Que fiz eu para merecer que
ameaçásseis o pouco que me resta de uma existência? —
Fez uma pausa. — Na verdade, não respondais.

Sulyard ficou em silêncio. Niclays passou por ele e


começou a acender uma fogueira.

— Doutor Roos — disse Sulyard, após uma


hesitação. — Porque é que Orisima é tão bem guardada?

— Porque os forasteiros não podem pôr os pés em


Seiiki, sob pena de morte. E os seiikines, por sua vez, não
podem partir. — Niclays pendu­rou a chaleira na lareira. —
Deixaram-nos ficar aqui para que pudessem negociar
connosco e absorver as probabilidades e os fins do
conheci­mento mêntico, e para que pudéssemos dar ao
Senhor da Guerra pelo menos uma impressão nebulosa
do outro lado do Abismo, mas não po­demos ir além de
Orisima ou falar de heresias aos seiikines.

— Heresias como as Seis Virtudes?

— Precisamente. Eles também,


compreensivelmente, desconfiam de que os estranhos
carregam a peste draconiana, a doença vermelha, como
eles a chamam. Se vos tivésseis dado ao trabalho de
fazer a vossa pesquisa antes de vir aqui...
— Mas certamente ouviriam se pedíssemos ajuda —
afirmou Sulyard com convicção. — Na verdade, enquanto
estava escondido, pensei que podia simplesmente deixá-
los encontrar-me, para que me levassem para a capital.
— Ele pareceu não reparar no olhar horrorizado que
Niclays lhe dirigiu. — Devo falar com o Senhor da Guerra,
Doutor Roos. Se ao menos pudésseis ouvir o que eu
vim...
— Como vos disse — cortou Niclays com aspereza —,
não tenho interesse na vossa missão, Mestre Sulyard.
— Mas o Reino das Virtudes está em perigo. O mundo
está em perigo — pressionou Sulyard. — A Rainha Sabran
precisa da nossa ajuda.
— Ela corre um perigo terrível, é isso? — Niclays
tentou não parecer muito esperançoso. — Um que lhe
põe a vida em risco?
— Sim, Doutor Roos. E eu conheço uma maneira de a
salvar.
— A mulher mais rica do Ocidente, venerada por três
países, precisa de um escudeiro para a salvar.
Fascinante. — Niclays suspirou. — Muito bem, Sulyard.
Far-vos-ei a vontade. Esclarecei-me como planeais pou­‐
par a Rainha Sabran a esse perigo não especificado.
— Intercedendo com o Oriente. — Sulyard parecia
determinado. — O Senhor da Guerra de Seiiki deverá
enviar os seus dragões para ajudar Sua Majestade.
Pretendo persuadi-lo a isso. Ele deverá ajudar o Reino
das Virtudes a derrubar as bestas draconianas antes que
elas despertem por completo. Antes...
— Esperai — interrompeu Niclays. — Dizeis-me que
procurais... uma aliança entre Inys e Seiiki?
— Não apenas entre Inys e Seiiki, Doutor Roos. Entre o
Reino das Virtudes e o Oriente.
Niclays deixou as palavras cristalizarem-se. O canto
da sua boca contraiu-se. E quando Sulyard manteve a
sua expressão séria como um sanctário, Niclays atirou a
cabeça para trás e riu-se.
— Oh, isto é maravilhoso. Glorioso — declarou.
Sulyard olhou para ele. — Oh, Sulyard. Encontrei muito
pouco entretenimento neste lugar. Obrigado.
— Não é uma piada, Doutor Roos — contrapôs
Sulyard, indignado.
— Oh, mas é, caro rapaz. Julgais que sozinho podeis
derrubar o Grande Édito, uma lei que existe há cinco
séculos, apenas pedindo gentilmente. Sois realmente um
jovem. — Niclays riu-se mais uma vez. — E quem é o
vosso parceiro neste esplêndido empreendimento?
Sulyard bufou.

— Sei que escarneceis de mim, senhor — disse ele.


— Mas não deveis escarnecer da minha senhora. Por ela,
eu morreria mil vezes, embora não possa revelar o seu
nome. É a luz da minha vida, a respiração no meu peito,
o sol do meu...

— Sim, está bem, basta disso. Ela não quis vir para
Seiiki convosco?

— Planeámos vir juntos. Mas quando visitei a minha


mãe em Pedra Alta no inverno, conheci uma marinheira
por acaso. Ela ofereceu-me um lugar num navio com
destino a Seiiki. — Os seus ombros curvaram-se para
dentro. — Enviei uma carta ao meu amor na corte... Rezo
para que ela compreenda. Para que me perdoe.

Havia algum tempo que Niclays não se entregava a


uns quantos me­xericos da corte. Estar quase a salivar
por isso dizia muito sobre o enfado que o rodeava. Serviu
duas chávenas de chá de salgueiro e sentou-se nas
esteiras, esticando a perna dorida à sua frente.

— Suponho que essa senhora seja vossa prometida.

— Companheira. — Um sorriso tocou-lhe os lábios


rachados. — Fizemos os nossos votos.

— Presumo que Sabran tenha dado a sua bênção


ao casal.

Sulyard corou.
— Nós... não pedimos permissão a Sua Majestade.
Ninguém sabe.

Ele era mais corajoso do que parecia. Sabran


aplicava punições seve­ras aos que se casavam em
segredo. Era o que a diferenciava da falecida Rainha-
Mãe, que sempre apreciara uma boa história de amor.

— A vossa senhora deve ser de uma posição


inferior, se tivestes de vos casar com ela em segredo —
ponderou Niclays.

— Não! A minha senhora é de sangue nobre. É tão


doce como o mel mais rico, tão bonita como uma frente
de outono....

— Pelo Santo, basta. Estais a dar-me dores de


cabeça. — Era de se imaginar como Sabran o mantivera
por perto sem lhe ter arrancado a língua. — Quantos
anos tendes, ao certo, Sulyard?

— Dezoito.

— Um homem adulto, então. Velho o suficiente para


saber que nem todos os sonhos devem ser perseguidos,
sobretudo os sonhos concebidos na cama de penas do
amor. Se o Comandante vos tivesse encontrado, teríeis
sido levado ao Governador de Cabo Hisan. Não ao Senhor
da Guerra. — Niclays bebericou o seu chá. — Alegrar-vos-
ei mais uma vez, Sulyard. Se sabeis que Sabran está em
perigo, tamanho perigo que requer a ajuda de Seiiki, algo
pelo qual nutro sérias dúvidas... então porque não lhe
contar?

Sulyard hesitou.

— Sua Majestade desconfia do Oriente, para seu


próprio detrimen­to — revelou, por fim. — E eles são os
únicos que nos podem ajudar. Mesmo quando ela for
informada do perigo que enfrenta, o que sem dú­vida
ocorrerá em breve, o seu orgulho nunca permitirá que
peça ajuda do Oriente. Se ao menos eu pudesse falar
com o Senhor da Guerra em seu nome, a Truyde disse
que ela poderia perceber o...

— Truyde.

A chávena tremeu-lhe nas mãos.

— Truyde — sussurrou ele. — Não... não vos referis


a Truyde utt Zeedeur. Filha do Lorde Oscarde.

Sulyard estava petrificado.

— Doutor Roos — começou ele, após uma agonia


de gagueira —, devereis manter segredo.

Antes que se pudesse conter, Niclays voltou a rir-


se. Desta vez, com um toque de loucura.
— Ora, ora! — exclamou. — Mas sois um
companheiro e tanto, Mestre Sulyard! Primeiro casais
com a Marquesa de Zeedeur sem permissão, um ato que
poderia muito bem destruir-lhe a reputação. Depois
tratais de abandoná-la e, por fim, deixais escapar o seu
nome a um homem que conhecia bem o seu avô. —
Enxugou os olhos na manga. Sulyard parecia prestes a
desmaiar. — Ah, como sois digno do amor dela. Que me
ides contar a seguir, que a deixastes grávida também?

— Não, não... — Sulyard rastejou em direção a ele.


— Suplico-vos, Doutor Roos, não exponhais a nossa
transgressão. Não sou digno do seu amor, mas... eu amo-
a. Isso fere-me a alma.

Niclays enxotou-o com um pontapé, repugnado.


Feria-lhe a própria alma que Truyde tivesse escolhido
tamanho balde de leite inysh como companheiro.

— Não irei expô-la, garanto-vos — escarneceu ele,


fazendo Sulyard chorar ainda mais. — Ela é a herdeira do
Ducado de Zeedeur, sangue de Vatten. Rezemos para
que um dia se case com alguém detentor de co­luna
vertebral. — Recostou-se. — Além disso, mesmo que eu
escrevesse ao Príncipe Leovart para o informar de que a
Menina Truyde se casou secretamente abaixo da sua
posição, levaria semanas até o navio cruzar o Abismo.
Até lá, já ela se terá esquecido da vossa existência.

Fungando, Sulyard conseguiu dizer:

— O Príncipe Leovart está morto.

O Grão-Príncipe de Mentendon. A única pessoa que


tentara ajudar Niclays em Orisima.

— Isso certamente explicaria o porquê de ele


ignorar as minhas car­tas. — Niclays levou a chávena aos
lábios. — Quando?

— Há menos de um ano, Doutor Roos. Um wyvern


reduziu a sua cabana de caça a cinzas.

Niclays sentiu uma pontada de perda por Leovart.


Sem dúvida que o vice-rei de Orisima sabia da notícia,
mas preferira não divulgá-la.

— Entendo — disse. — Quem governa Mentendon?

— O Príncipe Aubrecht.

Aubrecht. Niclays lembrava-se dele como um jovem


reservado que pouco se importava com mais do que
livros de orações. Embora ele fosse maior de idade
quando a enfermidade suada lhe levara o tio, Edvart, fora
decidido que Leovart — o próprio tio de Edvart —
governaria pri­meiro, para ensinar ao bondoso Aubrecht o
caminho. Claro, assim que Leovart subira ao trono,
encontrara desculpas para não o desocupar.

Agora, Aubrecht ocupara o seu lugar de direito.


Precisaria de uma vontade de ferro se pretendia controlar
Mentendon.

Niclays afastou os seus pensamentos de casa antes


que pudesse perder-se neles para sempre. Sulyard ainda
o fitava, o rosto manchado de rosa.

— Sulyard — disse Niclays —, ide para casa.


Quando o carrega­mento mêntico chegar, ide embora.
Voltai para a Truyde e fugi para a Lagoa do Leite ou...
para onde quer que os amantes vão hoje em dia. —
Quando Sulyard abriu a boca, ele completou: — Confiai
em mim. Não podeis fazer nada aqui, a não ser morrer.

— Mas a minha tarefa...

— Nem todos podemos concluir as nossas grandes


obras.

Sulyard ficou em silêncio. Niclays tirou os óculos e


limpou-os à manga.

— Não tenho amor pela vossa rainha. Na verdade,


desprezo-a total­mente — confessou Niclays, fazendo
Sulyard estremecer. — Mas duvido muito de que Sabran
queira que um escudeiro de dezoito anos morra por ela.
— Um tremor invadiu-lhe a voz. — Quero que vos vades
em­bora, Triam. E quero que digais à Truyde, por mim,
para parar de se envolver em questões que a podem
arruinar.

Sulyard baixou o olhar.

— Perdoai-me, Doutor Roos, mas não posso —


declarou. — Devo ficar.

Niclays olhou para ele com ar cansado.

— E fazer o quê?

— Encontrarei forma de apresentar o meu caso ao


Senhor da Guerra... mas não vos envolverei mais.

— A vossa presença em minha casa é envolvimento


suficiente para me fazer perder a cabeça.

Embora Sulyard não tenha dito nada, o seu queixo


estava tenso. Niclays franziu os lábios.

— Pareceis devoto, Mestre Sulyard — disse ele. —


Sugiro que rezeis. Rezai para que as sentinelas se
mantenham longe da minha casa até à chegada do
carregamento mêntico, para que tenhais tempo de
recobrar o juízo em relação a isto. Se sobrevivermos aos
próximos dias, talvez eu próprio volte a rezar.
6

Oeste

Quando evitava o Salão de Banquetes, o que


acontecia com frequência, a rainha de Inys jantava na
sua Câmara Privada. Esta noite, Ead e Linora foram
convidadas para dividir o pão com ela, uma honra
habitualmente reservada para as suas três companheiras
de cama.

Margret estava com uma das suas dores de cabeça.


Esmagadoras de crânios, como ela as chamava. Por
norma, recusava-se a permitir que a impedissem de
cumprir as suas obrigações, mas devia estar doente de
preocupação com Loth.

Apesar do calor do verão, um fogo crepitava na


Câmara Privada. Até agora, ninguém falara com Ead.

Por vezes, era como se os outros pudessem cheirar-


lhe os segredos. Como se sentissem que Ead não estava
na corte apenas para ser uma dama de companhia.

Como se soubessem do Priorado.


— Que achas dos olhos dele, Ros?

Sabran olhou para a miniatura na sua mão. Já fora


passada entre as mulheres e examinada de todos os
ângulos. Roslain Crest pegou-lhe e estudou-a novamente.

A primeira dama da Câmara Privada, herdeira


aparente do Ducado da Justiça, nascera apenas seis dias
antes de Sabran. O seu cabelo era espesso e escuro
como melaço. Pálida e de olhos cor de esmalte, sempre
vestida de acordo com a moda, passara quase toda a sua
vida com a sua rainha. A sua mãe fora a primeira dama
da Rainha Rosarian.
— São agradáveis, Vossa Majestade — respondeu
Roslain. — Generosos.
— Parecem-me demasiado próximos — ponderou
Sabran. — Fazem-me lembrar um arganaz.
Linora deu uma risadinha delicada.
— Antes um rato do que uma fera mais barulhenta —
concluiu Roslain. — É fundamental que ele se recorde do
seu lugar caso vos tome para consorte. Não é ele o
descendente do Santo.
Sabran deu-lhe uma palmadinha na mão.
— Como consegues ser sempre tão sábia?
— Porque vos escuto, Majestade.
— Mas não à tua avó, neste caso. — Sabran ergueu os
olhos para ela. — A senhora Igrain acha que Mentendon
será um dreno para Inys. E que Lievelyn não deveria
negociar com Seiiki. Informou-me das suas intenções de
o expressar na próxima reunião do Conselho das
Virtudes.
— A senhora minha avó preocupa-se convosco. Isso
torna-a excessi­vamente cautelosa. — Roslain sentou-se
ao lado dela. — Eu sei que ela prefere o Supremo Chefe
de Askrdal. Ele é rico e devoto. Um candida­to mais
seguro. Também consigo entender as suas preocupações
com Lievelyn.
— Mas?
Roslain ofereceu-lhe um ténue sorriso.
— Acredito que nos seria conveniente dar uma
oportunidade a este novo Príncipe Vermelho.
— Concordo. — Katryen estava deitada num banco, a
folhear um livro de poesia. — Tendes o Conselho das
Virtudes para vos aconselhar, mas as vossas damas para
vos encorajar em questões como esta.
Ao lado de Ead, Linora absorvia a conversa num
silêncio voraz.
— Senhora Duryan — disse Sabran de repente —, que
tens a dizer sobre o semblante do Príncipe Aubrecht?
Todos os olhos se voltaram para Ead. Lentamente, ela
largou a faca.
— Pedis o meu julgamento, Majestade?
— A menos que haja outra senhora Duryan presente.
Ninguém se riu. O quarto permaneceu silencioso
enquanto Roslain lhe depositava a miniatura nas mãos.
Ead contemplou o Príncipe Vermelho. Maçãs do rosto
altas. Cabelo cor de cobre lustroso. Sobrancelhas fortes e
arqueadas sobre os olhos escuros, um forte contraste
com a sua palidez. A forma da sua boca era um tanto
grave, mas o seu rosto era agradável.
Ainda assim, as miniaturas podiam mentir, e muitas
vezes era o que faziam. O artista tê-lo-ia adulado.

— É aprazível quanto baste — concluiu ela.

— Um fraco elogio, de facto. — Sabran deu um gole


na sua taça. — O teu juízo é mais severo do que o das
minhas outras damas, senhora Duryan. Os homens do
Ersyr são mais atraentes do que o príncipe?

— São diferentes, Vossa Majestade. — Ead fez uma


pausa e acrescen­tou: — Menos como arganazes.

A rainha olhou para ela, impassível. Por um


momento, Ead pergun­tou a si mesma se teria sido
demasiado audaciosa. Um olhar aflito de Katryen apenas
serviu para alimentar a sua apreensão.

— Tens uma língua rápida e pés leves. — A rainha


de Inys reclinou-se na sua cadeira. — Não temos
conversado muito desde a tua chegada à corte.
Passaram-se muitos anos... seis, julgo.

— Oito, Majestade.

Roslain lançou-lhe um olhar de advertência. Não se


corrigia uma des­cendente do Santo.

— Claro. Oito — foi tudo o que Sabran disse. — Diz-


me, o Embaixa­dor uq-Ispad costuma escrever-te?
— Não frequentemente, senhora. Sua Excelência
está ocupada com outros assuntos.

— Tais como heresia.

Ead baixou o olhar.

— O embaixador é um seguidor devoto do Cantor


da Alvorada, Majestade.

— Mas tu, com certeza, já não és — disse Sabran, e


Ead inclinou a cabeça. — A senhora Arbella disse-me que
rezas com frequência no santuário.

Como Arbella Glenn comunicara essas coisas a


Sabran era um misté­rio, já que ela parecia nunca falar.

— As Seis Virtudes são uma bela fé, Majestade —


respondeu Ead. — É impossível não acreditar quando a
verdadeira descendente do Santo caminha entre nós.
Era mentira, claro. A sua verdadeira fé — a fé da Mãe
— resplandecia mais forte do que nunca.
— Imagino que devem contar histórias dos meus
ancestrais no Ersyr — disse Sabran. — Especialmente da
Donzela.
— Sim, senhora. Ela é recordada no Sul como a
mulher mais correta e altruísta do seu tempo.
Cleolind Onjenyu também era recordada no Sul como
a maior guer­reira do seu tempo, mas os inysh nunca
acreditariam nisso. Acreditavam que ela precisava de ser
salva.
Para Ead, Cleolind não era a Donzela.
Era a Mãe.
— A senhora Oliva disse-me que a senhora Duryan é
uma contadora de histórias nata — comentou Roslain,
lançando-lhe um olhar frio. — Não nos ides contar a
história do Santo e da Donzela como vos ensina­ram no
Sul, senhora?
Ead detetou uma armadilha. Os inysh raramente
apreciavam ouvir fosse o que fosse de uma nova
perspetiva, muito menos a sua história mais sagrada.
Roslain estava à espera que ela pusesse o pé em falso.
— Minha senhora — respondeu Ead. — Não pode ser
contada me­lhor do que pelo Sanctário. Em qualquer
caso, ouvi-la-emos amanh...
— Ouvi-la-emos agora — declarou Sabran. —
Conforme os wyrms se agitam, a história trará consolo às
minhas damas.
O fogo crepitava. Ao olhar para Sabran, Ead sentiu
uma estranha tensão, como se houvesse um fio entre
elas. Por fim, levantou-se para ocupar a cadeira ao lado
da lareira. O lugar de um contador de histórias.
— Como desejar. — Ead alisou as saias. — Por onde
devo começar?
— Com o nascimento do Inominável — disse Sabran.
— Quando o grande demónio nasceu do Monte do Pavor.
Katryen pegou na rainha pela mão. Ead respirou
fundo, estabilizando a turbulência no seu interior. Se
contasse a história verdadeira, iria sem dúvida enfrentar
a pira.
Teria de contar a história que ouvia todos os dias no
santuário. O conto despedaçado.
Meio conto.
— Há um Ventre de Fogo que se agita sob este mundo
— começou. — Há mais de mil anos, o magma no seu
interior concentrou-se de repente, formando uma besta
de magnitude inqualificável... como uma espada toma
forma na forja. O seu leite era o fogo dentro do útero; a
sua sede inextinguível. Ele bebeu até que o seu próprio
coração se tornou uma fornalha.
Katryen estremeceu.

— Pouco depois, esta criatura, este wyrm, cresceu


demasiado para o Ventre. Ansiava por usar as asas que
isso lhe dera. Tendo rasgado o seu caminho para cima,
rompeu o pico de uma montanha em Mentendon,
chamada Monte do Pavor, e trouxe consigo uma torrente
de fogo der­retido. Um raio vermelho brilhou no topo da
montanha. A escuridão abateu-se sobre a cidade de
Gulthaga, e todos os seus habitantes pere­ceram
sufocados por um fumo pernicioso.

» Havia um desejo nesse wyrm de conquistar tudo


o que via. Voou para sul, para Lasia, onde a Casa de
Onjenyu governava um grandioso reino, e estabeleceu-se
perto da sua sede em Yikala. — Ead tomou um gole de
cerveja para humedecer a garganta. — Esta criatura
inominá­vel carregava uma peste terrível... uma peste
jamais enfrentada pelos humanos. Fazia o próprio sangue
dos afetados queimar, levando-os à loucura. Para manter
o wyrm sob controlo, o povo de Yikala enviava-lhe
ovelhas e bois, mas o Inominável nunca ficava saciado.
Ansiava por car­ne mais doce... carne humana. E assim, a
cada dia, as pessoas lançavam a sua sorte e uma delas
era escolhida como sacrifício.

O quarto estava mergulhado em silêncio.

— Na época, Lasia era governada por Selinu, Alto


Governante da Casa de Onjenyu. Um dia, a sua filha, a
Princesa Cleolind, foi escolhida para o sacrifício. — Ead
proferiu o nome suavemente, com reverência.

— Embora o pai dela tivesse oferecido joias e ouro


aos seus súbditos, e rogado que escolhessem outra
pessoa, eles permaneceram firmes. E Cleolind avançou
com dignidade, pois soube que era justo.

» Naquela mesma manhã, um cavaleiro das Ilhas


de Inysca caval­gava para Yikala. Na época, essas ilhas
eram divididas por guerras e superstições, governadas
por muitos suseranos, e o seu povo tremia à sombra de
uma bruxa... mas muitos bons homens moravam lá, ju­‐
rados às Virtudes da Cavalaria. Este cavaleiro — disse
Ead — era Sir Galian Berethnet.

O Vigarista.

Era esse o nome que ele agora tinha em diversas


partes de Lasia, mas Sabran não tinha conhecimento
disso.

— Sir Galian ouvira falar do terror que agora


assombrava Lasia e desejou oferecer os seus serviços a
Selinu. Trazia com ele uma espada de extraordinária
beleza; o seu nome era Ascalon. Quando se aproxi­mou
dos arredores de Yikala, avistou uma donzela a chorar na
sombra das árvores e perguntou-lhe porque estava tão
assustada. Bom cavaleiro, respondeu Cleolind, tendes
um coração bondoso, mas para vosso próprio bem,
deixai-me com as minhas orações, pois um wyrm virá
para reivindicar a minha vida.

Ead sentia-se doente por falar da Mãe daquela


maneira, como se ela fosse uma frágil donzela
desmaiada.

— O cavaleiro — continuou — ficou comovido com


as suas lágrimas.

Doce senhora, disse ele, prefiro cravar a minha


espada no meu próprio coração a ver o vosso sangue
regar a terra. Se o vosso povo entregar as suas almas às
Virtudes da Cavalaria, e se me derdes a vossa mão em
casamento, expulsarei essa besta cruel destas terras.
Essa foi a sua promessa.
Ead fez uma pausa para recuperar o fôlego. E de
repente, um sabor inesperado invadiu-lhe a boca.

O sabor da verdade.

— Cleolind disse ao cavaleiro que se fosse embora,


insultada pelos seus termos — deu por si a dizer. — Mas
Sir Galian não se intimidou. Determinado a ganhar glória
para si mesmo, ele...
— Não — interrompeu Sabran. — Cleolind concordou
com os termos e sentiu-se grata pela sua oferta.
— Foi esta a história que ouvi no Sul. — Ead ergueu
as sobrancelhas, mesmo enquanto o seu batimento
cardíaco tropeçava. — A senhora Roslain pediu-me que...
— E agora a tua rainha ordena-te o contrário. Conta
o resto como o Sanctário conta.
— Sim, senhora.
Sabran fez sinal com a cabeça para que ela
continuasse.
— Enquanto Sir Galian lutava com o Inominável —
prosseguiu Ead —, ficou gravemente ferido. Ainda assim,
com a maior coragem de qualquer homem vivo,
encontrou a força para cravar a sua espada no monstro.
O Inominável arrastou-se para longe, sangrando e
enfraqueci­do, e voltou para o Ventre de Fogo, onde
permanece até aos dias de hoje.

Ead estava muito ciente de que Sabran a


observava.
— Sir Galian voltou com a princesa para as ilhas de
Inysca, reunindo um Sagrado Séquito de cavaleiros pelo
caminho. Lá, foi coroado rei de Inys, um novo nome para
uma nova era, e para seu primeiro de­creto, fez das
Virtudes da Cavalaria a sua verdadeira e única religião.
Construiu a cidade de Ascalon, batizada com o nome da
espada que feriu o Inominável, e foi lá que ele e a Rainha
Cleolind se reuniram em alegre matrimónio. Um ano
depois, a rainha deu à luz uma filha. E o Rei Galian, o
Santo, jurou ao povo que enquanto a sua linhagem
governasse Inys, o Inominável nunca poderia regressar.

Uma bela história. Uma que os inysh repetiam


incessantemente. Mas não era a história toda.

O que os inysh não sabiam é que fora Cleolind, e


não Galian, quem banira o Inominável.

Eles nada sabiam da laranjeira.

— Quinhentos anos depois — disse Ead, com mais


suavidade —, a fenda no Monte do Pavor voltou a
aumentar, libertando outros wyr­ms. Primeiro vieram os
cinco Sombras Ocidentais, as maiores e mais cruéis das
criaturas draconianas, lideradas por Fýredel, o mais leal
ao Inominável. Atrás vieram os seus servos, os wyverns,
cada um iluminado pelo fogo de um dos Sombras
Ocidentais. Esses wyverns faziam os seus ninhos nas
montanhas e nas cavernas, e acasalaram com aves para
dar à luz as cocatrizes, e com serpentes para gerar os
anfípteros, e com bois para gerar os ofitauros, e com
lobos para dar à luz os jaculus. E por meio dessas uniões,
nasceu o Exército Draconiano.

» Fýredel desejava fazer o que o Inominável não


fizera e conquistar a humanidade. Por mais de um ano,
virou o poder do Exército Draconiano contra o mundo.
Muitos grandes reinos desmoronaram naquela época, à
qual chamamos Ascensão das Sombras. Ainda assim,
Inys, liderada por Glorian a Terceira, ainda estava de pé
quando um cometa cruzou o mundo e os wyrms caíram
repentinamente no seu sono ancestral, en­cerrando o
terror e o derramamento de sangue. E até hoje, o
Inominável permanece na sua tumba sob o mundo,
acorrentado pelo sangue sagrado de Berethnet.

Silêncio.
Ead cruzou as mãos no colo e olhou diretamente para
Sabran. Aquela expressão fria era imperscrutável.
— A senhora Oliva estava certa — disse a rainha
finalmente. — Tens a língua de um contador de histórias,
mas suspeito de que já tenhas ouvido demasiadas
histórias e muito pouca verdade. Peço que prestes
atenção no santuário. — Pousou a sua taça. — Estou
cansada. Boa noi­te, senhoras.
Ead levantou-se, assim como Linora. Curvaram-se
numa reverência e saíram.
— Sua Majestade ficou descontente — disse Linora,
irritada, quan­do se encontravam fora do alcance de
ouvidos alheios. — Contaste a história muito bem no
início. Demónios, porque disseste que a Donzela rejeitou
o Santo? Nunca nenhum sanctário disse isso. Que ideia!
— Se Sua Majestade ficou descontente, lamento
muito.
— Agora talvez não nos volte a convidar para jantar
com ela — res­mungou Linora. — Devias ter pedido
desculpa, pelo menos. Talvez devas rezar com mais
frequência ao Cavaleiro da Cortesia.
Felizmente, Linora recusou-se a falar depois disso.
Separaram-se quan­do Ead chegou ao seu quarto.
Lá dentro, acendeu algumas velas. O seu quarto era
pequeno, mas era dela.
Desamarrou as mangas e removeu o peitilho do
vestido. Assim que se viu livre dele, descartou o saiote e
o vertugado e, por fim, tirou o espartilho.
A noite era jovem. Ead sentou-se na sua mesa de
escrita. Lá dentro, estava o livro que ela levara
emprestado de Truyde utt Zeedeur. Não era capaz de
decifrar nenhum escrito oriental, mas carregava a marca
de um impressor mêntico. Deve ter sido publicado antes
da Ascensão das Sombras, quando ainda eram
permitidos textos orientais no Reino das Virtudes. Truyde
era uma herege em ascensão, fascinada pelas ter­ras
onde os wyrms se deleitavam na idolatria humana.
No final do livro, numa folha de rosto, havia um nome
em tinta fresca, rabiscado em caligrafia cursiva.
Niclays.
Ead refletiu enquanto trançava o seu cabelo. Era um
nome comum em Mentendon, mas havia um Niclays Roos
na corte aquando da sua chegada. Ele destacara-se em
anatomia na Universidade de Brygstad e corriam
rumores de que praticava alquimia. Ead recordava-o
como bar­rigudo e alegre, amável o suficiente para a
reconhecer onde outros não o faziam. Houve algum
problema que resultou na sua partida de Inys, mas a
natureza do incidente era um segredo bem guardado.
No silêncio, ouviu o seu corpo. Da última vez, o
assassino quase a derrotara até ao Quarto de Leito Real.
Ela não sentira o brilho da sua proteção até ser quase
tarde demais.

O seu siden estava fraco. As proteções que ela


criara com ele haviam mantido Sabran segura durante
anos, mas estava finalmente a perecer, como uma vela
no fim do seu pavio. Siden, a oferenda da laranjeira —
uma magia de fogo, madeira e terra. Os inysh, na sua
falta de discerni­mento, chamá-lo-iam feitiçaria. As suas
ideias sobre magia nasciam do medo do que se viam
incapazes de compreender.

Foi Margret quem certa vez lhe explicou por que


motivo os inysh tinham tanto medo de magia. Corria uma
lenda antiga naquelas ilhas, ainda contada às crianças do
Norte, de uma figura conhecida como Dama da Floresta.
O seu nome perdera-se no tempo, mas o medo dos seus
encantamentos e da sua malícia haviam-se entrelaçado
nos ossos dos inysh e disseminado por gerações. Até
Margret, equilibrada na maior parte das coisas, se
mostrara relutante em falar sobre isso.

Ead levantou a mão. Reuniu o seu poder e uma luz


dourada estalou-lhe nas pontas do dedo. Em Lasia,
quando estava perto da laranjeira, o siden brilhava como
vidro derretido nas suas veias.

Depois, a Prioresa enviara-a para ali, para proteger


Sabran. Se os anos de distância extinguissem o seu
poder para sempre, a rainha estaria sempre vulnerável.
Dormir ao seu lado seria a única maneira de a man­ter
segura, e apenas as Damas do Leito Real o faziam. Ead
estava longe de ser uma favorita.

O seu controlo quebrara-se durante o jantar, ao


contar aquela histó­ria. Aprendera a jogar um jogo ao
longo dos anos, a repetir as mentiras dos inysh e a
murmurar as suas orações, mas contar ela mesma
aquela história despedaçada fora difícil. E embora o seu
momento de desafio pudesse ter prejudicado as suas
hipóteses de ascender ainda mais na corte, deu por si
incapaz de sentir remorsos.

Com o livro e as cartas debaixo do braço, Ead subiu


para as costas da cadeira e pressionou a tira de tecido do
teto, deslizando um painel solto para o lado. Guardou os
objetos na alcova, onde escondera o arco longo. Quando
ainda era uma dama de companhia, costumava enterrar
o arco no terreno de qualquer palácio que a corte
ocupasse, mas estava confiante de que nem mesmo o
Falcão da Noite o poderia encontrar ali.

Quando estava pronta para dormir, sentou-se à


mesa e escreveu uma mensagem a Chassar. Em código,
disse-lhe que houve outro ataque a Sabran e que ela o
impedira.

Chassar prometera-lhe resposta às suas cartas,


mas nunca o fizera.

Nem uma única vez, nos oito anos em que ali


estivera.

Ead dobrou a carta. O Mestre dos Correios iria lê-la


em nome do Falcão da Noite, mas não veria nada além
de cortesias. Chassar saberia a verdade.

Alguém bateu à porta.

— Senhora Duryan?

Ead vestiu a túnica de dormir e abriu o fecho. Do


lado de fora, encontrava-se uma mulher envergando um
distintivo em forma de livro alado, identificando-a como
servente de Seyton Combe.

— Sim?
— Senhora Duryan, boa noite. Fui enviada para vos
informar de que o secretário principal deseja ver-vos
amanhã às nove e meia — disse a rapariga. — Eu
acompanhá-la-ei até à Torre de Alabastro.
— Apenas eu?
— A senhora Katryen e a senhora Margret foram
ambas interrogadas hoje.
A mão de Ead apertou-se em torno da maçaneta da
porta.
— Trata-se de um interrogatório, portanto.
— Creio que sim.
Com a outra mão, Ead puxou a sua camisola para
mais perto.
— Muito bem — disse ela. — É tudo?
— Sim. Boa noite, senhora.
— Boa noite.
Quando a criada se foi embora, a escuridão voltou a
assomar ao corredor. Ead fechou a porta e apoiou a testa
contra ela.

Naquela noite não pregaria olho.

***

O Rosa Eterna balançou na água, inclinado pelo


vento leste. Era esse o navio que os levaria através do
mar até Yscalin.

— Este — declarou Kit enquanto caminhavam em


direção a ele — é um belo navio. Acredito que me casaria
com este navio, fosse eu próprio um navio.

Loth teve de concordar. O Rosa tinha cicatrizes de


batalha, mas era muito bonito — e colossal. Mesmo nas
suas visitas para ver a marinha com Sabran, nunca os
seus olhos haviam contemplado uma embarcação tão
imensa como aquele navio de guerra blindado. Ostentava
cento e oito armas, um temível esporão e dezoito velas,
todas com o brasão da Espada da Verdade, o emblema
do Reino das Virtudes. O estandarte atestava que se
tratava de um navio inysh e que as ações da sua tripula­‐
ção, por mais moralmente questionáveis que
parecessem, eram sancio­nadas pela sua monarquia.

Uma figura de proa de Rosarian a Quarta,


cuidadosamente polida, contemplava da proa. Cabelo
preto e pele branca. Olhos verdes como vidro do mar. O
seu corpo estreito numa cauda dourada.

Loth nutria memórias carinhosas da Rainha


Rosarian, dos anos ante­riores à sua morte. A Rainha-Mãe,
como era agora conhecida, costumava vê-lo a brincar
com Sabran e Roslain nos pomares. Fora uma mulher
mais branda do que Sabran, de riso fácil e divertida de
uma forma que a sua filha nunca fora.

— É uma beleza, não haja dúvida — disse Gautfred


Plume. Era o intendente, um homem de diminuta
estatura de ascendência lasiana. — Ainda assim, não tem
metade da beleza esplendorosa da senhora que a
presenteou ao capitão.

— Ah, sim. — Kit tirou o chapéu de penas para a


figura de proa. — Que descanse para sempre nos braços
do Santo.

Plume estalou a língua.

— A Rainha Rosarian tinha uma alma de ondina.


Deveria ter descan­sado nos braços do mar.

— Oh, pelo Santo, mas que bem dito. Os seres


sereianos existem real­mente, aliás? Já os vistes quando
cruzastes o Abismo?

— Não. Vi a grande lula e baleias, mas nunca a


cabeça de uma donzela do mar.
Kit murchou.
Gaivotas voavam em círculos no céu riscado de
nuvens. O porto de Pedra Alta estava preparado para o
pior, como sempre. Os molhes chocalhavam sob o peso
de soldados armados com mosquetes de longo alcance.
Fileiras e fileiras de manganelas e canhões explodiam
com balas encadeadas, intercalados com escudos de
pedra, ocultos nas sombras da praia. Arqueiros
ocupavam as torres de vigia, prontos para acender as
suas tochas ao mínimo sacudir de asas ou visão de um
navio inimigo.
Mais acima, balançava uma pequena cidade. Pedra
Alta fora assim chamada porque ficava empoleirada em
duas grandes montanhas que se projetavam até metade
da encosta, unidas no topo do penhasco e em dire­ção à
praia por uma escada longa e cheia de água. Edifícios
amontoados como pássaros num galho. Kit achara graça
à sua precariedade («Santo, o arquiteto deve ter
mergulhado no barril»), mas Loth ficou nervoso. Pedra
Alta parecia prestes a ser derrubada por uma pequena
rajada.
Ainda assim, deleitou-se com a visão, guardando-a
na memória Aquela poderia ser a última vez que olharia
para Inys, o único país que alguma vez conhecera.
Deram com Gian Harlowe na sua cabana,
mergulhado na redação de cartas. O homem que a
Rainha-Mãe favorecera não era exatamente como Loth
imaginara. Tinha a barba feita, os punhos engomados,
mas havia nele uma pontada de mordacidade. A sua
mandíbula parecia uma armadilha suspensa.
Quando entraram, ele olhou para cima. A varíola
atingira-lhe o rosto profundamente bronzeado.
— Gautfred. — Uma juba de cabelo de estanho
reluziu à luz do Sol. — Suponho que estes sejam os
nossos... convidados.
Embora o seu sotaque fosse firmemente inysh, Kit
mencionara que Harlowe provinha de terras distantes.
Dizia-se que era descendente do povo de Carmentum,
outrora uma próspera república no Sul que su­cumbira na
Ascensão das Sombras. Os sobreviventes haviam-se
espa­lhado por toda a parte.
— Sim — respondeu Plume, parecendo cansado. —
Lorde Arteloth Beck e Lorde Kitston Glade.

— Kit — corrigiu de imediato.

Harlowe largou a pena.

— Meus senhores — disse friamente —, bem-vindos


a bordo do Rosa Eterna.

— Obrigado por encontrar cabinas para nós em tão


pouco tempo, Capitão Harlowe — agradeceu Loth. — Esta
é uma missão de extrema importância.

— E de extremo sigilo, ouvi dizer. Estranho que


ninguém, exceto o herdeiro de Goldenbirch, pudesse
tratar disso. — Harlowe estudou Loth. — Partimos para a
cidade portuária yscali de Perunta ao anoite­cer. A minha
tripulação não está habituada a ter nobres sob os seus
pés, então talvez seja mais confortável para todos nós se
vos mantiverdes nas vossas cabinas enquanto estiverdes
connosco.

— Sim — concordou Kit. — Boa ideia.


— Sou pleno delas — disse o capitão. — Algum de
vós já esteve em Yscalin? — Quando os dois abanaram a
cabeça, ele disse: — Qual de vós ofendeu o secretário
principal?
Loth sentiu, em vez de ver, Kit a apontar o polegar
para ele.
— Lorde Arteloth. — Harlowe soltou uma risada
rouca. — E sois um sujeito tão respeitável. Obviamente,
haveis desagradado a Sua Graça a ponto de ele preferir
não vos ver vivo novamente. — O capitão recostou-se na
cadeira. — Estou certo de que tendes conhecimento de
que a Casa de Vetalda agora declara abertamente a sua
fidelidade draconiana.
Loth estremeceu. O conhecimento de que um país
poderia, em pou­cos anos, deixar de seguir o Santo para
adorar o seu inimigo abalara todo o Reino das Virtudes.
— E todos obedecem? — questionou.
— O povo faz o que o rei manda, mas sofre. Ouvimos
dos estivadores que a peste está em toda a Yscalin. —
Harlowe voltou a pegar na sua pena. — Por falar nisso, a
minha tripulação não vos irá escoltar até à costa. Usareis
um barco para chegar a Perunta.
Kit engoliu em seco.
— E depois?
— Sereis recebidos por um emissário, que vos levará
até Cárscaro. Sem dúvida que a sua corte está livre da
doença, já que os nobres se dão ao luxo de se barrarem
nas suas Fortalezas quando esse tipo de coisas ocorre —
disse Harlowe —, mas evitai tocar em alguém. A estirpe
mais comum é transmitida de pele para pele.
— Como sabeis disso? — perguntou Loth. — A peste
draconiana não é vista há séculos.
— Tenho interesse cm sobreviver, Lorde Arteloth.
Recomendo-vos que crieis um também. — O capitão
levantou-se. — Mestre Plume, preparai o navio.
Providenciaremos para que os meus senhores cheguem
inteiros à costa, ainda que estejam fadados a morrer à
chegada.
7
Oeste

A Torre de Alabastro era uma das mais altas do Palácio


de Ascalon.
No topo das suas escadas em caracol, ficava a
Câmara do Conselho, redonda e arejada, de janelas
emolduradas por cortinas transparentes.
Ead foi escoltada pela porta quando a torre do relógio
bateu as nove e meia. Além de não estar trajada com um
dos seus vestidos mais finos, enver­gava um mais
modesto, com colarinho, e o seu único colar
ornamentado.
Um retrato do Santo fitava-a de uma parede. Sir
Galian Berethnet, an­cestral direto de Sabran. Erguida na
sua mão estava Ascalon, a Espada da Verdade,
homónima da capital.
Ead achou que ele parecia um completo idiota.
O Conselho das Virtudes era composto por três
órgãos. Os mais po­derosos eram os Duques Espirituais,
cada um proveniente de uma das famílias descendentes
de um membro do Sagrado Séquito — os seis ca­valeiros
de Galian Berethnet — e cada um deles era o guardião
de uma das Virtudes da Cavalaria. Em seguida vinham os
Condes Provinciais — os chefes das famílias nobres que
controlavam os seis condados de Inys — e a Assembleia
dos Cavaleiros, que nasceram plebeus.
Naquele dia, apenas quatro membros do conselho se
encontravam sentados à mesa que dominava a câmara.
A senhora Usher bateu o seu bastão.
— Senhora Ead Duryan — disse ela. — Uma criada
comum da Câmara Privada de Sua Majestade.
A rainha de Inys estava na cabeceira da mesa, os
lábios pintados de vermelho como sangue.
— Senhora Duryan — disse ela.
— Majestade — Ead fez uma reverencia. — Vossas
Graças.
— Senta-te.
Quando se sentou, Ead chamou a atenção de Sir
Tharian Lintley, Capitão dos Cavaleiros do Corpo, que lhe
ofereceu um sorriso tranqui­lizador do seu posto, próximo
das portas. Como a maioria dos membros da Guarda
Real, Lintley era alto, robusto e não carecia de
admiradores na corte. Estava apaixonado por Margret
desde que esta chegara, e Ead sabia que o seu afeto era
correspondido, mas a diferença de posições mantinha-os
separados.
— Senhora Duryan — disse o Lorde Seyton Combe, de
sobrancelhas levantadas. O Duque da Cortesia estava
sentado à esquerda da rainha. — Não vos sentis bem?
— Perdão, meu senhor?
— Há sombras sob os vossos olhos.
— Encontro-me muito bem, Vossa Graça. Apenas um
pouco cansada após o entusiasmo da visita dos
mênticos.
Combe tirou-lhe as medidas sobre a borda da sua
chávena. Com qua­se 60 anos, olhos como tempestades,
pele amarelada e boca quase sem lábios, o secretário
principal era uma presença formidável. Dizia-se que, se
fosse tramado um complô contra a Rainha Sabran pela
manhã, ele teria os cúmplices na cremalheira ao meio-
dia. Uma pena que o mestre dos assassinos ainda o
iludisse.
— De facto. Uma visita imprevista, contudo agradável
— disse Combe, e um leve sorriso regressou-lhe aos
lábios. Todas as suas ex­pressões eram suaves. Como
vinho temperado com água. — Já ques­tionámos muitos
membros da casa real, mas achámos prudente deixar as
damas de Sua Majestade para o fim, considerando como
estavam ocupadas durante a visita dos mênticos.
Ead susteve-lhe o olhar. Combe podia falar a
linguagem dos segredos, mas não conhecia os dela.
A senhora Igrain Crest, Duquesa da Justiça, estava
sentada do outro lado da rainha. Tinha sido ela a
principal influência em Sabran durante a sua
menoridade, após a morte da Rainha Rosarian, e, ao que
parecia, tivera grande influência em transformá-la num
modelo de virtude.
— Agora que a senhora Duryan chegou — disse ela,
dirigindo um sorriso a Ead —, talvez possamos começar.
Crest tinha a mesma estrutura óssea fina e olhos
azuis que a neta, Roslain, embora o seu cabelo, enrolado
nas têmporas, há muito tivesse ficado prateado.
Pequenas linhas marcavam o entorno dos seus lábios,
que eram quase tão pálidos como o resto do seu rosto.

— De facto — disse a senhora Nelda Stillwater. A


Duquesa da Bravura era uma mulher corpulenta, com a
pele de um castanho profundo e ca­racóis escuros. Um
carcanete ornamental de rubis reluzia em torno do seu
pescoço. — Senhora Duryan, foi encontrado um homem
morto na soleira do Quarto de Leito Real, na noite de
anteontem. Segurava uma adaga feita em Yscalin.
Uma adaga de aparar, mais especificamente. Em
duelos, eram usadas no lugar de um escudo, para
proteger e defender o portador, mas tam­bém podiam
matar. Cada assassino carregava uma.

— Ao que parece, pretendia matar Sua Majestade


— disse Stillwater —, mas ele próprio foi morto.

— Terrível — murmurou o Duque da Generosidade.


Lorde Ritshard Eller, com pelo menos 90 anos, usava
peles grossas mesmo no verão. Pelo que Ead observou,
também ele era um tolo hipócrita.

Ead controlou as suas feições.

— Outro assassino?

— Sim — afirmou Stillwater, franzindo a testa. —


Como sem dúvida já terei ouvido, aconteceu mais de
uma vez no ano passado. Dos nove possíveis assassinos
que conseguiram entrar no Palácio de Ascalon, cinco
foram mortos antes de poderem ser apreendidos.

— É tudo muito estranho — disse Combe,


pensativo. — Mas parece sensato concluir que alguém da
Casa Superior matou o patife.

— Um feito nobre — disse Ead.

Crest bufou.
— Dificilmente, minha querida — disse ela. — Este
protetor, seja ele quem for, também é um assassino, e
estes devem ser desmascarados. — A sua voz estava
fraca de frustração. — Assim como o assassino, essa
pessoa entrou nos aposentos reais sem ser convidada, de
alguma forma escapando aos Cavaleiros do Corpo. Então,
cometeu um assassinato e deixou o cadáver para ser
encontrado por Sua Majestade. Teria preten­sões de
pregar à nossa rainha um susto de morte?

— Imagino que pretendia impedir que a nossa


rainha fosse esfaqueada até à morte, Vossa Graça.

Sabran ergueu uma sobrancelha.

— O Cavaleiro da Justiça desaprova qualquer tipo


de derramamento de sangue, senhora Duryan — disse
Crest. — Se quem quer que esteja a matar assassinos
tivesse vindo até nós, poderíamos tê-lo perdoado, mas a
sua recusa em revelar-se insinua intenções perigosas.
Descobriremos a sua identidade.

— Estamos a contar com testemunhas para nos


ajudar, senhora. Este incidente aconteceu anteontem à
meia-noite — disse Combe. — Dizei-me, viu ou ouviu algo
suspeito?

— Nada que me ocorra de momento, Vossa Graça.


Sabran não parava de olhar para ela. O escrutínio
fez Ead sentir um calor sob o seu colarinho.

— Senhora Duryan — solicitou Combe —, tendes


sido uma serva leal na corte. Sinceramente, duvido de
que o Embaixador uq-Ispad tivesse presenteado Sua
Majestade com uma dama que não fosse de carácter
impecável. No entanto, devo avisar que, neste momento,
o silêncio é um ato de traição. Sabeis alguma coisa sobre
este assassino? Ouvistes alguém a expressar antipatia
por Sua Majestade ou simpatia pelo Reino Draconiano de
Yscalin?

— Não, Vossa Graça — respondeu Ead. — Mas se


ouvir algum sussurro, trá-lo-ei à vossa porta.
Combe trocou um olhar com Sabran.
— Tem um bom dia, senhora — disse a rainha. —
Cumpre as tuas obrigações.
Ead fez uma reverência e saiu da câmara. Lintley
fechou as portas atrás dela.
Não havia guardas ali; ficavam à espera na base da
torre. Ead certificou-se de que os seus passos eram
ruidosos enquanto caminhava para a escada, mas parou
após os primeiros passos.
Possuía uma audição mais nítida do que a maioria.
Um privilégio da magia persistente no seu sangue.
— ... parece verdadeira — dizia Crest. — Mas ouvi
dizer que alguns ersyris se interessam pelas artes
proibidas.
— Oh, merda — interrompeu Combe. — Não
acreditais realmente em rumores de alquimia e feitiçaria.
— Como Duquesa da Justiça, devo considerar todas
as possibilida­des, Seyton. Todos nós sabemos que os
assassinos são de Yscalin, é claro. Ninguém tem
motivação mais forte do que os yscals para ver Sua
Majestade morta, mas é imperativo que erradiquemos
também esse pro­tetor, que mata com tanta manifesta
perícia. Estaria muito interessada em falar com ele sobre
a origem dos seus... métodos.

— A senhora Duryan sempre foi uma dama de


companhia diligente, Igrain — disse Sabran. — Se não
tendes provas de que estava envolvida, talvez
devêssemos seguir em frente.

— Como decretais, Vossa Majestade.

Ead soltou um longo suspiro.

O seu segredo estava a salvo. Ninguém a vira a


entrar nos aposentos reais naquela noite. Mover-se sem
ser vista era outro dos seus talentos, pois com a chama
vinha a subtileza da sombra.

Um som vindo de baixo. Pés blindados na escada.


Os Cavaleiros do Corpo nas suas rondas.

Precisava de um lugar menos aberto para ouvir.


Rapidamente, desceu para o próximo andar e deslizou
para uma varanda.

— ... é da vossa idade, ao que tudo indica, muito


agradável e inteli­gente, e um soberano do Reino das
Virtudes — disse Combe. — Como sabeis, Majestade, as
últimas cinco rainhas Berethnet tomaram consor­tes de
Inys. Não houve um casamento com um estrangeiro
durante mais de dois séculos.

— Pareceis preocupado, Vossa Graça — disse


Sabran. — Tendes tão pouca fé nos encantos dos homens
inysh que vos surpreende que os meus ancestrais os
tenham escolhido para consortes?

Risos.

— Na qualidade de homem inysh, devo protestar


contra essa avaliação — respondeu Combe com alguma
suavidade. — Mas os tempos mudaram. Um casamento
com um estrangeiro é criticado. Agora que o nosso mais
antigo aliado traiu a religião verdadeira, devemos
mostrar ao mundo que os três países restantes que
juram fidelidade ao Santo permanecerão juntos,
aconteça o que acontecer, e que nenhum apoiará Yscalin
na sua crença equivocada de que o Inominável
regressará.
— Há perigo na sua reivindicação — interveio Crest.
— Os orientais veneram wyrms. Podem ser tentados pela
ideia de uma aliança com um território draconiano.

— Creio que julgastes mal o perigo, Igrain — disse


Stillwater. — Pelo que ouvi, os orientais ainda temiam a
peste draconiana.

— Yscalin também, noutros tempos.

— O que é certo — interrompeu Combe — é que


não podemos per­mitir nenhum sinal de fraqueza. Se vos
casásseis com Lievelyn, Majestade, isso enviaria uma
mensagem de que a Corrente das Virtudes nunca es­teve
tão unida.

— O Príncipe Vermelho negoceia com adoradores


de wyrms — disse Sabran. — Certamente não seria sábio
dar a nossa aprovação implícita a tamanha prática.
Sobretudo agora. Não concordais, Igrain?

Enquanto os ouvia, Ead teve de sorrir. A rainha já


encontrara um problema com o seu pretendente.

— Embora produzir uma herdeira o mais rápido


possível seja o dever de uma Berethnet, eu concordo,
Vossa Majestade. Sabiamente observa­do — respondeu
Crest, em tom maternal. — Lievelyn não é digno de uma
descendente do Santo. O seu comércio com Seiiki
envergonha todo o Reino das Virtudes. Se sugerirmos a
nossa tolerância a essa heresia, podemos encorajar
aqueles que adoram o Inominável. Lievelyn tam­bém era,
não nos esqueçamos, noivo de Donmata Marosa, que
agora é a herdeira de um território draconiano. Uma
afeição pode permanecer.

Um Cavaleiro do Corpo passou pela varanda. Ead


comprimiu-se contra a parede.

— O noivado foi desfeito no momento em que


Yscalin traiu a fé — disse Combe precipitadamente. —
Quanto ao comércio oriental, a Casa de Lievelyn não
negociaria com Seiiki a menos que fosse essencial. Os
Vatten podem ter trazido Mentendon para a fé, mas
também o empobre­ceram. Se dermos aos mênticos
termos favoráveis numa aliança, e se um casamento real
estiver no horizonte, talvez a troca possa ser
interrompida.
— Meu caro Seyton, não é a necessidade que
compele os mênticos, mas a ganância. Apraz-lhes deter o
monopólio do comércio com o Oriente. Além disso,
dificilmente podemos esperar sustentá-los indefini­‐
damente — disse Crest. — Não, não há necessidade de
discutir Lievelyn. Um par muito mais forte, que há muito
defendo a vós, Majestade, é o Supremo Chefe de Askrdal.
Devemos manter a força dos nossos vínculos com Hróth.
— Ele tem setenta anos — disse Stillwater,
parecendo consternada.
— E Glorian Shieldheart não se casou com Guma
Vetalda, que tinha setenta e quatro anos? — interveio
Eller.

— De facto, sim, e ele deu-lhe uma criança


saudável. — Crest parecia satisfeita. — Askrdal trar-nos-ia
experiência e sabedoria que Lievelyn, príncipe de um
reino jovem, não traria.

Após uma pausa, Sabran falou.

— Não há outros pretendentes?

Seguiu-se um longo silêncio.

— O boato da sua familiaridade com o Lorde


Arteloth espalhou-se, Majestade — revelou Eller, a voz
trémula. — Alguns acreditam que po­deis estar
secretamente casada com...

— Poupai-me, Vossa Graça, a mexericos


infundados. E por falar em Lorde Arteloth — disse
Sabran. — Ele deixou a corte sem motivo ou aviso. Não
ouvirei falar dele.

Outro silêncio tenso.

— Vossa Majestade — disse Combe —, os meus


informadores disseram-me que o Lorde Arteloth
embarcou num navio com destino a Yscalin,
acompanhado por Lorde Kitston Glade. Ao que parece,
des­cobriu a minha intenção de enviar um espião para
encontrar o senhor vosso pai... mas acreditava ser o
único homem apto para uma missão que toca Vossa
Majestade tão perto.

Yscalin.

Por um momento terrível, Ead não conseguiu


mexer-se ou respirar.

Loth.

— Talvez seja pelo melhor — prosseguiu Combe na


quietude. — A ausência de Lorde Arteloth permitirá que
os rumores de um caso entre ambos arrefeçam... e é
mais do que hora de sabermos o que está a acon­tecer
em Yscalin. E se o senhor vosso pai, o Príncipe Wilstan,
está vivo.

Combe estava a mentir. Loth não poderia


simplesmente ter tropeçado num plano para enviar um
espião a Yscalin e decidido ir pessoalmente. A ideia era
absurda. Não só Loth nunca seria tão imprudente, como
também o Falcão da Noite nunca permitiria que tais
planos fossem descobertos.

Fora ele quem o planeara.


— Algo não está certo — disse Sabran por fim. —
Não é típico de Loth agir de maneira tão precipitada. E
acho extremamente difícil acre­ditar que nenhum de vós
percebeu as suas intenções. Não sois meus conselheiros?
Não tendes olhos em todos os cantos da minha corte?

O silêncio que se seguiu foi denso como um


maçapão.

— Pedi-vos que enviásseis alguém para resgatar o


meu pai há dois anos, Lorde Seyton — disse a rainha,
mais suavemente. — Haveis-me dito que o risco era
muito grande.
— Temia que fosse, Majestade. Agora, acho que se
trata de um risco necessário se quisermos saber a
verdade.
— O Lorde Arteloth não deve ser arriscado. — Havia
uma tensão pun­gente na sua voz. — Tratai de enviar os
vossos criados atrás dele. Que o tragam de volta para
Inys. Deveis detê-lo, Seyton.
— Perdoai-me, Majestade, mas, nesta altura, estará
em território dra­coniano. É totalmente impossível enviar
alguém para resgatar o Lorde Arteloth sem atrair a
atenção de Vetalda de que se encontra lá em ne­gócios
não sancionados, dos quais eles já suspeitarão. Apenas
poríamos a sua vida em perigo.
Ead engoliu o aperto na sua garganta. Não só Combe
mandara Loth embora, como também o mandara para
um lugar onde Sabran havia perdido toda a sua
influência. Não havia nada que ela pudesse fazer. Não
quando Yscalin era agora um inimigo imprevisível, capaz
de des­truir a paz frágil num piscar de olhos.
— Vossa Majestade — disse Stillwater —, entendo
que esta notícia vos tenha consternado, mas devemos
tomar uma decisão final sobre o processo.
— Sua Majestade já decidiu contra Lievelyn —
interrompeu Crest. — Askrdal é o único...
— Devo insistir numa discussão mais aprofundada,
Igrain. Lievelyn é um melhor candidato, em muitos
aspetos, e eu não o veria dispensado. — Stillwater falou
em tons entrecortados. — Trata-se de um assunto
delicado, Majestade, perdoai-me, mas deveis ter uma
sucessora, e em breve, para tranquilizar o vosso povo e
assegurar o trono para outra ge­ração. A necessidade não
seria tão urgente se não fosse pelos atentados contra a
vossa vida. Se tivésseis apenas uma filha...
— Agradeço-vos a preocupação, Vossa Graça —
disse Sabran com secura —, mas ainda não me recuperei
o suficiente de ver um cadáver ao lado da minha cama
para discutir o seu uso para gerar herdeiras. — Uma
cadeira arrastou no chão, seguida por outras quatro. —
Podeis questionar a senhora Linora no seu lazer.
— Majestade... — começou Combe.

— Irei quebrar o meu jejum. Bom dia.

Ead voltou para dentro, descendo antes que as


portas da Câmara do Conselho se abrissem. Na base da
torre, percorreu o corredor, o coração a martelar.
Margret ficaria arrasada quando descobrisse. O seu
irmão era dema­siado ingénuo, demasiado gentil para ser
um espião na corte dos Vetalda.

Não fora talhado para aquele mundo.

Na Torre da Rainha, os criados reais dançavam ao


som do coro do amanhecer. Criados e empregadas
cruzavam-se entre os quartos. O cheiro de pão
fermentado emanava da Cozinha Real. Engolindo a sua
amar­gura o melhor que podia, Ead abriu caminho pela
Câmara de Presença, onde estavam amontoados os
peticionários, como sempre, à espera da rainha.

Ead sentiu as suas proteções enquanto se


aproximava do Quarto de Leito Real. Estavam dispostas
como armadilhas pelo palácio. Durante o primeiro ano na
corte, andava com os nervos em franja, incapaz de dor­‐
mir enquanto se agitavam ao menor movimento, mas,
aos poucos, apren­dera a reconhecer as sensações que
provocavam nela e a mudá-las como se num quadro de
contagem. Aprendera sozinha a reparar apenas quan­do
alguém estava fora do lugar. Ou quando um estranho
visitava a corte.

Lá dentro, Margret estava a desfazer a cama e


Roslain Crest a sacudir panos de tecido simples. Sabran
devia estar próxima do seu sangramento — o lembrete
mensal de que ainda não estava inchada com uma
herdeira.

Ead juntou-se a Margret no seu trabalho. Tinha de


lhe contar sobre Loth, mas teria de esperar até estarem
sozinhas.

— Senhora Duryan — disse Roslain, quebrando o


silêncio. Ead endireitou-se.

— Minha senhora.

— A senhora Katryen adoeceu esta manhã. — A


primeira dama prendeu um dos panos numa faixa de
seda. — Ireis tomar o lugar dela a provar a comida de
Sua Majestade.

Margret franziu a testa.

— Claro — disse Ead calmamente.

Aquilo era a punição pelo seu desvio durante a


história. As Damas do Leito Real eram recompensadas na
mesma moeda pelos riscos que assumiam como
provadoras de comida, mas, para uma camareira, era
uma tarefa ingrata e perigosa.
Para Ead, também era uma oportunidade.
No caminho para o Solário Real, outra oportunidade
apresentou-se. Truyde utt Zeedeur caminhava atrás de
duas outras damas de compa­nhia. Quando Ead passou,
segurou-a pelo ombro e puxou-a de lado, murmurando-
lhe ao ouvido:
— Encontrai-me depois das orações, amanhã à noite,
ou providencia­rei para que Sua Majestade receba as
vossas cartas.
Quando as outras damas de companhia olharam para
trás, Truyde sor­riu, como se Ead lhe tivesse contado uma
piada. Pequena raposa arguta.
— Onde? — perguntou, ainda a sorrir.
— Na Escadaria Real.
Separaram-se.
O Solário Real era um refúgio tranquilo. Três das suas
paredes projetavam-se da Torre da Rainha,
proporcionando uma vista inigua­lável da capital de Inys,
Ascalon, e do rio que a atravessava. Colunas de pedra e
fumo de lenha erguiam-se das suas ruas. Cerca de
duzentas mil almas chamavam de lar à cidade.
Ead raramente ia lá. Não era apropriado que damas
de companhia fossem vistas a discutir com mercadores e
a brincar na imundície.
O sol lançava sombras no chão. A rainha estava na
sua mesa, sozinha, exceto pelos Cavaleiros do Corpo à
porta. As suas partasanas cruzadas diante de Ead.
— Senhora — disse um deles —, não deveis servir a
refeição de Sua Majestade hoje.
Antes que ela pudesse explicar, Sabran falou:
— Quem é?
— Senhora Ead Duryan, Majestade. Vossa camareira.
Silêncio. Depois:
— Deixa-a passar.
Os cavaleiros afastaram-se imediatamente. Ead
aproximou-se da rainha, os saltos dos seus sapatos sem
fazer barulho.
— Bom dia, Vossa Majestade. — Fez uma reverência.
Sabran já olhara para trás, para o seu livro de orações
esmaltado em ouro.
— A Kate devia estar aqui.
— A senhora Katryen adoeceu.
— Ela foi minha companheira de cama ontem à
noite. Eu saberia se ela estivesse doente.
— Foi o que disse a senhora Roslain — contrapôs
Ead. — Se vos aprouver, irei provar a vossa comida hoje.
Quando não recebeu uma resposta, Ead sentou-se.
Estando tão perto de Sabran, podia sentir o cheiro do seu
perfume, recheado com raiz de orris e cravo. Os inysh
acreditavam que tais perfumes podiam prevenir doenças.
Permaneceram sentadas em silêncio durante algum
tempo. O peito de Sabran subia e descia continuamente,
mas a posição da sua mandí­bula traía a sua raiva.
— Majestade — disse Ead finalmente —, talvez seja
ousado da minha parte, mas não pareceis de bom humor
hoje.
— É deveras ousado. Estás aqui para garantir que a
minha comida não é envenenada, para não prejudicar o
meu espírito.
— Perdoai-me.
— Tenho sido muito indulgente. — Sabran fechou o
livro com força. — É claro que não segues o Cavaleiro da
Cortesia, senhora Duryan. Talvez não sejas uma
verdadeira convertida. Talvez apenas prestes ser­viços
vazios ao meu ancestral, enquanto secretamente
manténs uma religião falsa.
Ead estava ali havia apenas um minuto e já se
encontrava em areia movediça.
— Majestade — disse ela com cautela —, a Rainha
Cleolind, vossa ancestral, era uma princesa herdeira de
Lasia.
— Não há necessidade de me lembrares disso. Julgas-
me idiota?
— De forma alguma — respondeu Ead. Sabran colocou
o seu livro de orações de lado. — A Rainha Cleolind era
nobre e de bom coração. Não foi responsável por não
saber nada sobre as Seis Virtudes quando nas­ceu. Posso
ser ingénua, mas em vez de os punir, certamente
devemos ter compaixão por aqueles que vivem na
ignorância e conduzi-los para a luz.
— Certamente — repetiu Sabran secamente. — A luz
da pira.
— Se pretendeis lançar-me à fogueira, senhora, então
lamento. Ouvi dizer que nós, os ersyris, damos lenha
muito fraca. Somos como areia, demasiado habituados
ao sol para queimar.
A rainha olhou para ela. O seu olhar mergulhou no
alfinete do seu vestido.

— Tomas o Cavaleiro da Generosidade como


patrono.

Ead tocou-lhe.

— Sim — confirmou. — Como uma das vossas


damas, ofereço-lhe a minha lealdade, Majestade. Para
dar, é preciso ser generosa.
— Generosidade. O mesmo que Lievelyn. — Sabran
disse-o quase para si mesma. — Talvez ainda te proves
mais generosa do que cer­tas outras senhoras. Primeiro, a
Ros insistiu em engravidar, depois ficou demasiado
cansada para me servir, e depois a Arbella não pôde
andar comigo e agora a Kate finge estar doente. Todos os
dias, é-me recordado que nenhuma delas tem
Generosidade como seu patrono.

Ead sabia que Sabran estava chateada, mas, ainda


assim, precisou de bastante contenção para não lhe
verter o vinho sobre a cabeça. As Damas do Leito Real
sacrificavam muito para atender a rainha a toda a hora.
Provavam a sua comida e experimentavam os seus
vestidos, arriscando as próprias vidas. Katryen, uma das
mulheres mais desejáveis da corte, provavelmente nunca
casaria. Quanto a Arbella, já tinha setenta anos, servira a
Sabran e à mãe e ainda não se aposentara.

Ead foi poupada de responder com a chegada da


refeição. Truyde utt Zeedeur estava entre as damas de
honor que a apresentariam, mas recusou-se a olhar para
Ead.

Muitos costumes inysh haviam-na confundido ao


longo dos anos, mas as refeições reais eram absurdas.
Primeiro, a rainha era servida com a sua escolha de vinho
— depois, era-lhe oferecido não um, não dois, mas 18
pratos. Cortes finos de carne castanha. Groselhas
transformavam-se em vegetais. Panquecas com mel
preto, manteiga de maçã ou ovos de codorniz. Peixe
salgado do Limber. Morangos da floresta numa camada
de creme de neve.

Como sempre, Sabran escolheu apenas uma rodada


de pão dourado. Um aceno de cabeça em direção a ele
foi a única indicação.

Silêncio. Truyde olhava para a janela. Uma das


outras damas de ho­nor, com ar de pânico, deu-lhe uma
cotovelada. De volta à tarefa que tinha em mãos, Truyde
apanhou o pão dourado com uma cobertura e pô-lo no
prato real com uma vénia. Outra dama de companhia
serviu um rolo de manteiga doce.

Agora, a degustação. Com um sorriso malicioso,


Truyde entregou a faca com cabo de osso a Ead.

Primeiro, Ead deu um gole no vinho. Depois provou


o rolo de mantei­ga doce. Ambos eram seguros. Em
seguida, cortou um pedaço do pão e tocou-lhe com a
ponta da língua. Uma gota da viúva far-lhe-ia formigar o
céu da boca, dipsas ressecavam os lábios e a poeira da
eternidade — o mais raro dos venenos — dava a cada
mordida na comida um travo desagradável.
Não havia nada além de pão denso no interior. Fez
deslizar os pratos diante da rainha e devolveu a faca de
degustação a Truyde, que a limpou uma vez e a envolveu
com linho.

— Deixem-nos — disse Sabran.

Olhares foram trocados. Normalmente, a rainha


desejava diversão ou mexericos das damas de honor na
hora das refeições. Em movimentos sincronizados,
fizeram uma reverência e saíram. Ead foi em último.

— Tu não.

Voltou a sentar-se.

O sol estava mais forte agora, enchendo o Solário


Real com luz, on­dulando na jarra de vinho de roseira-
brava.

— A senhora Truyde parece distraída ultimamente.


— Sabran olhou para a porta. — Doente, talvez, como a
Kate. Seria de esperar que tais doenças atingissem a
corte no inverno.

— Sem dúvida que é a febre da rosa, senhora, nada


mais. Quanto à senhora Truyde, julgo, é mais provável
que sinta saudades de casa — disse Ead. — Ou... pode
estar doente de amores, como as jovens don­zelas
costumam estar.

— Não podes ter idade suficiente para dizer essas


coisas. Quantos anos tens?

— Vinte e seis, Majestade.

— Não muito mais jovem do que eu, então. E estás


doente de amor, como as jovens donzelas costumam
estar?

Poderia ter soado ambíguo em lábios diferentes,


mas aqueles olhos eram tão frios como as joias que lhe
adornavam a garganta.

— Temo que um cidadão inysh ache difícil amar


alguém que já jurou seguir outra religião — respondeu
Ead após um momento.

Não fora uma pergunta leve a de Sabran. O namoro


era um assunto formal em Inys.

— Disparate — disse a rainha. O sol reluzia nos


seus cabelos. — Sei que és próxima do Lorde Arteloth.
Ele disse-me que vocês trocavam pre­sentes em todos os
Banquetes da Camaradagem.

— Sim, senhora — disse Ead. — Somos próximos.


Entristeceu-me saber que ele deixou a cidade.
— Há de regressar. — Sabran lançou-lhe um olhar
atento. — Ele cortejou-te?

— Não — respondeu Ead com sinceridade. —


Considero o Lorde Arteloth um amigo querido e não
procuro mais do que isso. Ainda que procurasse, não
estou em posição adequada para me casar com o futuro
Conde de Goldenbirch.

— De facto. O Embaixador uq-Ispad disse-me que o


teu sangue era de origem humilde. — Sabran deu um
gole no seu vinho. — Não estás apaixonada, portanto.

Uma mulher tão rápida a insultar aqueles abaixo


dela deve ser vulne­rável à lisonja.

— Não, Majestade — disse Ead. — Não estou aqui


para desperdiçar tempo em busca de um companheiro.
Estou aqui para atender à mais graciosa rainha de Inys.
Isso é mais do que suficiente.

Sabran não sorriu, mas o seu rosto suavizou-se do


tom severo.
— Talvez queiras passear comigo no Jardim Real
amanhã — ofereceu ela. — Isto é, se a senhora Arbella
ainda estiver indisposta.
— Se vos aprouver, Majestade — respondeu Ead.

***
Na cabina apenas cabiam dois beliches. Um mêntico
corpulento entregou-lhes um jantar de carne salgada, um
peixe do tamanho de um polegar e pão desfiado, rançoso
o suficiente para lhes lascar os dentes. Kit aguentou
metade da sua carne antes de sair a correr para o
convés.
A meio do seu pão, Loth desistiu. Aquilo estava
muito longe das ofertas sumptuosas da corte, mas a
comida vil era a última das suas preocupações. Combe
estava a enviá-lo para a sua perdição, e em vão.
Ele sempre soubera que o Falcão da Noite podia
fazer as pessoas de­saparecer. Pessoas que via como uma
ameaça à Casa de Berethnet, quer se comportassem de
uma maneira que desgraçava as suas posições, quer
desejassem mais poder do que o devido.

Mesmo antes de Margret e Ead o avisarem de que a


corte estava a fa­lar, Loth sabia dos rumores. Boatos de
que ele tinha seduzido Sabran, de que se casara com ela
em segredo. Agora, os Duques Espirituais estavam à
procura de um parceiro estrangeiro para ela, e o boato,
por mais infun­dado que fosse, era um impedimento. Loth
era um problema e Combe incumbira-se de o resolver.

Devia haver alguma forma de avisar Sabran. Por


enquanto, porém, teria de se concentrar na tarefa em
mãos. Aprender a ser espião em Cárscaro.
Esfregando a ponta do nariz, Loth pensou em tudo
o que sabia sobre o Lorde Wilstan Fynch.

Quando criança, Sabran nunca fora próxima do pai.


Asseado e bar­budo, de porte militar, Fynch sempre
parecera a Loth a personificação dos ideais do seu
ancestral, o Cavaleiro da Temperança. O príncipe con­‐
sorte nunca fora dado a demonstrações de emoção, mas
era claro que amava a sua família, e fizera Loth e Roslain,
os mais próximos de sua filha, sentir que eram parte
dela.

Quando Sabran foi coroada, o seu relacionamento


mudou. Pai e filha costumavam ler juntos na Biblioteca
Privada, e ele aconselhava-a nos assuntos do reino. A
morte da rainha Rosarian deixara um vazio nas suas
vidas, e foi nesse vazio que eles finalmente se tornaram
amigos, mas isso não bastara a Fynch. Rosarian fora a
sua estrela-guia e, sem ela, ele sentia-se perdido na
vastidão da corte inysh. Pedira permissão a Sabran para
fixar residência em Yscalin como seu embaixador, e
desde então que se contentava com esse papel,
escrevendo-lhe em todas as temporadas. Ela, por sua
vez, esperava ansiosamente pelas suas cartas de
Cárscaro, onde a Casa de Vetalda governava uma corte
alegre. Loth supôs que devia ter sido mais fácil para
Fynch enterrar a sua dor longe da casa que dividira com
Rosarian.

Contudo, a sua carta final fora diferente. Dissera a


Sabran, por outras palavras, que acreditava que Vetalda
estivera envolvida no assassinato de Rosarian. Essa foi a
última vez que alguém em Inys ouviu falar do Duque da
Temperança, antes que as pombas das rochas voassem
de Cárscaro, declarando que Yscalin tomava agora o
Inominável como seu deus e mestre.

Loth pretendia descobrir o que acontecera naquela


cidade. O que causara a rutura com o Reino das Virtudes
e o que sucedera a Fynch. Qualquer informação podia ser
inestimável se Yscalin algum dia decla­rasse guerra à
Casa de Berethnet, o que Sabran vinha temendo havia
muito tempo.

Enxugou a testa. Kit devia estar a ferver como um


coelho no convés. Pensando bem, Kit já estava no convés
há muito tempo.

Com um suspiro, Loth levantou-se. Não havia


fechadura na porta, mas supôs que não havia lugar para
os piratas arrastarem a arca de viagem com roupa e
outros pertences que tinham estado na carruagem.
Combe devia ter enviado os seus criados para os recolher
enquanto Loth se encontrava alheio na Câmara Privada,
partilhando uma ceia tranqui­la com Sabran e Roslain.

O ar estava frio lá em cima. Uma brisa soprava


sobre as ondas. Enquanto a tripulação se movia de um
lado para o outro, gritavam uma música, demasiado
rápida e encharcada de maresia para Loth entender.
Apesar do que Harlowe dissera, ninguém reparou nele
enquanto subia para o tombadilho.

O Estreito do Cisne dividia o Rainhado de Inys do


grande continente que aportava o Oeste e o Sul. Mesmo
no alto verão, ventos perecíveis sopravam do Mar Pálido.

Deu com Kit agarrado à berma, enxugando o


vómito do queixo.

— Ora, boa noite, caro senhor. — Loth deu-lhe uma


palmadinha nas costas. — Regalaste-te com um pouco de
vinho pirata?

Kit estava pálido como um lírio.

— Arteloth — chamou —, acho que não estou nada


bem, sabes.

— Precisas de cerveja.

— Não me atrevo a pedir-lhes isso. Têm estado a


rugir assim desde que aqui cheguei.
— Estão a cantar — disse uma voz rouca.

Loth estremeceu. Uma mulher com um chapéu


preto de aba larga estava encostada na amurada
próxima.

— Músicas de trabalho. — Atirou a Kit um odre de


vinho. — Ajuda os baldeadores a passar o tempo.

Kit soltou a tampa.

— Dissestes baldeadores, senhora?

— Aqueles que limpam o convés.


A julgar pela sua aparência e sotaque, aquela
corsária era de Yscalin. Profunda pele cor de oliva,
bronzeada e sardenta. Cabelo como vinho de cevada.
Olhos de um âmbar claro, delineados com tinta preta, o
olho esquerdo sublinhado por uma cicatriz. Era bem
apresentada para uma pirata, até ao brilho das suas
botas e colete impecável. Ao seu lado, pen­dia um florete.
— Se fosse a vós, estaria de volta à minha cabina
antes do escurecer — advertiu. — A maioria da tripulação
pouco se importa com lordes. O Plume mantém-nos sob
controlo, mas quando ele dorme, o mesmo fazem as
boas maneiras deles.
— Creio que ainda não fomos apresentados, minha
senhora — disse Kit.
O sorriso dela aprofundou-se.
— E o que vos faz crer que eu gostaria de vos ser
apresentada, meu nobre senhor?
— Bem, foi vossa a primeira abordagem.
— Talvez me sentisse entediada.
— Talvez nós sejamos interessantes. — Ele fez a sua
vénia extrava­gante. — Eu sou o Lorde Kitston Glade,
poeta da corte. Futuro Conde de Honeybrook, para
desgosto do meu pai. Prazer em conhecer-vos.
— Lorde Arteloth Beck. — Loth inclinou a cabeça. —
Herdeiro do Conde e Condessa de Goldenbirch.
A mulher ergueu uma sobrancelha.
— Estina Melaugo. Herdeira dos meus próprios cabelos
grisalhos.
Contramestre do Rosa Eterna.
Ficou claro pela expressão de Kit que ele conhecia
aquela mulher. Loth optou por não perguntar.
— Então — disse Melaugo —, dirigi-vos para Cárscaro.
— Sois daquela cidade, senhora? — perguntou Loth.
— Não. Vazuva.
Loth observou-a a beber de uma garrafa de vidro.
— Senhora — disse ele —, pergunto-me se poderíeis
dizer-nos o que esperar na corte do Rei Sigoso. Sabemos
tão pouco sobre o que aconte­ceu em Yscalin nos últimos
dois anos.
— Sei tanto quanto vós, meu senhor. Fugi de Yscalin
com alguns outros no dia em que a Casa de Vetalda
anunciou a sua lealdade ao Inominável.
Kit voltou a falar:
— Muitos daqueles que fugiram tornaram-se piratas?
— Corsários, por favor. — Melaugo acenou com a
cabeça para o al­feres. — E não. A maioria dos eLivross foi
para Mentendon ou para o Ersyr para começar de novo,
da melhor maneira possível. Mas nem todos saíram.
— É possível, então, que nem todos em Yscalin sejam
fiéis ao Inominável? — indagou Loth. — Que estejam
apenas com medo do seu rei, ou presos no país?
— É provável. Ninguém sai agora, e muito poucos
entram. Cárscaro ainda aceita embaixadores
estrangeiros, como evidenciado por vós, mas, tanto
quanto sei, o resto do país pode ter sido devastado pela
peste. — Uma onda atravessou-lhe os olhos. — Se algum
dia sairdes, devereis dizer-me como está Cárscaro agora.
Ouvi dizer que houve um grande incêndio pouco antes de
os pássaros voarem. Os campos de lavanda costumavam
crescer perto da capital, mas queimaram-se.
Aquilo estava a deixar Loth mais desconfortável do
que antes.
— Confesso que estou curiosa — disse Melaugo —,
quanto ao motivo que impeliu a vossa rainha a enviar-vos
para o poço das cobras. Julguei que fôsseis o seu
favorito, Lorde Arteloth.
— Não é a Rainha Sabran quem nos envia, minha
senhora — disse Kit —, mas sim o abominável Seyton
Combe. — Suspirou. — Ele nun­ca gostou da minha
poesia, sabeis? Apenas uma casca sem alma poderia
odiar poesia.
— Ah, o Falcão da Noite — disse Melaugo, rindo. — Um
familiar adequado para a nossa rainha.
Loth congelou.
— Que quereis dizer com isso?
— Santo. — Kit parecia fascinado. — Herege e pirata.
Insinuais que a Rainha Sabran é algum tipo de bruxa?
— Corsária. E mantende a voz baixa. — Melaugo olhou
por cima do ombro. — Não me entendais mal, meus
senhores. Não tenho aversão pessoal pela Rainha
Sabran, mas venho de uma parte supersticiosa de
Yscalin, e há algo estranho nas Berethnets. Cada rainha
tem apenas uma criança, sempre uma filha, e todas se
parecem muito... não sei. A mim parece-me feitiçari...
— Sombra!

Melaugo virou-se. O rugido viera do ninho do corvo.

— Outro wyvern — disse baixinho. — Com a vossa


licença.

Saltou para as cordas e escalou. Kit correu para o


lado.

— Wyvern? Nunca vi um.

— Não queremos ver um — disse Loth. Sentia os


braços a formigar. — Este não é o lugar para nós, Kit.
Vem, volta para o convés antes...

— Espera. — Kit protegeu os olhos. Os seus


caracóis voavam com o vento. — Loth, vês aquilo?

Loth olhou de soslaio para o horizonte. O Sol estava


baixo e verme­lho, por pouco não o cegando.

Melaugo estava agarrada às enfrechaduras, um


olho numa luneta.

— Mãe de... — Baixou a luneta e depois ergueu-a


novamente. — Plume, é... não posso acreditar no que
estou a ver...
— O que é? — gritou o contramestre. — Estina?

— É um... um Sombra Ocidental. — O seu grito foi


rouco. — Um Sombra Ocidental!

As palavras acenderam o navio como uma


centelha. A ordem fragmentou-se no caos. Loth sentiu as
pernas tornarem-se pedra.

Sombra Ocidental.

— Preparem os arpões, os canhões — gritou uma


mulher mêntica. — Preparem-se para o calor! Não
interajam a menos que ataque!

Quando o viu, Loth ficou gelado até à medula dos


ossos. Não conse­guia sentir as mãos ou o rosto.

Era impossível, contudo, ali estava.

Um wyrm. Um monstruoso wyrm de quatro patas,


com mais de 60 metros de comprimento, do focinho à
ponta da cauda.

Aquele não era um wyverling à procura de gado.


Tratava-se de uma raça que havia séculos que não era
vista, desde as últimas horas da Ascensão das Sombras.
A mais poderosa das criaturas draconianas. Os Sombras
Ocidentais, os maiores e mais brutais de todos os dra­‐
gões, os terríveis lordes da raça wyrm.
Um deles havia acordado.
A besta planou acima do navio. À sua passagem, Loth
pôde cheirar-lhe o calor do seu interior, o fedor a fumo e
enxofre.
As presas da sua boca. As brasas dos seus olhos.
Inscreveram-se na sua memória. Ouvira histórias desde
criança, vira as ilustrações horrendas que se escondiam
nos bestiários, mas mesmo os seus pesadelos mais
angustiantes nunca teriam evocado algo tão temível.
— Não interajam — voltou a gritar a mulher mêntica.
— Firmes!
Loth pressionou as costas contra o mastro principal.
Não podia negar o que os seus olhos podiam ver.
Aquela criatura poderia não ter as escamas vermelhas do
Inominável, mas era seu semelhante.
A tripulação moveu-se como formigas a fugir da água,
mas o wyrm parecia determinado num outro percurso.
Sobrevoou o Estreito do Cisne. Loth conseguiu ver o fogo
a pulsar dentro dele, descendo por toda a extensão da
sua garganta até ao estômago. A sua cauda era
pontilhada de espinhos e terminava num poderoso
chicote.
Loth agarrou a amurada para se manter de pé. Os
seus ouvidos zumbiram. Perto dali, um dos marinheiros
mais jovens tremia dos pés à cabeça, inerte numa
piscina de ouro escuro.
Harlowe saiu da sua cabina. Observou o Sombra
Ocidental a deixa-los para trás.
— Sugiro-vos que comeceis a rezar por salvação,
meus senhores — disse calmamente. — Fýredel, a asa
direita do Inominável, parece ter despertado do seu sono.
8

Este

Sulyard ressonava. Mais uma razão pela qual


Truyde fora uma idiota por se comprometer com ele. Não
que Niclays tivesse conseguido dormir mesmo que o seu
convidado se tivesse calado, pois um tufão havia surgido.

Ressoaram trovões, fazendo relinchar um cavalo lá


fora. Bêbedo com uma única taça de vinho, Sulyard
dormiu o tempo todo.

Niclays estava deitado na cama, ele próprio


ligeiramente bêbedo. Ele e Sulyard tinham passado a
noite a jogar às cartas e a partilhar histórias. Sulyard
contara-lhe a história sombria da Rainha do Nunca,
enquanto Niclays optara pelos contos mais alegres de
Carbúnculo e Sarnento.

Continuava a não gostar de Sulyard, mas devia a


Truyde proteger o seu companheiro secreto. Devia-o a
Jannart.
O nó da sua dor apertou-se em torno do seu
coração. Fechou os olhos e regressou àquela manhã de
outono em que se tinham encontrado pela primeira vez
no jardim de rosas do palácio de Brygstad, quando a
corte do recém-coroado Edvart o Segundo estava repleta
de oportunidades.

Com vinte e poucos anos, quando ainda era


Marquês de Zeedeur, Jannart era alto e atraente, com
magníficos cabelos ruivos que ondula­vam até à nuca.
Naquela época, Niclays era um dos poucos mênticos a
ter uma juba ruiva mais bonita, mais ouro do que cobre.

Fora isso que atraíra Jannart para ele naquele dia.


Ouro rosa, apelidara-o. Perguntara a Niclays se podia
pintar o seu retrato, capturando assim a sombra para a
posteridade, e Niclays, como qualquer jovem cortesão
vaidoso, ficara muito satisfeito em atender.

Cabelo ruivo e um jardim de rosas. Fora assim que


começara.

Haviam passado toda a estação juntos, tendo como


companhia o ca­valete, a música e as gargalhadas.
Mesmo depois da conclusão do retrato haviam
permanecido juntos.
Niclays nunca se tinha apaixonado antes. Fora
Jannart quem se intri­gara o suficiente para o pintar, mas
não demorou a que Niclays ansiasse pela habilidade de o
pintar de volta, para que pudesse capturar a escuri­dão
daquelas pestanas, e a forma como o sol reluzia nos seus
cabelos, e a elegância das suas mãos no cravo de mesa.
Olhara para os seus lábios sedosos e para o lugar onde o
seu pescoço encontrava a sua mandíbula; vira-lhe o
sangue latejar ali, naquele berço de vida. Imaginara, com
por­menores estimulantes, como seriam os seus olhos sob
a luz da manhã, quando o sono tornava as pálpebras
pesadas. Aquele âmbar escuro re­quintado como o mel
das abelhas negras.

Vivera para ouvir aquela voz, profunda e suave. Oh,


poderia cantar baladas do seu tenor, e a maneira como
alcançava o auge da paixão quando a conversa se
inclinava para arte ou história. Esses assuntos atea­vam
um fogo em Jannart, atraindo as pessoas para o seu
calor. Com meras palavras, poderia embelezar o objeto
mais enfadonho ou erguer civilizações surgindo do pó.
Para Niclays, ele fora um raio de sol, ilumi­nando todas as
facetas do seu mundo.

Sempre soubera que não havia esperança. Afinal,


Jannart era um marquês, herdeiro de um ducado, o
amigo mais querido do Príncipe Edvart, enquanto Niclays
não passava de um arrivista de Rozentun.

E ainda assim, Jannart vira-o. Vira-o, e não desviara


o olhar.

Do lado de fora da casa, as ondas voltaram a bater


na cerca. Niclays virou-se de lado, todo dorido.

— Jan — disse em voz baixa. — Quando é que


ficámos tão velhos?

O carregamento mêntico chegaria a qualquer


momento e, quando voltasse para casa, Sulyard estaria
com eles. Mais alguns dias e Niclays livrar-se-ia daquela
lembrança viva de Truyde e Jannart e da corte de Inys.
Voltaria a trabalhar com poções na sua prisão no fim do
mundo, eLivros e anónimo.

Por fim, adormeceu, apertando a almofada contra o


peito. Quando acordou, ainda estava escuro, mas os
cabelos da sua nuca arrepiaram-se.

Sentou-se, fitando o breu.

— Sulyard.

Sem resposta. Algo se moveu na escuridão.

— Sulyard?
Quando o raio iluminou a silhueta, Niclays olhou
para o rosto à sua frente.

— Honrado Comandante — balbuciou, mas já


estava a ser puxado para fora da cama.

Duas sentinelas empurraram-no em direção à


porta. No aperto do terror, de alguma forma, Niclays
agarrou o seu cajado do chão e ba­lançou-a com toda a
força. Ela estalou como um chicote numa das suas
bochechas. Apenas teve um momento para saborear a
sua precisão antes de ser atingido por um bastão de
ferro.

Nunca sentira tanta dor ao mesmo tempo. O seu


lábio inferior quebrou-se como fruta. Cada dente
estremeceu na sua órbita. O seu estômago revirou-se
com o sabor acobreado na sua língua.

A sentinela voltou a erguer o bastão e desferiu-lhe


um terrível golpe no joelho. Com um grito de
«misericórdia», Niclays levantou as mãos sobre a cabeça,
largando o cajado. Uma bota de couro partiu-a em dois.
Golpes choveram de todos os lados, atingindo-o nas
costas e no rosto. Niclays tombou nas esteiras, emitindo
sons fracos de submissão e descul­pas. A casa estava a
ser despedaçada ao seu redor.
O som de vidro a partir surgiu da oficina. O seu
aparelho, mais valioso do que qualquer quantia de
moedas que alguma vez voltaria a possuir.

— Por favor. — O sangue escorria-lhe pelo seu


queixo. — Honradas sentinelas, por favor, não
compreendeis. O trabalho...

Ignorando os seus apelos, eles marcharam para a


tempestade. Tudo o que Niclays vestia era a sua camisa
de noite. O tornozelo doía-lhe demasiado para o carregar,
por isso, as sentinelas puxaram-no como um saco de
milhete. Os poucos mênticos que trabalhavam durante a
noite estavam a sair das suas habitações.

— Doutor Roos — chamou um deles. — Que se


passa?

Niclays respirou fundo.

— Quem é aquele? — A sua voz perdeu-se no


retumbar de um tro­vão. — Muste — gritou com força. —
Muste, ajuda-me, seu idiota de cabelo de raposa!

Uma mão cobriu-lhe a boca ensanguentada. Podia


ouvir Sulyard ago­ra, algures na escuridão, gritando.

— Niclays!

Ergueu os olhos, à espera de ver Muste, mas foi


Panaya quem entrou na confusão. De alguma forma,
interpôs-se entre as sentinelas e prostrou-se diante de
Niclays como uma Cavaleira da Bravura.

— Se ele está preso — disse ela —, onde está o seu


mandato do hon­rado Governador de Cabo Hisan?

Niclays estava capaz de a beijar. O Comandante


estava parado por perto, observando as sentinelas a
saquear a casa.

— Volta para dentro — disse ele a Panaya, sem


olhar para ela.

— O erudito Doutor Roos merece respeito. Se o


magoardes, o Grão-Príncipe de Mentendon ficará a saber.

— O Príncipe Vermelho não tem poder aqui.

Panaya enfrentou-o. Niclays só pôde observar com


admiração en­quanto a mulher, de túnica de dormir,
encarava o homem de armadura.

— Enquanto os mênticos aqui viverem, terão a


proteção do todo-honrado Senhor da Guerra — defendeu.
— Que irá ele dizer quando souber que derramastes
sangue em Orisima?

Com isso, o Comandante aproximou-se dela.

— Talvez diga que fui demasiado misericordioso —


respondeu, a voz plena de desprezo —, pois este
mentiroso escondeu um invasor na sua casa.

Panaya ficou em silêncio, o choque claro no seu


rosto.

— Panaya — sussurrou Niclays. — Eu posso


explicar.

— Niclays — murmurou. — Oh, Niclays. Desafiaste o


Grande Edito.

O seu tornozelo latejava.

— Para onde me irão levar?

Panaya olhou nervosamente para o Comandante,


que gritava com as suas sentinelas.

— Ao honrado Governador de Cabo Hisan.


Suspeitarão de que car­regas a doença vermelha —
murmurou ela em mêntico. De repente, ficou tensa. —
Tocaste-lhe?
Niclays pensou no assunto, frenético.
— Não — respondeu. — Não, não na sua pele nua.
— Deves dizer-lhes isso. Jura pelo teu Santo — disse-
lhe. — Se sus­peitarem de que os estás a enganar, farão
tudo o que puderem para te arrancar a verdade.
— Tortura? — Suor escorria-lhe do rosto. — Tortura
não. Não que­res dizer tortura, pois não?
— Basta — ordenou o Comandante. — Levem esse
traidor embora!
Com isso, as sentinelas carregaram Niclays como
carne para abate.
— Quero um advogado — gritou ele. — Demónios me
levem, deve haver algures nesta ilha esquecida pelo
Santo um maldito advogado de­cente! — Quando
ninguém lhe respondeu, Niclays gritou desespera­‐
damente para Panaya: — Diz ao Muste para arranjar o
meu aparelho. Para continuar o trabalho! — Ela fitou-o,
impotente. — E protejam os meus livros! Pelo amor do
Santo, salva os meus livros, Panaya!
9
Oeste

Suponho que não se possam fazer passeios como


este no Ersyr com frequência. O calor seria insuportável.
Estavam a caminhar no Jardim Real. Ead nunca lá
entrara. Aquele retiro era reservado para o lazer da
rainha, das suas Damas do Leito Real e do Conselho das
Virtudes.
A senhora Arbella Glenn ainda estava confinada à
cama. A corte sussurrava. Se ela morresse, seria
necessária uma nova Dama do Leito Real. As outras
Damas da Câmara Privada já se estavam a esforçar para
mostrar a sua inteligência e talento a Sabran.
Fora por isso, sem dúvida, que Linora ficara tão
irritada quando Ead, a seus olhos, estragara a história.
Não queria que as suas hipóteses fos­sem prejudicadas
por associação.
— Não no inverno. No verão, usamos sedas leves
para evitar o calor respondeu Ead. — Quando morava na
propriedade de Sua Excelência, em Rumelabar, muitas
vezes sentava-me à beira da piscina no pátio e lia. Havia
árvores de limão doce para fazer sombra nos passadiços
e fontes para refrescar o ar. Era uma época de paz.
Na verdade, ela só lá estivera uma vez. A sua
infância fora passada no Priorado.
— Entendo. — Sabran segurava um leque
ornamentado. — E rezavas ao Cantor da Alvorada.
— Sim, senhora minha. Numa Casa de Silêncio.
Elas vaguearam por um dos pomares, onde as
árvores verdes estavam em plena floração. Doze
Cavaleiros do Corpo seguiam-nas à distância.

Nas últimas horas, Ead descobrira que, por trás do


seu exterior om­nisciente, a rainha de Inys tinha uma
visão circunscrita do mundo. Selada atrás das paredes
dos seus palácios, o seu conhecimento das terras além
de Inys provinha de globos de madeira e cartas dos seus
embaixadores e outros soberanos. Era fluente em yscali
e hróthi, e os seus tutores tinham-na educado sobre a
história do Reino das Virtudes, mas ela sabia pouco sobre
qualquer outro lugar. Ead podia senti-la a reprimir as
suas perguntas sobre o Sul.

O Ersyr não aderia às Seis Virtudes. Tão-pouco o


seu vizinho, o Domínio de Lasia, apesar do seu lugar
importante na lenda da fundação de Inys.

Ead passara pela sua conversão pública às Seis


Virtudes pouco depois da sua visita à corte. Numa noite
de primavera, estivera no Santuário Real, proclamara a
sua lealdade à Casa de Berethnet e recebera as espo­ras
e a faixa de um adorador de Galian. Em troca, fora-lhe
prometido um lugar em Halgalant, a corte celestial. Ela
dissera ao arquissanctário que, antes da sua chegada a
Inys, havia acreditado no Cantor da Alvorada, a
divindade mais amplamente seguida no Ersyr. Ninguém o
questionara.

Ead nunca seguira o Cantor da Alvorada. Embora


tivesse sangue ersyri, não tinha nascido no Ersyr e não
costumava lá ir. O seu verdadei­ro credo era conhecido
apenas pelo Priorado.

— Sua Excelência disse-me que a tua mãe não era


do Ersyr — disse Sabran.

— Não. Ela nasceu em Lasia.

— Como se chamava?

— Zāla.

— Lamento a tua perda.

— Obrigada, senhora — respondeu Ead. — Foi há


muito tempo.

Embora tivessem as suas diferenças, ambas sabiam


o que era perder uma mãe.

Quando a torre do relógio bateu as onze horas,


Sabran parou ao lado do seu aviário particular.
Destrancou a porta e um pequeno pássaro ver­de saltou-
lhe para o pulso.
— Estes pássaros são das montanhas Uluma —
explicou ela. A luz do Sol dançava nas esmeraldas ao
redor do seu pescoço e asas. — Costumam passar os
invernos lá.

— Já estivestes em Lasia, Majestade? — perguntou


Ead.
— Não. Nunca poderia deixar o Reino das Virtudes.
Ead sentiu aquele toque familiar de irritação. Era
hipocrisia no seu melhor que os inysh tomassem Lasia
como a pedra angular da sua lenda fundadora, apenas
para ridicularizar o seu povo como hereges.
— Claro — respondeu.
Sabran olhou para ela. Tirou uma bolsinha da faixa e
despejou algu­mas sementes na palma da mão.
— Em Inys, é chamado pássaro do amor — explicou.
O pássaro no seu pulso deu um pio alegre. — Tomam
apenas um parceiro por toda a vida e conhecerão a sua
música mesmo depois de muitos anos separa­dos. Por
isso é que o pássaro do amor era sagrado para o
Cavaleiro da Camaradagem. Esses pássaros personificam
o seu desejo de que todas as almas se unam em
companheirismo.
— Conheço-os bem — disse Ead. O pássaro bicou as
sementes. — No Sul, são chamados mímicos com cara de
pêssego.
— Cara de pêssego.
— O pêssego é uma fruta doce cor de laranja,
senhora, com uma pe­dra no centro. Cresce no Ersyr e em
algumas partes do Oriente.
Sabran observou o pássaro a comer.
— Não falemos do Oriente — disse, e devolveu-o ao
poleiro.
O sol estava quente como um forno, mas a rainha
não deu sinais de querer entrar. Continuaram a sua
caminhada por um caminho ladeado de cerejeiras.
— Sentes o cheiro a fumo? — perguntou Sabran. —
Esse é o cheiro de fogo na cidade. Esta manhã, foram
queimados dois profetas da ruína na Praça Marian. Acha-
lo correto?
Havia dois tipos de hereges em Inys. Alguns poucos
ainda seguiam a religião primordial de Inys, uma forma
de culto à natureza praticada antes da fundação da Casa
de Berethnet, nos dias em que a cavalaria ainda era
jovem e o país era assombrado pela Dama da Floresta.
Esses podiam retratar-se ou ser presos.
Depois, havia aqueles que profetizavam o retorno do
Inominável. Nos últimos dois anos, esses profetas da
ruína tinham chegado a Inys desde Yscalin e pregado nas
cidades o máximo que puderam. Foram queima­dos por
decreto da Duquesa da Justiça.
— É uma morte cruel — disse Ead.
— Eles veriam Inys consumida pelas chamas. É de
sua vontade que abramos os nossos braços ao
Inominável, que o tomemos como nosso deus. A senhora
Igrain diz que devemos fazer aos nossos inimigos o que
eles nos fariam a nós.
— O Santo também diz isso, senhora? — perguntou
Ead calma­mente. — Não sou tão versada nas Seis
Virtudes quanto vós.
— O Cavaleiro da Bravura ordena-nos que
defendamos a fé.
— Mesmo assim, haveis aceitado um presente do
Príncipe Aubrecht de Mentendon, que negoceia com o
Oriente. Ele até vos deu uma pérola oriental — disse Ead.
— Pode dizer-se que ele está a financiar heresia.
Dissera-o antes que se pudesse impedir. Sabran
lançou-lhe um olhar glacial.
— Não sou uma sanctária, não me cabe ensinar-te as
complexidades das Seis Virtudes — repreendeu. — Se
desejas contestar essas complexidades, senhora Duryan,
aconselho-te a procurares outro lugar. Na Torre Dearn,
talvez, com todos os outros que questionam o meu
julgamento, que provém, como estou certa de não
precisar de te recordar, do próprio Santo. — Ela virou-se.
— Bom dia.
A rainha afastou-se, sombreada pelos seus
Cavaleiros do Corpo, deixando Ead sozinha sob as
árvores.
Quando Sabran desapareceu de vista, Ead cruzou o
relvado e sentou-se na beira de uma fonte, praguejando
internamente. O calor estava a levá-la a agir sem pensar.
Molhou o rosto com a água e depois bebeu das
palmas das mãos em concha, observada por uma estátua
de Carnelian a Primeira, a Flor de Ascalon, quarta rainha
da Casa de Berethnet. Em breve, a dinastia teria
governado Inys por mil e seis anos.
Ead fechou os olhos e deixou a água escorrer-lhe
pelo pescoço. Passara oito anos na corte de Sabran a
Nona. Em todo esse tempo, nunca dissera nada que a
incomodasse. Agora, era como uma víbora, incapaz de
manter a língua na boca. Algo a fazia querer irritar a
rainha de Inys. Teria de cortar aquele algo, ou a corte
comê-la-ia por inteiro.

***

As suas tarefas daquele dia passaram como uma


névoa. O calor tornava-as ainda mais difíceis. Até Linora
estava subjugada, o seu cabelo dourado humedecido
pelo suor, e Roslain Crest passara a tarde a abanar-se
com uma fúria crescente.
Depois do jantar, Ead juntou-se às outras mulheres
no Santuário das Virtudes para rezar. A Rainha-Mãe
ordenara que fossem instaladas janelas com vitrais azuis
no corredor para que aparentasse ter sido construído
debaixo de água.
Havia uma estátua no santuário, do lado direito do
altar. Galian Berethnet, com as mãos cruzadas no punho
de Ascalon.
À esquerda, havia apenas um pedestal em memória
da mulher que os inysh conheciam como Rainha Cleolind,
a Donzela.
Os inysh não tinham registo da aparência de
Cleolind. Todas as imagens dela, se é que alguma vez
existiram, tinham sido destruídas após a sua morte, e
nenhum escultor inysh tentara criar uma semelhança
desde então. Muitos acreditavam que era porque o Rei
Galian não suportava ver a mulher que perdera no parto.
Mesmo o Priorado tinha apenas alguns relatos sobre
a Mãe. Havia tanto que fora perdido ou destruído.
Enquanto os outros rezavam, Ead também o fez.
Mãe, rogo-vos, guiai-me na terra do Impostor. Mãe,
imploro-vos, deixai-me comportar-me com dignidade na
presença desta mulher que se denomina vossa
descendente, mulher que jurei guardar. Mãe, peço-vos,
concedei-me uma coragem digna do meu manto.
Sabran levantou-se e tocou a estátua do seu
antepassado. Enquanto ela e as suas damas saiam do
santuário, Ead avistou Truyde. Estava de olhos postos em
frente, mas as suas mãos estavam entrelaçadas com de­‐
masiada força.

***

Quando a noite caiu e ela concluíra os seus deveres


na Torre da Rainha, Ead desceu a Escadaria Real até à
poterna, onde barças traziam merca­dorias da cidade
para o palácio, e esperou num abrigo onde se localizava
o poço.
Truyde utt Zeedeur juntou-se a ela, de manto e
capuz.
— Estou proibida de sair da Câmara do Cofre após o
escurecer sem um acompanhante. — Enfiou uma mecha
ruiva rebelde no capuz. — Se a senhora Oliva descobrir
que eu saí...
— Haveis ido ao encontro do vosso amante muitas
vezes, minha se­nhora. Sem acompanhante, presumo —
disse Ead.

Olhos escuros observaram-na por baixo do capuz.

— Que quereis?

— Quero saber o que estáveis a planear com


Sulyard. Havia referên­cia a uma tarefa nas vossas cartas.

— Não vos diz respeito.

— Permiti-me, então, apresentar uma teoria. Já vi o


suficiente para saber que tendes um interesse incomum
pelo Oriente. Acho que vós e Sulyard pretendíeis cruzar o
Abismo juntos por algum motivo malicioso, mas ele foi à
frente sem vós. Estou errada?

— Estais. Se tiverdes de continuar a intrometer-vos,


conceder-vos-ei a verdade. — Truyde parecia quase
aborrecida. — O Triam foi para a Lagoa do Leite.
Queremos viver juntos como companheiros, onde nem a
Rainha Sabran nem o meu pai poderão ter problemas
com o nosso casamento.
— Não mintais, minha senhora. Envergais um rosto
inocente diante da corte, mas eu acho que tendes outro.

A poterna abriu-se. Elas pressionaram-se mais


fundo no abrigo quando um guarda entrou com uma
tocha, assobiando. Marchou pela Escadaria Real sem as
ver.
— Devo voltar para a Câmara do Cofre — disse
Truyde baixinho. — Tive de encontrar dezasseis confites
para aquele pássaro asqueroso. Se ficar longe por muito
tempo, irá reclamar.
— Confessai-me o que tramáveis com Sulyard, então.
— E se não contar? — Truyde soltou uma gargalhada.
— Que ides fazer, senhora Duryan?
— Talvez conte ao secretário principal que suspeito
de que conspirais contra Sua Majestade. Lembrai-vos,
criança, de que estou na posse das vossas cartas. Ou
talvez — continuou Ead — deva usar outros meios para
vos fazer falar.
Truyde estreitou os olhos.
— Este não é um discurso cortês — disse baixinho. —
Quem sois vós?
Porque vos interessais tanto pelos segredos da corte
inysh? — A cautela brilhou-lhe no rosto. — Sois uma das
informadoras de Combe, é isso? Ouvi dizer que ele
recruta os seus espiões dos tipos mais básicos.
— Tudo o que precisais de saber é que o meu
trabalho é proteger Sua Majestade.
— Sois uma camareira, não uma Cavaleira do
Corpo. Não tendes lençóis para trocar?

Ead aproximou-se. Era meia cabeça mais alta que


Truyde, cuja mão agora se desviara para a adaga na sua
faixa.

— Posso não ser uma cavaleira — disse Ead —, mas


quando vim para esta corte, jurei que protegeria a
Rainha Sabran dos seus inimigos.

— E eu fiz o mesmo juramento — replicou Truyde


com veemência. — Não sou sua inimiga, nem o povo do
Oriente. Eles desprezam o Inominável, tanto como nós.
As nobres criaturas que eles adoram não são nada como
wyrms. — Ela recompôs-se. — Coisas draconianas estão
a despertar, Ead. Em breve, erguer-se-ão... o Inominável
e os seus servos... e a sua ira será terrível. E quando se
unirem contra nós, precisaremos de ajuda para os
combater.

Ead foi percorrida por um arrepio.

— Quereis negociar uma aliança militar com o


Oriente — murmurou. — Quereis chamar os seus
wyrms... para nos ajudar a lidar com os des­pertares. —
Truyde olhou-a fixamente, os olhos brilhantes. — Idiota.
Tola obstinada. Quando a rainha descobrir que desejais
lidar com wyrms...

— Não são wyrms! São dragões e são criaturas


gentis. Eu vi imagens deles, li livros sobre eles.

— Livros do Oriente.
— Sim. Os seus dragões são um com o ar e a água,
não com o fogo. O Oriente está afastado de nós há tanto
tempo que nos esquecemos da diferença. — Quando Ead
se limitou a fitá-la, incrédula, Truyde tentou uma
abordagem diferente. — Como uma estranha neste país,
ouvi-me. E se os inysh estiverem errados e a continuação
da Casa de Berethnet não for o que mantém o
Inominável à distância?
— Que estais a dizer, criança?
— Sabeis que algo mudou. O despertar das criaturas
draconianas, a separação de Yscalin do Reino das
Virtudes... isto é apenas o começo. — A sua voz baixou.
— O Inominável está a voltar. E eu acredito que ele
chegará em breve.
Por um momento, Ead ficou sem palavras.
E se a continuação da Casa de Berethnet não for o
que mantém o Inominável à distância?

Como é que uma jovem do Reino das Virtudes


chegara a essa con­clusão herética?

Claro, ela poderia muito bem estar certa. A Prioresa


dissera-o a Ead antes de vir para Inys, explicando porque
uma irmã deveria ser enviada para guardar a Rainha
Sabran.

A Casa de Berethnet pode proteger-nos do


Inominável, ou não. Não há provas, de qualquer maneira.
Assim como não há provas que confirmem se as rainhas
Berethnet são de facto descendentes da Mãe. Se forem,
o seu sangue é sagrado e deve ser protegido. Conseguia
ver a Prioresa agora, clara como a água da nascente. É
esse o problema das histórias, criança. A verdade que
encerram não pode ser pesada.

Foi por isso que Ead fora enviada para Inys. Para
proteger Sabran, caso o mito fosse verdadeiro e o seu
sangue impedisse o inimigo de se erguer.

— E quereis que nos preparemos para a sua...


segunda vinda — disse Ead, fingindo divertir-se.

Truyde ergueu o queixo.

— Tenho a certeza. Os orientais têm muitos dragões


a viver ao lado dos humanos. Eles não respondem ao
Inominável — disse ela. — Quando ele regressar,
precisaremos daqueles dragões orientais para o derrotar.
Devemos unir-nos para evitar uma segunda Ascensão
das Sombras. O Triam e eu não vamos deixar a
humanidade caminhar até à sua extin­ção. Podemos ser
pequenos e podemos ser jovens, mas iremos abalar o
mundo pelas nossas crenças.

Fosse qual fosse a verdade, aquela rapariga


engolira a tocha da ilusão.

— Como podeis estar tão certa de que o Inominável


regressará? — perguntou Ead. — Não sois uma filha do
Reino das Virtudes, nascida para acreditar que a Rainha
Sabran o mantém acorrentado?

Truyde endireitou-se.

— Amo a Rainha Sabran — disse ela —, mas não


sou uma criança ingénua para acreditar no que me dizem
sem provas. Os inysh podem ter uma fé cega, mas em
Mentendon valorizamos as evidências.

— E tendes evidências de que o Inominável irá


voltar? Ou meras suposições?

— Não são suposições. São hipóteses.

— Seja qual for a vossa hipótese, o vosso plano é


uma heresia.

— Não me faleis de heresia — atirou Truyde. — Não


adorastes o Cantor da Alvorada, certa vez?

— As minhas crenças não estão aqui em questão.


— Ead fez uma pausa. — Então foi para lá que Sulyard se
foi. Numa qualquer deman­da maluca no Oriente, para
tentar negociar uma aliança impossível em nome de uma
rainha que nada sabe sobre isso. — Deixou-se cair na
borda do poço. — O vosso amante morrerá nessa
tentativa.

— Não. Os seiikines ouvirão...

— Ele não é um embaixador oficial de Inys. Porque


iriam ouvi-lo?

— O Triam persuadi-los-á. Ninguém fala com o


coração como ele. E assim que os governantes orientais
estiverem convencidos da ameaça, iremos à Rainha
Sabran. E ela compreenderá a necessidade de uma
aliança.

A criança estava cega pela sua paixão. Sulyard


seria executado no momento em que colocasse os pés no
Oriente, e Sabran preferia cortar o próprio nariz a fazer
uma aliança com adoradores de wyrms, mesmo que
pudesse ser persuadida a acreditar que o Inominável
poderia voltar a erguer-se.

— O Norte está fraco — continuou Truyde — e o Sul é


demasiado orgulhoso para negociar com o Reino das
Virtudes. —, O rubor invadiu-lhe as faces. — Ousais
julgar-me por procurar ajuda noutro lugar?
Ead olhou-a nos olhos.
— Podeis julgar-vos a única pessoa que busca
proteger este mundo disse ela —, mas não tendes ideia
da base sobre a qual vos encontrais. Nenhum de vós
tem. — Quando Truyde franziu a testa, Ead disse: —
Sulyard pediu-vos ajuda. Que fizestes para o ajudar a
partir? Que planos haveis concebido? — Truyde ficou em
silêncio. — Se fizestes algo para ajudar na missão dele, é
traição.
— Não direi nem mais uma palavra. — Truyde
afastou-se. — Denunciai-me à senhora Oliva, se
quiserdes. Primeiro, tereis de explicar o que estáveis a
fazer na Câmara do Cofre.
Quando fez menção de sair, Ead fechou a mão em
torno do seu pulso.
— Escrevestes um nome no livro — disse. — Niclays.
Acho que se re­fere a Niclays Roos, o anatomista. —
Truyde abanou a cabeça, mas Ead viu a faísca de
reconhecimento nos seus olhos. — Que tem Roos que ver
com tudo isto?

Antes que Truyde pudesse responder, um vento


soprou pelo terreno.

Cada galho estremeceu em cada árvore. Cada


pássaro no aviário pa­rou de cantar. Ead soltou Truyde e
saiu do abrigo.

Canhões dispararam na cidade. Mosquetes


elevaram-se, o ruído como castanhas em combustão.
Atrás dela, Truyde manteve-se perto do poço.
— O que é aquilo? — quis saber.

Ead respirou enquanto o seu sangue se agitava.


Havia muito tempo que aquela sensação não lhe
dominava o corpo. Pela primeira vez em anos, o seu
siden acendera-se.

Algo se aproximava. Se chegara tão longe, deveria


ter encontrado um caminho através das defesas
costeiras. Ou tê-las destruído.

Um clarão como o sol a romper uma nuvem, tão


quente que lhe resse­cou os olhos e lábios, e um wyrm
voou sobre a parede cortina. Queimou os arqueiros e
mosqueteiros e despedaçou uma linha de catapultas.
Truyde mergulhou no chão.

Ead sabia o que era apenas pela sua magnitude.


Um Sombra Ocidental. Um monstro, desde os dentes ao
chicote da sua cauda, na qual se projetavam
extremidades letais. O seu abdómen, coberto de ci­‐
catrizes de batalha, era castanho-enferrujado, mas a
maior parte era preta como alcatrão. Flechas
precipitaram-se de torres de vigia e caíram com um
estrondo das suas escamas.

As flechas eram inúteis. Os mosquetes eram


inúteis. Não se tratava de um mero wyrm, de um mero
Sombra Ocidental. Nenhum ser vivo havia posto os olhos
naquela criatura, mas Ead sabia o seu nome.

Fýredel.

Aquele que se denominava a asa direita do


Inominável. Fýredel, que criara e liderara o Exército
Draconiano contra a humanidade na Ascensão das
Sombras.

Despertara.

A besta girou sobre o Palácio de Ascalon, ocultando


os relvados e pomares na sua sombra. Ead sentiu-se a
adoecer, e a sua pele queimou enquanto o cheiro da
criatura inflamava o siden no seu sangue.

O seu arco longo estava fora de alcance, no seu


quarto. Os anos de rotina haviam fragilizado a sua
vigilância.

Fýredel pousou na Torre Dearn. A sua cauda


enrolou-se como uma cobra ao seu redor e as suas
garras encontraram apoio no telhado.

As telhas desmoronaram-se, forçando os guardas e


criados muito abaixo a dispersar.
A sua cabeça era coroada com dois chifres cruéis.
Os olhos, como poços de magma, brilhavam no escuro.

— RAINHA SABRAN.

O próprio céu ecoou as suas palavras. Metade de


Ascalon deveria ser capaz de as ouvir.

— SEMENTE DO CORAÇÃO ESCUDADO. — Mais


pedras caíram da torre. As flechas caíram da sua
armadura. — APARECE E ENFRENTA O TEU ANTIGO
INIMIGO OU VÊ A TUA CIDADE ARDER.

Sabran não atendeu o seu chamado. Alguém iria


impedi-la. O Con­selho das Virtudes enviaria um
representante para lidar com ele.

Fýredel expôs os seus dentes de metal reluzentes.


A Torre de Alabastro era muito alta para Ead ver a sua
varanda superior, mas os seus ouvidos recém-afinados
captaram uma segunda voz:

— Estou aqui, abominação.

Ead congelou.

A idiota. A completa idiota. Ao emergir, Sabran


assinara a sua pró­pria sentença de morte.

Gritos ecoaram de todos os edifícios. Cortesãos e


criados inclinaram-se para fora das janelas abertas para
ver o mal no seu meio. Outros correram
desordenadamente para os portões do palácio. Ead subiu
a Escadaria Real.
— Com que então despertaste, Fýredel — disse
Sabran com desprezo. — Porque vieste até aqui?
— Vim para te avisar, rainha de Inys. A hora de
escolheres o teu lado está próxima. — Fýredel soltou um
silvo que arrepiou Ead. — Os meus parentes agitam-se
nas suas cavernas. O meu irmão, Orsul, já alçou voo, e a
nossa irmã, Valeysa, em breve segui-lo-á. Antes do fim
do ano, todos os nossos seguidores terão despertado. O
Exército Draconiano renascerá.
— Que se danem os teus avisos — rebateu Sabran.
— Não tenho medo de ti, lagarto. As tuas ameaças têm
tanto peso como fumo.
Ead ouviu-lhe as palavras como um trovão na sua
cabeça. Os vapores que se elevavam de Fýredel eram
pedras de amolar nos seus sentidos.

— O meu mestre agita-se no Abismo — disse, com


a língua trémula. — Os mil anos estão quase no fim. A
tua casa foi em tempos a nossa grande inimiga, Sabran
Berethnet, nos tempos a que chamas Ascensão das
Sombras.

— O meu ancestral mostrou-te a coragem inysh, e


eu mostrar-ta-ei agora — respondeu Sabran. — Falas-me
de mil anos, wyrm. Que ardis vende a tua língua
bifurcada?
A sua voz era de aço puro.

— Descobrirás em breve. — O wyrm esticou o


pescoço, e a sua cabe­ça aproximou-se da outra torre. —
Ofereço-te a oportunidade de jurares fidelidade ao meu
mestre e denominares-te Rainha Draconiana de Inys. —
O fogo rugiu atrás dos seus olhos. — Vem comigo agora.
Entrega-te. Escolhe o lado certo, como fez Yscalin.
Resiste, e o fogo será o teu destino.

Ead olhou para a torre do relógio. Não conseguia


alcançar o arco, mas tinha outra coisa.

— As tuas mentiras não criarão raízes em nenhum


coração inysh. Eu não sou o Rei Sigoso. O meu povo sabe
que o teu mestre nunca desper­tará enquanto a linhagem
do Santo continuar. Se julgas que algum dia irei nomear
este país Reino Draconiano de Inys, ficarás amargamente
desapontado, wyrm.
— Alegas que a tua linhagem protege este reino —
disse Fýredel — e, ainda assim, vieste ao meu encontro.
— Os dentes ardiam-lhe verme­lhos na boca — Não temes
a minha chama?
— O Santo proteger-me-á.
Nem o tolo mais bêbedo poderia acreditar que Sir
Galian Berethnet estenderia a mão da corte celestial e os
protegeria de uma barriga cheia de fogo.
— Falas com alguém que conhece a fraqueza da
carne. Matei Sabran, a Ambiciosa, no primeiro dia da
Ascensão. O teu Santo — disse Fýredel, a boca
fumegante — não a protegeu. Curva-te diante mim, e
poupar-te-ei ao mesmo fim. Recusa, e juntar-te-ás a ela
agora.
Se Sabran respondeu, Ead não ouviu. O vento
soprou-lhe nos ouvi­dos enquanto ela atravessava o
Jardim do Relógio de Sol. Os arqueiros atingiram Fýredel
com flecha após flecha, mas nenhuma lhe perfurou as
escamas.
Sabran continuaria a incitar Fýredel até que ele a
incendiasse. A im­becil devia realmente pensar que o
maldito Santo a protegeria.
Ead passou a correr pela Torre de Alabastro. Detritos
caíam em cas­cata de cima, e um guarda tombou morto
diante de si. Amaldiçoando o peso do seu vestido,
alcançou a Biblioteca Real, abriu as portas e teceu
caminho entre as prateleiras até chegar à entrada da
torre do relógio.
Despiu o manto e desabotoou a faixa. Subiu os
degraus sinuosos, cada vez mais alto.
Lá fora, Fýredel ainda escarnecia de Sabran. Ead
parou no campaná­rio, onde o vento uivava através das
janelas em arco, e absorveu a cena impossível.
A rainha de Inys estava na varanda superior da Torre
de Alabastro. Ficava a sudeste da Torre Dearn, onde
Fýredel estava prestes a matá-la. Wyrm num edifício,
rainha no outro. Nas suas mãos, estava a lâmina
cerimonial representativa de Ascalon, a Espada da
Verdade.
Inútil.
— Abandona esta cidade e não magoes ninguém —
gritou a rainha — ou juro pelo Santo cujo sangue carrego
que enfrentarás uma der­rota além de qualquer uma que
a Casa de Berethnet jamais obteve da tua espécie. —
Fýredel mostrou-lhe os dentes novamente, mas Sabran
atreveu-se a mais um passo. — Antes de deixar este
mundo, verei a tua espécie derrubada, selada para
sempre no abismo da montanha.
Fýredel ergueu-se e abriu as asas. Diante da besta
gigante, a rainha de Inys era menor do que um boneco.
Ainda assim, não hesitou.
O olhar do wyrm refletia uma sede de sangue.
Queimava tanto quan­to o fogo na sua barriga. Ead sabia
que tinha meros momentos para decidir o seu próximo
passo.
Teria de ser uma proteção de vento. Proteções como
essa requeriam muito siden, e já lhe sobrava pouco —
mas, talvez, se aplicasse o que lhe restava no esforço,
pudesse criar uma em Sabran.
Ead estendeu a mão em direção à Torre de Alabastro,
lançou o seu siden e torceu-o numa coroa ao redor da
rainha de Inys.
Enquanto Fýredel desencadeava o seu fogo, Ead
quebrou as correntes do seu poder há muito adormecido.
A chama colidiu com uma pedra antiga. Sabran
desapareceu em luz e fumo. Ead estava vagamente
ciente de Truyde a entrar no campanário, mas era
demasiado tarde para es­conder o que estava a fazer.
Os seus sentidos encerraram-se em Sabran. Sentiu
a tensão nas suas tranças de proteção ao redor da
rainha, o fogo a clamar por domínio, a dor no seu próprio
corpo enquanto a proteção engolia o seu siden. O suor
encharcou-lhe o espartilho. O seu braço tremia com o
esforço de manter a mão voltada para fora.

Quando Fýredel fechou as mandíbulas, tudo ficou


em silêncio. Vapores pretos subiram da torre, dissipando-
se lentamente. Ead esperou, o coração apertado, até que
viu a figura no meio do fumo.

Sabran Berethnet saíra ilesa.

— É a minha vez de te fazer um aviso. Um aviso do


meu antepassado — disse a rainha, sem fôlego —, que se
clamares guerra contra o Reino das Virtudes, este sangue
sagrado extinguir-te-á o fogo. Para sempre.

Fýredel não lhe deu atenção. Não desta vez. O seu


olhar estava cra­vado na pedra enegrecida e no círculo
imaculado ao redor de Sabran.

Um círculo perfeito.

As suas narinas dilataram-se. As suas pupilas


diluíram-se em fendas. Não era a sua primeira vez a
testemunhar uma proteção. Ead ficou pa­rada como uma
estátua enquanto o seu olhar impiedoso vagueava à sua
procura, enquanto Sabran permanecia imóvel. Quando
olhou na dire­ção do campanário, farejou, e Ead soube
que ele captara o cheiro dela. Saiu das sombras sob o
mostrador do relógio.

Fýredel mostrou os dentes. Cada espigão das suas


costas se ergueu e um longo assobio estremeceu-lhe na
língua. Sustendo-lhe o olhar, Ead desembainhou a sua
adaga e apontou para ele através da divisão.

— Aqui estou — disse ela, calmamente. — Aqui


estou.

O Sombra Ocidental soltou um uivo de raiva. Com


um empurrão das patas traseiras, lançou-se da Torre
Dearn, levando consigo parte da tor­re e a maior parte da
parede voltada para leste. Ead atirou-se para trás de um
pilar quando uma bola de fogo explodiu contra a torre do
relógio.

A cadência das suas asas desapareceu. Ead


cambaleou de volta para a balaustrada. Sabran ainda
estava na varanda, no seu círculo de pedra clara. A
espada caíra-lhe da mão. A rainha não olhou para a torre
do reló­gio, nem tão-pouco viu Ead a olhar para ela.
Quando Combe a alcançou, desabou contra ele, e ele
carregou-a de volta para a Torre de Alabastro.

— Que é que fizeste? — Uma voz trémula atrás de


Ead. Truyde. — Eu vi-te. Que é que fizeste?
Ead deslizou para o chão do campanário, a cabeça
descaída. O seu corpo foi percorrido por um grande
tremor.
A essência do seu sangue fora gasta. Os seus ossos
pareciam ocos, a sua pele em carne viva, como se
tivesse sido esfolada. Precisava da ár­vore, de uma
simples amostra dos seus frutos. A laranjeira salvá-la-ia...
— És uma bruxa. — Truyde afastou-se, o rosto pálido.
— Bruxa. Praticante de feitiçaria. Eu vi...
— Não viste nada.
— Foi aeromancia — sussurrou Truyde. — Agora sei o
teu segredo, e cheira muito pior do que o meu. Vamos
ver quão longe consegues per­seguir o Triam da pira.
Ela girou em direção à escada. Ead atirou a sua
adaga.
Mesmo naquele estado, acertou em cheio. Truyde foi
puxada para trás com um suspiro estrangulado, presa
pelo manto no batente da porta. Antes que pudesse
escapar, Ead surgiu diante dela.
— O meu dever é matar os servos do Inominável. E
não hesitarei em matar todos aqueles que ameaçam a
Casa de Berethnet — sussurrou. Se pretendes acusar-me
de feitiçaria perante o Conselho das Virtudes, peço que
encontres maneira de o provar, e rápido, antes que eu
pegue em ti e no teu amante e vos apunhale no coração.
Achas que, apenas porque Triam Sulyard está no Oriente,
não o consigo atacar de onde estou?
Truyde respirou com dificuldade por entre os dentes.
— Se lhe encostas um dedo que seja... — sussurrou —
ver-te-ei queimar na Praça Marian.
— O fogo não me afeta.
Ead puxou a adaga. Truyde encolheu-se contra a
parede, ofegante, com uma das mãos na garganta.
Ead virou-se para a porta. A sua respiração tornou-se
quente e acelerada, e os seus ouvidos zumbiram.
Avançou um passo antes de cair.
10

Este

Ginura era tudo o que Tané idealizara. Desde


criança, imaginara a capital de mil maneiras. Inspirada
pelo que tinha ouvido dos seus eruditos professores, a
sua imaginação transformara-a num sonho de castelos,
casas de chá e barcos de passeio.

A imaginação não lhe falhara. Os templos eram


maiores do que qual­quer outro em Cabo Hisan, as ruas
brilhavam como areia sob o sol e as pétalas flutuavam ao
longo dos canais. Ainda assim, mais gente significa mais
barulho e comoção. O fumo do carvão engrossava o ar.
Bois pu­xavam carroças de mercadorias, mensageiros
corriam ou cavalgavam entre edifícios, cães vadios
farejavam restos de comida e, aqui e ali, um bêbedo
vociferava para a multidão.

E que multidões. Tané sabia que Cabo Hisan era


movimentado, mas cem mil pessoas acotovelavam-se
em Ginura e, pela primeira vez na sua vida, percebeu o
quão pouco do mundo tinha visto.
Os palanquins carregavam os aprendizes para
dentro da cidade. As ár­vores da estação eram tão vivas
como Tané sempre ouvira, com as suas folhas de verão
amarelo-manteiga, e os artistas de rua tocavam músicas
que Susa adoraria. Avistou dois macacos-japoneses
empoleirados num telhado. Os comerciantes cantavam
sobre seda, estanho e uvas do mar da costa norte.

Enquanto os palanquins serpenteavam por canais e


pontes, as pessoas viravam as costas, como se não
fossem dignas de olhar para os guardiões do mar. Entre
eles, estavam os gente-peixe, como os plebeus lhes cha­‐
mavam depreciativamente em Cabo Hisan — cortesãos
que se vestiam como se tivessem acabado de sair do
oceano. Dizia-se que alguns deles raspavam as escamas
dos peixes arco-íris e as penteavam pelo próprio cabelo.

Quando Tané viu o Castelo de Ginura, ficou sem


fôlego. Os telhados eram da cor de coral desbotado pelo
sol, as paredes eram de osso de choco. Fora projetado
para se parecer com o Palácio de Muitas Pérolas, onde os
dragões seiikines adormeciam a cada ano, e dizia-se que
fazia a ponte entre o mar e o plano celestial.
Em tempos, nos dias em que possuíam todos os seus
poderes, os dra­gões não precisavam de uma temporada
de descanso.
A procissão parou do lado de fora da Escola de
Guerra de Ginura, onde os guardiões do mar seriam
selecionados pela última vez. Era o instituto mais antigo
e prestigioso do seu tipo, onde novos soldados se
hospedavam e continuavam os seus estudos nas artes da
guerra. Era ali que Tané provaria ser digna de um lugar
no Clã Miduchi. Era ali que exibiria as habilidades que
aperfeiçoara desde criança.
Um trovão retumbou acima. Quando saiu do
palanquim, as suas per­nas dobraram-se, doridas por
ficarem fletidas por tanto tempo. Turosa riu-se, mas um
criado segurou-a.
— Tudo bem, honrada senhora.

— Obrigada — disse Tané. Certificando-se de que


ela estava firme, ele segurou um guarda-chuva sobre ela.

A primeira chuva ensopou-lhe as botas enquanto


caminhava com os outros pelo portão, bebendo a
grandiosidade do seu batente de prata e madeira
empalidecida pelo mar. Esculturas dos grandes guerreiros
da história seiikine agrupavam-se sob a sua empena,
como se estivessem a esconder-se da tempestade. Tané
avistou a honrada Princesa Dumai e o Primeiro Senhor da
Guerra entre eles. Heróis da sua infância.

Uma mulher esperava por eles no corredor, onde


tiraram as botas.

O seu cabelo estava penteado de forma elaborada.


— Bem-vindos a Ginura — saudou-os com uma voz
fria. — Tendes a manhã para vos lavardes e
descansardes nos vossos aposentos. Ao meio-dia,
começareis a primeira das vossas provas de água. Nesse
tempo, sereis observados pelo honrado General do Mar e
por aqueles que ainda podem ser vossos parentes.

Clã Miduchi. Tané vibrou por dentro.

A mulher conduziu-os para o interior da escola,


através de pátios e passagens cobertas. Cada um dos
guardiões do mar foi conduzido a um pequeno quarto.
Tané viu-se instalada no andar superior, perto dos ou­tros
três aprendizes principais. O seu quarto dava para um
pátio, onde um viveiro de peixes transformava a água em
bolhas pelo aguaceiro.

A sua roupa de viagem cheirava mal. Havia três


dias que tinham pa­rado pela última vez numa pousada à
beira da estrada.

Encontrou um banho de cipreste atrás de uma


barreira para o vento. Óleos perfumados e pétalas
flutuavam na água. O seu cabelo espalhou-se em seu
redor enquanto se afundava nele e pensava em Cabo
Hisan. Em Susa.
Ela ficaria bem. Como um gato, Susa conseguia cair
sempre de pé. Quando eram jovens e Tané ainda fazia
visitas frequentes à cidade, a sua amiga roubava raízes
de lótus fritas ou ameixas salgadas, correndo como uma
raposa se fosse vista. Escondiam-se em algum lugar e
empanturravam-se, rindo o tempo todo. A única vez que
Susa parecera ter medo fora quando Tané a conhecera.

Fora num inverno longo e rigoroso. Numa noite


amarga, Tané enfrentara uma nevasca com um dos seus
professores para comprar lenha em Cabo Hisan.
Enquanto a professora discutia com um comerciante,
Tané afastou-se para aquecer as mãos numa tigela com
brasas.

Foi quando ouviu a gargalhada e a voz quebrada a


gritar por ajuda. Numa rua próxima, encontrou outra
criança a ser pisoteada por uns rapazes na neve. Tané
sacou da sua espada de madeira com um grito. Mesmo
aos onze anos, sabia como usá-la.

Os rapazes de Cabo Hisan eram lutadores


obstinados. Um deles desli­zara a lâmina pela sua maçã
do rosto, mirando-lhe no olho, deixando-lhe uma cicatriz
em forma de anzol.

Tinham espancado Susa — uma órfã faminta — por


comer um pe­daço de carne de um santuário. Depois de
Tané afugentar os rapazes, implorara à professora que a
ajudasse. Aos dez anos, Susa era dema­siado velha para
começar uma educação nas Casas de Instrução, mas foi
adotada pouco depois por um estalajadeiro de coração
terno. Desde então, ela e Tané sempre foram amigas. Às
vezes, brincavam a dizer que podiam ser irmãs, já que
Susa nada sabia sobre os pais.

Irmãs do mar, como Susa as chamara certa vez.


Duas pérolas formadas na mesma ostra.

Tané impulsionou-se para fora da água do banho.

Como mudara desde aquela noite na neve. Se


tivesse acontecido ago­ra, poderia ter decidido que lutar
com rapazes não era forma de uma aprendiza se
comportar. Poderia até ter decidido que a rapariga
merecia ser espancada por roubar o que era destinado
aos deuses. Em algum mo­mento, começara a perceber
quão afortunada era por ter a oportunidade de ser uma
cavaleira de dragão. Foi quando o seu coração se tornara
mais duro, como um navio a recolher crustáceos.

E, ainda assim, uma parte do seu eu mais jovem


permanecera. A par­te que escondera o homem da praia.

Não teria uma segunda oportunidade se estivesse


cansada durante o primeiro dia de aulas. Tané enxugou-
se com linho, enfiou os braços no robe sem forro da cama
e dormiu.

Quando acordou, o céu ainda estava nublado, mas


um feixe de luz pálida rompia as nuvens. A sua pele
secara, deixando-a com mais frio e com a mente mais
clara.

Um grupo de criados chegou pouco depois. Desde


criança que não era vestida por ninguém, mas sabia que
não devia contestar.

A primeira prova decorreria num pátio no centro da


escola, onde o General do Mar os aguardava. Os
guardiões do mar tomaram os seus assentos em bancos
de pedra em camadas. Os dragões já ali estavam,
observando-os sobre os telhados. Tané tentou não olhar.
— Bem-vindos ao primeiro teste de água. Estais na
estrada há vários dias, mas os soldados da Alta Guarda
do Mar têm pouco tempo para descansar — disse o
General do Mar. — Hoje, provareis a vossa capa­cidade de
usar uma alabarda. Comecemos com duas aprendizas
cujos eruditos professores gabam muito as suas
habilidades. Honrada Onren da Casa Este, honrada Tané
da Casa Sul. Veremos quem vence a outra primeiro.
Tané levantou-se. A sua garganta parecia pequena.
Quando chegou ao fim da escada, um homem entregou-
lhe uma alabarda: uma arma de haste leve, o cabo feito
de carvalho branco, com uma lâmina de aço curva na
ponta. Tané removeu a bainha laqueada e correu um
dedo até à ponta.

Na Casa Sul, as lâminas eram de madeira. Agora,


finalmente, poderia usar aço. Assim que Onren recebeu a
sua alabarda, ambas caminharam uma em direção à
outra.

Onren sorriu. Tané varreu a sua expressão, mesmo


com as palmas das mãos humedecidas. O seu coração
era uma borboleta em cativeiro. A água em ti é fria,
dissera-lhe, certa vez, a sua professora. Quando
empunhas uma arma, tornas-te um fantasma sem rosto.
Não revelas nada.

Reverenciaram-se. Um silêncio desceu-lhe à mente,


como o silêncio provindo do crepúsculo.

— Comecem! — ordenou o General do Mar.

Imediatamente, Onren fechou o espaço entre elas.


Tané girou a sua alabarda com as duas mãos, as lâminas
colidindo. Onren soltou um grito curto e alto.

Tané não emitiu nenhum som.

Onren quebrou a aproximação e caminhou para


trás, para longe de Tané, a alabarda apontada para o
peito. Tané esperou que ela desse o próximo passo. Devia
haver uma razão para Onren ter sido a aprendiza
principal na Casa Este.

Como se lhe pudesse ouvir o pensamento, Onren


começou a girar a alabarda em volta do corpo, passando-
a fluentemente sobre os braços e entre as mãos numa
demonstração de confiança. Tané intensificou o seu
aperto, observando.

Onren favorecia um lado. Evitava colocar muito


peso no joelho es­querdo. Tané lembrou-se, distante, que
Onren levara um coice de um cavalo quando era mais
jovem.

Arrojada, Tané avançou com a alabarda erguida.


Onren veio encontrá-la. Desta vez, foram mais rápidas.
Um, dois, três confrontos. Onren gritava ameaças tácitas
a cada ataque. Tané defendia-a em silêncio.

Quatro, cinco, seis. Tané estalou a alabarda para


cima e para baixo, usando tanto o cabo quanto a lâmina.

Sete, oito, nove.

Ao surgir de um corte para baixo, empunhou a


alabarda como se estivesse num pivô — numa
extremidade, depois na outra, desviando o golpe para o
lado e deixando a oponente exposta. Onren apenas se
recuperou a tempo de travar o próximo golpe, mas
quando voltou a em­purrar a arma, o vento sibilou,
passando por Tané. Uma mão voou-lhe para a orelha, em
busca de sangue, mas não havia nada.

A sua distração teve um preço. Onren veio até ela


numa rajada de carvalho e aço, libertando a sua força
considerável. Lutavam por honra, por glória, pelos
sonhos que alimentavam desde crianças. Tané cerrou os
dentes enquanto dançava e se esquivava, o suor
encharcando-lhe a túnica, o cabelo colado à nuca. Um
dos dragões soltou um sopro.
A lembrança da sua presença endureceu-lhe a
determinação. Para ganhar, ela teria de desferir um
golpe.
Permitiu que Onren lhe batesse no braço com o cabo,
com força su­ficiente para a magoar. A dor foi profunda.
Onren conduziu a arma como uma lança de peixe. Tané
saltou para trás, dando-lhe um espaço amplo, e depois,
quando Onren ergueu os braços para um corte final, Tané
rebolou e investiu com força no seu joelho fraco. A
madeira bateu de forma limpa contra o osso.
Onren derrapou com um suspiro. O seu joelho cedeu.
Antes que pu­desse levantar-se, Tané colocou a lâmina
nos seus ombros.
— Ergue-te — disse o General do Mar, parecendo
satisfeito. — Bem lutado. Honrada Tané da Casa Sul, a
vitória é vossa.
Os espetadores aplaudiram. Tané entregou a alabarda
a um criado e estendeu a mão a Onren.
— Magoei-te?
Onren deixou Tané ajudá-la a levantar-se.
— Bem — disse ela, ofegante. — Suspeito de que me
tenhas quebrado a rótula.
Uma lufada de ar salgado surgiu de trás delas. O
dragão lacustre ver­de sorria para Tané sobre o telhado,
mostrando todos os dentes. primeira vez, Tané sorriu de
volta.
A distância, percebeu que Onren ainda estava a falar.
— Desculpa-me — disse, tonta de alegria. — Que
disseste?
— Estava apenas a observar como os guerreiros mais
ferozes se po­dem esconder atrás de rostos tão gentis. —
Elas curvaram-se uma para a outra antes de Onren
acenar para os bancos, onde os aprendizes ainda batiam
palmas. — Olha bem para o Turosa. Ele sabe que tem
uma con­corrente à altura.
Tané seguiu-lhe o olhar. Turosa nunca parecera tão
zangado — nem tão determinado.
11

Oeste

— Aí está — disse Estina Melaugo, com um gesto


amplo em dire­ção à terra. — Deleitai os vossos olhos com
a latrina draconia­na de Yscalin.

— Não, obrigado. — Kit bebeu da garrafa que


estavam a partilhar. — Preferia que a minha morte fosse
uma surpresa.

Loth espreitou pela luneta. Mesmo agora, um dia


depois de ver o Sombra Ocidental, as suas mãos estavam
instáveis.

Fýredel. Asa direita do Inominável. Comandante do


Exército Draconiano. Se ele tivesse despertado, os outros
Sombras Ocidentais certamente o seguiriam. Era deles
que o resto da espécie wyrm extraía forças. Quando um
Sombra Ocidental morria, o fogo nos seus wyverns e na
sua descendência extinguia-se.

O próprio Inominável não poderia regressar, não


enquanto a Casa de Berethnet se mantivesse, mas os
seus servos poderiam causar destruição sem ele. A
Ascensão das Sombras fora prova disso.

Devia haver uma razão para se estarem a erguer


novamente. Haviam adormecido no final da Ascensão
das Sombras, na mesma noite em que um cometa
cruzara o céu. Os estudiosos especularam durante
séculos sobre o porquê e quando poderiam acordar, mas
ninguém encontrara uma resposta. Gradualmente, todos
começaram a supor que nunca o fariam. Que os wyrms
se tinham tornado fósseis vivos.

Loth voltou a sua atenção para o que podia ver


através da luneta. A Lua era um olho semicerrado, e
estavam a flutuar na água tão escu­ra como os seus
pensamentos. Tudo o que conseguia ver era o ninho de
luzes que era Perunta. Um lugar que poderia estar
infestado com a peste draconiana.

A doença tinha primeiro escapado do Inominável,


cujo hálito, dizia-se, era um veneno de ação lenta. Uma
tendência mais temível chegara com os cinco Sombras
Ocidentais. Eles e os seus wyverns transportavam-na, da
mesma forma que os ratos outrora transportavam a
pestilência. Existia apenas em áreas circunscritas desde
o final da Ascensão das Sombras, mas Loth conhecia os
sinais pelos livros.
Tudo começava com o avermelhamento das mãos.
Em seguida, surgia uma erupção cutânea semelhante a
escamas. Ao espalhar-se pelo corpo, o empestado sentia
dores nas articulações, febre e visões. Se tivessem o azar
de sobreviver a esta fase, o massacre do sangue
instalava-se. Eram mais perigosos aí, porque se não
fossem contidos, corriam a gritar como se estivessem em
chamas, e qualquer pessoa cuja pele tocasse a deles
também seria afetada. Normalmente morriam em poucos
dias, embora alguns sobrevivessem por mais tempo.

Não havia cura para a peste. Nem cura, nem


proteção. Loth fechou a luneta e entregou-a a Melaugo.

— Suponho que tenha chegado o momento — disse


ele.
— Não abandoneis a esperança, Lorde Arteloth. — O
seu olhar estava disperso. — Duvido de que a peste
esteja no palácio. São aqueles de entre nós a que
chamais de comuns que mais sofrem em tempos de
necessidade.
Plume e Harlowe aproximaram-se da proa, este
último com um cachimbo de argila na mão.
— Certo, meus senhores — disse o capitão. —
Gostámos de vos receber, de verdade, mas nada dura
para sempre.
Kit pareceu, por fim, entender o perigo que corriam.
Ou estava com os copos ou perdera o juízo, mas apertou
as mãos.
— Rogo-vos, Capitão Harlowe, deixai-nos juntar-nos
à vossa tripulação. — Os seus olhos estavam febris. —
Não precisais de contar ao Lorde Seyton. As nossas
famílias têm dinheiro.
— O quê? — sibilou Loth. — Kit...
— Deixai-o falar. — Harlowe fez um gesto com o
cachimba Continuai, lorde Kitston.

— Há terras nos Baixos, boas terras. Salvai-nos e


serão vossas — continuou Kit.

— Tenho o alto mar aos meus pés. Não preciso de


terra — disse Harlowe. — Do que preciso é de
marinheiros.

— Com a vossa orientação, aposto que podemos


ser marinheiros exce­cionais. Descendo de uma longa
linhagem de cartógrafos, sabeis? — Uma mentira
absoluta. — E o Arteloth costumava navegar no Lago
Elsand.

Harlowe olhou-os com um olhar sombrio.

— Não — disse Loth com firmeza. — Capitão, o


Lorde Kitston sente-se inquieto com a nossa tarefa, mas
temos o dever de entrar em Yscalin. Para nos
certificarmos de que é feita justiça.
Com o rosto como uma maçã sem pele, Kit agarrou-
o pelo gibão e puxou-o para o lado.

— Arteloth — disse baixinho —, estou a tentar


livrar-nos disto. Porque isto — virou Loth em direção às
luzes, ao longe — não tem nada que ver com justiça. Isto
é o Falcão da Noite a enviar-nos aos dois para a morte
por conta de alguns mexericos.

— O Combe pode ter-me eLivros por algum outro


propósito, mas ago­ra que estou à beira de Yscalin, desejo
descobrir o que aconteceu com o Príncipe Wilstan. —
Loth pousou-lhe uma mão no ombro. — Se quiseres
voltar, Kit, não te guardarei rancor. Esta punição não te
pertence.

Kit olhou para ele, a frustração inscrita no rosto.

— Oh, Loth — disse, com mais suavidade. — Não és


o Santo.

— Não, mas tem tomates — disse Melaugo.

— Não tenho tempo para esta conversa piedosa —


interrompeu Harlowe. — Mas concordo com a Estina
quanto ao assunto dos to­mates, Lorde Arteloth. — O seu
olhar era penetrante. — Preciso de pessoas com corações
como o vosso. Se achardes que podeis enfrentar os
mares, dizei-me agora e aceitar-vos-ei na minha
tripulação.

Kit pestanejou.

— A sério?

Harlowe estava impassível. Quando Loth se calou,


Kit libertou um suspiro.

— Foi o que pensei. — Harlowe lançou-lhes um


olhar frio. — Agora, andor do meu navio.

Os piratas troçaram. Melaugo, cujos lábios estavam


franzidos, acenou para Loth e Kit. Quando o amigo se
virou para o seguir, Loth agarrou-lhe o braço.

— Kit — murmurou. — Aproveita a oportunidade e


fica para trás. Não és uma ameaça para o Combe, não
como eu. Ainda podes voltar para Inys.

Kit abanou a cabeça com um sorriso nos lábios.

— Vá lá, Arteloth — disse ele. — A pouca compaixão


que tenho, devo-a a ti. E ele pode não ser meu patrono,
mas sei que o Cavaleiro da Camaradagem nos diz para
não abandonarmos os nossos amigos.

Loth queria contrariá-lo, mas deu por si a sorrir


para o amigo. Caminharam lado a lado atrás de Melaugo.
Tiveram de descer umas escadas de corda do Rosa
Eterna. As suas botas polidas escorregaram nos degraus.
Quando se acomodaram no barco a remo, onde os seus
baús de viagem os aguardavam, Melaugo subiu com
eles.

— Passai-me os remos, Lorde Arteloth. — Quando


Loth o fez, ela assobiou. — Até breve, Capitão. Não se
vão embora sem mim.

— Nunca, Estina. — Harlowe inclinou-se para o lado.


— Adeus, meus senhores.

— Mantenham esses pomandros por perto, meus


senhores — acres­centou Plume. — Não quero que
apanhem nada.

A tripulação desatou a rir enquanto Melaugo se


afastava do Rosa.

— Não lhes ligueis. Eram capazes de se mijarem


antes de fazerem o que estais a fazer. — Ela olhou por
cima do ombro. — O que vos fez oferecer os vossos
serviços como pirata, Lorde Kitston? Esta vida não é
como nas canções, sabeis? Há muito mais merda e
escorbuto.
— Um rasgo de genialidade, achava eu. — Kit
lançou-lhe um olhar de dor fingida. — O Cavaleiro da
Cortesia é meu patrono, senhora. Ele ordena aos poetas
que embelezem o mundo, mas como poderei fazê-lo, a
menos que o veja?
— Eis uma pergunta que requer mais alguns copos
para ser respondida.
A medida que se aproximavam da costa, Loth pegou
no seu lenço e pressionou-o contra o nariz. Vinagre, peixe
e fumo acre formavam o moto podre de Perunta. Kit
manteve o sorriso, mas os seus olhos lacrimejavam.
— Que refrescante — conseguiu dizer.

Melaugo não sorriu.

— Ficai com esses pomandros — disse ela. — Vale a


pena mantê-los, ainda que apenas para conforto.

— Não há nada que possamos fazer para nos


protegermos? — quis saber Loth.

— Podeis tentar não respirar. Dizem que a peste


está em toda a parte e ninguém sabe ao certo como se
espalha. Alguns usam véus ou másca­ras para a manter
afastada.

— Nada mais?

— Oh, vereis mercadores a vender todo o tipo de


coisas. Espelhos para desviar os vapores malignos,
inúmeras poções e unguentos... mas mais vale
engolirdes o vosso ouro. A melhor coisa a fazer é acabar
com o sofrimento dos afetados. — Manobrou o barco em
torno de uma rocha. — Não consigo imaginar que tenhais
visto muitas mortes.
— Fico ressentido com a vossa suposição — objetou
Kit. — Vi a minha querida e velha tia no seu ataúde.
— Sim, e suponho que ela tenha usado um vestido
vermelho para o seu encontro com o Santo. Suponho que
estivesse limpa como um gatinho lambido e cheirasse a
alecrim. — Quando Kit fez uma careta, Melaugo disse: —
Não haveis visto a morte, meu senhor. Apenas a más­cara
que lhe colocamos.
Ficaram sentados em silêncio a partir daí. Quando a
água se tornou rasa o suficiente para entrar, Melaugo
parou de remar.
— Não me aproximo mais. — Acenou com a cabeça
para a cidade. — Devereis ir a uma taberna chamada
Videira. Alguém vos irá buscar. — Empurrou Kit com a
ponta da bota. — Ide agora. Sou corsária, não uma ama
de leite.
Loth levantou-se.
— Os nossos agradecimentos a vós, senhora
Melaugo. A vossa genti­leza não será esquecida.
— Por favor, esquecei. Tenho uma reputação a
manter.
Eles saíram do barco a nado. Quando se
encontravam na areia, ensopados, Melaugo voltou para o
Rosa Eterna, cantando num yscali trémulo.
Harlowe poderia tê-los levado aos dois. Poderiam ter
visto lugares que já não tinham nome, oceanos que
nunca tinham sido costurados por rotas comerciais. Loth
poderia ter dado por si na proa do seu próprio navio, um
dia — mas ele não era esse homem, e nunca seria.
— Não é a nossa entrada mais digna. — Ofegante, Kit
deixou cair o peito. — Como supões que encontraremos a
tal taberna?
— Acho que... contando com os nossos instintos —
respondeu Loth, inseguro. — Os homens do povo devem
conseguir.
— Arteloth, nós somos cortesãos. Não temos
instintos úteis.
Loth não teve resposta.
Fizeram um progresso lento na cidade. Os baús eram
pesados e não tinham mapa nem bússola.
Perunta já fora conhecido como o porto mais bonito
do Ocidente. Aquelas ruas cheias de lama, a transbordar
de ossos de peixes, cinzas e resíduos não eram o que
Loth tinha imaginado. Um pássaro mor­to contorcia-se
com vermes. As fossas transbordavam. Numa praça
apagada, um santuário estava em ruínas. Sabran tinha
ouvido relatos de que o Rei Sigoso executara os
santuários que não renunciavam ao Santo, mas não
quisera acreditar neles.
Loth tentou não respirar ao passar por cima de um
riacho de líquido escuro. Não ousou afastar-se muito de
Kit. As pessoas acotovelavam-se em redor deles,
cobrindo os rostos com véus ou trapos de pano.
Viram a sua primeira casa de peste na rua seguinte.
Havia tábuas pregadas nas janelas, a porta de carvalho
manchada com asas escarlates. Palavras yscali escritas a
giz acima dela.
— Compadecei-vos desta casa, pois aqui estamos
condenados — leu Kit.
Loth olhou de soslaio para ele.
— Sabes ler yscali?
— Sei. Estás surpreendido — disse Kit em tom grave.
— Afinal, sou um mestre de inysh, um tal prodígio dos
versos, parece impossível que pudesse ter espaço no
crânio para outra língua, mas...
— Kit.
— A Melaugo disse-me a tradução.
A escuridão era desorientadora. Havia poucas velas
acesas em Perunta, embora braseiros fumigassem as
ruas mais largas. À força de caminhar com o máximo de
confiança possível, Loth e Kit deram por fim com a
taberna onde deveriam encontrar a sua escolta para
Cárscaro. O letreiro exibia um cacho de suculentas uvas
pretas que não tinham nada que ver com aquela fossa.

Uma carruagem esperava do lado de fora.


Construída com o que Loth estava certo de ser ferro,
aterrorizou-o antes mesmo de se perguntar que tipo de
cavalo poderia levar tal coisa. E depois viu.

Uma grande cabeça de lobo virou-se para olhar


para ele, e uma mandíbula enorme, cheia de dentes,
afrouxou para deixar escapar um fio de baba.

A criatura era maior do que um urso. O seu pescoço


grosso afinava-se num corpo serpentino que podia ser
movido pelas suas pernas musculadas ou um par de asas
de morcego. Ao seu lado estava um segundo monstro,
este coberto de pele cinzenta. Os seus olhos eram
idênticos. Vestígios do Ventre de Fogo.

Jaculi.

Descendentes de wyverns e lobos.


— Não te mexas — sussurrou Kit. — Os bestiários
dizem que movimentos bruscos fazem-nos atacar.
Um dos jaculi rosnou. Loth queria fazer o sinal da
espada, mas não ousou mover-se.
Quantas criaturas draconianas estariam acordadas
em Yscalin?
O cocheiro da carruagem era um yscal de cabelo
oleado.
— Lorde Arteloth e Lorde Kitston, presumo — disse
ele.
Kit fez um barulho incoerente. O cocheiro puxou uma
alavanca e um conjunto de degraus desdobrou-se.
— Deixem os baús — murmurou. — Entrem.
Eles obedeceram.
Dentro da carruagem, encontraram uma mulher à
espera deles, vestida com um pesado vestido carmesim
e um véu de renda preta. Usava luvas de veludo
compridas, com folhos no cotovelo. Ao seu lado,
encontrava-se pendurado um pomandro de filigrana.
— Lorde Arteloth. Lorde Kitston — saudou em voz
suave. Loth apenas podia ver-lhe olhos escuros através
do véu. — Bem-vindos a Perunta. Eu sou Priessa
Yelarigas, primeira dama do Leito Real de Sua
Esplendorosa, Donmata Marosa do Reino Draconiano de
Yscalin.
Ela não estava empestada. Ninguém torturado pela
peste poderia falar com uma língua tão bondosa.
— Obrigado por nos encontrar aqui, minha senhora
— Loth esforçou-se por firmar a voz. Kit espremeu-se na
carruagem ao lado dele. — Estamos honrados em ser
recebidos na corte do Rei Sigoso.
— Sua Majestade sente-se honrado por vos receber.
Um chicote estalou do lado de fora e a carruagem
avançou.
— Confesso-me surpreendido por Sua Esplendorosa
ter enviado uma senhora de tão alta patente para nos
encontrar — disse Loth. — Visto que esta cidade está tão
cheia de empestados.
— Se o Inominável deseja que eu entregue a minha
vida à sua peste, que assim seja — foi a resposta dela.
Loth cerrou o maxilar. E pensar que aquelas pessoas
haviam outrora professado lealdade a Sabran e ao Reino
das Virtudes.
— Acostumar-vos-eis a cavalos a puxar uma
carruagem, meus senhores — continuou a senhora
Priessa —, mas levaríamos muitos dias a cruzar Yscalin
dessa forma. Os jaculis têm passos rápidos e nunca se
cansam.
Cruzou as mãos no colo. Os seus dedos eram lar de
vários anéis de ouro, postos sobre as luvas.
— Devíeis descansar — sugeriu ela. — Por mais
rápidos que sejam os nossos animais, temos um longo
caminho a percorrer, meus senhores.
Loth tentou sorrir.
— Prefiro observar a paisagem.
— Como quiserdes.
Na verdade, estava muito escuro para ver para fora
da janela, mas ele recusava-se a dormir estando tão
perto de uma adoradora de wyrms.
Aquele era território draconiano. Ele levantar-se-ia da
almofada de seda da nobreza e encontraria o espião
dentro de si. Endurecer-se-ia para os perigos da sua
missão. Então, enquanto Kit dormitava, Loth ficou
sentado o mais imóvel que pôde, os olhos abertos por
pura força de vontade, e fez uma promessa ao Santo.
Aceitaria a estrada para que fora empurrado.
Procuraria o Príncipe Wilstan. Reuniria a sua rainha com o
pai. E encontraria o caminho para casa.
Não soube dizer se Priessa Yelarigas dormira ou se o
vigiara a noite toda.

***

Havia fumo no seu cabelo. Ela podia sentir-lhe o


cheiro. — Onde, no Reino das Virtudes, a encontrastes?
— O campanário, de todos os lugares.

Passos.

— Santo, é a senhora Duryan. Enviai uma


mensagem a Sua Majestade imediatamente. E chamai
um médico.

A sua língua era uma brasa na sua boca. Quando os


estranhos a largaram, afundou num sonho febril.

Voltara a ser criança, protegida do sol pelos galhos


da árvore. A fruta pendurada sobre a sua cabeça,
demasiado alta para ela a alcançar, e Jondu chamava:
Vem cá, Eadaz, vem ver.

Depois, a Prioresa levou uma chávena aos lábios,


dizendo que era o sangue da Mãe. Sabia à luz do Sol,
risos e orações. Ela queimara assim nos dias que se
seguiram, queimara até o fogo lhe ter derretido a igno­‐
rância. Naquele dia, renascera.

Quando acordou, uma mulher conhecida estava à


sua cabeceira, des­pejando água de um jarro numa tigela.

— Meg.

Margret virou-se para ela tão rapidamente que


quase derrubou a tigela.

— Ead! — Com uma gargalhada de alívio, inclinou-


se para lhe beijar a testa. — Oh, graças ao Santo. Tens
estado inconsciente há dias. Os médicos disseram que
estavas com febre, depois com suor e depois com a
peste...
— Sabran — disse Ead asperamente. — Meg, ela
está bem?

— Devemos primeiro estabelecer se tu estás bem.


— Margret sentiu as suas faces, o seu pescoço. — Dói-te
alguma coisa? Devo procurar um médico?

— Nada de médicos. Estou perfeitamente bem. —


Ead molhou os lábios. — Tens algo para beber?

— Claro.

Margret encheu uma caneca e levou-a à sua boca.


Ead engoliu um pouco da cerveja do interior.

— Estavas no campanário — disse Margret. — Que


estavas lá a fazer? Ead inventou uma mentira.

— Enganei-me no caminho para a biblioteca. Dei


com a porta da tor­re do relógio aberta e pensei em
explorá-la, e lá estava eu quando a besta apareceu.
Suponho que... foram os vapores horríveis que me deram
esta febre. — Antes que Margret o pudesse questionar,
ela acrescentou: — Agora, diz-me se Sabran está bem.
— Sabran está bem como eu nunca a vi, e toda a
Inys sabe que o próprio Fýredel não lhe poderia tocar
com o seu fogo.
— Onde está o wyrm agora?
Margret pousou a caneca na mesa de cabeceira e
molhou um pano na tigela.
— Foi-se. — A sua sobrancelha franziu-se. — Não
houve mortes, mas ele ateou fogo a alguns armazéns. O
Capitão Lintley diz que a cidade está no limite. Sabran
enviou arautos para tranquilizar o povo da sua proteção,
mas ninguém consegue acreditar que um Sombra
Ocidental tenha despertado.
— Estava fadado a acontecer — disse Ead. — Coisas
menores têm estado a agitar-se há algum tempo.
— Sim, mas nunca um dos soberanos. Felizmente, a
maior parte da cidade não tem ideia de que o que viram
foi a asa direita do Inominável. Todas as tapeçarias que o
retratam estão escondidas aqui. — Margret torceu o
pano. — Ele e os seus parentes infernais.
— Ele disse que Orsul despertara. — Ead tomou outro
gole de cerveja. — E, em breve, Valeysa.
— Pelo menos os outros estão mortos há muito
tempo. E, claro, o pró­prio Inominável não pode regressar.
Não enquanto a Casa de Berethnet durar.
Quando Ead se tentou sentar, os seus braços
tremeram e voltou a afundar-se nas almofadas. Margret
foi até à porta para falar com um criado antes de
regressar.
— Meg — disse Ead, enquanto Margret enxugava a
testa. — Eu sei o que aconteceu ao Loth.
Margret ficou imóvel.
— Ele escreveu-te?
— Não. — Ead olhou para a porta. — Ouvi os Duques
Espirituais a falar com Sabran. O Combe afirma que o
Loth foi para Cárscaro como espião, para descobrir o que
se está a passar lá e procurar Wilstan Fynch. Disse que o
Loth foi sem permissão... mas acho que ambas sabemos
a verdade sobre isso.
Lentamente, Margret recostou-se. A sua mão
deslizou para o seu meio.

— Que o Santo salve o meu irmão — murmurou. —


Ele não é um espião. O Combe sentenciou-o à morte.

O silêncio caiu, quebrado apenas pelos pássaros lá


fora.

— Eu disse-lhe, Ead — continuou Margret, por fim.


— Eu disse-lhe que a amizade com uma rainha não era
igual a qualquer outra, que ele tinha de ter cuidado. Mas
o Loth nunca ouve. — Esboçou um sorriso triste e irónico.
— O meu irmão acha que toda a gente é tão boa quan­to
ele.

Ead tentou encontrar palavras de conforto, mas não


tinha nenhuma. Loth corria, de facto, grande perigo.

— Eu sei. Também tentei avisá-lo. — Pegou na mão


da amiga. — Ele ainda pode encontrar o caminho para
casa.
— Sabes bem que ele não vai durar muito em
Cárscaro.
— Podias pedir ao Combe que o trouxesse de volta.
Afinal, és a senhora Margret Beck.
— E o Combe é o Duque da Cortesia. Ele tem mais
influência e ri­queza do que eu alguma vez terei.
— Não poderias contar a Sabran pessoalmente,
então? — perguntou Ead. — Ela claramente tem as suas
suspeitas em relação à história.
— Não posso acusar o Combe ou qualquer outro sem
provas de uma conspiração. Se ele disse a Sab que o
Loth foi por escolha própria, e eu não pudesse apresentar
nenhuma evidência que o contestasse, então nem
mesmo ela poderia fazer alguma coisa.
Ead sabia que Margret estava certa. Apertou-lhe a
mão e Margret soltou um suspiro trémulo.
Alguém bateu à porta. Margret murmurou para quem
estava lá fora. Agora que o seu siden estava calmo e os
seus sentidos entorpecidos, Ead não conseguia ouvir o
que eles diziam.
A sua amiga voltou com uma chávena.
— Gemada quente com vinho — disse ela. — A Tallys
fê-la de propó­sito. Que rapariga tão gentil.
A bebida quente, adoçada a ponto de enjoar, era a
resposta para tudo em Inys. Demasiado fraca para
segurar as pegas, Ead deixou que Margret lhe servisse o
líquido horrível à boca.
Outra batida. Desta vez, quando Margret abriu, fez
uma reverência.
— Dá-nos um momento, Meg.
Ead conhecia aquela voz. Com um olhar na sua
direção, Margret saiu, A rainha de Inys entrou no quarto.
O seu traje de montaria era verde-escuro como azevinho.
— Chamai se precisar de nós, Majestade — disse
uma voz rouca de fora.
— Não creio que uma mulher acamada represente
grande perigo à minha pessoa, Sir Gules, mas obrigada.
A porta fechou-se. Ead endireitou-se o melhor que
pôde, consciente da sua roupa encharcada de suor e do
sabor azedo na sua boca.
— Ead — disse Sabran, examinando-a. Um rubor
tocou-lhe as faces. — Vejo que estás finalmente
acordada. Ausentaste-te dos meus aposen­tos por muito
tempo.
— Perdoai-me, Vossa Majestade.
— Sentimos falta da tua generosidade. Pretendia
visitar-te antes, mas os médicos temeram que pudesses
ter a enfermidade suada. — O sol iluminou-lhe os olhos.
— Estavas na torre do relógio no dia em que o wyrm
chegou. Gostaria de saber porquê.
— Senhora?
— O Bibliotecário Real encontrou-te lá. A senhora
Oliva Marchyn disse-me que alguns cortesãos e criados
usam a torre para... atividades sexuais.
— Eu não tenho amante, Majestade.
— Não tolerarei nenhum tipo de lascívia neste
palácio. Confessa, e o Cavaleiro da Cortesia poderá
mostrar misericórdia.
Ead sentiu que a rainha não engoliria a história de se
ter enganado no caminho.
— Subi ao campanário... para ver se conseguia
distrair a besta de Vossa Majestade. — Gostaria de ter
forças para falar com mais convic­ção. — Mas não
precisava de temer por vós.
Era a verdade, despojada das suas partes vitais.
— Confio que o Embaixador uq-Ispad não pediria que
aceitasse uma pessoa de baixa moral na minha Casa
Superior — concluiu Sabran. — Mas que não volte a ouvir
de ti a visitar a torre do relógio outra vez.
— Claro, senhora.
A rainha foi até à janela aberta. Colocando a mão no
peitoril, olhou para os jardins do palácio.

— Majestade — disse Ead —, posso perguntar-vos


porque saístes para enfrentar o wyrm? — Uma brisa
clemente soprou de fora. — Se o Fýredel vos tivesse
matado, tudo estaria perdido.

Sabran demorou algum tempo a responder.

— Ele ameaçou o meu povo — murmurou. — Já


tinha saído antes de ter considerado o que mais poderia
ser feito. — Olhou para Ead. — Recebi outro relatório
sobre ti. A senhora Truyde utt Zeedeur tem dito aos meus
cortesãos que és uma feiticeira.

Maldita seja aquela cabrinha ruiva. Ead quase lhe


admirou a cora­gem, ignorando a ameaça de uma
maldição.

— Majestade, nada sei sobre feitiçaria — disse,


tingindo as palavras com uma pitada de desprezo.
Feitiçaria não era uma palavra que a Prioresa
apreciasse.
— Sem dúvida — disse Sabran. — Mas a senhora
Truyde acha que foste tu quem me protegeu do Fýredel.
Afirma que te viu na torre do relógio, a lançar um feitiço
na minha direção.
Desta vez, Ead ficou em silêncio. Não havia
argumento possível con­tra a acusação.
— Claro — disse a rainha — que ela é uma mentirosa.
Ead não se atreveu a falar.
— Foi o Santo que repeliu o wyrm. Estendeu o seu
escudo celestial para me proteger do fogo. Insinuar que
se tratava de feitiçaria barata beira a traição — declarou
Sabran, com a voz neutra. — Estou a consi­derar mandá-
la para a Torre Dearn.
Toda a tensão abandonou Ead. Uma gargalhada de
alívio borbulhou--lhe do interior, ameaçando transbordar.
— Ela é apenas jovem, Majestade — disse, forçando-
se a conter-se. — Com a juventude vem a loucura.
— Tem idade suficiente para tecer falsas acusações
— apontou Sabran. — Não desejas vingança?
— Prefiro o sabor da misericórdia. Permite-me dormir
à noite.
Aqueles olhos frios como pedra percorreram-na.
— Talvez estejas a insinuar que deveria mostrar
misericórdia com mais frequência.
Ead estava demasiado exausta para temer aquele
olhar.
— Não. Apenas duvido de que a senhora Truyde
fizesse tenções de insultar Vossa Majestade. É mais
provável que tenha rancor de mim, já que fui promovida
a uma posição que ela deseja.
Sabran ergueu o queixo.
— Retomarás as tuas funções dentro de três dias.
Pedirei ao médico da corte para cuidar de ti até então —
disse ela. Ead ergueu as sobrance­lhas. — Preciso de ti de
boa saúde — continuou Sabran, levantando-se para sair.
— Assim que o anúncio for feito, precisarei de todas as
minhas damas a meu lado.
— Anúncio, senhora?
Sabran virou-lhe as costas, mas Ead viu-lhe os ombros
ficarem tensos.
— O anúncio — revelou — do meu noivado com
Aubrecht Lievelyn, Grão-Príncipe do Estado Livre de
Mentendon.
12

Este

As provas aquáticas decorreram como um longo


sonho. A maioria dos cidadãos abrigou-se nas suas casas
enquanto a tempestade atingia a costa oeste de Seiiki,
mas esperava-se dos guardiões do mar que suportassem
as piores condições.

— Chuva é água, e nós também — gritou o General


do Mar sobre o trovão enquanto passava pelas fileiras. O
seu cabelo estava colado ao crânio e gotas de chuva
escorriam-lhe da ponta do nariz. — Se vos dei­xais
derrotar por um bocadinho de água, não podeis esperar
montar um dragão ou proteger o mar, e este não é o
lugar para vós. — Levantou a voz. — A água vai derrotar-
vos?

— Não, honrado General do Mar! — gritaram os


aprendizes. Tané já estava encharcada. Pelo menos a
chuva estava quente.
Tiro com arco e armas de fogo eram bastante
fáceis. Mesmo com a chuva torrencial, Tané tinha olhos
penetrantes e mão firme. Dumusa era a melhor no arco
— poderia tê-lo feito de olhos vendados —, mas Tané
ficou em segundo lugar. Nenhum deles, nem mesmo
Dumusa, po­deria vencê-la com uma pistola, mas um
guardião do mar da Casa Oeste quase conseguira.
Kanperu, o mais velho e mais alto, cujo maxilar apa­‐
rentava estar ao alcance de um golpe de espada e cujas
mãos pareciam grandes o suficiente para envolver
troncos de árvore.

Tiro com arco montado era o próximo. Cada um


deles teve de atingir seis boias de vidro penduradas
numa viga. Dumusa não era tão hábil a cavalo como a
pé, e apenas destruiu cinco. Não gostando de cavalos,
Onren, que rangera os dentes durante o julgamento,
perdeu o controlo do seu corcel e errou três. Tané, no
entanto, acertou em cheio todas as vezes — até que o
seu cavalo tropeçou e a fez errar o tiro final, permitin­do
que Turosa lhe roubasse o primeiro lugar.

Montaram os seus cavalos de volta aos estábulos.


— Tiveste azar, camponesa — disse Turosa a Tané,
enquanto ela des­cia da sela. — Suponho que algumas
coisas estejam no sangue. Talvez, um dia, o honrado
General do Mar perceba que os cavaleiros de dragões
nascem, não são feitos.
Tané apertou o maxilar quando um cavalariço lhe
tomou o garanhão. A sua pelagem estava escura de
chuva e suor.
— Ignora-o, Tané — disse Dumusa, desmontando. O
seu cabelo caía-lhe húmido sobre os ombros. — A água é
a mesma em todos nós.
Turosa franziu os lábios, mas saiu. Ele nunca discutia
com os outros descendentes de cavaleiros.
Quando ele se foi, Tané fez uma reverência a Dumusa.
— Tendes grande talento, honrada Dumusa — elogiou.
— Espero um dia vir a ser uma arqueira tão habilidosa
quanto vós.
Dumusa curvou-se em resposta.
— Espero um dia vir a ter o mesmo domínio de armas
de fogo que vós, honrada Tané.
Abandonaram os estábulos juntas. Tané já falara com
Dumusa antes, mas agora que estavam sozinhas, não
sabia o que dizer. Sempre se per­guntara como devia ter
sido para ela crescer numa mansão em Ginura com os
seus avós Miduchi.
Quando chegaram à sala de treino, sentaram-se
juntas e Tané come­çou a limpar a lama das suas setas.
Kanperu, o aprendiz alto e silencioso, já lá estava, a
tratar da sua pistola de prata.
Enquanto trabalhavam, Onren entrou no corredor.
— Aquilo — declarou — foi o pior lançamento que já
fiz. — Puxou o cabelo encharcado para trás. — Devo
encontrar um santuário e implorar ao grande Kwiriki que
lave todos os cavalos. Têm tentado arruinar-me desde o
dia em que nasci.
— Paz. — Dumusa não ergueu os olhos do arco. —
Tens muito tem­po para mostrar a tua habilidade aos
Miduchi.
— É fácil para vocês dizer. Têm o sangue dos Miduchi.
Todos vocês se tornam cavaleiros no final.
— Há sempre uma hipótese de ser a primeira a não
o fazer.

— Uma hipótese — concordou Onren. — Mas todos


nós sabemos que a hipótese é muito pequena.

O seu joelho estava inchado por causa do duelo.


Teria de trabalhar duro se quisesse ser uma cavaleira.

Kanperu devolveu a pistola ao suporte da parede.


Ao sair, lançou a Onren um olhar indecifrável por cima do
ombro.

— Ouvi dizer que o honrado Kanperu passou a


visitar uma taberna, perto do mercado de frutas —
murmurou Dumusa a Onren quando ele se encontrava
fora do alcance da voz. — Passa todas as noites lá.

— E então?

— Pensei que podíamos ir também. Quando nos


tornarmos cavalei­ros, passaremos muito tempo juntos.
Seria conveniente que nos conhe­cêssemos bem. Não
concordas?

Onren sorriu.
— Dumu — disse ela. — Estás a tentar distrair-me
para que eu não supere o teu desempenho?

— Sabes muito bem que me superas em tudo,


exceto no arco e flecha. — Dumusa inspecionou o seu
arco mais uma vez. — Anda. Preciso de sair deste lugar
por algumas horas.

— Eu devia dizer ao honrado General do Mar que és


uma má in­fluência. — Onren levantou-se e espreguiçou-
se. — Vamos, Tané?

Tané demorou um pouco a perceber que as duas


estavam a olhar para ela, à espera de uma resposta.

Estavam a falar a sério. Em plenas provas


aquáticas, queriam ir a uma taberna.

— Obrigada — disse ela lentamente. — Mas devo


ficar aqui e pra­ticar para a próxima prova aquática. —
Fez uma pausa. — Não devias também estar a preparar-
te para amanhã, Onren?

Onren resfolegou.

— Passei a maior parte da minha vida a praticar.


Praticar ontem à noite não me ajudou hoje. Não — disse
ela —, o que eu preciso esta noite é de uma bebida forte.
E talvez de um forte... — Olhou para Dumusa e, embora
os seus lábios tremessem com o esforço de o conter,
ambas se riram.

Tinham perdido o juízo. Certamente, num momento


como aquele, ninguém se podia dar ao luxo de se distrair.

— Espero que aproveitem a noite — disse Tané,


levantando-se. — Boa noite.

— Boa noite, Tané — disse Onren. O seu sorriso


desapareceu e a sua testa franziu-se. — Tenta dormir um
pouco, está bem?

— Claro.
Tané atravessou o corredor e pendurou o arco.
Turosa, que estava prestes a praticar combate
desarmado com os amigos, olhou para ela e bateu com o
punho na palma da mão.
Uma brisa húmida soprava pelos corredores, quente
como o vapor de uma sopa acabada de fazer. O chão
polido estalava sob os seus pés enquanto caminhava de
volta pela escola.
Lavou o suor e praticou sozinha no quarto com a sua
espada. Quando o seu braço finalmente se cansou,
sentiu-se abocanhada por um verme de apreensão. Não
havia motivo para o seu cavalo ter tropeçado durante o
julgamento. E se Turosa o tivesse sabotado de alguma
forma, apenas para a irritar?
No final, Tané regressou aos estábulos. Quando
encontrou o ferrador, ele garantiu-lhe que não havia
nada de errado. O chão estava molhado. Muito
provavelmente o cavalo teria escorregado.
Não deixes que um merdas como o Turosa te deite
abaixo, dissera-lhe Susa, mas a sua voz parecia muito
distante.
Tané passou o que restava da noite na sala de
treinos, a arremessar adagas contra espantalhos. Apenas
quando lhes conseguiu acertar nos olhos se permitiu
voltar para o quarto, onde acendeu uma lamparina a óleo
e começou a sua primeira carta para Susa.

Até agora, as provas são tão difíceis


como temia. Hoje, o meu cavalo
escorregou e eu paguei o preço.
Embora me sinta como se tivesse
sangrado até à morte ao praticar,
alguns dos outros parecem ter um
desempenho tão bom quanto o meu,
sem terem de treinar até à exaustão.
Eles bebem, fumam e riem-se uns
com os outros, mas tudo o que eu
consigo fazer é continuar a aprimorar
as minhas habilidades Mesmo depois
de 14 anos de preparação, a água
em mim não flui como devia — e
temo por isso, Susa.
Esses 14 anos não são nada aqui.
Somos julgados pelo hoje, não pelo
ontem.

Deu a carta a um criado para a enviar para Cabo


Hisan, depois deitou-se na cama e ouviu a sua própria
respiração.
Lá fora, uma coruja piou. Algum tempo depois, Tané
levantou-se e saiu do quarto.
Podia praticar mais um bocadinho.

***

O Governador de Cabo Hisan era um sujeito esguio e


de aspeto cuidado que vivia numa mansão ilustre no
meio da cidade. Ao contrário do Comandante, sabia
como sorrir. Tinha cabelos grisalhos, um rosto bondoso e,
segundo rumores, era clemente com pequenos
criminosos.
Era uma pena que Niclays, tendo quebrado a regra
fundamental de Seiiki, não pudesse de forma alguma ser
considerado um pequeno criminoso.
— Então — disse o Governador —, a mulher trouxe o
forasteiro à vossa porta.
— Sim — confirmou Niclays. A sua garganta estava
quase demasiado seca para formar palavras. — Sim, de
facto, honrado Governador. Estava a saborear uma
chávena do vosso notável vinho seiikine momentos antes
da chegada deles.
Tinham-no mantido num quarto durante vários dias.
Perdera a conta na escuridão. Quando os soldados
finalmente o levaram para fora, quase desmaiou,
pensando que o levariam diretamente para o cárcere. Em
vez disso, apresentaram-no a um médico, que lhe
verificou as mãos e examinou os olhos. Depois, os
soldados deram a Niclays roupa limpa e acompanharam-
no até ao oficial mais poderoso da região de Seiiki.
— Então haveis levado esse homem para vossa casa
— disse o oficial. — Acreditáveis que era um habitante
legal de Orisima?
Niclays pigarreou.
— Eu, ah... não. Conheço toda a gente em Orisima.
Mas a mulher ameaçou-me — disse, tentando parecer
assombrado pela memória. — Ela... apontou-me um
punhal à garganta e disse que se eu não levasse o
forasteiro, matar-me-ia.
Panaya dissera-lhe para ser honesto, mas todas as
boas histórias precisavam de uns quantos ornamentos.
Dois soldados de infantaria vigiavam a zona. Elmos de
ferro cobriam-lhes a cabeça e o pescoço, presos por
cordões verdes atados por baixo do queixo. Em uníssono,
fizeram deslizar os escudos para o lado, deixando entrar
mais dois soldados na sala. Entre eles, agarravam
alguém.
— Foi esta mulher? — perguntou o Governador.

O seu cabelo caía sobre os ombros. Um dos seus


olhos estava inchado e fechado. Pelo lábio inchado do
soldado à sua esquerda, dera luta. Um homem corajoso
negá-lo-ia.

— Sim — admitiu Niclays.

Ela lançou-lhe um olhar de ódio.

— Sim — ecoou o Governador. — Ela é artista num


teatro em Cabo Hisan. O todo-honrado Senhor da Guerra
permite que alguns artis­tas seiikines proporcionem
entretenimento e convívio em certos dias em Orisima. —
Ergueu as sobrancelhas. — Já fostes visitado?

Niclays esboçou um sorriso tenso.

— No geral, tenho-me contentado com a minha


própria companhia.

— Ótimo. — A mulher cuspiu nele. — Então vai-te


foder, mentiroso adorador de prata.

Uma mulher soldado bateu-lhe.

— Calada — ordenou-lhe.

Niclays estremeceu. A mulher desabou no chão,


encolheu os ombros e pressionou a mão no rosto.

— Obrigado por confirmardes que esta é a mulher.


— O Governador puxou para si a sua caixa de escrever
laqueada. — Ela recusa-se a dizer como veio um
estranho parar a esta ilha. Sabeis?

Niclays engoliu em seco. A sua saliva parecia tão


espessa como sopa.

Que se dane a honestidade. Por mais longe que ela


estivesse, não poderia implicar Truyde.

— Não — mentiu. — Ele não disse.


O Governador olhou por cima dos seus óculos. Os
olhos pequenos e escuros tinham bolsas sob eles.
— Erudito Doutor Roos — disse ele, esmagando uma
vareta de tinta com água. — Respeito o vosso
conhecimento, então serei franco. Se não puderdes dizer-
me mais nada, esta mulher será torturada.
A mulher começou a tremer.
— Não é nosso costume usar tais métodos, a não ser
em circuns­tâncias mais graves. Temos indícios
suficientes para provar que ela está envolvida numa
conspiração que pode ameaçar toda a Seiiki. Se trou­xe o
forasteiro para Orisima, deve saber a sua origem.
Portanto, deve estar associada a contrabandistas, o que
é punível com a morte... ou está a proteger outra pessoa,
alguém que ainda não foi revelado. — O Governador
escolheu um pincel da sua caixa. — Se fostes um mero
peão, o todo-honrado Senhor da Guerra pode mostrar
misericórdia. Tendes a certeza de que não sabeis mais
nada sobre o propósito de Sulyard aqui, ou quem pode
tê-lo ajudado a entrar?

Niclays olhou para a mulher no chão. Um olho


escuro fitou-o por trás do seu cabelo.

— Tenho a certeza.

No momento em que o disse, sentiu-se como se


outro cassetete lhe tivesse arrancado o fôlego.

— Levem-na para a prisão — ordenou o


Governador. Enquanto os soldados a puxavam para cima,
a mulher começou a engasgar-se de pâ­nico. Pela
primeira vez, Niclays viu como ela era jovem. Não mais
velha do que Truyde.

Jannart teria sentido vergonha. Niclays baixou a


cabeça, enjoado com a sensação da sua própria pele.

— Obrigado, Doutor Roos — disse o Governador. —


Tinha as mi­nhas suspeitas, mas carecia da vossa
confirmação.

Quando os passos diminuíram no corredor externo,


o Governador passou vários minutos com a cabeça
inclinada sobre a carta, durante os quais Niclays não
ousou falar.

— O vosso seiikine é muito bom. Pelo que entendi,


ensinastes anato­mia em Orisima — disse o Governador,
por fim, sobressaltando Niclays. — Que haveis achado
dos nossos alunos?

Era como se a mulher nunca tivesse existido.

— Aprendi tanto com eles quanto eles comigo —


disse Niclays com sin­ceridade, e o Governador sorriu.
Aproveitando a oportunidade, Niclays acrescentou: — No
entanto, estou com muito poucos ingredientes para...
outro trabalho, que o honrado Grão-Príncipe de
Mentendon me garantiu que seria fornecido. Também
temo que o honrado Chefe de Orisima te­nha destruído o
meu aparelho.

— O honrado Chefe padece de... excesso de zelo. —


O Governador largou o pincel. — Não podeis voltar para
Orisima até que este assunto seja encerrado. Não deve
ser de conhecimento público que um invasor conseguiu
trespassar os seus muros, e devemos limpar o posto
comer­cial para garantir que não há nenhum vestígio da
doença vermelha.

Infelizmente, devo colocar-vos em prisão domiciliar


em Ginura enquan­to conduzimos a nossa investigação.
Niclays olhou para ele.
Não poderia ser tão afortunado. Em vez de tortura,
estavam a dar-lhe liberdade.
— Ginura — repetiu.
— Por algumas semanas. É melhor retirar-vos da
situação.
Niclays percebeu que a questão era diplomática.
Tinha abrigado um forasteiro. Um cidadão seiikine na sua
posição seria condenado à morte por esse crime, mas a
execução de um colono mêntico estragaria a deli­cada
aliança com a Casa de Lievelyn.
— Sim. — Tentou parecer arrependido. — Sim,
honrado Governador, é claro. Compreendo.
— Quando voltardes, rezo para que tudo isto esteja
resolvido. Para vos agradecer pelas informações, tratarei
de garantir que recebereis os ingredientes de que
precisais — disse o Governador. — Mas deveis man­ter o
silêncio sobre tudo o que aconteceu. — Lançou um olhar
penetran­te a Niclays. — Parece-vos aceitável, Doutor
Roos?
— Perfeitamente. Agradeço a vossa gentileza. —
Niclays hesitou. — E quanto a Sulyard?
— O invasor está na prisão. Estávamos à espera de
que apresentasse algum sintoma da doença vermelha —
disse o Governador. — Se não revelar quem o ajudou a
chegar a Seiiki, também será torturado.
Niclays molhou os lábios.
— Talvez eu possa ajudar-vos — propôs, ainda que
perguntando-se porque estaria a pedir de boa vontade
um envolvimento mais profundo naquela confusão. —
Como conterrâneo do Reino das Virtudes, talvez consiga
convencer Sulyard a confessar, se me deixardes visitá-lo
antes de ir.
O Governador pareceu considerá-lo.
— Não gosto de derramamento de sangue onde
pode ser evitada Talvez amanhã — concedeu. — Por
enquanto, devo enviar uma men­sagem sobre esta
situação infeliz ao todo-honrado Senhor da Guerra. —
Voltou a sua atenção para a sua escrita. — Descansai
bem esta noite, erudito Doutor Roos.
13

Este

Aproxima prova foi com facas. Assim como os


outros, era observada pelo General do Mar e um grupo
de estranhos em vestes azuis. Outros membros do Clã
Miduchi, que tinham passado pelas suas pró­prias provas
havia cinquenta anos. As pessoas cujo legado Tané
poderia compartilhar se o seu corpo não a abandonasse.

Os seus olhos pareciam peixes-balão no seu crânio.


Conforme pe­gava em cada faca, as mãos pareciam-lhe
escorregadias e desajeita­das. Ainda assim, saiu-se
melhor do que todos os aprendizes, exceto Turosa, cuja
habilidade com as lâminas lhe rendera tanto renome na
Casa Norte.

Onren entrou no corredor logo depois de Turosa


atingir a pontuação perfeita. O seu cabelo estava solto e
despenteado. O General do Mar er­gueu as sobrancelhas,
mas ela apenas se curvou para ele e se aproximou das
facas.
Kanperu apareceu de seguida. O General do Mar
ergueu ainda mais as sobrancelhas. Onren pegou numa
lâmina, encontrou a sua posição e atirou-a pelo corredor
contra o primeiro espantalho.

Cada faca encontrou o seu alvo.

— Uma pontuação perfeita — observou o General


do Mar. — Mas não vos atraseis novamente, honrada
Onren.

— Sim, honrado General do Mar.

Naquela noite, os guardiões do mar foram


acordados pelos criados e escoltados, ainda nas suas
vestes de dormir, até uma fila de palanquins. Escondida
na dela, Tané roeu as unhas até ao sabugo.

Emergiram dos seus palanquins ao lado de um vasto


lago alimentado por nascentes na floresta. Gotas de
chuva corriam à sua superfície.
— Membros da Alta Guarda do Mar são
frequentemente acordados durante a noite para
responder às ameaças a Seiiki. Devem nadar me­lhor do
que os peixes, pois podem ser separados a qualquer
momento do seu navio ou do seu dragão — disse o
General do Mar. — Oito pérolas do Sol Trémulo foram
espalhadas neste lago. Se recuperardes uma, encorajar-
me-eis a classificar-vos melhor.
Turosa já se estava a despir. Lentamente, Tané tirou
a túnica de dor­mir e entrou na água até à cintura.
Vinte e seis guardiões do mar e apenas oito pérolas.
Seriam difíceis de encontrar na escuridão.
Tané fechou os olhos e libertou o pensamento.
Quando o General do Mar deu a ordem, mergulhou no
lago.
A água envolveu-a. Água límpida e doce, fria contra
a sua pele. O seu cabelo ondulou ao redor dela como
algas marinhas quando se virou, procurando um
vislumbre de um verde prateado.
Onren entrou no lago com apenas um respingo.
Mergulhou, agarrou o seu tesouro e deslizou para cima
num arco gracioso. Nadava como um dragão.
Determinada a ser a próxima, Tané aventurou-se mais
fundo. A cor­rente, raciocinou, levaria as pérolas para
oeste. Virando-se, desceu com cuidado para o leito e
nadou usando apenas as pernas, passando as mãos pelo
lodo à medida que avançava.
Sentiu o peito apertado no momento em que os seus
dedos roçaram uma pequena pérola. Emergiu quase em
uníssono com Turosa, que sa­cudiu o cabelo para trás e
ergueu a sua pérola para a inspecionar.
— Pérolas do Sol Trémulo. Usadas pelos escolhidos dos
deuses — disse ele. — Antes, símbolos de património, de
história. — Exibiu um sorriso mordaz como uma lâmina.
— Agora, adornam tantos campo­neses que poderiam
muito bem ser lixo.
Tané olhou-o nos olhos e disse:
— Nadastes bem, honrado Turosa.
Aquilo fê-lo rir.
— Oh, camponesa. Far-te-ei passar por idiota de tal
forma que eles nunca mais irão deixar uma plebeia sujar
o Clã Miduchi. — Passou por ela a nadar. — Prepara-te
para a queda.
Ele avançou para a beira do lago. Tané seguiu-o à
distância.

Corria o boato de que, no julgamento final, cada


aprendiz principal lutaria sempre com outro. Tané já
duelara com Onren. O seu oponente seria ou Turosa ou
Dumusa.

Se fosse o primeiro, ele faria tudo ao seu alcance


para a quebrar.

***

Niclays passou uma noite agitada na mansão do


Governador de Cabo Hisan. A roupa de cama era muito
mais luxuosa do que a de Orisima, mas a chuva
castigava o telhado de telhas e não lhe dava sossego.
Além disso, estava insuportavelmente húmido, como era
comum no verão seiikine.

Em algum momento durante a madrugada, ele


levantou-se da pilha pegajosa de roupa de cama e
deslizou o vidro da janela para o lado. A brisa era morna
e densa como um caldo, mas pelo menos podia ver as
estrelas. E pensar.

Nenhuma pessoa instruída poderia acreditar em


fantasmas. Os char­latões professavam que os espíritos
dos mortos viviam num elemento chamado éter —
disparates. No entanto, havia um sussurro no seu ou­vido
que ele sabia ser de Jannart, dizendo-lhe que o que ele
tinha feito àquela artista era um crime.

Os fantasmas eram as vozes que os mortos


deixavam para trás. Ecos de uma alma levada muito
cedo.

Jannart teria mentido para manter a artista segura.


Mas também, Jannart era bom a mentir. A maior parte da
sua vida fora uma atuação. Trinta anos a mentir a Truyde.
A Oscarde.

E, claro, a Aleidine.

Niclays estremeceu. Um arrepio percorreu-lhe a


barriga quando se lembrou do olhar dela no sepulcro. Ela
sempre o soubera. Soubera e não dissera nada.

Não é culpa dela que o meu coração te pertença,


dissera-lhe Jannart certa vez, e fora sincero. Como muitas
uniões entre aqueles de sangue nobre, o de­les fora
organizado pelas suas famílias. O noivado fora selado no
dia em que Jannart completara vinte anos, um ano antes
de Niclays o conhecer.

Não fora capaz de comparecer ao casamento. O nó


dos fios dos seus destinos torturara-o. Se ao menos
tivesse chegado à corte mais cedo, poderiam ter sido
companheiros.

Resfolegou. Como se alguma vez permitissem que


o Marquês de Zeedeur desposasse um zé-ninguém de
Rozentun sem um tostão. Aleidine nascera plebeia, mas a
sua mão em casamento trazia joias. Niclays, recém-saído
da universidade, só teria trazido dívidas à família.

Aleidine devia ter mais de sessenta anos agora. O


seu cabelo ruivo estaria adornado com prata, a sua boca
emoldurada por rugas. Oscarde deveria ter pelo menos
quarenta anos. Santo, como os anos voavam.

A brisa não fez nada para o arrefecer. Derrotado,


fechou a janela e deitou-se na cama.

O calor chegou-lhe à pele. Desejava dormir, mas a


sua mente recusava-se a acalmar, e um fogo baixo
queimava-lhe no tornozelo.

Pela manhã, não havia sinal do fim da tempestade.


Observou-a a re­gar o terreno da mansão. Os criados
trouxeram-lhe coalhada de feijão e chá de cevada para
quebrar o jejum.

Ao meio-dia, um criado informou-o de que o


Governador atendera ao seu pedido. Deveria visitar Triam
Sulyard na prisão e extrair todas as informações que
pudesse. Os criados também lhe deram um cajado novo,
feita de madeira mais forte e leve. Niclays pediu-lhes um
pouco de água. Eles trouxeram-na numa cabaça.
Ao anoitecer, um palanquim fechado levou-o à
prisão. Seguro dentro da sua caixa, Niclays espiou pelas
persianas.
Em sete anos, nunca entrara em Gabo Hisan. Ouvira
a sua música e a sua tagarelice, vislumbrara as suas
luzes — como estrelas caídas e ansiava por caminhar
pelas suas ruas, mas permanecera um mistério para ele.
O seu mundo fora fechado num punho de paredes altas.
A luz revelava uma cidade movimentada. Em
Orisima, era cercado por recordações de Mentendon.
Agora, lembrava-se de como estava lon­ge de casa.
Nenhum povoado ocidental cheirava a cedro ou a
incensa Nenhum assentamento ocidental vendia tinta de
lula ou carros alegóri­cos iridescentes para pesca.
E, claro, nenhuma cidade ocidental prestava
homenagem aos dra­gões. Os sinais da sua presença
estavam por toda a parte. Os mercadores anunciavam
amuletos em cada esquina, prometendo sorte e socorro
aos senhores do mar e da chuva. Quase todas as ruas
abrigavam um santuá­rio de madeira flutuante e uma
bacia de água salgada.
O palanquim parou do lado de fora da prisão. Assim
que foi destran­cada, Niclays saiu e enxotou um mosquito
do rosto. Um par de sentine­las da prisão apressou-o pelo
portão.
A primeira coisa que o atingiu foi o fedor a merda e
urina de dar água nos olhos. Levou uma das mangas ao
nariz e à boca. Quando passaram pelo campo de
execução, a força abandonou-lhe as pernas. Havia
cabeças podres expostas numa plataforma, línguas
inchadas como larvas de caracóis.
Sulyard estava escondido numa cela subterrânea,
deitado de bruços, um pano em volta da cintura. As
sentinelas dignaram-se dar uma lam­parina a Niclays
antes de partirem.
Os seus passos recuaram para a escuridão. Niclays
ajoelhou-se e agarrou-se a uma das barras de madeira.
— Sulyard. — Bateu com o cajado no chão. — Reage.
Nada. Niclays enfiou o cajado nas barras e deu a
Sulyard uma pancada firme. Ele mexeu-se.
— Truyde — murmurou ele.
— Lamento desapontar-vos. É o Roos.
Seguiu-se uma pausa.
— Doutor Roos. — Sulyard desdobrou-se. — Pensei
que estava a sonhar.
— Quem dera que estivésseis.
Sulyard estava em péssimo estado. Tinha o rosto
inchado como massa no forno, a testa pintada com os
caracteres de invasor. Sangue seco escorria-lhe pelas
costas e coxas.
Sulyard não tinha a proteção de um príncipe do outro
lado do mar.
No passado, Niclays poderia ter ficado chocado com
tamanha brutalidade, mas as nações do Reino das
Virtudes usavam meios mais cruéis para arrancar a
verdade aos prisioneiros.
— Sulyard — disse Niclays —, dizei-me o que
dissestes aos inquiridores.
— Somente a verdade. — Sulyard tossiu. — Que vim
implorar ao Senhor da Guerra por ajuda.
— Não sobre isso. Sobre como chegastes a Orisima.
— Niclays aproximou-se. — A outra mulher, a primeira
mulher que vistes, a que estava na praia. Contastes-lhes
sobre ela?
— Não.
Niclays conteve-se para não torcer o pescoço
daquele teimoso. Em vez disso, abriu a cabaça.

— Bebei. — Empurrou-a entre as barras. — A


primeira mulher levou-vos para o distrito dos teatros em
vez de vos denunciar. Foi o cri­me dela que vos levou a
Orisima. Deveis ser capaz de a descrever, o seu rosto, as
suas vestes, alguma coisa. Servi-vos, Sulyard.

Uma mão manchada de sangue alcançou a cabaça.

— Ela tinha cabelos longos e escuros e uma cicatriz


no topo da boche­cha esquerda. Como um anzol. —
Sulyard bebeu. — Acho que... que era da mesma idade
que eu, ou mais jovem. Usava sandálias e um casaco de
tecido cinzento sobre uma túnica preta.

— Concedei essa informação aos vossos captores —


pediu Niclays. — Em troca da vossa vida. Ajudai-os a
encontrá-la, e poderão ser mise­ricordiosos.

— Implorei que me ouvissem. — Sulyard parecia


delirante. — Disse que vim por parte de Sua Majestade,
que era seu embaixador, que o meu navio naufragou.
Nenhum deles quis ouvir.

— Mesmo se fôsseis um verdadeiro embaixador, o


que claramente não sois, eles não vos receberiam. —
Niclays olhou por cima do ombro. As sentinelas não
tardariam a ir buscá-lo. — Ouvi-me com atenção agora,
Sulyard. O Governador de Cabo Hisan vai enviar-me para
a capital enquanto o assunto é investigado. Deixai-me
levar a vossa mensagem ao Senhor da Guerra.

Novas lágrimas encheram-lhe os olhos.


— Faríeis isso por mim, Doutor Roos?
— Se me contardes mais sobre o vosso
empreendimento. Dizei-me porque acreditais que Sabran
precisa de uma aliança com Seiiki.
Niclays não sabia se seria capaz de manter a sua
palavra, mas pre­cisava de saber exatamente o que
trouxera Sulyard ali. O que Truyde conspirara com ele.
— Obrigado. — Sulyard estendeu a mão por entre as
barras e pegou na de Niclays. — Obrigado, Doutor Roos.
O Cavaleiro da Camara­dagem abençoou-me com a vossa
companhia.
— Claro — disse Niclays secamente.
Ele esperou. Sulyard apertou-lhe a mão e baixou a
voz para um sussurro.
— A Truyde e eu — começou — nós... nós
acreditamos que o Inominável despertará muito em
breve. Que a resistência da Casa de Berethnet nunca foi
o que o manteve preso. Que, aconteça o que acon­tecer,
ele voltará, e é por isso que os seus servos se têm
agitado. Estão a atender ao seu chamado.
Os seus lábios tremiam enquanto falava. Expressar a
ideia de que a Casa de Berethnet não era o que
mantinha o Inominável à distância constituía alta traição
no Reino das Virtudes.
— O que vos levou a acreditar nisso? — perguntou
Niclays, perplexo.
— Que profeta da ruína vos assustou, rapaz?
— Não foi um profeta da ruína. Livros. Os vossos
livros, Doutor Roos.
— Os meus?
— Sim. Os livros de alquimia que haveis deixado para
trás — sussur­rou Sulyard. — A Truyde e eu planeávamos
encontrar-vos em Orisima. O Cavaleiro da Camaradagem
trouxe-me até vós. Não vedes que esta é uma missão
divina?
— Não, não vejo, seu repolho ignóbil.
— Mas...
— Haveis realmente pensado que os governantes do
Oriente seriam mais simpáticos a essa proposta maluca
do que Sabran? — escarneceu Niclays. — Pensastes que
iríeis cruzar o Abismo e arriscar as vossas ca­beças...
porque folheastes alguns livros sobre alquimia. Livros
que os alquimistas levam décadas, se não vidas, para
entender. Se é que alguma vez chegam a fazê-lo.
Quase teve pena de Sulyard pela sua loucura. Não
passava de um jovem embriagado de amor. Devia ter-se
convencido de que era como o Lorde Wulf Glenn ou o Sir
Antor Dale, os heróis românticos da história de Inys, e
que deveria honrar a sua senhora correndo de cabeça
para o perigo.
— Por favor, Doutor Roos, imploro, ouvi-me. A Truyde
entende esses livros. Ela acredita que existe um
equilíbrio natural no mundo, como os antigos alquimistas
faziam — tagarelou Sulyard. — Ela acredita no vosso
trabalho e acredita que encontrastes uma maneira de
aplicá-lo ao nosso mundo. A nossa história.
Equilíbrio natural. Referia-se às palavras marcadas na
Tábua de Rumelabar, há muito perdida, palavras que
fascinaram os alquimistas durante séculos.

O que está em baixo deve ser equilibrado com o


que está em cima,
e nisso reside a precisão do Universo.
O fogo ascende da terra, a luz descende do céu.
Demasiado de um inflama o outro,
e nisso está a extinção do Universo.
— Sulyard — disse Niclays entredentes. — Ninguém
entende aquela tábua miserável. Isso é suposição e
loucura.

— Eu também não estava convencido, no início.


Estava em nega­ção. Mas quando vi a paixão da Truyde...
— Sulyard apertou-lhe a mão ainda mais. — Ela explicou-
me. Que quando os wyrms perde­ram as suas chamas e
caíram no seu longo sono, os dragões orientais
fortaleceram-se. Agora, estão a perder as suas forças
mais uma vez, e as raças draconianas estão a despertar.
Não vedes? É um ciclo.

Niclays olhou novamente para aquele rosto feio.


Sulyard não era o autor daquela missão.

Truyde. Era Truyde. O seu coração e a sua mente


eram o solo de onde havia surgido. Como se tornara
parecida com o seu avô. A obsessão que o matara
permanecia viva no seu sangue.
— Sois ambos uns tolos — disse ele com voz rouca.
— Não.
— Sim. — A sua voz falhou. — Se sabeis que os
dragões estão a perder força, por que diabo quereis a
ajuda deles?
— Porque eles são mais fortes do que nós, Doutor
Roos. E temos me­lhores hipóteses com eles do que
sozinhos. Se quisermos ter esperança de vencer...
— Sulyard — disse Niclays, mais suavemente. —
Parai. O Senhor da Guerra não vai ouvir isso. Assim como
Sabran não vai ouvir.
— Eu queria tentar. O Cavaleiro da Bravura ensina-
nos a levantar a voz quando os outros temem falar. —
Sulyard abanou a cabeça, as lá­grimas surgindo. —
Estávamos errados em ter esperança, Doutor Roos?
De repente, Niclays sentiu-se exausto. Aquele
homem morreria em vão a um mundo de distância de
casa. Só havia uma coisa a fazer. Mentir.
— É verdade que eles negoceiam com Mentendon.
Talvez vos oi­çam. — Niclays deu uma palmadinha na mão
encardida que segurava a sua. — Perdoe um velho pelo
seu cinismo, Sulyard. Vejo a vossa paixão.
Estou convencido da vossa sinceridade. Irei requisitar
uma audiência com o Senhor da Guerra e apresentar-lhe
o vosso caso.
Sulyard empurrou o peso para o cotovelo.
— Doutor Roos... — A sua voz engrossou. — Não vos
irão matar?
— Arriscarei. Os seiikines respeitam o meu
conhecimento como ana­tomista e sou um colono legítimo
— disse Niclays. — Deixai-me tentar. Suspeito de que o
pior que podem fazer é rir de mim.
Lágrimas encheram-lhe aqueles olhos injetados de
sangue.
— Não sei como vos agradecer.
— Eu sei. — Niclays agarrou-lhe o ombro. — Pelo
menos, tentai salvar-vos. Quando vierem atrás de vós,
contai-lhes sobre a mulher na praia. Jurai que lhes ides
contar.
Sulyard assentiu.
— Juro. — Depositou um beijo na mão de Niclays. —
Que o Santo vos abençoe, Doutor Roos. Há um assento
para vós na sua Grande Mesa ao lado do Cavaleiro da
Bravura.
— Ele que fique com ele — murmurou Niclays. Não
podia imaginar tormento maior do que passar a
eternidade a festejar com um círculo de fanfarrões
mortos.
Quanto ao Santo, teria muito para fazer se
pretendesse salvar aquele desgraçado.
Ouviu as sentinelas a aproximarem-se e retirou-se.
Sulyard encostou o rosto ao chão.
— Obrigado, Doutor Roos. Por me dar esperança.
— Boa sorte, Triam, o Louco — disse Niclays
baixinho, e permitiu-se ser levado de volta para a chuva.
Outro palanquim aguardava-os nos portões da
prisão. Era muito menos grandioso do que aquele que o
levara ao Governador, carregado por quatro novos porta-
cadeiras. Um deles curvou-se para ele.
— Erudito Doutor Roos — disse ela. — Temos ordens
para devolvê-lo ao honrado Governador de Cabo Hisan,
para que possa relatar o que descobriu. Depois disso,
levá-lo-emos para Ginura.
Niclays acenou com a cabeça, cansado até aos
ossos. Diria apenas ao Governador de Cabo Hisan que o
forasteiro desejava ajudar a iden­tificar uma segunda
pessoa que o havia ajudado. O seu envolvimento
terminaria aí.
Enquanto se içava para o palanquim, Niclays
perguntou a si mesmo se algum dia voltaria a ver Triam
Sulyard. Pelo bem de Truyde, esperou que sim.
Pelo seu próprio bem, esperou que não.
14

Oeste

Pouco depois de os mensageiros receberem a


notícia do noivado em Inys, Aubrecht Lievelyn avisou que
se preparava para navegar com a sua comitiva,
composta por cerca de 800 pessoas. Os dias que se
segui­ram foram uma ventania de preparação como Ead
jamais conhecera.

A comida veio num carregamento de barcaças dos


Prados e das Planícies. A família Glade enviou barris de
vinho dos seus vinhedos. As Camareiras Extraordinárias,
que poderiam ser chamadas a servir na Casa Superior
em ocasiões especiais — aniversários significativos, fes­‐
tas sagradas — fixaram residência na corte. Novos
vestidos foram feitos para a rainha e suas damas. Cada
canto do Palácio Ascalon foi refor­mado e polido, até ao
último castiçal. Pela primeira vez, parecia que a Rainha
Sabran encarava com seriedade a aceitação de um
pretendente. O entusiasmo queimava pelo palácio como
um incêndio.
Ead tentou ao máximo manter o ritmo. Embora a
febre a tivesse drenado, o médico da corte aprovou
pessoalmente o seu retorno ao trabalho. Mais uma prova
de que os médicos inysh eram charlatães.

Pelo menos, Truyde utt Zeedeur decidira manter a


cabeça baixa. Ead não voltara a ouvir mais rumores
sobre feitiçaria.

Por enquanto, estava segura.

Havia quase mil residentes na corte em qualquer


época do ano, mas enquanto Ead atravessava o palácio
com cestos de flores e braçadas de tecido de prata,
parecia estar a passar por mais e mais pessoas. Todos os
dias, procurava os estandartes dourados do Ersyr e o
homem que viria sob eles, disfarçado de embaixador do
rei Jantar e da Rainha Saiyma. Chassar uq-Ispad, que a
trouxera para Inys.

Primeiro chegaram os convidados de outras partes


do reino. Os Condes Provinciais e respetivas famílias
estavam entre os mais conhecidos. Ao entrar no claustro,
certa manhã, Ead avistou o Lorde Ranulf Heath, o Jovem,
primo da falecida Rainha Rosarian, do outro lado do
pátio. Estava embrenhado numa conversa profunda com
a senhora Igrain Crest. Como sempre fazia na corte, Ead
parou para ouvir.
— E como está o vosso companheiro, meu senhor?
— perguntou Crest.
— Lamenta muito não poder estar presente, Vossa
Graça, mas juntar-se-á a nós em breve — respondeu
Heath. A sua pele era castanha e sar­denta, a barba
salpicada de cinzentos. — Que bom que Sua Majestade
conhecerá em breve a mesma alegria que eu descobri no
casamento.
— Que assim seja. O Duque da Cortesia acredita que
a aliança servi­rá para apertar a Corrente das Virtudes —
disse Crest. — Embora, se a sua intuição estiver correta,
ainda não foi verificada.
— Espero que a sua intuição seja incomparável —
respondeu Heath, rindo —, dada a... sua função
particular.
— Oh, há coisas que até a Seyton escapam —
comentou Crest, com um raro sorriso no rosto. — A forma
como o seu cabelo se está a tornar fino, por exemplo.
Nem um falcão conseguiria ver a parte de trás da sua
própria cabeça — Heath sufocou uma gargalhada. —
Claro, todos nós rezamos para que Sua Majestade tenha
uma filha em breve.
— Sim, mas ela é jovem, Vossa Graça, e Lievelyn
também. Dê-lhes tempo para se conhecerem primeiro.
Ead teve de concordar. Poucos inysh pareciam
importar-se se Sabran e Lievelyn se conheciam, desde
que estivessem casados.
— É vital que tenhamos uma herdeira o mais rápido
possível — disse Crest, como se fosse uma deixa. — Sua
Majestade é ciente do seu dever nessa frente.
— Bem, ninguém guiou Sua Majestade no seu dever
melhor do que vós, Vossa Graça.
— Sois muito gentil. Ela tem sido o meu orgulho e
alegria. Infelizmente — disse Crest , o meu deixou de ser
o único conselho que ela segue.
A nossa jovem rainha está determinada a seguir o
seu próprio caminho.

— Como todos nós devemos, Vossa Graça.

Separaram-se. Ead mal teve tempo de recuar antes


que a duquesa dobrasse a esquina, quase se lançando
contra ela.

— Senhora Duryan. — A compostura foi recuperada.


— Bom dia, minha querida.

Ead fez uma reverência.

— Vossa Graça. — Crest assentiu e deixou o


claustro. Ead caminhou na direção oposta.

Crest poderia muito bem escarnecer de Combe,


mas, na verdade, o Falcão da Noite não perdia nada. Ead
achava extraordinário que ele não conseguisse ver quem
estava a contratar os assassinos.

Diminuiu a velocidade quando lhe ocorreu uma


possibilidade. Pela primeira vez, considerou que o próprio
Combe poderia ser o arquiteto por trás dos ataques. Ele
teria os meios para os organizar. Para trazer pessoas
invisíveis para a corte, assim como varria outras para
fora. Ele também se encarregava de interrogar os
assassinos sobreviventes. E de os eliminar.

Não havia razão para Combe desejar a morte de


Sabran. Ele era um descendente do Sagrado Séquito, o
seu poder vinculado à Casa de Berethnet... mas talvez
acreditasse que poderia obter ainda mais derru­bando a
rainha de Inys. Se Sabran morresse sem filhas, o povo
cederia ao medo do regresso do Inominável. Num caos
como aquele, o Falcão da Noite poderia erguer-se.

No entanto, cada assassino estragava o trabalho.


Ead não se conven­ceu com o possível envolvimento de
Combe. Também não estava con­vencida de que ele se
arriscaria à instabilidade de uma Inys sem a Casa de
Berethnet. O espião mestre não funcionava dessa forma.
Não era dele deixar o destino ao acaso.

Foi quando ela estava a meio caminho do Jardim do


Relógio de Sol que percebeu.

Que o erro fora deliberado.

Lembrou-se de como cada ataque parecera


encenado. De como cada assassino delatara o jogo.
Mesmo o último não se lançara direto para a morte.
Demorara-se.

Nisso, conseguia encontrar Combe. Talvez ele


nunca tivesse pretendi­do matar Sabran, mas manipulá-
la. Recordá-la da sua mortalidade e da importância de
uma herdeira. Para assustá-la e fazê-la aceitar Lievelyn.
Combinava com a sua maneira de conseguir que a corte
tivesse a apa­rência que ele desejava.

Apenas não prevera Ead. Ela detivera a maioria dos


assassinos antes que pudessem aproximar-se o
suficiente para aterrorizar Sabran. Devia ser por isso que
dera ao último a chave da Escadaria Secreta. Para au­‐
mentar as suas possibilidades de chegar ao Quarto de
Leito Real.
Ead permitiu-se um sorriso. Não admirava que
Combe quisesse en­contrar o protetor anónimo. Se
estivesse certa, eram os mercenários dele que Ead
andava a matar.
Claro, tudo aquilo não passava de especulação. Não
tinha provas, as­sim como não tinha provas de que
Combe exilara Loth. No entanto, sabia no seu íntimo que
estava no caminho certo.
O casamento com Lievelyn estava praticamente
selado. Combe es­tava satisfeito. Se nenhum assassino
voltasse, então o seu instinto estava certo e Sabran
estaria a salvo até à próxima vez que irritasse Combe.
Depois, o Falcão da Noite voltaria a levantar voo, asas
escuras espalha­das sobre o trono.
Ead pretendia cortá-las. Apenas precisava de provas
— e da oportu­nidade.

***

Os convidados continuavam a chegar. As famílias


dos Duques Espirituais. Cavaleiros errantes, que lidavam
com pequenos crimes e caçavam wyrms adormecidos.
Sanctários em herigautas de mangas compridas. Barões
e baronetes. Governadores e magistrados.
Pouco depois, os tão aguardados visitantes do Reino
de Hróth co­meçaram a chegar. O Rei Raunus, da Casa de
Hraustr, enviara uma série de representantes de alto
escalão para testemunhar a união. Sabran deu-lhes as
boas-vindas com afeto genuíno, e o palácio começou a
vibrar com canções e gargalhadas do norte.
Não há muito tempo, teria havido yscals ali. Ead
lembrava-se bem da última visita de representantes da
Casa de Vetalda, quando a Donmata Marosa viera para a
celebração dos mil anos de governo Berethnet Agora, a
ausência deles constituía mais uma lembrança do futuro
incerto.
Na manhã em que Aubrecht Lievelyn chegaria ao
Palácio de Ascalon, os cortesãos e convidados mais
importantes encheram a Câmara de Presença. A maioria
do Conselho das Virtudes estava presente. Arbella Glenn
recuperara da doença, para grande pesar de certas e
ambiciosas Damas da Câmara Privada, e agora estava à
direita do trono.
Arbella parecia frágil, na melhor das hipóteses, com
os seus olhos cheios de remelas e dedos tortos pelas
horas de bordado, mas Ead tinha a certeza de que não
fora prudente ela ter-se levantado hoje. Embora sorrisse
como uma mãe orgulhosa para a sua rainha, uma tristeza
silen­ciosa pairava sobre ela.

O resto do salão zumbia como uma colmeia. Sabran


aguardava o seu prometido diante do seu trono,
flanqueado pelos seis Duques Espirituais,
resplandecentes nas suas capas e colarinhos de libré. A
rainha envergavava um vestido simples de veludo
carmesim e cetim, um rico contraste com o anoitecer do
seu cabelo. Sem folhos ou joias. Ead estudou-a de onde
se encontrava com as outras Damas da Câmara Privada.

Ficava mais bonita assim. Os inysh pareciam pensar


que os seus orna­mentos eram a sua beleza, mas, na
verdade, escondiam-na.

Sabran captou o seu olhar. Ead desviou-o.

— Onde estão os teus pais? — perguntou a Margret,


que estava à sua direita.

— Alegaram uma indisposição do papá, mas acho


que é porque a mamã não quer ver o Combe — disse
Margret por trás do seu leque de penas de pavão. — Ele
disse-lhe numa carta que o Loth foi para Cárscaro por sua
própria vontade. Ela suspeita do contrário.

A senhora Annes Beck fora a Dama do Leito Real da


Rainha Rosarian.

— Deve conhecer bem as conspirações desta corte.

— Melhor que a maioria. Vejo que a senhora


Honeybrook também não apareceu. — Margret abanou a
cabeça. — Pobre Kit.

O conde de Honeybrook estava com os outros


membros do Conselho das Virtudes. Não parecia
incomodado com a ausência do filho, com quem se
parecia em todos os sentidos, exceto na boca, que nunca
sorria.

Trombetas anunciaram a chegada do Grão-Príncipe.


Até as belas ta­peçarias que cobriam a Câmara de
Presença pareceram estremecer com expetativa. Ead
olhou para Combe, que sorria como um gato com um
rato preso sob a pata.

As suas costelas contraíram-se de repulsa ao vê-lo.


Mesmo que não fosse o arquiteto por trás dos assassinos,
pusera Loth em perigo de vida para desimpedir caminho
para que o casamento acontecesse, baseado em rumores
sem um pingo de substância. Ele que apodrecesse.
Porta-estandartes e trompetistas desfilavam na
Câmara de Presença. Pescoços esticados para um
vislumbre do homem que seria o príncipe con­sorte de
Inys. Linora Payling ficou em pontas dos pés, abanando-
se como se fosse desmaiar. Até Ead se permitiu a uma
vibração de curiosidade.
Sabran endireitou a postura. A fanfarra aumentou e o
Grão-Príncipe do Estado Livre de Mentendon apareceu.
Aubrecht Lievelyn tinha braços fortes e ombros largos
que Ead teria esperado de um cavaleiro experiente. Bem
barbeado e ainda mais alto do que Sabran, não tinha
nada de arganaz. O seu cabelo ondulado bri­lhava como
cobre enquanto caminhava para um raio de sol. Trazia
um manto pendurado no ombro e usava um gibão preto
sobre um gibão de marfim de mangas compridas.
— Oh, ele é tão bonito — suspirou Linora.
Quando alcançou a sua prometida, Lievelyn ajoelhou-
se diante dela e baixou a cabeça.
— Vossa Majestade.
O rosto de Sabran era uma máscara.
— Vossa Alteza Real — disse ela, e estendeu-lhe a
mão. — Bem-vindo ao Rainhado de Inys.
Lievelyn beijou-lhe o anel de coroação.
— Majestade — disse ele —, já estou apaixonado pela
vossa cidade e lisonjeado por terdes aceitado a minha
proposta. É de maior honra estar na vossa presença.
A sua voz saiu baixa. Ead ficou surpresa com a sua
reserva. Normalmente, um pretendente estaria a
acumular elogios untuosos à pessoa real no momento em
que abrisse a boca, mas Lievelyn apenas olhava com
olhos escuros para a rainha de Inys, a figura de proa da
sua religião.
Sabran, cujas sobrancelhas estavam erguidas, retirou
a mão.
— Os Duques Espirituais, descendentes do Sagrado
Séquito — apre­sentou ela. Eles curvaram-se para
Lievelyn, que baixou a cabeça em resposta.
— Sois muito bem-vindo aqui, Vossa Alteza Real —
disse Combe calorosamente. — Há muito que
aguardamos este encontro.
— Levantai-vos — pediu Sabran. — Por favor.

Lievelyn obedeceu. Houve um breve silêncio


enquanto o futuro casal se avaliava.

— Sabemos que Vossa Alteza Real já visitou Ascalon


uma vez — disse Sabran.

— Sim, Majestade, para o casamento dos seus pais.


Eu tinha apenas dois anos, mas a minha mãe, que
também estava presente, falava fre­quentemente de
como a Rainha Rosarian estava linda naquele dia e de
como as pessoas rezavam para que desse à luz uma filha
tão graciosa e resiliente quanto ela. E assim foi. Quando
soube que Vossa Majestade intimidara a asa direita do
Inominável, apenas confirmou o que já sabia sobre a
vossa força.
Sabran não sorriu, mas os seus olhos brilharam.
— Esperávamos conhecer as vossas nobres irmãs.
— Elas virão em breve, Majestade. A Princesa
Betriese adoeceu e as outras não quiseram sair do seu
lado.
— Sentimos muito por isso. — Sabran estendeu a
mão novamente, desta vez para o embaixador. — Bem-
vindo de volta, Oscarde.
— Majestade. — O embaixador baixou-se para beijar
o anel. — Se me permitirdes, gostaria de apresentar a
minha mãe, a senhora Aleidine Teldan utt Kantmarkt,
duquesa viúva de Zeedeur.
A Duquesa Viúva fez uma reverência.
— Vossa Majestade. — Era uma mulher
impressionante, detentora de ricos cabelos cor de cobre
e olhos semicerrados. Os pés de galinha estavam
gravados na sua pele cor de azeitona. — Que grande
honra.
— Sois bem-vinda em Ascalon, Vossa Graça. Assim
como vós — acrescentou Sabran a alguém atrás dela —,
Vossa Excelência.
Quando Lievelyn se afastou, Ead respirou fundo. O
embaixador que acabara de entrar na Câmara de
Presença usava um adorno de cabeça dourado e uma
capa de cetim enfeitado, tingido de um azul intenso de
esporeira. Atrás dele, estavam as delegações ersyri e
lasiana.
— Majestade. — Com um sorriso, Chassar uq-Ispad
fez uma reve­rência. Vários se viraram para olhar para
aquela montanha de homem, com a sua cabeça
enfaixada e barba preta e farta. — Já lá vai muito tempo.
Ele estava ali.
Depois de todos aqueles anos, ele voltara.
— Sim — disse Sabran. — Começámos a pensar que
Sua Altíssima Majestade não enviaria representantes.
— O meu mestre jamais insultaria Vossa Majestade
dessa maneira. O Rei Jantar envia as suas congratulações
pelo vosso noivado, assim como a Alta Governante
Kagudo, cuja delegação se juntou a nós em Pedra Alta.
Kagudo era a Alta Governante do Domínio de Lasia,
chefe da casa real mais antiga do mundo conhecido.
Descendente direta de Selinu, o Guardião de Promessas,
e, portanto, parente de sangue da Mãe. Ead nunca a
conhecera, mas ela escrevia com frequência para a
Prioresa.
— Felizmente — continuou Chassar —, o Príncipe
Aubrecht tinha acabado de atracar quando
desembarcámos, então pude desfrutar da sua boa
companhia pelo resto da viagem.
— Esperamos desfrutar da boa companhia do Príncipe
Aubrecht num futuro próximo — respondeu Sabran.
Algumas das damas de companhia esconderam o riso
atrás dos seus leques. Lievelyn sorriu novamente.
As cortesias prosseguiram, Sabran nunca tirou os
olhos do noivo e ele nunca tirou os olhos dela. Chassar
olhou para Ead e deu-lhe o mais pequeno dos acenos
antes de desviar o olhar.
Assim que a audiência chegou ao fim, Sabran
conduziu os seus convi­dados ao campo de justas para
assistirem à competição. Os participantes lutariam diante
de mil cidadãos. Por pouco não perderam a cabeça ao
ver Sabran, a torcer pela rainha que banira um Sombra
Ocidental. Era a personificação de Glorian, a Destemida.
— Salve, Sabran, a Magnífica — gritaram. — Viva a
Casa de Berethnet!
Os rugidos de apreciação aumentaram quando
Lievelyn se sentou a seu lado no camarote real.
— Protegei-nos, Majestade!
— Majestade, a vossa coragem dá-nos valor!
Ead encontrou um lugar nos bancos à sombra com as
outras damas de companhia e observou a multidão,
esperando que aparecesse uma besta ou arma nas
arquibancadas. A sua magia estava quase extinta, mas
tinha lâminas suficientes para uns quantos assassinos.
Chassar estava do outro lado do camarote real.
Teria de esperar que Sabran se retirasse para falar com
ele.

— Pelo Santo, pensei que aquela apresentação


nunca mais acabava. — Margret pegou numa taça de
vinho de morango da bandeja de um criado. Dois
cavaleiros errantes baixaram as suas viseiras. — Creio
que Sabran gosta do Príncipe Vermelho. Tentou escondê-
lo, mas acho que ela está apaixonada.

— Lievelyn certamente está — disse Ead, distraída.

Combe estava no camarote real. Ela esquadrinhou-


o com o olhar, tentando descobrir se olhava para Sabran
como sua rainha ou uma peça a ser movida no tabuleiro
do jogo.
Margret seguiu a sua linha de visão.
— Eu sei — disse ela em voz baixa. — Pode cometer
assassinato e escapar impune. — Tomou um gole de
vinho. — E também detesto os seus informadores. Por
serem cúmplices dele.
— Sabran deve saber — murmurou Ead. — Não lhe
ocorrerá nenhu­ma maneira de se livrar dele?
— Por mais que me custe admitir, Inys precisa do seu
serviço de in­teligência. E se Sab o expulsasse sem um
bom motivo, outros nobres poderiam achar que as suas
posições correriam o mesmo risco. A rainha não pode
arriscar um descontentamento geral, não quando há
tanta incerteza sobre a ameaça de Yscalin. — Margret fez
uma careta quando os cavaleiros errantes
entrechocavam as justas uns nos outros, provocan­do um
rugido geral das arquibancadas. — Afinal, não seria a
primeira vez que os nobres se rebelariam.
Ead assentiu.
— A Rebelião Gorse Hill.
— Sim. Pelo menos agora existem leis para diminuir o
perigo de isso voltar a acontecer. Noutros tempos, terias
visto informadores do Combe a pavonear-se no seu
uniforme, como se a sua principal lealdade não fosse
para com a rainha. Tudo o que podem fazer agora é usar
o seu distintivo. — Franziu os lábios. — Odeio que o
símbolo da sua virtude seja um livro, sabes. Os livros são
bons demais para ele.
Os dois combatentes voltaram-se para se
enfrentarem novamente.
Igrain Crest, à conversa com um barão, cruzou o
camarote real e sentou-se na fileira atrás de Sabran e
Lievelyn. Inclinou-se para dizer algo à rainha, que sorriu
para ela.
— Ouvi dizer que Igrain é contra este matrimónio —
disse Margret —, embora lhe agrade a ideia de poder
trazer a tão esperada herdeira ao trono. — Ergueu uma
sobrancelha. — Ela foi praticamente a Protetora do Reino
em tudo, exceto no nome, quando Sab era criança. Uma
se­gunda mãe para ela. E, no entanto, se os boatos
estiverem certos, teria preferido que ela se casasse com
alguém com um pé na cova.
— Talvez ainda consiga realizar o seu desejo — disse
Ead.
Margret olhou para ela.
— Achas que Sab mudará de ideias sobre o Príncipe
Vermelho.
— Até que tenha o anel no dedo, é uma possibilidade
mais do que real.
— A corte tornou-te cética, Ead Duryan. Podemos
estar prestes a testemunhar um romance que rivaliza
com o de Rosarian a Primeira e Sir Antor Dale. — Margret
cruzou o braço com o dela. — Deverias estar satisfeita
por veres o Embaixador uq-Ispad depois de tantos anos.
Ead sorriu.
— Nem fazes ideia.
Os jogos prosseguiram durante várias horas. Ead
permaneceu sob os toldos com Margret, nunca desviando
o olhar das arquibancadas. Por fim, Lorde Lemand Fynch,
atual Duque da Temperança, foi declarado campeão.
Depois de dar ao primo um anel como prémio, Sabran
retirou-se para se abrigar do calor.
***

Às cinco da tarde, Ead encontrava-se na Câmara


Privada da Rainha, onde Sabran tocava o seu virginal.
Enquanto Roslain e Katryen cochicha­vam uma com a
outra, e a pobre Arbella se atrapalhava com o bordado,
Ead fingia estar absorta na leitura de um livro de
orações.
Desde que tivera a sua febre que a rainha lhe
prestava mais atenção do que o habitual. Fora convidada
várias vezes para jogar cartas e ouvir as Damas do Leito
Real enquanto mantinham Sabran a par dos acon­‐
tecimentos na corte. Ead notara que às vezes falavam
bem de certas pessoas e aconselhavam Sabran a
mostrar-se mais benevolente com elas. Se essas
recomendações não eram fruto de subornos, Ead era a
rainha do Ersyr.
— Ead.
Ela ergueu o olhar.
— Majestade?
— Vem cá — disse Sabran, dando uma palmadinha
em cima de um banco. Quando Ead se sentou, a rainha
inclinou-se para ela com um gesto cúmplice.
— Parece que o Príncipe Vermelho é menos parecido
com um arganaz do que pensávamos. Que achas dele?
Ead sentiu Roslain a observá-la.
— Pareceu-me cortês e galante, senhora. Se ele for
um ratito — disse, tentando aligeirar o tom —, então
podemos estar seguras de que é um príncipe entre os
ratos.
Sabran riu. Algo raro. Como um veio de ouro oculto
numa rocha, relutante em deixar-se ser visto.
— De facto. Se dará um bom consorte, ainda está
por apurar. — Passou um dedo sobre o virginal. — Ainda
não estou casada, é claro. Um compromisso pode sempre
ser anulado.
— Deveis fazer o que considerardes melhor. Haverá
sempre vozes a dizer-vos o que fazer e como agir, mas
sois vós quem usais a coroa — dis­se Ead. — Deixai Sua
Alteza Real provar-se digno de um lugar a vosso lado.
Deverá ganhar essa honra porque é a maior de todas.
Sabran fitou-a.
— Que bonitas palavras — observou. — Pergunto-me
se serão francas.
— As minhas são palavras honestas, senhora. Todas
as cortes são víti­mas de afetação e engano, muitas vezes
ocultos atrás de gestos de cortesia — disse Ead. — Mas
gosto de acreditar que falo com o coração.
— Todos falamos com o coração a Sua Majestade —
atirou Roslain.
Os seus olhos brilhavam de raiva. — Insinuais que a
cortesia é algum tipo de artificio, senhora Duryan?
Porque o Cavaleiro da Cortesia poderia...
— Ros — disse Sabran. — Não estava a falar contigo.
Roslain ficou em silêncio, visivelmente aturdida.
No tenso momento que se seguiu, um dos Cavaleiros
do Corpo entrou na Câmara Privada.
— Majestade. — Curvou-se. — Sua Excelência, o
Embaixador uq-Ispad, pergunta se podeis dispensar a
senhora Duryan por um curto período. Se vos aprouver,
ele espera-a no Terraço do Pacificador.

Sabran passou o cabelo de um lado para o outro.

— Creio que poderei conceder-lhe alguns momentos


— disse. — Estás dispensada, Ead, mas volta a tempo
para as orações.

— Sim, Majestade. — Ead levantou-se de imediato.


— Obrigada.

Ao sair da Câmara Privada, evitou olhar para as


outras mulheres. Preferia não fazer de Roslain Crest uma
inimiga, se o pudesse evitar.

Ead saiu da Torre da Rainha e subiu para sul do


palácio, onde se situava o Terraço Pacificador, com vista
para o rio Limber. O seu coração zumbia como uma
abelha. Pela primeira vez em oito anos, iria falar com
alguém do Priorado. E não com qualquer pessoa: com
Chassar, que a criara.
O sol da tarde transfigurara o rio num curso de ouro
derretido. Ead cruzou a ponte e pisou os azulejos do
terraço. Chassar esperava-a junto à balaustrada. Ao
ouvir-lhe os passos, virou-se e sorriu, e ela correu para
ele como uma criança corria para um pai.
— Chassar — disse, escondendo o rosto no seu peito.
Ele abraçou-a.
— Eadaz. — Ele beijou-lhe o topo da cabeça. — Luz
dos meus olhos. Aqui estou.
— Há muito tempo que não ouvia esse nome — disse
em selinyi, a voz embargada. — Pelo amor da Mãe,
Chassar, pensei que me tivesses abandonado para
sempre.
— Nunca. Sabes que deixar-te aqui foi como deixar
que me arran­cassem uma costela. — Caminharam juntos
até uns arbustos de roseira brava e madressilva. —
Senta-te comigo.
Chassar devia ter reservado o terraço para seu uso
privado. Ead sentou-se a uma mesa, com uma bandeja
cheia de frutos secos do Ersyr e ele serviu-lhe um copo
de vinho pálido de Rumelabar.
— Mandei trazer tudo isto no barco para ti — disse
ele. — Pensei que gostarias de recordar os sabores do
Sul.
— Depois de oito anos, seria fácil esquecer que o Sul
ainda existe. — Ead lançou-lhe um olhar duro. — Não
recebi nem uma palavra. Não respondeste a nenhuma
das minhas cartas.
O sorriso de Chassar também desapareceu.
— Perdoa-me o meu longo silêncio, Eadaz. —
Suspirou. — Ter-te-ia escrito, mas a Prioresa decidiu que
deveria deixar-te descobrir os cami­nhos dos inysh
sozinha.
Ead queria chatear-se, mas aquele era o homem que
a sentara no seu colo quando era pequena e a ensinara a
ler, e o seu alívio ao vê-lo supe­rava qualquer raiva que
pudesse sentir.
— A tarefa que recebeste foi a de proteger Sabran —
disse Chassar — e honraste a Mãe mantendo-a viva e
ilesa. Não deve ter sido fácil. — Fez uma pausa. — Os
assassinos que a perseguem. Nas tuas cartas, disseste
que carregavam lâminas feitas em Yscalin.
— Sim. Adagas de justas, sendo mais precisa. De
Cárscaro.
— Adagas de justas — repetiu Chassar. — Uma
escolha curiosa de arma para um assassino.
— Pensei o mesmo. É uma arma usada para defesa.
— Hum. — Chassar coçou a barba, como costumava
fazer quando refletia. — Talvez isto seja tão simples
quanto parece, e o Rei Sigoso es­teja a contratar súbditos
de Inys para matar uma rainha que despreza... ou talvez
essas adagas sejam uma bomba de fumo. Cobrindo o
perfume do verdadeiro cérebro da operação.
— Estou mais inclinada para o último. Alguém na
corte está envol­vido — disse Ead. — Podem ter sido
encontradas no mercado negro. E alguém tinha de deixar
entrar os assassinos na Torre da Rainha.
— E não te ocorre ninguém ao serviço da rainha que
possa querer a morte de Sabran?
— Não. Todos acreditam que é ela quem mantém o
Inominável à distância. — Ead bebeu o seu vinho. —
Sempre me disseste para confiar no meu instinto.
— Sempre.
— Então devo dizer-te algo a respeito destes ataques
a Sabran que não me convence. Não é só a escolha da
arma — disse ela. — Só o últi­mo ataque me pareceu... a
sério. Todos os outros cometeram algum tipo de erro.
Como se quisessem ser apanhados.
— O mais provável é que sejam apenas mal
treinados. Tolos desespe­rados, que se deixaram subornar
por uma ninharia.
— Talvez. Ou talvez seja deliberado — objetou. —
Chassar, lembras-te do Lorde Arteloth?
— Claro — respondeu ele. — Surpreendeu-me que
não estivesse com Sabran quando cheguei.

— Ele não está aqui. Combe exilou-o em Yscalin


porque o achou demasiado próximo dela, para facilitar a
união com Lievelyn.

Chassar ergueu as sobrancelhas.

— Esses rumores — murmurou. — Também os ouvi


em Rumelabar.

Ead assentiu.

— Combe estava disposto a enviar Loth para a sua


morte. E agora temo que o Falcão da Noite esteja a
mover as peças mais uma vez. Que, ao fazer Sabran
temer pela sua vida, a tenha empurrado para Lievelyn.

— Para que conceba uma herdeira o mais rápido


possível. — Chassar pareceu considerar a ideia. — De
certa forma, seriam boas notícias, se fosse verdade.
Sabran está segura. Fez o que ele queria.
— Mas e se não o fizer no futuro?

— Não creio que ele vá mais longe do que já foi. O


seu poder dissolver-se-ia sem ela.
— Não estou segura de que ele acredite nisso. E não
me parece bem que Sabran continue inconsciente das
suas conspirações.
Chassar congelou.
— Não deverás expressar as tuas suspeitas à rainha,
Eadaz. Não sem provas — disse ele. — Combe é um
homem poderoso e encontraria forma de te fazer mal.
— Não penso fazê-lo. Tudo o que posso fazer é
continuar a assistir. — Olhou-o fixamente. — Chassar, as
minhas proteções estão debilitadas.
— Eu sei. — Ele manteve a voz baixa. — Quando nos
chegou a notícia de que Fýredel se havia revelado, e que
Sabran o banira de Ascalon, percebemos logo a verdade.
Também sabíamos que teria esgotado as tuas reservas
de siden. Estiveste demasiado tempo longe da árvore. És
como uma planta, querida. Tens de beber, ou murcharás.
— Bem, talvez não importe. Talvez consiga,
finalmente, tornar-me uma Dama do Leito Real — disse
Ead. — Para protegê-la com a minha própria lâmina.
— Não, Eadaz.
Chassar pousou a sua enorme mão sobre a dela. No
dedo indicador tinha um anel com uma pedra do sol
esculpida em forma de flor de laranjeira, símbolo da
verdadeira fé de ambos.
— Minha querida — murmurou. — A Prioresa está
morta. Ela era velha, como sabes, e morreu em paz.

A notícia magoou-a, mas não a surpreendeu. A


Prioresa sempre tivera um aspeto envelhecido, a pele
enrugada e nodosa como uma oliveira.

— Quando?

— Há três meses.

— Que a sua chama ascenda à árvore para a


iluminar — disse Ead. — Quem assumiu o cargo?

— As Damas Vermelhas elegeram Mita Yedanya, a


munguna — reve­lou Chassar. — Lembras-te dela?
— Sim, claro. — Pelo pouco que Ead se conseguia
lembrar, Mita era uma mulher calma e séria. Supunha-se
que a munguna era a herdeira do Priorado, embora as
Damas Vermelhas pudessem eleger outra pessoa se a
considerassem inapta para o cargo. — Desejo-lhe
felicidades no seu novo papel. Ela já escolheu a sua
munguna?
— A maioria das irmãs aposta em Nairuj, mas, na
verdade, Mita ainda não decidiu.

Chassar aproximou-se. Na luz fraca do crepúsculo,


Ead reparou em linhas de expressão em torno da sua
boca e olhos. Parecia muito mais velho do que da última
vez que o tinha visto.
— Algo mudou, Eadaz — disse ele. — Deves senti-lo
também. Os wyrms estão a despertar do seu sono, e
agora surgiu um Sombra Ocidental. A Prioresa teme que
estes sejam os primeiros passos para o despertar do
próprio Inominável.

Ead tomou um momento para deixar que as


palavras se estabeleces­sem dentro de si.

— Não estás sozinho nos teus receios — disse ela.


— Uma dama de companhia, Truyde utt Zeedeur, enviou
um mensageiro para Seiiki.

— A jovem herdeira do Ducado de Zeedeur. —


Chassar franziu a testa. — Porque havia ela de querer
negociar com o Oriente?

— Meteu na cabeça que precisamos dos wyrms


para nos protegermos contra o Inominável. Está
convencida do seu regresso, independentemente de a
Casa de Berethnet permanecer no poder ou não.

Chassar deixou que um silvo baixo lhe escapasse


por entre os dentes.

— O que a levou a acreditar nisso?

— O despertar dos dragões. E a sua própria


imaginação, suponho. — Ead serviu mais vinho em
ambas as taças. — Fýredel disse algo a Sabran. Os mil
anos estão quase no fim. Ele também disse que o seu
mestre se está a agitar no Abismo.

O oceano que se estendia entre um lado do mundo


e o outro. Água ne­gra que a luz do Sol não conseguia
penetrar. Uma abóbada de escuridão que os marinheiros
sempre temiam cruzar.

— Palavras de mau agouro, de facto. — Chassar


contemplou o hori­zonte. — Fýredel deve acreditar, tal
como a senhora Truyde, e como a Prioresa, que o
Inominável está prestes a regressar.

— A Mãe derrotou-o há mais de mil anos — disse


Ead. — Não foi? Se foi essa a data a que o wyrm se
referiu, o Inominável já se devia ter erguido.

Chassar tomou um gole de vinho, pensativo.

— Pergunto-me — disse ele — se esta ameaça terá


alguma coisa que ver com os anos perdidos da Mãe.

Todas as irmãs sabiam dos anos perdidos. Não


muito depois de der­rotar o Inominável e fundar o
Priorado, a Mãe desaparecera misteriosa­mente e
perecera antes que pudesse voltar para casa. O seu
corpo fora devolvido ao Priorado, mas ninguém sabia
quem o havia enviado.
Uma pequena parte das irmãs acreditava que a Mãe
partira para se juntar ao seu pretendente, Galian
Berethnet, e que tivera uma filha com ele, estabelecendo
a Casa de Berethnet. Essa ideia, pouco popular no
Priorado, era a lenda fundadora do Reino das Virtudes —
e o que levara Ead a Inys.
— Como poderia? — perguntou.
— Bem — começou Chassar —, a maioria das irmãs
acredita que a Mãe partiu para proteger o Priorado de
alguma ameaça desconheci­da. — Crispou os lábios. —
Escreverei à Prioresa e contar-lhe-ei o que Fýredel disse.
Talvez ela seja capaz de resolver este enigma.
Ambos permaneceram num breve silêncio. Agora
que estava a escu­recer, começavam a ver-se velas a
arder nas janelas do palácio.
— Terei de ir em breve — murmurou Ead. — Para
rezar ao Impostor.
— Come um pouco primeiro. — Chassar moveu a
tigela de frutas na sua direção. — Pareces cansada.
— Bem — disse Ead, algo seca —, banir um Sombra
Ocidental sozi­nha, ao que parece, é uma tarefa
cansativa.

Provou as tâmaras e as cerejas, sabores de uma


vida que nunca tinha conseguido esquecer.

— Querida — disse Chassar —, perdoa-me, mas


antes de ires, há mais uma coisa que te devo contar.
Sobre Jondu.
Ead ergueu os olhos.

— Jondu. — A sua mentora, a sua querida amiga.


Algo se retorceu no seu intestino. — Chassar, o que é?

— No ano passado, a Prioresa decretou que


devíamos retomar os nossos esforços para encontrar
Ascalon. Ao ver o despertar de cada vez mais dragões,
sentiu que devíamos fazer tudo o que pudéssemos para
encontrar a espada que a Mãe usou para derrotar o
Inominável. Jondu começou a sua busca em Inys.

— Inys — disse Ead, com o peito apertado. — E


porque não veio ver-me?
— Foi-lhe ordenado que não se aproximasse da corte.
Para te deixar cumprir a tua tarefa.
Ead fechou os olhos. Jondu era obstinada, mas nunca
teria desobede­cido a uma ordem direta da Prioresa.
— A última vez que soubemos dela foi quando estava
em Perunta — continuou Chassar. — Supostamente a
caminho de casa.
— Quando foi isso?
— No final do inverno. Não encontrou Ascalon, mas
escreveu para nos dizer que carregava um objeto
importante de Inys e que precisava de escolta com
urgência. Enviámos as irmãs à sua procura, mas não
encontraram nenhum vestígio dela. Temo o pior.
Ead levantou-se abruptamente e caminhou até à
balaustrada. De re­pente, a doçura da fruta tornou-se
enjoativa.
Lembrou-se de quando Jondu a ensinara a dominar o
fogo que lhe ardia nas veias. A brandir a espada e a
disparar o arco. A cortar um Wyvern ao meio. Jondu, a
sua amiga mais querida que, a par com Chassar, a
tornara em tudo o que era agora.
— Ela ainda pode estar viva. — A voz saiu-lhe rouca.
— As irmãs estão à procura dela. Não vamos desistir
— garantiu Chassar. — Mas alguém deve assumir o lugar
dela entre as Damas Vermelhas. Essa é a mensagem que
trago de Mita Yedanya, a nossa nova Prioresa. Ela
ordenou o teu regresso, Eadaz. Para que vistas o manto
de sangue. Precisaremos de ti nos dias que se avizinham.
Ead sentiu um arrepio que a percorreu do couro
cabeludo à espinha, frio e quente ao mesmo tempo.
Era tudo o que sempre desejara. Ser uma Dama
Vermelha, uma justiceira da Prioresa, era o sonho de
todas as raparigas nascidas no Priorado. E, no entanto...
— Então — disse Ead —, a nova Prioresa não se
preocupa em pro­teger Sabran.
Chassar juntou-se a ela na balaustrada.
— A nova Prioresa é mais cética cm relação ao dogma
dos Berethnet do que a anterior — admitiu. — Mas não
deixará Sabran sem defesa. Trouxe uma das suas irmãs
mais novas comigo para Inys e pretendo apresentá-la à
Rainha Sabran em troca de ti. Dir-lhe-ei que um dos teus
parentes está a morrer e que deves regressar ao Ersyr.
— Ela irá desconfiar.
— Não temos escolha. — Ele olhou para ela. — És
Eadaz du Zāla uq-Nāra, serva de Cleolind. Não deverias
permanecer nem mais um dia nesta corte de blasfemos.
O seu nome. Já fazia tanto tempo. Enquanto
processava aquelas pala­vras, o seu rosto ficou tenso de
preocupação.
— Eadaz — disse ele. — Não me digas que desejas
ficar. Tens apego a Sabran?
— Claro que não — respondeu Ead com firmeza. — A
mulher é arrogante e caprichosa, mas, em todo o caso,
há uma probabilidade, embora pequena, de que ela seja
a verdadeira descendente da Mãe. E não só... se ela
morrer, o país com a maior força naval do Ocidente
entrará em colapso, e isso não fará bem a nenhum de
nós. Ela precisa de proteção.
— E tê-la-á. A irmã que trouxe é talentosa, mas tu
agora tens um ca­minho diferente a seguir. — Pousou uma
mão nas suas costas. — É hora de voltar para casa.
Era uma oportunidade de voltar a estar perto da
laranjeira. Poderia falar a sua própria língua e rezar à
imagem da Mãe sem ser queimada na pira por isso.
Ainda assim, passara oito anos a aprender tudo sobre
os inysh: os seus costumes, a sua religião, os cantos e
recantos daquela corte labiríntica. Não podia desperdiçar
todo aquele conhecimento.
— Chassar — disse Ead. — Gostaria de deixar este
lugar contigo, mas pedes-me que parta precisamente
quando Sabran começa a confiar em mim. Todos estes
anos terão sido em vão. Achas que consegues con­vencer
a nova Prioresa a dar-me mais algum tempo?
— Quanto tempo?
— Até que a sucessão ao trono seja assegurada. —
Ead virou-se para ele. — Deixa-me protegê-la até que
tenha uma filha. Então, voltarei para casa.
Chassar refletiu nisso algum tempo, a sua boca uma
linha fina envolta na espessura da sua barba.
— Tentarei — concluiu. — Tentarei, querida. Mas se a
Prioresa se recusar, deverás submeter-te.
Ead beijou-lhe a face.
— És demasiado bom para mim.
— Nunca poderei ser demasiado bom para ti —
respondeu, segurando-a pelos ombros. — Mas tem
cuidado, Eadaz. Não te desvies do teu objetivo. Deve ser
a Mãe a guiar-te, não esta rainha inysh.
Ead voltou-se para as torres da cidade.
— Que a Mãe nos guie em tudo o que fizermos.
15
Oeste

Cárscaro.

Capital do Reino Draconiano de Yscalin.

A cidade erguia-se no alto das montanhas, sobre


uma vasta planície. Estava suspensa num cume na Roca,
a cadeia de montanhas cobertas de neve que se estendia
entre Yscalin e o Ersyr.

Loth olhou pela janela da carruagem, que se


aproximava da trilha da montanha. Tinha ouvido histórias
sobre Cárscaro durante toda a sua vida, mas nunca
pensara que a veria pessoalmente.
Yscalin tornara-se o segundo elo da Corrente das
Virtudes quando o rei Isalaric o Quarto desposara a
Rainha Glorian a Segunda. Por amor à sua esposa,
abjurara os velhos deuses do seu país e jurara fidelidade
ao Santo. Nessa altura, Cárscaro era famosa pelas suas
festas de máscaras, pela sua música e pelas árvores de
peras vermelhas que cresciam nas suas ruas.
Mas isso pertencia ao passado. Desde que Yscalin
renunciara à sua devoção secular ao Santo e adotara o
Inominável como deus, fazia tudo o que podia para minar
a fé nas Virtudes.
Começava a amanhecer e nuvens finas surgiam
sobre a Grande Planície de Yscalin. A grande planície fora
outrora coberta de campos de alfazema e, quando o
vento soprava, o aroma chegava à cidade.
Loth lamentou não a ter visto nessa altura. Agora,
tudo o que restava era uma extensão de terra
chamuscada.
— Quantas almas vivem em Cárscaro? — perguntou
à senhora Priessa, apenas para se distrair.
— Cinquenta mil, por aí. A nossa capital é pequena
— respondeu ela. — Quando chegardes, sereis
conduzidos aos vossos aposentos na galeria dos
embaixadores. Assim que possível, tereis uma audiência
com Sua Esplendorosa para apresentardes as vossas
credenciais.
— Poderemos também ver o Rei Sigoso?
— Sua Majestade está indisposto.
— Lamento ouvi-lo.
Loth encostou a testa à janela e ficou a olhar para a
cidade entre as montanhas. Em breve chegaria à corte
onde fora forjada a transforma­ção de Yscalin.
Um borrão de movimento chamou-lhe a atenção.
Tentou puxar o trinco para olhar para o céu, mas uma
mão enluvada fechou-o.
— Que foi aquilo? — perguntou Loth, nervoso.
— Uma cocatriz — A senhora Priessa cruzou as mãos
no colo. — Faríeis bem em não vos afastardes muito do
palácio, Lorde Arteloth. Muitos seres draconianos vivem
nas montanhas.
Cocatrizes. Híbridos de pássaros e wyverns.
— Se tiverem fome, atacam tudo o que se mexe,
exceto os infetados pela peste. Nós tratamos de os
alimentar.
— Como?
Não obteve resposta.
A carruagem começou a subir a trilha da montanha.
Em frente a Loth, Kit despertou da sua sesta e esfregou
os olhos. Sorriu-lhe imedia­tamente, mas Loth viu com
clareza o medo na sua expressão.
Quando avistaram o portão de Niunda, a noite já tinha
voltado a cair. O portão, colossal como a divindade que
lhe dera o nome, era esculpido em granito verde e preto
e iluminado com tochas. Era a única entrada para
Cárscaro. Conforme se aproximavam, Loth conseguiu
distinguir silhuetas no umbral.
— Que é aquilo ali em cima?
Kit foi o primeiro a perceber.
— Eu desviaria o olhar, Arteloth — disse ele, voltando
a recostar-se no seu lugar. — A não ser que queiras que a
imagem te assombre todas as noites da tua vida.
Era demasiado tarde. Tinha visto os homens e as
mulheres acorrentados à porta pelos pulsos. Alguns
pareciam mortos ou meio-mortos, mas outros estavam
vivos e cobertos de sangue, e debatiam-se, tentando
libertar-se.
— É assim que os mantemos alimentados, Lorde
Arteloth — disse a senhora Priessa. — Com os nossos
criminosos e traidores.

Por um momento dramático, Loth pensou que iria


vomitar a sua últi­ma refeição ali mesmo na carruagem.
— Estou a ver — disse, a boca inundada de saliva.
— Certo.

Sentiu necessidade de fazer o sinal da espada, mas


isso tê-lo-ia conde­nado. Quando a carruagem se
aproximou, o portão de Niunda abriu-se. Havia pelo
menos meia dúzia de wyverns a guardá-lo. Eram mais
pequenos do que os grandes Sombras Ocidentais e
tinham apenas duas patas, mas os seus olhos brilhavam
com o mesmo fogo. Loth desviou o olhar até que os
deixaram para trás.
Encontrava-se imerso num pesadelo. Os bestiários,
as histórias anti­gas, haviam ganhado vida em Yscalin.
No centro da cidade erguia-se uma torre de rocha
vulcânica e cristal. Devia ser o Palácio da Salvação, a
corte da Casa de Vetalda. A monta­nha sobre a qual se
erguia Cárscaro era uma das mais baixas da Roca, mas,
ainda assim, era tão imensa que o cume ficava
escondido por trás da névoa que envolvia o planalto.
O palácio tinha um aspeto temível, mas o que mais
perturbava Loth era o rio de lava, com seis braços que
circulavam e corriam por Cárscaro e depois se uniam
numa balsa e caíam pela encosta da montanha, onde a
lava arrefecia, formando vidro vulcânico.
As cascatas de lava de Cárscaro haviam surgido
havia uma década. Os yscals tinham levado algum
tempo a construir os canais para o rio flamejante. Em
Ascalon, as pessoas agora sussurravam que o Santo o
enviara como um aviso aos yscals: um aviso de que o
Inominável poderia um dia tornar-se o falso deus do seu
país.
As ruas ondulantes rodeavam os edifícios como
sinuosas caudas de rato. Agora, Loth via que estavam
unidas por elevadas pontes de pedra. Em torno das
bancas com toldos vermelhos, havia pessoas com vestes
pesadas. Muitas usavam véus a cobrir os rostos. Por todo
o lado, viam-se proteções contra a peste, desde
amuletos nas portas a máscaras com olhos de vidro e
longos espigões, mas ainda havia casas marcadas com
sinais vermelhos.

A carruagem deixou-os diante dos enormes portões


do Palácio da Salvação, onde uma fila de criados os
esperava. Esculturas realistas de criaturas draconianas
formavam um arco sobre a entrada, que parecia o
pescoço do Ventre de Fogo.

Loth desceu da carruagem e estendeu a mão à


senhora Priessa, que não a aceitou. Fora insensato tentar
ajudá-la. Melaugo já o avisara de que deveria manter a
distância.

Os jaculi soltaram um grunhido quando a pequena


comitiva se afas­tou da carruagem. Loth ficou ao lado de
Kit, e seguiram os criados até um corredor de teto alto de
onde pendia um candelabro. Poderia jurar que as chamas
das velas eram vermelhas.

A senhora Priessa desapareceu por uma porta


lateral. Loth e Kit tro­caram um olhar intrigado.
Dois braseiros ladeavam uma grande escadaria. Um
criado acendeu uma tocha com um deles e conduziu Loth
e Kit por corredores desertos e passagens escondidas
atrás de tapeçarias e paredes falsas, subindo es­cadas
estreitas com degraus altos que fizeram Loth sentir-se
ainda mais atordoado. Passaram por retratos a óleo de
antigos monarcas de Vetalda e, por fim, chegaram a uma
galeria com um teto abobadado. O criado apontou
primeiro para uma porta, depois para a outra, e
entregou-lhes uma chave.

— Talvez pudéssemos ter alguma... — começou Kit,


mas o homem já desaparecera atrás de uma tapeçaria.
— Comida.

— Podemos comer amanhã — disse Loth. Cada


palavra ecoava na­quele corredor. — Quem mais achas
que está aqui?

— Não sou especialista no assunto de


embaixadores estrangeiros, mas devemos presumir que
há alguns mênticos por aqui. — Kit esfregou o estômago
que roncava de fome. — Eles estão por todo o lado.

Isso era verdade. Dizia-se que não havia lugar no


mundo onde os mênticos se recusassem a ir.
— Encontramo-nos aqui ao meio-dia — disse Loth.
— Temos de decidir o que fazer.

Kit deu-lhe uma palmadinha nas costas e entrou


num dos quartos. Loth introduziu a chave na fechadura
da outra porta.

Os seus olhos tardaram um momento para se


adaptarem à escuridão do quarto. Os yscals tinham
declarado a sua lealdade ao Inominável, mas era claro
que não haviam poupado nas residências dos seus em­‐
baixadores. Na parede virada para oeste havia nove
janelas, uma mais pequena do que as demais. Quando
olhou mais de perto, reparou que era na verdade uma
porta que dava para uma varanda fechada.
Na extremidade norte do quarto, havia uma cama
com dossel e, ao seu lado, um candelabro de ferro. As
velas eram de cera nacarada, e as chamas eram, de
facto, vermelhas. Um vermelho ardente. Ao seu lado
estava a arca. No extremo sul do quarto, ao afastar uma
cortina de veludo, descobriu uma banheira de pedra,
cheia até à borda com água fumegante.
Com todas aquelas janelas, teve a impressão de que
toda a Yscalin o podia ver. Fechou as cortinas e apagou
algumas velas, que emitiram um fumo preto.
Entrou na água e ficou lá durante muito tempo.
Quando sentiu que os seus músculos doridos começavam
a relaxar, encontrou uma barra de sabão cor de azeitona
e começou a lavar a cinza que tinha no cabelo.
Talvez Wilstan Fynch tivesse dormido naquele quarto
enquanto in­vestigava o assassinato da Rainha Rosarian,
a mulher que tanto havia amado. Era provável que
tivesse estado ali quando os campos de lavanda haviam
ardido, quando os pássaros haviam voado com a notícia
de que a Corrente das Virtudes tinha perdido um dos
seus elos.
Loth deitou água sobre a cabeça. Se alguém em
Cárscaro tivesse or­questrado a morte da Rainha
Rosarian, essa mesma pessoa poderia estar a tentar
acabar com Sabran. Eliminá-la antes que desse uma
herdeira ao Reino das Virtudes. Para que o Inominável
pudesse voltar a erguer-se.
Com um calafrio, Loth saiu da banheira e secou-se
com um pano de linho dobrado. Usou a sua navalha para
se barbear, deixando uma pequena mancha de pelos no
queixo e no lábio superior. Enquanto se barbeava, a sua
mente vagueou até Ead.
Tinha a certeza de que Sabran estaria a salvo com ela.
Desde o pri­meiro momento em que a vira no Salão de
Banquetes — uma mulher com a pele cor de bolota e um
olhar atento —, sentira um calor dentro de si. Não o fogo
de um wyrm, mas algo suave e dourado, como os pri­‐
meiros raios de luz numa manhã de verão.
Margret passara um ano inteiro a insistir para que ele
casasse com Ead. Ela era linda, fazia-o rir e podiam
conversar durante horas. Não dera ouvidos à irmã, não
só porque o Conde de Goldenbirch não se podia ca­sar
com uma plebeia, coisa que ela sabia muito bem, mas
porque amava Ead como amava Margret, como amava
Sabran. Como uma irmã.
Ainda não experienciara aquele amor arrebatador
que se reserva a uma companheira. Aos trinta anos,
tinha idade mais do que suficiente para casar e não via a
hora de honrar o Cavaleiro da Camaradagem par­‐
ticipando na sagrada instituição.
Mas agora talvez não tivesse a oportunidade de o
fazer.
Sobre a cama encontrava-se uma camisa de noite de
seda, mas ele vestiu a sua, enrugada pelas viagens,
antes de sair para a varanda.
O ar estava fresco. Loth apoiou os braços na
balaustrada. Aos seus pés, Cárscaro estendia-se em
direção ao penhasco e, por baixo, via-se a planície. O
brilho emitido pela lava iluminava as ruas. Loth observou
uma silhueta que descia do ar e bebia do rio de fogo.
À meia-noite, deitou-se na cama e cobriu-se até ao
peito.
Enquanto dormia, sonhou que os seus lençóis
estavam envenenados.

***

Perto do meio-dia, Kit encontrou-o sentado à mesa, à


sombra da varanda, a olhar para a planície.
— Bom dia, senhor — disse Loth.
— Ah, senhor, que belo dia na terra da morte e do
mal. — Kit carre­gava uma bandeja. — Estas pessoas
podem adorar o Inominável, mas... que camas! Nunca
dormi tão bem na minha vida.
Kit era incapaz de falar a sério e Loth não pôde deixar
de sorrir ao vê-lo, mesmo naquelas circunstâncias.
— Onde é que encontraste comida?
— O primeiro lugar em que procuro é a cozinha.
Acenei aos criados até eles perceberem que eu estava a
morrer de fome. Toma. — Pousou a bandeja na mesa. —
Mais tarde trar-nos-ão algo mais substancial.
No tabuleiro, havia fruta assada e nozes, um jarro de
vinho de sultana e dois cálices.
— Não devias andar por aí sozinho, Kit — advertiu
Loth.
— O meu estômago não podia esperar mais —
respondeu, mas ao ver a sua expressão, Kit suspirou. —
Está bem.
O Sol era uma ferida aberta; o céu tinha mil tons de
cor-de-rosa. Uma névoa pálida cobria a planície. Loth
nunca tinha visto uma paisagem assim. Estavam
abrigados do calor do Sol, mas os seus pescoços ainda
estavam perolados de suor.
A paisagem devia ter sido excecionalmente bela
quando ainda crescia lavanda. Loth tentou imaginar-se a
caminhar pelos corredores no verão, as janelas abertas,
sentindo a brisa perfumada no rosto.
Teria sido o medo da destruição que fizera o Rei
Sigoso ceder, per­mitindo que o seu país se tornasse
corrompido a tal extremo?
— Então — disse Kit, com a boca cheia de amêndoas
—, como deveremos dirigir-nos a Donmata?
— Com a maior das cortesias. Pelo que ela sabe,
estamos aqui como embaixadores permanentes. Duvido
de que ache suspeito se lhe pergun­tarmos o que
aconteceu ao nosso antecessor.
— Se tiverem feito alguma coisa ao Fynch, mentirá.
— Então, pedir-lhe-emos provas de que ele está vivo.
— Não se exige provas a uma princesa. A sua palavra
é lei. — Kit descascou uma laranja cor de sangue. —
Agora somos espiões, Loth. É melhor parares de ser tão
confiante.
— Que devemos fazer, então?
— Vamos juntar-nos à corte, agir como bons
embaixadores, e des­cobrir o que pudermos. Pode haver
outros diplomatas estrangeiros. Alguém deve saber
alguma coisa útil. — Lançou a Loth um sorriso. E se tudo
o resto falhar, irei namoriscar com Donmata Marosa até
ela me abrir o coração.
Loth abanou a cabeça.
— Velhaco.
De repente, toda a Cárscaro retumbou. Kit agarrou no
seu cálice antes que o vinho se derramasse.
— Que foi aquilo?
— Um terramoto — disse Loth, inquieto. — O meu pai
disse-me uma vez que os vulcões podem causá-los.
Os yscals não teriam construído uma cidade naquele
local se cor­resse o risco de ser arrasada por um
terramoto. Loth obrigou-se a não pensar nisso e bebeu
um gole do seu vinho, refletindo sobre o aspeto de
Cárscaro no seu tempo. Kit pegou na sua pena e num
canivete.
Poesia? — perguntou Loth.
— A inspiração ainda não me atingiu. A experiência
diz-me que o terror e a criatividade não costumam andar
de mãos dadas. — Kit co­meçou a afiar a pena. — Não,
isto é uma carta. Para uma certa senhora.
Loth estalou a língua.
— O que eu não percebo é por que razão ainda não
disseste à Kate o que sentes por ela.
— Porque embora eu seja charmoso em pessoa, em
papel sou Sir Antor Dale. — Kit lançou-lhe um olhar
divertido. — Achas que eles enviam as suas cartas por
pássaro ou basilisco hoje em dia?
— Cocatriz, provavelmente. Combina as qualidades de
ambos. — Loth observou o amigo a tirar um tinteiro de
uma bolsa. — Sabes que Combe queimará todas as
cartas que enviarmos.
— Oh, não tenho intenções de tentar. Se a senhora
Katryen nunca ler isto, que seja — disse Kit baixinho. —
Mas quando o coração fica muito cheio, transborda. E o
meu, inevitavelmente, transborda para o papel.
Alguém bateu à porta do cómodo. Loth olhou de
relance para Kit antes de a ir abrir, pronto a usar a sua
adaga.
No corredor, encontrava-se um criado vestido com um
gibão e calções pretos, perfumado com pomandro.
— Lorde Arteloth — anunciou. — Venho informar-vos
de que Sua Esplendorosa, a Donmata Marosa, vos
receberá a seu tempo. Por agora, vós e Lorde Kitston
deveis ir ao médico, para que Sua Esplendorosa tenha a
certeza de que não vos apresentais à sua porta com
alguma doença.
— Agora?
— Sim, meu senhor.
A última coisa que Loth desejava naquele momento
era ser tocado por um médico de vocação draconiana,
mas duvidava de que tivesse escolha.
— Nesse caso, por favor — disse ele. — Mostra-nos o
caminho.
16
Este

O resto das provas aquáticas passou a correr: a noite


em que lhes foi dito que tinham de nadar contra a
corrente no rio torren­cial, o duelo com as redes, a
demonstração de capacidades de sinaliza­ção aos outros
cavaleiros. Por vezes, passava-se um dia entre as provas,
outras vezes vários. E antes que Tané desse conta,
chegara a altura do teste final.
À meia-noite, ainda estava na sala de treino, untando
o gume da sua espada com óleo de cravo. O cheiro
impregnou-se-lhe nos dedos. Doíam-lhe os ombros e o
pescoço estava duro como um cepo de árvore.
No dia seguinte, aquela espada poderia conceder-lhe
uma grande vi­tória ou uma grande derrota.
Os seus próprios olhos injetados de sangue refletiam-
se no seu gume.
A chuva batia nos telhados da escola. De regresso aos
seus aposentos, ouviu um riso abafado.
Havia uma porta aberta que dava para uma pequena
varanda. Tané espreitou por cima da balaustrada. No
pátio em baixo, onde cresciam as pereiras, Onren e
Kanperu estavam sentados, debruçados sobre um jogo
de tabuleiro, com os dedos entrelaçados.
— Tané.
Ela ofegou. Dumusa estava a observá-la do seu
próprio quarto, vestida com uma túnica de manga curta e
segurando um cachimbo. Saiu para a varanda,
aproximou-se dela e seguiu-lhe a trajetória do olhar com
os olhos.
— Não deves invejá-los — disse ela após um longo
silêncio.
— Eu não...
— Não te preocupes. Eu própria o sinto de vez em
quando. Parece ser tão fácil para eles. Para Onren,
sobretudo.
Tané escondeu o rosto atrás do cabelo.
— Ela obtém resultados esplêndidos — admitiu —,
com tão pouco... — As palavras ficaram-lhe presas na
garganta. — Com tão pouco.
— Obtém-nos porque tem confiança nas suas
capacidades. Suspeito de que receias que a tua te
escape por entre os dedos se perderes a con­centração
nem que seja por um segundo — disse Dumusa. — Eu
nasci numa família de cavaleiros. Isso foi uma bênção, e
eu sempre quis pro­var que estava à altura. Quando tinha
dezasseis anos, desisti de tudo menos dos estudos.
Deixei de ir à cidade. Deixei de pintar. Deixei de ver a
Ishari. Tudo o que fiz foi praticar, até me tornar numa
aprendiza de primeira. Esqueci-me de que possuía uma
habilidade, e deixei que a habilidade me possuísse. Por
completo.
Tané sentiu um arrepio.
— Mas... — hesitou. — Não pareces sentir o que eu
sinto.
Dumusa soltou um bocado de fumo.
— Percebi que, se tiver a sorte de me tornar cavaleira,
esperar-se-á que responda quando Seiiki precisar de
mim. Não terei dias de treino pela frente. Lembra-te,
Tané, não precisas de afiar uma espada constan­temente
para a manter afiada.
— Eu sei.
Dumusa dirigiu-lhe um olhar.
— Então para de a afiar. E vai dormir.

***

A prova final realizar-se-ia no pátio. Tané tomou o


pequeno-almoço cedo e sentou-se nas bancadas.
Onren chegou e sentou-se ao seu lado. Ouviram o
barulho distante de um trovão.
— Então — disse Onren —, estás pronta?
Tané assentiu, mas depois abanou a cabeça.
— Eu também. — Onren virou o rosto para a chuva
intensa. — Tens o posto assegurado, Tané. Os Miduchi
julgam-nos com base no desem­penho em todas as
provas e tu já fizeste mais do que o suficiente.

— Esta é a mais importante — murmurou Tané. —


Usaremos espa­das mais do que qualquer outra arma. Se
não conseguimos ganhar um combate na escola...
— Todos nós sabemos que és boa com a espada. Vais
ficar bem.
Tané torceu as mãos entre os joelhos.
Os outros foram saindo pouco a pouco. Quando já lá
estavam todos, apareceu o General do Mar. Ao seu lado,
caminhava um criado em bi­cos de pés, segurando um
guarda-chuva sobre a sua cabeça.
— A prova final será com espadas — anunciou o
General do Mar. — Em primeiro, a honrada Tané, da Casa
Sul.
Ela pôs-se de pé.
— Honrada Tané — disse ele. — Hoje, enfrentareis o
honrado Turosa, da Casa Norte.
Turosa levantou-se dos bancos sem hesitar.
— A Primeiro Sangue.
Cada um deles foi a um dos lados do pátio buscar as
suas espadas. Olharam-se nos olhos, desembainharam e
aproximaram-se.
Tané mostrar-lhe-ia do que uma camponesa era capaz.
Cumprimentaram-se com uma vénia mínima, tensa.
Tané agarrou na sua espada com ambas as mãos. Apenas
conseguia ver Turosa, com o cabelo ensopado e as
narinas dilatadas.
O General do Mar deu o sinal e Tané correu em direção
a Turosa. As espadas chocaram. Turosa empurrou,
aproximando o seu rosto do de Tané a ponto de ela sentir
o seu hálito e o odor a suor da sua túnica.
— Quando eu comandar os cavaleiros — sibilou ele —,
tratarei que nenhum camponês volte a montar um
dragão. — Um clangor de lâmi­nas. — Em breve, estarás
de volta ao casebre de onde te tiraram.
Tané desferiu um golpe, e Turosa desviou a lâmina a
poucos milímetros da sua cintura.
— Relembra-me — disse ele, tão baixinho que apenas
ela o conseguiu ouvir —, de onde vens mesmo? —
Afastou a espada dela. — Esses montes de esterco onde
vocês vivem pelo menos têm nomes?
Se ele pensava que a podia provocar insultando a
família que ela nunca conhecera, o melhor seria esperar
sentado.
Ele atacou. Tané defendeu o golpe e o duelo tornou-se
feroz.
Não se tratava de uma dança com espadas de
madeira. Não havia nenhuma lição a ser assimilada,
nenhuma habilidade a ser refinada. O confronto com o
seu rival consistia numa manobra tão rápida e im­piedosa
como arrancar um dente.
O seu mundo foi reduzido a uma torrente de chuva e
metal. Turosa levantou-se num salto. Tané desferiu um
golpe vertical, desviando a espa­da que se aproximava
como um machado. Mas antes que pudesse recupe­rar o
fôlego, ele estava outra vez em cima dela, e aquela
espada balançava para a frente e para trás como a cauda
de um peixe na água. Defendeu-se de todos os golpes
até que Turosa fez uma finta e lhe acertou um murro no
queixo. Depois, um pontapé no estômago atirou-a para o
chão.
Devia ter visto a finta de longe. A exaustão estava a
ser a sua ruína. Através das gotas que lhe encharcavam
as pestanas, vislumbrou ao longe o General do Mar, que
os observava, impávido.
— Isso mesmo, camponesa — escarneceu Turosa. —
Fica aí no chão. É aí que o lixo pertence.
Tané baixou a cabeça, como um prisioneiro à espera
da execução. Turosa ficou a olhar para ela, como se a
decidir onde a poderia magoar mais. Aproximou-se um
passo.
Foi então que Tané olhou para cima e lançou um
pontapé na direção de Turosa, obrigando-o a esquivar-se.
Impulsionou-se com os braços e pôs-se de pé. Turosa
repeliu o primeiro golpe, mas a sua guarda estava em
baixo; Tané viu-o nos seus olhos. Ele escorregou quando
o seu pé aterrou sobre a pedra molhada, e quando Tané
voltou a atacar com a espada, Turosa foi demasiado lento
para levantar o braço a tempo de bloquear o golpe.
O ataque raspou-lhe no maxilar, leve como uma folha
de relva.
Um instante depois, a espada de Turosa abriu-lhe um
corte no ombro. Tané conteve uma exclamação enquanto
via Turosa afastar-se, os dentes cerrados e a boca cheia
de saliva.
Os outros guardiões do mar observavam-no
atentamente, esforçando-se por ver bem.
Tané ficou a olhar para o seu rival, respirando com
dificuldade.
Se ela não o tivesse ferido, teria perdido a luta.
Lentamente, minúsculos rubis apareceram sobre a
linha que ela lhe traçara na pele. Trémulo e encharcado,
Turosa levou um dedo ao seu maxilar e encontrou uma
mancha de sangue, intensa como a cor de um marmelo
em flor.
Primeiro Sangue.

— Honrada Tané da Casa Sul — anunciou o General


do Mar, sor­rindo. — A vitória é vossa.
Nunca nenhuma palavra lhe soara mais doce.
Quando se curvou para saudar Turosa, o sangue
escorria-lhe do om­bro como cobre derretido. O rosto do
seu adversário refletia a sua raiva crescente. Ele caíra na
armadilha, uma armadilha que não enganava ninguém,
porque ele esperara fraqueza. Olhando-o no rosto, Tané
sou­be, por fim, que ele não voltaria a chamar-lhe lixo. Se
o fizesse, estaria a provar que o lixo podia elevar-se à
erva.
A única maneira de salvar a pele era tratá-la como
uma igual.
Sob um céu coberto de nuvens, o descendente de
cavaleiros curvou-se perante ela, baixando a cabeça
mais do que nunca.
17
Oeste

Alguns dias depois da sua chegada, após se terem


certificado de que estavam livres da peste, Loth e Kit
foram autorizados a apresentar-se a Donmata Marosa.
Durante esses dias, não tinham saído dos seus quartos,
vigiados pelos guardas que controlavam a galeria. Loth
ainda estremecia ao pensar no médico da corte, que
colocara sanguessugas onde elas nunca deveriam ser
colocadas.
Mas por fim estava ao lado de Kit, à porta da enorme
sala do trono do Palácio da Salvação. A sala estava cheia
de cortesãos e nobres, mas não havia sinal do Príncipe
Wilstan.
A Donmata Marosa, Princesa soberana do Reino
Draconiano de Yscalin, estava sentada num trono de
cristal vulcano sob um dossel. No seu rosto, usava uma
máscara de ferro com chifres que reproduzia a cabeça de
um Sombra Ocidental. Devia pesar imenso.
— Santo — Kit sussurrou tão baixo que apenas Loth o
pôde ouvir. — Ela está a usar a cara de Fýredel.
Em frente ao trono havia uma formação de guardas
com armaduras douradas. O dossel mostrava o símbolo
da Casa de Vetalda. Dois wyverns negros e uma espada,
partida em dois.
Não uma espada qualquer, mas uma Ascalon. O
símbolo do Reino das Virtudes.
As damas de companhia tinham recolhido os véus
usados contra a peste, que pendiam de pequenas e
elaboradas tiaras. A senhora Priessa Yelarigas estava à
direita do trono. Por fim, Loth conseguia vê-la bem.
agora que o seu rosto estava descoberto: maçãs do
rosto pálidas e sar­dentas, olhos profundos e o queixo
erguido num gesto orgulhoso.
Quando pararam em frente ao trono, o murmúrio geral
acalmou-se.
— Vossa Esplendorosa — chamou o mordomo —,
apresento-vos dois cavaleiros de Inys. Lorde Arteloth
Beck, filho do Conde e da Condessa de Goldenbirch, e
Lorde Kitston Glade, filho do Conde e da Condessa de
Honeybrook. Embaixadores do Rainhado de Inys.
Fez-se silêncio na sala do trono, seguido de alguns
sussurros. Loth pôs um joelho no chão e baixou a cabeça.
— Vossa Esplendorosa — disse ele —, damos-vos
graças por nos receberdes na vossa corte.
Os murmúrios desapareceram quando a Donmata
levantou a mão.
— Lorde Arteloth e Lorde Kitston — disse ela. O elmo
de ferro deu à sua voz um eco sinistro. — O meu querido
pai e eu damos-vos as boas-vindas ao Reino Draconiano
de Yscalin. As minhas sinceras desculpas pelo atraso
desta audiência; tinha assuntos para tratar.
— Não precisais de vos desculpar, Vossa Esplendorosa
— foi tudo que Loth disse. — Tendes todo o direito de nos
receber a vosso bel-prazer. — Pigarreou. — Lorde Kitston
tem as nossas cartas credenciais; pedimos-vos que as
aceiteis.
— Claro.
A senhora Priessa fez sinal com a cabeça para um
criado, que pegou nas cartas de Kit.
— Quando o Duque da Cortesia escreveu ao meu pai,
ficámos encan­tados com o facto de Inys querer reforçar
os seus laços diplomáticos com Yscalin — continuou a
Donmata. — Não gostaríamos de pensar que a Rainha
Sabran está disposta a pôr em risco a nossa amizade
devido a... diferenças religiosas.
Diferenças religiosas.
— E por falar em Sabran, não tenho notícias dela há
tanto tempo observou a Donmata. — Dizei-me, ela já
teve descendência?
Um músculo estremeceu sob o olho de Loth. O facto
de aquela mu­lher poder usar aquele aparelho blasfemo
na cabeça e ao mesmo tempo proclamar a sua amizade
com Sabran era-lhe repugnante.
— Sua Majestade não se casou, senhora — disse Kit.
— Mas fá-lo-á em breve — disse ela, apoiando-se nos
braços do tro­no. Não vendo resposta de nenhum deles,
continuou. — Creio que ain­da não estão a par das boas
notícias, meus senhores. Sabran anunciou recentemente
o seu noivado com Aubrecht Lievelyn, Grão-Príncipe do
Estado Livre de Mentendon. O meu antigo prometido.
Loth ficou a olhar para ela, incapaz de articular uma
palavra.
Claro que ele sabia que, mais cedo ou mais tarde,
Sabran escolheria um companheiro, uma rainha não
tinha escolha, mas ele sempre pre­sumira que seria
alguém de Hróth, o mais tradicional dos outros dois
Reinos das Virtudes. E, no entanto, ela escolhera
Aubrecht Lievelyn, sobrinho-neto do falecido Príncipe
Leovart, que também cortejara Sabran, apesar das
décadas que os separavam.
— Infelizmente — continuou a Donmata —, não fui
convidada para comparecer à cerimónia. — Encostou-se
às costas do trono. — Pareceis preocupado, Lorde
Arteloth. Dizei-me, não achais o Príncipe Vermelho digno
da vossa senhora?
— O coração da Rainha Sabran é um assunto privado
— rebateu Loth. — Não deve ser discutido num lugar
como este.
Os murmúrios da multidão transformaram-se em risos,
e Loth estre­meceu. A Donmata juntou-se às gargalhadas
de dentro daquela máscara terrível.
— Os assuntos do coração de Sua Majestade podem
ser privados, mas os assuntos da sua cama não o são.
Afinal, dizem que, no dia em que a dinastia Berethnet for
interrompida, o Inominável voltará para junto de nós. Se
pretende manter esse compromisso, não deveria
começar a abrir a sua... corte ao Príncipe Aubrecht o
mais depressa possível?
Mais risos.
— Rezo para que a dinastia Berethnet dure até ao fim
dos tempos — disse Loth, sem saber bem o que estava a
fazer —, pois é a única coisa que nos separa do caos.
Num movimento rápido, os guardas desembainharam
as espadas.
O riso cessou subitamente.
— Cuidado, Lorde Arteloth — disse a Donmata. — Não
digais nada que possa ser interpretado como um ataque
ao Inominável. — Estendeu a mão em direção aos
guardas, que embainharam as lâminas. — Ouvi dizer que
vos tornaríais príncipe consorte. Não sois nobre o
suficiente para amar uma rainha? — Antes que Loth
pudesse responder, ela bateu palmas. — Não importa. Se
não tendes par, isso pode ser remediado aqui em Yscalin.
Músicos! Toquem os trinta passos! A senhora Priessa
dançará com o Lorde Arteloth.
De imediato, a senhora Priessa desceu as escadas
para o chão de már­more. Loth encheu-se de coragem e
dirigiu-se a ela.
A dança dos trinta passos era em tempos ensinada
em muitas cortes. Fora banida em Inys por Jillian a
Quinta, por ser considerada lasciva, mas alguns dos seus
sucessores tinham sido mais complacentes. De uma
forma ou de outra, a maioria dos cortesãos aprendia-a.
A senhora Priessa fez uma vénia e a orquestra tocou
uma música ani­mada. Loth inclinou-se diante da sua
parceira de dança e depois ambos se viraram para a
Donmata e apertaram as mãos.
No início, Loth estava um pouco rígido. A senhora
Priessa tinha os pés leves. Ele traçou um círculo à sua
volta, sem nunca tocar no chão com os calcanhares.
Ela seguiu-o na perfeição. Traçaram arcos e voltas,
para os lados e para a frente, e depois a música
acelerou, altura em que, com uma mão nas costas dela e
outra na cintura, Loth levantou a sua parceira do chão.
Levantou-a uma e outra vez, até lhe doerem os braços e
ficar com a cara e a nuca cobertas de suor.
Conseguia ouvir a senhora Priessa a respirar
pesadamente. Continuaram a virar-se, e ela soltou uma
madeixa de cabelo escuro. Por fim, foram abrandando o
ritmo a cada passo, até que voltaram a dar as mãos e
ficaram de novo de frente para a Donmata Marosa.
Loth reparou em algo na sua mão, mas não se
atreveu a olhar. A Donmata e toda a sua corte
aplaudiram.
— Estais cansado, Lorde Arteloth — disse a voz da
máscara. — Será a senhora Priessa demasiado pesada
para vós?
— Acho que em Yscalin os vestidos pesam mais do
que as senhoras, Vossa Esplendorosa — respondeu Loth,
respirando com dificuldade.
— Oh, não, meu senhor. São as senhoras, os
senhores, todos nós. É a dor que carregamos nos nossos
corações que nos pesa. A tristeza de que o Inominável
ainda não regressou para nos guiar. — A Donmata
levantou-se. — Desejo-vos uma noite longa e tranquila —
disse ela, e inclinou o elmo. — A menos que queirais
dizer-me algo mais.
Loth estava dolorosamente ciente do papel que tinha
na mão, mas não podia deixar passar a oportunidade.
— Uma coisa, Esplendorosa. — Pigarreou. — Há
outro embaixador residente na sua corte, que tem
servido a Rainha Sabran durante muitos anos. Wilstan
Fynch, o Duque da Temperança. Gostaria de saber em
que parte do palácio está alojado, pois gostaríamos de
falar com ele.
Ninguém se mexeu. Silêncio.
— O Embaixador Fynch — disse por fim a Donmata.
— Bem, Lorde Arteloth, sei tão pouco sobre esse assunto
quanto vós. Sua Excelência partiu há várias semanas,
para Córvugar.
— Córvugar — repetiu Loth. Era um porto no
extremo sul de Yscalin. — E que iria ele lá fazer?
— Disse que tinha assuntos para tratar, cuja
natureza não revelou. Surpreende-me que não tenha
escrito a Sabran para lhe dizer.
— Também estou surpreendido, Vossa Esplendorosa.
Na verdade — disse Loth —, acho difícil de acreditar.
Houve um breve silêncio enquanto a sua implicação
pairava sobre a sala do trono.
— Espero, Lorde Arteloth — disse a Donmata —, que
não estejais a acusar-me de mentir.
Os cortesãos tinham-se aproximado um pouco mais.
Como cães de caça a farejar sangue. Kit agarrou o ombro
de Loth, que por sua vez fechou os olhos.
Se queriam descobrir a verdade, a primeira coisa que
tinham de fazer era sobreviver naquela corte e, para
isso, teriam de seguir as suas regras.
— Não, Vossa Esplendorosa — disse. — Claro que não.
Perdoai-me.
Sem mais palavras, a Donmata Marosa saiu da sala do
trono seguida das suas damas. Cerrando os dentes, Loth
virou as costas aos guardas e dirigiu-se para as portas.
Kit seguiu-o de perto.
— Podiam ter-te arrancado a língua por isso —
murmurou o seu amigo. — Pelo Santo, homem, que te
deu para acusares uma princesa de mentir na sua própria
sala do trono?
— Não tenho estômago para isto, Kit. A blasfémia. O
engano. O des­respeito flagrante por Inys.
— Não deves deixá-los ver que os seus insultos te
afetam. O teu pa­trono é o Cavaleiro da Camaradagem.
Pelo menos, dá a estas pessoas a impressão dessa
virtude. — Kit segurou-lhe o braço, parando-o no seu
caminho. — Arteloth, ouve-me. De nada serviremos a
Inys se estivermos mortos.
O seu rosto estava coberto de suor e as veias do
pescoço estavam visi­velmente a latejar. Loth nunca o
tinha visto tão preocupado.
— O Cavaleiro da Cortesia é o teu patrono, Kit. — Loth
suspirou. — Esperemos que me ajude a mascarar as
minhas intenções.
— Mesmo com a sua ajuda, não será fácil.
Kit caminhou até às janelas da galeria.
— Toda a minha vida escondi a raiva que nutria pelo
meu pai — disse ele, em voz baixa. — Aprendi a sorrir
quando ele ridicularizava a minha poesia. Quando me
chamava hedonista e mole. Quando se amaldiçoava por
não ter outros herdeiros e amaldiçoava a minha pobre
mãe por não lhos ter dado. — Respirou fundo. — Tu
ajudaste-me a fazê-lo, Loth. Porque ter alguém por perto
com quem eu pudesse ser eu mesmo deu-me forças para
ser outra pessoa com ele.
— Eu sei — murmurou Loth. — E prometo-te que, de
agora em diante, apenas te mostrarei a ti a minha
verdadeira face.
— Ótimo. — Kit voltou-se para ele com um sorriso. —
Tem fé, como sempre tens, de que iremos sobreviver a
isto. A Rainha Sabran ainda não se casou. O nosso exílio
não durará muito tempo. — Deu-lhe uma palmadinha no
ombro. — Entretanto, deixa-me procurar algo para
jantarmos.
Separaram-se. Loth chegou ao seu quarto e, depois de
trancar a porta com segurança, olhou para o pedaço de
pergaminho que Priessa Yelarigas lhe pusera na mão.

No Santuário Real às três em ponto.


A porta fica ao lado da biblioteca. Vinde sozinho.

O Santuário Real. Agora que a Casa de Vetalda tinha


abandonado as Seis Virtudes, estaria abandonado, a
acumular pó.
Podia ser uma armadilha. Talvez o Príncipe Wilstan
também tivesse recebido um bilhete assim antes do seu
desaparecimento.
Loth passou as mãos pela cabeça. Entregou-se ao
Cavaleiro da Bravura. Veria o que a senhora Priessa tinha
para lhe dizer.

Kit voltou às onze da noite com cordeiro estufado


em vinho, um pedaço de queijo condimentado e um
prato de azeitonas com alho. Sentaram-se a comer na
varanda, a ver as tochas de Cárscaro a tremeluzir lá em
baixo.

— O que eu não pagaria por um degustador de


comida — disse Loth, dando pequenas bicadas na
comida.

— A mim parece-me esplêndida — afirmou Kit, com


a boca cheia de pão embebido em azeite. Limpou a boca.
— Bem, temos de presumir que o Príncipe Wilstan não foi
apanhar sol em Córvugar. Ninguém com dois dedos de
testa vai a Córvugar. Não há lá nada além de sepulturas
e corvos.

— Achas que Sua Excelência está morto?


— Receio que sim.

— Temos de ter a certeza. — Loth olhou para a porta


e baixou o tom de voz. — A senhora Priessa passou-me
um bilhete durante a dança, pedindo-me para me
encontrar com ela esta noite. Talvez tenha algo para me
dizer.
— Ou talvez tenha uma adaga e pense em cravar-ta
nas costas — dis­se Kit, levantando uma sobrancelha. —
Um momento. Não tencionas ir, pois não?
— A não ser que tenhas outra pista, terei de o fazer.
E antes que me perguntes, ela deixou bem claro que
tenho de ir sozinho.
Kit fez uma careta e bebeu um gole de vinho.
— O Cavaleiro da Bravura emprestou-te a sua
espada, meu amigo.
Algures nas montanhas, um wyvern soltou um grito
de guerra. Loth sentiu um arrepio gelado percorrer-lhe as
costas.
— Então — disse Kit, e aclarou a voz —, Aubrecht
Lievelyn. O ex-prometido da nossa querida Donmata com
cabeça de wyrm.
— Sim. — Loth olhou para o céu sem estrelas. —
Lievelyn parece ser uma escolha respeitável. Pelo que
ouvi, é boa pessoa, e virtuoso. Será um bom
companheiro para Sab.
— Sem dúvida, mas agora terá de casar com ele
sem o seu melhor amigo a seu lado.
Loth assentiu, perdido em recordações. Ele e Sabran
haviam prometido um ao outro que, quando casassem,
acompanhar-se-iam um ao outro ao altar. Perder a
cerimónia era o derradeiro golpe da navalha.
Ao ver-lhe a expressão, Kit soltou um suspiro teatral.
— Pobres de nós — disse ele —, também fiz uma
promessa solene a mim próprio: se a Rainha Sabran
casasse, convidaria Kate Withy para dançar comigo, e
depois revelar-lhe-ia que era eu o homem misterioso que
lhe enviara todos aqueles poemas de amor nos últimos
três anos. Agora, nunca saberei se teria a coragem de o
fazer.
Loth permitiu que Kit o distraísse enquanto
terminavam o jantar. Era uma sorte o seu amigo estar
com ele naquela viagem. Sem ele, já teria enlouquecido.
À meia-noite, os yscals começaram a retirar-se e o
palácio ficou em silêncio. Kit regressou ao seu quarto,
depois de ter feito Loth prometer que lhe bateria à porta
quando voltasse da reunião.
Em Cárscaro, um sino tocava de hora a hora. Pouco
antes das três ho­ras, Loth levantou-se e colocou a sua
adaga no cinto. Pegou numa vela de fogo vermelho de
um dos castiçais e saiu para o corredor.
A Biblioteca de Isalarico formava o núcleo do Palácio
da Salvação.
Ao aproximar-se das suas portas, Loth quase ignorou o
corredor que se abria à sua esquerda. Aproximou-se da
porta ao fundo, encontrou a chave na fechadura e entrou
na escuridão do Santuário Real.
A luz trémula da sua vela revelou um teto abobadado.
O chão estava coberto de estátuas partidas e livros de
orações. Entre os destroços, ha­via um retrato da Rainha
Rosarian, com o rosto cortado de modo que ficasse
irreconhecível. Todos os vestígios do Reino das Virtudes
haviam sido guardados lá dentro e trancados.
Conseguiu distinguir uma silhueta junto aos vitrais, ao
fundo. A figura segurava uma vela com uma chama
natural. Quando se aproximou o suficiente para lhe poder
tocar, Loth quebrou o silêncio. — Senhora Priessa.
— Não, Lorde Arteloth — disse ela, baixando o capuz.
— Estais diante de uma Princesa do Ocidente.
A luz clara da vela que ela segurava, Loth pôde
observar-lhe as fei­ções. Pele castanha e sobrancelhas
escuras e espessas. Um nariz aquilino. O seu cabelo,
como veludo preto, tão comprido que lhe passava dos co­‐
tovelos, e os seus olhos de uma cor âmbar
impressionante, como topázio. Eram os olhos da Casa de
Vetalda.
— Donmata — murmurou Loth.
Ela susteve-lhe o olhar.
A única herdeira do Rei Sigoso e da falecida Rainha
Sahar. Só tinha encontrado Marosa Vetalda uma vez,
aquando da sua visita a Inys para celebrar o milésimo
aniversário da Fundação de Ascalon. Na altura, ain­da
estava noiva de Aubrecht Lievelyn.
— Não percebo — disse ele, segurando a vela com
mais força. — Porque é que estais vestida de dama de
companhia?
— Priessa é a única pessoa em quem confio. Ela
empresta-me o seu uniforme para que eu possa circular
pelo palácio sem ser notada.
— Fostes vós quem nos veio buscar a Perunta?
— Não. Foi a Priessa. — Loth quis voltar a falar, mas
ela pôs-lhe um dedo enluvado nos lábios. — Ouça bem,
Lorde Arteloth. Yscalin não adora apenas o Inominável.
Também estamos sob o domínio draconia­no. Fýredel é o
verdadeiro rei de Yscalin, e os seus espiões espreitam
por toda a parte. Foi por isso que tive que agir da
maneira que agi na sala do trono. É tudo uma encenação.
— Mas...
— Procurais o Duque da Temperança. Fynch está
morto, e tem estado morto há meses. Enviei-o numa
missão, em nome do Reino das Virtudes, mas... ele não
regressou.
— O Reino das Virtudes. — Loth estacou a olhar para
ela. — Que quereis de mim?
— Quero a vossa ajuda, Lorde Arteloth. Quero que
façais por mim o que Wilstan Fynch não conseguiu.

***

O verão estava a chegar ao fim. A brisa era fresca e os


dias ficavam mais curtos. Na Biblioteca Privada, Margret
mostrara a Ead um aglomerado de joaninhas numa
estante, e souberam que estava na altura de viajar rio
abaixo.
Um dia depois, Sabran decretou que a corte se iria
mudar para o Palácio de Briar, uma das mais antigas
residências reais de Inys. Fora construído durante o
reinado de Marian a Segunda, e estendia-se dos
arredores de Ascalon aos antigos terrenos de caça da
floresta de Chesten.
A corte costumava mudar-se para lá no outono, mas
como Sabran decidira casar com Lievelyn no Santuário
de Briar, a mudança teria de ser antecipada.
A deslocação da corte era sempre um caos de
preparativos. Ead foi com Margret e Linora numa das
muitas carruagens. Os seus bens, car­regados em baús,
iriam noutra.
Sabran seguira com Lievelyn numa carruagem de
rodas douradas. A procissão atravessou a Berethnet Mile,
a grande avenida que cruzava a capital, e o povo de
Ascalon saiu para as ruas para aplaudir a sua rainha e o
próximo príncipe consorte.
O Palácio de Briar era mais acolhedor do que o Palácio
de Ascalon. As suas janelas eram feitas de vidro florestal,
os corredores revestidos a pedra cor de mel, formando
padrões axadrezados, e as paredes eram de tijolo preto,
ideal para reter o calor. Ead gostava muito.
Dois dias após a chegada da corte, realizou-se um
baile na Câmara de Presença, à luz das velas. Nessa
noite, a rainha decidira que as suas damas de companhia
e camareiras se divertiriam enquanto ela ficaria a jogar
às cartas com as suas Damas do Leito Real.
Um conjunto de cordas tocava uma música suave. Ead
bebeu um gole do seu vinho quente. Era uma sensação
estranha: quase parecia errado estar ali, e não com a
rainha. A Câmara Privada do Palácio de Briar era
acolhedora, com as suas estantes de livros, a sua lareira
e o virginal que Sabran tocava. Mas a sua música
tornara-se cada vez mais melancólica, e ela ria cada vez
menos.
Ead olhou para o outro lado da sala. Lorde Seyton
Combe, o Falcão da Noite, estava a observá-la.
Ela virou-se como se não o tivesse visto, mas isso
apenas o fez aproximar-se.
— Senhora Duryan — saudou. Usava um colarinho de
libré com um pingente em forma de um livro de boas
maneiras. — Boa noite.
Ead fez uma vénia e adotou uma máscara de
indiferença. Podia es­conder o seu ódio por ele, mas
também não iria sorrir-lhe.
— Boa noite, Excelência.
Seguiu-se um longo silêncio. Combe perscrutou-a com
os seus estra­nhos olhos cinzentos.
— Tenho a sensação de que não me tendes em grande
conta, senhora Duryan.
— Não penso em vós com frequência suficiente para
ter formado opinião alguma, Excelência.
O canto da sua boca estremeceu.

— Um bom golpe.

Ead não se desculpou.

Um pajem ofereceu-lhes vinho, mas Combe recusou


com um gesto.

— Não quereis uma taça, meu senhor? —


perguntou Ead, mostrando-se cortês, embora, na sua
imaginação, o visse num dos seus próprios aparelhos de
tortura.

— Nunca. Tenho de manter os olhos e ouvidos


atentos a todo o mo­mento, para proteger a rainha do
perigo, e a bebida é ideal para entor­pecer ambos os
sentidos. — Combe suavizou a voz. — Quer penseis em
mim, quer não, queria apenas assegurar-vos de que
tendes em mim um amigo. Outros podem murmurar
sobre vós, mas vejo que Sua Majestade valoriza tanto os
vossos conselhos como os meus.

— É muito amável da sua parte.

— Não se trata de amabilidade. É a verdade. Agora,


com a vossa licença — disse ele, e fez uma reverência de
despedida. Afastou-se por entre a multidão, e Ead ficou a
pensar. Combe não fazia nada sem um objetivo em
mente. Talvez tivesse falado com ela porque precisava de
um novo espião. Talvez pensasse que Ead poderia obter
informações sobre o Ersyr de Chassar e depois transmiti-
las a ele.

Só por cima do meu cadáver, ave de rapina.

Aubrecht Lievelyn ocupava um dos assentos de


honra. Enquanto Sabran estava isolada nos seus
aposentos, o seu noivo estava sempre en­tre os seus
súbditos, encantando o povo de Inys com o seu
entusiasmo. Naquele momento, estava a falar com as
suas irmãs, acabadas de chegar de navio de Zeedeur.

As Princesas Bedona e Betriese, gémeas, tinham


vinte anos. Pareciam passar o dia a rir de segredos
apenas conhecidos por duas pessoas que tivessem
partilhado o mesmo ventre.
A Princesa Ermuna, a primogénita, era um ano mais
velha do que Sabran. Era idêntica ao irmão, alta e
imponente, e tinha a mesma pele pálida. Uma espessa
cabeleira carmesim ondulada caía-lhe até às ancas. A
abertura nas suas mangas revelava um forro de seda
dourada com seis botões de brocado, cada um
representando uma virtude. As damas de companhia de
Inys já começavam a atar fitas aos botões das suas pró­‐
prias mangas, para a imitar.
— Senhora Duryan.
Ead virou-se e fez uma vénia.
— Vossa Graça.
Diante de si estava Aleidine Teldan utt Kantmarkt,
duquesa viúva de Zeedeur e avó de Truyde. Nos lóbulos
das orelhas usava rubis do tama­nho de moedas.
— Tinha muita curiosidade em conhecer-vos — disse
ela, com uma voz suave e límpida. — O Embaixador uq-
Ispad diz que sois o seu maior motivo de orgulho. Um
modelo de virtude.
— Sua Excelência é demasiado gentil.
— A Rainha Sabran também fala bem de vós. Agrada-
me ver que uma convertida pode viver em paz aqui. —
Lançou um olhar rápido aos lugares de honra. — Somos
mais tolerantes em Mentendon. Espero que a nossa
influência atenue o tratamento dos céticos e dos
apóstatas neste país.
Ead bebeu.
— Posso perguntar-vos como conhece Sua Excelência,
Vossa Graça? — perguntou, tentando passar para um
assunto mais seguro.
— Conhecemo-nos em Brygstad há muitos anos. Ele
era amigo do meu companheiro, o falecido Duque de
Zeedeur — respondeu ela. Sua Excelência esteve
presente no funeral de Jannart.
— As minhas condolências.
— Obrigada. O duque era um bom homem, e um pai
dedicado a Oscarde. Truyde é parecida com ele. — Ao
olhar para a neta, que conversava animadamente com
Chassar, o seu rosto contraiu-se de tristeza. — Perdoai-
me, senhora Duryan...
— Sentai-vos comigo, Vossa Graça — convidou Ead,
conduzindo-a para um escano. — Rapaz, vai buscar mais
vinho para a minha senhora — ordenou a um criado, que
foi a correr cumpri-la.
— Obrigada — disse a duquesa viúva, dando-lhe uma
palmadinha na mão, enquanto Ead se sentava a seu
lado. — Eu estou bem. — Aceitou o vinho do pajem. —
Como eu estava a dizer, Truyde... Truyde é a cara
chapada de Jannart. Ela também herdou o seu amor
pelos livros e pela linguagem. Ele tinha tantos mapas e
manuscritos na sua biblioteca que, depois da sua morte,
mal sabia onde os pôr. Claro que deixou a maior parte
deles a Niclays.
Outra vez aquele nome.

— Referis-vos ao Doutor Niclays Roos?

— Sim. Era um grande amigo de Jannart. — Fez


uma pausa. — E meu. Embora ele não o soubesse.

— Esteve cá no primeiro ano em que estive na


corte. Tive pena de o ver partir.
— Não foi de sua livre vontade — disse a duquesa
viúva, aproximando-se até que Ead conseguiu sentir-lhe
o cheiro a alecrim. — Isto é algo que não posso contar a
ninguém... mas o Embaixador uq-Ispad é um velho
amigo, e parece confiar em vós. — Abriu o seu leque e
cobriu os lábios com ele. — Niclays foi enviado para o
exílio porque não conseguiu fazer um elixir da vida para
a Rainha Sabran.

Ead tentou não alterar a sua expressão.

— Sua Majestade pediu-lhe que o fizesse?

— Oh, sim. Ele veio a Inys no décimo oitavo


aniversário da rainha, pouco depois da morte de Jannart,
e ofereceu os seus serviços como alquimista.

— Em troca do seu patrocínio, suponho.

— Exato.
Muitos soberanos procuraram a água da vida.
Explorar o medo da morte devia ser um negócio
lucrativo, e havia rumores na corte de que Sabran tinha
medo de dar à luz. Roos aproveitara-se de uma jovem
rainha, deslumbrando-a com os seus conhecimentos de
ciência. Um charlatão.
— Niclays não era um vigarista — disse a duquesa
viúva, como se pudesse ler a mente de Ead. — Ele
acreditava mesmo que o conseguia fazer. Aquele elixir foi
a sua paixão durante décadas. Sua Majestade concedeu-
lhe grandes aposentos e uma oficina no Palácio de
Ascalon. Pelo que ouvi, ele perdeu-se no vinho e no jogo.
E usava o salário da rainha para cobrir essas despesas.
— Fez uma pausa para encher a sua taça. — Passados
dois anos, Sabran decidiu que Niclays a tinha enga­nado.
Exilou-o e decretou que nenhum país que quisesse ser
seu amigo lhe poderia dar abrigo. O falecido Príncipe
Leovart decidiu mandá-lo para Orisima.
A estação de comércio.
— Suponho que Sua Majestade não cedeu desde
então. — Não. Ele está lá há sete anos.
Ead levantou as sobrancelhas.
— Sete?
Pelo que tinha ouvido, Orisima era uma ilha minúscula
(embora tal­vez «ilha» fosse um nome demasiado grande
para a descrever) que de­pendia do porto seiikine de
Cabo Hisan. Sete anos ali poderiam levar qualquer um à
loucura.
— Sim — confirmou a duquesa viúva, estudando a sua
reação. — Implorei ao Príncipe Aubrecht que o trouxesse
para casa, mas ele ape­nas o fará se a Rainha Sabran o
perdoar.
— Não o achais merecedor do exílio, Vossa Graça?
Depois de alguma hesitação, a duquesa respondeu:
— Acho que já foi suficientemente castigado. Niclays é
um bom ho­mem. Se não tivesse ficado tão abatido com a
morte de Jannart, penso que não se teria comportado
assim. Ele queria afastar-se de tudo.
Ead pensou no nome que estava no livreto herético de
Truyde. Niclays, Pretendia a jovem usar Roos no seu
plano?
— Suponho que a vossa neta também conheça o Dr.
Roos — afirmou.
— Oh, sim. Niclays era como um tio para ela quando
era jovem. — A duquesa fez outra pausa. — Estou ciente
de que tendes alguma influência junto de Sua Majestade,
sendo uma das suas damas. Ela deve valorizar as vossas
opiniões.
Finalmente, Ead compreendeu porque quisera a nobre
falar com ela.
— Nós, Teldan utt Kantmarkt, entendemos de negócios
— disse a duquesa viúva, em voz baixa. — Se lhe
falardes de Niclays, posso tornar-vos rica, senhora
Duryan.
Devia ter sido o que acontecera a Roslain e Katryen.
Um pedido a meia voz, um elogio, uma sugestão
sussurrada a Sabran. O que Ead não entendia era o
porquê de ter sido ela a escolhida.
— Não sou Dama do Leito Real — disse ela. — Não
creio que Sua Majestade preste muita atenção ao que eu
digo.
— Sois demasiado modesta — respondeu a duquesa.
— Vi a rainha a passear convosco nos jardins esta
manhã.
Ead bebeu um gole de vinho para dar tempo a si
própria.
Não se podia envolver em assuntos como aquele.
Seria uma loucura defender alguém que Sabran
detestava, agora que a rainha começava a demonstrar o
mínimo interesse por ela.
— Não vos posso ajudar, Vossa Graça. Seria muito
mais útil para si pedir à senhora Roslain ou à senhora
Katryen — respondeu, e fez uma vénia. — Perdoai-me.
Tenho assuntos para tratar.
E antes que a duquesa viúva pudesse insistir, dirigiu-
se para a porta.

***

O Quarto de Leito Real do Palácio de Briar era muito


mais pequeno do que o do Palácio de Ascalon. O teto era
baixo, as paredes forradas com painéis de carvalho
escuro e cortinas vermelhas rodeavam a cama. Ead
chegou cedo, mas encontrou Margret já sentada lá
dentro.
— Ead — disse ela, a voz um pouco rouca devido à
constipação que se espalhara pela corte. — Bem,
estragaste a minha surpresa. Esperava ter a cama pronta
quando chegasses.
— Para que pudesse continuar a ter conversas
frívolas com nobres que mal conheço?
— Para que pudesses dançar. Antigamente adoravas
dançar.
— Isso era quando a visão do Falcão da Noite não me
dava a volta ao estômago, como agora.
Margret fez uma careta e levantou-se com uma carta
na mão.
— É de casa? — perguntou Ead.
— Sim. A mamã diz que o papá anda a dizer que me
quer ver há semanas. Parece que tem algo importante
para me dizer, mas não posso ir-me embora agora, da
maneira como as coisas estão.
— Sabran dar-te-ia permissão.
— Eu sei, mas a mamã insiste para que eu fique. Diz
que o papá pro­vavelmente não faz ideia do que está a
dizer e que é meu dever ficar, embora a verdade seja
que creio que ela vive através de mim. — Com um
suspiro, Margret voltou a enfiar a carta debaixo do
corpete. — Sabes... sou tão tola por pensar que o Mestre
dos Correios me traria algo de Loth.
— Talvez ele te tenha escrito — disse Ead, ajudando-a
a levantar uma colcha de fustão. — Combe interceta
todas as cartas.
— Então talvez eu devesse escrever-lhe uma carta a
expressar-lhe o canalha que é — murmurou Margret.
Ead sorriu.
— Pagaria para ver. Por falar nisso — acrescentou,
baixando a voz —, acabaram de me oferecer algum
dinheiro, em troca de interceder por alguém junto da
rainha.
Margret olhou para ela com as sobrancelhas
levantadas.
— Quem?
— A Duquesa de Zeedeur. Quer que eu fale bem de
Niclays Roos.
— Isso não lhe servirá de nada. O Loth contou-me.
Sabran odeia-o com todas as suas forças. — Margret
olhou para a porta. — Tem cuida­do, Ead. A rainha não diz
nada à Ros e à Kate, mas não é tola nenhuma. Consegue
perceber quando os comentários são demasiado
benevolentes.
— Não tenho intenções de jogar esses jogos —
garantiu Ead, tocando-lhe no cotovelo. — Tenho a certeza
de que o Loth vai ficar bem, Meg Agora já sabe que o
mundo é mais perigoso do que parece.
Margret resfolegou.
— Julga-lo mais esperto do que ele é. O Loth confiaria
em qualquer pessoa que lhe sorrisse.
— Eu sei. — Ead agarrou-a pelos ombros e levou-a até
à porta. — Vá lá, vai ao baile e bebe um vinho quente.
Tenho a certeza de que o Capitão Lintley ficará contente
por te ver.
— O Capitão Lintley?
— Sim, o galante Capitão Lintley.
Margret saiu, com os olhos um pouco marejados.
Ead não via Linora em lado nenhum, por isso teve a
certeza de que ainda estaria a dançar. Fechou o Quarto
de Leito Real. Ao contrário do que acontecia no Palácio
de Ascalon, aquele tinha duas entradas. A Porta Grande
era para a rainha; a Porta Menor era para o seu consorte.
Não ocorrera nenhum atentado contra a vida de
Sabran desde o anúncio do seu noivado, mas Ead sabia
que seria apenas uma questão de tempo. Procurou
debaixo da cama de penas, atrás das cortinas, pro­curou
em todas as paredes, nas tapeçarias e nas tábuas do
chão. Tinha a certeza de que não havia uma terceira
entrada secreta, mas a possibi­lidade de ter deixado algo
escapar corroía-lhe as entranhas. Pelo menos, Chassar
havia colocado novos guardas nas entradas, mais fortes
do que os seus. E havia comido da fruta recentemente.
Ead esvaziou as pequenas almofadas e repôs o que
faltava no armá­rio. Estava a reabastecer o braseiro da
cama quando Sabran entrou no quarto. Ead levantou-se e
fez uma vénia.
— Vossa Majestade.
Sabran olhou-a de alto a baixo com os olhos
entreabertos. Usava um vestido sem mangas por cima da
túnica de dormir e uma faixa azul à volta da cintura. Ead
nunca a tinha visto tão pouco vestida.
— Perdoai-me — disse Ead, para preencher o
silêncio. — Pensei que só vos iríeis recolher mais tarde.
— Não tenho dormido muito bem ultimamente. O
Doutor Bourn diz-me que deveria recolher-me pelas dez
horas, para ter um pouco de paz e sossego, ou algo do
género — disse Sabran. — Conheces algum remédio para
as insónias, Ead?
— Haveis tomado já alguma coisa, senhora?
— Água do sono. Por vezes gemada quente com
vinho, se a noite estiver fria.
Água do sono era o nome dado em Inys à infusão de
erva-gato. Embora tivesse propriedades medicinais, era
evidente que não estava a fazer grande efeito.
— Recomendaria alfazema, açafrão-da-terra e raiz
de grialina cozi­dos em leite — sugeriu Ead —, com uma
colher de água de rosas.
— Água de rosas.
— Sim, minha senhora. No Ersyr, dizem que o aroma
das rosas ajuda a ter bons sonhos.
Lentamente, Sabran desabotoou a sua cinta.
— Experimentarei o teu remédio. Até agora, nada
funcionou — con­fessou a rainha. — Quando a Kate
chegar, diz-lhe o que deve trazer.
Ead aproximou-se com um leve aceno de cabeça e
tirou-lhe a cinta das mãos. Ao aproximar-se, viu que
Sabran tinha olheiras.
— Há alguma coisa que vos preocupe, Majestade? —
questionou Ead, ajudando-a a despir o vestido. — Algo
que vos perturba o sono?
Perguntara-o por educação, sem esperar uma
resposta. Mas, para sua surpresa, Sabran respondeu.
— O wyrm — disse, o olhar cravado no fogo. — Ele
disse que os mil anos estavam prestes a terminar. Foi há
pouco mais de mil anos que o meu antepassado derrotou
o Inominável.
O seu sobrolho franziu-se. Ali de pé, na sua túnica de
dormir, parecia tão vulnerável como teria parecido ao
assassino quando ele a fitara.
— Os wyrms tem línguas bifurcadas e traiçoeiras,
senhora — disse Ead, pendurando o vestido no encosto
de uma cadeira. — O Fýredel ainda está fraco por causa
da letargia. O seu fogo ainda não arde com intensidade.
Teme a união de Berethnet e Lievelyn. E fala por enigmas
para semear a dúvida em vós.
— Bem, e conseguiu. — Sabran deitou-se na cama. —
Parece que vou ter de me casar. Para o bem de Inys.
Ead não sabia qual seria a resposta aceitável para
aquilo.
— Não desejais casar-vos, Majestade? — perguntou
por fim.
— Isso não importa.
Sabran detinha poder sobre todas as coisas, exceto
sobre isto. Para conceber uma herdeira legítima do trono,
teria de casar.
Ead teria desejado que Roslain ou Katryen estivessem
ali naquele mo­mento. Teriam sido capazes de acalmar os
receios da rainha enquanto lhe escovavam o cabelo
antes de se deitar. Elas sabiam sempre o que dizer, como
confortá-la, para a tranquilizar e assegurar o seu noivado
com o Príncipe Aubrecht.
— Tens sonhos, Ead?
A pergunta foi inesperada, mas Ead não perdeu a
compostura.
— Sonho com a minha infância — respondeu —, com
tudo o que vi durante o dia, cenas que se entrelaçam
para criar novas imagens.
— Gostava de ter esses sonhos também. Eu sonho...
coisas terríveis — murmurou Sabran. — Não conto às
minhas Damas da Câmara Privada, porque acho que as
assustaria, mas... conto-te a ti, Ead Duryan, se qui­seres
ouvir. És feita de um material mais duro.
— Com certeza.
Ead sentou-se no tapete junto à lareira, perto de
Sabran, que se sentou com as costas muito rígidas.
— Sonho com uma pérgula sombria na floresta, onde
a luz do Sol se filtra, salpicando a relva. A entrada é um
portal de flores roxas... flores de sabra, creio.
Aquelas flores cresciam no fim do mundo conhecido.
Dizia-se que o seu néctar brilhava como a luz das
estrelas. Naquelas latitudes, eram consideradas flores
lendárias.
— Tudo na pérgula é belo e agradável ao ouvido. Os
pássaros têm um canto adorável e a brisa é quente, mas
o caminho para onde me conduz está coberto de sangue.
Ead assentiu para a tranquilizar, embora no fundo
já pressentisse al­guma coisa.

— No fim do caminho, encontro uma grande rocha


— continuou Sabran — e tento tocar-lhe com uma mão
que não parece minha. A rocha parte-se em duas, e lá
dentro... — A sua voz tremeu. — Lá dentro...
Não era permitido às cortesãs tocar na realeza. E,
no entanto, ao ver aquele rosto abatido, Ead não pôde
deixar de estender a mão e pegar na de Sabran.

— Minha senhora — confortou-a. — Eu estou aqui.

Sabran olhou para cima. Passou um momento.


Lentamente, pousou a outra mão em cima da sua,
envolvendo os dedos de ambas.

— O sangue começa a jorrar da fenda,


encharcando-me os braços, a barriga. Dou um passo em
frente, atravesso a rocha, e dou por mim num círculo de
túmulos, como os do Norte. E à minha volta há uma pilha
de ossos no chão. Ossos pequenos. — Os seus olhos
fecharam-se e os lábios tremeram. — Ouço uma
gargalhada terrível e percebo que a gargalhada é minha.
E depois acordo.
Ead olhou para a rainha.
Sabran tinha razão. Roslain e Katryen teriam ficado
assustadas.
— Não é real — garantiu Ead, apertando-lhe as mãos.
— Nada disso é real.
— Há uma história neste país sobre uma bruxa —
disse Sabran, de­masiado mergulhada nas suas memórias
para a ouvir. — Ela raptava crianças e levava-as para a
floresta. Conhece-la, Ead?
Ead levou um momento para responder:
— A Dama da Floresta.
— Suponho que o Lorde Arteloth te tenha falado dela,
tal como me falou a mim.
— A senhora Margret.
Sabran assentiu, com o olhar vazio.
— Contam-na a todas as crianças do Norte.
Advertem-nas a ficar longe da floresta de Haithwood,
onde ela se escondia. Ela viveu muito antes da minha
antepassada e, no entanto, o medo dela permanece vivo
entre os meus súbditos — disse, com pele de galinha no
pescoço. — A minha mãe contava-me histórias do mar,
não da terra. Nunca acreditei na Dama da Floresta. Agora
receio que tenha existido uma bruxa, e que ela ainda
esteja viva, a lançar os seus feitiços sobre mim.
Ead não disse nada.
— Esse é apenas um dos sonhos — disse Sabran. —
Outras noites, so­nho com o parto. Como acontece desde
que tive o meu primeiro sangue. Vejo-me ali, em agonia,
enquanto a minha filha tenta sair de dentro de mim.
Sinto-a a rasgar o meu corpo, como uma faca a
atravessar a seda. E entre as minhas pernas, pronto para
a devorar, está o Inominável.
Pela primeira vez nos seus oito anos na corte, Ead viu
lágrimas nos olhos de Sabran.
— O sangue continua a escorrer, quente como o ferro
na forja. Agarra-se às minhas coxas, colando-se a elas.
Sei que estou a esmagar a minha filha, mas se a deixar
respirar... cairá nas garras da besta. — Sabran fechou os
olhos. Quando os abriu de novo, estavam secos. — Esse
é o pesadelo que mais me persegue.
O peso da coroa cobrara o seu preço.
— Os sonhos mergulham no mais profundo do nosso
passado — dis­se Ead com suavidade. — O Lorde Arteloth
contou-vos a história da Dama da Floresta, e agora essa
história voltou para vos assombrar. A mente às vezes
viaja para lugares estranhos.
— Dar-te-ia razão — disse Sabran — se não tivesse
tido ambos os so­nhos muito antes de o Lorde Arteloth ter
partilhado essa história comigo.
Certa vez, Loth contara a Ead que Sabran não
conseguia dormir sem uma vela acesa. Agora, percebia
porquê.
— Como vês, Ead — disse a rainha —, não durmo
apenas por medo dos monstros que espreitam à minha
porta, mas também pelos monstros que a minha própria
mente evoca. Os que vivem dentro de mim.
Ead apertou-lhe um pouco mais a mão.
— Sois a rainha de Inys. Toda a vossa vida soubestes
que um dia usaríeis a coroa. — Sabran observou-lhe o
rosto. — Temeis pelo vosso povo, mas não o podeis
mostrar aos vossos cortesãos. De dia, envergais uma
armadura tão pesada que à noite já não a conseguis
carregar. À noite, sois apenas carne e osso. E um ser de
carne e osso, ainda que uma rainha, pode sentir medo.
Sabran escutou-a. As suas pupilas estavam tão
dilatadas que quase eclipsavam o verde dos seus olhos.
— Na escuridão, estamos nus. Somos nós próprios. É à
noite que o medo assume a sua maior expressão, quando
não temos medo de o combater — prosseguiu Ead. —
Fará tudo o que puder para entrar em vós. Por vezes,
poderá conseguir, mas nunca devereis pensar que sois a
noite.
A rainha pareceu pensar nisso. Olhou para as suas
mãos e traçou um círculo com o polegar sobre a palma
de Ead.
— Mais palavras de sabedoria — disse ela. — Aprecio-
as bastante, Ead Duryan.
Ead olhou-a nos olhos. Imaginou duas pedras
preciosas a cair no chão, estilhaçando-se por dentro.
Esses eram os olhos de Sabran Berethnet.
Passos soaram para lá da porta. Ead pôs-se de pé e
juntou as mãos à frente do corpo no momento em que
Katryen entrou, trazendo no braço a senhora Arbella
Glenn, que já estava de túnica de noite. Sabran esten­deu
a mão à sua companheira de cama mais velha.
— Bella — disse —, vem comigo. Quero falar contigo
sobre os pre­parativos do casamento.
Arbella sorriu e coxeou até à sua rainha, que a pegou
pela mão. Com um gesto carinhoso e os olhos húmidos,
Arbella pôs uma madeixa de cabelo preto atrás da
orelha, como uma mãe que cuida da filha.
— Bella — murmurou Sabran —, nunca mais chores.
Não o consigo suportar.
Ead saiu em silêncio.
Quando Sabran e Arbella estavam na cama, Ead
contou a Katryen sobre a infusão e, embora a Senhora
dos Trajes parecesse cética, mandou buscar os
ingredientes. Assim que a infusão foi provada e entregue,
os aposentos reais foram selados e Ead preparou-se para
a vigília noturna.
Kalyba.
Era esse o nome da Dama da Floresta em Lasia. Mal
sabiam os inysh que a bruxa continuava bem viva, ainda
que estivesse longe. E que a entrada para o seu covil
estava protegida por flores de sabra.
Sabran nunca havia visto a Pérgula da Eternidade. Se
estava a sonhar com ela, então algo se passava.
As horas passaram lentamente. Ead permaneceu
imóvel, atenta a qualquer movimento nas sombras ou ao
luar.
O siden permitia-lhe confundir-se com a escuridão. Um
assassino por mais habilidoso que fosse, não possuía
esse dom. Se outro se aproximasse de qualquer uma das
portas, ela vê-lo-ia.
Por volta da uma hora, Roslain Crest, que também
estava de guarda noturna, apareceu com uma vela.
— Senhora Duryan.
— Senhora Roslain — respondeu ela, e ficaram ambas
em silêncio durante alguns instantes.
— Não me julgueis alheia às vossas intenções — disse
Roslain. — Sei perfeitamente o que estais a fazer. Assim
como a senhora Katryen.
— Não sabia que vos tinha ofendido, minha...
— Não me tomeis por tola. Vejo que vos estais a
aproximar cada vez mais da rainha. Sei que quereis
ganhar o seu favor. — Na escuridão, os seus olhos
pareciam tão escuros como safiras. — A senhora Truyde
disse que éreis uma feiticeira. Não consigo imaginar
porque faria tal acusação sem motivo.
— Recebi as esporas e a faixa. Renunciei à falsa fé do
Cantor da Alvorada — disse Ead. — O Cavaleiro da
Camaradagem diz-nos para darmos as boas-vindas aos
convertidos. Talvez devêsseis ouvi-lo com mais atenção,
minha senhora.
— Sou descendente direta do Cavaleiro da Justiça.
Cuidado com a forma como falais comigo, senhora
Duryan.
Fez-se silêncio novamente.
— Se realmente tendes boas intenções — começou
Roslain, baixan­do a voz —, não me importo com a vossa
nova posição. Ao contrário de muitos inysh, não tenho
nada contra os convertidos. Somos todos iguais aos olhos
do Santo. Mas se procurais apenas presentes e riquezas,
far-vos-ei ser afastada do seu lado.
— Não procuro presentes e riquezas. Apenas quero
servir o Santo da melhor maneira possível — disse Ead.
— Não podemos pelo menos concordar que é do seu
interesse que mais nenhum amigo seja tirado do seu
lado?
Roslain desviou o olhar.
— Sei que Loth gostava de vós — disse, e Ead achou
que aquilo lhe custara dizer. — Só por isso já mereceis a
minha melhor considera­ção. — Com ainda mais
dificuldade, prosseguiu. — Perdoai a minha desconfiança.
Preocupa-me ver todas aquelas víboras à sua volta, que
pensam em ascender...
Ouviu-se um grito no Quarto de Leito Real. Ead virou-
se subitamente para a porta, o coração aos saltos.
As suas proteções não haviam detetado movimento.
Nenhum assassi­no poderia ter entrado.
Roslain olhou para ela, os lábios entreabertos e o
olhar atónito. Ead agarrou a chave da mão paralisada de
Roslain e subiu as escadas a correr.
— Rápido, Ead, abri-a! — gritou Roslain — Capitão
Lintley! Sir Gules!
Ead rodou a chave na fechadura e abriu a porta. O
fogo ainda crepi­tava no braseiro.
— Ead. — Um vulto moveu-se na cama. — Ead, Ros,
por favor, têm de acordar a Arbella. — Era Sabran, com o
cabelo em trança e algumas madeixas desgrenhadas. —
Acordei, dei-lhe a mão e ela estava gelada...
— Soluçou. — Oh, Santo, não me digam que...
O Capitão Lintley e Sir Gules Heath apareceram à
porta com as es­padas desembainhadas.
— Pelo Santo, senhora Roslain, ela está ferida? —
gritou Heath.
Enquanto Roslain corria para o lado da sua rainha, Ead
contornou a cama, onde uma pequena figura jazia sob a
colcha. Antes mesmo de tentar sentir-lhe o pulso, Ead já
sabia. Quando se virou, fez-se um silên­cio terrível.
— Lamento, Majestade.
Os dois homens baixaram a cabeça. Roslain desatou a
chorar, tapan­do a boca com a mão.
— Não me viu casar — disse Sabran, com a voz
arrastada. Uma lá­grima escorreu-lhe pela face. —
Prometi-lhe que veria.
18
Este

A viagem até à capital foi horrível. Niclays passou dias


a baloiçar no palaquim, sem muito que fazer a não ser
tentar dormir ou olhar para a paisagem através das
frinchas deixadas pelas persianas de madeira. Ginura
ficava a norte de Mandíbula de Urso, a cadeia de
montanhas que protegia Cabo Hisan. A estrada era uma
rota comercial que se es­tendia em linha reta até ao sopé
das montanhas sem encontrar um único cruzamento.
Desde a sua chegada a Seiiki, Niclays sonhava em
visitar Ginura. Na época, ainda estava grato pela
oportunidade de viver num lugar que poucas pessoas no
Ocidente alguma vez veriam.
Lembrava-se de ter sido chamado ao Palácio de
Brygstad, onde Leovart lhe dera a notícia de que Sabran
ordenara a sua expulsão do Reino das Virtudes. Depois
do longo interrogatório a que Seyton Combe o submetera
na Torre Dearn para o interrogar sobre o uso indevido do
dinheiro de Berethnet, pensara que a ira da rainha
diminuiria gradual­mente. Na sua ingenuidade, julgara
que seria um exílio curto.
Só três anos mais tarde é que compreendera que
aquela pequena casa no fim do mundo se tornaria o seu
último lugar de descanso. Foi então que deixou de sonhar
com descobertas e passou a sonhar apenas com o
regresso a casa. Mas agora, sentia despertar a sua antiga
curiosidade de descobrir o mundo.
Na primeira noite da viagem, pararam numa taberna
no sopé das montanhas, onde Niclays pôde banhar-se
numa fonte de água quente. Olhou para cima e viu as
luzes distantes de Cabo Hisan, e a centelha que era
Orisima, e, pela primeira vez em quase sete anos, sentiu
que voltara a respirar.
A sensação não durou muito. Na manhã seguinte, os
cocheiros come­çaram a queixar-se do homem com cara
de coruja que levavam para norte, o espião de um
príncipe que desprezava os dragões, que de cer­teza teria
a peste vermelha no seu hálito. Ele respondeu com
veemên­cia, e o alarido aumentou. Os cocheiros
começaram a cantar sobre um homem insolente de
quem ninguém gostava, que chorava à beira da estrada,
à espera de que as bestas da montanha o atacassem.
— Sim, sim, muito engraçado — gritou-lhes Niclays em
seiikine. — Querem que cante sobre os quatro cocheiros
que caíram de um penhas­co para o rio e nunca mais se
ouviu falar deles?
Isso apenas os fez rir.
Depois desse incidente, muita coisa correu mal. Um
suporte para o palanquim partiu-se («Que o Grande
Kwiriki leve este homem-coruja com ele!») e foram
obrigados a adiar a viagem até encontrarem um car­‐
pinteiro para o reparar. Assim que retomaram caminho,
os cocheiros deixaram-no finalmente dormir.
Quando voltou a ouvir vozes, os seus olhos abriram-
se. Os cocheiros cantavam uma canção de embalar da
Grande Desolação.

Dorme, meu menino, o vento sopra.


Já nem os pássaros cantam.
Não chores mais. As feras do fogo ouvir-nos-ão.
Dorme agora ou vê-los-ás chegar.
Agarra-te a mim e fecha os olhos.

Havia canções de embalar como aquela em


Mentendon. Niclays fez um esforço para se lembrar de
quando era pequeno e a mãe o punha ao colo para o
fazer dormir, enquanto o pai se embebedava o suficiente
para os fazer tremer de medo de que tirasse o cinto e
descarregasse a sua raiva neles. Felizmente, numa
ocasião, embebedara-se tanto que acabara por cair de
um penhasco, pondo fim a esse sofrimento.
Durante algum tempo, viveram em paz. Foi nessa
altura que Helchen Roos se convenceu de que o filho
cresceria e se tornaria sanctário, com­pensando os muitos
pecados do pai. Rezava diariamente para que isso
acontecesse. Mas Niclays tornara-se no que ela via como
um hedonista mórbido, que passava o tempo a cortar
cadáveres ou a mexer em poções como um feiticeiro,
enquanto bebia como uma esponja. (Niclays tinha de
admitir que a impressão da mãe não estava totalmente
errada.) Para ela, a ciência era o maior pecado de todos,
uma profanação da virtude.
Claro que, assim que soube da inesperada amizade de
Niclays com o Marquês de Zeedeur e o Príncipe Edvart,
escreveu-lhe de imediato, exigindo que a convidasse
para a corte, como se os anos que passara a atormentá-
lo nada significassem. Niclays e Jannart divertiam-se a
en­contrar formas originais de destruir as suas cartas.
Ao pensar nisso, não conseguiu deixar de sorrir; era a
primeira vez que sorria em dias. O chilrear dos insetos na
floresta fê-lo voltar a adormecer.
Ao fim de mais dois dias de dores nas costas, em que
pensou que po­deria morrer de calor, de tédio e de
solidão, o palanquim parou. Uma pancada no tejadilho
despertou-o do seu sono.
— Fora.
A porta abriu-se, deixando entrar a luz do Sol. Niclays
saiu do palan­quim, ainda grogue, e aterrou numa poça.
— Pela faixa de Galian...
Um dos cocheiros atirou-lhe o cajado. Voltaram a
carregar o palan­quim e regressaram à estrada.
— Esperem! — gritou. — Eu disse esperem, maldição!
Para onde devo ir?
A sua única resposta foram gargalhadas. Niclays
amaldiçoou-os, pegou no cajado e coxeou em direção à
porta oeste da cidade. Quando chegou, a bainha da sua
túnica estava encharcada e a sua cara coberta de suor. O
sol ardia-lhe no alto da cabeça. Esperava encontrar
soldados, mas como não havia ninguém de armadura,
entrou simplesmente na antiga capital de Seiiki.
O castelo de Ginura era uma estrutura gigantesca. O
complexo de paredes brancas coroava uma grande colina
no centro da cidade. Um amigo dissera a Niclays que os
caminhos nos seus jardins eram feitos de conchas e que
o fosso de água salgada que rodeava o castelo estava
cheio de peixes com corpos tão claros como cristal.
Passou pelos mercados movimentados do que supôs
ser Leito Marinho, o subúrbio mais afastado da cidade. As
suas ruas empedradas estavam repletas de chapéus de
sol de papel encerado, leques e chapéus. As pes­soas que
ali viviam, perto da corte, vestiam tons mais frescos do
que em Cabo Hisan — verdes, azuis e prateados — e
usavam o cabelo oleado e atado em penteados
ostensivos, enfeitados com ornamentos de cristal
marinho, flores de sal e búzios. Aqui, os tecidos das
vestes eram cintilan­tes e lustrosos, de modo que
brilhavam à luz do Sol. Niclays lembrava-se vagamente
de que em Ginura se usavam vestes assim, que davam a
im­pressão de terem saído do mar. Alguns cortesãos até
untavam as pestanas.
À volta do pescoço, as pessoas usavam colares de
coral ou placas de aço dispostas de forma que
parecessem escamas justapostas. Os lábios e as maçãs
do rosto eram adornados com pérolas esmagadas para
as fazer brilhar. A maioria dos cidadãos estava proibida
de usar pérolas do Sol Trémulo, dado que eram símbolo
da realeza e dos eleitos, mas Niclays ouvira dizer que as
pérolas imperfeitas e vazias por dentro eram
frequentemente esmagadas e vendidas como pó aos
ricos.
A sombra de um ácer, duas mulheres brincavam
com uma bola de penas. O sol brilhava nos canais, onde
comerciantes e pescadores des­carregavam as suas
mercadorias em longos barcos de cedro. Era difícil
imaginar que a maior parte daquela cidade fora dizimada
pela Grande Desolação havia séculos.
À medida que caminhava, a inquietação começou a
sobrepor-se à admiração. Os cocheiros — que se
afoguem no Ventre de Fogo — haviam levado consigo a
carta do Governador, juntamente com todos os seus
outros pertences. Isso significava que podia agora ser
considerado um intruso, e dificilmente poderia
apresentar-se no Castelo de Ginura e explicar-se naquele
estado. As sentinelas tomá-lo-iam por um assassino
contratado.
No entanto, não tinha alternativa. Começava a
chamar a atenção. As pessoas olhavam para ele com
alguma apreensão.
— Doutor Roos? — chamou uma voz em mêntico.
Niclays virou-se. Quando viu quem o tinha chamado, o
seu rosto iluminou-se. Um homem magro com óculos de
tartaruga abria caminho por entre a multidão. O seu
cabelo preto, cortado rente, tinha um tom de cinza nas
têmporas.
— Doutor Moyaka — respondeu Niclays, encantado.
— Oh, Eizaru, que bom ver-te!
Finalmente, um pouco de sorte. Eizaru era um
cirurgião talentoso a quem Niclays dera aulas durante
um ano em Orisima. Ele e a filha, Purumé, tinham sido
dos primeiros a inscrever-se nas suas aulas de ana­tomia
e, em toda a sua vida, Niclays nunca conhecera duas
pessoas tão desejosas de aprender. Eles, em troca desse
conhecimento, haviam-lhe ensinado muito sobre a
medicina seiikine. Aqueles encontros haviam sido um
raio de luz na escuridão do seu exílio.
Eizaru abriu caminho por entre a multidão, e os dois
cumprimentaram-se com um aceno de cabeça, mas
depois abraçaram-se. Ao ver que o forasteiro estava com
alguém, a multidão retomou os seus afazeres.
— Meu amigo — disse Eizaru, ainda em mêntico. —
Estava mesmo a pensar escrever-te. Que fazes em
Ginura?
— Devido a várias circunstâncias desagradáveis,
estou a fazer uma pausa em Orisima — disse Niclays em
seiikine. — O honrado Governador de Cabo Hisan decidiu
enviar-me para aqui para me pôr em prisão domiciliária.
— Quem te trouxe aqui não te devia ter abandonado
no meio da rua. Vieste de palanquim?
— Infelizmente, sim.
— Ah, a maior parte desses cocheiros são criminosos
— disse Eizaru, com uma careta. — Por favor, vem até
minha casa, antes que alguém se interrogue sobre a tua
presença aqui. Contarei o sucedido ao Governador de
Ginura.
— É muito simpático da tua parte.
Niclays seguiu Eizaru e, depois de atravessarem uma
ponte, chegaram a uma rua muito mais larga que dava
diretamente para os portões do Castelo de Ginura. Os
músicos tocavam à sombra, enquanto os vende­dores
vendiam as suas amêijoas frescas e uvas do mar.
Niclays nunca tinha visto as famosas árvores sazonais
de Ginura. Os seus ramos formavam um dossel natural
sobre a rua. Naquele momento, ostentavam o habitual
amarelo vivo do verão.
Eizaru vivia numa casa modesta perto do mercado da
seda, junto a um dos muitos canais que atravessam
Ginura. Enviuvara havia uma década, mas a filha ficara
com ele para que pudessem viver juntos a sua paixão
pela medicina. A frente da casa estava coberta de flores
de chuva, e o jardim cheirava a hortelã-brava e hortelã-
roxa e outras ervas.
Foi Purumé quem lhes abriu a porta. Um gato com a
cauda cortada enroscou-se entre os seus tornozelos.
— Niclays! — Purumé sorriu e depois inclinou a
cabeça em sinal de saudação. Usava os mesmos óculos
que o pai, mas o sol escurecera-lhe um pouco mais a
pele, e o seu cabelo era completamente preto, atado
atrás com um lenço. — Entra, por favor. Que prazer
inesperado.
Niclays retribuiu o gesto.
— Perdoa-me o incómodo, Purumé. Eu também não
o esperava.
— Fomos teus convidados em Orisima. Serás sempre
bem-vindo. — Olhou para a sua roupa, suja da longa
viagem, e estalou a língua. — Mas vais precisar de roupa
nova.
— Terei de concordar.
Uma vez lá dentro, Eizaru mandou os seus dois
criados para o poço.
— Descansa um pouco — disse ele a Niclays. —
Depois de tanto viajar, deves estar a sofrer com os
tremores do sol. Irei imediatamente ao Castelo do Rio
Branco e falarei com a honrada Governadora. Depois,
comeremos.
Niclays suspirou, aliviado.
— Isso seria maravilhoso.
Quando os criados voltaram do poço e encheram uma
banheira, Niclays despiu-se e lavou a lama e o suor do
corpo. A água fria pareceu-lhe uma bênção.
Que o Santo o levasse se alguma vez voltasse a viajar
de palanquim. Preferia ser arrastado de volta para
Orisima.
Já recuperado, vestiu a túnica de verão que os criados
lhe haviam deixado no quarto de hóspedes. Na varanda,
esperava-o uma chávena de chá fumegante. Sentou-se a
beber à sombra, observando os bar­cos que passavam no
canal. Orisima parecia-lhe mais distante do que nunca.
— Erudito Doutor Roos.
De repente, voltou a si. Uma das criadas surgira na
varanda.
— O Erudito Doutor Moyaka regressou — anunciou —
e solicita a vossa presença.
— Obrigado.
No piso de baixo, Eizaru aguardava-o.
— Niclays. — Havia um indício de travessura no seu
rosto. — Falei com a honrada Governadora. Ela
concordou em deixar-te ficar aqui comigo e com Purumé
enquanto estiveres na cidade.

— Oh, Eizaru. — Talvez fosse o calor ou o cansaço,


mas as boas novas quase levaram Niclays às lágrimas. —
De certeza que não há problema?

— Claro que não — respondeu Eizaru, conduzindo-o


para a sala ao lado. — Vá lá, vamos. Deves estar faminto.

Os criados fizeram tudo o que podiam para


combater o calor. Todas as portas estavam abertas, as
persianas não deixavam entrar o sol, e havia taças de
água gelada em cima da mesa. Niclays ajoelhou-se no
chão com Purumé e Eizaru, e jantaram carne de vaca,
legumes em conserva, peixe doce, alface-do-mar e
tigelas de algas assadas cheias de ovas de peixe.
Enquanto comiam, falaram do que haviam feito desde a
última vez.
Havia muito tempo que Niclays não desfrutava do
prazer de con­versar com pessoas que pensavam como
ele. Eizaru ainda tinha o seu consultório, que agora
oferecia remédios seiikines e mênticos aos seus
pacientes. Purumé, por sua vez, estava a trabalhar num
preparado de ervas que induzia um sono profundo,
permitindo ao cirurgião remover as camadas de carne do
corpo sem causar dor.

— Chamo-lhe sono florido — disse —, porque o


ingrediente final é uma flor das Montanhas do Sul.
— Na primavera, caminhou durante dias pelas
montanhas para en­contrar essas flores — explicou
Eizaru, sorrindo com orgulho para a filha.
— Parece revolucionário — disse Niclays, espantado.
— Poderias usá-lo para estudar o interior de corpos vivos.
Em Mentendon, tudo o que podemos fazer é abrir
cadáveres. — O seu coração batia com entusias­mo. —
Purumé, deves publicar as tuas descobertas. Pensa em
como isso poderia mudar a anatomia.
— Fá-lo-ia — respondeu ela com um sorriso
preocupado —, mas há um problema, Niclays. A nuvem
de fogo.
— Nuvem de fogo?
— Uma substância restrita. Os alquimistas produzem-
na da bílis das bestas draconianas — explicou Eizaru. —
A bílis é trazida para o oriente por piratas do Sul, tratada
de alguma forma e depois colocada numa esfera de
cerâmica com uma pitada de pólvora. Quando acendem
o ras­tilho, a esfera explode e liberta um fumo negro e
espesso como alcatrão.
Se um dragão o respirar, adormece durante dias.
Depois, os piratas po­dem cortá-lo em pedaços e vender
os órgãos.
— Uma prática maléfica — disse Purumé.
Niclays abanou a cabeça.
— E que tem isso que ver com o sono das flores?
— Se as autoridades presumirem que as minhas
descobertas podem ser usadas para fins semelhantes,
interromperão a minha investigação. Poderão até
encerrar-nos a clínica.
Niclays ficou sem palavras.
— É muito triste — disse Eizaru, com pesar. — Diz-
nos, Niclays, há algum estudo médico seiikine traduzido
para mêntico? Talvez Purumé pudesse publicar aí as suas
descobertas.
Niclays suspirou.
— Duvido, a menos que as coisas tenham mudado
muito nos anos em que estive fora. Há panfletos que
circulam de mão em mão, mas não têm a aprovação da
coroa. O Reino das Virtudes não tolera heresias, nem
hereges.
Purumé abanou a cabeça. No momento em que
Niclays se servia de alguns camarões, um jovem
apareceu à porta, encharcado em suor.
— Erudito Doutor Roos — saudou, curvando-se em
reverência, ain­da ofegante. — Venho em nome da
honrada Governadora de Ginura.
Niclays preparou-se para o pior. Ela devia ter mudado
de ideias e já não queria que ele ficasse naquela casa.
— Pediu-me que o informasse que vos espera no
Castelo de Ginura para uma audiência, quando o honrado
Senhor da Guerra achar por bem concedê-la.
Niclays ergueu as sobrancelhas.
— O honrado Senhor da Guerra deseja ver-me? Tens a
certeza?
— Sim — confirmou o criado, fazendo uma reverência
de despedida.
— Então serás recebido na corte. — Eizaru parecia
divertido. — Prepara-te. Dizem que é como um recife de
flores do mar. Bonito, mas tudo aquilo em que tocares
picar-te-á.
— Não vejo a hora de ir — disse Niclays, embora com
as sobrance­lhas franzidas. — Pergunto-me porque
quererá ver-me.
— O honrado Senhor da Guerra gosta de ouvir os
residentes de Mentendon. Talvez te peça para lhe
contares uma história do teu país, ou para lhe cantares
uma canção. Ou pode querer saber no que estás a
trabalhar — disse Eizaru. — Não precisas de te
preocupar, Niclays, de verdade.
— E até lá, és livre — acrescentou Purumé, os olhos a
brilhar. Deixa-nos mostrar-te a nossa cidade. Podíamos
visitar o teatro, falar de medicina, ver os dragões em
pleno voo... tudo o que desejas fazer desde a tua
chegada.
Niclays ficou tão agradecido que podia ter desatado a
chorar.
— Claro que sim, meus amigos — respondeu. — Nada
me daria mais prazer.
19
Oeste

Loth seguiu a Donmata Marosa por outra passagem.


A luz da tocha ardia-lhe nos olhos enquanto atravessava
as paredes opressivas.
Poucos dias depois de a ter visto pela última vez, ela
voltara a convocá-lo para uma sala escura. Agora,
estavam num labirinto de túneis entre as pa­redes, onde
um sistema inteligente de tubos de cobre transportava a
água quente das fontes termais para os quartos.
No final da passagem havia uma escada em espiral.
A Donmata começou a subir.
— Para onde me levais? — perguntou Loth, inquieto.
— Vamos ver o homem que orquestrou o assassinato
da Rainha Rosarian.
Loth agarrou a tocha com mais força ainda, a mão
banhada em suor.
— A propósito, peço-vos perdão — acrescentou —
por vos ter obri­gado a dançar com Priessa. Era a única
maneira de fazer-vos chegar a mensagem.
— Não podíeis ter-me dado a mensagem na
carruagem?
— Não. Revistaram-na antes de sair do palácio, e o
cocheiro era um espião que devia certificar-se de que
não fugia. Ninguém pode sair de Cárscaro por muito
tempo.
A Donmata tirou uma chave da faixa. Abriu uma
porta e, quando Loth a seguiu, o pó fê-lo tossir. A única
luz no quarto era a da sua tocha. A mobília cheirava a
mofo e a podridão, um odor pungente e avinagrado.
A Donmata retirou o seu véu e pousou-o numa
cadeira. Loth seguiu-a até uma cama com dossel, mal
respirando de medo, e levantou a tocha.
Na cama, encontrava-se uma pessoa de olhos
vendados. Loth discerniu a pele pálida, os lábios escuros
e o cabelo castanho que lhe caía até ao colarinho de uma
túnica de noite carmesim. Tinha grilhetas em ambos os
braços, descarnados e sulcados de linhas vermelhas que
seguiam o contorno das suas veias.
— Que é isto? — murmurou Loth. — É este o
assassino?
A Donmata cruzou os braços. O seu maxilar era uma
linha fina, e os seus olhos mal continham a emoção.
— Lorde Arteloth — disse ela —, apresento-vos o
senhor meu pai, Sigoso o Terceiro da Casa de Vetalda, Rei
Terreno do Reino Draconiano de Yscalin. Ou o que resta
dele.
Loth olhou para o homem com incredulidade.
Nunca tinha visto o Rei Sigoso, nem mesmo antes da
traição de Yscalin, mas nos retratos sempre parecera
saudável e formoso, embora frio, com aqueles olhos
âmbar de Vetalda. Sabran convidara-o várias vezes para
a corte, mas ele sempre preferira enviar representantes.
— Um rei terreno governa como uma marioneta nas
mãos de um wyrm. É um título que Fýredel espera poder
atribuir a todos os gover­nantes do mundo. — A Donmata
rodeou a cama. — O meu pai tem uma forma rara da
peste draconiana. Permite que Fýredel... se comuni­que
com ele, de alguma forma. Vê e ouve no palácio através
dele.
— Quereis dizer que, neste exato momento...
— Calma. Coloquei um sedativo na bebida noturna
dele — disse ela.
— Não o posso fazer com frequência, ou Fýredel
desconfiaria, mas evita que ele o use. Por um tempo.
Ao som da sua voz, Sigoso mexeu-se um pouco.
— Não sabia que os wyrms podiam fazer uma coisa
dessas — disse Loth, e engoliu em seco. — Controlar um
corpo.
— Quando os Sombras Ocidentais morrem, passam o
seu fogo para os wyverns que os servem, e para a prole
criada por esses wyverns. Talvez se trate de um tipo de
ligação semelhante.
— Há quanto tempo está assim?
— Dois anos.
Ele adoecera na altura da traição de Yscalin à fé das
Virtudes.
— Como é que ficou assim?
— Primeiro tendes de ouvir a verdade — disse a
Donmata. — O meu pai recorda o suficiente para vos
contar.
— Marosa — disse Sigoso, com voz rouca. —
Marossssa.
Loth encolheu-se ao ouvir a sua voz. Era como se
tivesse um emara­nhado de cascavéis na garganta.
— Onde estás, filha? — perguntou o rei, em voz
baixa. — Deverei ir eu mesmo buscar-te?
Sem se deixar intimidar, a Donmata voltou-se para
ele e preparou-se para lhe tirar a venda. Embora a
princesa usasse luvas de veludo até ao cotovelo, Loth
susteve a respiração todo o tempo em que esteve perto
do seu pai, com medo de que Sigoso a mordesse através
do veludo ou lhe ar­ranhasse a cara. Quando a venda
caiu, Sigoso sorriu, mostrando os den­tes. Os seus olhos
já não eram da cor do topázio, mas cinzentos e frios.
— Espero que tenhais dormido bem, pai — disse a
Donmata em inysh.
— Sonhei com uma torre do relógio e com uma
mulher envolta em fogo no seu interior. Sonhei que era
minha inimiga. — O Rei Sigoso olhou para Loth e cruzou
os braços acorrentados. — E quem é este?
— É o Lorde Arteloth Beck de Goldenbirch. O nosso
novo embaixa­dor de Inys — respondeu a Donmata com
um sorriso forçado. — Pensei que gostarias de lhe contar
como morreu a Rainha Rosarian.
Sigoso respirou como um fole, olhando para eles
alternadamente, como um predador debatendo-se entre
duas presas.
— Eu matei Rosarian.
A maneira como pronunciou o nome, palpitando
cada sílaba, provo­cou um arrepio na espinha de Loth.
— Porquê? — indagou a Donmata.
— Aquela cabra imunda recusou a minha mão. A mão
da realeza. — Sigoso resfolegou, e os nervos do seu
pescoço contraíram-se. — Preferia vender-se a piratas e a
lordes mesquinhos a juntar o seu sangue ao da realeza
de Vetalda — acrescentou, cuspindo enquanto falava. —
Filha, estou a arder.
A Donmata olhou para Loth e dirigiu-se à mesa de
cabeceira, onde se encontravam um pano e uma bacia
de água. Molhou o pano e pousou-o sobre a testa do pai.
— Mandei que lhe fizessem um vestido — continuou
Sigoso. — Um vestido tão bonito que uma meretriz
vaidosa como Rosarian nunca lhe resistiria. Mandei
embeber as rendas num veneno de cocatriz que com­prei
a um príncipe mercador, e enviei-o para Inys, para que o
usasse no seu toucador.
Loth estava a tremer.
— E quem o levou a Inys? Quem escondeu o vestido?
— Ele recusa-se a falar com mais alguém a não ser
comigo — mur­murou a Donmata. — Pai, quem escondeu
o vestido?
— Um amigo do palácio.
— Do palácio — repetiu Loth. — Pelo Santo, quem?
A Donmata repetiu a pergunta. Sigoso riu-se, mas
depois tossiu.
— O copeiro.
Loth prostrou-se a olhar para ele. O cargo de copeiro
deixara de exis­tir havia séculos.
O vestido teria sido levado para o Guarda-Roupa Real.
A Senhora dos Trajes, nessa altura, era a senhora Arbella
Glenn, e ela nunca teria feito mal à rainha.
— Espero que tenha sobrado algo para enterrar
daquela rameira. O veneno da cocatriz é muito forte —
disse Sigoso, e riu-se. — Derrete até os ossos.
Loth não aguentou mais e sacou da sua adaga.
— Perdoai o meu pai — disse a Donmata, olhando com
desânimo para o Rei Terreno. — Poderia dizer-vos que
não é ele quem fala, mas acho que nunca falou de forma
tão convincente como agora.
Enojado, Loth deu um passo em direção à cama.
— O Cavaleiro da Bravura vira-te as costas, Sigoso
Vetalda — decla­rou com a voz trémula. — A rainha tinha
todo o direito a dar a sua mão a quem lhe aprouvesse.
Oxalá acabes no Ventre de Fogo!
Sigoso sorriu.
— Já lá estou — disse ele — e é o paraíso.
Os seus olhos cinzentos brilharam como se brasas
vermelhas ardessem no seu interior.
— Fýredel. — A Donmata pegou num copo que estava
na mesinha de cabeceira. — Pai, bebei isto. Aliviar-vos-á
a dor.
Levou-o aos seus lábios. Sem desviar o olhar de Loth,
Sigoso bebeu o conteúdo do copo. Loth, impressionado
com o que ouvira, permitiu que a Donmata o
acompanhasse até ao exterior.
A sua mãe, a senhora Annes Beck, estivera com a
Rainha-Mãe no seu leito de morte. Agora compreendia
porque nem ela nem Sabran tinham sido capazes de lhe
dizer uma palavra sobre o dia em que Rosarian usara
aquele belo vestido. Porque a senhora Arbella Glenn, que
a amava como a uma mãe, nunca mais dissera uma
palavra.
Loth deixou-se cair nos degraus. Ainda a tremer,
reparou que a Donmata estava atrás dele.
— Porque quisestes que o ouvisse da boca dele?
Porque não mo haveis contado vós?
— Para que vísseis e ouvísseis a verdade — respondeu
— e a transmi­tísseis a Sabran. E para que acreditásseis
em mim e não pensásseis que ainda resta algum mistério
em Yscalin.
A Donmata sentou-se no degrau atrás dele, de modo
que as suas ca­beças ficassem ao mesmo nível, e
depositou um embrulho de seda sobre os joelhos.
— Ele consegue ouvir-nos? — perguntou Loth.
— Não. Voltou a dormir — disse ela, cansada. Espero
que o Fýredel não perceba que lhe fechei o acesso.
Poderá pensar que o pai está a morrer. O que me parece
que esteja. — Ergueu o queixo. — Não tenho dúvidas de
que o wyrm pretende usar-me no lugar dele quando o pai
se for. Quererá converter-me no seu fantoche.
— Fýredel não se importa que mantenhais o rei assim,
acorrentado num quarto escuro?
— Fýredel compreende que o meu pai não detém uma
aparência... régia no seu estado atual, com o corpo cada
vez mais gasto — explicou a Donmata com um ar muito
sério. — Mas tenho de o levar para fora dos seus
aposentos sempre que ele mo ordena. Para que o nosso
senhor e mestre possa ver o palácio quando quiser. Para
que possa dar ordens ao Conselho Real. Para que possa
certificar-se de que não estamos a organizar uma
rebelião. Para nos impedir de pedir ajuda.
— Se matásseis o vosso pai, Fýredel saberia —
compreendeu Loth. — E castigar-vos-ia.
— Da última vez que o desafiei, ele acorrentou uma
das minhas da­mas no Portão Niunda. — O seu rosto
contraiu-se. — Fui forçada a assistir enquanto as
cocatrizes a bicavam em pedaços.
Por um momento, permaneceram em silêncio.
— A Rainha Rosarian morreu há catorze anos — disse
Loth, Naquela época... Sigoso não estava sob controlo
draconiano.
— Nem todo o mal provém dos wyrms.
A Donmata virou-se para o encarar, ficando de costas
para a parede.
— Não tenho muitas memórias do meu pai de quando
era crian­ça. Quando tinha dezasseis anos, a minha mãe
foi ao meu quarto à meia-noite. O casamento deles
sempre foi tenso, mas daquela vez ela parecia assustada.
E zangada. Disse-me que íamos com o irmão dela, o Rei
Jantar, para Rauca. Vestimo-nos de criadas e saímos do
palácio às escondidas.
» Claro que os guardas nos impediram. Fomos
confinadas aos nossos aposentos e proibidas de falar.
Nunca chorei tanto na minha vida. A mi­nha mãe
subornou um guarda para me entregar uma carta que
me dizia para ser forte. — Tocou no pendente de
esmeralda que envergava em torno da garganta. — Uma
semana depois, o pai veio informar-me da sua morte.
Disse à corte que ela tirara a própria vida, envergonhada
da sua tentativa de deixar o rei... mas eu sei que não foi
assim. Ela nun­ca me teria deixado sozinha com ele.
— Lamento — disse Loth.
— Não tanto quanto eu — respondeu ela, a raiva
estampada no ros­to. — Yscalin não merece isto, mas o
meu pai sim. Merece definhar por fora lentamente, para
que o seu corpo possa atingir o nível de corrupção da sua
alma.
Sahar Taumargam e Rosarian Berethnet, ambas
mortas pela mão do mesmo rei. E durante todo aquele
tempo Inys considerara-o um amigo do Reino das
Virtudes.
— Queria contar a verdade a Sabran. Queria pedir
ajuda, soldados... mas este palácio é uma masmorra. O
Conselho Real caiu nas garras de Fýredel, têm demasiado
medo de o contrariar. Têm famílias na cidade que
morreriam se despertássemos a sua fúria.
Loth encostou a manga ao rosto para limpar o suor.
— Sabran era minha amiga. O Príncipe Aubrecht foi
meu noivo du­rante muito tempo — recordou-lhe a
Donmata. — Sei que agora devem pensar muito mal de
mim.
Loth sentiu uma pontada de culpa.
— Perdoai-nos — murmurou —, não devíamos ter
presumido...
— Não podíeis saber que Fýredel estava desperto.
Ou que fôramos dominados por ele.

— Contai-me como Cárscaro caiu. Ajudai-me a


entender.

A Donmata resfolegou.

— Há dois anos houve um terramoto na Roca —


disse. — Fýredel despertara numa câmara no Monte
Fruma, onde adormecera depois da Ascensão das
Sombras. Tinha-nos a seus pés. Prontos para sermos con­‐
quistados. A primeira coisa a arder foram os campos de
lavanda. O céu da noite encheu-se de fumo negro. Foi
tudo tão rápido... Os wyverns cercaram Cárscaro antes
que os guardas da cidade pudessem alcançar as velhas
defesas. Fýredel apareceu pela primeira vez em séculos.
Disse-nos que nos queimaria a todos se o meu pai não
lhe pagasse tributo.

— E pagou?

— Primeiro enviou um duplo, mas Fýredel percebeu


o engodo. Queimou o pobre homem vivo e o meu pai foi
forçado a apresentar-se. Fýredel levou-o para a
montanha. Nessa noite, Cárscaro colapsou em caos. As
pessoas pensavam que estavam a viver uma segunda
Ascensão das Sombras, e de certa forma era verdade. —
Uma tristeza terrível escureceu-lhe os olhos. — O pânico
reinou. Milhares de pessoas tenta­ram fugir, mas a única
saída era o Portão Niunda, e os wyverns estavam a
guardá-lo. — Rangeu os dentes. — O meu pai regressou
ao amanhe­cer. As pessoas viram que o seu rei estava
vivo e ileso e não souberam o que pensar. Disse-lhes que
seriam os primeiros a ver o mundo draconia­no a erguer-
se novamente... se obedecessem.

» Uma vez no palácio, o meu pai ordenou ao


Conselho Real que anunciasse a lealdade do Reino ao
Inominável. Eles não se atreveram a desafiá-lo e
enviaram a mensagem a todas as nações. Também não
se atreveram a fazê-lo quando ele nos ordenou que
desmantelássemos todas as nossas defesas. Nem
quando queimou o aviário, com todos os pássaros lá
dentro. Tentei organizar um contra-ataque, mas sem
sucesso. A única coisa que consegui foi pôr a minha vida
em perigo.
— Mas o resto do país não sabia a verdade —
observou Loth.
— Nessa mesma noite, Cárscaro transformou-se
numa fortaleza. Ninguém podia comunicar com o
exterior. — A Donmata encostou a cabeça à parede. —
Os wyrms são fracos quando despertam. Durante um
ano, Fýredel ficou no sopé do Monte Fruma, a recuperar
as forças.
Vi-o usar o meu pai para transformar o meu país numa
base do seu poder. Vi-o destruir as Seis Virtudes. Vi a
peste espalhar-se entre o meu povo. E a minha casa
tornou-se no meu cárcere.
Foi então que Arteloth Beck fez exatamente o que
Gian Harlowe lhe avisara para não fazer.
Pegou na mão de Marosa Vetalda.
Ela estava a usar luvas de veludo. Não deixava de ser
um risco, mas não pensou duas vezes.
— Sois o epítome da coragem — disse — e os vossos
amigos do Reino das Virtudes falharam-vos.
A Donmata olhou para as suas mãos com
preocupação. Loth perguntou-se quando teria sido tocada
pela última vez.
— Dizei-me como posso ajudar — pediu.
Lentamente, ela pousou a outra mão sobre a dele.
— Podeis regressar àquele quarto — respondeu ela,
olhando-o nos olhos — e pôr as vossas mãos nuas sobre
o meu pai.
Ele demorou um momento a compreender.
— Quereis que eu... a apanhe?
— Explicar-vos-ei tudo — garantiu ela. — Mas se o
fizerdes, em troca ofereço-vos a possibilidade de fugir de
Cárscaro.
— Dissestes que era uma fortaleza.
— A minha mãe conhecia uma saída. — Pousou uma
mão sobre o embrulho que tinha no colo. — Desejo que
atravesseis a Roca e entre­gueis isto a Chassar uq-Ispad,
o embaixador ersyri. Devereis entregá-lo apenas a ele.
O homem que criara Ead e a trouxera para a corte
havia oito anos. A Donmata retirou o invólucro de seda.
No interior, havia uma caixa de ferro com símbolos
gravados.
— Na primavera, uma mulher foi capturada perto de
Perunta, quan­do tentava encontrar um navio que a
levasse a Lasia. Torturaram-na durante dias, mas ela não
falou. Quando o meu pai viu o manto verme­lho que ela
usava, Fýredel ficou furioso. Ordenou que ela tivesse uma
morte agonizante.
Loth não tinha a certeza se suportaria ouvir o final da
história.
— Naquela noite, fui à procura dela — continuou a
Donmata, passan­do os dedos sobre a caixa. — A princípio
pensei que lhe tinham arrancado a língua, mas quando
lhe ofereci algum vinho, ela disse-me que se cha­mava
Jondu. Disse-me que, se prezasse a vida humana, deveria
entregar o objeto que ela trazia a Chassar uq-Ispad. —
Fez uma pausa. — Eu própria matei Jondu. Disse ao
Fýredel que ela morrera dos seus ferimen­tos. Melhor isso
do que o portão. A caixa que fora tirada a Jondu estava
trancada. Ninguém conseguia abri-la, e acabaram por
perder o interesse. Não demorei muito a roubá-la. Tenho
a certeza de que é vital para a nossa luta, e tenho a
certeza de que o Embaixador uq-Ispad saberá mais.
Traçou o padrão na tampa com o dedo.
— O mais provável é que esteja em Rumelabar. Para
chegar ao Ersyr e evitar os guardas fronteiriços, tereis de
atravessar a Roca. A forma mais segura de o fazerdes
sem serdes atacado pelas criaturas draconianas que lá
habitam é ser infetado, para que, quando vos cheirarem,
não vos ata­quem. Jondu jurou-me que o embaixador
conhece uma cura para a pes­te. Se chegardes lá a
tempo, talvez vivais para contar a história.
Foi então que Loth compreendeu tudo.
— Foi essa a tarefa de que incumbistes o Príncipe
Wilstan — disse ele. — Mas ele não conseguiu.
— Fiz com ele exatamente o mesmo que fiz
convosco. Levei-o ao meu pai e deixei-o ouvir da sua
própria boca como matou Rosarian. E depois dei-lhe a
caixa. Mas há muito que Fynch aguardava uma
oportunidade para fugir e voltar para junto da filha, para
lhe contar o que se passava aqui — contou. — Ele
garantiu-me que apanhara a peste. Mas quando percebi
que não o fizera, fui à procura dele. Ele largara a caixa no
túnel secreto que conduz às montanhas. Evidentemente,
não tinha intenção de cumprir o que eu lhe pedira... mas
não o posso censurar por pensar que podia voltar para
Sabran.
— Onde está ele agora? — perguntou Loth em voz
baixa.
— Encontrei-o não muito longe do final do túnel —
revelou. — Foi um anfíptero.
Loth levou os punhos à testa.
Os anfípteros eram criaturas draconianas selvagens
sem pernas. Dizia-se que tinham mandíbulas muito fortes
e que abanavam as suas presas de tal forma que lhes
roubavam quaisquer forças para fugir.
— Teria recuperado os seus restos mortais, mas no
momento em que me aproximei, eles atacaram-me. Fiz
as orações necessárias.
— Obrigado.
— Apesar das aparências, continuo a ter fé no Santo.
E agora, ele precisa de nós, Lorde Arteloth. — A Donmata
pousou uma mão no seu antebraço. — Fareis o que vos
peço?
Loth engoliu em seco.
— E quanto ao Lorde Kitston?
— Poderá ficar aqui e tomarei conta dele. Ou poderá
acompanhar-vos... mas também terá de ser infetado.
Nem mesmo o Cavaleiro da Camaradagem esperaria
que Kit fizesse tal coisa por ele. Ele já fizera demasiado.
— Conseguirá Fýredel ver através de mim? —
perguntou Loth.
— Não. Tereis a peste convencional — explicou. — Já
experimentei.
Ele decidiu não perguntar como o fizera.
— Decerto haverá outros no palácio que permanecem
leais ao Santo — afirmou. — Porque não haveis enviado
um dos vossos súbditos?
— Apenas confio em Priessa, e o seu desaparecimento
faria soar o alarme. Eu própria iria, mas não posso deixar
o meu povo sem uma Vetalda de juízo são. Ainda que não
tenha hipótese de os salvar, devo ficar e fazer o que
puder para enfraquecer Fýredel.
Loth julgara mal a Donmata Marosa. Era uma
verdadeira defensora das Virtudes, aprisionada num lar
que outrora teria amado, mas que se transformara numa
jaula.
— É demasiado tarde para mim, meu senhor — disse
ela por fim mas não para o Reino das Virtudes. Não
podemos permitir que o que aconteceu aqui, em Yscalin,
aconteça noutros lugares.
Loth desviou o olhar dos seus olhos iridescentes e
fixou-o na prega do seu patrono que levava preso ao
gibão. Duas mãos entrelaçadas em afeto. Os mesmos
dedos entrelaçados que ostentavam uma aliança de
casamento com o nó do amor.
Se o Cavaleiro da Camaradagem ali estivesse, Loth
sabia o que faria.
— Se concordardes — continuou a Donmata —, levar-
vos-ei de volta ao Rei Terreno, e podereis tocar-lhe com
as vossas mãos. Depois mostrar-vos-ei a saída de Yscalin.
— Levantou-se. — Se recusardes, aconselho-vos que vos
prepareis para uma longa vida em Cárscaro, Lorde
Arteloth Beck.
20
Este

Enquanto os outros guardiões do mar celebravam o


fim das provas no salão de banquetes, Tané jazia exausta
nos seus aposentos. Não saía desde a luta com Turosa.
Um cirurgião limpara-lhe e cosera-lhe o ombro, mas
qualquer movimento deixava-a exausta e a dor latejante
não cessava.
No dia seguinte, saberia se iria montar ou não.
Mordiscou a unha do mindinho até sentir o sabor a
sangue. Nem que fosse para encontrar algo menos
doloroso para fazer com as mãos, pegou no seu exemplar
de Memórias da Grande Desolação. O livro fora-lhe
oferecido por um dos seus professores no seu décimo
quinto aniversário. Havia muito tempo que não o abria,
mas as ilustrações serviriam para a distrair.
Por volta da décima segunda hora, quando o chilrear
dos grilos nas árvores já se fazia ouvir, ela ainda estava
acordada, a ler.
Uma das imagens mostrava uma mulher seiikine com
a doença ver­melha. As suas mãos e os seus olhos
ardiam. Outra página exibia bes­tas de fogo. As asas de
morcego atemorizavam-na aos quinze anos e ainda hoje
lhe davam arrepios. A imagem seguinte mostrava as
pessoas de Cabo Hisan na costa, a assistir a uma grande
batalha. Os dragões revolviam-se nas ondas,
perseguindo os demónios que lançavam o seu fogo sobre
Seiiki.
A última imagem mostrava o cometa que surgira na
última noite da Grande Desolação, a Tocha de Kwiriki, a
fazer chover meteoros sobre o mar. Os demónios alados
fugiram, enquanto os dragões de Seiiki emergiam das
ondas, pintados de azul vivo e prata.
Uma batida na porta interrompeu as suas reflexões.
Tané pôs-se de pé com muita dor. Quando abriu a porta,
deu com Onren, de vestido verde-escuro e flores de sal
no cabelo. Trazia uma bandeja.
— Trouxe-te o jantar.
— Entra — disse Tané, afastando-se e voltando para a
cama. As velas estavam acesas, criando sombras largas.
Onren pôs a bandeja em cima da mesa, revelando o
pequeno banquete. Havia lombos tenros de dou­rada,
rolinhos de requeijão de soja com ovas e algas salgadas
num caldo aromático, tudo acompanhado por um jarro de
vinho com especiarias e uma taça.
— O honrado General do Mar deixou-nos provar o seu
famoso vi­nho envelhecido no mar — revelou Onren com
um sorriso. — Ter-te-ia guardado algum, mas acabou
assim que cheguei. Este é um pouco me­nos especial —
disse, servindo-lhe um copo —, mas talvez ajude a aliviar
a dor.
— Obrigada — disse Tané. — Foi muito amável teres
pensado em mim, mas nunca gostei muito de vinho.
Bebe-o tu.
— As provas acabaram, Tané. Agora podes relaxar.
Mas... suponho que possa beber um copo. — Onren
ajoelhou-se no tapete. — Sentimos a tua falta no salão de
banquetes.
— Estava cansada.
— Pensei que fosses dizer isso. Não me leves a mal,
mas parece que não dormes há anos. E mereces um
descanso. — Pegou na taça. — Estiveste bem contra o
Turosa. Talvez agora esse idiota perceba final­mente que
não está assim tão acima dos camponeses que tanto
despreza.
— Agora já não somos camponeses. — Tané estudou-
a. — Pareces preocupada.
— Acho que hoje perdi a minha oportunidade de
montar um dragão. Kanperu é tão bom a lutar como a...
— Bebeu um gole de vinho. — Bem.
Então ela lutara com Kanperu. Tané fora levada ao
cirurgião antes que pudesse assistir aos outros
combates.
— Destacaste-te em todos os outros dias — recordou
Tané. O honrado General do Mar julgar-nos-á com justiça.
— Como é que sabes?
— Ele é um cavaleiro.
— Turosa amanhã tonar-se-á cavaleiro e, no entanto,
passou anos a importunar aqueles de nós que vieram do
campo. Ouvi dizer que uma vez bateu num criado por
não se ter curvado o suficiente. Se nos tivésse­mos
comportado assim, teríamos imediatamente sido
expulsas das Casas de Instrução... mas o sangue nobre
ainda tem o seu poder.
— Não sabes se será nomeado cavaleiro só por
causa disso.
— Aposto tudo o que tenho em como será.
O silêncio abateu-se sobre elas. Tané pôs-se a
debicar a sua coalhada de soja.
— Uma vez fui repreendida, quando tinha dezasseis
anos, por apostar na cidade — disse Onren. — Como não
era digna, fui expulsa das aulas e disseram-me que teria
de conquistar o meu lugar na Casa Este. Passei o resto
do ano a limpar latrinas. Entretanto, Turosa praticamente
mata um criado e, poucos dias depois, tem uma espada
na mão.
— Os nossos eruditos professores terão as suas
razões. Compreendem o verdadeiro sentido da justiça.
— As suas razões foram o facto de ele ser neto de um
cavaleiro, e eu não. E serão essas as suas razões
amanhã, se eu for excluída em seu benefício.
— Não será esse o motivo — disse Tané, sem pensar.
Escapou-lhe antes que ela se pudesse conter, como
um peixe que escorrega nas mãos de um pescador.
Onren levantou as sobrancelhas. Seguiu-se um
silêncio pétreo, en­quanto Tané se debatia interiormente.
— Vá, Tané, diz o que pensas — incitou Onren, com
um sorriso comedido. — Afinal, somos amigas.
Agora era demasiado tarde. As provas, o forasteiro, a
exaustão, a culpa... tudo isso emergia violentamente,
como bolhas num caldeirão de água a ferver, e Tané já
não o conseguia conter.
— Pareces pensar que, se amanhã não fores nomeada
cavaleira, a culpa não será tua — disse, quase sem dar
conta. — Eu trabalhei dia e noite desde que chegámos.
Tu, pelo contrário, não demonstras nenhum tipo de
respeito. Chegas atrasada às provas, na presença dos
Miduchi.
Passas as noites em tabernas quando devias estar a
treinar, e depois perguntas-te porque lutaste tão mal
contra o teu adversário. Talvez seja esse o motivo, se não
fores nomeada cavaleira.
Não restou vestígio algum do sorriso de Onren.
— Então achas que não o mereço — disse sem
rodeios. — Porque... eu fui à taberna. — Fez uma pausa.
— Ou foi porque fui à taberna e mesmo assim fui melhor
do que tu na prova da espada?

Tané enrijeceu.

— Tinhas os olhos vermelhos nesse dia. E ainda


tens. Ficaste acorda­da a noite toda, a praticar.

— Claro que fiquei.

— E lamentas que eu não o tenha feito. — Onren


abanou a cabeça. — O equilíbrio é necessário em todas
as coisas, Tané. Não é o mesmo que desrespeito. Esta é
uma possibilidade única, que não deves deixar escapar.

— Eu sei — disse Tané, pontuando as palavras. —


Espero que tu também saibas.

Onren sorriu, mas Tané conseguiu ver-lhe a mágoa


nos olhos.

— Bem — levantou-se —, nesse caso, é melhor


deixar-te. Não tenho intenções de te arrastar comigo
para a perdição.
Tané acalmou-se de repente, com a mesma rapidez
com que se exal­tara. Ficou sentada na cama, muito
quieta, tentando engolir a vergonha. Por fim, levantou-se
e baixou a cabeça.
— As minhas desculpas, honrada Onren —
murmurou. — Não devia ter dito nada daquilo. É
imperdoável.
Passado um segundo, a expressão de Onren
suavizou-se.
— Perdoada. A sério. — Suspirou. — Tens-me deixado
preocupada.
— Tané não olhou para cima. — Sempre te esforçaste
muito, mas du­rante estas provas pareces estar a
esforçar-te ainda mais, Tané. Porquê?
Quando falava assim com ela, era como se tivesse
Susa ao seu lado ou­tra vez. Um rosto bondoso e uma
mente aberta. Por um momento, Tané sentiu-se tentada
a contar tudo a Onren. Talvez ela compreendesse.
— Não — respondeu por fim. — Apenas estava
receosa. E cansada.
— Voltou a afundar-se nos lençóis. — Amanhã estarei
melhor. Quando souber o meu destino.
Onren riu-se.
— Oh, Tané. Falas como se a alternativa fosse a
prisão.
Tané encolheu-se, mas conseguiu sorrir.
— Deixar-te-ei. Precisamos ambas de descansar. —
Onren esvaziou o copo. — Boa noite, Tané.

— Boa noite.

Assim que Onren se foi embora, Tané apagou a


lamparina a óleo e deitou-se na cama. A exaustão e a dor
acabaram por levar a melhor e caiu num sono profundo.
Quando acordou, a luz estava dourada. Por um
momento; não per­cebeu porque havia tanta luz no
quarto. Era como se o Sol não tivesse nascido há uma
eternidade.

Abriu a janela. O Sol brilhava sobre os telhados de


Ginura, embora a chuva continuasse a cair.
Chuva com sol. Um bom presságio.
Os criados não tardarim a chegar com os seus novos
uniformes. Se o dragão na sobrecasaca fosse prateado,
continuaria a ser uma guardiã do mar e serviria como
oficial na marinha.
Se fosse dourado, seria uma das escolhidas.
Andou de um lado para o outro e acendeu o incenso
no santuário para fazer uma última oração. Pediu perdão
pela sua indelicadeza para com Onren e, mais uma vez,
pelo que fizera na noite anterior à cerimó­nia. Se o grande
Kwiriki a absolvesse, mostrar-lhe-ia a sua devoção pelo
resto da vida.
Os criados chegaram ao fim da tarde. Tané aguardou,
de olhos fecha­dos, antes de se virar para os encarar.
A túnica era de seda de água. Azul como safiras. E
nas costas da so­brecasaca estava o emblema do dragão,
bordado em fios de ouro.

***

Os seus novos assistentes fizeram-lhe um corte de


cabelo militar. A ci­catriz na face era ainda mais visível e
doía-lhe o ombro, mas os olhos estavam frescos como
tinta.
Quando o Sol começou a despedir-se, desceu do
palanquim e foi para a areia clara da baía de Ginura. A
escolha realizava-se sempre ao fim do dia, porque era
uma despedida da sua vida anterior. Calçava botas de
cabedal novas, com um salto grosso, para melhor se
agarrar aos estribos da sela.
Um arco-íris noturno brilhava contra o púrpura
esfumado do céu, iluminando o horizonte com reflexos
avermelhados. As pessoas afluíam às falésias para ver o
sinal peculiar enviado pelo grande Kwiriki, e para ver os
doze novos cavaleiros de dragão a caminhar em direção
à água.
Entre eles estava Turosa. Tal como todos os parentes
dos outros cava­leiros. Tané encontrou Onren ao seu lado,
sorrindo para si. Conquistara um lugar no Clã Miduchi.
Na última vez que Tané estivera numa praia, o
forasteiro surgira das sombras como uma maldição. No
entanto, a sua maré interior, que a havia guiado para
aquele dia desde o berço, estava curiosamente calma.
Dez dragões seiikines esperavam no mar, belos e
ágeis. O sol e o arco-íris iluminavam as ondas que batiam
contra os seus corpos. Ao que parecia, os dois grandes
guerreiros lacustres ainda não haviam chegado.
Quando Kanperu foi chamado, fez uma vénia ao
General do Mar, que lhe pôs ao pescoço um colar de
pérolas do Sol Trémulo. Deu-lhe um capacete e uma sela
almofadada. Depois deu-lhe uma máscara para proteger
o rosto das intempéries e uma espada forjada com água
salga­da e incrustações de madrepérola na bainha, feita
pelo melhor mestre ferreiro de Seiiki.
Kanperu amarrou o elmo ao pescoço, pôs a sela no
braço e dirigiu-se para o mar. Quando a água lhe chegou
à cintura, estendeu a mão direita com a palma para
cima.
Um dragão-fêmea cinzento-azulado esticou o pescoço
e olhou para ele com olhos que pareciam luas cheias.
Quando esticou ainda mais a cabeça, Kanperu enterrou-
lhe os dedos na crina para subir para o seu dorso, com
cuidado para não se picar nos seus espinhos. Assim que
depositou a sela no lugar, o dragão emitiu um rugido
aterrorizante e mergulhou na água, encharcando todos
na praia.
Onren foi a seguinte a aproximar-se da praia, com um
sorriso de ore­lha a orelha. Mal teve de estender a mão
por um momento e o maior dos dragões, um enorme
seiikine de crina preta e escamas de prata batida,
aproximou-se da praia. A princípio, Onren ficou tensa,
mas assim que fizeram contacto, relaxou e subiu-lhe ao
pescoço como uma escada.
— Honrada Miduchi Tané — chamou o General do Mar.
— Avançai.
Onren baixou a máscara, cobrindo o rosto. O seu
dragão baixou a cabeça e afastou-se a nado.
Tané fez uma vénia ao General do Mar e deixou que
ele lhe colocasse o colar de pérolas ao pescoço, sinal de
que era a escolhida. Pegou no elmo e na sela e, por fim,
na espada na sua bainha. Já a sentia como uma extensão
do seu próprio braço. Apertou-a ao cinto e entrou no mar.
Sentiu a água quente à volta das pernas e foi como se
lhe faltasse o ar. Estendeu a mão. Baixou a cabeça.
Fechou os olhos. A mão estava firme, mas o resto do
corpo tremia de nervosismo.
Uma escama fria roçou-lhe os dedos. Não se atreveu a
olhar. Mas deveria. Quando o fez, deu por si diante de
dois olhos brilhantes como fogo de artificio a fitá-la — os
de um dragão lacustre.
21
Oeste

Loth saiu pela última vez dos seus aposentos no


Palácio da Salvação na calada da noite.
Carregava a peste draconiana dentro de si. Um leve
toque na testa do Rei Terreno, uma comichão na mão e,
de repente, foi como se uma ampulheta se tivesse virado
dentro de si, iniciando a contagem decres­cente. Em
breve, os finos grãos de areia da sua sanidade
começariam a escapar-lhe por entre os dedos.
Ao ombro, transportava uma sacola de couro com
provisões para a viagem pelas montanhas. Trazia a
adaga e a espada, escondidas sob um manto de inverno.
Kit seguiu-o até ao cimo das escadas.
— Espero realmente que isto seja uma boa ideia,
Arteloth — disse ele.
— É o oposto de uma boa ideia.
— A pirataria era a melhor opção.
— Indubitavelmente.
Estavam a penetrar nas entranhas de Cárscaro. A
Donmata Marosa dissera-lhe como aceder a uma
escadaria secreta desde o Santuário Real, que se
afunilava conforme desciam. Loth enxugou o suor frio da
testa. Implorara a Kit que ficasse, mas o seu amigo
insistira em acompanhá-lo.
Passou uma eternidade até chegarem a um terreno
horizontal. Loth ergueu a lanterna.
A Donmata Marosa aguardava-os ao fundo das
escadas, o rosto es­condido nas sombras do seu capuz.
Estava diante de uma grande fenda na parede.
— Que lugar é este? — perguntou Loth.
— Uma rota de fuga esquecida. Seria usada em caso
de cerco, supo­nho. Era por onde a minha mãe e eu
planeávamos fugir.
— Porque não a usastes para soar o alarme lá fora?
— Eu tentei. — Puxou mais o capuz para baixo. —
Lorde Kitston. Haveis-vos contagiado?
Kit assentiu.
— Sim, Vossa Esplendorosa. Acho que já estou
infetado o suficiente.
— Ótimo. — O seu olhar voltou-se para Loth. — Enviei
uma das mi­nhas damas. Isso foi antes de saber que
havia tantas bestas draconianas nas montanhas.
A inferência era clara.
A Donmata virou-se e pegou em alguns paus de
madeira que termi­navam num gancho.
— Ganchos de gelo. Ajudar-vos-ão a manter o
equilíbrio.
Pegaram neles. A Loth, entregou outra sacola pesada,
com a caixa de ferro lá dentro.
— Suplico-vos, Lorde Arteloth: não abandoneis esta
missão. — Os seus olhos eram como pedras preciosas à
luz da tocha. — Confio que o fareis por mim. E pelo Reino
das Virtudes.
E com essas palavras, recuou.
— Enviaremos ajuda — disse Loth em voz baixa. —
Mantende o vosso pai vivo o máximo que puderdes. Se
ele morrer, escondei-vos de Fýredel. Quando
completarmos a missão, contaremos aos governantes do
Reino das Virtudes o que aconteceu em Cárscaro. Não
morrereis sozinha neste lugar.
Por fim, a Donmata Marosa sorriu, só um bocadinho.
Como se se tivesse esquecido de como se fazia.
— Tendes um bom coração, Lorde Arteloth — disse
ela. — Se regressardes a Inys, apresentai os meus
cumprimentos a Sabran e a Aubrecht.
— Fá-lo-ei. — Ele fez-lhe uma reverência. — Adeus,
Vossa Esplendorosa.
— Adeus, meu senhor.
Trocaram um olhar que durou vários batimentos
cardíacos. Loth baixou a cabeça mais uma vez e entrou
na passagem.
— Que o Cavaleiro da Bravura vos dê ânimo nestas
horas sombrias — desejou Kit a Marosa.

— E a vós, Lorde Kitston.

Os passos da Donmata ecoaram enquanto se


afastava. Loth lamentou de repente que não tivessem
podido levá-la com eles. Marosa Vetalda, Donmata de
Yscalin, aprisionada na sua torre.

A passagem era terrivelmente escura. Uma brisa


impulsionou Loth para a frente. Tropeçou no chão
irregular uma vez, por pouco não quei­mando o olho com
a tocha. Estavam rodeados de vidro vulcânico cin­tilante e
da superfície porosa da pedra-pomes. O vidro refletia a
luz da tocha, gerando centenas de reflexos de cores
diferentes.

Caminharam durante o que lhes pareceram horas,


contornando um obstáculo ocasional, mas movendo-se
em linha reta. Os seus cajados marcavam um ritmo
constante.

Uma vez, Kit tossiu e Loth retesou todos os


músculos.

— Chiu — disse ele. — Preferia não acordar o que


quer que viva aqui em baixo.

— Um homem tem de tossir quando a necessidade


o dita. E não vive nada aqui em baixo.

— Então diz-me que estas paredes não parecem ter


sido esculpidas por um basilisco.
— Vá lá, deixa de ser tão trágico. Pensa nisto como
uma aventura.
— Eu nunca quis uma aventura — respondeu Loth,
preocupado. — Neste momento, queria estar no Palácio
de Briar com uma taça de vinho quente, a preparar-me
para levar a minha rainha ao altar.
— E eu queria estar a acordar com Kate Withy, mas,
infelizmente, não podemos ter tudo.
Loth sorriu.
— Ainda bem que estás aqui, Kit.
— Espero que sim — respondeu Kit, os olhos a
brilhar.
Loth lembrava-se do Inominável, de como rachara a
terra até encon­trar o caminho para a superfície. A sua
mãe contara-lhe a história mui­tas vezes em criança,
usando vozes diferentes para o assustar e fazer rir.
Avançou mais um passo e o chão a seus pés fez um
barulho oco, como as entranhas de um gigante.

Loth parou abruptamente, agarrando a tocha com


força. A chama tremeu e uma rajada de vento frio soprou
pelo túnel.

— Será um terramoto? — murmurou Kit Quando viu


que Loth não respondia, repetiu, com a voz tensa. —
Loth, é um terramoto?

— Chiu. Não sei.

Ouviram outro estrondo, mais intenso desta vez, e


parecia que a ter­ra estava a inclinar-se. Loth perdeu o
apoio. Mal teve tempo de reagir quando tudo começou a
mexer-se: primeiro suavemente, depois como um tremor,
depois com cada vez mais violência, até que começaram
a ranger os dentes.

— É um terramoto! — gritou. — Foge. Kit, foge, meu


amigo. Foge!
A caixa de ferro bateu-lhe nas costas. Correram
pela escuridão, de­sesperadamente à procura do mais
pequeno vislumbre de luz do dia ao fundo do túnel. Era
como se todo o manto da terra estivesse em convulsão.

— Loth! — gritou Kit, aterrorizado. — A tocha... A


minha tocha apagou-se!

Loth parou, virou-se e estendeu o braço no qual


levava a tocha. O seu amigo ficara muito para trás.

— Kit! — Correu de volta para ele. — Levanta-te!


Corre. Segue a minha voz!

Ouviu um estalido. Como se uma camada de gelo


estivesse prestes a ceder sob os seus pés. Pequenas
pedras, como cascalho, caíram-lhe sobre as costas.
Atirou as mãos à cabeça e, nesse momento, o teto do
túnel caiu-lhe em cima.

Por um longo momento, esperou pela morte. O


Cavaleiro da Bravura abandonara-o e choramingou como
uma criança. Via apenas a escuridão. A rocha confinou a
fragmentar-se. Os cristais estilhaçavam-se com grande
estrondo. Tossiu, sentindo o pó amargo na boca.
E de repente, sem mais nem menos, tudo parou.
— Kit — gritou Loth. — Kit!
Ofegante, pegou na tocha, que por milagre ainda
estava acesa, e estendeu-a para o local onde ouvira a
voz de Kit. O túnel estava coberto de rocha e vidro
vulcânico.
— Kitston!
Ele não podia estar morto. Não devia estar morto.
Loth empurrou a parede de escombros com toda a sua
força, lançou-se contra ela, batendo-lhe com o ombro
uma e outra vez, golpeando-a com o cajado e com os
punhos até fazer sangue. Quando finalmente cedeu,
procurou entre os escombros e empurrou as pedras para
o lado com as mãos desnudas, e sentiu o ar espesso
como mel, entalado na garganta...
Os seus dedos encontraram uma mão mole. Afastou
outros vidros, os músculos tensos com o esforço.
E ali estava, finalmente, Kit. Ali estavam os olhos que
Loth conhecia, mas que haviam perdido o riso. Aquela
boca, sempre pronta a sorrir, nunca mais voltaria a fazê-
lo. Viu a medalha que ele levava em tor­no do pescoço,
idêntica à que oferecera a Loth no último Banquete da
Camaradagem. O resto do seu corpo estava fora de vista.
Tudo o que Loth conseguia ver era o sangue a escorrer
por entre as pedras.
Um grito de desespero apoderou-se dele. As suas
faces estavam en­charcadas de suor e lágrimas, os nós
dos dedos cobertos de sangue e tinha um sabor metálico
na boca.
— Perdoa-me — disse ele, a voz embargada. —
Perdoa-me, Kitston Glade.
22

Oeste

O matrimónio de Sabran a Nona e Aubrecht o


Segundo realizou-se quando o verão deu lugar ao outono.
Era costume trocarem os votos à meia-noite, durante a
lua nova, pois era nas horas mais sombrias que o apoio
de um companheiro era mais necessário.

E era, de facto, uma hora sombria. Nunca na


história de Berethnet um casamento se realizara tão
perto de um funeral.

O Grande Santuário do Palácio de Briar, como todos


os santuários, era redondo, à imagem dos escudos
usados pelos antigos cavaleiros de Inys. Depois da
Ascensão das Sombras, quando o teto do santuário ce­‐
dera, Rosarian a Segunda mandara pôr vitrais vermelhos
nos arcos, em memória dos que ali haviam derramado o
seu sangue.

Com o passar dos séculos, três árvores haviam


atravessado o portão e espalhado os seus ramos pela
entrada. As suas folhas já exibiam os tons dourados e
âmbar do outono. Seiscentas pessoas tinham-se reunido
sob as árvores para a cerimónia, entre as quais a Ordem
Mais Virtuosa dos Sanctários.

Quando a rainha de Inys apareceu no portão sul,


fez-se silêncio. O seu cabelo, perfeitamente penteado,
brilhava num preto ébano, de­corado com flores brancas.
Ao pescoço, usava um folho rendado e, na cabeça, uma
coroa de ouro com filigrana e rubis que refletia a luz de
todas as velas.

O coro começou a cantar, as suas vozes delicadas,


agudas e ricas. Sabran avançou um passo e depois
parou.

Da sua posição entre os portadores de velas, Ead


observou a rainha, que parecia ancorada ao chão.
Roslain, que a acompanhava ao altar, apertou-lhe o
braço.

— Sab — sussurrou.

Sabran endireitou-se. Na escuridão do santuário,


poucos teriam re­parado na rigidez dos seus ombros ou
no tremor que poderiam atribuir ao frio.

Um momento depois, voltara a avançar.


Seyton Combe observou o seu avanço do lugar
ocupado pelo Conselho dos Duques e as suas famílias. A
luz da vela revelou a expressão de satis­fação que lhe
marcava o canto da boca.

Fora por aquela noite que enviara Loth para a sua


morte. Loth, que agora deveria estar com Sabran. Em
Inys, era tradição que os amigos mais próximos dos
noivos os acompanhassem na cerimónia de união aos
seus companheiros.

A pouca distância, Igrain Grest estava


impenetrável. Ead imaginou que era porque, para ela,
aquilo era tanto uma vitória como uma der­rota. Queria
uma herdeira, mas que não fosse filha do seu pai. Era
tam­bém uma prova de que Sabran já não era a criança
enlutada que tanto precisara dos seus conselhos na sua
menoridade.
O Príncipe Vermelho entrou pelo outro lado do
santuário, de mãos dadas com a sua irmã mais velha.
Usava um manto a condizer com o vestido da noiva, com
uma faixa de seda vermelha e arminho, e um gibão com
fechos dourados. Tal como Sabran, usava luvas, com
botões ostensivos e vistosos. Uma fina coroa de prata
declarava a sua pertença a uma casa real.
Sabran dirigiu-se a ele com elegância. O seu vestido
de noiva atraía todos os olhares. Era de um vermelho de
carmim, como o vinho de cereja, com exceção do folho
do seu decote, que era preto com detalhes em ouro e
pérolas. As suas damas, incluindo Ead, usavam um
modelo inverso, com saias pretas e forros vermelhos.
O cortejo nupcial reuniu-se no meão, sob um
baldaquino dourado sustentado por colunas. As
testemunhas formaram um círculo à sua volta. Sabran
estava agora iluminada pelas velas do topo do santuário.
Lievelyn, que estava suficientemente perto para a ver
bem, engoliu com força.
Sabran pegou na mão de Roslain, Lievelyn entrelaçou
os dedos com os da irmã mais velha e os quatro
ajoelharam-se. Todos os outros se espalharam pelo resto
do santuário. Ead apagou a sua vela e ficou a observar
Chassar no meio da multidão.
O arquissanctário de Inys tinha os dedos ossudos e
era tão pálido que as suas têmporas deixavam as suas
veias azuis à vista. Na parte frontal do seu hábito, estava
bordada em prata a imagem da Espada da Verdade.
— Amigos — disse ele, quebrando o silêncio. —
Reunimo-nos esta noite, neste refúgio terreno, para
testemunhar a união destas duas al­mas no estado
sagrado de companheirismo. Como a Donzela e o Santo,
eles escolheram comungar em carne e alma para
preservar as nossas Virtudes. A união entre
companheiros é um ato de grande importância: não vos
esqueçais de que Inys nasceu do amor entre Galian, um
cavalei­ro de Inysca, e Cleolind, uma herege de Lasia.
Ainda mal começara e já a Mãe fora chamada de
herege. Ead trocou um breve olhar com Chassar, do
outro lado do corredor.
O arquissanctário aclarou a voz e abriu um livro de
orações encader­nado a prata para ler a história do
Cavaleiro da Camaradagem, que fora o primeiro a juntar-
se ao Sagrado Séquito. Ead não ouviu com atenção. Os
seus olhos estavam postos em Sabran, que permanecia
perfeitamente imóvel enquanto Lievelyn a observava.
Quando a história terminou, Roslain e Ermuna, cujo
dever como acompanhantes terminara, afastaram-se do
casal real. Roslain foi ter com o seu companheiro, o Lorde
Calidor Stillwater, que a puxou para si. Nunca desviou o
olhar de Sabran, que, da sua posição sob o dossel, ob­‐
servava a amiga a afastar-se do baldaquino e a deixá-la
com um homem praticamente desconhecido.
— Comecemos — disse o arquissanctário, olhando
para Lievelyn e acenando com a cabeça. O Grão-Príncipe
retirou a manopla da sua mão esquerda e estendeu-a. —
Sabran a Nona, da Casa de Berethnet, rainha de Inys, o
vosso noivo estende-vos a mão da irmandade. Aceitais e
concordais em ser a sua fiel companheira, desde este
momento até ao fim dos dias?
Lievelyn sorriu para ela, sem que os músculos dos
olhos se contraíssem. As sombras tornavam impossível
ver se ela lhe sorria de volta enquanto aceitava um anel
com o nó do amor das mãos do arquissanctário.
— Amigo — disse ela. — Aceito.
Deteve-se, com o maxilar tenso, e Ead viu o seu peito
inchar ligeiramente.
— Aubrecht Lievelyn, aceito-vos como meu
companheiro. — Fez deslizar o anel para o seu dedo
indicador. Ouro, reservado aos sobe­ranos. — Meu amigo,
meu companheiro de cama, meu companheiro constante
em todas as coisas. — Pausa. — Juro amar-vos com a
minha alma, defender-vos com a minha espada e não
Conceder a mais ninguém o meu favor. Este é o meu
voto.
O arquissanctário assentiu novamente. Depois foi
Sabran que retirou a sua luva esquerda.
— Aubrecht o Segundo, da Casa de Lievelyn, Grão-
Príncipe do Estado Livre de Mentendon — disse ele —, a
vossa prometida estende-vos a mão da camaradagem.
Aceitá-la-eis, e aceitareis ser o seu fiel companheiro,
desde este momento até ao fim dos dias?
— Aceito — disse Lievelyn.
Quando tomou o anel de Sabran do arquissanctário,
ela tremeu qua­se impercetivelmente. Era a última
oportunidade de Sabran evitar o casamento antes que se
tornasse legalmente obrigatório. Ead olhou de relance
para Roslain, que mexia ligeiramente os lábios, como se
quisesse encorajar a sua rainha. Ou talvez rezar.
Sabran levantou os olhos, olhou para Lievelyn e
finalmente anuiu. Ele tomou-lhe a mão esquerda, tão
delicadamente como se fosse uma borboleta, e depositou
o anel cintilante no seu dedo.
— Sabran Berethnet — disse ele —, aceito-vos como
minha com­panheira. Minha amiga, minha companheira
de cama, minha compa­nheira constante em todas as
coisas. Juro amar-vos com a minha alma, defender-vos
com a minha espada, e não conceder a mais ninguém o
meu favor. — Apertou a sua mão na dele. — Este é o meu
voto.
Seguiu-se um breve silêncio quando os seus olhares
se cravaram um no outro. Depois, o arquissanctário abriu
os braços como que para abra­çar as testemunhas,
destruindo o momento.
— Declaro estas duas almas unidas como
companheiras aos olhos do Santo — proclamou — e,
através deles, todo o Reino das Virtudes.
Os aplausos irromperam no santuário, com tal
estrondo que parecia que o teto iria desabar novamente.
Enquanto aplaudia, Ead olhou para o Conselho dos
Duques. Nelda Stillwater e Lemand Fynch pare­ciam
satisfeitos. Crest estava rígida como um cetro, a boca
transformada numa linha reta sem lábios, mas batia com
a ponta dos dedos na palma da mão, como se tentasse
bater palmas. Atrás deles, estava o Falcão da Noite, a
sorrir de contentamento.
Por norma, os parceiros beijavam-se depois de
casados, mas tal gesto teria sido considerado impróprio
da realeza. Então, Sabran pegou no braço estendido de
Lievelyn e desceram juntos a plataforma. E Ead viu que,
apesar de abatida, a rainha de Inys sorria para o seu
povo.

Ead trocou um olhar com Margret, que agarrou o


cotovelo de Linora, em lágrimas, para a levar embora. As
três afastaram-se como fantasmas.

***

No Quarto de Leito Real, fizeram a cama e revistaram


todos os cantos e recantos. Uma estatueta de bronze do
Cavaleiro da Camaradagem fora colocada debaixo do
candeeiro principal. Ead acendeu as velas da cor­nija da
lareira, fechou as cortinas e ajoelhou-se para acender o
lume. O arquissanctário insistira para que criassem um
ambiente muito caloroso. Havia um livro de orações na
mesa de cabeceira, aberto com a história do Cavaleiro da
Camaradagem, e uma maçã vermelha no topo. Era um
símbolo de fertilidade, como contou Linora a Ead
enquanto trabalhavam.
— É uma velha tradição pagã — explicou ela —, mas
Carnelian a Segunda gostou tanto dela que pediu à
Ordem dos Sanctários que a in­cluíssem na rotina da
consumação.
Ead enxugou a testa. Era evidente que o
arquissanctário considerava que gerar uma herdeira era
como cozer um pão no forno.
— Tenho de lhes ir buscar algo para beber — disse
Margret, tocando no braço de Ead e saindo da sala.
Linora encheu dois braseiros de car­vão enquanto
cantarolava uma melodia e enfiou-os sob os cobertores.
— Linora — disse Ead —, vai aproveitar a festa. Eu
acabo aqui.
— Oh, és tão bondosa, Ead. Obrigada.
Assim que Linora saiu, Ead certificou-se de que a
lamparina do teto estava bem presa. O Quarto de Leito
Real estivera trancado o dia todo; apenas Roslain tinha
uma chave, mas Ead não confiava em ninguém naquela
corte.
Depois de um longo momento, durante o qual
ponderou se seria ou não uma boa decisão, Ead tirou a
rosa que cortara naquela tarde e colocou-a atrás da
almofada do lado direito da cama. A almofada bordada
com o emblema de Berethnet.
Que tivesse bons sonhos, pelo menos por uma noite.
As proteções que montara revelaram passos que
Ead reconheceu. Uma sombra surgiu no vão da porta e,
em seguida, Roslain Crest, que observou o quarto com o
queixo levantado.

Tinha uma madeixa de cabelo solta do seu


penteado em forma de coração. Observou o quarto como
se fosse a primeira vez que o via, e não o lugar onde já
dormira inúmeras vezes ao lado da rainha.

— Minha senhora. — Ead curvou-se. — Estais bem?

— Sim. — Roslain resfolegou. — Sua Majestade


requer a vossa pre­sença, Ead.

Não esperava por isso.

— Sem dúvida que uma das suas Damas de Leito


Real poderá ajudá-la a despir o...

— Como disse — Roslain interrompeu-a —, ela


pediu que fôsseis vós. E parece que já terminastes os
vossos deveres aqui. — Deitou um último olhar ao quarto
e regressou ao corredor, seguida por Ead. — Como sa­‐
beis, uma camareira não está autorizada a tocar em
ninguém da realeza, mas hoje permiti-lo-ei, se for
necessário.

— Com certeza.
O Vestiário Real, onde Sabran se lavava e vestia
todos os dias, era uma divisão quadrada com um teto de
molduras elaboradas, a mais pe­quena dos aposentos
reais. As cortinas estavam corridas.
Sabran estava descalça junto à lareira, observando
as chamas en­quanto tirava os brincos. O seu vestido de
noite já devia estar no seu Guarda-Roupa Real, pois já
estava de vestido interior. Katryen estava a tirar-lhe o
recheio das ancas.
Ead aproximou-se da rainha e afastou-lhe o cabelo
para descobrir a nuca, onde se encontrava o fecho do
seu colar.
— Ead — disse Sabran —, gostaste da cerimónia?
— Sim, Majestade. Estáveis esplêndida.
— Já não estou? — perguntou em tom de
brincadeira, mas Ead conseguiu detetar a dúvida na sua
voz.
— Estais sempre linda, minha senhora. — Ead abriu
o fecho e retirou as joias que lhe rodeavam a garganta.
— Mas aos meus olhos... nunca estivestes tão bela como
agora.
Sabran olhou para ela.
— Achas — disse — que o Príncipe Aubrecht
partilhará da tua opinião?
— Sua Alteza Real seria louco se não o fizesse.
Os seus olhares separaram-se quando Roslain
regressou ao quarto. Aproximou-se de Sabran e começou
a desapertar-lhe o espartilho.
— Ead — disse. — A túnica de noite.
— Sim, minha senhora.
Enquanto Ead procurava um braseiro para aquecer a
peça, Sabran levantou os braços, deixando Roslain puxar-
lhe o vestido interior pela cabeça. As duas senhoras
acompanharam a rainha ao banho, onde foi lavada da
cabeça aos pés. Quando vestiu a túnica, Ead olhou-a de
relance.
Uma vez despida de todos os seus adornos, Sabran
Berethnet não parecia descendente de nenhum santo,
falso ou verdadeiro. Era mortal. Ainda imponente,
elegante, mas não em toda a sua força.
O seu corpo era como uma ampulheta: ancas
arredondadas, cintu­ra fina e seios fartos, com mamilos
salientes. Pernas longas, fortalecidas pela equitação. Ao
ver a parte escura entre as suas coxas, Ead sentiu um
friozinho na barriga.
Voltou a concentrar-se no que estava à mão. As inysh
eram muito modestas com a sua nudez. Há anos que não
via um corpo nu que não fosse o seu.
— Ros — disse Sabran —, vai doer?
Roslain secou-lhe a pele com panos limpos.
— A princípio pode doer, um pouco — respondeu. —
Mas não vai durar muito. E muito menos se Sua Alteza
Real for... delicado.
Sabran olhou em torno da sala, sem a ver. Rodou o
anel com o nó do amor.
— E se eu não conseguir conceber?
No silêncio que se seguiu a essa pergunta, nem o
hálito de um rato lhe teria escapado.
— Sabran — disse Katryen, com uma voz suave,
tomando-lhe o braço —, é claro que ides conceber.
Ead ficou em silêncio. A conversa parecia ser íntima,
mas ninguém lhe ordenara que se fosse embora.
— A minha avó demorou muitos anos a conseguir —
disse Sabran. — Os Sombras Ocidentais estão à espreita.
Yscalin traiu-me. E se Fýredel e Sigoso invadirem Inys e
eu não tiver uma herdeira...
— Tereis uma herdeira. A Rainha Jillian teve uma
filha linda, a vossa mãe. E em breve também sereis mãe.
— Roslain pousou o queixo no ombro de Sabran. —
Quando acabar, deitai-vos um pouco e dormi de costas.
Sabran encostou-se a ela.
— Quem me dera que Loth tivesse estado presente
— confessou. — Era ele quem me iria acompanhar ao
altar. Eu prometera-lhe. — Agora que a maquilhagem
desaparecera, as suas olheiras estavam mais escuras do
que nunca. — Agora está... perdido. Algures em Cárscaro.
E não tenho forma de o contactar.
— Loth irá ficar bem. Tenho fé de que voltará em
breve — disse Roslain, abraçando-a com mais força. — E
quando voltar, trar-vos-á notícias do vosso pai.
— Outro rosto de que tenho saudades. Loth e o meu
pai... e a Bella também. A minha fiel Bella, que serviu
três rainhas. — Sabran fechou os olhos. — É mau
presságio que tenha morrido tão perto deste dia. Na
cama onde...
— Sabran — interrompeu Roslain —, é a vossa noite
de núpcias. Não deveis ter pensamentos tão sombrios ou
escurecer-vos-ão a semente.
Ead esvaziou o braseiro de volta para a lareira.
Perguntou a si mesma se os inysh teriam alguma ideia do
que era a conceção, ou se os seus mé­dicos baseavam os
seus diagnósticos em meras suposições.
Conforme a hora se aproximava, a rainha foi ficando
cada vez mais si­lenciosa. Roslain sussurrou-lhe conselhos
ao ouvido, enquanto Katryen lhe penteava o cabelo,
retirando todas as pétalas que se encontravam entre os
seus cabelos.
Vestiram-na com uma túnica de dormir e uma capa
forrada de peles. Katryen penteou-lhe o cabelo para
cima.
— Ead — disse Sabran, olhando para a porta. — É
assim que fazem no Ersyr?
A rainha franziu ligeiramente as sobrancelhas, tal
como quando descrevera o seu pesadelo, e Ead sentiu a
necessidade de a ajudar a suavizar o gesto.
— Algo do género, minha senhora — respondeu.
Lá fora ouviu-se o assobio de um fogo de artifício.
Começavam as celebrações na cidade.
Sabran foi conduzida para fora do Vestiário Real. Ia a
tremer, mas manteve a cabeça erguida.
Uma rainha não podia demonstrar medo.
Quando as portas do Quarto de Leito Real se abriram
diante delas, Roslain e Katryen ficaram ainda mais perto
da sua soberana. Sir Tharian Lintley e dois dos seus
homens, de guarda, ajoelharam-se perante ela.
— Vossa Majestade — disse Lintley —, para proteger a
vossa priva­cidade, não posso ficar de guarda diante do
Quarto de Leito Real na vossa noite de núpcias. Confio a
vossa proteção ao vosso companheiro e às vossas
damas.
Sabran pousou-lhe a mão sobre a cabeça.
— Bom Sir Tharian — disse ela. — O Cavaleiro da
Cortesia sorri para vós.
Ele levantou-se e os seus cavaleiros fizeram uma
vénia à rainha. Enquanto se afastavam, Katryen tomou a
chave da mão de Roslain e destrancou as portas.
Aos pés da cama encontrava-se o arquissanctário com
um livro de orações na mão. Aubrecht Lievelyn
aguardava com os seus criados no quarto. A sua camisa
de dormir, com uma faixa preta, continha uma abertura
no peito, expondo as suas clavículas.
— Vossa Majestade — saudou ele. À luz da lareira, os
seus olhos bri­lhavam. Sabran insinuou um pequeno
aceno de cabeça.
— Vossa Alteza Real.
O arquissanctário fez o sinal da espada.
— O Santo abençoa este leito. Que produza os frutos
de uma dinastia eterna. — Fechou o livro de orações. — E
agora, é altura de os amigos partirem, para que estes
novos companheiros se conheçam. Que o Santo nos dê a
todos uma boa noite, pois ele guarda-nos na escuridão.
— Ele guarda-nos na escuridão — repetiram em coro.
Todos, exceto Ead.
As damas e os criados fizeram uma vénia. No
momento em que Roslain levantou a cabeça, Sabran
sussurrou-lhe:
— Ros.
Roslain olhou-a nos olhos. E, evitando os olhares dos
homens, agar­rou a mão de Sabran, com tanta força que
os dedos de ambas ficaram brancos.
Katryen acompanhou Roslain até ao exterior. Ead
seguiu-a, mas voltou-se uma última vez para a rainha e
trocaram um olhar.
Pela primeira vez, viu Sabran Berethnet como era, por
baixo daquela máscara: uma mulher jovem e frágil,
carregando nos ombros o peso de um legado milenar.
Uma rainha cujo poder absoluto dependia ape­nas da
possibilidade de gerar uma filha. Ead teria gostado de a
pegar pela mão e de a levar para fora daquele quarto,
mas nunca se atreveria. Deixou Sabran sozinha, como
todos os outros fizeram.
Margret e Linora esperavam-na. As cinco reuniram-se
na escuridão.
— Ela pareceu-vos bem? — perguntou Margret em voz
baixa.
Roslain passou as mãos pela saia.
— Não sei — respondeu, andando de um lado para o
outro. — Pela primeira vez na minha vida, não tenho a
certeza.
— É normal que esteja nervosa — sussurrou Katryen.
— Que haveis sentido em relação a Cal?
— Isso foi diferente. O Cal e eu ficámos noivos quando
éramos miúdos. Ele não era um estranho — argumentou
Roslain. — E o destino das nações não dependia do fruto
da nossa união.
Ficaram ali, de guarda, à escuta de qualquer ruído
estranho. Um quarto de hora depois, Katryen encostou o
ouvido à porta.
— O príncipe está a falar de Brygstad.
— Deixa-os falar — disse Ead, sem levantar a voz. —
Eles mal se conhecem.
— Mas e se a união não se consumar?
— Sabran cuidará disso — respondeu Roslain, o olhar
perdido. — Sabe que é o seu dever sagrado.
A espera prolongou-se. Linora, que estava sentada no
chão, adormeceu encostada à parede. Por fim, Roslain,
que até então se mantivera imóvel como uma estátua de
pedra, recomeçou a andar de um lado para o outro.
— E se... — Apertou os dedos. — E se ele for um
monstro?
Katryen aproximou-se dela. — Ros...
— Sabes... A senhora minha mãe contou-me que
Sabran a Oitava foi maltratada pelo seu companheiro. Ele
bebia, andava com prostitutas e dizia-lhe coisas cruéis.
Ela nunca contou a ninguém. Nem mesmo às suas damas
de companhia. Até que uma noite... — levou a mão ao
es­tômago — o homem desprezível lhe bateu. Quebrou-
lhe a maçã do rosto e partiu-lhe o pulso...
— E foi executado por isso — respondeu Katryen,
aproximando-se mais. — Escuta-me: não vai acontecer
nada a Sab. Já vi como Lievelyn trata as irmãs. Tem o
coração de um cordeiro.
— Ele pode parecer um cordeiro — disse Ead —, mas
os monstros geralmente parecem-se com cordeiros. Eles
sabem como se mascarar. — Olhou para ambas. —
Iremos vigiá-la. Manter os ouvidos abertos. Lembrai-vos
porque usamos adagas além de joias.
Roslain olhou para ela e acenou lentamente com a
cabeça. E Katryen também o fez, um momento depois.
Ead viu que elas fariam qualquer coisa por Sabran.
Levariam a vida de qualquer um, ou a sua própria.
Qualquer coisa.
Passada uma hora, algo mudou no Quarto de Leito
Real. Linora acordou e levou uma mão à boca.
Ead aproximou-se da porta. Foi apenas por um
momento, mas ouviu o suficiente para perceber o que se
passava lá dentro. Quando terminou, acenou com a
cabeça às Damas do Leito Real.
Sabran tinha cumprido o seu dever.

***

De manhã, Lievelyn deixou o Quarto de Leito Real


pouco depois das nove. As damas tiveram de esperar
que a Porta Menor se fechasse atrás dele para irem
atender a sua rainha.
Sabran estava deitada na cama, coberta pelos lençóis
até ao peito. Ou ela própria ou Lievelyn haviam aberto as
cortinas, mas o céu estava encoberto e não entrava
muita luz.
Quando entraram, Sabran olhou para elas por cima do
ombro. Roslain correu para o seu lado.
— Estais bem, Majestade?
— Sim — disse Sabran, que parecia cansada. — Creio
que sim, Ros, Roslain beijou-lhe a mão. Quando Sabran
se levantou, Katryen apressou-se a cobri-la com uma
túnica. Enquanto Ead se aproximava da cama com
Margret e Linora, as duas Damas do Leito Real
conduziram Sabran para a poltrona junto à lareira.
— Hoje, ficarei nos meus aposentos — anunciou
Sabran, afastando uma madeixa de cabelo para trás da
orelha. — Tenho um desejo por fruta.
— Senhora Linora — disse Katryen —, ide buscar
amoras e peras a Sua Majestade. E uma chávena de
ponche, por favor.
Linora saiu, aparentemente aborrecida por ter de se ir
embora. Assim que a porta se fechou, Roslain ajoelhou-se
diante de Sabran, fazendo a sua saia desenrolar-se pelo
chão.
— Oh, Sab, eu estava tão... — Abanou a cabeça. —
Correu tudo bem com Sua Alteza Real?
— Perfeitamente — respondeu Sabran.
— De verdade?
— De verdade. Foi estranho, mas Sua Alteza Real foi...
delicado. — Pousou uma mão sobre a barriga. — Poderei
já estar grávida?
Era pouco provável que engravidasse depois de
apenas uma noite, mas os inysh pouco sabiam sobre o
corpo e o seu funcionamento.
— Tendes de esperar até ao dia do vosso sangramento
— disse Roslain enquanto se levantava, sempre paciente.
— Se não houver sangue, estais grávida.
— Não necessariamente — disse Ead. Quando viu
Sabran e as duas Damas do Leito Real a olhar para ela,
baixou ligeiramente a cabeça. — Às vezes o corpo prega-
nos partidas, Majestade. É a chamada falsa gravidez —
acrescentou, e Margret acenou com a cabeça. — É difícil
ter a certeza até o bebé começar a crescer.
— Embora, claro — salientou Katryen —, todos
tenhamos fé de que ides conceber muito em breve.
Sabran agarrou-se aos braços da cadeira.
— Então terei de me deitar com Aubrecht outra vez —
disse ela. Até ter a certeza.
— A bebé virá na altura certa — disse Roslain,
beijando-lhe o cimo da cabeça. — Por agora, tendes de
pensar apenas em tornar o vosso casamento feliz. Talvez
pudésseis tirar um mês de férias com o Príncipe
Aubrecht. O Castelo de Glowan é lindo nesta altura do
ano.
— Não posso deixar a capital — disse Sabran —
agora que há um Sombra Ocidental à espreita.
— Não falemos de Sombras Ocidentais — disse
Roslain, ajeitando o cabelo. — Não agora.
Margret aproveitou a oportunidade.
— Bem, já que precisamos de outro tema de
conversa — começou, com um brilho malicioso nos olhos
—, porque não nos falais da vossa noite de núpcias, Ros?
Katryen soltou um risinho nervoso e Roslain sorriu;
Sabran lançou-lhe um olhar cúmplice.
Linora regressou com a fruta no momento em que
Roslain recordava o seu casamento com o Lorde Calidor
Stillwater. Quando a cama ficou feita, foram todas para o
Vestiário Real, onde Sabran se sentou junto à bacia.
Permaneceu em silêncio enquanto Katryen lhe aplicava
grialina no cabelo e lhe dava água de rosas para
enxaguar a boca. A pedido de Sabran, Margret tocou no
virginal.
— Senhora Duryan — disse Katryen —, ajudai Sua
Majestade a en­xaguar o cabelo, se não vos importais.
Tenho de ir ao encontro do Lorde Chamberlain.
— Com certeza.
Katryen pegou na sua cesta de vime e saiu.
Entretanto, Ead foi para a bacia, ao lado de Roslain.
Deitou água do jarro para tirar a espuma de cheiro
adocicado do ca­belo da rainha. Quando pegou na toalha,
Sabran agarrou-a pelo pulso.
Ead gelou. Uma simples criada não podia tocar na
rainha e, desta vez, Roslain não lhe prometera ignorar o
facto.
— A rosa cheirava maravilhosamente, senhora
Duryan.
Sabran entrelaçou os seus dedos com os dela. Ead
pensou que queria dizer mais alguma coisa e inclinou-se
para a ouvir melhor, mas em vez disso Sabran Berethnet
beijou-a na face.
Os seus lábios eram suaves como a penugem de um
cisne. Ead sentiu todos os pelos do seu corpo eriçarem-se
e conteve-se para não soltar um enorme suspiro.
— Obrigada — disse Sabran. — Foi muito generoso da
tua parte.
Ead olhou de soslaio para Roslain, que estava atónita.
— Foi um prazer, minha senhora — respondeu.
Lá fora, a humidade cobria a vegetação. A chuva
escorria pelas janelas embaciadas do Vestiário Real. A
rainha recostou-se na sua cadeira como se estivesse no
trono.
— Ros — disse ela. — Quando a Kate regressar, diz-lhe
que regresse ao gabinete do Lorde Chamberlain.
Comunicar-lhe-á que a senhora Ead Duryan foi elevada à
posição de Dama do Leito Real.
II
Não ouso declarar

Considera o caminho que teve de percorrer,


Pensa na armadilha faminta,
Na rede que ela mesma tecera,
Sabendo ou não...

— Marion Angus
23
Sul

A ponta do bastão perfurou a neve e Lorde Arteloth


Beck baixou a cabeça para se proteger do vento que
uivava na Roca. Por baixo das luvas, os seus dedos
estavam vermelhos como se os tivesse mergu­lhado em
tinta. Sobre os ombros, transportava a carcaça de um
carneiro montês.
Passara dias com as faces cobertas de lágrimas
congeladas, mas agora o frio penetrara-lhe sob a pele.
Não conseguia pensar em Kit durante muito tempo,
agora que cada passo era uma agonia. Um gesto de com­‐
paixão do Santo.
A noite tinha caído. A neve branqueara-lhe a barba.
Atravessou um riacho de lava que subia de uma fenda na
encosta e arrastou-se para a gruta, onde adormeceu
intermitentemente. Com as forças restabelecidas, dispôs
os troncos e os ramos que tinha recolhido. Raspou a
brasa e soprou para acender a chama. Depois engoliu em
seco e começou a limpar o carneiro. Depois de ter
esfolado o primeiro animal, na terceira noite, vomitara e
chorara até ficar sem lágrimas. As suas mãos estavam
agora treinadas na arte da sobrevivência.
Quando acabou, fez um espeto para furar a carne e
assá-la ao lume. No início, receou que os wyrms vissem o
fogo da sua fogueira e se aglo­merassem como traças,
mas isso não aconteceu.
Limpou as mãos na neve do lado de fora da gruta e
depois deitou mais neve sobre a mancha de sangue, para
camuflar o cheiro. No seu abrigo, mordeu o carneiro e
pediu mentalmente ao Cavaleiro da Cortesia que
desviasse o olhar. Depois de comer o máximo que pôde e
de retirar toda a carne comestível dos ossos, Loth
enterrou a carcaça e voltou a enfiar as mãos nas luvas. A
visão dos seus próprios dedos com pontas vermelhas era
muito desconfortável.

A erupção cutânea já se estava a espalhar pelas


suas costas, ou assim lhe parecia. Não tinha forma de
saber se a comichão era real ou se era apenas fruto da
sua imaginação. A Donmata Marosa não lhe dissera ao
certo quanto tempo lhe restava, sem dúvida para o
impedir de contar os dias.

Tinha frio, por isso voltou para junto da fogueira e


descansou a ca­beça sobre a sacola. Descansou durante
algumas horas antes de voltar a sair.

Deitado, embrulhado no seu manto, enrolado numa


bola, olhou para a bússola pendurada num fio ao
pescoço. A Donmata dera-lhe instru­ções para ir para
sudeste até chegar ao deserto. Depois, deveria
atravessá-lo até chegar à capital dos ersyri, Rauca, e de
lá deveria apanhar uma caravana para Rumelabar, onde
Chassar uq-Ispad vivia numa enorme propriedade, o local
onde Ead, a sua pupila, fora criada.

Seria uma viagem difícil e, para não desenvolver a


doença, teria de a fazer o mais depressa possível. Não
tinha nenhum mapa na sua sacola, mas descobrira um
porta-moedas com sóis de ouro e prata. Cada moeda
tinha a imagem de Jantar, o Esplêndido, rei do Ersyr.
Loth voltou a enfiar a bússola debaixo da camisa.
Sentiu a febre na testa. Desde o dia em que o rubor
invadira as suas mãos, acordava dos seus sonhos
encharcado em suor. Sonhava com Kit, enterrado num
vidro manchado de sangue, preso para sempre entre um
mundo e o outro. Sonhava com Sabran a morrer no
parto, e via-se impotente para o evi­tar. E sonhava,
inexplicavelmente, com a Donmata Marosa a dançar em
Ascalon, antes de se ver confinada à sua torre, à mercê
do fantoche em que o seu pai se tinha tornado.
De repente, um ruído na boca da gruta trouxe-o de
volta à realidade. Apurou os ouvidos, ficou imóvel e
esperou.
Uma garra bateu na pedra. Só restavam algumas
brasas da fogueira, mas aquela pequena luz era
suficiente para distinguir aquela silhueta monstruosa.
Plumagem esbranquiçada e patas cobertas de
escamas cor-de-rosa. Três dedos em cada garra. Um
retalho de carne sobre o seu bico. Loth nunca tinha visto
nada tão horrível, tão temível. Rezou ao Cavaleiro da
Bravura, mas tudo o que encontrou foi um abismo de
terror.
Era uma cocatriz.
Um som gutural saiu-lhe do fundo da garganta, e
algo como baba caiu-lhe do bico. Os seus olhos pareciam
duas feridas a sangrar na sua cabeça. Loth, imóvel nas
sombras, viu que tinha uma asa partida cober­ta de
sangue e plumagem suja. Uma língua viscosa lambia as
feridas.
Tremendo de medo, Loth puxou a alça da sua sacola
para junto do peito e agarrou o cajado. Enquanto o
monstro lambia as feridas, sacou da espada e rastejou
em direção à boca da gruta, agarrando-se à parede mais
próxima.
A cocatriz levantou a cabeça. Soltou um grito
ensurdecedor e ergueu o corpo. Loth começou a correr e
saltou por cima da sua cauda. Correu como nunca tinha
corrido antes, para fora da gruta, e desceu a encosta,
deslizando sobre o gelo. No seu desespero, tropeçou e
caiu, agarrando a sacola como se fosse a mão do próprio
Santo.
De repente, garras agarraram-lhe os ombros. Gritou
e viu o chão a afastar-se. A espada escorregou-lhe das
mãos, mas com as pontas dos dedos conseguiu agarrar o
cajado.
A cocatriz bateu as asas, voando sobre um
desfiladeiro, inclinando o corpo para o lado da asa
partida. Loth debateu-se até que, em pânico, percebeu
que a cocatriz era tudo o que o separava de uma queda
mortal. Deixou-se levar sem resistência e a besta soltou
um grito de triunfo.
As garras soltaram a sua presa e Loth caiu no chão
duro, aterrando sobre o ombro. O golpe fez tremer todos
os ossos do seu corpo.
A besta carregara-o até ao topo de uma montanha
baixa. Ofegante, Loth rastejou pelo chão e agarrou o
bastão de gelo. Já tinha caçado mui­tas vezes com
Sabran, a cavalo, mas nessas ocasiões a presa não era
ele.
Uma cauda branca coberta de escamas atingiu-o
com força na bar­riga. Voou para trás e bateu com a
cabeça numa saliência de pedra. Encolheu-se
instintivamente, mas não deixou cair a arma.
Morreria no local se fosse preciso, mas levaria o
monstro com ele.
Ainda abalado pelo golpe, bateu com o bastão. A
cocatriz pontapeou, eriçou as penas do pescoço e
avançou para ele. Loth atirou-lhe o bastão de gelo como
se fosse uma lança. A cocatriz baixou-se para evitar o
impacto e a única arma de Loth caiu na ravina.
Desta vez, a cauda da cocatriz quase atirou Loth do
penhasco. Investiu contra ele, cacarejando. Loth
encolheu-se numa bola e cerrou os dentes com tanta
força que lhe doeu o maxilar. Sentiu o calor da febre em
todas as suas dobras.
Uma pata esmagou-lhe as costas. Um bico perfurou-
lhe o manto. Entre soluços, Loth tentou agarrar-se a uma
recordação feliz. A primei­ra imagem que lhe veio à
cabeça foi do dia do nascimento de Margret, como era
bonita, com os seus olhos enormes e as suas mãos
pequeninas. As suas danças com Ead em todos os
Banquetes da Camaradagem. Os dias de caça com
Sabran, desde o amanhecer até ao anoitecer. As tardes
com Kit, sentados na Biblioteca Real, lendo-lhe os seus
próprios poemas.
Ouviu outro som e a pata desapareceu. Loth abriu os
olhos e viu a cocatriz a cambalear como um gigante
embriagado. Lutava com outra criatura, mais peluda
onde a cocatriz possuía penas. A besta draconiana gritou,
grasnou e cacarejou, mas os seus esforços foram em
vão: o recém-chegado rasgou-lhe a garganta.
A cocatriz caiu, mole. O sangue jorrava-lhe da
carcaça. O seu vence­dor soltou um latido e empurrou-a,
fazendo-a cair no precipício.
Agora que estava imóvel, Loth pôde ver quem era o
seu salvador. Tinha a forma de um mangusto, com uma
longa cauda coberta por uma pelagem castanha que se
tornava branca nos cascos e no focinho. Mas era
gigantesco, tão grande como um urso do Norte. E tinha
uma boca preta, manchada de sangue e de tripas.
Era um ichneumon. O arqui-inimigo natural dos
wyrms. Eles eram os heróis de mais de uma lenda de
Inys, mas ele nunca imaginara que eles ainda existissem.
O Santo encontrara uma dessas criaturas na estrada
de Lasia para Inys. O ichneumon carregara a Donzela às
costas quando ela estava demasiado cansada para
continuar a andar.
O ichneumon lambeu os dentes para os limpar. Mas
quando o viu, voltou a exibi-los.
Os seus olhos eram redondos e cor de âmbar, como
os de um lobo, ro­deados de pelo preto. Na extremidade
da cauda, tinha marcas brancas. Naquele momento, o
seu rosto estava coberto de penas ensanguentadas.
Aproximou-se de Loth com uma agilidade impossível para
um animal daquele tamanho e cheirou-lhe o manto.
Timidamente, Loth estendeu-lhe a mão. Depois de
lhe cheirar a luva, o ichneumon rosnou. Devia ter sentido
o fedor, o cheiro daquele antigo inimigo. Loth ficou
imóvel quando sentiu o hálito quente e húmido na sua
face. Passado algum tempo, o ichneumon fletiu as patas
da frente e ladrou.
— Que se passa, amigo? — perguntou Loth. — Que
queres de mim?
Podia jurar que o ichneumon lhe respondera com um
suspiro. A cria­tura empurrou a cabeça para debaixo do
seu braço.
— Não, eu tenho a peste — disse Loth, com a voz
fraca de cansaço. — Não te aproximes de mim.
Então ocorreu-lhe que nunca ouvira falar de nenhum
animal que ti­vesse apanhado a pesten draconiana. O seu
manto peludo emitia um calor suave de animal, não o
fogo ardente dos wyrms.
Com uma força renovada, Loth pendurou a sacola ao
ombro. Enfiou os dedos no pelo espesso e subiu para as
costas do ichneumon.
— Gostaria de ir a Rauca — disse ele — se me
mostrares o caminho.
O ichneumon voltou a ladrar e depois desceu a
encosta a correr. Enquanto corria, com as patas tão
rápidas como o vento, Loth mur­murou uma oração de
gratidão à Donzela e ao Santo. Agora sabia que aquele
animal fora colocado no seu caminho e estava decidido a
segui-lo até ao fim.
Ao amanhecer, o ichneumon abrandou e parou numa
saliência ro­chosa. Loth sentiu o cheiro da terra queimada
pelo sol e o perfume das flores. Diante dos seus olhos,
estendiam-se as planícies poeirentas no sopé da Roca e,
mais além, um deserto que se prolongava até onde a
vista alcançava, pó de ouro ao sol. Quase poderia ser
uma miragem, mas ele sabia que era real.
Contra todas as probabilidades, o Deserto do Sonho
Inquieto estava diante dele.
24
Oeste

O início do outono foi uma época agridoce. Ead


esperava ter notí­cias de Chassar, para ver se a Prioresa
lhe permitiria ficar em Inys por mais algum tempo, mas
não recebeu nenhuma mensagem.
Conforme os ventos se tornavam mais frios e a
roupa de verão dava lugar a peles vermelhas e
castanhas, a corte apaixonou-se pelo príncipe consorte.
Para surpresa de todos, ele e Sabran começaram a
frequentar juntos bailes de máscaras e peças de teatro
na Câmara de Presença. Sempre se haviam realizado
estes espetáculos, mas a rainha não os fre­quentava há
anos, exceto nas festas de noivado. Chamava os bobos
da corte e ria-se das suas peripécias. Pedia às suas
damas de companhia que dançassem para ela. Por
vezes, pegava no seu par pela mão e sorriam um para o
outro como se não houvesse mais ninguém no mundo.
E em todas as ocasiões, Ead estava por perto. Agora,
raramente saía do lado da rainha.
Pouco depois do casamento, Sabran acordou e
encontrara os lençóis manchados de sangue. Enfureceu-a
a ponto de Roslain não saber o que dizer e todo o pessoal
da Casa Superior ficar assustado. Até o Príncipe Aubrecht
foi passar o dia a caçar na floresta de Chesten.
Ead achava que isso era de esperar. Sabran era
rainha e nascera com a convicção de que o mundo tinha
a obrigação de lhe dar tudo o que ela quisesse, quando
quisesse. Mas não podia ordenar ao seu próprio ventre
que desse fruto.
— Acordei esta manhã com um enorme desejo de
comer cerejas disse ela a Ead certa manhã. — Que achas
que significa?
— Já não estamos na época das cerejas, minha
senhora — respondeu Ead. — Talvez sintais falta da
abundância do verão.
A rainha parecera irritada, mas não disse mais nada.
E Ead continuou a escovar-lhe o manto.
Não concederia a Sabran aquele capricho. Katryen e
Roslain diziam a Sabran o que ela queria ouvir, mas Ead
estava determinada a dizer-lhe o que ela precisava de
saber.
Sabran nunca fora paciente. Rapidamente se tornou
mais relutante em passar a noite com o seu
companheiro, preferindo ficar com as suas damas a jogar
às cartas até altas horas da madrugada. Durante o dia,
estava cansada e agitada. Katryen disse a Roslain que
esse estado de espírito poderia tornar o seu ventre
menos acolhedor para o bebé e, ao ouvir isto, Ead teve
vontade de lhe abanar a cabeça até lhe caírem todos os
dentes.
A conceção não era a única preocupação da rainha.
Defender Mentendon dos wyrms da Roca estava a tornar-
se um fardo mais pesado do que ela previra. Lievelyn
providenciara um dote, mas ele logo se esgotaria.
Agora, Ead tinha acesso a todas aquelas informações,
aqueles dados íntimos e secretos. Sabia que Sabran por
vezes ficava deitada na cama durante horas a fio,
sofrendo de um mal-estar que herdara dos seus an­‐
tepassados. Ead sabia que ela tinha uma cicatriz na coxa
esquerda, re­sultante de uma queda de uma árvore
quando tinha doze anos. E sabia que ansiava pela
gravidez, mas, ao mesmo tempo, temia-a mais do que
qualquer outra coisa no mundo.
Sabran dizia que o Palácio de Briar era o seu lar, mas
naquele momen­to parecia mais uma gaiola. Os rumores
circulavam pelos corredores e claustros. Até as paredes
pareciam suster a respiração.
Ead também não era alheia aos rumores. Muitos se
interrogavam so­bre o que teria feito uma convertida para
se tornar Dama do Leito Real. Mesmo ela não fazia ideia
por que motivo Sabran a escolhera em vez de tantas
outras jovens nobres ao serviço da Casa Superior. Linora
lançara-lhe mais do que um olhar ressentido, mas Ead
não lhe prestara atenção. Havia oito anos que lidava com
aquelas cortesãs imbecis.
Uma manhã, vestiu um dos seus vestidos de outono e
saiu para apa­nhar ar fresco antes que Sabran acordasse.
Agora, tinha de se levantar antes do amanhecer, se
quisesse estar algum tempo a sós. Passava a maior parte
do dia com Sabran e tinha acesso praticamente ilimitado
a tudo o que dizia respeito à rainha.
A madrugada estava fresca e os claustros
agradavelmente silenciosos. O único som era o arrulhar
de um pombo. Ead puxou o colarinho de pele do seu
manto ao passar pela estátua de Glorian a Terceira, a
rainha que liderara Inys durante a Ascensão das
Sombras. Mostrava-a de ar­madura, a cavalo, com uma
grande barriga de grávida, a espada erguida em desafio.
Glorian subira ao trono no dia em que Fýredel matara
os seus pais. A guerra apanhara-a desprevenida, mas
Glorian, a Destemida, não se deixara dissuadir. Casara
com o velho Duque de Córvugar e marcara o noivado da
sua filha por nascer com Haynrick Vatten de Mentendon,
enquanto liderava a defesa de Inys. No dia do
nascimento da sua filha, levara-a para o campo de
batalha para mostrar ao seu exército que havia
esperança. Para Ead, não era claro se se tratava de uma
demonstração de coragem ou de loucura.
Havia outras histórias do género. Outras rainhas que
tinham fei­to grandes sacrifícios por Inys. Eram as
mulheres cujo legado Sabran Berethnet carregava nos
ombros.
Ead virou à direita por uma passagem e chegou a uma
estrada de cas­calho ladeada por castanheiros. No fim da
estrada, para lá das muralhas do palácio, ficava a
floresta de Chesten, tão antiga como a própria Inys.
Dentro dos terrenos do palácio havia uma estufa de
ferro forjado e vidro. Quando Ead entrou e respirou o ar
quente e húmido, um pisco-de-peito-ruivo voou do
telhado.
Lírios-joia flutuavam numa jangada. Quando
encontrou os açafrões, baixou-se e tirou uma tesoura da
faixa. No Priorado, uma mulher toma­va açafrão durante
dias antes de tentar engravidar.
— Senhora Duryan.
Levantou os olhos, assustada. Perto de si estava
Aubrecht Lievelyn, envolto num manto castanho-
avermelhado.
— Alteza Real. — Levantou-se e fez uma vénia
enquanto guardava o açafrão no bolso. — Perdoai-me.
Não vos vi.
— Pelo contrário, desculpai-me a mim por vos ter
incomodado. Não pensei que alguém se levantasse tão
cedo.
— Não o faço sempre, mas aprecio a luz do
amanhecer.
— Eu aprecio esta paz. Nesta corte há sempre muita
azáfama.
— A vida na corte é diferente em Brygstad?
— Talvez não. Em todas as cortes há olhares e
murmúrios, mas aqui os murmúrios são... Bem, não devo
lamentar. — Dirigiu-lhe um sorriso gentil. — Posso saber
o que estais a fazer?
O seu instinto dizia-lhe para desconfiar do interesse
dele, mas Lievelyn nunca lhe parecera um conspirador.
— Estou certa de que sabeis que Sua Majestade
sofre de ataques de terror noturno — disse. — Estava à
procura de um pouco de lavanda para moer e pôr
debaixo da almofada dela.
— Lavanda?
— Ajuda a dormir tranquilamente.
Ele assentiu.
— Então talvez queirais visitar o Jardim do Boticário —
disse ele. — Posso acompanhar-vos?
A oferta surpreendeu-a, mas não podia recusar.
— Sim, claro, Vossa Alteza.
Saíram da estufa no momento em que o Sol
espreitava no horizonte. Ead pensou se deveria tentar
iniciar uma conversa, mas Lievelyn parecia contente em
apreciar a beleza dos jardins cobertos de geada
enquanto caminhavam lado a lado. A Guarda Real do
Príncipe seguia-os a alguma distância.
— É verdade que Sua Majestade não dorme bem —
disse ele por fim. — As suas obrigações pesam-lhe.
— Tal como as vossas obrigações devem pesar sobre
vós.
— Ah, mas para mim é mais fácil. É Sabran quem irá
carregar a nos­sa filha. É Sabran quem lhe dará a vida. —
Voltou a sorrir, virando-se para a floresta de Chesten. —
Dizei-me, senhora Duryan, supõe-se que a Dama da
Floresta tenha andado entre estas árvores?
Um arrepio percorreu Ead.
— Isso é uma lenda muito antiga, Alteza. Confesso
que me surpreende que tenhais ouvido falar dela.
— Um dos meus novos criados contou-ma. Pedi-lhe
que me esclare­cesse algumas das histórias e costumes
do país. Nós, em Mentendon, te­mos os nossos duendes
do bosque, os nossos lobos vermelhos e tudo isso.
claro... mas a história de uma bruxa que matava
crianças parece-me particularmente sangrenta.
— Em tempos, Inys foi um país muito sangrento.
— Isso é verdade. Graças ao Santo, já não é assim.
Ead olhou para a floresta.
— Tanto quanto sei, não há registo de que a Dama da
Floresta tenha passado por aqui — disse ela. —
Haithwood fica no norte, perto de Goldenbirch, onde o
Santo nasceu. Ninguém entra lá, exceto os pere­grinos na
primavera.
— Ah. — Ele riu-se. — Que alívio. Quase pensei que
um dia iria olhar pela janela e encontrá-la lá fora.
— Não tendes nada a temer, Alteza.
Pouco depois, chegaram ao Jardim do Boticário.
Situava-se num pátio ao lado da Cozinha Real, onde
começavam a acender os fogos.
— Concedeis-me a honra? — perguntou Lievelyn.
Ead entregou-lhe a tesoura.
— Claro.
Ajoelharam-se junto à lavanda, e Lievelyn tirou as
luvas, com um sor­riso de menino no rosto. Talvez
achasse exasperante não ter nada para fazer com as
próprias mãos. Os seus criados tinham de fazer tudo,
desde servir-lhe a comida até lavar-lhe o cabelo.
— Alteza Real — disse Ead —, perdoai a minha
ignorância, mas quem governa Mentendon na vossa
ausência?
— A Princesa Ermuna é a minha representante
enquanto estou em Inys. Claro que espero que a Rainha
Sabran e eu cheguemos a um acordo que me permita
passar mais tempo em casa. Então poderei ser consorte
e soberano. — Passou os dedos por um talo de lavanda.
— A minha irmã é uma força da natureza, mas temo por
ela. Mentendon é um reino frágil, e a nossa é uma jovem
casa real.
Ead observou-lhe o rosto enquanto ele falava. O seu
olhar estava no anel com o nó do amor.
— Este também é um reino frágil, Vossa Alteza —
disse ela.
— Como tenho vindo a perceber.
Ele cortou a lavanda e entregou-lha. Ead levantou-se e
sacudiu as saias, mas Lievelyn não parecia ter pressa em
sair.
— Disseram-me que nascestes no Ersyr.
— Sim, Alteza. Conheço Chassar uq-Ispad,
embaixador do rei Jantar e da rainha Saiyma. Era sua
discípula.
Era a mentira que ela andava a contar havia oito
anos, por isso já não lhe custava.
— Ah — disse Lievelyn. — Rumelabar, então.
— Sim.
Lievelyn voltou a calçar as luvas. Olhou por cima do
ombro, para onde a Guarda Real esperava, à entrada do
jardim.
— Senhora Duryan — sussurrou —, estou contente
por vos ter en­contrado esta manhã, pois gostaria de vos
pedir um conselho sobre um assunto privado, se tiverdes
a bondade de o dar.
— Em que qualidade, Alteza?
— Na qualidade de Dama do Leito Real. — Aclarou a
voz. — Gostaria de levar Sua Majestade para as ruas,
fazer dádivas ao povo de Ascalon, com vista a ir mais
longe no verão. Tanto quanto sei, ela nunca fez uma
visita formal às suas províncias. Mas antes de falar com
ela sobre o assunto... gostaria de saber se sabeis porque
não o fez.
Um príncipe a pedir-lhe conselhos. Como as coisas
haviam mudado.
— Sua Majestade não se tem misturado com outras
pessoas desde a sua coroação — disse Ead. — Por causa
da... Rainha Rosarian.
Lievelyn franziu a testa.
— Eu sei que a Rainha-Mãe foi cruelmente
assassinada. Mas isso aconteceu no próprio palácio, não
na rua.
Ead observou o seu olhar sincero. Havia algo nele que
a obrigava a ser honesta.
— Também há pessoas descerebradas em Ascalon,
que bebem do mesmo mal que invadiu Yscalin, e que
anseiam pelo regresso do Inominável — disse ela. — E
estariam dispostas a acabar com a Casa de Berethnet
para se certificarem de que o conseguem. Algumas
dessas pessoas até penetraram no Palácio de Ascalon.
São assassinos.
Lievelyn ficou em silêncio por um momento.
— Não sabia disso. — Parecia preocupado, e Ead
perguntou-se do que lhe falaria Sabran. — Até onde já
chegaram?
— Perto dela. O último veio no verão, mas não tenho
dúvidas de que o senhor que servem continuará a
conspirar contra Sua Majestade.
O príncipe apertou o maxilar.
— Compreendo — murmurou. — É claro que não
desejo pôr Sua Majestade em perigo. E, no entanto, para
os habitantes do Reino das Virtudes, ela é um farol de
esperança. Agora que um Sombra Ocidental reapareceu,
devem ser relembrados do seu amor pelo seu povo, da
sua de­voção. Sobretudo se for forçada, por exemplo, a
aumentar os impostos para financiar a criação de novos
navios e mais armas.
Ele estava a falar a sério.
— Alteza — disse Ead —, peço-vos que espereis até
terdes uma filha antes de falardes de tal ideia a Sua
Majestade. Uma princesa dará ao povo todo o conforto e
segurança de que necessita.
— Infelizmente, os bebés não nascem só porque os
desejamos mui­to. Pode levar muito tempo até que
tenhamos uma herdeira, senhora Duryan. — Lievelyn
exalou pelo nariz. — Como seu companheiro, eu deveria
conhecê-la melhor, mas a minha senhora carrega o
sangue do Santo. Que mortal poderá conhecê-la?
— Conhecereis — confortou Ead. — Nunca a vi olhar
para ninguém como olha para vós.
— Nem mesmo para o Lorde Arteloth Beck?
O nome deixou-a atordoada.
— Vossa Alteza?
— Eu ouvi os rumores. Rumores de um caso. —
Lievelyn hesitou por um momento, depois continuou. —
Pedi a Rainha Sabran em casamento, mas de vez em
quando pergunto-me se... — Clareou a voz, um pouco
embaraçado.
— O Lorde Arteloth é um grande amigo de Sua
Majestade. São amigos desde crianças e amam-se como
irmãos — respondeu Ead, sem tirar os olhos dos dele —,
apesar dos rumores que possais ter ouvido.
O príncipe suavizou a expressão e voltou a sorrir.
— Suponho que não deva dar ouvidos a mexericos.
Tenho a certeza de que também há muitos sobre mim —
disse ele. — O Lorde Seyton diz-me que o Lorde Arteloth
está agora em Yscalin. Deve ser um homem de grande
coragem para ter partido numa missão tão perigosa.
— Sim, Vossa Alteza, é.
Fez-se um breve silêncio, interrompido apenas pelo
canto dos pássaros.
— Obrigado pelo vosso conselho, senhora Duryan. Foi
muito ge­neroso da vossa parte — disse Lievelyn,
mexendo no pingente do seu patrono, que tinha a
mesma imagem que o de Ead. — Vejo agora por­que Sua
Majestade fala tão bem de vós.
Ead respondeu com uma reverência.
— Sois muito gentil, Vossa Alteza Real. Tal como Sua
Majestade.
Com uma vénia cortês, o príncipe retirou-se.
Aubrecht Lievelyn não tinha nada de cobarde. Era
suficientemente ambicioso para querer implementar
mudanças e possuía o que parecia ser uma tendência
tipicamente mêntica para desenvolver ideias perigo­sas.
Ead rezou para que ele seguisse o seu conselho. Seria
uma loucura para Sabran mostrar-se em público quando
a sua vida era ameaçada.
Quando chegou aos aposentos da rainha, Ead
encontrou-a acordada. Queria ir caçar. Ead não tinha
cavalo próprio, pelo que lhe foi dado um corcel de raça
pura dos Estábulos Reais.
Truyde utt Zeedeur, que assumira o lugar de Ead
como simples ca­mareira, ia participar na caçada. Quando
se encontraram, Ead ergueu as sobrancelhas. A jovem
virou-se, insondável, e subiu para o seu cavalo castanho.
Devia estar a perder a esperança de voltar a ver o seu
amante. Se Sulyard lhe tivesse escrito, ela não estaria
tão triste.
Sabran recusava-se a caçar com cães. Preferia que as
suas presas fos­sem caçadas de forma limpa, ou que não
fossem caçadas de todo. O grupo avançou para a floresta
de Chesten e, de repente, Ead sentiu um desejo súbito
de caçar. Apreciou a sensação do vento no seu cabelo.
Mal podia esperar para apertar a corda do arco com os
dedos.
Tinha de se conter. Demasiadas capturas levantariam
a questão de onde tinha aprendido a disparar tão bem.
Por isso, no início, preferiu afastar-se e observar os
outros.
Roslain, que se dizia ser hábil com falcões, era muito
desajeitada com o arco. Em menos de uma hora, já
perdera a paciência. Truyde utt Zeedeur disparou sobre
um pombo. Margret era a melhor atiradora das damas de
companhia. Ela e Loth gostavam muito de caçar, mas
ninguém conseguia vencer a rainha. Os rapazes
encarregados de apanhar as presas mal a conseguiam
acompanhar. Ao meio-dia, já tinha uma boa pilha de
coelhos.
Quando avistou um cervo entre as árvores, Ead
sentiu-se tentada a deixá-lo escapar. Uma dama de
companhia deixaria a rainha ficar com o prémio, mas
talvez com uma captura não levantasse suspeitas.
A sua flecha voou pelo ar. O cervo caiu. Margret, que
estava sentada no seu capão, foi a primeira a chegar.
— Sab!
A trote, Ead seguiu a rainha até à clareira. A flecha
atingira o cervo no olho.
Exatamente onde a tinha apontado.
Truyde utt Zeedeur chegou a seguir e olhou para o
animal morto com um ar tenso no rosto.
— Parece que hoje vamos ter carne de cervo para o
jantar — disse a rainha, as faces rosadas do frio. — Tinha
a sensação de que não tinhas o hábito de caçar, Ead.
Ead inclinou a cabeça.
— Alguns de nós têm habilidades inatas, Majestade.
Sabran sorriu e, sem pensar, Ead sorriu de volta.
— Vamos ver se tens outras habilidades inatas —
disse Sabran, colocan­do a sua montada em torno dela.
Venham, meninas, vamos fazer uma corrida de volta ao
Palácio de Briar. A vencedora terá um prémio.
As mulheres esporearam os seus cavalos com um
grito de alegria, dei­xando os cavalariços a recolher o que
tinham caçado.
Saíram a correr da floresta e atravessaram a relva.
Em pouco tem­po, Ead encontrava-se ao lado da rainha,
ambas sem fôlego de tanto rir, incapazes de se
superarem uma à outra. Com o cabelo ao vento e os
olhos brilhantes com a emoção da caça, Sabran
Berethnet parecia quase despreocupada e, pela primeira
vez em anos, Ead sentiu que se tinha livrado das suas
tribulações. Como as sementes de uma flor ao vento.

***

Sabran passou o resto do dia de bom humor. À noite,


deu permissão a todas as suas damas para se retirarem
para tratar de assuntos de estado na Biblioteca Privada.
Ead herdara de Arbella Glenn uma suíte de dois
quartos, mais pró­xima dos aposentos reais do que o seu
antigo quarto. Era composto por duas salas contíguas,
com painéis de madeira e tapeçarias nas pa­redes, e
tinha uma cama de dossel. As janelas gradeadas davam
para os jardins.
Os criados já tinham acendido a lareira. Ead despiu o
seu uniforme de equitação e limpou o suor com um
lenço.
Às oito horas, bateram à porta. Tallys, a encantadora
criada da cozi­nha, apareceu na soleira.
— O vosso jantar, senhora Duryan. — Fez uma
pequena vénia. Por mais que Ead lhe dissesse que era
desnecessário, ela fazia-o sempre. — O pão acabou de
ser cozido. Dizem que esta noite vai estar gelada.
— Obrigada, Tallys — disse Ead, pegando na
bandeja. — Diz-me, criança, como estão os teus pais?
— A minha mãe não está muito bem — admitiu
Tallys. — Partiu o braço e não vai poder trabalhar durante
uns tempos, e o senhorio é muito duro. Eu mando-lhes o
meu salário todo, mas... não é muito. Não que me esteja
a queixar, claro — apressou-se a acrescentar. — Tenho
muita sorte em trabalhar aqui. É só um mês difícil, mais
nada.
Ead pegou na carteira.
— Toma. — Entregou-lhe algumas moedas. — Isto
deve pagar a renda até ao inverno.
Tallys olhou para elas.
— Oh, senhora Duryan, não, não posso...
— Por favor. Tenho muitas poupanças e pouca
necessidade de gastar. Além disso, não nos ensinam a
ser generosos?
Tallys acenou com a cabeça, com a boca a tremer.
— Obrigada — sussurrou.
Quando saiu, Ead sentou-se à mesa para jantar. Pão
acabado de co­zer, cerveja amanteigada e um guisado
guarnecido com sálvia fresca.
Ouviu um barulho na janela.
Lá fora, uma águia-da-areia observava-a com o seu
olho amarelo. Tinha a plumagem cor de manteiga de
amêndoa e as pontas das asas castanho-escuras. Ead
apressou-se a abrir a janela.
— Sarsun.
A águia saltou para dentro e inclinou a cabeça para
um lado. Ead alisou-lhe as penas com a ponta dos dedos.
— Já lá vai muito tempo, meu amigo — disse ela em
selinyi. — Vejo que conseguiste evitar o Falcão da Noite.
A águia respondeu com um gorjeio.
— Chiu. Ou vais parar ao aviário com aqueles pombos
idiotas.
A águia pousou a cabeça na palma da mão de Ead,
que sorriu e lhe acariciou as asas até a ave esticar uma
pata. Com cuidado, pegou no bilhete que trazia. Sarsun
voou e pousou na sua cama.
— Sim, claro, põe-te à vontade, não há problema.
A águia começou a bater as asas.
O rolo de papel estava intacto. Combe podia
intercetar qualquer coi­sa que chegasse com o correio a
cavalo ou com um pombo-correio, mas Sarsun era
suficientemente esperto para se esquivar. Ead leu a
mensa­gem codificada:
A Prioresa permite-te ficar em Inys até a Rainha ter
uma filha. Assim que a notícia do nascimento nos chegar,
irei buscar-te.
Da próxima vez, não discutas comigo.

Chassar conseguira.
Ead sentiu o cansaço a instalar-se novamente. Atirou
a carta para o lume e, uma vez debaixo dos cobertores,
Sarsun enroscou-se no buraco debaixo da sua axila como
um pintainho. Ead acariciou-lhe a cabeça com um dedo.
A leitura daquela mensagem enchera-a de tristeza e
de alívio. A oportu­nidade de voltar para casa fora-lhe
oferecida de bandeja e, no entanto, ali estava ela, por
sua própria escolha, no mesmo lugar de onde passara
anos a querer fugir. Por outro lado, significava que os
anos passados na corte não seriam em vão. Poderia
acompanhar Sabran na sua maternidade.
Afinal, não importava quanto tempo passasse ali. O
seu destino era receber o manto escarlate. Isso não iria
mudar.
Pensou no toque frio de Sabran na sua mão. E
quando adormeceu, sonhou com uma rosa vermelho-
sangue nos seus lábios.

***

Ao amanhecer, Ead estava vestida e a caminho dos


aposentos reais, pronta para o Festim do Outono
Nascente. Sarsun partira durante a noite. Teria uma
longa viagem pela frente.
Quando Ead passou pela Guarda Real e entrou na
Câmara Privada, descobriu que Sabran já se levantara. A
rainha vestia um roupão de seda castanho-avermelhado
com mangas de tecido dourado e tinha o cabelo preso
num toucado com tranças de topázio.

— Vossa Majestade — disse Ead, fazendo uma


vénia. — Não sabia que estáveis acordada.

— O canto dos pássaros acordou-me. — Sabran pôs


o seu livro de lado. — Vem. Senta-te comigo.

Ead foi sentar-se a seu lado no banco.

— Ainda bem que vieste — disse Sabran. — Tenho


uma coisa privada para te dizer antes da festa. — O seu
sorriso traiu-a. — Estou grávida.

A primeira reação de Ead foi cautelosa.

— Tendes a certeza, Majestade?

— Mais do que isso. A minha menstruação está


atrasada há muito tempo.

Finalmente.
— Minha senhora, isso é maravilhoso — disse Ead,
com entusiasmo. — Parabéns. Estou muito feliz por vós e
pelo Príncipe Aubrecht.
— Obrigada.
Sabran baixou o olhar, mas quando o pousou na
barriga, o seu sorriso desvaneceu-se. Ead viu-a franzir as
sobrancelhas.
— Ainda não deves contar a ninguém — avisou a
rainha. — Nem mesmo Aubrecht sabe. Só a Meg, os
Duques Espirituais e as minhas Damas do Leito Real.
Todos os meus conselheiros concordam que deve­mos
anunciá-lo quando começar a tornar-se evidente.
— E quando ireis contar a Sua Alteza Real?
— Em breve. Quero fazer-lhe uma surpresa.
— Certificai-vos de que há um escano por perto
quando o fizerdes.
Isso fez Sabran sorrir novamente.
— Certificar-me-ei. Terei de ser gentil com o meu
ratinho.
Uma filha asseguraria a sua posição na corte.
Decerto que faria dele o homem mais feliz do mundo.

***

As dez horas, Lievelyn encontrou-se com a rainha às


portas do Salão de Banquetes. Um orvalho prateado fazia
cintilar os jardins. O príncipe consorte vestia uma pesada
sobrecasaca com detalhes em pele de lobo que o faziam
parecer mais largo atrás do que realmente era. Baixou a
cabeça para fazer uma vénia a Sabran, mas nesse
momento, à frente de todos os presentes, ela agarrou-lhe
a nuca e beijou-o na boca.
Ead enregelou-se de repente. Lievelyn envolveu
Sabran com os bra­ços e puxou-a para si com delicadeza.
Um riso nervoso percorreu todas as damas de
companhia. Quando os dois finalmente se separaram,
Lievelyn sorriu e beijou Sabran na testa.
— Bom dia, Majestade — disse ele, e os dois
avançaram de braço dado, Sabran apoiada no seu
companheiro de modo que os seus mantos se fundissem
um no outro como manchas de tinta.
— Ead — chamou Margret —, estás bem?
Ead acenou com a cabeça. A sensação no seu peito
estava a passar, mas deixara uma sombra indescritível
dentro de si.
Quando Sabran e Lievelyn entraram no Salão de
Banquetes, uma multidão de cortesãos ergueu-se para os
saudar. O casal real dirigiu-se para a Mesa de Honra com
os Duques Espirituais, enquanto as damas de companhia
se distribuíam pelos bancos. Ead nunca tinha visto os
Duques tão satisfeitos. Igrain Crest estava a sorrir e
Seyton Combe, que obscurecia todas as salas em que
entrava, parecia estar a esforçar-se para não esfregar as
mãos.
Aquele Festim do Outono Nascente era um
esbanjamento. O vinho tinto fluía, espesso e doce, e
Lievelyn descobriu que haviam feito um bolo de frutas
com rum — o seu favorito quando criança —, recriado de
uma famosa receita mêntica.
As mesas estavam cobertas de bandejas de cobre
brilhante com todas as iguarias da época. Um pavão
branco de bico dourado assado e co­berto com molho de
mel e cebolas, e depois emplumado outra vez para
parecer vivo. Alperces embebidos em água de rosas.
Maçãs cortadas ao meio numa geleia carmesim. Tarte de
amora com especiarias e cobertura canelada e pequenas
tarteletes de cervo. Ead e Margret responderam com
exclamações de simpatia quando Katryen lamentou a
perda do seu admirador secreto, de quem deixara de
receber cartas.
— Sabran deu-te a notícia? — perguntou Katryen, em
voz baixa.
Ela queria que ambas soubessem.
— Sim, agradeço à Donzela a sua compaixão — disse
Margret. Começara a pensar que morreria de irritação se
mais alguém fizesse notar que Sua Majestade se parecia
muito bem ultimamente.
Ead olhou para trás para se certificar de que ninguém
estava a ouvir.
— Katryen — murmurou —, tens a certeza de que
Sabran não sangrou?
— Sim. Não te preocupes, Ead — garantiu Katryen,
bebendo um gole do seu vinho de amora. — Sua
Majestade terá de começar a prepa­rar o corpo de
serviçais para a princesa.

— Que o Santo nos proteja. Isso causará um desfile


de personalidades maior do que a morte da pobre Arbella
— lamentou Margret.

— Serviçais? — Ead levantou uma sobrancelha. —


Um bebé precisa de serviçais próprios?

— Sim. Uma rainha não tem tempo para criar uma


filha. Bem — acrescentou Katryen —, agora que penso
nisso, Carnelian a Terceira insistiu em amamentar a filha
sozinha, mas não é frequente. A princesa vai precisar de
amas, de uma governanta, tutores...
— E quantas pessoas farão parte desses serviçais?

— Cerca de duzentas.

Um corpo de serviçais excessivo, ao que parecia.


Mas também era verdade que tudo em Inys era
excessivo.

— Diz-me — insistiu Ead, ainda curiosa. — E se Sua


Majestade ti­vesse um filho?

Katryen inclinou a cabeça para um lado.

— Suponho que não teria importância, mas isso


nunca aconteceu, em toda a história de Berethnet. É
evidente que o Santo decidiu que esta ilha deveria ser
um rainhado.

Enquanto os pratos eram limpos e a conversa


começava, o mordomo bateu duas vezes no chão com o
cajado.

— Vossa Majestade — anunciou. — Rainha Sabran.

Lievelyn levantou-se e estendeu a mão à sua


companheira. Ela aceitou-a e a corte levantou-se com
ela.

— Povo da corte — disse ela —, damos-vos as boas-


vindas ao Festim do Outono Nascente, a época das
colheitas, amada acima de tudo pelo Cavaleiro da
Generosidade. Deste dia em diante, o inverno começa a
sua marcha lenta, aproximando-se de Inys. É uma
estação odiada por wyrms, pois é o calor que alimenta o
fogo dentro deles.
Aplausos.
— Hoje — continuou —, temos outro motivo de
celebração para vos anunciar. Este ano, para coincidir
com o Banquete da Generosidade, faremos uma visita a
Ascalon.

Os murmúrios ecoaram pelo telhado, e Seyton


Combe engasgou-se com o seu vinho quente.

— Durante essa visita — prosseguiu Sabran, com


um gesto determinado — rezaremos no Santuário de
Nossa Senhora, daremos esmola aos pobres e
confortaremos aqueles que perderam as suas casas e o
seu sus­tento no ataque de Fýredel. Ao mostrarmo-nos ao
povo, recordá-los-emos de que estamos unidos sob a
Verdadeira Espada e que nenhum Sombra Ocidental
quebrará o nosso espírito.

Ead olhou de relance para Lievelyn, que evitou


devolver-lhe o olhar.

Os seus conselhos de pouco haviam servido.


Deveria ter feito mais para convencer o imbecil do
perigo.
Era um inconsciente, assim como Sabran.
Inconscientes que enver­gavam uma coroa.

— É tudo — concluiu a rainha, regressando ao seu


lugar. — E agora creio que nos espera mais uma refeição.

O Salão de Banquetes encheu-se de aplausos e,


pouco depois, os cria­dos apareceram com outros pratos,
e todas as preocupações se dissiparam ante a vontade
de comer.

Ead não voltou a tocar em nada. Não era nenhuma


vidente, mas qualquer pessoa com meio dedo de testa
poderia ver que aquilo acaba­ria em sangue derramado.
25
Este

Após a sua chegada inglória a Ginura, Niclays Roos foi


um convidado de honra na casa dos Moyaka. Até que o
Senhor da Guerra se dignasse vê-lo, estava livre para
fazer o que quisesse, contanto que tivesse os seus
acompanhantes seiikines. Felizmente, Eizaru e Purumé I
demonstraram-se satisfeitos por cumprir esse papel.
Os três juntaram-se à multidão nas ruas para o
festival do Fim do Verão, que celebrava a chegada do
outono. Muitos cidadãos de Seiiki viajavam até Ginura
para o que a maioria considerava ser o mais espe­tacular
dos quatro festivais das árvores. Os vendedores de rua
grelhavam bifes de peixe-espada, cozinhavam pedaços
de abóbora doce em caldo e vendiam vinho quente e chá
para afastar o frio. As pessoas comiam ao ar livre, sob as
folhas douradas das árvores, que voavam com as
sementes de ácer que caíam dos ramos e, quando a
última folha caía, ficavam de pé a ver os novos rebentos,
vermelhos como a aurora, a surgir durante a noite.
Para Niclays, cada dia era como um renascimento. Os
seus amigos levaram-no a passear na praia. Apontaram-
lhe a localização do Órfão Enlutado, o maior vulcão do
Oriente, que formava um penhasco soli­tário na baía. E
usaram uma luneta para ver os porcos-delfins no mar.
E lenta e perigosamente, Niclays permitiu-se sonhar
cada vez mais com um futuro naquela cidade. Talvez as
autoridades seiikines se esquecessem da sua existência.
Talvez, dado o seu bom comportamento, decidissem
deixá-lo viver o resto do seu exílio longe de Orisima. Era
uma réstia de esperança, e agarrou-se a ela como um
marinheiro aos destroços de um naufrágio.
Panaya enviou-lhe os seus livros de Orisima com
uma nota de Muste, que dizia que os seus amigos da
estação de comércio lhe enviam cum­primentos e
esperavam que regressasse em breve. Niclays teria
ficado comovido se considerasse algum deles amigo, ou
se tivesse tido o mínimo interesse nas suas saudações,
sinceras ou não. Mas agora estava a sabo­rear a
liberdade, e a ideia de regressar a Orisima, de ver as
mesmas vinte caras e a mesma rede de ruas, tornara-se
intolerável.
O navio mêntico Gadeltha atracou na doca, trazendo
consigo uma pilha de cartas. Havia duas para Niclays.
A primeira estava lacrada e trazia o selo da Casa de
Lievelyn. Abriu-a desajeitadamente e leu as linhas
escritas com uma caligrafia perfeita.

De Brygstad, Estado Livre de Mentendon,


via Autoridade Portuária de Ostendeur
Final da Primavera, 1005 EC

Senhor,
Tomei conhecimento através dos registos do meu
falecido tio-avô que permaneceis num estado de exílio na
nossa estação de comércio de Orisima, e que pedistes
clemência à Casa de Lievelyn. Depois de rever o vosso
caso, lamento concluir que não vos posso dar permissão
para regressardes a Mentendon. A vossa conduta
ofendeu profundamente a Rainha Sabran de Inys, e
convidar-vos de volta à corte neste momento constituiria
uma ofensa para ela.
Se conseguirdes encontrar uma forma de apaziguar a
Rainha Sabran, terei todo o gosto em reconsiderar esta
situação infeliz.

Ao vosso dispor,
Aubrecht II, Grão-Príncipe do Estado Livre de
Mentendon,
Arquiduque de Brygstad, defensor das Virtudes,
protetor do Reino de Mentendon e de outras terras.

Niclays amassou a carta na mão, fazendo dela uma


bola. Devia haver alguma razão política para que o novo
Grão-Príncipe tivesse medo de ofender Sabran. Pelo
menos fora educado, e estava disposto a re­ver o assunto
se Niclays conseguisse encontrar forma de apaziguar Sua
Amargura. Ou o próprio Lievelyn. Talvez pudesse tentá-lo,
também, com o elixir da vida.
Abriu a segunda carta, com o coração aos saltos.
Esta fora escrita há mais de um ano.

De Ascalon, Rainhado de Inys,


via Alfândega de Zeedeur
Início do verão, 1004 EC

Querido tio Niclays,


Perdoai-me a demora em escrever-vos. Os meus
deveres ao serviço da rainha têm-me mantido ocupada e
raramente posso ir a algum lugar desacompanhada. Na
corte de Inys, tem muito cuidado em preencher os
tempos livres das suas jovens senhoras! Que esta carta
chegue a Ostendeur antes da próxima expedição para o
Oriente.
Por favor, dizei-me como vos estais adorem Orisima.
Eu, por minha conta, tenho estado a folhear os livros que
me deixastes e que estão guardados na Sala da Seda.
Penso que tenho uma teoria e estou convencida de que o
significado de um certo objeto foi negligenciado. Podeis
escrever-me contando-me tudo o que sabeis sobre a
Tábua de Rumelabar? Tendes uma resposta para este
enigma?

Com todo o meu amor,


Truyde

(Nota para a Alfândega de Zeedeur: Agradecia que


entregásseis esta carta à Administração do Porto de
Ostendeur. Com os melhores cumprimentos, vossa
Marquesa.)

Niclays voltou a ler a carta, meio sorridente, os olhos


brilhantes.
Deveria tê-la recebido muito antes da chegada de
Sulyard. Truyde poderia tê-lo avisado da chegada do
rapaz, mas o Lorde Seyton Combe, chefe dos Serviços
Secretos de Inys, teria detetado qualquer mensagem
codificada.
Respondera-lhe a cartas anteriores, mas suspeitava
de que tivessem sido destruídas. Os eLivross não
estavam autorizados a escrever para casa. E mesmo que
tivesse conseguido contactá-la, não teria boas notícias
para lhe dar.
Nessa noite, Purumé e Eizaru levaram-no ao rio para
ver o voo das garças. No dia seguinte, Niclays decidiu
ficar no seu quarto e pôr gelo no tornozelo. Tantas
emoções haviam-lhe provocado uma dor de cabeça e, de
repente, deu por si a pensar em Sulyard.
Deveria envergonhar-se por gozar a vida enquanto o
rapaz apodrecia numa cela, sobretudo convencido de
que Niclays estava ocupado a cum­prir a sua missão. Uma
missão baseada num enigma por resolver e na perigosa
paixão que Truyde herdara de Jannart.
Uma paixão pela verdade. Um enigma que parecia
recusar-se a abando­nar Niclays. Ao meio-dia, pediu aos
criados que lhe trouxessem uma caixa com papel de
carta e escreveu as palavras apenas para que pudesse
lê-las.

O que está em baixo deve ser equilibrado com o que


está em cima,
e nisso reside a precisão do Universo.
O fogo ascende da terra, a luz descende do céu.
Demasiado de um inflama o outro,
e nisso está a extinção do Universo.

Niclays lembrou-se do que tinha aprendido com


aquele enigma na fa­culdade. Pertencia à Tábua de
Rumelabar, descoberta havia muitos sé­culos nas
Montanhas Sarras.
Alguns mineiros ersyris haviam descoberto um templo
subterrâneo naquelas montanhas. Tinha estrelas
esculpidas no teto e árvores flame­jantes no chão. No
centro, havia um bloco de pedra celeste e as palavras aí
gravadas, na escrita da primeira civilização do Sul,
haviam cativado estudiosos de todo o mundo.
Niclays sublinhou parte do enigma e refletiu no seu
significado.
O Jogo ascende da terra.
Os wyrms, talvez. Dizia-se que o Inominável e os seus
seguidores pro­vinham do Ventre de Fogo, no núcleo da
Terra.
Voltou a sublinhar.
A luz descende do céu.
A chuva de meteoros. Aquela que acabara com a
Ascensão das Sombras, enfraquecendo os wyrms e
fortalecendo os dragões do Oriente.
Demasiado de um inflama o outro, e nisso está a
extinção do Universo.
Um aviso contra a disparidade. A teoria condiciona o
estado do Universo ao equilíbrio entre o fogo e a luz das
estrelas, medido numa escala cósmica. O excesso de um
ou de outro desequilibrá-lo-ia.
A extinção do universo.
O mais perto que o mundo chegara do seu fim fora a
chegada do Inominável e dos seus seguidores. Teria sido
algum tipo de desequilíbrio no Universo a criar aquelas
bestas de fogo?
O sol incidia-lhe com força na nuca, e foi ficando
cada vez mais sono­lento. Quando Eizaru o acordou, tinha
a face encostada ao pergaminho, e sentia-se tão pesado
como um saco de milho.
— Boa tarde, meu amigo — disse Eizaru, com um
risinho. — Estavas a trabalhar em alguma coisa?
— Eizaru — respondeu ele, e aclarou a voz. — Tirou o
pergaminho da face. Não, não. Um mero disparate.
— Estou a ver. Bem, se já terminaste, estava a pensar
se gostarias de vir comigo à cidade. Os pescadores
trouxeram um carregamento de caranguejos prateados
do Mar Infinito, mas vende-se depressa no mer­cado. Tens
de os provar antes de regressares a Orisima.
— Espero com todas as minhas forças que nunca
tenha de regressar a Orisima.
O seu amigo hesitou por um momento.
— Eizaru — disse Niclays, preocupado —, que se
passa?
De boca cerrada, Eizaru enfiou a mão num bolso e
tirou um perga­minho. O selo estava quebrado, mas
Niclays viu que era do vice-rei de Orisima.
— Recebi isto hoje — revelou Eizaru. — Depois da tua
audiência com o honrado Senhor da Guerra, deves
regressar a Orisima. Um pa­lanquim virá buscar-te.
De repente, o pergaminho ficou pesado como uma
pedra. Podia ter sido a sua sentença de morte.
— Não desesperes, Niclays. — Eizaru pousou-lhe uma
mão sobre o ombro. — A honrada Rainha Sabran há de
ceder. E até lá, Purumé e eu pediremos autorização para
te visitar em Orisima.
Niclays teve de fazer um esforço supremo para digerir
a sua desilusão: era como engolir uma bola de espinhos.
— Isso seria ótimo. — Forçou um sorriso. — Vamos lá,
então. Suponho que seja melhor aproveitar a cidade
enquanto posso.

***

Purumé estava ocupada a tratar de uma fratura, por


isso, assim que se vestiu, Niclays partiu sozinho com
Eizaru para o mercado do peixe. Um vento cortante
soprava do mar, toldando-lhe a visão e, no seu estado
per­turbado, os olhares que recebia pareciam mais
desconfiados do que nunca. Quando passaram por uma
loja de roupa, a dona fez-lhe uma careta.
— Empestado — cuspiu-lhe.
Niclays estava demasiado desanimado para
responder. Eizaru lançou à mulher um olhar de
desaprovação por cima dos óculos e ela afastou-se.
Naquele momento de distração, Niclays pisou uma
bota.
Ouviu uma exclamação reprimida. Eizaru apanhou-o a
tempo, impedindo-o de cair, mas a jovem seiikine que
ele pisara não teve tanta sorte. Com o cotovelo, acertou
num vaso que caiu no chão e se desfez em mil pedaços.
Maldita fosse a sua sorte, era como um elefante numa
loja de porcelana.
— Perdoai-me, honrada senhora — disse Niclays, com
uma vénia profunda. — Estava distraído.
A comerciante olhou para os fragmentos com uma
expressão som­bria. Lentamente, virou-se para encarar
Niclays.
O seu cabelo era preto, preso num carrapito no cimo
da cabeça. Usava calças plissadas, uma túnica de seda
azul e uma sobrecasaca de veludo. A seu lado pendia
uma elegante espada. Quando viu o brilho na sua túnica,
Niclays ofegou, incapaz de reagir. Se não estava
enganado, era seda de água. Um nome impróprio, pois
não era de todo seda, mas sim pelo. Pelo de crina de
dragão, para ser exato. E repelia a humidade como se
fosse azeite.
A mulher avançou um passo em direção a ele. O seu
rosto era angular e castanho, e tinha os lábios gretados.
Ao pescoço pendiam-lhe pérolas do Sol Trémulo.
Mas o que se lhe incrustou na memória, nos poucos
momentos em que se encontraram, foi a cicatriz.
Atravessava-lhe a maçã do rosto es­querda e depois
delineava um meio círculo conforme se aproximava do
canto do olho.
Exatamente como um anzol.
— Forasteiro — murmurou ela.
Niclays reparou que a multidão à sua volta ficara
quase em silêncio. Sentiu os pelos da nuca eriçarem-se.
Teve a sensação de que tinha co­metido uma
transgressão grave, algo que ia muito além de uma
simples distração.
— Honrado cidadão, que está este homem a fazer
em Ginura? — per­guntou a mulher a Eizaru num tom
brusco. — Devia estar em Orisima, com os outros colonos
mênticos.
— Honrada Miduchi. — Eizaru curvou-se. — As
nossas humildes desculpas por vos termos interrompido.
Este é o erudito Doutor Roos, um anatomista do Estado
Livre de Mentendon. Está aqui para ver o grande Senhor
da Guerra.
A mulher olhou para os dois. A irritação nos seus olhos
era um sinal de muitas noites de sono agitado.
— Como vos chamais?
— Moyaka Eizaru, honrada Miduchi.
— Não percais este homem de vista, Moyaka. Tendes
de o acompa­nhar sempre.
— Compreendo.
A mulher lançou um último olhar a Niclays e depois
continuou o seu caminho. No momento em que se virou,
Niclays viu o dragão dourado nas suas costas.
Ela tinha cabelos longos e escuros e uma cicatriz no
topo da bochecha esquerda. Como um anzol.
Pelo Santo, tinha de ser ela.
Eizaru pagou à comerciante pelo prejuízo e levou
Niclays para uma rua afastada.
— Quem era, Eizaru? — perguntou Niclays em
mêntico.
— A honrada senhora Tané. É Miduchi. Cavaleira da
grande Nayimathun das Neves Profundas — explicou
Eizaru, limpando o pes­coço com um lenço. — Devia ter-
me curvado mais.
— Pagar-te-ei o preço desse vaso. Bem... um dia.
— São apenas algumas moedas, Niclays. O
conhecimento que me transmitiste em Orisima vale
muito mais.
Niclays decidiu que Eizaru era o mais próximo de uma
pessoa sem defeitos.
Em pouco tempo, chegaram ao mercado de peixe. Os
caranguejos prateados estavam espalhados pelas redes
de palha, cobrindo o chão com um brilho semelhante ao
da armadura de aço dos cavaleiros. Niclays quase perdeu
Eizaru no meio da multidão, mas o seu amigo emergiu
triunfante, com os óculos desajustados.
Quando chegaram a casa, estava quase a anoitecer.
Niclays simulou outra dor de cabeça e retirou-se para o
seu quarto, onde se sentou junto à lamparina e esfregou
a testa.
Sempre se orgulhara do seu cérebro, mas
ultimamente parecia não estar a funcionar muito bem.
Era altura de o pôr a trabalhar.
Tané Miduchi era sem dúvida a mulher que Sulyard
tinha visto na praia. A sua cicatriz denunciava-a. Trouxera
um forasteiro para Cabo Hisan naquela noite fatídica e
depois colocara-o nas mãos de uma artis­ta, que estava
agora a apodrecer na prisão. Ou talvez já tivesse morrido
decapitada.
O gato com a cauda cortada saltou para as suas
pernas e ronronou. Absorto em pensamentos, Niclays
acariciou-o entre as orelhas.
O Grande Édito exigia que os ilhéus denunciassem de
imediato qual­quer forasteiro às autoridades. Era isso que
aquela mulher Miduchi de­veria ter feito. Porque decidira
envolver uma amiga para o esconder na estação de
comércio de Mentendon?
Quando compreendeu, Niclays soltou uma exclamação
tão alta que o gato saltou para o chão em sobressalto.
Os sinos.
No dia seguinte, os sinos haviam tocado, anunciando
a cerimónia que permitiria a Miduchi tornar-se cavaleira
de dragão. Se um forasteiro tivesse sido descoberto em
Cabo Hisan na noite anterior, teriam fecha­do o porto
para se certificarem de que não havia vestígios da
doença vermelha. Miduchi escondera Sulyard em
Orisima, isolado do resto da cidade, para que a cerimónia
não fosse cancelada. Pusera a sua ambição à frente da
lei.
Niclays pesou as suas opções.
Sulyard concordara em contar aos seus interrogadores
sobre a mu­lher com a cicatriz do anzol. Talvez o tivesse
feito, mas ainda não sabia quem era. Ou talvez eles não
acreditassem nas palavras de um foras­teiro. Niclays, por
outro lado, estava protegido pela aliança entre Seiiki e
Mentendon. Fora o que o salvara de punição no passado,
e talvez o ajudasse agora.
Ainda podia salvar Sulyard. Se tivesse a coragem de
acusar Miduchi durante a sua audiência com o Senhor da
Guerra, com testemunhas presentes, a Casa de Nadama
teria de agir, ou arriscar-se-ia a trans­mitir a impressão de
que subestimava os seus parceiros comerciais de
Mentendon.
Niclays tinha quase a certeza de que haveria alguma
forma de lucrar com tudo aquilo. Só não sabia como.
Purumé chegou à noite, os olhos doridos de tanto
trabalhar, e os criados prepararam o caranguejo
prateado com legumes bem picados e arroz cozido a
vapor com castanhas. A carne, branca e tenra, estava
deliciosa, mas Niclays estava demasiado concentrado
nos seus pensa­mentos para a apreciar. Quando
terminaram, Purumé saiu, mas Niclays permaneceu
sentado à mesa com Eizaru.
— Meu amigo — disse Niclays —, peço-te que me
desculpes se esta for uma pergunta ignorante.
— Apenas os homens ignorantes não fazem
perguntas.
Niclays pigarreou.
— Aquela cavaleira de dragão, a senhora Tané... Pelo
que vejo, os cavaleiros são estimados quase tanto como
os dragões, não achas?
O amigo pensou um pouco.
— Não são deuses — disse ele. — Não há santuários
em sua honra. Mas são venerados. O grande Senhor da
Guerra é descendente de um cavaleiro que lutou no
tempo da Grande Desolação, como bem sabes. Os
dragões veem os cavaleiros como seus iguais entre os
humanos, e essa é a maior honra possível.
— Se soubesses que um deles tinha cometido um
crime, que farias? — perguntou Niclays, tentando parecer
descontraído.
— Se eu soubesse, sem sombra de dúvida, que era
verdade, informa­ria o seu Comandante, o honrado
General do Mar, no Castelo da Flor de Sal. — Eizaru
inclinou a cabeça para um lado. — Porque perguntas,
meu amigo? Achas que algum deles cometeu um crime?
Niclays riu-se.
— Não, Eizaru, estava apenas a especular. — Mudou
de assunto. — Ouvi dizer que o fosso à volta do Castelo
de Ginura está cheio de peixes com corpos como vidro.
Que quando brilham, à noite, consegues vê-los até aos
ossos. Diz-me, isso é verdade?

Adorava quando lhe ocorria uma boa ideia.

***
Tané encontrou um ponto de apoio e impulsionou-
se com todas as suas forças, em busca de algo a que se
agarrar. Sob ela, as ondas quebravam contra as rochas.

Trepava pela falésia vulcânica que se projetava em


frente à foz da baía de Ginura. Chamavam-lhe o Órfão
Enlutado, porque se encon­trava sozinho no meio do mar,
como uma criança que perdera os pais num naufrágio. Ao
tocar na pedra com a ponta dos dedos, a outra mão
escorregou no musgo do mar.

O seu estômago encolheu-se. Por um momento,


pensou que ia cair e partir todos os ossos do corpo. Mas
conseguiu puxar o corpo para cima, pôs a mão no
rebordo e agarrou-se como se fosse um percebe. Com
um último esforço titânico, conseguiu subir para a
plataforma e deitou-se de costas, respirando com
dificuldade. Fora imprudente da sua parte subir sem
luvas, mas queria provar a si própria que era capaz de o
fazer.
Não parava de pensar no homem mêntico que vira
na rua, em como ele olhara para ela. Como se a tivesse
reconhecido. Era impossível, claro; ela nunca o vira
antes. Então porquê aquela expressão de choque?
Ele era um homem grande. De ombros largos, peito
largo, com uma barriga saliente. Olhos como cravos e
pálpebras cansadas, um rosto re­dondo e pálido. Cabelo
cinzento com madeixas acobreadas. E uma boca com
uma história de riso gravada nos cantos. Óculos
redondos.
Roos.
Por fim, lembrou-se.
Roos. Um nome que Susa lhe havia sussurrado tão
brevemente que era quase como se tivesse sido levado
pelo vento.
Fora o homem que escondera o forasteiro.
Não havia razão para ele estar em Ginura. A menos
que tivesse vindo para testemunhar sobre aquela noite.
A ideia causou-lhe um nó no estômago. Lembrou-se de
como ele a encarara na rua e um arrepio percorreu-lhe o
corpo.
Cerrando os dentes, estendeu a mão e encontrou
outro apoio. O que quer que Roos pensasse que sabia
sobre ela ou Susa, não tinha provas. E por esta altura, o
forasteiro já estaria morto.
Quando chegou ao topo, içou-se com as palmas das
mãos ensanguen­tadas. A seda de água era como um
manto de penas: bastava sacudi-la e ficava seca.
Lá de cima, podia ver toda a Ginura. Os últimos raios
de sol refletiam no Castelo da Flor de Sal.
O dragão aguardava-a num abrigo natural. O seu
verdadeiro nome era impossível de pronunciar para os
humanos, por isso era conheci­da por Nayimathun.
Nascera havia muito tempo no Lago das Neves Profundas
e trazia inúmeras cicatrizes da Grande Desolação. Todas
as noites, Tané subia para o abrigo e deitava-se ao lado
do dragão até o Sol nascer. Era tal como sonhara a sua
vida inteira.
No início, tinha sido difícil falar. Nayimathun recusava-
se a deixar Tané usar a linguagem de respeito reservada
aos deuses. Dissera-lhe que iam ser uma família. Como
irmãs. Caso contrário, não poderiam voar juntas. Dragão
e cavaleiro tinham de partilhar o mesmo coração.
Tané não sabia como aplicar essa regra. Toda a sua
vida se dirigira aos mais velhos com respeito, e agora
uma deusa pedia-lhe que a tratasse como a uma amiga
íntima. Lentamente, com hesitação, contou ao dragão
acerca da sua infância em Ampiki, o incêndio que levara
os seus pais e os anos de treino na Casa Sul. Nayimathun
ouviu-a com paciência.
O oceano estava prestes a engolir o sol e Tané,
descalça, aproximou-se do dragão, cuja cabeça estava
apoiada no próprio pescoço. A posição lembrava a Tané
um pato a dormir.
Ajoelhou-se ao lado de Nayimathun e pousou uma
mão sobre as escamas. Os dragões não ouviam da
mesma forma que os humanos. O contacto físico
ajudava-os a perceber as vibrações da voz.
— Boa tarde, Nayimathun.
— Tané. — Nayimathun entreabriu um olho. — Senta-
te comigo.
A sua voz era como um búzio de guerra, o canto de
uma baleia e o ru­gido distante de uma tempestade, tudo
convertido em palavras suaviza­das como vidro moldado
pelo mar. O som fez Tané sentir-se sonolenta.
Sentou-se e encostou-se às escamas do seu dragão,
sempre húmidas e maravilhosamente frescas.
Nayimathun farejou.
— Estás ferida.
Ainda tinha sangue na mão.
— Só um bocadinho — disse Tané, fechando-a. — Com
a pressa, esqueci-me das luvas.
— Não deves ter pressa, pequena. A noite ainda é
uma criança — disse, respirando de forma estrondosa. —
Pensei que podíamos falar das estrelas.
Tané olhou para o céu, onde pequenos olhos
prateados começavam a despontar.
— As estrelas, Nayimathun?
— Sim. Nas Casas de Instrução, falam-te da origem
das estrelas?
— Um pouco. Na Casa Sul, os nossos professores
ensinaram-nos os nomes das constelações e como nos
orientarmos por elas. — Tané hesitou. — Na aldeia onde
eu nasci, dizem que as estrelas são os es­píritos das
pessoas que fugiram ao Inominável. Subiram degraus e
esconderam-se no céu, à espera do dia em que todas as
bestas de fogo perecessem no mar.
— Por vezes, as pessoas das aldeias são mais sábias
do que os eruditos — disse Nayimathun, baixando o
olhar. — Agora, és a minha cavaleira, Tané, por isso tens
o direito de saber tudo sobre dragões.
Nunca nenhum dos seus professores lhe dissera que
aquilo iria acontecer.
— Ficaria honrada em receber esse conhecimento.
Nayimathun olhou para o céu. Os seus olhos
tornaram-se mais bri­lhantes, como se refletissem a Lua.
— A luz do Sol — disse ela — foi o que nos criou. Todos
os dragões do Oriente provêm do céu.
Tané ficou a admirar os seus chifres brilhantes, a
crista de espinhos sob a mandíbula e a sua coroa, azul
como uma ferida recente. Era o órgão que lhe permitia
voar.
Nayimathun deu conta do seu olhar.
— Essa parte do meu corpo marca o lugar onde os
meus ancestrais bateram quando caíram das estrelas e
atingiram o fundo do mar — explicou.
— Pensei que... — Tané humedeceu os lábios. —
Nayimathun, perdoa-me, mas pensava que os dragões
nasciam de ovos.
Sabia que assim era. Ovos como cristais opacos,
macios e molhados, cada um com um brilho iridescente
particular. Podiam passar séculos na água antes de
eclodirem e produzirem um ser minúsculo e frágil.
Mesmo assim, a sua voz tremeu ao dizê-lo.
— Bem, sim — confirmou Nayimathun. — Mas nem
sempre foi as­sim. — Levantou a cabeça e olhou
novamente para o céu. — Os nossos antepassados
vieram do cometa a que chamas Tocha de Kwiriki. Houve
uma chuva de luz que caiu na água, e dessa água
surgiram os dragões.
Tané ficou a olhar para ela.
— Mas, Nayimathun, como é que um cometa pode
criar um dragão?
— Deixa uma substância no seu rasto. Deixa a
poeira da luz das es­trelas cair no mar e nos lagos. Como
essa substância se transformou em dragões, está além
do meu conhecimento. O cometa pertence ao plano
celeste, e esse é um plano que ainda não alcancei.
» O passar do cometa é quando adquirimos a nossa
maior carga de energia. Pomos ovos, eles eclodem e
recuperamos toda a força que tínha­mos no passado. Mas,
pouco a pouco, a nossa força vai minguando. E temos de
esperar pelo regresso do cometa para a recuperar.
— Não há outra maneira de recuperar a tua energia?
Nayimathun olhou para ela com aqueles olhos
antigos, e Tané sentiu-se muito pequena sob o seu olhar.
— Outros dragões podem não partilhar isto com os
seus cavaleiros, Miduchi Tané — disse ela, com aquela
voz penetrante —, mas dir-te-ei outra coisa. Considera-o
um presente.
— Obrigada — respondeu Tané, estremecendo.
Certamente nenhum ser vivo era digno de receber tanto
conhecimento de um deus.
— O cometa acabou com a Grande Desolação, mas
não foi a pri­meira vez que passou por este mundo. Já o
fez muitas vezes — disse Nayimathun. — Uma vez, há
muitas luas, deixou para trás duas joias celestiais, ambas
com o seu poder. Fragmentos sólidos de si mesmo. Com
elas, os nossos antepassados podiam controlar as ondas.
A sua presença permitia-nos manter a nossa força mais
do que antes. Mas elas perderam-se há quase mil anos.
Tané sentiu a tristeza do seu dragão e passou a mão
pelas suas es­camas. Apesar de brilharem como as de um
peixe, estavam marcadas, rasgadas por dentes e chifres.
— E como é que se perderam objetos tão preciosos?
Nayimathun emitiu um som suave e áspero por entre
os dentes.
— Há cerca de mil anos, um humano usou-as para
dobrar o mar em dois sobre o Inominável, e foi assim que
ele foi derrotado. Depois disso, as duas joias passaram
para a história, como se nunca tivessem existido.
Tané abanou a cabeça.
— Um humano — repetiu, e lembrou-se das lendas
do Oeste. — O seu nome era Berethnet?
— Não. Ela era uma mulher do Oriente.
Sentaram-se em silêncio. A água pingava da rocha
sobre as suas cabeças.
— No passado, tínhamos grandes poderes, Tané —
continuou Nayimathun. — Podíamos mudar de pele como
as cobras e mudar de forma. Já ouviste falar da lenda
seiikine de Kwiriki e da Donzela da Neve?
— Sim. — Tané ouvira-a muitas vezes na Casa Sul.
Era uma das his­tórias mais antigas de Seiiki.

***

Há muito tempo, quando emergiram das ondas, os


dragões do Mar do Sol Trémulo concordaram em fazer
amizade com os filhos da car­ne, cujas fogueiras haviam
visto numa praia próxima. Trouxeram-lhes peixes
dourados como oferenda para mostrar as suas boas
intenções, mas os ilhéus, desconfiados e assustados,
atiraram-lhes lanças e os dra­gões desapareceram,
desiludidos, nas profundezas do mar, após o que não
voltaram a ser vistos durante anos.
No entanto, uma jovem rapariga assistiu à chegada
dos dragões e lamentou a sua ausência. Todos os dias,
caminhava pela grande floresta cantando a sua tristeza
pelas belas criaturas que haviam apa­recido tão
brevemente na ilha. Na história, ela não tinha nome,
como acontece muitas vezes nas histórias antigas. Era
conhecida apenas como a Donzela da Neve.
Numa manhã fria, a Donzela da Neve encontrou um
passarinho ferido num riacho. Curou-lhe a asa ferida e
deu-lhe gotas de leite para beber. Cuidou dele durante
um ano, até que o pássaro recupe­rou a sua força, e
depois levou-o para o penhasco para que voasse.
Foi então que o pássaro se transformou em Kwiriki, o
Grande Ancião, que fora ferido no mar e assumira uma
nova forma para escapar. A Donzela da Neve ficou
radiante de alegria, assim como o grande Kwiriki, pois
não sabia que os filhos da carne possuíam bondade
dentro de si.
Para agradecer à Donzela da Neve pelos seus
cuidados, o grande Kwiriki esculpiu-lhe um trono do seu
próprio chifre, a que chamou Trono do Arco-íris, e da
espuma do mar criou um belo consorte, o Príncipe da
Noite. A Donzela da Neve tornou-se a primeira impera­triz
de Seiiki e sobrevoou toda a ilha com o grande Kwiriki,
ensinan­do o povo a amar os dragões e a nunca mais lhes
causar dano. A sua linhagem governou Seiiki até
perecerem, na Grande Desolação, e o Primeiro Senhor da
Guerra empunhou armas para os vingar.

***

— A história é real. Kwiriki tomou a forma de um


pássaro. Com o tem­po, aprendemos a assumir muitas
formas — explicou-lhe Nayimathun. — O nosso poder era
tal que podíamos mudar de tamanho, criar ilusões de
ótica, conceder desejos...

Mas não mais.

Tané ouviu o som do mar a seus pés. Imaginou que


era uma concha, que transportava aquele rugido no
ventre. As suas pálpebras pareciam cada vez mais
pesadas. Nayimathun olhou para ela.

— Algo te apoquenta.

— Não. — Tané ficou na defensiva. — Estava só a


pensar em como sou feliz. Tenho tudo o que sempre quis
na vida.

Nayimathun soltou um murmúrio profundo e


resfolegou pelo nariz.

— Não há nada que não me possas contar.

Tané não conseguia olhá-la nos olhos. Cada fração


do seu ser dizia-lhe que não podia mentir na presença de
uma deusa, mas não lhe podia contar a verdade sobre o
forasteiro. Por esse crime, o seu dragão rejeitá-la-ia.

Preferia morrer a deixar que isso acontecesse.


— Eu sei — limitou-se a dizer.
A pupila do dragão transformou-se num poço de
escuridão. Tané conseguia ver o seu próprio rosto
refletido nele.
— Ia levar-te de volta ao castelo — disse Nayimathun
—, mas tenho de descansar esta noite.
— Compreendo.
Nayimathun soltou um grunhido grave.
— Ele agita-se — disse, como se falasse para si
própria. — A sombra estende-se com força pelo Oeste.
— Quem se está a agitar?
O dragão fechou os olhos e baixou a cabeça,
apoiando-a no pescoço.
— Fica comigo até ao amanhecer, Tané.
— Claro.
Tané estendeu-se ao seu lado. Nayimathun aproximou-
se mais e enrolou-se à volta dela.
— Dorme — disse. — As estrelas guardar-nos-ão.
O corpo dela protegia-a do vento. Enquanto
adormecia, encostada ao dragão com que sempre
sonhara, embalada pelo bater do seu cora­ção, teve a
estranha sensação de estar novamente no ventre da sua
mãe.
Mas também tinha a sensação de que algo se
aproximava. Como uma rede à volta de um peixe fora de
água.
26
Oeste

A notícia da visita real a Ascalon espalhou-se por


toda a Inys, desde a Baía de Balefire até aos penhascos
enevoados dos Caídos. Após catorze longos anos, a
Rainha Sabran estava prestes a mostrar-se ao povo da
capital, e a capital preparava-se para a receber. Antes
que Ead desse por isso, a data havia chegado.
Vestiu-se, escondendo as suas adagas. Duas ficavam
debaixo das saias, outra enfiava-a atrás do corpete e
uma quarta dentro de uma das suas botas. A adaga
ornamental usada por todas as Damas do Leito Real era
a única que podia deixar à vista de todos.
As cinco horas em ponto, encontrou-se com Katryen
nos aposentos reais e foram juntas acordar Sabran e
Roslain.
Para a sua primeira aparição pública após a coroação,
as damas da rainha tinham de se certificar de que ela
estava mais do que bonita — tinham de a tornar divina.
Estava vestida de veludo azul meia-noite, com uma faixa
de cornalina e uma estola de pelo de bodmino que a
fazia sobressair entre os tecidos de cetim bronzeados e
as peles casta­nhas que a rodeavam. Evocaria memórias
da Rainha Rosarian, que gostava de usar azul.
Um pingente em forma de espada estava preso no seu
corpete. Era a única em todos os Reinos das Virtudes a
ter o Santo como patrono.
Roslain, que adornara os seus cabelos com um cristal
de cor âmbar e groselha, foi encarregada de escolher as
joias. Ead pegou num pente e, pousando a mão no ombro
de Sabran, enfiou-o no seu cabelo até sentir o toque das
suas tranças nos dedos.
Sabran estava rígida como um poste. E os seus olhos
irritados por ter dormido pouco.
Ead escovou-lhe o cabelo com cuidado. Sabran
inclinou a cabeça para um lado ao toque da escova e, a
cada passagem, libertava a tensão e suavizava o maxilar.
Enquanto trabalhava, Ead pousou as pontas dos dedos
atrás da orelha de Sabran para a impedir de se mexer.
— Estás muito bonita hoje, Ead — elogiou Sabran.
Era a primeira coisa que dizia desde que se levantara.
— Vossa Majestade é muito amável — disse Ead,
lutando com um nó no cabelo. — Estais ansiosa pela
visita à cidade?
Sabran demorou a responder. Ead continuou a
escovar-lhe o cabelo.
— Estou ansiosa por ver o meu povo — disse Sabran
por fim. — O meu pai sempre me encorajou a misturar-
me com eles, mas... não conseguia.
Devia estar a pensar na mãe. A razão pela qual,
durante catorze anos, pouco vira do mundo além dos
salões reluzentes do palácio.
— Quem me dera poder dizer-lhes que estou grávida
— acrescentou, tocando no seu acessório de cabelo. — O
médico da corte aconselhou-me a esperar até que a
minha filha se tenha desenvolvido um pouco mais.
— O que eles querem é ver-vos a vós. Quer tenhais
barriga quer não — respondeu Ead. — Em todo o caso,
podereis dizer-lhes daqui a umas semanas. Pensai em
como eles irão ficar contentes.
A rainha ficou a olhar para ela e, inesperadamente,
pegou-lhe na mão.
— Diz-me, Ead, como é que sabes sempre o que dizer
para me confortar?
Antes que Ead pudesse responder, Roslain aproximou-
se. Ead recuou, e a mão de Sabran escorregou-lhe dos
dedos, mas havia uma sensação na sua palma como se
ainda estivesse em contacto com ela. Com os seus ossos
finos. Com os nós dos dedos pontudos.
Sabran deixou que as suas damas a conduzissem ao
quarto de banho. Katryen pintou-lhe os lábios, enquanto
Ead entrançava seis madeixas do seu cabelo e as prendia
num toucado na parte de trás da cabeça, deixando o
resto solto. Finalmente, foi-lhe colocada uma coroa de
prata na cabeça.
Quando ficou pronta, a rainha viu-se a si própria no
espelho. Roslain endireitou-lhe a coroa.
— Um último toque — disse, colocando-lhe um colar à
volta da garganta. Safiras e pérolas, e um pendente com
a forma de um cavalo-marinho. — Lembrais-vos.
— Claro — disse Sabran, tocando no pendente, com o
olhar vazio. — Foi a minha mãe que mo deu.
Roslain pôs-lhe uma mão no ombro.
— Deixai que vos acompanhe hoje. Ela ficaria muito
orgulhosa.
A rainha de Inys demorou-se a olhar-se ao espelho por
mais um mo­mento. Finalmente, respirou fundo e virou-se.
— Minhas senhoras — sorriu —, como estou?
Katryen afastou uma madeixa de cabelo para trás da
coroa e anuiu.
— Como o sangue do Santo, Vossa Majestade.
***

Às dez da manhã, o céu era de um azul ofuscante. As


damas de com­panhia escoltaram Sabran até aos portões
do Palácio de Briar, onde Aubrecht Lievelyn, vestido com
um grande manto, e os seis Duques Espirituais
aguardavam. Seyton Combe, como sempre, ostentava
um sorriso de satisfação. Ead ansiava por lho arrancar do
rosto.
Parecia satisfeito consigo próprio, mas era evidente
que não tinha fei­to progresso algum na questão dos
assassinos. Nem Ead, por muito que lhe custasse. Por
muito que quisesse investigar, os seus deveres
deixavam-lhe pouco tempo livre.
Se os assassinos decidissem voltar a atacar, seria
naquele dia.
Quando Sabran entrou na carruagem real, Igrain Crest
estendeu a mão à sua neta.
— Roslain — disse ela, sorrindo. — Estás muito bonita
hoje, minha querida.
— Obrigada, avó. Sois sempre muito simpática para
mim — respon­deu, fazendo uma vénia e beijando-a na
face. — Um bom dia.
— Esperemos que seja um bom dia, senhora Roslain
— murmurou o Lorde Ritshard Eller. Não me agrada que a
rainha se misture com plebeus.
— Vai correr tudo bem — garantiu Combe. O seu
colar vistoso refletia a luz do Sol. — Sua Majestade e Sua
Alteza Real estão bem protegidos, não estão, Sir Tharian?
— Hoje mais do que nunca, Vossa Graça disse
Lintley, baixando a cabeça.
— Hum. — Eller não estava convencido. — Muito
bem, Sir Tharian.

Ead partilhou uma carruagem com Roslain e


Katryen. Enquanto se afastavam do palácio a caminho da
cidade, olhou pela janela.

Ascalon fora sempre a primeira e única capital de


Inys. As suas ruas de pedra eram o lar de milhares de
pessoas de todo o Reino das Virtudes e além. Antes de
Galian retornar àquelas ilhas, eram uma colcha de
retalhos de territórios em guerra, governados por uma
série de senhores feudais e príncipes. Galian uniu-os
todos sob uma única coroa. A sua própria.

A capital que ele ergueu, batizada com o nome da


sua espada, já fora considerada um paraíso. Agora,
estava tão povoada de criminosos como qualquer outra
cidade.

A maior parte dos edifícios eram feitos de pedra.


Após a Ascensão das Sombras, quando os incêndios se
espalharam por Inys, os telhados de colmo foram
proibidos. Apenas um punhado de casas de madeira,
projetadas por Rosarian a Segunda, foram preservadas
pela sua beleza particular. Apresentavam desenhos
opulentos em madeira escura que contrastavam com o
branco das juntas.
Os bairros mais ricos eram, de facto, ricos. Em Ala
da Rainha havia cinquenta ourives e uma centena de
ferreiros. A rua Hend concentrava as oficinas, onde os
inventores concebiam novas armas para a defesa de
Inys. Na via Pounce, na ilha de Knells, viviam os poetas e
dramaturgos, e a viela Brazen era a zona dos livreiros. O
grande mercado da Praça Werald vendia artigos de todos
os cantos do mundo: cobre reluzente de Lasia, cerâmica
e joias de ouro, pinturas mênticas, bem como cerâmi­ca
vidrada com sal, cristais raros de groselha da República
Serena de Carmentum, queimadores de óleo aromático e
pedra celeste do Ersyr. Nos bairros mais pobres, que iam
receber a visita da comitiva real, como Extremo Kine e
Setts, a vida não era tão fácil. Nesses bairros, reinava o
caos, e era onde se encontravam os bordéis, disfarçados
de estalagens para evitar a Ordem dos Sanctários, e as
tabernas onde os ladrões contavam as moedas roubadas.

Dezenas de milhares de inysh apinhavam-se nas


ruas, esperando a oportunidade de ver a rainha, nem que
fosse por um momento. A visão deixou Ead inquieta. Não
vira novos assassinos desde o casamento, mas tinha a
certeza de que a ameaça ainda não havia diminuído.
A procissão real parou em frente ao Santuário de
Nossa Senhora, que se acreditava abrigar o túmulo de
Cleolind. (Ead sabia que não.) Era a construção mais alta
de Inys, mais alta ainda do que a Torre de Alabastro, feita
de uma pedra clara que brilhava sob o sol.
Ead saiu da carruagem e sentiu a luz no rosto. Fazia
muito tempo que não andava pelas ruas de Ascalon, mas
conhecia-as bem. Antes de Chassar a ter apresentado a
Sabran, passara um mês a aprender todos os cantos e
recantos da cidade, de modo que se pudesse orientar
caso alguma vez tivesse de fugir da corte.
Um grupo de pessoas reunira-se junto aos degraus do
santuário, an­siosas pela atenção da sua soberana.
Cobriram as pedras da calçada com flores da rainha e
lírios negros. Enquanto as damas de companhia e o
serviço especial saíam das carruagens com Oliva
Marchyn, Ead olhava atentamente para a multidão.
— Não vejo a senhora Truyde — disse Katryen.
— Está com dores de cabeça — respondeu ela,
franzindo os lábios. — Que oportuna.
Margret aproximou-se delas.
— Estava à espera de muita gente, mas parece que
veio a cidade intei­ra — disse ela, o seu hálito criando
uma nuvem de vapor. Acenou com a cabeça para a
carruagem real. — Cá vamos nós.
Ead olhou naquela direção.
Quando Lievelyn emergiu, os inysh aplaudiram como
se o próprio Santo tivesse regressado. Ele, imperturbável,
ergueu a mão em saudação e estendeu-a a Sabran, que
saiu perfeitamente calma.
O rugido da multidão foi tão estrondoso, tão
repentino, que pareceu a Ead que transcendia o som e
assumia um carácter físico. Tirou-lhe o fôle­go e sentiu
uma pressão na barriga. Viu Katryen a tremer de emoção
ao seu lado, e Margret observou a cena com admiração,
enquanto os inysh se ajoelhavam perante a sua rainha.
Tiraram os chapéus, derramaram lágrimas e parecia que
os aplausos iriam erguer o chão do Santuário de Nossa
Senhora. Sabran ficou paralisada, como se tivesse sido
atingida por um relâmpago. Ead assistiu a toda a cena.
Desde a coroação que a rainha se escondera nos seus
palácios. Esquecera-se do que era para o seu povo. A
encarnação da esperança. A sua protetora e a sua
salvação.
A rainha reagiu rapidamente. Embora não tenha
acenado, sorriu e deu a mão a Lievelyn. Permaneceram
lado a lado durante algum tempo e deixaram que os seus
súbditos os adorassem.

O Capitão Lintley liderou o caminho, com uma mão


pousada no pu­nho da sua espada. A Guarda Real e cerca
de trezentos outros guardas, dispostos ao longo da rota
que deveriam seguir, estavam ali para prote­ger a rainha
e o príncipe consorte durante a sua visita à cidade.

Enquanto seguia Sabran, Ead perscrutou a


multidão, olhando de um rosto para o outro, de uma mão
para a outra. Nenhum assassino profis­sional deixaria
passar uma oportunidade destas.

O Santuário de Nossa Senhora era tão magnífico no


interior como no exterior, com o seu teto abobadado e
janelas elevadas que envolviam os presentes numa luz
púrpura. Os guardas esperavam lá fora.
Sabran e Lievelyn dirigiram-se para o túmulo. Era
um bloco maci­ço de mármore colocado num recanto
atrás do altar. Dizia-se que a Donzela jazia incorrupta
num cofre fechado no interior. Não havia nenhuma efígie.

O casal real ajoelhou-se em frente ao altar e baixou


a cabeça. Passado algum tempo, Lievelyn retirou-se para
deixar Sabran rezar em privado. As Damas do Leito Real
aproximaram-se e ajoelharam-se ao seu lado.

— Abençoada Donzela — disse Sabran, dirigindo-se


ao túmulo. — Eu sou Sabran a Nona. A minha é a vossa
coroa, o meu é o vosso reino, e todos os dias anseio por
trazer glória à Casa de Berethnet. Espero possuir a vossa
capacidade de compaixão, a vossa coragem e a vossa
temperança.

Fechou os olhos, e a sua voz tornou-se a sombra de


um suspiro.
— Confesso — continuou — que não sou muito
parecida convos­co. Tenho sido impaciente e arrogante.
Durante demasiado tempo, abdiquei do meu dever para
com este reino, recusando-me a dar uma princesa ao
meu povo e, em vez disso, concentrei-me apenas em
pro­teger a minha vida.
Ead olhou para ela. A rainha retirou a luva revestida
de pele e pousou a mão sobre o mármore.
Estava a rezar para um túmulo vazio.
— Como vossa dedicada descendente, peço-vos:
concedei-me a possi­bilidade de ter a minha filha. Que ela
nasça saudável e cheia de energia.
Permiti-me dar esperança ao povo de todo o Reino
das Virtudes. Farei o que for preciso. Morrerei para dar
vida à minha filha. Por ela, sacrifi­carei tudo o resto. Mas
não deixeis que a nossa dinastia morra comigo.
A sua voz era firme, mas o seu rosto era a imagem
do cansaço. Ead hesitou por um momento e depois
estendeu-lhe a mão.
A princípio, Sabran ficou tensa. Mas, um momento
depois, pegou-lhe, entrelaçou os dedos com os de Ead e
apertou-os.
O medo de não estar à altura era algo por que
nenhuma mulher devia passar.
Quando Sabran se levantou, as suas damas também o
fizeram. Ead estava especialmente concentrada. A
próxima etapa da viagem seria a mais perigosa. Sabran e
Lievelyn iriam visitar os mais desfavorecidos de Ascalon
e distribuir moedas de ouro. Enquanto desciam os
degraus do santuário, Sabran manteve-se próxima ao seu
companheiro.
Dali, o cortejo prosseguiria a pé. Seguiram a milha de
Berethnet que atravessava a cidade, ladeados por
guardas. A meio caminho, ao atraves­sarem a Praça
Marian, um homem gritou:
— Engravida-a ou volta para Mentendon!
Lievelyn permaneceu impassível, mas Sabran cerrou o
maxilar. Enquanto os guardas arrastavam o homem para
longe, Sabran pegou na mão de Lievelyn.
Para chegar ao Extremo Kine, tiveram de passar pelo
distrito de Rio Sylvan, com árvores verdejantes alinhando
as ruas, e o Teatro Carnelian empoleirado no alto das
bancas de rua. Ouviam-se gritos tremendos e o ar
fervilhava de excitação.
No momento em que Sabran parou para admirar um
rolo de teci­do, algo chamou a atenção de Ead na padaria
do outro lado da rua. Agachado no balcão estava um
vulto com a boca e o nariz tapados com um pano. No
momento em que Ead o viu, o homem levantou um
braço.
Uma pistola reluziu à luz do Sol.
— Morte à Casa de Berethnet! — gritou ele.
Foi como se o tempo tivesse abrandado. Sabran olhou
para cima e alguém soltou um grito de horror, mas Ead já
lá estava. Chocou com Sabran, pôs-lhe um braço à volta
da cintura e caíram as duas nas pedras da calçada,
enquanto a arma disparava com um som semelhante ao
de um mundo a dividir-se em dois. No meio da gritaria,
um velho dobrou-se, atingido pela bala destinada à
rainha.
Ead caiu sobre a cintura, segurando Sabran nos
braços, que por sua vez se encolhia, protegendo a
barriga com um braço. Ead levantou-a e entregou-a a
Lievelyn, que a afastou do alcance do atirador.
— A rainha! — gritou o Capitão Lintley. — Todas às
armas!
— Aqui em cima! — disse Ead, apontando. — Matem-
no!
O atirador já tinha passado para a varanda adjacente.
Lintley fez pontaria com a sua besta, mas falhou por
poucos centímetros. Praguejou e recarregou.
Ead pôs-se à frente de Sabran. Lievelyn
desembainhou a espada e protegeu-lhe as costas. As
outras damas de companhia rodearam a sua rainha. Ead
observou o atirador, que agora saltava de telhado em
telha­do, e sentiu um arrepio. Olhou para o outro lado da
rua.
Não usavam viseiras. Ao contrário dos assassinos do
palácio. Ao in­vés, os seus rostos estavam cobertos com
máscaras de peste bicudas, do tipo usado pelos médicos
para se protegerem durante a Ascensão das Sombras.
Quando o primeiro apareceu no meio da multidão e se
lançou sobre o cortejo real, Ead tirou o punhal da faixa e
cravou-o na sua garganta.
A multidão dispersou. No meio do caos, Ead não
conseguiu ver o próximo atacante até estar em cima
dele.
— Que se foda a Casa de Berethnet! — gritou ele para
Sabran. Mas esbarrou num dos Cavaleiros do Corpo, que
o derrubou com a sua espa­da. — Viva o Inominável!
— O Deus da Montanha! — A invocação viera de
perto. — O seu reino há de chegar!
Profetas da Ruína. Num instante, Lintley trocou a
besta pela espada e eliminou a ameaça mais próxima. A
sua imagem de cavaleiro galante dera lugar à de soldado
escolhido para proteger a rainha de Inys. O arauto da
ruína que vinha atrás parou de repente e, quando viu
Lintley a aproximar-se, virou-se e fugiu. Um tiro de
mosquete soou e, de repente, as suas entranhas
estavam espalhadas pelas pedras da calçada.
Ead procurou o Falcão no meio do caos, mas havia
demasiado pânico, demasiados corpos. Sabran congelou,
os punhos cerrados e a cabeça erguida.
Uma calma extraordinária apoderou-se de Ead.
Sacou duas das suas adagas, sem se preocupar com o
facto de ser uma Dama do Leito Real e, portanto, não
estar treinada para o combate. Desfez-se do véu de
secretismo que a envolvera durante todos aqueles anos.
Tudo o que lhe interessava era cumprir o seu dever.
Manter Sabran viva.
A dança da guerra chamava por ela. Como na
primeira vez que ca­çara um basilisco. Como uma
exalação, lançou-se sobre a próxima vaga de atacantes,
brandindo as adagas com precisão, e eles caíram mortos
à sua volta.
Quando voltou a si, viu Lintley a observá-la em
choque, o rosto sal­picado de sangue. Um grito fê-lo virar
a cabeça. Linora. Gritava ater­rorizada, quando dois
lacaios se precipitaram sobre ela e a atiraram ao chão.
Ead e Lintley correram para ela ao mesmo tempo, mas
não conseguiram impedir que uma faca lhe cortasse a
garganta, salpicando-a de sangue. Era demasiado tarde.
Ead tentou controlar-se, mas sentiu a bílis na
garganta. Sabran olhou para a sua dama moribunda. Os
Cavaleiros do Corpo cercaram a sua rainha, mas eles
próprios estavam cercados; a ameaça estava em todo o
lado. Outro mascarado atacou o casal real, mas Roslain,
com uma ferocidade que Ead nunca tinha visto antes,
cravou-lhe a adaga na coxa. Um grito soou por trás da
máscara.
— O Inominável erguer-se-á — disse uma voz
ofegante. — Declaramos-lhe a nossa lealdade. — Uma
névoa escureceu as suas órbi­tas oculares. — Morte à
Casa de Berethnet!
Roslain tentou agarrar-lhe a garganta, mas o homem
mascarado deu-lhe um murro na cabeça, derrubando-a
de cima dele. Sabran soltou um grito de raiva. Ead
afastou-se da luta e correu em direção a ela, no
momento em que o mascarado lançava um golpe contra
Lievelyn, que levantou a espada a tempo de o desviar.
O confronto que se seguiu foi breve e violento.
Lievelyn era mais forte e tinha anos de treino atrás de si.
Com um golpe brutal, pôs fim à ameaça.
Sabran deu um passo para trás, afastando-se do
cadáver de Linora. O seu companheiro engoliu em seco,
ainda segurando a espada na mão. O sangue pingava-lhe
da lâmina.
— Vossa Majestade, Vossa Alteza Real, sigam-me. —
Um Cavaleiro do Corpo aproximou-se, deixando a luta
para trás. A sua armadura de cobre estava mais
vermelha do que antes. — Sei de um sítio seguro nes­te
bairro. O Capitão Lintley ordenou-me que vos levasse lá.
Temos de partir imediatamente.
Ead apontou-lhe uma das suas adagas. A maioria dos
guardas reais usava capacetes, e a voz que provinha
daquele era abafada.
— Não te aproximes — ordenou. — Quem és tu?
— Sir Grance Lambren.
— Tira o capacete.
— Tudo bem, senhora Duryan, eu reconheço a voz —
disse Lievelyn — Não é seguro para Sir Grance tirar o
capacete.
— Ros... — Sabran esticou-se para se aproximar da
sua primeira dama. — Aubrecht, leva-a, por favor.
Ead olhou em volta à procura de Margret ou Katryen,
mas não esta­vam em lado nenhum. Linora jazia rodeada
por uma poça de sangue, o olhar vítreo da morte no
rosto.
Lievelyn pegou em Roslain ao colo e seguiu Sir Grance
Lambren, que ia à frente de Sabran. Amaldiçoando
Lievelyn em voz alta por ser tão confiante, Ead seguiu-a.
Os outros Cavaleiros do Corpo tentaram seguir a sua
rainha, mas estavam em menor número.
Como poderia alguém ter orquestrado um ataque tão
maciço?
Ead alcançou Sabran e Lievelyn assim que Lambren
dobrou uma es­quina, levando-os para longe da milha de
Berethnet. Conduziu-os atra­vés de um jardim ossário
abandonados na rua Quiver, até um santuário em ruínas.
Acompanhou o casal real até lá dentro, mas quando Ead
che­gou à porta, bloqueou-lhes o caminho.
— Deveis ir ter com as outras damas, minha senhora.
— Eu vou seguir a rainha, senhor — disse Ead —, quer
gosteis, quer não. Lambren não se mexeu. Ead garrou as
adagas com ainda mais força.
— Ead. — Era Sabran. — Ead, onde estás?
O cavaleiro permaneceu imóvel como uma estátua por
mais um momento, mas depois afastou-se. Quando Ead
entrou, o homem em­bainhou a espada e fechou a porta.
Tirou o elmo e Ead olhou para o rosto corado de Sir
Grance Lambren. Ele lançou-lhe um olhar de profundo
desagrado.
O interior do santuário estava tão deserto como o
ossário. A vege­tação espreitava pelas janelas partidas.
Roslain estava deitada no altar, imóvel, exceto pelo
movimento rítmico da sua respiração. Sabran, que a
cobrira com o seu próprio manto, estava ao seu lado,
segurando-lhe a mão mole, fingindo compostura.
Lievelyn andava de um lado para o outro, tenso.
— Aquelas pobres almas lá fora. A senhora Linora... —
A sua maçã do rosto estava salpicada de sangue. —
Sabran, tenho de voltar e ajudar o Capitão Lintley. Fica
com Sir Grance e a senhora Duryan.
Sabran correu para o seu lado.
— Não — disse, segurando-o pelos cotovelos. —
Ordeno-te que fiques.
— A minha espada é tão boa como a de qualquer
outro — respondeu Lievelyn. — Os meus homens...
— Os meus Cavaleiros do Corpo também estão lá fora.
Mas se mor­rermos, os seus esforços para nos proteger
serão em vão. Terão de pensar em nós e neles próprios.
Lievelyn segurou-lhe o rosto com as mãos.
— Querida, eu vou ficar bem.
Pela primeira vez, Ead viu como ele estava
apaixonado por Sabran, e isso surpreendeu-a.
— Maldição, és o meu companheiro. Partilhaste a
minha cama. A mi­nha carne. O meu... o meu coração —
disse Sabran. O seu rosto estava tenso e a sua voz,
embargada. — E não irás deixar a nossa filha sem pai,
Aubrecht Lievelyn. Não nos deixarás aqui, a chorar a tua
morte.
O rosto do príncipe mudou subitamente de expressão.
Uma luz de esperança reluziu-lhe nos olhos.
— É verdade?
Olhando-o nos olhos, Sabran pegou-lhe na mão e
levou-a à barriga.
— É verdade — murmurou.
Lievelyn respirou fundo. Um sorriso surgiu-lhe no
rosto, e passou o polegar pela sua maçã do rosto.
— Então eu sou o mais sortudo de todos os príncipes
— sussurrou. — E juro que a nossa filha será a princesa
mais amada que já existiu. — Deixou escapar um suspiro
e puxou Sabran para junto do seu peito. — A minha
rainha. A minha bênção. Amar-te-ei até ser digno de tal
sorte.
— Já és digno — disse Sabran, beijando-o no queixo.
— Não estás a usar o meu anel com o nó do amor?
Sabran pousou o queixo no ombro dele e passou as
mãos pelas suas costas, fechando os olhos quando ele
encostou os lábios à sua têmpora. Toda a tensão do
momento anterior desapareceu, como a chama de uma
vela apagada no momento em que os seus corpos se
juntaram.

Punhos bateram nas portas.

— Sabran — chamou uma voz. — Majestade, é a


Kate e a Margret! Deixem-nos entrar, por favor!

— Kate, Meg... — Sabran afastou-se de Lieveyn. —


Deixai-as entrar — ordenou a Lambren. Apressai-vos, Sir
Grance.

Ead demorou a reagir, mas reconheceu o truque.


Não era a senhora Katryen Withy atrás da porta. Era uma
imitação. Uma voz falsa.

— Não — ordenou. — Parai.

— Como te atreves a contrariar as minhas ordens?


— indagou Sabran, enfurecida. — Quem te deu
autoridade?

Ela estava vermelha de raiva, mas Ead manteve a


compostura.

— Vossa Majestade, não é a Katryen...

— Creio que sou capaz de reconhecer a sua voz. —


Sabran fez um gesto para Lambren. — Mandai entrar as
minhas damas.

Era um Cavaleiro do Corpo, por isso obedeceu.

Ead não perdeu um momento. Uma das suas


adagas já estava a cortar o ar quando Lambren
destrancou as portas e uma mulher entrou no santuário.
A intrusa evitou a faca mortal com um desvio hábil,
disparou contra Lambren e depois fez pontaria a Ead.

Lambren caiu com um estrondo metálico quando a


armadura chocou contra a pedra. A bala atingira-o entre
os olhos.
— Não te mexas, ersyri — disse uma voz. A pistola
ainda estava a fumegar. — Larga essa faca.
— Para que possas matar a rainha de Inys? — Ead
permaneceu imó­vel. — Preferia que apontasses essa
arma ao meu coração. Mas suspeito de que só tenhas
uma bala, ou já estaríamos todos mortos.
A assassina não respondeu.
— Quem te enviou? — Sabran endireitou os ombros.
— Quem cons­pira para acabar com a dinastia do Santo?
— O Copeiro não vos quer mal, Vossa Majestade,
exceto quando não dais ouvidos à razão. Exceto quando
levais Inys por caminhos que não deve trilhar.

O Copeiro.

— Caminhos — continuou a mulher, a voz abafada


por trás da más­cara da peste — que conduzirão Inys ao
pecado.

Um tiro soou e, no mesmo instante, Ead atirou a


sua última adaga, que se cravou no coração da assassina
no momento em que a bala disparou.

Sabran encolheu-se. Ead correu para o seu lado e,


aterrorizada, procurou humidade no seu corpete. Mas
não havia sangue. O vestido continuava imaculado.

Atrás deles, Aubrecht Lievelyn ajoelhou-se no chão.


As suas mãos pousaram no gibão, onde se espalhava
uma mancha escura.

— Sabran... — murmurou.

Ela virou-se.

— Não — gritou. — Aubrecht...

Ead observou a cena como um espetadora distante.


A rainha de Inys correu para o seu companheiro e deitou-
o no chão, repetindo o seu nome quase sem voz,
enquanto o sangue do seu amado lhe ensopava as saias.
Enquanto o segurava junto a si, implorando-lhe que não
a deixas­se, viu-o escapar-lhe das mãos. Enquanto se
inclinava sobre o seu rosto, envolvendo as mãos em
torno da sua cabeça.

Enquanto ele perdia a sua vida.

— Aubrecht. — Sabran olhou para cima, os olhos


cheios de lágrimas. — Ead. Ead, ajuda-o, por favor...
Ead não teve tempo de chegar a ele. As portas
abriram-se e um segun­do assassino entrou no santuário,
ofegante. Num instante, Ead arrancou a espada do
cadáver de Lambren e prendeu o assassino contra a
parede.
— Tira a máscara — ameaçou — ou juro que te
arranco a pele do rosto com a lâmina.
Duas mãos enluvadas revelaram um rosto de pele
pálida. Truyde utt Zeedeur olhou para o corpo sem vida
do Grão-Príncipe de Mentendon.
— Não desejava a sua morte — sussurrou ela. —
Apenas queria ajudar-vos, Majestade. Apenas queria que
me ouvísseis.
27

Este

Niclays Roos estava a conceber um plano. E era um


plano tão perigo­so e ousado que quase se perguntou se
realmente o teria inventa­do, sendo o eterno cobarde que
era.

Iria fazer o elixir e comprar o seu caminho de volta


para o Ocidente ainda que isso o matasse. E poderia
muito bem fazê-lo. Para escapar definitivamente de
Orisima e dar um novo ar ao seu trabalho, precisava de
arriscar. Precisava do que a lei do Oriente lhe negava.

Precisava do sangue de um dragão, para ver como


os deuses se regeneravam.

E sabia exatamente por onde começar.


Os criados estavam ocupados na cozinha.
— Que podemos fazer por vós, erudito Doutor Roos?
— perguntou uma criada quando Niclays lhe apareceu à
porta.
— Preciso de enviar uma mensagem. — E antes que
perdesse a pou­ca coragem que lhe restava, Niclays
estendeu-lhe a carta. — Tenho de contactar a honrada
senhora Tané no Castelo da Flor de Sal antes do
anoitecer. Poderias levar esta carta aos correios?
— Sim, erudito Doutor Roos. Eu trato disso.
— Não lhes digas quem é o remetente —
acrescentou em voz baixa.
Ela olhou para ele sem entender muito bem, mas
prometeu não o fa­zer. Niclays deu-lhe dinheiro suficiente
para pagar o serviço e a criada foi-se embora.
Agora só tinha de esperar.
Felizmente, esperar significava mais tempo para ler.
Enquanto Eizaru estava no mercado e Purumé atendia os
seus pacientes, Niclays sentou-se no seu quarto, com o
gato a ronronar ao seu lado, e folheou O Preço do Ouro, o
seu texto favorito sobre alquimia. O seu exemplar estava
muito gasto.
No momento em que estava a começar um novo
capítulo, um frag­mento de um delicado tecido de seda
flutuou para o chão.
Susteve a respiração. Apanhou o fragmento do chão
e levantou-o an­tes que o gato lhe deitasse as patas.
Havia anos que não pensava no maior mistério da sua
vida.
A maior parte dos livros e documentos que possuía
tinham pertencido a Jannart, que legara metade da sua
biblioteca a Niclays, bem como o seu mostrador armilar,
um relógio de castiçal lacustre e muitas outras
curiosidades. A coleção era composta por volumes
preciosos — manus­critos iluminados, tratados únicos,
livros de orações em miniatura —, mas nada deixara
Niclays mais obcecado do que aquele pequeno pe­daço
de seda. Não porque tivesse uma inscrição indecifrável,
nem pela sua óbvia antiguidade, mas porque, ao tentar
desvendar o seu segredo, Jannart perdera a vida.
Aleidine, a sua viúva, dera-o a Truyde, que
canalizara o seu luto pela morte do avô na obsessão
pelos seus bens. A rapariga guardara o frag­mento numa
caixa fechada durante um ano.
Pouco antes de Niclays partir para Inys, Truyde
apareceu em sua casa em Brygstad. Usava uma pequena
gola-rufo e o seu cabelo — o cabelo de Jannart — caía-lhe
sobre os ombros.
— Tio Niclays — dissera-lhe ela, muito séria —, sei
que ides partir muito em breve. O meu querido avô
guardou este pequeno pedaço de seda quando morreu.
Tenho andado a tentar descobrir o que diz, mas a escola
não me ensinou o suficiente. — Estendeu-lho, com a mão
envolta numa luva. — O papá diz que sois muito
inteligente. Acho-vos capaz de decifrar o que diz.
— Pertence-vos a vós, criança — disse-lhe ele,
embora estivesse ansio­so por o receber. — Foi a vossa
avó que vo-lo deu.
— Creio que devia ser para vós. Gostava que
ficásseis com ele. Mas escrevei-me se descobrirdes o que
significa.
Nunca lhe pudera escrever com boas notícias. Pela
escrita e pelo ma­terial, era evidente que o fragmento
provinha do antigo Oriente, mas isso era tudo o que
Jannart tinha conseguido descobrir até à altura da sua
morte. Os anos haviam passado e Niclays ainda não
sabia por que razão morrera agarrado àquele pequeno
pedaço de seda.
Enrolou-o com cuidado e colocou-o na caixa decorada
que Eizaru lhe tinha dado. Secou os olhos, respirou fundo
e voltou a abrir O Preço do Ouro.

***

Nessa noite, Niclays jantou com Eizaru e Purumé, mas


depois disse-lhes que sentia sono. Ao cair da noite, saiu
do quarto, pôs um dos chapéus de Eizaru e saiu para a
rua.
Conhecia o caminho para a praia. Desviando-se das
sentinelas, per­correu os mercados noturnos de cabeça
baixa e com um cajado na mão.
Quando chegou à praia, não encontrou nenhuma luz
de rua que o denunciasse. Estava deserta, com exceção
dela.
Tané Miduchi esperava junto a uma poça entre as
rochas, o rosto es­condido sob a viseira de um elmo.
Niclays sentou-se a alguma distância.
— Honrais-me com a vossa presença, senhora Tané.
Ela demorou algum tempo a responder.
— Falais seiikine.
— Claro que falo.
— Que quereis?
— Um favor.
— Não vos devo nenhum favor — disse ela, a voz
baixa e gelada. — Podia matar-vos aqui mesmo.
— Suspeitei de que me pudésseis ameaçar, e foi por
isso que deixei um bilhete sobre o vosso crime em casa
do erudito Doutor Moyaka. — Era uma mentira, mas ela
não tinha como saber. — Neste momento estão todos a
dormir em sua casa, mas se não chegar a tempo de
queimar o bilhete, todos saberão o que fizestes. Duvido
de que o General do Mar vos permita manter o vosso
lugar entre os cavaleiros, vós que podeis ter permitido
que a doença vermelha entrasse em Seiiki.
— Haveis julgado mal o que eu faria para manter o
meu lugar.
Niclays estalou a língua.
— Deixastes um homem inocente e uma jovem
senhora a apodrecer em merda e mijo numa masmorra
para que a vossa tão desejada cerimó­nia pudesse
decorrer como desejáveis — recordou-lhe. — Não,
senhora Tané, não vos julguei mal. Acho que vos conheço
muito bem.

Ela ficou em silêncio por um momento. Depois


disse:

— Dissestes «e uma jovem senhora».

Claro que era possível que ela não fizesse ideia.

— Duvido de que estejais minimamente


preocupada com o pobre Sulyard — disse Niclays —, mas
a vossa amiga do teatro também foi presa. Estremeço só
de pensar no que lhe poderão ter feito para lhe ar­‐
rancarem o vosso nome.
— Mentis.

Niclays viu os seus lábios comprimirem-se. Era tudo


o que conseguia ver da sua cara.

— Ofereço-vos um acordo justo — disse. — Partirei


esta noite e nada direi sobre o vosso envolvimento com
Sulyard. Mas em troca do meu silêncio, fornecer-me-eis
sangue e escamas do vosso dragão.

Ela moveu-se como um pássaro a levantar voo e,


antes que desse por isso, Niclays tinha uma lâmina
afiada contra a sua garganta.

— Sangue — sussurrou ela. — E escamas.

A sua mão tremeu. O instinto disse a Niclays para


recuar, mas não se moveu da sua posição.
— Quereis que eu mutile um dragão. Que profane a
carne de um deus. — Niclays conseguia ver-lhe os olhos
agora, e o seu olhar era ainda mais afiado do que a sua
lâmina. — As autoridades farão mais do que decapitar-
vos. Queimar-vos-ão vivo. A água dentro de vós está
demasia­do poluída para ser limpa.
— Bem, pergunto-me se não vos queimarão a vós
pelos vossos cri­mes. Ajudar um forasteiro a ultrapassar o
bloqueio da fronteira. Pôr em risco toda a Seiiki. —
Niclays cerrou os dentes ao sentir a faca afundar-se no
seu pescoço. — Sulyard confirmará o que eu disse.
Receio que se lembre do vosso rosto com grande
pormenor, até essa vossa cicatriz. Ninguém lhe deu
ouvidos, claro, mas se eu juntar a minha voz à dele...
Tané estava a tremer.
— Então pretendeis ameaçar-me — disse, retirando
a faca. — Mas não para salvar Sulyard. Explorais o
sofrimento dos outros para vosso próprio ganho. Sois um
servo do Inominável.

— Oh, não. Temo que a minha vida não seja assim


tão empolgante, senhora Tané. Sou apenas um pobre
velho a tentar sair desta ilha, para poder morrer no meu
próprio país. — O calor humedeceu-lhe o pes­coço. — Sei
que ides demorar algum tempo a arranjar o que preciso.
Estarei nesta praia dentro de quatro dias, ao cair da
noite. Se não vier­des, aconselho-vos a deixar Ginura o
mais depressa possível.

Ele fez uma vénia profunda e deixou-a sozinha sob


as estrelas.

***

O Sol inchava como o sangue de uma ferida. Tané


sentou-se no penhas co em frente à baía de Ginura,
observando as ondas a bater contra a rocha, partindo-se
em inúmeros cristais brancos.

Ainda sentia uma dor surda na ferida que Turosa lhe


infligira no om­bro. Bebeu do vinho que levara das
cozinhas e sentiu-o a arder do céu da boca até ao peito.

Eram as suas últimas horas como senhora Tané do


Clã Miduchi. Apenas alguns dias após a sua nomeação, o
seu título ser-lhe-ia retirado.

Tané passou o dedo pela cicatriz na maçã do rosto,


a cicatriz que leva­ra a que Sulyard se lembrasse dela. A
cicatriz que fizera ao salvar Susa. Não era a sua única
cicatriz: tinha outra, mais profunda, de lado. Não se
lembrava de como a tinha feito.
Pensou em Susa, confinada numa cela. E depois
pensou no que Roos queria que ela fizesse, e o seu
estômago revolveu-se, como um peixe aca­bado de ser
retirado da água.
Até desfigurar a imagem de um dragão era punível
com a morte. Tirar sangue e parte da armadura de um
deus era muito mais do que um crime. Havia piratas que
usavam nuvem de fogo para anestesiar os dragões,
carregavam-nos em navios roubados e tiravam-lhes tudo
o que podiam para vender no mercado negro de
Kawontay, desde os dentes à gordura por baixo das suas
escamas. Era o mais grave de todos os crimes no Oriente
e, no passado, alguns Senhores da Guerra puniam os
envol­vidos com execuções públicas brutais.
Ela não se prestaria a tal crueldade. Depois de todas
as batalhas que Nayimathun devia ter travado durante a
Grande Desolação, com todas as cicatrizes que já
carregava, Tané não iria mutilá-la ainda mais. O que quer
que Roos pretendesse fazer com o seu sangue sagrado,
não era um bom presságio para Seiiki.
E, no entanto, não podia arriscar a vida de Susa,
sobretudo porque fora ela quem a metera naquela
confusão.
Tané passou os dedos pelo cabelo, puxando-o para
cima como costu­mava fazer quando era mais nova. Os
seus professores davam-lhe sem­pre palmadas nas mãos
para a impedir de o fazer.
Não. Não faria o que Roos pretendia. Apresentar-se-
ia perante o General do Mar e confessaria o que fizera.
Isso custar-lhe-ia o seu lugar como cavaleira, com
Nayimathun. Custar-lhe-ia tudo aquilo por que tanto
trabalhara desde a infância, mas era o que merecia, e
talvez salvas­se a sua única amiga da espada.
— Tané.
Olhou para cima e viu que Nayimathun estava à
beira do penhasco.
A sua coroa estava iluminada.
— Grande Nayimathun — respondeu ela, com a voz
rouca.
Nayimathun inclinou a cabeça para um lado. O seu
corpo balançava ao vento, leve como papel. Tané trouxe
as mãos para a frente e encostou a testa ao chão.
— Não vieste ao Órfão Enlutado esta noite — disse
Nayimathun.
— Perdoa-me. — Como não podia tocar no dragão,
Tané suspirou enquanto as mãos falavam por ela. — Não
te posso ver mais. De verda­de, grande Nayimathun, eu
lamento. — A sua voz estalou, como madei­ra podre sob
grande tensão. — Tenho de comparecer perante o
General do Mar. Tenho uma confissão a fazer-lhe.
— Gostaria que voasses comigo, Tané. Falaremos do
que te preocupa.
— Eu desonrar-te-ia.
— Agora também me desobedeces, criança de
carne?
Aqueles olhos pareciam anéis de fogo ardente e
aquela boca cheia de dentes não convidava à
argumentação. Tané não podia desobedecer a uma
deusa. O seu corpo era todo água, e toda a água era
dela.
Montar nas costas de um dragão sem sela era
perigoso, mas possível.
A tremer, levantou-se e aproximou-se da beira do
penhasco. Nayimathun baixou a cabeça, permitindo-lhe
que agarrasse a sua crina, pusesse uma bota no seu
pescoço e o montasse. Nayimathun virou-se para o
castelo...
... e desceu.
Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo enquanto
mergulhavam em direção ao mar. Não conseguia respirar
de medo e de felicidade. O seu coração estava na boca,
preso como um peixe numa rede.
Apressaram-se a chegar a um cume de rochas. O
vento rugia nos seus ouvidos. Pouco antes de cair na
água, o instinto fê-la baixar a cabeça.
Com o impacto, quase perdeu a sela. A água entrou-
lhe pela boca e pelo nariz. As suas coxas doíam e os seus
dedos tinham cãibras, agarrando-se com toda a força à
crina do dragão, enquanto Nayimathun nadava,
abanando a cauda e as pernas, ágil como uma enguia.
Com muito esforço, Tané abriu os olhos. No seu ombro,
sentiu o ardor que só o fogo curativo do mar poderia
proporcionar.
Estava rodeada de bolhas que pareciam luas do mar.
Nayimathun subiu à superfície, e Tané com ela.
— Para cima — perguntou Nayimathun — ou para
baixo?
— Para cima.
As escamas e a musculatura do dragão ondularam sob
Tané, que se agarrou ainda mais à sua crina. Com um
grande salto, Nayimathun voou de volta para a baía, a
água a pingar nas ondas.
Tané virou-se para olhar para trás. Ginura estava
muito abaixo. Parecia uma pintura, ao mesmo tempo real
e irreal, um mundo a flutuar à beira do mar. Sentia-se
viva, realmente viva, como se estivesse a respi­rar pela
primeira vez. Lá em cima, já não era a senhora Tané do
Clã Miduchi, não era ninguém. Era um espetro no
crepúsculo. Um sopro de vento sobre o mar.
A morte devia ser assim. As tartarugas adornadas com
joias viriam para levar o seu espírito para o Palácio de
Muitas Pérolas e atirar o seu corpo às ondas. E tudo o
que restaria seria espuma.
Pelo menos, era o que aconteceria se não tivesse
cometido aquela transgressão. Apenas os cavaleiros
podiam descansar com os seus dragões. Tané teria de
vaguear pelo oceano para sempre.
A bebida pesava-lhe no sangue. Nayimathun subiu
mais alto, cantan­do numa língua antiga. A respiração de
uma humana e de um dragão materializou-se como uma
nuvem.
O mar parecia enorme a seus pés. Tané aconchegou-
se na crina de Nayimathun, protegendo-se do vento. Por
cima das suas cabeças brilhavam inúmeras estrelas
brancas como cristal, sem uma nuvem que as toldasse.
Olhos de dragões que ainda não tinham nascido. Quando
adormeceu, sonhou com eles, um exército que caía do
céu para eliminar as sombras. Sonhou que era tão
pequena como um rebento e que todas as suas
esperanças brotavam como ramos.
Ainda sonolenta, espreguiçou-se, relaxada e quente,
com uma ligeira dor nas têmporas.
Demorou algum tempo a acordar completamente e,
quando se lem­brou, sentiu novamente o frio na pele e
percebeu que estava deitada numa rocha.
Rebolou, apoiando-se de lado. Na escuridão, tudo o
que conseguia ver era a silhueta do seu dragão.
— Onde estamos, Nayimathun?
Ouviu o raspar das escamas contra a rocha.
— Algures — retumbou a voz do dragão. — Nenhures.
Estavam numa caverna de maré. A água entrava pela
abertura. Quando batia contra a rocha, criava clarões
pálidos de luz, como os das lulas que por vezes davam à
costa nas praias de Cabo Hisan.
— Diz-me, então — disse Nayimathun —, como é que
nos desonraste?
Tané pôs um braço à volta dos joelhos. Se ainda lhe
restava alguma coragem, não era suficiente para dizer
não duas vezes a um dragão.
Falou em voz baixa. Não escondeu nada. Contou tudo
o que ti­nha acontecido desde o aparecimento do
forasteiro naquela praia e Nayimathun não emitiu som
algum. Tané encostou a testa no chão e es­perou pela sua
sentença.
— Levanta-te — disse Nayimathun. Tané obedeceu. —
O que acon­teceu não me desonra. Desonra o mundo.
Tané baixou a cabeça. Prometera a si mesma que não
voltaria a chorar.
— Eu sei que não mereço perdão, grande Nayimathun
— disse, sem levantar os olhos das botas, mas com a
boca trémula. — De manhã irei até ao General do Mar.
Podes escolher outro cavaleiro.
— Não, criança de carne. Tu és a minha cavaleira,
fizeste o juramento perante o mar. E tens razão quando
dizes que não mereces perdão, mas isso é porque não há
crime para punir.
Tané olhou-a fixamente.
— Sim, houve um crime. — A sua voz tremeu. — Violei
a ordem de seclusão. Escondi um forasteiro. Desobedeci
ao Grande Edito.
— Não. — O seu assobio ecoou na caverna. — Oriente
ou Ocidente, Norte ou Sul... não muda nada. A ameaça
vem de baixo, não de longe. — O dragão esparramou-se
no chão de modo que os seus olhos ficassem ao nível dos
de Tané. — Escondeste o rapaz. Protegeste-o da morte
certa.
— Mas não o fiz por bondade. Fi-lo porque... — O seu
estômago encolheu-se. — Porque queria evitar que ele
atrapalhasse o curso da minha vida. E porque pensei que
iria arruinar o meu futuro.
— Isso desilude-me. E desonra-te a ti. Mas não é
imperdoável. — Nayimathun inclinou a cabeça. — Diz-
me, pequena, porque veio esse inysh a Seiiki?
— Ele queria ver o honrado Senhor da Guerra. — Tané
humedeceu os lábios. — Parecia desesperado.
— Então o Senhor da Guerra tem de o ver. O
Imperador dos Doze Lagos também tem de ouvir as suas
palavras — disse, retesando a crina das costas. — A terra
estremecerá sob o mar. Ele agita-se.
Tané não se atreveu a perguntar a quem se referia.
— Que devo fazer, Nayimathun?
— Essa não é a pergunta que tens de fazer. A
pergunta é: que devemos fazer?
28
Sul

Rauca, capital do Ersyr, era a maior povoação


do Sul. Enquanto percorria o labirinto de ruas com
muros altos, Loth sentiu que es­tava à mercê dos
seus sentidos. Montes de especiarias de todas as
cores, jardins cheios de flores que perfumavam as
ruas, altos cata-ventos com pormenores em cristal
de safira... Nunca tinha visto nada assim.
No tumulto da cidade, apenas foram
dispensados alguns olhares de soslaio ao
ichneumon a seu lado. Tais animais não deviam ser
tão raros no Ersyr como eram mais a norte. Mas,
ao contrário da criatura lendá­ria, aquele parecia
não poder falar.
Loth deixou a multidão para trás. Apesar do
calor, estava coberto até ao pescoço com o manto,
mas ainda entrava em pânico quando alguém se
aproximava demasiado.
O Palácio de Marfim, a corte da Casa de
Taumargam, erguia-se so­bre a cidade como um
deus silencioso. À sua volta esvoaçavam pom­bos,
transportando mensagens dos habitantes da
cidade. As suas cúpulas emitiam brilhos de ouro,
prata e bronze, tão cintilantes como o sol que
refletiam, e as suas paredes eram de um branco
impecável, com janelas em arco que pareciam
motivos de renda.
Chassar uq-Ispad era o embaixador da Casa de
Taumargam. Loth tentou dirigir-se ao palácio, mas
o ichneumon tinha outras ideias. Levou-o para um
mercado coberto, onde o ar era doce como pudim.
— Não sei onde pensas que vais — disse Loth,
mal abrindo os lábios gretados. Tinha a certeza de
que o animal o entendia. — Podemos parar para
beber água, por favor?
Mais valia ter mantido a boca fechada, pela
forma como foi ignorado. Quando passaram por
uma banca de jarros cheios de água cristalina, não
aguentou mais. Pegou no odre que trazia na
sacola. O ichneumon virou-se para ele e rosnou.
— Por favor — insistiu Loth, exausto.
O ichneumon resfolegou, mas sentou-se. Loth
virou-se para o comerciante e apontou para o
frasco mais pequeno, feito de cristal iridescente.
O homem respondeu na sua própria língua.
— Eu não falo ersyri, senhor — desculpou-se
Loth.
— Ah, sois inysh. As minhas desculpas — disse o
comerciante, sorrindo. Como a maioria dos ersyris,
tinha pele dourada e cabelos escuros. — Isso são
oito sóis.
Loth hesitou. Vindo de uma família rica, não
tinha experiência em negociar com mercadores.
— Isso... parece-me muito caro — murmurou,
consciente dos seus parcos recursos.
— Somos os melhores sopradores de vidro de
Rauca. Se subestimasse o meu trabalho, estaria a
manchar a minha boa reputação.
— Muito bem. — Loth limpou a testa. Estava
demasiado quente para discutir. — Já vi pessoas
com máscaras de pano na cara. Onde posso
comprar uma?
— Haveis vindo aqui sem um pargh... Bem,
tendes sorte de não terdes ficado cego com a areia
— disse o mercador, e estalando a língua, tirou um
quadrado de pano branco. — Tomai. Ofereço-vos
isto.
— Sois muito amável.
Loth estendeu a mão para pegar no tecido.
Tinha tanto medo de espalhar a peste através da
luva que quase a deixou cair. Com o pargh posto,
cobrindo-lhe todo o rosto exceto os olhos,
entregou ao homem uma mão-cheia de moedas de
ouro da sua bolsa.
— Que a aurora brilhe sobre vós, meu amigo —
disse o comerciante.
— E sobre vós — respondeu Loth, um pouco
inquieto. — Haveis sido muito generoso, mas
gostaria de saber se me podeis ajudar com mais
uma coisa. Vim ao Erysr em busca de Sua
Excelência, Chassar uq-Ispad, embaixador do Rei
Jantar e da Rainha Saiyma. Greis que estará no
Palácio de Marfim?
— Bem! Tereis sorte se o encontrardes. Sua
Excelência viaja muito — disse o mercador —, mas
nesta altura do ano, deverá estar na sua pro­‐
priedade em Rumelabar. — Entregou o fiasco a
Loth. — As caravanas partem do Recinto das
Pombas ao amanhecer.
— E poderei enviar uma carta de lá também?
— Claro que sim.
— Obrigado. Que tenhais um bom dia.
Loth afastou-se e esvaziou o fiasco em três
goles. Ofegante, limpou a boca.
— O Recinto das Pombas — repetiu, voltando-se
para o ichneumon. — Parece-me muito agradável.
Levas-me lá, meu amigo?
O ichneumon levou-o até ao que devia ser o
centro do mercado, onde as bancas se enchiam de
sacos de pétalas de rosas secas, tigelas de açúcar
em pó e chá de safira acabado de fazer. Quando
chegaram, o Sol já se pusera no horizonte e as
lamparinas de vidro colorido começavam a
acender-se.
O Recinto das Pombas era inconfundível. Estava
coberto de azulejos quadrados cor-de-rosa e
rodeado por um muro que ligava quatro enormes
pombais em forma de colmeia. Loth descobriu
imediatamente que o pombal mais próximo era o
do mensageiro que ia para oeste. Entrou na
estrutura fresca, em forma de favo de mel, onde
milhares de pombos brancos se empoleiravam nas
suas alcovas.
Na última noite que passara em Cárscaro,
escrevera uma carta a Margret. E tivera uma ideia
para ultrapassar a censura de Combe. Entregara-a
a um cuidador de pássaros, juntamente com uma
moeda, e o cuidador de pássaros prometera partir
ao amanhecer.
Profundamente exausto, Loth deixou que o
ichneumon o condu­zisse para fora do pombal e
para um edifício com as mesmas janelas gradeadas
do palácio. Embora a mulher ersyri local não
falasse inysh, conseguiram comunicar com gestos
fervorosos e grandes sorrisos, e ela compreendeu
que ele desejava pernoitar.
O ichneumon ficou lá fora. Loth estendeu a mão
e afagou-o entre as orelhas.
— Espera por mim, meu amigo — murmurou. —
Apreciaria muito ter a tua companhia noutro
deserto.
Como resposta, o animal ladrou uma vez. A
última coisa que viu foi a sua cauda, quando ele
desapareceu num beco.

Junto a esse beco, estava uma mulher.


Encostada a um pilar, de braços cruzados. O seu
rosto oculto atrás de uma máscara de bronze.
Usava calças à boca de sino enfiadas em botas de
bico aberto e um casaco de brocado que lhe
chegava às coxas. Perturbado com a forma como
ela o fitava, Loth virou-se e voltou a entrar na
estalagem.

O quarto era pequeno, mas tinha vista para


um pátio com um lago rodeado de limoeiros doces.
O cheiro enjoativo quase o deixou tonto. Olhou
para a cama que não lhe era familiar, coberta de
almofadas e seda preta; mal podia esperar para
adormecer.

Mas, em vez disso, ajoelhou-se junto à janela


e chorou por Kitston Glade.

***

Quando as suas lágrimas se esgotaram, o


Santo deixou-o adormecer. Acordou de madrugada,
os olhos inchados e doridos, sentindo uma pressão
na bexiga que exigia atenção urgente. Depois de
encontrar o quarto de banho e de se aliviar,
regressou ao seu quarto.

Pensar em Kit partia-lhe o coração em


pedaços. O luto era como um tornado que o varria,
engolindo todos os seus pensamentos positivos.

Lá fora, as pombas já estavam nos seus


ninhos. As cúpulas lustrosas do Palácio de Marfim
refletiam todas as luzes, cintilando como a chama
de uma vela. No alto, as estrelas pontuavam a
escuridão.

Já não estava no Ocidente. Aquela terra não


venerava as Virtudes, mas um falso profeta. Ead
confessara-lhe que, na sua infância, os ensi­‐
namentos do Cantor da Alvorada lhe haviam
parecido belos, mas a Loth causavam arrepios.
Não conseguia imaginar como seria viver sem o
con­forto e a ordem proporcionados pelas Seis
Virtudes. E ficou contente por Ead se ter
convertido quando chegara à corte.

Uma brisa refrescou-lhe a pele. Teria gostado


de tomar um banho, mas receou que a peste
envenenasse a água. De manhã, queimaria os
lençóis e pagaria o prejuízo à estalajadeira.

Sentia as costas a arder. Tinha as mãos a


descascar, e não podia usar luvas o dia todo sem
levantar suspeitas. Se ao menos Chassar uq-Ispad
tivesse realmente a cura.
O Cavaleiro da Camaradagem enviara-lhe o
ichneumon. Não podia deixá-lo morrer assim.
Voltou a dormir, sem sonhos, até que algo o
acordou.
As suas pernas e braços tremiam
incontrolavelmente. Tinha febre alta, mas estava
certo de que fora outra coisa que o acordara.
Pegou na sua espada, até que se lembrou de que a
tinha perdido.
— Quem é? — Sentiu um sabor salgado nos
lábios. — Ead?
Viu uma sombra a deslizar ao luar. Uma máscara
de bronze ergueu-se imponente sobre ele e, de
repente, a escuridão engoliu-o.
29

Este

Na capital, a chuva continuava a cair. Tané


ajoelhou-se nos seus aposentos privados no Castelo da
Flor de Sal.

Depois da sua confissão, Nayimathun levara-a para


o castelo, onde a tinham deixado à espera. O dragão
dissera-lhe que deveria regressar a Cabo Hisan para
encontrar Sulyard. Se tinha a proteção de uma deu­sa, a
corte não poderia recusar o seu pedido. Nayimathun
ordenaria também a libertação imediata de Susa.
Encontrar-se-iam na praia ao amanhecer e depois
compareceriam juntas perante o General do Mar para lhe
contar tudo.

Tané tentou provar a comida do jantar, mas as mãos


tremiam-lhe. A maioria dos cavaleiros tinha sido
convocada para a Alta Guarda do Mar no assentamento
costeiro de Sidupi. A Frota do Olho de Tigre atacara com
um contingente de cem piratas, que estavam a saquear
à vontade.
Pediu um chá. Uma das suas assistentes pessoais
trouxe-o e agora mantinha-se sempre por perto para a
atender sempre que fosse necessário.
O seu quarto era mais bonito do que tinha
imaginado, com o teto ornamentado e vários tapetes
perfumados no chão. As pinturas nas paredes tinham
pormenores em folha de ouro e a cama macia estava
coberta com os tecidos mais suaves.
Apesar de todos esses luxos, não conseguia comer
nem dormir.
O chá acabou, mas as mãos continuavam a tremer.
Se ao menos con­seguisse dormir, quando acordasse,
Nayimathun já lá estaria.
Tané deu um passo em direção à cama e, nesse
momento, o chão tremeu com um estrondo. Ela correu
para junto de uma parede. A força do tremor derrubou-a
ao chão, fazendo-a rolar pelos tapetes.
A lamparina tremeu. Três das suas assistentes
apareceram a correr no quarto. Uma delas ajoelhou-se a
seu lado enquanto as outras a erguiam pelos cotovelos.
Quando apoiou o tornozelo esquerdo, soltou um grito
abafado e as assistentes apressaram-se a levá-la para a
cama.
— Senhora Tané, estais ferida?
— Um entorse — respondeu ela —, nada mais.
— Trar-vos-emos algo para a dor. Esperai aqui,
honrada Miduchi — disse a assistente mais jovem, e as
três saíram.
Pela janela, ouviu gritos distantes e confusos. Seiiki
sofrera terramo­tos, mas já se passara muito tempo
desde o último.
As assistentes trouxeram-lhe uma tigela com gelo.
Tané tirou algum, envolveu-o num pano e aplicou-o no
tornozelo dorido. A queda também despertara a dor no
ombro e nas costelas do lado esquerdo, onde tinha uma
cicatriz antiga.
Quando o gelo quase derreteu por completo, apagou
a lamparina e deitou-se, tentando encontrar uma posição
confortável. A lateral doía como se tivesse sido pisada
por um cavalo. Adormeceu, mas continuava a sentir
dores, como a pulsação de um segundo coração.
Vários golpes na porta acordaram-na. Por um
momento, pareceu-lhe que estava de volta à Casa Sul e
que estava atrasada para a aula.
— Senhora Tané.
Não era a voz de nenhuma das suas assistentes.
Agora, a dor lateral era insuportável. Com os olhos
irritados, levantou-se, tentando não forçar o tornozelo.
Seis soldados mascarados estavam à sua espera do
lado de fora. Todos envergavam a túnica verde do
exército terrestre.
— Senhora Tané — repetiu um deles, com uma vénia
—, perdoai-nos pelo incómodo, mas deveis vir connosco
de imediato.
Era muito raro um soldado do exército terrestre pôr
os pés no Castelo da Flor de Sal.
— A meio da noite? — respondeu Tané, tentando
parecer autoritária. — Quem é que me convoca, honrado
soldado?

— O honrado Governador de Ginura.

A mais alta autoridade da região. Magistrado-chefe


de Seiiki, respon­sável por administrar a justiça a pessoas
de alta patente.

De repente, Tané sentiu até o próprio coração a


bater. O seu corpo parecia estar a desfazer-se em
fragmentos e a sua mente fervilhava com todas as
terríveis possibilidades. Claro que a pior de todas era o
facto de Roos já ter ido às autoridades. Talvez a melhor
coisa a fazer fosse não oferecer resistência, fazer-se de
inocente. Se fugisse agora, seria visto como uma
admissão de culpa.

Nayimathun não tardaria a regressar. Acontecesse


o que acontecesse, onde quer que a levassem, o seu
dragão voltaria para a ir buscar.

— Muito bem.

O soldado pareceu relaxar.

— Obrigado, senhora Tané. Mandaremos as suas


assistentes ajudá-la a vestir-se.

As assistentes trouxeram-lhe o uniforme. Puseram-


lhe a sobrecasaca aos ombros e ataram-lhe uma faixa
azul à cintura. Assim que se vestiu e as criadas se
viraram para sair, tirou uma adaga de baixo da almofa­da
e escondeu-a na manga.

Os soldados seguiram-na pelo corredor. Cada vez


que o seu pé direito tocava no chão, a dor subia-lhe pela
barriga da perna. Caminharam pelo castelo quase
deserto até saírem para a escuridão da rua.

Um palanquim esperava por ela à porta. Parou. O


seu instinto dizia-lhe que não entrasse ali.

— Senhora Tané — disse-lhe um dos soldados —, não


podeis recusar a ordem do honrado Governador.
De repente, percebeu movimento. Onren regressava
ao castelo com Kanperu. Ao verem Tané, aproximaram-
se.
— Como membro do Clã Miduchi — respondeu Tané
ao soldado, sentindo-se corajosa —, creio que posso
fazer o que quiser.
O soldado pestanejou por trás da sua máscara.
Nessa altura, Onren e Kanperu já a haviam alcançado.
— Honrada Tané, passa-se alguma coisa? —
perguntou Kanperu num tom áspero e determinado. Uma
espada emergiu da sua bainha. Agora que tinham mais
dois cavaleiros à sua frente, os soldados parece­ram
ponderar nas suas hipóteses.
— Estes soldados desejam levar-me para o Castelo
do Rio Branco, honrado Kanperu — disse Tané —, mas
não me podem dizer porque estou a ser convocada.
Kanperu olhou para o capitão com uma ligeira
careta. Era quase uma cabeça mais alto que os soldados.
— Que direito tendes vós de vir e levar uma
cavaleira de dragão sem aviso? — indagou. — A senhora
Tané é uma escolhida divina, e levá-la-íeis deste castelo
como se fosse uma ladra.
— O grande General do Mar foi informado, Lorde
Kanperu. Onren ergueu as sobrancelhas.
— Certificar-me-ei de confirmar isso quando ele
regressar — disse ela.
Os soldados não responderam. Onren lançou-lhes um
olhar severo e puxou Tané para o lado.
— Não te preocupes — disse-lhe em voz baixa. —
Deve ser um assun­to trivial. Ouvi dizer que a honrada
Governadora gosta de exibir a sua autoridade até sobre o
Clã Miduchi. — Fez uma pausa. — Tané, estás com mau
aspeto.
Tané engoliu em seco.
— Se eu não voltar dentro de uma hora — disse —,
podes fazer chegar um aviso à grande Nayimathun?
— Claro que sim. — Onren sorriu. — O que quer que
seja será resolvido em breve. Até amanhã.
Tané acenou com a cabeça e tentou sorrir. Sob o olhar
de Onren, subiu para o palanquim e abandonou o
castelo.
Ela era uma cavaleira de dragão. Não tinha nada a
temer.
Os soldados conduziram-na pelas ruas, pelo mercado
noturno, pelas árvores da época. Ouviam-se risos vindos
das tabernas cheias de gen­te. Só depois de passarem
pelo Teatro Imperial é que Tané percebeu que não se
dirigiam ao Castelo do Rio Branco, onde vivia o honrado
Governador de Ginura. Dirigiam-se para sul da cidade.
O medo apoderou-se dela. Esticou a mão para a pega
do palanquim, mas a porta estava trancada por fora.
— Não é este o caminho Para onde me levais?
Não obteve resposta.
— Eu sou uma Miduchi. Sou a cavaleira da grande
Nayimathun das Neves Profundas. — A sua voz quebrou.
— Como vos atreveis a fazer-me isto?
Tudo o que conseguia ouvir eram passos.
Quando o palanquim finalmente parou e ela viu onde
estavam, o seu estômago encolheu-se. A porta abriu-se.
— Honrada Miduchi — disse um dos soldados —, por
favor, acompanhai-me.
— Como vos atreveis...? Como vos atreveis a trazer-
me para este lugar?
Um cheiro a putrefação chegou-lhe às narinas,
aumentando a sua sensação de medo. Perdera a
oportunidade de fugir. Nem mesmo um cavaleiro de
dragão conseguiria enfrentar todas aquelas sentinelas,
so­bretudo sem espada, e, de qualquer modo, não tinha
para onde ir. Desceu do palanquim e caminhou, de
queixo erguido e punhos cerra­dos, sentindo dor a cada
passo.
Não poderiam tê-la levado até ali para a matar. Não
sem um julga­mento. Nem sem Nayimathun. Ela era uma
escolhida, uma protegida.
Quando os soldados a escoltaram até à prisão de
Ginura, o zumbido de insetos fê-la olhar para cima. Três
cabeças opacas e cobertas de larvas espiavam a rua do
alto da cerca.
Tané olhou para a mais recente. O tufo de cabelo
manchado de san­gue, a língua inchada... Já estava meio
desfigurado, mas reconheceu-o. Sulyard. Tentou manter
a compostura, mas sentiu a espinha apertar-se, o
estômago revirar-se e a boca ficar seca como sal.
Ouvira dizer que na longínqua Inys, de onde viera
aquele fantasma da água, as pessoas reuniam-se nas
praças para assistir a execuções. Em Seiiki não era esse
o caso. A maioria dos cidadãos não sabia que, no re­cinto
da prisão, uma rapariga de dezassete anos estava
ajoelhada junto a uma vala, as mãos atadas atrás das
costas e o seu longo cabelo rapado, à espera do seu fim.
Os soldados levaram Tané até à prisioneira e
imobilizaram-na. Um oficial estava a falar, mas Tané não
o ouvia devido ao acumular de san­gue nos seus ouvidos.
Ao ouvir passos, a mulher olhou para cima, mas Tané
desejou que não o tivesse feito, porque ela a reconheceu.
— Não — disse Tané, com a voz embargada. — Não!
Ordeno-vos que pareis com isto!
Susa virou-se para olhar para ela. Um brilho de
esperança surgiu-lhe nos olhos, mas foi rapidamente
eclipsado pela dor.
— Eu sou uma escolhida — gritou Tané ao carrasco.
— Ela está sob a minha proteção. A grande Nayimathun
matar-vos-á se o fizerdes! — Ele permaneceu imóvel,
como uma estátua de pedra. — Não foi ela. Fui eu. A
culpa é minha, fui eu...

Susa abanou a cabeça, os lábios a tremer, as


pestanas raiadas de lágrimas.

— Tané — murmurou, com a voz embargada —, não


olhes.

— Susa...

O soluçar acumulou-se-lhe na garganta. Foi um


erro. Parem. Sentiu dedos a cravarem-se nos seus braços
enquanto se debatia, perdendo a compostura, mais e
mais mãos a segurá-la. Parem. Tudo o que conseguia ver
era Susa em criança, uma coroa de flocos de neve na
cabeça e o seu sorriso quando Tané lhe tomara a mão.

O carrasco levantou a espada. Quando a cabeça


rolou para a vala, Tané caiu de joelhos.

Irei sempre proteger-te.

***

Quando viu que a cavaleira de dragão não


aparecera na praia à hora marcada, Niclays presumiu
que se atrasara e pôs-se à vontade. Levara consigo uma
bolsa com alguns dos seus livros e pergaminhos,
inclusive o fragmento que Truyde lhe dera, que examinou
mais uma vez à luz da lanterna de ferro.

Ao seu lado, colocou o relógio de bolso aberto. O


relógio, símbolo moderno do Cavaleiro da Temperança.
Um símbolo de autocontrolo, de medida, de contenção.
Era a virtude dos lentos, mas também dos in­telectuais e
filósofos, que acreditavam encorajar a autoanálise e a
busca pela sabedoria. Era certamente o que mais se
aproximava do pensamento racional nas Seis Virtudes.

Deveria ter sido a virtude do seu patrono. Mas em


vez disso, no seu décimo segundo aniversário, ele
escolhera o Cavaleiro da Bravura.
Agora, o seu pingente devia estar a ganhar ferrugem
algures em Brygstad. Arrancara-o no dia em que fora
eLivros.
Passou uma hora, e depois outra. Era indiscutível: a
senhora Tané descobrira-lhe o engodo.
O amanhecer despontava no horizonte. Niclays
fechou o seu relógio.
A sua oportunidade de regressar a Ostendeur com o
seu recém-descoberto elixir da vida, rodeado de honras,
acabara de desaparecer.
Purumé e Eizaru ficariam horrorizados se soubessem
o que pedira à cavaleira de dragão. Isso rebaixava-o ao
nível dos piratas, mas aquele maldito elixir era o seu
único caminho para casa, o seu único cartão de visita
possível para as casas reais do outro lado do Abismo.
Suspirou. Para salvar Sulyard, teria de contar ao
Senhor da Guerra sobre Tané Miduchi e o seu atentado
contra a segurança de Seiiki. Era o que teria feito desde
o início, fosse ele uma pessoa melhor.
Começou a voltar, arrastando-se ao longo da praia, e
depois parou. Por um instante, teve a impressão de que
as estrelas tinham sido apaga­das do céu. Mas quando
olhou mais de perto e viu aquela luz trémula, ficou
paralisado.
Algo estava a descer.
Algo enorme.
Movia-se como se mergulhasse na água. Uma
exalação verde irides­cente pontilhada de cicatrizes. Na
cabeça, um órgão em forma de odre que emitia uma
ténue luz azul. O mesmo brilho que se insinuava por
baixo das suas escamas.
Um dragão lacustre. Niclays observou-o,
estupefacto, enquanto ele pousava na areia com a
agilidade de um pássaro.
Uma grande rocha, desgastada pelo tempo,
sobressaía da areia. Niclays ficou atrás dela, sem tirar os
olhos do dragão. Pela forma como a sua cabeça se
movia, estava à procura de alguma coisa.
Niclays agachou-se e apagou a sua lamparina. Viu
como a criatura se movia em direção à costa, cada vez
mais perto do seu esconderijo. O dragão falou:
— Tané.
Mergulhou as enormes patas dianteiras na água.
Niclays estava tão perto que quase podia ter tocado nas
suas escamas. O elemento essen­cial para o seu trabalho,
quase na ponta dos seus dedos. Ficou agachado atrás da
rocha, esticando o pescoço para ver melhor, olhando
frenetica­mente para todos os lados.
— Tané, o rapaz está morto — disse o dragão em
seiikine. — E a tua amiga também. — Arreganhou os
dentes. — Tané, onde estás?
Então aquele era o seu dragão. O animal farejou o
ar, com as narinas dilatadas.
Foi então que sentiu uma lâmina fria na garganta e
uma mão a tapar-lhe a boca. Niclays soltou um som
estrangulado.

O dragão aproximou a cabeça da rocha.

Niclays estava a tremer. Não conseguia ouvir


nenhum som do seu cor­po, nem batimentos cardíacos,
nem respiração, mas conseguia imaginar a lâmina na sua
garganta em pormenor. Uma lâmina curva. Um gume
suficientemente afiado para lhe tirar a vida se se
mexesse nem que fosse um milímetro.

Um assobio perfurou a noite. E depois outro.

E outro.

O dragão soltou um grunhido. O som de garras


contra pedra, como uma espada a chocar com outra.
O fumo preto cobriu a praia. Tinha um odor acre,
como cabelo quei­mado e enxofre. E pólvora. Nuvem de
fogo. De repente, Niclays caiu no chão, cambaleando por
entre as nuvens de fumo, tossindo, e uma figura envolta
num pano arrastou-o para longe. A areia afundou-se sob
os seus pés, dificultando cada passo que dava.

— Para — protestou, ofegante. — Para, maldito


sejas...

Uma cauda atravessou o fumo e desferiu-lhe um


golpe terrível na bar­riga. Caiu de costas na areia,
atordoado e sem fôlego, com os óculos pendurados numa
orelha.

Estava a perder a consciência, embriagado pelo


fumo preto que lhe subia pelo nariz, entrava no corpo e
saía novamente.

Um gemido, como o lamento de uma baleia a


morrer. E um baque surdo e retumbante que fez tremer o
chão. Viu Jannart a caminhar des­calço ao longo da praia,
com um leve sorriso nos lábios.

— Jan — murmurou, quase sem fôlego. Mas ele já


tinha desaparecido. Dois pés de botas aproximaram-se
pela areia.
— Dá-me um bom motivo — disse uma voz em
seiikine — e talvez eu não te corte a garganta. — Niclays
viu-se perante uma faca com cabo de osso. — Tens
alguma coisa para oferecer à Frota do Olho de Tigre?

Tentou falar, mas a sua língua parecia ter sido


picada por uma abelha.

Alquimista, quis dizer. Eu sou um alquimista. Não


me matem.
Alguém lhe arrancou o saco. Mãos cicatrizadas
remexeram nos seus livros e pergaminhos. O tempo
deixou de fazer sentido. De repente, al­guém lhe bateu na
têmpora com o cabo de uma faca e todas as suas
preocupações se desvaneceram na escuridão.
30
Oeste

Truyde utt Zeedeur foi aprisionada na Torre Dearn.


Sob ameaça de tortura, confessou inúmeros crimes. Na
sequência do anúncio da visita real, contactara uma
companhia de teatro chamada Os Servos da Verdade,
que se declarava insubordinada, que não gozava do
patro­cínio de nenhum nobre e que era tratada como
indigente pelas auto­ridades. Truyde prometera-lhes
financiamento e dinheiro para as suas famílias, em troca
da sua ajuda.
O ataque encenado tinha como objetivo convencer
Sabran de que estava sob ameaça de morte tanto por
Yscalin como pelo Inominável. Truyde pretendia usar isso
para a convencer a abrir negociações com o Oriente.
O que acontecera a seguir era óbvio. A encenação
fora invadida por indivíduos que odiavam
verdadeiramente a Casa de Berethnet. Uma dessas
pessoas, Bess Weald, em cuja casa em Ala da Rainha
tinham sido encontrados incontáveis panfletos escritos
pelos arautos, matara Lievelyn. Vários membros
inocentes d’Os Servos da Verdade também haviam sido
mortos na confusão, assim como alguns guardas da
cidade, dois membros dos Cavaleiros do Corpo e Linora
Payling, cujos pais, aflitos, já tinham vindo procurá-la.
Truyde não tencionara matar ninguém, mas as suas
boas intenções haviam sido em vão.
Ead já escrevera a Chassar para lhe contar o que
acontecera. A Prioresa não gostaria de saber que Sabran
e a sua filha por nascer tinham estado tão perto da
morte.
O Palácio de Briar vestiu o samite de seda cinzenta
típico do luto. Sabran fechou-se na sua Câmara Privada.
O corpo de Lievelyn foi leva­do para o Santuário de Nossa
Senhora até que chegasse um navio para o levar para
casa, onde a sua irmã, a Princesa Ermuna, seria coroada;
a Princesa Bedona seria a próxima na linha de sucessão.
Poucos dias depois de Lievelyn ter sido levado, Ead
dirigiu-se aos apo­sentos reais. Normalmente, àquela hora
da manhã, tudo estava calmo, mas não conseguia
libertar-se da tensão que a dominava.
Tharian Lintley vira-a matar quatro pessoas durante a
emboscada. Devia ter percebido que Ead tinha treino.
Duvidava de que mais nin­guém a tivesse visto durante a
sangrenta luta, e era evidente que Lintley não lhe havia
denunciado as proezas com armas, mas mesmo assim
fazia questão de se manter discreta.
No entanto, como Dama do Leito Real da rainha, não
seria assim tão fácil. Sobretudo porque a rainha também
a tinha visto matar.
— Ead.
Voltou-se e viu Margret, sem fôlego, que a pegou pelo
braço.
— É o Loth — sussurrou a sua amiga. — Ele enviou-me
uma carta.
— O quê?
— Vem comigo, depressa.
Com o coração aos saltos, Ead seguiu-a até uma sala
vazia.
— E como é que o Loth conseguiu fazer passar uma
carta pelo con­trolo do Combe?
— Enviou-a a um dramaturgo que a nossa mãe
subsidia. Conseguiu entregar-ma durante a visita a
Ascalon — disse Margret, tirando um pedaço de papel
amarrotado de debaixo da saia. — Vê.
Ead reconheceu imediatamente a caligrafia e o seu
coração inchou-lhe no peito.

Querida M., não posso dizer-te muito, pois receio


que este bilhete seja intercetado. As coisas em
Cárscaro não são o que parecem. Kit está morto,
e receio que Neve esteja em perigo. Cuidado
com o Copeiro.

— O Lorde Kitston está morto — murmurou Ead. —


Como?
Margret engoliu em seco.
— Espero que ele esteja enganado, mas... O Kit faria
qualquer coisa pelo meu irmão. — Tocou no selo. — Ead,
isto foi enviado do Recinto das Pombas.
— Rauca — disse Ead, atónita. — Ele deixou Cárscaro.
— Ou fugiu. Talvez tenha sido assim que o Kit... —
Margret apontou para a última linha. — Vê isto. Não
disseste que a mulher que matou Lievelyn tinha
mencionado um Copeiro?
— Sim. — Releu o bilhete. — Neve é Sabran, presumo.
— Sim. O Loth costumava chamar-lhe a sua Princesa
da Neve quando eram crianças. Mas pela minha vida,
não entendo esta rede de intrigas. Não há nenhum
copeiro oficial da rainha.
— O Loth deveria ter-se encontrado com o Príncipe
Wilstan. Wilstan estava a investigar a morte da Rainha
Rosarian — disse Ead, quase a sussurrar. — Talvez haja
uma ligação.
— Talvez — disse Margret, com a testa coberta de
suor. — Oh, Ead, eu gostaria de dizer a Sab que ele está
vivo, mas Combe descobriria como o bilhete chegou até
mim, e eu não quero fechar esse caminho ao Loth.
— Ela está de luto por Lievelyn. Não lhe dês falsas
esperanças de que o seu amigo irá voltar. — Ead
apertou-lhe a mão. — Deixa-me lidar com o Copeiro. Vou
descobrir o que significa.
Margret soltou um suspiro profundo e acenou com a
cabeça.
— Também tenho uma carta do papá — acrescentou,
abanando a cabeça. — A mamã diz que ele está cada vez
mais nervoso. Está sem­pre a dizer que tem algo muito
importante para dizer ao herdeiro de Goldenbirch. A não
ser que o Loth volte...
— Achas que é a névoa mental?
— Talvez. A mamã diz para não lhe dar ouvidos.
Voltarei em breve, mas não para já. — Margret enfiou a
carta debaixo da saia. — Tenho de ir agora. Talvez
possamos jantar juntas.
— Sim.
Separaram-se.
Loth correra um risco terrível ao enviar aquele bilhete.
Ead decidiu que tinha de ouvir o seu aviso. Sabran
estivera muito perto de morrer na cidade, mas isso não
podia voltar a acontecer.
Não o permitiria.
A gravidez afetara a saúde de Sabran. Roslain tivera
de se levantar de madrugada para lhe segurar o cabelo
enquanto ela vomitava. Algumas noites, Katryen dormia
ao lado de ambas numa cama extra.
De momento, apenas um punhado de pessoas sabia
da gravidez. Não era a altura certa, a meio do luto.
Todos os dias, a rainha saía do Quarto de Leito Real
onde passara a noite de núpcias com um aspeto mais
despenteado do que no dia ante­rior. A cada dia que
passava, as sombras sob os seus olhos tornavam-se mais
escuras. Nas raras ocasiões em que falava, era breve e
concisa.
Por isso, quando, uma tarde, falou sem ser
incentivada, o bordado de Katryen quase lhe caiu das
mãos.
— Ead — chamou a rainha de Inys. — Esta noite
dormirás comigo.
Às nove horas, as Damas do Leito Real despiram-na,
mas, pela primeira vez, Ead vestiu também a sua túnica
de noite. Roslain chamou-a à parte.
— Tem de haver luz no quarto a noite toda — disse-
lhe. — Sabran assustar-se-á se acordar e estiver escuro.
Normalmente deixo uma vela acesa na cabeceira.
Ead assentiu com a cabeça.
— Certificar-me-ei disso.
— Ótimo.
Roslain parecia querer dizer mais alguma coisa, mas
conteve-se.
Depois de revistado o Quarto de Leito Real, as outras
Damas do Leito Real foram levadas e as portas,
trancadas.
Sabran já se tinha deitado. Ead deitou-se a seu lado
e cobriu-se com a colcha.
Durante muito tempo, ficaram em silêncio. Katryen
sabia como pôr Sabran de bom humor e Roslain sabia
que conselhos lhe dar. Ead perguntou-se qual seria o seu
papel. Ouvir, talvez.
Ou dizer-lhe a verdade. Talvez fosse isso o que Sabran
mais valorizava.
Havia anos que não dormia tão perto de outra pessoa.
Não conseguia esquecer quem estava ao seu lado. As
suas pestanas escuras. O calor do seu corpo. O
movimento rítmico do seu peito.
— Tenho tido pesadelos ultimamente — disse a rainha,
quebrando o silêncio. — O teu remédio fez-me bem, mas
o Doutor Bourn aconselhou-me a não tomar nada
enquanto estiver grávida. Nem mes­mo infusões para
dormir.
— Não sonharia em contradizer o Doutor Bourn —
afirmou Ead —, mas talvez possais usar água de rosas
sob a forma de uma pomada. Acalmar-vos-á a pele e
também poderá ajudar com os pesadelos.
Sabran assentiu e pousou uma mão na barriga.
— Pedir-lhe-ei isso amanhã. Talvez a tua presença
ajude a afastar os pesadelos esta noite, Ead. Mesmo que
as rosas não o façam.
O seu cabelo estava solto, dividido em dois, como
uma cortina, de cada lado dos seus ombros.
— Não te agradeci. Por tudo o que fizeste na rua
Quiver — disse a rainha. — Apesar dos momentos de
angústia, vi como lutaste para me proteger. — Levantou
o queixo. — Foste tu que mataste os outros assas­sinos?
És tu o vigilante noturno?
A sua expressão era impenetrável. Ead quis fazer o
que tinha decidi­do: contar-lhe a verdade. Mas o risco era
demasiado grande. Se Combe descobrisse, ela seria
expulsa da corte.
— Não, minha senhora — mentiu. — Essa pessoa
talvez tivesse con­seguido proteger o Príncipe Aubrecht.
Eu não.
— Não era teu dever proteger o príncipe — disse
Sabran, entre as sombras e a luz dourada da vela. — A
culpa da morte de Aubrecht e minha. Tu disseste-me para
não abrir a porta.
— A assassina teria arranjado maneira de o apanhar,
se não fosse na­quele dia, seria noutro — disse Ead. —
Alguém pagou muito bem a Bess Weald para garantir a
morte do príncipe. O seu destino estava decidido.
— Até podes ter razão, mas eu devia ter-te dado
ouvidos. Tu nunca me enganaste. Não posso pedir a
Aubrecht que me perdoe, mas... peço-te perdão, Ead
Duryan.
Teve de fazer um esforço para não desviar o olhar.
Sabran não fazia ideia de quanto Ead a enganara.
— Estais perdoada — respondeu Ead.
Sabran soltou ar pelo nariz. Pela primeira vez em oito
anos, Ead sen­tiu uma pontada de remorsos pelas
mentiras que lhe tinha contado.
— Truyde utt Zeedeur deverá pagar o preço da sua
traição, por muito jovem que seja — declarou Sabran. —
Eu devia pedir à Grã-Princesa Ermuna que a condenasse
à morte. Mas talvez preferisses que lhe de­monstrasse
compaixão, Ead, já que isso te transmite tanto conforto.
— Deveis fazer com ela o que achardes melhor.
A verdade era que Ead não queria que a rapariga
fosse morta. Era uma louca perigosa, e a sua estupidez
provocara várias mortes, mas ti­nha apenas dezassete
anos. Havia tempo para se redimir.
O silêncio voltou, até que a rainha se virou para a
encarar. Aquela distância, Ead conseguia ver os círculos
negros em torno dos seus olhos, uma mancha escura que
contrastava com o verde brilhante das suas íris.
— Ead, não posso falar sobre isto com a Ros ou a
Kate, mas irei contar-te. Tenho a sensação de que não
perturbará a tua impressão de mim. Que irás...
compreender-me.
Ead cruzou os dedos.
— Podeis sempre falar à vontade comigo.
Sabran aproximou-se mais. A sua mão era fria e
delicada, os seus dedos nus, sem as suas joias. Enterrara
o seu anel com o nó do amor nos Jardins Submersos,
marcando o local para criar um espaço de homena­gem
ao seu falecido marido.
— Antes de aceitar Aubrecht como meu consorte,
perguntaste-me se eu queria casar. — Falou com a voz
tão baixa que mal se ouvia. — Agora confesso-te, e só a
ti, que não queria. E... continuo a não querer.
Essa revelação pairou entre as duas. Era um assunto
perigoso. Com a ameaça de invasão, os Duques
Espirituais não tardariam a incitar Sabran a tomar outro
companheiro, mesmo que já carregasse a herdeira no
ventre.
— Nunca pensei dizer estas palavras em voz alta. — A
sua respiração vagueou numa risada. — Eu sei que Inys
enfrenta uma guerra. Sei que as bestas draconianas
estão a despertar por todo o lado. Sei que conce­der a
minha mão fortaleceria qualquer uma das nossas
alianças atuais, e que os outros países do Reino das
Virtudes se juntaram a nós através da instituição sagrada
do companheirismo.
Ead assentiu.
— Mas?
— Tenho medo.
— Porquê?
Sabran ficou imóvel durante algum tempo, com uma
mão na barriga, enquanto Ead segurava a outra.
— O Aubrecht era muito gentil comigo. Carinhoso e
bom para mim — disse finalmente, a voz muito baixa. —
Mas quando estava dentro de mim, mesmo quando eu
conseguia encontrar algum prazer, era como se... —
Fechou os olhos. — Era como se o meu corpo não fosse
inteira­mente meu. E... e continuo a sentir o mesmo.
Olhou para a protuberância pouco visível da sua
barriga, envolta no veludo de seda da túnica de noite.
— As alianças sempre foram forjadas e fortalecidas
através de casa­mentos reais — continuou. — E embora
Inys tenha a marinha mais forte do Ocidente, falta-nos
um exército de infantaria bem treinado. A nossa
população é limitada. Se formos invadidos, precisaremos
de todo o apoio que conseguirmos... mas qualquer nação
do Reino das Virtudes considerará seu primeiro dever
defender as suas próprias cos­tas. Nó entanto, um
casamento acartaria consigo obrigações legais.
Compromissos de apoio militar.
Ead ficou em silêncio.
— Nunca tive nenhum desejo particular de me casar,
Ead. Certamente não da forma como nós, membros da
realeza, casamos. Não por amor, mas por medo do
isolamento — murmurou Sabran. — No entanto, se não o
fizer, o mundo julgar-me-á demasiado orgulhosa para
unir o meu país a outro. Demasiado egoísta para dar à
minha filha um pai que ela pudesse amar se eu
morresse. É assim que serei considerada. Quem viria em
defesa de um monarca assim?
— Aqueles que vos chamam Sabran, a Magnífica.
Aqueles que vos viram derrotar Fýredel.
— Esquecê-lo-ão em breve, quando os navios
inimigos obscurecerem o horizonte. O meu sangue não
será suficiente para deter os exércitos de Yscalin. —
Baixou as pálpebras. — Não espero que me tentes
confortar, Ead. Permitiste-me partilhar este fardo, ainda
que os meus medos sejam egoístas. A Donzela
concedeu-me a filha que pedi, e tudo o que faço é...
encolher-me.
Embora o fogo da lareira ardesse intensamente, Ead
sentiu calafrios.
— De onde eu venho — disse ela —, não chamamos
egoísmo ao que vós fizestes.
Sabran olhou para ela.
— Acabastes de perder o vosso companheiro.
Carregais a sua filha no ventre. É claro que vos sentis
vulnerável. — Ead apertou-lhe a mão. — O parto nem
sempre é fácil. Parece-me que é o segredo mais bem
guardado do mundo. Falamos dele como se não houvesse
nada melhor, mas a verdade é mais complexa. Ninguém
fala abertamente sobre as dificuldades, o desconforto e
os medos. Por isso, agora sentis o peso da vossa
condição, vedes-vos sozinha perante tudo isto e culpais-
vos pela situação.
Sabran engoliu em seco.
— O vosso medo é natural. — Ead olhou-a
diretamente nos olhos. — Que ninguém vos convença do
contrário.
Pela primeira vez desde a emboscada, a rainha de
Inys sorriu.
— Ead — disse ela —, não sei como consegui
sobreviver sem ti.
31
Este

O Castelo do Rio Branco não tinha o nome de um rio,


mas sim do fosso em forma de concha que rodeava a
fortificação. Atrás dele ficava a antiga Floresta do Pássaro
Ferido e, além dela, o sombrio e brutal Monte Tego. Um
ano antes do Dia da Escolha, todos os aprendizes ha­viam
sido desafiados a subir ao topo, onde se dizia que o
espírito do gran­de Kwiriki desceria para abençoar
aqueles que tivessem superado a prova.
De todos os aprendizes da Casa Sul, apenas Tané
chegara ao cume. Meio congelada e com o mal da
altitude, subira, rastejando, a última encosta, vomitando
sangue na neve.
Naquela última hora, não era um ser humano. Não
era mais do que uma lanterna de papel, fraca e à mercê
do vento, agarrada aos restos trémulos de uma alma. No
entanto, quando já não havia mais nada para trepar,
quando olhou para cima e viu apenas a terrível beleza do
céu, encontrou forças para se manter de pé. E sabia que
o grande Kwiriki estava com ela, dentro dela.
Agora, esse sentimento parecia mais distante do que
nunca. Voltara a ser uma lanterna destruída. Quase
morta.
Não sabia ao certo quanto tempo estivera na
masmorra. O tempo tornara-se um poço sem fundo.
Deitara-se com as mãos sobre os ouvi­dos, para ouvir
apenas o mar.
Depois, outras mãos haviam-na carregado para um
palanquim e agora transportavam-na para algum lado;
haviam passado um posto de guarda e entrado numa
sala com um teto alto e paredes pintadas com cenas da
Grande Desolação, que dava para uma varanda coberta.

A Governadora de Ginura dispensou os soldados.


Perfeitamente ereta, olhou para ela com um esgar de
repugnância.

— Senhora Tané — disse, com a voz gelada.

Tané baixou a cabeça e ajoelhou-se no tapete. O


título já lhe parecia distante, de uma vida anterior.

Lá fora, ouvia-se o canto de um pássaro chorão.


Dizia-se que o seu hic-hic-hic, que lembrava o choro de
uma criança, levara uma imperatriz à loucura. Tané
perguntou a si mesma se também mataria a sua sanida­‐
de, se o ouvisse durante muito tempo.

Ou talvez já tivesse perdido a cabeça.

— Há uns dias — disse a Governadora —, um


prisioneiro incriminou-vos por um crime extremamente
grave. Entrou ilegalmente em Seiiki, vindo de
Mentendon. Em concordância com o Grande Edito, foi
executado.

Uma cabeça no portão, cabelo rijo, manchado de


sangue.

— O prisioneiro disse aos magistrados de Cabo


Hisan que, quando chegou, uma mulher o encontrou na
praia. Descreveu a cicatriz debaixo do vosso olho.

Tané pressionou as palmas suadas contra as coxas.

— Dizei-me — continuou a Governadora —, porque


haveria uma aprendiza com um histórico impecável, sem
apoio familiar, a quem foi dada a oportunidade única de
ser uma das escolhidas, de arriscar tudo, incluindo a
segurança de todos os cidadãos desta ilha, ao fazer uma
coisa dessas?

Tané demorou muito tempo a encontrar a sua


própria voz. Esta fora abandonada numa vala sangrenta.

— Havia rumores. Que aqueles que quebrassem o


isolamento seriam recompensados. Apenas por uma vez,
queria ser destemida. Arriscar-me. — Não se reconhecia
naquela voz. — Ele... saiu do mar.

— Porque não informastes as autoridades?


— Pensei que a cerimónia seria cancelada. Que os
portos seriam fe­chados, que os deuses não teriam
acesso. Que eu nunca seria cavaleira.

Como soava cobarde. Quão egoísta e tola. Quando


explicara a Nayimathun, o dragão compreendera. Agora,
a vergonha que sentia era esmagadora.

— Era como uma mensagem. Enviada pelos


deuses. — Mal conse­guia falar. — Eu tive muita sorte.
Toda a minha vida, o grande Kwirild foi tão bom para
mim. Todos os dias esperava ansiosamente pela altura
em que ele finalmente me viraria as costas. Quando o
forasteiro chegou, eu sabia que a hora chegara. Mas eu
não estava pronta. Tinha de... cortar a ligação. Escondê-
lo até conseguir o que tanto queria.

Tudo o que conseguia ver eram as suas próprias


mãos, as suas unhas roídas até ao sangue, as suas belas
cicatrizes.

— O grande Kwiriki favoreceu-vos, de facto,


senhora Tané — disse a Governadora, quase parecendo
piedosa. — E se tivésseis agido de forma diferente
naquela noite, ainda estaríeis em seu favor.

O pássaro lá fora prosseguiu com o seu hic-hic-hic.


Como uma criança inconsolável.
— Susa estava inocente, honrada Governadora. Eu
obriguei-a a ajudar-me.

— Não. Interrogámos a sentinela que ela convenceu


a deixá-la pas­sar por Orisima. Ela participou de livre
vontade. Era mais leal a vós do que a Seiiki. — A
Governadora crispou os lábios. — Tomei conhecimento de
que um dragão pediu clemência para ela. Infelizmente, a
notícia chegou-me demasiado tarde.

— Nayimathun — murmurou Tané. — Onde está


ela?

— Isso leva-me ao segundo assunto, mais sério. Ao


amanhecer, um grupo de caçadores desembarcou na
baía de Ginura.

— Caçadores?
— A Frota do Olho de Tigre. A grande Nayimathun
das Neves Profundas foi... capturada.
Tané sentiu-se a perder todo o contacto com o
mundo. Cerrou os punhos.
— A Alta Guarda do Mar fará tudo o que estiver ao
seu alcance para a resgatar, mas não é fácil para os
nossos deuses escaparem ao massacre que os espera em
Kawontay. — O maxilar da Governadora cerrou-se por um
momento. — Custa-me dizê-lo, mas é provável que
nunca mais consigamos recuperar a grande Nayimathun.
Tané estremeceu.
Sentiu o estômago cheio de veneno. Tentou não
imaginar o que Nayimathun deveria estar a sofrer. A ideia
era tão insuportável que a sua visão ficou turva e os seus
lábios tremeram.

Tané estava amaldiçoada, e não lhe restava nada


nem ninguém a per­der. Talvez no seu último ato, pudesse
dizimar alguma da corrupção de Seiiki e levá-la consigo
na sua derrocada.

— Há outra pessoa envolvida — disse ela em voz


baixa. — Roos. Um cirurgião de Orisima. Ele tentou
chantagear-me. Disse-me que lhe levasse escamas e
sangue do meu dragão para o seu trabalho. Não tem o
menor vestígio de bondade ou moralidade. — O calor fez-
lhe arder os olhos. — Deve tê-los ajudado a levar a
grande Nayimathun. Não permi­tais que faça mal a outros
dragões. Levai-o à justiça.

A Governadora ficou a olhar para ela durante algum


tempo.

— O Roos desapareceu — disse ela por fim. Tané


olhou para ela, intrigada. — Ele foi para a praia ontem à
noite, de acordo com os seus amigos. Achamos que fugiu
da ilha.

Se Roos estava com a Frota do Olho de Tigre, era


um homem morto. Um tipo como ele estava destinado a
acabar por se cruzar com a pessoa errada.

Isso não serviu de consolo a Tané. O seu inimigo


desaparecera, mas o seu dragão também. E a sua amiga.
E também o sonho que nunca merecera.

— Cometi um erro. — Era tudo o que lhe restava. —


Um erro terrível.

— Sim.

Silêncio.

— Por lei, devíeis ser executada. O vosso egoísmo e


ambição pode­riam ter destruído Seiiki. Mas por respeito à
grande Nayimathun, e pelo que poderíeis ter-vos tornado,
mostrar-vos-ei misericórdia hoje. Vivereis os vossos dias
na Ilha das Penas, onde podereis aprender a servir bem o
grande Kwiriki.

Tané levantou-se e baixou a cabeça, e os soldados


levaram-na de volta para o palanquim. Antes, pensara
em implorar ou chorar por perdão, mas, quando chegara
o momento, não sentira nada.
32
Sul

O reflexo da água dançava no teto arqueado. O ar


estava fresco, mas não tão fresco que provocasse
calafrios. Loth reparou em tudo isto pouco depois de ter
percebido que estava nu.
Encontrava-se deitado num tapete de tecido. À sua
direita, havia uma lagoa quadrada e, à sua esquerda, um
buraco escavado na rocha, onde brilhava uma lamparina
a óleo.
De repente, sentiu uma pontada de dor nas costas.
Rebolou, deitou-se de barriga para baixo e vomitou, e foi
quando surgiu.
O fogo no seu sangue.
Em Inys era um pesadelo remoto. Uma história para
contar nas noi­tes escuras junto à fogueira. Ele agora
sabia aquilo a que o mundo fora exposto durante a
Ascensão das Sombras. Sabia o motivo de o Oriente ter
fechado os seus portões.
Sentiu o sangue como se fosse óleo a ferver. Gritou
contra a escuridão em que estava mergulhado e a
escuridão gritou-lhe de volta. Algures dentro de si, uma
colmeia rebentou, e um enxame de abelhas raivosas
invadiu-lhe os órgãos, incendiando-lhe as entranhas. E
enquanto sentia os ossos a estalar com o calor, as
lágrimas a derreter-se-lhe pelas faces, tudo o que podia
desejar era a morte.
Uma memória momentânea. Através da névoa
encarnada, sabia que tinha de chegar à lagoa que vira e
mergulhar nela para apagar o fogo. Tentou pôr-se de pé,
movendo-se como se estivesse deitado numa cama de
brasas, mas uma mão fria segurou-lhe a testa.
— Não.
Uma voz falou-lhe, uma voz que era como a luz do
Sol.

— Quem és tu?

Os seus lábios ardiam.

— Lorde Arteloth Beck — disse. — Por favor, afastai-


vos. Carrego a peste.

— Onde encontraste a caixa de ferro?

— A Donmata Marosa. — Ele estremeceu. — Por


favor...

O medo fê-lo chorar, mas de imediato apareceu


alguém ao seu lado e colocou-lhe uma taça nos lábios.
Ele bebeu.

***

Quando voltou a acordar, estava numa cama,


embora ainda praticamente nu, na mesma câmara
subterrânea de antes.
Passou muito tempo sem se atrever a mexer um
dedo. Não sentia dores e a vermelhidão das suas mãos
tinha desaparecido.

Loth traçou o sinal da espada no peito. O Santo, na


sua compaixão, poupara-lhe a vida.

Ficou ali deitado durante muito tempo, à escuta de


passos ou vozes. Por fim, levantou-se. As pernas
falharam-lhe e estava tão fraco que a cabeça girava. As
nódoas negras da sua cicatriz estavam cobertas de
pomada. Até a memória da agonia se desvanecia, mas
uma alma carido­sa tratara-lhe as feridas e oferecera-lhe
hospitalidade, e ele queria estar apresentável quando
tivesse de cumprimentar o seu benfeitor.

Mergulhou na água. O chão liso foi uma bênção


para as solas dos seus pés cansados.

Não se lembrava de nada desde a sua chegada a


Rauca. Lembrava-se vagamente do mercado e da
sensação de se ter deslocado, e depois da estalagem.
Depois disso, um vazio.

A sua barba estava demasiado comprida para o seu


gosto, mas não havia sinal de uma navalha. Depois de se
refrescar, levantou-se e vestiu a túnica que fora deixada
na mesa de cabeceira.
Quando a viu, ficou assustado: uma mulher vestida
com uma túnica verde e a segurar uma lamparina. A sua
pele era castanho-escura, tal como os seus olhos, e o seu
cabelo delineava espirais à volta do rosto.
— Tendes de vir comigo.
Falou em inysh com um sotaque lasiano. Loth reagiu:
— Quem sois vós, minha senhora?

— Chassar uq-Ispad convida-vos para a sua mesa.

Então, de alguma forma, o embaixador encontrara-


o. Loth queria fazer mais perguntas, mas não se atreveu
a questionar a mulher, que o olhava impassível, sem
sequer pestanejar.

Seguiu-a por uma série de corredores sem janelas,


esculpidos em pedra cor-de-rosa e iluminados por
lamparinas a óleo. Devia ser a resi­dência do embaixador,
embora não se parecesse nada com o sítio que Ead lhe
descrevera e onde dizia ter crescido. Não havia
passadiços ao ar livre nem vistas impressionantes para
as montanhas Sarras. Apenas al­covas aqui e ali, cada
uma com uma estatueta de bronze de uma mulher a
segurar uma espada e um globo.

A sua guia parou em frente a um arco do qual


pendia uma cortina translúcida.
— Por aqui — disse, e afastou-se, levando a luz
consigo. O cómodo atrás da cortina era pequeno, com
um teto baixo. A mesa estava sentado um homem alto,
ersyri, com um toucado de prata na cabeça. Quando Loth
entrou, ele olhou para cima.

Chassar uq-Ispad.

— Lorde Arteloth — disse o embaixador, indicando


outra cadeira. — Por favor, sentai-vos. Deveis estar muito
cansado.

Em cima da mesa encontrava-se um centro com


diversas frutas. Loth sentou-se em frente ao embaixador.

— Embaixador uq-Ispad. — A sua voz ainda estava


rouca. — É a vos que tenho de agradecer por me terdes
salvado a vida?

— Responsabilizei-me por vós, mas não. Esta não é a


minha casa e o remédio que tomastes não era meu. No
entanto, como dita a hospitali­dade ersyri, podeis tratar-
me por Chassar.
A sua voz não era como Loth se lembrava. O Chassar
uq-Ispad que conhecera na corte estava sempre a rir, e
não enervantemente calmo.
— Tendes muita sorte em estar sentado a esta mesa
— disse Chassar. — São poucos os homens que procuram
o Priorado e vivem para o ver.
Um outro homem serviu-lhe uma taça de vinho
branco.
— O Priorado, Excelência? — perguntou Loth,
perplexo.
— Estais no Priorado da Laranjeira, Lorde Arteloth.
Em Lasia.
Lasia. Não era possível.
— Eu estava em Rauca — disse, ainda mais
perplexo. — Como e que isso é possível?
— O ichneumon. — Chassar serviu-se de uma
bebida. — São velhos aliados do Priorado.
Loth continuava a não entender.
— Aralaq encontrou-vos nas montanhas. — Pousou a
sua taça. — E convocou uma das irmãs para vos ir
buscar.
O Priorado. As irmãs.
— Aralaq — repetiu Loth.
— O ichneumon.
Chassar bebeu um gole da sua taça. Loth reparou pela
primeira vez que havia uma águia-da-areia empoleirada
ali perto, com a cabeça in­clinada para um lado. Ead
sempre elogiara aquelas aves de rapina pela sua
inteligência.
— Pareceis confuso, Lorde Arteloth — disse Chassar,
com um ar des­contraído. — Irei explicar-vos. Mas, para
isso, preciso primeiro de contar-vos uma história.
Aquela era a receção mais estranha do mundo.
— Conheceis a história da Donzela e do Santo. Sabeis
que um cavalei­ro salvou uma princesa de um dragão e
levou-a para um reino do outro lado do mar. Sabeis que
fundaram uma grande cidade e que viveram felizes para
o resto das suas vidas. — Sorriu. — Bem, tudo isso é
falso.
O silêncio na sala era tal que Loth conseguiu ouvir a
águia a mexer nas próprias penas.
— Sois um seguidor do Cantor da Alvorada, Vossa
Excelência — disse ele finalmente —, mas peço-vos que
não blasfemeis na minha presença.
— Os Berethnets são os blasfemos. São eles os
mentirosos.
Loth ficou atónito. Sabia que Chassar uq-Ispad não era
um crente, mas aquilo deixara-o atordoado.
— Quando o Inominável chegou ao sul da cidade de
Yikala — con­tinuou Chassar —, o Alto Governante Selinu
tentou aplacá-lo com sa­crifícios arbitrários. Até mesmo
crianças eram sacrificadas, se fosse o seu destino. A sua
única filha, a Princesa Cleolind, jurou ao pai que podia
matar a besta, mas Selinu proibiu-a. Cleolind foi forçada
a testemunhar o sofrimento do seu povo. Até que um dia
chegou a sua vez de se entre­gar em sacrifício.
— É o que conta o Sanctário — disse Loth.

— Calai-vos e aprendei alguma coisa. — Chassar


tirou um fruto roxo da taça. — No dia em que Cleolind ia
morrer, um cavaleiro do Oeste chegou à cidade. Trazia
consigo uma espada chamada Ascalon.

— Precisamente...

— Silêncio, ou corto-vos a língua.

Loth fechou a boca.


— Esse cavaleiro galante — disse Chassar, em tom
desdenhoso — pro­meteu matar o Inominável com a sua
espada encantada. Mas apresen­tou duas condições. A
primeira era que Cleolind se casasse com ele e voltasse
para Inysca como rainha consorte. A segunda era que o
seu povo se convertesse às Seis Virtudes da Cavalaria,
um código de honra dos cavaleiros que ele decidira
transformar numa religião, erigindo-se como líder divino.
Uma fé inventada.

Ouvir o Santo ser descrito como um louco errante


era algo que não podia suportar. Fé inventada, sem
dúvida. As Seis Virtudes haviam sido o código que
marcara a vida de todos os cavaleiros de Inys na altura.
Loth abriu a boca, lembrou-se do aviso e fechou-a
novamente.

— Apesar dos seus receios — continuou Chassar —,


o povo de Lasia não se queria converter a essa nova
religião. Então, Cleolind disse-o ao cavaleiro e recusou as
duas condições. Mas Galian era tão pleno de am­bição e
luxúria que lutou com a besta na mesma.
Loth quase se engasgou.
— Não havia luxúria no seu coração. O seu amor pela
Princesa Cleolind era casto.
— Tente não ser irritante, meu senhor. Galian, o
Impostor, era um bruto. Um bruto egoísta e sedento de
poder. Para ele, Lasia era um ter­reno fértil para obter
uma noiva de sangue real e devotos leais para uma
religião que ele próprio tinha fundado, tudo para seu
próprio benefício. Tornar-se-ia um deus e unificaria Inysca
sob a sua coroa. — Chassar serviu-se de mais vinho,
enquanto Loth fervia de raiva. — Claro que o vosso Santo
idolatrado caiu quase instantaneamente com um
ferimento insignificante e cagou-se de medo. E Cleolind,
que era uma mulher co­rajosa, tomou a sua espada.
» Ela seguiu o Inominável até às profundezas da
Bacia de Lasia, onde ele estabelecera o seu covil. Poucos
se atreviam a entrar na floresta, pois aquele mar de
árvores era vasto e não mapeado. Cleolind seguiu o rasto
da fera até a encontrar num grande vale, onde crescia
uma laranjeira incrivelmente alta e bela.
» O Inominável estava enrolado no seu tronco, como
uma cobra. Lutaram pelo vale e, apesar de Cleolind ser
uma grande guerreira, a fera cobriu-a com uma chama
de fogo. Com dores agonizantes, ela arrastou-se para a
árvore. O Inominável soltou um grito de triunfo, seguro
da sua vitória, e abriu a boca para lhe lançar uma nova
chama, mas como a princesa estava entre os ramos da
laranjeira, o fogo não a alcançou.
» A própria Cleolind ainda não recuperara do choque
deste milagre quando a laranjeira deu fruto. Ao comê-lo,
a princesa ficou subitamen­te curada: não só ficou
curada, como mudou. Conseguia agora ouvir o murmúrio
da terra, a dança do vento. Renasceu, transformou-se
numa chama viva. Atirou-se de novo contra a besta e
conseguiu cravar Ascalon sob uma das suas escamas. O
Inominável, gravemente ferido, fugiu. Cleolind regressou
triunfante a Yikala, proibiu Sir Galian Berethnet de voltar
a pisar as suas terras e devolveu-lhe a espada para que
nunca mais a procurasse. Ele fugiu para as ilhas de
Inysca, onde contou uma falsa versão dos
acontecimentos e foi coroado rei de...
Loth deu um murro na mesa. A águia-da-areia soltou
um pio de protesto.
— Recuso-me a sentar-me à vossa mesa e ouvir-vos
profanar a minha fé — declarou Loth em voz baixa. —
Cleolind foi com ele para Inys, e as rainhas de Berethnet
são suas descendentes.
— Cleolind renunciou à sua riqueza — continuou
Chassar como se Loth não tivesse dito nada — e
regressou à Bacia de Lasia com as suas donzelas. Aí,
fundou o Priorado da Laranjeira, uma ordem de mulhe­res
abençoadas com a chama sagrada. Uma casa, Lorde
Arteloth, de magas.
Feitiçaria.
— O objetivo do Priorado é acabar com os wyrms e
proteger o Sul do poder draconiano. É liderado pela
Prioresa, a pessoa mais amada pela Mãe. E receio, Lorde
Arteloth, que essa grande senhora acredi­te que haveis
matado uma das suas filhas. — Quando Loth o encarou
sem expressão nos olhos, Chassar inclinou-se para a
frente, fitando-o. — Trazíeis convosco uma caixa de ferro
cuja última possuidora foi uma mulher chamada Jondu.
— Não sou um assassino. Jondu foi capturada pelos
yscals — insistiu Loth. — Antes de morrer, deixou-a nas
mãos da Donmata de Yscalin, que ma entregou. —
Apoiou-se nas costas da sua cadeira e levantou-se. — Ela
pediu-me que a trouxesse. Já a tendes — disse, com um
ar deses­perado. — Agora, devo deixar este lugar.
— Então Jondu está morta. Sentai-vos, Lorde Arteloth
— disse Chassar, imperturbável. — Ireis ficar.
— Para que possa insultar ainda mais a minha fé?
— Porque aquele que procura o Priorado nunca mais o
poderá deixar.
Loth congelou.
— É difícil para mim dizer-vos isto. Lorde Arteloth.
Conheço a vossa mãe, e dói-me saber que nunca mais
verá o filho, mas... não podeis partir. Nenhum forasteiro
pode. O risco de contardes a alguém sobre o Priorado é
demasiado grande.
— Vós... — Loth abanou a cabeça. — Não podeis... Isto
é uma loucura.
— É uma vida confortável. Não tão confortável como a
vossa vida em Inys — reconheceu Chassar —, mas
estareis seguro aqui, longe dos olhos do mundo.
— Eu sou o herdeiro de Goldenbirch. Sou amigo da
Rainha Sabran a Nona. Não me submeterei a este
escárnio! — Recuou um passo e bateu com as costas na
parede. — Ead sempre disse que tínheis um grande
sentido de humor. Se isto é uma piada, Vossa Graça,
dizei-o agora.
— Ah. — Chassar suspirou. — Eadaz. Ele falou-me da
vossa amizade. Algo se agitou na mente de Loth. E,
lentamente, começou a entender. Não era Ead, mas
Eadaz. A sensação da luz do Sol. Os seus segre­dos. A sua
infância misteriosa. Mas não, não podia ser verdade...
Ead convertera-se às Seis Virtudes. Rezava no santuário
duas vezes por dia. Não podia, não podia ser uma
herege, uma praticante das artes proibidas.
— A mulher que haveis conhecido como Ead Duryan é
uma mentira, Arteloth. Fui eu quem inventou essa
identidade. O seu verdadeiro nome é Eadaz du Zāla uq-
Nāra, e é uma irmã do Priorado. Levei-a para Inys por
ordem da última Prioresa, para proteger Sabran a Nona.
— Não.
Ead, com quem ele partilhara vinho e dançara em
todos os Banquetes da Camaradagem desde os seus
vinte e dois anos. Ead, a mulher que o seu pai insistira
que ele deveria desposar.
Ead Duryan.
— Ela é uma maga. Uma das mais talentosas — disse
Chassar. — Voltará a este lugar assim que Sabran der à
luz.
A cada palavra, a adaga da traição afundava mais.
Não podia suportá-lo mais. Abriu a cortina e correu pelos
corredores, até ficar cara a cara com a mulher de verde.
E então viu que não era uma lamparina que trazia nas
suas mãos.
Era fogo.
— A Mãe acompanha-vos, Arteloth — disse ela,
sorrindo. — Dormi.
33
Este

Tinham-se instalado confortavelmente no quarto


mais alto do Palácio de Brygstad, onde muitas vezes se
acomodavam para pas­sar a noite sozinhos na ausência
do Grão-Príncipe. As paredes estavam decoradas com
tapeçarias, a janela fumegava com o calor do fogo. Era o
lugar que uma rainha escolheria para dar à luz. Sob um
dossel ponti­lhado de estrelas.
Noutras noites, costumavam esconder-se no Bairro
Histórico, num quarto que Jannart possuía numa
estalagem discreta chamada Sol Resplandecente, onde
muitos amantes fugiam às leis do Cavaleiro da
Camaradagem. Alguns, como Jannart, estavam presos a
um casamento que não haviam escolhido. Outros não se
tinham casado. Outros haviam-se apaixonado por
pessoas muito acima ou muito abaixo da sua posição.
Todos amados de uma forma que lhes custaria caro no
Reino das Virtudes.
Naquele dia, Edvart saíra com metade da corte, a sua
filha e o seu sobrinho para a sua residência de verão na
Floresta das Noivas. Jannart prometera a Edvart que
iriam ter com eles muito em breve, para saí­rem juntos
para caçar o mítico Lobo Sanguíneo que assolava o norte
de Mentendon.
Nunca fora claro para Niclays se Edvart sabia a
verdade sobre a sua relação com Jannart. Talvez tenha
decidido fazer vista grossa. Se o caso se tornasse
público, o Grão-Príncipe não teria alternativa que não
exilar Jannart, o seu melhor amigo, por ter quebrado os
seus votos para com o Cavaleiro da Camaradagem.
Na lareira, um tronco caiu nas brasas. Ao seu lado,
Jannart folheia os seus manuscritos, estendidos num
tapete à sua frente. Nos últimos anos, abandonara a sua
produção artística para se dedicar à sua paixão pela
história. Sempre se preocupara com a perda calamitosa
de conhe­cimentos sofrida durante a Ascensão das
Sombras — o incendiar das bibliotecas, a destruição de
arquivos, o desmoronamento de edifícios an­tigos — e
agora que o seu filho Oscarde começava a assumir
alguns dos deveres do ducado, podia finalmente dedicar-
se a remendar os buracos da História.
Niclays estava nu, deitado na cama, a olhar para as
estrelas pintadas. Alguém se dera a muito trabalho para
as tornar num verdadeiro reflexo do céu real.
— Que se passa?
Jannart nem precisara de olhar para cima para saber
que algo estava errado. Niclays soltou um suspiro.
— Um wyvern nos arredores da nossa capital deveria
derrubar até mesmo a tua moral.
Três dias antes, dois homens haviam-se aventurado
numa gruta a oes­te de Brygstad e tropeçado num wyvern
adormecido. Era sabido que, após a Ascensão das
Sombras, as bestas draconianas haviam encontrado
covis para o seu sono por todo o mundo e que, se se
procurasse bem, não seria assim tão difícil encontrar
uma.
No Estado Livre de Mentendon, a lei era que, quem
descobrisse uma dessas bestas, teria de se afastar sem
demoras, sob pena de morte. O medo generalizado era
que acordar uma delas pudesse acordar as outras, mas
estes homens haviam-se deixado levar pelos seus sonhos
de grandeza e ignorado a lei, desembainhado as espadas
e tentado matar a besta. Ao wyvern não agradara o facto
de ter sido rudemente acordado, comeu os seus
atacantes e saiu da caverna em fúria. Ainda estava meio
adormecido e não conseguia cuspir fogo, mas mesmo as­‐
sim conseguiu esmagar alguns aldeões de uma aldeia
próxima antes de um homem corajoso lhe espetar uma
seta no coração.
— Clay — disse Jannart —, foram apenas dois
rapazes arrogantes a fazer-se de tolos. O Ed vai certificar-
se de que não volta a acontecer.
— Vocês, duques, podem não ter consciência disso,
mas há tolos ar­rogantes em todo o lado. — Niclays
serviu-se de uma taça de vinho tinto. — Perto de
Rozentun havia uma mina abandonada, sabes como é.
Dizia-se entre as crianças que vivia lá uma cocatriz, que
pusera alguns ovos de ouro antes de adormecer. Uma
menina que eu conhecia partiu as costas ao tentar
chegar até ela. Outra criança perdeu-se na escuridão.
Nunca a encontraram. Ambos eram uns tolos arrogantes.

— Espanta-me que, depois de todos estes anos, eu


ainda tenha coisas a aprender sobre a tua infância —
disse Jannart, arqueando uma so­brancelha e fazendo
uma careta. — Já foste em busca dos ovos de ouro?

Niclays resfolegou ironicamente.

— Era o que faltava. Oh, fui em bicos de pés até à


entrada algumas vezes, mas o amor da tua vida era um
pobre cobarde mesmo em criança. Tenho demasiado
medo da morte para ir atrás dela.

— Bem, felizmente não partiste as costas. Confesso


que também eu tenho medo que possas morrer.

— Devo recordar-te que és dois anos mais velho do


que eu e que a aritmética da morte trabalha contra ti.

Jannart sorriu.

— Não falemos de morte quando ainda temos tanta


vida para viver.

Levantou-se e Niclays admirou a silhueta poderosa


do seu corpo, es­culpida por anos de esgrima. Nos seus
cinquenta anos, estava tão im­ponente como da primeira
vez. O seu cabelo chegava-lhe à cintura e, com o tempo,
tinha escurecido para um castanho profundo, prateado
nas raízes. Niclays ainda não fazia ideia de como fora
capaz de manter o amor daquele homem durante tantos
anos.
— Em breve tenciono levar-te comigo para a Lagoa
do Leite, e aí vive­remos sem nomes nem títulos. —
Jannart subiu para a cama, pousando as mãos de cada
lado de Niclays, e beijou-o. — Além disso, a este ritmo,
provavelmente morrerás antes de mim. Talvez se
parasses de me trair com o vinho do Ed... — acrescentou,
pegando furtivamente na taça.
— Tu tens os teus livros empoeirados. Eu tenho o
vinho — respondeu Niclays, afastando a taça. —
Concordámos com isso.
— Estou a ver. — Jannart estendeu de novo a mão,
meio a brincar, alcançando a taça. — E quando é que
concordámos com tal coisa?
— Hoje. Talvez estivesses a dormir.
Jannart desistiu e deitou-se na cama ao seu lado.
Niclays tentou ignorar a pontada de remorsos que sentiu.
Tinham discutido sobre a sua fraqueza pelo vinho
muitas vezes ao longo dos anos. Ele limitara o álcool o
suficiente para evitar os lapsos profundos que tivera na
sua juventude, mas se passasse muito tempo sem beber,
as suas mãos tremiam. Ultimamente, Jannart parecia
demasiado preocupado para discutir o assunto, mas
magoava Niclays profundamente desapontar a única
pessoa que o amava.
Era o vinho tinto que o confortava. A sua doçura
espessa preenchia o buraco que se abria sempre que
olhava para o seu dedo, desprovido de um anel com um
nó do amor. Acalmava-lhe a dor de viver uma mentira.
— Acreditas mesmo que existe uma coisa chamada
Lagoa do Leite? — murmurou.
Um lugar de mitos e lendas. O paraíso dos amantes.
Jannart passou um dedo em torno do seu umbigo.
— Sim — respondeu —, reuni provas suficientes para
acreditar que existia antes da Ascensão das Sombras,
pelo menos. O Ed ouviu dizer que os últimos
descendentes da família de Nerafriss sabem onde fica,
mas só contarão àqueles que merecerem.
— Isso exclui-me, então. É melhor ires sozinho.
— Não te livrarás de mim tão facilmente, Niclays Roos.
— Jannart aproximou ainda mais a cabeça, até que os
seus narizes se tocaram. — Se não encontrarmos a Lagoa
do Leite, iremos para outro lugar.
— Para onde?
— Algures para sul, talvez. Qualquer sítio onde o
Cavaleiro da Camaradagem não tenha influência. Há
lugares inexplorados além do Portão de Ungulus. Talvez
outros continentes.
— Não sou um explorador.
— Podias ser, Clay. Podes ser tudo o que quiseres, e
nunca deves pensar o contrário. — Jannart deslizou um
dedo sobre a face de Niclays. — Se eu me tivesse
convencido de que não podia pecar, nunca teria beijado
os lábios que desejava beijar. Os lábios de um homem
com cabelo de ouro rosa, cuja origem, segundo as leis de
um cavaleiro há muito morto, o tornava indigno do meu
amor.
Niclays tentou não olhar para aqueles olhos cinzentos
como um tolo. Apesar de todos os anos que haviam
passado, ainda suspirava sempre que olhava para aquele
homem.
— E quanto a Aleidine?
Tentou parecer mais curioso do que amargo. Para
Jannart, que passa­ra décadas a dividir o seu tempo entre
a sua companheira e o seu amante, e a arriscar a sua
posição na corte, aquilo era muito difícil. Niclays não
tinha de pensar nisso. Nunca casara e nunca ninguém o
tentara forçar.
— A Ally vai ficar bem — disse Jannart, embora
franzisse ligeira­mente o sobrolho. — Será a duquesa
viúva de Zeedeur, rica, poderosa e independente.
Jannart gostava de Aleidine. Embora nunca a tivesse
amado com o amor de um companheiro, nos seus trinta
anos de casamento haviam de­senvolvido uma amizade
muito próxima. Ela cuidara dos seus assuntos, dera à luz
o seu filho, gerira com ele o Ducado de Zeedeur e,
durante todo esse tempo, amara-o incondicionalmente.
Quando partissem, Niclays sabia que Jannart sentiria
a sua falta. Sentiria falta da família que tinham criado;
mas, aos seus olhos, ele dera-lhes a sua juventude.
Agora, queria viver os seus últimos anos com o homem
que amava.
Niclays estendeu a mão para pegar na dele, na qual
usava um anel de prata com o nó do amor.
— Vamos embora de uma vez — disse ele, mudando
de assunto. — Este esconderijo está a começar a ficar
velho para mim.
— Os anos são bons contigo, minha raposa dourada.
— Jannart beijou-o. — Iremos. Prometo.
— Quando?
— Quero passar mais alguns anos com a Truyde.
Para que possa ter recordações do seu avô.
A menina tinha apenas cinco anos, e já folheava
qualquer livro que Jannart lhe colocava à frente, virando
as páginas com um punho deter­minado. Tinha o cabelo
do avô.
— Mentiroso — disse Niclays. — Queres certificar-te
de que ela per­petua o teu legado como pintor, uma vez
que Oscarde não tem talento artístico.
Jannart riu-se com vontade.
— Talvez.
Ficaram ali deitados durante algum tempo, os dedos
entrelaçados. A luz do Sol tingia o quarto de dourado.
Em breve ficariam juntos. Niclays disse a si mesmo
que era verdade, como fazia dia após dia, ano após ano.
Mais um ano, talvez dois, até que Truyde estivesse um
pouco mais velha. Então, deixariam o reino para trás.
Quando Niclays se virou para olhar para ele, Jannart
sorriu — aquele sorriso malicioso com uma pequena
curva no canto. Agora que estava um pouco mais velho,
o gesto criava-lhe um vinco na face que o tornava ainda
mais atraente. Niclays levantou a cabeça para o beijar, e
Jannart segurou-lhe o rosto com as duas mãos, como se
estivesse a emoldurar um dos seus retratos. Niclays
traçou uma linha na tela branca da barriga de Jannart,
fazendo o seu corpo arquear e aproximar-se, ávido. E
apesar de se conhecerem de cor, naquele novo abraço,
sentiu toda a força da sua juventude.
Anoiteceu, e eles ainda estavam entrelaçados um no
outro diante da lareira, sonolentos e suados. Jannart
passou os dedos pelos cabelos de Niclays.
— Clay — murmurou —, tenho de partir por uns
tempos.
Niclays olhou para cima.
— O quê?
— Questionas o que faço no meu escritório o dia todo
— disse Jannart. — Há algumas semanas, herdei um
fragmento de texto da minha tia, que foi vice-rainha de
Orisima durante quarenta anos.
Niclays suspirou. Quando Jannart investigava um
mistério, era como um corvo com uma carcaça: não
conseguia parar até que o último osso estivesse limpo.
Se a paixão de Niclays era a alquimia e o vinho, a de
Jannart era o resgate da sabedoria perdida.
— Conta-me mais — disse Niclays, esforçando-se ao
máximo.
— O fragmento tem vários séculos. Quase tenho medo
de lhe tocar, para não se desintegrar. Segundo o seu
diário, a minha tia recebeu-o de um homem que lhe disse
para o levar para longe do Oriente e para nunca mais o
devolver.
— Que misterioso. — Niclays pôs as mãos na nuca e
inclinou a ca­beça para trás. — Que tem isso que ver com
o facto de teres de partir?
— Não compreendo o texto. Tenho de ir à
Universidade de Ostendeur para ver se alguém
reconhece a língua. Julgo que é uma forma antiga de
seiikine, mas algo nos caracteres me parece estranho.
Alguns são maio­res, outros mais pequenos, e estão
espaçados de forma irregular — disse, com um olhar
vazio. — Tem uma mensagem escondida, Clay. A intui­ção
diz-me que é uma parte vital da história. Algo mais
importante do que tudo o que estudei até agora. Tenho
de a decifrar. Ouvi falar de uma biblioteca onde talvez
me possam ajudar a fazê-lo.
— E onde fica esse lugar, ao certo? Faz parte da
universidade?
— Não. É bastante isolado. A alguns quilómetros de
Wilgastrōm.
— Oh, Wilgastrōm. Emocionante. — Era uma aldeia
praticamente sem vida nas margens do rio Lint. Não
havia wyverns por lá. — Bem, apressa-te. Assim que
saíres, o Ed vai tentar levar-me para caçar, jogar ou
qualquer outro passatempo que envolva falar com
cortesãos.
Jannart aproximou-se mais.
— Irás sobreviver. — Picou sério e, por um momento,
os seus olhos escureceram. — Eu nunca te deixaria
sozinho sem motivo, Clay. Dou-te a minha palavra.
— Certificar-me-ei disso, Zeedeur.

***

Existia um reino entre o sonho e a vigília, e Niclays


estava preso nele. Quando acordou, uma lágrima
escorreu-lhe pelo canto do olho.
A chuva caía-lhe no rosto. Estava num barco a remos,
balançando como um bebé num berço. Havia pessoas à
sua volta, que trocavam palavras. Sentiu uma sede
terrível, a garganta ardia-lhe.
Tinha vagas memórias a pairar nas profundezas da
sua mente. Mãos que o arrastavam. Comida que lhe fora
enfiada entre os lábios, quase sufocando-o. Um pano a
tapar-lhe o nariz e a boca.
Pôs a mão na amurada e vomitou. O barco estava
rodeado de ondas verdes, transparentes como vidro.

Á
— Pelo Santo... — A voz saiu-lhe rouca. — Água —
pediu ele em seiikine. — Por favor.
Ninguém respondeu.
Estava a escurecer. Ou a amanhecer. O céu estava
coberto de nuvens, mas o Sol deixara uma mancha
alongada de âmbar. Niclays pestanejou para tirar a água
da chuva dos olhos e viu as velas cor de laranja acima,
iluminadas por inúmeras lamparinas. Um navio fantasma
envolto em névoa. Um dos seus captores bateu-lhe na
cabeça e grunhiu qualquer coisa em lacustre.
— Está bem, está bem — murmurou Niclays.
Puxaram-no pela corda à volta dos pulsos e, sob a
ponta de uma ada­ga, fizeram-no subir uma escada. A
visão do navio foi de fazer cair o queixo e ficou
subitamente sóbrio.

Era um galeão de nove mastros, com um casco


reforçado com placas de metal e um comprimento pelo
menos duas vezes superior ao de um Sombra Ocidental.
Niclays nunca tinha visto um navio tão colossal, nem
mesmo nas águas de Inys. Pousou os pés descalços nos
elos de madeira e subiu, perseguido por gritos e risos.

Estava entre piratas, disso não havia dúvida. Pela


cor verde-jade das ondas, era provavelmente o Mar do
Sol Trémulo, que desembocava no Abismo, o oceano
escuro que separava o Oriente do Ocidente e o Norte do
Sul. Era o mar que atravessara havia tantos anos,
quando fora envia­do para Seiiki.
Seria também o mar em que iria morrer. Os piratas
não eram conhe­cidos pela sua compaixão, nem pelo bom
tratamento que davam aos reféns. Já era de espantar
que tivesse conseguido chegar até ali sem que lhe
cortassem a garganta.

Quando chegou ao topo da escada, puxaram a


corda e obrigaram-no a atravessar o convés. A sua volta,
havia homens e mulheres do Oriente e um punhado de
sulistas espalhados pela tripulação. Vários piratas
olharam-no com desconfiança, mas outros não fizeram
caso. Muitos tinham uma palavra em seiikine tatuada na
testa — assassino, ladrão, incendiário, blasfemo —, os
crimes pelos quais tinham sido condenados.

Amarraram-no a um dos mastros, onde refletiu


acerca da sua infeliz situação. Aquele devia ser o maior
navio existente, o que significava que fora tomado pela
Frota do Olho de Tigre: piratas especializados no mer­‐
cado negro de órgãos de dragão. E, como todos os
piratas, cometiam também outros crimes.

Haviam levado todos os seus bens, incluindo o


texto pelo qual Jannart morrera: o fragmento que nunca
deveria ter regressado ao Oriente. Era a última coisa que
lhe restava e, para seu azar, perdera-o. A ideia deu-lhe
vontade de chorar, mas tinha de convencer os piratas de
que precisavam de um velho. E chorar não os iria
convencer.

Pareceu-lhe terem passado meses sem que


ninguém se aproximasse dele. Nessa altura, já era de
madrugada.

Uma mulher lacustre surgiu à sua frente. Os seus


lábios estavam pin­tados de escuro. Nos seus cabelos
grisalhos, usava um toucado dourado decorado com
ornamentos pontiagudos, cada um deles uma pequena
obra de arte. Trazia uma espada igualmente dourada e
duas vezes mais afiada. As linhas de expressão na sua
pele castanha testemunhavam os muitos anos passados
ao sol.
Estava flanqueada por seis piratas, entre os quais
um gigante de bi­gode, oriundo de Sepul, de peito nu e
tão coberto de tatuagens que não restava um único
pedaço de pele virgem. No seu tronco, tigres gigantes
despedaçavam dragões, e o sangue derramado,
misturado com a espu­ma do mar, criava um turbilhão
que lhe caía sobre os ombros. Sobre o seu coração havia
uma pérola.
A líder, porque era inquestionável que se tratava de
uma líder, vestia um longo casaco de seda de água
negra. No lugar do braço que lhe fal­tava, usava um falso
de madeira, articulado, com cotovelo e dedos, preso com
uma prótese ao ombro e amarrado ao peito com uma
correia de couro. Niclays duvidava de que lhe servisse de
muito no calor da bata­lha, mas era uma inovação
curiosa, diferente de tudo o que tinha visto no Ocidente.
A mulher observou Niclays e depois afastou-se entre
os piratas, que se apartaram para lhe abrir caminho. O
gigante soltou as amarras e empurrou Niclays para a
cabina da mulher, que estava decorada com espadas e
estandartes sangrentos.
No canto, estavam duas pessoas: uma mulher
robusta de pele castanha, coberta de sardas e rugas em
torno da boca; e um homem corpulento, alto, pálido e de
aspeto envelhecido. Usava uma velha túnica de seda ver­‐
melha que lhe chegava aos joelhos.
A pirata deixou-se cair num trono, aceitou um
cachimbo de madeira e latão do homem e inalou os
vapores do que quer que estivesse lá dentro. Olhou
fixamente para Niclays através do fumo azulado e depois
dirigiu-se a ele em lacustre, com uma voz profunda e
comedida.
— Os meus piratas não costumam fazer reféns — a
mulher sardenta traduziu para seiikine —, exceto quando
temos falta de marinheiros. — Ela arqueou uma
sobrancelha. — Tu és especial.
Niclays sabia que não devia falar sem autorização,
mas baixou a cabe­ça. A intérprete esperou até que a
capitã voltasse a falar.
— Foste encontrado na praia de Ginura, com alguns
documentos contigo — continuou a intérprete. — Um
deles faz parte de um manus­crito antigo. Onde o
arranjaste?
Niclays fez uma vénia profunda.
— Honrada capitã — disse, voltando-se para a mulher
lacustre —, foi-me legado por um grande amigo. Recebi-o
aquando da sua morte. Trouxe-o comigo quando vim para
Seiiki, do Estado Livre de Mentendon, na esperança de
encontrar algum significado nele.
As suas palavras chegaram à mulher depois de
traduzidas para lacustre.
— E encontraste?
— Ainda não.
Os olhos da mulher eram dois cacos de vidro
vulcânico.
— Há uma década que tens este objeto, que o levas
contigo como um talismã, e no entanto afirmas nada
saber sobre ele. Fascinante de­claração — disse a
intérprete, depois de a capitã ter falado. — Talvez uma
boa sova te encoraje a dizer a verdade. Quando uma
pessoa vomita sangue, muitas vezes os segredos saem
com ele.
As suas costas estavam encharcadas de suor.
— Rogo-vos. É a verdade. Tende compaixão.
Ela riu-se e respondeu:
— Não me tornei lorde de todos os piratas por mostrar
compaixão por ladrões mentirosos.
Lorde de todos os piratas.
Aquela não era uma capitã pirata qualquer. Era a
temível soberana do Mar do Sol Trémulo, conquistadora
de inúmeros navios, a senhora do caos, com quarenta mil
piratas às suas ordens. A Imperatriz Dourada, a inimiga
da ordem, que se erguera da pobreza abjeta para
construir o seu próprio país sobre as ondas; um país além
do domínio dos dragões.
— Honrada Imperatriz Dourada. Perdoai-me se não
vos mostrei o de­vido respeito. Não sabia quem éreis. —
Os seus joelhos imploraram por misericórdia, mas ele
permaneceu ali, com a testa no chão. — Permiti-me
navegar convosco. Dar-vos-ei as minhas capacidades de
anatomista, os meus conhecimentos, a minha lealdade.
Farei tudo o que quiserdes. Mas poupai-me a vida.
A Imperatriz Dourada voltou a pegar no seu
cachimbo.
— Ter-te-ia perguntado qual era o teu nome, se
tivesses tido coragem — respondeu —, mas, de agora em
diante, chamar-te-ás Marlua.
Os piratas à porta desataram a rir. Niclays fez uma
careta. Marlua: era o que chamavam às alforrecas em
seiikine. Um ser gelatinoso à mercê da corrente.
— Dizes que és anatomista — disse a intérprete a
Niclays, parando de vez em quando para ouvir o que a
capitã dizia. — Acontece que preciso de um cirurgião
neste navio. A última que tive achava-se esperta. Queria
vingar-se por ter acabado com o monte de esterco que
era a sua aldeia, por isso pôs veneno no meu vinho. — A
imperatriz deu mais uma passa no cachimbo e exalou
uma baforada de fumo. — Aprendeu que a água salgada
é tão mortal como a toxina da lagarta dourada.
Niclays engoliu.
— Não gosto de desperdiçar o que posso usar.
Demonstra a tua habi­lidade — disse a imperatriz — e
talvez possamos voltar a falar.
— Obrigado — respondeu com a voz embargada. —
Obrigado, hon­rada capitã, pela vossa indulgência.
— Não é indulgência, Marlua. É trabalho. —
Encostou-se às costas da cadeira. — Certifica-te de que
me és leal — acrescentou a intérprete. — Não há
segundas oportunidades na Frota do Olho de Tigre.
— Compreendo. — Niclays encheu-se de coragem. —
Honrada Imperatriz Dourada, tenho mais uma pergunta a
fazer-vos. — Ela fitou-o. — Onde está o dragão que
tirastes da praia?
— No convés inferior — foi a tradução. — Embriagado
com nuvem de fogo. Mas não por muito tempo. —
Intensificou o olhar sobre ele. — Voltaremos a falar em
breve, Marlua. Por agora, tens a tua primeira cirurgia
para fazer.
34
Oeste

Quando a gravidez da Rainha Sabran foi formalmente


proclamada, o povo de Inys abandonou o luto e as ruas
encheram-se de festa.
O Príncipe Aubrecht estava morto, mas, ao dar-lhes a
próxima gover­nante do reino, proporcionara-lhes uma
geração extra de proteção con­tra o Inominável.
Embora tradicionalmente ficasse metade do ano no
Palácio de Briar, ninguém se opôs quando Sabran
decretou o regresso da corte ao Palácio de Ascalon pelo
resto da sua gravidez. Todos os corredores da residência
de inverno estavam repletos de recordações do príncipe
consorte, e foi acordado que era do interesse da Rainha
Sabran dar-lhe um novo visual.
Foram concebidos vestidos novos para a ocasião. A
maternidade foi arejada pela primeira vez em décadas. O
palácio era uma colmeia de atividade e, a cada refeição,
os cortesãos erguiam os seus copos em hon­ra da rainha.
As gargalhadas ecoavam como o toque de um sino.
Não viam o que as Damas do Leito Real viam. O
desânimo da rainha a todas as horas. O seu cansaço
constante. As noites mal dormidas, as insónias causadas
pelas mudanças no corpo.
Roslain dissera em privado a todas as damas de
companhia que este era o momento mais perigoso da
sua gravidez. Sabran não devia esforçar-se. Nada de
caça, nada de passeios longos, nada de pensa­mentos
tristes. Todas teriam de trabalhar em conjunto para a
manter calma e bem-disposta.
A vida do bebé tinha prioridade sobre a da mãe, pois
não havia regis­to de que as mulheres da Casa de
Berethnet pudessem conceber mais do que uma vez. Não
admirava que Sabran se tivesse retraído nos últimos
tempos. O parto era o único caso em que a sua
autoridade divina não a podia proteger, e estava cada
vez mais próximo.
E, caso precisasse de ser tranquilizada quanto aos
perigos que a ro­deavam, os Duques Espirituais já tinham
o cuidado de lhos recordar diariamente.
— É de vital importância que decidamos como
devemos agir. Yscalin pode organizar uma invasão a
qualquer momento — disse-lhe Igrain Crest certa manhã.
— Desde o ataque de Fýredel, reforçámos as nossas
defesas na costa, por vossa ordem, mas não é suficiente.
Chegou-nos a notícia de que o Rei Terreno está a
construir uma nova frota na Baía das Alforrecas. Já
construíram mais de cinquenta navios.
Sabran demorou um pouco a reagir.
— Uma frota invasora — disse. As olheiras traçaram-
lhe arcos sob os olhos.
— Receio que sim, Majestade — respondeu Crest,
suavizando o tom. — E o vosso primo, o Lorde Almirante,
também o diz.
A Duquesa da Justiça chegara quando Sabran
quebrava o jejum. Estava à janela, com o pingente do
seu patrono a brilhar à luz do Sol.
— Iniciaremos as negociações com Hróth
imediatamente — decla­rou. — Os mantos de lobo
assustarão Sigoso. Para fortalecer as nossas posições, é
claro, informaremos que Sua Majestade finalmente
aceitou a oferta do Supremo Chefe de Askrdal, que ainda
está de pé. Quando o Rei Raunus souber disso...
— Não aceitaremos Askrdal — interrompeu-a Sabran.
— O Rei Raunus é um soberano do Reino das Virtudes, e
um parente distante. Veremos quantos soldados oferece
antes de lhe fazermos as nossas pró­prias ofertas.
Katryen susteve a respiração por um momento.
Sabran não tinha o hábito de interromper Crest.
Crest também pareceu surpreendida. Mesmo assim,
sorriu.
— Vossa Majestade, compreendo que isto deve ser
difícil, tendo em conta a morte recente do Príncipe
Aubrecht. Mas espero que vos lembreis do que vos disse
no dia anterior à coroação. Tal como tendes de olear uma
espada, tendes de renovar os vossos votos com um novo
companheiro. Melhor ainda do que ser um parente
distante de Raunus é ser próximo e querido. Tendes de
casar outra vez.
Sabran olhou pela janela.

— Não vejo necessidade disso neste momento.

Desta vez, Crest não sorriu. Olhou primeiro para


Katryen e depois para Ead.

— Vossa Majestade — insistiu, em tom conciliador


—, talvez pudéssemos continuar esta conversa em
privado.

— Porquê, Igrain? — perguntou Sabran,


aparentemente calma.
— Porque se trata de um assunto de grande
importância diplomática. — E depois de uma pausa
educada, acrescentou. — Se nos dão licença, senhora
Katryen, senhora Duryan, gostaria de falar a sós com a
Rainha Sabran.

Ead fez uma vénia e preparou-se para sair, tal


como Katryen, mas Sabran reagiu.

— Não. Ead, Kate, fiquem onde estão.

Ambas regressaram ao lugar onde estavam. Sabran


endireitou as costas na cadeira e apoiou as mãos nos
braços.

— Excelência — dirigiu-se a Crest —, o que quer


que tenhais para dizer sobre este assunto, podeis dizê-lo
na presença das minhas damas. Elas não estariam nesta
sala se eu não tivesse absoluta confiança nelas.
Ead trocou um olhar com Katryen.
Crest esboçou mais um sorriso forçado.
— Quanto ao rei Raunus — continuou —, precisamos
de confir­mar que Sua Majestade se vai empenhar na
defesa de Inys. Enviarei o Embaixador Sterbein a Elding
imediatamente, mas o vosso pedido seria reforçado se
fosse acompanhado pela aceitação da sua proposta.
Sabran pousou uma mão na barriga.
— Igrain — disse, sem alterar o tom nem um pouco
—, há muito que me tendes vindo a salientar a
necessidade de uma herdeira. Do meu dever de rainha.
E, para o honrar, não aceitarei outro companheiro, nem
sequer pensarei nisso, enquanto estiver grávida; não
quero que a tensão do assun­to prejudique a minha filha.
— O seu olhar era penetrante. — Oferecei qualquer outra
coisa a Raunus. E vede o que ele oferece em troca.
A sua tática evasiva era inteligente. Crest não podia
refutá-la sem dar a impressão de que pouco se
importava com o bem-estar da herdeira.
— Vossa Majestade — disse, com um gesto de
evidente desapontamento —, apenas posso aconselhar-
vos. A escolha e as consequências pertencem-vos.
Fez uma vénia e saiu da Câmara Privada. Sabran
observou-a a afastar-se, impávida.
— Ela insiste demasiado — murmurou assim que as
portas se fecha­ram. — Quando eu era mais nova, não
reparava. Tinha demasiada admiração por ela para ver
quanto detesta ser contrariada.
— É que Sua Graça acha que tem sempre razão —
disse Katryen — e uma força de vontade igual à vossa.
— Nem sempre fui tão determinada como sou agora.
Em tempos fui vidro derretido, à espera de ser moldado.
E tenho a sensação de que a forma que tomei não lhe
agrada nada.
— Não digais isso — disse Katryen, sentando-se no
braço do tro­no. — Deixai Sua Graça engolir a sua
amargura durante alguns dias. Recuperará o juízo, como
aconteceu depois de terdes escolhido o Príncipe
Aubrecht. Agora só tendes de pensar nisto —
acrescentou, tocando-lhe ao de leve na barriga.
Dois dias depois, um farol de Pedra Alta iluminou-se
em vermelho, alertando para o perigo ao largo da costa.
Sabran, ainda de túnica de noite, recebeu o Lorde
Lemand Fynch, seu primo.
— Majestade, lamento informar-vos de que o Anbaura
for avistado esta manhã no Estreito do Cisne. Embora
não tenha atacado, é evidente que a Casa de Vetalda
está a estudar as nossas defesas costeiras. Como Lorde
Almirante, ordenei à vossa marinha que afugentasse
quaisquer outros navios de reconhecimento, mas
imploro-vos que peçais ajuda ao Rei Raunus. Os seus
navios seriam de grande auxílio para proteger a nossa
costa leste.
— O Embaixador Sterbein já está a caminho de Elding
Também eu pedi a participação da brulote da grande
Princesa Ermuna em troca do apoio de Inys na sua
fronteira com Yscalin — disse Sabran. — Se o Rei Terreno
voltar a pôr os olhos nas nossas costas, espero que lhe
recordeis o porquê de a marinha de Inys ser conhecida
como a maior e mais bem organizada do mundo.
— Sim, Majestade.
— Também enviareis mercenários para a Baía das
Alforrecas. Espero que os escolhais pessoalmente, e que
sejam inabalavelmente leais a Inys — acrescentou, com
os olhos duros como esmeraldas. — Quero que a frota
deles arda em chamas.
O primo ponderou nas suas palavras:
— Uma incursão em território draconiano pode
provocar uma res­posta armada.
— O Cavaleiro da Bravura exorta-nos a enfrentar até
o maior dos perigos para defender o Reino das Virtudes,
Vossa Excelência. Não vejo razão para esperar por um
derramamento de sangue antes de começar a defender
esta ilha. Enviai uma mensagem a Sigoso. Se ele quer
brincar com o fogo, queimar-se-á.
— Majestade, considerai-o feito — disse Fynch.
Retirou-se. Dois membros dos Cavaleiros do Corpo
fecharam as portas atrás dele.
— Se Yscalin procura guerra, dar-lha-emos, mas
temos de estar pre­parados — murmurou Sabran. — E se
Raunus não se sentir generoso, pode ser que o meu
destino seja concordar com um casamento com o chefe
de Askradal. Por Inys.
Um casamento com um homem que poderia ser seu
avô. Até Katryen, tão respeitadora das questões de
cortesia e protocolo, torceu o nariz. Sabran cruzou os
braços sobre a barriga.
— Vinde. — Ead pousou uma mão nas suas costas.
— Vamos apa­nhar ar enquanto a neve ainda está intacta.
— Oh, sim. — Katryen ergueu-se com animação. —
Podíamos colher ameixas e amoras. Como sabeis,
Sabran, a Meg disse que viu um ouriço há uns dias.
Talvez possamos ajudar os criados a afugentar os pobres
animais para que não sejam apanhados nas fogueiras.
Sabran anuiu, mas o seu rosto era uma máscara. E
Ead sabia que, mentalmente, também ela estava presa
na sua própria fogueira, à espera de que uma mão
invisível a incendiasse.

***
Pouco depois do anúncio, Ead deu por si novamente
na Câmara Privada, a bordar rosas num gorro de bebé.
Agora que o perfume das rosas a aju­dara a fugir aos
pesadelos, Sabran queria ver rosas em tudo o que a filha
usasse nos primeiros dias de vida.
A rainha estava deitada num divã, com a sua túnica
de noite. Ganhara peso nos dias que se seguiram à
emboscada em Ascalon, pelo que a sua barriga era agora
evidente.
— Não sinto nada — disse. — Porque não se mexe?
— É natural, Majestade — respondeu Roslain, que
estava a bordar a ponta de uma manta. Katryen estava a
trabalhar no lado oposto. — Talvez não a sintais durante
algum tempo.
Sabran continuou a explorar a protuberância da
barriga com os dedos.
— Acho que já tenho um nome para a minha filha.
A primeira dama olhou para cima tão depressa que
provavelmente deve ter dado um puxão no pescoço. De
repente, esqueceram-se do manto, e tanto ela como
Katryen correram para se sentarem ao lado de Sabran.
Apenas Ead ficou onde estava.
— Que notícia maravilhosa, Sab. — Katryen sorriu e
depositou uma mão sobre a dela. — Que nome haveis
escolhido?
Havia seis nomes históricos para as monarcas de
Berethnet: os mais populares eram Sabran e Jillian.
— Sylvan. Como o rio Sylvan — disse a rainha —,
onde pereceu o senhor seu pai.
Aquele nome não constava da lista.
Roslain e Katryen trocaram um olhar preocupado.
— Sabran... — começou Roslain. — Não é um nome
tradicional.
Acho que o vosso povo não o tomaria de bom grado.
— Não sou eu a sua rainha?
— A superstição não conhece soberanos.
Sabran olhou para a janela com frieza.
— Kate?
— Concordo, Majestade. Não deixeis a criança usar a
sombra da morte sobre a sua cabeça.
— E tu, Ead?
Ead queria apoiá-la. Sabran devia poder dar à filha o
nome que bem entendesse, mas os inysh não gostavam
de mudanças.
— Concordo — respondeu, puxando a agulha. —
Sylvan é um nome bonito, Majestade, mas pode tornar a
vossa filha melancólica. É melhor dar-lhe o nome de uma
das vossas antepassadas rainhas.
Sabran pareceu subitamente exausta. Virou-se de
lado e encostou a face à almofada.

— Glorian, então.

Um grande nome, de facto. Desde a morte de


Glorian, a Destemida, que o nome não fora dado a uma
princesa.
Katryen e Roslain assentiram em sinal de
aprovação.

— Sua Alteza Real, Princesa Glorian — testou


Katryen, com o ar de um mordomo a anunciar a sua
entrada. — Já lhe assenta na perfeição. Ela trará
esperança e coragem aos vossos súbditos.

Roslain anuiu, satisfeita.

— Já era altura de restaurardes um nome tão


magnífico.

Sabran olhou para o teto como se fosse um abismo


sem fundo.

No dia seguinte, a notícia espalhara-se por toda a


capital. Foram marcadas celebrações para quando a
princesa nascesse e a Ordem dos Sanctários profetizou o
grande poder de Glorian a Quarta, que levaria Inys à sua
Idade de Ouro.

Ead observava tudo com cautela e distância. Em


breve, a Prioresa chamá-la-ia a casa. Em parte, ansiava
por estar de volta entre as suas irmãs, unidas na
veneração da Mãe. Mas também havia algo dentro de si
que a fazia querer ficar ali.

Tinha de se livrar desse desejo.


***

Havia uma coisa que Ead tinha de fazer antes de


partir. Uma noite, enquanto as outras damas estavam
ocupadas e Sabran descansava, foi à Torre Dearn, onde
Truyde utt Zeedeur se encontrava presa.
Os guardas estavam em alerta máximo, mas não
precisava de usar o seu siden para penetrar em locais
proibidos. Assim que o relógio bateu as onze, chegou ao
último andar.
A Marquesa de Zeedur, vestida apenas com um
saiote encardido, era uma sombra da sua antiga beleza.
Os seus cabelos estavam emaranha­dos e sujos de
gordura, e as maçãs do rosto sobressaíam-lhe na pele. A
corrente que usava em redor do tornozelo serpenteava
até à parede.
— Senhora Duryan. — O seu olhar era tão intenso
como sempre. — Viestes para vos vangloriardes?
Ela chorara ao ver o príncipe morto, mas parecia ter
ultrapassado a dor.
— Não seria muito cortês — disse Ead. — E só o
Cavaleiro da Justiça vos pode julgar.
— Não conheceis nenhum Santo, herege.
— Belas palavras, traidora. — Ead olhou para a palha
encharcada de urina. — Não pareceis assustada.
— E porque havia de estar assustada?
— Sois responsável pela morte do príncipe consorte.
Isso é alta traição.
— Vereis que beneficio de proteção aqui, como cidadã
mêntica — disse Truyde. — A Grã-Princesa julgar-me-á
em Brygstad, mas estou confiante de que não serei
executada. Afinal de contas, sou tão jovem...
Os seus lábios estavam gretados. Ead tirou um
pequeno odre de couro de debaixo do corpete e
entregou-o a Truyde, que, após um momento de
hesitação, bebeu.
— Vim para perguntar o que esperáveis alcançar.
Truyde engoliu o líquido.
— Vós sabeis. — Limpou a boca. — Não vos vou dizer
outra vez.
— Queríeis que Sabran temesse pela sua vida.
Queríeis que sentis­se que tinha muitas batalhas pela
frente que não podia travar sozinha. Imaginastes que
isso a levaria a procurar ajuda no Oriente — disse Ead. —
Fostes vós que trouxestes os assassinos para o Palácio de
Ascalon?
— Assassinos?
Como dama de companhia, não tinha motivos para o
saber.
— Tentaram matá-la antes? — insistiu Truyde.
Ead assentiu.
— Conheceis a identidade do Copeiro que o atirador
invocou?
— Não. Como disse ao Falcão da Noite. — Truyde
desviou o olhar.
— Ele diz que me vai obrigar a dizer o nome dele, a
bem ou a mal.
Sem querer, Ead descobriu que acreditava na sua
ignorância. Independentemente dos erros que tivesse
cometido, parecia querer pro­teger Inys.
— O Inominável erguer-se-á novamente, assim como
os seus servos o fizeram — previu Truyde. — Quer haja
uma rainha em Inys, quer não, quer haja um Sol no céu,
quer não, ele erguer-se-á novamente. — A cor­rente
roçou-lhe o tornozelo ensanguentado. — Vós sois uma
feiticeira. Uma herege. Achais que a Casa de Berethnet é
a única coisa que mantém a besta à distância?
Ead tapou o odre e sentou-se.
— Não sou uma feiticeira — disse. — Sou uma maga.
Pratico aquilo a que podeis chamar magia.
— A magia não existe.
— Existe, sim — contrapôs Ead —, e chama-se siden.
Usei-a para proteger Sabran de Fýredel. Talvez isso vos
convença de que estamos do mesmo lado, ainda que os
nossos métodos difiram um do outro drastica­mente. E
apesar de serdes uma fanática perigosa cuja insanidade
matou um príncipe.
— Eu não queria que ele morresse. Era tudo uma
farsa. Foi envenena­da por forasteiros maliciosos. —
Truyde fez uma pausa para tossir com dificuldade. —
Ainda assim, a morte do Príncipe Aubrecht abre uma
nova via para uma aliança com o Oriente. Sabran poderia
casar-se com um nobre oriental. O Imperador Eterno dos
Doze Lagos, talvez. Se ele conceder a sua mão, poderá
ter um exército com o qual matar até ao último wyrm.
Ead resfolegou, escarnecendo.
— A rainha optaria por beber veneno antes de
partilhar a cama com um adorador de wyrms.
— Esperai até que o Inominável apareça em Inys.
Esperai até que o povo veja que a Casa de Berethnet se
baseia numa mentira. Alguns já devem pensar assim. —
Truyde ergueu as sobrancelhas. — Eles viram o Sombra
Ocidental. Viram que Yscalin está fortalecida. Sigoso
sabe a verdade.
Ead estendeu novamente o recipiente.
— Arriscastes muito por esta vossa... crença — disse,
enquanto Truyde bebia. — Deve haver mais do que uma
simples suspeita por trás disto. Contai-me o que vos fez
pensar em tudo isso.
Truyde recuou e, durante muito tempo, Ead pensou
que ela não lhe responderia.
— Digo-vos isto — disse por fim — apenas porque sei
que nin­guém dará ouvidos a uma traidora. Talvez
também vos dê que pensar. — Envolveu um braço em
torno dos joelhos. — Sois de Rumelabar. Suponho que já
tenhais ouvido falar da antiga tábua de pedra celeste
que foi descoberta quando as minas foram escavadas.
— Sim — disse Ead. — Um objeto de interesse
alquímico.
— Li sobre ela pela primeira vez na biblioteca de
Niclays Roos, o melhor amigo do meu avô. Quando ele foi
eLivros, deixou-me a maior parte dos seus livros — disse
Truyde. — A Tábua de Rumelabar fala de um equilíbrio
entre o fogo e a luz das estrelas. Ninguém foi capaz de a
interpretar. Alquimistas e estudiosos teorizaram que é
um equilíbrio simbólico entre o material e o místico, entre
a raiva e a temperança, a humanidade e a divindade,
mas eu acho que as suas palavras devem ser
interpretadas literalmente.

— Achais. — Ead sorriu. — E sois assim tão mais


inteligente do que os alquimistas que ponderaram no
enigma durante séculos?

— Talvez não — admitiu Truyde —, embora a


história gabe muitos pretensos intelectuais de pouco
talento. Não, não serei mais inteligente, mas... talvez
esteja mais disposta a correr riscos.

— Que riscos correstes?

— Fui a Gulthaga.

A cidade que antes se localizava no sopé do Monte


do Pavor, agora enterrada em cinzas.

— O meu avô disse-nos que ia visitar Wilgastrōm —


continuou Truyde —, mas morreu com a peste
draconiana. Contraiu-a em Gulthaga. O meu pai contou-
me a verdade quando eu tinha quinze anos. Cavalguei
até à Cidade Enterrada para ver com os meus próprios
olhos o que atraí­ra o meu avô para lá.
O mundo acreditava que o falecido Duque de
Zeedeur morrera de varíola. Sem dúvida que a família
teria recebido ordens para sustentar essa mentira, para
evitar que o pânico se espalhasse.
— Não foram feitas escavações em Gulthaga, mas
há uma passagem através do tufo para as ruínas —
continuou Truyde. — Alguns textos antigos sobreviveram.
Encontrei os que o meu avô estava a estudar.
— Fostes a Gulthaga sabendo que estava infetada
pela peste draconiana. Estais louca, criança.
— Foi por isso que fui enviada para Inys. Para
aprender a arte da temperança... mas, como haveis
visto, senhora Duryan, o meu patrono não é o Cavaleiro
da Temperança. — Truyde sorriu. — É o Cavaleiro da
Bravura.
Ead não respondeu.

— Uma antepassada minha foi vice-rainha de


Orisima. Aprendi com os diários dela que o cometa que
encerrou a Ascensão das Sombras, causando a queda
dos wyrms, também deu força aos dragões do Oriente —
explicou Truyde, com os olhos a reluzir. — O meu avô
conhecia um pouco da antiga língua de Gulthaga.
Traduziu algumas das inscrições astronómicas, que
revelavam que esse cometa, a Estrela de Crina Longa,
provoca uma chuva de estrelas sempre que passa.

— E dizei-me... que tem isso que ver com alguma


coisa?

— Acho que tem que ver com a Tábua de


Rumelabar. Acho que o co­meta mantém sob controlo o
fogo subterrâneo — revelou Truyde. — O fogo aumenta
de potência com o tempo, até que uma chuva de estrelas
o arrefece. Antes de atingir um nível excessivo.

— E mesmo assim continua a crescer em poder.


Onde está o vosso cometa?

— É esse o problema. Acho que, em algum momento


da história, algo alterou o ciclo. Agora, o fogo está a
arder com demasiada força, dema­siado depressa.
Demasiado depressa para o cometa o apagar.
— Ou assim pensais — disse Ead, já um pouco
irritada.
— Tal como outros acreditam em deuses. Em muitos
casos, com menos provas — disse Truyde. — Na
Ascensão das Sombras, tivemos sorte. A chegada do
Estrela de Crina Longa coincidiu com a ascen­são do
Exército Draconiano. Salvou-nos na época, mas quando
voltar, Fýredel já terá imposto o seu domínio sobre a
humanidade — acrescen­tou, agarrando Ead pelo pulso,
os olhos acesos. — O fogo irá crescer como cresceu
outrora, quando o Inominável nasceu neste mundo. Até
nos consumir a todos.
A convicção atravessou-lhe o rosto; o seu maxilar
estava tenso.
— É por isso — concluiu, com um gesto triunfante —
que acredito que ele irá voltar. E é por isso que acho que
a Casa de Berethnet não tem nada que ver com isso.
Ficaram a olhar uma para a outra durante um
momento, até que Ead libertou o braço.
— Quero sentir compaixão por vós — disse —, mas o
meu coração está frio. Mergulhastes nas águas da
história e combinastes algumas peças desconexas para
criar uma imagem que dá sentido à morte do vosso avô...
mas apenas porque quereis tanto que seja verdade, não
quer dizer que seja.
— É a minha verdade.
— Muitos morreram pela vossa verdade, Truyde —
disse Ead. — Espero que consigais viver com isso.
Uma rajada de ar assobiou pela fresta. Truyde
afastou-se do vento frio e esfregou as mãos uma na
outra.
— Ide ter com a Rainha Sabran, Ead. Deixai-me com
as minhas convicções, e eu deixo-vos com as vossas. Em
breve, veremos qual de nós tem razão.

***

Enquanto regressava à Torre da Rainha, Ead


vasculhou a sua memó­ria, tentando recordar as palavras
exatas da inscrição na Tábua de Rumelabar. Não se
lembrava das duas primeiras linhas, mas lembrava-se do
resto:

… O fogo ascende da terra, a luz descende do céu.


Demasiado de um inflama o outro,
e nisso está a extinção do Universo.

Um enigma. Uma dessas coisas tolas que os


alquimistas que não tinham nada melhor para fazer
costumavam inventar. A rapariga, aborrecida com a sua
vida de privilégios, dera a sua própria interpretação
àquelas palavras.
E, no entanto, Ead não conseguia deixar de pensar
nisso. Afinal, o fogo ascendia de facto da Terra, através
dos wyrms e da laranjeira. Os magos comiam os seus
frutos, tornando-se recipientes da chama.
Será que os habitantes do sul da antiguidade sabiam
algo que havia desaparecido da história?

A incerteza começou a semear a dúvida na sua


mente, Se houvesse alguma ligação entre a árvore, o
cometa e o Inominável, sem dúvida que o Priorado
saberia. Mas tanto conhecimento se linha perdido ao
longo dos séculos, tantos registos destruídos...

Ead afastou o pensamento e entrou nos aposentos


da rainha. Decidiu não pensar mais na rapariga da torre.

***

No Quarto de Leito Real, a rainha de Inys estava


sentada na cama, com uma chávena de leite de
amêndoa nas mãos, Ead sentou-se junto à lareira.
Enquanto trançava o cabelo, sentiu o olhar de Sabran
como a ponta de uma faca na sua nuca.

— Ficaste do lado delas.


Ead deteve-se.
— Senhora?
— Deste razão à Ros e à Kate quanto ao nome da
criança.
Já se tinham passado vários dias desde aquela
discussão. Devia ter ficado a pensar nisso desde então.
— Queria que a minha filha usasse algo do pai —
disse Sabran, com amargura. — Não será algo feliz, mas
foi o último sítio onde estivemos juntos. Onde ele
descobriu que íamos ter uma filha. Onde jurou que seria
uma criança amada.

De repente. Ead sentiu remorsos.

— Quis apoiar-vos — disse ela —, mas achei que a


senhora Roslain tinha razão em não quebrar a tradição. E
continuo a pensar assim. Perdoai-me. Majestade.

Sabran suspirou e deu uma palmadinha na cama.

— Vem. A noite está fria.

Ead levantou-se e assentiu. O Palácio de Ascalon


não retinha tanto calor como o Palácio de Briar. Apagou
todas as velas, exceto duas, e enfiou-se nos lençóis.

Vejo-te diferente nos últimos dias — notou Sabran.


— Que te preocupa, Ead?

Uma rapariga com uma cabeça plana de ideias


perigosas.
— Apenas os rumores de invasão — respondeu. —
Vivemos tempos incertos.
— Tempos de traição. Sigoso traiu não só o Santo,
mas toda a humanidade — Sabran apertou a chávena. —
Inys sobreviveu à Ascensão da Sombras, mas por pouco.
As aldeias foram reduzidas a cinzas, as cidades
queimadas... A nossa população foi dizimada e, apesar
dos séculos, não consegui reunir um exército tão grande
como o que tínhamos antes. — Pôs a chávena de lado. —
Não posso pensar nisto agora. Tenho de... ler Glonan.
Mesmo que as três Sombras Ocidentais lancem todas a
suas forças sobre o meu reino, o Inominável não será
capaz de se juntar a elas.
A túnica de dormir foi puxada para cima, expondo a
barriga, como que para deixar a criança respirar. Nas
suas costelas, apareciam peque­nas veias azuis.
— Rezei à Donzela, pedindo-lhe que me deixasse
chegar ao fim da minha gravidez. — Sabran soltou um
suspiro. — Não posso ser uma boa rainha. Nem uma boa
mãe. Hoje, pela primeira vez... quase me ressenti com
ela.
— Com a Donzela?
— Não, isso nunca. A Donzela faz o que tem de fazer
— disse, pou­sando uma mão pálida sobre a barriga. — O
ressentimento foi para com... a minha filha. Uma pobre
inocente. — A sua voz tornou-se mais tensa. — O povo já
a considera a sua próxima rainha, Ead. Falam da sua
beleza e magnificência. Não estava à espera disso, tão
cedo. Quando ela nascer, já terei feito a minha parte.
— Minha senhora — disse Ead, com a sua voz suave
—, isso não é verdade.
— Não é verdade? — Sabran acariciou a barriga num
movimento circular. — Glorian atingirá a maioridade e
espera-se que eu abdique a seu favor. Quando o mundo
me considerar demasiado velha.
— Nem todas as rainhas de Berethnet abdicam. O
trono é vosso en­quanto o quiserdes.
— É considerado um ato de ganância mantê-lo por
muito tempo. Até Glorian, a Destemida, abdicou, apesar
da sua popularidade.
— Talvez quando a vossa filha crescer tenhais vontade
de abdicar do trono. E levareis uma vida mais calma.
— Talvez. Ou talvez não. Quer eu viva quer morra no
parto, serei descartada. Como a casca de um ovo.
— Sabran.
Antes que ela pudesse pensar nisso, Ead estendeu a
mão para lhe tocar na maçã do rosto. Sabran olhou para
ela.
— Haverá tolos e bajuladores que sairão do vosso lado
para adular a uma recém-nascida — disse Ead, olhando
para a rainha. — Não lhes façais caso. Vede-os pelo que
são. — Manteve o olhar de Sabran preso no seu. — Disse-
vos que era normal ter medo, mas não deveis deixar que
o medo vos consuma. Sobretudo agora, quando há tanto
em jogo.
A pele que roçou a sua mão era fresca e macia como
uma pétala. O hálito quente acariciou-lhe o pulso.
— Fica ao meu lado durante o parto. E depois —
murmurou Sabran.
— Tens de estar sempre comigo, Ead Duryan.
Chassar viria buscá-la dentro de seis meses.
— Ficarei convosco o tempo que puder.
Era tudo o que podia prometer.
Sabran anuiu, aproximou-se e pousou a cabeça no
ombro de Ead. Ead permaneceu imóvel, esforçando-se
por se habituar à sua proximi­dade, à forma do seu corpo.
Sentiu arrepios por toda a pele. Sentia o seu
perfume doce e leitoso, o inchaço da sua barriga. Ead
teve a sensação de que podia pressionar o bebé
enquanto dormiam, por isso virou-se, virando também
Sabran, orientando-a para fora e encaixando os seus
corpos como duas colheres. Sabran pegou na mão de
Ead e colocou-a à volta da sua cintura. Ead puxou a
colcha sobre os seus ombros. Em pouco tempo, a rainha
ador­meceu profundamente.
A sua mão rodeava Sabran com suavidade, mas
ainda sentia um latejar nos dedos. Imaginou o que diria a
Prioresa se a visse naque­la situação. Sem dúvida que a
repreenderia. Ela era uma irmã do Priorado, destinada a
exterminar os wyrms, e ali estava ela, a confortar uma
Berethnet desolada.
Algo estava a mudar dentro de si. Um sentimento,
pequeno como um botão de rosa, abria as suas pétalas.
Nunca fingira sentir outra coisa que não indiferença
por aquela mu­lher. Agora, no entanto, sabia que quando
Chassar voltasse, seria difícil para si ir embora. Sabran
precisaria de uma amiga mais do que nunca. Roslain e
Katryen estariam preocupadas com a recém-nascida e
não falariam de nada além de mantas, berços e amas
durante meses. Sabran não iria lidar bem com esse
período. Deixaria de ser o sol da sua corte para ser a
sombra do seu bebé.
Ead adormeceu com a face apoiada num cobertor de
cabelos negros. Quando acordou, Sabran estava ao seu
lado, em silêncio.
Sentiu uma pontada na têmpora. O seu siden
dormia, mas o seu instinto despertara.
Algo não estava bem.
O fogo ardia suavemente, as velas estavam quase
apagadas. Ead levantou-se e cortou os pavios.
— Não — disse Sabran, com um suspiro. — O
sangue.
Pela expressão tensa do seu rosto, estava a sonhar.
Ao que parecia, com a Dama da Floresta.
Kalyba não era uma maga comum. Pelo que Ead se
lembrava, pos­suía dons nunca vistos no Priorado,
incluindo o da imortalidade. Talvez também possuísse a
capacidade de provocar sonhos. Mas que interesse
poderia ter Kalyba em atormentar a rainha de Inys?
Ead voltou para junto de Sabran e encostou uma mão
à sua testa. Estava ensopada. A túnica de dormir
agarrava-se-lhe à pele e o cabelo ao rosto. Preocupada,
Ead tentou ver se tinha febre, mas estava gelada.
Balbuciava palavras incoerentes.
— Chiu — murmurou Ead, pegando na chávena na
mesa de cabecei­ra e levando-a aos seus lábios. — Bebei,
Sabran.
Sabran bebeu um gole de leite e voltou a afundar-se
nas almofadas, encolhida como um gatinho agarrado à
mãe. Como se tentasse escapar ao seu pesadelo. Ead
sentou-se ao lado dela e acariciou-lhe os longos cabelos.
Talvez fosse por Sabran estar tão fria, mas Ead
percebeu logo que a sua pele estava quente.
Havia uma besta draconiana por perto.
Ead fez um esforço para se manter calma. Quando
Sabran acalmou, limpou-lhe o suor e arranjou os lençóis
de modo que só o seu rosto fi­casse à vista. Não podia
alertar ninguém, pois isso iria expor o seu dom.
Tudo o que podia fazer era esperar.
O primeiro alerta surgiu sob a forma de gritos vindos
das paredes do palácio. Ead pôs-se de pé.
— Sabran, rápido. — Envolveu-lhe o corpo com os
braços. — Tendes de vir comigo imediatamente.
Os olhos da rainha abriram-se.
— Ead... Que se passa?
Ead ajudou-a a calçar os chinelos e a túnica.
— Tendes de ir para as adegas de imediato.
Fez rodar uma chave na fechadura da porta e o
Capitão Lintley apa­receu, armado com a sua besta.
— Vossa Majestade — disse ele, com uma vénia
rígida —, aproxima-se um bando de criaturas
draconianas, com um Sombra Ocidental à cabeceira. As
nossas forças estão prontas, mas tendes de vir connosco
imediatamente, antes que penetrem nas muralhas.

— Um bando — repetiu Sabran.


— Sim.

Ead viu-a hesitar. Aquela era a mulher que


enfrentara Fýredel.

Não era do tipo que se escondia.

— Vossa Majestade — insistiu Lintley. — Por favor. É


essencial que vos protejais.

Sabran acenou com a cabeça.

— Muito bem.

Ead atirou a colcha mais pesada para cima dos


ombros da rainha. Roslain apareceu no vão da porta, o
rosto iluminado pela vela que tinha na mão.

— Sabran — disse ela —, depressa, tendes de vos


despachar...
Após um último olhar indecifrável para Ead, Sabran
saiu, escoltada por Lintley e Sir Gules Heath, que pousou
a mão na parte inferior das costas de Sabran para a
tranquilizar. Ead esperou que desaparecessem do Quarto
de Leito Real para se apressar a sair.
Uma vez nos seus aposentos, vestiu um manto com
capuz e pegou no seu arco. Teria de fazer boa pontaria.
Um Sombra Ocidental só podia ser ferido em zonas muito
específicas.
As flechas eram enormes. Pegou nelas e embainhou-
as numa manga de couro. Há doze anos que não
enfrentava um wyrm sem o seu siden, mas de todas as
pessoas da cidade, ela era certamente a que tinha mais
probabilidades de derrubar um Sombra Ocidental.
Precisaria de encontrar uma posição elevada. Da
Casa Carnelian, onde grande parte do serviço estava
alojado, teria um bom campo de visão.
Seguiu pela Escadaria Florell, que unia o terceiro
andar à escadaria principal da Torre da Rainha. Ouviu os
Cavaleiros do Corpo a descer os degraus.
Estugou o passo. A escada descia em espiral sob os
seus pés. Pouco depois, alcançou o exterior e sentiu o
frio penetrante da noite. Com um passo rápido, sem ser
vista pelos guardas, contornou o Jardim do Relógio de Sol
e, com um grande salto, trepou por uma arcada na facha­‐
da norte da Casa Carnelian, usando os relevos da
fachada como apoio.
Enquanto trepava, um vento forte agitou-lhe os
cabelos. O seu corpo já não era tão forte como em Lasia,
e havia meses que não testava os braços e as pernas.
Quando chegou ao telhado, todo o corpo lhe doía.
Os Cavaleiros do Corpo e as damas de companhia
emergiram da Torre da Rainha e enrolaram-se num nó
protetor à volta de Sabran e Heath. A escolta saiu do
salão e atravessou o Jardim do Relógio de Sol.
A meio caminho, Ead teve uma visão que teria sido
impensável um ano antes.
Wyverns a aproximarem-se do Palácio de Ascalon,
grasnando como corvos à volta de um cadáver.
Nunca vira nada assim na sua vida. Não se tratava
de criaturas acaba­das de sair do seu sono, com os olhos
irritados e desorientados, à procura de carniça. Era uma
declaração de guerra. Não só estes wyverns eram
suficientemente ousados para serem vistos na capital,
como estavam a agrupar-se. Quando o medo ameaçou
paralisá-la, concentrou-se nas li­ções que aprendera no
Priorado.
Os wyverns só voariam numa formação tão grande
se fossem acom­panhados por um Sombra Ocidental. Se
conseguisse matar-lhes o líder, dispersar-se-iam.
O seu hálito condensou-se em contacto com o ar. O
Sombra Ocidental ainda não estava à vista, mas Ead
detetou o seu fedor no vento, como o fumo de um
incêndio na montanha. Tirou uma flecha da sua aljava.
Aquelas flechas haviam sido concebidas pela Mãe.
Eram suficiente­mente longas para perfurar a mais
espessa armadura draconiana, feita de metal do Monte
do Pavor, e congelavam ao mais pequeno toque de gelo
ou neve.
Os seus dedos formigavam. Um cheiro a enxofre
impregnava o pátio, e a neve derretia-se à volta das suas
botas.
Reconheceu a cadência do bater de asas quando o
ouviu, estrondoso como os passos de um gigante.
A cada estrondo, o chão estremeceu. Era como uma
batida de tambor sinistra.
O Sombra Ocidental atravessou o céu noturno. Era
quase tão grande como Fýredel, com escamas tão
pálidas como osso. Derrubou a primeira torre do relógio
que encontrou e, com a cauda, atirou um grupo de guar­‐
das do palácio para o outro lado do pátio. Outros
seguiram-no, empu­nhando as suas espadas e
partasanas. Com o monstro a bloquear-lhes o caminho,
Lintley e os Cavaleiros do Corpo não conseguiam chegar
à entrada das adegas.
Nos dias que se seguiram à chegada de Fýredel,
tinham sido insta­ladas inúmeras armas defensivas nas
paredes do palácio, que podiam ser apontadas para
dentro. O intruso foi atingido por balas de canhão. Duas
atingiram-no de lado, outra na coxa, com uma força que
teria sido suficiente para quebrar um osso de wyvern,
mas apenas serviram para inflamar ainda mais o Sombra
Ocidental, que percorreu as muralhas com a sua cauda,
derrubando os guardas que tentavam carregar um arpão.
Os seus gritos duraram pouco.
Ead passou a flecha pela neve, congelando-a, e
carregou-a no arco. Tinha visto Jondu derrubar um
wyvern com um único tiro certeiro, mas aquele era um
Sombra Ocidental e o seu braço já não tinha força para
puxar o arco até ao fim. Todos aqueles anos de bordado
haviam-lhe minado as forças. Sem elas, e sem o seu
siden, as hipóteses de acertar no alvo eram mínimas.
Libertou o ar dos pulmões. Soltou a corda do arco e,
com um som retumbante, a flecha disparou em direção
ao wyrm. A criatura moveu-se no último momento e a
seta raspou-lhe o flanco. Ead viu, pelo canto do olho,
Lintley, no canto noroeste do Jardim do Relógio de Sol, a
conduzir o seu séquito apressadamente para a Galeria de
Mármore, em busca de proteção.
Se recuassem para a Torre da Rainha, Sabran ficaria
totalmente exposta. Estavam encurralados. Se Ead
conseguisse distraí-lo, e se se apres­sassem, talvez
conseguissem passar despercebidos e chegar às caves.
Um momento depois, tinha outra flecha na mão,
carregada no arco, e a corda esticada. Desta vez,
apontou-a para uma parte mais macia do rosto. Soltou-a
e atingiu uma pálpebra coberta de escamas.
A pupila, como uma fenda vertical, encolheu-se ainda
mais e o Sombra Ocidental virou-se para ela. Agora, tinha
toda a sua atenção.
Congelou uma terceira seta.
Rápido, Lintley.
— Wyrm! — gritou em selinyi. — Eu sou Eadaz du Zāla
uq-Nāra, dama de Cleolind, portadora da chama sagrada.
Deixa esta cidade into­cada, ou destruir-te-ei.
Os Cavaleiros do Corpo já tinham chegado ao fim da
Galeria de Mármore. O wyrm olhou para Ead com os seus
olhos verde-salgueiro. Nunca tinha visto tais olhos numa
besta draconiana.
— Maga — respondeu ele, na mesma língua. — O teu
fogo está extinto. O Deus da Montanha aproxima-se.
A sua voz ecoou pelo palácio como o ranger de uma
pedra de moinho. Ead não recuou.
— Pergunta ao Fýredel se o meu fogo está extinto —
atirou ela.
O wyrm soltou um som sibilante.
As criaturas draconianas tendiam a ser facilmente
distraídas. Mas esta não. Olhou para o local onde os
Cavaleiros do Corpo haviam surgido. As suas armaduras
de cobre refletiam as chamas, captando-lhe a atenção.
— Sabran.
Ead estremeceu. O wyrm pronunciara o nome com
suavidade. Como se lhe fosse familiar.
Essa suavidade não durou. Com os dentes
arreganhados, a besta atirou a cabeça para trás e falou
na língua draconiana. Os wyverns lan­çaram uma
saraivada de fogo sobre os Cavaleiros do Corpo
aterroriza­dos, que se dispersaram. Metade retirou-se
para a Galeria de Mármore, enquanto outros correram
para o Salão de Banquetes. Lintley estava neste último
grupo, tal como Margret e Heath, imperturbável. Ead viu-
o a proteger-se com o escudo e rodear Sabran com a
espada. Ela estava agachada, cobrindo a barriga.
O wyrm abriu as mandíbulas. A Galeria de Mármore
derreteu perante o seu hálito, queimando os soldados no
seu interior.
Ead soltou a corda do arco. A flecha disparou como
um chicote, perfurando o espaço entre a maga e o wyrm.
E acertou no alvo.
O grito de agonia foi ensurdecedor. Atingira-o onde
Jondu lhe ensina­ra, na fina placa protetora por baixo da
asa. Sob as escamas, um fio de sangue jorrou e caiu na
neve, borbulhando.
Um olho verde fixou-se em Ead, que se sentiu presa
no seu olhar. Na sua memória.
E então aconteceu. Enquanto se afastava, sangrando
e enfurecido, o wyrm deu uma última chicotada com a
cauda, e a base da Torre Dearn, já enfraquecida pelo
ataque de Fýredel, desabou sobre o pátio. E com ela as
estátuas das grandes rainhas que a coroavam. Ead olhou
para bai­xo a tempo de ver Heath colapsar sob os
escombros, e Sabran a deslizar dos seus braços antes de
uma nuvem de poeira os engolir a ambos.
No silêncio que se seguiu, parecia que todos
estavam a suster a respi­ração. Era um silêncio a todo o
volume, indescritível.
Ead desceu do telhado como uma sombra e correu
como nunca correra na sua vida.
Sabran.
A rainha estava encolhida sobre si mesma, como uma
pena caída de um pássaro, ao lado do corpo de Sir Gules
Heath. Os seus olhos estavam fechados. Ainda a respirar.
Mal. Ead envolveu a rainha de Inys com os braços e
ergueu-a, enquanto uma mancha escura abria caminho
sob a sua túnica de dormir, partindo do meio das suas
coxas.
A cabeça de pedra de Glorian, a Destemida, viu-a
sangrar.
35
Este

A primeira cirurgia de Niclays a bordo do


Perseguição, o navio almiran­te da Frota do Olho de Tigre,
correra melhor do que o esperado. Haviam-lhe trazido
um homem lacustre com uma picada de alforreca branca
e brilhante rara naquelas águas. O pobre coitado gritava
em ago­nia e a sua perna tinha o aspeto de cabedal não
tratado.
Felizmente, Eizaru ensinara uma vez a Niclays como
tratar uma pi­cada daquela alforreca específica. Niclays
misturou apressadamente os ingredientes e em pouco
tempo o pirata estava livre da dor, embora para sempre
mutilado. Em pouco tempo estaria pronto para pilhar e
matar a torto e a direito.
A Imperatriz Dourada ouvira dizer que os seiikines
tinham enviado a Alta Guarda do Mar para recuperar o
dragão, por isso ordenara que a frota se dispersasse. O
Perseguição contornaria o Abismo, depois atra­vessaria o
Mar Desperto e descarregaria as suas mercadorias ilegais
na cidade sem lei de Kawontay. Os dragões do Oriente
tinham medo do Abismo, por isso evitavam lá entrar.
Nessa noite, Niclays deu por si a tremer à chuva no
espaço de um me­tro de convés que lhe fora atribuído
para dormir. Alguns piratas tinham-no pontapeado na
canela ao passar. Perguntou a si mesmo se alguém se
sentiria pior do que ele naquele momento.
Aquela era a sua vida agora. Devia ter valorizado mais
a sua pequena casa em Orisima. De repente, sentiu falta
da lareira e do tabuleiro para aquecer a comida junto ao
fogo, dos lençóis que estendia para secar ao sol, das
paredes escuras e dos colchões de lã. Não era algo que
tivesse escolhido, mas pelo menos tinha um teto sobre a
cabeça.
De repente, um par de botas surgiu à sua frente e
Niclays encolheu-se, à espera de outro pontapé.

— Os deuses choram. Olha para ti.

A intérprete estava diante dele, com uma mão na


anca. Desta vez, tra­zia um xaile e umas luvas que lhe
causaram inveja. Um tufo de cabelos escuros,
pintalgados de cinzento, caía-lhe à volta do rosto em
pequenos caracóis. Uma fita de seda evitava que lhe
tapassem os olhos.

— Vejo que continuas a não conseguir equilibrar-te


no convés, Velho Ruivo — acrescentou.

Niclays pestanejou. Ela falava a sua língua de forma


impecável. Poucas pessoas que não fossem de
Mentendon falavam mêntico.
— Não creio que estejas ansioso pelo jantar, mas
pensei em trazer-te um pouco na mesma. — Com um
grande sorriso, entregou-lhe uma tigela. — A Imperatriz
Dourada deu-me instruções para te dizer que, de agora
em diante, és o seu cirurgião-mor. Tens de estar sempre
disponível para tratar dos seus marinheiros.
— Então a alforreca foi um teste — disse, com a voz
abafada.
— Receio que sim. — Ela inclinou-se e deu-lhe um
beijo na face. — Laya Yidagé. Bem-vindo a bordo do
Perseguição.
— Niclays Roos. Gostava de poder cumprimentar-te
em circunstân­cias mais dignas. — Olhou para a comida.
Arroz com alguns pedaços de carne cor-de-rosa... — Pelo
amor do Santo... Isso é enguia crua?
— Dá graças por não se estar ainda a mexer. O
último refém teve de lhe arrancar a cabeça à dentada
para a matar. Isso foi antes de lhe cortarem a cabeça,
claro. — Laya sentou-se ao lado dele. — Cura mais
alguns piratas e talvez consigas cozinhar. E talvez
também consigas um sítio mais acolhedor para dormir.
— Suponho que já deves ter reparado que é provável
que mate um deles. Sou formado em anatomia, mas não
sou um mestre cirurgião.
— Sugiro que finjas o contrário — disse ela,
cobrindo-o com o seu manto. — Toma. Está quente.
— Obrigado. — Niclays aconchegou-se com o manto
e deu-lhe um sorriso cansado. — Precisava de uma
distração deste suposto jantar. Conta-me como acabaste
a navegar com a temível Imperatriz Dourada.
Enquanto separava os grãos limpos do arroz
ensanguentado, Laya contou-lhe a sua vida.
Nascera na bela cidade de Kumenga, famosa pelas
suas academias, pelo vinho amadurecido pelo sol e pelas
águas límpidas. Desde a infân­cia que nutria uma paixão
pelo conhecimento, um interesse alimentado pelo seu pai
explorador, que lhe ensinara várias línguas.
— Um dia, ele foi para o Oriente, determinado a ser
o primeiro sulista a lá pisar em séculos — contou. —
Nunca mais voltou, claro. Ninguém volta. Anos mais
tarde, paguei aos piratas do Mar de Carmentum para me
levarem através do Abismo para o procurar. — A chuva
caía-lhe pelas faces. — Fomos atacados por um navio
desta frota. Mataram-nos a todos, mas eu implorei por
misericórdia em lacustre, o que surpreendeu o capitão.
Ele levou-me à Imperatriz Dourada e tornei-me sua
intérpre­te. Era isso ou a espada.
— Há quanto tempo trabalhas para ela?
Suspirou.
— Há demasiado.
— Desejas regressar ao Sul.
— Claro. Mas seria loucura tentar fugir. Não sou
navegadora, Velho Ruivo, e o Abismo é enorme.
Ela tinha razão.
— Senhora Yidagé...
— Laya.
— Laya. Achas que a Imperatriz Dourada me deixaria
ver o dragão? Laya levantou as duas sobrancelhas.
— E porque quererias fazer tal coisa?
Niclays hesitou.
Seria melhor não falar muito. Afinal, muitos temiam a
alquimia, ou escarneciam dela, mas ele imaginava que
Laya, depois de tantos anos num navio pirata, não seria
do tipo que se deixaria abater facilmente.
— Sou alquimista — revelou-lhe, sussurrando. — Não
um grande alquimista, sou mais um amador. Mas há uma
década que ando a tentar criar um elixir da imortalidade.
— Ela levantou as duas sobrancelhas. — Até agora falhei,
principalmente porque não tenho os ingredientes certos.
Dado que os dragões podem viver durante séculos,
estava à espe­ra... de estudar aquele ali em baixo. Antes
de chegarmos a Kawontay.
— Antes que eles vendam todos os seus órgãos —
disse Laya, ace­nando com a cabeça. — Em
circunstâncias normais, recomendaria que evitasses
mencionar esse tipo de coisa.
— Mas?
— A Imperatriz Dourada tem interesse na
imortalidade. A tua alqui­mia pode ajudar-te a conquistá-
la. — Ele inclinou-se para mais perto, de modo que a sua
respiração formasse uma única coluna de vapor. — Se
este navio se chama Perseguição, por uma razão é,
Niclays. Já ouviste a história da amoreira?
Niclays franziu o sobrolho.
— A amoreira?
— É uma lenda pouco conhecida no Oriente, mais mito
do que histó­ria. — Laya apoiou-se à borda. — Diz-se que
há séculos uma feiticeira governou uma ilha chamada
Komoridu. As pombas negras e os corvos brancos afluíam
a ela, porque era a protetora dos excluídos. A história é
contada da perspetiva de uma mulher sem nome, que
sofre o desprezo do povo de Ginura. Ouve falar de
Komoridu, onde todos são bem-vindos, e decide que tem
de lá chegar por todos os meios. Quando finalmente
consegue, vai visitar a famosa feiticeira, cujo poder vem
de uma amoreira, a fonte de vida eterna.
Niclays sentiu o coração bater como um tambor.
— Apesar de a lenda ter sobrevivido — acrescentou
Laya —, nin­guém conseguiu encontrar Komoridu.
Durante séculos, o pergaminho que contava a sua
história ficou guardado na Ilha das Penas. Alguém o
roubou dos arquivos sagrados e o entregou à Imperatriz
Dourada... mas logo ficou claro que uma parte dele
desaparecera. Uma parte que ela considera vital.
Niclays estava mais tenso do que se tivesse sido
atingido por um raio.
A minha tia recebeu-o de um homem que lhe disse
para o levar para longe do Oriente e para nunca mais o
devolver.
— Sim, foste tu que lho trouxeste — disse Laya,
sorrindo para a sua cara de espanto. — A última peça do
quebra-cabeças.
O quebra-cabeças.
Jannart.
Ouviu-se um barulho, como se o ventre do navio
roncasse. O Perseguição inclinou-se, fazendo Niclays
escorregar e aproximar-se ainda mais de Laya.
— Uma tempestade? — perguntou, o tom
ligeiramente mais agudo que o normal.

— Chiu.

O som que se seguiu foi um eco do primeiro. Laya


franziu a testa e levantou-se. Niclays esfregou as pernas
para recuperar a sensibilidade e seguiu-a. A Imperatriz
Dourada estava no convés do navio.
Estavam prestes a passar pelo limiar do Abismo, o
lugar onde até os dragões temiam ir, onde a água
passava do verde para o negro mais pro­fundo. E não
havia uma única ondulação à superfície.

Naquele mar impossível, estavam refletidas todas


as estrelas, todas as constelações, todas as dobras e
espirais do cosmos. Como se fossem dois firmamentos e
o navio fosse um navio fantasma a flutuar entre dois
mundos. O mar tornara-se um cristal, de modo que o céu
finalmente se olhava a si próprio.
— Alguma vez viste algo assim? — murmurou
Niclays.
Laya abanou a cabeça.
— Isto não é natural.
Não havia uma onda sequer a bater contra os cascos
dos navios. Todos os navios estavam imóveis como se
estivessem encalhados. A tripulação do Perseguição
estava nervosamente silenciosa, mas Niclays Roos
sentia-se calmo, hipnotizado pela visão do Universo
duplo. Um mundo em equi­líbrio, como o descrito na
Tábua de Rumelabar.
O que está em baixo deve ser equilibrado com o que
está em cima, e nisso reside a precisão do Universo.
Palavras que nenhum ser vivo entendia. Palavras
que haviam levado Truyde a enviar o seu amante para o
outro lado do mar a fim de iniciar um pedido de ajuda
que ninguém ouviria. E o seu amante já deveria estar
morto.
Gritos soaram numa miríade de línguas. Niclays
cambaleou para trás quando o convés se cobriu de
salpicos que lhe encharcaram o cabelo de água quente.
O momento de calma chegara ao fim.
Bolhas rodearam o casco. Laya agarrou-lhe o braço e
correu com ele para o mastro mais próximo, agarrando-
se às cordas.
— Laya! Que se passa?
— Não sei. Agarra-te!
Niclays pestanejou, ofegante e tentando tirar a água
salgada dos olhos. Nesse momento, a água agitou-se e
varreu a frota, destruindo um barco a remos e varrendo
os piratas que estavam no convés. Os seus gritos
perderam-se no rugido do que primeiro pensaram ser um
trovão.
E então, no momento em que a água estava a subir
sobre a amurada do Perseguição, ele apareceu. Uma
massa de escamas vermelho-fogo. Niclays observou-o,
incrédulo, a sua cauda com ponta de espigões afiados e
asas que poderiam atravessar as margens do rio Bugen.
No meio do rugido do mar e do rugido do vento, um
Sombra Ocidental lançou-se sobre a frota com um grito
de triunfo.
— Mestre! — gritou. — EM BREVE, EM BREVE, EM
BREVE!
36
Oeste

Os rouxinóis esqueceram-se de cantar. Ead deitou-se


de lado na cama extra, ouvindo a respiração de Sabran.
Desde a chegada do wyrm, sonhava com o que tinha
acontecido na­quela noite. Sobre como levara Sabran ao
médico da corte. O tremendo espigão que lhe tirara da
barriga. O sangue. A forma envolta em panos em que
fora levada. Sabran jazia imóvel na cama, como um
morto no seu caixão.
Uma brisa suave atravessou o Quarto de Leito Real.
Ead virou-se.
Apesar de ter supervisionado o Doutor Bourn e os
seus assistentes para se certificar de que ferviam tudo o
que entrasse em contacto com Sabran, isso não tinha
sido suficiente. Ela sofria de uma inflamação, e a febre
tinha sido tão violenta que passara vários dias à beira da
morte. Mas ela ripostara. Tinha lutado pela sua vida
como Glorian, a Destemida.
No fim, agarrara-se à vida com unhas e dentes,
dando tudo por ela. Depois de a febre ter passado, o
médico da corte determinou que o espi­gão que lhe tinha
retirado viera de um Sombra Ocidental. Temendo que lhe
transmitisse a peste, mandou chamar um especialista
em anatomia draconiana de Mentendon. A conclusão do
especialista caiu como uma pedra.
A rainha de Inys não tinha a peste, mas nunca mais
poderia conceber.
Uma nova lufada de ar fresco atravessou o quarto.
Ead levantou-se da cama e fechou a janela.
O céu noturno estava salpicado de estrelas. E por
baixo do céu bri­lhava a luz trémula das tochas de
Ascalon, Alguns dos seus cidadãos estariam acordados,
rezando e implorando por proteção contra o que o povo
já chamava de Wyrm Branco.
Não sabiam da verdade que assolava os Duques
Espirituais e as Damas do Leito Real. Além dó médico da
corte, eram os únicos que partilhavam o segredo mais
perigoso do mundo.
A Casa de Berethnet acabaria com Sabran a Nona.
Ead cortou o pavio de uma das velas e acendeu-a de
novo. Desde a chegada do Wyrm Branco, Sabran ficara
com ainda mais medo do escuro.
Segundo os relatos históricos fragmentados que
haviam sido recolhi­dos em todo o mundo, tinha-se
concluído que existiam cinco Sombras Ocidentais. Havia
reproduções nas cavernas de Mentendon e nos bestiários
criados após a Ascensão das Sombras.
De acordo com essas provas, nenhum dos Sombras
Ocidentais tinha olhos verdes.
— Ead.
Ead virou-se para olhar. Sabran era uma silhueta por
trás das cortinas finas que rodeavam a sua cama.
— Vossa Majestade.
— Abre a janela.
Ead apoiou a vela na cornija da lareira.
— Ides ter frio.
— Posso ser estéril — respondeu Sabran —, mas até
ao meu último suspiro, continuo a ser tua rainha. Faz o
que te digo.
— Ainda estais a convalescer. Se morrerdes de
constipação, o secretá­rio principal mandará cortar a
minha cabeça.
— Maldita sejas, sua cabra obstinada. Eu própria
ordenarei que me tragam a tua cabeça se não fizeres o
que te mando.
— Duvido de que vos sirva de alguma coisa quando
estiver fora do meu pescoço.
Sabran virou-se para a encarar.
— Matar-te-ei. — Os tendões do pescoço esticaram-se.
— Desprezo-vos a todos, corvos necrófagos. Não pensam
em mais nada que não em bicar-me, para ver o que
conseguem obter. Uma pensão, uma proprie­dade, uma
herdeira. — A sua voz estalou. — Malditos sejais todos
vós.
Atirava-me do topo da Torre de Alabastro antes de
aceitar mais um gra­ma da tua condescendência.

— Basta — respondeu Ead. — Não sois uma


criança. Parai de sentir pena de vós própria.

— Abre a janela.
— Vinde abri-la vós mesma.
Sabran soltou uma gargalhada curta e sombria.
— Poderia mandar queimar-te na pira por essa
insolência.
— Se isso vos fizesse sair da cama, teria todo o gosto
em dançar na fogueira.
O relógio da torre bateu a uma. Sabran estremeceu e
recostou-se nas almofadas.
— Eu devia ter morrido no parto — murmurou ela. —
Devia ter dado vida a Glorian, entregando a minha
própria.
Os seus seios vazaram durante dias após a sua
perda, e a sua barriga ainda estava redonda. Mesmo
enquanto tentava curar-se, o seu próprio corpo
continuava a abrir a ferida.
Ead acendeu mais duas velas. Tinha pena de Sabran,
tanto que pensou que as suas costelas se quebrariam
com isso, mas não conseguia suportar os seus acessos
de ódio por si mesma. Soberanas Berethnet eram
propensas ao que os inysh chamavam de neblina mental,
períodos de tristeza, com ou sem uma raiz discernível.
Carnelian a Quinta era conhecida como a Pomba de Luto,
e havia rumores na corte de que se tinha suicidado
entrando num rio. Combe havia encarregado as Damas
do Leito Real de garantir que Sabran não fosse pelo
mesmo caminho.
Naquela noite, haveria atividade na Câmara do
Conselho. Alguns dos Duques Espirituais argumentariam
que a verdade nunca deveria ser re­velada. Enfiada sob
as suas saias. Uma órfã de cabelos pretos e olhos cor de
jade. Haveria quem aceitasse tal ideia, mas a maioria
não suportaria a ideia de se curvar perante alguém que
não fosse uma Berethnet.
— Eu tinha a certeza... — Sabran cerrou os punhos
no cabelo. — Devo ser a amada do Santo. Afastei o
Fýredel. Porque me abandonou agora?
Ead reprimiu uma onda de culpa. A sua proteção
alimentara a mentira.
— Senhora — disse ela —, deveis manter a vossa fé.
Não adianta ficar a pensar...
Outra risada triste interrompeu-a.
— Pareces a Ros. Eu não preciso de outra Ros. —
Sabran apertou as mãos. — Talvez deva pensar em
coisas mais leves. A Ros dir-me-ia isso. Em que devo
pensar, Ead? No meu companheiro morto, no meu útero
estéril ou no conhecimento de que o Inominável se
aproxima?
Ead obrigou-se a ajoelhar-se e a atiçar o fogo.
Sabran havia falado muito pouco nos últimos dias,
mas o pouco que dissera era doloroso. Repreendeu
Roslain por estar demasiado calada. Tinha implicado com
as damas de companhia quando lhe serviram a comida.
Disse a uma criada que não a queria ver mais, levando-a
às lágrimas.
— Serei a última Berethnet. Acabei com a minha
dinastia. — Agarrou os lençóis. — A culpa é minha. Por
ter adiado a maternidade tanto tempo. Por ter tentado
evitá-la.
Deixou cair a cabeça.
Ead aproximou-se da rainha de Inys. Puxou a cortina
para o lado e sentou-se na beira da cama. Sabran estava
meio deitada, encolhida, como se protegesse o seu
abdómen ferido.
— Fui egoísta. Queria... — Sabran respirou pelo nariz.
— Pedi a Niclays Roos que me preparasse um elixir, algo
que preservasse a minha juventude, para que nunca
tivesse de ter filhos. E quando ele falhou — acrescentou,
num sussurro —, mandei-o para o exílio, para o Oriente.
— Sabran...
— Virei as costas ao Cavaleiro da Generosidade, com
tudo o que ele me deu. Recusei-me a devolver-lhe o
mínimo.
— Basta — respondeu Ead, com voz firme. — Tínheis
um grande fardo nos ombros e havei-lo carregado com
coragem.
— É o destino. — As suas faces brilhavam. — Mais de
mil anos de governo. Trinta e seis mulheres da Casa de
Berethnet deram à luz filhas em nome de Inys. Porque
não posso fazê-lo eu também? Porque é que isto tinha de
acontecer?
Ead pegou-lhe no queixo com delicadeza.
— Isto não é culpa vossa. Lembrai-vos disso, Sabran.
Nada disto é da vossa responsabilidade.
Sabran encolheu-se, virando-se para trás.
— O Conselho das Virtudes tentará de tudo, mas o
meu povo não é tolo — disse. — A verdade virá ao de
cima. Sem os seus alicerces, o Reino das Virtudes cairá. A
fé no Santo irá diminuir. Os santuários esvaziar-se-ão.

A profecia soava verdadeira. Até mesmo Ead sabia


que a queda do Reino das Virtudes iria convulsionar o
mundo. Foi em parte por isso que fora enviada para
aquela corte. Para manter a ordem.

Falhara.
— Quando o meu corpo apodrecer no chão, os
Duques Espirituais, que são descendentes do Sagrado
Séquito, irão todos reclamar o meu trono. — Resfolegou,
e um riso malicioso escapou-lhe. — Talvez nem sequer
esperem que eu morra para começarem a lutar. Eles
acreditaram no meu poder para manter o Inominável
acorrentado, mas esse poder agora morrerá comigo.
— Então, tenho a certeza de que é do interesse deles
manter-vos protegida — disse Ead, tentando tranquilizá-
la. — Para ganhar tempo e poderem preparar-se para a
chegada dele.
— Protegida, talvez, mas não necessariamente no
trono. Neste pre­ciso momento, alguns deles estarão a
pensar se não deveriam agir agora. Não deveriam
escolher um novo governante antes que Fýredel volte e
nos destrua? — Sabran continuava a falar com uma voz
rouca. — Perguntar-se-ão se a história da minha
divindade não será totalmente falsa. Na verdade, já fiz
essa pergunta a mim mesma. — Pousou de novo a mão
sobre a barriga. — Já lhes mostrei que não sou mais do
que uma pessoa de carne e osso.
Ead abanou a cabeça.
— Pressionar-me-ão a nomear um deles como meu
sucessor. E mes­mo que o faça, outros podem recusar-se
a aceitá-lo — continuou Sabran.
— Os nobres ficarão do lado de um ou de outro. Inys
dividir-se-á. Na sua fraqueza, o Exército Draconiano
regressará. E Yscalin aguarda a oportunidade para que
isso aconteça. — Fechou os olhos. — Não quero assistir a
isso, Ead. Não posso assistir à queda deste reino.
Ela devia ter temido aquele desfecho desde o início.
— Ela era tão... delicada... a Glorian — disse Sabran,
com a voz rouca. — Como os nervos de uma folha
quando perde o verde. — Olhou para o nada. — Eles
tentaram escondê-lo de mim, mas eu vi.
Outra dama de companhia ter-lhe-ia dito que a sua
filha ocupava um lugar de honra na corte celeste. Roslain
ter-lhe-ia feito um desenho de um bebé de cabelos
negros nos braços de Galian Berethnet, sorrindo para
sempre num castelo entre as nuvens.
Ead não o fez. Essa imagem não iria confortar Sabran.
Ainda não.
Pegou numa das suas mãos geladas e aqueceu-a com
a sua. Sabran, a tremer na enormidade da sua cama,
parecia mais uma criança do que uma rainha.
— Ead, há um saco de ouro naquela arca — disse ela,
apontando na direção do seu joalheiro. — Vai à cidade. O
mercado negro vende um veneno a que chamam viúva
negra.
Ead suspirou.
— Não sejais tola.
— Atreves-te a chamar tola à última Berethnet?
— Claro, quando falais como se o fôsseis.
— Peço-te — insistiu Sabran —, não como tua rainha,
mas como pe­nitente. — O seu rosto estava tenso e o
maxilar tremia-lhe. — Não posso viver com o
conhecimento de que o meu povo está condenado à
morte pelo Inominável ou pela guerra civil. Nunca ficarei
em paz comigo mes­ma. — Voltou a apertar-lhe a mão. —
Pensei que irias compreender. Pensei que me ajudasses.
— Compreendo-vos mais do que julgais — disse Ead,
pousando a mão na face dela. — Tentastes transformar-
vos em pedra. Não tenhais medo de não o ser. Podeis ser
rainha, mas sois feita de carne e osso.
O sorriso de Sabran partiu-lhe o coração.
— Ser rainha é isso, Ead — disse ela. — O corpo e o
reino são a mesma coisa.
— Então não podeis matar o corpo pelo reino. — Ead
olhou-a dire­tamente nos olhos. — Então, não, Sabran
Berethnet. Não vos trarei esse veneno. Não agora, não
nunca.
As palavras surgiram-lhe de um lugar que tentara
manter trancado a sete chaves. Um lugar onde crescera
uma rosa.
Sabran olhou para ela com uma expressão que Ead
nunca tinha xisto.
Toda a melancolia desapareceu, dando lugar à
curiosidade e à deter­minação. Ead viu cada raio de verde
nos seus olhos, cada pestana, cada pequena chama
presa nas suas pupilas. A luz da fogueira iluminou-lhe o
ombro. Ead tocou nesses brilhos brincalhões com as
pontas dos dedos e Sabran inclinou-se para a frente,
aproximando-se.
— Ead — disse a rainha —, fica comigo.
A sua voz era quase impercetível, mas Ead sentiu
cada palavra na sua carne.
Os seus lábios estavam tão próximos que sentiu a
sua respiração. Ead não se atreveu a mexer-se, com
medo de destruir o momento. A sua pele es­tava sensível,
ansiosa por sentir a pressão do corpo de Sabran contra o
seu.
Sabran envolveu-lhe o rosto com as mãos. No seu
olhar havia uma pergunta e o medo da resposta.
Quando sentiu o cabelo preto a roçar-lhe a clavícula,
Ead pensou na Prioresa e na laranjeira. Pensou no que
diria Chassar se soubesse que o seu sangue reagia assim
à pretendente, aquela que rezou no túmulo vazio da Mãe.
Uma descendente de Galian, o Impostor. Sabran puxou-a
para perto de si, e Ead beijou a rainha de Inys como teria
beijado um amante.
O seu corpo era como uma figura de cristal. Uma flor
que acabava de se abrir para o mundo. Quando Sabran
afastou os lábios, Ead per­cebeu, com uma intensidade
que lhe tirou o fôlego, que havia meses que desejava
abraçá-la assim. Quando se tinha estendido ao lado de
Sabran para ouvir os seus segredos. Quando colocara a
rosa atrás da sua almofada. A verdade trespassou-a
como um furador em brasa.
Ficaram em silêncio, com os lábios pressionados um
no outro, mal se tocando.
O seu coração batia demasiado depressa, demasiado
cheio. A princí­pio não se atreveu a respirar, pois o mais
pequeno movimento poderia acabar com o momento,
mas depois Sabran abraçou-a, chamando o seu nome
com uma voz entrecortada. Ead sentiu o fraco bater do
coração dela contra o seu peito. Rápido e suave como
uma borboleta.
Estava perdida, ou talvez tivesse acabado de se
encontrar, ou tal­vez ainda não o soubesse. Perdida num
sonho. E, no entanto, nunca tinha estado tão acordada.
Os seus dedos moveram-se, reconhecendo Sabran,
correndo instintivamente sobre a sua pele. Seguiram a
cicatriz na coxa dela, perderam-se no seu cabelo,
passaram por baixo dos seus seios inchados.
Sabran afastou-se para olhar para ela. Ead teve um
breve vislumbre do seu rosto à luz da vela — a testa lisa,
os olhos escuros e determinados — antes de se voltarem
a juntar num beijo quente, novo e regenerador, a chama
de uma nova estrela que nasce com uma explosão. Eram
como dois favos de mel, frágeis e intrincados. Ead
estremeceu ao sentir o toque da noite na sua pele.
Sentiu os arrepios de Sabran. A túnica de dormir
caiu-lhe dos om­bros, descendo até às ancas, de modo
que Ead pôde seguir a trajetória da sua coluna vertebral
e juntou as mãos no arco das suas costas. Beijou-lhe o
pescoço e atrás da orelha, e Sabran sussurrou o seu
nome, puxando-lhe a cabeça para trás e expondo-lhe o
pescoço. O luar cobriu-o de uma luz leitosa.
O silêncio do Quarto de Leito Real era imponente.
Imponente como a noite e todas as suas estrelas. Ead
ouvia o farfalhar da seda, o toque das mãos na pele e
nos lençóis. Respiravam em silêncio, à espera de uma
ba­tida na porta, de uma chave na fechadura, de uma
tocha que aparecesse para trair a sua união. Isso
acenderia a chama de um escândalo, e o fogo espalhar-
se-ia e queimá-las-ia a ambas.
Mas Ead era uma amante do fogo e atirar-se-ia a
uma fornalha arden­te por Sabran Berethnet, nem que
fosse para passar uma noite com ela. Depois, podiam vir
com as suas espadas e tochas.
Ela não se importava com isso.

***

Mais tarde, estavam deitadas à luz da lua de sangue.


Pela primeira vez em anos, a rainha de Inys dormiu sem
uma vela.
Ead olhou para o teto. Agora sabia de uma coisa, e
essa coisa sobre­punha-se a todos os outros pensamentos
na sua mente.
Independentemente dos desejos do Priorado, não
podia abandonar Sabran.
Enquanto se revirava nas profundezas do seu sono,
Ead respirou o cheiro dela. Creme e lilás, misturados com
o cravo do seu perfume. Imaginou-se a levá-la para a
Lagoa do Leite, aquela terra lendária, onde o seu nome
nunca a assombraria.
Isso nunca aconteceria.

***

Os primeiros raios de luz iluminaram o Quarto de Leito


Real. Gradual­mente, Ead teve consciência de si própria e
de Sabran. Cabelos negros espalhados pela almofada.
Pele contra pele. A luz do Sol ainda não tinha chegado à
cama, mas ela sentia-se tão quente como se tivesse.
Não sentia arrependimento. Confusão, sim, e
borboletas no estômago, mas certamente nenhum desejo
de desfazer o passado.
Alguém bateu à porta e foi como se uma nuvem
tivesse passado à frente do Sol.
— Majestade.
Katryen.
Sabran levantou a cabeça. Com olhos pesados, olhou
primeiro para Ead e depois para a porta.
— Que se passa, Kate? — respondeu, com uma voz
sonolenta.
— Perguntei-me se gostaríeis de tomar um banho esta
manhã. A noite tem estado fria.
Há dois dias que tentava convencer a sua rainha.
— Prepara o banho — disse Sabran. — A Ead avisar-te-
á quando eu estiver pronta.
— Sim, senhora.
Os passos afastaram-se. Sabran virou-se e Ead
encontrou o seu olhar inseguro. Agora que o sol estava a
nascer, pareciam estar a avaliar-se mutuamente, como
se se encontrassem pela primeira vez.
— Ead — disse Sabran, com a voz suave —, não
precisas de te sentir obrigada a fazer-me companhia à
noite. — Lentamente, endireitou as costas. — Os deveres
de uma Dama do Leito Real não incluem o que fizemos
ontem à noite.
Ead ergueu as sobrancelhas.
— Achais que o fiz por obrigação?
Sabran puxou os joelhos para junto do peito e
desviou o olhar. Irritada, Ead desceu da cama.
— Estais enganada, Majestade. — Endireitou a
camisa de dormir e foi buscar a túnica a uma cadeira. —
É melhor que vos levanteis. A Kate está à vossa espera.
Sabran olhou pela janela. À luz do Sol, os seus olhos
adquiriram uma cor pálida.
— Para uma rainha, é quase impossível distinguir
atos feitos por de­ferência daqueles feitos de coração. —
Os seus olhos procuraram-na.
— Diz-me a verdade, Ead. Decidiste dormir comigo
ontem à noite, ou foste obrigada pela minha posição?
O cabelo emaranhado caía-lhe sobre os ombros. Ead
amoleceu.
— Tola — disse à rainha. — Eu nunca concordaria
com isso, forçada por ninguém. Não vos disse sempre a
verdade?
Sabran sorriu ao ouvir isso.
— Demasiadas vezes — admitiu. — És a única que o
faz.
Ead aproximou-se para lhe beijar a testa, mas antes
que o pudes­se fazer, Sabran tomou-lhe o rosto entre as
mãos e beijou-a nos lábios. Quando finalmente se
separaram, Sabran sorriu um sorriso genuíno, raro como
uma rosa do deserto.
— Vinde — disse Ead, cobrindo-lhe os ombros com
um manto. — Hoje levar-vos-ei a passear ao sol.

***

Nessa manhã, a corte retomou a sua atividade.


Sabran convocou os Duques Espirituais para a sua
Câmara Privada. Mostrar-lhes-ia que, ape­sar de ferida no
corpo e no espírito, ainda estava viva. Organizaria o re­‐
crutamento de novos soldados, contrataria mercenários e
aumentaria o financiamento dos inventores, na
esperança de que pudessem criar armas melhores.
Quando os Sombras Ocidentais regressassem, Inys
ripostaria.
Ao que parecia, os Duques Espirituais ainda não
tinham abordado a questão da sucessão, mas era apenas
uma questão de tempo. Agora olha­vam para o futuro,
para a guerra com Yscalin e para os dois Sombras
Ocidentais que aguardavam, prontas a despertar e a unir
o Exército Draconiano. Não havia herdeira nem
perspetiveis de uma. Em breve, o Inominável chegaria.
Ead voltou aos seus deveres. Mas as noites eram
para Sabran. O seu segredo era como um vinho
inebriante. Quando se encontravam atrás das cortinas da
cama, tudo o resto desaparecia.

***

Na Câmara Privada, Sabran tocou o virginal. Estava


demasiado fraca para fazer muito mais do que isso, e
pouco mais tinha para ocupar o seu tempo. O Doutor
Bourn dissera-lhe que não deveria caçar durante pelo
menos um ano.
Ead sentou-se perto dela, ouvindo. Roslain e Katryen
ficaram em si­lêncio ao seu lado, absorvidas nos seus
bordados. Faziam inscrições das iniciais da casa real,
para distribuir pela cidade e tranquilizar o povo.
— Majestade.
Todos viraram a cabeça. Sir Marke Birchen, um
membro dos Cavaleiros do Corpo, surgiu à porta, com a
sua armadura de cobre.
— Boa noite, Sir Marke — saudou Sabran.
— A Duquesa da Coragem solicitou uma audiência,
Majestade. Ela tem documentos oficiais que requerem a
vossa assinatura.
— Com certeza.
Sabran levantou-se, mas ao fazê-lo cambaleou
perigosamente e teve de se apoiar no virginal.
— Majestade. — Sir Marke avançou para ela, mas
Ead, que estava mais perto, já a tinha segurado. Roslain
e Katryen correram para o seu lado.
— Sabran, não vos sentis bem? — indagou Roslain,
pondo-lhe a mão na testa. — Deixai-me ir buscar o
Doutor Bourn.
— Calma. — Sabran pôs a mão na barriga e respirou.
— Senhoras, deixem-me ir assinar os papéis para Sua
Excelência, mas regressem às onze para me ajudar a
mudar de roupa.
Roslain fez beicinho.
— Quando voltar, trago o Doutor Bourn — disse ela.
— Deixai-o dar-vos uma vista de olhos, Sab. Por favor.
Sabran assentiu. Quando saíram, Ead virou-se e os
seus olhares encontraram-se.
Normalmente, a Câmara de Presença estava cheia
de cortesãos a espera de que Sabran aparecesse para
poderem fazer os seus pedidos. Agora estava silenciosa,
desde que Sabran se fechara nos seus aposentos. Roslain
foi visitar a avó, enquanto Katryen regressou ao seu
quarto para jantar. Ead, ainda sem fome e sem nada que
a distraísse da sua preocu­pação com Sabran, foi procurar
uma mesa livre na Biblioteca Real.
Conforme escurecia, pensou, pela primeira vez em
muitos dias, no que deveria fazer.
Tinha de contar a verdade a Chassar. Se Sabran
estava certa sobre o que aconteceria em Inys, Ead tinha
de ficar lá para a proteger, e teria de o explicar a
Chassar. Depois de muito pensar, acendeu uma vela,
mer­gulhou a pena no tinteiro e escreveu:
De Ascalon, Rainhado de Inys,
via Centro Aduaneiro de Zeedeur
Final do outono, 1005 EC

Excelência,

Há muito tempo que não tenho notícias vossas. Sem


dúvida que deveis estar ocupado a trabalhar
diligentemente para o Rei Jantar e a Rainha Saiyma.
Vireis visitar-nos a Inys em breve?

A vossa fiel amiga e mais humilde serva,


Ead Duryan

Dirigiu-a ao Embaixador uq-Ispad. Um pedido educado


da sua protegida.
O posto do Mestre dos Correios ficava ao lado da
biblioteca. Ead encontrou-o vazio. Depositou a carta
numa caixa de triagem, com moedas suficientes para
pagar o envio por pombo. Se Combe julgasse que não
continha palavras suspeitas, um pombo levaria a carta
para Zeedeur, e outro para a estação de correios de
Brygstad. Depois, iria para o Recinto das Pombas e,
finalmente, um cavaleiro levá-la-ia atra­vés do deserto.
Chassar receberia a sua carta em pleno inverno. A
Prioresa não se divertiria com o seu pedido, mas quando
soubesse do perigo, compreenderia.
Quando Ead deixou a Biblioteca Real, já era noite.
Nesse momento, Sir Tharian Lintley entrou.
— Senhora Duryan — disse ele, inclinando a cabeça
em saudação. — Boa noite. Esperava encontrar-vos aqui.
— Capitão Lintley. — Ead retribuiu a saudação. —
Como estais?
— Muito bem — respondeu, embora houvesse uma
ruga de preo­cupação na sua testa. — Perdoai-me o
incómodo, mas o Lorde Seyton Combe pediu-me que vos
levasse até ele.
— Lorde Seyton. — O coração acelerou-lhe no peito.
— Sua Majes­tade pediu-me que regressasse aos seus
aposentos antes das onze.
— Sua Majestade já se retirou para descansar.
Ordens do Doutor Bourn. — Lintley lançou-lhe um olhar
preocupado. — E... bem, não me parece que seja um
pedido.
Claro. O Falcão da Noite não fazia pedidos.
— Muito bem — disse Ead, forçando um sorriso. — Eu
acompanho-vos.
37
Oeste

O secretário principal mantinha um escritório bem


organizado no andar abaixo da Câmara do Conselho. O
seu covil, como alguns o chamavam, embora a sala fosse
quase dececionante na sua mundanidade. Muito longe do
esplendor de que Combe deveria desfrutar na sua casa
ancestral, o Castelo de Strathurn.
O corredor que conduzia ao aposento estava repleto
de lacaios. Todos eles usavam o pingente do Cavaleiro da
Cortesia, com as asas que os marcavam como servos da
sua linhagem.
— Senhora Ead Duryan, Vossa Graça. — Lintley fez
uma reverência. — Uma Dama do Leito Real.
Ead fez uma reverência.
— Obrigado, Sir Tharian. — Combe estava a escrever,
sentado a mesa. — É tudo.
Lintley fechou a porta atrás de si. Combe olhou para
Ead e tirou os óculos.
O silêncio continuou até que um tronco estalou no
fogo.
— Senhora Duryan — disse Combe —, lamento
informar-vos de que a Rainha Sabran já não requer os
vossos serviços como Dama do Leito Real. O Lorde
Chamberlain dispensou-vos formalmente da Casa
Superior e revogou os vossos privilégios associados.
O seu pescoço arrepiou-se.
— Vossa Graça — disse ela —, não sabia que havia
ofendido Sua Majestade.
Combe sorriu.
— Vá lá, senhora Duryan — disse. — Eu conheço-vos.
Sei como sois inteligente e como me detestais. Sabeis
porque estais aqui. — Como ela não disse nada, ele
continuou: — Esta tarde, recebi um relatório. Que
estáveis em... um estado inapropriado de nudez ontem à
noite no Quarto de Leito Real. Assim como Sua
Majestade.
Mesmo quando a sensação foi drenada das suas
pernas, Ead manteve a compostura.
— Quem vos relatou isso? — perguntou.
— Tenho olhos em todas as divisões. Até nos
aposentos reais — disse Combe. — Um dos Cavaleiros do
Corpo, dedicado como é a Sua Majestade, mesmo assim
se reporta a mim.
Ead fechou os olhos. Estivera tão embriagada com
Sabran que a sua cautela falhara.
— Dizei-me, Combe — respondeu —, porque vos
importais com o que acontece na cama da rainha?
— Porque a cama da rainha é a estabilidade deste
reino. Ou a perda dessa estabilidade. A cama da rainha,
senhora Duryan, é a única coisa que se interpõe entre
Inys e o caos.
Ead olhou para ele.
— Sua Majestade deverá casar-se novamente. Para
dar a impressão de que tenciona conceber a herdeira que
salvará Inys — continuou Combe. — Isso pode ajudá-la a
ter muitos mais anos no trono. E por isso não se ’ pode
dar ao luxo de ter histórias de amor com as damas de
companhia.
— Suponho que também haveis convocado o Lorde
Arteloth dessa forma — disse Ead. — Na calada da noite,
enquanto Sabran dormia.
— Não em pessoa. Tenho a sorte de ter um séquito
de fiéis servi­dores para agir em meu nome. Ainda assim
— acrescentou Combe, sarcasticamente —, sei que a
minha atividade noturna tem provocado comentários.
Estou ciente do nome que me dão na corte.
— Assenta-vos muito bem.
O fogo da lareira brilhava à direita de Combe,
ensombrando a outra metade do seu rosto.
— Livrei a corte de muitas pessoas nos anos em que
fui secretário principal. A minha antecessora costumava
pagar àqueles que queria ver afastados, mas eu não
gosto de desperdiçar recursos. Prefiro utilizar os meus
eLivross. Tornam-se informadores e, se me derem o que
peço, posso acabar por convidá-los a regressar. Em
circunstâncias em que to­dos ganham. — Combe
entrelaçou os dedos grossos. — E assim a minha rede
sussurra-me constantemente.
— A vossa rede já vos sussurrou mentiras antes. Eu
conheci o corpo de Sabran — admitiu Ead —, mas Loth
nunca o fez.

Enquanto falava, começou a pensar em como iria


sair dali. Tinha de chegar até Sabran.

— Sim, o Lorde Arteloth era diferente — admitiu


Combe. — Um ho­mem virtuoso. Leal a Sua Majestade.
Pela primeira vez, doeu-me fazer o que tinha de fazer.

— Perdoai-me, mas isso não me inspira pena.


— Não espero simpatia alguma da vossa parte. Nós
que fazemos o trabalho sujo na corte, os mestres da
tortura, os espiões e os carrascos, não costumamos ser
alvos de compaixão.
— E, no entanto — disse Ead —, sois descendente do
Cavaleiro da Cortesia. Não vos assenta.
— Pelo contrário. É precisamente o meu trabalho nas
sombras que permite que as boas maneiras sejam
mantidas na corte. — Combe fitou-a por um momento. —
O que vos disse no baile foi sincero. Tendes em mim um
amigo. Admiro a forma como vos erguestes sem pisar
ninguém, e a forma como vos comportastes... mas
haveis ultrapassado uma linha que não pode ser
ultrapassada. Com ela, pelo menos — acrescentou, com
um ar quase triste. — Gostaria que não fosse assim.
— Tirai-me do seu lado e ela saberá. E encontrará um
meio de se livrar de vós.
— Espero que estejais enganada, senhora Duryan,
pelo bem dela. Temo que julgueis mal como o seu
governo se tornou frágil, agora que não há esperança de
uma herdeira. — Combe susteve o seu olhar. — Ela
precisa de mim mais do que nunca. Sou-lhe fiel pelas
suas qualida­des como governante e pelo legado da sua
Casa, mas alguns dos meus companheiros Duques
Espirituais não a terão naquele trono. Não agora, que
falhou no seu dever principal como rainha Berethnet.
Ead manteve a sua expressão cuidadosamente
neutra, o coração batia-lhe frenético.
— Quem?
— Oh, tenho as minhas suspeitas sobre quem agirá
primeiro. Pretendo ser o seu escudo nos dias que se
avizinham — disse Combe. — Vós, in­felizmente, não
fazeis parte dos meus planos. Pelo contrário, sois uma
ameaça.
Talvez nem sequer esperem que eu morra para
começarem a lutar.
— Falden — disse Combe, mais alto —, poderias
entrar? — A porta abriu-se e um dos seus lacaios entrou.
— Se tiveres a gentileza de acom­panhar a senhora
Duryan à carruagem.
— Sim, Vossa Graça.
O homem segurou Ead pelo ombro. Enquanto a
conduzia em direção à porta, Combe disse:
— Espera, Mestre Falden. Mudei de ideias. — O seu
rosto estava sem expressão. — Mata-a.
Ead enrijeceu. Imediatamente, o lacaio agarrou-a
pelos cabelos e pu­xou, deixando-lhe a garganta exposta
à lâmina.
O calor flamejou-lhe nas mãos. Ead torceu o braço que
a segurava e, numa confusão de membros, o lacaio
estava no chão entre gritos de agonia, com o ombro
deslocado.
— Aí está — disse Combe baixinho.
O lacaio ofegou, agarrando o braço. Ead olhou para as
suas mãos. Reagindo a uma ameaça, o resto do seu
siden, a sua reserva mais pro­funda, forçou-se a vir à
superfície.
— A senhora Truyde espalhou rumores da vossa
feitiçaria há algum tempo. — Combe percebeu o brilho
nas suas pontas dos dedos. — Ignorei-os, é claro. O
despeito ciumento de uma jovem cortesã, nada mais.
Depois ouvi falar da vossa... curiosa habilidade com
lâminas du­rante a emboscada.
— Aprendi sozinha a proteger a Rainha Sabran —
disse Ead, aparen­temente calma, mas o seu sangue
agitava-se.
— Sim, percebo. — Combe suspirou pelo nariz. — Sois
a vigilante noturna.
Ela havia revelado a sua verdadeira natureza. Não
poderia haver como regressar disso.
— Eu não acredito em feitiçaria, senhora Duryan.
Talvez seja a alqui­mia nas vossas mãos. Aquilo em que
acredito é que nunca haveis vindo aqui com o desejo de
servir a Rainha Sabran, como afirmastes. É mais provável
que o Embaixador uq-Ispad vos tenha colocado aqui
como uma espiã. Razão ainda maior para vos mandar
para longe da corte.
Ead deu um passo na sua direção. O Falcão da Noite
não se moveu nem se encolheu.
— Tenho andado a perguntar-me — disse Ead, em
voz baixa — se sois vós o Copeiro. Se contratastes
aqueles assassinos... para a assustar e forçar o
casamento com Lievelyn. Se é por isso que vos quereis
livrar de mim. A sua protetora. Afinal, o que é um copeiro
senão um servo de con­fiança da coroa, que a qualquer
momento poderia envenenar o vinho?
Combe esboçou um sorriso pesado.
— Como seria fácil para vós colocar a culpa por
todos os males à mi­nha porta — murmurou. — O Copeiro
está próximo, senhora Duryan. Não duvido disso. Mas eu
sou apenas o Falcão da Noite. — Ele recostou-se. — Uma
carruagem aguarda-vos nos portões do palácio.
— E para onde me irá levar?
— Para algum lugar onde eu possa ficar de olho em
vós. Até ver onde caem as peças — disse ele. —
Conheceis o maior segredo do Reino das Virtudes. Um
meneio da vossa língua pode deixar Inys de joelhos.
— Então silenciar-me-eis com o encarceramento. —
Ead fez uma pausa. — Ou pretendeis livrar-vos de mim
de forma mais permanente?
O canto da boca dele contraiu-se.
— Ofendeis-me. O assassinato não é cortês.
Mantê-la-ia algures onde nem Sabran nem o Priorado
a pudessem encontrar. Ead não podia entrar naquela
carruagem, ou nunca mais veria a luz do dia.
Desta vez, muitos pares de mãos caíram sobre ela. A
luz diminuiu dos seus dedos enquanto a escoltavam para
fora.
Não tinha intenção de deixar que Combe a trancasse.
Ou que acabas­se com ela com uma lâmina nas costas.
Ao saírem da Torre de Alabastro, enfiou a mão por baixo
da capa e desamarrou as mangas. Os lacaios
conduziram-na em direção aos portões do palácio.
Rápida como uma flecha, puxou os braços do vestido.
Antes que os retentores pudessem prendê-la, saltou
sobre a parede mais próxima, para o Jardim Real. Os
gritos de surpresa elevaram-se.
O seu coração bateu com força contra as costelas. Viu
uma janela aberta por cima da sua cabeça. A Torre da
Rainha tinha paredes lisas, impossíveis de escalar, mas
uma trepadeira crescia por ela, e parecia suficientemente
forte para suportar o seu peso. Ead apoiou o pé num nó
da planta.
Sentiu o vento no cabelo enquanto subia. A
trepadeira rangeu, mas Ead continuou a procurar pontos
para se agarrar e a manter-se firme contra a parede. Por
fim, conseguiu espremer-se pela janela e aterrar em
silêncio.
Chegou a um corredor deserto e daí passou para as
escadas que con­duziam aos aposentos da rainha. Em
frente às portas da Câmara de Presença, uma fila de
criados de libré, vestidos com tabardos pretos, ostentava
o emblema de dois cálices da Duquesa da Justiça.
— Desejo ver a rainha — disse Ead, quase sem
fôlego —, imediatamente.
— Sua Majestade está na cama, senhora Duryan, a
vigília noturna já começou — respondeu uma mulher.
— A senhora Roslain, então.
— As portas do Quarto de Leito Real estão trancadas
e só se abrirão amanhã.
— Tenho de falar com a rainha — respondeu Ead,
zangada. — É um assunto da maior importância.
Os criados de libré olharam uns para os outros. Por
fim, um deles, visivelmente irritado, pegou numa vela e
entrou na escuridão.
Com o coração aos saltos, Ead tentou recuperar o
fôlego. Mal sabia o que dizer a Sabran. Mas tinha de lhe
dizer claramente o que Combe estava a fazer.
Um momento depois, Roslain apareceu, com os olhos
esbugalhados e vestida com um roupão. Alguns fios de
cabelo escaparam-lhe da trança.
— Ead — disse, um pouco irritada —, que raio se
passa?
— Preciso de ver Sabran.
Roslain cerrou os lábios e puxou-a para o lado.
— Sua Majestade está com febre — disse, com ar
preocupado. — O Doutor Bourn diz que passará com
repouso, mas a minha avó dispôs os seus criados para
lhe oferecerem proteção extra até estar melhor. Eu ficarei
a seu lado para cuidar dela.
— Tendes de lhe dizer. — Ead agarrou-lhe no braço. —
Roslain, Combe quer mandar-me para o exílio. Deveis...
— Senhora Duryan!
Roslain encolheu-se de medo. Ao fundo do corredor
apareceu um grupo de criados com o emblema do livro
alado, liderados por um par de Cavaleiros do Corpo.
— Agarrai-a! — gritou Sir Marke Birchen. — Ead
Duryan, estais presa. Parai de uma vez!
Ead escapuliu-se pela porta mais próxima e
embrenhou-se na noite. — Ead! — gritou Roslain,
horrorizada. — Sir Marke, que vem a ser isto? Depois de
passar por uma série de varandas, Ead encontrou outra
porta aberta. Correu às cegas pelos corredores até
chegar à porta da Cozinha Real, onde Tallys, a criada,
estava agachada num canto, a co­mer um pastel. Quando
Ead apareceu de repente, a mulher conteve um grito.
— Senhora Duryan! — Parecia aterrorizada. — Minha
senhora, eu só...
Ead levou um dedo aos lábios.
— Tallys — disse ela —, há alguma saída?
A criada assentiu de imediato. Pegou em Ead pela
mão e levou-a até uma pequena porta escondida atrás
de uma cortina.
— Por aqui. A escada de serviço — sussurrou. — Ides-
vos embora para sempre?
— Por agora — disse Ead.
— Porquê?
— Não te posso dizer, criança. — Ead olhou-a
diretamente nos olhos. — Não digas a ninguém que me
viste. Jura pela tua honra, Tallys.
Tallys engoliu em seco.
— Juro.
Soaram passos lá fora. Ead passou pela porta e Tallys
fechou-a atrás de si.
Encontrou uma escada e desceu-a apressadamente.
Se quisesse sair do palácio, precisaria de um cavalo e de
um disfarce. Só havia uma pes­soa que lhos podia
arranjar.
Nos seus aposentos, Margret Beck estava sentada, já
em túnica de dor­mir. Quando viu Ead entrar, ergueu o
olhar e conteve uma exclamação.
— Que vem a ser... — Levantou-se. — Ead?
Ead fechou a porta atrás de si.
— Meg, não tenho tempo. Tenho de...
Enquanto dizia as palavras, ouviu-se um som de
pancada, um metal contra a madeira da porta, o som de
alguém a bater com uma mão re­vestida de armadura.

— Senhora Margret. — Mais batidas. — Senhora


Margret, é a se­nhora Joan Dale dos Cavaleiros do Corpo.
— Mais batidas. — Minha senhora, venho em missão
urgente. Abri a porta.
Margret levou Ead até à cama por fazer. Ead meteu-
se debaixo dela e deixou cair os folhos para se esconder.
Ouviu Margret a andar de um lado para o outro nos
azulejos.

— Perdoai-me, senhora Joan. Estava a dormir —


disse com a voz lenta e rouca. — Que se passa?

— Senhora Margret, o secretário principal ordenou a


prisão da senhora Ead Duryan. Sabeis do seu paradeiro?
— A Ead? — Margret sentou-se na cama, recuando,
como se estives­se em choque. — É impossível. Sob que
acusação?
Ela era uma atriz exímia. A sua voz oscilou entre o
espanto e a incredulidade.
— Não estou autorizada a falar sobre o assunto. —
Os pés cobertos de armadura atravessaram a sala. — Se
virdes a senhora Duryan, acionai o alarme
imediatamente.
— Com certeza.
A Cavaleira do Corpo saiu, fechando a porta atrás de
si. Margret trancou a porta e fechou as cortinas antes de
tirar Ead de debaixo da cama.
— Ead — sussurrou —, que raio fizeste?
— Aproximei-me demasiado de Sabran. Tal como o
Loth.
— Não... — Margret olhou para ela. — Costumavas
mover-te com tanto cuidado nesta corte, Ead...
— Eu sei. Perdoa-me. — Apagou as velas e espreitou
por entre as cortinas. Havia guardas e escudeiros por
todo o lado. — Meg, preciso da tua ajuda. Tenho de
regressar ao Ersyr ou o Combe matar-me-á.
— Ele não se atreveria.
— Não me pode deixar sair do palácio com vida,
agora que sei... — Ead não terminou a frase, mas virou-
se para ela. — Ouvirás coisas sobre mim, coisas que te
farão duvidar de mim, mas tens de saber que amo a
rainha. E tenho a certeza de que ela está em grande
perigo.
— Por causa do Copeiro?
— E dos seus próprios Duques Espirituais. Acho que
tencionam agir contra ela — disse Ead. — O Combe está
envolvido, tenho a certeza. Tens de ficar de olho em
Sabran, Meg. Mantém-te perto dela.
Margret olhou para ela.
— Até ao teu regresso?
Ead notou a sua expressão expetante. O que quer que
prometesse a Margret, não tinha garantias de conseguir
cumprir.
— Até ao meu regresso — disse por fim.
Aquilo pareceu afligir Margret. Apertou o maxilar, foi
até ao armário e tirou um manto, uma camisa de folhos e
uma sobretúnica e atirou-os para cima da cama.
— Não vais muito longe com essa roupa fina — disse.
— Felizmente, somos da mesma altura.
Ead despiu-se até à cintura e vestiu a roupa nova,
agradecendo à Mãe por ter colocado Margret Beck no seu
caminho. Uma vez coberta com o manto e o capuz,
Margret acompanhou-a até à porta.
— Ao fundo das escadas, verás um quadro da senhora
Brilda Glade. Por trás, há umas escadas para a casa da
guarda. Daí, podes contornar o Jardim Real e chegar aos
estábulos. Leva o Valour contigo.
Aquele cavalo era a menina dos seus olhos.
— Meg — disse Ead, segurando-lhe as mãos. — Eles
saberão que me ajudaste.
— Que assim seja — respondeu, colocando-lhe um
saco de seda nas mãos. — Toma. Isto é suficiente para te
comprar uma passagem para Zeedeur.
— Não me esquecerei de toda esta generosidade,
Margret.
Margret abraçou-a com tanta força que a respiração
de Ead ficou suspensa.
— Sei que é improvável — disse ela, com a voz baixa
—, mas se en­contrares o Loth lá fora...
— Eu sei.
— Adoro-te como a uma irmã, Ead Duryan. Voltaremos
a encontrar-nos, tenho a certeza. — Depositou um beijo
na sua face. — Que o Santo te acompanhe.
— Não conheço nenhum Santo — respondeu Ead, num
rasgo de ho­nestidade, e viu o olhar confuso da amiga —,
mas aceito a tua bênção, Meg.
Saiu dos aposentos e apressou-se a percorrer os
corredores, evitando os guardas. Quando encontrou o
retrato, desceu as escadas atrás dele e emergiu numa
passagem com uma janela ao fundo. Atravessou-a e viu-
se de novo rodeada pela escuridão da noite.
Estava tudo escuro nas Cavalariças Reais. Valour, um
presente para Margret do seu pai, por ocasião do seu
vigésimo aniversário, era a inveja de todos os que
montavam a cavalo na corte. Com dezoito palmos de
altura, enchia o estábulo. Ead pousou uma mão enluvada
no seu pelo castanho.
Valour resfolegou ao ver-se selado. Se os rumores
fossem verdadeiros, poderia correr mais do que qualquer
um dos cavalos de Sabran.
Ead enfiou a bota no estribo, montou e sacudiu as
rédeas. Valour saiu do estábulo e galopou como uma
exalação. Atravessaram os portões do Palácio de Ascalon
antes que Ead ouvisse os gritos, e naquela altura não
havia maneira de serem apanhados. Uma saraivada de
flechas choveu atrás deles. Valour relinchou, mas Ead
sussurrou-lhe em selinyi, encorajando-o a continuar.
Quando os arqueiros pararam de atirar, Ead virou-se
para contem­plar o local que fora a sua prisão e lar
durante oito anos. O lugar onde conhecera Loth e
Margret, duas pessoas com quem não esperara fazer
amizade. O lugar onde se afeiçoara à prole do Impostor.
Os guardas foram atrás dela, mas perseguiam um
fantasma, pois Ead Duryan cessara de existir.

***

Cavalgou durante seis dias e seis noites no granizo,


parando apenas para Valour descansar. Tinha de se
manter à distância dos mensageiros. Se Combe levasse a
sua avante, já estariam a espalhar a notícia da sua fuga
por todo o país.
Em vez de ir pelo desfiladeiro do Sul, seguiu por
trilhas e campos. No quarto dia, a neve voltou a cair. A
sua viagem levou-a através do próspe­ro condado das
Planícies, onde o lorde e a senhora Honeybrook tinham o
seu palácio em Dulcet Court, e até à cidade de Crow
Coppice. Deu de beber a Valour e encheu o seu odre
antes de regressar à estrada oculta pela escuridão.
Esforçou-se por pensar em qualquer outra coisa que
não fosse Sabran, mas mesmo cavalgando a toda a
velocidade era assombrada por pen­samentos. Agora que
Sabran se encontrava doente, estava ainda mais
vulnerável do que antes.
Quando passou com a sua montada por uma quinta
a toda a veloci­dade, amaldiçoou-se a si própria pela sua
inconsciência. A corte de Inys amolecera-lhe o coração.
Não podia contar à Prioresa o que acontecera com
Sabran. Talvez nem mesmo Chassar compreendesse. Ela
própria mal compreendia. Tudo o que sabia era que não
podia deixar Sabran à mercê dos Duques Espirituais.
Ao amanhecer do sétimo dia, o mar apareceu no
horizonte. Um ob­servador que não conhecesse o local
pensaria que a falésia descia abrup­tamente para a água.
Poderia olhar e nem sequer imaginar que havia uma
cidade à beira-mar.
Nesse dia, o fumo denunciou a sua presença. Uma
nuvem espessa e escura que se elevava no céu.
Ead ficou a olhar durante muito tempo. Não era
apenas o fumo das chaminés. Cavalgou até à beira do
penhasco e olhou para os telhados lá em baixo.
— Vamos, Valour — murmurou, e desmontou,
levando o cavalo até ao primeiro lanço de escadas.
Pedra Alta estava arrasada. Poças de sangue entre
os ladrilhos, ossos carbonizados e carne derretida, e o
vento carregava os odores. Os vivos choravam junto aos
restos mortais dos seus entes queridos, desnorteados.
Ninguém prestou atenção a Ead.
Havia uma mulher de cabelos escuros sentada em
frente às ruínas de uma padaria.
— Ei — perguntou Ead —, que aconteceu aqui?
A mulher estava a tremer.
— Eles vieram durante a noite. Os servos dos
Sombras Ocidentais — murmurou ela. — As máquinas de
guerra afugentaram-nos, não antes de fazerem... isto. —
Uma lágrima rolou-lhe pela maçã do rosto. — Haverá
outra Ascensão das Sombras antes do fim do ano.
— Não se eu puder evitar — disse Ead, tão baixinho
que ela não conseguiu ouvi-la.
Levou Valour pelas escadas até à praia. Na areia havia
catapultas quebradas e outras artilharias, e cadáveres
fumegantes por toda a par­te: soldados e wyrms,
travando uma batalha eterna, mesmo na morte.
Cocatrizes e basiliscos em contorções grotescas, com as
línguas de fora e os olhos bicados pelas gaivotas. Ead
dirigiu-se ao seu cavalo.
— Chiu — disse, ouvindo-o a bufar. — Silêncio, Valour.
Os mortos fizeram a própria cama sobre esta areia.
Ao que parecia, todas as criaturas draconianas que
haviam toma­do parte naquele ataque estavam mortas,
ou abatidas pelas máquinas de guerra ou pelo golpe de
uma espada. Sabran descobriria em breve. Felizmente
para ela, a marinha real estava espalhada em portos por
todo o país, ou toda a frota teria ardido.
Ead atravessou a praia. O vento levantou-lhe o capuz,
refrescando o suor da sua testa. Normalmente, Pedra
Alta estaria cheia de navios, mas todos eles tinham
ardido. E os que permaneceram intactos precisariam de
reparações antes de poderem zarpar novamente.
Aparentemente, só restava um barco a remos intacto.
— Perdida?
Antes que desse conta, a adaga estava na sua mão, e
virou-se, pronta para a atirar. Uma mulher levantou as
mãos.
— Calma. — Usava um chapéu de abas largas. —
Calma.
Quem és tu, yscal?
— Estina Melaugo. Do Rosa Eterna — disse a mulher,
levantando uma sobrancelha. — Estás um bocadinho
atrasada para o embarque.
— Estou a ver. O barco é teu, suponho.
— É, sim.
— Estarias disposta a levar-me? — perguntou Ead,
embainhando a adaga. — Procuro passagem para
Zeedeur.
Melaugo olhou-a de cima a baixo.
— Como devo chamar-te?
— Meg.
— Meg. — O seu sorriso deixava claro que sabia
tratar-se de um nome falso. — Pela sujidade do teu
manto, diria que estás a cavalgar quase sem parar há
vários dias. E também não me parece que tenhas
dormido muito.
— Também o farias se o Falcão da Noite tivesse
posto a tua cabeça a prémio.
Melaugo esboçou um sorriso malicioso, mostrando
uma pequena fen­da entre os seus incisivos.

— Outro inimigo do Falcão da Noite. Ele devia


começar a pagar-nos.

— Que queres dizer com isso?

— Oh, nada. — Melaugo gesticulou em direção ao


horizonte. — O navio está ali. Normalmente pediria
dinheiro pela passagem, mas talvez, com tantos wyrms
no céu, todos nós devêssemos começar a tratar-nos com
mais gentileza.

— Belas palavras para uma pirata.

— No meu caso, a pirataria foi mais uma


necessidade do que uma escolha, Meg — disse Melaugo,
olhando de relance para Valour. — Não podes levar esse
cavalo.
— O cavalo vai para onde eu for.
— Não me obrigues a deixar-te aqui, Meg —
respondeu ela. Mas quando viu que Ead não tirava a mão
de Valour, cruzou os braços e sus­pirou. — Bem, vamos
ter de aproximar o navio. O capitão quererá uma
compensação por isso, mesmo que não pagues a tua
passagem.
Ead atirou-lhe o saco de dinheiro. O dinheiro de Inys
não lhe serviria de nada no Sul.
— Não aceito caridade, pirata — disse ela.
***

Não demoraria muito a chegar a Mentendon. Ead


deitou-se no seu be­liche e tentou dormir. Quando o fez,
foi perfurada por sonhos inquietos com Sabran e o
Copeiro sem rosto. Quando não dormia, caminhava até
ao convés e olhava para as estrelas de cristal acima das
velas, deixando-as acalmar a sua mente.
O capitão, Gian Harlowe, saiu da sua cabina para
fumar o seu ca­chimbo. Aquele era o homem que amara a
Rainha-Mãe, segundo os boatos. Olhos escuros, boca
severa, cicatrizes na testa e nas faces. Parecia ter sido
esculpido pelo vento do mar.
Os seus olhares encontraram-se através do navio e
Harlowe assentiu. Ead devolveu o gesto.
À primeira luz, o céu era uma mancha de cinzas e
Zeedeur estava no horizonte. Fora ali que Truyde passara
a infância, onde concebera pela primeira vez as suas
ideias perigosas. Fora ali que a morte de Aubrecht
Lievelyn fora escrita nas estrelas.
Estina Melaugo juntou-se a Ead na proa.
— Tem cuidado lá fora — advertiu. — É uma jornada
difícil daqui até ao Ersyr, e há wyrms nas montanhas.
— Não temo nenhum wyrm. — Ead fez-lhe sinal com
a cabeça. — Obrigada, Melaugo. Adeus.
— Adeus, Meg. — Melaugo baixou a aba do chapéu e
virou-se. — Desejo-te uma viagem segura.
***

O porto de Zeedeur, ladeado pelo mar e pelo rio


Hundert, tinha a forma de uma ponta de seta. O bairro
norte era ladeado de canais, de casas elegantes e de
ulmeiros. Ead só tinha passado pela cidade uma vez
antes, para partir para Inys com Chassar. As casas eram
construídas no estilo tradicional mêntico, com beirais
duplos e campanários. A elaborada tor­re do Santuário do
Porto erguia-se acima das casas no centro da cidade.
Era o último santuário que iria ver durante algum
tempo.
Montou em Valour e esporeou-o; deixaram para trás
os mercados e os vendedores de livros e dirigiram-se
para a estrada de sal que a levaria à capital. Em poucos
dias estaria em Brygstad, e de lá partiria para o Ersyr —
longe da corte que por tanto tempo enganara. Longe do
Ocidente.
E de Sabran.
III
Morte à Bruxa

Os loureiros da nossa pátria murcharam,


Enquanto meteoros atemorizam as estrelas fixas
do céu.

— William Shakespeare
38
Este

Ao raiar do dia, um sino tocou bem alto. Perante o


seu som, os estu­diosos da Ilha das Penas dobraram a sua
roupa de cama e passa­ram pelos quartos de banho.
Depois de se lavarem, comeriam juntos e, mais tarde,
antes de os mais velhos se levantarem, teriam uma hora
para rezar e meditar. Essa hora era o seu momento
favorito do dia.
Tané ajoelhou-se perante a imagem do grande
Kwiriki. A água escor­ria pelas paredes da gruta, caindo
numa jangada. Apenas uma lanterna iluminava a
escuridão.
Aquela estatua do Grande Ancião não era como as
outras a que re­zara em Seiiki. Aquela mostrava-lhe os
atributos de outras formas que assumira durante a sua
vida: os chifres de um veado, as garras de um pássaro e
a cauda de uma cobra.
Passou algum tempo até Tané ouvir o som agudo de
um pé metálico na rocha. Levantou-se e encontrou o
erudito Ancião Vara à entrada da gruta.
— Estudiosa Tané. — Vara inclinou a cabeça. —
Perdoai-me por interromper a vossa meditação.
Ela devolveu-lhe o gesto da cabeça.
A maioria dos habitantes da Casa Vane considerava o
Ancião Vara um tipo excêntrico. Era um homem magro,
de pele castanha e envelhecida, com rugas profundas à
volta dos olhos, e tinha sempre uma palavra sim­pática e
um sorriso para Tané. A sua principal tarefa era proteger
e gerir o repositório, mas também agia como curandeiro
quando necessário.
— Honrar-me-eis se quiserdes acompanhar-me ao
repositório esta manhã — disse ele. — Alguém cuidará
das vossas tarefas. E, por favor, tomai o vosso tempo.
Tané hesitou.
— Não me é permitida a entrada no repositório.
— Bem, hoje sim — disse ele, e desapareceu antes
que Tané pudesse responder. Lentamente, ela voltou a
ajoelhar-se.
Aquela caverna era o único lugar onde conseguia
esquecer-se de si mesma. Era uma das inúmeras grutas
que, como uma colmeia, escava­vam a parede atrás de
uma cascata, e que eram usadas pelos estudiosos
daquela parte da ilha.
Ela agitou o incenso e inclinou-se perante a estátua. O
brilho das joias que serviam de olhos foi a sua resposta.
Subiu as escadas e saiu para a luz do Sol. O céu tinha
a cor amarela da seda crua. Começou a caminhar
descalça pelo caminho de pedras.
A Ilha das Penas, solitária e selvagem, ficava longe de
todos os lugares. As suas escarpadas falésias e o manto
de nuvens que a cobria constante­mente desencorajavam
qualquer navio que se atrevesse a aproximar-se. As
serpentes tomavam sol nas suas praias de pedra. Na ilha,
viviam pes­soas de todas as partes do Oriente, e também
era onde repousavam os ossos do grande Kwiriki. Dizia-
se que se havia deitado ali para aguardar o descanso
eterno no fundo do desfiladeiro que dividia a ilha,
chamado de Caminho do Ancião. Também diziam que os
seus ossos eram o que mantinha a névoa ao redor da
ilha, porque um dragão continuava a atrair a água
mesmo após a morte. Por isso havia sempre tanta
neblina em Seiiki.
Seiiki.
A Casa Barlavento situava-se em Cabo Espinho, a
norte, enquanto a Casa Vane, menor — para onde Tané
fora, enviada —, ficava no topo de um vulcão inativo,
cercado por florestas. Havia cavernas de gelo logo atrás,
onde a lava havia fluído outrora. Para se deslocar entre
os eremité­rios, era preciso atravessar uma ponte
precária que cruzava o desfiladeiro.
Não havia outros assentamentos. Os estudiosos
estavam sozinhos no meio do vasto mar.
O eremitério era uma caixa-quebra-cabeças de
conhecimento. Cada nova peça de sabedoria era
conquistada com a compreensão da última.
Escondida nos seus corredores, Tané aprendera
primeiro sobre fogo e água. O fogo, o elemento dos
demónios alados, exigia alimentação cons­tante. Era o
elemento de guerra, ganância e vingança — sempre com
fome, nunca satisfeito.
A água não precisava de carvão ou isca para existir.
Podia moldar-se a qualquer espaço. Alimentava a carne e
a terra e não pedia nada em troca. Era por isso que os
dragões do Oriente, senhores da chuva e do lago e do
mar, sempre triunfariam sobre as bestas de fogo. Quando
o oceano engolisse o mundo e a humanidade fosse
dizimada, eles permaneceriam.
Uma águia-pesqueira arrebatava um peixe do rio. Um
vento frio so­prava entre as árvores. O Dragão do Outono
logo voltaria ao seu sono, e o Dragão do Inverno
acordaria no décimo segundo lago.
Ao pisar na passagem coberta que conduzia de volta
ao eremitério, Tané enrolou o capuz de pano sobre o
cabelo, que havia cortado antes de deixar Ginura, de
modo que roçava a sua clavícula. Miduchi Tané tinha
cabelo comprido. O fantasma em que ela se tornara, não.
Depois de refletir, costumava varrer o chão, ajudar a
colher frutas da floresta, limpar as folhas das sepulturas
ou alimentar as galinhas. Não havia servos na Ilha das
Penas, então os estudiosos compartilhavam os deveres
servis, com os jovens e fortes assumindo a maior parte.
Era estra­nho que o Ancião Vara lhe tivesse pedido a ela
que fosse ao repositório, onde os documentos mais
importantes eram guardados.
Quando chegara à Ilha das Penas, fora para o seu
quarto e ficara lá durante dias. Não comera nem dissera
uma palavra. Tinham-lhe tirado as armas em Ginura, o
que a despedaçou por dentro. Tudo o que queria era
lamentar o seu sonho até que cessasse de respirar.
Fora o Ancião Vara quem a trouxera de volta a uma
aparência de vida. Quando ficou fraca de fome,
persuadiu-a a apanhar sol. Mostrou-lhe flores que ela
nunca tinha visto. No dia seguinte, preparou-lhe uma
refeição, e ela não quisera desapontá-lo deixando-a
intacta.
Agora, os outros estudiosos chamavam-na Fantasma
da Casa Vane. Ela podia comer, trabalhar e ler como eles,
mas o seu olhar permanecia preso a um mundo onde
Susa ainda vivia.
Tané saiu da passagem e foi para o repositório.
Normalmente, apenas os mais velhos tinham permissão
para entrar. Quando se aproximou dos seus degraus, a
Ilha das Penas retumbou. Tané caiu no chão e cobriu a
cabeça. Quando o tremor de terra sacudiu o eremitério,
sibilou por entre os dentes com uma dor repentina.
O nó na sua lateral era uma ponta de lâmina. Dor fria
— a mordida de gelo contra a pele nua, o congelamento
nas suas entranhas. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos
enquanto ondas de agonia a trespassavam.
Devia ter perdido a consciência. Uma voz gentil
chamou-a de volta.
— Tané. — Mãos secas como papel seguravam-lhe os
braços. — Estudiosa Tané, podeis falar?
Sim, tentou dizer, mas não saiu nada.
O tremor de terra havia parado. A dor não. O Ancião
Vara pegou nela pelos seus braços ossudos.
Envergonhou-se de ser erguida como uma criança, mas a
dor era maior do que ela podia suportar.
Ele levou-a para o pátio atrás do depósito e colocou-
a num banco de pedra ao lado do lago de peixes. Uma
chaleira repousava na sua borda.
— Ia levar-vos para um passeio nos penhascos hoje
— disse ele. — Mas vejo agora que precisais de
descansar. Fica para outra altura. — Serviu chá a ambos.
— Sentis dor?
A sua caixa toráxica parecia cheia de gelo.
— Uma lesão antiga. Não é nada, Ancião Vara. — A
voz estava rouca. — Esses tremores de terra acontecem
com tanta frequência agora.
— Sim. É como se o mundo quisesse mudar de
forma, como os dra­gões de outrora.
Ela pensou nas suas conversas com a grande
Nayimathun. Enquanto tentava controlar a respiração, o
Ancião Vara sentou-se ao lado dela.
— Tenho medo de tremores de terra — confessou. —
Quando ainda morava em Seiiki, a minha mãe e eu
aconchegávamo-nos na nossa casi­nha em Basai quando
o chão tremia e contávamos histórias um ao outro para
manter as mentes longe disso.
Tané tentou sorrir.
— Não me lembro se a minha mãe fez o mesmo.
Enquanto falava, o chão estremeceu novamente.
— Bem — disse o Ancião Vara —, talvez eu pudesse
contar-vos uma. De acordo com a tradição.
— Claro.
Ele entregou-lhe uma chávena fumegante. Tané
aceitou em silêncio.
— Antes da Grande Desolação, uma besta de fogo
voou para o Império dos Doze Lagos e arrancou a pérola
da garganta do Dragão da Primavera, aquela que traz
flores e chuvas suaves. Os demónios alados gostam de
acumular tesouros avidamente, e nenhum tesouro vale
mais do que uma pérola de dragão. Embora estivesse
gravemente ferido, o Dragão da Primavera proibiu
qualquer um de perseguir o ladrão com medo de que
eles também se pudessem magoar... mas uma rapariga
decidiu que o faria. Tinha 12 anos, era pequena e rápida,
e tinha pés tão leves que os seus irmãos lhe chamavam
Menina das Sombras.
» Enquanto o Dragão da Primavera lamentava pela
sua pérola, um inverno nada natural caiu sobre a terra.
Embora o frio queimasse a sua pele e ela não tivesse
sapatos, a Menina das Sombras caminhou até à
montanha onde a besta de fogo havia enterrado o seu
tesouro. Enquanto a besta se ausentara para caçar, ela
entrou furtivamente na sua caverna e recuperou a pérola
do Dragão da Primavera.
Teria sido um grande tesouro para carregar. A menor
pérola de dra­gão era tão grande quanto um crânio
humano.
— A besta de fogo voltou assim que ela depositou as
mãos sobre a pé­rola. Enfurecido, estalou as mandíbulas
para a ladra que ousara entrar no seu covil e arrancou
um pedaço de carne da sua coxa. A menina mer­gulhou
no rio e a corrente levou-a para longe da caverna. Ela
escapou com a pérola... mas quando se puxou para fora
da água, não conseguiu encontrar ninguém que lhe
suturasse a ferida, pois o sangue fez as pes­soas
temerem que transportasse a doença vermelha.
Tané observou o Ancião Vara através de tentáculos
de vapor.
— Que lhe aconteceu?
— Morreu aos pés do Dragão da Primavera. E
quando as flores desabrocharam mais uma vez, e o sol
derreteu a neve, o Dragão da Primavera declarou que o
rio em que a Menina das Sombras havia na­dado seria
nomeado em sua homenagem, pois a criança reunira-a
com a pérola que era o seu coração. Diz-se que o seu
fantasma vagueia pelas suas margens, protegendo os
viajantes.
Nunca Tané ouvira uma história de tal bravura de
uma pessoa comum.
— Há quem ache a história triste. Outros acham que
é um belo exemplo de abnegação — disse o Ancião Vara.
Outro choque percorreu o solo e dentro de Tané algo
gritou em res­posta. Tentou manter a dor longe do rosto,
mas o Ancião Vara era muito perspicaz.
— Tané — disse ele —, posso ver esse vosso antigo
ferimento?
Tané levantou a túnica apenas o suficiente para ele
ver a cicatriz. À luz do dia, parecia mais proeminente do
que o normal.
— Posso? — perguntou. Quando ela assentiu, ele
tocou-lhe com um dedo e franziu a testa. — Há um
inchaço por baixo.
Era duro como uma pedra.
— O meu professor disse que aconteceu quando eu
era criança — disse Tané. — Antes de ir para as Casas de
Instrução.
— Nunca vistes um médico, então, para ver se algo
poderia ser feito?
Ela abanou a cabeça e cobriu a cicatriz.
— Acho que devemos abrir-vos, Tané — disse o
Ancião Vara determi­nado. — Deixai-me chamar o médico
seiikine que nos atende. A maior parte dos inchaços
desse tipo são inofensivos, mas ocasionalmente podem
corroer o corpo por dentro. Não queremos que morreis
em vão, criança, como a Menina das Sombras.
— Ela não morreu em vão — disse Tané, com o olhar
vazio. — Com o seu último suspiro, restaurou a alegria de
um dragão e, ao fazê-lo, res­taurou o mundo. Existe algo
mais honrado por que dar a vida?
39

Sul

Uma caravana de quarenta almas abria caminho


pelo deserto. A areia brilhava sob a suave luz do
entardecer.

Montada no seu camelo, Eadaz uq-Nāra observou


como o céu se tin­gia de um vermelho profundo. A sua
pele tinha adquirido um bronze intenso e o cabelo,
cortado ao nível dos ombros, estava coberto por um
pargh branco.

A caravana, à qual se tinha juntado no Recinto das


Pombas, já se encontrava no extremo norte do Burlah, a
faixa de deserto que se es­tendia em direção a
Rumelabar. O Burlah era o território das tribos Nuram. A
caravana já se cruzara com alguns dos seus mercadores,
com os quais haviam trocado provisões, e tinham sido
avisados de que alguns wyrms se haviam aventurado
para lá das montanhas, provavel­mente encorajados pelos
rumores do avistamento de outro Sombra Ocidental no
Oriente.

No caminho para Rauca, Ead tinha parado na


Cidade Enterrada. O Monte do Pavor, local de nascimento
dos wyrms, era tão terrível como ela se lembrava, afiado
como uma espada quebrada a rasgar o céu. Uma ou duas
vezes, enquanto caminhava entre as colunas em ruínas,
avistara o brilho distante de umas asas no cume.
Wyverns a levantar voo pela primeira vez.

A sombra da montanha estavam os restos do que


um dia fora uma grande cidade, Gulthaga. O que
permanecia visível escondia a estrutura subterrânea. Lá
em baixo, algures, Jannart utt Zeedeur tinha sucumbido
na sua busca pelo conhecimento.

Ead havia considerado a possibilidade de seguir os


seus passos para descobrir mais sobre essa Estrela de
Crina Longa, o cometa que trazia equilíbrio ao mundo.
Tinha vasculhado as ruínas à procura da rota que ele
usara para penetrar sob as cinzas petrificadas. Após
horas de busca, mesmo quando estava prestes a desistir,
tinha avistado um túnel por onde mal cabia. Estava
escondido por trás de um desmoronamento de rochas.

Não fazia muito sentido explorar. Afinal, não


conhecia ninguém de Gulthaga, mas a profecia de Truyde
ecoava como um zumbido no ouvi­do, e viu-se incapaz de
a ignorar.

Pensara que o seu regresso ao Sul seria como um


novo sopro de vida. De facto, os seus primeiros passos
pelo Deserto do Sonho Inquieto transmitiram-lhe uma
sensação de renascimento. Após deixar Valour em
segurança no Desfiladeiro de Harmur, continuou a pé,
sozinha na areia, em direção a Rauca. Ver a cidade
novamente dera-lhe novas forças, mas estas haviam sido
dizimadas pelos terríveis ventos que var­riam o Burlah.

A sua pele esquecera-se do que era sentir o toque


do deserto. Agora, era apenas mais uma viajante,
coberta de poeira, e as suas memórias eram como
miragens. Em alguns dias, quase se convencera de que
nun­ca tinha usado finas sedas e joias na corte da rainha
do Ocidente. De que nunca fora Ead Duryan.

Um escorpião passou a correr diante do seu


camelo. Os outros via­jantes cantavam para passar o
tempo. Ead ouvia em silêncio. Passara-se uma eternidade
desde a última vez que ouvira alguém a cantar em ersyri.

Um passarinho pousou no ramo de um cipreste,


E, solitário, cantou, em busca de alguém para
desposar.
«Dança, dança», cantava, «pelas dunas, ao luar»
«Vem, vem, meu amor, e juntos voaremos para
Oeste.»

Rumelabar ainda ficava longe. A caravana levaria


semanas a atravessar o Burlah. Era inverno e o frio das
noites podia ser tão letal quanto o sol. Ead perguntou a si
mesma se Chassar teria recebido notícias da sua partida
de Inys e quais seriam as consequências diplomáticas
para o Ersyr.

— Acamparemos com os Nuram — disse o mestre


da caravana. — Aproxima-se uma tempestade.

A mensagem foi passada ao longo da linha. Ead, em


frustração, segu­rou as rédeas com mais força. Não tinha
tempo a perder enquanto uma tempestade soprava do
Burlah.
— Eadaz.
Virou-se na sela. Outro camelo acompanhava o dela.
Ragab era um mensageiro grisalho, a caminho do sul
com uma bolsa de correspondência.
— Uma tempestade de areia — disse, a voz profunda
cansada. — Acho que esta jornada nunca irá acabar.
Ead gostava de cavalgar com Ragab, que estava
cheio de histórias interessantes das suas viagens e
afirmava ter feito a travessia quase cem vezes.
Sobrevivera a um ataque de basilisco na sua aldeia, que
lhe ma­tara a família, cegara-o de um olho e deixara-o
cicatrizado. Os outros viajantes olhavam para ele com
pena.
Também olhavam para Ead com pena. Ouvira-os
sussurrar que ela era um espírito errante no corpo de
uma mulher, presa entre os mundos.
Apenas Ragab ousara aproximar-se.
— Tinha-me esquecido de como o Burlah é severo —
disse Ead. — Que desolação.
— Já o cruzaste antes?
— Duas vezes.
— Quando tiveres feito a travessia tantas vezes
como eu, verás beleza naquela desolação. Embora, de
todos os nossos desertos no Ersyr — dis­se ele —, aquele
de que eu mais gosto será sempre o Deserto do Sonho
Inquieto. A minha história favorita, quando criança, era a
de como re­cebeu esse nome.
— Essa é uma história muito triste.
— Para mim, é linda. Uma história de amor.
Ead pegou no seu odre da sela.
— Há muito tempo que não a oiço. — Removeu a
tampa. — Talvez ma possas contar.
— Se quiseres — disse Ragab. — Temos um caminho
considerável a percorrer.
Deixou Ragab bebericar do seu odre antes de ela
própria beber. Ele pigarreou.
— Era uma vez um rei, amado pelo seu povo.
Governava de um palá­cio de vidro azul em Rauca. A sua
noiva, a Rainha das Borboletas, que ele amava mais do
que tudo no mundo, morrera jovem, e ele lamentava
profundamente por ela. Os seus oficiais governaram em
seu lugar en­quanto caía numa prisão que ele mesmo
criara, cercado por riquezas que desprezava. Nenhuma
joia ou moeda poderia comprar a mulher que ele
perdera. E então, tornou-se conhecido como o Rei
Melancólico.
» Uma noite, levantou-se da cama pela primeira vez
num ano para ver a lua vermelha. Quando olhou para
baixo da sua janela, ora, não podia acreditar no que os
seus olhos viam. Lá estava a sua rainha, nos jardins do
palácio, vestida com a mesma roupa que vestia no dia
em que ele se casara com ela, chamando-o para se
juntar a ela nas areias. Os seus olhos riam e segurava
nas mãos a rosa que ele lhe dera quando se conheceram.
Pensando tratar-se de um sonho, o rei saiu do palácio,
atravessou a cidade e foi para o deserto... sem comida
ou água, sem manto, nem mesmo sapatos. Caminhou e
caminhou, seguindo a sombra ao longe. Mesmo
enquanto o frio cobria a sua pele, mesmo enquanto
ficava fraco com a sede e ghouls lhe seguiam os passos,
disse a si mesmo: É apenas um sonho. É apenas um
sonho. Caminhou atrás do seu amor, saben­do que iria
alcançá-la e que passaria mais uma noite com ela...
apenas mais uma, no seu sonho, pelo menos... antes de
acordar na sua cama sozinho.
Ead lembrou-se da próxima parte da história. Um
arrepio percorreu-lhe o corpo.
— É claro — continuou Ragab — que o Rei
Melancólico não estava a sonhar, mas a perseguir uma
miragem. O deserto pregara-lhe uma partida. Foi lá que
ele morreu, e os seus ossos perderam-se na areia. E o
deserto conquistou o seu nome. — Deu uma palmadinha
no seu camelo quando este resfolegou. — O amor e o
medo fazem coisas estranhas às nossas almas. Os
sonhos que trazem, aqueles que nos deixam enchar­‐
cados em água salgada e sem fôlego, como se
pudéssemos morrer... a esses, chamamos sonhos
inquietos. E apenas o cheiro de uma rosa pode afastá-los.
A história deixou Ead arrepiada ao lembrar-se de
outra rosa, aninha­da atrás de uma almofada.
A caravana chegou ao acampamento no momento
em que a tempes­tade de areia atingiu o horizonte. Os
viajantes foram levados às pressas para uma tenda
central, onde Ead se sentou com Ragab nas almofadas, e
os Nuram, que gostavam de convidados, compartilharam
o seu queijo e pão salgado. Também passaram um
cachimbo de água, que Ead recu­sou. Ragab, no entanto,
ficou muito satisfeito em aceitá-lo.

— Nenhum de nós vai dormir bem esta noite. — Ele


soprou uma pluma perfumada. — Assim que a
tempestade passar, devemos chegar ao Oásis de
Gaudaya em três dias, pelas minhas contas. Depois,
teremos a longa estrada à nossa frente.
Ead olhou para a Lua.

— Quanto tempo duram estas tempestades? —


perguntou a Ragab.

Ragab abanou a cabeça.

— É difícil dizer. Podem demorar minutos ou uma


hora ou mais.

Ead cortou ao meio uma rodada de pão achatado


enquanto uma mulher nuram lhes servia um doce chá
rosa. Até o deserto conspirava contra ela. Ardia de avidez
de deixar a caravana e cavalgar o tempo que fosse
necessário para chegar a Chassar — mas ela não era o
Rei Melancólico. O medo não a faria perder os sentidos.
Não era orgulhosa o suficiente para pensar que poderia
cruzar o Burlah sozinha.
Enquanto os outros viajantes ouviam a história do
Ladrão de Vinho Azul de Drayasta, Ead sacudiu a areia da
roupa e mordiscou um galho macio para limpar os
dentes. Encontrou um lugar para dormir atrás de uma
cortina.
Os nuram costumavam dormir sob as estrelas, mas
agora, com uma tempestade de areia a rugir ao alto,
fechavam-se nas suas tendas. Gradualmente, os
nómadas e os seus convidados começaram a retirar-se e
as lamparinas a óleo foram apagadas.
Ead cobriu-se com um cobertor trançado. A escuridão
envolveu-a e voltou a sonhar com Sabran, a carne dorida
com a lembrança do seu toque. Depois, a Mãe teve
misericórdia e Ead mergulhou num sono sem sonhos.
Um baque acordou-a.
Abriu os olhos. A tenda estremeceu ao seu redor,
mas sob o tumulto, pôde ouvir algo lá fora. Algo
estranho. Deslizou uma adaga da sacola e saiu para a
noite do deserto.
A areia assolava o acampamento. Ead segurou o seu
pargh sobre a boca. Quando viu a silhueta, moveu a
adaga para cima, certa de que era um wyvern — mas
depois esta avançou, em toda a sua glória, através da
poeira do Burlah.
Ead sorriu.

***

Parspa era a última hawiz conhecida, totalmente


branca exceto pelas pontas das asas cor de bronze.
Essas aves podiam atingir o tamanho de wyverns, que se
haviam cruzado com elas para criar as cocatrizes.
Chassar, que tinha um fraco por aves, encontrara Parspa
quando ainda estava no ovo e levara-a para o Priorado.
Agora, ela só lhe obedecia a ele. Ead juntou os seus
pertences e subiu para o dorso da ave; pouco depois
deixaram o acampamento para trás.
Fugiram do sol nascente. Ead sabia que estavam a
aproximar-se quan­do começaram a surgir cedros
salgados na areia, e de repente estavam sobre o Domínio
de Lasia.
A sua terra natal era uma terra de desertos vermelhos
e picos escar­pados, de grutas escondidas e cascatas
imponentes, de praias douradas banhadas pelas ondas
do mar de Halassa. Na sua maioria, era uma terra seca,
como o Ersyr, mas atravessada por rios enormes, e nas
suas margens crescia muita vegetação. Olhando para as
planícies que se es­tendiam diante dos seus olhos, Ead
sentiu as saudades de casa desapa­recerem. Não
importava quanto do mundo visse, para ela, aquele seria
sempre o lugar mais bonito de todos.
Parspa sobrevoou as ruínas de Yikala. Ead e Jondu
tinham-nas ex­plorado muitas vezes na infância,
sonhando em encontrar vestígios do tempo da Mãe.
Parspa virou-se para a Bacia de Lasia. Aquela vasta
floresta antiga, regada pelo rio Minara, escondia o
Priorado. Quando o Sol nasceu, Parspa já estava acima
da floresta, projetando a sua sombra sobre a den­sa copa
das árvores.
O pássaro desceu finalmente e aterrou numa das
poucas clareiras da floresta. Ead deslizou para o chão.
— Muito obrigada, minha amiga — disse em selinyi. —
Eu sei o ca­minho a partir daqui.
Parspa voou para longe sem emitir som algum.
Ead caminhou por entre as árvores, sentindo-se tão
pequena como uma das suas folhas. As figueiras
estranguladoras subiam pelos troncos.
Os seus pés exaustos recordavam o caminho, ainda
que a sua mente estivesse perdida. A entrada da gruta
ficava perto, protegida por proteções poderosas,
escondida entre a folhagem mais densa. Iria levá-la às
profundezas do subsolo, ao labirinto de corredores
secretos.
Sentiu um sussurro dentro de si. Voltou-se para trás.
Era uma mulher banhada pela luz do Sol, com a barriga
inchada pela gravidez.
— Eadaz — respondeu a mulher. — Bem-vinda a
casa.

***

A luz estilhaçava-se ao entrar pelas janelas


gradeadas. Ead percebeu que estava na cama, com a
cabeça apoiada em almofadas de seda. As solas dos pés
ardiam-lhe depois de tantos dias de estrada.
Um rugido abafado fê-la levantar a cabeça com um
sobressalto.
Inspirou com força e pegou numa arma.
— Eadaz. — Mãos de pele áspera envolveram as
dela, assustando-a. — Eadaz, fica quieta.
Olhou para o rosto barbudo diante dela, olhos
escuros com os cantos virados para cima, como os seus.
— Chassar — sussurrou. — Chassar, isto é...?
— Sim. — Sorriu. — Estás em casa, minha querida.
Ela encostou o rosto ao peito dele. O manto de
Chassar absorveu as lágrimas que lhe banhavam os
olhos.
— Percorreste um longo caminho — disse ele,
acariciando-lhe o ca­belo arenoso. — Se me tivesses
escrito antes de deixares Ascalon, teria enviado a Parspa
muito antes.
— Não tive tempo, Chassar — respondeu, agarrando-
lhe o braço. — Tenho de te contar. Sabran está em
perigo... Os Duques Espirituais, acho que querem lutar
pelo trono...
— Nada do que acontece em Inys importa agora. A
Prioresa falar-te-á em breve.
Voltou a adormecer. Quando acordou, o céu estava
iluminado com a luz das brasas moribundas. Lasia
gozava de uma temperatura amena durante a maior
parte do ano, mas o vento da noite era fresco. Levantou-
se e vestiu uma túnica de brocado antes de sair para a
varanda. E ficou a olhar para ela.
A laranjeira.
Erguia-se do coração da Bacia de Lasia, maior e mais
bela do que sonhara em Inys. Os seus ramos e a relva no
chão estavam cobertos de flores brancas. À sua volta,
estendia-se o Vale de Sangue, onde a Mãe vencera o
Inominável. Ead soltou um longo suspiro.
Estava em casa.
As câmaras subterrâneas desembocavam naquele
vale. Só aqueles quartos, os solários, tinham uma vista
tão privilegiada. A Prioresa concedera-lhe a honra de
repousar num deles. Costumavam ser reser­vados para
orações e partos.
Por cima, ouvia-se o rugido de uma cascata de mil
metros de altura que caía numa única queda de água.
Fora o rugido monótono que ela ouvira. Siyāti uq-Nāra
nomeara a cascata de Pranto de Galian, como um
escárnio à sua cobardia. Muito abaixo de onde se
encontrava, o rio Minara abria caminho através do vale,
alimentando as raízes da árvore.
O seu olhar percorreu o labirinto de ramos. A fruta
estava aninhada aqui e ali, rutilante no ramo. A visão
secou-lhe a boca. Nenhuma água poderia saciar a sede
que latejava dentro de si.
Quando voltou para o quarto, parou e pressionou a
testa contra a pedra fria da porta.
Casa.
Um rosnado baixo eriçou-lhe os pelos da nuca. Virou-
se, dando com um ichneumon adulto na porta.
— Aralaq?
— Eadaz. — A sua voz dele era baixa e pedregosa. —
Eras uma cria na última vez que te vi.
Não conseguia acreditar no tamanho dele. Antes, era
pequeno o sufi­ciente para lhe caber no colo. Agora, era
enorme e tinha o peito largo e uma cabeça maior do que
ela.
— Tu também. — O seu rosto suavizou-se num
sorriso. — Estiveste a proteger-me o dia todo?
— Há três dias.
O sorriso desapareceu.
— Três — murmurou. — Devo estar mais exausta do
que pensei.
— Viveste muito tempo longe da laranjeira.
Aralaq caminhou até ela e farejou-lhe a mão. Ead riu-
se enquanto ele lhe passava a língua pelo rosto.
Lembrava-se dele como uma bola de pelo, olhos e
fungadelas, tropeçando na sua longa cauda.
Uma das irmãs encontrara-o órfão no Ersyr e
trouxera-o para o Priorado, onde ela e Jondu foram
encarregadas de cuidar dele. Alimentavam-no com leite e
restos de carne de cobra.
— Devias tomar banho. — Aralaq lambeu-lhe os
dedos. — Cheiras a camelo.
Ead resmungou.
— Obrigada. Também tens um certo aroma
pungente, sabes?
Pegou na lamparina a óleo da cabeceira e seguiu-o.
Ele conduziu-a pelos túneis e escadas acima.
Passaram por dois homens lasianos — Filhos de Siyāti,
que atendiam as irmãs. Ambos baixaram a cabeça
quando Ead passou.
Quando chegaram ao quarto de banho, Aralaq tocou-
lhe no quadril.
— Vai. Um servo levar-te-á à Prioresa depois. — Olhos
dourados fitaram-na solenemente. — Tem cuidado, filha
de Zāla.
A cauda varreu-lhe o rasto quando saiu. Ead observou-
o a afastar-se antes de passar pela porta, para um
interior à luz de velas.
Aquele quarto de banhos, assim como os solários,
ficava do lado aber­to do Priorado. Uma brisa agitava o
vapor na superfície da água, como as espumas das
ondas do mar. Ead largou a lamparina a óleo e tirou o
manto antes de descer para a água. A cada passo,
afastava a areia, a sujidade e o suor, e ficou elegante,
como nova.
Usou sabão de cinzas para lavar a pele. Depois de
tirar a areia do ca­belo, deixou o calor acalmar os seus
ossos cansados da viagem.
Tem cuidado.
Ichneumons não davam avisos levianos. A Prioresa
gostaria de saber por que razão Ead insistira tanto em
ficar em Inys.
Tens de ficar sempre comigo, Ead Duryan.
— Irmã.
Ela virou a cabeça. Um dos Filhos de Siyāti estava à
porta.
— A Prioresa convida-vos para jantar com ela — disse
ele. — As vossas vestes aguardam-vos.
— Obrigada.
Já no quarto, demorou-se a vestir. A roupa que lhe fora
deixada não era formal, mas era adequada à sua nova
posição como postulante. Uma iniciada quando partira
para Inys, tinha agora concluído uma tarefa im­portante
para o Priorado, tornando-a elegível para ser nomeada
Dama Vermelha. Só a Prioresa poderia decidir se seria
digna dessa honra.
Primeiro, viu um manto de seda azul-marinho, que
brilhava como ouro fiado e que, uma vez colocado, lhe
cobria o umbigo. Depois, uma saia branca bordada. Uma
pulseira de cristal num dos pulsos, o da mão com que
empunhava a espada, e colares de contas de madeira no
pesco­ço. Deixou soltos os cabelos, ainda húmidos.
A nova Prioresa não a via desde o seu décimo sétimo
aniversário. Serviu-se de vinho para ganhar coragem e
viu o seu reflexo na lâmina da sua faca de mesa.
Lábios cheios. Olhos de mel de carvalho, sobrancelhas
baixas e retas. O nariz era fino na ponta e largo na
extremidade. Todas estas coisas re­conhecia. Agora,
porém, via pela primeira vez como mudara à medida que
entrara na idade adulta. Com a maturidade, as suas
maçãs do rosto haviam-se tornado mais pronunciadas e
as curvas suaves da sua juven­tude tinham desaparecido.
O seu rosto também estava mais marcado, como se
tivesse passado fome, mas um tipo de fome que só os
guerreiros do Priorado conheciam.
Tinha o aspeto das mulheres que lhe haviam servido
de modelo quan­do era mais nova. Como se fosse feita de
pedra.
— Pronta, irmã?
O homem tinha regressado. Ead alisou a saia.
— Sim. Leva-me até ela.

***

Quando Cleolind Onjenyu fundara o Priorado da


Laranjeira, abando­nara a sua vida de Princesa do Sul e
desaparecera com as suas damas no Vale de Sangue. E
assim haviam denominado o seu refúgio, num gesto de
desafio a Galian. Na altura da sua chegada, os cavaleiros
das ilhas de Inysca faziam os seus votos em edificações
chamadas priorados. Galian tencionava fundar o primeiro
priorado do Sul em Yikala.
Fundarei um priorado diferente, dissera Cleolind, e
nenhum cavaleiro cobarde conspurcará o seu jardim com
a sua presença.
A própria Mãe fora a primeira Prioresa. A segunda
fora Siyāti uq-Nāra, de quem tantos irmãos e irmãs do
Priorado, incluindo Ead, se consideravam descendentes.
Após a morte de cada Prioresa, eram as Damas
Vermelhas que escolhiam a Prioresa seguinte.

A Prioresa estava sentada à mesa com Chassar.


Quando viu Ead, levantou-se e pegou-lhe nas mãos.
— Filha amada. — Beijou-a na face. — Bem-vinda a
Lasia.

Ead retribuiu o gesto.

— Que a chama da Mãe vos dê vida longa, Prioresa.

— E a ti também.

Olhos cor de avelã examinaram-na, registando as


mudanças, e depois a Prioresa regressou ao seu lugar.

Mita Yedanya, anteriormente a munguna, a


presumível herdeira do cargo, devia estar na sua quinta
década de vida. Tinha a constituição de um espadachim,
ombros largos e corpo comprido. Tal como Ead, tinha
ascendência lasiana e ersyri, e a pele da cor de areia
banhada pelo mar. O seu cabelo preto, agora raiado de
prata, estava preso para trás com um gancho de
madeira.

Sarsun deu-lhe as boas-vindas com um chilrear do


seu poleiro. Chassar estava a comer yogush com
cordeiro, mas parou para lhe sorrir. Ead sentou-se ao seu
lado e um Filho de Siyāti pôs uma tigela de guisado de
jicama à sua frente.

A mesa estava coberta de pratos de comida. Queijo


branco, tâmaras com mel, alperces, pão quente sem
fermento coberto com grão-de-bico esmagado, arroz com
cebolas e tomates maduros, peixe seco ao sol, amêijoas
cozidas a vapor, tiras de banana vermelha
condimentadas... Sabores de que sentira falta durante
quase uma década.

— Partiu uma rapariga, regressou uma mulher —


disse a Prioresa, enquanto o Filho de Siyāti servia a Ead
tanta comida quanta cabia no seu prato. — Detesto ter
de te apressar, mas temos de saber as circuns­tâncias em
que deixaste Inys. O Chassar disse-me que foste banida.

— Fugi para evitar a prisão.

— Que aconteceu, criança?

Ead serviu-se de vinho de tâmaras de um


decantador, dando a si mesma alguns segundos para
pensar. Começou por falar de Truyde utt Zeedeur e do
seu caso com o escudeiro. Falou-lhes de Triam Sulyard e
da sua viagem ao Oriente. Falou-lhes da Tábua de
Rumelabar e da teoria que Truyde elaborara, da sua
história sobre o equilíbrio cósmico, o fogo e as estrelas.
— Isso pode ter algum peso, Prioresa — observou
Chassar, pensativo. — Há, de facto, épocas de bonança
em que a árvore dá frutos abundan­tes... estamos numa
delas agora... e períodos em que dá menos. Houve dois
desses períodos de escassez, um deles logo após a
Grande Desolação. Esta teoria do equilíbrio cósmico
talvez ajude a explicar o facto.
A Prioresa pareceu contemplar a possibilidade, mas
não deu voz aos seus pensamentos.
— Continua, Eadaz.
Ead prosseguiu. Contou-lhes do casamento e do
assassinato, da filha concebida e da sua perda. Do
encontro dos Duques e do que Combe lhe insinuara sobre
as suas intenções para com Sabran.
Deixou de fora algumas coisas, claro.
— Agora que ela já não pode conceber, a sua
legitimidade está amea­çada. Pelo menos uma pessoa no
palácio, o tal Copeiro, tentou matá-la, ou assustá-la.
Temos de enviar outras irmãs, ou estou convencida de
que os Duques Espirituais tentarão apoderar-se do trono.
Agora que sabem o seu segredo, ela está à sua mercê.
Poderiam usá-lo para a chantagear. Ou usurpar o seu
poder.
— Guerra civil — murmurou a Prioresa, franzindo os
lábios. — disse à nossa falecida Prioresa que isso
aconteceria mais cedo ou mais tarde, mas ela recusou-se
a ouvir. — Serviu-se de uma fatia de melão. Não nos
voltaremos a intrometer nos assuntos de Inys.
Ead estava certa de ter ouvido mal.
— Prioresa... posso perguntar o que quereis dizer?
— Quero dizer exatamente o que disse. Que o Priorado
não voltará a interferir nos assuntos de Inys.
Confusa, Ead olhou para Chassar, que, de repente, se
demonstrou profundamente interessado na sua comida.
— Prioresa... — Fez um esforço para não quebrar a
voz. — Não es­tais a sugerir que abandonemos o Reino
das Virtudes a este destino incerto?
Não houve resposta.
— Se for descoberto que Sabran não pode gerar uma
filha, não só haverá uma guerra civil em Inys, como
também um perigoso cisma no Reino das Virtudes. Serão
criadas diferentes fações para apoiar os di­ferentes
membros dos Duques Espirituais. Até os Condes
Provinciais podem decidir lutar pelo trono. Os profetas da
ruína invadirão as cidades. E com todo o caos, Fýredel
tomará o poder.
A Prioresa mergulhou os dedos numa tigela de água
para limpar o sangue do melão vermelho.
— Eadaz — disse ela —, o Priorado da Laranjeira é a
primeira linha de defesa contra os wyrms. Tem sido
durante mil anos. — Fitou Ead nos olhos. — Não lhe
compete sustentar monarquias decadentes. Nem
interferir nas guerras de outros países. Não somos
políticos, nem guarda-costas, nem mercenários. Somos
portadores da chama sagrada.
Ead não disse nada.
— Como o Chassar referiu, os registos indicam que
houve períodos de escassez no Priorado. Se os nossos
estudiosos não estiverem engana­dos, haverá outro em
breve. É provável que estejamos em guerra com o
Exército Draconiano justamente nessa altura. Talvez com
o próprio Inominável. Devemos estar preparados para a
batalha mais cruel des­de a Ascensão das Sombras. Por
isso, temos de concentrar os nossos esforços no Sul e
conservar o máximo de recursos possível. Temos de ser
capazes de resistir à tempestade que se aproxima de
nós.
— Claro, mas...
— Portanto — interrompeu a Prioresa —, não enviarei
nenhuma irmã para os horrores de uma guerra civil no
Reino das Virtudes para salvar uma rainha que falhou
miseravelmente. Nem irei arriscar que sejam exe­cutadas
por heresia, quando podiam passar o tempo a caçar os
Sombras Ocidentais. Ou a apoiar os nossos velhos
amigos nas cortes do Sul.
— Prioresa — insistiu Ead, descontente —,
concordareis que o obje­tivo do Priorado é proteger a
humanidade.
— Derrotando as bestas draconianas deste mundo.
— Para as derrotarmos, precisamos de estabilidade
no mundo. O Priorado é a principal proteção contra os
wyrms, mas não podemos vencer sozinhos — enfatizou
Ead. — O Reino das Virtudes tem poderio militar e
domina os mares. A única maneira de manter o mundo
unido, e evitar que ele se destrua por dentro, é manter
Sabran Berethnet viva e no tro...
— Basta.
Ead não disse mais nada. Seguiu-se um silêncio na
sala que pareceu não ter fim.
— És tenaz nas tuas convicções, Eadaz. Tal como Zāla
— disse a Prioresa, mais suavemente. — Respeitei a
decisão da nossa falecida Prioresa de te enviar para Inys.
Ela acreditava que esse era o desejo da Mãe... mas eu
penso de forma diferente. É hora de nos prepararmos. É
altura de protegermos os nossos e de nos equiparmos
para a guerra. Não quero que repitas orações
repugnantes em Ascalon por mais uma temporada.
— Então foi tudo em vão. Anos e anos a mudar lençóis
— disse Ead com aspereza — para nada.
O olhar da Prioresa gelou-lhe a alma. Chassar aclarou
a voz.
— Mais vinho, Prioresa?
Ela assentiu levemente, e ele serviu-a.
— Não foi para nada. — A Prioresa fez sinal para que
ele parasse quando o copo estava quase cheio. — A
minha antecessora era da opinião de que a crença dos
Berethnet poderia ser verdadeira, e que essa
possibilidade justificava a proteção das suas rainhas,
mas, verdade ou não, acabaste de nos dizer que Sabran
é a última da sua dinastia. O Reino das Virtudes cairá,
agora ou num futuro próximo, quando a sua esterilidade
for tornada pública.
— E o Priorado nada fará para tentar impedir a queda.
Decidistes que devemos ficar a assistir enquanto metade
do mundo mergulha no caos.
— Não está ao nosso alcance alterar o curso natural
da História — disse a Prioresa, erguendo a taça. — Temos
de nos preocupar com o Sul agora, Eadaz. Pelo nosso
objetivo.
Ead sentou-se com rigidez.
Pensou em Loth e em Margret. Em crianças inocentes
como Tallys.
Em Sabran, sozinha e de luto na sua torre. Todos
condenados.
A antiga Prioresa não teria tolerado tal indiferença. Ela
sempre acre­ditara que a intenção da Mãe era proteger e
apoiar a humanidade em todo o mundo.
— O Fýredel despertou — disse a Prioresa, enquanto
Ead cerrava os dentes. — Os seus irmãos, Valeysa e
Orsul, também foram vistos, o primeiro no Oriente e o
segundo no Sul. Falaste-nos desse Wyrm Branco, que
devemos considerar um novo poder, associado aos
outros. Devemos eliminar os quatro para apagar a chama
do Exército Draconiano.
Chassar acenou com a cabeça.
— Em que parte do Sul está Orsul? — perguntou Ead,
quando con­seguiu controlar a sua raiva.
— Foi visto pela última vez perto do Portão de
Ungulus.
A Prioresa limpou os cantos da boca com um pano.
Um Filho de Siyāti tirou-lhe p prato.
— Eadaz — disse ela —, completaste uma missão de
grande im­portância para o Priorado. Minha querida, está
na altura de vestires o manto de Dama Vermelha. Não
tenho dúvidas de que serás uma das nossas melhores
guerreiras.
Mita Yedanya era uma mulher brusca, rápida em
tudo. Concedeu a Ead o seu sonho como se fosse fruta
numa bandeja. Os seus anos em Inys haviam-na
aproximado mais do que nunca daquele manto.
No entanto, escolhera o momento decisivo para o
fazer. A Prioresa usava-o para se conciliar com ela. Como
se Ead fosse uma criança que pudesse ser distraída por
um brinquedo.
— Obrigada — disse Ead. — Sinto-me honrada.
Ead e Chassar comeram em silêncio por um tempo,
e Ead provou o vinho turvo.
— Prioresa — disse ela finalmente. — Tenho de vos
perguntar o que aconteceu à Jondu. Regressou a Lasia?
Quando a Prioresa desviou o olhar, a boca uma linha
reta, Chassar abanou a cabeça.
— Não, minha querida — disse ele, pousando uma
mão sobre a dela. — A Jondu está com a Mãe agora.
Algo dentro de Ead morreu de repente. Tinha a
certeza, a certeza de que Jondu iria regressar ao
Priorado. A determinada, feroz e destemida Jondu.
Mentora, irmã, amiga fiel.
— De certeza? — perguntou, baixando a voz.
— Sim.
Sentiu uma dor profunda no estômago. Fechou os
olhos, imaginou que a dor era uma vela e apagou-a.
Mais tarde. Deixaria a dor desabrochar quando
tivesse espaço para respirar.
— Mas não morreu em vão — acrescentou Chassar.
— Ela saiu em busca da espada de Galian, o Impostor.
Não encontrou Ascalon em Inys, mas encontrou outra
coisa.
Sarsun bateu com as patas no seu poleiro. Paralisada
pela notícia, Ead olhou para o objeto que o pássaro
detinha a seu lado.
Uma caixa.
— Não sabemos como abri-la — reconheceu Chassar
enquanto Ead se levantava. — Um enigma interpõe-se
entre nós e os seus segredos.
Lentamente, Ead aproximou-se da caixa e passou um
dedo ao longo do relevo da sua superfície. O que um olho
destreinado veria como mera decoração, ela sabia ser
selinyi, a antiga língua do Sul, com as letras entrelaçadas
e sobrepostas para tornar a leitura ainda mais difícil.

uma chave sem fechadura ou cavilha


para erguer os mares em tempos de dor
fecha-se em névoa salgada e vazia
abre-se com uma lâmina de ouro em fulgor

— Imagino que tenham experimentado todas as facas


do Priorado — disse Ead.
— Sim.
— Então talvez se refira a Ascalon.
— Dizia-se que Ascalon tinha uma lâmina de prata —
respondeu Chassar, suspirando. — Os Filhos de Siyāti
estão em busca de respostas nos arquivos.
— Temos de rezar para que as encontrem — disse a
Prioresa. — Se a Jondu estava disposta a morrer para nos
trazer esta caixa, deve ter pensado que a podíamos abrir.
Devota até ao fim. — Olhou para Ead. — Por agora,
Eadaz, tens de ir comer da árvore. Após oito anos, o teu
fogo deve estar apagado. — Fez uma pausa. — Gostarias
que alguma das tuas irmãs fosse contigo?
— Não — disse Ead. — Eu vou sozinha.

***

A tarde deu lugar à noite. Com as estrelas a brilhar


sobre o Vale de Sangue, Ead começou a descida.
Mil passos levaram-na ao fundo do vale. Os seus
pés descalços afundaram-se na relva e na terra macia.
Parou um momento para res­pirar o ar da noite e depois
baixou a túnica.

O vale estava coberto de flores brancas. A


laranjeira erguia-se impo­nente, os seus ramos abertos
como mãos. A cada passo que dava, sentia um calor
cada vez mais abrasador na garganta. Atravessara meio
mun­do para regressar àquele lugar, à fonte do seu poder.

A noite pareceu envolvê-la. Caiu de joelhos e


cravou os dedos dos pés na terra, lágrimas de alívio
escorrendo-lhe pelo rosto, e cada respiração como uma
faca sendo-lhe cravada na garganta. Esqueceu-se de
todas as pessoas que tinha conhecido. Só existia a
árvore. Aquela de onde brotava a força. Era o seu único
objetivo, a razão da sua existência. E chamava-a, ao fim
de oito anos, prometendo-lhe a chama sagrada.

Algures por perto, a Prioresa, ou uma das Damas


Vermelhas, estaria a vigiar. Teriam de verificar se Ead
ainda era digna da sua posição. Só a árvore podia decidir
quem o era.

Ead mostrou-lhe as palmas das mãos e esperou, tal


como a colheita espera pela chuva.

Volta a encher-me com o teu fogo. Trazia a oração


no coração. Deixa-me ser tua serva.

A noite caiu num silêncio total. E então,


lentamente, como se estivesse a mergulhar na água, um
fruto dourado caiu do alto.

Ela apanhou-o com as duas mãos. Conteve uma


exclamação e afundou os dentes na polpa.
Era como morrer e renascer. O sangue da árvore
espalhou-se pela sua língua, abafando as chamas na sua
garganta. As veias tornaram-se douradas. E tão
rapidamente como abafava um fogo, acendia outro, um
fogo que lhe percorria o corpo. E o fogo abriu-a por
dentro, como um molde de barro, e fez o seu corpo gritar
ao mundo.

E o mundo à sua volta respondeu.


40
Este

A chuva caía sobre o Mar do Sol Trémulo. Era meio-


dia, mas a Frota do Olho de Tigre mantinha as luzes
acesas.
Laya Yidagé atravessou o Perseguição. Enquanto a
seguia, tremendo no seu manto encharcado, Niclays não
pôde deixar de olhar para o céu negro, como fazia todos
os dias havia semanas.
Valeysa, a Angustiada, despertara. A visão dela acima
dos navios, can­tando e infernal, ficaria gravada na sua
mente para sempre.
Vira pinturas suficientes para conseguir reconhecê-la.
Com escamas de espinhos laranja e dourado queimados,
era uma centelha viva, tão brilhante como se tivesse
acabado de ser cuspida do Monte do Pavor.
Agora, estava de volta e, a qualquer momento,
poderia reaparecer e reduzir o Perseguição a cinzas.
Poderia, pelo menos, ser mais rápida do que qualquer
morte horrível que os piratas inventariam para ele se ti­‐
vesse a infelicidade de os irritar, Estava no navio há
semanas e até então conseguira não ter a sua língua
cortada ou uma mão decepada, mas vivia na expetativa.
O seu olhar disparou para o horizonte. Três navios de
ferro seiiki­nes perseguiam-nos havia dias, mas, como a
Imperatriz Dourada pre­vira, não se tinham aproximado o
suficiente para estabelecer contacto. Agora, o
Perseguição navegava novamente para o oriente, na
direção de Kawontay, onde os piratas venderiam o
dragão lacustre. Niclays não parava de pensar no que
iriam fazer com ele.
A chuva açoitava-lhe os óculos. Esfregou-os, sem
conseguir ver me­lhor, e correu atrás de Laya.
A Imperatriz Dourada havia chamado os dois para a
sua cabana, onde um fogão ardia para combater o frio.
Estava à cabeceira da mesa, vestida com um casaco
branco e um chapéu de pele de lontra.
— Marlua — disse ela —, senta-te.
Niclays mal tinha aberto a boca desde que Valeysa o
deixara com um nó no estômago, mas agora reagiu
quase sem dar por isso:
— Falais seiikine, honrada capitã?
— Claro que falo seiikine — disse ela, sem levantar os
olhos da mesa, onde havia um mapa do oriente. —
Tomas-me por idiota?
— Bem... não. Mas a presença da intérprete levou-me
a acreditar...
— Tenho uma intérprete para que os meus reféns me
tomem por idiota. A Yidagé não fez bem o seu trabalho?
— Não, não — respondeu Niclays, surpreendido. —
Não, honrada Imperatriz Dourada. Fê-lo muito bem.
— Então tomas-me por idiota.
Niclays não conseguiu encontrar palavras, por isso
calou-se. A capitã levantou finalmente os olhos.
— Senta-te.
Ele sentou-se. Fitando-o, tirou a faca do cinto e
começou a limpar as unhas compridas, que estavam
pintadas de preto.
— Passei trinta anos no mar — disse ela. — Já lidei
com toda a gen­te, desde pescadores a vice-reis. Aprendi
quem torturar, quem matar, e quem me contará os seus
segredos ou partilhará a sua riqueza comigo sem
derramamento de sangue. — Girou a faca na mão. —
Antes de os piratas me capturarem, eu geria um bordel
em Xothu. Conheço as pessoas melhor do que elas se
conhecem a si próprias. Conheço as mu­lheres. Também
conheço os homens, do cérebro ao pénis. E sei como os
julgar quase à primeira vista.
Niclays engoliu em seco.
— Se pudéssemos deixar os pénis fora disto... —
disse, com um sorri­so forçado. — Posso ser velho, mas
continuo a gostar do meu.
A Imperatriz Dourada respondeu com uma
gargalhada.
— Tens piada, Marlua. Vocês, do outro lado do Abismo,
estão sempre a rir. Não admira que tenham tantos bobos
na corte. — Os olhos negros dela penetraram-no. — Eu
vejo-te. Sei o que queres, e não tem nada que ver com o
teu pénis. Tem que ver com o dragão que apanhámos em
Ginura.
Niclays achou melhor ficar em silêncio. Não seria
sensato encarar uma lunática armada de ânimo leve.
— Que pretendes do dragão? — perguntou ela. —
Saliva, talvez, para um elixir do amor? O cérebro, para
curar hemorragias?
— Qualquer coisa. — Niclays aclarou a voz. — Sou
alquimista, sabeis disso, honrada Imperatriz Dourada.
— Alquimista — repetiu ela, cáustica.
— Sim — disse Niclays, com a sua dignidade um
pouco ferida. — Um mestre do método. Estudei a arte da
alquimia na universidade.
— Tinha a impressão de que tinhas estudado
anatomia. Foi por isso que te dei uma profissão. E deixei-
te viver.
— Ah, sim — apressou-se a responder —, sou
anatomista, e um bom anatomista, garanto-vos, um
gigante na minha área... mas também es­tudei alquimia
como passatempo. Há muitos anos que ando à procura
do segredo da vida eterna. Ainda não consegui criar um
elixir, mas estou convencido de que os dragões do
Oriente poderiam ajudar-me a fazê-lo. Os seus corpos
levam milhares de anos a envelhecer... e se eu pudesse
recriar isso...
Ele parou de repente, à espera da avaliação dela. Não
tirava os olhos de cima dele.
— Então queres convencer-me de que tens mais
cérebro do que co­ragem. Claro que a coisa mais fácil a
fazer seria abrir-te o crânio e ver por mim própria.
Niclays não se atreveu a responder.
— Acho que podíamos fazer um acordo, Marlua.
Talvez sejas do tipo de acordos. — A Imperatriz Dourada
meteu a mão no bolso do casa­co. — Disseste-me que isto
te foi legado por um amigo. Fala-me dele. — Tirou o
recorte escrito. Na sua mão estava tudo o que restava de
Jannart. — Quero saber quem te deu isto — insistiu, e
quando ele não respondeu, aproximou-o do fogo. —
Responde-me.
— O amor da minha vida — disse Niclays, com o
coração a martelar no peito. — Jannart, Duque de
Zeedeur.
— Sabes o que é?
— Não, Só sei que ele mo deixou.
— Porquê?
— Quem me dera saber.
A Imperatriz Dourada estreitou o olhar.
— Por favor — disse Niclays, roucamente. — Esse
fragmento de texto é tudo o que me resta dele.
Ela sorriu. Pousou o fragmento sobre a mesa. Ao ver
a delicadeza com que o manuseava, Niclays percebeu
que ela nunca o teria atirado para o fogo.
Idiota, pensou. Nunca demonstres as tuas fraquezas.
— Este fragmento — disse a Imperatriz Dourada —
faz parte de um texto oriental muito antigo sobre uma
fonte de vida eterna. Uma amo­reira. — Ela deu-lhe uma
palmadinha. — Há muitos anos que ando à procura deste
fragmento. Esperava que contivesse direções, mas não
revela a localização da árvore. Tudo o que faz é
completar a história.
— Não poderia ser... uma lenda, honrada Imperatriz
Dourada?
— Todas as lendas contêm alguma verdade. Sei-o
muito bem. Há quem diga que comi o coração de um
tigre e que isso me fez enlouquecer. Outros dizem que
sou um fantasma da água. A verdade é que desprezo os
chamados deuses do Oriente. Todos os rumores à minha
volta co­meçaram por aí. — Pousou um dedo sobre o
texto. — Duvido de que a amoreira tenha crescido do
coração do mundo, como diz a história. Mas não duvido
de que contém o segredo da vida eterna. Como vês, não
precisas de mutilar um dragão.
Niclays não conseguia assimilar tudo. Jannart deixara-
lhe a peça-chave da alquimia.
A Imperatriz Dourada olhava fixamente para ele, e
Niclays notou pela primeira vez que havia entalhes ao
longo do seu braço de madeira. Ela fez um gesto para
Laya, que retirou uma caixa de madeira dourada de
debaixo do trono.
— Aqui está a minha oferta. Se conseguires decifrar
este enigma e encontrar o caminho para a amoreira —
disse a Imperatriz Dourada —, permitir-te-ei beber do
elixir da vida. Partilharás do nosso tesouro.
Laya levou a caixa até Niclays e levantou a tampa. Lá
dentro, envolto em seda de água, havia um belo livro. Na
capa de madeira brilhavam os restos de uma amoreira
em folha de ouro. Niclays tirou-o da caixa com grande
reverência. Estava encadernado ao estilo seiikine, com as
folhas cosidas a uma lombada aberta. As páginas eram
de seda. Quem o criara pretendia que durasse muitos
séculos... e durara.
O livro teria sido um sonho para Jannart.
— Dei todos os significados possíveis a todas as
palavras possíveis em seiikine antigo, e ainda assim tudo
o que consigo tirar dele é uma história — disse a
Imperatriz Dourada. — Talvez uma mente mêntica lhe
possa dar outra interpretação. Ou talvez o amor da tua
vida te tenha enviado alguma mensagem que ainda não
tenhamos ouvido. Traz-me uma res­posta daqui a três
dias, ao amanhecer, ou talvez descubras que me cansei
do meu novo cirurgião. E quando me canso de uma coisa,
ela não dura muito neste mundo.
Com o estômago a encolher, Niclays passou os
polegares sobre o livro.
— Sim, honrada Imperatriz Dourada — murmurou.
Laya acompanhou-o até lá fora, onde o ar era frio e
cortante.
— Bem — disse Niclays —, suspeito de que este será
um dos nossos últimos encontros, Laya.
Ela franziu a testa.
— Estás a desistir, Niclays?
— Não vou resolver este mistério em três dias, Laya.
Mesmo que tives­se trezentos, também não conseguiria.
Laya agarrou-o pelos ombros, com tanta força que
Niclays congelou.
— Aquele Jannart, o homem que amavas — disse ela,
olhando-o nos olhos —, achas que ele gostaria que
desistisses ou que arriscasses?
— Eu não quero arriscar! Não percebes? Será que
ninguém no mundo percebe isso, demónios? Tudo o que
fiz na vida, tudo o que fui, tudo o que sou... é por causa
dele. Ele já era alguém antes de me conhecer. Eu não
sou ninguém sem ele. Estou farto de viver sem ele ao
meu lado. Ele deixou-me por aquele livro e, pelo Santo,
eu não o perdoei. Penso nisso todos os minutos de todos
os dias. — A sua voz falhou. — Vocês, lasianos, acreditam
em vida após a morte, não é?
Laya olhou para ele.
— Alguns de nós acreditam. O Pomar dos Deuses.
Pode ser que ele esteja lá à tua espera. Ou talvez não
esteja em lugar nenhum. Independentemente do que
tenha acontecido com ele, tu ainda estás aqui. E estás
aqui por uma razão. — Pousou a mão calejada na sua
maçã do rosto. — Tens um fan­tasma, Niclays. Não te
tornes tu próprio um também.
Há quantos anos é que ninguém lhe tocava no rosto
ou olhava para ele com a mínima simpatia?

— Boa noite — respondeu —, e obrigado, Laya.


Foi-se embora e, no seu canto do convés, deitou-se
de lado e mordeu o punho. Fugira de Mentendon. Fugira
do Oeste. Mas, por mais longe que fosse, o seu fantasma
perseguia-o.
Era demasiado tarde. A dor conduzira-o à loucura.
Havia muitos anos que estava louco. Perdera a cabeça na
noite em que encontrara Jannart morto no Sol
Resplandecente, a estalagem onde tinham criado o seu
ninho de amor.
Tinha passado uma semana desde o dia em que
Jannart deveria ter regressado da sua viagem, mas
ninguém o tinha visto. Não o encon­trando na corte, e
depois de Aleidine ter confirmado que não estava em
Zeedeur, Niclays dirigiu-se ao único sítio onde poderia
estar.
A primeira coisa que notou foi o cheiro a vinagre. Um
médico com uma máscara de peste estava à porta do
quarto, pintando asas verme­lhas na porta. E quando
Niclays entrou a correr, deixando-o para trás, encontrou
Jannart, deitado como se estivesse a dormir, com as
mãos vermelhas apertadas no peito.
Jannart mentira a toda a gente. A biblioteca onde
esperava encontrar respostas não ficava em Wilgastrōm,
mas em Gulthaga, a cidade arra­sada durante a erupção
do Monte do Pavor. Sem dúvida que teria pen­sado que
não corria perigo nas ruínas, mas devia ter pensado
melhor Enganara a sua família e o homem que amava.
Tudo para que pudesse amarrar uma ponta da história.
Nas galerias abandonadas de Gulthaga, um wyvern
acomodara-se para dormir. Uma mordida fora suficiente.
Não havia cura. Jannart sabia-o, e tentara partir
antes que o seu san­gue começasse a ferver e a sua alma
a inchar. Por isso, disfarçara-se e fora ao mercado negro
comprar um veneno chamado pó da eternidade, que
proporcionava uma morte pacífica.
Niclays tremeu. Ainda conseguia ver aquela imagem
em porme­nor. Jannart na cama, na cama deles. Numa
das mãos, o medalhão que Niclays lhe dera na manhã
seguinte ao primeiro beijo, com o fragmento no interior.
Na outra, o frasco vazio.
O médico, o estalajadeiro e mais quatro pessoas
tiveram de intervir para conter Niclays. Ainda conseguia
ouvir os seus próprios gritos de negação, ainda sentia o
sabor das lágrimas, ainda sentia o cheiro enjoativo do
veneno.
Idiota!, gritara. Seu idiota egoísta. Esperei por ti
Esperei trinta anos por ti...
Teria algum par de amantes conseguido chegar à
Lagoa do Leite, ou seria sempre um sonho?
Agarrou a cabeça com as mãos. Com a morte de
Jannart, perdera uma metade de si próprio. A parte pela
qual valia a pena viver. Fechou os olhos, a cabeça a
latejar, a respiração acelerada... e quando um sono
agitado finalmente o dominou, sonhou com o quarto no
topo do Palácio de Brygstad.
Tem uma mensagem escondida, Clay.
Sentiu o sabor do vinho tinto na sua língua.
A intuição diz-me que é uma parte vital da história.
Sentiu o calor do fogo na sua pele. Viu as estrelas, que
formavam constelações radiantes, tão reais como se o
seu ninho de amor se abrisse para o céu.
Há algo nos caracteres que me parece estranho.
Alguns são maiores, outros mais pequenos, e estão
espaçados deforma irregular.
Niclays abriu os olhos em sobressalto.
— Jan — murmurou. — Oh, Jan. A tua raposa dourada
ainda conserva o seu génio.
41

Sul

Ead estava deitada no seu quarto, encharcada em


suor. O sangue quente corria-lhe nas veias a toda a
velocidade.

Aquilo não era novidade. A febre. Passara oito anos


imersa num ne­voeiro que lhe embotava os sentidos, mas
agora evaporara-se com o sol. Cada lufada de ar era
como o roçar de um dedo na sua pele.
O som da cascata era límpido. Ela podia ouvir os
chamados dos melros-de-bico-vermelho, dos beija-flores
e dos imitadores na floresta. Sentia o aroma dos
ichnéumons e das orquídeas brancas, assim como o
perfume da laranjeira.
Sentia falta de Sabran. A sua lembrança era uma
tortura para a sua pele tão sensível. Deslizou a mão
entre as pernas e imaginou um toque suave no seu
corpo, lábios de seda, a doçura do vinho. Os seus quadris
ergueram-se uma vez antes de afundar na cama.
Depois, permaneceu quieta, ardendo.
Devia estar quase a amanhecer. Mais um dia em que
Sabran estava sozinha em Inys, rodeada por lobos.
Margret não poderia mantê-la se­gura para sempre. Era
perspicaz, mas não uma guerreira.
Tinha de haver uma maneira de convencer a Prioresa
a defender o trono de Inys.
Os criados deixaram um prato de fruta e uma faca na
sua mesa de cabeceira. Durante algum tempo, queimaria
a comida necessária a três homens adultos. Tirou uma
romã do prato.
Ao descascá-la, a sua mão escorregou, a falta de
jeito causada pela febre. A lâmina da faca cortou-lhe o
outro pulso, que sangrou. Uma gota escorreu-lhe pelo
braço até ao cotovelo.
Ead ficou a olhar para ela durante muito tempo, a
pensar. Depois vestiu uma túnica e acendeu uma
lamparina a óleo, estalando os dedos.
Uma ideia começava a ganhar forma.
Nessa noite, os corredores estavam silenciosos. A
caminho do salão de refeições, parou de repente numa
das portas.
Lembrava-se de ter corrido por aquela passagem
com Jondu, levando consigo Aralaq, que choramingava.
Como era assustador aquele corre­dor, sabendo que fora
ali que a sua mãe biológica dera o último suspiro.
Zāla du Agriya uq-Nāra, a munguna antes de Mita
Yedanya. Atrás daquela porta ficava o quarto onde ela
tinha morrido.
Havia muitas irmãs lendárias no Priorado, mas Zāla
era a mais len­dária de todas. Aos dezanove anos, grávida
de dois meses, respondera a um chamamento da jovem
Sahar Taumargam, futura rainha de Yscalin, então
Princesa do Ersyr. Uma tribo Nuram despertara
inadvertidamen­te um par de wyverns nas Pequenas
Montanhas. Zāla encontrara não duas, mas seis das
criaturas que aterrorizavam os nómadas e, contra todas
as probabilidades, acabara com todas elas. Depois,
cavalgara até ao mercado de Zirin para satisfazer o seu
desejo de doces de rosa.
Ead nascera meio ano depois, demasiado cedo. Eras
tão pequena que podia segurar-te com uma mão,
dissera-lhe Chassar certa vez, mas o teu choro podia
derrubar montanhas, minha querida. As mulheres não
deviam aprofundar muito a sua relação com os filhos,
porque o Priorado era uma grande fa­mília, mas Zāla
passava frequentemente doces com mel a Ead e fazia-
lhe carícias quando ninguém estava a olhar.
Minha Ead, sussurrava-lhe, inalando o cheiro a bebé
da sua cabecinha, minha estrela da noite. Se o sol te
incendiasse amanhã, a tua chama iluminaria o mundo.
Essa memória fez Ead sentir falta do contacto
humano. Tinha seis anos quando Zāla morrera na sua
cama.
Apoiou a mão na porta e continuou. Que a tua
chama ascenda e ilumine a árvore.
O salão de refeições estava escuro e silencioso.
Apenas Sarsun lá esta­va, de cabeça baixa contra o peito.
Quando Ead pousou o pé no chão, a águia acordou em
sobressalto.
— Shh.
Sarsun abanou as penas.
Ead colocou a lamparina de óleo junto ao seu
poleiro. Como se a ave tivesse detetado as suas
intenções, deu um salto e aproximou-se para examinar a
caixa do enigma. Ead pegou na faca. Quando aproxi­mou
a lâmina da sua pele, Sarsun soltou um gemido. Fez um
corte na palma da mão, suficientemente profundo para
sangrar generosamente, e pousou a mão sobre a tampa
da caixa.
Fecha-se em névoa salgada e vazia, abre-se com
uma lâmina de ouro em fulgor.
— Siyāti uq-Nāra disse uma vez que o sangue dos
magos era doura­do, sabes — disse a Sarsun. — Para ter
uma lâmina de ouro, tenho de a banhar em sangue.
Ead nunca teria acreditado que um pássaro pudesse
fazer um gesto tão cético até o ver fazer aquela cara.
— Eu sei. Não é mesmo dourado.
Sarsun baixou a cabeça.
As letras gravadas foram-se enchendo até ganharem
a cor e o brilho do rubi. Ead esperou. Quando o sangue
chegou à última palavra, a cai­xa abriu-se no meio. Ead
arfou e Sarsun voou de volta para o seu poleiro enquanto
a caixa continuava a abrir-se como uma flor da noite.
No interior havia uma chave.
Ead apanhou-a do fundo acetinado. Era tão longa
como o seu dedo indicador e tinha uma cabeça em forma
de flor com cinco pétalas. Uma flor de laranjeira. O
símbolo do Priorado.
— Ave de pouca fé — atirou a Sarsun.
O animal bicou-lhe a manga e voou em direção à
porta, onde pousou, olhando-a fixamente.
— Sim?
A águia olhou para ela com os seus olhinhos pequenos
e depois le­vantou voo.
Ead seguiu-a até uma porta estreita e depois desceu
uma escada em espiral que conduzia para baixo. Tinha
uma vaga recordação do sítio. Alguém a levara lá quando
era muito pequena.
Quando chegou ao fundo da escada, deu por si numa
câmara aboba­dada e sem luz.
A Mãe estava diante dela.
Ead ergueu a lamparina para a efígie. Aquela não era
a lânguida Donzela da lenda de Inys. Era a Mãe tal como
fora em vida. O seu cabelo rapado quase até aos ossos,
um machado numa mão e uma espa­da na outra. Estava
vestida para a batalha, com as vestes dos guerreiros da
Casa de Onjenyu. Guardiã, guerreira e líder nata: assim
era a verda­deira Cleolind de Lasia, filha de Selinu, a
Guardiã do Juramento. Entre os seus pés estava uma
estatueta de Washtu, a deusa do fogo.
Cleolind nunca fora enterrada no Santuário de Nossa
Senhora. Os seus ossos jaziam ali, na sua amada terra
natal, num sarcófago de pedra por baixo da estátua. A
maior parte das estátuas funerárias mostrava o defunto
deitado, mas esta não. Ead levantou a mão para tocar na
espada e depois olhou para Sarsun.
— Então?
A ave inclinou a cabeça para um lado e Ead baixou a
lamparina, pro­curando o que quer que estivesse a
indicar.
O sarcófago estava sobre um pedestal. E diante do
pedestal havia uma fechadura cercada por um entalhe
quadrado. Ead olhou para Sarsun, que bateu com a
garra, ajoelhou-se e introduziu a chave na fechadura.
Quando a viu rodar, sentiu a nuca a suar. Respirou
fundo e continuou até ao fim.
Sob o sarcófago, um compartimento abriu-se e
deslizou para a frente. No interior, havia outra caixa de
ferro. Ead rodou o fecho, com a forma de uma flor de
laranjeira, e abriu-a.
No interior havia uma joia. A sua superfície era branca
como a ma­drepérola, ou como a névoa presa numa conta
de vidro.
Sarsun soltou um gorgolejo. Ao lado da joia estava um
pergaminho do tamanho do seu dedo mindinho, mas Ead
mal o viu. Absorvida pela luz que envolvia a joia,
estendeu a mão para a agarrar com dois dedos.
Assim que lhe tocou, um grito escapou-lhe dos lábios.
Sarsun também gritou. Ead caiu diante da Mãe, os dedos
agarrados à joia como uma língua ao gelo. A última coisa
que ouviu foi um bater de asas.

***

— Toma, minha querida — disse Chassar, estendendo


uma chávena de leite de nozes. Aralaq estava estendido
na cama, com a cabeça apoiada nas patas dianteiras.
A joia estava sobre a mesa. Ninguém lhe tocara.
Chassar, alertado por Sarsun, encontrara-a inconsciente
e levara-a para o quarto. Os seus dedos não haviam
largado a joia até ao momento em que recuperara a
consciência.
Agora, segurava nas suas mãos a tradução do
pergaminho na caixa. O lacre estava quebrado. O suporte
da mensagem era um papel quebra­diço com um brilho
estranho e, segundo os estudiosos, estava escrito em
seiikine antigo, com algumas palavras intercaladas em
selinyi.

Saudações, honrada Siyāti, querida irmã da há


muito honrada e erudita Cleolind.
Neste dia, o terceiro dia da primavera do vigésimo
ano do reinado da hon­rada Imperatriz Mokwo, Cleolind e
eu aprisionámos o Inominável com duas joias sagradas.
Não o pudemos destruir porque o seu coração não foi
atraves­sado pela espada. Por mil anos ficará aprisionado,
e nem mais um amanhecer.
É com pesar que vos envio os restos mortais da
nossa querida amiga e a sua joia minguante para a
guardardes até ao regresso do Inominável. Encontrareis
a outra em Komoridu e anexarei um mapa celestial para
guiar os vossos des­cendentes até lá. Devereis usar tanto
a espada como as joias contra ele. As joias ficarão
ligadas ao mago que as tocar e só a morte poderá mudar
o seu portador.
Rezo para que os nossos descendentes, a séculos
de distância, aceitem este fardo com vontade e coragem.
Eu sou
Neporo, Rainha de Komoridu.
— Todos estes anos a Mãe guardou o aviso.
Tínhamos a verdade sob os nossos pés — disse a
Prioresa, a voz fina e grave. — Porque é que uma irmã se
deu a tanto trabalho para a esconder? Porque escondeu
a chave do túmulo e foi enterrá-la em Inys, nada menos?
— Talvez para a proteger — sugeriu Chassar. — De
Kalyba. Silêncio.
— Não menciones esse nome — disse a Prioresa,
baixinho. — Aqui não, Chassar.
Chassar baixou a cabeça.
— Tenho a certeza — acrescentou — de que uma
irmã ter-nos-ia deixado algo mais, mas talvez estivesse
nos arquivos. Antes do dilúvio.
A Prioresa andava de um lado para o outro com a
sua túnica vermelha.
— Não havia nenhum mapa celestial na caixa. —
Passou os dedos so­bre o colar de ouro em volta do
pescoço. — E, no entanto... a mensagem disse-nos muito.
Se formos acreditar no que essa Neporo de Komoridu diz,
a Mãe não conseguiu enfiar a espada no coração do
Inominável. Conseguiu fazer o suficiente para o
imobilizar, mas não o suficiente para o impedir de se
erguer novamente.
Por mil anos ficará aprisionado, e nem mais um
amanhecer.
A sua ausência nunca tivera que ver com Sabran.
— O Inominável regressará — disse a Prioresa, quase
interiormente —, mas segundo esta nota podemos
estabelecer o dia exato em que isso acontecerá. Mil anos
a contar do terceiro dia da primavera do vigésimo ano da
imperatriz Mokwo de Seiiki... — Foi em direção à porta. —
Tenho de chamar os nossos sábios. Descobrir quando
Mokwo governou. E talvez conheçam alguma lenda sobre
estas joias.
Ead mal conseguia pensar. Tinha tanto frio como se
tivesse acabado de ser retirada do Mar Pálido.
Chassar reparou.
— Eadaz, dorme mais um pouco — aconselhou, e
beijou-lhe o topo da cabeça. — E não toques na joia por
enquanto.
— Posso ser intrometida — murmurou Ead —, mas não
sou imbecil.
Assim que ele se foi embora, Ead aconchegou-se no
pelo quente de Aralaq, os seus pensamentos um
emaranhado.
— Eadaz — disse Aralaq.
— Sim?
— Não voltes a seguir nenhum pássaro idiota para
lugares escuros.
Sonhou com Jondu numa câmara escura. Ouviu-a
gritar enquanto uma garra em brasa lhe rasgava a carne.
Aralaq acordou-a com um toque de nariz.
— Estavas a sonhar — observou ele, com a voz baixa.
As faces de Ead estavam repletas de lágrimas.
Esfregou-as e aninhou-se no seu pelo.
Dizia-se que o rei de Yscalin tinha uma câmara de
tortura nas pro­fundezas do seu palácio. Fora aí que Jondu
teria encontrado a sua morte. Entretanto, Ead estivera
entre os ornamentos da corte de Inys, recebendo um
salário e vestindo roupa cara. Carregaria esse sentimento
de culpa pelo resto dos seus dias.
A joia parara de brilhar. Ead olhou-a com cautela
enquanto bebia o chá azul-safira que lhe tinham
preparado.
A Prioresa entrou na sala com pressa.
— Não temos nada sobre esta Neporo de Komoridu
nos arquivos — disse sem cerimónias. — Nem sobre essa
joia. Seja o que for, não é magia nossa. — Deteve-se ao
lado da cama. — É algo... desconhecido. Perigoso.
Ead pousou a chávena.
— Não ides gostar do que vou dizer, Prioresa — disse
Ead —, mas Kalyba saberia de alguma coisa.
Mais uma vez, o nome fez a Prioresa enrijecer. Tentou
esconder o desconforto, mas a tensão no seu maxilar
denunciou-a.
— A Bruxa de Inysca forjou Ascalon. Um objeto
imbuído de poder. Essa joia pode ser mais uma das suas
criações — continuou Ead. — Kalyba caminhava por este
mundo muito antes de a Mãe dar o seu primeiro suspiro.
— Isso é verdade. E depois percorreu as alas do
Priorado. E matou a tua mãe biológica.
— Mas ela sabe muitas coisas que nós não sabemos.
— A década passada em Inys amoleceu-te? — atirou a
Prioresa. — A bruxa não é de confiança.
— O Inominável pode estar a chegar. O nosso objetivo,
como irmãs do Priorado, é proteger o mundo. Se tivermos
de lidar com inimigos menores para o fazer, que assim
seja.
A Prioresa olhou para ela.
— Já te disse, Eadaz. O nosso objetivo é proteger o
Sul. Não o mundo.
— Então deixai-me proteger o Sul.
A Prioresa resfolegou e apoiou as mãos na
balaustrada.
— Há outra razão para eu achar que devemos abordar
Kalyba — dis­se Ead. — Sabran sonhava muitas vezes
com a Pérgula da Eternidade. Ela não sabia o que era, é
claro, mas disse-me que tinha visto uma entra­da com
flores de sabra e um lugar terrível mais além. Gostaria de
saber porque assombra a rainha de Inys.
A Prioresa ficou muito tempo parada à janela, rígida
como uma estátua.
— Não precisais de convidar Kalyba para vir aqui —
insistiu Ead. — Deixai-me ir à procura dela. Posso levar o
Aralaq comigo.
A Prioresa franziu os lábios.
— Vai, então — concordou, por fim. — Mas duvido de
que ela te possa dizer alguma coisa, ou que te diga
alguma coisa. O exílio tornou-a ainda mais rabugenta. —
Com um pequeno pano, recolheu a joia. — Guardarei isto
aqui.
Ead teve uma reação inesperadamente agitada.
— Posso precisar do seu poder. Kalyba é uma maga
muito mais poderosa do que eu jamais poderei ser.
— Não. Não arriscarei que isto caia nas mãos dela —
declarou a Prioresa, deixando a joia numa bolsa ao seu
lado. — Terás armas. Kalyba é poderosa, ninguém pode
negar, mas não come da árvore há anos. Tenho fé de que
conseguirás lidar com ela, Eadaz uq-Nāra.
42

Este

Uma gota de suor pendia-lhe da ponta do nariz. No


momento em que Niclays humedecia o pincel e
posicionava a mão por baixo para impedir que a tinta
pingasse na sua obra-prima, Laya entrou com uma
chávena de caldo.
— Não quero interromper, Velho Ruivo, mas há horas
que não comes — disse Laya. — Se desmaiares e caíres
de cara no chão, o teu pequeno mapa será destruído
antes que a capitã possa sequer cuspir nele.
— Este pequeno mapa, Laya, é a chave para a
imortalidade.
— A mim parece-me uma loucura.
— Todos os alquimistas têm loucura nas suas veias,
minha querida. É assim que fazemos as coisas.
Estivera agachado na mesa durante o que lhe
parecera uma eter­nidade, copiando os caracteres
maiores e mais pequenos da História de Komoridu num
rolo de seda gigante, saltando os de tamanho médio. Se
isso não resultasse, era provável que acordasse no fundo
do mar.
Assim que se lembrara do cofre estrelado do Palácio
de Brygstad, sou­bera. Primeiro, tentou dispor os
caracteres de diferentes tamanhos num círculo, como
faziam os astrónomos mênticos, mas o resultado não
fazia sentido. Depois de alguma insistência, Padar, oficial
sepuli, deixara-lhe os seus próprios mapas celestes, que
eram retangulares. Niclays proce­deu então à transcrição
de cada página de texto para um quadrado tra­çado na
seda, mantendo a ordem em que apareciam no livro.
Depois de preencher os quadrados com os caracteres
grandes e pe­quenos, tinha a certeza de que formariam
um mapa de parte do céu.
Suspeitava de que o tamanho do carácter fosse uma
medida do brilho da estrela correspondente, pelo que os
maiores indicariam as mais brilhantes.
Algures sob os seus pés, o dragão começou a debater-
se novamente, como um peixe encalhado na praia,
agitando o barco.
— Maldita criatura — disse Niclays, marcando a
posição do próximo carácter. — Será incapaz de ficar
quieto?
— Deve estar com saudades de ser adorado.
Laya puxou a seda esticada na mão para facilitar a
escrita dele. Observou-o a trabalhar.
— Niclays, como é que o Jannart morreu?
Sentiu aquela dor na garganta que já lhe era familiar,
mas ficava um pouco mais fácil de engolir e dominar
quando tinha algo com que ocu­par a mente.
— Peste.
— Lamento.
— Não tanto quanto eu.
Nunca contara a ninguém sobre Jannart — como
poderia, se ninguém sabia quanto haviam sido próximos?
Mesmo agora, fazia-lhe revirar o estômago, mas Laya
não fazia parte de nenhuma corte real e, estra­nhamente,
ele confiava nela. Ela guardaria o seu segredo.
— Tu terias gostado dele. E ele teria gostado de ti —
disse ele em voz rouca. — O Jannart adorava línguas.
Especialmente as línguas antigas e mortas. Era
apaixonado pelo conhecimento.
Ela sorriu.
— Não são todos vocês, mênticos, apaixonados pelo
conhecimento, Niclays?
— É por isso que as outras nações do Reino das
Virtudes nos detes­tam. Muitos se perguntam como
podemos questionar a base da religião que abraçamos,
mesmo que ela se baseie numa única linhagem de
excecionalidade duvidosa, o que não me parece muito
sensato...
A porta abriu-se e entrou uma rajada de vento. Os
dois apressaram-se a agarrar as páginas. A Imperatriz
Dourada entrou, seguida por Padar, com o rosto e o peito
ensanguentados, e Ghonra, a suposta Princesa do Mar do
Sol Trémulo e capitã do Corvo Branco. Laya assegurara a
Niclays que, por trás da sua beleza única, se escondia
uma sede de sangue igualmente única. A tatuagem na
sua testa era um enigma que ainda não tinham resolvido:
dizia simplesmente «amor».
Niclays manteve a cabeça baixa enquanto ela
passava. A Imperatriz Dourada serviu-se de um copo de
vinho.
— Espero que estejas quase a acabar, Marlua.
— Sim, honrada Imperatriz Dourada — disse Niclays,
fingindo alegria. — Muito em breve saberei o paradeiro
da árvore.
Concentrou-se o mais que pôde, apesar de ter Padar e
Ghonra à per­na. Depois de ter transcrito os últimos
caracteres, soprou suavemente sobre a tinta. A
Imperatriz Dourada trouxe a sua taça de vinho para a
mesa (enquanto Niclays rezava com todo o seu coração
para que ela não a entornasse) e olhou para a sua
criação.
— O que é isto?
Ele baixou a cabeça.
— Honrada Imperatriz Dourada — disse ele —, estou
convencido de que estes caracteres da História de
Komoridu representam as estrelas, o nosso mais antigo
meio de navegação. Se puderem ser comparados com
um mapa celeste existente, creio que vos conduzirão à
árvore.
Ela fitou-o com os olhos escondidos atrás do toucado,
cujas contas criavam sombras circulares na sua testa.
— Yidagé — disse a Imperatriz Dourada a Laya —,
sabes seiikine antigo?
— Pouco, honrada capitã.
— Lê os caracteres.
— Não creio que devam ser lidos como palavras —
interveio Niclays —, mas como...
— Tu crês, Marlua — disse a Imperatriz Dourada. — Os
crentes aborrecem-me. Agora, lê, Yidagé.
Niclays mordeu a língua. Laya passou o dedo sobre
cada carácter.
— Niclays. — Franziu o sobrolho. — Acho que devem
ser lidos como palavras. Há uma mensagem aqui.
Os nervos de Niclays evaporaram-se de imediato.
— Há? — Ajeitou os óculos. — Bem, que é que diz?
— O Caminho dos Proscritos — Laya leu em voz alta —
começa na nona hora da noite. A... joia crescente. —
Estreitou os olhos. — Sim, a joia crescen­te... é plantada
no solo de Komoridu. Partindo do olho da Pega, vai para
sul, em direção à Estrela Sonhadora, e procura debaixo
da... — Quando chegou ao último carácter do último
quadrado, soltou um suspiro. — Oh. Estes são os
caracteres para amoreira.
— Os mapas celestes — disse Niclays, quase sem
fôlego. — Estes pa­drões podem ser comparados com o
céu?
A Imperatriz Dourada olhou para Padar, que estendeu
os seus mapas celestes no chão. Depois de os estudar
durante algum tempo, pegou no pincel ainda húmido e
ligou alguns dos caracteres no papel de seda. Niclays
estremeceu à primeira pincelada, mas depois percebeu o
que estava a ser traçado.
Constelações.
O seu coração bateu no peito como um machado
contra um tronco. Quando Padar terminou, pousou o
pincel e analisou o resultado.
— Compreendes, Padar? — perguntou a Imperatriz
Dourada.
— Compreendo — respondeu ele, e acenou com a
cabeça muito len­tamente. — Sim. Cada quadrado mostra
o céu numa altura diferente do ano.
— E isto? — Niclays apontou para o último quadrado.
— Como se chama esta constelação?
A Imperatriz Dourada trocou um olhar com o seu
oficial, que torceu a boca.
— Os seiikines chamam-lhe Pega. Os caracteres para
amoreira formam-lhe o olho.
Partindo do olho da Pega, vai para sul, em direção à
Estrela Sonhadora, e procura debaixo da amoreira.
— Sim. — Padar contornou a mesa. — O livro deu-nos
um ponto de referência fixo. Como as estrelas se movem
todas as noites, só devemos começar a nossa viagem
quando estivermos mesmo por baixo do olho da Pega, à
nona hora da noite, na altura certa do ano.
Niclays mal podia conter os nervos.
— Que seria...?
— No fim do inverno. Então temos de navegar entre a
Estrela Sonhadora e a Estrela do Sul.
Houve um silêncio profundo e expetante, e a
Imperatriz Dourada sor­riu. Niclays sentiu os joelhos
cederem, fosse pela exaustão ou pelo súbito alívio após
aqueles dias de terror.
Da sua tumba, Jannart mostrara-lhes a estrela de
que precisavam como ponto de referência para a
navegação. Sem ele, a Imperatriz Dourada nunca teria
descoberto como chegar àquele lugar.

Mais uma vez, foi atormentado por dúvidas. Talvez


não devesse ter-lhe mostrado a estrela. Alguém tinha
feito todos os possíveis para impe­dir que aquela
informação saísse do Oriente, e ele colocara-a nas mãos
de bandidos.
— Yidagé, referiste uma joia — disse Ghonra, com os
olhos a brilhar. — Uma joia crescente.
Laya abanou a cabeça.
— Imagino que seja a descrição poética de uma
semente. Uma se­mente que cresce e se torna uma
árvore.
— Ou um tesouro — sugeriu Padar, trocando um
olhar ansioso com Ghonra. — Um tesouro enterrado.
— Padar — disse a Imperatriz Dourada —, diz à
tripulação que se prepare para a missão das suas vidas.
Vamos a Kawontay para nos abastecermos e depois
partimos em busca da amoreira. Ghonra, informa as
tripulações do Pomba Negro, e do Corvo Branco. Temos
uma longa viagem pela frente.
Ambos partiram de imediato.
— Estais... — Niclays clareou a voz. — Estais
satisfeita com a solução, honrada capitã?
— Para já — disse a Imperatriz Dourada —, mas se
no fim deste ca­minho não encontrarmos nada, saberei
quem nos enganou.
— Não tenho intenção de vos enganar.
— Espero que não.
A imperatriz enfiou a mão debaixo da mesa e tirou
um bastão do que parecia ser madeira de cedro.
— Toda a minha tripulação está armada. Este bastão
será a tua arma — disse. — Usa-a bem.
Niclays pegou nele. Era leve, mas parecia capaz de
golpes fortes.
— Obrigado, honrada capitã — respondeu, com uma
vénia.
— A vida eterna espera-nos — disse ela —, mas se
ainda desejas ver o dragão e reivindicar uma parte do
seu corpo, podes ir. Talvez ele nos possa contar mais
sobre a joia da História de Komoridu, ou sobre a ilha.
Yidagé, leva-o.
Saíram do camarote. No momento em que a porta se
fechou atrás delas, Laya agarrou Niclays pelo pescoço e
abraçou-o, esmagando-lhe o nariz com o ombro e
cravando-lhe as contas do colar no peito. Ainda assim,
Niclays não conseguiu evitar rir tanto quanto ela, até
ficar quase sem fôlego.
Tinha o rosto coberto de lágrimas. Era em parte pela
tensão liberta­da, mas também pela euforia de ter
resolvido um enigma. Em todos os seus anos em Orisima,
não conseguira encontrar a chave para o elixir, e agora
acabara de descobrir o caminho que o levaria até ele.
Concluíra o que Jannart começara.
O coração não lhe cabia no peito. Laya tomou-lhe a
cabeça entre as mãos e sorriu de uma forma que lhe
elevou o espírito.
— Tu — disse ela — és um génio, Marlua. Brilhante,
foste brilhante!
Havia piratas por todo o convés. Padar gritava-lhes
ordens em lacus­tre. As estrelas brilhavam no céu límpido,
indicando-lhes o caminho para o horizonte.
— Um génio não — contradisse Niclays, ainda a sentir
a fraqueza nos joelhos. — Apenas louco. E sortudo. —
Deu-lhe uma palmadinha no braço. — Obrigado, Laya.
Pela tua ajuda e por acreditares em mim. Talvez ambos
acabemos a comer do fruto da imortalidade.
O olhar no rosto dela foi um pedido de cautela.
— Talvez. — Sorriu novamente e pousou-lhe uma mão
entre os om­bros para o guiar através da multidão de
piratas. — Vem. Está na hora de receberes a tua
recompensa.
***

Nas profundezas do Perseguição, um dragão lacustre


jazia acorrentado do nariz à ponta da cauda. Niclays
considerara-o um ser magnífico da primeira vez que o
vira na praia. Agora, parecia quase débil.
Laya esperava com ele nas sombras.
— Tenho de voltar — disse ela. — Ficas bem?
Ele apoiou-se no seu novo cajado.
— Claro. A besta está amarrada. — A sua boca estava
seca. — Podes ir.
Ela lançou ao dragão um último olhar antes de enfiar
a mão no casa­co. De dentro, puxou uma adaga revestida
de cabedal.
— Um presente. — Entregou-a, segurando-a pela
lâmina. — Apenas por via das dúvidas.
Niclays aceitou-a. Tivera uma espada em
Mentendon, mas a única vez que usara uma arma fora
nas aulas de esgrima com Edvart, que sempre o
desarmava em segundos. Antes que pudesse agradecer,
Laya já estava a subir os degraus de volta.
O dragão parecia adormecido. Uma crina
emaranhada fluía em tor­no dos seus chifres. O seu rosto
era mais largo do que as cabeças serpenteantes dos
wyrms, e era mais vistoso, com traços decorativos.
Nayimathun, chamara-lhe Laya. Um nome sem
origem clara.
Niclays caminhou em direção à besta, mantendo-se
longe da sua ca­beça. A sua mandíbula inferior estava
meio aberta enquanto dormia, mostrando dentes do
comprimento de um antebraço.
A coroa na sua cabeça estava dormente. Panaya
contara-lhe sobre isso na noite em que vira um dragão
pela primeira vez. Quando iluminada, aquela cúpula
convocava o plano celestial, elevando o dragão em dire­‐
ção às estrelas. Ao contrário dos wyrms, os dragões não
precisavam de asas para voar.
Havia dias que tentava racionalizar isso. Meses.
Talvez a coroa fosse uma espécie de íman, atraída por
partículas no ar ou pelos núcleos de mundos distantes.
Talvez os dragões tivessem ossos ocos, o que lhes
permitia cavalgar ao vento. Esse era o alquimista nele,
teorizando. No entanto, sabia nas suas entranhas que, a
menos que pudesse abrir um dragão, para o ver sob a
lente de um anatomista, era algo que perma­neceria
inexplicável. Magia, para todos os efeitos e propósitos.
Mesmo enquanto estudava a besta, o seu olho abriu-
se e, apesar de tudo, Niclays recuou. O olho da criatura
albergava um cosmos de co­nhecimento: gelo, vazio e
constelação — e nada próximo a humano. A sua pupila
era tão grande como um escudo, rodeada por um brilho
azul.
Por um longo momento, entreolharam-se. Um
homem do Ocidente e um dragão do Oriente. Niclays
sentiu-se dominado pela vontade de cair de joelhos, mas
limitou-se a agarrar o cajado.
— Tu.
A voz era fria e sussurrante. A ondulação de uma
vela.
— Foste tu quem negociou pelas minhas escamas e
sangue. — Uma língua azul-escura tremeluziu por trás
dos dentes. — Tu és o Roos.
Falava em seiikine. Cada palavra era desenhada
como uma sombra ao nascer do sol.

— Sou — confirmou Niclays. — E tu és a grande


Nayimathun. Ou talvez — acrescentou — não tão grande.

Nayimathun observava a sua boca enquanto falava.


Em terra, dissera-lhe Panaya, os dragões ouviam da
mesma forma que os humanos ou­viam debaixo de água.

— Aquele que usa as correntes é mil vezes maior


do que aquele que as governa — disse Nayimathun. — As
correntes são cobardia. — Um baque ecoou pelo galpão.
— Onde está Tané?

— Em Seiiki, suponho. Eu mal a conheço.

— Conheceste-a o suficiente para a ameaçar. Para


tentar manipulá-la em teu benefício.

— Vivemos num mundo cruel, besta. Apenas tentei


negociar — disse Niclays. — Precisava do teu sangue e
de uma escama para fazer o meu trabalho, para
descobrir o segredo da tua imortalidade. Queria que os
humanos tivessem uma hipótese de sobreviver num
mundo governado por gigantes.
— Tentámos defender-te durante a Grande
Desolação. — O olho fechou-se por um momento,
escurecendo o ambiente. — Muitos de vós pereceram.
Mas nós tentámos.
— Podes não ser tão violento como o Exército
Draconiano — disse Niclays —, mas continuas a fazer os
humanos adorar a tua imagem e rezar a ti para que a
chuva faça crescer as colheitas. Como se um ho­mem não
fosse suficientemente grande para ser objeto de
admiração ou adulação.
O dragão bufou por entre as narinas.
E foi então que Niclays tomou a decisão. Apesar de
ter perdido todas as suas ferramentas de alquimista, e
apesar de já estar a caminho de uma fonte de vida
eterna, iria aceitar o que lhe tinha sido negado durante
tanto tempo.
Pousou o cajado e sacou da adaga que Laya lhe dera.
Tinha um cabo lacado e uma lâmina serrilhada de um
lado. Deu uma vista de olhos a todas aquelas escamas.
Quando encontrou uma escama intacta, pousou a mão
sobre ela.
O dragão era macio e fresco ao toque, como um
peixe. Niclays usou a faca para levantar a escama,
revelando um pedaço de carne prateada.
— Não estás destinado a viver para sempre.

Niclays olhou na direção da cabeça.

— Como alquimista, devo discordar — disse ele. —


Eu acredito nas probabilidades, sabes? Mesmo que não
consiga encontrar o elixir da vida no teu corpo, a
Imperatriz Dourada está a caminho da ilha de Komoridu.
Aí encontrará a amoreira e a joia que oculta.

O olho dilatou-se com um clarão.

— A joia — disse o dragão, e algo dentro de si


vibrou. — Falas das joias celestes.
— Joias — repetiu Niclays. — Sim, a joia crescente. —
Baixou a voz. — Que sabes sobre ela?
Nayimathun ficou em silêncio. Niclays pressionou a
lâmina contra a escama, e o dragão contorceu-se tanto
quanto as correntes permitiam.
— Não te direi nada. Apenas que não devem cair nas
mãos de piratas, filho de Mentendon.
Segundo o seu diário, a minha tia recebeu-o de um
homem que lhe disse para o levar para longe do Oriente
e para nunca mais o devolver. As palavras de Jannart
voltaram-lhe à mente, girando na sua cabeça como um
pião. Para nunca mais o devolver.
— Não espero que pares a tua busca. É tarde demais
para isso — disse ela —, mas não deixes que a joia caia
nas mãos daqueles que a usariam para destruir o pouco
que resta do mundo. A água dentro de ti está es­tagnada,
Roos, mas ainda a podes purgar.
Niclays não largou a faca, mas a sua mão
estremeceu.
Estagnada.
O dragão tinha razão. Tudo dentro dele estava
estagnado. A sua vida tinha parado, como um relógio a
cair na água, quando Sabran Berethnet o enviara para
Orisima. Desde então, não tinha sido capaz de resolver
um único mistério. Nem o da vida eterna, nem o da
morte de Jannart.
Ele era um alquimista, resolver mistérios era a sua
especialidade. E nunca mais iria estagnar.
— Basta! — disse entredentes, e cravou a faca.
43

Sul

O armeiro forneceu a Ead um arco de monosso,


uma espada de ferro, um machado gravado com orações
selinyis e uma fina adaga com cabo de madeira. Em vez
da capa verde-azeitona da sua in­fância, agora vestia o
branco de uma postulante, um sinal de que estava a
tornar-se mulher. Chassar, que veio com Sarsun para se
despedir dela, colocou as mãos nos seus ombros.

— Zāla ficaria muito orgulhosa de te ver — disse. —


Em breve, a capa vermelha será tua.
— Se voltar viva.
— Irás voltar. Kalyba é uma criatura terrível, mas já
não é tão forte como antes. Há vinte anos que não se
alimenta da laranjeira, portanto já não deve sobrar
nenhum siden.
— Ela possui outra magia.
— Confio em ti para triunfares, querida. Ou
regressares se o risco se tornar demasiado grande. —
Deu umas pancadinhas no ichneumon ao lado dela. —
Certifica-te de que ma devolves inteira, Aralaq.
— Não sou um pássaro estúpido — disse Aralaq. —
Ichneumons não levam as irmãzinhas para o perigo.
Sarsun grasnou em protesto.

***

Depois do seu exílio, Kalyba fugiu para uma parte da


floresta a que chamou Pérgula da Eternidade. Dizia-se
que tinha lançado um feitiço sobre o local que enganava
os olhos. Ninguém sabia como criava as suas ilusões.
Já estava a anoitecer quando Ead partiu com Aralaq,
do Vale de Sangue, de volta à floresta. Os ichneumons
corriam mais rápido do que os cavalos, mais rápido até
do que os caçadores de leopardos que viviam em Lasia.
Ead manteve a cabeça baixa enquanto a sua montada
passava por cima de trepadeiras, deslizava por baixo de
raízes e saltava sobre os muitos afluentes do Minara.
Pouco antes do amanhecer, o cansaço instalou-se e
acamparam numa caverna atrás de uma cascata. Aralaq
foi caçar e desapareceu, enquanto Ead se refrescava na
piscina por baixo da cascata. Ao subir de novo para a
caverna, lembrou-se dos tempos em que Kalyba estava
no Priorado.
Ead lembrava-se de Kalyba como uma mulher de
cabelo ruivo e olhos escuros e profundos. Fora ao
Priorado quando Ead tinha dois anos e afirmava tê-lo
visitado várias vezes ao longo dos séculos, pois também
afirmava ser imortal. O seu siden não provinha da
laranjeira, mas de um espinheiro que outrora crescera na
ilha inysh de Nurtha.
A Prioresa tinha-a recebido. As irmãs chamavam-lhe
Irmã Hawthorne ou Língua de Cascavel, consoante
acreditavam ou não na sua história. A maioria delas
mantinha-se à distância, porque Kalyba tinha dons per­‐
turbadores. Presentes que nenhuma árvore lhe tinha
dado.
Uma vez, Kalyba cruzara-se com Ead e Jondu
enquanto brincavam ao sol, e sorrira-lhes de uma forma
que fez Ead confiar completamente nela. Em que
gostariam de se tornar, irmãzinhas, perguntara-lhes, se
pudessem ser qualquer coisa?
Um pássaro, respondera Jondu, para poder ir a
qualquer lado.
Também eu, dissera Ead, pois seguia sempre o
exemplo de Jondu. Eu podia abater wyrms em pleno voo,
e isso agradaria à Mãe.
Observa, dissera Kalyba.
A essa altura, as suas memórias estavam confusas,
mas Ead tinha a certe­za de que Kalyba tinha alongado os
seus próprios dedos, transformando-os em penas. Sem
dúvida era obra de algum encantamento que havia
lançado sobre eles, mas foi o suficiente para as
convencer de que Kalyba era a mais sagrada das servas
da Mãe.
As razões do seu exílio nunca foram claras para Ead,
mas corria o rumor de que tinha sido ela a envenenar
Zāla durante o sono. Talvez te­nha sido então que a
Prioresa percebeu que era ela a Dama da Floresta, a
personagem aterradora da lenda de Inys, famosa pela
sua crueldade.
Quando Ead estava a secar a espada, Aralaq apareceu
do outro lado da cascata. Olhou para ela com ar sombrio.
— Esta viagem é uma loucura. A Bruxa de Inysca vai
dar cabo de ti.
— Pelo que ouvi dizer, Kalyba gosta de brincar com a
presa — disse ela, polindo a lâmina da espada com a
capa. — Além disso, a bruxa é muito curiosa. Vai querer
saber porque vim ter com ela.
— Contar-te-á mentiras.
— Ou quererá gabar-se do que sabe. E ela sabe
mesmo muito. — Com um suspiro, puxou do arco. —
Acho que vou ter de ir buscar o meu próprio jantar.
Aralaq soltou um grunhido, mas depois virou-se e
voltou a atravessar a cascata. Ead sorriu. Ele ia arranjar-
lhe alguma coisa. Apesar da sua natureza rude, os
ichneumons eram animais muito leais.
Recolheu os galhos que conseguiu da vegetação
rasteira e fez uma fogueira na caverna. Quando Aralaq
regressou pela segunda vez, atirou um peixe salpicado
para o chão.
— Para que conste, só faço isto porque me deste de
comer quando eu era uma cria — disse, encolhendo-se
na escuridão.
— Obrigada, Aralaq.
Ele soltou um grunhido de desdém.
Ead embrulhou o peixe numa folha de bananeira e
colocou-o no fogo. Enquanto cozinhava, a sua mente
viajou para Inys, como se fosse levada pelo vento sul.
Sabran estaria agora a dormir, com Roslain ou Katryen
ao seu lado. Talvez estivesse com febre. Ou talvez já
tivesse recuperado. Talvez tives­se escolhido outra Dama
do Leito Real... ou melhor, alguém escolhera por ela.
Agora que os Duques Espirituais e a duquesa andavam a
per­seguir o trono, seria sem dúvida outra mulher de uma
das suas famílias, para melhor a espiar.
Que teriam dito à rainha de Inys sobre Ead? Que ela
era uma feiti­ceira e uma traidora, sem dúvida. Se Sabran
acreditava nisso era outra questão. Ela não o aceitaria.
Mas como poderia ela desafiar os Duques quando eles
conheciam o seu segredo, quando podiam destruí-la com
uma só palavra?
Sabran continuaria a confiar nela? Não que ela o
merecesse. Tinham partilhado uma cama, tinham
partilhado os seus corpos, mas Ead nunca lhe contara a
verdade sobre a sua identidade. Sabran nem sequer
sabia o seu verdadeiro nome.
Aralaq não tardaria a acordar. Deitou-se ao lado
dele, perto o sufi­ciente da cascata para que a água
fumegante refrescasse a sua pele, e tentou descansar
um pouco. Para enfrentar Kalyba, teria de ter todos os
seus sentidos à disposição. Quando Aralaq acordou, ela
pegou nas suas armas e subiu novamente para as costas
dele.
Viajaram pela floresta até ao meio-dia. Quando
chegaram ao curso do Minara, Ead protegeu os olhos do
sol. Era um rio implacável, rápido e profundo. Aralaq
saltava de pedra em pedra nos baixios e, quando não
tinha alternativa, nadava. Ead agarrou-se com força ao
seu pelo.
Quando chegaram à outra margem do rio, começou a
cair uma chu­va quente e Ead sentiu os fios de cabelo
colarem-se-lhe ao rosto e pesco­ço. Comeu alguns
dióspiros enquanto Aralaq continuava a adentrar na
floresta. Não pararam até que o Sol começou a afundar-
se no horizonte.
— A Pérgula fica próxima — disse, farejando o ar. — Se
não voltares dentro de uma hora, venho buscar-te.
— Muito bem.
Ead desmontou da sua traseira.
— Lembra-te, Eadaz — disse Aralaq —, tudo o que vês
neste lugar é uma ilusão.
— Eu sei — respondeu, ajustando a sua braçadeira. —
Vejo-te em breve.
Aralaq grunhiu, insatisfeito. Com o machado na mão,
Ead avançou por entre a névoa.
Um arco feito de ramos dobrados e entrançados com
flores formava a porta de entrada. As flores eram da cor
das nuvens de tempestade.
Sonho com uma pérgula sombria na floresta, onde a
luz do Sol se filtra, salpicando a relva. A entrada é um
portal deflores roxas... flores de sabra, creio.
Ead ergueu a mão e, pela primeira vez em anos,
conjurou fogo mági­co. Este dançou entre os seus dedos e
incendiou as flores, revelando os espinhos ocultos sob a
ilusão.
Ela fechou as mãos. A chama azul do fogo mágico
quebraria um en­cantamento se queimasse por tempo
suficiente, mas teria de usá-lo com moderação se
quisesse conservar força suficiente para se defender.
Com um último olhar para Aralaq, abriu caminho pelos
espinhos com o seu machado e emergiu ilesa na clareira
além.
Encontrava-se no Pomar dos Deuses. Ao dar um passo
em frente, um cheiro soprava do verde, tão denso e
enjoativo que quase lhe fazia revi­rar o estômago. A luz
dourada salpicava a relva com uma profundidade capaz
de a fazer afundar até aos tornozelos.
As árvores ali estavam pressionadas umas contra as
outras. Vozes ecoavam entre elas — próximas e distantes
ao mesmo tempo —, dan­çando ao som do murmúrio da
água.
Estariam mesmo presentes ou seria parte do
encantamento?

Min mayde of strore, I knut thu smal,


as lutil as mus in gul mede.
With thu in soyle, corn grewath tal.
In thu I hafde blowende sede.

Em frente, havia um enorme lago alimentado por uma


nascente. Ead não pôde deixar de se aproximar. A cada
passo, as vozes das árvores envolviam-na cada vez mais,
e a sua cabeça girava como um turbilhão. A língua em
que cantavam não lhe era familiar, mas era claro que al­‐
gumas das palavras eram uma forma antiga de Inys.
Muito antiga. Tão antiga como a floresta de Haithwood.

In soyle I soweth mayde of strore


boute in belga bearn wil nat slepe.
Min wer is ut in wuda frore...
he huntath dama, nat for me.

A mão que empunhava o machado estava húmida.


Aquelas vozes falavam do ritual do amanhecer de uma
era há muito desaparecida. Enquanto se esquivava do
emaranhado de ramos à sua volta, Ead tentava imaginá-
los cobertos de sangue e sentia as vozes a atraí-la para
uma armadilha.
No fim do caminho, encontro uma grande rocha e
tento tocar-lhe com uma mão que não parece minha. Ead
virou-se. Ali estava, uma laje de pedra quase tão alta
quanto ela, a guardar a entrada de uma caverna. A rocha
parte-se em duas e lá dentro...
— Olá.

Ead olhou para cima. Num ramo acima da sua


cabeça estava sentado um rapaz.

— Olá — repetiu o rapaz em selinyi. A sua voz era


aguda e doce. — Vieste brincar comigo?

— Vim ver a Dama do Bosque — disse Ead. —


Podes ir buscá-la?

O rapaz deu uma gargalhada muito musical. E, tão


subitamente como tinha aparecido, desapareceu.

Algo fez Ead olhar para a lagoa. Sentiu o suor na


nuca. Procurou na superfície da água qualquer
ondulação.

Ead soltou um suspiro quando viu uma cabeça


emergir da água e surgir uma mulher nua, com os olhos
negros como carvão.

— Eadaz du Zāla uq-Nāra. — Kalyba deu um passo


para fora da água. — Já lá vai muito tempo.
A Bruxa de Inysca. A Dama da Floresta. A sua voz era
tão profunda e clara como a sua lagoa, com um sotaque
estranho. Inysh do Norte, talvez, mas com um tom
especial.
— Kalyba.
— Da última vez que te vi, não tinhas mais de seis
anos. Agora já és uma mulher — observou Kalyba. —
Como os anos passam. Esquecemo-nos, quando os anos
não deixam vestígios na carne.
Agora, Ead lembrava-se bem do rosto dela, com as
maçãs do rosto sa­lientes e o lábio superior carnudo.
Tinha pele bronzeada e pernas longas e bem torneadas.
Cabelo ondulado ruivo caía-lhe sobre os seios. Quem a
visse diria que não tinha mais de vinte anos. Era bonita,
mas tão vazia como um espelho.
— A última visita que recebi foi a de uma das tuas
irmãs, determinada a levar a minha cabeça à Mita
Yedanya como castigo por um crime que não cometi.
Suponho que tenhas vindo para fazer o mesmo — disse
Kalyba. — Dir-te-ia para não o fazeres, mas as irmãs do
Priorado tornaram-se arrogantes nos anos que
procederam a minha partida.
— Não estou aqui para vos magoar.
— Então porque vens ter comigo, doce maga?
— Para aprender.
Kalyba permaneceu imóvel e imperturbável. A água
ainda lhe escor­ria pela barriga e pelas coxas.

— Acabo de regressar de Inys — disse Ead. — A


falecida Prioresa mandou-me para lá para servir a rainha.
Enquanto estive em Ascalon, ouvi falar do grande poder
da Dama da Floresta.
— Dama da Floresta. — Kalyba fechou os olhos e
inspirou, como se o nome exalasse um cheiro forte. —
Oh, há muito tempo que ninguém me chamava assim.
— Ainda hoje sois temida e reverenciada em Inys.
— Sem dúvida. Mas é estranho, pois nunca fui muito a
Haithwood, nem mesmo em criança — disse a bruxa. —
Os habitantes locais não põem lá os pés por medo de me
encontrarem, mas eu passei a maior parte dos meus
anos longe da minha terra natal. Demorou muito tempo
para perceberem que a minha casa era em Hawthorne.
— As pessoas temem aquela floresta por vossa causa.
Só há um cami­nho para lá, e aqueles que o percorrem
afirmam ter visto luzes sinistras e ouvido gritos
aterradores. Dizem que são resquícios da vossa magia.
Kalyba insinuou um sorriso.
— A Mita Yedanya chamou-me de volta a Lasia, mas
eu preferi servir uma maga maior. — Ead deu um passo à
frente. — Vim oferecer-me como vossa pupila, Kalyba.
Para aprender a verdade mais profunda da magia.
Havia um tom de fascínio na sua voz que a
surpreendeu. Se tinha sido capaz de enganar a corte de
Inys por quase uma década, poderia enganar uma bruxa
também.
— Lisonjeias-me — disse Kalyba —, mas certamente a
tua Prioresa pode mostrar-te essa verdade.
— A Mita Yedanya não é como as suas antecessoras.
Não olha para fora como eu — disse Ead.
Pelo menos, em parte, era verdade.
— Uma irmã que vê além do seu próprio nariz — disse
Kalyba. — Isso é mais raro do que mel de prata. As
histórias que contam sobre mim na minha terra natal,
Eadaz uq-Nāra, não te assustam? Lá eu sou a ladra de
crianças, a harpia, a assassina. O monstro das velhas
lendas.
— Lendas contadas para assustar as crianças. Não
temo o que não compreendo.
— E o que te faz pensar que és digna do poder que
acumulei durante tanto tempo?
— Não sou — disse Ead. — Mas com a vossa ajuda,
talvez possa ser. Se me honrardes com a vossa
sabedoria.

Kalyba ficou a olhar para ela por um tempo, como


um lobo a obser­var um cordeiro.

— Conta-me — disse —, como está a Sabran?

Ead quase estremeceu com o tom íntimo com que


ela proferira o nome, como se estivesse a falar de uma
velha amiga.

— A rainha de Inys está bem — respondeu.

— Pedes-me a verdade e, no entanto, os teus


próprios lábios mentem.

Ead olhou-a nos olhos. O seu rosto era como uma


escultura, as suas feições demasiado antigas para serem
interpretadas.

— A rainha de Inys está em perigo — admitiu.

— Melhor — disse Kalyba, inclinando a cabeça para


um lado. — Se a tua proposta for sincera, farás o favor de
me entregar as tuas armas. Quando eu morava em
Inysca, era considerado um grande insulto apa­recer na
casa de outra pessoa com armas — acrescentou, olhando
para o arco de espinhos na porta. — E muito pior entrar
armada sem bater.

— Perdoai-me. Não tive intenção de vos insultar.


Kalyba observou-a, imperturbável. Sentindo-se como
se estivesse a assinar a sua própria sentença de morte,
Ead despiu-se das suas armas e colocou-as na relva.
— Muito bem. Agora depositaste a tua confiança em
mim — disse Kalyba, quase gentil — e, em troca, não te
farei mal.
— Obrigada, senhora.
Ficaram frente a frente, a olhar uma para a outra.
Kalyba não tinha motivos para lhe dizer nada. Ead
sabia disso, e a bruxa também.
— Dizes que queres a verdade, mas a verdade é
uma teia de muitos fios. Sabes que sou uma maga. Um
veículo para os siden, como tu... ou era, antes de a velha
Prioresa me negar o fruto da laranjeira. Tudo porque a
Mita Yedanya lhe disse que eu tinha envenenado a tua
mãe biológica. — Sorriu. — Como se eu me rebaixasse a
envenenar alguém.
Então, Mita fora responsável pelo seu exílio. A antiga
Prioresa tinha sido uma mulher bondosa, mas era
facilmente influenciada por aqueles que a rodeavam,
incluindo a sua munguna.
— Sou uma Primeiro Sangue. Fui a primeira e a última
a comer do espinheiro, e ele deu-me a vida eterna. Mas,
claro, não me vieste per­guntar sobre o meu siden,
porque o siden não é novidade para ti. Queres saber a
origem do meu outro poder; aquele que nenhuma irmã
com­preende. O poder dos sonhos e das ilusões. O poder
de Ascalon, a minha hildistérron.
Estrela de guerra. Um termo poético para a espada.
Ead já o vira antes, em livros de orações, mas agora
desencadeava uma mola dentro de si, despertando algo
que soava como uma nota de música.
O fogo ascende da terra, a luz descende do céu.
A luz do céu.
Hildistérron.
E Ascalon. Outro nome da antiga língua das ilhas de
Inysca. Uma com­binação de astra, «estrela», e lun, que
significava «força». Loth ensinara-lhe isso.
Estrela forte.
— Quando eu estava em Inys... lembrei-me do texto
da Tábua de Rumelabar. Falava do equilíbrio entre o fogo
e a luz das estrelas — disse Ead e, ao fazê-lo, encontrou
uma explicação que lhe parecia cada vez mais sólida. —
As árvores siden dão fogo aos magos. Pergunto-me se o
vosso poder, o vosso outro poder, vem do céu. Da Estrela
de Crina Longa.
O rosto de Kalyba não foi feito para mostrar emoção,
mas Ead viu-a. Um brilho no seu olhar.
— Que bem. Oh, muito bem — disse com um risinho
contido. Pensei que o seu nome se tivesse perdido no
tempo. Como é que uma maga como tu ouviu falar da
Estrela de Crina Longa?
— Fui a Gulthaga.
Fora Truyde utt Zeedeur quem lhe dissera isso. Aquela
rapariga tinha sido imprudente, mas o seu palpite estava
certo.
— Selvagem e corajoso, teres ido à Cidade Enterrada.
— Kalyba olhou para ela. — Seria bom ter companhia na
minha pérgula, já que me foi negada uma irmã no
Priorado. E como já sabes a maior parte da verdade...
não vejo perigo em contar-te o resto.
— Seria uma honra obter esse conhecimento.
— Sem dúvida. Claro que, para compreenderes o meu
poder — refletiu Kalyba —, terias também de conhecer
toda a verdade sobre o siden e os dois ramos da magia, e
a Mita desconhece isso. Mantém as suas irmãs na
ignorância, forçando-as a resignarem-se e limitarem o
seu co­nhecimento ao dos livros antigos. Estás rodeada
de ignorância. A minha sabedoria, a verdadeira
sabedoria, é algo muito precioso.
Aquela era a próxima jogada.
— Poderia dizer que não tem preço — disse Ead.
— Paguei um preço. E tu também terás de pagar um.
Por fim, Kalyba aproximou-se. A água escorria-lhe
pelo cabelo como pérolas transparentes, enquanto
rodeava Ead.
— Aceito um beijo — sussurrou-lhe ao ouvido. Ead
congelou. — Estive sozinha durante tantos anos. Um
beijo teu, doce Eadaz, e o meu conhe­cimento será teu.
Um odor metálico agarrou-se à sua pele. De repente,
sentiu uma sen­sação avassaladora, sentiu algo dentro de
si, algo vital, a reagir ao cheiro.
— Minha senhora — murmurou Ead —, como sei que
estais a dizer a verdade?
— Fazes a mesma pergunta à Mita Yedanya, ou ela
conta com a tua confiança incondicional? — Não tendo
recebido resposta, Kalyba con­tinuou: — Dou-te a minha
palavra de que te direi a verdade. Quando eu era jovem,
quando alguém dava a sua palavra, era como se fosse
um juramento. Já foi há muitos anos, mas continuo a
respeitar a tradição.
Não tinha escolha. Tinha de correr o risco. Ead
aproximou-se e deu-lhe um beijo na face.
— Muito bem — disse Kalyba. O seu hálito era gelado.
— O preço foi pago.
Ead recuou o mais rápido que pôde, e teve de conter
um pensamento repentino que a levou até Sabran.
— A magia tem dois ramos — explicou Kalyba. A luz
do Sol ilu­minava alguns fios dourados do seu cabelo,
fazendo as gotas de água brilharem. — As irmãs do
Priorado, como sabes, praticam siden, magia da terra.
Vem do centro do mundo e é canalizada através da
árvore. Aqueles que comem o seu fruto podem usar a
sua magia. Antigamente havia pelo menos três árvores
de siden: a laranjeira, o espinheiro e a amoreira; mas
agora, tanto quanto sei, só resta uma.
» Mas o siden, querida Eadaz, tem o seu oposto
natural: a magia side­ral, ou sterren, o poder das estrelas.
É uma magia fria e esquiva, elegante e evasiva. Aquele
que a domina pode criar ilusões, controlar a água... pode
até mudar de forma. É muito mais difícil de controlar.
Ead já não tinha de esconder a sua curiosidade.
— Quando a Estrela de Crina Longa passa, deixa no
seu rasto um líqui­do prateado. Chamei-lhe poeira estelar
— disse Kalyba — É na poeira estelar que vivem os
sterren, tal como é no fruto da árvore que vivem os
siden.
— Deve ser algo raro.
— Não poderias imaginar. Não há uma chuva de
meteoros desde o fim da Grande Desolação. E lembra-te,
Eadaz, a chuva de meteoros foi o fim da Grande
Desolação. Não foi coincidência que tenha significado a
queda dos wyrms. No Oriente, acreditam que o cometa
foi enviado pelo seu deus-dragão, Kwiriki. — Kalyba
sorriu. — A chuva encerrou uma era em que o siden era
mais forte, e forçou os wyrms, que se ali­mentavam dele,
a dormir.
— E então o sterren ficou mais forte — disse Ead.
— Durante um tempo — confirmou Kalyba. — Existe
um equilíbrio entre os dois ramos da magia. Eles
controlam-se um ao outro. Quando um cresce, o outro
diminui. Uma Era do Fogo segue-se a uma Era da Luz das
Estrelas. Neste momento, o siden é muito mais forte, e o
sterren é apenas uma sombra do seu antigo eu. Mas
quando vier uma chuva de meteoros... o sterren voltará a
brilhar.
O mundo rira-se dos alquimistas pelo seu fascínio pela
Tábua de Rumelabar, mas durante séculos, haviam
estado perto da verdade.
Porque era a verdade. Ead sentiu-a nas membranas
das suas vísce­ras, nas cordas do seu coração. Não teria
acreditado se apenas Kalyba lhe tivesse contado, mas
aquela explicação formava o fio que unia os diferentes
relatos. A Estrela de Crina Longa. A Tábua de Rumelabar.
A queda dos wyrms após a Grande Desolação. O
estranho dom da mulher diante de si.
Tudo isso estava relacionado. E tudo começara com
uma verdade: o fogo da terra, a luz do céu. Um Universo
criado dessa dualidade.
— A Tábua de Rumelabar fala desse equilíbrio — disse
Ead —, mas também do que acontece quando o
equilíbrio é quebrado.
— Demasiado de um inflama o outro, e nisso está a
extinção do Universo — re­citou Kalyba. — Uma previsão
alarmante. Mas... a quê ou a quem se refere «a extinção
do Universo»?
Ead abanou a cabeça. Sabia perfeitamente a
resposta, mas era melhor fazer-se de tola. Assim, a bruxa
não ficaria desconfiada.

— Oh, Eadaz, estavas a ir tão bem. Ainda assim, és


jovem. Não te devo julgar com severidade.

Virou-se. No movimento, a sua mão desviou-se para


o lado direito. Um gesto suave e gracioso, como todo o
seu ser, mas era óbvio, pela forma como andava, que
estava a sofrer.

— Estais ferida, minha senhora?

Kalyba não respondeu.

— Há muito tempo, a dualidade cósmica foi...


alterada — disse. Ead pensou ter visto algo terrível
naqueles olhos. A sombra do ódio. — O sterren tornou-se
demasiado forte e, em reação, o fogo sob os nossos pés
forjou uma abominação. Uma aberração do siden.

A extinção do Universo.
— O Inominável — disse Ead.
— E os seus seguidores. Eles são o fruto do
desequilíbrio. O caos. — Kalyba sentou-se numa pedra. —
As Prioresas sabem há muito tempo da ligação entre a
árvore e os wyrms, mas negam-na a si mesmas e às suas
filhas. Os magos podem criar fogo draconiano durante
uma Era do Fogo como esta... mas, claro, estás proibida
de o usar.
Todas as irmãs sabiam que tinham a capacidade de
criar o fogo dos wyrms, mas não lhes era ensinado como
o fazer.
— As vossas ilusões vêm do sterren — murmurou Ead
—, por isso, com o siden, elas incendeiam-se e
desaparecem.
— O siden e o sterren podem destruir-se
mutuamente em circunstâncias particulares — admitiu
Kalyba —, mas também se atraem um ao outro. Ambas
as formas de magia são atraídas uma pela outra, princi­‐
palmente, mas, também, pelo seu oposto. — Os seus
olhos negros bri­lharam de excitação. — Agora, o meu
enigma: se a laranjeira é o canal natural para os siden,
quais são os canais naturais para o sterren?
Ead refletiu.
— Os dragões do Oriente, talvez.
Pelo pouco que sabia sobre eles, eram criaturas
aquáticas. Não tinha a certeza, mas Kalyba sorriu.
— Muito bem. Eles nasceram do sterren. Quando a
Estrela de Crina Longa se aproxima, eles podem
conceder sonhos, mudar de forma e tecer ilusões.
Como que para demonstrar, a bruxa passou a mão
pelo corpo. De repente, apareceu vestida com um manto
de Inys de samito castanho e uma faixa incrustada com
cornalina e pérolas. Lírios abertos enfeitavam o seu
cabelo. A ilusão fora a sua nudez ou era aquilo?
— Há muito tempo, usei o meu fogo para remodelar a
poeira estelar que recolhera — disse Kalyba, passando os
dedos pelo cabelo — para criar a arma mais esplêndida
já forjada.
— Ascalon.
— Uma espada de sterren, forjada de siden. Uma
união perfeita. E quando a segurei nas mãos, quando
empunhei a espada que criara das lágrimas de um
cometa, soube que não era uma simples maga. — Ela
sorriu o mais ténue dos sorrisos. — No Priorado chamam-
me bruxa por causa dos meus dons, mas eu prefiro
encantadora. Soa melhor.
Ead tinha descoberto mais do que esperava, mas fora
lá para pergun­tar sobre a joia.
— Senhora — disse —, de facto, os vossos dons são
milagrosos. Nunca forjastes mais nada com o sterren?
— Nunca. Eu queria que Ascalon fosse algo único em
todo o mundo. Um presente para o maior cavaleiro do
seu tempo. Claro que isso não quer dizer que não
existam outros objetos... mas eu não os forjei. E se
existem, estão perdidos há muito tempo.
Ead estava tentada a contar-lhe sobre a joia, mas era
melhor man­ter Kalyba na ignorância, ou ela faria
qualquer coisa para lhe deitar as mãos.
— Nada me faria mais honrada do que ver a espada.
Todos os inysh falam dela — disse Ead. — Podeis mostrar-
ma?
Kalyba estalou a língua.
— Se a tivesse, adoraria. Procurei-a durante séculos,
mas o Galian escondeu-a bem.
— Ele não deixou nenhuma pista sobre o seu
paradeiro?
— Apenas que queria deixá-la nas mãos daqueles que
morreriam para me manter longe dela. — O seu sorriso
desvaneceu. — As rainhas de Inys também a procuraram,
pois é um objeto sagrado para elas... mas não a
encontraram. Se eu não consegui, ninguém consegue.
Que Kalyba forjara Ascalon para Galian Berethnet era
algo que to­dos no Priorado sabiam. Em parte, era por
isso que muitas das irmãs desconfiavam dela. Ambos
haviam nascido ao mesmo tempo e tinham vivido na
aldeia de Goldenbirch ou nos arredores, mas, além
desses fac­tos, ninguém compreendia a natureza da sua
relação.
— A Rainha Sabran sonhou com esta Pérgula da
Eternidade — disse Ead. — Ela falou-me disso quando eu
era a sua dama de companhia. Só vós podeis tecer
sonhos, minha senhora. Fostes vós que lhos enviastes?
— Essa informação terá um preço mais alto.
Dito isto, a bruxa caiu da rocha, deslizando para baixo.
Nua outra vez, foi para junto dela, e a rocha sob os seus
pés transformou-se num canteiro de flores. Cheiravam a
creme e a mel.
— Vem ter comigo — disse ela, passando a mão pelas
pétalas. — Vem, deita-te comigo na minha pérgula e
cantar-te-ei sobre os sonhos.
— Senhora, nada mais desejo do que agradar-vos e
provar-vos a mi­nha lealdade, mas o meu coração
pertence a outra pessoa.
— Com certeza que o segredo de como os sonhos são
tecidos vale o preço de uma noite. Há muito tempo que
não sinto o toque suave de um amante. — Kalyba passou
um dedo pela barriga, parando pouco antes de chegar às
virilhas. — Mas... admiro a tua lealdade. Por isso,
aceitarei outro presente teu. Em troca do meu
conhecimento sobre as estrelas e os seus dons.
— O que quiserdes.
— Não me deixam aproximar da laranjeira há vinte
anos. Uma vez que tenhas provado a magia, qualquer
mago morrerá por ela. A fome corrói-me as entranhas.
Gostaria muito de ter a minha chama de volta — disse
Kalyba, olhando para ela. — Traz-me a fruta e serás a
minha herdeira. Jura-me, Eadaz du Zāla uq-Nāra. Jura-me
que me trarás o que desejo.
— Senhora — disse Ead —, juro-vos pela Mãe.

***

— E não disse nada sobre as joias — disse a Prioresa.


— Apenas que não as tinha criado.
Ead estava no seu quarto, de frente para ela.
— Sim, Prioresa — respondeu —, a sua única criação é
Ascalon.
Achei melhor não falar das joias, receando que a
incitasse a ir atrás delas.
— Ótimo.
Chassar escutava com uma expressão adunca. A
Prioresa apoiou as mãos na balaustrada, o seu anel
brilhando à luz do Sol.
— Dois tipos de magia. Nunca ouvi nada assim —
expressou. — Não gosto nada disso. A bruxa é uma
mentirosa por natureza. Chamam-lhe Língua de Cascavel
por alguma razão.
— Ela pode disfarçar a verdade — corrigiu Chassar —,
mas, por mais sanguinária que seja, nunca me pareceu
uma mentirosa. No tempo dela, em Inysca, havia
punições brutais para quem quebrasse um juramento.
— Esqueces-te, Chassar, de que mentiu sobre Zāla.
Disse que não a tinha envenenado, mas só um forasteiro
poderia ter matado uma irmã.
Chassar olhou para baixo.
— As joias devem ser sterren — disse Ead. — Mesmo
que não tenha sido Kalyba quem as criou. Se não têm
magia da nossa espécie, devem ter magia da outra
espécie.
A Prioresa assentiu lentamente com a cabeça.
— Jurei-lhe que lhe levaria o fruto da árvore. Perseguir-
me-á se não o fizer?
— Duvido de que gastasse a sua magia numa caçada.
Em todo o caso, aqui estás protegida. — A Prioresa
observou o pôr do sol. — Não digas nada disto às tuas
irmãs. A nossa próxima linha de investigação é esta...
Neporo.
— Do Oriente — disse Ead, calmamente. —
Certamente, isso diz-vos que a Mãe estava interessada
no mundo além das fronteiras do Sul.
— Começo a cansar-me desse assunto, Eadaz.
Ead mordeu a língua. Chassar lançou-lhe um olhar de
advertência.
— Se Neporo disse a verdade, precisaremos tanto de
Ascalon quanto das joias para derrotar o nosso inimigo.
— A Prioresa esfregou a têmpo­ra. — Deixa-me estar,
Eadaz. Devo... ponderar no que fazer.
Ead baixou a cabeça e saiu.
No seu quarto, encontrou Aralaq a ressonar aos pés
da cama, exausto da sua viagem. Sentou-se ao lado dele
e acariciou-lhe as orelhas sedosas, que se contorceram
durante o sono.
Não conseguia parar de pensar nas estrelas e no fogo.
O Inominável voltaria e o Priorado tinha apenas um dos
três instrumentos necessários para o destruir. A cada
hora que passava, o risco no Reino das Virtudes
aumentava, e Sabran corria cada vez mais perigo.
Entretanto, Sigoso Vetalda estava a reunir uma frota de
invasão na Baía das Alforrecas. Um Ocidente dividido não
estaria preparado para o ataque do Rei Terrena Ead
aconchegou-se ao lado de Aralaq e fechou os olhos.
Tinha de encontrar uma forma de a ajudar.
— Eadaz.
Olhou para cima.
Estava uma mulher à porta. Os caracóis cortados
rente emolduravam-lhe o rosto escuro e caíam sobre os
seus olhos cor de mel.
— Nairuj — disse Ead, levantando-se.
Tinham sido rivais em crianças. Nairuj estava sempre
a disputar a atenção da Prioresa com Jondu, algo que
Ead, que amava Jondu como se fosse a sua irmã mais
velha, levava a peito. Mas agora Ead pegou nas mãos de
Nairuj e beijou-a na face.
— É bom ver-te — disse Ead. — Honras o manto que
usas.
— E tu honraste-nos a todos ao proteger Sabran
durante tanto tempo. Confesso que quando te mandaram
para aquela corte ridícula, escar­neci; era jovem e tola —
admitiu Nairuj, com um sorriso tímido —, mas agora
entendo que todos trabalhamos para a Mãe de uma
maneira diferente.
— Vejo que estás a prestar-lhe um bom serviço —
respondeu Ead, sorrindo. — Deves estar prestes a partir.
Sim, pode ser a qualquer momento — disse Nairuj,
pousando uma mão na barriga. — Vim preparar-te para a
tua iniciação como Dama Vermelha.
Ead não pôde deixar de sorrir.
— Hoje à noite?
— Sim, hoje à noite. — Nairuj conteve uma
gargalhada. — Depois de teres afugentado o Fýredel, não
achaste que serias promovida assim que chegasses?
Levou Ead até uma cadeira. Apareceu um rapaz,
pousou um tabulei­ro e retirou-se.
Com o coração aos saltos, Ead cruzou as mãos no
colo.
Por uma noite, esqueceria o que aprendera com
Kalyba. Esqueceria tudo o que lhe tinha acontecido fora
daquelas paredes. Sabia, desde que se lembrava, que
estava destinada a tornar-se uma Dama Vermelha.
O seu sonho ia tornar-se realidade. E ela queria
desfrutar disso.
— Para ti. — Nairuj entregou-lhe uma chávena. — Da
Prioresa.
Ead bebeu um gole.
— Pela Mãe. — Um turbilhão de sabores doces
desenrolou-se na sua boca. — Que é isto?
— Vinho do sol. Vem de Kumenga. A Prioresa tem as
suas provisões — sussurrou-lhe Nairuj. — O Tulgus, da
cozinha, às vezes deixa-me provar. Ele também te
deixará, se lhe disseres que fui eu que te mandei. Mas
não digas nada à Prioresa.
— Nunca.
Ead bebeu outra vez. Sabia muito bem. Nairuj tirou
um pente de madeira da bandeja.
— Eadaz... queria dar-te os meus pêsames. Pela Jondu.
Tínhamos as nossas diferenças, mas eu respeitava-a
muito.
— Obrigada — disse Ead em voz baixa. Abanou a
cabeça como se quisesse afastar a tristeza. — Anda,
Nairuj. Conta-me tudo o que se pas­sou nestes últimos
oito anos.
— Conto — disse Nairuj, batendo com o pente na mão
— se prome­teres contar-me todos os segredos da corte
de Inys. — Pegou numa tigela de óleo. — Ouvi dizer que a
vida lá é como andar sobre brasas. Que os cortesãos se
pisam uns aos outros para se aproximarem da rainha.
Que há mais intrigas na corte de Sabran a Nona do que
pedras celestes em Rumelabar.
Ead olhou pela janela. Começavam a aparecer
estrelas no céu.
— De verdade — respondeu. — Não irias acreditar.

***

Enquanto preparava Ead, Nairuj contou-lhe sobre os


wyrms que tinham despertado no sul e sobre o trabalho
cada vez mais árduo das Damas Vermelhas para conter a
ameaça. O Rei Jantar e a Alta Governante Kagudo, os
únicos governantes que sabiam da existência do
Priorado, tinham pedido que mais Irmãs fossem enviadas
para as suas cidades e cortes. Entretanto, os homens do
Priorado, que se dedicavam às tarefas domésticas,
teriam em breve de ser treinados como guerreiros.
Em troca, Ead contou-lhe os assuntos mais ridículos
de Inys. As rixas entre membros da corte, os seus
romances e os seus poetas. O tempo que passara como
dama de companhia de Olivia Marchyn. Os charlatães
que receitavam esterco para as febres e sanguessugas
para as enxaque­cas. Os dezoito pratos apresentados a
Sabran todas as manhãs, dos quais apenas comia um.
— E Sabran, é tão caprichosa como dizem? —
perguntou Nairuj. — Ouvi dizer que, na mesma manhã,
pode estar tão alegre como uma fes­ta, tão triste como
um lamento e tão zangada como um gato selvagem.
Ead demorou muito tempo a responder.
— É verdade — disse por fim.
Uma rosa atrás da almofada. Mãos no teclado do
virginal. O seu riso quando atravessavam o grupo de
caça.
— Suponho que uma mulher nascida para ocupar esse
trono, com o preço que tem de pagar por ele, tem o
direito de ser um pouco capricho­sa. — Nairuj deu uma
palmadinha na barriga. — Já é bastante difícil quando o
destino das nações não depende de ti.
A hora da cerimónia aproximava-se. Ead deixou que
Nairuj e as ou­tras três irmãs a ajudassem a vestir o seu
vestido. Depois de pentear o cabelo, adornaram-na com
um anel de flores de laranjeira. Colocaram-lhe pulseiras
de cristal e de ouro nos braços. Quando acabaram, Nairuj
pegou-lhe pelos ombros.
— Estás pronta?
Ead anuiu. Estivera pronta a sua vida toda.
— Invejo-te — disse Nairuj. — A próxima tarefa que a
Prioresa te vai dar parece...
— Tarefa. — Ead olhou para ela. — Que tarefa?
Nairuj sacudiu a mão.
— Não devo dizer nada. Saberás em breve. — Tomou
Ead pelo braço. — Vem.
***

Levaram-na até à campa da Mãe. A capela fúnebre


estava iluminada com cento e vinte velas, o número de
pessoas que tinham sido escolhidas ao acaso para serem
sacrificadas e entregues ao Inominável antes de Cleolind
ter finalmente acabado com o monstro sanguinário.
A Prioresa esperava em frente da estátua. Todas as
irmãs que não ti­nham outra tarefa a fazer estavam ali
para testemunhar a nomeação da filha de Zāla como
Dama Vermelha.
No Priorado, as cerimónias eram breves. Cleolind não
queria a pom­pa e a ostentação das cortes para as suas
servas. O que importava era a intimidade. A reunião das
irmãs em apoio e reconhecimento mútuos. Na câmara,
escura como o ventre de uma mãe, com a Mãe a
observá-las a todas, Ead sentia-se mais próxima dela do
que nunca.
Chassar estava de pé ao lado da Prioresa. Parecia tão
orgulhoso como se fosse seu pai biológico.
Ead ajoelhou-se.
— Eadaz du Zāla uq-Nāra — disse a Prioresa. A sua
voz ressoava. — Serviste a Mãe corri lealdade e sem
questionar. Como irmã e amiga, damos-te as boas-vindas
às fileiras das Damas Vermelhas.
— Eu sou Eadaz du Zāla uq-Nāra — disse Ead — e juro
mais uma vez lealdade à Mãe, como fiz quando era
criança.
— Que ela mantenha a tua lâmina afiada e o teu
manto vermelho de sangue — disseram as irmãs em
uníssono —, e que o Inominável tema a tua luz.
Era tradição que a mãe biológica da postulante lhe
desse o seu manto. Na ausência de Zāla, foi Chassar
quem o colocou sobre os seus ombros. Prendeu-o com
um alfinete um pouco abaixo da garganta e, quando lhe
tocou no queixo, Ead retribuiu-lhe o sorriso.
Estendeu-lhe a mão direita. A Prioresa pôs-lhe o seu
anel de prata com uma pedra do sol esculpida na forma
de uma flor de cinco pétalas. O anel que sonhara usar
durante toda a sua vida.
— Que te lances ao mundo — disse a Prioresa — e
enfrentes o fogo implacável. Agora e para sempre.
Ead puxou o brocado do manto para mais perto da
pele. Aquele ver­melho profundo era impossível de
fabricar. Só podia ser tingido com sangue draconiano.
A Prioresa estendeu as duas mãos, com as palmas
para cima, e sorriu. Ead pegou nelas e levantou-se, e os
aplausos ecoaram pela câmara fú­nebre. Quando a
Prioresa se virou para as irmãs, apresentando-a como
Dama Vermelha, Ead olhou para os Filhos de Siyāti. E ali,
entre eles, viu um homem com um rosto familiar.
Era mais alto do que ela. Pernas longas e fortes. Pele
de um negro pro­fundo. Quando ele levantou a cabeça, as
suas feições ficaram expostas à luz da vela.
Não podia ser. Kalyba alterara-lhe os sentidos. Ele
estava morto. Estava perdido. Não podia estar ali.
E, no entanto... no entanto, lá estava ele.
Loth.
44
Sul

Ead.
Ela olhava para ele como se visse um fantasma.
Tinha passado meses a percorrer aquelas galerias
numa espécie de semiletargia. Suspeitava de que lhe
tivessem posto algo na comida para o fazer esquecer o
homem que era antes. Começara a esquecer os por­‐
menores do seu rosto, da sua amiga de um lugar
distante.
E agora, ali estava ela, com o seu manto vermelho e o
seu cabelo decorado com flores. E parecia... completa,
plena, renovada. Como se tivesse ficado muito tempo
sem água e agora estivesse a florescer.
Ead desviou o olhar. Como se não o tivesse visto. A
Prioresa, a líder da seita, tinha-a levado da câmara.
Assim que a viu, sentiu-se traído, mas aquele brilho nos
seus olhos e aqueles lábios entreabertos deixaram claro
que ela estava tão surpreendida por o ver como ele por
vê-la.
Não importava o que ela era; continuava a ser Ead
Duryan, continua­va a ser sua amiga. Tinha de falar com
ela de alguma forma.
Antes que fosse tarde demais para se lembrar.

***
Chassar estava deitado na cama, lendo à luz de velas,
com os óculos em­poleirados na ponta do nariz. Quando
Ead apareceu, como uma rajada de vento de
tempestade, ele olhou para cima.
— Que faz aqui o Lorde Arteloth? — perguntou, sem
fazer nenhum esforço para controlar o volume da sua
voz.
Chassar juntou as suas enormes sobrancelhas.
— Eadaz — disse ele —, acalma-te.
Sarsun, que estava meio a dormir, soltou um grasnado
de protesto.
— O Falcão da Noite enviou o Loth para Cárscaro —
disse Ead. — Porque é que ele está aqui?
Chassar soltou um longo suspiro.
— Foi ele que nos trouxe a caixa. A Donmata Marosa
deu-lha. — Tirou os óculos. — Ela disse-lhe para ele me
encontrar. Depois de a receber de Jondu.
— A Donmata é uma aliada?
— Parece que sim. — Chassar passou o roupão pelo
peito e deu um nó no cinto. — O Lorde Arteloth não devia
ter estado na câmara fúne­bre esta noite.
— Então, puseste-o propositadamente fora do meu
caminho.
Tal engano, vindo de qualquer pessoa, teria doído,
mas ainda mais vindo dele.
— Eu sabia que não ias gostar — murmurou Chassar.
— Eu mesmo queria contar-te, depois da cerimónia.
Sabes que quando um estranho encontra o Priorado, não
pode partir.
— Ele tem família. Não podemos...
— Podemos. Pelo Priorado. — Lentamente, Chassar
levantou-se da cama. — Se o deixarmos ir, contará tudo
a Sabran.
— Não precisas de temer por isso. O Falcão da Noite
nunca o deixará regressar à corte.
— Eadaz, ouve-me. Arteloth Beck é um seguidor do
Impostor. Ele pode ter sido gentil contigo, mas nunca te
poderá compreender. A seguir vais dizer-me que estás
preocupada com Sabran Bereth...
— E se estiver?
Chassar examinou-lhe o rosto. A sua boca era uma
fissura nas profun­dezas da barba.
— Ouviste as blasfémias dos inysh. Sabes o que
fizeram com a me­mória da Mãe.
— Disseste-me para me aproximar dela. É de admirar
que o tenha feito? — atirou de volta. — Deixaste-me
sozinha naquela corte durante quase uma década. Eu era
uma estranha. Uma convertida. Se não tivesse
encontrado pessoas a quem me agarrar, para tornar a
espera suportável...
— Eu sei. E lamentá-lo-ei pelo resto dos meus dias. —
Pousou uma mão carinhosa no seu ombro. — Estás
cansada. E chateada. Podemos falar novamente pela
manhã.
Ela queria responder, mas aquele era Chassar, que
ajudara os Filhos de Siyāti a criá-la, que a fizera rir
quando era pequena, que cuidara dela quando Zāla
morrera.
— A Nairuj disse que a Prioresa me vai dar outra
tarefa em breve — disse Ead. — Quero saber o que é.
Chassar pressionou um dedo entre os olhos e
esfregou. Ela ficou pa­rada, à espera.
— Protegeste Sabran do Fýredel quase nove anos
depois de deixares Lasia. Esse vínculo profundo com a
árvore que pode atravessar o tem­po e a distância é uma
coisa rara. Muito rara. — Afundou de volta na cama. — A
Prioresa pretende tirar proveito disso. Pretende enviar-te
para as terras além do Portão de Ungulus.
O seu coração bateu com força.
— Com que propósito?
— Uma irmã trouxe-nos rumores de Drayasta. Um
grupo de piratas alega que Valeysa pôs um ovo algures
no Eria durante a Ascensão das Sombras — disse
Chassar. — A Prioresa quer que o encontres e des­truas.
Antes que possa eclodir.
— Ungulus. — Ead não conseguia sentir a maior parte
do seu corpo. — Posso ficar fora durante anos.
— Sim.
O Portão de Ungulus era o limite do mundo conhecido.
Além dele, o continente sul era desconhecido. Os poucos
exploradores que se aven­turaram ali falavam de um
deserto sem fim, que se chamava Eria — cintilantes
salinas, sol brutal e nem uma gota de água. Se algum
deles conseguiu chegar ao outro lado, nunca mais voltou
para contar a história.
— Sempre houve histórias a circular em Drayasta. —
Ead caminhou lentamente em direção à varanda. — Pela
Mãe, que fiz eu para merecer mais exílio?
— Esta é uma missão de verdadeira urgência — disse
Chassar. — Mas sinto que ela te escolheu para isso não
apenas por causa da tua resistência, mas porque essa
tarefa faria voltar a tua atenção para o Sul.
— Queres dizer que minha lealdade está em questão.
— Não — disse Chassar, mais gentil. — Ela apenas
acredita que podes beneficiar desta jornada. Isso dar-te-á
a oportunidade de te lembrares do teu propósito e de te
expurgares de impurezas.
A Prioresa queria-a o mais longe possível do Reino
das Virtudes para que não pudesse ver a turbulência que
em breve lá estouraria. Esperava que, quando Ead
voltasse, já não acreditasse que qualquer lugar que não
fosse o Sul importava.
— Há uma outra escolha.
Ead olhou por cima do ombro.
— Diz de uma vez.

— Poderias oferecer-lhe um filho. — Chassar


susteve-lhe o olhar. — Devemos ter mais guerreiros para
o Priorado. A Prioresa acredita que qualquer filho teu
herdará o teu vínculo com a árvore. Fá-lo, e ela pode­rá
enviar a Nairuj para o sul, assim que tiver dado à luz.

O maxilar doía-lhe com o esforço necessário para


conter uma risada triste.

— Para mim — disse ela —, isso não é escolha.

Saiu do quarto.

— Eadaz — gritou Chassar atrás dela, mas ela não


olhou para trás. — Onde vais?

— Vê-la.
— Não. — Ele não demorou a chegar ao corredor e
pôr-se em frente dela. — Eadaz, olha para mim. A
decisão está tomada. Contesta-a, e ela apenas estenderá
o teu tempo fora.
— Não sou uma criança que precisa de ser mandada
embora para pensar no que fez de errado. Eu sou...
— Que se passa?
Ead virou-se. A Prioresa, resplandecente em seda cor
de ameixa, parou na entrada do corredor.
— Prioresa. — Ead foi até ela. — Imploro-vos que não
me envieis nesta tarefa para lá de Ungulus.
— Já está decidido. Há muito que suspeitamos de
que os Sombras Ocidentais têm um ninho — disse a
Prioresa. — A irmã que o destruir deve sobreviver sem os
frutos. Tenho confiança de que farás isso por mim, filha.
Que irás servir a Mãe mais uma vez.
— Não é assim que estou destinada a servir a Mãe.
— Não aceitarás nada além da minha permissão
para regressares a Inys. Tens o coração nisso. Deverás
passar pelo Portão de Ungulus para te lembrares de
quem és.
— Eu sei muito bem quem sou — retrucou Ead. — O
que não sei é por que motivo, nos anos em que estive
ausente, esta nossa casa se tor­nou incapaz de ver além
do seu próprio nariz.
Soube pelo silêncio que se seguiu que tinha ido
longe demais.
A Prioresa olhou para ela por um longo tempo, tão
parada que pode­ria muito bem ter sido fundida em
bronze.
— Se voltas a pedir para renegares o teu dever —
disse ela por fim —, não terei escolha a não ser tirar-te o
manto.
Ead não conseguiu falar. Uma frieza percorreu-a.
A Prioresa trancou-se no seu quarto. Chassar lançou
um olhar pesa­roso a Ead antes de se afastar, deixando-a
de pé e a tremer.
Uma sociedade tão velha e tão secreta precisava de
um manuseio cuidadoso. Ela, Eadaz du Zāla uq-Nāra,
agora sabia como era ser manuseada.
A sua jornada de volta ao quarto foi um borrão.
Caminhou até à varanda e viu o Vale de Sangue mais
uma vez. A laranjeira estava linda como sempre.
Temente à alma na sua perfeição.
A Prioresa não impediria a queda de Inys. Uma vez
que a guerra civil dividisse o Reino das Virtudes por
dentro, seria uma presa fácil para o Rei Terreno e o
Exército Draconiano. Ead não tinha estômago para isso.
O vinho do sol ainda estava na sua mesa de
cabeceira. Bebeu o que restava, tentando acalmar os
tremores de raiva. Depois de esvaziar a taça, deu por si a
olhar para ela. E quando a revirou nas suas mãos, algo
lhe despertou na memória.
As taças gémeas. O antigo símbolo do Cavaleiro da
Justiça. E a sua linhagem.
Crest.
Descendente do Cavaleiro da Justiça. Ela que pesava
as taças da culpa e da inocência, do apoio e da oposição,
da virtude e do vício. Um servi­dor de confiança da coroa.
Copeiro.
Igrain Crest, que sempre desaprovara Aubrecht
Lievelyn. Cujos la­caios haviam assumido o controlo da
Torre da Rainha mesmo quando Ead fugia dela,
aparentemente para proteger Sabran.
Ead agarrou a balaustrada. Loth enviara um aviso de
Cárscaro.
Cuidado com o Copeiro. Ele estivera a investigar o
desaparecimento do Príncipe Wilstan, que por sua vez
suspeitava do envolvimento de Vetalda no assassinato da
Rainha Rosarian.
Teria Crest providenciado para que Rosarian Berethnet
morresse an­tes do tempo, deixando uma jovem no
comando de Inys?
Uma rainha que precisava de uma protetora antes de
atingir a maiori­dade. Uma jovem princesa a quem Crest
se apresentara para moldar...
Mesmo enquanto o considerava, Ead soube que o seu
instinto parecia verdadeiro. Ficara tão cega pelo seu ódio
por Combe, tão determinada a torná-lo responsável por
tudo o que acontecera em Inys, que ignorara o que
estava mesmo diante dos seus olhos.
Como seria fácil para si, dissera Combe, colocar a
culpa por todos os males à minha porta.
Se fosse Crest, Roslain poderia estar envolvida. Talvez
a sua lealdade a Sabran tivesse desaparecido,
juntamente com a criança. Toda a família Crest poderia
estar em conspiração para a usurpar.
E tinham a Torre da Rainha.
Ead caminhou no escuro. Apesar do calor húmido da
Bacia de Lasia, estava com tanto frio que o seu queixo
tremia.
Se voltasse para Inys, seria um anátema para o
Priorado. O seu nome não dito, a sua vida perdida.
Se não voltasse para Inys, abandonaria todo o Reino
das Virtudes.
Parecia-lhe uma traição a tudo o que sabia ser certo
e a tudo o que o Priorado representava. Ela era leal à
Mãe, não a Mita Yedanya.
Tinha de seguir a chama no seu coração. A chama
que a árvore lhe concedera.
A perceção do que tinha de fazer entalhou os
pedaços da sua alma. Sentiu um sabor a sal nos lábios.
As lágrimas escorreram-lhe até ao quei­xo e caíram em
gotas gordas.
Aquele era o lugar onde havia nascido. Era onde
pertencia. Tudo o que sempre quisera, durante toda a
sua vida, fora um manto vermelho. O manto que agora
teria de deixar para trás.
Continuaria o trabalho da Mãe. Em Inys, poderia
acabar o que Jondu começara.
Ascalon. Sem a espada, não teria hipóteses de
derrotar o Inominável. As Damas Vermelhas haviam-na
procurado. Kalyba procurara-a. Em vão.
Nenhuma delas possuía a joia minguante.
Ambas as formas de magia são atraídas uma pela
outra, principalmente, mas também pelo seu oposto.
A joia tinha de ser sterren. Ascalon poderia responder
a isso, e a lâmi­na, por sua vez, responder-lhe-ia apenas a
ela.
Ead olhou para a árvore, a garganta dorida. Caiu de
joelhos e rezou para que aquela fosse a decisão certa.
***

Aralaq encontrou-a lá pela manhã, quando o Sol


brilhava no céu azul-pérola.
— Eadaz.
Ela virou a cabeça para olhar para ele, crua e inquieta.
A sua língua era como lixa na sua bochecha.
— Meu amigo — disse ela —, preciso da tua ajuda. —
Segurou-lhe o rosto entre as mãos. — Lembras-te de
como te alimentei, quando eras um filhote? Como cuidei
de ti?
Os seus olhos âmbar pareciam captar a luz do Sol.
— Sim — disse ele.
Claro que se lembrava. Os ichneumons não se
esqueciam da primeira mão a alimentá-los.
— Há um homem aqui, entre os Filhos de Siyāti. O seu
nome é Arteloth.
— Sim. Fui eu quem o trouxe.
— Estavas certo em salvá-lo. — Engoliu o nó na sua
garganta. — Preciso que o tires do Priorado, para a
entrada da caverna na floresta, depois do pôr do sol.
Ele estudou-a.
— Vais partir.
— Devo fazê-lo.
As suas narinas estreitas dilataram-se.
— Irão perseguir-te.
— É por isso que preciso da tua ajuda. — Acariciou-lhe
as orelhas. — Tens de descobrir onde a Prioresa mantém
a joia branca do meu quarto.
— És uma tola. — Deu-lhe um toque leve na testa com
o nariz. — Sem a árvore, murcharás. Todas as irmãs
murcham.
— Então definharei. Prefiro-o a não fazer nada.
Um resfolegar escapou-lhe.
— A Mita tem a joia consigo — resmungou. — Tem o
seu cheiro. Do mar.
Ead fechou os olhos.
— Encontrarei uma forma — garantiu.
45
Este

As praias da Ilha das Penas estavam cobertas pela


água do mar. Tané tinha passado horas com o Ancião
Vara enquanto a ilha abanava, tornando impossível a
leitura.
O Ancião Vara conseguia, claro. Mesmo que o mundo
se afundasse, ele arranjaria maneira de continuar a ler.
Depois das águas, caiu um silêncio terrível. Todos os
pássaros da flo­resta tinham perdido a voz. Foi então que
os estudiosos começaram a examinar os estragos
causados pelo terramoto. A maior parte tinha saí­do ilesa,
mas dois haviam caído dos penhascos. O mar não lhes
devolveu os corpos... mas um dia depois apareceu outro
corpo muito diferente.
O corpo de um dragão.
Tané fora com o Ancião Vara ao pôr do sol para ver o
deus sem vida. Os degraus eram duros na sua perna de
ferro e haviam demorado muito para chegar à praia, mas
ele estava decidido a ir e Tané não saíra do seu lado.
Tinham encontrado um jovem dragão seiikine
retorcido na areia, a sua mandíbula frouxa na morte. Os
pássaros já haviam bicado o brilho das suas escamas e a
névoa agarrava-se aos seus ossos. Tané estremeceu com
a visão e, por fim, quando não podia suportar mais,
desviou o olhar, em agonia.
Ela nunca tinha visto a carcaça de um dragão. Era a
coisa mais ter­rível que já vira. A princípio pensaram que
a pequena fêmea tinha sido massacrada em Kawontay e
os restos mortais abandonados ao mar — Tané pensara
em Nayimathun e adoecera —, mas o corpo estava intei­‐
ro, com todas as suas escamas, dentes e garras.
Os deuses não se podiam afogar. Eram um com a
água. Finalmente, os anciãos concluíram que aquele
dragão fora fervido.
Fervido vivo pelo próprio mar.
Nada era mais anormal. Nenhum presságio poderia
ser mais sinistro.
Mesmo se todos os estudiosos tivessem combinado as
suas forças, não se­riam capazes de mover o dragão-
fêmea. Ela seria deixada para se decom­por até à
inexistência. Por fim, tudo o que restaria seriam ossos
iridescentes.

***

O cirurgião chegou enquanto Tané varria as folhas


com outros três estu­diosos, trabalhando em silêncio.
Alguns tremiam de lágrimas. A morte do dragão deixara
todos em choque.
— Estudiosa Tané — chamou o Ancião Vara.
Ela seguiu-o pelos corredores como uma sombra.
— A cirurgiã finalmente chegou. Pensei que pudesse
examinar a vos­sa ferida — disse ele. — A erudita Doutora
Moyaka pratica medicina seiikine e mêntica.
Tané parou de repente.
Moyaka. Ela conhecia aquele nome.
O Ancião Vara voltou-se para encará-la, com uma
sobrancelha franzida.
— Estudiosa Tané, pareceis angustiada.
— Não. Por favor, Ancião Vara. Moyaka... — Sentiu-se
mal.
Moyaka conhece alguém que me ameaçou. Que
ameaçou o meu dragão.
Podia ver Roos novamente, na praia. O seu sorriso
insensível quando dissera que ela deveria mutilar o seu
dragão ou perderia tudo. Moyaka permitiu que aquele
monstro ficasse na sua casa.
— Sei que os vossos últimos dias em Seiiki foram
infelizes, Tané. — O Ancião Vara falou gentilmente. —
Também sei como é difícil deixar o passado para trás.
Mas na Ilha das Penas, é preciso deixar ir.
Tané olhou para o seu rosto enrugado.
— O que sabeis? — sussurrou.
— Tudo.
— Quem mais sabe?
— Apenas eu e o honrado Alto Ancião.
As suas palavras fizeram-na sentir-se despida. No
fundo, esperava que a Governadora de Ginura não
revelasse a ninguém o motivo pelo qual tinha sido
expulsa de Seiiki.
— Se tendes a certeza de que não quereis ver Moyaka
— disse o Ancião Vara —, dizei-lo mais uma vez e levar-
vos-ei ao vosso quarto.
Não tinha vontade alguma de ver o Doutor Moyaka,
mas também não queria envergonhar o Ancião Vara
agindo como uma criança.
— Irei vê-lo — disse.
— Vê-la — corrigiu ele.
Uma mulher robusta de Seiiki esperava-os na sala de
cura, onde uma fonte de água borbulhava. Tané nunca a
tinha visto antes, mas era clara­mente parente do Doutor
Moyaka que conhecera em Ginura.
— Bom dia, honrada estudiosa. — A mulher curvou-se.
— Entendo que tendes uma lesão na lateral.
— Uma velha — explicou o Ancião Vara, quando Tané
apenas se curvou em resposta. — É um inchaço que tem
desde a infância.
— Compreendo. — A erudita Moyaka bateu nas
esteiras, onde ti­nham colocado uma manta e um apoio
para a cabeça. — Abri a vossa túnica, por favor, honrada
estudiosa, e deitai-vos.
Tané obedeceu às instruções.
— Dizei-me, Purumé — disse o Ancião Vara à médica
—, houve mais ataques em Seiiki pela Frota do Olho de
Tigre?
— Não desde a noite em que vieram a Ginura, que eu
saiba — res­pondeu Moyaka pesadamente. — Mas
voltarão em breve. A Imperatriz Dourada está
encorajada.
Tané precisou de toda a sua força de vontade para não
se encolher com o toque. O caroço ainda estava sensível.
— Ah, aqui está. — Moyaka traçou a forma do caroço.
— Quantos anos tendes, honrada estudiosa?
— Vinte — disse Tané suavemente.
— E tendes isso desde a vossa infância?
— Desde criança. O meu erudito professor disse que a
minha costela partiu uma vez.
— Costuma doer?
— Às vezes.
— Hum. — Moyaka examinou-a com a ponta dos
dedos. — Pela sensação, é mais provável que seja uma
espora de osso, nada com que vos preocupardes, mas
gostaria de fazer uma pequena incisão. Só para ter a
certeza. — Abriu um estojo de couro. — Precisareis de
algo para a dor?
A velha Tané teria recusado, mas tudo o que
desejava desde que che­gara ali era não sentir nada. Para
se esquecer de si mesma.
Um dos alunos mais jovens trouxe gelo das
cavernas, embrulhado em lã para o manter frio. Moyaka
preparou a droga e ela tomou-a através de um cachimbo.
O fumo roçou a sua garganta em carne viva. Quando
atingiu o peito, soprou um doce e escuro conforto no seu
sangue, e o seu corpo era metade pena e metade pedra,
afundando enquanto os seus pensamentos se
iluminavam.
O peso da sua vergonha evaporou-se. Pela primeira
vez em semanas, respirou com facilidade.
Moyaka segurou o gelo ao seu lado. Uma vez que Tané
já não podia sentir grande coisa, a médica escolheu um
instrumento, lavou-o em água fervente e deslizou a sua
ponta sob o caroço.
Uma dor distante foi registada. A sombra da dor. Tané
pressionou as palmas das mãos no chão.
— Estais bem, criança? — perguntou o Ancião Vara.
Havia três dele. Tané acenou com a cabeça, e o
mundo parecia ace­nar com ela. Moyaka fez a incisão.
— Isto é... — Ela pestanejou. — Estranho. Muito
estranho.
Tané tentou levantar a cabeça, mas o seu pescoço
estava fraco como uma folha. O Ancião Vara colocou a
mão no seu ombro.
— O que é, Purumé?
— Não posso ter a certeza até o remover — foi a
resposta intrigada. — Mas... bem, quase se parece com
uma...
A sua descoberta foi interrompida por um estrondo
vindo de fora.
— Outro terramoto — disse o Ancião Vara. A sua voz
parecia tão distante.
— Aquilo não pareceu um terramoto. — Moyaka
enrijeceu. Grande Kwiriki, salvai-nos...
Um brilho irrompeu pela janela. O chão tremeu e
alguém gritou fogo. Momentos depois, a mesma voz
soltou um grito de arrepiar a espinha antes de ser
cortada bruscamente.
— Bestas de fogo. — O Ancião Vara já estava de pé. —
Tané, rápido. Temos de nos abrigar na ravina.
Bestas de fogo. Mas nenhuma besta de fogo fora vista
no Oriente du­rante séculos...
Ele puxou o braço dela ao redor dos seus ombros
ossudos e ergueu-a do colchão. Tané cambaleou. A sua
mente estava confusa, mas manteve o bom senso de se
mover. Sem sapatos e entorpecida, foi com o Ancião.
Vara e a Doutora Moyaka pelos corredores e para o
refeitório, onde ele abriu a porta do pátio. Outros
estudiosos dirigiam-se para a floresta.

Os cheiros de chuva e fogo misturaram-se ao seu


redor. O Ancião Vara apontou para a ponte.
— Atravessai. Há uma caverna do outro lado,
esperai por mim dentro dela e desceremos juntos —
disse o Ancião Vara. — A Doutora Moyaka e eu devemos
verificar que ninguém seja deixado para trás. — Ele deu-
lhe um empurrão. — Ide, Tané. Rápido!

— E mantende a pressão sobre o ferimento — disse


a Doutora Moyaka atrás dela.

Tudo se movia como se fosse através da água. Tané


começou a correr desajeitadamente, mas parecia que
estava a nadar.

A ponte estava à vista da Casa Vane. Aproximava-


se quando uma sombra voou acima dela. O calor
flamejou contra as suas costas. Ela tentou ir mais rápido,
mas a exaustão fê-la tropeçar e, a cada passo, a incisão
gotejava mais sangue. A dor bateu na armadura
acolchoada em que a droga a envolvera.
A ponte cruzava a ravina perto das Cataratas de
Kwiriki. Um ancião já estava a guiar um grupo de
estudiosos sobre ela. Tané tropeçou atrás deles, uma
mão pressionada ao lado do corpo.
Abaixo da ponte havia uma queda fatal no Caminho
do Ancião. As copas das árvores erguiam-se da névoa.
Outra sombra caiu de cima. Ela tentou gritar um
aviso aos outros estudiosos, mas a sua língua era um
pedaço de pano na sua boca. Uma bola de fogo atingiu o
telhado da ponte. Segundos depois, uma cau­da
pontiaguda transformou-a numa explosão de estilhaços.
A madeira rangeu e partiu-se sob os pés. Tané quase caiu
quando parou de correr para ela. Impotente, observou
enquanto a estrutura tremia, um buraco aberto rasgado
no seu meio. Uma terceira besta de fogo quebrou um dos
pilares que o ancoravam. Silhuetas sem rosto gritaram
enquanto escorregavam da borda e se precipitavam.
A chama rasgou carne e madeira igualmente. Outra
secção da ponte se desmoronou, como um tronco que
ficava em chamas por muito tem­po. O vento uivava na
esteira das asas.

Não havia escolha. Ela teria de saltar. Tané correu


para a ponte, os olhos a arder no fumo, enquanto as
bestas de fogo se viravam para um segundo ataque.

Antes que pudesse alcançar a abertura, os seus


joelhos cederam. Ela rolou para amortecer a queda e sua
pele rasgou-se como papel molhado. Soluçando de
agonia, estendeu a mão para o lado — e o caroço, a coisa
que carregara durante anos, escorregou da costura
estourada no seu corpo. Estremecendo, olhou para ela.

Uma joia. Lisa com o seu sangue, e não maior do


que uma castanha. Uma estrela aprisionada numa pedra.

Não havia tempo para ficar confusa. Mais bestas de


fogo se reuniam. Fraca com a dor, Tané fechou a mão em
torno da joia. Enquanto lutava para atravessar a ponte,
mais tonta a cada momento, algo se espatifou no telhado
e pousou à frente dela.

Viu-se cara a cara com um pesadelo.


Parecia e cheirava a restos de uma erupção
vulcânica. Carvões ace­sos onde deveria haver olhos.
Escamas pretas. O vapor assobiava onde a chuva
pontilhava a sua pele. Duas pernas musculadas
suportavam a maior parte do seu peso, e as juntas das
suas asas terminavam em gan­chos cruéis — e aquelas
asas. As asas de um morcego. Uma cauda de lagarto
chicoteava atrás. Mesmo com a cabeça baixa, ele erguia-
se sobre ela, os dentes à mostra e manchados de
sangue.
Tané estremeceu sob o seu olhar. Não tinha espada
ou alabarda. Nem mesmo uma adaga para lhe arrancar o
olho. Outrora poderia ter orado, mas nenhum deus daria
ouvidos a uma cavaleira em desgraça.
A besta de fogo rosnou em desafio. A luz queimava-
lhe a garganta e Tané percebeu que estava prestes a
morrer. O Ancião Vara encontraria as suas ruínas
fumegantes e seria o fim de tudo.
Ela não temia a morte. Os cavaleiros de dragão
estavam em perigo mortal todos os dias, e desde que era
uma criança que sabia dos riscos que enfrentaria ao
juntar-se ao Clã Miduchi. Uma hora antes, poderia até ter
abraçado esse fim. Melhor do que a putrefação oriunda
da vergonha.
No entanto, quando o instinto lhe disse para
segurar a joia — para lutar até ao fim com o que quer
que tivesse —, ela obedeceu.

Queimou branco-frio contra a sua palma quando a


empurrou para a besta. Uma luz cegante irrompeu de
dentro dela.

Segurava um nascer da lua na mão.

Com um grito, a besta de fogo recuou do clarão.


Erguendo a asa para proteger o rosto, soltou um grito
rouco, repetidamente, como um corvo a saudar o
crepúsculo.

O céu ganhou vida com respostas ecoantes.

Ela aproximou-se, segurando ainda a joia. Com um


último olhar de ódio, a besta de fogo rugiu mais uma vez,
puxando a asa do rosto para trás e lançando-se para o
céu. Quando se desviou em direção ao mar, os seus
parentes desviaram-se atrás dele e desapareceram na
noite.

O outro lado da ponte desmoronou-se na ravina,


lançando uma nu­vem de cinzas. Os seus olhos
encheram-se de lágrimas. Fraca de dor, arrastou-se de
volta para a Casa Vane. Metade da sua túnica estava
vermelha.
Enterrou a joia no solo do pátio. Fosse o que fosse,
tinha de a manter escondida. Como fizera durante toda a
sua vida.
O telhado da sala de cura fora destruído. Ela
procurou o estojo de Moyaka nos tapetes molhados e
encontrou-o virado para cima no canto. Perto do fundo
havia um rolo de barbante e uma agulha torta.
O cachimbo da droga fora quebrado. Quando tirou a
mão do feri­mento, o sangue jorrou.
Com dedos desajeitados, enfiou a linha na agulha.
Limpou o corte o melhor que pôde, mas a sujidade colou-
se nas bordas. Tocar-lhe fez a es­curidão embaciar a sua
visão. Com a cabeça a girar e a boca seca, tateou
novamente em busca de anestesiante e encontrou uma
garrafa âmbar.
O pior ainda estava por vir. Teria de ficar acordada,
só mais um pouco. Nayimathun e Susa haviam sofrido
por causa dela. Agora, era a sua vez.
A agulha perfurou-lhe a pele.
46
Sul

As cozinhas ficavam atrás da cascata, logo abaixo dos


solários.
Quando era criança, Ead adorava entrar
sorrateiramente com Jondu e roubar doces de rosa de
Tulgus, o chefe dos cozinheiros.
A copa estava salpicada de sol e cheirava a
especiarias. Os serviçais estavam a preparar arroz
perolado, cebolinha e frango marinado em limão para o
jantar.
Encontrou Loth a arrumar um prato de frutas com
Tulgus. As suas pálpebras pareciam pesadas.
Raiz de Papoila. Tentavam fazê-lo esquecer.
— Boa tarde, irmã — disse o cozinheiro de cabelos
brancos. Ead sor­riu, tentando não olhar para Loth.
— Lembras-te de mim, Tulgus?
— Sim, irmã. — Ele devolveu o sorriso. — Com certeza
lembro-me de quantas das minhas comidas roubaste.
Os seus olhos eram de um amarelo-claro como óleo
de amendoim.
Talvez tivesse sido ele quem dera os olhos a Nairuj.
— Eu cresci desde então. Agora peço. — Ead baixou a
voz e aproximou-se. — A Nairuj disse que poderias
deixar-me provar um pouco do vinho do sol da Prioresa.
— Hum. — Tulgus limpou as mãos manchadas de
fígado num pano. — Um copo pequeno. Considera-o um
presente de boas-vindas dos Filhos de Siyāti. Fá-lo-ei ser
entregue no teu quarto.
— Obrigada.
Loth olhava para ela como se fosse uma estranha.
Ead usou todas as suas forças para evitar o seu olhar.
Enquanto se dirigia à porta, avistou as urnas onde as
ervas e especia­rias eram armazenadas. Vendo a
preocupação de Tulgus, Ead encon­trou o frasco de que
precisava, apanhou uma pitada generosa do pó lá dentro
e colocou-o numa bolsa.
Pegou num bolo de mel de uma bandeja antes de
sair. Demoraria muito tempo até que voltasse a comer
outro.
Durante o resto do dia, fez o que qualquer outra
Dama Vermelha faria antes de partir para uma longa
viagem. Praticou tiro com arco sob o olhar atento das
Damas de Prata. Todas as suas flechas acertaram no
alvo. Nos intervalos entre os disparos, Ead certificou-se
de que estava calma e de que preparava as suas flechas
com tranquilidade. Uma única gota de suor poderia
denunciá-la.
Quando chegou ao seu quarto, viu que os alforges e
as armas tinham desaparecido. Aralaq devia ter levado
tudo.
Um suor frio percorreu-lhe o corpo.
Agora já não podia voltar atrás.
Respirou fundo e recuperou a compostura. A Mãe não
teria ficado parada a ver o mundo cair nas chamas.
Afastou as últimas dúvidas, ves­tiu a camisa de dormir e
deitou-se na cama, fingindo ler. Lá fora, a luz do dia
estava a desaparecer.
Loth e Aralaq já estariam à sua espera. Quando estava
completamen­te escuro e bateram à sua porta,
respondeu:
— Entre.
Um dos criados entrou com uma bandeja onde
estavam duas taças e um decantador.
— O Tulgus diz que desejais o vinho do sol, irmã —
disse ele.
— Sim — disse ela, apontando para a mesinha de
cabeceira.
Deixa-o aqui. E abre as portas, por favor.
O homem pousou o tabuleiro, e a expressão de Ead
permaneceu inal­terada, enquanto virava uma página do
seu livro. Enquanto o criado se dirigia para as portas da
varanda, Ead tirou o saco de raiz de papoila da manga e
esvaziou-o numa das chávenas. Quando o homem se
virou, ela já tinha a outra chávena na mão e a saqueta
tinha desaparecido de vista. Ele pegou na bandeja e foi-
se embora.
Uma rajada de vento entrou no quarto e apagou a
lamparina a óleo. Ead vestiu a sua roupa de viagem e as
suas botas, ainda manchadas de areia do Burlah. Por
esta altura, a Prioresa já estaria a beber o vinho com a
droga.
Pegou na única faca que ainda não havia sido
embalada e amarrou-a à coxa. Quando se certificou de
que não havia ninguém do lado de fora, cobriu a cabeça
com o capuz e fundiu-se na escuridão.
A Prioresa dormia no quarto mais alto do Priorado,
próximo à nas­cente da cascata, onde podia ver o
amanhecer surgindo além do Vale de Sangue. Ead parou
no arco do corredor. Duas Damas Vermelhas montavam
guarda na porta.
A próxima operação era delicada. Uma habilidade
ancestral que já não era ensinada no Priorado.
Velamento, como Jondu a chamava. Consistia em
acender uma chama minúscula dentro de um corpo vivo,
o suficiente para lhe tirar o fôlego. Requeria muita
destreza.
Com um leve movimento dos dedos, acendeu uma
chama em cada uma das mulheres.
Havia muito tempo que uma irmã não atacava uma
das suas. As gé­meas não esperavam aquele calor seco
que invadiu as suas gargantas. Fumo saiu das suas bocas
e narizes, e as suas mentes ficaram turvas,
entorpecendo-lhes os sentidos. Caíram no chão, e Ead
passou silencio­samente por elas. Ao chegar perto da
porta, escutou com atenção: tudo estava calmo.
No interior, o luar atravessava as janelas. Estava
envolta em sombras.
A Prioresa estava na cama, cercada por véus. O
cálice estava sobre a mesinha. Ead aproximou-se, o
coração a martelar no peito, e olhou para o seu interior.
Vazio.
Olhou para a Prioresa. Uma gota de suor tremia na
ponta de uma mecha de cabelo, sobre os olhos.
Levou apenas um momento para encontrar a joia. A
Prioresa envolvera-a em argila e carregava-a pendurada
ao pescoço, com um cordão.
— Deves julgar-me idiota.
Um arrepio percorreu Ead como uma lança. A
Prioresa virou-se de costas.
— Senti, de alguma forma, que não deveria beber o
vinho esta noite. Uma premonição da Mãe. — A sua mão
fechou-se em torno da joia. — Suponho que essa...
rebelião em ti não seja tudo culpa tua. Era inevitá­vel que
Inys te envenenasse.
Ead não se atreveu a mexer-se.
— Queres voltar para lá. Para proteger a Impostora
— disse a Prioresa. — A tua mãe biológica agita-se em ti.
Zāla também acreditava que devía­mos ampliar os nossos
recursos limitados para proteger toda a humani­dade.
Estava sempre a sussurrar ao ouvido da velha Prioresa,
dizendo-lhe que devíamos proteger todos os soberanos
em cada corte... até mesmo no Oriente, onde adoram os
wyrms do mar. Onde os idolatram como deuses.
Exatamente como o Inominável gostaria que fizéssemos
com ele. Ah, sim... Zāla teria conseguido que os
protegêssemos também.
Algo no seu tom parecia errado. O ódio que continha.
— A Mãe amava o Sul. Foi o Sul que procurou
proteger do Inominável — continuou. — E foi o Sul que
jurei proteger em seu nome. Zāla ter-nos-ia feito abrir os
braços ao mundo e, ao fazê-lo, expor os nossos ventres à
espada.
Tudo porque a Mita Yedanya lhe disse que eu tinha
envenenado a tua mãe biológica. Kalyba exibira um
sorriso de escárnio. Como se eu me rebaixasse a
envenenar alguém.
Mita banira a bruxa e nunca permitira que ela
voltasse. Afinal, uma estranha era um bode expiatório
fácil.
— Não foi a bruxa que matou Zāla. — Ead fechou a
mão em torno da sua lâmina, e isso deixou-a nervosa. —
Fostes vós.
Estava fria até os ossos. A Prioresa ergueu as
sobrancelhas.
— Que queres dizer com isso, Eadaz?
— Odiáveis que Zāla procurasse defender o mundo
além do Sul. Odiáveis a sua influência. Sabíeis que
apenas se iria intensificar quando fosse nomeada
Prioresa. — O arrepio percorreu-lhe a pele. — Para con­‐
trolar o Priorado... tínheis de vos livrar dela.
— Fi-lo pela Mãe.
A confissão foi tão direta quanto o resto de si.
— Assassina — sussurrou Ead. — Haveis assassinado
uma irmã.
Doces de mel. Abraços calorosos. Todas as suas vagas
memórias de Zāla voltaram, e o calor cresceu-lhe nas
pálpebras.
— Para proteger as minhas irmãs e garantir que o
Sul sempre tivesse a proteção de que precisava, estava
disposta a fazer qualquer coisa. — Com um suspiro quase
exasperado, a Prioresa sentou-se. — Concedi-lhe uma
morte silenciosa. A maioria condenou Kalyba antes
mesmo de eu abrir a boca. Era um insulto à Mãe que ela
tivesse vindo aqui, ela que amara o Impostor o suficiente
para lhe forjar a espada. Ela é nossa inimiga.
Ead mal podia ouvi-la. Pela primeira vez na sua vida,
sentiu o fogo draconiano no seu sangue. A raiva era uma
fornalha na sua barriga, e o seu rugido superou todos os
outros sons.
— A joia. Dai-ma e partirei em paz. — A sua voz
estava distante dos próprios ouvidos. — Posso usá-la
para encontrar Ascalon. Deixai-me terminar o que Jondu
começou e proteger a integridade do Reino das Virtudes,
e não direi uma palavra da vossa ofensa.
— Alguém empunhará a joia — foi a resposta. — Mas
não serás tu.
O movimento foi tão rápido como uma mordida de
víbora, demasiado para ser evitado. O calor branco
açoitou-lhe a pele. Ead cambaleou para trás, uma mão
sob a garganta, onde o sangue jorrava espesso e rápido.
A Prioresa cortou os restos do véu. A lâmina na sua
mão estava man­chada de vermelho.
— Só a morte pode mudar o portador. — Ead olhou
para o sangue nos seus dedos. — Pretendeis matar a
mãe biológica e a filha?
— Não verei um presente da Mãe nas mãos de
alguém que a abando­naria de boa vontade — disse Mita
calmamente. — A joia permanecerá sob os seus ossos
até que o Inominável ameace o povo do Sul. Não será
usada para proteger uma impostora ocidental.
Ergueu a lâmina num movimento fluído, como uma
nota musical crescente.
— Não, Eadaz — disse. — Não o permitirei.
Ead olhou para aqueles olhos decididos. Os seus
dedos curvaram-se ao redor do cabo da sua lâmina.
— Ambas servimos a Mãe, Mita — disse ela. —
Veremos qual de nós ela favorece.

***

A folhagem das árvores era tão densa que o luar mal


chegava ao solo da Bacia de Lasia. Loth caminhava pela
clareira, limpando o suor das mãos e tremendo, como se
tivesse febre.
O ichneumon tinha-o conduzido através de um
labirinto de passagens antes de chegar àquele lugar. Loth
não percebera que ia ser salvo até sentir o ar quente da
floresta. Finalmente, o efeito da bebida que lhe tinha sido
dada começava a passar.

Agora, o ichneumon estava encolhido numa rocha


próxima, com os olhos fixos na entrada da caverna. Loth
preparara a sela, da qual pen­diam alforges e cantis.
— Onde está ela?
Não teve resposta. Loth limpou o lábio superior com
uma mão e mur­murou uma prece ao Cavaleiro da
Bravura.
Não se tinha esquecido. Haviam tentado apagar-lhe a
mente, mas o Santo sempre estivera lá, no seu coração.
Tulgus avisara-o para que não se rebelasse, por isso
limitara-se a rezar e a esperar pela salvação. Essa
salvação veio sob a forma da mulher que outrora
conhecera como Ead Duryan.
Ela ia ajudá-lo a regressar a Inys. Tinha tanta fé nisso
como tinha no Cavaleiro da Camaradagem.
Quando o ichneumon finalmente se pôs de pé, fê-lo
com um grunhido. Dirigiu-se a um buraco nas raízes das
árvores e voltou juntamente com Ead, que parecia
exausta. O seu braço estava à volta do pescoço de
Aralaq e levava outro saco de pano ao ombro. Loth
correu ao seu encontro.
— Ead.
Ela estava banhada em sangue e suor, com o cabelo
emaranhado sobre os ombros.
— Loth — disse ela —, temos de partir
imediatamente.
— Põe-na em cima de mim, homem de Inys.
Aquela voz profunda sobressaltou Loth. Quando viu
de onde vinha, a sua boca escancarou-se.
— Consegues falar — gaguejou.
— Sim — respondeu o ichneumon, que voltou
imediatamente o seu olhar para Ead. — Estás a sangrar.
— Há de parar. Temos de ir.
— As irmãs do Priorado virão buscar-te em breve. Os
cavalos são lentos. E burros. Não consegues apanhar um
ichneumon se não mon­tares outro.

Ead encostou o rosto ao seu pelo.


— Se nos apanharem, matar-te-ão. Fica, Aralaq. Por
favor.

— Não — disse ele, abanando as orelhas. — Para


onde fores, irei também.

O ichneumon fletiu as patas da frente. Ead olhou


para Loth.

— Loth — disse ela, a voz rouca —, ainda confias


em mim?
Loth engoliu em seco.
— Não sei se confio na mulher que és agora —
reconheceu —, mas confio na mulher que conheci.
— Então cavalga comigo — disse, segurando-lhe o
queixo com uma mão — e se eu perder a consciência,
continua a cavalgar para noroeste, em direção a
Córvugar. — Os dedos dela deixaram uma mancha de
sangue na cara dele. — Faças o que fizeres, Loth, não os
deixes ficar com isto. Mesmo que tenhas de me deixar
para trás.
Na sua mão segurava algo atado a um cordel. Uma
pedra preciosa redonda e branca, presa a um molde de
argila.
— O que é isso?
Ela abanou a cabeça.
Não sem esforço, Loth levantou-a para a sela. Subiu,
envolveu-a com um braço e segurou-a contra o peito,
agarrando o ichneumon com a outra mão.
— Agarra-te a mim — sussurrou-lhe ao ouvido. — Eu
levo-te a Córvugar. Tal como tu me trouxeste aqui.
47

Sul

Aralaq corria a toda a velocidade pela floresta. Loth


achava que já o tinha visto exibir toda a sua velocidade
na Roca, mas agora mal conseguia segurar o ichneumon
enquanto saltava sobre raízes retorcidas, sobre riachos, e
se esquivava de árvores, leve como uma pedra batendo
contra a superfície da água.

Aralaq continuou para norte, afastando-se do


matagal, e Loth adorme­ceu. Os seus sonhos levaram-no
primeiro àquele túnel amaldiçoado em Yscalin, onde Kit
ainda devia estar enterrado, e depois mais além, à sala
de mapas da propriedade da família, onde o seu tutor lhe
falava sobre a histó­ria do Domínio de Lasia, com Margret
sentada ao seu lado. Sempre fora uma aluna assídua,
ansiosa por aprender sobre as origens antigas do Sul.
Tinha perdido a esperança de voltar a ver a irmã.
Agora, talvez hou­vesse uma hipótese.
Amanhecer e pôr do sol. O barulho dos cascos contra
o chão. Quando o ichneumon parou, Loth acordou
finalmente.
Limpou a areia dos olhos. Um lago estendia-se por
uma extensão poeirenta, como uma mancha cor de safira
sob o céu. Nas suas mar­gens banhavam-se olifantes de
água. Para lá dele, havia os grandes picos rochosos que
protegiam o Nzene e o castanho-avermelhado da argila
tostada pelo sol. O Monte Dinduru, o maior de todos, era
quase perfei­tamente simétrico.
Ao meio-dia, estavam no sopé das montanhas.
Aralaq subiu por um caminho de cabras. Quando já
estavam tão alto que as suas pernas tre­miam, Loth
arriscou um olhar para baixo.
Viu Nzene. A capital de Lasia estava rodeada pelas
altas muralhas de arenito das Espadas dos Deuses. As
montanhas, mais altas e mais verticais do que qualquer
outra no mundo conhecido, lançavam as suas sombras
sobre as ruas, cortando-as como facas. Uma vasta
estrada estendia-se para lá, sem dúvida uma rota
comercial para o Ersyr.
As ruas, que brilhavam à luz do Sol, eram ladeadas
por palmeiras e zimbros. Loth localizou a Biblioteca
Dourada de Nzene, construída em arenito das ruínas de
Yikala, e ligada por um passadiço ao Templo do Sonhador.
Muito mais acima, encontra-se o Palácio do Grande
Onjenyu, onde residiam a Alta Governante Kagudo e a
sua família, num promontório sobre as casas. O rio Lase
abria-se em dois, rodeando o seu jardim sagrado.
Aralaq farejou a área e encontrou abrigo debaixo de
um afloramento rochoso, suficientemente profundo para
os proteger dos elementos.
— Porque estamos a parar? — perguntou Loth,
limpando o suor do rosto. Ead disse-nos para não
pararmos até Córvugar.
Aralaq flexionou as patas dianteiras para que Loth
pudesse desmontar.
— A lâmina com a qual ela foi ferida estava
impregnada com uma secreção de sanguessugas do
gelo. Impede que o sangue coagule — disse ele. —
Encontraremos uma cura em Nzene.
Loth puxou Ead do seu lugar.
— Quanto tempo vais demorar?
O ichneumon não respondeu. Lambeu a testa de Ead
e depois desapareceu.

***

Quando Ead acordou do seu mundo de sombras,


estava a anoitecer. A sua cabeça girava como um
caldeirão bem mexido. Tinha uma vaga consciência de
que estava numa gruta, mas não se lembrava de como lá
tinha ido parar.
Colocou a mão na clavícula e, sentindo a joia entre
elas, respirou novamente.
Recuperá-la custara-lhe muito caro. Lembrou-se do
aço da lâmina, e da picada do que quer que fosse que a
intoxicara, enquanto arrancava a joia a Mita. Acendera
uma chama com a ponta dos dedos e incendiara a cama,
antes de trepar pelo corrimão e cair no vazio.
Caíra como um gato, num parapeito da cozinha.
Felizmente, não es­tava lá ninguém, pelo que tinha um
caminho livre para escapar. Mesmo assim, mal tinha
conseguido chegar até Aralaq e Loth antes de ficar sem
forças.
Mita merecia uma morte cruel pelo que tinha feito a
Zāla, mas não seria Ead quem lha daria. Ela não se
denegriria matando uma irmã.
Uma língua quente lambeu-lhe a testa, afastando
uma madeixa de cabelo. De repente, encontrou o focinho
de Aralaq quase no seu nariz.
— Onde estamos? — indagou, rouca.
— Nas Espadas dos Deuses.
Não. Ergueu as costas, contendo um gemido ao
sentir a dor na barriga.
— Paraste. — Esforçou-se para falar. —És um idiota.
As Damas Vermelhas...
— Era isto ou deixar-te esvaíres-te em sangue —
disse Aralaq, chei­rando a sua compressa na barriga. —
Não nos disseste que a Prioresa tinha mergulhado o
punhal em glínio.
— Não fazia ideia.
Ela já devia estar à espera. A Prioresa queria matá-
la, mas não o podia fazer sem levantar suspeitas. Era
melhor deixá-la esvair-se em san­gue lentamente, depois
dizer às Damas Vermelhas que a irmã acabada de
regressar era uma traidora e ordenar que a matassem.
Assim não sujava as mãos.
Ead levantou a compressa. A ferida estava dorida,
mas a pasta de flor de sabra absorvera o veneno.
— Aralaq — disse, desta vez em inysh —, sabes como
as Damas Vermelhas são rápidas. — A presença de Loth
fê-la alternar para a sua língua. — Disse-te para não
parares em circunstância alguma.
— A Alta Governante Kagudo tem um remédio para ti.
Os ichneumons não deixam as suas irmãzinhas morrer.
Ead tentou controlar a sua respiração, para se
acalmar. Não era pro­vável que as Damas Vermelhas já
estivessem à procura dela nas Espadas dos Deuses.
— Temos de agir rápido — disse Aralaq, olhando para
Loth. — Vou verificar se não há perigo.
Saiu, e fez-se um grande silêncio.
— Estás zangado, Loth? — perguntou finalmente Ead.
Ele olhou para Nzene. Acenderam-se tochas nas ruas
da capital, que brilhavam como fagulhas.
— Devia estar — murmurou. — Contaste-me muitas
mentiras. O teu nome. A razão pela qual estavas em Inys.
A tua conversão.
— As nossas religiões estão ligadas. Ambas se opõem
ao Inominável.
— Nunca acreditaste no Santo. Bem — ele corrigiu-se
—, acreditaste. Mas pensavas que era um bruto e um
cobarde que queria forçar um país a aceitar a sua
religião.
— E que exigiu a mão da Princesa Cleolind antes de
matar o monstro, sim.
— Como podes dizer uma coisa dessas, Ead, quando
estiveste no santuário e lhe prestaste homenagem?
— Fi-lo para sobreviver — respondeu. Mas viu que
Loth continuava a recusar-se a olhar para ela. —
Confesso que sou o que chamarias de feiticeira, mas
nenhuma magia é má. O mal está em quem a usa.
Loth olhou finalmente para ela, com um esgar de
rancor.
— E o que podes tu fazer?
— Consigo desviar o fogo dos wyrms. Sou imune à
peste draconiana. Consigo criar barreiras protetoras. As
minhas feridas curam-se depres­sa. Consigo mover-me
nas sombras. Posso tornar a minha espada mais
mortífera do que a de qualquer cavaleiro.
— Consegues criar fogo?
— Sim. — Abriu a palma da mão e nela surgiu uma
chama. — Fogo natural. — Fechou a mão, abriu-a
novamente e a chama tornou-se pra­teada. — Fogo
mágico, que desativa feitiços. — Voltou a fazê-lo e dessa
vez o fogo surgiu vermelho, e tão quente que Loth
começou a suar. — Fogo de wyrm.
Loth fez o sinal da espada. Ead fechou a mão,
abafando a chama profana.
— Loth — disse —, precisamos de decidir agora
mesmo se podemos ser amigos. Ambos precisamos de
ser amigos de Sabran se este mundo quiser sobreviver.
— Que queres dizer com isso?
— Há muitas coisas que tu não sabes. — Era
certamente um eufe­mismo. — Sabran concebeu uma
filha com Aubrecht Lievelyn, o Grão-Príncipe de
Mentendon. Mas ele foi assassinado — acrescentou
quando viu o seu olhar de choque. — Pouco depois, um
Sombra Ocidental apa­receu no Palácio de Ascalon.
Chamam-lhe o Wyrm Branco. — Fez uma pausa. —
Sabran perdeu a criança.
— Pelo Santo — disse, com a tristeza estampada no
rosto. — Sab... Desculpa por não ter estado lá.
— Queria que tivesses estado — disse Ead, olhando
para ele. — Ela não terá mais filhos, Loth. A dinastia
Berethnet está a chegar ao fim. Os wyrms estão a
erguer-se. Yscalin praticamente declarou guerra, e o
Inominável erguer-se-á novamente, muito em breve.
Tenho a certeza disso.
Loth parecia cada vez mais tonto.
— O Inominável.
— Sim. Ele virá — disse Ead. — Mas não por Sabran.
Não tem nada que ver com ela. Quer haja uma rainha em
Inys, quer haja um Sol no céu, ele irá despertar.
O suor escorria-lhe pela testa.
— Acho que sei como derrotar o Inominável, mas
primeiro temos de garantir a paz no Reino das Virtudes.
Se a guerra civil for declarada, o Exército Draconiano e o
Rei Terreno aproveitarão a oportunidade. Vários membros
dos Duques Espirituais abusaram dos seus poderes ao
longo dos anos. Agora que sabem que não haverá
herdeiro, acho que vão tentar controlar Sabran, ou
mesmo usurpar-lhe o trono.
— Pelo Santo — murmurou Loth.
— Avisaste a Meg sobre o Copeiro. Sabes quem é?
— Não. A única coisa que tirei do Sigoso foi essa frase.
— A princípio pensei que fosse o Falcão da Noite —
admitiu Ead —, mas agora tenho a certeza de que é
Igrain Crest. As taças gémeas são o seu emblema.
— Mas Sab ama-a — disse Loth, visivelmente abatido.
— Além disso, qualquer pessoa que tenha o Cavaleiro da
Justiça como patrono usa as taças... e o Copeiro
conspirou com o Rei Sigoso para matar a Rainha
Rosarian. Porque haveria Crest de fazer uma coisa
dessas?
— Não sei — reconheceu Ead —, mas ela recomendou
que Sabran se casasse com o Supremo Chefe de Askrdal.
Sabran escolheu Lievelyn, e então Lievelyn foi morto.
Quanto aos assassinos...
— Foste tu que os mataste?
— Sim — respondeu Ead, consumida em
pensamentos. — Mas ago­ra já não me parece tão claro
que queriam matá-la. Talvez Crest sempre tivesse
planeado que eles fossem apanhados. A cada intrusão,
Sabran ficava mais aterrorizada. O seu castigo por se
recusar a cumprir o seu dever de dar à luz era um medo
quase constante da morte.
— E a Rainha-Mãe?
— Há muito que se diz na corte que a Rainha Rosarian
levou Gian Harlowe para a cama quando era casada com
o Príncipe Wilstan — disse Ead. — A infidelidade vai
contra os preceitos do Cavaleiro da Camaradagem.
Talvez Crest goste que as suas rainhas se mantenham...
obedientes.
Loth cerrou o maxilar.
— Então, queres que façamos frente a Crest —
concluiu. — Para proteger Sabran.
— Sim. E depois temos um inimigo muito mais antigo
para enfren­tar — disse Ead, olhando para a entrada da
caverna. — Ascalon pode estar em Inys. Se a
encontrarmos, poderemos usá-la para enfraquecer o
Inominável.
Um pássaro cantou de algum lugar acima do seu
abrigo. Loth entre­gou um odre a Ead.
— Ead, tu não acreditas nas Seis Virtudes — disse ele,
olhando-a nos olhos. — Porque queres arriscar tudo por
Sabran?
Ead bebeu.
Era uma pergunta que devia ter feito a si própria
muito antes. Os seus sentimentos tinham florescido
como uma orquídea numa árvore. Primeiro formara um
pequeno botão e, sem dar conta, abrira-se numa flor
eterna.
— Percebi — disse, após um breve silêncio — que ela
foi obrigada a aceitar uma história desde o dia em que
nasceu. Não lhe foi dada outra possibilidade. E, no
entanto, apesar de tudo, vi que uma parte dela era feita
por si própria. À primeira vista, essa pequena parte era
forjada no fogo da sua própria força, resistindo ao
confinamento a que fora sujeita. E compreendi... essa
parte era tão dura como aço. Essa parte era o seu
verdadeiro eu. — Susteve-lhe o olhar. — Sabran será a
rainha que Inys precisa nos tempos que se avizinham.
Loth aproximou-se e sentou-se ao lado dela. Quando
lhe tocou no cotovelo, ela ergueu o olhar.
— Estou muito feliz por nos termos encontrado
novamente, Ead Duryan. — Fez uma pausa. — Eadaz uq-
Nāra.

Ead encostou a cabeça no ombro dele. Loth


suspirou e pôs o braço em torno dela.

Foi quando Aralaq regressou, sobressaltando-os.

— O grande pássaro sobrevoa a zona — disse ele.


— As Damas Vermelhas estão a chegar.
Loth pôs-se de pé. Ead pegou no seu arco e na sua
aljava, parecendo estranhamente calma.
— Aralaq, atravessaremos as Terras Queimadas até
Yscalin. Não ire­mos parar — declarou — até chegarmos a
Córvugar.
Loth montou. Ela passou-lhe o manto e, quando
subiu, ele usou-o para os envolver aos dois.
Aralaq correu para o sopé das montanhas e
escondeu-se nas sombras para vislumbrar o lago. Parspa
sobrevoou as montanhas em silêncio.
Estava suficientemente escuro para passarem
despercebidos. Escondeu-se atrás de outros picos das
Espadas dos Deuses. Quando não havia mais nenhum
lugar para se agachar, Aralaq afastou-se das mon­tanhas
e correu.
As Terras Queimadas de Lasia, onde outrora se
situara a cidade de Jotenya, estendiam-se pelo norte do
país. Durante a Grande Desolação, o território fora
devastado pelo fogo, mas novas relvas o reivindicavam,
e as árvores com folhas, espaçadas, ressurgiam das
cinzas.
O terreno começou a mudar. Aralaq ganhou
velocidade, até que as suas patas voavam sobre a relva
amarela. Ead agarrou-se ao seu pelo. Ainda lhe doía a
barriga, mas tinha de ficar alerta, preparada. Os outros
ichneumons já lhes teriam captado o cheiro.
As estrelas giravam em espiral e tremeluziam acima
deles, brasas no céu como carvão. Diferente daquelas
que salpicavam o céu noturno em Inys.
Mais árvores brotaram da terra. Os seus olhos
estavam secos com o ataque do vento. Atrás dela, Loth
tremia. Ead puxou o manto com mais força ao redor de
ambos, cobrindo as mãos, e permitiu-se imaginar o navio
que os levaria de Córvugar.
Uma flecha passou por Aralaq, por pouco não o
atingindo. Ead virou-se para ver o que enfrentavam.
Havia seis cavaleiras. Chamas vermelhas, cada uma
montada num ichneumon. O branco pertencia a Nairuj.
Aralaq rosnou e aumentou a velocidade. Chegara o
momento. Reunindo a sua força, Ead livrou-se do manto,
agarrou Loth pelo om­bro e lançou-se para trás dele, de
modo que ficassem costas com costas.
A sua melhor hipótese era ferir os ichneumons. Aralaq
era rápido mesmo entre a sua própria espécie, mas o
branco ultrapassava-o. Ao encaixar uma flecha, lembrou-
se de uma Nairuj mais jovem gabando-se de como a sua
montaria poderia cruzar rapidamente a Bacia de Lasia.
Primeiro, permitiu-se ajustar-se a Aralaq. Quando
aprendeu a cadên­cia dos seus passos, ergueu o arco.
Loth esticou o braço e agarrou-lhe os quadris, como se
temesse que ela fosse cair.
A sua flecha cortou a relva, reta e verdadeira. No
último momento, o ichneumon branco saltou sobre ela. O
seu segundo tiro falhou quando Aralaq se desviou do
cadáver de um cão selvagem.
Não podiam fugir daquilo. Nem podiam parar e lutar.
Poderia lidar com duas magas, talvez três, mas não seis
Damas Vermelhas, não com o seu ferimento. Loth seria
muito lento e os outros ichneumons fariam carne de
Aralaq. Ao puxar a corda do arco pela terceira vez,
enviou uma prece à Mãe.
A seta trespassou a pata dianteira de um ichneumon,
que caiu, e com ele a sua cavaleira.
Restavam cinco. Preparou-se para disparar outra vez
quando uma flecha lhe atravessou a perna. Ead soltou
um grito sufocado.
— Ead!
A qualquer momento poderia chegar outra flecha e
ferir Aralaq. E isso seria o fim para os três.
Nairuj acelerou o seu ichneumon. Já estava tão perto
que Ead lhe podia ver os olhos ocres e a linha dura da
sua boca. Não havia ódio naqueles olhos. Era
determinação pura e fria. O olhar de uma caçadora em
busca da sua presa. Levantou o arco e fez pontaria,
compensando os movimentos de Aralaq.
Foi então que o fogo varreu as Terras Queimadas.
O clarão quase cegou Ead. As árvores mais próximas
ficaram em cha­mas. Olhou para cima, procurando a
fonte, enquanto Loth emitia um grito descontrolado. Um
batalhão de sombras atravessava o céu: som­bras aladas
com caudas como chicotes.
Wyverlings. Deviam ter vindo das Pequenas
Montanhas, famintos por carne após séculos de sono. Um
momento depois, Ead já tinha espetado uma flecha no
olho do mais próximo, que caiu na relva com um grito
agudo, quase em cima das Damas Vermelhas, que
tiveram de se esquivar.
Três delas começaram a lutar contra os wyverlings,
enquanto Nairuj e outra Dama Vermelha continuavam a
perseguição. No momento em que uma besta esquelética
se abateu sobre eles, Aralaq tropeçou. Ead virou-se, com
o coração aos saltos, temendo uma mordida. Uma seta
atingira-a de raspão na lateral.
— Tu consegues! — disse em selinyi. — Aralaq,
continua a correr. Continua...
Outro wyverling caiu do céu e embateu numa árvore
mesmo à sua frente. Ao cair, rasgou as raízes da árvore,
soltando um grunhido de pro­testo. Aralaq desviou-se e
passou por ela. Ead sentiu o cheiro a enxofre no corpo da
besta, que emitiu um longo e agonizante guincho de
morte.
Uma das magas aproximou-se. O seu ichneumon era
preto e tinha dentes como navalhas.
Todas elas viram o wyverling demasiado tarde. Uma
chuva de fogo consumiu a Dama Vermelha, e o seu
manto foi engolido pelas chamas. Caiu no chão e rebolou
para o apagar. O fogo incendiou-se na relva e espalhou-
se na direção de Aralaq. Ead estendeu a mão.
A sua proteção desviou o fogo como um escudo
desviaria uma maçã. Loth gritou quando viu as chamas a
aproximarem-se. O wyverling desviou-se com um grito,
engolindo o fogo. O caos espalhou-se entre as Damas
Vermelhas, que se viram perseguidas e acossadas,
rodeadas pelas criaturas. Ead virou-se, procurando Nairuj
com os olhos.
O ichneumon jazia no chão, ferido. Um wyvern
atacava Nairuj, as suas mandíbulas manchadas com o
sangue da sua montada. Sem hesitar, Ead colocou a sua
última flecha no arco.
Atingiu o wyvern no coração.
Loth puxou-a de volta para a sela. Ead viu que Nairuj
a observava, com um braço sobre a barriga, mas, num
instante, Aralaq estava a leva­dos para longe das árvores,
acelerando para a escuridão.
Cheirava a queimado. Loth envolveu o manto à volta
de Ead. Apesar da distância, as línguas de fogo ainda
podiam ser vistas nas Terras Queimadas, brilhando como
os olhos do Inominável. Ead deixou cair a cabeça para a
frente e perdeu a consciência.

***

Acordou ao ouvir Loth chamar o seu nome. A relva, o


fogo e as árvores tinham desaparecido. No seu lugar
havia casas feitas de coral. Corvos nos telhados. E calma.
Uma calma profunda.
Era uma cidade que enterrara mais habitantes do
que aqueles que ainda tinha. Um navio com velas
desbotadas e uma máscara em forma de ave marinha
em voo aguardava no porto, um porto silencioso onde
terminava o Ocidente. A madrugada tingia o céu de um
delicado tom de rosa, e diante deles estendiam-se as
águas negras do mar.
Córvugar.
48
Este

As árvores da Ilha das Penas tinham finalmente


parado de arder.
A chuva caía em gotas grossas, regando os ramos,
dos quais ainda subia um fumo amarelado e fedorento. A
Menina das Sombras saiu do seu esconderijo e enfiou as
mãos na terra.
O cometa acabou com a Grande Desolação, mas não
foi a primeira vez que passou por este mundo. Já o fez
muitas vezes. Uma vez, há muitas luas, deixou para trás
duas joias celestiais, ambas com o seu poder.
Fragmentos sólidos de si mesmo.
Levantou a joia que trazia a seu lado, a joia que
protegera e guardara com o seu próprio corpo, e a chuva
lavou-a, eliminando a lama que a cobria.
Com elas, os nossos antepassados podiam controlar
as ondas. A sua presença permitia-nos manter a nossa
força mais do que antes.
A joia brilhava nas suas palmas. Era azul, e escura
como o Abismo, como o seu coração.
Mas elas perderam-se há quase mil anos.
Aquela não estava perdida. Fora escondida.
Tané segurou a joia contra o peito. No olho da
tempestade, onde em tempos antigos promessas eternas
eram feitas diante dos deuses, fez um juramento.
Mesmo que lhe custasse toda a vida, encontraria
Nayimathun, libertá-la-ia do seu cativeiro e dar-lhe-ia
aquela joia. Mesmo que demorasse o resto da vida,
devolveria a joia roubada ao dragão.
IV
Teu é o Rainhado

Porque não inalas


essências de lua e estrelas
e te embebes no ouro dos textos sagrados?

— Lu Qingzi
49
Oeste

Loth estava no convés do Pássaro da Verdade. O


coração pesado enquanto observava Inys a aproximar-se.
Melancolia. Essa foi a primeira palavra que lhe veio à
mente quando viu a sua costa desolada. Parecia que
nunca tinha visto o toque do sol, ou ouvido uma canção
alegre. Navegavam em direção a Ponto Albatroz, o
assentamento mais a oeste de Inys, que já fora o centro
do comércio com Yscalin. Se cavalgassem muito,
descansassem o mínimo possível e não encontrassem
bandidos, poderiam chegar a Ascalon numa semana.
Ead mantinha vigilância ao lado dele. Já parecia algo
menos viva do que em Lasia.
O Pássaro da Verdade passara pela Baía das
Alforrecas a caminho de Inys. Navios ancorados
guardavam-no, mas, através de uma luneta, avis­taram o
braço naval incipiente do Exército Draconiano.
O Rei Sigoso em breve estaria pronto para invadir. E
Inys precisaria de estar pronta para o repelir.
Ead não disse nada ao ver aquilo. Apenas estendeu a
mão aberta para cinco navios ancorados e, do nada,
apareceram chamas que se espalha­ram pelos mastros.
Observou o fogo a devorar os navios sem expressão no
rosto, iluminado pela luz laranja do fogo.
Loth, que estava absorto, voltou a si de repente; uma
rajada de vento frio fê-lo apertar ainda mais o manto à
sua volta.
— Inys — disse ele, emitindo nuvens de vapor branco
e espesso enquanto falava. — Pensei que nunca mais a
veria.
Ead pousou-lhe uma mão no braço.
— A Meg nunca se resignou a nunca mais te ver.
Nem Sabran.
Um momento depois, ele cobriu-lhe a mão com a
sua.
Desde o início da viagem que havia um muro entre
eles. Loth não se sentia à vontade com ela e Ead nada
tinha feito para o afastar dos seus pensamentos. Mas,
pouco a pouco, o afeto de outrora voltara a instalar-se
nos seus corações. No seu miserável cubículo no Pássaro
da Verdade, haviam partilhado as experiências dos
últimos meses.
Evitaram falar de religião. Sobre isso, muito
provavelmente nunca estariam de acordo. No momento,
porém, ambos compartilhavam o desejo da sobrevivência
do Reino das Virtudes.
Loth coçou o queixo com a mão livre. Não gostava
daquela barba, mas Ead dissera-lhe que, quando
chegassem a Ascalon, deveriam disfarçar-se, pois tinham
sido ambos expulsos da corte.
— Gostava de ter queimado todos aqueles navios —
disse Ead, cru­zando os braços. — Mas tenho de ter
cuidado com o meu siden. Pode levar anos até que prove
o fruto da árvore novamente.
— Queimaste cinco — disse Loth. — Cinco a menos
para Sigoso.
— Pareces ter menos medo de mim agora do que
antes.
O anel de flores brilhava no seu dedo. Loth tinha visto
outras irmãs do Priorado a usá-lo.
— Todos nós temos sombras dentro de nós. Eu aceito
a tua — disse, pousando uma mão sobre o anel — e
espero que aceites a minha também.
Com um olhar cansado, Ead entrelaçou os dedos nos
dele.
— Com muito gosto.
O vento trouxe o cheiro a peixe e a algas a apodrecer.
O Pássaro da Verdade entrou no porto com alguma
dificuldade, e os seus passageiros cansados desceram
para o cais. Loth estendeu a mão a Ead para a aju­dar.
Coxeava havia apenas alguns dias, apesar de a flecha lhe
ter trespas­sado a coxa de uma ponta à outra. Loth já
tinha visto cavaleiros errantes a chorar por feridas mais
superficiais.
Aralaq deixaria o navio assim que todos os outros
tivessem partido.
Ead chamá-lo-ia quando chegasse a altura.
Caminharam pelo cais em direção às casas. Quando
Loth viu os sacos de ervas pendurados nas portas, parou.
Ead também olhou para eles.
— Que achas que contêm?
— Flores secas e bagas. É uma tradição anterior à
fundação de Ascalon. Para afastar qualquer mal que
possa ameaçar a casa. — Loth humedeceu os lábios. —
Nunca os vi pendurados na minha vida.
Uma crosta de pó agarrou-se às suas botas enquanto
caminhavam. Todas as casas que viam tinham aqueles
sacos pendurados no exterior.
— Disseste que eram tradições antigas — disse Ead,
pensativa. — Que religião havia em Inys antes das Seis
Virtudes?
— Não havia uma religião oficial, mas pelos poucos
textos que sobreviveram, parece que o povo considerava
o espinheiro uma árvore sagrada.
Ead ficou em silêncio, a meditar. Passaram por um
muro de pedra e chegaram às pedras da rua principal.
No único estábulo de toda a povoação, encontraram
apenas dois ca­valos magros. Partiram, montados lado a
lado. Com a chuva a bater-lhes nas costas, passaram por
campos semicongelados e deixaram para trás rebanhos
de ovelhas encharcadas. Embora ainda estivessem na
província dos Pântanos, onde os bandidos não
abundavam, decidiram avançar de noite. Ao amanhecer,
Loth estava dorido da cavalgada, mas manteve-se
acordado.
Um pouco mais à frente, Ead continuou a trotar.
Parecia tensa, impaciente.
Loth perguntou-se se ela teria razão. Se Igrain Crest
estava a manipu­lar a corte de Inys por detrás do trono.
Consumindo Sabran. Fazendo-a ter medo de dormir no
escuro. Afastando os seus entes queridos. A ideia deu-lhe
a volta ao estômago. Sabran sempre confiara em Crest
na sua menoridade.
Esporeou o cavalo e alcançou Ead. Passaram por uma
aldeia devasta­da pelo fogo, com um santuário de onde
ainda saíam uns fios de fumo. Os pobres tolos tinham
construído as suas casas com telhados de colmo.
— Wyrms — murmurou Loth.
Ead passou uma mão pelo seu cabelo emaranhado
pelo vento.
— Não há dúvida de que os Sombras Ocidentais
ordenaram aos seus lacaios que intimidassem Sabran.
Devem estar à espera do seu mestre para o ataque final.
E então será o Inominável que liderará os seus exércitos.
Ao anoitecer, chegaram a uma pequena estalagem,
fria e húmida, junto ao rio Catkin. Loth já estava tão
cansado que mal conseguia manter-se direito na sela.
Puseram os cavalos no estábulo e entraram na sala de
jantar, a tremer de frio e suados.
Sem tirar o capuz, Ead dirigiu-se ao estalajadeiro.
Loth sentiu-se tenta­do a ficar na sala de jantar, junto à
lareira, mas o risco de ser reconhecido era demasiado
grande.
Ead arranjou uma vela e uma chave. Loth pegou
nelas e subiu as esca­das. O quarto que lhes tinha sido
atribuído era pequeno e com correntes de ar, mas ainda
assim melhor do que a miserável cabina do Pássaro da
Verdade.
Ead chegou com o jantar. Franzia o sobrolho.
— Que se passa? — perguntou Loth.
— Ouvi o que as pessoas estavam a dizer lá em baixo.
Sabran não é vista desde a sua aparição pública com
Lievelyn. Tanto quanto se sabe, ainda está grávida... mas
a falta de notícias, juntamente com os ataques
draconianos, deixa os seus súbditos inquietos.
— Disseste que ela já estava grávida de alguns meses
quando abortou.
Se ainda estivesse grávida, poderia estar prostrada à
espera do parto — observou Loth. — Seria uma desculpa
perfeita para a sua ausência.
— Sim. Ela até pode ter concordado em fingir, mas
não me parece que os traidores dos Duques Espirituais
tencionem deixá-la governar por mais tempo. — Ead pôs
os pratos na mesa e estendeu o manto numa cadeira
para secar. — Sabran previu-o. Ela corre perigo mortal,
Loth.
— Ainda assim, ela é a descendente do Santo. O povo
não apoiará nenhum dos Duques enquanto ela estiver
viva.
— Não tenho tanta certeza. Se o povo soubesse que
ela não lhes podia dar uma herdeira, considerá-la-iam
responsável pela vinda do Inominável. — Ead sentou-se à
mesa. — À cicatriz na sua barriga, e o que representa,
diminuiria a sua legitimidade aos olhos de muitos.
— Continua a ser uma Berethnet.
— E a última da dinastia.
O estalajadeiro dera-lhes duas tigelas de um guisado
com pedaços de carne dura e uma côdea de pão. Loth
comeu a sua parte, mastigando com dificuldade, e
serviu-se da cerveja para engolir melhor.
— Vou lavar-me — disse Ead.
Na sua ausência, Loth deitou-se na cama e ouviu o
barulho da chuva.
Não conseguia parar de pensar em Igrain Crest.
Durante toda a sua infância, vira-a como uma presença
reconfortante; severa, mas gentil, incutindo-lhe uma
sensação de segurança.
No entanto, sabia que durante os quatro anos de
governo de Sabran como menor, ela fora dura com ela.
Mesmo antes, quando era uma jo­vem princesa, Crest
pressionara-a a procurar a temperança, a perfeição, a
cumprir os seus deveres. Durante esses anos, Sabran
não estava autori­zada a falar com outras crianças além
de Roslain e Loth, e Crest nunca se afastava muito, para
poder vigiá-la. Embora o Príncipe Wilstan fosse o Protetor
do Reino, estava demasiado afetado pelo luto para se
ocupar da educação da sua filha. E Crest encarregara-se
disso.
Por outro lado, ocorrera um incidente. Antes da morte
da Rainha-Mãe.
Lembrou-se dessa tarde gelada. Sabran tinha doze
anos e estava à beira da floresta de Chesten, a fazer uma
bola de neve com as mãos. Usava luvas e tinha as faces
rosadas. Ambos se riam, entusiasmados. Depois
treparam a um dos carvalhos cobertos de neve e
amontoaram-se num ramo nodoso, para grande
consternação dos Cavaleiros do Corpo.
Subiram quase até ao cimo da árvore. Tão alto que
conseguiam ver o Palácio de Briar. E lá estava a Rainha
Rosarian, à janela, visivelmente zangada, com uma carta
na mão.
Também lá estava Igrain Crest, com as mãos atrás
das costas. Rosarian saíra da sala furiosa. Loth só se
lembrava disso com tanta clareza porque um momento
depois Sabran caíra da árvore.
Ead demorou algum tempo a regressar do rio, com o
cabelo ainda molhado. Descalçou as botas e deitou-se na
outra cama.
— Ead, arrependes-te de ter deixado o Priorado? —
perguntou Loth.
O olhar dela estava fixo no teto.
Não o deixei. Tudo o que faço, faço-o pela Mãe. Para
glorificar o seu nome. Mas espero... rezo para que um dia
o meu caminho me leve de novo para sul.
Loth não suportou ouvir a dor na sua voz. Estendeu a
mão e acariciou-lhe a maçã do rosto com o polegar.
— Ainda bem que hoje te diriges para oeste — disse
ele, sorrindo, e ela sorriu de volta.
— Loth — respondeu Ead —, tive saudades tuas.
De manhã, antes do sol nascer, puseram-se de novo
a caminho e conti­nuaram a cavalgar durante dias.
Encontraram um nevão que os atrasou e, certa noite,
foram surpreendidos por bandidos que lhes exigiram
todo o dinheiro. Se Loth estivesse sozinho, não saberia o
que fazer, mas Ead deu tanta luta que acabaram por se
retirar.
Não havia mais tempo para dormir. Ead já estava na
sela quando os bandidos desapareceram ao longe; Loth
mal conseguia acompanhá-los. Em Vira Corvo, viraram
para nordeste e subiram até ao Passo Sul, man­tendo as
cabeças baixas enquanto se juntavam às caravanas,
manadas de cavalos, mulas e carroças que se dirigiam
para Ascalon. E, finalmente, na última luz do dia,
chegaram ao seu destino.
Loth abrandou um pouco o seu cavalo. As torres de
Ascalon pareciam negras contra o céu da noite. Mesmo
com a chuva, a cidade era o farol que guiava a sua vida.
Cavalgaram ao longo da milha de Berethnet, coberta por
um manto de neve. No final, ao longe, avistaram os
portões de ferro forjado do Palácio de Ascalon. Apesar da
distância, Loth conseguia ver a Torre Dearn. Mal podia
acreditar que Fýredel pudesse ter pousado lá.
O cheiro do rio Limber chegou até ele. Os sinos do
Santuário de Nossa Senhora estavam a tocar.
— Quero passar pelo palácio — disse Ead. — Para ver
se as medidas de proteção foram aumentadas.
Loth assentiu com a cabeça.
Cada bairro da cidade tinha o seu próprio posto de
guarda. A Corte Real, mais próxima do palácio, tinha um
impressionante, alto e doura­do, com esculturas das
rainhas do passado. Quando se aproximaram, a rua, que
normalmente ao anoitecer estava cheia de pessoas que
iam rezar, estava em silêncio.
A neve por trás do posto de controlo estava manchada
de escuridão. Quando Loth olhou para cima, ficou atónito.
Por cima deles, estavam duas cabeças cortadas,
pregadas em estacas.
Uma delas era irreconhecível, com apenas um crânio.
A outra fora escaldada e coberta com alcatrão, mas
ainda tinha carne a apodrecer. As orelhas e o nariz
estavam meio decompostos. As moscas pairavam sobre
a pele pálida.
Se não fosse pelo cabelo, talvez não a tivesse
reconhecido. Cabelo ruivo comprido, manchado de
sangue.
— Truyde — murmurou Ead, quase sem fôlego.
Loth não conseguia tirar os olhos da cabeça dela.
Daquela cabeleira que, ao vento, se movia de forma
grotesca.
Em tempos, Loth, Sabran e Roslain haviam-se reunido
junto à larei­ra, na Câmara Privada, e ouvido Arbella
Glenn falar-lhes de Sabran a Quinta, a única tirana da
Casa de Berethnet, que costumava decorar os espigões
dos portões do palácio com as cabeças daqueles que a
abor­reciam. Nunca nenhuma rainha se atrevera a invocar
o seu fantasma repetindo isso.
— Depressa — disse Ead, dando a volta ao cavalo. —
Segue-me.
Cavalgaram até ao bairro do Porto Sul, onde viviam os
mercadores de seda e os vendedores de tecidos.
Rapidamente chegaram ao Rosa e Vela, uma das
melhores estalagens da cidade, onde entregaram os
cavalos a um tratador. Loth já não conseguia controlar o
vómito e teve de parar para vomitar.
— Anda, Loth. — Ead conduziu-o para dentro. —
Conheço o dono da estalagem. Aqui estaremos seguros.
Loth já não se lembrava do que era estar seguro. O
cheiro a podridão ficou-lhe na garganta.
Um funcionário levou-os para dentro e bateu a uma
porta com os nós dos dedos. Uma mulher corpulenta e
de rosto corado atendeu. Quando viu Ead, as suas
sobrancelhas ergueram-se.
— Uau — disse, recuperando do choque. — Devias
entrar.
Apressou-os para dentro e, assim que a porta se
fechou, abraçou Ead.
— Minha querida. Há quanto tempo — disse,
baixinho. — Que raio fazes nestas ruas?
— Não tivemos escolha. — Ead afastou-se dela. — O
nosso amigo comum disse que me darias abrigo se eu
precisasse.
— E a promessa mantém-se. — A mulher fez uma
reverência na dire­ção de Loth. — Lorde Arteloth, sede
bem-vindo ao Rosa e Vela.
Loth limpou a boca com a manga.
— Agradecemos a vossa hospitalidade, senhora.
— Precisamos de um quarto — disse Ead. — Podes
ajudar-nos?
— Posso. Mas acabaste de chegar a Ascalon? — Ao
vê-los assentir, pegou num rolo de pergaminho da mesa.
— Olha.
Ead abriu-o. Loth leu-o por cima do seu ombro.

Em nome da RAINHA SABRAN, Sua Graça, a


DUQUESA DA JUSTIÇA, oferece uma
recompensa de dezoito mil coroas pela captura
de Ead Duryan, uma sulista de casta inferior
disfarçada de senhora. Procurada viva por
feitiçaria, heresia e alia traição contra SUA
MAJESTADE. Cabelo preto encaracolado, olhos
castanho-escuros. Se alguém a vir, deve
apresentar-se imediatamente a um guarda da
cidade.

— Os mensageiros lêem todos os dias o teu nome e a


tua descrição — disse a estalajadeira. — Confio naqueles
que viste no pátio, mas não deves falar com mais
ninguém. E sai desta cidade assim que puderes. —
Estremeceu. — Passa-se alguma coisa no palácio. Dizem
que a rapa­riga era uma traidora, mas parece-me
impensável que a Rainha Sabran decida executar alguém
tão jovem.
Ead devolveu-lhe o pergaminho.
— Havia duas cabeças. De quem era a outra?
— Bess Weald. Bess, a Malvada, como lhe chamam
agora.
O nome não significava nada para Loth, mas Ead
assentiu.
— Não podemos sair da cidade — disse ela. — Temos
uma tarefa de extrema importância em mãos.
A estalajadeira resfolegou.
— Bem, se queres arriscar ficar, jurei ao embaixador
que te ajudaria. — Pegou numa vela. — Vem.
Levou-os a subir um lanço de escadas. Da sala de
jantar chegaram ecos de música e risos. A estalajadeira
abriu uma das portas e entregou a chave a Ead.
— Vou mandar trazer os teus pertences para cima.
— Obrigada. Não me esquecerei disto, e Sua Graça
também não. Também precisaremos de roupa. E armas,
se as conseguires arranjar.
— Claro que sim.
Loth aceitou a vela da mão da estalajadeira e depois
foi ter com Ead, que fechou o trinco. O quarto tinha uma
cama, uma lareira com um bom fogo e uma banheira de
cobre, cheia e fumegante.
— Bess Weald foi a comerciante que matou Lievelyn
— disse Ead, engolindo em seco. — Isto é obra de Crest.
— E porque quereria matar a senhora Truyde?
— Para a silenciar. Só Truyde, Sabran e eu sabemos
que Bess Weald trabalhava para alguém chamado
Copeiro. E Combe — acrescentou, depois de um
momento. — Crest está a cobrir o seu rasto. Se eu não
tivesse deixado a corte, a minha cabeça também estaria
lá em cima. — Andou de um lado para o outro na sala. —
Crest não podia ter execu­tado Truyde sem que Sabran
soubesse. Depreendo que as sentenças de morte devem
ter a assinatura da rainha.

— Não. Numa sentença de morte, a assinatura do


titular do Ducado de Justiça também é válida — disse
Loth — mas apenas se a soberana for incapaz de assinar
com a sua própria mão.

O pensamento do que isso implicava flutuou entre


os dois, impondo-se.

— Temos de entrar no palácio. Esta noite — disse


Ead, cada vez mais agitada. — Tenho de falar com
alguém. Noutro bairro.

— Ead, não. Não podes. A cidade inteira está...

— Eu sei como evitar ser descoberta — disse ela,


puxando o capuz para cima. — Tranca a porta atrás de
mim quando eu sair. Quando voltar, delinearemos um
plano. — Fez uma pausa para lhe dar um beijo no rosto
antes de sair. — Não temas por mim, meu amigo.
E foi-se embora.
Loth despiu-se e subiu para a banheira de cobre. Não
conseguia tirar da mente as cabeças espetadas naqueles
espiões. O presságio de uma Inys que ele não
reconhecia. Uma Inys sem a sua rainha.
Tentou resistir ao sono o mais que pôde, mas todos
aqueles dias de ca­valgada e de frio tinham-lhe cobrado o
seu preço. Quando se deitou na cama, não sonhou com
cabeças cortadas, mas com a Donmata Marosa.
Aparecia-lhe nua, com os olhos cheios de cinza e o seu
beijo tinha sabor a absinto. Abandonaste-me, sussurrou
ela. Deixaste-me a morrer. Tal como à tua amiga.
Quando finalmente bateram à porta, acordou com
um sobressalto. — Loth.
Agarrou a maçaneta com força. Ead estava lá fora.
Afastou-se para a deixar passar.
— Tenho uma maneira de entrar — anunciou. —
Vamos com os barqueiros.
Referia-se à tripulação das barcaças que
atravessavam o rio Limber todos os dias, transportando
passageiros e mercadorias de uma margem para a outra.
— Suponho que tenhas mais amigos entre eles.
— Um deles — confirmou. — Transportará um lote de
vinho para a Escadaria Real, para o Festim de Inverno.
Diz que podemos viajar com a tripulação. Depois
podemos entrar.
— E quando estivermos lá dentro?
— Pretendo encontrar Sabran. — Ead olhou para ele.
— Mas se pre­feres ficar aqui, irei sozinha.
— Não — disse Loth. — Iremos juntos.

***

Vestiram-se como mercadores, mas, por baixo dos


mantos, estavam ar­mados até aos dentes. Pouco depois,
entraram no bairro da Ponte de Fiswich e desceram as
escadas da rua Dauphin, que ficavam junto a uma
taberna, a Gato Cinzento, onde os barqueiros iam beber
depois de um longo dia no Limber.
A taberna ficava de frente para a parede leste do
Palácio de Ascalon. Loth seguiu Ead. Enquanto
caminhava, as suas botas de montar ran­giam nas
conchas da costa.
Loth nunca tinha estado naquela parte da cidade. A
Ponte de Fiswich tinha uma reputação de crime.
Ead aproximou-se de um dos homens à porta da
taberna.
— Amigo — saudou. — Bons olhos te vejam.
— Senhora — disse o homem, que estava imundo
como um rato, mas tinha um olhar penetrante. — Ainda
desejais juntar-vos a nós?
— Se nos permitires.
— Disse que o faria. — Olhou na direção da taberna.
— Esperai jun­to à barcaça. Tenho de tirar alguns homens
das suas cervejas.
Logo a seguir, estavam a carregar a referida barcaça
com barris de vinho. Loth caminhou até à margem e
observou a luz das velas que ar­diam por trás das janelas
da Torre de Alabastro. Só conseguia ver o topo da Torre
da Rainha. Os aposentos reais estavam às escuras.
— Diz-me, Ead, como é que o Embaixador uq-Ispad
faz amigos tão simpáticos?
— Paga uma pensão à estalajadeira. Quanto a este
homem, o Chassar saldou as suas dívidas de jogo.
Chama-lhes os amigos do Priorado.
Os homens da taberna foram ajudar os barqueiros.
Depois de terem carregado todo o vinho para a barcaça,
Loth e Ead subiram e encon­tram um lugar num banco.
Ead puxou de um barrete e escondeu nele todos os
seus caracóis. Cada um dos membros da tripulação
pegou num remo e começou a remar.
O Limber era um rio largo e de caudal rápido.
Demoraram algum tempo a chegar ao cais.
A Escadaria Real conduzia a um portão na muralha
do palácio, conce­bido como um ponto de saída discreto
para quando a família real tinha de abandonar o local.
Sabran nunca usara a barcaça real, mas a sua mãe
adorava navegar, acenando às pessoas do rio e
mergulhando os dedos dos pés na água. Loth não pôde
deixar de se perguntar se a Rainha Rosarian teria alguma
vez usado aquela escada para ir ao encontro de Gian
Harlowe.
Já não tinha a certeza se podia acreditar no boato.
Todas as suas con­vicções haviam sido abaladas. Talvez
não houvesse verdade em todas as coisas que julgava
saber sobre a corte.
Ou talvez fosse um teste de fé.
Seguiram os barqueiros pelas escadas acima. Do
outro lado da muralha, Loth viu três cavaleiros a bloquear
o caminho. Ead empurrou Loth e esconderam-se num
recanto à esquerda, atrás do poço.
— Boa noite a todos — disse um dos cavaleiros. —
Trouxeram o vinho?
— Sim, meus senhores — disse o chefe dos
barqueiros, levando a mão ao barrete. — Sessenta barris.
— Levem-nos para a Cozinha Real. Mas primeiro têm
de mostrar a cara. Baixem os capuzes e tirem os
barretes.
Os barqueiros fizeram o que lhes foi pedido.
— Ótimo. Podem ir — concedeu o cavaleiro, e
começaram a carregar os barris pelas escadas acima.
Ead saiu do seu esconderijo, mas teve de voltar para
trás de imediato: um dos cavaleiros estava a descer as
escadas. Quando aproximou a lam­parina do buraco onde
eles estavam, ouviu uma voz dizer:
— Que é isto? — A chama aproximou-se. —
Conspurcais o Cavaleiro da Camaradagem aqui?
O cavaleiro viu Loth, viu Ead e, sob a sombra do seu
elmo, Loth viu-o abrir a boca para dar o alarme.
Foi então que uma faca lhe cortou a garganta.
Quando o sangue começou a jorrar, Ead atirou-o para o
poço.
Três batidas de coração depois, o seu impacto foi
ouvido no fundo.
50
Oeste

Ead esperava não ter de matar ninguém no palácio.


Se tivesse tido mais tempo, poderia tê-lo encantado.
Pegou na tocha e deixou-a cair no poço. Limpou o
sangue da sua lâmina.
— Encontra a Meg e esconde-te nos seus aposentos —
falou baixinho. — Quero dar uma vista de olhos.
Loth olhou para ela como se não a conhecesse de
todo. Ead deu-lhe um empurrão para começar a subir as
escadas.
— Despacha-te. Assim que encontrarem o corpo, irão
procurar-nos por todo o lado.
Loth pôs-se a caminho.
Ead seguiu-o, depois virou para o lado. Atravessou o
pátio das maçãs e virou as costas à parede caiada da
Cozinha Real. Esperou que um destacamento de guardas
passasse e entrou na passagem que conduzia ao
Santuário Real.
Dois outros cavaleiros, ambos vestidos com
sobretudos pretos e arma­dos com partasanas, estavam
de guarda à entrada.
Encantou-os a ambos. Com sorte, acordariam
demasiado grogues para saberem o que lhes tinha
acontecido. Lá dentro, escondeu-se atrás de um pilar e
observou. Como sempre, havia muitos cortesãos a rezar.
As vozes ecoaram no teto abobadado.
Sabran não apareceu em lado nenhum. Nem Margret.
Ead observou como os fiéis estavam sentados.
Normalmente, es­tariam agrupados nos bancos mais
próximos, unidos pelo espírito de camaradagem. Esta
noite, porém, havia uma clara fação. Servos vesti­dos de
libré. Preto e púrpura, com as taças gémeas bordadas
nos seus tabardos.
Antigamente, vias os capangas de Combe a
pavonearem-se de uniforme, dissera-lhe Margret, como
se devessem fidelidade primeiro a ele e não à sua rainha.
— Agora — disse o arquissanctário, assim que o hino
terminou —, oremos ao Cavaleiro da Generosidade por
Sua Majestade, que prefere orar em reclusão neste
momento tão sagrado. Oremos pela princesa no seu
ventre, que um dia será nossa rainha. E agradeçamos a
Sua Graça, a Duquesa da Justiça, que cuida tão
vigilantemente de ambas.
Ead deixou o santuário tão silenciosamente como
entrara. Tinha visto o suficiente.
A Casa Carnelian não ficava longe da Escadaria Real.
Loth evitou um par de lacaios, ambos usando o distintivo
da Duquesa da Justiça, e desli­zou pela porta
destrancada.
Perseguiu uma escada sinuosa e saiu num corredor
que conhecia bem, decorado com retratos de Damas do
Leito Real que serviram sob rainhas há muito mortas.
Uma nova imagem de uma jovem senhora Arbella Glenn
apareceu numa extremidade.
Quando alcançou a porta certa, ouviu. Silêncio no
interior. Girou a maçaneta e entrou.
Velas iluminavam o quarto. A sua irmã estava
curvada sobre um livro.
Ao som da porta a abrir-se, ela levantou-se,
assustada.
— Em nome da cortesia... — Agarrou na sua adaga
da mesa de cabe­ceira, com os olhos arregalados. — Vai-
te embora, patife, ou arrancar-te-ei o coração. O que te
traz à minha porta?
— Dever fraterno. — Ele baixou o capuz. — E um
medo terrível da tua ira se ficasse longe por mais um
momento.
A adaga caiu-lhe da mão e os seus olhos encheram-
se de lágrimas.
Margret correu para ele e lançou os braços ao redor
do seu pescoço.
— Loth. — O seu corpo agitou-se com soluços. —
Loth...
Ele puxou-a para um abraço, perto das lágrimas
também. Apenas agora que a abraçara se atreveu a
acreditar que estava em casa.
— Eu realmente poderia arrancar-te o coração,
Arteloth Beck.
Abandonas-me durante meses, entras
sorrateiramente aqui como um bandido... — Margret
colocou as mãos no seu rosto. O dela estava mo­lhado de
lágrimas. — E o que é isso no teu rosto?
— Devo insistir que o Falcão da Noite carregue a culpa
pela minha ausência. Embora não pela barba. — Beijou-
lhe a testa. — Contar-te-ei tudo mais tarde. Meg, a Ead
está aqui.
— Ead... — Alegria faiscou-lhe nos olhos, e depois
desapareceu. Não. É muito perigoso para vocês os dois...
— Onde está Sab?
— Nos aposentos reais, presumo. — Margret agarrou-
lhe o ombro com uma das mãos e usou a outra para
enxugar os olhos. — Dizem que está em confinamento
por causa da gravidez. Apenas Roslain tem per­missão
para a atender, e os lacaios de Crest guardam a sua
porta.
— Onde está Combe em tudo isso?
— O Falcão da Noite levantou voo há alguns dias.
Stillwater e Fynch também. Não tenho ideia se por
vontade própria.
— E os outros Duques Espirituais?
— Parecem estar a ajudar Crest. — Ela olhou para a
janela. — Viste que não há luz lá em cima?
Loth assentiu, entendendo a importância.
— Sabran não consegue dormir na escuridão.
— Sim. — Margret fez menção de fechar as cortinas.
— A ideia de que ela poderia dar à luz a sua filha naquele
quarto triste...
— Meg.
Ela virou-se.
— Não haverá Princesa Glorian — Loth falou em voz
baixa. — Sab não está grávida. E não voltará a ficar.
Margret ficou muito quieta.
— Como? — perguntou por fim.
— A barriga dela foi... perfurada. Pelo Wyrm Branco.
A irmã tateou o ar em busca do escano.
— Agora tudo começa a fazer sentido. — Sentou-se. —
Crest não quer esperar até que Sabran morra para
assumir o trono.
A respiração dela tremeu. Loth veio sentar-se ao lado
dela, dando-lhe tempo para absorver tudo.
— O Inominável retornará. — Margret recompôs-se. —
Suponho que tudo o que podemos fazer agora é
preparar-nos para isso.
— E não podemos fazer isso se Inys estiver dividida —
disse uma nova voz.
Loth levantou-se com a espada desembainhada,
dando com Ead na porta. Margret deixou escapar um
som abafado de alívio e foi até ela. Abraçaram-se como
irmãs.
— Devo estar a sonhar — disse Margret para o seu
ombro. — Voltaste.
— Disseste que nos encontraríamos novamente. —
Ead abraçou-a. — Não quis fazer de ti uma mentirosa.
— Tens muito para explicar. Mas isso pode esperar. —
Margret recuou. — Ead, Sabran está na Torre da Rainha.
Ead trancou a porta.
— Conta-me tudo.
Margret repetiu exatamente o que dissera a Loth.
Enquanto ouvia, Ead parecia uma estátua.
— Temos de chegar a ela — disse finalmente.
— Nós os três não iremos longe — murmurou Loth.
— Onde estão os Cavaleiros do Corpo em tudo isso?
Os leais guarda-costas das rainhas de Inys. Loth nem
pensara em perguntar.
— Não vejo o Capitão Lintley há uma semana — disse
Margret. — Alguns dos outros estão de guarda do lado de
fora da Torre da Rainha.
— Não é seu dever proteger Sua Majestade? —
perguntou Ead.
— Não têm nenhuma razão para suspeitar de que a
Duquesa da Justiça lhe está a fazer mal. Creem que Sab
está apenas a descansar.
— Então precisamos que saibam que Sabran está a
ser mantida contra a sua vontade. Os Cavaleiros do
Corpo são formidáveis. Mesmo com metade deles do
nosso lado, poderíamos acabar com a insurreição —
disse Ead. — Devíamos tentar encontrar Lintley. Talvez
eles o tenham enviado para a casa da guarda.
— Podíamos seguir a rota secreta que te mostrei —
disse Margret.
Ead foi para a porta.
— Certo.
— Espera. — Margret estendeu a mão para Loth. —
Empresta-me uma arma, irmão, ou serei tão útil como
uma fogueira numa casa de gelo.
Ele entregou a sua adaga sem reclamar.
Margret pegou numa vela e abriu caminho pelo
corredor. Conduziu-os para diante de um retrato de uma
mulher e, quando arrastou um lado da parede, uma
passagem foi revelada. Ead subiu e estendeu a mão a
Margret. Loth fechou o retrato atrás deles.
Uma corrente de ar apagou a vela, deixando-os na
escuridão. Tudo o que Loth conseguiu ouvir foi a
respiração deles. Depois, Ead estalou os dedos e uma
chama azul-prateada saltou como uma faísca. Loth
trocou um olhar com a irmã enquanto Ead a depositava
na sua palma.
— Nem todo o fogo deve ser temido — disse Ead.
Margret pareceu preparar-se.
— É bom que faças Crest temê-lo antes do
amanhecer.
Seguiram um lanço de escadas até chegarem a uma
saída. Ead em­purrou apenas uma fresta.
— Livre — murmurou ela. — Meg, qual é a porta?
— A mais próxima — disse Margret imediatamente.
Quando Loth ergueu as sobrancelhas para ela, ela pisou-
lhe no pé.
Ead entrou na passagem não iluminada e tentou
abrir a porta, sem sucesso.
— Capitão Lintley? — chamou, a voz suave. Quando
não houve res­posta, ela bateu. — Sir Tharian.
Uma pausa e depois:
— Quem vem aí?
— Tharian. — Margret juntou-se a Ead na porta. —
Tharian, é a Meg.
— Meg... — Um praguejar abafado. — Margret, tens
de ir embora. Crest prendeu-me.
Ela estalou a língua.
— Isso soa-me a uma razão para te tirar daqui, idiota,
não para ir embora.
Loth olhou para o corredor. Se alguém abrisse a porta
da casa dos guardas, não teriam onde se esconder.
Ead ajoelhou-se ao lado da porta. Quando flexionou
os dedos, o fogo flutuou para se suster ao lado dela
como uma vela cadáver. Estudou o buraco da fechadura
e usou a outra mão para fazer deslizar um gancho de
cabelo dos seus caracóis e inseri-lo na fechadura.
Quando fez clique, Margret abriu a porta com cuidado
para não deixar as dobradiças ranger.
Dentro do seu quarto, Sir Tharian Lintley estava de
camisa e calças. Cada vela na sala tinha queimado até
ao fim. Ele foi direto a Margret e segurou-lhe a face com
uma das mãos.

— Margret, não devias... — Vendo Loth, assustou-se


e reverenciou à sua maneira militar. — Santo. Lorde
Arteloth, não fazia ideia de que havia retornado. E... — A
sua postura mudou. — Senhora Duryan.

— Capitão Lintley. — Ead ainda segurava a sua


chama. — Devo esperar que me tenteis prender?

Lintley engoliu em seco.

— Perguntei-me se seríeis a própria Dama da


Floresta — disse ele. — Os lacaios do secretário principal
contaram histórias da sua feitiçaria.

— Calma. — Margret tocou-lhe no braço. — Eu


ainda não entendo, mas Ead é minha amiga. Voltou com
grande risco de vida para nos aju­dar. E trouxe o Loth de
volta para mim.

Um olhar seu foi o suficiente para suavizar Lintley.

— Combe ordenou que vos prendêssemos naquela


noite — disse ele a Ead. — Ele está aliado a Crest?
— Isso eu não sei. A sua moral é questionável, com
certeza, mas pode não ser o verdadeiro inimigo. — Ead
fechou a porta. — Suspeitamos de que Sua Majestade
está a ser mantida contra a sua vontade. E não temos
muito tempo para chegar a ela.
— Eu já tentei. — Foi como se toda a esperança
tivesse abandonado o rosto de Lintley. — E serei banido
por isso.
— Que aconteceu?
— Dizia-se que estáveis aliada ao Rei Sigoso e
havíeis regressado para ele, mas foi logo depois do
desaparecimento do Lorde Arteloth, e senti uma
tentativa deliberada de tornar Sua Majestade vulnerável.
— Continuai — disse Ead.
— Sua Majestade não saíra da Torre da Rainha desde
a chegada do Wyrm Branco, e não havia luz na sua
janela. A senhora Joan Dale e eu exigimos entrar no
Quarto de Leito Real para nos certificarmos de que ela
estava bem. Crest despojou-nos da nossa armadura por
desobediên­cia — disse amargamente. — Agora, estou
confinado aqui.
— E os outros Cavaleiros do Corpo? — perguntou
Margret.
— Três também estão aqui por terem protestado.
— Não por muito tempo — disse Ead. — Quantos
homens de Grest encontraríamos se aparecêssemos lá
esta noite?
— Dos trinta e seis lacaios que Grest tem na corte,
acho que metade está armada. Também tem vários
cavaleiros errantes.
Os Cavaleiros do Corpo eram alguns dos melhores
guerreiros de Inys, escolhidos a dedo um a um.
Conseguiam derrotar uma mão-cheia de cavaleiros de
infantaria.
— Achais que o resto da Guarda permanecerá leal à
rainha? — per­guntou Ead.
— Absolutamente. São leais a Sua Majestade acima de
tudo.
— Ótimo. Então reuni-os e ide atrás de Crest. Uma vez
capturada, os seus capangas deporão as armas.
Saíram da sala. Ead arrombou as fechaduras das
outras portas e, sus­surrando, Lintley comunicou o plano
aos seus soldados. Em breve foram recebidos pela
senhora Joan Dale, a senhora Suzan Thatch e Sir Marke
Birchen.
— Não há muitos guardas nos portões do arsenal.
Retirai as vossas armas — disse Ead, oferecendo a Lintley
uma das suas facas. — Mas aconselho-vos a não usardes
armadura. Iria atrasar-vos. E faríeis mais barulho.
Lintley aceitou a faca.
— E que ides fazer?
— Vou procurar Sua Majestade.
— Ela estará cercada pelos capangas de Crest —
insistiu Lintley. — Da última vez que lá estive, ela
postara-os em praticamente todas as portas da Torre da
Rainha.
— Eu trato deles.
Lintley abanou a cabeça.
— Não sei se perdestes o juízo, Ead, ou se sois a
reencarnação do Cavaleiro da Bravura.
— Deixa-me ir contigo — disse Loth. — Eu posso
ajudar-te.
— Se pensas que um punhado de traidores me vai
afastar dela — res­pondeu imediatamente —, estás muito
enganado. — Depois suavizou o tom. — Posso fazê-lo
sozinha.
A convicção das suas palavras apanhou-o de
surpresa. Ele vira-a derrubar um wyverling. Conseguiria
lidar com alguns lacaios.
— Então juntar-me-ei a vós, Sir Tharian — decidiu.
Lintley assentiu.
— Será uma honra para mim, Lorde Arteloth.
— Eu também vou contigo — disse Margret. — Se
me permites...
— Claro, senhora Margret — respondeu Lintley com
um sorriso, e olharam um para o outro durante mais
tempo do que o necessário. Loth tossiu um pouco e
Lintley desviou o olhar.
— Ainda acho que vos vão deter antes de chegardes
ao portão da rainha — disse um dos guardas a Ead.
— Falais como se tivésseis a certeza — respondeu
Ead, de braços cruzados. — Se algum de vós quiser
retirar-se, que o diga agora. Não há lugar para a cobardia
nesta missão.
— Estamos em igual número que o Santo e o seu
Sagrado Séquito — disse Margret, convicta. — Se os sete
conseguiram fundar uma religião, espero sinceramente
que nós os sete consigamos esmagar uns quantos
patifes.

***
Ead trepou pela videira da Torre da Rainha, como
fizera antes. Quando chegou à altura da Cozinha Real,
impulsionou-se contra a parede e agarrou-se ao peitoril.
Enfraquecida pela pressão, a trepadeira partiu-se sob a
sua bota e caiu sobre a estufa.
Trepou até à janela, passou para o outro lado e
deixou-se cair de có­coras. Algures, lá fora, um sino tocou.
Deviam ter encontrado o corpo no poço.
Para Lintley, o alarme era uma boa notícia. Ele e os
seus guardas po­diam aproveitar a distração para ir
buscar as espadas ao arsenal. Para Ead, no entanto, nem
tanto. A agitação acordaria todos os que estavam de
guarda na Torre da Rainha.
Apenas alguns quartos a separavam de Sabran.
A Galeria do Sangue Real estava vazia. Passou pelos
retratos das mu­lheres da dinastia Berethnet. Aqueles
olhos verdes pintados pareciam segui-la conforme se
aproximava da escadaria. Havia diferenças entre as
rainhas — um caracol, uma sarda, um maxilar bem
definido —, mas eram tão parecidas umas com as outras
que bem podiam ser irmãs.
O seu siden latejava, e ela escutava: conseguia ouvir
tudo o que se passava mesmo lá em cima. Os passos
aproximavam-se. Quando um grupo de lacaios vestidos
de verde desceu as escadas a correr, ela já estava
escondida, de costas para uma tapeçaria.
O sino atraíra-os para fora dos aposentos reais. Era a
sua oportunidade de chegar a Sabran.
No andar de cima, ficava o corredor onde vivera
antes, como Dama do Leito Real. Ead parou quando
ouviu uma voz lá em baixo.
— Para a Torre da Rainha! — Era Lintley. —
Cavaleiros do Corpo!
Protegei a rainha com as vossas espadas!
Tinham sido vistos, e demasiado cedo. Ead correu
para a janela e olhou para baixo.
Com os seus sentidos apurados, conseguiu ver todos
os pormenores do confronto. No Jardim do Relógio de Sol,
os lacaios de Crest choca­vam as suas espadas contra os
Cavaleiros do Corpo, já armados. Viu Loth, de espada em
punho, e Margret, de costas para o irmão.
A chama clamou por se libertar. Pela primeira vez
desde que era crian­ça, Ead conjurou um punhado de fogo
draconiano, vermelho como o sol da manhã, e atirou-o
para o Jardim do Relógio de Sol, onde os traidores
estavam reunidos. O pânico espalhou-se. Os lacaios
correram de um lado para o outro como loucos,
procurando a fonte do fogo, sem dúvi­da convencidos de
que um wyrm pairava sobre eles. Loth aproveitou o
momento e derrubou o adversário com o cotovelo. Ead
viu o seu rosto endurecer, a sua garganta apertar-se e o
seu punho cerrar-se.
— Pessoas da corte! — gritou. — Ouvi-me!
Com aquele barulho, o palácio já estaria acordado. As
janelas come­çaram a abrir-se em todos os edifícios.
— Eu sou o Lorde Arteloth Beck, eLivros de Inys pela
minha lealda­de à coroa. — Loth caminhou até ao centro
do Jardim do Relógio de Sol e ergueu a sua voz acima do
choque das espadas. — Igrain Crest rebelou-se contra a
rainha. Permite que os seus lacaios usem as suas co­res e
carreguem armas. Cospe na cara do Cavaleiro da
Camaradagem, permitindo que os seus servos lutem
como cães raivosos na corte. Isto são atos de traição!
Parecia um homem renascido.
— Peço-vos que mostreis a vossa lealdade e devoção,
que vos levanteis em defesa da rainha! Ajudai-nos a
chegar à Torre da Rainha e a garantir a sua segurança!
Das janelas, gritos furiosos surgiram.
— Tu. Que fazes aqui?
Ead virou-se. Mais doze lacaios haviam surgido.
— É ela — gritou um deles, e correram na sua direção.
— Ead Duryan, larga as armas!
Não podia encantá-los a todos.
Teria de derramar sangue.
Já tinha duas espadas nas mãos. Deu um grande salto
e aterrou, como um gato, no meio deles, cortando dedos
e dilacerando barrigas. A morte caiu sobre eles como um
vento do deserto.
As suas espadas tinham lâminas tão vermelhas como
o manto que tivera de abandonar. E quando se viu
rodeada de cadáveres, olhou para cima, com o sabor do
ferro na boca e as mãos encharcadas.
A senhora Igrain Crest encontrava-se ao fundo do
salão, ladeada por dois guardas.
— Basta, Vossa Graça — disse Ead, embainhando as
espadas. — Já chega.
Crest parecia não ter sido afetada pela carnificina.
— Senhora Duryan. — Ergueu as sobrancelhas. — O
sangue, minha querida, nunca é a resposta.
— Belas palavras — respondeu Ead — vindas de
alguém com tanto sangue nas mãos.
Crest não vacilou.
— Desde quando é que vos considerais uma juíza de
rainhas? — Ead deu um passo na sua direção. — Há
quanto tempo as castigais sempre que se afastam do
que considerais ser o caminho da virtude?
— Estais a delirar, senhora Duryan.
— O homicídio é contra os preceitos dos vossos
antepassados. E, no entanto, julgastes as Berethnets e
pronunciastes a sentença. A Rainha Rosarian tinha um
amante, e aos vossos olhos isso era uma mancha
insuportável. — Ead fez uma pausa. — Rosarian está
morta porque vós assim o decidistes.
Fora uma flecha disparada no escuro, movida pelo
instinto e pouco mais. E, no entanto, Crest sorriu.
E Ead soube.
— A Rainha Rosarian — respondeu a Duquesa da
Justiça — foi morta por Sigoso Vetalda.
— Com a vossa aprovação. Haveis ajudado por dentro.
Ele foi o bode expiatório e a arma do crime, mas vós
fostes a instigadora. Suponho que quando vistes que
tudo corria bem, percebestes o poder que tínheis.
Esperáveis moldar a filha de Rosarian e torná-la mais
obediente do que a mãe. Tentastes que Sabran
dependesse dos vossos conselhos e que vos amasse
como uma segunda mãe. — Ead espelhou aquele
pequeno sor­riso. — Mas, claro, Sabran aprendeu a tomar
as suas próprias decisões.
— Sou a herdeira da grande senhora Lorain Crest,
Cavaleira da Justiça — disse Crest, o seu tom contido. —
Ela que se certificava de que o grande duelo da vida era
jogado de forma justa, que pesava a taça da culpa contra
a taça da inocência, punia os indignos e fazia os justos
triunfar sobre os pecadores. A mais estimada pelo Santo,
cujo legado defendi durante toda a minha vida.
Um fervor incontido ardia-lhe nos olhos.
— Sabran Berethnet — disse em voz baixa — destruiu
a dinastia. É uma estéril. Uma bastarda. Não é herdeira
legítima de Galian Berethnet A coroa deve ser usada por
um Crest, para glorificar o Santo.
— O Santo não aceitaria uma tirana no trono de Inys
— disse uma voz nas costas de Ead.
Sir Tharian Lintley apareceu ao seu lado, juntamente
com nove Cavaleiros do Corpo, que rodearam Crest e os
seus protetores.
— Igrain Crest — declarou Lintley —, estais presa por
suspeita de alta traição. Vireis connosco para a Torre
Dearn.
— Não podes prender ninguém sem um mandado de
Sua Majestade — disse Crest — ou meu. — Parecia altiva,
como se todos estivessem abaixo dela. — Quem és tu
para usar as tuas espadas contra alguém de nascimento
nobre?
Lintley não se deu ao trabalho de responder.
— Ide — disse ele a Ead. — Ide ter com Sua
Majestade.
Ead não esperou que lhe dissessem duas vezes.
Olhou uma última vez para Crest e caminhou pelo
corredor.
— Podemos iniciar uma transição pacífica agora ou
esperar que a guerra seja declarada quando a verdade
for conhecida — disse-lhe Crest enquanto se afastava. —
E acontecerá, senhora Duryan. Os justos triun­fam
sempre... no fim.
Ead cerrou os dentes e continuou a andar.
Assim que soube que ninguém estava a olhar,
começou a correr, dei­xando um rasto de sangue pelo
caminho que havia percorrido tantas vezes no passado.
Correu para a Câmara de Presença. Estava frio e
escuro. Virou a es­quina e deu por si em frente às portas
do Quarto de Leito Real. As portas que abrira tantas
vezes para ver a rainha de Inys.
Algo se moveu na escuridão. Ead travou a fundo. À
luz ténue da sua chama, distinguiu uma figura agachada
junto à porta. Com olhos azul-cobalto transparentes e
cabelo escuro.
Roslain.
— Fora. — A lâmina da sua faca brilhou. — Corto-vos
a garganta se lhe tocardes, avó. Juro-vos...
— Sou eu, Roslain. Ead.
A primeira dama da rainha finalmente viu além da
chama.
— Ead. — Manteve a faca levantada, respirando com
dificuldade. — Não queria dar ouvidos aos rumores sobre
a tua feitiçaria... mas talvez sejas realmente a Dama da
Floresta.
— Como bruxa, sou muito mais humilde do que ela,
garanto-te.
Ead aproximou-se de Roslain, baixou-se e pegou-lhe
na mão direi­ta. Roslain estremeceu. Três dos seus dedos
estavam tortos num ângulo pouco natural, e uma lasca
de osso sobressaía por cima do anel do nó do amor.
— Foi a tua avó que te fez isto? — perguntou Ead
baixinho. — Ou estás com ela?
Roslain esboçou uma gargalhada amarga.
— Pelo Santo, Ead.
— Cresceste à sombra de uma rainha. Talvez estejas
ressentida com ela.
— Não cresci à sombra dela. Eu sou a sua sombra —
disse Roslain. — E esse tem sido o meu privilégio.
Ead olhou-a fixamente, mas não viu nenhum artifício
naquele rosto cheio de lágrimas.
— Vai vê-la, mas não baixes a guarda — sussurrou
Roslain. — Se a minha avó voltar...
— A tua avó foi presa.
Ao ouvir aquilo, Roslain soltou um soluço sufocado.
Ead apertou-lhe o ombro. Depois levantou-se e, pela
primeira vez numa eternidade, deu por si diante das
portas do Quarto de Leito Real. Cada fibra do seu cor­po
estava tensa como uma corda de violino.
Uma escuridão sinistra reinava no seu interior. A
chama soltou-se da sua mão e pairou no ar e, na luz
pálida, Ead conseguiu distinguir uma silhueta aos pés da
cama.
— Sabran.
A figura moveu-se.
— Deixa-me — protestou. — Estou a rezar.
Ead já estava ao seu lado. Levantou-lhe a cabeça com
a mão e o corpo trémulo de Sabran encolheu-se.
— Sabran — repetiu, quase sem voz. — Sabran, olha
para mim.
Quando Sabran olhou para cima, Ead recuperou o
fôlego. Sabran Berethnet estava abatida e descaída;
parecia mais um cadáver do que uma rainha. Os seus
olhos, outrora cheios de vida, mal viam o exterior, e a
sua túnica de dormir cheirava a dias não lavados.
— Ead — reconheceu, tocando-lhe com os dedos no
rosto. Ead pres­sionou a mão gelada contra a sua face. —

É
Não. És outro sonho. Vieste para me atormentar. —
Sabran virou as costas. — Deixa-me em paz.
Ead olhou para ela, depois riu-se pela primeira vez em
semanas, um riso que surgiu das profundezas do seu
estômago.
— Maldita sejas, tola intransigente. Atravessei o Sul e
todo o Ocidente para voltar para o teu lado, Sabran
Berethnet, e é assim que me recebes?
Sabran olhou para ela durante mais um momento,
suavizando a ex­pressão, e de repente desatou a chorar.
— Ead — disse ela, com a voz embargada.
Ead abraçou-a com força, envolvendo-a com os
braços. Sabran encolheu-se contra o seu corpo como um
gatinho.
Não havia nada dela. Ead tirou a colcha da cama e
cobriu-a com ela. Teria tempo para explicações. E para
vingança. Por enquanto, tudo o que queria era confortá-
la e fazê-la sentir-se segura.
— Ela matou Truyde utt Zeedeur. — Sabran tremia
tanto que mal conseguia falar. — Aprisionou os meus
Cavaleiros do Corpo. Igrain. Tentei... tentei...
— Shh — disse Ead, beijando-lhe a testa. — Eu estou
aqui. Loth está aqui. Vai correr tudo bem.
51
Este

Passava pouco do amanhecer e no pátio da Casa


Vane, o Ancião Vara estava a olear a sua perna de ferro.
Tané aproximou-se dele. O frio deixou-lhe os nós dos
dedos rosados.
— Bom dia, Ancião Vara. — Pousou uma bandeja. —
Achei que gostaríeis de quebrar o jejum.
— Tané. — O seu sorriso estava cansado. — Como sois
bondosa. Os meus velhos ossos ficariam gratos pelo
calor.
Ela sentou-se ao lado dele.
— Precisais de óleo muitas vezes? — perguntou.
— Uma vez por dia em condições húmidas ou a
ferrugem começa a instalar-se. — O Ancião Vara deu uma
palmadinha no membro. — Já que o ferreiro que o fez
para mim agora está morto, preferia não arriscar perdê-
la.
Tané acostumara-se a ler as suas expressões. Desde
o ataque, o medo fixara residência permanente nos
corredores da Ilha das Penas, mas a preocupação
gravada no seu rosto era recente.
— Há algum problema?
O Ancião Vara olhou para ela.
— A erudita Doutora Moyaka escreveu-me assim que
chegou a Seiiki — disse ele. — A Alta Guarda do Mar
suspeita de que a Frota do Olho de Tigre mantém um
dragão como refém. Parece que pretendem mantê-lo
vivo... para garantir passagem segura por quaisquer
águas que desejarem. Uma nova tática sinistra, para
manter os nossos deuses como alavanca.
Tané obrigou-se a servir o chá. O ódio fechou-lhe a
garganta.
— Há um boato de que a Imperatriz Dourada está em
busca da lendária amoreira — continuou o Ancião Vara.
— Na ilha perdida de Komoridu.
— Sabeis mais alguma coisa sobre o dragão? —
insistiu Tané. — Sabeis o seu nome?
— Tané, custa-me dizer-vos isto, mas... — O Ancião
Vara suspirou. — É a grande Nayimathun.
Tané engoliu em seco, a garganta dorida.
— Ela ainda está viva?
— Se os rumores forem verdadeiros. — O Ancião Vara
assumiu gen­tilmente o controlo da chaleira. — Dragões
não se dão bem fora de água, Tané, como sabeis. Mesmo
que esteja viva, a grande Nayimathun não durará muito
neste mundo.
Tané fizera o luto pelo seu dragão. Agora havia uma
possibilidade, embora pequena, de que ela estivesse
viva.
Aquela notícia mudava tudo.
— Devemos torcer para que a Alta Guarda do Mar
encontre uma maneira de libertá-la. Tenho a certeza de
que conseguirão. — O Ancião Vara passou-lhe uma
chávena. — Por favor, permiti-me mudar de as­sunto.
Viestes aqui para me perguntar algo?
Com dificuldade, Tané empurrou Nayimathun para o
fundo da sua mente, mas o seu mundo estava a abanar.
— Pergunto-me — obrigou-se a dizer — se poderia
pedir a vossa per­missão para dar uma vista de olhos ao
repositório. Gostaria de ler sobre as joias celestiais.
O Ancião Vara franziu a testa.
— Esse é um conhecimento secreto, de facto. Achei
que apenas os mais velhos soubessem disso.
— A grande Nayimathun contou-me.
— Ah. — Ele considerou. — Bem, se for esse o vosso
desejo, é claro. Há poucos registos das joias celestiais,
que às vezes eram chamadas de joias da maré ou joias
dos desejos, mas podeis examinar o pouco que exis­te. —
Apontou para o norte. — Precisareis de documentos do
reinado da muito honrada Imperatriz Mokwo, que estão
armazenados na Casa Barlavento. Vou preparar uma
carta para vos conceder acesso.
— Obrigada, Ancião Vara.

***

Tané vestiu-se com roupa quente para a viagem. Um


casaco acolchoado sobre o uniforme, uma faixa ao redor
da cabeça e do rosto, e as botas forradas de pele que
recebera no inverno. Juntamente com um perga­minho
endereçado à Alta Erudita da Casa Barlavento, o Ancião
Vara também lhe deu uma bolsa de comida.
Seria uma jornada longa, especialmente no frio. Ela
teria de descer até ao Caminho do Ancião, escalar as
rochas do outro lado e caminhar no calor de Casa
Barlavento. Tufos de neve começaram a cair quando ela
partiu.
A única forma de descer desse lado era usando as
rochas íngremes ao lado das Cataratas de Kwiriki.
Enquanto descia, o coração de Tané batia tão forte que
ela se sentia mal. Neste exato momento, Nayimathun
poderia estar a lutar pela vida nas mãos de um
açougueiro.
E certamente uma joia celestial, se é que fora isso
que haviam costura­do em Tané, como um padrão num
tecido...
Certamente isso poderia libertar um dragão.
Era quase meio-dia quando alcançou o sopé da
ravina, onde um por­tal de madeira flutuante marcava a
entrada do lugar mais sagrado do Leste. Tané lavou as
mãos na água salgada e adentrou num caminho
pavimentado com pedras.
No Caminho do Ancião, a névoa era tão densa que
encobria o céu. Tané mal conseguia ver os topos dos
cedros que se erguiam no cinzento.
Não estava completamente silencioso. A cada poucos
momentos, as folhas farfalhavam, como se perturbadas
pela respiração.
Lamparinas guiaram-na pelos túmulos de estudiosos,
anciãos e líderes do Oriente que temiam dragões e
haviam solicitado que os seus restos mortais
repousassem junto aos do Grande Ancião. Alguns dos
blocos de pedra eram tão antigos que as inscrições se
haviam desgastado, deixan­do os seus ocupantes sem
nome.
O Ancião Vara disse-lhe para não pensar no passado.
Contudo, ao caminhar ali, ela não pôde deixar de pensar
em Susa. Os corpos dos executados eram deixados para
apodrecer, os ossos descartados.
Uma cabeça numa vala, um corpo aberto. A
escuridão manchava as bordas da sua visão.
Levou a maior parte do dia para atravessar o
cemitério e escalar a face da rocha na sua extremidade.
Quando avistou o Cabo Espinho — o braço estendido da
ilha —, o céu já tinha escurecido para um roxo, e a única
luz era uma costura dourada no horizonte.
As ameixas pendiam como pequenos sóis no pátio da
frente da Casa Barlavento, que dava para o cabo. Tané
foi recebida por um homem lacustre com a cabeça
rapada, proclamando o seu papel como cantor de ossos.
Aqueles estudiosos passavam a maior parte dos seus
dias no Caminho do Ancião, a cuidar dos túmulos dos
fiéis e entoando louvores aos ossos do grande Kwiriki.
— Honrada estudiosa. — Ele curvou-se, e Tané fez o
mesmo. — Bem-vinda à Casa Barlavento.
— Obrigada, erudito cantor de ossos.
Descalçou as botas e guardou-as. O cantor de ossos
conduziu-a para o interior mal iluminado do eremitério,
onde um fogão a carvão mantinha o frio sob controlo.
— Agora — disse ele —, que podemos fazer por vós?
— Trago uma mensagem do erudito Ancião Vara. —
Estendeu o pergaminho. — Ele solicita que me seja
permitido aceder ao vosso repositório.
Com as sobrancelhas erguidas, o jovem pegou o
pergaminho.
— Devemos respeitar os desejos do erudito Ancião
Vara — disse ele —, mas deveis estar cansada após a
vossa jornada. Gostaríeis de visitar o repositório agora ou
preferis aguardar nos aposentos de hóspedes até
amanhã?
— Agora — disse Tané. — Se estiverdes disposto a
acompanhar-me.

***
— Até onde sabemos, a Ilha das Penas foi o único
lugar no Oriente que permaneceu intocado durante a
Grande Desolação — disse o cantor de ossos enquanto
caminhavam. — Muitos documentos antigos foram en­‐
viados para cá, para serem protegidos do infortúnio.
Infelizmente, desde que as bestas de fogo acordaram e
descobriram o nosso paradeiro, esses documentos estão
agora em perigo.
— Algo se perdeu no ataque?
— Um punhado — disse ele. — Organizamos os
nossos arquivos por reinados. Sabeis quem procurais?
— A muito honrada Imperatriz Mokwo.
— Ah, sim. Uma figura misteriosa. Dizia-se que tinha
ambições de trazer todo o Oriente sob o domínio do
Trono do Arco-Íris. Que o seu rosto era tão lindo que
todas as borboletas choravam de inveja. — O seu sorriso
apareceu-lhe nas faces. — Quando a história falha em
lançar luz sobre a verdade, o mito cria a sua própria.
Tané seguiu-o escada abaixo, por um túnel.
O repositório erguia-se como uma sentinela numa
caverna atrás do eremitério. Estátuas de Altos Eruditos
do passado enchiam recantos nas paredes e incontáveis
gotas de luz azul pendiam do teto, como fios de seda de
aranha.
— Não corremos o risco de pegar fogo aqui — disse o
cantor de ossos. — Felizmente, a caverna tem as suas
próprias luzes.
Tané ficou fascinada.
— O que são?
— Gotas de lua. Ovos da mosca leve. — Virou o
repositório. — Todos os nossos documentos são tratados
com óleo de crina de dragão e deixados para secar nas
cavernas de gelo. A estudiosa Ishari estava a tratar com
óleo algumas das nossas mais novas adições ao
repositório quando as bestas de fogo chegaram.
— Estudiosa Ishari — ecoou Tané. O seu estômago deu
um nó. — Era ela... no eremitério?
— Infelizmente, a estudiosa foi ferida no ataque
enquanto tentava salvar os documentos. Morreu de
dores.
Falava da morte da maneira que só os cantores de
ossos fariam, com aceitação e quietude. Tané engoliu a
cinza do arrependimento. Ishari tinha 19 anos, e a maior
parte deles fora gasta a preparar-se para uma vida que
ela nunca tivera a hipótese de levar.
O cantor de ossos abriu uma porta no repositório.
— Os documentos aqui referem-se ao reinado da
muito honrada Imperatriz Mokwo. — Não eram muitos. —
Pedir-vos-ia para lidar com eles o mínimo possível. Voltai
para dentro quando quiserdes.
— Obrigada.
Ele virou-se e deixou-a. No brilho azul calmo, Tané
avaliou os perga­minhos. Ao piscar das gotas de lua,
desvendou o primeiro pergaminho e começou a ler,
esforçando-se por não pensar em Ishari.
Era uma carta de um diplomata da Cidade das Mil
Flores. Tané era fluente em lacustre, mas aquela era uma
antiga escrita clerical. Traduzir fez-lhe doer as têmporas.

Dirigimo-nos a Neporo, a
autoproclamada Rainha de Komoridu,
cujo nome ouvimos pela primeira vez,
para vos agradecer o envio de uma
embaixada e dos vossos tributos.
Embora apreciemos a vossa deferência,
a vossa inesperada rei­vindicação de um
território no Mar Infinito é um insulto ao
vizinho Seiiki, com cujo povo estamos
unidos como adoradores de dragões.
Lamentamos não poder reconhecer-vos
como rainha soberana enquanto a Casa
de Noziken discordar. Mesmo assim,
atribuímos-vos o título de Senhora de
Komoridu, amiga do povo lacustre.
Esperamos que governeis o vosso povo,
conduzindo-o para a paz e mostrando
respeito e devoção tanto à nossa nação
como a Seiiki.

Komoridu. Tané nunca tinha ouvido falar desse lugar


na sua vida. Nem de nenhuma rainha chamada Neporo.
Abriu outro pergaminho. Era uma carta em seiikine
arcaico. A cali­grafia era grossa e longa, mas conseguiu
entender. Parecia ser dirigida à própria Noziken Mokwo.

Majestade, dirijo-me novamente a vós.


Neporo está de luto, porque a sua ami­ga,
a feiticeira do outro lado do mar, morreu.
Foram as duas que, usando os dois objetos
que descrevi na minha última missiva, a
joia minguante e a joia crescente, criaram
o grande caos no Abismo, no terceiro dia
da primavera. Agora, o corpo da feiticeira
lasiana será devolvido ao seu país, e
Neporo provi­denciou uma escolta de doze
dos seus súbditos, acompanhados da joia
branca que a feiticeira costumava usar no
peito. Uma vez que o augusto Kwiriki nos
concedeu esta oportunidade, farei tudo o
que estiver ao meu alcance para cum­prir a
vossa ordem.

Os outros documentos eram registos da corte. Tané


examinou-os minu­ciosamente, até lhe doer a testa de
tanto franzir o sobrolho.
Por várias vezes, quase adormeceu na escuridão da
gruta, verificando cada documento uma e outra vez,
procurando qualquer coisa que lhe pudesse ter
escapado, revendo a sua tradução. Com um peso
insupor­tável nas pálpebras, arrastou-se até aos
aposentos dos hóspedes, onde lhe tinham deixado uma
refeição e uma camisa de dormir. Deitou-se na cama e
ficou a olhar para a escuridão durante muito tempo.
Era altura de descobrir o que havia escondido. Para
libertar todo o poder que pudesse conter.
O grande caos no Abismo.
Mas que caos? E porquê?
52
Este

— Se nenhum de vós falar — disse a rainha de Inys


—, ficaremos aqui durante muito tempo.
Loth olhou de relance para Ead, que estava sentada
do outro lado da mesa, vestida com uma camisa e calças
cor de marfim, com o cabelo penteado para trás.
Estavam na Câmara do Conselho, no cimo da Torre de
Alabastro. Entrava uma luz suave pelas janelas. Com
uma pequena ajuda para to­mar banho e vestir-se, e com
a força de uma guerreira, a rainha tinha conseguido
recompor-se num instante.
Libertar Sabran tinha sido a primeira vitória da noite.
A notícia de que a Duquesa da Justiça tinha sido presa
por alta traição fez a maioria dos seus lacaios baixar as
armas. Os Cavaleiros do Corpo tinham trabalhado até às
primeiras horas da manhã, com a ajuda dos guardas do
palácio, para encontrar até ao último traidor e impedir
que fugisse do palácio.
Nelda Stillwater, Lemand Fynch e o Falcão da Noite
tinham chegado à corte pouco depois, cada um com o
seu séquito, alegando terem vindo libertar a rainha de
Crest, mas Sabran ordenara que fossem todos presos até
que a verdade fosse apurada.
Ead descobrira o que tinha acontecido. Na noite em
que fora obriga­da a fugir de Inys, Sabran tivera uma
ligeira febre. Alguns dias mais tar­de, parecia estar a
recuperar, mas de repente tudo piorou. Era evidente que
Crest assumira o controlo dos seus cuidados, mas
durante semanas, por trás das portas do Quarto de Leito
Real, pressionara a rainha a as­sinar um documento
chamado Declaração de Renúncia. Se conseguisse que
ela o assinasse, cederia o trono de Inys à família Crest
até ao fim dos tempos. E, se a rainha não assinasse,
Crest ameaçara-a com a exposição pública da sua
infertilidade, ou com a morte.
Sabran não cedeu. Nem quando estava demasiado
fraca para comer ou depois de Crest a ter trancado no
escuro.

— Estou a ver que não terei de arranjar alguém


para te arrancar a língua — disse Sabran. — Parece que a
engoliste.

Ead tinha um copo de cerveja na mão. Era a


primeira vez, nas últimas horas, que estava a mais de
um centímetro de Sabran.
— E por onde começo? — disse por fim.
— Podes começar, senhora Duryan, por me confessar
quem és. Disseram-me que eras uma bruxa — disse
Sabran —, que tinhas deixa­do a minha corte para prestar
homenagem ao Rei Terreno.
— E tu acreditaste nesse disparate.
— Eu não sabia no que devia acreditar. Mas agora
voltas para o meu lado encharcada em sangue e deixas
um monte de cadáveres mais altos do que um cavalo
atrás de ti. Não és certamente uma dama de companhia.
Ead esfregou as têmporas com o dedo e depois
encarou Sabran.
— O meu nome é Eadaz du Zāla uq-Nāra. — A sua
voz era firme, embora os seus olhos revelassem um
conflito interior. — E Chassar uq-Ispad trouxe-me até ti
como guarda-costas.
— E o que fez Sua Graça supor que tu me poderias
proteger melhor do que os meus Cavaleiros do Corpo?
— Eu sou uma maga. Pratico um ramo da magia
chamado siden. O siden tem origem na mesma laranjeira
de Lasia que protegeu Cleolind Onjenyu quando ela
derrotou o Inominável.
— Uma laranjeira encantada — disse Sabran, com
uma gargalhada. — Agora vais dizer-me que as peras
cantam.
— A rainha de Inys escarnece do que não entende?
Loth olhou para as duas. Antes de deixar a corte,
Ead mal falava com Sabran. Agora parecia atrever-se a
discutir impunemente com a rainha.
— Lorde Arteloth — disse Sabran —, talvez possas
esclarecer-me sobre a tua saída da corte. E como
encontraste a senhora Duryan na tua jornada. Ela
parece-me um pouco confusa.
Ead escondeu o seu aborrecimento atrás do copo de
cerveja. Loth esticou os braços sobre a mesa.
— O Lorde Seyton Combe enviou-me a mim e ao Kit
para Cárscaro. Pensou que eu seria um obstáculo aos
teus planos de casamento — disse ele. — No Palácio da
Salvação, encontrámos a Donmata Marosa, que nos deu
uma missão. E a partir daí, receio que as coisas se
tornem ainda mais estranhas.
Ele contou-lhe tudo. A confissão do Rei Terreno, que
admitira ter as­sassinado a sua mãe. Sobre o misterioso
Copeiro, que também tinha as mãos sujas de sangue por
esse crime. Falou-lhe da morte de Kit e da cai­xa de ferro
que transportara pelo deserto, da sua reclusão no
Priorado e da sua fuga de volta a Inys a bordo do Pássaro
da Verdade.
Ead fez alguns comentários, acrescentando
pormenores, contando a Sabran do seu exílio e da sua
visita à cidade em ruínas de Gulthaga. Falou da Estrela
de Crina Longa e da Tábua de Rumelabar. Aprofundou as
origens do Priorado da Laranjeira e as suas crenças, e o
motivo pelo qual tinha sido enviada para Inys. Sabran
não se moveu um centímetro enquanto escutava. Apenas
o brilho dos seus olhos revelava as suas reações a cada
revelação.
— Se Sabran a Primeira não era filha de Cleolind —
disse por fim —, e não estou a dizer que acredito nisso,
Ead... Quem era a mãe dela? Quem foi a primeira rainha
de Inys?
— Não sei.
Sabran olhou para cima.
— Quando estive em Lasia, aprendi mais sobre a
Tábua de Rumelabar — explicou Ead. — Para entender o
seu mistério, fui até Kalyba, a Bruxa de Inysca. — Olhou
para Loth. — Aqui conhecem-na como a Dama da
Floresta. Foi ela que criou Ascalon e a ofereceu a Galian
Berethnet.
Ead não lhe dissera isso no barco.
— Então a Dama da Floresta existe mesmo? —
perguntou Loth. — Sim.
Loth engoliu em seco.
— E afirmas que ela criou a Espada da Verdade —
disse Sabran. — O terror da floresta de Haithwood.
— Sim — respondeu Ead, sem se deixar abater. —
Ascalon foi forjada usando magia siden e magia sterren,
ou sideral, que vem de uma substân­cia liberada da
cauda da Estrela de Crina Longa. Estas duas forças estão
descritas na Tábua de Rumelabar. Enquanto uma cresce,
a outra diminui.

Sabran usava a mesma máscara de indiferença que


costumava usar na Câmara de Presença.

— Recapitulando — disse, com a voz tensa —, tu


acreditas que o meu antepassado, o Santo, era um
cobarde sedento de poder que tentou pres­sionar um país
inteiro a aceitar a sua religião, que empunhou a espada
que lhe foi dada por uma bruxa e que nunca derrotou o
Inominável.

— E que roubou os louros desse feito à Princesa


Cleolind, sim.
— E achas que sou descendente de um homem
assim.
— As rosas mais bonitas nascem das sementes mais
imundas.
— O que fizeste por mim não te dá o direito de
blasfemar na minha presença.
— Então queres que o teu novo Conselho das
Virtudes te diga apenas o que queres ouvir. — Levantou o
copo. — Muito bem, Majestade. Loth pode ser o Duque da
Lisonja, e eu serei a Duquesa do Engano.
— Basta — ordenou Sabran.
— Calma — interveio Loth. — Por favor. — Elas não
disseram nada. — Não podemos discutir. Devemos ficar
unidos agora. Com... — De repente, a sua boca ficou
seca. — Com o que está para vir.
— E que é que está para vir?
Loth tentou dizê-lo, mas não conseguiu encontrar as
palavras.
Derrotado, olhou para Ead.
— Sabran — disse Ead, em voz baixa. — O
Inominável irá regressar.
Sabran pareceu afundar-se num mundo só dela, e
por lá ficou durante algum tempo. Então, lentamente,
levantou-se, caminhou até à varanda e ali ficou,
delineada pela luz do Sol.
— É verdade — disse Ead passado algum tempo. —
Fui convencida por uma carta enviada ao Priorado por
uma mulher chamada Neporo. Cleolind aliou-se a ela
para subjugar o Inominável, mas só por mil anos. E esses
mil anos estão quase a chegar ao fim.
Sabran apoiou as mãos na balaustrada. A brisa
levantou-lhe alguns fios de cabelo.
— Então... É como disseram os meus antepassados.
Que quando a Casa de Berethnet acabasse... o
Inominável regressaria.
— Não está relacionado contigo — disse Ead. — Ou
com os teus antepassados. Galian provavelmente fez
essa declaração para consolidar o seu novo poder e fazer
o seu povo vê-lo com bons olhos. Alimentou os seus
descendentes com a sua mentira.
Sabran não disse nada.
Loth queria confortá-la, mas não havia nada que
pudesse dizer para amenizar a revelação.
— O Inominável foi subjugado no terceiro dia da
primavera, duran­te o vigésimo ano do reinado de Mokwo,
imperatriz de Seiiki — dis­se Ead —, mas eu não sei
quando Mokwo governou. Deves pedir à Grã-Princesa
Ermuna para determinar a data. Ela é a arquiduquesa de
Ostendeur, onde estão guardados os documentos sobre o
Oriente. — Vendo que Sabran nada dizia, Ead suspirou. —
Sei que isto é uma heresia para ti. Mas se sentes alguma
coisa por aquela a quem chamas Donzela, se tens algum
respeito pela memória de Cleolind Onjenyu, deves fazê-
lo.
Sabran levantou o queixo.
— E se descobrirmos a data, que farás?
Ead meteu a mão no decote e tirou a joia pálida que
levara do Priorado.
— Esta é a joia minguante, uma das duas necessárias.
— Depositou-a sobre a mesa. — É feita de sterren. A sua
joia irmã deve estar no Oriente. A carta dizia que
precisávamos de ambas.
Sabran olhou por cima do ombro.
A luz do Sol refletia-se na joia minguante. Tê-la por
perto dava a Loth uma sensação de calma, quase o
oposto do que Ead lhe transmitia. Era como um raio de
sol. Pura luz das estrelas.
— Depois de Cleolind ferir o Inominável,
aparentemente viajou para o Oriente — disse Ead —,
onde encontrou Neporo de Komoridu, e juntas confinaram
o Inominável ao Abismo. — Deu um leve toque na joia. —
Temos de repetir o que elas fizeram há mil anos, mas
desta vez teremos de completar o trabalho. E para isso,
também precisamos de Ascalon.
Sabran voltou o seu olhar para o horizonte.
— Todas as rainhas de Berethnet procuraram a Espada
da Verdade, mas sem sucesso.
— Nenhuma delas tinha uma joia para a invocar.
Kalyba contou-me que Galian queria deixar Ascalon nas
mãos de quem se dispusesse a morrer para a manter
oculta. Sabemos que tinha um séquito leal, mas
consegues lembrar-te especificamente de alguém?
— Edrig de Arondine — disse Loth, sem hesitar. — O
Santo foi seu escudeiro antes de se tornar cavaleiro. Era
como um pai para ele.
— Onde é que ele vivia?
— Na verdade — Loth sorriu —, foi um dos
fundadores da família Beck.
Ead ergueu as sobrancelhas.
— Goldenbirch — disse ela. — Bem, talvez devesse
começar a busca por lá... contigo e com a Meg, se
quiseres juntar-te a mim. Em todo o caso, o teu pai quer
falar com ela há já algum tempo.
— Achas mesmo que ela pode estar em Goldenbirch?
— É um sítio tão bom como qualquer outro para
começar.
Loth lembrou-se da noite anterior.
— Um de nós deve ficar — disse ele. — A Meg pode ir
contigo. Finalmente, Sabran voltou-se novamente para
eles.
— Quer essa lenda seja verdadeira, quer não —
disse —, eu não tenho escolha a não ser confiar em ti,
Ead. — O seu rosto endureceu. — O nosso inimigo
comum erguer-se-á novamente. Tanto a tua religião
como a minha o confirmam. E eu tenciono enfrentá-lo.
Quero levar Inys à vitória, tal como Glorian, a Destemida,
fez em tempos.
— Estou convencida de que és capaz de o fazer —
disse Ead.
Sabran voltou ao seu lugar.
— Já que não há navios a navegar para norte esta
noite, gostaria que estivesses presente no Festim de
Inverno. E tu também, Loth.
Loth franziu a testa.
— Ainda se vai realizar?
— Acho que é mais necessário do que nunca. Já deve
estar tudo preparado.
— As pessoas verão que não estás grávida. — Loth
hesitou. — Vais dizer-lhes que és infértil?
Sabran olhou para a sua barriga lisa.
— Infértil. — Sorriu. — Suponho que teremos de
encontrar outra palavra. Esta faz-me parecer um campo
estéril. Um deserto sem mais nada para oferecer.
Ela tinha razão. Era uma forma cruel de descrever
uma pessoa.
— Perdoa-me — murmurou.
Sabran assentiu com a cabeça.
— Direi à corte que perdi a minha filha, mas não
precisam de saber que não posso voltar a conceber.
Seria uma fonte de tristeza para os seus súbditos, mas
deixá-los-ia com uma réstia de esperança.
— Ead — disse Sabran —, gostaria de te tornar
membro da Assembleia dos Cavaleiros.
— Não desejo títulos.
— Aceitá-lo-ás, porque se não o fizeres, correrás um
risco demasiado grande se permaneceres na corte. Crest
disse a toda a gente que és uma bruxa. Com a tua nova
posição, ninguém mais irá duvidar de que confio na tua
lealdade.
— Concordo — expressou Loth.
Ead acenou ligeiramente com a cabeça.
— Bem, senhora sou, então — disse após uma pausa.
O silêncio que se estendeu entre os três era como
uma sombra pesa­da. Agora eram aliados, mas pareciam
estar sobre uma ponte de vidro, um vidro que se podia
estilhaçar nas fendas criadas pela religião e pelo legado
de cada um.
— Vou dizer à Margret que partiremos em viagem —
disse Ead, levantando-se. — Oh, e Sabran, nunca mais
usarei um vestido de cor­tesã. Estou farta de ter de te
proteger num corpo apertado por um espartilho.
Saiu sem pedir licença. Sabran ficou a olhar para ela
com uma ex­pressão estranha no rosto.
— Estás bem? — perguntou Loth.
— Finalmente voltaste.
Ambos sorriram, e Sabran pousou uma mão na dele.
Fria, como sem­pre, e com um tom lilás nas unhas.
Quando era criança, ele arreliara-a por causa disso,
chamando-lhe Princesa da Neve.
— Ainda não te agradeci por tudo o que fizeste para
me libertar — disse ela. — Sei que foste tu quem me
defendeu na corte.
Ele apertou-lhe a mão.
— És a minha rainha. E minha amiga.
— Quando soube que tinhas partido, pensei que ia
enlouquecer... Sabia que não podias ter partido de livre
vontade, mas não tinha provas. Vi-me despojada de
autoridade na minha própria corte.
— Eu sei.

Apertou-lhe a mão mais uma vez.

— Confio-te, por agora, os deveres do Ducado da


Justiça. Decidirás se Combe, Fynch e Stillwater vieram
realmente em meu auxílio.

— É um cargo muito sério. Destinado a alguém de


linhagem santa — disse Loth. — Certamente um dos
Condes Provinciais o faria melhor.

— Apenas posso confiar em ti. — Sabran entregou-


lhe um pergami­nho por cima da mesa. — Esta é a
Declaração de Renúncia que Crest queria que eu
assinasse. Com a minha assinatura, este documento teria
significado a cedência do trono à sua família.

Loth leu-o e sentiu a garganta seca ao ver o selo de


cera com as duas taças gravadas.

— A febre e a dor deixaram-me tão fraca que não


compreendia bem o que me estava a acontecer. A minha
única obsessão era a sobrevivência — disse Sabran. —
No entanto, uma vez ouvi Crest a discutir com Roslain,
dizendo-lhe que a Declaração de Renúncia iria um dia
torná-la rainha, e a sua filha depois disso, e que ela era
uma ingrata por resistir. E Ros... Ros disse-lhe que
morreria antes de a deixar tomar o trono de mim.
Loth sorriu. Não esperava nada menos de Roslain.
— Na noite anterior à tua chegada — continuou
Sabran —, acordei e não conseguia respirar. Crest tinha
uma almofada sobre o meu rosto. Murmurou que eu não
era digna, tal como a minha mãe. Que a linha­gem de
sangue estava envenenada. Que até os Berethnets
tinham de responder perante a justiça. — A mão subiu-
lhe para a boca. — A Ros partiu os dedos a tentar tirá-la
de cima de mim.
Todo aquele sofrimento, e para nada.
— Crest deve morrer — concluiu Sabran —, e, por
não terem agido para a impedir, ordenarei que Eller e
Withy fiquem confinados nos seus castelos até segunda
ordem. E despojá-los-ei dos seus ducados, a favor dos
seus herdeiros — acrescentou, muito séria. — De uma
coisa podes ter a certeza. Quer tenha uma linhagem
sagrada, quer não, farei Crest arder na fogueira pelo que
fez.
Noutra altura, Loth teria protestado contra um
castigo tão brutal, mas Crest não merecia misericórdia.
— Durante algum tempo, ela quase me convenceu
de que deveria re­nunciar ao poder. Que Crest queria o
melhor para o reino. — Sabran levantou o queixo. — Mas
devemos unir-nos diante da ameaça draco­niana. Agarrar-
me-ei ao meu trono, e veremos o que conseguimos.
Mais do que nunca, Sabran falara como uma rainha.
— Loth — acrescentou ela, baixando a voz —, tu
estiveste com Ead naquele... Priorado da Laranjeira. Viste
a sua verdadeira face. — Olhou-o nos olhos. — Ainda
confias nela?
Loth serviu mais cerveja aos dois.
— O Priorado fez-me questionar as fundações do
nosso mundo — admitiu. — Mas sempre confiei em Ead.
Ela salvou-me a vida, pondo a dela em risco. — Ofereceu-
lhe a bebida. — Ela deseja proteger a tua vida, Sab. Acho
que não há nada neste mundo que ela deseje mais.
Algo mudou no rosto de Sabran.
— Tenho de escrever a Era. Os teus aposentos
aguardam-te, mas não te atrases para o festim — disse,
e quando se entreolharam, Loth viu nos seus olhos a
centelha de Sabran de outrora. — Bem-vindo de volta à
corte, Lorde Arteloth.

***
No último andar da Torre Dearn, na mesma cela onde
Truyde utt Zeedeur passara os seus últimos dias, Igrain
Crest rezava. A única luz entrava pela estreita abertura
de uma fresta. Quando Loth chegou, ela não levantou a
cabeça, nem abriu as mãos.
— Senhora Igrain — disse Loth.
Ela permaneceu imóvel.
— Venho fazer-vos algumas perguntas.
— Responderei pelo que fiz apenas em Halgalant.
— Não vereis a corte celestial — respondeu Loth,
imperturbável.
Por isso, mais vale começarmos aqui.
53
Oeste

O Festim de Inverno começava às seis da tarde no


Salão de Banquetes do Palácio de Ascalon. Como sempre,
mais tarde haveria música e dança na Câmara de
Presença.
Ead contemplou a sua figura no espelho enquanto os
sinos tocavam na torre do relógio. O seu vestido era de
seda, do mais pálido azul possível, coberto de pérolas
cultivadas e com um folho de renda branca.
Por mais uma noite, vestir-se-ia como uma cortesã.
As suas irmãs reafirmariam a sua convicção de que ela
era uma traidora quando des­cobrissem que tinha
aceitado um título da rainha de Inys. No entanto, parecia
ser a única opção se quisesse sobreviver na corte.
Bateram uma vez à porta e Margret entrou. Usava
um vestido de ce­tim cor de marfim, uma faixa prateada,
e um toucado de pedra da lua.
— Acabo de falar com Sabran. Vão fazer-me Dama
do Leito Real — disse, e pousou a vela. — Pensei que não
quisesses ir sozinha para o Salão de Banquetes.
— Pensaste bem. Como sempre. — Ead susteve-lhe o
olhar através do espelho. — Meg, que te contou o Loth
sobre mim?
— Tudo. — Margret segurou-a pelos ombros. —
Sabes que o meu santo padroeiro é o Cavaleiro da
Bravura. É uma coisa corajosa, creio, abrires a tua mente
e pensares por ti própria. Se és uma bruxa, então talvez
as bruxas não sejam assim tão más — disse, depois ficou
séria. — Mas tenho uma pergunta: preferes que te chame
Eadaz?
— Não. Mas obrigada por perguntares. — Ead ficou
comovida. — Podes tratar-me por Ead, tal como eu te
trato por Meg.
— Muito bem. — Margret uniu o braço ao dela. —
Então deixa-me voltar a apresentar-te à corte, Ead.
A neve cobria cada saliência e cada degrau. Os
cortesãos apareciam de todas as partes do palácio,
atraídos pela luz das janelas do Salão de Banquetes. Ao
entrarem, o mordomo anunciou:
— A senhora Margret Beck e a senhora Ead Duryan.
O seu nome antigo. O seu nome falso.
O Salão de Banquetes ficou quase em silêncio.
Centenas de olhos viraram-se para ver a bruxa. Margret
segurou-lhe o braço ainda com mais força.
Loth estava sozinho na mesa principal, sentado à
esquerda do trono. Acenou-lhes com a mão.
Avançaram por entre as filas de mesas. Quando
Margret chegou a cadeira do outro lado do trono, Ead
sentou-se ao seu lado. Nunca ti­nha comido à mesa de
honra, que era reservada à rainha, aos Duques
Espirituais e a dois outros convidados de honra.
Antigamente, esses dois convidados de honra eram
normalmente Loth e Roslain.
— Já vi cemitérios mais alegres — murmurou Margret.
— Já falaste com Roslain, Loth?
Loth encostou os nós dos dedos à face e virou o rosto
para elas, escon­dendo os lábios.
— Sim. Depois de o médico ter vindo tratar dos seus
ossos — disse em voz baixa. — Parece que tinhas razão,
Ead. Crest considera-se uma juíza de rainhas.
Ead não tinha prazer em estar certa quanto a isso.
— Não tenho a certeza de quando esta loucura se
instalou — expli­cou Loth —, mas no tempo da Rainha
Rosarian, uma das suas damas informou Crest de que a
rainha mantinha um relacionamento com o Capitão Gian
Harlowe. Crest viu Rosarian como... uma meretriz, in­‐
digna do trono. Castigou-a de várias formas. Até que
decidiu que não havia esperança de a mudar.
Ead podia ver no rosto de Loth que era difícil para ele
aceitar tudo aquilo. Passara demasiados anos a acreditar
nos delicados artifícios da corte. Agora, o vento havia
soprado essas folhas habilmente dispostas, expondo os
dentes brilhantes do engodo.
— Advertiu a Rainha Rosarian — continuou Loth,
franzindo o cenho —, mas a relação com Harlowe
continuou. Mesmo... — Olhou de re­lance para a porta. —
Mesmo depois de Sab ter nascido.
Margret ergueu as sobrancelhas.
— Então a Sabran pode ser filha dele?
— Se Crest estiver a dizer a verdade. E eu acho que
está. Quando começou a falar, parecia quase
desesperada para me contar todos os pormenores da
sua... empreitada.
Mais um segredo que teriam de guardar. Mais uma
fenda no trono de mármore.
— Assim que Sab atingiu idade suficiente para ter
uma filha, Crest pe­diu ajuda ao Rei Sigoso. Sabia que ele
se sentira insultado por Rosarian ter recusado a sua mão,
por isso, juntos, planearam matá-la, e Crest contava que
isso atribuísse a culpa a Yscalin.
— E Crest ainda se considera digna? — Margret
resfolegou. — Após matar uma Berethnet?
— A devoção pode transformar uma pessoa sedenta
de poder num monstro — disse Ead. — São capazes de
distorcer qualquer preceito para justificar as suas ações.
Já o vira antes. Mita convencera-se de que estava a
servir a Mãe ao executar Zāla.
— E então, Crest esperou — continuou Loth. —
Esperou para ver se Sabran, conforme crescia, se
tornaria mais devota do que a sua mãe. Ao ver a sua
indecisão quanto a ter filhos, Crest interpretou-o como
uma re­belião. Pagou a criminosos para entrarem
sorrateiramente na Torre da Rainha, armados com
punhais, para a assustar. Ead, é tal como suspei­tavas...
enviaram os bandidos para serem apanhados. Crest
prometeu compensar as suas famílias.
— E infiltrou-se no complô de Truyde para matar
Lievelyn? — ques­tionou Margret. — Mas porquê?
— Lievelyn estava a negociar com Seiiki. Foi essa a
razão que me deu. Também o considerava um risco para
Inys, mas acho que o que ela não suportava era que
Sabran tivesse rejeitado o parceiro que ela escolhera
para ela. Que tivesse começado a ser influenciada por
outras pessoas.
— Parecia que Sabran dava ouvidos a Lievelyn —
admitiu Margret. — Saiu do palácio pela primeira vez em
catorze anos porque ele lhe pediu.
— Exato. Um pecador em ascensão com demasiado
poder. Assim que a sua missão foi cumprida e Sabran
ficou grávida, tinha de morrer. — Loth abanou a cabeça.
— Quando o médico lhe disse que Sabran não voltaria a
conceber, Crest teve a confirmação final de que ela era
uma semente corrupta e que a Casa de Berethnet já não
era digna de servir o Santo. Decidiu que o trono deveria
passar para os únicos descendentes do Sagrado Séquito
que o mereciam. Para ela.
— Essa confissão deve ser suficiente para condenar
Crest — disse Ead.
— Creio que sim — reconheceu Loth, com um sorriso
de infeliz satisfação.
Nesse momento, o mordomo bateu com o cajado no
chão.
— Sua Majestade, a Rainha Sabran!
A corte levantou-se e fez-se silêncio. Quando Sabran
entrou, ilumina­da pela luz das velas, com os Cavaleiros
do Corpo vestidos de cinzento atrás de si, a multidão
susteve a respiração.
Ead nunca a vira tão esplendidamente sozinha.
Normalmente apare­cia no Salão de Banquetes com as
suas damas, ou com Seyton Combe, ou com alguma
outra pessoa importante.
Não usava maquilhagem no rosto, nem joias. Apenas
o seu anel de coroação. Envergava um vestido de veludo
preto com mangas e toucado de luto cinzento. Qualquer
pessoa com dois dedos de testa perceberia que não
estava grávida.
Um murmúrio geral espalhou-se pelo salão. Era
tradição a rainha le­var a filha embrulhada nos seus
cobertores na primeira vez que aparecia em público
depois do parto.
Loth levantou-se para que Sabran se sentasse no
trono. Fê-lo perante os olhares atentos da sua corte.
— Senhora Lidden — disse ela, levantando a voz —,
não quereis cantar para nós?
Os Cavaleiros do Corpo tomaram os seus lugares atrás
da mesa prin­cipal. Lintley não tirou a mão da espada um
único momento. Os músi­cos da corte começaram a tocar
e Jillet Lidden cantou.
Começaram a chegar bandejas de prata da Cozinha
Real, que foram dispostas nas mesas, numa mostra de
tudo o que Inys tinha para ofere­cer em pleno inverno.
Tarte de cisne, galinhola e ganso assados, veado assado
com um rico molho de ervas, pescada com lascas de
amêndoa e sálvia, couve branca e nabos com mel,
mexilhões com manteiga e vi­nagre de vinho tinto. As
vozes voltaram a encher o salão, mas ninguém parecia
conseguir tirar os olhos da rainha.
Um pajem encheu-lhes as taças com vinho gelado
de Hróth. Ead aceitou alguns mexilhões e um pedaço de
ganso. Enquanto comia, olha­va de soslaio para Sabran.

Reconhecia-lhe aquela expressão. A fragilidade


escondida por trás de uma máscara de força. Quando
Sabran levou a taça aos lábios, apenas Ead reparou no
tremor da sua mão.

Depois dos pratos principais, vieram os biscoitos de


fruta, a fruta cristalizada, a tarte de pera e groselha com
especiarias, os bolinhos de massa com creme e as tartes
de maçã açucaradas, entre outras iguarias. Quando
Sabran se levantou e foi anunciada pelo mordomo, voltou
a abater-se um silêncio de pedra.
Sabran demorou um momento a falar. Manteve-se
muito ereta, com as mãos cruzadas sobre o ventre.

— Bom povo — disse por fim —, sabemos que a


vida na corte tem sido muito agitada nos últimos dias e
que a nossa ausência vos deve ter des­concertado. —
Apesar do tom baixo da sua voz, conseguiu fazer-se
ouvir. — Ultimamente tem havido quem conspire para
perturbar o espírito de camaradagem que sempre uniu
os povos de todo o Reino das Virtudes.

O seu rosto era uma porta fechada. A corte


aguardava ansiosamente a notícia.

— Surpreender-vos-á saber que, durante a nossa


recente doença, fo­mos reclusos na Torre da Rainha por
uma das nossas funcionárias de confiança, que
procurava usurpar a autoridade que nos foi conferida
pelo Santo. — Um murmúrio geral espalhou-se pela sala.
— Esta conselheira, uma pessoa de linhagem sagrada,
aproveitou-se da nossa ausên­cia para desenvolver o seu
plano para nos roubar o trono.

Ead sentiu as palavras atingirem-na profundamente


e, sabia-o, a todos os presentes na sala. Espalharam-se
como uma onda e não deixaram ninguém indiferente.
— Devido a estas ações, temos de vos trazer
notícias muito dolorosas. — Sabran pousou uma mão
sobre o ventre. — Nesses dias terríveis... perdemos a
nossa querida filha.

O silêncio prolongou-se. E mais.


E mais.
Depois, ouviu-se o soluçar de uma das damas de
companhia, e foi como o estalar de um trovão. O Salão
de Banquetes reagiu com sobressalto.
Sabran ficou imóvel como uma esfinge e os gritos
espalharam-se pela sala, exigindo que os culpados
pagassem pelos seus atos. O mordomo bateu com o
cajado no chão, pedindo ordem, mas em vão, até que
Sabran levantou a mão.
O barulho cessou de imediato.
— Estes são dias incertos — disse Sabran — e não nos
podemos dar ao luxo de dar vazão à nossa raiva. Uma
sombra alastra-se sobre o nosso reino. As bestas
draconianas estão a despertar e as suas asas levantaram
um vento aterrador. Observamos esse medo nos vossos
rostos. Já o vimos até nos nossos.
Ead examinou a multidão. As palavras estavam a
atingir-lhes os cora­ções. Ao mostrar a sua própria
vulnerabilidade, uma pequena fenda na sua armadura,
Sabran estava também a mostrar-lhes que estava com
eles.
— Mas é precisamente nestes momentos que mais
devemos procurar a orientação do Santo — continuou —,
pois ele estende os braços aos que temem. Protege-nos
com o seu próprio escudo. E o seu amor é como uma
espada nas nossas mãos, dando-nos força. Enquanto
lutarmos jun­tos na grande Corrente das Virtudes, não
poderemos ser derrotados.
» Pretendemos reconstruir com amor o que a
ganância quebrou. Neste Festim de Inverno, perdoamos a
todos os que se apressaram a servir a sua senhora,
esquecendo-se, por medo ou pressa, de servir a sua
rainha. Não serão executados. Conhecerão o bálsamo da
compaixão.
» Mas a mulher que os usou não pode ser perdoada.
Foi a sua avidez de poder, e o abuso dos poderes que já
lhe haviam sido concedidos, que levou a que outros se
submetessem à sua vontade. — Por toda a sala
espalham-se gestos de assentimento. — Desgraçou a sua
linhagem sa­grada, desprezando a virtude do seu patrono,
pois Igrain Crest sabia que não havia justiça na sua
hipocrisia e maldade.
O nome gerou uma sensação de desconforto que se
espalhou pelas mesas.
— Com as suas ações, Crest envergonhou não só o
Cavaleiro da Justiça, mas também o Santo e os seus
descendentes. Por isso, esperamos que seja declarada
culpada de alta traição. — Sabran fez o sinal da espada,
e os seus cortesãos seguiram-na. — Todos os membros
dos Duques Espirituais estão a ser interrogados.
Esperamos fervorosamente que os outros sejam
considerados inocentes, mas submeter-nos-emos à
verdade das provas.
Cada uma das suas palavras era como um seixo a
saltar num lago, for­mando ondas de emoção. A rainha de
Inys não podia criar ilusões com magia, mas a sua voz e
o seu porte naquela noite haviam-na tornado uma
encantadora.
— Erguemo-nos em amor. Esperança e desafio.
Contestamos aqueles que tentaram afastar-nos dos
nossos valores. Contestamos o ódio draconia­no.
Enfrentaremos os ventos do temor e, pelo Santo,
redirecioná-los-emos para os nossos inimigos. —
Atravessou o piso e todos os olhares a seguiram. — Ainda
não temos herdeira, pois a nossa filha está nos braços do
Santo, mas a vossa rainha está plena de vida. E lançar-
nos-emos para qualquer batalha por vós, tal como
Glorian, a Destemida, fez quando esteve à frente do seu
povo. Venha o que vier.
Um murmúrio de concordância espalhou-se. O povo
acenou com a cabeça e gritou: Rainha Sabran.
— Mostraremos a toda a gente — acrescentou ela —
que nenhum monstro poderá subjugar o povo do Reino
das Virtudes!
— Reino das Virtudes! Reino das Virtudes! —
responderam as vozes em coro.
Estavam todos de pé. Os seus olhos brilhavam,
refletindo a veneração que sentiam pela sua rainha.
Agarraram as suas taças com tanta força que os nós dos
dedos ficaram brancos.
Ela conduzira-os das profundezas do terror para as
alturas da adoração.
Sabran tinha uma língua de ouro.
— Agora, com a mesma força que este reino
demonstrou durante mil anos, celebremos o Festim de
Inverno e preparar-nos-emos para a primavera, a estação
da mudança. A estação da bondade. A estação da
generosidade. E o que quer que ela nos traga, não o
guardaremos, mas dá-lo-emos a vós. — Pegou na sua
taça da mesa e levantou-a bem alto.
— Ao Reino das Virtudes!
— REINO DAS VIRTUDES — irrompeu a sua corte em
resposta. — REINO DAS VIRTUDES! REINO DAS VIRTUDES!
As vozes encheram o salão como um cântico, subindo
até às vigas do teto.

Os festejos prolongaram-se até altas horas da noite.


Embora houvesse fogueiras lá fora, os cortesãos
pareciam gratos por estarem na Câmara de Presença,
com Sabran sentada no seu trono de mármore e uma
enorme lareira a rugir com chamas. Ead estava com
Margret a um canto.
Quando bebeu um gole do seu vinho com especiarias,
um brilho aver­melhado chamou-lhe a atenção. A sua mão
foi imediatamente para a adaga que trazia na faixa.
— Ead — disse Margret, tocando-lhe no cotovelo. — O
que é?
Cabelo ruivo. O cabelo ruivo do embaixador mêntico,
não o verme­lho de um manto. Mas Ead não relaxou. As
suas irmãs demorariam o seu tempo, mas acabariam por
lá chegar.
— Nada. Perdoa-me — disse Ead. — Que estavas a
dizer?
— Diz-me o que se passa.
— Nada em que te queiras intrometer, Meg.
— Não me queria intrometer. Bem, talvez quisesse —
admitiu Margret. — Tens de ser um pouco intrometida na
corte, senão não há mais nada para falar.
Ead sorriu.
— Estás pronta para a nossa viagem a Goldenbirch,
amanhã?
— Sim. O nosso navio parte ao amanhecer — disse
Margret, fazendo uma pausa antes de continuar. — Ead,
suponho que não conseguiste trazê-lo para casa, o Valour
— acrescentou, com um brilho de esperança nos olhos.
— Ele está com uma família ersyri em quem confio,
numa quinta no Desfiladeiro de Harmur — disse Ead. —
Não podia levá-lo para o de­serto. Tê-lo-ás de volta,
prometo.
— Obrigada.
Alguém parou ao lado de Margret e tocou-lhe no
ombro. Era Katryen Withy, com um vestido de seda
branco, o cabelo preso num toucado de pérolas
prateadas.
— Kate. — Margret abraçou-a. — Kate, como estás?
— Já estive pior. — Katryen deu-lhe um beijo no rosto
e depois virou-se para Ead. — Oh, Ead. Estou tão
contente por estares de volta.
— Katryen — respondeu Ead, examinando-a. Tinha
vestígios de nó­doas negras na face e o maxilar inchado.
— Que te aconteceu?
— Tentei chegar a Sabran — respondeu, tocando na
ferida com um arrepio. — Crest prendeu-me nos meus
aposentos. E quando resisti, o guarda fez-me isto.
Margret abanou a cabeça.
— Se essa tirana tivesse subido ao trono...
— Agradece à Donzela que não o tenha feito.
Sabran, que conversava animadamente com Loth,
levantou-se e to­dos os presentes se calaram. Chegara o
momento de recompensar quem demonstrara a sua
lealdade à rainha.
A cerimónia foi breve, mas nem por isso menos
impressionante. Primeiro, Margret foi formalmente
nomeada Dama do Leito Real, e os Cavaleiros do Corpo
receberam um reconhecimento especial pela sua
lealdade inabalável à coroa. Outros que se tinham
juntado à luta rece­beram terras e joias, e depois:
— Senhora Ead Duryan.
Ead abriu caminho por entre a multidão, provocando
sussurros e atraindo todos os olhares.
— Pela graça das Seis Virtudes — leu o mordomo —,
Sua Majestade tem o prazer de vos nomear senhora
Eadaz uq-Nāra, Viscondessa de Nurtha. Sois, de agora
em diante, membro do Conselho das Virtudes.
A Câmara de Presença encheu-se de murmúrios. Em
Inys, viscondessa era um título honorário usado para
distinguir uma mulher que não fosse de sangue nobre ou
de linhagem sagrada. Nunca tinha sido concedido a
ninguém que não fosse súbdito de Inys.
Sabran tirou a espada cerimonial da mão de Loth.
Ead congelou quando o lado liso da lâmina pousou em
cada um dos seus ombros. Aquele segundo título só
aumentaria a perceção de que ela era uma traidora aos
olhos das suas irmãs, mas teria de o manter se lhe
servisse de proteção enquanto procurava Ascalon.
— Levantai-vos — disse Sabran —, minha senhora.
Ead levantou-se e olhou-a nos olhos.
— Obrigada, Vossa Majestade.
A sua reverência foi breve. Recebeu o título
honorário do mordomo e voltou para junto de Margret. As
pessoas continuavam a sussurrar «minha senhora».
Já não era apenas a senhora Duryan.
Mas ainda havia mais um título honorário para
conceder. Pelo seu va­lor, Sir Tharian Lintley, que era tão
plebeu como Ead, também recebeu um novo título.
Passara a ser o Visconde Morwe.
— Agora, Lorde Morwe — disse Sabran em tom de
astúcia, depois de Lintley ter recebido a sua nomeação.
— Eu diria que tendes categoria suficiente para casar
com a filha de um Conde Provincial. Dizei-me... tendes
alguém em mente?
No momento em que era mais necessário, estalou um
riso no salão.
Lintley engoliu com força. Era como se todos os seus
desejos tivessem sido satisfeitos.
— Sim. — Ele olhou para o outro lado da sala. — Sim,
Vossa Majestade, tenho. Mas preferia falar com a senhora
em privado primei­ro. Para ter a certeza dos seus
sentimentos.
Margret, que observava a cena com os lábios
cerrados, ergueu uma sobrancelha.
— Chega de conversas, Sir Tharian — disse ela. —
Está na hora da ação.
Mais risos. Lintley riu-se, e ela também. A luz das
velas dançava nos seus olhos. Atravessou a sala e pegou
na sua mão estendida.
— Vossa Majestade, peço a vossa permissão, e a do
Cavaleiro da Camaradagem, para tomar esta mulher
como minha companheira nos próximos dias — disse
Lintley, e o seu olhar era o de alguém que vira o
amanhecer após anos de noite profunda —, para que a
possa amar como ela sempre mereceu.
Margret olhou para o trono. Sentiu um nó na garganta,
mas Sabran já tinha baixado a cabeça.
— Tendes a nossa permissão — proclamou. —
Concedemo-la de bom grado.
A Câmara de Presença irrompeu em aplausos, e Ead
notou com pra­zer que Loth aplaudia tão calorosamente
quanto qualquer outro na sala.
— Bem, creio que se impõe uma dança — disse
Sabran, que gesticu­lou na direção da orquestra. —
Toquem A Pavana do Rei Ondina.
Desta vez, os aplausos foram estrondosos. Lintley
sussurrou qualquer coisa a Margret, que sorriu e lhe deu
um beijo na cara. Quando os dan­çarinos foram ocupar os
seus lugares na pista de dança, Loth desceu da cadeira e
fez uma vénia a Ead.
— Viscondessa — disse com um gesto de pompa. —
Concedeis-me a honra de uma dança?
— Com prazer, meu senhor. — Ead pousou a mão
sobre a dele, e ele conduziu-a para o centro da sala. —
Que te parece o par? — perguntou, vendo-o olhar na
direção de Margret.
— Muito bem. Lintley é um bom homem.
A Pavana do Rei Ondina começou lentamente. Como
um oceano num dia calmo. Depois a música cresceu em
intensidade e ritmo. Era uma dança complicada, mas Ead
e Loth tinham prática.
— Quando chegares a Goldenbirch, os meus pais já
terão ouvido as notícias — disse Loth, enquanto se
misturavam com os outros casais. — A minha mãe vai
ficar ainda mais zangada por eu ainda não ter ficado
noivo.
— Acho que também vai ficar aliviada por estares vivo
— disse Ead. — Além disso, talvez prefiras não casar.
— Como Conde de Goldenbirch, é o que se espera de
mim. E eu sem­pre quis ter uma companheira. — Loth
olhou para ela. — E tu?
— Eu... — Ead deslizou para a direita, seguindo a
música, e ele acompanhou-a. — Queres dizer se alguma
vez terei um companheiro?
— Não podes voltar para a tua terra. Talvez possas...
viver aqui, com alguém — disse ele, olhando-a nos olhos.
— A não ser que já tenhas alguém.
Ead sentiu uma pressão no peito.
A dança separou-os por um momento, enquanto
rodopiavam com os outros casais, mas depressa se
encontraram de novo.
— Crest contou-me. Suponho que o tenha sabido
pelo Falcão da Noite.
Dizê-lo em voz alta seria perigoso. Ele sabia-o.
— Espero que não tenhas decidido não me contar por
medo de que te julgue — sussurrou Loth. Os dois deram
a volta sem sair do lugar. — És a minha amiga mais
estimada. Quero que sejas feliz.
— Mesmo que isso signifique desonrar o Cavaleiro da
Camaradagem. — Ead ergueu as sobrancelhas. — Não
somos casadas.
— Outrora teria pensado assim — admitiu. — Agora
vejo que há coisas mais importantes.
Ead sorriu.
— Mudaste realmente. — Deram as mãos e a pavana
ganhou veloci­dade. — Não queria que te preocupasses
connosco. Tens tendência para te preocupares
demasiado.
— É a minha forma de ser — disse ele. — Mas
preocupar-me-ia mui­to mais se achasse que a minha
amiga não confia em mim o suficiente para me abrir o
seu coração. — Apertou-lhe a mão. — Estou aqui para ti.
Sempre.
— E eu estou aqui para ti — disse Ead. Esperava que
fosse verdade.
A pavana chegou ao fim, e Ead perguntou a si mesma
se alguma vez poderiam voltar a deitar-se debaixo da
macieira, a beber vinho e a con­versar até de madrugada,
depois de tudo o que acontecera. Loth saudou-a com
uma vénia e um sorriso nos olhos, e ela retribuiu o gesto.
Depois virou-se, com a intenção de se afastar e regressar
ao seu quarto... mas deu com Sabran à sua frente.
Ead olhou para ela e a pista esvaziou-se.
— Tocai uma dança das velas — disse Sabran.
Desta vez, houve exclamações de alegria contidas
entre os cortesãos. A rainha não dançara em público uma
única vez em todo o tempo que Ead vivera na corte.
Havia muito tempo, Loth contara-lhe que Sabran deixara
de dançar no dia da morte da mãe.
Muitos dos cortesãos nunca a tinham visto dançar,
mas alguns dos serviçais mais velhos, que deviam ter
visto a Rainha Rosarian dançar, tiraram velas do
candelabro. Pouco depois, os outros seguiram o exem­plo.
Entregaram uma vela a Sabran e outra a Ead. Loth, que
estava ali mesmo, estendeu a mão a Katryen.
A orquestra tocou uma música triste e Jillet Lidden
começou a cantar. Três homens juntaram as suas vozes à
dela.
Ead fez uma grande vénia a Sabran, que a imitou. O
mais pequeno movimento fazia tremer a chama da sua
vela.
Começou o rodopio. Seguravam as velas com a mão
direita, e as mãos esquerdas, atrás das costas, quase se
tocavam enquanto giravam. Seis rotações à volta uma da
outra, entreolhando-se, até que a música as cha­mou
para lugares em extremos opostos da fila. Ead contornou
Katryen e depois regressou a Sabran, que provou ser
uma grande dançarina.
Cada passo era preciso, mas suave e aveludado. Em
todos os anos em que não dançara perante a sua corte,
devia ter praticado sozinha.
Movia-se em torno de Ead como o ponteiro de um
relógio, um ritmo medido como o bater de um coração,
nenhum passo mais rápido do que o anterior. Quando
Ead virava a cabeça, as suas testas encontravam-se e os
seus ombros roçavam um no outro; depois separavam-se
novamente. De repente, Ead percebeu que estivera a
suster a respiração durante algum tempo.
Nunca tinham estado tão próximas em público. O seu
aroma, o calor fugaz que exalava, era uma tortura que
mais ninguém podia ver. Ead rodeou Loth antes de se
voltar para Sabran e sentiu a pulsação nas suas veias tão
forte como a música, se não mais.
Durou uma eternidade. Ead perdeu-se num sonho de
vozes que se perseguiam, embalada pelo som da flauta,
da harpa e da charamela, e por Sabran, meio escondida
nas sombras.
Mal reparou que a música tinha acabado. Tudo o que
conseguia ouvir era o tambor a bater no seu peito. Um
breve silêncio de êxtase deu lugar a um aplauso
generalizado de toda a corte. Sabran colocou uma mão à
volta da chama da sua vela e apagou-a.
— Iremos retirar-nos por esta noite. — Uma dama de
companhia tirou-lhe a vela. — Ficai e aproveitai as
festividades. Boa noite.
— Boa noite, Majestade — respondeu a corte, com
uma série de vénias, enquanto a rainha se dirigia para a
saída. A porta da Câmara Privada, Sabran virou-se e
olhou por cima do ombro na direção de Ead.
Aquele olhar era um chamamento. Ead apagou a vela
e entregou-a a um criado.
O espartilho parecia mais apertado do que antes. Uma
pressão doce apertou-lhe o estômago. Demorou-se mais
um pouco na multidão, vendo Loth e Margret dançarem
uma dança galante, antes de deixar a Câmara de
Presença. Os Cavaleiros do Corpo afastaram-se para lhe
abrir caminho.
A Câmara Privada estava fria e escura. Ead
atravessou-a, recordan­do a música dos virginais, e abriu
as portas do Quarto de Leito Real. Sabran esperava-a
junto à lareira. Não usava mais do que o espartilho
apertado e o vestido solto.
— Não te equivoques — disse ela. — Estou furiosa
contigo.
Ead permaneceu à porta.
— Partilhei todos os meus segredos contigo, Ead —
acrescentou, qua­se sem palavras. — Viste-me como só a
noite me vê. Na minha versão mais pura. — Fez uma
pausa. — Foste tu que afastaste o Fýredel.
— Sim.
Sabran fechou os olhos.
— Nada na minha vida foi real. Até as tentativas de
me tirarem a vida foram encenadas, concebidas para me
condicionar e manipular. Mas tu, Ead... pensei que fosses
diferente. Chamei mentiroso a Combe quando me disse
que não eras o que parecias ser. Agora pergunto-me se
tudo entre nós não terá sido uma encenação. Parte do
teu papel.
Ead esforçou-se por encontrar as palavras certas.
— Responde-me — disse Sabran, com a voz tensa. —
Sou a tua rainha.
— Podes ser uma rainha, mas não és a minha rainha.
Não sou tua súbdita, Sabran. — Ead entrou no quarto e
fechou a porta. — E é pre­cisamente por isso que podes
ter a certeza de que o que aconteceu entre nós foi real.
Sabran olhou para o fogo.
— Mostrei-te tanto de mim quanto pude — disse-lhe
Ead. — Se te tivesse mostrado mais, teria sido
executada.
— Julgas-me uma tirana?
— Julgo-te uma tola presunçosa com uma cabeça dura
como uma pedra. E não te trocaria por nada deste
mundo.
Sabran olhou-a, finalmente, nos olhos.
— E diz-me, Eadaz uq-Nāra — disse em voz baixa —,
sou mais tola do que julgavas por ainda te desejar?
Ead aproximou-se dela.
— Não mais do que eu por te amar como amo.
Estendeu a mão e afastou uma madeixa de cabelo de
Sabran, colocando-a atrás da sua orelha. Sabran ficou a
olhar para ela.
Permaneceram de frente uma para a outra, mal se
tocando. Por fim, Sabran pegou nas mãos de Ead e levou-
as à sua cintura. Ead deslizou-as até à sua barriga e
preparou-se para lhe desapertar o espartilho.
Sabran observou-a. Ead queria que aquela fosse mais
uma dança de velas, que saboreasse cada pormenor
daquele momento íntimo, mas desejava-a demasiado. Os
seus dedos deslizaram por baixo das tiras, puxando-as
pelas fivelas, uma após outra, e por fim o espartilho
abriu-se e caiu, deixando Sabran só com o vestido solto.
Ead fez desli­zar o tecido de seda pelos seus ombros, e
segurou-a pela cintura.
Sabran ficou nua nas sombras. Ead deixou-se
embriagar pelos seus braços, o seu cabelo, os seus olhos
brilhantes como fogo noturno.
O espaço entre elas desapareceu. Agora era Sabran
que lhe tirava a roupa. Ead fechou os olhos e deixou-se
ser despida.
Abraçaram-se como se fosse a primeira vez. Quando
Sabran lhe bei­jou o pescoço, mesmo atrás da orelha, Ead
deixou a cabeça cair para o lado. Sabran deslizou as
mãos para cima e para baixo nas costas dela.
Ead baixou-a suavemente para a cama. Lábios
famintos procuraram os seus, e Sabran sussurrou o seu
nome. Parecia que se haviam passado séculos desde a
última vez.
Entrelaçaram-se entre peles e lençóis, desenfreadas e
sem fôlego. Ead estremeceu de expetativa,
redescobrindo todos os pormenores da mu­lher de quem
tivera de se afastar. As suas maçãs do rosto e o nariz
arre­bitado. A sua testa lisa. O pescoço firme. As duas
pequenas cavidades no fundo das costas, como que
impressões de dedos. Sabran entrelaçou os dedos com
os dela e Ead beijou-a como se a sua vida dependesse
disso. Como se aquele abraço pudesse manter o
Inominável afastado.
As suas línguas dançaram a mesma pavana que as
suas cinturas. Ead baixou a cabeça e traçou com os
lábios pequenas carícias nas clavículas da rainha, até aos
botões de rosa na ponta dos seus seios. Beijou-lhe a
barriga, de onde os hematomas haviam desaparecido. O
único vestígio do que acontecera era uma cicatriz sob o
umbigo.
Sabran envolveu-lhe o rosto com as mãos. Ead fitou os
olhos de que se lembrava tão bem e chamou-a pelo
nome. Os seus dedos passaram pela cicatriz que lhe
descia pela coxa até chegar ao ponto onde se unia à
outra.
Depois, com um sorriso malicioso, Sabran empurrou-a,
fazendo-a ficar de costas. O seu cabelo eclipsava a luz da
vela. Ead passou as mãos por trás da sua cintura,
entrelaçou os dedos na parte inferior das suas costas e
puxou-a para junto do seu corpo, entre as suas pernas.
O desejo consumiu-a. Sabran passou-lhe as mãos
pelas coxas e desli­zou um beijo, suave e gentil, sobre
cada um dos seus seios.
Aquilo só podia ser um sonho. Um sonho muito
agitado. Por aquela mulher, teria atravessado o deserto a
pé.
Sabran foi abrindo caminho para baixo. Ead fechou os
olhos, susten­do a respiração. Cada sensação era um
clarão de luz que lhe embotava os sentidos. A pele
quente do fogo na lareira. O aroma a cravo e grialina.
Quando sentiu um dedo roçar-lhe o umbigo, já estava
tensa, trémula e suada. As suas ancas ergueram-se ao
toque e lábios suaves exploraram o ponto de junção das
suas coxas.
Cada fibra do seu corpo era como a corda de um
virginal, à espera do toque do músico na tecla. Até os
recantos mais profundos do seu corpo vibravam,
transbordantes de sensações, rendidos a Sabran
Berethnet, e cada toque reverberava profundamente nos
seus ossos.
— Não sou a tua rainha — sussurrou Sabran contra a
sua pele —, mas sou tua. — Ead passou os dedos pelo
seu cabelo escuro. — E verás como também posso ser
generosa.

***

Não dormiram até estarem saciadas e exaustas. De


manhã cedo, foram acordadas pelo bater da chuva na
janela e procuraram-se novamente no brilho âmbar da
madrugada.
Depois, deitaram-se nos braços uma da outra entre os
lençóis.
— Tens de continuar a ser minha Dama do Leito Real
— murmurou Sabran. — Por isto. Por nós.
Ead olhou para as elaboradas molduras do teto.
— Posso assumir o papel de senhora Nurtha — disse
—, mas será sempre um papel.
— Eu sei. — Sabran fitou a escuridão. — Apaixonei-me
por um pa­pel que tu representaste.
Ead tentou afastar as palavras do seu coração, mas
Sabran encontrava sempre uma forma de o alcançar.
Ead Duryan fora uma criação de Chassar, e ela
encarnara de tal for­ma a personagem que todos haviam
acreditado nela. Pela primeira vez, entendeu a extensão
do sentimento de traição e confusão que Sabran devia
estar a sentir.
Sabran pegou em Ead pela mão e traçou a parte de
baixo do seu dedo. O dedo em que usava o anel com a
pedra do sol.
— Não usavas isto antes.
Ead estava quase a adormecer.
— É o símbolo do Priorado — disse. — O anel de um
vigilante.
— Então já mataste alguma besta draconiana.
— Há muito tempo. Com a minha irmã, Jondu.
Matámos um wyvern que despertara nas Espadas dos
Deuses.
— Que idade tinhas?
— Quinze.
Sabran ficou a olhar para o anel durante muito tempo.
— Não quero acreditar na tua história de Galian e
Cleolind. Se a tua versão dos acontecimentos estiver
correta, isso significa que também nunca os conheci.
Ead deslizou uma mão pelas suas costas.
— Acreditas em mim? — perguntou ela. — Sabes que
não tenho provas.
— Eu sei — disse Sabran. — Levarei tempo a aceitá-lo,
mas... não fecharei a minha mente à possibilidade de
Galian Berethnet não ter sido mais do que um homem de
carne e osso.
A sua respiração abrandou. Ead pensou que tivesse
adormecido outra vez, mas passado um bocado voltou a
falar:
— Temo a guerra que Fýredel tanto deseja. —
Entrelaçaram os dedos. — E a sombra do Inominável.
Ead apenas lhe acariciou o cabelo com uma mão.
— Dirigir-me-ei ao meu povo muito em breve. Devem
saber que luta­rei contra o Exército Draconiano, e que
temos um plano para acabar com a ameaça de uma vez
por todas. Se encontrares a Espada da Verdade, exibi-la-
ei. Para lhes levantar o ânimo. — Sabran olhou para
cima. — A tua ambição é derrotar o Inominável. Se
conseguires, o que farás?
Ead baixou as pálpebras. Era uma pergunta que ela
se esforçava mui­to para não fazer.
— O Priorado foi fundado para subjugar o Inominável
— disse. — Se eu conseguir acabar com a ameaça...
suponho que posso fazer qualquer coisa.
Seguiu-se um silêncio constrangedor entre as duas.
Ficaram deitadas sem dizer uma palavra, até que Sabran
se virou para o outro lado.
— Sabran — disse Ead, mantendo a distância. — Que
se passa?
— Tenho muito calor — respondeu com a voz
desprovida de emoção.
De repente, Ead deu por si a olhar para as suas
costas e tentou dormir. Não tinha o direito de lhe exigir a
verdade.
Despertou antes da alvorada. Sabran continuava a
dormir ao seu lado, tão imóvel que era como se estivesse
morta.
Com cuidado para não a acordar, Ead levantou-se.
Beijou-lhe a testa e Sabran remexeu-se na cama. Não
podia partir sem lhe dizer que ia embora, mas mesmo a
dormir parecia cansada. Pelo menos agora estava a
salvo, rodeada de pessoas que a estimavam.
Ead saiu do Quarto de Leito Real e regressou aos
seus aposentos, onde se lavou e vestiu. Margret já
estava nos estábulos, vestida para montar e com um
chapéu de penas de avestruz, selando um cavalo de
aspeto sonolento. Sorriu ao vê-la e Ead abraçou-a.
— Estou muito feliz por ti, Meg Beck. — Deu-lhe um
beijo na face. — A próxima Viscondessa de Morwe.
— Gostava que não tivesse precisado de se tornar
visconde para ser considerado digno de mim, mas é
assim que as coisas são. — Margret recuou um passo e
tomou-lhe as mãos. — Ead, levas-me ao altar?
— Será uma honra para mim. E agora podes contar
aos teus pais as boas notícias.
Margret suspirou. Por vezes, o seu pai não
reconhecia os filhos.
— Sim, a mamã vai ficar encantada. — Alisou a parte
da frente do seu casaco bege. — Achas que estou bem?
— Acho que te pareces com a senhora Margret Beck.
Um símbolo da moda.
Margret expirou pela boca.
— Ótimo. Pensei que, com este chapéu, ia parecer o
tolo da aldeia.
Cavalgaram pelas ruas da cidade, atravessaram o
Limber, passaram a Ponte das Súplicas, decorada com
esculturas de todas as rainhas da Casa de Berethnet. Se
não se atrasassem, poderiam chegar ao Porto Estival, de
onde partiam os navios para os condados do norte de
Inys, pelas dez horas.
— A tua dança com Sab gerou muitos comentários. —
Margret lançou-lhe um olhar. — Corre o boato de que são
amantes.
— Que dirias se fosse verdade?
— Diria que podias fazer o que quisesses.
Podia confiar em Margret. Claro que seria bom ter
alguém com quem falar dos seus sentimentos por
Sabran. No entanto, algo lhe dizia que era melhor manter
segredo dos seus encontros furtivos.
— Os rumores não são novidade na corte — limitou-se
a responder. — Vá, fala-me dos teus planos de
casamento. Creio que o amarelo te assentaria
esplendidamente. Que achas?

***

O nevoeiro matinal envolveu os jardins do Palácio de


Ascalon. Chovera durante a noite e a chuva congelara,
cobrindo os caminhos com geada e decorando os
parapeitos das janelas com pingentes de gelo.
Loth olhava para as ruínas da Galeria de Mármore,
onde passara tantas horas sentado com Sabran, a
conversar. A pedra parecia chorar no chão, como se fosse
feita de cera, criando uma imagem de misteriosa beleza.
As chamas de um fogo normal não a poderiam ter
derretido daquela maneira. Só podia ter sido algo das
profundezas do Monte do Pavor.
— Foi aqui que perdi a minha filha.
Loth olhou por cima do ombro. Sabran estava perto, o
rosto rosado de frio e um barrete de pele na cabeça. Os
Cavaleiros do Corpo seguiam-na a alguma distância,
envergando a armadura prateada do inverno.
— Ter-lhe-ia chamado Glorian. É o nome mais nobre da
minha linhagem. As três rainhas que o usaram foram
grandes governantes. — O seu olhar perdeu-se no
passado. — Muitas vezes pergunto-me como teria sido.
Se o seu nome a teria sobrecarregado, ou se se teria
tornado ainda mais grandiosa do que as outras.
— Acho que teria sido tão corajosa e virtuosa como a
mãe.
Sabran esboçou um sorriso cansado.
— Terias gostado de Aubrecht. — Aproximou-se dele.
— Era um homem bom e honrado. Como tu.
— Lamento muito não o ter conhecido.
Ficaram a assistir ao nascer do sol. Algures no jardim,
uma cotovia começou a chilrear.
— Rezei pelo Lorde Kitston esta manhã — disse
Sabran, encostan­do a cabeça ao seu ombro. Ele pôs um
braço à volta dela. — Ead não acredita que depois da
morte nos espere Halgalant. Talvez tenha razão; mas eu
ainda creio numa vida após esta, e sempre crerei. Confio
que ele a encontrou.
— Eu também acredito nisso. — Loth recordou o
túnel. Aquela se­pultura solitária. — Obrigado, Sab.
— Sei que a sua morte ainda deve pesar muito sobre
ti, mas não deves deixar que isso te tolde o juízo.
— Eu sei — respondeu ele, recuperando o fôlego. —
Tenho de ir ver o Combe.
— Muito bem. Vou estar na Biblioteca Real, a tratar de
assuntos de Estado que ficaram por tratar.
— Então vais ter um dia muito ocupado.
— De facto. — Com outro sorriso cansado, Sabran
dirigiu-se à Torre da Rainha. — Bom dia, Lorde Arteloth.
— Bom dia, Majestade.
Apesar de tudo, sentia-se feliz por estar de regresso a
Inys.
Na Torre Dearn, encontrou o Lorde Seyton embrulhado
num cober­tor, a ler um livro de orações com os olhos
raiados de sangue. Estava a tremer, e não admirava.
— Lorde Arteloth — saudou o Falcão da Noite
enquanto o carcereiro deixava Loth entrar. — Que bom
voltar a ver-vos na corte.
— Gostaria de poder dizer que vos nutro os mesmos
sentimentos, Vossa Graça.
— Oh, também não espero que o façais, meu senhor.
Tive boas ra­zões para vos mandar embora da corte, mas
não ides gostar.
Loth sentou-se sem transmitir emoção alguma.
— De momento, a Rainha Sabran confiou-me a
investigação da ten­tativa de usurpação do trono — disse
ele. — Gostaria de ouvir tudo o que tendes a dizer sobre
Crest.
Combe sentou-se direito, inclinando-se para trás. Os
seus olhos sem­pre haviam enervado Loth.
— Quando a Rainha Sabran estava acamada, no início,
não tive motivos para suspeitar de qualquer
irregularidade nos seus cuidados. Concordara em ficar na
Torre da Rainha para que não se soubesse que Sua
Majestade perdera a criança, e a senhora Roslain dispôs-
se a ficar a seu lado durante a enfermidade. Então,
pouco depois de a senhora Duryan ter deixado a capital...
— Ter fugido — corrigiu-o Loth. — Temendo pela sua
vida. Exilar os amigos da rainha está a tornar-se um
hábito para vós, Vossa Graça.
— O meu hábito é protegê-la, meu senhor.
— Bem, haveis fracassado.
Combe soltou um longo suspiro.
— Sim — reconheceu, esfregando os olhos. — Sim,
meu senhor, fracassei.
Por muito zangado que aquilo o deixasse, Loth tinha
de admitir que sentia um pouco de pena do homem.
— Continuai.
Combe demorou um momento para o fazer.
— O Doutor Bourn veio ao meu encontro —
prosseguiu Combe. — Recebera ordens para abandonar a
Torre da Rainha. Confessou-me que temia que, em vez de
receber os devidos cuidados, Sua Majestade esti­vesse a
ser isolada. Apenas a senhora Igrain e a senhora Roslain
podiam cuidar dela.
» Há muito que me sentia... pouco à vontade com
Igrain. Não gosta­va dos seus gestos de pretensa
compaixão, que na realidade careciam de qualquer
compaixão. — Combe massajou as têmporas. — Contei-
lhe o que descobrira de um dos meus espiões. Que a
senhora Nurtha, como é agora conhecida, partilhara
contacto carnal com a rainha. Depois, algo mudou nos
seus olhos. Fez um comentário sobre a Rainha Rosarian e
a sua... conduta conjugal.
De repente, aflorou-lhe uma memória do seu retrato
em Cárscaro, cortado num acesso de raiva ou ciúmes.
— Comecei a unir os pontos e não gostei da imagem
que estava a obter — disse Combe. — Fiquei com a
sensação de que Igrain estava embriagada com o poder
que o seu próprio patrono lhe dava. E que conspirava
para suplantar a rainha, colocando alguém no seu lugar.
— Roslain.
Combe assentiu.
— A futura líder da família Crest. Quando tentei entrar
nos aposentos reais, descobri que também não me era
permitido entrar. Os guardas disseram-me que a rainha
estava indisposta e que não podia receber visitas. Saí
sem objeções, mas nessa noite... bem, prendi o
secretário de Igrain.
» A duquesa é uma mulher inteligente. Sabia que não
devia deixar vestígios no seu gabinete, mas o seu
secretário, sob pressão, entregou-me documentos
relativos às suas finanças. — Sorriu maliciosamen­te. —
Encontrei pagamentos recorrentes do Ducado de Askrdal.
Um pagamento enorme de Cárscaro, feito após a morte
da Rainha-Mãe. Roupas caras e joias oferecidas como
suborno. Um número significativo de coroas passara dos
seus cofres para os de um comerciante chamado Tam
Atkin. Descobri tratar-se do meio-irmão de Bess Weald,
que matou Lievelyn.
— Uma conspiração arquitetada ao longo de uma
década — disse Loth — e vós não vistes nada. — Franziu
os lábios. — Um falcão tem boa visão. Talvez vos
devessem chamar Toupeira da Noite. Fareja cega­mente
no escuro.
Combe soltou uma gargalhada que logo se
transformou numa tosse.
— Mereço-o — respondeu roucamente. — Sabeis,
Lorde Arteloth, apesar de ter olhos em todo o lado, deixei
de olhar para as pessoas de linhagem sagrada. Tomei
como certa a lealdade dos restantes Duques Espirituais.
Por isso, não os observei.
Tremia ainda mais do que antes.
— Tinha provas contra Igrain — continuou Combe —,
mas tinha de ser cauteloso. Ela tomara a Torre da Rainha,
e qualquer movimento precipitado poria em perigo Sua
Majestade. Falei com a senhora Nelda e o Lorde Lemand,
e decidimos que o melhor caminho seria regressar às
nossas terras, voltar com as nossas forças e esmagar a
usurpadora. Felizmente, meu senhor, chegastes mais
cedo, ou teria havido um banho de sangue muito maior.
Loth fez uma pausa para refletir. Por muito que
detestasse o homem, o que ele disse era verdade.
— Sei que Igrain tomou o poder na altura da
expulsão da senhora Nurtha, por isso posso parecer
cúmplice dos seus crimes — disse Combe, enquanto Loth
digeria tudo. — Mas o Santo é minha testemunha, e eu
nada fiz de desonesto. Nem de indigno da minha posição,
que é ao lado da rainha de Inys — acrescentou, com o
olhar firme. — Ela pode ser a última Berethnet, mas é
uma Berethnet. E espero que governe por muito mais
tempo.
Loth olhou para o homem que o enviara para uma
morte quase certa. Havia algo naqueles olhos que
transmitia sinceridade, mas Loth já não era o rapaz
confiante que aquele homem exilara. Tinha visto
demasiado.
— Testemunhareis contra Crest — disse ele por fim
— e apresentareis as vossas provas físicas?
— Sim.
— E enviareis uma quantia de dinheiro ao conde e à
condessa de Honeybrook? Pela perda do seu único
herdeiro, Kitston Glade, o seu estimado filho — sentiu um
nó na garganta — e o amigo mais generoso que alguma
vez viveu?
— Sim. Claro. — Combe baixou a cabeça. — Que o
Cavaleiro da Justiça guie a vossa mão, meu senhor. Rezo
para que sejais mais genero­so do que a sua
descendente.
54

Este

O Mar do Sol Trémulo era tão cristalino que o pôr do


sol o trans­formava em rubi puro. Niclays Roos estava na
proa do Perseguição, observando as ondas a enrolarem-
se sobre si mesmas.

Era bom estar em movimento. O Perseguição


atracara por semanas na cidade em ruínas de Kawontay,
onde mercadores e piratas que de­safiavam a proibição
do mar haviam construído um próspero mercado
paralelo. A tripulação carregou o navio com provisões e
água doce su­ficientes para uma viagem de regresso, e
pólvora e outras munições suficientes para arrasar uma
cidade.

No final, não venderam Nayimathun. A Imperatriz


Dourada decidiu mantê-la como vantagem contra a Alta
Guarda do Mar.
Niclays pressionou a mão sobre a túnica, onde
escondia um frasco de sangue e a escama que cortara à
criatura. Todas as noites, tirava a escama para a
examinar, mas tudo de que se conseguia lembrar,
quando os seus dedos traçavam a sua superfície, era a
maneira como o dragão o olhara enquanto ele separava
a armadura da sua carne.
Um farfalhar puxou o seu olhar para cima. O
Perseguição navegava com as velas vermelhas de um
navio da peste, comprado para auxiliar a passagem pelo
Mar do Sol Trémulo. No entanto, permanecia o navio mais
reconhecível do Oriente, e não tardou a atrair o olhar
vingativo de Seiiki. Quando a Alta Guarda do Mar e os
seus cavaleiros de dragão vieram ao seu encontro, a
Imperatriz Dourada enviou um barco a remos com um
aviso. Estriparia a grande Nayimathun como um peixe se
um centímetro do seu navio fosse prejudicado, ou se
apanhasse algum deles a segui-los. Como prova de que
ainda tinha o dragão, enviara-lhes um dos seus dentes.
Cada dragão e navio haviam recuado. Dificilmente
poderiam ter agido de outra forma. Ainda assim, era
provável que os seguissem à distância.
— Aí estás tu.
Niclays virou-se. Laya Yidagé aproximou-se dele.
— Pareces pensativo — disse ela.
— Os alquimistas devem parecer pensativos, querida
senhora.
Pelo menos estavam a mover-se. A cada estrela sob a
qual navegavam, acercavam-se do fim.
— Fiz uma visita ao dragão. — Laya puxou o seu xaile
para mais perto. — Acho que está a morrer.
— Não foi alimentado?
— As suas escamas estão a secar. A tripulação atira-
lhe baldes de água do mar, mas precisa de ser imerso.
O vento soprava em todo o navio. Niclays mal reparou
no seu açoite. A sua capa era pesada o suficiente para
que ficasse confortável como um urso na sua pele. A
Imperatriz Dourada dera-lhe aquela roupa depois de o
chamar Mestre das Receitas, um título concedido aos
alquimistas da corte no Império dos Doze Lagos.
— Niclays — disse Laya baixinho —, acho que
devemos traçar um plano.
— Porquê?
— Porque se não houver uma amoreira no final deste
caminho, a Imperatriz Dourada terá a tua cabeça.
Niclays engoliu em seco.
— E se houver?
— Bem, então talvez não morras. Mas já estou farta
desta frota. Vivi como uma velha de sal, mas não tenho
intenção de morrer. — Ela olhou para ele. — Quero ir
para casa. E tu?
A palavra fez Niclays hesitar.
Há muito tempo que Casa não era lugar nenhum. O
seu nome era Roos, em homenagem a Rozentun — uma
cidade adormecida com vista para o estreito de Vatten,
onde ninguém se lembraria dele. Apenas lhe sobrava a
mãe, e ela desprezava-o.
Truyde talvez se importasse se ele vivia ou morria,
supôs. Perguntou-se como se teria saído. Estaria ainda a
agitar-se por uma aliança com o Oriente, ou a lamentar
silenciosamente o seu amante?
Durante muito tempo, o seu lar fora na corte mêntica,
onde gozara de favores reais, onde se apaixonara, mas
Edvart estava morto, a sua casa dissolvida, a sua
memória confinada a estátuas e retratos. Niclays já lá
não tinha lugar. Quanto ao tempo que passara em Inys,
não fora nada menos do que calamitoso.
No fim de contas, a sua casa sempre fora Jannart.
— O Jan morreu por isto. — Humedeceu os lábios. —
Pela árvore. Não me posso ir embora sem saber o seu
segredo.
— És o Mestre das Receitas. Sem dúvida, terás tempo
para estudar a árvore da vida — murmurou Laya. — Se
encontrarmos o elixir, suspeito de que a Imperatriz
Dourada nos levará para o norte, para a Cidade das Mil
Flores. Tentará vendê-lo à Casa de Lakseng em troca do
fim da proibição do mar. Podemos fugir para a cidade e
de lá podemos fugir a pé para Kawontay. Podes levar
algumas amostras do elixir contigo.
— A pé. — Niclays soltou uma gargalhada silenciosa.
— No caso improvável de sobrevivermos a essa jornada,
que faríamos a partir daí?
— Existem contrabandistas ersyris em Kawontay que
operam no Mar de Carmentum. Devemos ser capazes de
os persuadir a transportarem-nos através do Abismo. A
minha família pagar-lhes-ia.
Ninguém pagaria pela sua passagem.
— Pagariam por ti também — disse Laya, vendo-lhe a
expressão. — Certificar-me-ei disso.
— És muito bondosa. — Hesitou. — Que faremos se
não houver amoreira no final do caminho?
Laya olhou para ele.
— Se não encontrarem nada — disse baixinho —,
então vai para o mar, Niclays. Será mais gentil do que a
raiva dela.
Ele engoliu em seco.
— Sim — concedeu. — Suponho que sim.
— Encontraremos algo — disse ela, com gentileza. —
Jannart acreditava na lenda. Acho que ele zela por ti,
Niclays. E que te vai levar para casa.
Casa.
Poderia dar o elixir a qualquer governante que
desejasse, e conceder-lhe-iam proteção contra Sabran.
Brygstad era onde mais desejava ir. Poderia arrendar um
sótão no bairro antigo e pagar as contas dando aulas de
alquimia a novatos. Podia encontrar algum prazer nas
suas bibliotecas e nas palestras dos seus corredores
universitários. Se não lá, então Hróth.
E veria Truyde. Seria um avô para ela e deixaria
Jannart orgulhoso.
Quando o Perseguição atingiu águas mais profundas,
Niclays ficou ao lado de Laya, e ambos viram as estrelas
surgir. Fosse o que fosse que os aguardasse, uma coisa
era certa. Ele ou o seu fantasma iriam por fim descansar.
55

Oeste

A Flor de Ascalon, um navio de passageiros que


viajava ao longo da costa leste de Inys, atracou na antiga
cidade comercial de Caliburn do Mar ao meio-dia. Ead e
Margret começaram a sua viagem a cavalo pelos prados,
seguindo o curso gelado do rio Lissom.

Durante a noite, tinha nevado no norte e os campos


pareciam cobertos de creme alisado com uma colher. A
medida que avançavam, as pessoas tiravam os chapéus
e acenavam a Margret, que sorria e acenava de volta. Se
fosse a mais velha, teria dado uma bela Condessa de
Goldenbirch.

Afastaram-se do rio e atravessaram um campo com


neve até aos joe­lhos. Estavam em pleno inverno, o solo
estava demasiado frio para ser lavrado e não havia
trabalhadores no campo, mas mesmo assim Ead
mantinha a cabeça coberta com o capuz.

A família Beck tinha uma grande mansão chamada


Serinhall. Ficava a alguns quilómetros de Goldenbirch,
onde Galian Berethnet havia nas­cido. A aldeia estava em
ruínas, mas continuava a ser um local de pe­regrinação.
Ficava na sombra da floresta de Haithwood, que separa
os prados dos lagos.

Depois de horas de cavalgada, com um vento que


lhes queimava o rosto, chegaram ao sopé de uma colina
e Margret abrandou o trote do seu cavalo. Ead perscrutou
com os olhos um enorme campo branco. Serinhall surgiu
diante delas, sombria e imponente, com as suas enor­mes
janelas e telhados altos.
— Bem, aqui estamos — anunciou Margret. — Queres
ir diretamente para Goldenbirch?
— Não, ainda não. Se Galian escondesse mesmo
Ascalon na sua província, avisaria os seus guardas. Era o
seu bem mais precioso. O símbolo da Casa de Berethnet.
— E achas que a minha família guardou esse segredo
das suas rainhas durante todos estes séculos?
— Possivelmente.
Margret franziu o sobrolho.
— O Santo veio a Serinhall uma vez, no ano em que a
Princesa Sabran nasceu. Se houvesse alguma prova de
que ele realmente deixara a espada aqui, o Pai saberia.
Dedicou toda a sua vida a investigar tudo sobre esta
propriedade.
Lorde Clarent Beck não estava bem há algum tempo.
No seu tempo, fora um cavaleiro forte e saudável, mas
um dia caíra do cavalo e o golpe na cabeça deixara-o
com aquilo a que os inysh chamavam neblina mental.
— Vamos, então. Não há tempo a perder — disse
Margret. Um brilho malicioso surgiu-lhe no olhar. — Que
tal uma corrida, senhora Nurtha?
Ead puxou as rédeas. O seu corcel galopou encosta
abaixo e atraves­sou o prado, desviando-se de uma
manada de veados, enquanto Margret lhe gritava
qualquer coisa, evidentemente a protestar. Ead riu-se,
en­quanto o vento soprava o capuz para trás, revelando o
seu rosto.
Chegou primeiro ao portão, mas por pouco. Os
criados com o brasão da família Beck estavam a limpar a
neve.
— Senhora Margret! — Um homem magro como um
caniço, com uma barba pontiaguda, fez-lhe uma vénia. —
Bem-vinda a casa, minha senhora.
— Bom dia, senhor Brooke — saudou Margret. — Esta
é Eadaz uq-Nāra, Viscondessa de Nurtha. Podeis levar-
nos à Condessa, por favor?
— Claro, claro. — O homem fez também uma vénia a
Ead. — Bem-vinda a Serinhall, senhora Nurtha.
Ead teve de fazer um esforço para não responder
com outra vénia;
não estava habituada ao seu novo título.
Entregou as rédeas do seu cavalo a outro criado.
Caminhou ao lado de Margret, e ambas entraram na
casa.
No vestíbulo, um retrato ocupava uma parede inteira.
Era de um ho­mem com pele de ébano e um olhar severo,
vestido com meias justas e uma camisola, como se usava
em Inys há séculos.
— Lorde Rothurt Beck — disse Margret, ao passar por
ele —, que teve um papel importante numa das tragédias
de Inys. Carnelian a Terceira apaixonou-se por Lorde
Rothurt, mas ele já era casado. E esta... — Margret
apontou para outro retrato — é Margret Braço de Ferro, a
minha homónima. Liderou as nossas forças durante a
Rebelião de Gorse.
Ead ergueu as sobrancelhas.
— É claro que o Lorde Morwe se casa com uma mulher
de linhagem nobre.
— Sim, pobrezinho — disse Margret, com um ar
preocupado. — A mamã nunca o deixará esquecer.
O senhor Brooke conduziu-as por um verdadeiro
labirinto de corredo­res com painéis de madeira,
passando por enormes portas de carvalho. Todo aquele
espaço para duas pessoas e os seus criados.
A senhora Annes Beck estava a ler no grande salão.
Era uma mulher alta por direito próprio, mas usava um
toucado que lhe acrescentava al­guns centímetros. Na
sua pele castanha não havia uma única ruga, mas entre
os caracóis do seu cabelo havia alguns fios grisalhos.
— O que foi, mestre Brooke? — Levantou o olhar e
tirou os óculos. — Pelo Santo! Margret!
Margret fez uma vénia.
— Ainda não cheguei a santa, mãe, mas dai-me
tempo.
— Oh, minha filha!
A senhora Annes veio ao encontro da filha de braços
abertos. Ao contrário dos seus filhos, tinha um sotaque
sulista.
— Não soube do teu noivado com o Lorde Morwe até
esta manhã — disse ela, abraçando-a. — Devia dar-te um
abanão por aceitares sem nos pedires autorização, mas
como a Rainha Sabran te deu a dela... — A senhora
Annes sorriu de felicidade. — Esse homem é mesmo uma
joia, minha querida.
— Obrigada, mamã...
— Bem, já encomendei o melhor cetim para o teu
vestido. Um azul profundo ficar-te-ia muito bem. O meu
mercador preferido de Greensward vai mandar vir o
tecido de Kantmarkt. E vais usar um tou­cado, claro, com
pérolas brancas e safiras, e tens de casar no Santuário
de Caliburn do Mar, como eu. Não há sítio mais bonito.
— Bem, parece que tens tudo controlado — disse
Margret, beijando-a na face. — Mamã, deves lembrar-te
da senhora Duryan. Ela é agora a senhora Eadaz uq-
Nāra, Viscondessa de Nurtha. E a minha melhor amiga.
Ead, apresento-te a minha mãe, a Condessa de
Goldenbirch.
Ead fez uma vénia. Encontrara a senhora Annes uma
ou duas vezes na corte, quando a condessa fora ver os
seus filhos, mas não tinham falado o suficiente para
terem uma ideia clara uma da outra.
— Senhora Eadaz — disse a condessa, com alguma
rigidez. — Há me­nos de quatro dias, os arautos disseram
que éreis procurada por heresia.
— Esses arautos foram pagos por traidores, minha
senhora — disse Ead. — Sua Majestade não dá crédito às
suas palavras.
— Hum. — A senhora Annes olhou-a de alto a baixo.
— Clarent sempre pensou que casaríeis com o meu filho.
Espero que não tenha ha­vido impropério algum entre
vós, embora possais agora ser a consorte do futuro
Conde de Goldenbirch. — Antes que Ead pudesse pensar
numa resposta, a Condessa já tinha batido palmas. —
Brooke! Prepara o jantar.
— Sim, minha senhora — foi a resposta distante.
— Mamã — protestou Margret —, não podemos ficar
para jantar.
Temos de falar convosco sobre...
— Não sejas tola, Margret. Tens de rechear um pouco
esse corpo, se queres dar um herdeiro ao Lorde Morwe.
Margret parecia prestes a desmaiar de tanto
embaraço. A senhora Annes retirou-se, muito ocupada.
Ficaram sozinhas no salão nobre. Ead aproximou-se da
janela que dava para o parque dos veados.
— É uma casa muito bonita — comentou.
— Sim, sinto-lhe uma falta tremenda. — Margret
passou os dedos sobre o virginal. — Perdoa a minha mãe.
Ela é... brusca, mas não faz por mal.
— As mães são mesmo assim.
— Sim. — Margret sorriu. — Vem. Devíamos mudar de
roupa.
Conduziu Ead por mais corredores e subiu um lanço
de escadas até um quarto de hóspedes na ala leste. Ead
tirou a roupa de montar.
Enquanto lavava o rosto, viu algo através da janela
que lhe chamou a atenção. Mas, quando lá chegou, não
havia nada.
Começava a ficar assustada. As irmãs viriam buscá-
la, mais cedo ou mais tarde, para a silenciar ou obrigar a
regressar a Lasia.
Recompôs-se, verificou se tinha os punhais à mão e
preparou-se para o jantar. Margret esperava-a lá fora e,
juntas, dirigiram-se para o salão, onde a senhora Annes
já estava sentada. Os criados começaram por en­cher os
copos com sidra de pera — uma especialidade da
província — e depois trouxeram um rico guisado de caça
e pão com crosta grossa.
— Bem, digam-me como vão as coisas na corte —
disse a senhora Annes. — Tive muita pena de saber que
a Rainha Sabran tinha perdido a filha — acrescentou, e
levou a mão à barriga. Ead sabia que também ela havia
perdido uma filha antes de ter Margret.
— Sua Majestade já está bem, mamã. E aqueles que
queriam usurpar o trono foram presos.
— Usurpar o trono — repetiu a condessa. — Quem?
— Crest.
A senhora Annes olhou para ela.
— Igrain. — Lentamente, pousou a faca sobre a mesa.
— Pelo Santo, não posso acreditar.
— Mamã — disse Margret suavemente —, ela também
foi respon­sável pela morte da Rainha Rosarian. Conspirou
com Sigoso Vetalda.
Ao ouvir isso, a senhora Annes inspirou com força,
escandalizada.
— Eu sabia que Sigoso não a perdoaria. Era um
homem sem escrú­pulos. — Falou com uma amargura na
voz. — Eu também sabia que Rosarian e Igrain não se
davam bem, por razões que não vêm ao caso. Mas para
Igrain ser capaz de matar a sua rainha, e dessa forma...
Ead perguntou a si mesma se Annes Beck, como
antiga Dama do Leito Real, tivera conhecimento da
relação entre Rosarian e Harlowe. Talvez até soubesse
que a princesa era uma bastarda.
— Lamento, mamã. — Margret pegou-lhe na mão. —
Crest nunca mais fará mal a ninguém.
A senhora Annes acenou ligeiramente com a cabeça.
— Pelo menos agora podemos seguir em frente. —
Enxugou os olhos. — Só lamento que Arbella não tenha
vivido para ouvir isso. Ela sempre se culpou.
Comeram em silêncio por um breve momento.
— Como está o Lorde Goldenbirch, minha senhora? —
perguntou Ead.
— Temo que Clarent esteja o mesmo. Por vezes está
no presente, por vezes no passado e por vezes em lugar
nenhum.
— Ele ainda pergunta por mim, mamã? — quis saber
Margret.
— Sim. Todos os dias. — A senhora Annes parecia
cansada. — Vais lá acima vê-lo, não vais?
Margret olhou para Ead do outro lado da mesa.
— Sim, mamã — concordou. — Claro que vou.

***

A senhora Annes orgulhava-se de ser uma boa


anfitriã. O que significava que, duas horas depois, Ead e
Margret ainda estavam sentadas à mesa.
Puseram mais lenha na lareira para secar o ambiente.
Os pratos suculentos continuavam a chegar das
cozinhas. A conversa voltou-se para o casamento, e
depressa a senhora Annes começou a dar con­selhos à
filha sobre a noite de núpcias («Não esperes nada de
especial, minha querida, porque o ato desilude muitas
vezes»). Durante todo esse tempo, Margret exibiu o
sorriso abnegado que Ead tantas vezes lhe vira no rosto
na corte.
— Mamã — disse ela, quando conseguiu finalmente
interrompê-la —, estava a contar à Ead a lenda da
família. Que o Santo visitou Serinhall.
A senhora Annes bebeu um gole da sua chávena.
— Sois historiadora, senhora Eadaz?
— Apenas curiosa, minha senhora.
— Bem — disse a Condessa —, de acordo com os
registos, o Santo ficou em Serinhall durante três dias,
pouco depois de a Rainha Cleolind ter morrido no parto.
Os nossos parentes eram amigos e aliados do rei Galian.
Há quem diga que, durante algum tempo, ele confiou
apenas neles, acima até do seu Sagrado Séquito.
A tarte de queijo fresco, as maçãs assadas e o doce
de leite chegaram, e Ead trocou um olhar com Margret.

***

Quando o jantar terminou, a senhora Annes


dispensou-as da sua presen­ça. Com uma vela na mão,
Margret conduziu Ead pelas escadas acima.
— Pelo amor do Santo — reclamou. — Desculpa-me,
Ead. Há anos que espera que um de nós se case para
poder planear tudo, e o Loth desiludiu-a nesse quesito.
— Não te preocupes. Ela gosta muito de ti.
Quando chegaram às portas elaboradamente
esculpidas da ala norte, Margret fez uma pausa.
— E se... — Rodou o anel no dedo. — E se o pai não se
lembrar de mim?
Ead pôs-lhe uma mão nas costas.
— Ele perguntou por ti.
Margret respirou fundo. Entregou a vela a Ead e abriu
as portas.
A atmosfera no espaço era sufocante. O Lorde Clarent
Beck esta­va meio a dormir numa cadeira, com um
cobertor sobre os ombros. Tirando o cabelo branco e
algumas rugas, parecia-se exatamente com Loth, mas as
suas pernas haviam ficado moles desde a última vez que
Ead o vira.
— Quem é? — perguntou, agitando-se. — Annes?
Margret aproximou-se dele e pegou-lhe no rosto com
as mãos.
— Papá — disse ela. — Papá, é a Margret.
Ele abriu bem os olhos.
— Meg. — Segurou-lhe o braço. — Margret, és mesmo
tu?
— Sim. — Um riso escapou-lhe da boca. — Sim, papá,
estou aqui. Desculpai-me por ter estado tanto tempo
fora. — Beijou-lhe a mão. — Perdoai-me.
Ele levantou-lhe o queixo com um dedo.
— Margret. És minha filha. Perdoei-te todos os
pecados no dia em que nasceste.
Margret abraçou-o e encostou a cabeça ao seu peito.
O Lorde Clarent acariciou-lhe os cabelos com uma mão
firme e um gesto sereno. Ead nun­ca conhecera o seu pai
biológico, mas de repente desejou tê-lo conhecido.
— Papá — Margret, inclinou-se para trás —, lembrais-
vos de Ead?
O homem levantou as pálpebras pesadas e os olhos
escuros pousaram em Ead. A sua expressão tinha a
mesma bondade que ela recordava da última vez.
— Ead — disse, um pouco rouco. — Quem diria, Ead
Duryan. — À Estendeu a mão e Ead beijou-lhe o anel. —
É bom ver-te, criança. Já casaste com o meu filho?
Ead perguntou-se se ele sabia que Loth tinha sido
eLivros.
— Não, meu senhor — respondeu com suavidade. — O
Loth e eu amamo-nos muito, mas não dessa maneira.
— Eu sabia que era demasiado bom para ser verdade
— respondeu o Lorde Clarent, sorrindo. — Tinha
esperança de o ver casado, mas temo que não chegarei
a vê-lo.
Franziu o sobrolho e olhou para o vazio. Margret
envolveu-lhe o rosto com as mãos, olhando-o fixamente.
— A mamã diz que tendes andado a chamar-me.
O Lorde Clarent pestanejou.
— A chamar-te... — Lentamente, anuiu. — Sim, tenho
algo impor­tante para te dizer, Margret.
— Bem, aqui estou eu.
— Então deverás tomar o segredo. O Loth morreu —
disse ele, a tre­mer —, por isso agora és tu a herdeira.
Apenas o herdeiro de Goldenbirch pode saber. — Os
sulcos entre as suas sobrancelhas aprofundaram-se. —
Loth está morto.
Devia ter-se esquecido de que Loth havia regressado.
Margret olhou para Ead, depois para o pai, acariciando-
lhe as maçãs do rosto com os polegares.
Precisavam que ele acreditasse que Loth estava
morto. Era a única forma de o convencer a dizer-lhes
onde estava escondida a espada.
— O Loth... presume-se que está morto, papá — disse
Margret suavemente. — Sou a vossa herdeira.
O rosto do homem encolheu-se nas mãos da filha. Ead
sabia como Margret se devia sentir mal ao contar-lhe
uma mentira tão dolorosa, mas levariam dias a trazer
Loth de Ascalon, e não tinham esse tempo.
— Se Loth está morto, então... tens de saber, Margret
— disse Clarent, com os olhos húmidos. — Hildistérron.
Ao ouvir a palavra, Ead sentiu um aperto na barriga.
— Hildistérron — murmurou Margret. — Ascalon.
— Quando me tornei Conde de Goldenbirch, a tua avó
disse-me. — Clarent não largou a mão da filha. — Deverá
ser transmitido aos meus filhos e depois aos teus. Para o
caso de ela voltar para a recuperar.
— Ela — interveio Ead. — Lorde Clarent, quem?
— Ela. A Dama da Floresta.
Kalyba.
Procurei Ascalon durante séculos, mas Galian
escondeu-a bem.
Clarent parecia agitado agora. Olhou para as duas,
receoso.
— Não vos conheço — murmurou. — Quem são
vocês?
— Papá — disse Margret —, sou a Margret. — Vendo
a confusão nos olhos do pai, a sua voz quebrou-se. —
Papá, peço-vos, ficai comigo. Se não me disserdes agora,
perder-se-á na neblina da vossa mente. — Apertou-lhe as
mãos. — Por favor, dizei-me. Dizei-me onde Ascalon está
escondida.
Ele agarrou-se a ela como se ela fosse a
personificação da sua me­mória. Margret congelou
quando ele aproximou a cabeça dela, os seus lábios
gretados roçando a sua orelha. Ead, com o coração aos
saltos, observou-os a moverem-se.
Nesse momento, a porta abriu-se e a senhora Annes
entrou.
— Está na hora da tua infusão para dormir, Clarent —
disse ela. — A Margret tem de descansar.
Clarent enterrou a cabeça nas mãos.
— O meu filho — chorou, com os ombros a tremer. —
O meu filho está morto.
A senhora Annes deu um passo à frente, franzindo a
testa.
— Não, Clarent. São boas notícias. O Loth está de
volta...
— O meu filho está morto.
Clarent desfez-se em lágrimas. Margret levou uma
mão à boca, os olhos marejados. Ead pegou-lhe pelo
cotovelo e conduziu-a para fora do cómodo, deixando a
senhora Annes com o seu companheiro.
— As coisas que eu lhe disse... — Margret tinha a voz
embargada.
— Tinhas de o fazer.
Margret assentiu. Secando os olhos, levou Ead para o
seu quarto, onde procurou uma pena e um pergaminho e
escreveu apressadamente a mensagem.
— Antes que me esqueça do que o papá disse —
murmurou.

Conheceis-me das canções. Mas não cantam a minha


verdade.
Jazo onde a luz das estrelas não ousa espreitar.
Forjada no fogo e do cometa extraída em majestade.
Sobre folha e sob árvore para me ocultar,
devotos peludos, oferendas de fezes em
simplicidade.
Mitiga o fogo, quebra a pedra, vem-me libertar.

— Mais um maldito enigma. — Talvez fosse a tensão


das últimas se­manas, mas Ead estava tão frustrada que
a ideia de um novo enigma ameaçou fazê-la perder a
sanidade. — Que a Mãe amaldiçoe os antigos e os seus
enigmas. Não temos tempo para...
— Sei exatamente o que significa — disse Margret,
enfiando o perga­minho debaixo do corpete. — E sei onde
está Ascalon. Segue-me.

***

Margret avisou o mordomo de que iam sair para um


passeio noturno e que a senhora Annes não precisava de
esperar por elas. Pediu também uma pá para cada uma.
O mordomo trouxe-as, juntamente com dois dos cavalos
mais rápidos dos estábulos e uma lamparina para cada
sela.
Cobertas com os seus pesados mantos, afastaram-se
a galope de Serinhall. Tudo o que Margret dissera a Ead
fora que se dirigiam para Goldenbirch. Para lá chegarem,
tinham de seguir a velha estrada fúne­bre. Estava coberta
de neve, mas Margret conhecia o caminho.
No tempo dos reis, os habitantes de Goldenbirch e de
outras aldeias vizinhas levavam os seus mortos em
procissão à luz das velas, descalços e a cantar, para os
enterrarem no fim da estrada e deixarem oferendas no
local onde outrora ficava a Casa de Berethnet.
Trotaram sob os ramos retorcidos dos carvalhos,
atravessaram os pra­dos e passaram por uma coroa de
pedras de tempos antigos.
— Margret — disse Ead —, que significa o enigma?
Margret abrandou o passo.
— Ocorreu-me assim que o pai me disse aquelas
palavras. Eu só tinha seis anos, mas ainda me lembro.
Ead baixou a cabeça para se desviar de um ramo
carregado de neve.
— Conta-me.
— Eu e o Loth crescemos separados, como sabes;
ele viveu na corte com a mãe desde muito novo, e eu
vivi aqui com o pai, mas o Loth cos­tumava vir a casa na
primavera, para a peregrinação. Passei um mau bocado
quando ele teve de se ir embora outra vez. Um dia, fiquei
tão zangada com ele por partir que jurei nunca mais lhe
falar. Para me apa­ziguar, prometeu-me que passaria o
último dia da sua estada comigo e eu fiz-lhe prometer
que faríamos tudo o que eu quisesse. Depois... disse-lhe
que tínhamos de ir ver a floresta de Haithwood.
— Eras muito corajosa para uma criança — disse ela.
Margret resfolegou.
— Muito tola, diria. Mas o Loth prometera-me e,
apesar de ter apenas doze anos, a sua honra não lhe
permitiria faltar à sua palavra. De ma­drugada,
escapámos e seguimos este mesmo caminho até
Goldenbirch. Caminhámos durante o que pareceu uma
eternidade até chegarmos à floresta de Haithwood, o
território da Dama da Floresta.
» Parámos quando chegámos às árvores. Para uma
menina como eu, eram gigantes sem rosto, mas achei-as
muito excitantes. Peguei em Loth pela mão e ficámos a
tremer à sombra da primeira árvore, a pensar se a bruxa
viria à nossa procura, para nos esfolar e comer assim que
pu­séssemos os pés na floresta. Finalmente, perdi a
paciência e dei um bom empurrão ao Loth.
Ead conteve um sorriso.
— Ele gritou — recordou Margret. — Mesmo assim, ao
ver que não estava a ser levado por nenhuma força
maléfica, ficámos confiantes e pouco depois estávamos a
colher bagas e a conversar. Por fim, ao cair da noite,
decidimos regressar a casa. Foi então que o Loth
descobriu um pequeno buraco. Disse que não passava de
uma toca de coelho. Eu disse que era uma toca de
wyrms, e que podia matar qualquer wyverling que lá
estivesse.
» O Loth riu-se à gargalhada quando me ouviu dizer
isso, e incitou-me para ver se eu me atrevia a entrar. O
buraco era muito pequeno. Tive de o cavar com as mãos.
Rastejei de quatro com uma vela na mão... e ao princípio
não havia nada senão terra. Mas quando me tentei virar,
escorreguei e caí, e de repente dei por mim num túnel
suficientemente grande para me pôr de pé.
» Por alguma razão, a minha vela ainda estava acesa,
por isso atrevi-me a aventurar-me um pouco mais. Era
evidente que aquele túnel não fora obra de coelhos. Não
me lembro até onde ia. Só que estava a ficar cada vez
mais assustada. Finalmente, quando pensei que me ia
molhar, voltei a correr, saí e disse ao Loth que não havia
ali nada. — A neve começava a assentar-lhe nas
pestanas. — Pensei que tinha tropeçado na casa da
Dama da Floresta e que, se contasse a alguém, viriam
atrás de mim. Durante anos tive pesadelos com aquele
túnel. Pesadelos em que me drenavam o sangue ou me
queimavam viva.
Era raro ver a Margret assustada. Mesmo agora,
dezoito anos depois, estava afetada.

— Acho que acabei por me esquecer disso —


continuou —, mas quando o papá me disse aquilo...
lembrei-me. Sobre folha e sob árvore para me ocultar,
devotos peludos, oferendas de fezes em simplicidade.
— Coelhos — murmurou Ead. — Kalyba disse-me que
não ia muito à floresta de Haithwood, mas Galian talvez
fosse. Ou talvez tenham sido os teus antepassados a
falar-lhe do túnel.
Margret assentiu, com o maxilar tenso.
Continuaram a cavalgar.
Quando avistaram as ruínas de Goldenbirch, já
estava escuro.
Naquele lugar misterioso, berço do Reino das
Virtudes, o silêncio era absoluto. A neve caía tão leve
como as cinzas. Ao passarem pelas ruínas intocadas há
séculos, Ead quase teve a sensação de que o mundo
tinha acabado e que ela e Margret eram as últimas
pessoas vivas. Voltara atrás no tempo, a uma época em
que Inys era conhecida como Ilhas de Inysca.
Margret parou o seu cavalo e desmontou.
— Foi aqui que nasceu Galian Berethnet — disse,
baixando-se para limpar alguma neve. — Onde uma
jovem costureira deu à luz uma criança e a sua testa foi
marcada pela cinza do espinheiro.
Com as mãos enluvadas, limpou uma placa de
mármore cravada na terra.

AQUI ERGUEU-SE A CASA DE BERETHNET


LOCAL DE NASCIMENTO DO REI GALIAN DE
INYS
SANTO DE TODOS OS REINOS DAS VIRTUDES

— Ouvi dizer que os restos mortais de Galian nunca


foram encontrados — recordou Ead. — Não achas
estranho?
— Sim — reconheceu Margret. — Muito. Os inyscans
deveriam ter preservado os restos de um rei. A não ser
que...
— O quê?
— A não ser que tenha morrido de uma forma que os
seus seguidores quisessem esconder. — Margret voltou a
sentar-se na sela. — Ninguém sabe como o Santo
morreu. Os livros dizem apenas que se uniu à Rainha
Cleolind no céu e construiu Halgalant lá, tal como
construíra Ascalon na Terra.
Fez o sinal da espada sobre a laje e voltaram a montar
os seus cavalos.
A norte, a floresta de Haithwood era a imagem do
terror E quando a avistaram, Ead entendeu o porquê.
Antes que o Inominável tivesse ensinado os inyscans a
temer a luz do fogo, aquela floresta ensinara-os a temer
a escuridão. A grande maioria das árvores era
gigantesca, e ficavam tão próximas umas das outras que
formavam um muro negro. Só de as verem, sentiram
uma sensação de asfixia.
Trotaram até às árvores e amarraram os cavalos.
— Consegues encontrar a toca? — disse Ead, sem
levantar a voz. Sábia que estavam sozinhas, mas o local
deixava-a nervosa.
— Acho que sim — disse Margret, tirando a lamparina
e as ferramen­tas da sela. — Não te afastes.
A floresta à sua frente consumia toda a luz. Ead tirou
uma das lampa­rinas da sela e, juntas, com os dedos
entrelaçados, entraram na floresta.
A neve rangia sob as suas botas de montar. Os ramos
formavam uma densa rede — as árvores gigantes nunca
largavam as suas agulhas —, mas a queda de neve tinha
sido tão forte que deixara um espesso cober­tor branco
sobre elas.
Enquanto caminhavam, Ead não conseguiu deixar de
sentir uma profunda desolação. Talvez fosse o frio ou a
escuridão que as envolvia, mas naquele momento a luz
da lareira de Serinhall parecia-lhe tão distante como o
Burlah. Mergulhou o queixo no colarinho de pele do seu
manto. Margret parava de vez em quando, como se
tentasse ouvir. Ead ouviu o farfalhar de uma folha e
retesou o corpo todo. Sob o manto, sentiu a joia cada vez
mais fria.
— Costumava haver lobos aqui. — disse Margret —,
mas foram caçados até à extinção.
Para distrair Margret, Ead perguntou:
— Porque se chama Haithwood?
— Achamos que haiih era a palavra que os inyscans
usavam para se referir às tradições antigas. Adoração da
natureza. Os arbustos de espinheiro, principalmente.
Durante muito tempo, percorreram a neve sem
dizerem nada. Loth e Margret haviam sido crianças muito
corajosas.
— Aqui está. — Margret aproximou-se de um monte
de neve ao pé de um carvalho nodoso. — Dá-me uma
ajuda, Ead.
Ead agachou-se ao lado dela com uma das pás e
cavaram. A prin­cípio, parecia que Margret se tinha
enganado, mas, de repente, as pás romperam a neve e
descobriram um buraco.
Ead afastou a neve das bordas. O buraco era estreito,
mesmo para uma criança. Cavaram com as pás e com as
mãos até ficar suficiente­mente grande. Margret fitou a
abertura, nervosa.
— Eu vou à frente — ofereceu Ead. Pontapeou o solo,
afastando terra solta do buraco, e deslizou para dentro,
deixando a lamparina à entrada.
Mal havia espaço para um coelho bem alimentado,
quanto mais para uma mulher. Ead acendeu o seu fogo
mágico e rastejou de barriga para baixo. Rastejou até
que o túnel, como Margret tinha prometido, desceu e
alargou, caindo numa espécie de poço escuro. Ead não
podia voltar para trás, por isso não teve alternativa
senão saltar para o vazio.
A queda foi curta e terminou com um baque. Ead
levantou-se, rea­cendeu o seu fogo mágico e descobriu
um túnel com paredes de arenito e um teto abobadado,
com pouco espaço para ficar de pé.
Margret alcançou-a. Segurava a lamparina numa
mão e uma pequena faca na outra.
As paredes do túnel tinham alguns recantos
esculpidos, mas apenas restavam as pontas das velas
que lá haviam ardido. Fazia frio naquele covil secreto,
mas não era de todo como à superfície. Margret ainda
estava a tremer, embrulhada no seu manto.
Pouco depois, chegaram a uma câmara com teto
baixo, onde dois barris de ferro se encontravam ao lado
de outra placa esculpida em pe­dra preta. Margret baixou-
se para cheirar o conteúdo de um dos barris.
— Óleo de eachy. Um barril deste tamanho pode
arder durante meses — disse ela. — Alguém tem visitado
a este sítio.
— Faz quanto tempo que o teu pai sofreu a queda?
— Três anos.
— E antes disso, ele alguma vez veio a Haithwood?
— Sim, muitas vezes. Como Haithwood fica na nossa
província, às ve­zes ia lá com os criados, para se certificar
de que estava tudo em ordem.
Às vezes, até ia sozinho. Eu achava que isso fazia
dele o homem mais corajoso do mundo.
À luz do seu fogo mágico, Ead leu a inscrição na
placa.

EU SOU A LUZ DO FOGO E DAS ESTRELAS,


O QUE EU BEBER AFOGARÁ.

— Meg. O Loth explicou-te a minha magia, não foi?


— Se bem percebi, a tua é magia de fogo — disse
Margret — e é atraída, de certa forma, pela magia da luz
das estrelas, mas não tanto como a magia da luz das
estrelas se atrai a si própria. É isso?
— Exatamente. Galian devia saber que a espada seria
atraída pelo sterren, do qual Kalyba tinha uma grande
quantidade. Ele não queria que Kalyba ouvisse o
chamamento. Quem enterrou Ascalon cercou-a de fogo.
Imagino que nos primeiros séculos, quem quer que fosse
o Guardião dos Prados tinha a tarefa de manter a entrada
livre e os bra­seiros acesos.
— E achas que foi isso que o meu pai fez — concluiu
Margret, acenando lentamente com a cabeça. — Mas
quando ele caiu...
— ... o segredo quase se perdeu.
Olharam ambas para a placa. Era demasiado pesada
para a remove­rem com as mãos.
— Regressarei a Serinhall e trarei um martelo —
sugeriu Margret.
— Espera.
Ead puxou a joia minguante que trazia pendurada ao
pescoço. Estava fria como a geada.
— Sente Ascalon, mas o puxão não é forte o suficiente
para a arran­car da pedra. — Refletiu. — Ascalon é feita
de luz das estrelas, mas foi forjada com fogo. É a união
de ambos.
Ergueu o fogo mágico.
— E responde ao que mais se assemelha — disse
Margret, continuan­do o seu raciocínio.
A chama lambeu o contorno da joia. Ead pensou que a
sua intuição estivera errada, até que uma luz brilhou
dentro dela, uma luz branca, o beijo da lua na água. Soou
como a corda de um instrumento quando apertada.
A placa partiu-se ao meio com um ruído semelhante
ao de um trovão. Ead deu um passo atrás e protegeu o
rosto enquanto a placa se estilhaça­va. A joia voou-lhe da
mão e a placa quebrada emitiu um clarão de luz que
preencheu a câmara. Algo voou e bateu na parede com
um estrondo metálico que a deixou meio ensurdecida, e
depois caiu, fumegante, ao lado da joia, que respondeu
com um estremecimento. Ambos emitiram um brilho
metálico branco.
Quando a luz se desvaneceu, Margret caiu de joelhos.
Diante delas estava uma espada magnífica. Era de
prata brilhante, polida como um espelho, até ao último
pormenor: o punho, a guarda e a lâmina.
Forjada no fogo e do cometa extraída em majestade.
Ascalon. Forjada sem nenhum metal humano. Criada
por Kalyba, empunhada por Cleolind Onjenyu, manchada
com o sangue do Inominável. Uma espada de dois
gumes. Do punho à ponta, era tão alta quanto Loth.
— Ascalon. — Margret tinha a voz rouca, os olhos
selvagens. — A Espada da Verdade.
Ead colocou a mão em torno do punho. A lâmina
vibrou com uma corrente de energia. Estremeceu ao
toque da sua mão, a atração da pra­ta pelo ouro do seu
sangue. Deixou-se ficar com ela na mão, atónita e sem
palavras. Era leve como o ar, fria ao toque. Um
fragmento da Estrela de Crina longa.
Mãe, tornai-me digna. Pressionou os lábios contra a
lâmina fria. Irei ter­minar o que começastes.

***
Subiram até à entrada da toca e refizeram o caminho
pela floresta. O céu já estava coberto de estrelas.
Ascalon, sem bainha, parecia absorver a sua luz. Na
câmara, quase parecera de aço, mas agora não havia
dúvidas da sua origem celeste.
Nenhum navio partia durante a noite. Teriam de
passar a noite em Serinhall e partir ao amanhecer para o
porto de Caliburn do Mar. Ead não tinha vontade de
atravessar a floresta novamente. Mesmo com a espada
na mão, Haithwood era capaz de penetrar no coração de
todas as suas criaturas e espremer toda a sua energia.
— Alto! Quem está aí?
Ead olhou para cima. Margret estava ao seu lado e
levantou a lamparina.
— Sou a senhora Margret Beck, filha dos Condes de
Goldenbirch, e este é o território dos Beck. Não tolerarei
ultrajes na floresta. — Margret falou com uma voz firme,
mas Ead conhecia-a suficientemente bem para sentir o
medo que escondia. — Vinde cá e revelai-vos.
E foi então que Ead a viu. Uma figura entre as árvores,
indistinguí­vel na escuridão de Haithwood. Um momento
depois, desaparecera nas sombras, como se nunca
tivesse existido.
— Viste-a?
— Vi — disse Ead.
O vento farfalhou por entre as árvores. Voltaram para
os seus cavalos a passo rápido. Ead amarrou Ascalon à
sela.
A lua cheia brilhava sobre Goldenbirch, iluminando a
neve enquanto cavalgavam de volta à estrada fúnebre.
Tinham acabado de passar por uma das pedras
cerimoniais de delimitação quando Ead ouviu um grito.
Era Margret. Puxou as rédeas e deu a volta ao cavalo.
— Meg!
Ead suspirou. O outro cavalo não estava em lado
nenhum.
E Margret estava de pé, uma lâmina pressionada
contra a sua gargan­ta, nas mãos da Bruxa de Inysca.
É uma magia fria e esquiva, elegante e evasiva.
Aquele que a domina pode criar ilusões, controlar a
água... pode até mudar de forma...
— Kalyba.
A bruxa estava descalça. Usava um vestido
transparente, branco como a neve, apertado na cintura.
— Olá, Eadaz.
Ead estava tão tensa como uma corda de arco.
— Seguiste-me desde Lasia?
— É verdade. Vi-te fugir do Priorado e vi-te partir de
Córvugar com o lorde de Inys — disse Kalyba, o rosto
sem expressão. — Soube então que não tinhas intenção
de regressar à minha pérgula. Que não cumpri­rias a tua
palavra.
As mãos de Margret tremiam.
— Tens medo, minha querida? A tua ama contou-te
histórias da Dama da Floresta? — Passou-lhe a lâmina ao
longo da garganta e ela estremeceu. — Parece que foi a
tua família que escondeu a minha espada para que eu
não a encontrasse.
— Larga-a — exigiu Ead. O seu cavalo deu um coice
no chão. — Ela não tem nada que ver com qualquer
afronta que eu te possa ter causado.
— Afronta. — Apesar do frio cortante, a bruxa não se
arrepiou. — Juraste-me que me trarias o que eu desejava.
Nesta ilha, há muito tem­po, quebrar esse juramento ter-
te-ia custado a vida. Tens sorte em ter algo mais para me
oferecer.
Ascalon voltou a brilhar. E também a joia minguante,
por baixo do seu manto.
— Esteve sempre aqui. Na minha floresta. — Os olhos
de Kalyba estavam em Ascalon. — A minha espada,
escondida sob a terra, na escu­ridão. E mesmo que não
estivesse enterrada onde eu não pudesse perce­ber o seu
chamamento, teria de rastejar como uma cobra. Galian
troça de mim mesmo depois da morte.
Margret fechou os olhos. Os seus lábios moveram-se
numa oração silenciosa.
— Suponho que tenha feito o mesmo antes de partir
para Nurtha. Para o seu fim. — Kalyba olhou para cima.
— Dá-ma agora, Eadaz, e terás cumprido o teu
juramento. Ter-me-ás dado o que eu desejo.
— Kalyba... Sei que quebrei o meu juramento e
recompensar-te-ei. Mas preciso de Ascalon. Usá-la-ei para
derrotar o Inominável, já que Cleolind não o fez. Mitigará
o fogo do seu interior.
— Sim — disse Kalyba. — Mas não serás tu a
empunhá-la, Eadaz.
A bruxa atirou Margret para a neve. De repente,
Margret apertou os braços com força e começou a
ofegar, a vomitar, como se tivesse água nos pulmões.
— Ead... — balbuciou. — Ead, os espinhos...
— Que é que lhe estás a fazer? — Ead desmontou. —
Deixa-a em paz.
— É só uma ilusão — disse Kalyba, contornando
Margret. — Ainda assim, julgo que os mortais são
vulneráveis aos meus feitiços. Às vezes, os seus corações
são bloqueados pelo medo. — Estendeu a mão. — Esta é
a tua última oportunidade de me dares a espada, Eadaz.
Não deixes que a senhora Margret Beck pague o preço do
teu juramento quebrado.
Ead manteve a sua posição. Não lhe iria dar a espada.
Nem tinha intenção de deixar Margret morrer por ela.
A laranjeira não lhe concedera o poder do seu fruto
em vão.
Virou as palmas para cima. Um jato de fogo mágico
brotou-lhe das mãos, cobrindo Margret e a bruxa,
acabando com a ilusão.
Kalyba soltou um grito agudo e contorceu-se. As suas
madeixas ruivas desapareceram. A carne dos seus
membros foi consumida e, quando arrefeceu,
apareceram braços e pernas pálidos no seu lugar. Uma
cabe­leira preta caía-lhe desordenadamente até à cintura.
Ead teve de se esforçar para fechar as mãos. Quando
as chamas de­sapareceram, viu Margret de joelhos, com
uma mão na garganta e os olhos injetados de sangue.
E ao seu lado estava Sabran Berethnet.
Ead olhou para as suas mãos, depois para Kalyba, que
também era Sabran. Margret virou-se para trás.
— Sabran? — disse ela, tossindo.
Kalyba abriu os olhos. Verdes como salgueiros.
— Como? — disse Ead, ofegante. — Como é que tens
a cara dela? — Desembainhou a espada. — Responde-
me, bruxa.
Não conseguia desviar o olhar. Kalyba era Sabran, até
à ponta do nariz e à curva dos lábios. Não tinha nenhuma
cicatriz na coxa ou na barriga, mas tinha uma marca que
Sabran não tinha no lado direito, debaixo do braço; de
resto, podiam ser gémeas.
— Os seus rostos são as suas coroas. E a minha é a
verdade. — A voz naqueles lábios era a da bruxa. —
Disseste que querias aprender, Eadaz, naquele dia na
minha pérgula. Tens diante dos teus olhos o maior
segredo do Reino das Virtudes.
— Tu — murmurou Ead.
Quem foi a primeira rainha de Inys?
— Isso não é um feitiço. —. Com o coração a
martelar, Ead levantou a espada. — Essa é a tua forma
real.
Margret conseguiu pôr-se de pé e correu para trás de
Ead, com o punhal na mão.
— Querias a verdade, e a verdade recebeste — disse
Kalyba, igno­rando as suas armas. — Sim, Eadaz. Esta é a
minha verdadeira forma. A minha primeira forma. A
forma que tinha antes de alcançar a mestria do sterren.
— Juntou as mãos diante da barriga, parecendo-se ainda
mais com Sabran, se é que isso era possível. — Nunca o
teria revelado. Mas já que o viste... contar-te-ei a minha
história.
Ead manteve os olhos cravados nela, a espada
apontada para a sua garganta. Kalyba virou-lhe as costas
e encarou a lua.
— Galian era meu filho.
Não era o que Ead esperara ouvir.
— Não é que ele tenha nascido do meu ventre —
continuou Kalyba. — Eu roubei-o de Goldenbirch quando
ainda era um bebé. Na altura, pensei que o sangue dos
inocentes me poderia ajudar a dominar uma magia mais
profunda, mas ele era um bebé adorável, com olhos
azuis como a centáurea... Confesso que me deixei levar
pelos meus sentimen­tos e criei-o como meu em Nurtha,
no oco de um espinheiro.
Ead abraçou Margret tão perto que podia sentir-lhe o
tremor.
— Quando fez vinte e cinco anos, deixou-me para se
tornar um cava­leiro ao serviço de Edrig de Arondine.
Nove anos depois, o Inominável emergiu do Monte do
Pavor. Havia muitos anos que eu não via Galian. Mas
quando ele soube da peste e que o Inominável estava a
espalhar o ter­ror por Lasia, veio até mim, implorando-me
que o ajudasse. O seu sonho era unir os reis e príncipes
guerreiros de Inys sob uma coroa, e governar um país
sob a fé das Seis Virtudes da Cavalaria. Para isso, teria
de con­quistar o seu respeito com um grande feito. Queria
matar o Inominável e, para isso, precisaria da minha
magia. Eu, como uma tola, concedi-lha, pois nessa altura
já não o amava como uma mãe. Amava-o como os com­‐
panheiros se amam. Em troca, ele jurou-me que seria só
meu.
» Cega de amor, ofereci-lhe Ascalon, a espada que
forjei com a luz das estrelas e do fogo. Ele cavalgou até
Lasia e chegou à cidade de Yikala. — Soltou um suspiro
zangado. — Mas eu não compreendi as verda­deiras
intenções de Galian. Para unir os governantes de Inysca
e forta­lecer a sua posição, ele queria uma rainha de
sangue real, e quando viu Cleolind Onjenyu, desejou-a.
Não só era solteira e bonita, como nas suas veias corria o
sangue ancestral do Sul.
» Sabes o que aconteceu a seguir. Cleolind recusou o
meu cavalei­ro e tomou-lhe a espada quando ele caiu,
atingido. Feriu o Inominável e desapareceu com as suas
damas para a Bacia de Lasia, onde ficaria para sempre
ligada à laranjeira. Tive esperanças de que Galian voltas­‐
se para mim, mas ele quebrou a sua promessa e partiu-
me o coração.
Estava louca de amor e fiquei furiosa. — Kalyba virou-
se. — Galian regressou a casa sem glória e sem noiva. Eu
segui-o.
— Não pareces ser do tipo que se padece com a
rejeição — disse Ead.
— O coração é uma coisa cruel. Dominou-me. — A
bruxa caminha­va em redor delas. — Galian estava
devastado pelo seu fracasso, pleno de ódio e raiva. Eu
não sabia como mudar a minha imagem na altura. O que
eu dominava eram sonhos e armadilhas. Saí das árvores,
pus-me à frente do seu cavalo e os seus olhos
iluminaram-se. Sorriu... e chamou-me Cleolind.
Ead não conseguia desviar o olhar.
— O quê?
— Não te posso contar os mistérios da magia das
estrelas, Eadaz, Tudo o que precisas de saber é que o
sterren me concedeu o poder de entrar na sua mente.
Através de um encantamento, consegui que ele
acreditasse que eu era a princesa que o tinha rejeitado.
Meio adormeci­do, com a memória turva, não se lembrava
de como era a Cleolind, nem que ela o tinha rejeitado ou
que eu alguma vez existira. O seu desejo tornou-o
maleável. Precisava de uma rainha, e ali estava eu. Fi-lo
desejar-me, como desejava Cleolind desde que a vira. —
Um sorriso aflorou-lhe aos lábios. — Levou-me para as
ilhas de Inysca, onde fez de mim a sua rainha, e eu
consegui trazê-lo para a minha cama.
— Ele era como um filho teu — disse Ead. A repulsa
acumulou-se-lhe no estômago. — Tu criaste-o.
— O amor é complexo, Eadaz.
Margret levou a mão à boca.
— Engravidei muito cedo — sussurrou Kalyba, e levou
as mãos a barriga. — Dar à luz a minha filha fez-me
perder muita força. Também perdi muito sangue. E
enquanto estava febril, quase a morrer, perdi o controlo
da mente de Galian. Quando ele finalmente abriu os
olhos, enviou-me para as masmorras. — O seu tom
tornou-se sombrio. — Ele tinha a espada. Eu estava
enfraquecida. Um amigo ajudou-me a fugir... mas tive de
deixar a minha Sabran para trás. A minha pequena
princesa.
Sabran a Primeira, a primeira rainha de Inys.
Todos os fragmentos desconexos da verdade
estavam a tomar forma, explicando o que o Priorado
nunca havia entendido.
O Impostor fora enganado.
— Galian retirou todos os retratos e esculturas da
minha imagem e proibiu que mais fossem criados.
Depois foi para Nurtha, onde eu o cria­ra, e enforcou-se
no meu espinheiro. Ou o que restava dele. — A bruxa
envolveu-se com os próprios braços. — Certificou-se de
que levava a sua vergonha para a sepultura.
Ead ficou em silêncio, sentindo náuseas.
— Tive de ver uma dinastia de rainhas tomar o seu
lugar. Grandes rainhas, cujos nomes se tornaram
famosos em todo o mundo. Todas elas possuíam muito
de mim, e nada dele. Uma filha cada uma, sempre de
olhos verdes. Uma consequência inesperada do sterren,
suponho.
Era uma história tão estranha que chegava a ser
inacreditável. E, no entanto, o fogo mágico não lhe
queimara aquele rosto.
O fogo mágico nunca mentia.
— Perguntas-te porque Sabran sonha com a minha
pérgula? — per­guntou a Ead. — Se não acreditas na
verdade dos meus lábios, acredita na dos dela. O meu
Primeiro Sangue vive nela.
— Atormentaste-a — disse Ead, com a voz rouca. —
Se tudo isto é verdade, se todas as rainhas de Berethnet
são tuas descendentes diretas, porque a fizeste sonhar
com sangue?
— Fi-la sonhar com o parto para que ela soubesse o
que eu sofri ao dar à luz a sua antepassada. E fi-la
sonhar com o Inominável, e comigo, para que
conhecesse o seu destino.
— E qual é o seu destino?
— Aquele que eu lhe forjei.
A bruxa virou-se novamente para eles e de repente o
seu rosto trans­formou-se. A sua pele dividiu-se em
escamas e os olhos tornaram-se afiados. O verde fundiu-
se com o branco e reluziu. Uma língua bifurca­da passou
por entre os seus dentes.
Quando a última peça do quebra-cabeças se
encaixou, Ead sentiu o mundo a desfazer-se debaixo dos
seus pés. Estava de volta ao palácio, com Sabran nos
seus braços, encharcada de sangue.
— O Wyrm Branco — murmurou. — Aquela noite.
Eras tu. Tu és a sexta Sombra Ocidental.
Kalyba recuperou a sua verdadeira forma, a de
Sabran, e sorriu.
— Porquê? Porque desejas a destruição da Casa de
Berethnet, quando foste tu que a criaste? Isto é tudo um
jogo para ti, algum tipo de vingança elaborada contra
Galian?
— Eu não destruí a Casa de Berethnet — disse Kalyba.
— Não. Naquela noite, a noite em que ataquei Sabran e a
sua filha por nascer, salvei-a. Ao acabar com a linha de
sucessão, conquistei a confiança de Fýredel, que me
elogiará perante o Inominável — disse, com uma se­‐
riedade mortal. — O Inominável voltará a erguer-se,
Eadaz. Ninguém o poderá deter. Mesmo que lhe craves
Ascalon no coração, mesmo que a Estrela de Crina Longa
regresse, ele voltará sempre a erguer-se. O desequilíbrio
do Universo, o desequilíbrio que o criou, existirá sempre.
Não pode ser corrigido.
Ead agarrou a espada com ainda mais força. A joia
gelou-lhe o peito junto ao coração.
— Dentro em breve, o Inominável permitirá que eu
seja a sua Rainha Terrena — disse Kalyba. — Oferecer-
lhe-ei Sabran como um presente e tomarei o seu lugar no
trono de Inys. O trono que Galian me roubou. Ninguém
irá notar. Direi ao povo que sou Sabran, e que o
Inominável, na sua misericórdia, permitiu que eu
mantivesse a coroa.
— Não — disse Ead em voz baixa.
Kalyba estendeu a mão mais uma vez. Margret
colocou a sua em Ascalon, ainda amarrada à sela.
— Dá-me a espada — disse Kalyba — e a tua
promessa será cum­prida. — Olhou de relance para
Margret. — Ou talvez tu ma devolvas, minha filha, e
compensar-me-ás o mal que a tua família me fez ao
escondê-la.
Margret olhou fixamente para a Dama da Floresta, a
personagem que tanto temera em criança, sem tirar a
mão de Ascalon.
— Os meus antepassados foram suficientemente
corajosos para te im­pedirem de chegar até ela, e eu não
ta darei por nada deste mundo.
Ead olhou para Kalyba. A que enganara Galian, o
Impostor. O Wyrm Branco. A antepassada de Sabran. Se
ela recuperasse a espada, não ha­veria vitória.
— Muito bem — disse Kalyba —, se tivermos de o
fazer da maneira difícil, que seja.
E, diante dos seus olhos, começou a transformar-se.
As suas pernas tornaram-se mais compridas,
curvadas. As suas cos­tas alongaram-se, com uma série
de estalidos, como tiros, e a sua pele retesou-se entre os
novos ossos. Em momentos, ficou do tamanho de uma
casa, e, diante delas, surgiu o Wyrm Branco, colossal e
imponente. Ead empurrou Margret para o lado, mesmo a
tempo de se desviar dos dentes afiados que caíram sobre
o cavalo, apagando a luz de Ascalon.
As asas de pele como cabedal golpearam o chão,
levantando uma ra­jada de vento quente. A neve ficou
manchada com o sangue do cavalo, enquanto Kalyba se
elevava para o céu noturno.
O bater de asas do wyrm foi-se desvanecendo ao
longe, e Ead tom­bou, afundando-se de joelhos, os
ombros caídos. Margret, salpicada de sangue, ajoelhou-
se ao seu lado.
— Tinha espinhos — disse ela, a tremer — na
minha... na minha garganta. Na minha boca.
— Não era real. — Ead encostou-se a ela. —
Perdemos a espada. A espada, Meg.
As suas mãos ardiam, mas manteve os punhos
cerrados. Iria precisar de todo o seu siden para a luta que
se avizinhava.
— Não pode ser verdade. — Margret engoliu com
força. — Tudo o que ela disse sobre o Santo. O rosto que
mostrava era um truque.
— Expus a sua verdadeira imagem com o fogo mágico
— murmurou Ead. — O fogo mágico é revelador. Mostra
apenas a verdade.
Algures nas árvores, uma coruja piou. Margret
estremeceu. Ead viu o medo nos seus olhos; pegou-lhe
na mão e apertou-a.
— Sem a Espada da Verdade, não podemos matar o
Inominável. E, a não ser que consigamos encontrar a
segunda joia, não o poderemos subjugar, mas talvez
consigamos reunir um exército grande o suficiente para o
afastar.
— Como? — Margret estava desolada. — Quem nos irá
ajudar agora?
Ead levantou-se, puxou Margret para que ficasse de
pé, e prostraram-se ambas ao luar, rodeadas de neve
manchada de vermelho.
— Tenho de falar com Sabran — disse Ead. — Está na
altura de abrir outra porta.
56
Oeste

Loth tinha passado a manhã a escrever para o


Conselho das Virtudes, relatando a iminente ameaça e
convocando-os para Ascalon. Foi um processo exaustivo,
mas com Seyton Combe livre e encarregado de construir
um caso contra Igrain Crest, parte do fardo tinha sido
aliviado.
À tarde, Sabran juntou-se a ele. Uma pomba pousou
no seu antebra­ço, arrulhando. As suas penas malhadas
identificavam-na como vinda de Mentendon.
— Recebi uma resposta da Grã-Princesa Ermuna —
disse ela, colo­cando a carta na mesa. — Exige justiça
pela execução ilegal da senho­ra Truyde. Além disso,
culpa-me por ter negado o perdão ao Doutor Niclays Roos
por tanto tempo, agora que ele foi raptado por piratas.
Loth desdobrou a carta, selada com o emblema da
Casa de Lievelyn.
— A única justiça que posso oferecer a Truyde é Igrain
Crest — disse Sabran, abrindo as portas da varanda. —
Quanto a Roos... Eu devia ter cedido há muito tempo.
— Roos era um vigarista — disse Loth. — Ele merecia
ser punido.
— Não de forma tão extrema — respondeu Sabran.
Loth sentiu que não havia nada que pudesse dizer
para impedi-la. Ele nunca gostara do alquimista.
— Felizmente — disse Sabran —, dada a urgência do
meu pedido, Ermuna concordou em revistar a Biblioteca
de Ostendeur em busca de conhecimento sobre o reinado
da Imperatriz Mokwo. Enviou um dos seus criados para
procurar os registos e enviará outra mensagem quando
os tiver.
— Ótimo — disse Loth.
Sabran ergueu o braço, e a pomba voou para longe.
— Sab — chamou Loth.
Ela olhou para ele.
— Crest disse-me uma coisa — disse Loth. — Sobre...
o porquê de ter providenciado para que a tua mãe
morresse.
— Conta-me — pediu Sabran.
Loth deixou-a absorver a informação por um
momento, evitando pensar na expressão de desdém de
Crest durante o interrogatório, na sua completa falta de
remorsos.
— Ela disse que a Rainha-Mãe cometeu adultério com
um corsário, Capitão Gian Harlowe. — Hesitou. — O caso
começou um ano antes de ela engravidar de ti.
Sabran fechou as portas da varanda e sentou-se à
cabeceira da mesa.
— Então — disse ela —, posso ser uma bastarda.
— Crest achava que sim. Foi por isso que teve um
papel tão importan­te na tua educação. Queria moldar-te
numa rainha mais virtuosa.
— Uma rainha mais obediente. Um fantoche — disse
Sabran, secamente — para ser manipulado.
— O Príncipe Wilstan pode ter sido teu pai. — Loth
colocou a mão sobre a dela. — O caso com Harlowe pode
nem sequer ter existido. Crest claramente não está no
seu juízo perfeito.
Sabran abanou a cabeça.
— Parte de mim sempre soube. Os meus pais eram
amorosos em público, mas frios em privado. — Apertou a
mão dele. — Obrigada por me contares, Loth.
— Claro.
Silenciosamente, a rainha alcançou a sua pena de
cisne. Loth massa­jou a rigidez do seu pescoço e
continuou o trabalho.
Era pacífico estar a sós com ela. Deu por si a olhar
para a sua amiga de infância, refletindo.
Sabran apaixonara-se por Lievelyn e virara-se para
Ead em busca de conforto após a sua morte? Ou o
casamento com Lievelyn fora por con­veniência, e Ead era
a verdadeira raiz do seu coração? Talvez a verdade
estivesse algures no meio.
— Tenho uma ideia — disse Sabran. — Fazer de
Roslain a nova Duquesa da Justiça. Ela é a herdeira
aparente.
— Será sensato? — Quando ela continuou a
escrever, Loth disse. — Sou amigo de Roslain há muitos
anos. Conheço a sua devoção por ti, mas podemos ter a
certeza da sua inocência nisto tudo?
— Combe está convencido de que ela agiu apenas
para me salvar a vida. Os seus dedos quebrados são
evidência da sua lealdade. — Voltou a mergulhar a pena
no tinteiro. — A sua avó irá perder a cabeça. Ead pode
ter-me aconselhado a seguir o caminho da compaixão no
passado, mas se demonstrar demasiada compaixão,
passarei por tola.
Passos aproximaram-se do lado de fora da câmara.
Sabran ficou tensa ao ouvir o ruído das partasanas a
entrechocar.
— Quem vem lá? — gritou.
— A senhora Stillwater, Vossa Majestade. — Foi a
resposta. A rainha relaxou.
— Mandai-a entrar.
A senhora Nelda Stillwater entrou na Câmara do
Conselho, usando a corrente de rubi do seu ofício.
— Vossa Graça — disse Sabran.
— Majestade. Lorde Arteloth. — A Duquesa da Bravura
fez uma reverência. — Acabei de ser libertada da Torre
Dearn. Quis vir pessoalmente para vos contar sobre a
minha raiva por uma duquesa do Conselho se ter
levantado contra vós. — O seu rosto estava tenso. —
Sempre vos fui leal.
Sabran acenou graciosamente com a cabeça.
— Obrigada, Nelda. Alegra-me muito que tenhais sido
libertada.
— Em nome do meu filho e da minha neta, devo
também pedir a vos­sa compaixão para com a senhora
Roslain. Ela nunca disse uma palavra de traição na minha
presença e não imagino que vos deseje mal algum.
— Tende por certo que a senhora Roslain será julgada
com justiça.
Loth assentiu. A pequena Elain, que tinha apenas
cinco anos, devia estar preocupada com a sua mãe.
— Obrigada, Majestade — disse Stillwater. — Confio no
vosso veredicto. O Lorde Seyton também me pediu para
vos dizer que a senhora Margret e a senhora Eadaz
chegaram ao Porto Estival ao meio-dia.
— Tomarei providências para que lhes seja dito que
se apresentem na Câmara do Conselho assim que
chegarem ao palácio.
Stillwater fez uma nova vénia e saiu pela porta.
— Parece que o Lorde Seyton já retomou o seu papel
de espião-mestre — disse Loth.
— De facto. — Sabran voltou a pegar na pena. — Tens
a certeza de que ele não fazia ideia de toda esta
tramoia?
— Certeza é uma palavra perigosa — disse Loth —,
mas estou tão cer­to quanto posso estar de que tudo o
que ele faz, fá-lo pela coroa, e pela rainha que a carrega.
Por mais estranho que pareça, confio nele.
— Mesmo que te tenha enviado para o exílio. Mas, se
não fosse por ele, o Lorde Kitston ainda estaria vivo. —
Sabran olhou-o nos olhos. — Ainda posso despojá-lo dos
seus títulos, Loth. Tudo o que tens de fazer é pedir.
— O Cavaleiro da Bravura ensina a compaixão assim
como o perdão — disse Loth suavemente. — Prefiro
seguir os seus preceitos.
Sabran acenou ligeiramente com a cabeça e voltou à
sua carta.
Era já meio da tarde quando um tumulto lá fora,
abaixo da torre, fez Loth erguer a cabeça. Dirigiu-se à
varanda e inclinou-se sobre a balaus­trada. No pátio, pelo
menos cinquenta pessoas, que pareciam pequenas como
insetos à distância, haviam-se reunido no Jardim do
Relógio de Sol e o grupo crescia cada vez mais.
— Acho que Ead voltou — disse Loth, sorrindo. — Com
um presente.
— Um presente?
Loth já estava a sair da Câmara do Conselho. Um
instante depois, Sabran estava ao seu lado, seguida
pelos Cavaleiros do Corpo.
— Loth — disse ela, rindo-se. — Que presente?
— Verás.
O sol brilhava lá fora, frio, e Margret e Ead estavam
no meio de uma multidão. Tinham Aralaq ao lado,
olhando para os curiosos com certo aborrecimento.
Quando Sabran apareceu, Ead fez uma reverência, e toda
a corte a imitou.
— Majestade.
— Senhora Nurtha — respondeu Sabran, erguendo as
sobrancelhas.
Ead ergueu a cabeça e sorriu.
— Minha senhora, encontrámos esta nobre criatura
em Goldenbirch, nos terrenos da Casa de Berethnet. —
Pousou a mão sobre o ichneu­mon. — Este é Aralaq,
descendente do ichneumon que levou a Rainha Cleolind
até Inys. Veio prestar lealdade a Sua Majestade.
Aralaq observou a rainha com os seus grandes olhos
de borda preta. Sabran ficou a olhar para aquela criatura
miraculosa diante dela.
— Bem-vindo a esta corte, Aralaq — disse, baixando a
cabeça —, assim como foram os teus antepassados antes
de ti.
Aralaq respondeu baixando a cabeça, quase tocando
na relva com o focinho. Loth observou como os rostos
das pessoas se transformavam. Para os cortesãos, aquilo
apenas confirmava a divindade de Sabran.
— Proteger-vos-ei como se fôsseis a minha própria
cria, Sabran de Inys — respondeu Aralaq com a sua voz
estrondosa —, pois sois san­gue do Rei Galian,
exterminador do Inominável. Contais com a minha
lealdade.
Quando Aralaq roçou a palma da mão de Sabran com
o focinho, os cortesãos observaram a sua rainha e aquela
criatura lendária com reverência. Sabran acariciou-o
entre as orelhas e sorriu como não fazia desde a infância.
— Mestre Wood — chamou, e um escudeiro com
sardas reagiu com uma reverência —, certificai-vos de
que Aralaq seja tratado como nosso irmão em Inys.
— Sim, Majestade — disse Wood, e a sua maçã de
Adão balançou-lhe no pescoço. — Posso perguntar... o
que come o senhor Aralaq?
— Wyrms — disse Aralaq.
Sabran riu.
— Estamos um pouco escassos de wyrms por aqui,
mas temos muitas víboras. Consultai o cozinheiro. Mestre
Wood.
Aralaq lambeu as patas. Wood parecia nervoso.
Sabran voltou para a sombra da Torre de Alabastro. Ead
falou com o ichneumon, que a acariciou com o focinho.
Loth abraçou a irmã.
— Como estão os nossos pais? — perguntou ele.
Margret suspirou.
— O papá está a perder a cabeça. A mamã está feliz
por eu me casar com o Lorde Morwe. Deves visitá-los
assim que possível.
— Encontraram a espada Ascalon?
— Sim — disse, mas não havia alegria na sua voz. —
Loth, lembras-te daquela toca onde entrei quando era
criança?
Ele recordou.
— A aposta estúpida que fizemos quando éramos
miúdos? Na floresta de Haithwood. Sim. E depois?
Ela segurou-lhe no braço.
— Vem, irmão. Vou deixar que seja Ead a contar-te a
triste história.
Quando regressaram juntos à Câmara do Conselho e
as portas se fecharam atrás deles, Sabran virou-se para
Ead. Margret tirou o chapéu e sentou-se.
— Trouxeram um presente inesperado — disse Sabran,
apoiando as mãos no encosto da cadeira. — Trouxeram
também a Espada da Verdade?
— Encontrámo-la — disse Ead. — Parece que a família
Beck a guar­dou em segredo durante séculos e a
informação passou de herdeiro para herdeiro.
— Isso é absurdo — disse Loth. — O papá nunca teria
escondido essa informação das suas rainhas.
— Ele estava a protegê-la para quando mais
precisássemos, Loth. Ele ter-te-ia contado antes de
herdares a propriedade.
Loth estava atónito. Ead despiu o manto e sentou-se.
— Encontrámos Ascalon numa toca na floresta de
Haithwood — re­velou. — Kalyba apareceu. Seguiu-me
desde Lasia.
— A Dama da Floresta — disse Sabran.
— Sim. Ela roubou-nos a espada.
Sabran cerrou o maxilar. Loth observou a irmã e Ead.
Havia algo estranho nas suas expressões.
Não estavam a contar tudo.
— Suponho que enviar mercenários atrás de uma
feiticeira capaz de mudar de aparência seria
absolutamente inútil — disse Sabran, afundando-se na
cadeira. — Se perdemos Ascalon, e sem garantias de
encontrar a segunda joia, teremos de... preparar-nos para
nos defendermos. No mo­mento em que o Inominável se
erguer, começará uma nova Ascensão das Sombras.
Convocarei o chamamento sagrado às armas, para que o
Rei Raunus e a Grã-Princesa Ermuna estejam prontos
para a batalha.
O seu tom era neutro, mas a perturbação podia ser
vista nos seus olhos. Tinha mais tempo para se preparar
do que Glorian, a Destemida, de dezasseis anos e febril
no início da primeira Ascensão das Sombras, mas talvez
fosse apenas uma questão de semanas. Ou de dias.
Ou de horas.
— Precisarás de algo mais para preparar o Reino das
Virtudes, Sabran — disse Ead. — Precisarás de Lasia.
Precisarás do Ersyr. Precisarás de todos aqueles que
possam empunhar uma espada neste mundo.
— Os outros soberanos não quererão fazer negócios
com o Reino das Virtudes.
— Então tens de realizar um gesto para mostrar o
amor e o respeito que nutres por eles — disse Ead —,
retirando a proclamação secular de que todas as outras
religiões são heresias. Alterando a lei para permitir que
pessoas com valores diferentes possam viver em paz nos
teus reinos.
— É uma tradição milenar — respondeu Sabran. — O
próprio Santo escreveu que todas as outras fés são
falsas.
— Apenas porque algo tem sido feito desde sempre
não significa que tenha de continuar a ser feito.
— Estou de acordo — disse Loth, sem sequer pensar.
As três mulheres olharam para ele, Margret com as
sobrancelhas levantadas. — Eu acredito que isso nos
ajudaria — reconheceu, embora a sua fé soltasse um
grunhido de protesto no seu interior. — Durante a
minha... aventura, soube o que era ser um herege. Era
como se toda a minha existência estivesse ameaçada. Se
Inys pode ser o primeiro reino a deixar de usar essa
palavra, acredito que teremos feito um grande serviço a
este mundo.
Um momento depois, Sabran assentiu.
— Vou apresentar a ideia ao Conselho das Virtudes —
disse ela —, mas mesmo que os soberanos do Sul se
unam à nossa causa, não vejo como isso nos pode
ajudar. Yscalin tem o maior exército do mundo, e estará
contra nós. A humanidade não tem a força necessária
para resistir ao fogo.
— A humanidade precisará de ajuda — disse Ead.
Loth balançou a cabeça, confuso.
— Diz-me — prosseguiu Ead, sem se explicar —,
tiveste notícias da Grã-Princesa Ermuna?
— Sim — disse Sabran. — A esta altura, já terá a data.
— Ótimo. O Inominável surgirá do Abismo nesse dia, e
mesmo que não possamos combinar espada e joias,
devemos estar lá para o repelir enquanto ainda estiver
fraco.
Loth franziu a testa.
— Para onde? E como?
— Para lá do mar de Halassa, ou através do Portão de
Ungulus. Se o mal deve existir, que não seja no nosso
seio. — Ead olhou fixamente para Sabran. — Não
podemos realizar nenhum destes planos sozinhos.
Sabran recostou-se na cadeira.
— Queres dizer que precisamos de pedir ajuda ao
Oriente. Como a senhora Truyde queria.
Seria o fim de um isolamento secular. Apenas Ead
teria ousado propor isso a uma Berethnet.
— Quando ouvi o plano dela, julguei que a senhora
Truyde era impru­dente e perigosa — disse Ead, com
arrependimento. — Agora, vejo que detinha uma
coragem superior à nossa. Os dragões do Oriente são
feitos de estrelas, e embora possam ou não ser capazes
de destruir o Inominável, os seus poderes, sejam eles
mais ou menos fortes, ajudar-nos-ão a repeli-lo. Para
dividir as forças draconianas, podes também pedir aos
outros sobe­ranos que organizem uma manobra de
distração.
— Talvez estejam dispostos a ajudar — interveio Loth
—, mas os do Oriente não vão querer alianças connosco.
— Seiiki negoceia com Mentendon. E talvez seja do
interesse do Oriente ajudar Inys se lhes fizeres uma
oferta que não possam recusar.
— Esclarece-me, Ead — respondeu Sabran, impassível.
— Que devo oferecer aos hereges do Oriente?
— A primeira aliança na história do Reino das
Virtudes.
Na Câmara do Conselho fez-se um silêncio sepulcral.
— Não — disse Loth, com firmeza. — É demasiado.
Ninguém te apoiaria. Não o Conselho das Virtudes, não o
povo, não eu.
— Acabaste de defender que deixemos de pensar que
todos os outros são hereges — respondeu Margret,
cruzando os braços. — Bateste com a cabeça nos últimos
minutos e eu não reparei, irmão?
— Referia-me às pessoas deste lado do Abismo. No
Oriente adoram os wyrms. Não é a mesma coisa, Meg.
— Os dragões do Oriente não são nossos inimigos,
Loth. Eu também pensei que fossem — disse Ead —, mas
não entendia a base da dualida­de do nosso mundo. Eles
são de natureza oposta às bestas de fogo como Fýredel.
Loth resfolegou.
— Começas a parecer um alquimista. Alguma vez
viste um wyrm oriental?
— Não — disse, levantando uma sobrancelha. — E tu?
— Não preciso de conhecer um para saber que
obrigaram o Oriente a curvar-se perante eles. Não me
ajoelharei no altar da heresia.
— Talvez não sejam obrigados a venerá-los — propôs
Margret. — Talvez partilhem um respeito mútuo com os
povos do Oriente.
— Ouves-te a ti própria, Margret? — Loth estava
horrorizado. — São wyrms.
— O Oriente também teme o Inominável —
argumentou Ead. — Todas as nossas religiões concordam
que ele é o inimigo.
— E o inimigo do nosso inimigo é um potencial amigo
— acrescentou Margret.
Loth mordeu a língua. Se os alicerces da sua fé fossem
novamente atacados, poderiam ruir.
— Não sabes o que me pedes, Ead — disse Sabran,
com uma voz que parecia pesar-lhe. — Mantivemo-nos
afastados do Oriente por causa da sua heresia, sim, mas
tanto quanto sei, foi o Oriente que fechou a porta pri­‐
meiro, com medo da peste. Não serei capaz de os
convencer a juntarem-se a nós sem lhes fazer uma oferta
muito generosa em troca.
— A derrota do Inominável será benéfica para todos —
observou Ead. — O Oriente não foi poupado pela
Ascensão das Sombras, e não será poupado do resto.
— Mas eles podem ter mais tempo para se preparar
enquanto nós vamos diretos para o massacre —
contrapôs Sabran.
Um pássaro pousou lá fora. Loth olhou para a varanda,
esperando ver um pombo-correio com uma carta, mas
era apenas um corvo.
— Eu disse-te que nem mesmo os outros países do
Reino das Virtudes viriam em auxílio de Inys se as suas
próprias costas fossem atacadas — insistiu Sabran,
demasiado concentrada na conversa com Ead para ver o
pássaro. — E isso pareceu surpreender-te.
— De facto.
— Bem, não deverias estar surpreendida. A minha avó
disse uma vez que quando um lobo chega à cidade, a
primeira coisa com que o pastor se preocupa é com o seu
próprio rebanho. Se o lobo cravar os dentes noutras
ovelhas, o pastor sabe que um dia virá atrás das suas,
mas agarra-se à esperança de o conseguir afugentar. Até
que encontra o lobo à sua porta.
Loth pensou que aquelas poderiam muito bem ter sido
as palavras da Rainha Jillian. Era sabido que ela sempre
insistira na necessidade de alianças mais fortes com o
resto do mundo.
— É assim — concluiu Sabran — que a humanidade
tem existido desde a Ascensão das Sombras.
— Se os governantes do Oriente tiverem um pingo de
inteligência en­tre eles, verão a necessidade de
cooperação — insistiu Ead. — Eu tenho fé nos pastores,
mesmo que a Rainha Jillian não tivesse.
Sabran olhou para a sua própria mão direita, aberta
sobre a mesa. A mão que outrora detivera um anel com
um nó do amor.
— Ead, gostaria de falar contigo a sós. — Levantou-se.
— Loth, Meg, por favor certifiquem-se de que a
convocatória para o Conselho das Virtudes é feita
imediatamente. Preciso que todos compareçam para
discutirmos o nosso futuro.
— Claro — disse Margret.
Sabran saiu da Câmara do Conselho com Ead. Quando
as portas se fecharam, Margret olhou para Loth com uma
expressão que o irmão reconheceu das suas aulas de
música. Era o mesmo olhar que ela lhe lançava sempre
que ele errava uma nota.
— Espero que não tenhas intenção de te opor a este
plano.
— Ead é louca por sequer o insinuar — murmurou
Loth. — Uma aliança com o Oriente é uma desgraça
certa.
O corvo levantou voo novamente.
— Não sei. — Margret pegou numa pena e aproximou
o tinteiro. — Talvez os seus dragões não sejam de todo
como os wyrms. Ultimamente sinto-me compelida a
questionar tudo o que sei.
— Não devias questionar, Meg. A fé é um ato de
confiança no Santo.
— Não questionas nada?
— Claro que questiono. — Esfregou a testa com uma
mão. — E todos os dias tenho medo de ser condenado
por o fazer. Temo que não haja lugar para mim em
Halgalant.
— Loth, sabes quanto eu te amo, mas o senso comum
que possuis na cabeça caberia num dedal.
Loth franziu os lábios.
— E tu, suponho, albergas toda a sabedoria do mundo.
— Nasci sábia — respondeu Magret, segurando no
pergaminho.
— Que mais aconteceu em Goldenbirch?
Margret deixou de sorrir.
— Amanhã conto-te. E recomendo que tenhas uma
boa noite de sono antes de ouvires, porque a tua fé será
novamente posta à prova. — Gesticulou com a cabeça na
direção da pilha de cartas. — Apressa-te, irmão! Tenho de
levar estas cartas todas ao Mestre dos Correios.
Loth fez o que a irmã lhe disse. Às vezes,
perguntava-se porque é que o Santo não fizera de
Margret a mais velha.

***

A noite caíra em Ascalon. Metade dos Cavaleiros do


Corpo seguiu Ead e Sabran até ao Jardim Real, mas a
rainha ordenou-lhes que esperassem fora dos portões.
Apenas as estrelas as conseguiam ver na escuridão,
através da neve. Ead lembrou-se de quando percorrera
aqueles caminhos com Sabran, em pleno verão. A
primeira vez que haviam ido passear sozinhas.
Sabran, a descendente de Kalyba. Kalyba, a
fundadora da Casa de Berethnet.
O pensamento atormentara-a durante o caminho de
regresso de Caliburn do Mar. Atormentara-a enquanto
cavalgavam em busca de Aralaq. O segredo que dividira
o Priorado durante séculos.
Sob um feitiço, Galian Berethnet deitara-se com uma
mulher que outrora vira como mãe e engravidara-a.
Construíra a sua religião como um muro para esconder a
sua vergonha. E para salvar o seu legado, não vira outra
saída que não santificar a mentira.
A tensão que Sabran emitia era como o calor de uma
chama. Quando chegaram ao cimo da fonte, com os seus
remoinhos gelados, ficaram frente a frente.
— Compreendes o que pode significar uma nova
aliança? — Ead esperou que Sabran terminasse. — Não
te esqueças de que o Oriente já tem armas e dinheiro.
Posso dar-lhes mais, mas lembra-te do que te disse. As
alianças sempre foram forjadas através do casamento.
— No passado, as alianças também se forjavam sem
casamento.
— Esta aliança é diferente. Deve servir para unir duas
religiões que estão afastadas há séculos. Se unires dois
corpos, unes dois reinos. É por isso que nós, soberanos,
casamos: não por amor, mas para dar força às nossas
dinastias. É assim que o mundo funciona.
— Não tem de ser assim. Experimenta, Sabran. Muda
o estado das coisas.
— Falas como se nada pudesse ser mais fácil — disse
Sabran, abanan­do a cabeça. — Como se os costumes e
as tradições não tivessem lugar no mundo. São
precisamente eles que o moldam.
— Mas é fácil. Há um ano, não terias acreditado que
se podia amar alguém que consideravas herege. — Ead
não desviou o olhar. — Não é verdade?
Sabran suspirou, levantando uma nuvem de vapor
branco entre elas.
— Sim, é verdade.
Os cristais de neve agarravam-se-lhe às pestanas e ao
cabelo. Saíra precipitada, sem capa, e agora cobria o
corpo com os braços para se aquecer.
— Tentarei — acedeu ela. — Irei... apresentá-la como
uma mera aliança militar. Estou decidida a reinar sem
consorte, como sempre dese­jei. Já não sou obrigada a
casar e a conceber uma filha. Mas se é costume no
Oriente, como é aqui...
— Pode não ser costume lá — disse Ead, e fez uma
pausa. — Mas se for... talvez devesses reconsiderar a tua
decisão de permanecer solteira.
Sabran ficou a olhar para ela. Ead sentiu um nó na
garganta, mas não desviou o olhar.
— Porque falas assim? — disse Sabran em voz baixa.
— Sabes que nunca quis casar e não tenho pretensão de
o voltar a fazer. Além disso, só te amo a ti. Não amo mais
ninguém.
— Mas enquanto governares, não poderás ser vista
comigo. Sou uma herege, e...
— Para — disse Sabran, abraçando-a. — Para.
Ead puxou-a para junto do seu corpo e respirou o
seu aroma. Fundiram-se num só, deixando-se cair num
escano de mármore.

— Sabran a Sétima, minha homónima, apaixonou-


se pela sua Dama do Leito Real — murmurou Sabran. —
Depois de ela ter abdicado em favor da filha, viveram
juntas até ao fim dos seus dias. Se derrotarmos o
Inominável, terei cumprido a minha missão.

— E eu a minha — disse Ead, cobrindo o corpo de


ambas com o seu manto. — Talvez então possa levar-te
comigo.
— Para onde?
Ead beijou-a na têmpora.
— Algures.
Era outro sonho selvagem, mas, por um momento,
permitiu-se sonhar.
Uma vida com Sabran a seu lado.
— Tu e a Meg estavam a esconder-me algo — disse
Sabran. — Que aconteceu em Goldenbirch?
Ead demorou a responder.
— Uma vez perguntaste-me se eu sabia quem tinha
sido a primeira rainha de Inys, se não tinha sido Cleolind.
Sabran olhou para cima.
— A minha mãe sempre disse que era melhor
receber más notícias no inverno, quando tudo já está
escuro. Assim, com a primavera, a cura pode chegar —
disse ela, enquanto Ead procurava as palavras certas. —
E, particularmente nesta primavera, deverei estar em
plenitude de forças.
Ao ver aqueles olhos, os olhos da bruxa, Ead soube
que não podia continuar a esconder-lhe a revelação.
Após oito anos de mentiras, devia a Sabran aquela
verdade.
E, sob as estrelas, concedeu-lha.
57

Oeste

Num cofre subterrâneo do Palácio de Ascalon, uma


assassina de sangue nobre aguardava a sua execução.
Sabran, que não se mos­trara sedenta de sangue em
todos os anos em que Loth a conhecera, decidira que
queria que Crest morresse afogada e depois
esquartejada, mas os outros Duques Espirituais tinham-
na avisado que, nestes tempos conturbados, isso iria
perturbar o povo. Era melhor fazê-lo rapidamente e em
silêncio.

Depois de passar a noite a pensar, andando de um


lado para o outro, Sabran acabou por ceder. Decapitaria
Crest e fá-lo-ia em privado, ape­nas com um punhado de
testemunhas.

Crest não mostrou remorso àqueles que foram vê-la


morrer. Roslain estava de pé num lado da sala, com um
toucado de luto sobre o seu ca­belo. Loth sabia que não
iria chorar a morte da sua avó, mas choraria a traição
que manchara o nome da sua família.
O Lorde Calidor Stillwater segurou-a pela cintura,
tentando confortá-la. Viera do Castelo de Cordain, lar da
família Crest desde os tempos antigos, para estar com
ela no seu momento de dor.
Loth estava ao seu lado, de braço dado com Margret.
Sabran estava logo atrás, usando o colar que a mãe lhe
oferecera no seu décimo segun­do aniversário. Não era
costume os membros da família real assistirem às
execuções, mas Sabran teria achado cobarde não o fazer.
Foi instalado um estrado baixo, coberto com um
pano escuro. Quando o relógio bateu as dez, Crest
levantou o rosto para a luz.
— Não peço complacência, nem perdão — disse. —
Aubrecht Lievelyn era um pecador e um verme. Rosarian
Berethnet era uma me­retriz, e Sabran Berethnet é uma
bastarda que nunca terá uma filha. — Olhou para Sabran.
— Ao contrário dela, eu cumpri o meu dever. Dei-te um
castigo justo. Irei de bom grado para Halgalant, onde o
Santo me acolherá.
Sabran não respondeu às suas provocações, mas
adotou uma expressão gelada.
Um primo de Roslain, também vestido com um
toucado de luto, reti­rou o manto e o selo dos dedos de
Crest e vendou-lhe os olhos. O carrasco ficou ao seu lado,
com uma mão no cabo do machado.
Igrain Crest ajoelhou-se perante a pedra, com as
costas bem direitas, e fez o sinal da espada na testa.
— Em nome do Santo — disse —, morro.
Com essas palavras, baixou o pescoço e encostou-o à
pedra. Loth pensou mais uma vez na Rainha Rosarian,
que não gozara de tal con­sideração na hora da sua
morte.
O carrasco levantou o machado. Quando caiu, caiu
também a cabeça da Copeira.
Ninguém fez barulho. Um criado pegou na cabeça
pelos cabelos e ergueu-a para que todos os presentes a
vissem. O sangue nobre do Cavaleiro da Justiça pingou
na pedra, e outro criado recolheu-o para uma taça.
Quando o corpo estava a ser coberto e retirado do
estrado, o primo de Roslain aproximou-se dela e esta
separou-se do seu companheiro.
O selo de família era normalmente usado na mão
direita, mas o médi­co pusera-lhe uma tala. Roslain
estendeu a mão esquerda e o seu primo pôs-lhe o anel.
— Aqui tendes, Vossa Graça, senhora Roslain Crest,
Duquesa da Justiça — disse o oficial de justiça. — Que
sejais correta na vossa conduta, agora e sempre.

***

Igrain Crest estava morta. A sombra da Copeira nunca


mais escureceria o Rainhado de Inys.
Sabran sentou-se na sua cadeira favorita na Câmara
Privada. Um relógio iluminado fazia o tiquetaque sobre a
lareira.
Mal tinha dito uma palavra desde que Ead lhe contara
sobre Kalyba. Assim que terminara a história, Sabran
convidara-a a entrar e passaram o resto da noite atrás
das cortinas da sua cama. Ead abraçou-a em silên­cio,
enquanto ela olhava para o dossel.
Agora, parecia obcecada com as suas próprias mãos.
Ead viu-a tocar nos nós dos dedos, nas pontas dos dedos,
esfregar o rubi do seu anel de coroação.
— Sabran — disse Ead —, não há vestígios do seu
poder em ti.
Sabran apertou o maxilar.
— Se eu carrego o seu sangue, posso usar a joia
minguante — disse. — Parte dela vive em, mim.
— Sem o pó de estrelas ou o fruto da laranjeira, não
podes usar ne­nhum dos dois tipos de magia. Não és uma
maga — disse Ead —, e não te vais transformar num
wyrm.
Sabran continuava a arranhar a pele com as unhas.
Ead estendeu o braço e segurou-lhe a mão.
— No que estás a pensar?
— Que possivelmente sou uma bastarda. Que
descendo de um menti­roso e da Dama da Floresta, a
mesma mulher que me roubou a infância, e que
nenhuma casa real digna poderia ser construída sobre
tais fun­damentos. — O seu cabelo era uma cortina entre
as duas. — Que não passo de uma fraude.
— A Casa de Berethnet fez muitas coisas boas. A sua
origem não tem nada que ver com isso. — Ead não soltou
a mão dela. — Quanto a seres uma bastarda ou não...
Isso significa que o teu pai está vivo. Não é algo bom?
— Eu não conheço Gian Harlowe. O meu pai, para
todos os efeitos, foi o Lorde Wilstan Fynch — disse
Sabran em voz baixa —, e está mor­to. Tal como a minha
mãe, tal como Aubrecht, e todos os outros.
A neblina mental, como lhe chamavam em Inys,
apoderara-se dela. Ead tentou massajar-lhe a mão para a
reconfortar, mas não adiantou de nada.
— Ainda não entendo porque me espetou com os seus
espinhos — disse Sabran, tocando na barriga com a outra
mão. — Se diz a verdade, sentiria amor pela sua filha,
Sabran a Primeira. Eu sou sangue do seu sangue.
O espinho tinha desaparecido. Segundo o médico que
o tinha retira­do, só restava uma mecha de cabelo.
— Kalyba tem-se afastado da sua faceta humana. Tu
és sangue do seu sangue, mas o vosso vínculo não é
forte o suficiente para que ela sinta algo por ti. Tudo o
que ela quer é o teu trono — disse Ead. — Talvez nunca a
compreendamos. O importante é que ela está do lado do
Inominável, e isso torna-a nossa inimiga.
Bateram à porta. Um Cavaleiro do Corpo entrou,
vestido com a sua armadura prateada.
— Majestade — disse, fazendo uma reverência —,
chegou agora uma pomba de Brygstad. Uma mensagem
urgente de Sua Alteza Real, a Grã-Princesa Ermuna da
Casa de Lievelyn.
Entregou-lhe a carta e saiu. Sabran quebrou o selo e
virou-se para a janela enquanto lia.
— Que diz? — perguntou Ead.
Sabran inspirou pelo nariz.
— A data é... — A carta caiu, flutuando até ao chão. —
A data é o terceiro dia de... esta primavera.
A ampulheta virara-se. Ead esperara que a notícia a
enchesse de pa­vor, mas em parte já o esperava.
Os mil anos estão quase no fim.
— Neporo e Cleolind devem ter imobilizado o
Inominável seis anos depois da fundação de Ascalon —
disse Sabran, apoiando as mãos na lareira. — Não temos
muito tempo.
— Tempo suficiente para atravessar o Abismo — disse
Ead. — Sabran, tens de enviar rapidamente os teus
embaixadores para o Oriente, para assinarem essa
aliança, e eu tenho de ir com eles. Para encontrar a outra
joia. Pelo menos assim poderíamos prendê-lo novamente.
— Não podemos simplesmente lançar-nos para o
Abismo — respon­deu Sabran. — Primeiro tenho de
escrever aos governantes do Oriente. Os seiikines e os
lacustres executarão qualquer estrangeiro que ponha os
pés nas suas costas. Preciso de pedir permissão para
enviar uma missão diplomática.
— Não tens tempo. A mensagem demoraria semanas
a chegar. — Ead virou-se para a porta. — Zarparei com
um navio rápido e...
— Não te importa a tua própria vida? — Sabran estava
irritada. Ead deteve-se. — Passei semanas a pensar que
estavas morta quando fugiste de Ascalon. Agora queres
atravessar o mar sem proteção, sem o exército, para um
lugar onde a morte ou a prisão podem estar à tua
espera.
— Não seria a primeira vez, Sabran. No dia em que
cheguei a Inys — respondeu Ead, com um sorriso
cansado. — Se sobrevivi uma vez, posso fazê-lo de novo.
Sabran fechou os olhos e ficou de pé, apertando os
punhos contra a lareira.
— Sei que tens de ir — disse. — Pedir-te que fiques
seria como tentar prender o vento numa gaiola, mas, por
favor, Ead, espera. Deixa-me or­ganizar uma missão
diplomática, para que pelo menos não vás sozinha.
Ead agarrou a maçaneta da porta com mais força.
Sabran estava certa. Uns dias de espera seriam tempo
perdido no Oriente, mas também poderiam salvar-lhe a
cabeça.
Virou-se.
— Esperarei.
Nesse momento, Sabran atravessou a sala com os
olhos cheios de lá­grimas e abraçou-a. Ead beijou-a na
têmpora e abraçou-a com força.
Sabran sofrera uma série de golpes duros. A sua
Dama do Leito Real morrera na sua cama, o seu
companheiro nos seus braços, a sua mãe diante dos seus
olhos. A sua filha não chegara a dar o primeiro suspiro. O
seu pai, se é que era seu pai, perecera em Yscalin, longe
dela. Durante toda a sua vida, acumulara perdas. Não
admirava que temesse tanto por ela.
— Lembras-te do primeiro dia em que passeámos
juntas? Falaste-me do pássaro do amor e de como ele
reconhece sempre o canto da sua com­panheira, mesmo
que estejam separados há muito tempo — sussurrou-lhe
Ead ao ouvido. — O meu coração reconhece o teu canto,
tal como o teu reconhece o meu. E eu voltarei sempre
para o teu lado.
— Vou manter-te fiel a essa promessa, Eadaz uq-
Nāra.
Ead tentou memorizar o seu peso, o seu aroma, o
tom exato da sua voz. Para o gravar na sua memória.
— Aralaq ficará para te proteger. Foi por isso que o
trouxe — disse.
Ele é uma besta descarada, mas é leal e capaz de
estripar um wyvern.
— Cuidarei bem dele. — Sabran deu um passo atrás.
— Tenho de me reunir com os Duques Espirituais
imediatamente para discutir a mis­são diplomática. Assim
que o resto do Conselho das Virtudes chegar, levar-lhes-
ei... a Proposta Oriental. Se lhes mostrar a joia
minguante, e explicar o que significa a data, espero que
votem a meu favor.

— Plantarão toda a oposição que puderem — disse


Ead —, mas tu sabes como convencê-los a todos.
Sabran anuiu, determinada. Ead deixou-a a
contemplar a sua cidade. Desceu um lanço de escadas e
chegou à galeria aberta que dava para o Solário Real,
que tinha doze pequenas varandas com flores de
inverno. Enquanto caminhava para a porta dos seus
aposentos, ouviu um passo atrás de si, ténue.

Virou-se silenciosamente e, à luz que entrava por


uma janela, viu uma Dama Vermelha. Na sua boca, trazia
uma zarabatana de madeira esculpida.

O dardo trespassou-lhe a blusa antes que Ead


pudesse reagir, e a ponta cravou-se no seu corpo como
uma dentada mortal.

O impacto dos seus joelhos no chão fez tremer


todos os ossos do seu corpo. Levantou uma mão trémula,
levou-a à barriga e sentiu o dardo fino. A sua agressora
aproximou-se e agachou-se.
— Perdoa-me, Eadaz.
— Nairuj — balbuciou Ead.
Sabia que aquele dia chegaria. Uma irmã do Priorado
conseguiria iludir os seus guardas.
O vidro moído estava a instalar-se nas suas veias. Os
seus músculos endureceram à volta do dardo, rejeitando
o veneno.
— Tiveste o bebé — conseguiu dizer.
Olhos cor de ocre olharam para ela.
— Uma menina — disse Nairuj, depois de um
momento de hesita­ção. — Não queria isto, irmã, mas a
Prioresa mandou silenciar-te. — Ead sentiu Nairuj a tirar-
lhe o anel do dedo, o anel que fora o seu sonho. — Onde
está a joia, a joia branca?
Ead não conseguia responder. Começava a perder os
sentidos. Tinha a estranha sensação de que as suas
costelas estavam a desaparecer. Enquanto Nairuj lhe
apalpava a garganta à procura da joia, Ead agar­rou o
dardo da sua barriga e puxou-o para fora.
Estava gelada. Todo o fogo dentro de si estava a
desaparecer, deixando cinzas no seu rasto.
— O Inominável vai... — Até respirar era
agonizantemente doloroso. — Na primavera. O terceiro
dia da primavera.
— Que se passa aqui?
Sabran. O medo era evidente na sua voz.
Nairuj moveu-se como uma flecha. Ead viu, com os
olhos cheios de lágrimas, a sua antiga irmã colocar uma
tira de seda sobre a boca e atirar-se para a balaustrada
mais próxima.
Passos ecoaram pelo corredor.
— Ead... — Sabran segurou-a nos seus braços. — Ead!
— As suas feições estavam cada vez mais confusas. —
Olha para mim. Ead, por favor. Diz-me... diz-me o que te
fizeram. Diz-me que veneno.
Ead tentou falar. Pronunciar o seu nome, mais uma
vez. Dizer que lamentava ter quebrado a sua promessa.
Voltarei sempre para o teu lado.
A escuridão envolveu-a como um casulo. Pensou na
laranjeira. Tu não, Ead. Por favor. A voz soava cada vez
mais longe. Por favor, não me deixes sozinha. Pensou no
que haviam vivido juntas, desde a dança da vela até ao
primeiro toque dos seus lábios.
E depois parou de pensar.
O Sol estava a pôr-se sobre Ascalon. Loth olhou pela
janela para a Torre de Alabastro, à luz das velas, onde o
Conselho das Virtudes debatia a Proposta Oriental.
Ead estava deitada na sua cama. Os seus lábios
estavam tão negros como o seu cabelo, e o seu
espartilho estava aberto, revelando um furo na barriga.
Sabran não saiu do seu lado. Olhava fixamente para
Ead, como se desviar o olhar significasse quebrar o frágil
laço que a mantinha em contacto com a vida. Lá fora,
Aralaq andava de um lado para o outro no Jardim Real.
Foi preciso muita persuasão para o convencer a afastar-
se tempo suficiente para que o médico da corte
examinasse Ead e, mesmo assim, ele cerrou os dentes ao
pobre homem quando este lhe tentou tocar.
O Doutor Bourn movia-se como os ponteiros de um
relógio à volta da cama. Mediu-lhe o pulso, tocou-lhe na
testa, estudou a ferida. Quando finalmente tirou os
óculos, Sabran levantou uma mão.
— A senhora Nurtha foi envenenada — concluiu —,
mas não sei pelo quê. Os sintomas não se parecem com
nada que eu já tenha visto antes.

— Ódio de irmã — disse Loth. — Foi com isso que


dispararam.

Devia causar a morte. Mas, mais uma vez, Ead


vencera o próprio destino.

O médico da corte franziu o sobrolho.


— Nunca ouvi falar de tal veneno, meu senhor. Não
sei como o remover do seu corpo. — Voltou a olhar para
Ead. — Majestade, tenho a impressão de que a senhora
Nurtha foi embalada num sono profundo. Talvez possa
ser acordada de alguma forma. Ou talvez não. Tudo o que
podemos fazer é mantê-la viva o máximo que pudermos.
E rezar por ela.

— Irás despertá-la — murmurou Sabran. —


Encontrarás uma maneira. Se ela morrer...

A sua voz embargou-se, e afundou a cabeça nas


mãos. O médico da corte baixou a cabeça.

— Lamento, Majestade — disse ele. — Faremos


tudo o que pudermos por ela.

Saiu do quarto. Quando a porta se fechou, Sabran


estremeceu.

— Fui amaldiçoada desde o berço. A Dama da


Floresta lançou-me uma maldição — disse ela, sem tirar
os olhos de Ead. — Não só o meu reino está condenado,
como os meus entes queridos caem como rosas no
inverno. E sempre diante dos meus olhos.

Margret, que se encontrava do outro lado da cama,


veio sentar-se ao lado da rainha.
— Não penses nessas coisas. Não estás
amaldiçoada, Sab — disse ela, com uma voz suave, mas
firme. — Ead não está morta, e não a dei­xaremos como
morta. Lutaremos por ela e por tudo aquilo em que ela
acredita. — Olhou para Ead. — E digo-te uma coisa: não
me casarei com Tharian enquanto ela não acordar. Se
pensa que este disparate a vai livrar de me levar ao
altar, está muito enganada.
Loth ocupou o lugar que Margret tinha deixado.
Levantou as mãos, entrelaçadas, e levou-as aos lábios.
Nem mesmo quando estava ferida, em Lasia, Ead lhe
parecera tão vulnerável. Toda a vida, todo o calor,
tinham-na abandonado.
— Irei para o Oriente — disse com voz grave. — Seja
qual for a decisão do Conselho das Virtudes, devo
atravessar o Abismo como teu representante, Sabran.
Para estabelecer uma aliança. Para encontrar a outra
joia.
Sabran ficou em silêncio por um longo tempo. Lá fora,
Aralaq soltou um uivo arrepiante.
— Primeiro quero que te apresentes ao Imperador
Eterno, Dranghien Lakseng — disse Sabran. — Ele não é
casado, por isso temos mais para lhe oferecer. Se for
persuadido a juntar-se a nós, talvez consigas persua­dir o
Senhor da Guerra de Seiiki.
Loth observou-a com o coração apertado.
— Enviar-te-ei com uma coorte de duzentos. Se
quiseres comparecer perante o Imperador Eterno, terás
de mostrar o poder do Rainhado de Inys — acrescentou,
olhando-o nos olhos. — Convocá-lo-ás para se encontrar
connosco no Abismo, com os seus dragões, no terceiro
dia da primavera. Não terás tempo para regressar, nem
para discutir os termos do acordo em Inys. Confio que
selarás essa aliança protegendo os nossos interesses,
para alcançar o resultado que desejamos.
— Fá-lo-ei. Juro-te.
Loth teve a impressão de que aquele quarto já se
transformara numa cripta. Afastou o pensamento da sua
mente, aproximou-se de Ead e acariciou-a, colocando
uma madeixa do seu cabelo atrás da orelha. Em
nenhuma circunstância iria deixar que aquilo se tornasse
numa despedida.
Sabran levantou-se da cadeira com grande dignidade.
— Prometeste que voltarias para o meu lado — disse a
Ead. — As rainhas não se esquecem das suas promessas,
Eadaz uq-Nāra.
Enrijeceu. Loth pegou nela pelo braço e conduziu-a
com gentileza, deixando Margret junto à cama.
Caminhou ao lado da sua rainha. Quando chegaram
ao fim do cor­redor, Sabran foi-se abaixo, por fim. Loth
envolveu-a com os braços en­quanto ela caía no chão,
chorando como se a sua alma lhe tivesse sido arrancada.
V
Venham os Dragões

Quem proferiu a palavra


que o convenceu a empreender esta perigosa
viagem,
nestes mares turbulentos?

— Anónimo, de Man’yōshū
58

Oeste

O Galhardo navegava havia dias, mas pareciam


séculos. Loth perdera a conta. Tudo o que sabia era que
queria sair daquele navio e pôr os pés em terra firme.

Sabran havia defendido ferozmente a chamada


Proposta Oriental. Durante todo aquele tempo, o
Conselho das Virtudes não dormira. A sua principal
preocupação era a forma como o povo de Inys reagiria a
uma aliança com hereges e wyrms, algo que ia contra
todas as suas convicções.
Depois de horas de debate sobre como a justificar do
ponto de vista religioso, depois de várias consultas ao
Colegiado dos Sanctários e de argumentos inflamados a
favor e contra, Sabran conseguiu orientar a votação a
seu favor. E, em menos de um dia, a missão diplomática
estava em marcha.
O plano, desesperado como era, começava a tomar
forma. Para au­mentar as suas hipóteses de vitória no
Abismo, teriam de dividir o Exército Draconiano. Sabran
invocara o sagrado apelo às armas e escrevera aos
governantes do Reino das Virtudes e do Sul, pedindo-lhes
que se juntas­sem a Inys no cerco a Cárscaro, reclamando
o seu território no segundo dia da primavera. Ao
atacarem o único reduto draconiano, talvez
conseguissem manter Fýredel e os seus servos em
Yscalin para o defenderem.
Seria perigoso. Muitos morreriam. Talvez morressem
todos, mas não havia escolha. Tinham de aniquilar o
Inominável assim que ele se er­guesse, ou seria ele a
aniquilar o mundo. Loth preferia morrer com uma espada
na mão.
A sua mãe ficara destroçada ao saber que ele iria
partir novamente, mas pelo menos desta vez pudera
despedir-se. Tanto ela como Margret haviam viajado até
Pedra Alta para se despedirem, tal como Sabran, que lhe
dera o seu anel de coroação para mostrar ao Imperador
Eterno. Loth pendurou-o ao pescoço numa corrente.
A determinação de Sabran era algo de se ver. Temia
claramente a aliança, mas estava disposta a fazer
qualquer coisa pelos seus súbditos. E tinha a sensação
de que aquela era a melhor maneira de fazer algo por
Ead.
Ead. Cada vez que acordava, Loth pensava que a
tinha ali, ao seu lado, naquela viagem.
Bateram à porta. Loth abriu os olhos. — Sim?
A criada de bordo entrou e baixou a cabeça.
— Lorde Arteloth — disse ela —, temos o outro navio à
vista. Estais pronto para partir?
— Já chegámos à Trincheira dos Ossos?
— Sim, meu senhor.
Foi buscar as botas. O novo navio levá-lo-ia ao Império
dos Doze Lagos.
— Claro — disse ele. — Um momento. Não demoro a ir
para o convés.
A jovem fez uma nova vénia e retirou-se. Loth pegou
no seu manto e no seu saco. Os seus guardas
esperavam-no à porta da cabina. Em vez de uma
armadura completa, os Cavaleiros do Corpo que Sabran
lhe tinha emprestado usavam apenas cota de malha por
baixo dos casacos, que ostentavam o emblema real de
Inys. Seguiram Loth até ao convés.
O céu estava salpicado de estrelas. Loth tentou não
olhar muito para a água enquanto se dirigia para a proa
do Galhardo, onde a capitã o esperava de braços
cruzados.
No Abismo, havia muitas coisas que não existiam
noutros mares. Já ouvira histórias de sereias com dentes
como agulhas, de peixes que brilhavam como velas, de
baleias que podiam engolir um navio inteiro. Ao longe,
Loth viu a silhueta enorme de um navio de guerra com
algumas luzes trémulas. Quando se aproximaram o
suficiente para ver a insígnia e a bandeira, levantou as
sobrancelhas.
— O Rosa Eterna.
— Esse mesmo — disse a capitã. Era uma mulher
inysh de constitui­ção robusta e grande estatura. — O
Capitão Harlowe conhece bem as águas do Oriente. Ele
levar-vos-á desde aqui.
— Harlowe — disse um dos Cavaleiros do Corpo. — Ele
não é um pirata?
— Corsário.
O soldado sorriu, malicioso.
O Galhardo estava ao lado do Rosa Eterna, Não havia
âncora no Abismo, por isso ambas as tripulações
lançavam cordas de um navio para o outro, conforme se
deixavam levar pela água negra.
— Demónios me levem se não sois Arteloth Beck —
disse Estina Melaugo com um grande sorriso, batendo
com a mão na amurada. — Pensei que nunca mais vos
veria, meu senhor.
— Boa noite, senhora Melaugo — respondeu Loth,
contente por ver uma cara conhecida. — Oxalá que nos
reencontrássemos num lugar mais acolhedor.
Melaugo estalou a língua.
— Uau, um tipo que desembarca em Yscalin, mas tem
medo do Abismo. Secai os olhos e arrastai o vosso nobre
traseiro até aqui, meu senhor. — Soltou uma escada de
corda e tocou na aba do chapéu. — Obrigada, Capitã
Lanthorn. Harlowe envia os seus cumprimentos.
— Envia-lhe os meus — respondeu a capitã do
Galhardo — e boa sorte nesses mares, Estina. Toma
conta de ti.
— Tomo sempre.
Enquanto a sua gente se reunia ao pé da escada, Loth
subiu. Invejava a Capitã Lanthorn, que mais uma vez se
dirigia para as águas azuis. Quando chegou ao topo,
Melaugo ajudou-o a subir e deu-lhe uma palmadinha nas
costas.
— Todos pensámos que estaríeis morto — disse ela. —
Pela corte de Halgalant... Como escapastes de Cárscaro?
— A Donmata Marosa — respondeu Loth. — Não
poderia ter esca­pado sem a ajuda dela.
Pensar nela causou-lhe um nó na garganta. Talvez já
fosse a Rainha Terrena de Yscalin, e os seus olhos como
cinzas.
— Marosa. — Melaugo arqueou uma sobrancelha
escura. — Bem, não era isso que eu esperava que
dissésseis. Terei de ouvir essa história.
Mas primeiro, o Capitão Harlowe quer ver-vos. —
Silvou para que os piratas reagissem, enquanto os
cavaleiros subiam pela borda carregados com as suas
armas pesadas. — Ajudem os homens do Lorde Arteloth a
subir e a entrar nos seus camarotes! Vamos, mexam-se!
A tripulação obedeceu sem protestar. Alguns até
baixaram a cabeça ao verem Loth enquanto corriam para
ajudar o destacamento de Inys a bordo do Rosa Eterna.
Melaugo levou Loth para o outro lado do convés.
Dentro do seu ca­marote, iluminado pelas velas, Gian
Harlow debruçava-se sobre um mapa com Gautfred
Plume, o contramestre, e uma mulher de rosto pá­lido e
cabelo prateado.
— Ah, Lorde Arteloth — disse ele, o tom um pouco
mais caloroso do que da primeira vez. — Sêde bem-
vindo. Sentai-vos. — Gesticulou para uma cadeira. —
Esta é a minha nova cartógrafa, Hafrid de Elding.
A nortenha pôs uma mão no peito em sinal de
saudação.
— Saúde e felicidade, Lorde Arteloth.
— E para vós, minha senhora — disse Loth, sentando-
se.
Harlowe olhou para cima. Usava um gibão com fechos
de ouro.
— Dizei-me, meu senhor, que achais do Abismo?
— Não me agrada muito.
— Hum. Eu chamar-vos-ia cobarde, mas estas águas
perturbam até os marinheiros mais experientes e, em
todo o caso, ninguém vos pode cha­mar cobarde depois
de vos terdes atirado tão resolutamente para aquele
lugar de perdição. Não vos vou perguntar como
escapastes de Cárscaro. O que um homem faz para
sobreviver é problema seu. Também não vos perguntarei
o que aconteceu ao vosso amigo.
Loth não disse nada, mas o seu estômago revolveu-
se. Harlowe fez-lhe um gesto na direção do mapa.
— Pensei mostrar-vos para onde vamos, para que
possais dizer ao vosso povo, caso comecem a queixar-se
da viagem.
Harlowe inclinou-se sobre o mapa, que mostrava os
três continen­tes conhecidos do mundo e a infinidade de
ilhas que os rodeavam. Descansou um dedo grosso sobre
o lado direito.
— Dirigimo-nos à Cidade das Mil Flores. Para lá
chegarmos, atra­vessaremos o sul do Abismo para
aproveitar os ventos de oeste, o que nos poupará uma ou
duas semanas de viagem. Devemos chegar ao Mar do Sol
Trémulo em três ou quatro semanas. — Esfregou o
queixo. — A partir daí a viagem será mais difícil. Temos
de evitar os navios de guerra seiikines, que veem o Rosa
como inimigo, e os wyrms que foram avista­dos no
Oriente, com Valeysa na liderança.
Loth já vira o suficiente de Fýredel para saber que não
se queria en­contrar com mais nenhum dos seus irmãos.
— O nosso objetivo é um porto protegido na costa
sudoeste do Império dos Doze Lagos. — Harlowe apontou
para o lugar. — Nos tempos an­tigos, havia lá muitas
quintas, onde a Casa de Lakseng fazia comércio antes do
bloqueio naval. Isso foi antes da Ascensão das Sombras,
é claro. Se chegardes a esse porto, estareis a enviar uma
mensagem muito signi­ficativa ao imperador.
— Que queremos reabrir uma porta fechada — disse
Loth. — Que sabeis sobre o Imperador Eterno?
— Quase nada. Que vive num palácio murado, que sai
para os tra­balhos de verão e que é apenas ligeiramente
mais benevolente com os forasteiros do que os senhores
do sal de Seiiki.
— Porquê?
— Porque Seiiki é uma nação insular. Quando a peste
draconiana penetrou, espalhou-se como fogo. Quase
acabou com a sua população. Os lacustres tinham mais
território para onde fugir. Certificai-vos de que o
Imperador Eterno é adequado para ser consorte da
Rainha Sabran, meu senhor. A rainha merece um príncipe
que a queira bem.
Ao falar, um músculo da face de Loth contraiu-se.
Baixou a cabeça e olhou novamente para o mapa, com a
mandíbula tensa, e fez um gesto à sua cartógrafa para
que continuasse o seu trabalho.
— Farei tudo o que puder pela Rainha Sabran,
Capitão Harlowe — espondeu Loth, num tom neutro. —
Pela minha honra.
Harlowe soltou um grunhido de aprovação.
— Tendes um camarote pronto. Se algo atingir o
navio, tentai não vos mijardes todo. Será uma baleia. —
Fez um gesto em direção à porta. — Vinde, Estina. Dai a
este homem algo que beber.
Enquanto saíam da sala de comando, Loth lançou um
último olhar ao Galhardo. Tentou não pensar demasiado
no facto de que agora o Rosa Eterna estava sozinho no
meio do Abismo.
O seu camarote era melhor do que da última vez.
Loth suspeitava de que tinha subido de categoria não
porque a tripulação de repente de­monstrasse respeito
pela sua nobre estirpe, mas porque havia penetrado em
Yscalin e conseguira sair com vida.
E, de facto, conseguira. Partilhou a sua história com
Melaugo, que se sentou no banco da janela e ouviu. Falou
do estado de reclusão da Donmata Marosa e da verdade
sobre o Rei Terreno de Yscalin, e des­creveu o túnel onde
Kit havia encontrado o seu fim. Por lealdade a Ead, saltou
a parte do Priorado da Laranjeira, e, em vez disso, contou
que havia atravessado a Roca e regressado a Inys
atravessando Mentendon. Quando terminou, Melaugo
assentiu.
— Lamento, verdadeiramente. O Lorde Kitston tinha
um bom cora­ção — disse, e deu um gole no seu odre. —
E agora ides para o Oriente. Suponho que já haveis
demonstrado coragem suficiente, mas lá ides en­contrar
muitas dificuldades.
— Pelo que fiz, mereço todos os problemas que me
possam surgir — disse ele, humedecendo os lábios. — Se
Kit está morto, a culpa é minha.
— Não digais isso. Ele decidiu ir convosco. Podia ter
ficado em Yscalin, a bordo do nosso barco, ou até em
casa. — Passou-lhe o odre, e Loth hesitou antes de
aceitar. — Vós ides tentar convencer os povos do Oriente
de que precisam tanto de ajuda do Oeste como nós
precisamos deles, mas eles têm sobrevivido por conta
própria há séculos, e uma aliança com a Rainha Sabran,
que seria um presente para qualquer príncipe no nosso
lado do mundo, talvez não seja tentação suficiente para
o Imperador Eterno. Para nós, ela é uma rainha, mas para
ele, é uma blasfémia. A sua religião baseia-se no ódio aos
dragões, enquanto na religião dele, eles são adorados.
— Não os de fogo. — Loth cheirou o odre. — Esses, no
Oriente, não os adoram.
— Não. Temem o Inominável e os seus da mesma
forma que nós — reconheceu Melaugo —, mas ainda
assim a Rainha Sabran poderá ter de sacrificar alguns
dos seus princípios se quiser obter algum resultado.
Loth bebeu, e imediatamente começou a tossir com o
líquido ardente a sair-lhe pelo nariz. Melaugo riu.
— Tentai de novo — disse. — Na segunda vez passa
melhor.
Ele tentou novamente. A bebida ainda lhe queimava
as bochechas por dentro, mas aqueceu-lhe o estômago.
— Ficai com ela. Precisareis dela no Abismo. —
Levantou-se. — O trabalho chama-me, mas pedirei a um
dos nossos marinheiros lacustres que vos informe sobre
os costumes deles e que vos ensine pelo menos algumas
palavras da sua língua. Não queremos que vos
apresenteis pe­rante Sua Majestade Imperial como um
perfeito idiota.

***

Uma espessa névoa envolvia o Rosa Eterna,


mergulhando-o na escuridão mesmo durante o dia. As
suas lamparinas emitiam uma luz fantasma­górica que se
refletia nas ondas. Para escapar ao frio, Loth ficava no
seu camarote, onde era visitado por um artilheiro
lacustre chamado Thim, encarregado de lhe ensinar o
necessário sobre o Império dos Doze Lagos.
Thim tinha dezoito anos e parecia ter reservas
infinitas de paciência. Falou-lhe do seu país natal, que
estava dividido em doze regiões, cada uma delas com
um dos Grandes Lagos. Era um território vasto que
terminava nos Senhores da Noite Negra, umas
montanhas que bloqueavam o cami­nho para o resto do
continente, sendo a maior delas a implacável mon­tanha
Brhazat. Thim contou a Loth que muitos habitantes do
Oriente tinham tentado escapar da Grande Desolação
atravessando os Senhores da Noite Negra, incluindo a
última rainha de Sepul, mas nenhum deles tinha
regressado. Os corpos congelados ainda jaziam na neve.
O Imperador Eterno dos Doze Lagos era atualmente o
chefe da Casa Real de Lakseng, criado pela sua avó, a
Grande Imperatriz Viúva. Thim explicou-lhe como deveria
curvar-se perante ele, dirigir-se a ele e comportar-se na
sua presença.
Aprendeu que Dranghien Lakseng, embora não fosse
um deus, era praticamente considerado como tal pelo
seu povo. A sua dinastia afir­mava descender do primeiro
humano que tinha encontrado um dragão depois de este
cair do plano celestial. Entre o povo corriam rumores
(que a Casa de Lakseng não negava nem confirmava) de
que alguns soberanos da dinastia tinham sido dragões
que haviam assumido forma humana. O que era certo
era que sempre que um soberano lacustre estava perto
da morte, o Dragão Imperial escolhia um sucessor entre
os seus herdeiros legítimos.
Loth ficou inquieto com a ideia de haver um Dragão
Imperial na corte. Seria muito estranho sentir-se
controlado por um wyrm.
— Essa palavra está proibida — advertiu-lhe Thim,
muito sério, da primeira vez que a usara. — Nós
chamamos os nossos dragões pelo seu nome, e às bestas
aladas do Oeste bestas de fogo.
Loth tomou nota. A sua vida podia depender de tudo o
que aprendesse naqueles momentos.
Quando Thim estava ocupado com outras tarefas, Loth
passava ho­ras a jogar cartas com os Cavaleiros do Corpo
e, às vezes, nas raras horas livres, com Melaugo. Ela
ganhava sempre. Quando a noite caía, tentava dormir,
mas uma vez aventurara-se sozinho no convés, atraído
por uma canção misteriosa.
As lamparinas estavam apagadas, mas as estrelas
emitiam uma luz que quase bastava para ver. Harlowe
estava a fumar um cachimbo na proa, e Loth foi até junto
dele.
— Boa noite, capitão....
— Shh. — Harlowe era uma estátua. — Escutai.
A canção ressoava pelas ondas escuras. Loth sentiu
um arrepio.
— O que é?
— Sereias.
— E não nos atrairão com o seu canto para nos
matar?
— Isso só acontece nas lendas. — Ele soltou uma
baforada de fumo.
— Observai o mar. Elas chamam o mar.
No início, tudo o que Loth viu foi o vazio. Depois, um
raio de luz apa­receu na água, iluminando a superfície. De
repente, viu peixes, dezenas de milhares, com um brilho
iridescente.
Já tinha ouvido histórias sobre a aurora celestial de
Hróth. Mas nunca lhe tinha ocorrido que a pudesse ver
debaixo de água.
— Sabeis, meu senhor — murmurou Harlowe, a luz
reluzindo-lhe nos olhos —, podeis encontrar beleza nos
lugares mais improváveis.
59

Este

O Rosa Eterna rangia, sacudido pelas ondas. A


tempestade desenca­deara uma semana depois de
atravessarem as águas do Mar do Sol Trémulo e não tinha
acalmado desde então.

A água batia no casco com uma força arrepiante,


entre o uivo do vento e o estrondo dos trovões, abafando
os gritos da tripulação, que lutava con­tra a tempestade.
No seu camarote, Loth rezava silenciosamente ao Santo,
de olhos fechados, tentando controlar as náuseas. Uma
outra onda chegou e a lamparina que tinha sobre a
cabeça estalou e apagou-se.

No podia suportar mais. Se fosse morrer naquela


noite, não seria ali. Vestiu o manto, ajustou-o e saiu pela
porta.
— Meu senhor, o capitão ordenou-nos que
ficássemos nos nossos ca­marotes — advertiu um dos
seus guardas.
— O Cavaleiro da Bravura diz-nos para encarar a
morte nos olhos — respondeu ele. — E eu tenciono
obedecer-lhe.
Parecia mais ousado do que se sentia.
Quando saiu para o convés, sentiu o cheiro da
tempestade. O ven­to açoitava-lhe o rosto com força.
Deslizando sobre as tábuas, avançou como pôde até um
dos mastros e agarrou-se a ele, já encharcado até aos
ossos. Um raio explodiu no alto, cegando-o.
— Voltai para o camarote, meu senhor — gritou
Melaugo, com o rosto coberto de fios negros que lhe
escorriam dos olhos. — Ou quereis morrer aqui fora?
Harlowe estava na ponte de comando, a mandíbula
cerrada. Plume estava ao leme. Quando o Rosa Eterna
subiu uma onda colossal, os marinheiros gritaram. Uma
mulher da tripulação tombou de lado e o seu grito
perdeu-se entre os trovões; outro marinheiro perdeu o
apoio e rolou pela coberta. As velas encheram-se e
bateram, distorcendo a ima­gem de Ascalon.
Loth pressionou a face contra o mastro. Aquele navio
parecera-lhe tão sólido ao atravessar o Abismo; agora
sentia como era oco. Tinha sobrevivido à peste, tinha
enfrentado a morte ao encontrar uma cocatriz e, no
entanto, naquele momento tinha a sensação de que
pereceria nas águas do Oriente.
As ondas sacudiam o Rosa Eterna de todos os lados e
o navio balan­çava, batendo na superfície do mar e
encharcando a sua tripulação. O convés estava cheio de
água. A chuva açoitava os marinheiros. Plume girou o
leme com determinação para estibordo, mas era como se
o Rosa tivesse ganhado vida e tomasse as suas próprias
decisões.
O mastro começou a lascar. O vento era demasiado
forte. Loth lançou-se em direção à ponte de comando.
Embora Harlowe estivesse a perder o controlo do navio,
Loth sentia-se muito mais seguro com ele do que em
qualquer outro lugar. Aquele era o homem que tinha
combatido contra um senhor pirata em pleno tufão,
aquele que havia navegado por todos os mares do
mundo conhecido. Enquanto corria, Melaugo gritou-lhe
algo que não conseguiu ouvir.
Uma onda inesperada atingiu o navio e levantou-o
pela proa. A boca e o nariz de Loth encheram-se de água.
Estava ensopado até aos cotovelos. Plume virou o leme
para posicionar o navio de frente, mas de repente o Rosa
inclinou-se quase de lado, e o mastro mais alto roçou as
ondas. Enquanto escorregava pela coberta em direção às
ondas, Loth estendeu a mão à procura de algo para se
segurar, e encontrou o braço magro do carpinteiro, que
se agarrava aos cabos com a ponta dos dedos.
O Rosa endireitou-se. O carpinteiro soltou Loth, que
ficou a tossir e a cuspir água.
— Obrigado — balbuciou Loth. O carpinteiro afastou-o
com um gesto, ofegante.
— Terra à vista! — ouviu-se ao longe. — Terra!
Harlowe ergueu o olhar. Loth piscou os olhos,
limpando-os da água do mar e da chuva, e nesse
momento um relâmpago iluminou novamente o céu.
Através das salpicaduras, viu o capitão a desdobrar o seu
telescópio noturno e a olhar naquela direção.
— Hafrid — gritou —, que é aquilo?
A cartógrafa protegeu o rosto da chuva.
— Tão a sul não deveria haver nada.
— E mesmo assim, está lá. — Harlowe fechou o
telescópio abruptamente. — Senhor Plume, leve-nos até
àquela ilha.
— Se estiver habitada, cortar-nos-ão as gargantas a
todos — respondeu Plume, também aos gritos.
— Então o Rosa sobreviverá, e nós morreremos mais
rapidamente do que morreríamos aqui — disse Harlowe
ao seu imediato. Os seus olhos brilharam com um novo
relâmpago. — Estina, reúne a tripulação!
A comissária de bordo tirou um cachimbo da corrente
de latão que tra­zia ao pescoço e colocou-o entre os
dentes. Um assobio agudo perfurou o ar. Loth agarrou-se
à amurada, vendo as gotas caírem das suas pestanas,
enquanto Melaugo distribuía ordens aos piratas. Eles
moviam-se como se dançassem ao ritmo do apito,
subindo para as cordas e puxando-as en­quanto o navio
abanava sob os seus pés. Para os olhos de Loth, era o
caos, mas logo a ilha se tornou visível, e estava a
aproximar-se. Demasiado perto. Mais assobios, e o barco
dirigiu-se para a costa.
Mas não diminuiu a velocidade.
Harlowe semicerrou os olhos. O seu navio ainda se
aproximava da ilha, mais rápido do que nunca.
— Isto não é natural. A maré não deveria ser tão forte
a ponto de nos atrair desta forma — disse, franzindo a
testa. — Vamos colidir.
Loth limpou a chuva da testa e de repente viu um
lampejo na ilha. Brilhante como um espelho refletindo
um raio de sol.
— Que demónios é aquilo? — disse Plume, fazendo
uma careta ao ver aquele clarão novamente. — Vedes,
capitão?
— Sim.
— Alguém deve estar a fazer-nos sinais — disse
Melaugo, agarrando-se a uma corda ensopada. —
Capitão?
Harlowe permanecia apoiado na amurada, com o
olhar fixo na ilha. Os relâmpagos iluminavam as partes
mais altas da superfície.
— Capitão — gritou o sondador —, dezassete braças
de profundida­de. Estamos rodeados de recifes.
Melaugo foi para um dos lados e olhou pela borda.
— Já vejo. Que a Donzela nos salve. Estão por toda a
parte. — Levou a mão à aba do chapéu. — Capitão,
parece que o navio conhece o ca­minho. Passa por eles
raspando, a um fio das lapas que estão agarradas ao
casco.
Harlowe observou a ilha com o rosto impassível. Loth
fitou-o, à pro­cura de algum sinal de esperança.
— Mudança de planos — ordenou Harlowe. — Soltem
todas as ân­coras e arriem as velas.
— Agora não podemos parar — gritou Plume.
— Podemos tentar. Se o Rosa encalhar, ficará
destruído. E isso não posso permitir.
— Podemos evitar isso. Enfrentar a tempestade...
— Mesmo que de alguma forma conseguíssemos
virar nestes recifes, o vento levar-nos-ia mais para sul,
onde ficaríamos imobilizados e longe do nosso rumo —
rosnou Harlowe. — É assim que desejais morrer, mestre
Plume?
Melaugo trocou um olhar exasperado com Plume
antes de transmitir a ordem à tripulação. Puxaram as
cordas e baixaram as velas. Os ma­rinheiros treparam
para as cordas, calçaram as botas e puxaram a lona com
as mãos nuas. Um deles foi atirado para fora com o
balançar da vela e caiu no convés. Ossos rangeram e o
sangue misturou-se com a água do mar. Com uma calma
invulgar, Harlowe foi para baixo e assu­miu a sua posição
de contramestre ao leme.
Loth ficou imóvel. Tudo o que ele podia sentir era o sal
na sua boca e a queimar-lhe as pálpebras. Quando a
primeira âncora do Rosa se pren­deu no fundo do mar, o
solavanco deslocou todos os seus órgãos.
A tripulação largou a segunda âncora, depois a
terceira. Mesmo as­sim, o navio não abrandou. A sonda
contava as braças de profundidade. As três âncoras não
conseguiram abrandar o navio, e Loth preparou-se para o
impacto.
O trovão ressoou alto. Os relâmpagos encheram o céu
de luz. A úl­tima âncora caiu por entre as ondas, mas a
areia já estava demasiado perto, impossível de evitar.
Harlowe não largou a cana do leme, os nós dos dedos
brancos pela pressão.
Ou era o recife ou a praia. E ao ver o olhar de
Harlowe, Loth sabia que o capitão não arriscaria a
destruição do Rosa Eterna atirando-o contra o recife.
Melaugo apitou. A tripulação abandonou as suas
tarefas e todos agar­raram o que podiam.
O navio rangia debaixo dos seus pés. Loth cerrou os
dentes, à espera de sentir o casco a desfazer-se. O
tremor durou uma eternidade e, de re­pente, o Rosa ficou
imóvel como uma estátua. Tudo o que se podia ouvir era
o bater da chuva contra o convés.
— Seis braças — disse o sondador, arfando.
A tripulação desfez-se em aplausos. Loth pôs-se de
pé, com os joelhos trémulos, e foi até Melaugo. Quando
viu as ondas ao seu redor, ainda a bater contra a borda,
afundou a cabeça entre as mãos e riu como se não
pudesse parar. Melaugo sorriu e cruzou os braços.
— Aí o tendes, senhor. Sobrevivestes à vossa primeira
tempestade.
— Mas como é que parou? — Loth viu o mar agitado
ao seu redor. — Estávamos a ir tão rápido...
— Isso para mim não importa nada. Chamai-lhe um
milagre... do vosso Santo, se quiserdes.
Apenas Harlowe parecia recusar-se a celebrar.
Levantou os olhos e olhou para a ilha, com um tremor na
mandíbula.
Melaugo reparou.
— Capitão, que se passa?
Ele não desviou o olhar da ilha.
— Há muitos anos que sou marinheiro — disse. —
Nunca vi um navio mover-se como o Rosa se moveu.
Como se um deus o empurrasse através da tempestade.
Dava a impressão de que Melaugo não sabia o que
dizer. Ela sacudiu o chapéu encharcado no ar.
— Encontra pólvora seca e prepara-me alguns
exploradores — disse Harlowe. — Assim que tivermos
recolhido o corpo do senhor Lark, ire­mos precisar de
água doce e comida. Desembarcarei com uma pequena
comitiva. Todos os outros, incluindo os da comitiva inysh,
devem ficar e ajudar a reparar o navio.
— Gostaria de ir convosco, se me permitirdes —
propôs Loth. — Perdoai-me, Capitão Harlowe, mas depois
desta experiência, tenho pou­ca vontade de ficar a bordo.
Acredito que seria mais útil em terra.
— Entendo. — Harlowe olhou-o de cima a baixo. —
Sabeis caçar, Lorde Arteloth?
— Certamente. Em Inys, costumava caçar com
frequência.
— Na corte, suponho. E imagino que fosse com arco.
— Sim.
— Bem, receio que aqui não tenhamos arcos. Mas
vamos ensinar-vos a usar uma pistola. — Deu uma
palmadinha no ombro de Loth e come­çou a andar. —
Ainda farei de vós um pirata.

***

O Rosa Eterna ficou ancorado e todas as velas foram


amarradas, mas o vento continuava a balançar o barco
perigosamente. Loth entrou num barco a remo com dois
dos Cavaleiros do Corpo, que se recusaram a levar
pistolas. As suas espadas eram tudo aquilo de que
precisavam num combate.
Loth agarrou a pistola firmemente. Melaugo tinha-lhe
ensinado a carregá-la e a disparar.
A chuva respingava na água ao redor dos barcos.
Remaram sob um arco natural em direção a uma praia,
onde uma montanha selvagem se erguia. Ao se
aproximarem da costa, Harlowe levantou o seu
telescópio.
— Há pessoas — murmurou ele. — Na praia.
Falou com um dos artilheiros noutra língua. A mulher
pegou no teles­cópio das mãos dele e olhou através dele.
— Pode ser a Ilha das Penas, um lugar sagrado onde
se guardam os documentos mais importantes do Oriente
— traduziu Harlowe. Apenas os eruditos lá põem os pés e
não estarão bem armados.
— Ainda assim, estão sujeitos à lei do Oriente — disse
Melaugo, ar­mando a sua pistola. — Para eles, não somos
corsários, Harlowe. Somos piratas malditos, como todos
os que navegam nestas águas.
— Talvez não apliquem a proibição do mar — disse
Harlowe, olhan­do para o seu imediato. — Tens alguma
ideia melhor, Estina?
A artilheira indicou-lhe que baixasse a arma. Melaugo
franziu os lá­bios, mas obedeceu.
Três pessoas aguardavam-nos na praia. Dois homens
e uma mulher vestidos com túnicas de um vermelho
muito escuro, observando-os com cautela.
Atrás deles, estava o que inicialmente Loth pensou ser
os destroços de um navio. Mas então viu que era o
esqueleto de uma enorme besta.
Ocupava quase toda a praia. O que quer que fosse,
em vida, devia ser maior do que uma baleia. Agora que
os ossos estavam limpos, emitiam um brilho iridescente
à luz da Lua.
Loth desembarcou do barco a remos e ajudou os
outros marinhei­ros a chegar à areia, enquanto sacudia a
água dos olhos. Harlowe aproximou-se dos
desconhecidos e inclinou a cabeça. Eles retribuíram o
gesto. Ele conversou com eles por um tempo e depois
voltou ao gru­po de exploradores.
— Os estudiosos da Ilha das Penas ofereceram-nos
abrigo durante a tempestade e permitem-nos abastecer
de água. Só têm espaço para quarenta de nós na sua
casa, mas permitirão que o resto da tripulação durma nos
seus armazéns vazios — disse Harlowe, elevando a voz
para ser ouvido acima do vento. — Tudo isso com a
condição de que não tragamos armas para a ilha e não
toquemos em nenhum dos seus habi­tantes. Eles temem
que possamos espalhar a peste.
— Um pouco tarde para a questão das armas —
observou Melaugo.
— Não gosto disto, Harlowe — disse um dos
Cavaleiros do Corpo. — Acho que devíamos ficar no Rosa.
— E eu digo que não.
— Porquê?
Harlowe olhou-o com aqueles olhos frios, algo
desprezativos. Envolto naquela tempestade, tinha o
aspeto de um caótico deus do mar.
— Eu tinha intenção de carregar provisões em
Kawontay — disse —, mas agora que a tempestade nos
desviou do nosso rumo, ficaremos sem comida antes de
conseguirmos lá chegar. A maior parte da água está suja.
— Desembainhou duas facas de caça. — A tripulação não
vai querer dormir no barco com este mar, e preciso que
eles estejam con­centrados. Vamos deixar guarda, claro
está, e se alguém quiser ficar no Rosa, eu não o
impedirei. Vamos ver quanto tempo leva para decidirem
que não vale a pena beber a própria urina.
Harlowe aproximou-se novamente dos desconhecidos
e deixou as fa­cas e a sua pistola na areia aos pés deles.
Melaugo estalou a língua antes de retirar da sua roupa
uma série de facas e punhais. Os Cavaleiros do Corpo
entregaram as espadas com o mesmo pesar com que uns
pais entregariam o seu recém-nascido. Loth entregou as
suas adagas e a pistola. Os estudiosos observaram-nos
em silêncio. Quando todos estavam desarmados, um dos
homens afastou-se e o grupo de exploradores seguiu-o.
A Ilha das Penas erguia-se imponente diante deles. Os
relâmpagos revelaram os penhascos recortados cobertos
de vegetação, de uma altura imponente. Deixaram a
praia e passaram por outro arco onde havia uma
escadaria esculpida na parede de rocha. Loth esticou o
pescoço, mas não conseguiu ver onde terminava.
Subiram aquela escadaria durante bastante tempo. O
vento uivava à sua volta. A chuva encharcava as suas
botas, tornando cada passo pe­rigoso. Quando chegaram
ao topo, Loth sentiu que os joelhos já não o sustentavam.
O estudioso conduziu-os através da relva e por baixo
das árvores, que gotejavam, até a um caminho ladeado
por lanternas. Lá esperava-os uma casa, situada sobre
uma plataforma elevada, com paredes brancas e telhado
de telhas, apoiada em pilares de madeira. Loth nunca
tinha visto uma casa assim. O estudioso abriu as portas e
descalçou-se antes de entrar. Os recém-chegados
fizeram o mesmo. Loth seguiu Harlowe para o interior da
estrutura fria.
Nas paredes não havia nenhum adorno. Em vez de
tapetes, havia esteiras com um aroma doce. Num buraco
central, uma fogueira ar­dia, rodeada por almofadas
quadradas. O estudioso voltou a falar com Harlowe.
— Aqui é onde ficaremos. Os armazéns estão perto. —
Harlowe exa­minou a sala. — Assim que a tempestade
passar, tentarei convencê-los a vender-nos algum milho.
O suficiente para chegarmos a Kawontay.
— Não podemos dar-lhes nada em troca — disse Loth.
— Eles po­dem precisar do milho para si próprios.
— Nunca sereis um marinheiro se pensardes assim,
meu senhor.
— Não desejo ser marinheiro.
— Claro que não.

***

A escuridão era total. Tané observou o barco inysh


através das janelas abertas da sala de cura.
— Em poucos dias terão partido — murmurou o Ancião
Vara aos outros idosos. — A tempestade não vai durar
muito.
— Vara, irão esvaziar os armazéns — disse o
honrado Ancião Maior, em voz baixa, mas furiosa. — São
centenas deles. Nós podemos sobre­viver por algum
tempo com os frutos da ilha, mas se levarem o arroz e o
milho...
— São piratas — interveio outro ancião. — Talvez não
sejam a Frota do Olho de Tigre, mas nestas águas só há
piratas. É claro que irão levar a nossa comida. Pela força,
se necessário.
— Estes não são piratas — contradisse o Ancião
Vara. — O capitão deles diz que vêm da parte da Rainha
Sabran de Inys. Estão a caminho do Império dos Doze
Lagos. Acredito que, em prol da paz, o melhor seria
ajudá-los a retomar o seu caminho.
— Arriscando as nossas vidas no processo —
sussurrou o mesmo an­cião. — E se tiverem a doença
vermelha?
Tané mal prestava atenção à discussão. Os seus
olhos estavam fixos no mar agitado.
A joia azul estava tranquila na sua prisão. Guardava-
a numa caixinha lacada impermeável, na sua bolsa,
sempre à mão.
— Sois um irresponsável — disparou o Ancião Maior,
fazendo Tané olhar para dentro. — Não devíeis tê-los
acolhido. Este é território sagrado.
— Devemos mostrar um pouco de compaixão,
Ancião...
— Tentai pregar compaixão às pessoas que perderam
a vida, às suas famílias, quando a doença vermelha
chegar às costas do Oriente — re­plicou o idoso. — A
responsabilidade será vossa.
Ele saiu da sala, mal cumprimentando Tané com um
breve aceno de cabeça ao passar. Os outros anciãos
seguiram-no. O Ancião Vara belis­cou a ponte do nariz.
— Temos alguma arma nesta ilha? — perguntou Tané.
— Um punhado enterrado no chão, na sala de jantar,
para casos de ameaça de invasão. Nesse caso, os
anciãos protegeriam os arquivos, e os jovens estudiosos
lutariam.
— Temos de mantê-las perto de nós. A maioria dos
estudiosos é trei­nada na arte da espada — disse Tané. —
Se esses piratas nos tentarem roubar, temos de estar
preparados.
— Não tenho desejo algum de espalhar o pânico entre
os estudantes, menina. Os forasteiros ficarão no povoado
dos penhascos. Não chegarão até cá em cima; estamos
demasiado elevados — disse, sorrindo. — Hoje ajudastes-
me bastante, mas já é noite. Mereceis o vosso descanso.
— Não estou cansada.

— O vosso rosto diz-me o contrário.

Era verdade que o suor frio lhe escorria pela testa e


que tinha olheiras. Tané fez uma vénia e saiu da sala de
tratamento.

Os corredores da casa estavam vazios. A maioria


dos estudiosos não sabia nada sobre os piratas e dormia
sem ser incomodada. Tané mante­ve a mão do seu lado,
perto da caixa.

Não demorou muito tempo a perceber como


funcionava o seu tesou­ro. Todos os dias, antes da
meditação e depois do jantar, subia ao topo do vulcão
adormecido, onde a água da chuva caía na cratera, e
ligava-se às vibrações da joia. Descobriu nela um instinto
oculto que a ensinava a levar essas vibrações para o
exterior, como se fosse algo que tivesse feito há muito
tempo e que o seu corpo recordasse.

Primeiro, usou a joia para criar ondulações na água.


Depois, fez uma borboleta de papel de cera e fê-la voar.
Depois, escondida na escuridão, começou a fugir para a
praia.

Demorou dias a atrair as ondas. As marés tinham a


sua mecânica definida.

Uma vez, em Cabo Hisan, Tané tinha visto uma


mulher a bordar um pano. A agulha entrava e saía do
tecido, deixando a linha para trás, e as cores apareciam
na seda. Inspirada por essa memória, Tané imaginou o
poder da joia como uma agulha, a água como a linha e
ela como a bordadeira do mar. Lentamente, as ondas
aproximaram-se dela, rodeando as suas pernas.
Finalmente, numa noite em que a joia brilhava como
um relâmpago nas suas mãos, ela tinha conseguido
atrair o mar para a praia até cobrir completamente a
areia. Os estudiosos ficaram atónitos, até que a água
recuou novamente.
O esforço tinha-a deixado quase sem sentidos. Mas
agora sabia o que ela e a joia podiam fazer.
Quando viu o navio ocidental a lutar contra a
tempestade, correu para as falésias. O grande Kwiriki
tinha-lhe dado uma oportunidade, e ela estava pronta,
finalmente, para a aproveitar.
Desta vez, o mar tinha respondido com força. Embora
o barco tivesse resistido, ela havia conseguido guiá-lo
através do recife de coral. Estava agora praticamente
desprotegido, nos baixios.
Era altura de fugir. Já tinha perdido demasiado tempo
neste lugar. E sabia exatamente para onde queria ir. Para
a ilha da amoreira, para onde a Imperatriz Dourada
estava a ir, com Nayimathun no porão do seu navio.
Tané pendurou a cabaça de água fresca que trazia na
bolsa e dirigiu-se ao refeitório vazio. As armas estavam
escondidas debaixo das tábuas do chão, tal como o
Ancião Vara tinha dito. Meteu os punhais no saco, depois
apanhou uma espada seiikine e um punhal.
— Imaginei que vos encontraria aqui.
Tané ficou imóvel.
— Sabia que íeis tentar partir. Vi-o nos vossos olhos
quando vos falei da Frota do Olho de Tigre — disse o
Ancião Vara suavemente. — Não podeis comandar aquele
navio sozinho, Tané. Precisaríeis de uma tripu­lação de
centenas de homens.
— Ou disto.
Enfiou a mão na sua caixinha e tirou a joia, agora
apagada. O Ancião Vara olhou para ela.
— A joia crescente de Neporo — disse ele, olhando-a
com reverência.
— Em todos os meus anos, nunca pensei...
Tané não o deixou terminar.
— Tinha-a cosida no meu corpo. Carreguei-a dentro de
mim toda a minha vida.
— Pela luz do grande Kwiriki. Durante anos, a Ilha das
Penas guardou o mapa astral de Komoridu, o lugar de
repouso da joia crescente — murmurou. —
Aparentemente, nunca esteve lá.
— Sabeis onde fica essa ilha, Ancião Vara? Vou
vasculhar o mar até encontrar a Imperatriz Dourada, mas
terei mais hipóteses se souber para onde vai.
— Tané, não deveis ir para lá — disse ele. — Mesmo
que encon­treis a Frota do Olho de Tigre, não temos a
certeza de que a grande Nayimathun ainda esteja viva. E
se estiver viva, não podeis enfrentar um batalhão inteiro
de piratas para a salvar. Morreríeis a tentar.
— Tenho de tentar — respondeu, com um leve
sorriso —, tal como a Menina das Sombras. Essa história
encoraja-me, Ancião Vara.

Tané conseguia ver a luta interior do ancião.

— Compreendo — disse finalmente. — Miduchi Tané


morreu quan­do o seu dragão lhe foi tirado. Desde então,
tendes sido o seu fantasma. Um fantasma vingativo e
inquieto, incapaz de seguir em frente.
Tané sentiu os olhos a arder com o calor.

— Se eu fosse mais novo ou mais corajoso, talvez


até fosse convosco. Teria arriscado tudo pelo meu
dragão.

Tané olhou para ele.

— Fostes um cavaleiro de dragão.

— Talvez conheçais o meu nome. Há muitos anos


chamavam-me o Príncipe das Marés.

Um dos maiores cavaleiros de dragões da história.


Filho de uma cor­tesã seiikine e de um pirata de uma
terra longínqua, que fora deixado às portas de uma Casa
Sul e acabara na Alta Guarda do Mar. Uma noite, em
combate, caiu da sela, partiu uma perna e a Frota do
Olho de Tigre fez dele um refém.

Os piratas transformaram a sua perna num troféu.


Diz a lenda que o atiraram ao mar para ser comido pelos
peixes, mas ele sobreviveu até ao amanhecer, quando
um navio o encontrou.

— Agora sabeis — disse o Ancião Vara. — Alguns


cavaleiros seguem em frente depois de um ferimento
destes, mas a memória deixou-me uma cicatriz profunda.
Sempre que vejo um navio, lembro-me do som dos meus
ossos a partirem-se. — Um sorriso sincero cruzou o seu
rosto. — Às vezes, o meu dragão volta aqui. Para me ver.

De repente, Tané admirou-o como nunca tinha


admirado ninguém antes.
— A vida aqui é calma — disse ela —, mas o meu
sangue é do mar, e não me deixa ficar quieta.
— Não. Este lugar nunca fez parte do vosso destino.
— O sorriso desapareceu. — Mas talvez Komoridu tenha
feito.
Da sua mala tirou um papel, um tinteiro e um pincel.
— Se o grande Kwiriki for bom para nós, a Imperatriz
Dourada nun­ca chegará a Komoridu — disse ele. — Mas
se ela descobriu o enigma... talvez já esteja a chegar. —
Escreveu as instruções. — Deveis navegar para leste,
seguindo a constelação da Pega. À nona hora da noite,
certificai-vos de que o vosso navio está mesmo por baixo
da estrela que representa o seu olho e virai para sudeste.
Segui uma rota a meio cami­nho entre a Estrela do Sul e a
Estrela dos Sonhos.
Tané guardou a joia.
— Quanto tempo?
— O mapa não diz. Mas se fordes nessa direção,
encontrareis Komoridu. Segui essas duas estrelas, não
importa quanto elas se movam no céu. Com a joia,
deveis ser capaz de alcançar o Perseguição.
— Permitir-me-eis ficar com ela.
— Foi-vos concedida. — Entregou-lhe as instruções. —
Para onde ireis, Tané, quando encontrardes a grande
Nayimathun?
Ela ainda não tinha pensado nisso. Se o seu dragão
estivesse vivo, libertá-lo-ia dos piratas e levá-lo-ia para o
Império dos Doze Lagos. Se não, vingaria a sua morte.
Depois disso, não sabia o que iria fazer. Apenas que
ficaria em paz.
Dava a impressão de que o Ancião Vara já sabia, pelo
seu olhar, que ela não lhe daria resposta.
— Deixo-vos ir com a minha bênção, Tané, se me
prometerdes uma coisa — disse, murmurando. — Que um
dia vos perdoareis. Estais na primavera da vossa vida,
criança, e tendes muito que aprender deste mundo. Não
vos negueis o privilégio de viver.
O maxilar de Tané tremeu.
— Obrigada. Por tudo. Sinto-me honrada por ter sido
aluna do Príncipe das Marés.
Ele fez uma vénia.
— Foi uma honra para mim ser vosso professor, Tané
— disse ele, e empurrou-a para a porta. — Ide agora.
Antes que alguém vos veja.

***

A tempestade continuava a assolar a ilha, embora os


trovões soassem mais distantes. A chuva encharcava
Tané, que caminhava ao longo das pontes de corda em
direção à escada escondida.
A aldeia estava em silêncio. Agachou-se atrás de
uma árvore caída e ficou a ver se havia movimento.
Numa das casas velhas, uma luz tremia. Lá fora, um
carrilhão tilintava ao vento.
Havia dois vigias, mas estavam demasiado ocupados
a conversar e a fumar para a verem. Esgueirou-se por
trás das casas e correu pela erva alta até aos degraus
esculpidos na pedra que a levariam até à praia.
Os degraus voavam sob as suas botas. Quando
chegou ao fundo, olhou para o mar.
Havia barcos a remos na areia. Haveria mais vigias no
barco, mas ela podia enfrentá-los. Se o sangue tivesse de
ser derramado, que assim fos­se. Já tinha perdido a sua
honra, o seu nome e o seu dragão. Não tinha mais nada a
perder.
Tané virou-se e olhou mais uma vez para a Ilha das
Penas, o seu lugar de exílio. Mais um dos lugares que se
tinham tornado a sua casa e que ela acabou por perder.
Devia estar destinada a ser arrancada, como uma
semente levada pelo vento.
Correu e mergulhou nas ondas. A tempestade agitava
o mar, mas ela sabia como sobreviver à sua fúria.
O seu coração voltou a ganhar vida. Tinha vestido
uma armadura para sobreviver ao exílio, uma armadura
tão espessa que quase se esquecera de como era sentir
qualquer coisa. Agora, apreciava o abraço quente da
água salgada, o sabor agudo na boca, a sensação de que
podia ser arrastada pela corrente se pusesse uma mão
ou um pé em falso.
Quando puxou a cabeça para fora para respirar, olhou
para o barco.
As velas estavam içadas. Na popa, uma bandeira
branca com uma espa­da e uma coroa. Era a insígnia de
Inys, a nação mais rica do Ocidente. Mais uma lufada de
ar e estava de novo debaixo de água, muito abaixo das
ondas.
O elmo estava agora ao seu alcance. Esperou que
uma onda a levantasse e agarrou-se a uma corda
pendurada na borda.
Ela conhecia os barcos. Com a joia como tripulação,
poderia domar aquela besta de madeira.
Não havia ninguém na praia. O Ancião Vara não a
tinha traído, informando os seus superiores. Pela manhã,
não haveria vestígios do fantasma em que ela se
transformara.

***

Foram os carrilhões de vento que mantiveram Loth


acordado. Não haviam parado de tocar toda a noite.
Além disso, estava com frio e coberto de sal, e rodeado
pelo fedor e pelo ressonar dos piratas imundos. Harlowe
dissera-lhes para dormirem um pouco antes de partirem
em busca de água fresca.
O próprio capitão tinha ficado de guarda junto à
fogueira. Loth ob­servava as chamas a dançar no seu
rosto, realçando a tatuagem branca que lhe subia pelo
antebraço e fazendo brilhar o medalhão na sua mão.
Loth levantou-se e vestiu a camisa. Harlowe olhou
para ele, mas não disse nada enquanto o via sair.
Lá fora continuava a chover. Melaugo, que estava de
guarda, olhou-o de alto a baixo.
— Um passeio à meia-noite?
— Receio que não consiga adormecer — disse Loth,
abotoando a camisa. — Não me demorarei.
— Avisastes as vossas sombras?
— Não. E agradecia que as deixásseis descansar.
— Bem, devem estar muito cansados de usar essas
cotas de malha. Surpreende-me que não tenham
enferrujado. Duvido de que estes eru­ditos vos ataquem
— disse Melaugo —, mas mantende os olhos bem
abertos. E levai isto. — Atirou-lhe o apito. — Nós também
não sabemos o que eles realmente pensam de nós.
Loth acenou com a cabeça e voltou a enfiar os pés
doridos nas botas.
Passou por baixo das copas das árvores, seguindo as
lamparinas ainda acesas, e voltou para os degraus da
praia. Os seus pés nunca tinham estado tão pesados.
Quando finalmente chegou ao fim, encontrou uma
entrada na rocha e enterrou os pés na areia, lamentando
não ter apa­nhado o cobertor.
Se a tempestade não abrandasse, poderiam ficar
presos naquela ilha esquecida por Deus durante
semanas, e não tinham muito tempo. Agora não podia
falhar com Sabran. Um relâmpago iluminou de novo a
escu­ridão no momento em que ele pensava na queda de
Inys, uma conse­quência certa do seu fracasso.
Foi então que viu a mulher.
Ela estava no meio da praia. No momento em que o
relâmpago a atin­giu, viu uma túnica de seda escura e
uma espada curva no seu flanco. Mergulhou
graciosamente na água e submergiu.
Loth levantou a cabeça. Procurou nas ondas qualquer
vestígio dela, mas não havia mais relâmpagos.
Se um dos estudiosos da ilha decidisse nadar,
escondido pela escuri­dão da noite, até ao Rosa Eterna, só
poderia pensar em dois motivos pos­áveis. Um deles era
matar os forasteiros, talvez para evitar um surto de
peste. O outro era roubar o navio. O senso comum dizia-
lhe para avisar Harlowe, mas com aquele vento, ninguém
ouviria o apito.
O que quer que a mulher estivesse a planear fazer,
tinha de a impedir.

Correu pela areia e entrou na água. Era uma


loucura, com aquelas ondas, mas não havia outra
solução.

Nadou para debaixo do arco. Quando eram


crianças, ele e Margret nadavam no lago de Elsand para
se divertirem, mas os nobres não tinham necessidade de
nadar. Em qualquer outra noite, teria tido demasiado
medo para tentar.

Uma onda bateu-lhe na cabeça, afundando-o.


Pontapeou com força e voltou à superfície, cuspindo
água.

Gritos soaram do convés do Rosa Eterna. Um apito


soou. As suas mãos encontraram a corda, depois as vigas
de madeira que serviam de escada.

Thim estava deitado no chão, junto ao mastro. A


mulher de seda ver­melha estava na casa do leme,
travando um duelo de espadas com o carpinteiro. Os
seus cabelos negros caíam-lhe sobre o rosto.

Loth hesitou, cerrando os punhos, sem saber o que


fazer. Três esqui­vas e um ataque determinado, e o
carpinteiro afastou-se cambaleando, com a túnica
manchada de sangue. A mulher atirou-o borda fora. Um
outro homem aproximou-se dela por trás, mas ela virou-
se e atirou-o ao ar por cima do ombro. Um momento
depois, estava a juntar-se ao carpinteiro na água.

— Alto! — gritou Loth.

Ela lançou-lhe um olhar rápido. Num piscar de


olhos, saltou por cima do castiçal e aterrou com as
pernas dobradas.
Loth virou-se e correu. Podia defender-se bem com
uma espada, mas aquela mulher não era uma estudiosa
tímida. Fosse ela quem fosse, era como uma tempestade
numa luta: rápida como um relâmpago, leve como a
água.
Loth continuou a correr pelo convés até encontrar
uma espada. Nas suas costas, a mulher desembainhou
uma faca. Quando chegou à proa, Loth subiu para a
ponte, cerrando os dentes, com as mãos escorregadias
da água, preparando-se para saltar antes que ela o
alcançasse.
Algo lhe bateu na base do crânio e ele caiu no convés,
pesado como um saco de cereais.
Mãos agarraram-no e viraram-no de costas. A mulher
encostou-lhe a faca à garganta e, nesse momento, Loth
viu o que ela tinha na outra mão.
A sua forma era idêntica à que Ead possuía, e tinha o
mesmo brilho não natural. Como o luar no mar.
— A outra joia — sussurrou, e tocou-lhe com um dedo.
— Como... como podeis tê-la?
Ela franziu os olhos. Olhou para a joia e depois para
ele. Depois olhou para cima, para os gritos na praia, e a
sua expressão mudou subitamente para uma de
determinação.
Era a última coisa de que Loth se iria lembrar. O seu
rosto, e aquela cicatriz pouco visível, em forma de anzol.
60
Este

No Mar Infinito, mais a leste do que a maior parte dos


navios se atrevia a navegar, e à nona hora da noite, o
Perseguição flutuava sob a constelação de estrelas que
os seiikines haviam nomeado a Pega.
Padar, o oficial de navegação, tinha cumprido o
prometido. Para ele, as estrelas eram peças no tabuleiro
de jogo que era o céu. Podiam mover-se de qualquer
maneira e em qualquer direção: ele sabia como
interpretá-las. Apesar das correntes, sabia exatamente
onde iam en­contrar aquela estrela àquela hora e como lá
chegar. No convés, ao seu lado, estava Niclays Roos, à
espera.
Jan, pensou ele, estou quase lá.
Laya Yidagé estava do seu outro lado com os braços
cruzados, um sorriso escondido sob a sombra do seu
capuz.
A Estrela do Sul piscou os olhos. Perante os olhos da
sua tripulação, a Imperatriz Dourada virou o leme, as
velas agitaram-se ao vento e o Perseguição começou a
virar.
— Avante! — gritou ela, e os seus piratas
responderam a plenos pul­mões. Niclays sentiu a
felicidade deles ampliada no próprio coração.
Avante, sim, para onde os mapas terminavam.
Avante para a amorei­ra, e para um mundo de maravilhas
desconhecidas.
61
Este

Quando acordou, estava um frio glacial e o céu era o


púrpura doen­tio do crepúsculo, ensombrando tudo. Loth
demorou algum tempo a perceber que estava amarrado.
Os salpicos das ondas encharcavam-lhe o rosto. A
cabeça doía-lhe terrivelmente e os seus sentidos
estavam embotados.
Pestanejou, tentando livrar-se da sensação de
exaustão. A luz pálida das lamparinas, viu uma figura ao
leme do Rosa Eterna.
— Capitão Harlowe?
Não obteve resposta. Quando começou a ver melhor,
percebeu que era a mulher da Ilha das Penas.
Não.
Não tinham tempo para se desviar da rota. Ele
debateu-se, mas tinha corda suficiente à sua volta para
enforcar um gigante. Ao seu lado, viu Thim, também
amarrado ao mastro. Loth tentou sacudi-lo com o ombro.
— Thim — sussurrou.
O artilheiro não respondeu. Uma nódoa negra
formava-se na sua têmpora.
Loth virou a cabeça, e olhou para a sua captora. Tinha
vinte e poucos anos, talvez mais nova, e era esguia. O
seu cabelo, curto e preto, envolvia-lhe o rosto moreno e
bronzeado.
— Quem sois vós? — Loth gritou-lhe, a garganta a
arder de sede. — Porque tomastes este barco?
Ela não lhe deu atenção.
— Espero que percebais que cometestes um ato de
pirataria, minha senhora — continuou Loth. — Voltai para
trás agora, ou tomá-lo-ei como uma declaração de guerra
à Rainha Sabran de Inys.
Nada.
Quem quer que fosse aquela vagabunda silenciosa,
tinha a outra joia. O destino colocara-a no seu caminho.
Na sua anca pendia uma bolsa de flores pintadas.
Devia tê-la guar­dado lá.
Loth deixou-se vencer pela sonolência. A sede e a
exaustão estavam a fazer-se notar e sentiu uma dor
latejante no lado da cabeça. Durante a noite, acordou,
pestanejando, e encontrou uma bacia junto aos seus
lábios. Bebeu sem pedir.
Thim também estava acordado. A mulher deu-lhe de
beber e falou-lhe numa língua estrangeira.
— Thim — murmurou Loth —, percebe-la?
O seu companheiro tinha olhos sonolentos.
— Sim, meu senhor. Ela é seiikine — disse ele
lentamente. Pergunta-vos como sabeis alguma coisa
sobre a joia.
Permaneceu agachada, olhando-os de frente. A luz
fraca da lanterna que trouxera consigo, Loth conseguiu
distinguir a cicatriz na sua face.
— Diz-lhe que sei onde está a sua gémea — disse
ele. Olhou para os seus olhos enquanto Thim traduzia, e
ela respondeu.
— Ela diz que, se isso for verdade, sabereis dizer-lhe
de que cor é.
— Branca.
Enquanto Thim transmitia essas palavras, ela
inclinou-se para Loth e colocou uma mão na sua
garganta.
— Onde? — perguntou ela.
Então falava mesmo inysh. A sua voz era tão fria
quanto a sua expres­são de pedra.
— Em Inys — disse ele.
A mulher fechou a boca com força. Parecia mais uma
fenda fina do que uma boca, pois raramente parecia
sorrir.
— Deveis entregar-me a joia de imediato — implorou
Loth. — Tenho de a levar à Rainha Sabran, para ajuntar à
sua gémea. Juntas, podem ser usadas para destruir o
Inominável. Ele ressuscitará muito em breve, numa
questão de semanas. Emergirá do Abismo.
Franzindo o sobrolho, Thim transmitiu as suas
palavras à mulher em seiikine. Ela enrijeceu, levantou-se
e afastou-se.

— Esperai! — rogou Loth, exasperado. — Pelo amor


do Santo, não me haveis ouvido?

— Não devemos provocá-la, Lorde Arteloth — avisou-


o Thim. — Sem um navio, o resto da tripulação pode ficar
presa na Ilha das Penas durante semanas, se não meses.
Agora, somos os únicos que podem le­var a proposta da
Rainha Sabran para Sua Majestade Imperial.
Ele tinha razão. O seu plano estava à mercê daquela
pirata. Loth esmoreceu.
Thim atirou a cabeça para trás e franziu o sobrolho.
Loth demorou algum tempo a perceber que estava a ler
as estrelas.
— Impossível — murmurou Thim. — Não podemos
ter chegado tão longe a leste em tão pouco tempo.
Loth olhou para a mulher. Ela tinha uma mão no
leme. Com a outra, segurava uma pedra escura. Pela
primeira vez, deu conta do rugido in­cessante da água a
bater contra o casco do navio.
Ela usava a joia para impulsionar o Rosa.
— Meu senhor — Thim falou baixinho. — Acho que
sei para onde estamos a ir.
— Diz-me.
— Ouvimos rumores de que a Imperatriz Dourada,
líder da Frota do Olho de Tigre, navegava para leste em
busca do elixir da vida. O seu navio, o Perseguição,
partiu de Kawontay há pouco tempo. Dirigiam-se para o
Mar Infinito.
— O que é a Frota do Olho de Tigre?
— É a maior frota de piratas que existe atualmente.
Eles roubam e matam dragões sempre que podem. —
Olhou de relance para a mu­lher. — Se aquela está a
perseguir a Imperatriz Dourada, e não consigo pensar em
nenhuma outra razão para estarmos tão a leste, somos
ambos homens mortos.
Loth olhou para ela.
— Ela parece ser uma ótima lutadora.
— Uma pessoa não consegue manter-se firme contra
centenas de piratas, e mesmo o Rosa não tem hipótese
contra o Perseguição. É uma fortaleza flutuante. —
Engoliu em seco. — Talvez possamos recuperar o navio.
— Como?
— Bem, quando ela o abandonar, meu senhor. Um
navio de guerra como este precisa de uma grande
tripulação, mas... suponho que não temos outra hipótese
senão tentar.
Ficaram em silêncio durante algum tempo. Tudo o que
Loth conse­guia ouvir era o bater das ondas.
— Já que não há nada que possamos fazer a não ser
esperar, talvez possamos jogar um jogo — sugeriu Loth,
dirigindo um sorriso cansado ao artilheiro. — Como te dás
com enigmas, Thim?

***

As estrelas brilhavam como uma infinidade de velas.


Tané manteve os olhos nelas enquanto traçava o curso
do navio inysh, usando o vento oeste e a joia para
navegar.
Aquele senhor inysh e o artilheiro lacustre tinham
adormecido. Finalmente. O primeiro passara um quarto
de hora a tentar resolver o mais fácil dos enigmas e Tané
tivera de cerrar os dentes para controlar a sua irritação
perante a sua falta de jeito.

Fecho quando amanhece, abro ao anoitecer,


para que me possais admirar se me conseguirdes
ver.
Como a Lua, sou pálido, e com ela me vou,
porque com o nascer do Sol, contemplai, já lá não
estou.

Pelo menos agora parara de tagarelar com as suas


grandes ideias e deixara-a pensar. Se o fizesse na altura
certa, estaria sob o olho da Pega nessa mesma noite.
Depois de tanto uso, a joia estava coberta por uma
fina camada de suor frio. Respirou fundo e devagar.
Embora em nenhum momento a deixasse sem forças,
podia sentir que a joia tinha algum efeito no seu corpo.
Ela era a corda, e a joia era o arco, e somente juntas
poderiam fazer o oceano cantar.
— Loth.
Em sobressalto, Tané olhou para o convés. O homem
de Inys voltara a acordar.
— Loth — repetiu, tocando no próprio peito.
Tané olhou para as estrelas novamente.
Na Casa Sul, havia aprendido um pouco de cada
língua do mundo conhecido. Sabia falar inysh muito bem,
mas preferia que os forasteiros não soubessem, para que
pensassem que podiam conversar livremente.
— Posso saber o vosso nome? — disse o homem de
Inys.
Grande Kwiriki, levai embora este tolo. Ainda assim,
ele sabia alguma coisa sobre a joia minguante. Isso era
razão suficiente para o manter vivo.
— Tané — disse ela.
— Tané — repetiu ele em voz baixa.
Ela olhou para ele. Embora não pudesse ter mais de
trinta anos, e embora no momento parecesse tão longe
de sorrir quanto possível, as linhas de expressão à volta
dos seus lábios cheios descreviam risos pas­sados. A sua
pele era do mesmo castanho-escuro que os seus olhos,
que eram grandes e quentes. O seu nariz era largo, o
maxilar forte, coberto de pelos, e o cabelo preto formava
pequenos caracóis.
Teve a sensação de que era uma boa pessoa.
Mas afastou imediatamente esses pensamentos.
Aquele tipo vinha de uma terra que desprezava os seus
deuses.
— Se me libertardes — ofereceu Loth —, talvez eu
possa ajudar. Dentro de um dia ou dois, tereis de parar.
Para dormir.
— Não tendes ideia de quanto tempo consigo ficar
sem dormir.
Ele levantou as sobrancelhas.
— Então falais inysh.
— Basta.
O homem do ocidente abriu a boca como se fosse
dizer mais alguma coisa, mas pensou melhor. Encostou-
se ao artilheiro e fechou os olhos.
Mais cedo ou mais tarde, Tané teria de o interrogar. Se
ele sabia onde estava a outra joia, tinha de a recuperar
para a devolver aos dragões, mas primeiro precisava de
encontrar Nayimathun.
Quando Loth finalmente adormeceu, Tané observou as
estrelas e re­gressou ao leme. A joia era como um pedaço
de gelo na sua mão. Se continuasse assim, logo chegaria
a Komoridu.
Bebeu um pouco do seu odre e pestanejou para
humedecer os olhos secos.
Tudo o que tinha de fazer era manter-se acordada.
O Mar Infinito era de um azul-safira exuberante, que
se tornava quase violeta conforme o Sol se punha. Não
havia pássaros no céu, e o vazio estendia-se até onde a
vista alcançava.
Era esse vazio que perturbava Niclays. A lendária ilha
de Komoridu não estava em lado nenhum.
Bebeu um gole da sua garrafa de vinho. Nessa noite,
os piratas tinham sido generosos. A sua líder deixara
claro que, se encontrassem o grande tesouro, o deviam
ao Mestre das Receitas.
E se não encontrassem nada, todos saberiam a quem
culpar.
A morte nunca estivera tão presente na sua vida.
Considerava-a uma velha amiga que um dia voltaria a
bater-lhe à porta.
Durante anos, tentara criar o elixir da imortalidade
pelo prazer da descoberta. Nunca pensara em beber
dele. A morte, afinal, ou acabaria com a dor ou levá-lo-ia
de volta a Jannart, qualquer que fosse a versão correta
da vida após a morte. Cada dia, cada passo, cada
tiquetaque do relógio aproximava-o dessa maravilhosa
possibilidade. Estava farto de viver com metade de uma
alma.
Mas agora que sentia a ameaça da morte, temia-a.
Com as mãos trémulas, bebeu mais um gole de vinho.
Por um momento, ocorreu-lhe que devia parar de beber
para ficar mais desperto, mas mesmo sóbrio não seria
capaz de enfrentar um pirata. Era melhor ficar
entorpecido.
O navio continuou a avançar através das ondas. A
noite pintou o céu de preto. Não tardaria a ficar sem
vinho. Atirou a garrafa ao mar e ficou a olhar para ela
enquanto balançava na água.
— Niclays.
Laya subiu as escadas a correr, segurando o xaile
com uma mão.
Agarrou-lhe o braço.
— Viram qualquer coisa ao longe — disse ela, com os
olhos brilhantes de medo ou de excitação. — Os vigias.
— Que tipo de qualquer coisa?
— Terra.
Niclays olhou para ela, incrédulo. Sem fôlego, seguiu-
a até à proa do navio, onde a Imperatriz Dourada e Padar
já se encontravam.
— Estás com sorte, Roos — disse a capitã.
Passou-lhe a sua luneta de visão noturna. Niclays
olhou.

Uma ilha. Não havia dúvidas quanto a isso.


Pequena, quase de cer­teza desabitada, mas mesmo
assim uma ilha. Devolveu-lhe a luneta e soltou um
suspiro.

— Alegro-me em vê-la, honrada Imperatriz Dourada


— expressou, e era verdade.

Ela observou a ilha como um caçador observa a sua


presa. Virou-se para um dos seus oficiais, e Niclays olhou
para os entalhes no seu braço de madeira.

— Ordenou que o Pomba Negra cerque a ilha —


murmurou Laya. — A Alta Guarda do Mar ainda pode
estar atrás de nós. E talvez algum outro navio pirata
tenha ouvido rumores sobre a nossa missão.

— Acho que nenhum capitão pirata seria tolo a


ponto de querer en­frentar um navio como este.

— O mundo está repleto de tolos, Niclays. E quando


sentem o cheiro da possibilidade de vida eterna, fazem
coisas ainda mais tolas.

Sabran era um bom exemplo disso.

Assim como Jannart.

Niclays tamborilou os dedos na amurada do barco.


Aproximavam-se da ilha, e a sua boca parecia mais seca,
como cinza.

— Vem, Roos. — A voz da Imperatriz Dourada era


suave como ve­ludo. — Deves ser um dos primeiros a
aproveitar os despojos. Afinal de contas, foste tu quem
nos trouxe até aqui.

Ele não se atreveu a discutir.

Depois de lançar a âncora, a Imperatriz Dourada


virou-se para os seus piratas. A ilha, disse-lhes ela,
guardava um tesouro que acabaria com todos os seus
problemas. O elixir torná-los-ia tremendamente podero­‐
sos. Seriam os senhores do mar. O seu povo rugiu e
pontapeou o chão. Niclays ficou a tremer de medo.
Estavam entusiasmados agora, mas qual­quer cheiro de
fracasso, qualquer sussurro de que haviam chegado até
ali para nada, e toda a sua alegria transformar-se-ia em
fúria assassina.
Prepararam um barco para enviar uma expedição de
reconhecimen­to. Laya e Niclays foram com os vinte
tripulantes escolhidos, entre eles a Imperatriz Dourada,
que pisaria a ilha antes de todos, e Ghonra, sua herdeira.
Embora Niclays supusesse que não precisaria de uma
herdeira se de facto encontrassem o elixir.
O barco a remos afastou-se da sombra do
Perseguição. Depressa se tor­nou claro que o que tinham
visto da ilha era apenas a ponta. O mar inundara o resto.
Quando não conseguiram remar mais, deixaram dois
dos marinhei­ros no barco e caminharam pela água até à
costa. Niclays pisou a terra e torceu a água da camisa
com as mãos.
Aquele lugar podia vir a ser a sua sepultura. Sempre
pensara que seria enterrado sob o solo de Orisima. E, no
entanto, agora parecia que os seus ossos jazeriam numa
ilha remota, perdida na vastidão do mar.
Subiram uma encosta de rochas escorregadias, mas o
álcool atrasou-o. Quando Ghonra olhou por cima do
ombro e levantou uma sobran­celha, ele respirou fundo e
acelerou o passo.
Os seus passos conduziram-nos à escuridão de uma
floresta. O único vestígio de civilização era a ponte de
pedra que usaram para atravessar um riacho. Niclays viu
ao longe um lanço de escadas esculpidas na ro­cha. A
Imperatriz Dourada foi a primeira a subir.
Não havia fim para aqueles degraus. A escadaria
serpenteava por en­tre inúmeros bordos e abetos.
Não havia ali habitações. Nenhum guardião da
amoreira. Apenas a natureza, que invadira tudo durante
séculos. O zumbido das vespas e o chilrear dos pássaros.
Um veado passou à frente deles e mergulhou de novo na
escuridão, levando a que metade dos piratas
desembainhasse as espadas.
Niclays estava ofegante. A sua camisa estava
encharcada de suor. Limpou a testa, embora inutilmente,
enquanto o suor escorria. Há mui­to tempo que não fazia
um esforço físico tão grande.
— Niclays — murmurou Laya —, estás bem?
— Estou em agonia — respondeu ele, rindo. — Se a
Donzela for mi­sericordiosa, deixar-me-á morrer antes de
chegar ao cume.
Só perceberam que tinham parado quando ele se viu
ao lado de Ghonra, que lhe deu uma cotovelada na
barriga. De pernas trémulas, Niclays olhou para cima e
fixou o olhar numa árvore. Uma amoreira, ve­lha e
nodosa, maior do que qualquer árvore que alguma vez
tivesse visto. Derrubada.
Niclays ficou a olhar para o gigante caído. Não
conseguia sentir as pernas. Os seus lábios tremeram e
sentiu os seus olhos iluminarem-se.
Lá estava ela. No fim do Caminho dos Proscritos. Fora
aquilo que Jannart tanto desejara ver, o segredo pelo
qual havia morrido. Niclays estava diante do seu grande
sonho.
E o seu sonho atraiçoara-o.
A amoreira não tinha flores ou frutos. Era uma
imagem quase grotes­ca, enorme, as suas proporções
distorcidas, como um corpo pendurado num gancho. O
tronco era tão grosso como o de uma baleia. Mesmo
morta, os seus ramos elevavam-se até às estrelas, como
se estas pudessem estender as mãos de prata e puxá-la
de novo para si.
A Imperatriz Dourada caminhou entre os seus galhos
mortos. Laya agarrou o braço de Niclays. Ele sentiu-se
tremer e apertou a mão dela quase sem pensar.
— Yidagé, Roos — disse a Imperatriz Dourada. —
Aproximem-se.
Laya fechou os olhos.
— Está tudo bem. — Roos manteve a voz baixa. —
Ela não te fará mal, Laya. Precisa demasiado de ti.
— Não tenho nenhum desejo de a ver a magoar-te.
— Ofende-me a pouca confiança que tendes nas
minhas habilidades de guerreiro, senhora Yidagé —
respondeu ele, mostrando-lhe o cajado e um sorriso
forçado. — Com isto poderei dar conta de todos eles, não
achas?
Ela conteve uma gargalhada.
— Há aqui uma inscrição — disse a Imperatriz
Dourada a Laya, enquanto se aproximavam. — Traduz.
O seu rosto estava desprovido de emoção. Laya
soltou Niclays, ca­minhou até um galho e agachou-se
junto ao tronco. Um dos piratas entregou-lhe uma tocha,
e ela aproximou-a cuidadosamente da árvore. As chamas
iluminaram uma cascata de palavras esculpidas na
madeira.
— Perdoai-me, honrada Imperatriz Dourada, mas não
consigo tra­duzir isto. Algumas coisas são familiares, mas
a maior parte não é — desculpou-se Laya. — Temo que
esteja além do meu conhecimento.
— Talvez eu consiga.
Niclays olhou por cima do ombro. Um estudioso
seiikine que nunca se afastava muito da Imperatriz
Dourada pousou uma mão envelhecida sobre o tronco,
como se fossem os restos mortais de um velho amigo.
— A tocha, por favor — disse ele. — Não me
demorarei.

Não havia luz que denunciasse a presença do navio


ocidental. Do alto dos seus mastros, Tané viu os piratas
chegarem a terra.
O Rosa Eterna estava ancorado bem longe da vista
dos piratas. Depois de virar para sudeste no momento
certo, navegou até avistar uma ilha com a sua luneta
noturna.
O Ancião Vara acreditava que a joia crescente viera
dali. Talvez aque­le lugar guardasse o segredo da razão
pela qual a tinha dentro de si... ou talvez não. O
importante era Nayimathun.
O vento agitou-lhe os cabelos, cobrindo-lhe os olhos.
Tané conhecia aqueles navios desde os seus dias na Casa
Sul, quando aprendera a iden­tificar os navios mais
importantes da Frota do Olho de Tigre. Ambos
ostentavam as velas vermelhas da doença. O Pomba
Negra, que tinha me­tade do comprimento do
Perseguição, rondava a ilha com as vigias abertas.
Tané desceu ao convés. Tinha libertado os seus dois
prisioneiros para que a pudessem ajudar.
— Tu — disse Tané a Thim. — Enquanto eu estiver
fora, vigia o navio.
Thim olhou para ela.
— Onde ides?
— Para o Perseguição.
— Desfazer-vos-ão em pedaços.
— Ajuda-me a sobreviver, e eu far-te-ei chegar inteiro
ao Império dos Doze Lagos. Trai-me e deixo-te morrer
aqui — disse Tané. — A escolha é tua.
— Quem sois vós? — perguntou ele, franzindo o
sobrolho. — Lutais melhor do que qualquer soldado.
Nenhum dos marinheiros teve hipótese contra vós.
Porque vos enviaram para os estudiosos e não para os
Miduchi?
Tané entregou-lhe a luneta.
— Se eles te virem — respondeu —, dispara um dos
canhões como aviso.
Mas Thim já compreendera. Reparara na ligeira
mudança na expressão do seu rosto.
— Vós éreis Miduchi — disse ele, examinando-lhe o
rosto. — Porque haveis sido expulsa?
— O que eu sou e o que fui não é da tua conta. —
Gesticulou para Loth. — Tu. Vem comigo.

— Para a água? — Loth olhou para ela. — Iremos


congelar.
— Não se não pararmos de nos mexer.

— Que quereis fazer naquele navio?

— Libertar um prisioneiro.

Tané respirou fundo e deslizou pela borda do navio,


tremendo de frio. Depois atirou-se.

O seu corpo mergulhou na escuridão. O frio deixou-


a sem fôlego e, de entre os seus lábios, saiu uma
explosão de bolhas.

Era pior do que esperara. Nadava em Seiiki todos


os dias, em qualquer altura do ano, mas o Mar do Sol
Trémulo nunca estivera tão frio. Quando emergiu, a sua
respiração criou nuvens de vapor. Atrás de si, Loth emitiu
sons inarticulados de desaprovação. Já estava no fundo
dos degraus.

— Salta — Tané insistiu com ele. — Assim vai


acabar mais depressa.

Loth fechou os olhos e, pouco antes de saltar, o seu


rosto assumiu a expressão de quem se rende à morte.
Afundou e emergiu imediatamen­te, ofegante.

— Pelo Santo! — disse, a tremer. — Está... está um


gelo!
— Então temos de nos despachar — disse Tané,
começando a nadar.

As luzes do Perseguição estavam apagadas. O


navio era tão alto que Tané não receava muito os vigias.
Não conseguiriam ver duas cabeças na água escura.
Afinal, aqueles galeões de nove mastros eram maiores do
que qualquer outro navio no mundo. Tinham espaço mais
do que suficiente para esconder um dragão.

Era difícil mover-se para a frente. Com o frio, as


suas articulações fica­ram rígidas. Tané recuperou o
fôlego e mergulhou de novo sob as ondas. Quando
emergiu, ao lado do Perseguição, Loth estava logo atrás
dela, tre­mendo incontrolavelmente. Pensou em
espremer-se pelas escotilhas, mas estavam fechadas e
não conseguia ver nada a que se pudesse agarrar.

A âncora. Era a única coisa que ligava a água ao


convés. Nadou ao longo do casco até chegar à proa.

Agarrou a corrente e subiu. A água salgada


misturou-se com o seu suor. Ouviu Loth a segui-la com
grande esforço. Cada centímetro que avançava era como
um triunfo. Os seus braços e pernas ainda não res­‐
pondiam totalmente.
Quando estava quase a chegar ao topo, escorregou.
Foi tão rápido que nem conseguiu recuperar o fôlego,
quanto mais gritar. Quando deu por isso, estava a cair,
mas num instante bateu em algo quente e sólido. Olhou
para baixo e viu Loth. Ela tinha aterrado com o pé
encostado ao seu ombro.
Era óbvio que Loth se debatia para suportar o peso de
ambos, mas mesmo assim sorriu. Tané olhou novamente
para cima e continuou a subir.
Quando chegaram à escultura desgastada do grande
Dragão Imperial na proa do navio, os seus braços
tremiam com o esforço. Subiu, pas­sou por cima da borda
do navio e aterrou em silêncio no convés. A Imperatriz
Dourada estaria na ilha, mas teria deixado guardas no
navio.
Tané baixou-se e espremeu a água gelada da túnica.
Loth apareceu ao seu lado, agachado. Mal conseguiam
distinguir as silhuetas das centenas de piratas que
restavam a bordo.
O Perseguição era uma cidade sem lei no meio do
mar. Como todos os navios piratas, albergava uma
população de malfeitores de todo o mundo. Naquela
escuridão, se ninguém os detivesse, poderiam passar
despercebidos. Só tinham de descer três lanços de
escadas até ao convés inferior do navio.
Tané ergueu o corpo e começou a andar do seu
esconderijo. Loth seguiu-a, sem levantar muito a cabeça.
Deram por si rodeados de piratas. Tané mal conseguia
ver os seus rostos. Ouviu conversas fragmentadas.
— Se o velho nos traiu, eu estripo-o — disse um.
— Não é nenhum tolo. Que sentido faria isso...
— Ele é mêntico. Os seiikines tê-lo-iam enjaulado em
Orisima como um passarinho — disse uma mulher. —
Talvez a morte seja melhor para ele do que a prisão.
Como é para todos nós.
Roos.
Não podiam estar a falar de outro mêntico.
Sentiu as pontas dos dedos aquecerem. Não havia
nada que ela de­sejasse mais do que apertar-lhe a
garganta com as suas próprias mãos.
Roos não era o culpado por Tané ter sido enviada para
a Ilha das Penas. A única culpada disso era ela. Mas
mesmo assim ele chantageara-a. Atrevera-se a pedir-lhe
que fizesse mal a Nayimathun. E agora era cúmplice
daqueles piratas matadores de dragões. Por tudo isso,
merecia a morte.
Tentou reprimir esse desejo. Não podia haver
distrações.
Entraram na escada que os levaria ao convés. Em
baixo, viu o brilho de uma lamparina. À luz da sua
chama, viu dois piratas armados com pistolas e espadas.
Tané aproximou-se deles.
— Quem vem lá? — perguntou um deles, mal-
humorado.
Se gritassem, atrairiam uma horda de piratas vinda
de cima. Teria de os matar, e de o fazer de forma
silenciosa.
Como a água.
A sua faca deslizou pelas sombras e perfurou um
coração. Antes que o outro pirata pudesse reagir, ela já
lhe cortara a garganta. O olhar nos seus olhos não era
como nada que Tané já tivesse visto antes. A surpre­sa. A
certeza da sua própria mortalidade. A sua vida, reduzida
a uma sensação de calor líquido no pescoço. Um som
inarticulado saiu-lhe dos lábios, e ele colapsou.
Tané sentiu o sabor a ferro na boca. Viu o sangue
jorrar, negro à luz da lamparina.
— Tané — disse Loth.
A pele dela estava tão fria como a espada que
segurava.
— Tané — insistiu ele, a sua voz ténue. — Por favor.
Temos de nos apressar.
Havia dois cadáveres à sua frente. O seu estômago
revolveu-se e a escuridão atingiu-a como uma nuvem de
moscas.
Ela matara. Não da forma como matara Susa. Desta
vez, acabara pessoalmente com duas vidas.
Um pouco zonza, levantou a cabeça. Loth pegou na
lamparina que pendia sobre os corpos e entregou-lha. Ela
agarrou-a, com a mão instável, e entrou nas entranhas
do navio.
Teria tempo para pedir desculpa ao grande Kwiriki.
Agora, tudo o que tinha a fazer era encontrar
Nayimathun.
No início, tudo o que viu foram mantimentos. Barris de
água. Sacos de arroz e milho. Baús que deviam estar
cheios de saque. Ao ver um pedaço de verde ao fundo,
suspirou pesadamente.
Nayimathun.
Ainda respirava. Estava acorrentada e tinha uma
ferida onde lhe haviam arrancado uma escama, mas
respirava.
Loth fez um sinal no peito. Ostentava o olhar de
alguém que vira a sua própria ruína.
Tané caiu de joelhos perante a deusa que outrora
tinha sido sua irmã, largando a espada e a lamparina.
— Nayimathun.
Não obteve resposta. Tané tentou engolir, mas tinha
um nó na gar­ganta. Os seus olhos lacrimejaram ao ver os
danos que as correntes lhe tinham causado.
Uma lágrima rolou-lhe pela face. Transbordava ódio.
Ninguém pos­suidor de alma poderia fazer tal coisa a um
ser vivo. Ninguém com o mí­nimo de vergonha poderia
tratar um deus daquela maneira. Os dragões tinham feito
grandes sacrifícios para proteger os mortais com quem
par­tilhavam o mundo. E os mortais apenas conheciam o
mal e a ganância.
Nayimathun ainda respirava. Tané acariciou-lhe o
focinho, que tinha escamas tão secas quanto um osso.
Fora uma crueldade atroz tê-la man­tido fora da água por
tanto tempo.
— Grande Nayimathun — sussurrou. — Por favor. Sou
eu. Tané.
Deixa-me levar-te para casa.
Um olho abriu-se. O azul dentro dele era fraco, como o
último brilho de uma estrela morta há muito tempo.
— Tané.
Pensara mesmo que nunca mais voltaria a ouvir
aquela voz.
— Sim. — Outra lágrima escorreu-lhe pelo rosto. —
Sim, grande Nayimathun. Estou aqui.
— Vieste — disse Nayimathun. Era difícil respirar. —
Não devias ter vindo.
— Devia ter vindo mais cedo. — Tané baixou a cabeça.
— Perdoa-me por ter permitido que te levassem.
— Alguém te levou antes — disse o dragão. Faltava-
lhe um dente no maxilar inferior. — Estás ferida.
— O sangue não é meu. — Com as mãos a tremer,
Tané abriu a pequena caixa que trazia à cintura e tirou a
joia. — Encontrei uma das joias de que me falaste,
Nayimathun. Estava cosida ao meu corpo. — Levantou a
joia para que o dragão a pudesse ver. — E este homem
do oeste diz conhecer a pessoa que tem a sua gémea.
Nayimathun olhou para a joia por um longo momento,
depois para Loth, que tremia de medo.
— Poderemos falar sobre isso quando estivermos num
lugar seguro — disse —, mas ao encontrares essas joias,
concedeste-nos uma opor­tunidade de lutar contra o
Inominável. Só por isso, Tané, todos os dra­gões deste
mundo ficarão em dívida para contigo. — Um brilho
ténue percorreu-lhe as escamas. — Ainda tenho força
suficiente para romper o casco do navio, mas para isso
tenho de me livrar destas correntes. Precisarás da chave.
— Diz-me quem a tem.
O dragão voltou a fechar os olhos.
— A Imperatriz Dourada.
62

Este

O estudioso estava rodeado de tochas. Niclays teve


a impressão de que ele circulava há horas em volta da
amoreira, a ler à luz do fogo.

Durante todo esse tempo, os piratas mal trocaram


uma ou duas palavras.

Quando finalmente se endireitou, todas as cabeças


se mexeram com ele. A Imperatriz Dourada estava
sentada ao seu lado, com uma mão a afiar a espada que
empunhava no seu braço de madeira. Cada rangido da
pedra que raspava contra a lâmina atingia Niclays em
cheio.

— Terminei — anunciou o estudioso.

— Ótimo — respondeu a Imperatriz Dourada, sem


olhar para cima. — Diz-nos o que descobriste.

Tentando não fazer muito barulho ao respirar,


Niclays pegou no seu manto e limpou a testa.
— Está escrito em caligrafia seiikine antiga — disse
o estudioso. — Conta a história de uma mulher chamada
Neporo. Viveu há mais de mil anos nesta ilha. Komoridu.

— Estamos todos ansiosos por ouvir a sua história —


disse a Imperatriz Dourada.
O estudioso ergueu os olhos para a amoreira. Algo
na sua expressão continuava a perturbar Niclays.
— Neporo vivia na aldeia piscatória de Ampiki. Vivia
uma vida de miséria, trabalhando como pescadora de
pérolas. Apesar do seu traba­lho e do trabalho dos pais, a
sua família tinha tão poucos recursos que, em alguns
dias, não tinham outra opção senão comer folhas e terra
do leito da floresta.

Era por isso que Niclays não entendia a obsessão


de Jannart. A histó­ria era triste.

— Quando a sua irmãzinha morreu, Neporo decidiu


acabar com o sofrimento. Mergulharia em busca das
preciosas pérolas douradas no Mar Infinito, onde os
outros pescadores de pérolas não se atreviam a
mergulhar. A água era demasiado fria, demasiado
violenta, mas Neporo não viu outra opção. Partiu de
Ampiki com o seu pequeno barco a re­mos e entrou no
mar alto. Enquanto mergulhava, um enorme tufão ar­‐
rastou o seu barco, deixando-a sozinha no meio das
ondas implacáveis.
» De alguma forma, conseguiu manter a cabeça à
tona. Não fazia ideia de como ler as estrelas, por isso só
conseguia nadar seguindo a mais bri­lhante que via. Por
fim, chegou a uma ilha. Não havia sinais de vida hu­mana,
mas numa clareira encontrou uma amoreira de altura
imponente. Esfomeada e enfraquecida, comeu dos seus
frutos. — Traçou algumas das palavras com o dedo. —
Neporo ficou embriagada com o vinho de mil flores. Nos
tempos antigos, esta era uma descrição poética do elixir
da vida.

A Imperatriz Dourada continuou a afiar a sua


espada.

— Neporo conseguiu finalmente escapar da ilha e


regressar a casa. Durante dez anos, tentou levar uma
vida normal: casou com um pintor de boa índole e teve
um filho com ele. Mas os seus amigos e vizinhos
repararam que ela não envelhecia, não sofria de cansaço
e não adoecia. Alguns chamaram-lhe deusa. Outros
temeram-na. Por fim, deixou Seiiki e regressou a
Komoridu, onde ninguém a via como uma abominação. O
fardo da imortalidade era tão grande que pensou em
suicidar-se, mas, por causa do seu filho, decidiu viver.

— A árvore deu-lhe a imortalidade — disse a


Imperatriz Dourada, ainda a afiar a espada — e mesmo
assim ela pensou que poderia tirar a própria vida.
— A árvore outorgara-lhe proteção apenas contra o
envelhecimento, mas ainda podia ser ferida ou morrer de
outras formas. — O estudioso olhou para a árvore. — Ao
longo dos anos, muitos seguiram Neporo até à sua ilha.
Pombas negras e corvos brancos voavam até ela, pois ela
era a mãe dos proscritos.

Laya agarrou Niclays com mais força, e ele


devolveu-lhe o aperto.

— Devíamos ir — sussurrou-lhe ao ouvido. —


Niclays, a árvore está morta. Não há elixir.

Niclays engoliu em seco. A Imperatriz Dourada


parecia absorta; ele podia escapulir-se sem ser visto.

E, no entanto, permaneceu ali plantado; não


conseguia parar de ouvir a história de Neporo.

— Espera — disse, torcendo a boca.

— Quando o Monte do Pavor entrou em erupção —


continuou o es­tudioso —, Neporo recebeu dois presentes
de um dragão. Eram as joias celestiais e, com a ajuda
delas, o dragão disse a Neporo que ela poderia imobilizar
a Besta da Montanha por mil anos.

— Responde-me a isto — interrompeu Padar. —


Porque é que o dra­gão teve de pedir ajuda a um
humano?
— A árvore não diz — respondeu, impávido. —
Embora Neporo esti­vesse disposta a lutar, só conseguia
controlar uma das joias. Precisava de outra pessoa para
controlar a segunda. E então o milagre aconteceu. Uma
princesa do Sul chegou às praias de Komoridu. O seu
nome era Cleolind.

Niclays trocou um olhar de espanto com Laya. Os


livros de orações não diziam nada a respeito disto.

— Cleolind também possuía o dom da vida eterna.


Ela já havia der­rotado o Inominável uma vez, mas
acreditava que as suas feridas iriam sarar em breve.
Determinada a acabar com ele de vez, partiu em busca
de outros que pudessem ajudá-la. Neporo era a sua
última esperança. — O estudioso fez uma pausa para
humedecer os lábios. — Cleolind, Princesa de Lasia, ficou
com a joia minguante. Neporo, Rainha de Komoridu, ficou
com a sua gémea. Juntas, mergulharam o Inominável no
Abismo, prendendo-o lá por mil anos, mas nem um dia a
mais.

Niclays ficou estupefacto.


Porque, se aquela história era verdadeira, a lenda da
fundação da Casa de Berethnet era uma farsa. Não era
uma linhagem dinástica de filhas que mantinha o
Inominável acorrentado, mas sim duas joias.
Oh, aquilo seria uma tremenda desilusão para
Sabran.
— Cleolind ficou debilitada após o seu primeiro
encontro com o Inominável. O segundo confronto
destruiu-a. Neporo devolveu o corpo ao Sul, juntamente
com a joia minguante.
— E a outra joia... a joia crescente... — disse a
Imperatriz Dourada, baixinho. — Que lhe aconteceu?
O estudioso apoiou novamente a mão ossuda na
árvore.
— Uma parte da história perdeu-se — disse ele.
Niclays viu que a casca tinha uma grande fenda. —
Felizmente, podemos ler o final.
— E então?
— Parece que alguém queria ficar com a joia. Para
que ficasse segura, um descendente de Neporo coseu a
joia crescente na lateral do seu corpo, de forma que
ninguém a pudesse arrancar. Deixou Komoridu e iniciou
uma vida humilde em Ampiki, na mesma casa degradada
onde Neporo vivera. Quando morreu, a joia foi retirada do
seu corpo e passada para a filha, no mesmo local. E
assim continuou a história. — Pausou. — A joia vive no
interior de um descendente de Neporo.
A Imperatriz Dourada levantou o olhar da sua espada.
Niclays ouvia o seu próprio coração a bater.
— A árvore está morta — disse — e a joia
desapareceu. Que significa isso para nós?
— Mesmo que não tivesse morrido, aqui diz que a
árvore apenas concedia a imortalidade à primeira pessoa
que comesse do seu fruto. Depois disso, já não podia
oferecer o dom da vida eterna — murmurou o estudioso.
— Lamento, honrada Imperatriz. Chegámos séculos
atrasados. Nesta ilha, só há fantasmas.
Niclays começou a sentir náuseas. E a sensação
intensificou-se quando a Imperatriz Dourada se levantou,
fixando o olhar nele.
— Honrada capitã — disse ele, com a voz trémula. —
Trouxe-vos para o local certo, não trouxe?
Ela aproximou-se dele, segurando a espada na mão
como um peso morto. Niclays agarrou-se ao seu cajado
até que os nós dos dedos ficaram brancos.
— Talvez ainda consigais atingir o vosso objetivo. O
Jannart tinha outros livros, em Mentendon... — suplicou
ele, mas a sua voz ficou embargada. — Pelo amor do
Santo, não fui eu quem vos deu o maldito mapa...
— Claro — respondeu a Imperatriz Dourada —, mas
foste tu quem me trouxe até aqui, quem me empurrou
para esta caça infrutífera.
— Não. Um momento... Posso fazer-vos um elixir com
a escama do dragão. Tenho a certeza. Deixai-me ajudar-
vos...
Ela continuou a aproximar-se.
Foi então que Laya agarrou no braço de Niclays e o
puxou para as árvores, fazendo-o largar o cajado.
A sua reação inesperada apanhou os piratas de
surpresa. Em vez de se dirigir para os degraus, ela
lançou-se para a floresta, arrastando Niclays atrás de si.
O grupo de piratas soltou um uivo raivoso. Terrível como
o som da corneta antes da caçada.
— Laya — disse Niclays, ofegante —, isto é muito
heroico, mas os meus joelhos não aguentam a
perseguição de um bando de piratas sedentos de
sangue.
— Os teus joelhos aguentam, Velho Ruivo, ou
deixarás de ter joelhos — gritou Laya em resposta. Havia
um ligeiro traço de pânico na sua voz, mas também algo
semelhante a um riso. — Vamos chegar ao barco antes
deles.
— Eles deixaram guardas!
Enquanto saltava para uma saliência rochosa mais
baixa, Laya pegou no punhal que trazia no cinto.
— E então? — Estendeu a outra mão. — Achas que
todo este tempo passado em navios piratas não me
ensinou nada sobre luta?
Niclays aterrou com uma força que lhe fez tremer os
joelhos. Laya puxou-o para cima e ficaram escondidos
atrás de uma árvore.
Permaneceram imóveis no oco da árvore. Os seus
joelhos atormen­tavam-no e o seu tornozelo estava
dorido. Três piratas passaram por eles. Assim que
desapareceram no meio da folhagem, Laya recompôs-se
e ajudou Niclays a levantar-se.
— Fica comigo, Velho Ruivo — disse ela, segurando-
lhe a mão com força. — Vamos. Vamos para casa.
Casa.
Continuaram, escorregando na lama e correndo
quando podiam. Quando deu por isso, Niclays já tinha a
praia à vista. E lá estava o barco a remos, com apenas
dois guardas.
Iriam conseguir. Remariam para o norte até
chegarem ao Império dos Doze Lagos, e de lá fugiriam do
Oriente de uma vez por todas.
Laya soltou-lhe a mão, sacou a adaga e correu pela
areia, o manto a esvoaçar atrás de si. Ela era rápida. Mas
antes que pudesse atacar o primeiro guarda, umas mãos
agarraram Niclays. Os piratas haviam-nos alcançado.
— Laya — gritou, mas era tarde demais. Haviam-na
apanhado. E Ghonra estava a torcer-lhe o braço.
Padar obrigou Niclays a ajoelhar-se.
— Padar, Ghonra — implorou Laya —, não façam isto.
Conhecemo-nos há muito tempo. Por favor, tenham
piedade...
— Conheces-nos demasiado bem para tentares
amolecer-nos com súplicas. — Ghonra arrancou-lhe a
faca da mão e encostou-a à sua gar­ganta. — Dei-te este
punhal por deferência, Yidagé. Volta a implorar e corto-te
a língua.
Laya fechou a boca. Niclays queria
desesperadamente dizer-lhe que estava tudo bem, que
não dissesse nada. Qualquer coisa para evitar que
também fosse morta.
A sua bexiga ameaçou ceder. Contraindo todos os
músculos do seu corpo, tentou desligar a sua mente da
carne. Flutuar para fora de si mesmo, para se perder nas
suas memórias.
Estremeceu ao ver a Imperatriz Dourada,
imperturbável pela perse­guição de curta duração,
agachada à sua frente. E imaginou-se como mais um
entalhe no seu braço.
E então percebeu.
Queria sentir o sol no rosto. Queria ler livros e
passear pelas ruas em­pedradas de Brygstad. Queria
ouvir música, visitar museus, galerias de arte e teatros,
maravilhar-se com a beleza da criação humana. Queria
viajar para sul e para norte e absorver tudo o que tinham
para oferecer. Queria rir-se de novo.
Queria viver.
— Arrastei a minha tripulação através de dois mares
— disse-lhe a Imperatriz Dourada, tão baixinho que mais
ninguém conseguiu ouvir — só por causa de uma
história. Eles ficarão muito desapontados e pre­cisarão de
alguém para culpar, e garanto-te, Mestre das Receitas,
que não serei eu. A não ser que queiras que Yidagé se
torne o alvo da sua raiva no teu lugar, terás de ser tu. —
Tocou-lhe debaixo do queixo com a faca. — Poderão não
te matar. Mas creio que lhes suplicarás que te concedam
essa misericórdia.
Niclays já não a conseguia ver claramente. Perto dali,
Ghonra tinha Laya pela garganta, pronta para lhe tirar a
vida.
Posso arranjar uma maneira de fazer parecer que a
culpa é dela — disse a Imperatriz Dourada, olhando sem
remorsos para a intérprete com que navegara durante
duas décadas. — Afinal, não custa nada mentir.
Em tempos, Niclays deixara que uma jovem artista
fosse torturada para se poupar a esse destino. Fora a
reação de um homem que se es­quecera do que era
pensar em alguém que não fosse ele próprio. Se ainda
lhe restasse algum orgulho, não permitiria que Laya
sofresse por ele mais do que já tinha sofrido.
— Não fareis tal coisa — disse ele, com a voz serena.
Laya abanou a cabeça com angústia.
— Levem-no de volta ao Perseguição e contem à
tripulação o que descobrimos — disse a Imperatriz
Dourada, levantando-se. — Veremos o que...
Parou. Niclays olhou para cima.
A Imperatriz Dourada deixou cair a sua espada.
Contra a sua garganta, tinha a lâmina de um sabre e
Tané Miduchi estava do outro lado dela.
Niclays mal podia acreditar nos seus olhos. Ficou a
olhar, estupefacto, para a mulher que tentara
chantagear.
— Tu — balbuciou.
Onde quer que tivesse estado, os últimos meses não
tinham sido nada fáceis. Estava mais magra, com
olheiras e sangue nas mãos.
— Dêem-me a chave — exigiu em lacustre, a voz
profunda, grossa e plena de ódio. — A chave das
correntes.
Nenhum dos piratas se mexeu. A capitã também
ficou imóvel, com as sobrancelhas levantadas.
— Agora — insistiu a cavaleira de dragão —, ou
matar-vos-ei a líder. — A sua mão estava firme. — A
chave.
— Alguém que lha dê — disse a Imperatriz Dourada,
que quase pa­recia irritada com a interrupção. — Ela que
leve a sua besta, se assim o desejar.
Ghonra deu um passo em frente. Se a sua mãe
adotiva morresse, ela seria a próxima Imperatriz
Dourada, mas Niclays observara nela um sentido de
lealdade filial. Pôs a mão à volta do pescoço e tirou uma
chave de bronze.
— Não — disse a cavaleira de dragão. — A chave é
de ferro. — A lâmina estava manchada de sangue. —
Tentem enganar-me outra vez, e matá-la-ei.
Ghonra sorriu, maliciosamente. Tirou outra chave e
atirou-lha.
— Para ti, adoradora de dragões — ronronou. — Boa
sorte na tua tentativa de voltares para o navio.
— Deixem-me ir, e talvez não tenha de usar isto.

A cavaleira de dragão empurrou a Imperatriz


Dourada para o lado e levantou a outra mão. Nela havia
uma joia do tamanho de uma noz, de cor azul como
esmalte.

Não podia ser.

Niclays desatou a rir. Uma gargalhada sonora e


desenfreada.

— A joia crescente — exclamou o estudioso,


espantado. — Tu. Tu és a descendente de Neporo.

A cavaleira de dragão devolveu-lhe o olhar, em


silêncio.

Tané Miduchi. Descendente da Rainha de Komoridu.


Herdeira de uma rocha vazia e de uma árvore morta. A
sua expressão mostrava que não fazia ideia. Muitos
cavaleiros eram levados de lares carenciados. Ela devia
ter sido separada da família antes de lhe poderem contar
a verdade.

— Levai a minha amiga convosco — disse-lhe


Niclays de repente, os olhos ainda cobertos de lágrimas
quentes provocadas pelo riso. Apontou a cabeça para
Laya, que movia os lábios em oração. — Peço-vos, senho­‐
ra Tané. Ela está inocente em tudo isto.

— Por ti — disse a cavaleira de dragão, com o maior


dos desprezos desprezo — não faço nada.

— E quanto a mim? — perguntou a Imperatriz


Dourada. — Não me desejas morta, cavaleira?

Tané cerrou os dentes e apertou os dedos à volta do


punho da espada.

— Vem. Estou velha e lenta, criança. Podes acabar


com a caça ao dragão, aqui e agora. — A Imperatriz
Dourada bateu com os dedos na lâmina da sua espada.
— Corta-me a garganta. Recupera a tua honra.

Com um sorriso gelado, a cavaleira de dragão


cerrou o punho em torno da joia crescente.

— Não te matarei esta noite, carniceira — disse ela


—, mas o que vês diante de ti é um fantasma. Quando
menos esperares, voltarei para te assombrar. Irei
perseguir-te até aos confins da terra. E juro-te que, se
nos voltarmos a encontrar, tingirei o mar de vermelho.

Embainhou a sua espada e adentrou a escuridão.


Com ela, foi-se a sua única hipótese de fuga.
Foi então que um dos piratas disparou a sua pistola
contra ela.

Tané Miduchi parou de imediato no seu caminho.


Niclays viu-a cerrar o punho à volta da joia e sentiu um
ligeiro tremor.

Um rugido de água encheu o céu. Laya gritou.


Niclays mal teve tem­po de olhar para cima e ver a
parede de água que se erguia na praia antes que ela os
varresse a todos, mergulhando-os na escuridão gelada.

Niclays saiu a cambalear. As suas narinas ardiam


com a água salgada inalada, que lhe subia até ao peito.
Cego de terror, foi arrastado pela água, a boca cheia de
bolhas. Apenas conseguia ver as próprias mãos. Quando
voltou à superfície, perdera os óculos. Do pouco que
conseguiu perceber, os piratas haviam-se dispersado, o
barco que os levara até ali estava vazio e Tané Miduchi
tinha desaparecido.

— Encontrem-na! — rugiu a Imperatriz Dourada.


Niclays tossiu, cus­pindo água. — Voltem para o navio!
Tragam-me aquela joia!

O mar recuou com um sussurro e como se tivesse


sido sugado para a barriga de um deus. Niclays deu por
si na praia, de joelhos, a cuspir água e com os cabelos
molhados nos olhos.

Uma espada estava diante de si. Apanhou-a. Se


conseguisse encontrar Laya, ainda tinham uma hipótese.
Poderiam chegar ao barco a remos e partir...
No momento em que a chamou, avistou uma
sombra. Ergueu a espa­da, mas a Imperatriz Dourada
arrancou-lha da mão com uma estocada.
Um brilho de aço, depois outro.
Sangue na areia.
Um gorgolejo escapou-lhe da boca. Caiu no chão e
levou uma mão à garganta. A outra mão desaparecera.
Algures no caos, Laya chamava por si.
— A minha tripulação pedirá carne — disse a
Imperatriz Dourada, segurando a mão de Niclays como
se fosse um peixe morto. Ele vomitou ao ver aquilo. A
sua mão, ainda com a cor da vida. Com as manchas da
idade na pele. — Considera isto um ato de compaixão.
Levaria o resto do teu corpo, mas a minha carga está em
perigo, e contigo a bordo sería­mos mais lentos. De
certeza que compreendes, Roos. De bons negócios
percebes tu.
O seu braço uivou de dor, bombeando sangue
escuro. A sensação era-lhe nova. Como óleo a ferver.
Como uma chama no seu coto. Nunca mais voltaria a
manejar uma caneta. Era só nisso que conseguia pensar,
mesmo que a vida lhe estivesse a fugir. Um momento
depois, Laya estava ao seu lado, pressionando a ferida.
— Aguenta — disse, com a voz embargada. —
Aguenta, Niclays. — Abraçou-o com força. — Estou aqui.
Não te deixarei. Descansarás em Mentendon, não aqui.
Não agora. Prometo-te.
As suas palavras foram abafadas por um zumbido.
Pouco antes do seu mundo escurecer, olhou para o céu e
viu, finalmente, a silhueta da morte.
E, ao que parecia, tinha asas.

***

O Perseguição era um navio tão grande que as ondas


mal o afetavam. Quase se poderia pensar que não
flutuava na água. Loth sentou-se no casco, ouvindo o
burburinho no convés, totalmente ciente de que se en­‐
contrava no meio de um ninho de criminosos. Não se
atrevia a largar a adaga, mas desligara a lamparina, por
precaução. Era um milagre que ninguém tivesse descido
durante todo aquele tempo. Tané havia saído havia uma
eternidade.
O monstro — não, o dragão — observava-o com um
olho azul cheio de temor. Loth fixou o seu olhar no chão.
Era certo que aquela criatura não se parecia nem
agia como as bestas draconianas do Oeste, mas era
igualmente grande. Os seus chifres não eram muito
diferentes dos de um Sombra Ocidental, mas a
semelhança acabava aí. Do seu pescoço caía uma crina
que pareciam algas do rio. O seu rosto era largo, os olhos
redondos como broquel, e as suas esca­mas lembravam a
Loth mais um peixe do que um lagarto. Ainda assim, não
tinha intenção de lhe fazer confidências ou de falar com
ele. Bastava olhar para aqueles dentes, brancos e
afiados, para saber que seriam tão capazes quanto
Fýredel de fazer dele carne picada.
Passos. Escondeu-se atrás de uma caixa e agarrou a
adaga com força.
Tinha a testa húmida. Nunca matara ninguém antes.
Nem sequer a cocatriz. Apesar de toda a loucura em que
havia mergulhado, de alguma forma conseguira manter-
se imaculado. Mas mataria, para sobreviver. Para salvar o
seu pais.
Quando Tané apareceu, viu que ela estava ofegante,
um pouco tré­mula e encharcada. Sem uma palavra, tirou
uma chave da sua sacola e abriu a primeira das
fechaduras. Loth ajudou-a a puxar as correntes.
O dragão-fêmea sacudiu-se e soltou um grunhido
contido. Tané re­cuou um passo e gesticulou para que
Loth fizesse o mesmo, enquanto a besta levantava a
cabeça e a esticava em toda a sua imensidão. Loth
obedeceu, contente por se afastar. Pela primeira vez, a
besta parecia furio­sa. As suas narinas dilataram-se. Os
seus olhos brilharam. Esticou as gar­ras, equilibrou-se e,
com um tremendo golpe, bateu na lateral do navio.
O Perseguição oscilou. O chão tremeu e Loth quase
perdeu o equilíbrio.
Gritos soaram acima. O dragão ofegou. Se não
tivesse forças para abrir uma saída, morreriam os três na
hora.
Tané encorajou-a. O que quer que lhe tivesse dito,
funcionou. O dragão nivelou-se. Cerrou os dentes e
atacou novamente com a cauda. A madeira estilhaçou-
se. Atacou de novo. Uma caixa deslizou pelo chão. E mais
uma vez. Os gritos dos piratas, os seus passos nas
escadas, soavam cada vez mais perto. O dragão bufou e
atacou o casco, baten­do com a cabeça contra ele, e
desta vez a água entrou. Tané correu para o dragão e
subiu para o seu dorso.
Pecado mortal ou morte certa. A morte teria sido a
escolha que o Cavaleiro da Bravura teria feito, mas o
Cavaleiro da Bravura nunca precisara de chegar ao
Império dos Doze Lagos tão desesperadamente como
Loth, que abandonou todas as esperanças de chegar a
Halgalant e seguiu os passos da implacável adoradora de
wyrms. Tentou subir o melhor que pôde, mas as escamas
da fera eram escorregadias como óleo.
Tané estendeu-lhe a mão. Ele agarrou-a, o sabor do
sal já na boca, e ela içou-o. Loth olhou em volta à procura
de um lugar para se agarrar, enquanto tentava controlar
a crescente sensação de pânico. Estava mon­tado num
wyrm.
— Thim — gritou. — E o Thim?
As suas palavras foram abafadas quando o dragão se
lançou para fora, deixando a sua prisão. Loth agarrou-se
a Tané, que baixara a cabeça, segurando-se à crina
húmida que os rodeava. Com um último empur­rão, o
dragão saiu do buraco. Loth gritou quando mergulharam
no mar.
Um rugido nos seus ouvidos. Sal nos seus lábios.
Uma bofetada de ar gelado. Ouviam-se tiros no convés
do Perseguição, as portas dos canhões a abrir-se e Loth
ainda estava nas costas do dragão, deslizando pelas
ondas, evitando todos os tiros. Tané pronunciava
palavras que soavam a desespero, com as mãos
afundadas na crina da fera, que se erguia, como uma
pena levada pelo vento, pingando água das escamas. O
mar estava longe e, com as coxas a doer do esforço de
se sentar, Loth abraçou Tané com força e viu os piratas a
transformarem-se em pontinhos.
— Que o Santo me perdoe — disse ele, com a voz
embargada. — Abençoada Donzela, protegei o vosso
pobre servo.
Uma explosão de luz fê-lo olhar para oeste. Agora as
velas do Pomba Negra estavam em chamas, e de
repente surgiu um bando de wyrms es­voaçantes. O
Exército Draconiano. Com o coração aos pulos, Loth exa­‐
minou a escuridão da noite.
Havia sempre um líder.
O Sombra Ocidental anunciou a sua presença com
um jato de fogo. Voou acima do Pomba Negra e
despedaçou um dos seus mastros de uma só vez.
Valeysa. A Chama do Desespero. Harlowe dissera-lhe
que não estava longe. As suas escamas, vermelhas como
brasas incandescentes, pare­ciam absorver o fogo que se
espalhava pela frota. Enquanto os seus ser­vos
avançavam para o Perseguição, já um pouco fora de
alcance, ela soltou um rugido que fez os ossos de Loth
tremerem.
Tané impulsionou o seu dragão. O Rosa Eterna estava
à vista. Se des­cessem agora, Valeysa certamente vê-los-
ia. Se fugissem, Thim seria abandonado à sua própria
sorte. No momento em que a sua montaria se arqueou e
mergulhou, Loth pensou que o estômago lhe sairia pela
boca.
Thim estava de vigia. Quando viu que vinham em seu
socorro, subiu ainda mais alto, até ao topo do mastro
principal, e esperou, agarrando-se o melhor que podia.
Quando passaram por ele, o dragão apanhou-o com a
cauda. Ele gritou, agitando as pernas, enquanto se
afastavam do Rosa Eterna.
O dragão subia através de um manto de nuvens.
Nadava no ar. Thim subiu com grande esforço pelo seu
dorso, agarrando-se às saliências das suas escamas.
Quando estava suficientemente perto, Loth estendeu
uma mão e ajudou-o a passar por trás do pescoço da
besta.
Um grito fez os pelos dos seus braços arrepiarem-se.
Um wyvern perseguia-os, cuspindo chamas.
O dragão reagiu à ameaça como uma mosca. A
chama seguinte aproximou-se tanto que Loth sentiu o
cheiro a enxofre. Thim engatilhou a sua pistola e
disparou. O wyvern soltou um uivo, mas não desistiu.
Loth fechou os olhos com força. Ou morreria com a
queda, ou seria cozinhado como um ganso.
Antes que isso acontecesse, um vento forte surdiu de
repente e quase levantou os três das suas montadas. O
uivo era ensurdecedor. Quando conseguiu abrir um olho,
Loth viu que era o dragão que exalava aquele vento, tal
como as bestas draconianas exalavam fogo. Os seus
olhos bri­lhavam com uma luz azul-celeste. O fumo saiu-
lhe das narinas. A água condensou-se nas suas escamas,
formando gotas que caíram como chuva.
O wyrm soltou um grito raivoso. A sua pele fumegava
e a sua man­díbula estava aberta, mas o seu fogo
extinguira-se, perdendo-se de novo no fundo da
garganta, e por fim o vento dobrou-lhe as asas e atirou-o
ao mar.
Loth sentiu a chuva no rosto. Cuspiu água. Um
relâmpago e o dragão adentrou as nuvens, vitorioso,
envolvendo-se em névoa enquanto subia.
Foi então que Tané caiu para um lado. O instinto fez
Loth estender-lhe a mão. Agarrou-a pela túnica com a
ponta dos dedos, mas por pouco. O dragão rosnou.
Respirando com dificuldade, Loth puxou Tané para junto
do seu corpo e Thim envolveu-os com um braço.
Tané estava inconsciente, a cabeça descaída. Loth
verificou se a joia ainda estava na sua bolsa. Se a abrisse
agora, a joia perder-se-ia para sempre no mar.
— Espero que saibas falar com dragões — disse ele a
Thim. — Podes dizer-lhe para onde queremos ir?
Não obteve resposta. Quando olhou por cima do
ombro, Loth viu Thim a olhar para o céu com admiração.
— Estou sentado sobre um deus — disse ele,
extasiado. — Não sou digno disto.
Pelo menos alguém olhava para aquele pesadelo
como uma bênção.
Loth respirou fundo e dirigiu-se ao dragão.
— Encantado em conhecer-vos, grande dragão do
Oriente — disse ele, gritando para ser ouvido por cima do
vento. — Não sei se me enten­deis, mas tenho de falar
com o Imperador Eterno dos Doze Lagos, e é de extrema
importância. Poderíeis levar-nos ao seu palácio?
Um tremor percorreu o corpo da besta.
— Agarra bem a Tané — respondeu em inysh. — E
sim, filho do Oeste, levar-te-ei à Cidade das Mil Flores.
63
Este

Quando acordou, Tané deu por si a olhar para uma


janela. Do outro lado, o céu era pálido como um osso.
Estava numa cama com dossel. Alguém a vestira
com sedas limpas, mas a sua pele estava áspera do sal.
Perto de si, uma tigela com brasas emitia um brilho
avermelhado que se refletia no teto.
Quando se lembrou, deslizou a mão para o lado do
corpo.
A sua bolsa tinha desaparecido. Apavorada, remexeu
nos lençóis, quase se queimando no braseiro de cobre,
até que reparou na pequena caixa em cima de uma mesa
de cabeceira.
A joia crescente brilhava no seu interior. Tané
afundou-se nas almofadas com a caixa encostada ao
peito.
Picou deitada na cama durante muito tempo, a
dormir, até que final­mente uma mulher entrou no quarto.
Usava camadas de azul e branco, e a bainha da sua saia
tocava o chão.
— Nobre cavaleira. — Fez reverência a Tané com as
mãos entrelaça­das. — Esta humilde serva alegra-se por
vos ver desperta.
O quarto girou.
— Onde estou?
— Na Cidade das Mil Flores, na residência de Sua
Majestade Imperial, o Imperador Eterno dos Doze Lagos,
que governa sob as es­trelas e que está encantado por
vos ter como hóspede — respondeu a mulher, sorrindo.
— Irei trazer-vos algo para comer. Haveis percorrido um
longo caminho.
— Por favor, esperai — disse Tané, levantando as
costas. — Onde está Nayimathun?

— A radiante Nayimathun das Neves Profundas


descansa. Tal como os seus amigos, que também são
hóspedes do palácio.

— Não deveis castigar o homem do Oeste por ter


quebrado o blo­queio marítimo. Ele tem conhecimentos
de que eu preciso.

— Nenhum dos seus companheiros sofreu danos.


Estais segura aqui — disse a mulher, e retirou-se.

Tané olhou para o teto elaborado, para a mobília de


madeira preta. Era como se voltasse a ser cavaleira.

A Cidade das Mil Flores. Antiga capital do Império


dos Doze Lagos. O seu palácio não era apenas a
residência do honrado Imperador Eterno e da Grande
Imperatriz Viúva, mas também do próprio Dragão
Imperial. Os dragões de Seiiki seguiam os conselhos dos
mais velhos, mas os seus primos lacustres respondiam a
uma soberana.
Sentiu uma dor latejante na coxa. Levantou os
lençóis e viu que estava enfaixada.
Lembrou-se do homem seiikine vestido de vermelho-
púrpura. Outro estudioso que escapara ao seu destino.
Chamara-lhe descendente da lendária Neporo.
Certamente, era impossível. Neporo era uma rainha.
Os seus descen­dentes não podiam ter ido parar a uma
aldeia de pescadores, a maquinar a sua sobrevivência
num canto remoto de Seiiki.
A criada regressou com uma bandeja. Chá vermelho,
papas de aveia e ovos cozidos e uma porção de melão de
inverno.
— Mandarei encher uma bacia para vós.
— Obrigada — disse Tané.
Comeu um pouco do que lhe fora trazido enquanto
esperava. O Imperador Eterno não a receberia como
hóspede por muito tempo quando descobrisse o que ela
era. Uma fugitiva. Uma assassina.
— Bom dia.
Thim estava à porta, barbeado e vestido com roupa
lacustre. Sentou-se na cadeira ao lado da cama.
— A criada disse-me que estáveis acordada — disse
ele em seiikine.
Falava com um tom calmo. Embora tivessem
colaborado no barco, a verdade era que ela o tinha
roubado à sua tripulação.
— Como vedes — disse Tané.
— Queria agradecer-vos — disse ele, baixando a
cabeça —, por me salvardes a vida.
— Foi a grande Nayimathun que vos salvou. — Tané
pousou a chá­vena de chá na mesa. — Onde está o
homem do Oeste, honrado Thim?
— Lorde Arteloth está nos Jardins do Crepúsculo.
Deseja falar convosco.
— Irei quando me tiver vestido — disse, fazendo uma
pausa antes de continuar. — Porque decidistes navegar
com pessoas do outro lado do Abismo?
Tim franziu o cenho.
— Não só foram criados para odiar as bestas de fogo,
como também os nossos dragões — lembrou Tané. —
Sabendo disso, porque iria al­guém querer navegar com
eles?
— Talvez a questão seja outra, honrada Miduchi —
disse ele. — Seria o mundo melhor se todos fôssemos
iguais?
Ele saiu e fechou a porta atrás de si. Tané refletiu nas
suas palavras e percebeu que não tinha resposta.
A criada voltou para a acompanhar até ao banho. Com
a sua ajuda, Tané levantou-se da cama e chegou à sala
contígua a coxear.
— Há roupa no armário — disse a criada. — Precisareis
de ajuda para vos vestirdes, nobre cavaleira?
— Não, obrigada.
— Muito bem. Sois livre para explorar o recinto do
palácio, mas não deveis entrar no pátio interior. Sua
Majestade Imperial deseja contar com a vossa presença
no Pavilhão da Estrela Cadente amanhã.
Após dizer isso, a criada deixou Tané sozinha, que
ficou de pé entre as sombras do quarto de banho,
ouvindo o canto de um pássaro.
A banheira transbordava de água quente. Tané
deixou cair a túnica que cobria os ombros e removeu a
ligadura da coxa. Esticando o pesco­ço, conseguiu ver os
pontos que lhe tinham dado para coser o arranhão
causado pela bala. Teria sorte se não ficasse com febre.
Os seus braços estavam cobertos de pele de galinha
antes de entrar no banho. Lavou o sal do cabelo e depois
mergulhou na água, exausta.
Não merecia ser tratada como uma senhora, nem
dormir naqueles aposentos. Esta paz não podia durar.
Depois de limpa, vestiu-se. Uma camisa e uma
túnica de seda preta; depois, calças, meias e botas
confortáveis. Um sobretudo azul sem man­gas com
acabamento em pele e, finalmente, a caixinha numa
bolsa nova.
O seu coração acelerou com a ideia de voltar a
encontrar Nayimathun. O seu dragão vira o sangue nas
suas mãos.
Alguém lhe tinha deixado um cajado junto à porta.
Tané pegou nela e saiu do seu quarto para um corredor
de janelas gradeadas e paredes com painéis de madeira
elaborados. As constelações pintadas no teto brilhavam.
O chão era de pedra escura, aquecido por baixo.
No exterior, viu um pátio de dimensões tão
gigantescas que pode­ria ter albergado uma manada
inteira de dragões. Uma névoa cinzenta ofuscava a luz
das lanternas. Só conseguia ver o grande pavilhão, ergui­‐
do num terraço de mármore em vários níveis, cada um
com um tom de azul mais escuro do que o anterior.
— Soldado — disse Tané, dirigindo-se a um guarda.
— Posso perguntar-vos como chegar aos Jardins do
Crepúsculo?
— Minha senhora, os Jardins do Crepúsculo estão
naquela direção — disse, apontando para uma porta ao
longe.
Demorou uma eternidade a atravessar o pátio. Viu o
Pavilhão da Estrela Cadente lá em cima. No dia seguinte,
estaria lá dentro, na pre­sença do chefe da Casa Real de
Lakseng.
Pediu indicações a outros guardas e finalmente
chegou à porta certa. Tinham limpado a neve do pátio,
mas ali estava intocada.
Os Jardins do Crepúsculo eram uma lenda em Cabo
Hisan. Dizia-se que ao entardecer ficavam cheios de
pirilampos. Ao longo dos cami­nhos, as flores noturnas
desabrochavam. Havia espelhos espalhados pelo jardim
para direcionar a luz da Lua, e os tanques, límpidos e
serenos, refletiam as estrelas na perfeição.
Mesmo durante o dia, aquele lugar parecia uma
pintura. Caminhou lentamente, observada pelas estátuas
de antigos soberanos lacustres e suas consortes, alguns
acompanhados por jovens dragões. Cada con­sorte
segurava um vaso de rosas de cor entre rosa e amarelo-
cremoso. Também havia árvores sazonais vestidas de
branco para o inverno, que a fizeram lembrar de Seiiki.
Do seu lar. .
Atravessou uma ponte sobre um riacho. Através da
névoa, podia ver pinheiros e o contorno de uma
montanha. Se continuasse a caminhar entre aquelas
árvores por tempo suficiente, chegaria ao Lago dos Dias
Eternos.
Nayimathun estava enroscada na neve, do outro lado
da ponte, agi­tando a água de um lago de nenúfares com
a ponta da cauda. Loth e Thim estavam a conversar
animadamente num pavilhão próximo. Tané acalmou-se.
Quando se aproximou, Nayimathun resfolegou, criando
uma nuvem de vapor. Tané largou a muleta e baixou a
cabeça.
— Grande Nayimathun.
Um grunhido profundo. Tané fechou os olhos.
— Levanta-te, Tané — disse o dragão. — Já te disse.
Deves falar co­migo como falarias com um amigo.
— Não, grande Nayimathun. Não me tenho
comportado como uma amiga contigo. — Tané ergueu a
cabeça, mas tinha um nó na garganta. — A honrada
Governadora de Ginura fez bem em exilar-me de Seiiki.
Naquela noite, estavas na praia por minha causa. Tudo
isso aconteceu por­que me escolheste a mim e não a
outra, como tua companheira. — A voz tremeu. — Não
deves falar comigo com tanta consideração. Matei, menti
e aproveitei-me. Fugi do meu castigo. A água em mim
nunca foi pura.
A fêmea de dragão inclinou a cabeça. Tané tentou
olhá-la, mas a ver­gonha fazia-a baixar os olhos.
— Para seres companheira de um dragão — disse
Nayimathun —, não basta teres uma alma de água.
Também precisas de ter sangue do mar, e o mar nem
sempre é puro. Não é uma única coisa. Nele há escuri­dão
e perigo e crueldade. Pode devastar cidades com a sua
fúria. As suas profundezas são insondáveis; não veem o
sol. Ser Miduchi não significa ser pura, Tané. É ser o mar
em vida. Foi por isso que te escolhi. Tens o coração de
um dragão.
O coração de um dragão. Não poderia sentir-se mais
honrada. Tané queria falar, negar, mas quando
Nayimathun a acariciou com o focinho como se fosse um
filhote, ela cedeu. As lágrimas escorreram pelo seu rosto
enquanto abraçava a sua amiga, tremendo de emoção.
— Obrigada — sussurrou. — Obrigada, Nayimathun.
— Liberta-te agora desse sentimento de culpa,
cavaleira — respon­deu o dragão, com uma voz grave. —
Não desperdices as tuas lágrimas.
Ficaram assim por um bom tempo. Tané não
conseguia parar de so­luçar, com a face pressionada
contra Nayimathun. Carregara um fardo imensurável
desde a morte de Susa, mas agora finalmente poderia
lidar com ele. Quando conseguiu respirar sem chorar,
passou a mão no local onde Nayimathun havia sido
ferida. Agora, uma escama de metal cobria-lhe a carne,
gravada com desejos de uma rápida cura.
— Quem te fez isso?

— Já não importa. O que aconteceu naquele navio


faz parte do passa­do — disse Nayimathun, dando-lhe um
leve toque com o focinho. — O Inominável erguer-se-á.
Todos os dragões do Oriente o sentimos.

Tané enxugou as lágrimas e pegou na caixinha.

— Toma, é tua — disse, com a joia crescente na


palma da mão. Nayimathun fungou delicadamente.

— Dizes que a tinhas cosida no teu corpo.

— Sim — respondeu Tané. — Sempre tive um


volume naquele sí­tio. — A garganta voltou a secar. —
Não sei nada sobre a minha famí­lia, nem por que me
puseram isto, mas na ilha um dos tripulantes do
Perseguição viu a joia. Ele disse que eu era descendente
de... Neporo.

Nayimathun resfolegou, criando uma nova nuvem


de vapor.

— Neporo — repetiu. — Sim... era assim que se


chamava. Foi a pri­meira a ter esta joia.
— Mas, Nayimathun, eu não posso ser descendente
de uma rainha — argumentou Tané. — A minha família
era muito pobre.
— Tens a joia dela, Tané. Não pode haver outra
explicação — disse Nayimathun. — A Grande Imperatriz
Viúva era uma soberana muito equilibrada, mas o seu
neto é jovem e impulsivo. É melhor não lhe fa­larmos
sobre a verdadeira natureza da joia, caso ele a queira
tirar de ti. — Ela lançou um olhar a Loth. — Ele sabe onde
está a outra, mas teme-me. Talvez queira contar a outro
humano.
Tané virou-se na direção para onde Nayimathun
olhava. Quando Loth viu que ambas o fitavam, parou de
falar com Thim.
— Amanhã, deves apoiar o pedido dele. Quer propor
uma aliança entre o Imperador Eterno e a Rainha Sabran
de Inys — disse o dragão.
— O Imperador Eterno nunca concordará —
respondeu Tané, per­plexa. — Seria uma loucura sequer
propor isso.
— Ele pode sentir-se tentado. Agora que o
Inominável está a regressar, é de extrema importância
que o enfrentemos juntos.
— Então, ele vai voltar?
— Nós sentimo-lo. A diminuição do nosso poder e o
aumento do dele. O fogo dele queima ainda mais
intensamente. — Nayimathun empurrou-a suavemente
com o focinho. — Vá. Pergunta-lhe sobre a joia
minguante. Precisamos dela.
Tané guardou a joia crescente. Não importava o que
Loth soubesse sobre a sua gémea, era improvável que a
entregasse aos dragões, ou a ela.
Atravessou a ponte e chegou ao pavilhão onde os
dois homens se encontravam.
— Dizei-me onde está a joia minguante — disse ao
homem do Oeste. — Devemos devolvê-la aos dragões.
Loth pestanejou, surpreendido.
— Isso está fora de questão — disse. — Pertence a
uma querida amiga minha que está em Inys.
— E quem é essa amiga?
— Chama-se Eadaz uq-Nāra. A senhora Nurtha. Ela é
uma maga. Aquela era uma palavra que Tané nunca
tinha ouvido antes.
— Acho que significa feiticeira — disse Thim a Tané
em seiikine.
— A joia não pertence a essa tal senhora Nurtha —
disse Tané, irrita­da. — Pertence aos dragões.
— As joias escolhem os seus portadores. E apenas a
morte poderá quebrar o vínculo entre Ead e a joia
minguante.
— E ela pode vir até aqui?
— Ela está gravemente doente.
— Irá recuperar?
Uma sombra atravessou os olhos de Loth. Apoiou os
braços na ba­laustrada e ficou a olhar para os pinheiros.
— Talvez haja uma maneira de a curar — murmurou.
— No Sul, há uma laranjeira guardada por assassinas de
wyrms. O seu fruto pode contrariar os efeitos do veneno.
— Assassinas de wyrms — repetiu Tané, parecendo
não muito satisfeita com aquela revelação. — E essa
Eadaz uq-Nāra também é uma assassina de wyrms?
— Sim.
Tané ficou tensa.
— Entendo que do outro lado do Abismo considereis
todos os dragões malignos. Que os julgueis tão cruéis e
temíveis como o Inominável.
— É verdade que houve... alguma confusão, mas
tenho a certeza de que Ead nunca fez mal a nenhum dos
vossos dragões do Oriente. — Ele virou-se para ela. —
Preciso da vossa ajuda, senhora Tané. Para cumprir a
minha missão.
— E qual é a vossa missão?
— Há algumas semanas, Ead encontrou uma carta
de uma mulher do Oriente chamada Neporo, que em
tempos possuíra a vossa joia.
Neporo outra vez. O seu nome viajava pelo mundo,
perseguindo Tané como um fantasma sem rosto.
— Conheceis esse nome? — disse Loth, examinando-
a.
— Sim. Que dizia a carta?
— Que o Inominável regressaria mil anos após ter
sido aprisionado no Abismo com as duas joias. Que
emergiria no terceiro dia da primave­ra, no vigésimo ano
do reinado da Imperatriz Mokwo de Seiiki.
Tané fez o cálculo.
— Esta primavera.
A seu lado, Thim conteve um praguejo.
— A Rainha Sabran quer que estejamos preparados
para quando ele ressurgir. Não o podemos destruir, não
sem a espada Ascalon, mas podemos aprisioná-lo
novamente com as joias. — Loth fez uma pausa. — Não
temos muito tempo. Eu sei que não tenho provas, e que
talvez não acrediteis em mim. Mas peço-vos que confieis
em mim.
O seu olhar era sincero.
Afinal de contas, tratava-se de uma decisão simples.
Não lhe restava alternativa senão voltar a juntar as joias.
— A grande Nayimathun diz que não devemos
contar a mais nin­guém sobre as joias, para que não
sejam cobiçadas. Amanhã, quando virmos Sua Majestade
Imperial, levar-lhe-eis a proposta da rainha. Se concordar
em assinar a aliança... perguntar-lhe-ei se posso voar
para Inys com Nayimathun para informar a vossa rainha
da sua decisão. No caminho, passaremos pelo sul.
Encontrarei o fruto curativo e levá-lo-ei a Eadaz uq-Nāra.
Loth sorriu, e o seu hálito criou uma nuvem de fumo
branco.
— Obrigado, Tané.
— Não me agrada ter de esconder isto de Sua
Majestade Imperial — objetou Thim. — Ele é o
representante escolhido do Dragão Imperial. A grande
Nayimathun não confia nele?
— Não nos cabe questionar os deuses.
Thim franziu os lábios, mas assentiu.
— Certificai-vos de que apresentais um caso
convincente ao honrado Imperador Eterno, Lorde Arteloth
Beck — disse Tané a Loth. — E dei­xai o resto comigo.

***

A primeira luz do dia espalhou-se como óleo por todo


o palácio. Loth olhou-se ao espelho. Em vez dos seus
calções e do seu gibão, vestia uma túnica azul e botas ao
estilo da corte lacustre. Já tinha sido examinado por um
médico, que não encontrou sintomas da peste.
O plano que Tané lhe tinha proposto podia resultar.
Se ela tivesse sangue de mago, como Ead, talvez
conseguisse tirar uma laranja da ár­vore. Essa ideia
deixou-o ainda mais nervoso, agora que a reunião se
aproximava.
O dragão, Nayimathun, não era nada parecido com
Fýredel, exceto pelo seu enorme tamanho. Apesar da sua
aparência aterradora, com os seus dentes terríveis e
olhos ardentes, parecia quase amigável. Envolveu a
cauda à volta de Tané como uma mãe. Tinha-o salvado.
Ver que esta criatura era capaz de mostrar compaixão
por um humano fê-lo duvidar novamente da sua religião.
Ou tudo isto era um teste que o Santo lhe tinha posto, ou
estava à beira da apostasia.
Pouco depois, chegou um criado para o levar ao
Pavilhão da Estrela Cadente, onde o Imperador Eterno
receberia os seus inesperados visi­tantes. Os outros já
estavam nos portões. Thim estava vestido da mesma
forma que Loth, enquanto Tané tinha recebido um
sobretudo de pele que indicava certamente um certo
estatuto. Os cavaleiros de dragões deviam ser muito
respeitados.
— Lembrai-vos: não digais nada sobre a joia — disse
ela, tocando na sua caixinha.
Loth levantou os olhos em direção ao pavilhão e
respirou fundo.
Guardas armados abriram caminho por uma série de
portas azuis cravejadas, ladeadas por estátuas de
dragões. Outros guardas esperavam dos lados da
passarela de madeira escura, brilhante, que os levaria ao
centro do pavilhão. Loth percorreu com o olhar os
altíssimos pilares de pedra da meia-noite, com um teto
entalhado acima, com painéis dispos­tos em torno da
escultura de um dragão. Cada painel mostrava uma fase
da Lua. Do teto pendiam fileiras de lanternas, uma
abaixo da outra, que lembravam estrelas cadentes.
Dranghien Lakseng, o Imperador Eterno dos Doze
Lagos, estava sen­tado num trono elevado que parecia
feito de prata. Era uma presença imponente. Cabelos
negros, amarrados num coque no topo da cabeça,
adornado com pérolas e flores de prata. Olhos como
contas de ónix. Sobrancelhas espessas. Lábios tão
marcantes quanto as suas maçãs do rosto, desenhando
um sorriso perfeito. Vestia uma túnica negra bordada
com estrelas, de modo que dava a impressão de vestir a
noite. Não teria mais de trinta anos.
Tané e Thim ajoelharam-se no chão. Loth imitou-os.
— Erguei-vos — disse uma voz clara e suave.
Eles levantaram-se.
— Não sei bem por onde começar — observou o
Imperador Eterno, após uma breve pausa. — Uma mulher
de Seiiki, um homem do Oeste e um dos meus próprios
súbditos. Uma combinação fascinante. Suponho que
teremos de falar em inysh, já que, segundo me
contaram, Lorde Arteloth, vós não falais nenhuma outra
língua. Felizmente, quando era criança, impus a mim
mesmo o desafio de aprender um idioma de cada uma
das quatro partes do mundo.
Loth pigarreou.
— Majestade Imperial — disse ele —, falais inysh
muito bem.
— Não precisais de me bajular. Já fazem isso no meu
Conselho Real — disse o Imperador, com um grande
sorriso. — Sois o primeiro homem inysh a pisar o Império
dos Doze Lagos em séculos. Os meus secretários
disseram-me que trazeis uma mensagem da Rainha
Sabran de Inys, mas chegastes montado num dragão,
pelo que pareceis mais habilidoso do que os
embaixadores oficiais costumam ser.
— Oh, sim. Peço desculpa por...
— Se me permitis falar, este humilde servo que se
apresenta diante do vosso trono, Vossa Majestade —
disse Thim. O Imperador Eterno inclinou a cabeça. — Eu
sou marinheiro ao serviço da Rainha Sabran.
— Um marinheiro lacustre ao serviço da rainha de
Inys. Certamente, este é um dia de surpresas.
Thim engoliu em seco.
— Fomos surpreendidos por uma tempestade na Ilha
das Penas, onde o meu capitão e companheiros de
tripulação ainda estão encalhados — prosseguiu. — O
nosso barco foi capturado pela nobre cavaleira de Seiiki,
que seguiu o Perseguição para leste, até o capturar.
Libertámos a grande Nayimathun, e ela trouxe-nos até à
vossa corte.
— Ah — murmurou o Imperador Eterno. — Dizei-me,
senhora Tané, encontrastes aquela a quem chamam de
Imperatriz Dourada?
— Sim, Majestade — disse Tané. — Mas deixei-a viva.
O meu obje­tivo era libertar a minha apreciada amiga, a
magnífica Nayimathun das Neves Profundas.
— Majestade. — Thim ajoelhou-se novamente. —
Este humilde ser­vo implora-vos que envieis a marinha
lacustre para ajudar o Capitão Harlowe a recuperar o seu
navio, o Rosa...
— Falaremos sobre a vossa tripulação mais tarde —
disse o Imperador Eterno, deixando o assunto de lado
com um gesto da mão. Envergava um anel grosso no
polegar. — Agora, quero ouvir a mensagem da Rainha
Sabran.
Com arrepios na pele, Loth respirou fundo e
preparou-se para falar. As suas palavras ditariam o que
poderia acontecer a seguir.
— Majestade Imperial — disse ele —, o Inominável, o
nosso inimigo comum, regressará muito em breve.
Não houve resposta.
— A Rainha Sabran tem provas. Uma carta de uma
tal Neporo de Komoridu. O Inominável foi subjugado e
ficou preso com a ajuda das joias celestiais, das quais,
segundo creio, os dragões do Oriente têm co­nhecimento.
A sua reclusão terminará mil anos após o momento em
que ocorreu, no terceiro dia da próxima primavera.
— Neporo de Komoridu é uma figura mítica — disse
o Imperador Eterno. — Pretendeis fazer-me de parvo?
— Não. — Loth baixou a cabeça. — É a verdade,
Majestade.
— Estais na posse dessa carta?
— Não.
— Assim, devo acreditar na vossa palavra e presumir
que ela existe — disse ele, torcendo o canto da boca num
gesto sarcástico. — Muito bem. Se o Inominável
realmente regressar, que quereis de mim?
— A Rainha Sabran deseja que enfrentemos a besta
do Abismo no mesmo dia em que ela ressurgir — disse
Loth, tentando não se apressar. — Para isso,
precisaremos de deixar de lado séculos de medo e
desconfiança. Se Vossa Majestade Imperial concordar em
interceder junto aos dragões do Império dos Doze Lagos,
a Rainha Sabran oferece-vos uma aliança entre o Reino
das Virtudes e o Oriente. Ela pede-vos que considereis o
que é melhor para o mundo, uma vez que o Inominável
procura destruir-nos a todos.
O Imperador Eterno permaneceu em silêncio por um
bom tempo. Loth tentou manter uma expressão neutra,
mas sentia o suor no pescoço.
— Isso... não é o que eu esperava — disse
finalmente o Imperador Eterno. O seu olhar era
penetrante. — A Rainha Sabran tem algum plano?
— Sua Majestade propõe um ataque em duas
frentes. Primeiro — disse Loth —, os soberanos do Oeste,
Norte e Sul uniriam os seus exér­citos para recuperar o
bastião draconiano de Cárscaro.
A imagem do rosto da Donmata Marosa aflorou-lhe à
mente.
Sobreviveria a um ataque à cidade?
— Isso chamará a atenção de Fýredel, que é o braço
direito da bes­ta — prosseguiu. — Esperamos que ele
envie pelo menos uma parte do Exército Draconiano para
defendê-la, deixando o Inominável mais vulnerável.
— Presumo que também tenhais um plano para atacar
a besta.
— Sim.
— A Rainha Sabran é sem dúvida ambiciosa —
observou o Imperador Eterno, levantando uma
sobrancelha. — Mas que pretende oferecer ao meu país
em troca do empenho dos seus deuses?
Os seus olhares cruzaram-se e, de repente, Loth
lembrou-se do soprador de vidro de Rauca. Negociar
nunca fora o seu ponto forte. Agora, teria de o fazer pelo
destino do mundo.
— Em primeiro lugar, fazer história — disse ele. —
Com esta ação, se­ríeis o primeiro imperador a superar a
separação imposta pelo Abismo. Imaginai um mundo em
que possamos voltar a comerciar livremente; em que
possamos beneficiar do nosso conhecimento comum,
de...
— ... dos meus dragões — interrompeu o Imperador
Eterno. — E dos do meu irmão de armas de Seiiki,
suponho. O mundo que descreveis e muito bonito, mas a
peste vermelha ainda é uma ameaça.
— Se derrotarmos o nosso inimigo comum e
eliminarmos o poder dos dragões, a doença vermelha
desaparecerá gradualmente.
— Isso apenas poderemos esperar. Que mais?
Loth fez as ofertas que o Conselho das Virtudes lhe
dera permissão para fazer. Uma nova parceria comercial
entre o Reino das Virtudes e o Oriente. A garantia de
apoio inysh aos lacustres, tanto económico como militar,
em caso de conflito ou desastre durante a aliança. Um
tributo em joias e ouro aos dragões do Oriente.
— Tudo isso parece muito razoável — observou o
Imperador Eterno —, mas percebo que não mencionastes
o casamento, Lorde Arteloth. Sua Majestade oferece a
sua mão?
Loth humedeceu os lábios.
— Seria uma honra para a minha rainha fortalecer
essa aliança histórica por meio do casamento — sugeriu,
sorrindo. Até mesmo Margret reconhecera que o seu
sorriso poderia amolecer qualquer coração. — No
entanto, ela ficou recentemente viúva. Preferiria que
fosse apenas uma aliança militar. Naturalmente, se a
tradição lacustre o proibir sem o casamento, certamente
entenderia.
— Lamento por Sua Majestade e espero que
encontre a força ne­cessária para superar a sua dor —
disse o Imperador Eterno, fazendo uma pausa. — É
admirável que tenhais pensado que podíamos superar
todas essas diferenças sem o casamento e o herdeiro
que resultaria disso. Certamente, tudo isso é um passo
em direção à modernidade.
Tamborilou com os dedos sobre os braços do seu
trono outra vez, estudando Loth com certo interesse.
— Está claro que não sois um diplomata, Lorde
Arteloth, mas as vossas tentativas de me agradar,
embora desajeitadas, são nobres. Além disso, vivemos
tempos desesperados — concluiu o Imperador Eterno. —
Em prol de uma aliança moderna... não exigirei o
casamento como pré-requisito do acordo.
— A sério? — disse Loth, incapaz de se conter. —
Vossa Majestade Imperial — acrescentou, enrubescido.
— Surpreende-vos que concorde tão depressa.
— De facto, esperava encontrar mais resistência —
reconheceu Loth.
— Gosto de pensar que sou um soberano com visão
de futuro. E acon­tece que não tenho interesse algum em
casar. — O seu rosto contraiu-se por um momento. —
Devo esclarecer, Lorde Arteloth, que estou ape­nas a dar
a minha concordância para combatermos o Inominável
juntos.
Outras questões, como o comércio, levarão mais
tempo a ser negociadas. Dada a ameaça da peste
vermelha.
— Sim, Vossa Majestade Imperial.
— Claro, o meu consentimento pessoal para uma
batalha no mar, por mais valioso que vos possa parecer,
não é garantia de que isso prospera­rá. Devo primeiro
consultar o Conselho Real, já que o meu povo espera que
a aliança traga uma nova imperatriz, e imagino que os
mais conser­vadores levantarão objeções. De qualquer
forma, esse assunto deve ser abordado com inteligência.
Loth estava demasiado assoberbado e aliviado para
se preocupar com isso.
— Claro.
— Também devo consultar o Dragão Imperial, que é
a minha luz e guia. Os dragões deste país são seus
súbditos, não meus, e apenas se convencerão se ela
considerar essa aliança apropriada.
— Entendo — disse Loth, fazendo uma reverência
profunda. — Obrigado, Majestade. — Ergueu a cabeça
novamente e pigarreou. — É um grande risco para todos,
eu sei. Mas que governante fez história evitando o risco?
Ao ouvir isso, o Imperador Eterno permitiu-se sorrir.
— Até chegarmos a um acordo, Lorde Arteloth,
permanecereis aqui como convidado de honra — disse.
— E a menos que os meus ministros levantem alguma
consideração que precise de ser discutida em porme­nor,
tereis a minha resposta ao amanhecer.
— Obrigado. — Loth hesitou por um momento. —
Majestade, po­deria... poderia a senhora Tané ir com o seu
dragão levar a notícia a Rainha Sabran?
Tané olhou para ele.
— A senhora Tané não é minha súbdita, Lorde Arteloth
— disse o Imperador Eterno. — Tendes de tratar do
assunto com ela. Mas primei­ro, gostaria que a senhora
Tané me acompanhasse na quebra de jejum.
Quando se pôs de pé, os guardas endireitaram a
postura. Falou a Tané noutra língua, ela assentiu e foi
com ele.
Loth voltou com Thim para os Jardins do Crepúsculo.
Thim atirou uma pedra, fazendo-a saltitar na superfície
da água do lago.
— Não importa o que digam os ministros — disse.
Loth franziu a testa.
— Que queres dizer?
— A única opinião que o Imperador Eterno respeita,
além da do magnífico Dragão Imperial, é a da sua avó, a
Grande Imperatriz Viúva. — Thim ficou a olhar enquanto
as ondas se espalhavam pela água. — Ele respeita-a
acima de todas as outras. Ela saberá tudo o que se
passou entre nós naquela sala do trono.
Loth olhou por cima do ombro.
— Se ela aconselhar a não assinar a aliança...
— Pelo contrário — disse Thim —, acredito que o
encorajará a fazê-lo. Para que possa honrar o seu epíteto.
Como poderia um mortal ser eterno senão através de
ações memoráveis e históricas?
— Então talvez haja esperança — disse Loth,
suspirando. — Tereis de me desculpar, Thim. Se quero
que isto dê certo, tenho de fazer tudo o que posso e
rezar para que aconteça.

***
Quando era criança, Tané imaginara muitos futuros
possíveis. Nos seus sonhos, derrotava os demónios
cuspidores de fogo montada no seu dra­gão. Tornara-se a
maior cavaleira de Seiiki, maior até do que a Princesa
Dumai, e as crianças rezavam para ser como ela um dia.
O seu retrato adornava as paredes das grandes casas e o
seu nome entrara para a história.
Mas em todo esse tempo, nunca se atreveu a sonhar
que um dia ca­minharia ao lado do Imperador Eterno dos
Doze Lagos, na Cidade das Mil Flores.
O Imperador Eterno usava uma túnica revestida de
peles. Seguiram Pelo caminho, livre de neve, com os
guarda-costas do soberano atrás de­les. Quando
chegaram a um pavilhão junto ao lago, o Imperador
Eterno indicou-lhe uma das cadeiras com um gesto.
— Por favor — disse. Tané sentou-se, e ele também. —
Pensei que poderíeis acompanhar-me.
— Será uma honra para mim, Majestade.
— Sabeis que pássaro é aquele?
Tané olhou para onde ele apontara. Muito próximo
dali, um cisne cuidava do seu ninho.
— Sim, claro — respondeu ela. — É um cisne.
— Ah, sim, mas não é um cisne qualquer. Em
lacustre, chamamo-los de cisnes mudos. Diz-se que o
Inominável lhes roubou a voz e que só voltarão a cantar
quando nascer um soberano destinado a derrotá-lo de
uma vez por todas. Dizem que na noite em que eu
cheguei a este mun­do, eles cantaram pela primeira vez
em séculos. — Ele sorriu. — E as pessoas depois
perguntam-se porque têm os soberanos uma opinião tão
elevada de si mesmos. Tentam fazer-nos acreditar que
até os pássaros se importam com o que fazemos.
Tané esboçou um sorriso tímido.
— Acho a vossa história fascinante. Soube que no
passado haveis sido uma promissora guardiã do mar,
mas que um mal-entendido em Ginura vos levou ao exílio
na Ilha das Penas.
— Sim, Majestade — disse Tané.
— Adoro histórias. Quereis fazer-me o favor de me
contardes tudo o que vos aconteceu?
As mãos de Tané suavam.
— Aconteceram-me muitas coisas — respondeu ela.
— Talvez leve a maior parte da manhã, Majestade.
— Ah, não tenho nada para fazer além de observar
os meus conselheiros enquanto retorcem as mãos
debatendo a proposta do Lorde Arteloth.
Os criados chegaram, serviram o chá e trouxeram
pratos de comida: tâmaras embebidas em mel vermelho
das montanhas, peras em calda, maçãs em folhas de
ameixeira, frutos secos ao vapor, tigelas de arroz preto.
Cada prato estava coberto com um paninho de seda
bordado com estrelas. Tané jurara não falar mais sobre o
seu passado, mas o sorriso afável do Imperador Eterno
tranquilizou-a. Enquanto ele comia, contou-lhe como
havia saído aquela noite e testemunhado a chegada de
Sulyard, e como Susa pagara pela sua imprudente
tentativa de esconder o ocorrido, e tudo o que
acontecera depois.
Tudo, exceto a joia costurada no seu corpo.
— Então, haveis escapado ao vosso exílio para libertar
o vosso dragão, com poucas esperanças de sucesso —
murmurou o Imperador Eterno. — Isso é digno de
admiração. E parece que também encontrastes a ilha
perdida. — Secou a boca. — Dizei-me... como
conseguistes encontrar a amoreira de Komoridu?
Tané olhou para cima e encontrou os seus olhos
brilhantes.
— Havia uma árvore morta — disse ela. — Morta e
retorcida, cober­ta por uma inscrição. Não tive tempo de
lê-la.
— Dizem que o espírito de Neporo vive nessa árvore.
Quem comer do seu fruto absorve a sua imortalidade.
— A árvore não tinha frutos, Majestade.
No rosto do soberano surgiu um lampejo de uma
emoção indescritível.
— Não importa — disse ele, estendendo a sua
chávena para ser servi­do com mais chá. Um criado
encheu-a. — Agora que conheço o vosso passado,
intriga-me o vosso futuro. Que pretendeis fazer de agora
em diante?
Tané cruzou os dedos no colo.
— Primeiro, quero participar na destruição do
Inominável. Depois, quero regressar a Seiiki — disse,
hesitante. — Se Vossa Majestade Imperial me pudesse
ajudar a fazer as duas coisas, ficar-lhe-ia muito grata.
— E como poderia ajudar?
— Intercedendo em meu nome junto do honrado
Senhor da Guerra. Se lhe disserdes que resgatei
Nayimathun, súbdita do esplendoroso Dragão Imperial,
talvez ele queira rever o meu caso e permitir-me
regressar.
O Imperador Eterno bebeu um gole do seu chá.
— É verdade que resgatastes um dragão das mãos da
Frota do Olho de Tigre, arriscando a vossa própria vida.
Não é uma tarefa fácil — re­conheceu. — Para
recompensar a vossa coragem, farei o que me pedis, mas
sabei que não posso permitir que regresseis a Seiiki
antes de obter uma resposta. Seria negligente da minha
parte permitir que uma fugiti­va voltasse sem permissão.
— Compreendo.
— Muito bem.
Ele levantou-se e dirigiu-se para a balaustrada. Tané
foi com ele.
— Parece que o Lorde Arteloth deseja que sejais vós a
levar as notícias a Inys se eu concordar com a proposta.
Estais assim tão ansiosa por ser minha embaixadora?
— Isso iria acelerar as coisas, Majestade. Se
permitirdes que um cida­dão de Seiiki seja o vosso
mensageiro nesta ocasião.
Sentiu o peso da joia junto ao seu corpo. Se o
Imperador Eterno re­cusasse, não poderia fazer aquele
desvio e passar pelo sul.
— Seria pouco convencional. Não sois minha súbdita,
e haveis caído em desgraça — o Imperador Eterno
refletiu —, mas algo me diz que es­tamos destinados a
mudar as coisas. Além disso, gosto de desafiar as con­‐
venções de vez em quando. Nenhum governante fez
progressos a jogar pelo seguro. E isso mantém os meus
oficiais superiores em alerta. — A luz do Sol brilhava no
seu cabelo escuro. — Nunca esperam que gover­nemos
de facto, sabeis? Se o fizermos, acusam-nos de sermos
loucos.
Mantêm-nos envoltos em algodão, distraem-nos com
luxos e riquezas desmedidas, para que não causemos
problemas. Esperam que fiquemos tão aborrecidos com o
poder que os deixaremos governar no nosso lugar. Atrás
de cada trono há um servo mascarado que procura
apenas fazer de quem nele se senta um fantoche. A
minha querida avó ensinou-me isso.
Tané esperou, sem saber o que dizer.
O Imperador Eterno juntou as mãos atrás das costas.
Respirou fundo, e os seus ombros moveram-se para cima
e para baixo.
— Haveis-vos provado capaz de realizar tarefas
difíceis, e não temos tempo a perder — disse. — Se
estais disposta a levar a minha mensagem para o
Ocidente, como Lorde Arteloth deseja, não vejo razão
para o negar. Especialmente porque este é um ano para
quebrar tradições.
— Ficaria honrada, Vossa Majestade Imperial.
— Apraz-me ouvi-lo. — Fitou-a. — Deveis estar
cansada depois da viagem. Por favor, regressai aos
vossos aposentos e descansai. Sereis in­formada quando
tiver tomado uma decisão sobre a mensagem a levar a
Sabran.
— Obrigada, Vossa Majestade Imperial.
Tané deixou-o com a sua refeição e voltou a percorrer
o labirinto de corredores. Não restava muito a fazer além
de esperar, por isso deitou-se na cama.
A noite já ia avançada quando uma batida na porta a
acordou. Abriu-a e fez entrar Loth e Thim.
— Sim?
— O honrado Imperador Eterno tomou a sua decisão
— anunciou Thim em seiikine. — Concordou com a
proposta.
Tané fechou a porta.
— Ótimo — disse. Loth deixou-se cair numa cadeira. —
E porque é que ele está tão desanimado?
— Porque lhe foi pedido que ficasse no palácio.
Também me pediram para ficar, para ajudar a liderar o
exército até ao local onde deixámos o Rosa Eterna.
Um ligeiro arrepio percorreu Tané. Pela primeira vez
na sua vida, iria deixar o Oriente. Noutros tempos, a ideia
tê-la-ia angustiado, mas pelo menos não estaria sozinha.
Com Nayimathun ao seu lado, poderia fazer qualquer
coisa.
— Tané — disse Loth. — Vais para o sul antes de ires
para Inys?
Tinha de salvar a senhora Nurtha do veneno. Tinham
de ser capazes de usar as duas joias contra o Inominável.
— Sim. Diz-me onde encontrar a casa dos assassinos
de dragões.
Ele explicou o melhor que pôde.
— Deverás ter cuidado — advertiu Loth. — Aquelas
mulheres provavelmente matarão o teu dragão se o
virem.
— Não lhe tocarão — disse ela.
— A Ead disse-me que a atual Prioresa não é de
confiança. Se fores apanhada, deverás falar apenas com
o Chassar uq-Ispad. Ele preocupa-se com o que acontece
à Ead. Estou confiante de que te ajudará se souber que
tencionas curá-la. — Loth retirou a corrente à volta do
pescoço. — Leva isto.
Tané pegou no objeto que estava pendurado na
corrente. Um anel de prata. Tinha uma pedra vermelha,
rodeada de diamantes.
— Pertence à Rainha Sabran. Se lho deres, ela saberá
que vem de mim. — Loth estendeu uma carta lacrada. —
Quero que lhe dês isto também. Para que saiba que
estou bem.
Tané assentiu, meteu o anel na bolsa e enrolou a carta
num tubo sufi­cientemente fino para caber lá dentro.
— O honrado chefe do Conselho Real receber-vos-á de
manhã para vos entregar uma carta de Sua Majestade
Imperial para levardes à Rainha Sabran. Partireis desta
cidade na calada da noite — disse Thim. — Se fordes
bem-sucedida nesta missão, senhora Tané, ficaremos
todos em dívida para convosco.
Tané olhou pela janela. Outra viagem.
— Fá-lo-ei, honrado Thim — disse. — Podeis ter a
certeza disso.
64
Este

De manhã, o chefe do Conselho Real entregou a Tané


a carta para levar a Inys. Não haveria missão
diplomática, nem pompa e ceri­mónia. Um dragão e uma
mulher levariam a notícia.
As suas armas foram-lhe devolvidas, e recebeu
também uma pistola seiikine e uma espada melhor, bem
como um par de lâminas redondas lacustres.
No seu dragão, levava comida suficiente para duas
semanas. Nayimathun caçava peixes e aves.
Quando a noite caiu sobre a Cidade das Mil Flores,
Tané foi ao en­contro de Nayimathun no pátio. Uma sela
de cabedal preto com bor­das de madeira lacadas a ouro
havia sido colocada para ela, embora a palavra sela fosse
um eufemismo: era mais como um palanquim aberto,
que permitiria ao seu cavaleiro dormir durante a longa
viagem. O secretismo da missão era tal que não havia
cortesãos ou altos funcionários lacustres presentes para
os ver partir. Apenas Thim e Loth foram auto­rizados a
comparecer.
— Boa noite, Tané — disse Nayimathun.
— Nayimathun. — Tané deu-lhe uma palmadinha no
pescoço. — Tens a certeza de que te sentes
suficientemente forte para empreender esta viagem?
— Sem dúvida. Além disso — disse o dragão-fêmea,
acariciando Tané —, pareces estar a habituar-te a meter-
te em sarilhos quando não estou por perto.
Tané não pôde deixar de sorrir, e sentiu que era bom
fazê-lo.
Thim ficou onde estava, mas Loth aproximou-se,
enquanto ela se ocu­pava a prender os mantimentos na
sela.

— Tané — disse ele. — Por favor, diz à Rainha


Sabran que estou bem e que não corro perigo. E se
conseguires acordar Ead... diz-lhe que tive saudades dela
e que a verei em breve.

Tané virou-se para ele e viu a tensão no seu rosto.


Tal como ela, estava a tentar esconder os seus receios.

— Dir-lhe-ei — garantiu. — Talvez quando voltar a


possa trazer comigo.

— Duvido de que Ead concordasse em montar um


dragão, mesmo a serviço da paz — disse Loth, segurando
uma gargalhada —, mas tam­bém já tive a minha dose de
surpresas este ano. — Ele sorriu com um esgar cansado,
mas genuíno. — Adeus, e boa sorte, E... adeus para vós
também, Nayimathun.

— Adeus, homem de Inys — respondeu


Nayimathun.

A última luz do crepúsculo desapareceu da cidade.


Tané subiu para a sela e certificou-se de que o seu manto
estava completamente enrolado à sua volta. Nayimathun
arrancou. Tané viu a Cidade das Mil Flores a afastar-se
até o palácio não passar de um brilho distante no
labirinto branco e sonolento. Ocultas na escuridão da lua
nova, deixaram mais uma capital para trás.

***

Voaram sobre lagos perolados e pinheiros pintados


de branco, seguindo o rio Shim. O frio mantinha Tané
acordada, mas também lhe fazia la­crimejar os olhos.

Nayimathun mantinha-se acima das nuvens


durante o dia e evitava áreas habitadas durante a noite.
Por vezes, avistavam uma nuvem de fumo ao longe e
sabiam que as bestas de fogo tinham atacado uma al­‐
deia. Quanto mais para oeste viajavam, mais plumas
escuras viam.

No segundo dia, chegaram ao Mar Desperto, onde


Nayimathun de­sembarcou numa pequena ilha para
descansar. Não encontrariam mais nenhum sítio onde
parar quando atravessassem o Abismo, a não ser que se
virassem para norte. Os dragões podiam passar muito
tempo sem dormir, mas Tané sabia que a viagem seria
difícil para Nayimathun. Os piratas não a tinham
alimentado bem.

Dormiram numa caverna de maré. Quando


Nayimathun acordou, mergulhou no mar, enquanto Tané
enchia os seus odres com água de um riacho.
— Se tiveres fome, diz-me. Eu dou-te comida —
disse a Nayimathun. — E se precisares de nadar no
Abismo, não temas por mim. A minha roupa seca ao sol.
Nayimathun virou-se preguiçosamente. De repente,
sacudiu a cauda para a água, chapinhando, e Tané ficou
encharcada.
Pela primeira vez numa eternidade, riu-se. Riu-se até
lhe doer a barri­ga. Nayimathun salpicava, brincando,
enquanto Tané usava a joia para a molhar também, e o
sol criava um arco-íris na água que despejavam uma
sobre a outra.
Não se lembrava da última vez que havia rido. Devia
ter sido com Susa.
Ao anoitecer, estavam a voar novamente. Tané
agarrou-se à sela e res­pirou o ar puro. Apesar de tudo o
que a esperava, nunca se tinha sentido tão em paz
consigo própria.
A cor negra do Abismo espalhou-se como uma
mancha pelo Mar do Sol Trémulo. Assim que Nayimathun
deixou as águas verdes para trás, Tané sentiu um arrepio.
A imensidão negra estendia-se por baixo de ambas: a
imensidão onde Neporo de Komoridu tinham outrora
aprisio­nado o Inominável.
Os dias passaram. Nayimathun passou a maior parte
da viagem aci­ma das nuvens. Tané mastigava pedaços
de raiz de gengibre para tentar manter-se acordada. O
mal da altitude era uma aflição comum entre os
cavaleiros.
O seu coração batia com força. Às vezes, Nayimathun
descia para na­dar e Tané aproveitava a oportunidade
para se aliviar e esticar as pernas e os braços na água,
mas só conseguia relaxar quando voltava para a sela. O
oceano não era acolhedor.
— Que sabes sobre Inys? — perguntou o dragão.
— Que a Rainha Sabran é descendente do guerreiro
Berethnet, que derrotou o Inominável há muito tempo —
disse Tané. — Cada rainha tem uma filha, e cada filha é
idêntica à mãe. Vivem na cidade de Ascalon —
continuou, e empurrou para trás uma madeixa de cabelo
húmido. — Também acreditam que os povos do Oriente
são blasfemos e veem o nosso modo de vida como o
oposto do deles, como um pecado contra a sua virtude.
— Sim — disse Nayimathun —, mas se procuram a
nossa ajuda, a Rainha Sabran deve ter aprendido a
diferença entre o fogo e a água. Lembra-te de ser
compassiva quando a julgares, Tané. É uma jovem,
responsável pelo bem-estar do seu povo.
As noites acima do Abismo eram as mais frias que
Tané já havia ex­perimentado. Um vento irritante
estalava-lhe os lábios e chicoteava-lhe as faces. Uma
noite acordou a respirar por entre as nuvens, olhou para
o mar e viu as estrelas refletidas na água.
Da próxima vez que acordou, o sol estava bem alto e
uma névoa dou­rada criava uma faixa no horizonte.
— Que sítio é este?
A sua voz era áspera. Pegou num odre e bebeu água
suficiente para molhar a língua.
— O Ersyr. A Terra Dourada — disse Nayimathun. —
Tané, tenho de nadar antes de entrarmos no deserto.
Tané agarrou o chifre da sela. Nayimathun desceu, e
ela sentiu a sua cabeça a girar.
O mar bateu-lhe na cara. Ali estava quente e claro
como vidro. Viu detritos e mais detritos a flutuar entre os
corais. Detritos metálicos a brilhar no fundo do mar.
— Tudo isso é da República Serena de Carmentum,
que dá nome a este mar — disse Nayimathun enquanto
emergiam. As suas escamas bri­lhavam como pedras
preciosas à luz do Sol. — Grande parte desse país foi
arrasado por Fýredel, a besta de fogo. O seu povo atirou
muitos dos seus tesouros ao mar para os proteger do
fogo. Os piratas mergulham para os recuperar e vender.
Nadou até estar perto da costa e depois voltou a voar.
Diante delas estava o deserto, vasto e desolado,
ondulante e ardente. Tané sentiu sede só de olhar para
ele.
Não havia nuvens para se esconderem. Teriam de ficar
a uma altitude mais elevada para evitar olhares curiosos.
— Este deserto chama-se Burlah — disse Nayimathun.
— Teremos de o atravessar para chegar a Lasia.
— Nayimathun, não foste feita para este clima. O sol
secar-te-á as escamas.
— Não temos escolha. Se não conseguirmos que a
senhora Nurtha acorde, talvez nunca mais encontremos
outra pessoa que possa manejar a joia minguante.
A humidade nas suas escamas desapareceu quase
tão rapidamente como aparecera. Os dragões podiam
criar a sua própria humidade du­rante algum tempo, mas
aquele sol implacável acabaria por ser dema­siado para
Nayimathun. Nos dias que se seguiriam, ficaria mais
fraca do que nunca.
Voaram e voaram. Tané tirou a sua túnica e usou-a
para cobrir o floco de metal para evitar que ficasse
demasiado quente.
O dia parecia eterno. A cabeça doía-lhe. O sol
queimava-lhe o rosto e secava-lhe o couro cabeludo. Não
havia sítio para se esconder do calor. Ao cair da noite,
tremia tanto que teve de se cobrir de novo com a túnica,
apesar de a sua pele estar a arder.
— Tané, tens o tremor do sol — disse Nayimathun. —
Deves cobrir-te com a túnica durante o dia.
Tané limpou a testa.
— Não podemos continuar assim. Morreremos antes
de chegarmos a Lasia.
— Não temos escolha — repetiu Nayimathun. — O rio
Minara atra­vessa este território. Podemos descansar lá.
Tané queria responder, mas antes que pudesse, caiu
num sono agitado.
No dia seguinte, cobriu o corpo e a cabeça com a
túnica. Estava en­charcada de suor, mas pelo menos
mantinha o sol longe dos olhos. Só a tirou para ajudar
Nayimathun e para arrefecer o floco de metal com água,
que num instante se transformou em vapor.
O deserto não acabava. Os seus odres estavam mais
secos do que um osso. Afundou-se na sua cadeira e
deixou a mente vaguear.
***

Quando voltou a abrir os olhos, estava a cair.


Sentiu o açoitar de uma série de ramos contra o seu
manto e o seu cabelo. Antes que tivesse tempo de gritar,
a água estava a envolvê-la.
O pânico agarrou-lhe os membros. Cega, pontapeou.
Conseguiu pôr a cabeça de fora. Na escuridão da noite,
mal conseguia distinguir uma árvore caída a pairar sobre
a margem, quase demasiado alta para al­cançar com as
mãos. No momento em que a corrente a aproximou,
agarrou-se a um dos seus ramos. O rio arrastava-lhe as
pernas. Puxou o corpo para cima, subiu à árvore e
ajoelhou-se em cima dela, a tremer.
Passou algum tempo empoleirada, demasiado
magoada e deslocada para se mexer. Uma chuva quente
batia-lhe na cabeça. Quando final­mente recuperou os
sentidos, rastejou sobre as mãos, agarrando-se à árvore
com os joelhos. O tronco abanava quando ela se movia,
mesmo que se movesse centímetro a centímetro.
Fez um esforço para se manter calma e lembrou-se
do Monte Tego. Como suportara o vento gelado, a neve
até aos joelhos e a dor agoni­zante nos seus membros.
Como tinha escalado uma rocha com as mãos nuas,
respirando um ar quase desprovido de oxigénio, a um
passo da morte. Como se tinha forçado a continuar.
Afinal de contas, os cava­leiros de dragões tinham de ser
capazes de se manter fortes e precisos a grandes alturas.
Não podiam temer a queda.
Chegara ao topo do mundo. Atravessara o Abismo
num dragão.
Podia fazer aquilo.
Com o medo afastado, moveu-se mais depressa.
Quando chegou ao fim da árvore, as suas botas
afundaram-se na lama.
— Nayimathun! — gritou, mas a única resposta que
obteve foi o ru­gido da água. O porta-joias ainda estava
na sua bolsa. Encontrava-se na margem de um rio, perto
de uns rápidos onde a água se agitava em espuma
branca. Se não tivesse acordado a tempo, teria morrido
entre as rochas. Recostou-se a uma árvore e deixou-se
cair no chão.
Caíra da sua cela. Ou Nayimathun andava à sua
procura ou, pior ainda, também havia caído. Se assim
fosse, não podia estar longe.
Aquele tinha de ser o rio Minara, o que significava que
haviam che­gado à Bacia de Lasia. Vasculhou na memória
os mapas que tinha visto quando era criança. O ocidente,
lembrava-se, estava coberto de flores­tas. Fora aí que
Loth lhe dissera que iria encontrar o Priorado.
Tané engoliu e pestanejou para limpar as lágrimas dos
seus olhos. Se quisesse sobreviver, teria de manter a
cabeça fria. A pistola era agora inútil, pois estava
molhada, e o seu arco e espada estavam na sela, mas
ela ainda tinha uma faca e as lâminas redondas.
Alguns dos seus pertences tinham caído com ela.
Tané rastejou até à bolsa mais próxima e abriu-a com os
dedos doridos. Quando sentiu o toque da bússola na sua
mão, soltou um suspiro de alívio.
Juntou tudo o que podia carregar. Com uma tira de
pano da sua túni­ca, um ramo e um pouco de resina, fez
uma tocha e acendeu-a fazendo faíscas com duas
pedras. Talvez isso atraísse um animal, mas era melhor
arriscar-se a ser descoberta do que pisar uma cobra ou
falhar em ver um caçador no escuro.
As árvores estavam próximas umas das outras, como
que em conspi­ração. Só de as ver, sentiu a coragem a
abandoná-la.
Tens o coração de um dragão.
Entrou na floresta, longe do rugido do Minara. As suas
botas afun­daram-se na lama. Cheirava como Seiiki
depois da chuva de ameixas — rico e terroso,
reconfortante.
O seu corpo era uma faca meio desembainhada e,
apesar do cheiro familiar, os primeiros passos foram os
mais difíceis que alguma vez ti­nha dado. Caminhava com
os pés leves como um grou, e quando um galho se partiu
por baixo dela, pássaros de muitas cores levantaram voo
das árvores. Em pouco tempo, encontrou os danos na
copa das árvores, indicando que algo grande caíra ali
perto. Mais alguns passos e a sua lamparina revelou uma
poça de sangue prateado.
Sangue de dragão.
A floresta parecia estar determinada a dificultar o seu
progresso. Raízes escondidas prendiam-se aos seus
tornozelos e, uma vez, um ramo partiu-se por baixo dela,
fazendo-a afundar-se num pântano até à cintura. Mal
conseguia segurar a lanterna e demorou muito tempo a
libertar-se.
Com a mão a tremer, avançou a coxear, seguindo o
rasto de sangue. Pela quantidade de sangue derramado,
Nayimathun estava ferida, mas não gravemente. No
entanto, o seu sangue poderia atrair predadores. A ideia
fez Tané começar a correr. Enquanto os tigres do oriente
às vezes se atreviam a atacar dragões, o cheiro de
Nayimathun não seria familiar para os animais daquela
floresta. Tané rezou para que fosse suficiente para os
manter afastados.
Quando ouviu vozes, abafou o fogo. A língua
desconhecida não era lasiano. Com a faca cerrada entre
os dentes, subiu uma árvore próxima.
Nayimathun jazia numa clareira, com uma flecha
cravada na coroa — a parte que lhe permitia voar. Seis
figuras, todas de mantos verme­lhos, estavam reunidas
ao seu redor.
Tané contraiu os músculos. Uma das estranhas tinha
um arco na mão. Essas deviam ser as Damas Vermelhas,
as guerreiras do Priorado, e agora já sabiam que havia
um cavaleiro de dragão nas imediações.
A qualquer momento, uma delas podia cravar uma
espada em Nayimathun, que não conseguiria enfrentá-
las nesse estado.
Após o que lhe pareceram horas, todas as Damas
Vermelhas, exceto duas, desapareceram entre as
árvores. Agora eram caçadoras, e Tané a sua presa. A
magia delas colocava-a em desvantagem, mas nem
mesmo isso as tornava omnipotentes.
Desceu da árvore em silêncio. Agora, a sua melhor
arma era o ele­mento surpresa. Levaria Nayimathun para
um local seguro e depois seguiria o rasto de uma das
Damas Vermelhas até ao Priorado.
Nayimathun abriu um olho e Tané soube que ela a
tinha visto. O dragão esperou que se aproximasse,
agachada, e abanou a cauda. Aproveitando o momento
de distração das Damas Vermelhas, Tané lançou-se sobre
elas como uma sombra. Viu uns olhos escuros sob um
capuz, uns olhos escuros como os seus, e por um
momento teve a estranha sensação de que o sol a
iluminava.
A sensação desapareceu ao aproximar-se. Atacou
com todas as suas for­ças. No primeiro impacto, a sua
lâmina afiada rasgou a pele do oponente, mas o segundo
golpe colidiu com uma lâmina de metal, provocando-lhe
uma dor no braço que chegou ao ombro. A força da
colisão fê-la apertar os dentes. As caçadoras rodearam-
na, envoltas nas suas capas, mas ela manteve-as à
distância com uma roda em cada mão. Eram rápidas
como um peixe a evitar o anzol, mas estava claro que
nunca tinham enfrentado lâminas redondas. Tané
concentrou-se na luta.
O breve momento de calma durou pouco. Enquanto
evitava os golpes das espadas, teve a arrepiante
sensação de que nunca tinha lutado num combate até à
morte. Os piratas do Oeste tinham sido presa fácil:
brutais, mas indisciplinados. Durante a sua infância,
lutara com outros aprendizes e tinham-se cortado; tinha
treinado com eles já em adulta, mas o seu co­nhecimento
de batalha baseava-se num pouco de prática e muita
teoria. Aquelas magas haviam vivido em estado de
guerra a maior parte das suas vidas e moviam-se numa
coreografia perfeita, como uma equipa de dan­ça. Uma
guerreira treinada na academia, sozinha e ferida, não
seria rival para elas. Não devia ter-se lançado na luta
com elas em terreno aberto.
A sede e o cansaço começavam a afetá-la. A cada
passo, as espadas das Damas Vermelhas aproximavam-
se mais da sua pele, e as lâminas não conseguiam
travar-lhe os golpes.
Os passos tornaram-se mais incertos. Começaram a
doer-lhe os bra­ços. Conteve uma exclamação quando
uma lâmina lhe lacerou o ombro, depois outra cortou-lhe
o maxilar. Duas cicatrizes a mais para a coleção. Com o
próximo golpe, sentiu o fogo na cintura. A túnica
encharcou-se de sangue. Quando as Damas Vermelhas
atacavam juntas, mal tinha tempo para erguer as
lâminas e parar os golpes.
Ia perder aquele combate.
Um golpe apanhou-a desprevenida. O metal abriu-lhe
uma ferida na coxa. Um dos joelhos cedeu, soltando as
lâminas.
Foi então que Nayimathun ergueu a cabeça. Com um
rugido, agarrou uma das magas entre os dentes e
lançou-a para o outro lado.
A outra mulher virou-se tão rapidamente que Tané mal
a viu. Tinha fogo nas palmas das mãos.
Nayimathun encolheu-se ao ver a luz. A mulher
aproximou-se e o dragão recuou, lançando dentadas ao
ar. Tané apontou e lançou a faca, que atravessou o tecido
vermelho entre duas costelas. Quando a mulher caiu ao
chão, Tané rodeou-a e aproximou-se do seu dragão.
Outrora, teria sentido vergonha de ter sido vista a
matar. Era inade­quado, mas as suas vidas estavam em
perigo. As vidas de ambas. Agora, matara por
Nayimathun e Nayimathun matara por ela. Afinal, tinham
sobrevivido, e não havia nada que lamentar.
— Tané — disse Nayimathun, baixando a cabeça. — A
seta.
A mera visão da ferida fez Tané sentir arrepios. Com a
maior suavida­de possível, levantou as mãos e arrancou a
seta da carne. Teve de fazer tanta força que os braços lhe
tremeram.
Nayimathun estremeceu. Um regato de sangue
escorria-lhe pelo foci­nho. Tané apoiou uma mão na
mandíbula do dragão.
— Consegues voar? — perguntou.
— Não até sarar — respondeu Nayimathun, ofegante.
— Eram do Priorado. Segue as outras. Encontra o fruto.
— Não — replicou Tané, com determinação. — Não
voltarei a deixar-te sozinha.
— Faz o que te digo — disse o dragão, com os dentes
manchados de sangue à mostra. — Voltarei a voar, mas
não consigo chegar a Inys assim. Encontra outro
caminho. Salva a senhora Nurtha. Leva a mensa­gem à
Rainha Sabran.
— E deixo-te aqui sozinha?
— Irei seguir o rio até ao mar e curar-me-ei. Quando
puder voar novamente, encontrar-te-ei.
Haviam passado apenas alguns dias desde o seu
reencontro e agora teriam de se separar novamente.
— E como irei chegar a Inys sem ti? — A voz de Tané
saiu rouca.
— Farás o teu próprio caminho — disse Nayimathun, a
sua voz mais suave. — A água sempre o faz. — Acariciou
Tané. — Voltaremos a encontrar-nos em breve.
Tané sentiu um arrepio. Abraçou o dragão com toda a
força que tinha, pressionando o rosto contra as escamas.
— Vai, Nayimathun — sussurrou, enquanto se dirigia
para as árvores.
As outras Damas Vermelhas tinham ido para norte.
Tané seguiu-lhes os passos, escondendo-se o melhor que
podia. Não havia tempo para fazer uma tocha, mas os
seus olhos já se tinham adaptado à escuridão.
Mesmo perdendo-lhes o rasto, sabia para onde
aquelas mulheres ti­nham ido. Seguia uma sensação. Era
como se a luta a tivesse deixado com um
pressentimento, um calor impregnado no seu próprio
sangue.
Chegou a outra clareira. Parou para recuperar o
fôlego, levando uma mão à sua lateral manchada de
sangue. Não havia nada ali. Apenas ár­vores, árvores e
mais árvores.
Tinha as pálpebras pesadas. Estava a perder o
equilíbrio. Agora, ha­via uma mulher de branco à sua
frente, e o sol brilhava nos seus olhos.
Foi a última coisa que recordou da floresta.
65
Sul

A joia crescente fora-lhe tirada. Foi a primeira coisa


em que repa­rou quando acordou: a sensação de vazio na
sua ausência. Estava deitada num quarto com paredes
de pedra cor de salmão, com as mãos atadas atrás das
costas.
À entrada da porta estava uma mulher de cabeça
rapada e pele de um castanho quente.
— Quem és tu?
Falava em ersyri. Tané percebia um pouco da língua,
mas não disse nada.
A mulher olhou para ela.
— Levavas um anel que pertenceu à Rainha Sabran de
Inys — disse ela. — Gostaria de saber se foi ela quem te
enviou para cá. — Tané des­viou o olhar, e os lábios da
mulher contraíram-se. — Levavas também uma joia azul.
Onde a encontraste?
Sabia como resistir a um interrogatório. Os piratas
podiam fazer todo o tipo de coisas aos seus inimigos para
lhes arrancarem os seus segredos. Como preparação
para o pior, todos os aprendizes tinham de provar que
conseguiam aguentar uma tareia de um soldado sem
revelar o seu nome.
Tané passara no teste sem dizer nada.
Ao ver que não obtinha respostas, a mulher mudou de
tom.
— Tu e o teu animal marinho feriram uma das nossas
irmãs e mata­ram outra. Se não conseguires dar-nos
nenhuma justificação para o teu crime, não teremos
alternativa senão executar-te. Mesmo que não tives­ses
derramado o nosso sangue, a cooperação com um wyrm
é punível com a morte.
Não podia revelar a verdade. Nunca dariam um fruto
da sua árvore sagrada a uma cavaleira de dragão.
— Pelo menos diz-me quem és — disse a mulher,
suavizando o seu tom. — Salva-te, criança.
— Falarei com Chassar uq-Ispad — disse Tané. —
Com mais ninguém. A mulher franziu ligeiramente o
sobrolho e saiu.
Tané tentou esvaziar a mente. Pela luz que
conseguia ver, não falta­va muito para o anoitecer.
Esforçou-se por se manter acordada, mas ia perdendo a
consciência à medida que o seu corpo exigia o descanso
que lhe fora negado.
Nayimathun iria escapar. Nadaria rio abaixo mais
depressa do que qualquer humano conseguiria correr.
Um homem entrou na cela, tirando-a do seu torpor.
Trazia um punhal enfiado na banda à volta da barriga.
Um manto de brocado púrpura, decorado com contas de
prata, envolvia-lhe o peito maciço.
— Sou o Chassar uq-Ispad — disse ele. A sua voz era
profunda e gentil. — Disseram-me que falas ersyri.
Tané observou-o enquanto ele se sentava à sua
frente.
— Vim buscar uma laranja — disse-lhe — para levar
a Eadaz uq-Nāra.
— Eadaz. — Os seus olhos brilharam de surpresa e
depois de dor. — Criança, não sei o que ouviste sobre a
Eadaz, ou como sabes o seu nome, mas a fruta não pode
ressuscitar os mortos.
— Ela não está morta. Está envenenada, mas viva.
Com a fruta, posso salvá-la.
Chassar congelou, como se tivesse sido atingido por
um raio.
— Quem te falou de mim? — perguntou ele. — E do
Priorado?
— Lorde Arteloth Beck.
Ao ouvir o nome, Chassar uq-Ispad assumiu
subitamente um ar cansado.
— Estou a ver — disse, erguendo os nós dos dedos às
têmporas. — Suponho que também tencionas levar a joia
azul à Eadaz. A Prioresa já a tem e tenciona executar-te.
— Porquê?
— Porque mataste uma irmã. E porque vieste para cá
nas costas de um wyrm marinho. E também — disse
Chassar — porque matar-te permitiria que ela controlasse
a joia crescente.
— Podíeis ajudar-me a fugir.
— A Eadaz conseguiu roubar a joia minguante à Mita
Yedanya, a Prioresa. Não permitirá que a gémea lhe seja
tirada — disse Chassar, em tom grave. — Para isso, teria
de a matar. E isso eu não posso fazer.
Tané esperou, pensativa.
— Espero que penseis em alguma coisa, Embaixador
uq-Ispad — disse. — Se não, Eadaz morrerá. — Ele olhou
para ela. — Deixai-me escapar, e talvez não morra. A
escolha é vossa.

***

Chassar uq-Ispad não regressou. Devia ter escolhido


ser fiel à Prioresa.
Estava tudo perdido.
Ao fim da tarde, chegaram duas mulheres. Os seus
mantos eram de brocado pálido. Tané deixou que a
conduzissem por corredores com chão de azulejos que
certamente nunca tinham visto a luz do Sol. Em cada
canto e recanto, havia figuras de bronze de uma mulher
a empu­nhar um globo.
Tané sabia que tinha de lutar, mas de repente sentiu-
se tão fraca que teria sido incapaz de dobrar uma folha
de relva. Escoltada pelas suas captoras, passou por um
arco e chegou a uma fina saliência rochosa. À sua direita,
uma cascata caía como um véu. A água fazia um rugido
tão forte que mal conseguia ouvir os seus próprios
passos.
Pelo menos tinha o som da água — o rugido da
cascata lembrava-a de Seiiki.
— Irmãs.
Tané levantou a cabeça. Chassar uq-Ispad caminhava
na sua direção. — A Prioresa pediu-me que voltasse a
interrogar esta mulher — disse em ersyri. — Serei breve.
As duas mulheres trocaram um olhar antes de
deixarem Tané com ele. Chassar esperou até que elas
estivessem fora de vista; depois, agar­rou em Tané pelo
braço e conduziu-a ao longo da saliência rochosa.
— Não temos muito tempo — disse ao ouvido dela. —
Faz o que tens a fazer, mas depois vai e não olhes para
trás. Tudo o que te espera aqui é a forca.
— Não saberão que me ajudastes?
— Isso não te diz respeito. — Chassar mostrou-lhe
uma escada esculpida na rocha. — É o caminho para o
vale. Só a árvore poderá decidir se és digna do fruto. —
Afundou a mão na túnica e retirou a bolsa de Tané. — Isto
é teu. O anel da coroação e a carta ainda estão lá dentro.
— Depois, tirou um rolo de seda. — Leva a fruta
embrulhada nisto.
Com a ajuda dele, Tané atou-a ao corpo.
— Como poderei chegar a Inys? O meu dragão foi-se
embora.
— Segue o rio Minara até à bifurcação e segue pelo
braço direito, que te levará para norte. Enviarei ajuda,
mas não deves parar. As ir­mãs perseguir-te-ão assim que
derem conta do teu desaparecimento. — Apertou-lhe o
ombro com uma mão. — Farei o que puder para as
empatar.
— Não posso sair daqui sem a joia crescente —
suspirou.
Chassar olhou para ela, irritado.
— Se eu conseguir tirá-la à Prioresa, mandarei
alguém atrás de ti com ela — disse. — Mas tens de ir
embora.
E Chassar desapareceu, antes que ela lhe pudesse
agradecer.
A escada não tinha corrimão. Agarrou-se à pedra do
lado esquerdo, medindo cada passo, prestando atenção à
forma como apoiava os pés. A escadaria contornou o
penhasco e, de repente, viu-a.
Quando Loth lhe falara da laranjeira, imaginara-a
como uma daque­las que cresciam em Seiiki, pequena e
insignificante. Aquela laranjeira era tão alta como um
cedro e o seu cheiro fazia-lhe crescer água na boca. Uma
irmã viva da amoreira de Komoridu.
Os seus ramos estavam cobertos de flores brancas.
As suas folhas eram de um verde vivo. As raízes nodosas
estendiam-se desde o tronco, ser­penteando sobre o
fundo do vale como um motivo decorativo em seda. À
volta e por baixo, corria o rio Minara.
Não tinha tempo para a admirar. Uma sombra
perfurou o ar, tão perto que lhe levantou os cabelos. Tané
encostou as costas à parede de pedra, perscrutando o
céu. Ficou imóvel como uma presa perseguida por um
caçador.
Passou um longo momento e tudo ficou em silêncio.
Depois, de repen­te, uma tempestade de fogo.
O seu corpo reagiu antes da sua mente. Correu pelas
escadas, mas os degraus eram estreitos e precários e, de
repente, deu por si a cair descontroladamente, com os
degraus a martelar-lhe as costas. Meio cega pelo pânico,
tentou agarrar-se a qualquer coisa para amortecer a
queda, mas o seu corpo continuava a rolar em direção ao
precipício.
Finalmente, estendeu uma mão e conseguiu
agarrar-se a um degrau. Ficou ali, sem fôlego.

Imaginou-se de volta a Monte Tego. Respirou fundo


e virou-se para ver o que acontecera.
Bestas de fogo. Estavam por todo o lado. Não
perdeu tempo a pensar de onde teriam vindo: olhou para
baixo. Estava mais perto do fundo do vale do que
pensava e o tempo estava a esgotar-se. Largou os
degraus, escorregou pela rocha e caiu na relva com tanta
força que lhe doeram os joelhos.

As raízes. As raízes eram suficientemente grossas e


densas para a pro­tegerem. No momento em que
escorregou entre elas, uma besta de fogo rugiu e caiu
com força no rio, tão perto de Tané que o salpico da água
chegou até ela. A besta tinha uma seta decorada com
uma pena pálida espetada na garganta.
O caos tomou conta do vale. As árvores em redor já
estavam em cha­mas. Tané arrastou-se de barriga para
baixo, retesando o corpo de cada vez que sentia uma
rajada de ar quente por cima de si. Quando encon­trou
uma abertura nas raízes, emergiu da relva e avançou aos
tropeções até à base da árvore.
Por alguma estranha razão, sabia o que fazer. Pôs-se
de joelhos e es­tendeu as mãos, com as palmas para
cima.
As cinzas caíram do céu como neve e pousaram no
seu cabelo. Pensou que tivesse falhado até ouvir um
estalido suave no céu e um finto esférico e dourado a
cair de cima. Não lhe caiu nas mãos, mas fez ricochete e
foi parar por baixo do emaranhado de raízes gigantes.
Tané soltou um palavrão e foi à procura da fruta.
A fruta rolou para as águas agitadas do Minara. Tané
avançou e parou-a com uma mão.
Um brilho chamou-lhe a atenção. Um passarinho
tinha pousado entre as raízes e, no mesmo momento em
que ela olhou para ele, hipnotizada, o pássaro
transformou-se numa mulher nua.
As penas transformaram-se em braços e pernas. O
bico abriu-se para formar um par de lábios vermelhos.
Uma juba acobreada descia-lhe pelas costas.

Mudara de forma. Toda a gente em Seiiki sabia que,


no seu tempo, os dragões eram capazes de fazê-lo, mas
havia muito tempo que ninguém o via com os seus
próprios olhos.

Outra mulher aproximou-se do outro lado do vale.


Usava uma trança escura por cima do ombro. Um colar
de ouro e uma túnica escarlate de mangas compridas,
mais escura e com bordados mais elaborados do que as
das outras mulheres. Quando uma besta de fogo se
aproximou dela, desviou a chama como se fosse uma
mosca. Ao pescoço, pendurada numa corrente, trazia a
joia crescente.

— Kalyba — disse ela.

— Mita — respondeu a ruiva.

Trocaram palavras durante algum tempo, movendo-


se em círculo à volta uma da outra. Mesmo que Tané
pudesse entender o diálogo, o que elas diziam não tinha
muita importância. A única coisa que importava era
quem estava a ganhar vantagem sobre a outra.

A Prioresa aproximou-se da outra mulher, o rosto


tenso e uma ex­pressão de ódio. Desembainhou, e o sol
brilhou na sua espada. Kalyba transformou-se num falcão
e voou por cima dela. Um momento depois, voltou à sua
forma humana. O seu riso causou a Tané um calafrio.
Com um grito de frustração, a Prioresa atirou-lhe uma
bola de fogo.

A sua batalha aproximava-as cada vez mais das


raízes. Tané recuou, escondendo-se nas sombras.

As mulheres lutavam com fogo e vento. Lutaram


durante uma eterni­dade. E quando parecia que nenhuma
delas conseguiria vencer a outra, Kalyba desapareceu,
como se nunca ali tivesse estado. Tané estava tão perto
da Prioresa que podia ouvir-lhe o coração bater.

Foi então que a bruxa emergiu silenciosamente da


relva. Devia ter as­sumido a forma de algo tão pequeno
que se tornara invisível; um inseto, talvez. A Prioresa
virou-se, mas foi tarde demais.

Ouviu-se um som como o de um caracol a ser


esmagado, e ela caiu de joelhos. Kalyba pôs-lhe a mão
na cabeça, como faria a uma criança, para a confortar.
Mita Yedanya tombou na relva.

Kalyba ergueu a mão com o coração da inimiga. O


sangue escorreu-lhe pelos dedos. Quando falou, foi numa
língua que Tané nunca tinha ouvido antes. A sua voz
ecoou pelo vale.

Tané baixou a mão que lhe tapava a boca. O corpo


estava tão perto que quase lhe podia tocar. Teria de
correr um último risco e depois po­dia pôr toda aquela
loucura para trás das costas. Deitou-se novamente de
barriga para baixo e rastejou em direção ao cadáver da
Prioresa.

Uma flecha assobiou pelo ar, passando a


centímetros de Kalyba. Tané encolheu-se. O suor
escorria-lhe pela face, mas alcançou o cadáver. Sentia-se
desajeitada e mal ousava respirar, mas olhou para o
corpo, com a cratera onde antes houvera um coração.
Com os dedos trémulos, retirou a corrente, pendurou-a
ao pescoço e escondeu a joia sob a túnica.

Quando Kalyba se virou, ambas estacaram. O olhar


de Kalyba dei­xou claro que a tinha reconhecido.
— Neporo.
Tané viu a sua expressão mudar, até que, de
repente, Kalyba começou a rir.
— Neporo! — exclamou. — Perguntei-me... durante
todos estes sé­culos, perguntei-me tantas vezes se terias
sobrevivido, minha irmã. Que coincidência magnífica eu
ter vindo aqui para encontrar a resposta. — A boca dela
contorceu-se num sorriso simultaneamente belo e
terrível. — Observa a minha obra. Toda esta destruição é
por ti. E agora apare­ces a rastejar perante a laranjeira,
implorando por misericórdia.
Tané pôs-se de pé, derrapando na lama. Nunca
tivera medo de lutar pela sua vida, mas aquela mulher,
aquela criatura, transmitia-lhe uma sensação nas
entranhas, como o tilintar metálico de uma espada a sair
da bainha.
— Chegaste demasiado tarde. O Inominável erguer-
se-á e nenhuma chuva de estrelas o enfraquecerá. Ele
dar-te-ia as boas-vindas às suas fileiras, Neporo. —
Kalyba caminhou em direção a ela, o coração ainda na
mão, pingando sangue. — Rainha Terrena de Komoridu.
— Eu não sou Neporo — disse Tané, recuperando a
voz do mais pro­fundo do seu íntimo. — O meu nome é
Tané.
Kalyba parou.
Algo naquela mulher não batia certo. Ela era como
um besouro apri­sionado em âmbar, perfeitamente
preservada num tempo que não lhe pertencia.
No entanto, Tané sentia-se irremediavelmente
atraída por ela. O seu sangue queria aproximar-se, mas a
sua carne ansiava por fugir dela.
— Quase me esqueci de que ela tinha
descendentes — disse Kalyba. — Como é possível que os
seus descendentes não só se tenham per­petuado até
agora sem o meu conhecimento, como também tu
tenhas aparecido aqui no mesmo dia que eu? — Aquela
curiosa reviravolta do destino pareceu diverti-la. —
Deves sabê-lo, sangue da amoreira. A tua antepassada é
responsável por tudo isto. Nasceste de uma semente
pérfida.

O rugido do rio estava cada vez mais próximo.


Kalyba observou-a enquanto ela se afundava cada vez
mais nas raízes.

— És... tão parecida com ela — disse a bruxa, com


a voz mais suave. — És como um fantasma dela.

Uma seta atravessou a clareira e atingiu a parte de


trás do ombro de Kalyba, fazendo-a virar-se, furiosa. Uma
mulher de olhos dourados sur­gira das cavernas e já tinha
uma nova seta carregada. Olhou para Tané e o seu olhar
foi como uma ordem.

Foge.

Tané hesitou. A honra ordenava que ficasse e


lutasse, mas o instinto era mais forte. Tudo o que
importava agora era chegar a Inys e que Kalyba não
soubesse o que ela transportava.
Lançou-se ao rio, e o rio voltou a recebê-la nos seus
braços.

***

Durante muito tempo, só pensava em manter a


cabeça à tona da água. O rio levou-a para longe do vale,
e ela cruzou um braço sobre o fruto e usou o outro para
nadar. A névoa seguiu-a até à bifurcação, onde ela subiu
para a margem, a pingar, tão magoada, cansada e dorida
que só conseguia deitar-se na relva e suspirar.

O crepúsculo deu lugar ao anoitecer, e o anoitecer


a uma noite sem Lua.

Tané levantou-se, com as pernas a tremer, e


caminhou.

O instinto fê-la tirar a joia do estojo e a joia


iluminou o seu caminho. Entre os ramos das árvores,
conseguiu distinguir a estrela-guia e seguiu a sua luz.
Uma vez, viu os olhos de um animal que a observava das
árvores, mas manteve-se à distância. Como tudo o resto.

A certa altura, as suas botas encontraram um


caminho de terra firme e ela seguiu-o até a floresta
começar a diminuir. Quando deixou as árvores para trás
e viu o céu, caiu finalmente.

O seu próprio cabelo era a sua almofada. Respirou


através do punho cerrado que era a sua garganta e
desejou tudo o que mais queria: estar em casa, em
Seiiki, onde as árvores emanavam um cheiro doce.
Um som como um bater de asas secas fê-la abrir os
olhos. O vento agitava-lhe os cabelos, e Tané olhou para
cima e viu um pássaro a voar sobre ela. Branco como o
luar, com asas de bronze.

***

O Palácio de Ascalon brilhava à luz dos primeiros


raios de sol do dia, formando um anel de altas torres no
meandro de um rio. Tané coxeou, passando pelos
vizinhos que já se tinham levantado da cama.
O grande pássaro branco encontrou uma brecha nas
defesas costeiras e levou-a para uma floresta a norte de
Ascalon. De lá, seguiu um cami­nho bem trilhado até ver
uma cidade aparecer no horizonte.
O palácio estava rodeado de torres. Quando se
aproximou, um grupo de guardas de armadura prateada
cortou-lhe a passagem.
— Alto aí. — Apontaram-lhe lanças ao peito. — Nem
mais um passo, minha senhora. Dizei o que vos traz ao
palácio.
Levantou a cabeça para que lhe pudessem ver o rosto.
As lanças hesi­taram conforme o queixo dela se erguia, e
os guardas olharam para ela, estupefactos.
— Pelo Santo! — murmurou um deles. — Vem do
Oriente.
— Quem sois vós? — perguntou outro.
Tané tentou articular, mas tinha a boca seca e as
pernas tremiam-lhe.
O segundo homem franziu o sobrolho e baixou a arma.
— Vai procurar o embaixador residente de Mentendon
— disse à mulher ao seu lado, que saiu a correr,
acompanhada pelo tilintar da sua armadura.
Os outros não baixaram as lanças.
Passou-se algum tempo até que outra mulher
apareceu. Usava uma trança de cabelo ruivo escuro e
uma roupa que lhe cobria o peito e a cin­tura, com saias
que se abriam em formato de sino nas suas ancas A
renda chegava-lhe ao pescoço, onde contrastava com a
sua pele castanha.
— Quem sois vós, honrada forasteira? — perguntou
em seiikine per­feito. — O que vos traz a Ascalon?
Tané não lhe disse o seu nome. Apenas lhe mostrou o
anel de rubi.
— Levai-me à senhora Nurtha.
VI
As Chaves do Abismo

Pois tudo o que de um lugar cai,


pela maré será levado:
Pois nada há perdido que não possa ser
encontrado, se procurado.

— Edmund Spenser
66

Oeste

O seu mundo convertera-se numa noite sem


estrelas. Era um sonho, mas não era: uma escuridão sem
limites, habitada por uma única alma. Estivera ali
acorrentada durante mil anos, mas agora, finalmente,
reagira.

Um sol dourado ganhou vida dentro de si. No


momento em que o fogo irrompeu da sua pele, lembrou-
se do ataque da sua irmã cruel. Distinguiu a silhueta de
vários rostos à sua volta, mas não conseguia discernir as
suas feições.

— Ead.

Sentia-se como se tivesse sido esculpida em


mármore. Os seus membros agarravam-se à cama, como
uma efígie se agarra para sempre à lápide. Nas manchas
escuras do seu campo de visão, alguém rezava pela sua
alma.

Ead, volta para nós.


Reconheceu aquela voz, o aroma a mirra, mas os
seus lábios eram de pedra e não se separaram.

Ead.

Um novo calor espalhou-se-lhe pelos ossos,


queimando os laços que a prendiam. O casulo que a
envolvia rachou finalmente, e o calor abriu-lhe a
garganta.

— Meg — murmurou —, creio que é a segunda vez


que te encontro a olhar por mim.

Um riso entrecortado.

— Então, devias parar de me dar motivos para


olhar por ti, sua tola — disse Margret, derretendo-se num
abraço com ela. — Oh, Ead, temi que aquela maldita
fruta não fizesse efeito. — Voltou-se para os criados. —
Avisem Sua Majestade, imediatamente, que a senhora
Nurtha acordou. E também o Doutor Bourn.

— Sua Majestade está reunida com o Conselho,


senhora Margret.
— Garanto que Sua Majestade te castigará se não a
informares ago­ra. Vai, imediatamente!
Maldita fruta. Ead compreendeu o que Margret
dissera e olhou por cima do ombro. Em cima da mesinha
de cabeceira, estava uma laranja a que faltava uma
dentada. Uma doçura inebriante inundou-lhe os sentidos.
— Meg. — Tinha a garganta muito seca. — Meg, diz-
me que não foste ao Priorado por minha causa.
— Não sou tola a ponto de pensar que conseguiria
entrar e sair de uma casa cheia de assassinas de
dragões. — Margret beijou-a na testa. — Podes não
acreditar no Santo, mas um poder superior deve ter
inter­cedido por ti, Eadaz uq-Nāra.
— Claro que sim. O poder superior da senhora Margret
Beck. — Ead apertou-lhe a mão. — Quem trouxe a fruta?
— Isso — disse Margret — é uma história espantosa. E
contar-ta-ei assim que tiveres bebido alguma gemada
quente com vinho.
— Há alguma coisa no mundo que não aches que
possa ser curada por essa mistura nauseabunda?
— Úlceras. De resto, não.
Foi Tallys que lhe levou o ponche à cama. Quando viu
Ead, desatou a chorar.
— Oh, senhora Duryan — disse, entre lágrimas. —
Pensei que iríeis morrer, minha senhora.
— Ainda não, Tallys, embora alguém se esteja a
esforçar por concre­tizar o contrário. — Ead sorriu. — Que
bom voltar a ver-te.
Tallys fez várias vénias e retirou-se. Margret fechou a
porta.
— Agora — disse Ead. — Já estou a beber. Conta-me
tudo.
— Toma mais três goles, por favor.
Ead fez uma careta e obedeceu. Bebeu mais três
goles e Margret cum­priu a sua palavra.
Contou-lhe que Loth se oferecera para ser o
embaixador de Inys no Oriente, que atravessara o
Abismo para apresentar a proposta ao Imperador Eterno,
que se haviam passado semanas. Que os wyverns tinham
queimado as colheitas. E que uma jovem seiikine entrara
a cam­balear no palácio com sangue nas mãos, uma fruta
dourada e o anel de coroação que Sabran dera a Loth.
— E não era só isso que trazia. — Margret olhou para
a porta. — Ead, a rapariga tem a outra joia. A joia
crescente.
Ead quase deixou cair a taça da mão.
— Não é possível — exclamou, a voz embargada. —
Está no Oriente.
— Já não está.
— Quero vê-la. — Tentou sentar-se, mas os braços
tremeram com o esforço. — Quero ver a joia.
— Basta disso, Ead — disse Margret, forçando-a a
recostar-se entre as almofadas. — Há semanas que não
comes nada, exceto gotas de mel.
— Diz-me exatamente como é que ela a encontrou.
— Dir-te-ia se soubesse. Assim que me entregou a
fruta, desmaiou de cansaço.
— Quem sabe que ela está aqui?
— Eu, o Doutor Bourn e alguns Cavaleiros do Corpo.
Tharian temia que se alguém visse uma mulher do
Oriente no Palácio de Ascalon, a levariam para a forca.
— Compreendo os seus receios — disse Ead. — Mas,
Meg, tenho de falar com ela.
— Podes falar com quem quiseres, desde que me
convenças de que não vais cair de cara no chão ao fazê-
lo.
Ead franziu os lábios e bebeu.
— Meg, querida — disse, mais calma, tocando-lhe na
mão. — Perdi o teu casamento?
— Claro que não. Atrasei-o por ti — disse Margret,
pegando na taça. — Não tinha ideia de que seria tão
cansativo. A mamã quer que eu use branco agora. Quem
raio é que usa branco no dia do casamento?
Ead estava prestes a comentar que ela ficaria muito
bonita de branco quando a porta se abriu e Sabran
apareceu no quarto, com um vestido de seda carmesim,
e ofegante.
Margret levantou-se.
— Vou ver se o Doutor Bourn também recebeu a
minha mensagem — disse ela, com um sorriso quase
impercetível.
Fechou a porta com delicadeza ao sair.
Decorreu um longo tempo sem que nenhuma delas
dissesse uma pa­lavra. Depois, Ead estendeu a mão e
Sabran aproximou-se da cama e abraçou-a, respirando
como se tivesse corrido quilómetros. Ead abraçou-a com
força.

— Maldita sejas, Eadaz uq-Nāra.


Ead resfolegou, meio caminho entre um suspiro e
uma gargalhada.
— Quantas vezes é que já nos amaldiçoámos uma à
outra?
— Não são suficientes.
***

Sabran permaneceu ao seu lado até que Tharian


Lintley, com ar de quem fora atormentado, entrou para
lhe pedir que regressasse à Câmara do Conselho. Os
Duques Espirituais discutiam a carta de Loth, e a sua
presença era necessária.
Ao meio-dia, Margret deixou Aralaq entrar no quarto.
Ele lambeu o rosto de Ead até ao desgaste, disse-lhe
para nunca mais se deixar atin­gir por um dardo
envenenado («Sim, Aralaq, pergunto-me porque não
pensei nisso antes») e passou o resto do dia deitado com
ela como uma colcha de pelo comprido.
Sabran insistira para que o médico da corte a
examinasse antes de ela se levantar, mas à noite Ead
mal podia esperar para esticar as pernas. Quando o
Doutor Bourn finalmente chegou, decretou que Ead
estava suficiente­mente bem para se levantar. Ead tirou
as pernas de debaixo de Aralaq, adormecido, e deu-lhe
um beijo entre as orelhas. O seu nariz enrugou-se.
No dia seguinte, iria ver a forasteira.
Aquela noite era para Sabran.
No quarto mais alto da Torre da Rainha, havia uma
enorme banheira enterrada até ao nível do chão. A água
era bombeada de uma nascente e aquecida na cozinha
do palácio, para que a rainha pudesse tomar banho em
água quente o ano inteiro.
A única luz provinha de uma vela de combustão
lenta. O resto do quarto estava envolto em vapor e
sombras. Através das grandes janelas, Ead podia ver as
estrelas que brilhavam sobre Ascalon.
Sabran sentou-se na borda da banheira, numa
anágua, com o cabelo salpicado de pérolas trançadas.
Ead deixou cair o robe e mergulhou na água fumegante.
Desfrutou do calor do banho enquanto vertia creme de
grialina nas mãos e o aplicava no cabelo.
Mergulhou a cabeça e lavou a espuma doce.
Submergida até aos ombros, nadou até Sabran e pousou
a cabeça no seu colo. Dedos frios desfizeram-lhe os
caracóis. O calor relaxou-lhe os braços e as pernas,
fazendo-a sentir-se novamente viva.
— Receei que desta vez me tivesses deixado para
sempre — disse-lhe Sabran. As paredes ecoaram a sua
voz.
— O veneno que me deram veio do fruto da árvore
quando apodrece. Tende a ser mortal — explicou Ead. —
A Nairuj deve ter-me dado uma dose propositadamente
baixa. Não me queria matar.
— Por outro lado, agora temos a outra joia. Como se
tivesse sido trazida pela maré. — Sabran mexeu os dedos
na água. — Até tu terás de admitir que é uma
intervenção divina.
— Talvez. Falarei com a nossa visitante seiikine de
manhã. — Ead atirou a cabeça para trás e deixou o
cabelo esvoaçar sobre a superfície da água. — Loth está
bem?
— Parece que sim. Viveu novas aventuras, desta vez
com piratas — disse Sabran com frieza —, mas sim. O
Imperador Eterno pediu-lhe que ficasse na Cidade das Mil
Flores. Ele diz que não está ferido.
Sem dúvida que Loth ficaria lá até Sabran pagar o que
prometera. Algo comum naquele tipo de negociações. Ele
ficaria bem; já sobrevive­ra a cortes muito mais
perigosas.
— Então, a última hipótese da humanidade depende
da união dos dois lados do mundo — murmurou Sabran.
— Não iremos durar muito no Abismo, em navios de
madeira. O Lorde Almirante garante-me que há formas
de proteger as nossas embarcações das chamas, e que
teremos água suficiente para apagar os incêndios, mas
não creio que esses méto­dos nos concedam mais do que
alguns minutos. — Sabran olhou-a nos olhos. — Achas
que a bruxa virá?
Era quase certo.
— Apostaria que tentará acabar com a tua vida
usando a Espada da Verdade. A espada que Galian
venerara para pôr fim à sua dinastia. À dinastia de
ambos — disse Ead. — Estou certa de que apreciaria o
tom poético.
— Que antepassada amorosa a minha — observou
Sabran sem se mexer.
— Aceitas o que te contei, então. — Ead examinou-lhe
o rosto. — Que te corre sangue de maga nas veias.
— Já aceitei muitas coisas.
Ead viu nos seus olhos que era verdade. Havia neles
uma determina­ção fria que nunca lhes vira antes.
Fora um ano de duras realidades. As paredes que
haviam construído para proteger as suas crenças
haviam-se desmoronado, e Sabran viu a sua fé começar
a desmoronar-se com elas.
— Passei a vida a pensar que o meu sangue era a
força para manter um monstro acorrentado. Agora, tenho
de o enfrentar sabendo que não é assim. — Sabran
fechou os olhos. — Temo o que esse dia trará. Temo que
não veremos a primeira luz do verão.
Ead aproximou-se dela e envolveu-lhe o rosto com as
mãos.
— Não temos nada a temer — disse, com mais
convicção do que realmente sentia. — O Inominável já foi
derrotado antes. Pode ser der­rotado outra vez.
Sabran assentiu.
— Rezo para que isso aconteça.
A sua anágua empapou com a água. Ead sentiu-se
como se os ossos de todos os seus membros tivessem
derretido quando Sabran a puxou para fora da banheira,
sorrindo.
Os seus lábios fundiram-se na escuridão. Ead puxou
Sabran para mais perto de si, e Sabran beijou as gotas da
sua pele. Haviam estado separadas duas vezes, e Ead
sabia, como sempre soubera, que em breve o fariam
outra vez, fosse pela guerra ou pelo destino.
Deslizou as mãos sob o cetim da anágua. Quando os
seus dedos toca­ram a sua carne, retirou-os.
— Sabran, estás a arder em febre.
Pensara que se devia ao calor da água, mas Sabran
ardia como uma chama.
— Não é nada, Ead, a sério — disse Sabran, passando
o polegar pela sua face. — O Doutor Bourn diz que a
inflamação vai aparecer de tempos a tempos.
— Então, precisas de descansar.
— Não posso ir para a cama numa altura destas.
— Tens uma escolha: a cama ou o ataúde. A escolha é
tua.
Sabran fez uma careta e endireitou as costas.
— Tudo bem. Mas não serás tu a tomar conta de
mim — disse, en­quanto Ead se levantava e se secava. —
Amanhã, tens de falar com a jovem do Oriente. Tudo
depende de conseguirmos coexistir em paz.
Ead vestiu a camisa de dormir.
— Não prometo nada — respondeu.

***

Durante os seus anos de estudo na Casa Sul, Tané


apenas aprendera o que eles consideravam factos
necessários sobre o Rainhado de Inys. Aprendera acerca
da sua monarquia e da sua religião das Seis Virtudes.
Aprendera que a capital se chamava Ascalon e que
detinham a maior e mais poderosa marinha do mundo.
Agora, também sabia que viviam num clima húmido e
frio, que tinham ídolos nos quartos e que obriga­vam os
seus doentes a beber uma mistura grumosa e
nauseabunda.
Felizmente, naquela manhã, ninguém tentara forçá-
la a beber aque­la imundície. Uma criada trouxera-lhe
uma caneca de cerveja, fatias grossas de pão doce e um
guisado de carne castanha. Tudo aquilo lhe encheu o
estômago. Apenas provara cerveja uma vez, quando
Susa rou­bara uma caneca em Orisima e achara o sabor
horrível.
Na Casa Sul, o mobiliário era mínimo e havia poucas
obras de arte. Ela sempre gostara dessa simplicidade;
dava-lhe espaço para pensar. Os castelos eram
decorados de forma mais elaborada, claro, mas
transmitia a impressão de que os inysh gostavam de se
rodear de coisas. Ornamentos. Até as cortinas eram
impressionantes. E depois havia a cama, com tan­tas
camadas de tecido que parecia que a iam engolir.
Mesmo assim, era bom sentir aquele calor. Depois de
uma viagem tão longa, a única coisa que conseguira
fazer durante o dia fora dormir.
A embaixadora residente de Mentendon voltou
quando o sol estava no seu apogeu.
— A senhora Nurtha está aqui, honrada Tané — disse
ela em seiikine. — Devo deixá-la entrar?
Finalmente.
— Sim. — Tané pôs o seu almoço de lado. — Recebê-
la-ei.
Quando ficou sozinha, Tané cruzou as mãos sobre os
lençóis. Era como se tivesse enguias no estômago. Teria
gostado de receber a senhora Nurtha de pé, mas os inysh
tinham-na vestido com uma camisa de noite rendada que
a fazia parecer ridícula. Era melhor manter uma imagem
digna.
Pouco depois, uma mulher apareceu à porta. As suas
botas de montar não faziam barulho.
Tané estudou a assassina de dragões. A sua pele era
lisa e castanho-dourada, e o seu cabelo, escuro e
encaracolado como lascas de madeira arrancadas com
uma escova, caía-lhe sobre os ombros. Havia nela algo
de Chassar, o homem que a salvara, nas linhas do
maxilar e na testa, de tal forma que Tané se interrogou
se seriam parentes.
— A embaixadora residente disse-me que falas inysh.
— Tinha um sotaque sulista. — Não sabia que era
ensinado em Seiiki.
— Apenas a alguns — disse Tané. — Os que treinam
para se junta­rem à Alta Guarda do Mar.
— Estou a ver. — A assassina cruzou os braços. — Eu
sou Eadaz uq-Nāra. Mas podes chamar-me Ead.
— Tané.
— Não tens nome de família.
— Em tempos foi Miduchi.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Disseram-me que fizeste uma viagem perigosa até
ao Priorado para me salvar a vida. Agradeço-te. — Ead
dirigiu-se para o lugar à janela. — Presumo que o Lorde
Arteloth te tenha revelado o que eu sou.
— Uma assassina de wyrms.
— Sim. E tu uma adoradora de wyrms.
— Matarias o meu dragão se ele aqui estivesse.
— Há algumas semanas, sim, terias razão. Uma vez,
as minhas irmãs mataram um wyrm do Oriente que
sobrevoava Lasia. — Ead falou aparentemente sem
remorsos, e Tané teve de combater uma reação ins­tintiva
de ódio. — Se me fizeres o favor, Tané, gostaria de saber
como iniciaste esta jornada.
Se a assassina de dragões iria manter os seus modos,
Tané também o faria. Contou a Ead como ficara na posse
da joia crescente, a sua luta com os piratas e a sua breve
e violenta visita ao Priorado.
Nessa altura, Ead começou a andar de um lado para o
outro. Apareceram-lhe duas pequenas linhas entre as
sobrancelhas.
— Então, a Prioresa está morta e a Bruxa de Inysca
apoderou-se da laranjeira — disse. — Esperemos que
tenha intenção de a guardar para si e não a queira dar ao
Inominável.
Tané ficou em silêncio por um momento, antes de
perguntar:
— Quem é a Bruxa de Inysca?
Ead fechou os olhos.
— É uma longa história — disse —, mas se quiseres,
eu conto-ta. Contar-te-ei tudo o que me aconteceu no
último ano. Depois de tudo o que fizeste, mereces a
verdade.
Enquanto a chuva batia na janela, Ead contou-lhe.
Tané ouviu sem interromper.
Ouviu Ead enquanto lhe contava a história do
Priorado da Laranjeira e da carta de Neporo que
encontrara. Da Bruxa de Inysca e da Casa de Berethnet.
Dos dois ramos da magia, do cometa e da espada de
Ascalon, e do papel das duas joias em tudo aquilo. Uma
criada trouxe-lhes vinho quente enquanto Ead falava,
mas quando terminou, os dois copos ti­nham arrefecido,
intocados.
— Compreendo que possas achar tudo isto difícil de
acreditar — disse Ead. — Tudo isto soa ridículo.
— Não. — Tané libertou o fôlego pela primeira vez no
que lhe ti­nham parecido horas. — Bem, soa. Mas acredito
em ti.
Percebeu que estava a tremer. Ead estalou os dedos
e uma chama acendeu-se na lareira.
— Neporo tinha uma amoreira — disse Tané,
enquanto observava aquela demonstração de magia. —
Talvez eu seja a sua descendente. É por isso que tenho a
joia crescente.
Ead demorou algum tempo a assimilar.
— E essa amoreira ainda está viva?
— Não.
Ead cerrou o maxilar.
— Cleolind e Neporo. Uma maga do Sul. Uma do
Oriente. Parece que a história está fadada a repetir-se.
— Então, eu sou como tu. — Tané observou s
chamas que dançavam no fogo. — Kalyba também tinha
uma árvore, e a Rainha Sabran é sua descendente. Isso
faz de nós feiticeiras?
— Magas — corrigiu Ead, embora parecesse
distraída. — Ter san­gue de maga não faz de ti uma maga.
Tens de comer o fruto para seres considerada uma. Mas
foi precisamente por isso que a árvore te deu o fruto. —
Voltou a sentar-se junto à janela. — Dizes que as minhas
irmãs feriram o teu wyrm. Não me lembrei de perguntar
como vieste para Inys.

— Um pássaro enorme. Ead virou-se para ela.

— Parspa — disse Ead. — Chassar deve tê-lo


enviado.

— Sim.
— Surpreende-me que tenha confiado em ti. O
Priorado não vê com bons olhos os adoradores de wyrms.

— Não desprezarias os dragões do Oriente se


soubesses alguma coisa sobre eles. Eles não têm nada
que ver com as bestas de fogo — disse Tané, olhando
para ela. — Eu detesto o Inominável. Os seus discípulos
mergulharam os nossos deuses na Grande Desolação, e
estou determi­nada a castigá-lo por isso. Em todo o caso,
não tens outra escolha senão confiar em mim.

— Podia matar-te. E ficar com a joia para mim.

Pelo olhar nos seus olhos, era claro que o faria.


Tinha uma adaga no cinto.

— E usarias as duas joias sozinha? — perguntou


Tané, sem se deixar intimidar. — Suponho que saibas
como fazê-lo. — Tirou a bolsa de debaixo das almofadas
e depositou a joia crescente na palma da mão. — Já usei
a minha para guiar um navio num mar sem vento. Usei-a
para ati­rar as ondas contra a areia. Por isso, sei que te
suga a força... a princípio, lentamente, de forma
suportável, como a dor de um dente podre. Depois
arrepia-te o sangue e os teus membros ficam cada vez
mais pesados, até que não consegues ver a hora de
dormir durante anos. — Estendeu-lha. — É um fardo para
ser partilhado.
Com movimentos lentos, Ead pegou na joia. Com a
outra mão, tirou uma corrente que pendia do seu
pescoço.
A joia minguante. Uma pequena lua, redonda e
leitosa. No seu inte­rior, escondia o brilho de uma estrela,
contida onde a sua gémea reful­gia. Ead segurou as joias
em cada uma das suas palmas.
— As chaves do Abismo.
Tané sentiu um arrepio.
Parecia impossível que as tivessem unido.
— Foi elaborado um plano para derrotar o
Inominável. Presumo que Loth te tenha falado dele. —
Ead entregou-lhe a joia azul. — Tu e eu usaremos estas
chaves para o mergulhar para sempre nas profundezas e
encarcerá-lo lá.
Assim como Neporo havia feito há mil anos, com
outra maga a seu lado.
— Devo avisar-te — acrescentou Ead —, sem Ascalon
não poderemos matar o Inominável. Alguém tem de a
fazer atravessar o seu coração antes de usarmos as joias.
Para apagar o seu fogo. A minha única esperança é que a
Bruxa de Inysca a traga até ele, e que possamos arrancá-
la dela. Se não, é possível que os teus wyr... dragões do
Oriente... o possam enfra­quecer o suficiente para que
possamos usar as joias sem a espada. Talvez possamos
imobilizá-lo por mais mil anos. Não que me agrade muito
a ideia, porque significa que outra geração terá de
enfrentar esta tarefa.
— Estou de acordo — disse Tané. — Isto tem de
acabar aqui.
— Ótimo. Praticaremos juntas com as joias. — Ead
meteu a mão na sacola que trazia ao ombro e tirou o
fruto dourado que Tané lhe trouxera do Priorado. — Dá
uma dentada nisto. O siden pode ajudar-te nesta batalha,
sobretudo se Kalyba vier. — Tané viu-a deixar a fruta na
mesinha de cabeceira. — Fá-lo depressa. Apodrecerá
hoje.
Tané demorou um momento para assentir.
— Imobilizar o Inominável pode significar o fim de
ambas — disse Ead, baixando a voz. — Estás disposta a
correr esse risco?
— Morrer por um mundo melhor seria a maior honra
possível. Ead sorriu.
— Creio que nos entendemos uma à outra. Pelo
menos nisto. Tané surpreendeu-se a si própria ao
devolver-lhe o sorriso.
— Vem ver-me quando te sentires mais forte — disse
Ead. — Há um lago na floresta de Chesten. Podemos
aprender a usar as joias. E ver quanto tempo
conseguimos passar sem nos matarmos uma à outra.
Com isso, foi-se embora. Tané voltou a guardar a joia
crescente, que ainda brilhava, na sua bolsa.
O fruto dourado também brilhava. Segurou-o nas
mãos durante mui­to tempo antes de provar a sua polpa.
Sentiu uma explosão de doçura sob os dentes e por toda
a língua. Quando o engoliu, sentiu-o quente.
O fruto caiu no chão e um fogo estalou no seu interior.

***

No Quarto de Leito Real, a rainha de Inys também


estava a arder. O Doutor Bourn estivera a vigiá-la o dia
todo, mas agora Ead estava ao seu lado, contrariando a
sua promessa.
Sabran dormia num sono delirante e febril. Ead
sentou-se na cama e molhou um pano em água.
A Prioresa estava morta e o Priorado nas mãos da
bruxa. A ideia de que o Vale de Sangue estaria cheio de
wyrms atraídos por uma maga era-lhe mais amarga do
que artemísia.
Pelo menos, Kalyba não faria mal à laranjeira. Era a
única coisa que lhe poderia dar o siden que tanto
desejava.
Ead arrefeceu a testa de Sabran. Não estava de luto
por Mita Yedanya, mas pelas suas irmãs, que haviam
perdido a sua segunda matriarca num curto espaço de
tempo. Agora que a Prioresa estava morta, teriam fugido
para outro lugar e escolhido uma nova líder,
provavelmente Nairuj, ou ter-se-iam submetido a Kalyba
para ficarem perto da árvore. Qualquer que fosse a sua
decisão, Ead esperava que Chassar estivesse a salvo.
Sabran não dissera nada desde o cair da noite. Ead
estava a cortar os pavios das velas quando ela quebrou o
silêncio.
— Que disse a forasteira?
Ead olhou por cima do ombro. Sabran observava-a.
Em voz baixa, para que ninguém ouvisse do outro
lado da porta, Ead explicou o seu encontro com Tané.
Quando terminou, Sabran olhava para o dossel da cama.
— Falarei com o meu povo depois de amanhã — disse.
— Sobre a aliança.
— Não estás bem. Decerto que podes adiar um dia ou
dois.
— Uma rainha não abandona os seus planos por causa
de uma febre. — Sabran suspirou enquanto Ead puxava a
colcha para a cobrir. — Eu disse-te para não tomares
conta de mim.
— E eu disse-te que não era tua súbdita.
Sabran murmurou qualquer coisa para a almofada.
Quando voltou a adormecer, Ead tirou a joia
minguante. Pressentira um outro tipo de magia e unira-se
a ela, embora a sua natureza fosse oposta.
Alguém bateu à porta e Ead apressou-se a guardar a
joia. Abriu a porta e deu com Margret à entrada.
— Ead. — Parecia nervosa. — Os governantes do Sul
acabam de chegar a Porto Estival. Que crês que queiram
de nós?
67
Oeste

Uma pele húmida roçou na sua e uma mão


acariciou-lhe o cabelo.
Foram as primeiras coisas em que reparou antes de
uma dor agónica lhe interromper o sono, penetrante e
vingativa.
O ar queimava-lhe a boca, ainda com sabor a
enxofre. Dos seus lábios escapou-lhe um gemido.
— Jan...
— Shh, Niclays.
Conhecia aquela voz.
— Laya — tentou dizer, mas só lhe saiu um grunhido.
— Oh, Niclays, graças aos deuses. — Secou-lhe a
testa com um pano ao ouvi-lo reagir. — Não te mexas.
Os acontecimentos de Komoridu regressaram-lhe à
mente como um relâmpago. Ignorando o pedido de Laya,
quis levar a mão à garganta. No lugar onde outrora tivera
uma segunda boca, sentiu uma pele sen­sível e lisa: a
cicatriz de uma cauterização. Levantou o braço e viu que
agora acabava num coto arredondado, sulcado de
costuras negras. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Ele era anatomista. Mesmo naquele estado, soube
que aquela ferida, quase sem dúvida, o mataria.
— Shh. — Laya acariciou-lhe o cabelo. As suas faces
também estavam húmidas. — Lamento, Niclays.
Uma dor intensa percorreu-lhe o braço. Pegou no
pedaço de couro que ela lhe estendeu e mordeu-o com
todas as suas forças para evitar gritar.
Um estalido tenso chamou-lhe a atenção. Pouco a
pouco, deu conta de que o balanço não fora uma ilusão
criada pela dor, mas o efeito de estarem, Laya e ele,
suspensos numa jaula de ferro.
Se antes o medo se apoderara dele, agora estava
perto de o conduzir à loucura. O primeiro pensamento
que teve foi que a Imperatriz Dourada os tinha deixado
em terra para morrerem de fome; depois lembrou-se do
último som que ouvira antes de perder a consciência: o
bater de asas draconianas.
— Onde...? — conseguiu dizer, com a sensação de
que o vómito se­guiria o caminho das suas palavras —
Laya. Onde?
Laya engoliu em seco, com tanta força que lhe viu a
garganta mexer. — Monte do Pavor — disse ela,
aproximando-se ainda mais dele. — As veias vermelhas
na rocha. Não há nenhuma outra montanha que as
tenha.
O local de nascimento do Inominável. Niclays sabia
que deveria estar a tremer de medo, mas a única coisa
em que conseguia pensar era no quão perto estava de
Brygstad.
Tentou conter os gemidos. A separação entre as
grades era suficiente para passarem por entre elas, mas
a queda matá-los-ia aos dois. Naquela caverna sombria,
a única coisa que distinguia era uma massa coberta de
escamas.
De escamas vermelhas.
Não numa besta viva. Não: a pintura na parede
daquela caverna era uma lembrança. Mostrava uma
mulher com uma coroa de guerra lasiana enfrentando o
Inominável, atravessando-lhe o peito com a espada.
A espada era inconfundível: Ascalon. E quem a
empunhava era Cleolind Onjenyu, Princesa do Domínio
de Lasia.
Quantas mentiras.
Escamas vermelhas. Asas vermelhas. A imensidão da
besta cobria a maior parte da parede. Em delírio, Niclays
começou a contar as esca­mas enquanto Laya lhe
enxugava a testa. Qualquer coisa servia para se distrair
daquela dor agonizante. Já as tinha contado duas vezes
antes de adormecer novamente. Sonhou com espadas,
sangue e um cadáver ruivo. Quando sentiu Laya tensa ao
seu lado, abriu os olhos.
Na jaula, surgira uma mulher, completamente vestida
de branco. Foi então que se convenceu de que estava a
delirar.
— Sabran — disse ele, contendo um grito.
Seria efeito da febre. Sabran Berethnet estava à sua
frente, com a sua vasta cabeleira preta a brilhar sobre a
pálida pele. Uma suposta beleza que sempre lhe
provocara arrepios, como se tivesse mergulhado o pé em
água gelada.
A mulher aproximou o rosto. Aqueles olhos de um
verde jade cremoso.
— Olá, Niclays — disse ela. — Chamo-me Kalyba.
Ele nem conseguiu articular uma resposta. O seu
corpo era uma mas­sa inerte, estava paralisado.
— Suponho que estejas confuso. — Os lábios dela
eram vermelhos como maçãs. — Lamento ter-te trazido
tão longe, mas estavas muito perto da morte. E
desagrada-me perder uma vida. — Apoiou uma mão fria
na cabeça dele. — Deixa-me que te explique. Também
sou Primeiro Sangue, tal como Neporo, cuja história leste
em Komoridu. Comi do fruto da árvore espinhosa quando
Inys não tinha rainha.
Mesmo que Niclays conseguisse articular palavras,
não saberia o que dizer na presença daquele ser. Laya
segurava-o com ainda mais força, a tremer.
— Suponho que saibas onde estás. Imagino que
estejas assustado, mas este é um lugar seguro. Preparei-
o, como podes ver. Para a primavera. — Kalyba afastou
uma madeixa de cabelo que lhe cobria os olhos. — O
Inominável veio aqui depois de Cleolind o ferir. Pediu-me
que en­contrasse um artista que pintasse a história, para
refletir aquele dia em Lasia. Para que nunca fosse
esquecido.
Niclays teria pensado que aquela mulher estava louca,
se não tivesse a certeza de que fora ele quem havia
enlouquecido. Tudo aquilo tinha de ser um pesadelo.
— A imortalidade é um dom que possuo — sussurrou
Kalyba. — Ao contrário de Neporo, aprendi a partilhá-lo.
Até a dar vida aos mortos.
Jannart.
O hálito dela era como o frio do pleno inverno. Niclays
olhou-a, hip­notizado pelos seus olhos.
— Sei que és alquimista. Deixa-me partilhar esse dom
contigo. Mostrar-te como desfazer as costuras da idade.
Poderia ensinar-te a criar um homem das cinzas dos seus
ossos.
O rosto de Kalyba começou a mudar. O verde dos
seus olhos tornou-se cinzento, e o cabelo ficou vermelho
como sangue.
— Tudo o que necessito — disse Jannart — é de um
pequeno favor em troca.

***

Era a primeira vez em muitas décadas que a Casa de


Berethnet recebia soberanos do Sul. Ead estava à direita
de Sabran, observando-os.
Jantar Taumargam, chamado de o Esplêndido, era
tão imponente como o seu epíteto sugeria. Não
imponente no sentido físico; tinha ossos finos, magro
como uma pena, quase delicado à primeira vista, mas os
seus olhos eram como masmorras. Uma vez que ele
capturasse alguém com o olhar, esse alguém pertencer-
lhe-ia até que ele decidisse conceder-lhe a liberdade.
Vestia uma túnica azul safira com rendas e colarinho com
um fecho de ouro. A sua rainha, Saiyma, já estava a
caminho de Brygstad.
Ao lado dele estava a Alta Governante de Lasia.
Kagudo Onjenyu, aos vinte e cinco anos, era a
monarca mais jovem do mundo conhecido, mas a sua
postura deixava claro que qualquer um que a
subestimasse pagaria um preço muito alto. A sua pele
era de um tom castanho-escuro. Usava conchas ao redor
do pescoço e dos pulsos, e todos os seus dedos
brilhavam, adornados com ouro. Tinha quatro irmãs do
Priorado designadas para sua defesa desde o dia em que
nascera. Embora não parecesse que Kagudo precisasse
de muita defesa. Diziam que era uma guerreira tão
temível quanto Cleolind havia sido.
— Como sabeis, o exército terrestre mêntico é
pequeno — disse Sabran. — Os mantos de lobo de Hróth
serão de grande ajuda, as­sim como a sua armada, ao
nosso lado neste flanco da batalha, mas precisamos de
mais soldados. — Fez uma pausa para respirar. Combe
lançou-lhe um olhar preocupado. — Ambos tendes
soldados e armas à disposição, suficientemente
poderosos para causar danos aos exércitos de Sigoso.
A rainha tinha olheiras escuras sob os olhos. Insistira
em levantar-se para receber os soberanos do Sul, mas
Ead sabia que a sua pele ainda ardia.
Tané estava deitada na cama, com a sua própria
febre. Comera o fruto. Sabran teria gostado que a
visitante do Oriente estivesse presente, mas era melhor
que dormisse. Precisaria de todas as suas forças para a
tarefa que tinha pela frente.
— O Ersyr odeia o conflito — disse Jantar. — O
Cantor da Alvorada ensinou-nos a evitar a guerra. Mas se
os rumores que se espalham pelo meu país forem
verdadeiros, parece que não temos outra opção senão a
das armas.
Os monarcas do Sul haviam chegado sob o manto da
noite. Depois iriam encontrar-se com Saiyma em
Brygstad para discutir estratégia com a Grã-Princesa
Ermuna. Era demasiado arriscado fazê-lo por carta.
Nenhum dos soberanos usava coroa. Naquela mesa,
conversavam entre si como iguais.
— Cárscaro nunca foi invadida — comentou Kagudo,
com uma voz profunda que os fez endireitarem-se um
pouco. — Os Vetalda estabeleceram-se nas montanhas
por algum motivo. Uma incursão pela planície vulcânica
seria uma loucura.
— Estou de acordo. — Jantar inclinou-se para a
frente para estudar o mapa. — A Roca está infestada de
wyrms — acrescentou, apontando com o dedo. — Yscalin
possui defesas naturais em todos os lados, exceto num.
A fronteira com Lasia.
Kagudo olhou para o mapa sem mudar de
expressão.
— O Lorde Arteloth Beck esteve no Palácio da
Salvação este verão — disse Sabran. — Descobriu que o
povo de Cárscaro não se submeteu ao Inominável por
vontade própria. Se conseguirmos eliminar o Rei Sigoso,
Cárscaro cairá por dentro, talvez até sem derramamento
de sangue. — Apontou para a cidade no mapa. — Existe
uma passagem secreta sobre o palácio. Aparentemente,
a Donmata Marosa é nossa aliada e pode ajudar-nos por
dentro. Se um pequeno número de solda­dos pudesse
percorrer a passagem e entrar no palácio antes do início
do assalto principal, poderiam acabar com Sigoso.
— Isso não vai matar os wyrms que defendem
Cárscaro — apontou Kagudo.
Uma criada veio servir-lhes mais vinho. Ead recusou a
oferta. Precisava de ter a mente clara.
— Deveis saber, Sabran — acrescentou Kagudo —,
que eu não poria o meu selo neste lugar se não fosse
crucial para Lasia. Francamente, a ideia de que tenhamos
de sacrificar os nossos soldados para criar uma enorme
distração enquanto vós e os vossos enfrentais o
Inominável parece-me questionável. Decidistes que nós
enfrentaremos os gatinhos e vós o grande felino, embora
seja possível que ele venha atrás de nós a qualquer
momento.
— A manobra de distração foi ideia minha,
Majestade — disse Ead.
Foi nesse momento que a Alta Governante de Lasia a
fitou pela pri­meira vez. Ead sentiu um formigueiro na
nuca.
— Senhora Nurtha — disse Kagudo.
— A Rainha Sabran propôs o ataque a Cárscaro, mas
fui eu que su­geri enfrentar o Inominável no Abismo.
— Entendo.
— Claro — disse Ead —, sois descendente direta da
Casa de Onjenyu, cujo território foi ameaçado pelo
Inominável antes de qualquer outro. Se desejardes vingar
a crueldade que ele empregou contra o vosso povo,
designai um dos vossos generais para supervisionar o
cerco a Cárscaro e juntai-vos a nós no mar.
— Ficaria encantada de contar com o apoio da vossa
espada, Kagudo — disse Sabran —, se decidirdes unir-vos
às minhas forças.
— Com certeza — disse Kagudo, dando um gole no
seu vinho. — Imagino que apreciariam muito a
companhia de uma herege.
— Já não vos chamamos de hereges. Tal como prometi
na minha carta, esses dias ficaram para trás.
— Vejo que só foram necessários mil anos e uma crise
desta magni­tude para que a Casa de Berethnet
começasse a aplicar as suas próprias lições de cortesia.
Sabran teve o bom senso de lhe dar tempo para
pensar. Kagudo olhou para Ead durante um momento.
— Não — disse por fim. — Que Raunus vá convosco.
Ele é homem do mar, e o meu povo merece prioridade ao
resolver esta antiga ofensa. Querem ver a sua soberana
no campo de batalha mais próximo das suas casas. De
qualquer forma, Cárscaro já ameaçou os nossos domínios
por demasiado tempo.
Desse ponto em diante, apenas se falou de estratégia.
Ead tentou ou­vir, mas a sua mente estava noutro lugar. A
Câmara do Conselho parecia exercer uma grande
pressão sobre ela, e finalmente desculpou-se:
— Se Vossas Majestades me permitem.
Todos se calaram de repente.
— Claro, senhora Nurtha — disse Jantar, esboçando
um sorriso. Sabran ficou a observar enquanto ela se
afastava. Kagudo também. Lá fora, a noite ia caindo. Ead
usou a sua chave para sair para o Jardim Real; sentou-se
no banco de pedra e apoiou-se na borda.
Ficou ali sentada, possivelmente durante horas,
perdida em pensa­mentos. Pela primeira vez, sentia o
peso da sua responsabilidade como um fardo.
Agora, tudo dependia da sua habilidade para usar as
joias com Tané. Milhares de vidas e até a sobrevivência
da humanidade dependiam des­se requisito. Não havia
outro plano. Apenas a esperança de que dois fragmentos
de uma lenda pudessem ser usados para imobilizar a
Besta da Montanha. Cada momento que continuasse viva
significaria mais um momento em que os soldados
morreriam no sopé das montanhas de Cárscaro. Cada
momento a mais significaria outro navio queimado.
— Senhora Nurtha.
Ead levantou o olhar. O céu ainda escondia as suas
primeiras luzes, e Kagudo Onjenyu estava de pé ao seu
lado.
— Vossa Majestade — disse, levantando-se.
— Por favor — respondeu Kagudo, que agora usava
um manto com remates de peles, preso com um broche
sobre o ombro. — Eu sei que as ir­mãs do Priorado não
reconhecem nenhuma outra soberana além da Mãe.
Ead fez uma reverência ainda assim. Era verdade que
o Priorado não respondia a ninguém além da sua
Prioresa, mas Kagudo tinha o sangue dos Onjenyu, a
dinastia da Mãe.
Kagudo observou-a com aparente interesse. A Alta
Governante tinha uma beleza que fazia o coração parar
por um instante. Os seus olhos eram amendoados e
curvavam-se para cima nos cantos, sobre maçãs do rosto
largas. Agora que estava de pé, Ead podia ver a rica tela
de cor la­ranja da sua saia. Ela usava um adorno de
guerreira real sobre o cabelo.
— Parecíeis estar muito absorta nos vossos
pensamentos — disse.
— Tenho muito em que pensar, Majestade.
— Como todos nós. — Kagudo olhou para a Torre de
Alabastro. — Por enquanto, a nossa reunião terminou.
Talvez querais dar um passeio comigo. Preciso de
apanhar ar.
— Seria uma honra.

Começaram a caminhar pelo caminho de cascalho


que serpenteava pelo Jardim Real. Os guarda-costas de
Kagudo, que usavam pulseiras douradas no topo dos
braços e lanças de aparência mortal, seguiam-nas a uma
pequena distância.

— Sei quem és, Eadaz uq-Nāra — disse Kagudo em


selinyi. — O Chassar uq-Ispad falou-me da jovem enviada
para proteger a rainha de Inys.

Ead esperou parecer menos surpreendida do que


realmente estava.

— Suspeito de que já saibas que a Prioresa faleceu.


Quanto ao Priorado, parece que foi ocupado por uma
bruxa.

— Rezava para que não fosse verdade — disse Ead.

— As nossas orações nem sempre têm fruto —


respondeu Kagudo.

— O teu povo e o meu sempre se entenderam.


Cleolind de Lasia era da minha dinastia. Tal como os
meus antepassados, mantive a relação com as suas
damas.

— O vosso apoio tem sido decisivo para os nossos


sucessos.

Kagudo parou e virou-se para ela.

— Falar-te-ei claramente — disse. — Pedi-te para


passeares comigo porque queria que me conhecesses.
Conhecer-te em pessoa. Afinal, em breve chegará o
momento em que as Damas Vermelhas terão de esco­lher
a próxima Prioresa.

Ead sentiu um peso no estômago.

— Nisso, não tenho nada que dizer. No Priorado,


consideram-me traidora.
— Isso pode ser verdade, mas talvez estejas prestes
a enfrentar o seu inimigo mais antigo. E se pudesses
derrotar o Inominável... certamente te perdoariam as
tuas falhas — disse. Se ao menos fosse verdade. — A
Mita Yedanya, ao contrário da sua antecessora, olhava
para o interior. Hoje em dia, parece razoável preocupar-
se em certa medida com o que acontece no interior do
Priorado, talvez até seja necessário. Mas tendo em conta
a tua ascensão a este cargo na corte de Inys, Eadaz,
parece que também sabes olhar para o exterior. E um
governante deve saber fazer ambas as coisas.
Ead deixou que aquelas palavras penetrassem no seu
interior. Talvez nunca chegassem a crescer e a dar fruto,
mas pelo menos a semente fora plantada.
— Alguma vez sonhaste em ser Prioresa? —
perguntou Kagudo. — Afinal, és descendente de Siyāti
uq-Nāra, a mulher escolhida por Cleolind para lhe
suceder.
Claro que sonhara com isso. Todas as jovens do
Priorado queriam tornar-se Damas Vermelhas, e todas as
Damas Vermelhas esperavam tornar-se um dia a
representante da Mãe.
— Não me parece que olhar para o exterior tenha
servido de muito — disse Ead em voz baixa. — Fui
expulsa, chamaram-me bruxa. Enviaram uma das minhas
próprias irmãs para me matar. Dediquei oito anos da
minha vida a proteger a Rainha Sabran, acreditando que
ela era des­cendente da Mãe, apenas para descobrir que
não era. — Viu Kagudo esboçar um sorriso. — Vós nunca
acreditastes nisso, não é verdade?
— Oh, nem por um momento. Tu e eu sabemos que
Cleolind Onjenyu, que estava disposta a morrer pelo seu
povo, não o teria aban­donado por Galian Berethnet. Tu
também sabias, mesmo sem provas... mas a verdade
encontra sempre uma maneira de vir à superfície.
A Alta Governante ergueu o olhar para o céu, onde a
Lua se escondia entre as nuvens.
— Sabran prometeu-me que, após as nossas batalhas,
se assegurará de que o mundo saiba verdadeiramente
quem venceu o Inominável há mil anos. Devolverá à Mãe
o lugar que lhe é devido na história.
Essa verdade abalaria os alicerces do Reino das
Virtudes. Seria um sino que ressoaria por todos os
continentes.
— Pareces tão surpreendida como eu fiquei — disse
Kagudo, apenas insinuando um sorriso. — Num só dia
não se pode acabar com séculos de mentiras, é claro. As
crianças do passado morreram a acreditar que Galian
Berethnet empunhou a espada e que Cleolind Onjenyu
não pas­sava da sua devota prometida. Isso não podemos
mudar, nem reparar... mas as crianças de amanhã
conhecerão a verdade.
Ead sabia a dor que isso causaria a Sabran.
Finalmente, cortar publicamente o vínculo com a mulher
que conhecera como a Donzela. A mulher cuja verdade
ela não conhecera durante todo aquele tempo.
Mas fá-lo-ia. Porque era o correto. A única coisa que
podia fazer.
— Eu confio no Priorado. Como sempre fiz — disse
Kagudo, apoiando-lhe uma mão no ombro. — Os deuses
caminham a teu lado, Eadaz uq-Nāra. Espero
sinceramente que nos voltemos a encontrar.
— Eu também — disse Ead, fazendo uma reverência à
representante da Casa Onjenyu. Surpreendeu-se ao ver
Kagudo retribuir o gesto.
Separaram-se nas portas do Jardim Real. Ead apoiou
as costas na parede enquanto o amanhecer começava a
clarear o horizonte. A incer­teza e a quantidade de novas
possibilidades que se abriam diante dela deixavam-na
tonta.
Prioresa. Se conseguisse derrotar o Inominável,
poderia reivin­dicar o cargo e a Alta Governante apoiá-la-
ia. E isso não era pouco. Poucas Prioresas do passado
tiveram a honra de contar com o apoio dos Onjenyu.
Foi trazida de volta à realidade quando ouviu uma voz
a chamá-la. Margret corria na sua direção tão rápido
quanto as suas saias lhe permitiam.
— Ead! — disse, segurando-lhe as mãos. — O rei
Jantar recebeu a minha carta. Ele trouxe Valour.
Ead improvisou um sorriso.
— Fico contente.
Margret franziu a testa.
— Estás bem?
— Perfeitamente.
Ambas se voltaram para as portas do palácio, onde
uma multidão de cortesãos se reunia, aguardando pelo
discurso de Sabran. Margret pas­sou a mão pelo braço de
Ead.
— Estava certa de que este dia nunca chegaria —
disse, enquanto se aproximavam dos outros cortesãos. —
O dia em que uma rainha Berethnet teria de anunciar
que estamos novamente em guerra com o Exército
Draconiano.
As portas do palácio ainda não estavam abertas. Os
guardas da cidade estavam nas traseiras, bloqueando o
acesso aos cidadãos reunidos atrás deles. Nobres e
camponeses estavam posicionados de um lado ao outro
da grade, entreolhando-se.
— Perguntaste-me sobre o meu casamento. Planeava
casar-me com Tharian assim que acordasses — disse
Margret. — Mas agora não me parece o melhor
momento, sem o Loth.
— Então, quando será?
— Depois da batalha.
— Conseguirás esperar tanto tempo?
Margret deu-lhe uma cotovelada.
— O Cavaleiro da Camaradagem ordena que espere.
A multidão lá fora crescia em tamanho e o barulho
aumentava. Clamavam por ver a sua rainha. Quando o
relógio se aproximou das seis, Tané apareceu ao lado
delas. Alguém desfizera os nós do seu cabelo,
penteando-o e vestindo-a com umas calças largas e uma
camisa.
Cumprimentou-a com um gesto de cabeça e Ead
retribuiu o gesto. Sentia a força do siden na jovem do
Oriente, brilhando como uma brasa ardente.
Os sinos da torre tocaram. Quando a fanfarra real
soou, finalmente a multidão silenciou-se. De repente,
ouviu-se o som dos cascos de um cavalo e Sabran
apareceu montada num garanhão branco de barda
completa.
Usava a couraça de prata do inverno e um manto de
veludo carme­sim, ajustado de forma que a espada de
cerimónia fosse visível no seu flanco, e os seus lábios
eram do vermelho de uma rosa nova. Tinha o cabelo
entrançado ao estilo que Glorian a Terceira costumava
usar. Os Duques Espirituais seguiam-na, cada um com a
sua montada e o estandarte da família. Tané viu-os
passar sem alterar a sua expressão.
O cavalo de guerra de Sabran parou junto aos
portões. Sabran puxou as rédeas quando Alaraq surgiu
nas suas costas e assumiu uma posição defensiva,
emitindo um rosnado baixo. De cabeça erguida, a rainha
de Inys olhou para os seus cidadãos desnorteados.
— Meu querido povo de Inys — disse ela, e a sua voz
refletia o seu poder —, o Exército Draconiano regressou.
68

Este

Havia séculos que uma frota oriental não


atravessava o Abismo. Os quarenta navios, armados até
ao pescoço com arpões, canhões giratórios e bestas,
eram blindados com grandes placas de ferro. Até as suas
velas estavam revestidas com uma cera iridescente, feita
da bílis dos wyrms de Seiiki, que impedia em grande
medida que a lona se in­cendiasse. O colossal Pérola
Bailarina ia à frente, com o Desafio, no qual viajava o
Senhor da Guerra de Seiiki.

E, à sua volta, os dragões nadavam.


Loth ficou a olhar para um deles da sua cabina no
Pérola Bailarina. De vez em quando, espreitava por cima
da superfície para que a sua cavaleira, montada na sela,
pudesse respirar. A mulher usava um capa­cete com uma
cobertura para proteger o pescoço. Podia ter ficado num
navio, segura e quente, mas em vez disso escolhera
montar o seu wyrm pelas águas negras.
Se os dois lados do mundo alguma vez se
reconciliassem, talvez isto se tornasse uma visão comum
em todos os mares do globo.
O Imperador Eterno tinha na mão uma taça de vinho
rosa lacustre. Estavam envolvidos numa partida de
Patifes e Donzelas, um jogo que Loth aprendera no dia
anterior.
— Falai-me da vossa rainha.
Loth levantou os olhos das cartas.
— Vossa Majestade?
— Perguntais-vos porque vos pergunto — disse o
Imperador Eterno, sorrindo. — Sei muito pouco sobre os
governantes do outro lado do Abismo, meu senhor. A
Rainha Sabran está prestes a tornar-se uma aliada do
meu país, por isso deveria saber mais sobre ela além do
seu famoso nome. Não concordais?
— Sim, Vossa Majestade Imperial. — Loth clareou a
voz. — Que desejais saber?
— Sois amigo dela.
Loth pensou durante algum tempo em como desenhar
um retrato de Sabran, que fazia parte da sua vida desde
os seis anos. Desde o tempo em que a sua única
preocupação era ver quantas aventuras conseguiam
viver num dia.
— A Rainha Sabran é leal para com aqueles que lhe
são leais — disse ele por fim. — Tem um bom coração,
mas esconde-o bem para se prote­ger. Para não parecer
vulnerável. É o que o seu povo espera dela.
— Vereis que é o que o povo espera de qualquer
governante.
Aquilo devia ser verdade.
— Por vezes, apodera-se dela uma grande melancolia
— prosseguiu Loth — que a faz ficar na cama durante
dias. Chama-lhe as suas horas sombrias. A sua mãe, a
Rainha Rosarian, foi assassinada quando ela tinha
catorze anos. Sabran estava presente. Desde então,
nunca foi com­pletamente feliz.
— E o seu pai?
— Wilstan Fynch, outrora Duque da Temperança,
também está morto.
O Imperador Eterno suspirou.
— Receio que partilhemos a orfandade. Os meus pais
morreram de varíola quando eu tinha oito anos, mas a
minha avó levou-me logo para o refúgio de caça da
família quando viu que eles estavam doentes. Fiquei
ressentido por não ter podido despedir-me deles. Agora,
vejo que foi pelo melhor. — Bebeu da taça. — Que idade
tinha Vossa Majestade quando foi coroada?
— Catorze.
A coroação acontecera no Santuário de Nossa
Senhora, numa manhã escura e cheia de neve. Ao
contrário da mãe, que causara sensação ao aparecer
para a coroação numa barcaça, Sabran chegara de
carruagem pelas ruas, aplaudida por duzentos mil dos
seus súbditos, que tinham viajado desde todas as regiões
de Inys para ver a sua princesa tornar-se uma jovem
rainha.
— Suponho que havia um regente — disse o
Imperador Eterno.
— O seu pai foi nomeado Lorde Protetor, e tinha como
conselheira a senhora Igrain Crest, Duquesa da Justiça.
Mais tarde descobrimos que Crest esteve envolvida na
morte da Rainha Rosarian. E... outras atrocidades.
O Imperador Eterno ergueu as sobrancelhas.
— Outra coisa que temos em comum. Depois da
minha ascensão ao trono, houve quase nove anos de
regência. E um desses regentes acabou por mostrar uma
tal sede de poder que teve de ser afastado da corte. —
Pousou a taça. — Que mais?
— Gosta de caçar e de tocar virginal. Quando era
criança, adorava dançar. Todas as manhãs dançava seis
galardas — recordou, e sentiu um aperto no peito ao
evocar esses tempos. — Após a morte da mãe, deixou de
dançar durante muitos anos.
O Imperador Eterno olhou-o nos olhos. À luz da
lamparina de bron­ze sobre a mesa, os seus olhos
pareciam infinitos.
— Agora dizei-me — questionou — se tem algum
amante.
— Vossa Majestade... — Loth não soube bem como
reagir.
— Paz. Temo que não daríeis um bom governante,
com um rosto tão fácil de ler. — O Imperador Eterno
abanou a cabeça. — Apenas me perguntei, vendo que
não tinha intenção de conceder a sua mão tão
facilmente. Não posso censurá-la. — Bebeu mais um
gole. — Talvez Sua Majestade seja mais corajosa do que
eu, quando se trata de tentar mudar a tradição.
Loth observou-o enquanto voltava a encher a taça.
— Também já me apaixonei uma vez. Tinha vinte anos
quando a conheci, no palácio. Podia falar-vos da sua
beleza, Lorde Arteloth, mas duvido de que o maior poeta
da história lhe pudesse fazer justiça, e infe­lizmente
nunca fui um grande escritor. Mas o que vos posso dizer
é que podia passar horas a falar com ela, algo que não
conseguia fazer com mais ninguém.
— Como se chamava?
O Imperador Eterno fechou os olhos por um momento.
Loth viu as linhas da sua garganta contraírem-se.
— Chamemos-lhe... a Donzela do Mar.
Loth esperou em silêncio que ele continuasse.
— Claro que a notícia se espalhou. O Conselho Real
rapidamente descobriu a nossa relação. Não ficaram
agradados, dada a sua baixa posição e o facto de eu
ainda não ter casado com uma mulher adequada ao
cargo, mas eu estava ciente do meu poder. Disse-lhes
que faria tudo o que quisesse. — Inspirou pelo nariz. —
Tanta arrogância da minha par­te. Tinha um grande poder,
mas devia-o ao Dragão Imperial, a minha guia e
referência. Supliquei-lhe, mas apesar de ela compreender
a mi­nha dor, não pôde aprovar a minha decisão. Dizia
que a minha amante escondia uma sombra que ninguém
conseguia controlar e que seria li­bertada se eu
alcançasse o poder. Para o bem de ambos, teria de a
deixar.
» No início resisti, vivi em negação, nunca terminando
a relação. Continuei a levá-la a nadar nos lagos sagrados,
sempre que ela me pe­dia, e a regá-la com presentes nos
meus palácios. Mas a estabilidade do meu território
dependia da aliança entre humanos e dragões. Eu não
podia quebrá-la mais do que podia parar o avanço de um
cometa... e temia que, se casasse com a mulher que
amava, o Conselho Real encon­trasse uma forma de a
fazer desaparecer. A menos que quisesse tratá-la como
uma prisioneira, rodeando-a de guarda-costas, teria de
ceder.
Loth pensou no Conselho das Virtudes, que conseguira
exilar Ead quando o seu único crime fora amar.
— Disse-lhe para que me deixasse. Ela recusou. No
final, tive de lhe dizer que nunca a amara, que ela nunca
seria a minha imperatriz. E então, vi a sua dor. E a sua
raiva. Disse-me que iria construir o seu pró­prio império e
que me desafiaria com ele, e que um dia me trespassaria
o coração com a sua espada, tal como eu trespassara o
dela. — Cerrou o maxilar. — Nunca mais a vi.
Dessa vez foi Loth que se serviu de uma bebida.
Toda a sua vida desejara encontrar uma companheira.
Agora perguntava a si mesmo se não teria sido uma
sorte nunca se ter apaixonado.
O Imperador Eterno estendeu-se na cama, com a
cabeça apoiada num braço, e olhou, cansado, para o
teto.
— No Império dos Doze Lagos, vive um pássaro de
penas roxas. Se o virdes à noite, parece uma joia com
asas. Muitos tentaram caçá-lo... mas se o apanhardes,
queima-vos as mãos. As suas preciosas penas são
venenosas. — Fechou os olhos. — Agradecei, Lorde
Arteloth, por não terdes nascido destinado a um trono.
69
Oeste

As distantes costas de Seiiki, para lá do Abismo,


chamavam por ela.
Sonhava havia dias e dias com a chuva de ameixas,
com a sua areia negra, com o beijo do mar aquecido pelo
sol na sua pele. Sentia falta do aroma do incenso e da
névoa que cobria as montanhas. Sentia falta dos
passeios pelos bosques de cedros em pleno inverno. E,
mais do que tudo isso, sentia falta dos seus deuses.
Era o segundo dia da primavera e Nayimathun ainda
não chegara. Tané sabia que levaria tempo para voltar a
voar, mas também sabia que, se chegasse ao mar, a
ferida curar-se-ia mais depressa. Isso fazia-a pensar na
possibilidade de que ela não tivesse chegado à costa.
Que as magas a tivessem capturado e desmembrado.
Liberta-te agora desse sentimento de culpa,
cavaleira.
Ela queria obedecer, mas a sua mente não
respondia. Sem querer, remexia nas suas antigas feridas,
fazendo-as sangrar novamente.
Umas pancadas na porta tiraram-na dos seus
pensamentos. Abriu-a e deparou com Ead, com os
cabelos brilhantes, cobertos de gotas de água.
No seu camarote, Tané acendeu o que restava de
uma vela de sebo.
— Como te sentes? — perguntou Ead, fechando a
porta atrás de si. — Mais forte.
— Ótimo. O teu siden está estabilizado. — Ead olhou
nos olhos dela. — Só queria ter a certeza de que estás
bem.
— Estou bem.
— Não parece.
Tané sentou-se na sua cama. Teria querido fingir,
mas tinha a sensa­ção de que com Ead podia ser sincera.
— E se falharmos? — perguntou. — E se não
conseguirmos usar as joias como fizeram Cleolind e
Neporo?
— Tens o sangue de Neporo e semanas de prática —
respondeu Ead com um sorriso breve. — Aconteça o que
acontecer, acredito que iremos recuperar Ascalon, Tané.
Acredito que iremos conseguir derrotá-lo de uma vez por
todas.
— Porquê?
— Porque o sterren atrai o sterren. Quando usarmos
as joias, elas atrairão Kalyba. Suponho que ela já tenha
sentido o chamamento desde que começámos a usá-las
— acrescentou, de expressão séria. — Ela virá.
— Espero que estejas certa. — Tané brincava com
uma trança do seu cabelo. — E como iremos derrotá-la?
— Ela é muito poderosa. Devemos evitar confrontá-
la cara a cara. Mas, se chegar a isso, tenho uma teoria —
disse Ead. — Kalyba obtém o seu poder do pó das
estrelas para mudar de forma, e já não deve ter mui­tas
reservas. Mudar de forma consome muito, e suspeito de
que quanto mais ela mudar de forma, mais irá consumir.
Forçá-la a mudar de forma várias vezes pode enfraquecê-
la. Até a aprisionar numa única forma.
— Não tens a certeza disso.
— Não — admitiu Ead. — Mas é tudo o que tenho.
— Que reconfortante.
Ead sorriu novamente e sentou-se no baú aos pés da
cama.
— Uma de nós deve empunhar Ascalon. E atravessar
o Inominável com ela. Tu estiveste exposta ao sterren da
joia crescente durante anos. É possível que a espada
responda melhor nas tuas mãos.
Tané demorou um momento a compreender. Ead
estava a oferecer um objeto pelo qual tanto lutara, uma
pedra basilar da sua religião, a uma cavaleira de
dragões. A alguém que, com todo o direito, poderia
considerar uma inimiga.
— A Princesa Cleolind foi a primeira a usá-la — disse
Tané, depois de refletir por um momento. — Agora
deveria ser uma das suas servas a brandi-la em seu
nome.
— Não podemos discutir sobre isto. O Inominável
deverá morrer amanhã, ou destruir-nos-á a todos.

Tané olhou para as suas mãos. Manchadas com o


sangue da sua me­lhor amiga. Indignas de Ascalon.
— Se tiver a oportunidade, usá-la-ei.
— Muito bem. — Ead sorriu. — Boa noite, cavaleira.
— Boa noite, assassina de wyrms.
A porta fechou-se com uma rajada de vento gelado.
Lá fora, as estrelas brilhavam sobre o Abismo. Os
olhos de dragões caídos que nunca haviam renascido.
Tané dirigiu-lhes as suas orações. Ajudai-me a cumprir a
minha missão. E nada mais vos pedirei.

***

O Reconciliação era um navio de guerra colossal. Além


do Rosa Eterna, que se perdera no Oriente, era o maior e
mais bem equipado navio de toda a armada de Inys.
Nos camarotes reais, Ead estava deitada sob duas
colchas de pele. Sabran estava ao seu lado, ainda
sonolenta. Era a primeira vez em vários dias que parecia
tranquila.
Ead encolheu-se na cama. O cruel ataque da sua irmã
deixara uma sensação gélida no seu âmago que a
penetrava até aos ossos.
Na noite seguinte, teriam os outros navios à vista. A
expetativa de voltar a ver Loth não era suficiente para
contrabalançar a dor que sentia no peito ao pensar na
sua irmã. Naquele momento, Margret já estaria em
Nzene.
Antes de sair de Ascalon, os governantes do Sul
pediram a Sabran que enviasse pessoal com experiência
no tratamento de doentes e feridos para a Roca. Embora
Margret fosse Dama do Leito Real, pediu permis­são a
Sabran para responder ao chamado. Se eu for no navio,
só irei atrapa­lhar, dissera. Não sei brandir uma espada,
mas sei tratar os ferimentos que ela causa.
Ead esperou que Sabran negasse a permissão, mas
ela encorajara Margret com firmeza e ordenara-lhe que
se cuidasse e retornasse em segurança. Quebrando o
protocolo mais uma vez, ordenara que o Sir Tharian
Lintley escoltasse a sua noiva e liderasse a comitiva dos
solda­dos de Inys. Nem mesmo o capitão dos Cavaleiros
do Corpo poderia proteger a sua rainha do Inominável.
Lintley não queria afastar-se dela, mas não podia opor-se
a uma ordem.
Sabran estava a acordar. Ead beijou-lhe o ombro e ela
levantou a cabeça para a fitar.
— Disseste-me uma vez que me levarias para bem
longe — disse Sabran em voz baixa.
Ead traçou o contorno da sua face. Sabran virou-se
para ela.
— Espero que o faças — acrescentou. — Um dia.
Sabran estendeu uma perna sobre a de Ead, que a
puxou para perto, para compartilharem o calor dos
próprios corpos.
— Dissemos que cumpriríamos a nossa obrigação
primeiro — sussur­rou Ead. — Mas ambas sabíamos que
era uma ilusão. — Susteve-lhe o olhar. — Tu és uma
rainha muito amada, Sabran. A rainha de que Inys
precisa. Não podes abdicar do trono amanhã, quer
derrotemos, quer não, o Inominável. E eu não posso
abandonar o Priorado.
— Eu sei. — Sabran aproximou-se ainda mais. —
Mesmo enquanto o sussurrávamos, na neve, eu sabia.
Ambas temos as nossas responsabilidades.
— Encontraremos uma maneira — prometeu Ead. —
De alguma forma.
— Não pensemos no futuro esta noite. Ainda não
amanheceu — disse Sabran em voz baixa, envolvendo o
rosto de Ead com as mãos, ao mes­mo tempo que
esboçava um sorriso frágil. — Ainda temos tempo para os
sonhos.
Ead aproximou a sua testa da dela.
— Agora, és tu que dizes palavras belas.
Era uma distração, mas Ead agradeceu. A luz da vela
que se consu­mia, deslizou os dedos entre os seus corpos,
e Sabran beijou-a alterna­damente com paixão e ternura.
Em breve enfrentariam o Inominável. Unidas naquele
momento ine­briante, com Sabran nos seus braços e a
sua carne a arder de desejo, Ead permitiu-se não pensar
nisso. O arco das suas costas aproximou-as ainda mais.
Aproximou-as daquele destino esquivo, juntas.
Estremecia com os toques suaves na pele, incapaz de os
antecipar na escuridão, e saboreou as ondas de prazer
que percorriam Sabran e que ela lhe devolvia.
Quando terminaram, ficaram imóveis, enredadas uma
na outra.
— Podes acender outra vela — disse Ead. — A luz não
me impede de dormir.
— Não preciso dela — respondeu Sabran, deslizando
uma mão pela nuca de Ead. — Não quando estou
contigo.
Ead apoiou a cabeça sob o queixo de Sabran e
escutou as batidas do seu coração, rezando para que
aquele som nunca desaparecesse.
Ainda a noite ia escura quando acordou na mesma
posição ao ouvir uma batida na porta.
— Vossa Majestade.
Sabran pegou na túnica de dormir. À porta,
conversou com um dos Cavaleiros do Corpo em voz
baixa.
— A tripulação resgatou alguém da água — disse a
Ead quando voltou para o seu lado.
— Como pode alguém ter chegado a este ponto tão
remoto do Abismo a nado?
— Estava num barco a remos. — Acendeu outra vela.
— Vens comigo?
Ead assentiu e levantou-se para se vestir.
Seis Cavaleiros do Corpo acompanharam-nas até à
outra extremida­de do Reconciliação, até ao camarote do
capitão, agora ocupado por um homem.
Alguém o envolvera numa manta. Estava pálido,
molhado e enregela­do. Vestia uma túnica lacustre
desgastada e tinha o cabelo grisalho, en­charcado de
água do mar. O seu braço esquerdo terminava logo
abaixo do cotovelo. Pelo cheiro, a perda fora recente.
Ele ergueu o olhar, os olhos injetados de sangue. Ead
reconheceu-o de imediato, mas foi Sabran quem falou:
— Doutor Roos — disse, a voz fria como gelo.

***

Sabran a Nona. Trigésima sexta rainha da Casa de


Berethnet. Passara quase uma década a odiá-la à
distância, e agora ela estava ali mesmo.
E a seu lado estava a pessoa que fora enviado para
matar.
Durante os seus dias na corte, apresentara-se como
Ead Duryan. Uma ersyri com uma posição relativamente
insignificante na Casa Superior. Obviamente, isso
mudara. Niclays lembrava-se dos seus olhos, escuros e
penetrantes, e da sua atitude orgulhosa.
— Doutor Roos — disse Sabran, com o mesmo
desprezo que poderia ter dirigido a um rato.
— Vossa Majestade — respondeu Niclays, com uma
reverência, embo­ra com evidente desdém. — Que prazer
voltar a ver-vos.
A rainha de Inys sentou-se no outro extremo da
mesa.
— Decerto que vos lembrais da senhora Ead Duryan
— disse ela. Agora é conhecida como senhora Eadaz uq-
Nāra, Viscondessa de Nurtha.
— Senhora Nurtha — disse Niclays, inclinando a
cabeça. Não con­seguia imaginar o que aquela jovem
cortesã teria feito para adquirir um título tão distinto.
Ead ficou de pé, os braços cruzados.
— Doutor Roos.
O seu rosto não revelava os sentimentos que a sua
presença pode­ria despertar, mas suspeitava, pela atitude
protetora que demonstrava ao posicionar-se ao lado de
Sabran, de que não seriam especialmente calorosos.
Niclays tentou não a olhar diretamente nos olhos.
Conseguia disfar­çar bem as suas intenções, mas algo nos
seus olhos o fazia sentir que ela conseguia ver dentro
dele.
Sentia a lâmina afiada, fria, contra a palma da mão.
Kalyba avisara-o de que Ead Duryan era muito mais
rápida do que qualquer mulher co­mum, mas ela também
não saberia que Niclays carregava algo capaz de a ferir.
Teria de atacar rápido e com força. E com a mão errada.
Sabran apoiou as mãos na mesa, as pontas dos dedos
quase a tocarem-se.
— Como haveis chegado a este ponto tão remoto de
tudo, no meio do Abismo?
Era a hora da mentira.
— Tentava escapar do exílio que me impusestes,
minha senhora.
— Achastes que poderíeis atravessar o Abismo num
barco a remos.
O desespero pode levar qualquer homem a cometer
loucuras.
— Qualquer homem e qualquer mulher. Talvez isso
explique porque solicitei os vossos serviços há tantos
anos.
— Majestade — disse ele, curvando um canto da boca
—, impressionais-me. Não pensei que o vosso coração
pudesse conter tanto rancor.
— A minha memória é longa — respondeu Sabran.
Roos sentia o ódio a devorá-lo por dentro. Sete anos
de reclusão em Orisima não significavam nada para ela.
Continuaria a negar-lhe o regres­so a Mentendon, tudo
porque ele a envergonhara. Porque fizera uma ra­inha
sentir-se insignificante. Conseguia vê-lo naqueles olhos
implacáveis.
Kalyba podia fazê-las chorar. A bruxa prometera que a
morte de Ead Duryan derrubaria Sabran Berethnet e que,
uma vez que ela desmoronasse, Kalyba entregá-la-ia ao
Inominável. Niclays olhou para ela e sentiu o desejo de
que assim fosse. Queria vê-la sofrer. Queria que
lamentasse o que fizera. Tudo o que tinha de fazer era
matar a sua dama de companhia e tirar-lhe a joia branca
que usava.
Kalyba poderia ressuscitá-lo se os guardas o
apanhassem. Isso permitir-lhe-ia voltar a Mentendon não
só carregado de riquezas, mas também com Jannart. Ela
devolver-lhe-ia Jannart.
E se ele não fizesse o que lhe fora ordenado, Laya
morreria.
— Quero que saibas uma coisa, Sabran Berethnet —
sussurrou Niclays. A dor no braço fazia os seus olhos
lacrimejarem. — Odeio-te. Odeio cada pestana dos teus
olhos, cada dedo das tuas mãos e cada den­te da tua
boca. Odeio-te até à medula do último osso.
Sabran olhou-o sem pestanejar.
— Não consegues imaginar a dimensão do ódio que
senti por ti todos estes anos — continuou ele. —
Amaldiçoei o teu nome a cada amanhecer. A ideia de
criar o elixir da vida apenas para to negar tem
impulsionado cada uma das minhas ações. Tudo o que
quis, durante todo este tempo, foi frustrar as tuas
ambições.
— Não falarás assim a Sua Majestade — reagiu um
dos guardas, envolto numa armadura reluzente.
— Falarei a Sua Majestade como bem me aprouver. Se
ela quiser impedir-me, que seja ela própria a fazê-lo —
respondeu Niclays, incisivo —, em vez de permitir que
uma marioneta metálica o faça por ela.
Sabran continuou em silêncio. O guarda olhou para ela
e desistiu, crispando os lábios.
— Todos estes anos naquela ilha — disse Niclays, os
dentes cerrados. — Todos estes anos num pequeno
pedaço de terra junto a Cabo Hisan, onde todos me
observavam e desconfiavam de mim. Todos estes anos a
percorrer as mesmas ruas, sonhando em regressar a
casa. E tudo porque prometi algo que nunca se
concretizou e porque tu, a rainha de Inys, foste
suficientemente ingénua para acreditar que O
conseguirias. Sim, eu merecia um castigo. Sim, fui um
canalha, e um ou dois anos de exílio não me fariam mal.
Mas sete... pelo Santo, em comparação, morrer na
fogueira teria sido uma bênção.
Os dedos dele apertaram a lâmina com tanta força
que sentiu as unhas pressionarem a palma.
— Poderia ter-vos perdoado pelo dinheiro que me
roubastes. Poderia ter-vos perdoado as mentiras —
sussurrou Sabran. — Mas aproveitastes-vos de mim,
Roos. Eu era jovem, receosa, e confiei-vos o meu medo
mais íntimo. Um medo que nem sequer partilhava com
as minhas Damas do Leito Real.
— E isso equivale a sete anos de exílio.
— Equivale a algo. Talvez peça desculpa quando
decidirdes reparar minimamente as vossas mentiras.
— Eu escrevi-te, humilhando-me — replicou Niclays —,
depois de Aubrecht Lievelyn se ter recusado a permitir
que eu regressasse a casa. Estava tão de­sejoso de
possuir a tua sagrada cona que a valorizou acima de...
Sabran levantou-se, o rosto exangue, e todas as
partasanas na sala se voltaram de imediato para o peito
de Niclays.
— Não voltarás a falar de Aubrecht Lievelyn — disse
ela, num sussurro letal —, ou farei que te atirem ao mar
em pedaços.
Fora demasiado longe. Em espaços fechados, os
Cavaleiros do Corpo não usavam viseiras; via-lhes o
choque estampado no rosto, uma expres­são de repulsa
que ia além da reação que provocaria um mero insulto.
— Está morto — deduziu Niclays. — Não está?
O silêncio confirmou-o.
— Não recebi nenhuma carta — disse Sabran,
mantendo a voz baixa.
— Porque não me revelais agora o seu conteúdo?
Ele estalou a língua, enigmático.
— Oh, Sabran. Estes sete anos não te mudaram.
Queres que te diga porque estou aqui realmente?
A lâmina era como gelo contra o calor da sua mão.
Ead Duryan, atrás de Sabran, era tão alheia ao perigo
como a rainha. Com apenas um passo poderia alcançar-
lhe a garganta. Ouviria o grito de Sabran. Veria a
máscara do seu rosto a despedaçar-se.
Nesse momento, a porta abriu-se de repente e Tané
Miduchi apare­ceu na cabina.
Niclays ficou boquiaberto. Num movimento
sincronizado, os Cava­leiros do Corpo cruzaram as suas
partasanas diante dela, mas Tané afastou-as, com ar de
estar pronta para atacar o recém-chegado.
— Não podeis confiar neste homem — disse Tané a
Sabran. — Não passa de um chantagista, um monstro...
— Ah, senhora Tané — disse Niclays, com frieza. —
Voltamos a encontrar-nos. Parece que os nossos destinos
estão entrelaçados.
Na verdade, estava surpreendido. Imaginou que teria
morrido afoga­da ou que a Imperatriz Dourada a tivesse
caçado. Não conseguia sequer conceber o que estaria a
fazer na embarcação da rainha de Inys.
— Deixei-te viver em Komoridu — disse Tané, plena de
raiva —, mas foi a última vez. Voltas sempre a aparecer.
Como uma erva dani­nha. — Debateu-se contra os
Cavaleiros do Corpo. — Irei eviscerar-te com a minha
própria espada, vil...
— Um momento — disse Ead, agarrando-a pelo
ombro. — Doutor Roos, dissestes que nos contaríeis
porque estais aqui realmente. Recomendo que o façais
de imediato, antes que o vosso rasto de destruição vos
alcance.
— Ele está aqui para nos causar algum dano, em seu
próprio benefí­cio — disse Miduchi, olhando-o fixamente
nos olhos. — É sempre assim.
— Então que seja ele a confessar.
Miduchi soltou-se da mão de Ead, mas parou de lutar
contra os guar­das. A sua respiração agitada fazia-lhe
subir e descer os ombros.
Niclays deixou-se cair na cadeira. O braço ardia-lhe. A
cabeça latejava com força.
— A Miduchi tem razão — disse ele, respirando fundo.
— Fui envia­do aqui por uma... feiticeira de aparência
mutável. Kalyba.
Ead virou-se de repente.
— O quê?
— Não fazia ideia de que algo assim pudesse existir,
mas suponho que nesta altura nada me possa
surpreender. — Outra pontada de dor no coto. — Ao
contar-vos isto, estou a condenar uma amiga à morte. —
O maxilar tremeu-lhe. — Mas... acredito que essa amiga
gostaria que eu o fizesse.
Retirou o fragmento metálico e depositou-o em cima
da mesa. Um dos Cavaleiros do Corpo aproximou-se para
o agarrar, mas Ead deteve-o com um gesto da mão.
— Kalyba deu-mo. Foi... foi ela que me deixou no
barco. Disse-me para chegar ao navio e aproximar-me de
vós, senhora Nurtha — disse Niclays. — E... cravá-lo no
vosso coração.
— Uma lâmina de sterren — disse Ead, examinando-
a. — Como a de Ascalon. Não é suficientemente grande
para atacar o Inominável, mas ter-me-ia atravessado a
pele sem problemas. — Levantou o olhar. — Suponho que
agora me teme mais do que nunca. Talvez tenha senti­do
o chamamento das joias.
— Joias. — Niclays levantou as sobrancelhas. —
Tendes as duas?
Ead assentiu e sentou-se ao lado de Sabran.
— A Bruxa de Inysca é persuasiva — disse-lhe. —
Deve ter-vos pro­metido todas as riquezas que poderíeis
desejar. Porque haveis confessado?
— Oh, ela ofereceu-me muito mais do que riquezas,
senhora Nurtha. Algo pelo qual sacrificaria de bom grado
o pouco que me resta — disse Niclays, com um sorriso
amargo. — Mostrou-me o rosto do meu único amor. E
prometeu que mo devolveria.
— E, no entanto, não cumpristes as suas ordens.
— Outrora, tê-lo-ia feito. Se ela não tivesse adotado o
seu rosto, se apenas me tivesse prometido voltar a vê-
lo... aceitaria de bom grado ser o seu fantoche. Mas ao
vê-lo... senti repulsa. Porque o Jannart... — O nome ficou-
lhe preso na garganta. — O Jannart está morto. Escolheu
como queria morrer e, ao ressuscitá-lo dessa forma,
Kalyba desonrou a sua memória.
Ead olhou fixamente para ele.
— Sou alquimista. Toda a minha vida acreditei que o
objetivo final da alquimia era a gloriosa transformação da
imperfeição em pureza. O chumbo em ouro, a doença em
bem-estar, o envelhecimento em vida eterna. Mas agora
compreendo. Vejo. Eram falsos destinos.
A sua antiga professora tinha razão, como sempre.
Ela sempre lhe dissera que a verdadeira alquimia estava
no trabalho, não no resultado final. Niclays pensava que
dizia isso para confortar aqueles que não fa­ziam
progressos.
— Parece tolo, eu sei. Como o delírio de um louco...
mas é exatamente isso que o Jannart sempre soube e eu
não conseguia ver. Para ele, a busca pela amoreira do
Oriente era a sua grande obra. Tinha a peça final, mas
não o resto.
— Jannart utt Zeedeur — disse Ead baixinho.
Ele olhou para ela com olhos ardentes.
— O Jannart era o sol dos meus dias — disse, com a
voz rouca. — A luz que me mostrava o caminho. A minha
dor levou-me a Inys, e foi isso que me levou ao Oriente.
Lá, tentei concluir a sua obra, na esperança de que isso
me aproximasse mais dele. Mas, sem saber, completei a
pri­meira fase da alquimia, da minha própria obra. A
putrefação da minha alma. Com a sua morte, começou o
meu trabalho. Enfrentei as sombras do meu interior.
Ninguém se mexeu nem abriu a boca. Ead olhava-o
com uma ex­pressão estranha. Algo parecido com
compaixão, mas não exatamente. Niclays continuou,
tentando ignorar o calor que sentia na testa. Estava
inflamado, em corpo e mente.
— Por isso — acrescentou —, a minha obra sou eu
mesmo. Caí nas profundezas das sombras e agora tenho
de ressurgir para me tornar um homem melhor.
— Isso levar-te-á muito tempo — disse a cavaleira de
dragão.
— Oh, com certeza que sim — disse Niclays, delirante
tanto pela excitação como pela dor da ferida. — Mas é
exatamente disso que se trata. Não veem?
— O que eu vejo é que estás completamente louco.
— Não, não. Estou a chegar à próxima fase de
transmutação. O sol branco. A purificação das impurezas,
a iluminação da mente! Qualquer tolo perceberia que
nada pode trazer o Jannart de volta, por isso resistirei a
Kalyba. Ela representa as minhas impurezas do passado,
trava o meu progresso e quer devolver-me aos meus
velhos instintos. Para conquistar o sol branco, dar-vos-ei
a chave para destruir toda a escuridão.
— Que é? — perguntou Ead.
— Conhecimento — respondeu Niclays. — O
Inominável tem um ponto fraco. A vigésima escama da
armadura que protege o seu peito foi danificada por
Cleolind Onjenyu há vários anos. Ela não conseguiu
acertar em cheio, mas talvez tenha deixado uma brecha.
A porta que penetra a sua armadura.
Ead examinou-lhe o rosto, semicerrando ligeiramente
os olhos.
— Não podes confiar nele — disse Miduchi. —
Venderia a alma por um punhado de prata.
— Não tenho alma para vender, honrada Miduchi. Mas
talvez consi­ga ganhar uma — replicou Niclays, ardendo
de fervor. — O Jan deixou alguém para trás, alguém que
ainda tem importância para mim. Truyde utt Zeedeur, a
sua neta. Quero ser para ela o que ele foi para mim, e
para isso devo ser uma pessoa melhor. Devo ser bom. E
esta é a forma de o conseguir.
Calou-se por fim e olhou para todos eles, ainda
emocionado; mas foi recebido por um silêncio total.
Sabran baixou o olhar e Ead fechou os olhos por um
momento.
— Ela ainda está em Inys. É dama de companhia —
disse Niclays olhando para as duas, e de repente o seu
sorriso desapareceu. — Não é?
— Deixem-nos — disse Sabran aos seus guardas. —
Por favor.
E eles obedeceram à sua rainha.
— Não... — murmurou Niclays, tremendo e com a
voz embargada. — Não... Que lhe fizeram?
— Foi Igrain Crest — disse Ead. — A Truyde conspirou
com a aju­da do seu parceiro, Triam Sulyard, para
promover a aliança entre o Oriente e o Ocidente.
Encenaram um ataque à Rainha Sabran, no qual Crest se
infiltrou para provocar a morte de Aubrecht Lievelyn.
Niclays tentou assimilar tudo aquilo. Truyde nunca
expressara uma forte convicção política, mas, da última
vez que a vira, ela tinha apenas dez anos.
Enquanto ouvia, sentiu que perdia o contacto com a
realidade. Os ouvidos zumbiam. Tudo ficou turvo, e era
como se uma corrente se enroscasse no seu pescoço,
deixando-o sem respiração. Quando Ead acabou de falar,
Niclays apenas sentia a dor latejante na extremidade do
braço.
O fogo dentro dele extinguira-se subitamente. As
sombras haviam regressado.

— Vocês abandonaram-na na Torre Dearn — disse


ele. — Ela de­via ter sido enviada para Brygstad, para um
julgamento justo. Mas não. Descartaram-na, tal como
fizeram comigo. — Uma lágrima escorreu-lhe até ao
canto da boca. — Os seus ossos jazem numa
extremidade do mundo, e os de Triam Sulyard na outra.
Quanto sofrimento poderia ter sido evitado se ela se
tivesse sentido suficientemente segura para partilhar as
suas ideias contigo, Sabran, em vez de decidir agir por
conta própria.

Sabran não desviou o olhar.

— Não sois o único a procurar um sol branco —


disse-lhe.

Lentamente, Niclays levantou-se. A testa estava


coberta de suor frio.

A dor no braço era tão insuportável que mal


conseguia ver.

— A Crest está morta?


— Sim — disse Sabran. — O seu reinado à sombra do
trono terminou.
Aquilo deveria confortá-lo. Talvez um dia o fizesse.
Mas não lhe traria Truyde de volta.
Imaginou-a, a neta que nunca tivera e que nunca
teria. Os seus olhos e sardas eram da mãe, mas o cabelo
ruivo fora herança do avô. Agora, não restava nada.
Recordou-a, o rosto radiante, visitando o Salão de Seda,
cheia de livros, a correr na sua direção, pedindo-lhe
ajuda para aprender com eles. Tudo, dissera. Quero
saber tudo. Acima de tudo, era a sua mente brilhante e
sempre curiosa que mais lhe lembrava Jannart.
— A Grã-Princesa Ermuna estendeu um convite para
que retorneis a casa — disse Sabran. — Não pediu
permissão a Inys, e mesmo que tivesse pedido, já não
tenho motivos para me opor.
Fora o que ele esperara ouvir durante sete anos. Uma
vitória que ago­ra lhe sabia a cinzas.
— Casa. Sim — disse, soltando uma gargalhada
sarcástica. — Fiquem com a informação que vos dei.
Destruam o Inominável, para que haja outras crianças
como a Truyde que possam lutar para mudar o mun­do. E
depois, peço-vos, Majestade, deixai-me com as minhas
sombras. Receio que sejam tudo o que me resta.
70
Abismo

O Reconciliação era um navio fantasma ao longe.


Loth observou ou­tros navios que surgiam atrás dele,
entre a neblina.
Ao entardecer do segundo dia da primavera,
estavam sobre a Fossa dos Ossos, a parte mais profunda
do Abismo. Em Cárscaro, um grupo de mercenários
estaria a abrir caminho através das montanhas para ma­‐
tar o Rei Sigoso e colocar a Donmata Marosa em
segurança.
Se é que ainda estava viva. Se o Rei Terreno tivesse
morrido, talvez a filha já se tivesse tornado uma
marioneta.
Os navios exibiam as insígnias de todos os países,
exceto um. O Imperador Eterno contemplava-os com as
mãos nas costas. Vestia uma couraça de escamas sobre
uma túnica escura, um pesado sobretudo por cima e um
elaborado elmo de ferro com estrelas e luas de prata
incrustadas.
— Bem, chegou a hora — disse, olhando para Loth. —
Agradeço-vos, Lorde Arteloth, pelo prazer da vossa
companhia.
— O prazer foi meu, Majestade.
Demoraram um pouco a atracar os navios uns aos
outros. Por fim, Sabran passou para o Pérola Bailarina
com a senhora Nelda Stillwater e o Lorde Lemand Fynch
ao seu lado, seguida pela maior parte da sua guarda
pessoal e uma representação de oficiais e marinheiros.
O seu traje, num delicado equilíbrio entre o luxuoso e
o prático, con­sistia num vestido semelhante a um
casaco, sem armação, que terminava mesmo acima do
tornozelo. Usava botas de montar e, na cabeça, uma
coroa com doze estrelas, com pérolas trémulas
intercaladas, apoiada no cabelo trançado. E embora não
fosse uma guerreira, levava à cintura a Espada da
Virtude, representação de Ascalon.
Quando Loth discerniu Ead entre a comitiva, envolta
num manto com um colarinho de peles, sentiu-se respirar
pela primeira vez em vá­rios dias. Ela estava viva. Tané
cumprira a sua palavra.
A própria Tané também lá estava, embora não visse o
seu dragão em lado nenhum. Quando os seus olhares se
cruzaram, ela fez-lhe um aceno com a cabeça. Loth
retribuiu o cumprimento.
O Imperador Eterno parou perto de Sabran. Baixou a
cabeça enquanto Sabran fazia uma reverência.
— Vossa Majestade — disse o Imperador Eterno, o
rosto rígido como mármore.
— Vossa Majestade Imperial.
Houve um momento em que ambos se entreolharam,
dois soberanos com visões irreconciliáveis do mundo,
que haviam vivido as suas vidas à sombra dos gigantes.
— Perdoai-nos por não dominarmos a vossa língua —
disse Sabran por fim. — Entendemos que falais a nossa.
— É verdade — respondeu o Imperador Eterno —,
embora vos asse­gure que o meu conhecimento de quase
todos os outros assuntos inysh é praticamente nulo. As
línguas eram uma das minhas paixões em criança —
acrescentou com um sorriso. — Vejo que também tendes
uma paixão relacionada com a minha parte do mundo. As
pérolas trémulas.
— Gostamos muito delas. Esta coroa foi criada antes
da Ascensão das Sombras, quando Inys ainda negociava
com Seiiki.
— São esplendorosas. Também temos boas pérolas no
Império dos Doze Lagos. Pérolas de água doce.
— Gostaríamos de as ver — disse Sabran. — Temos de
agradecer a Vossa Majestade Imperial e ao honrado
Senhor da Guerra por terem respondido tão prontamente
ao nosso pedido de ajuda.
— O meu irmão de armas e eu não podíamos recusar,
Vossa Majestade, dada a urgência da situação. E tendo
em conta a veemência com que Lorde Arteloth expôs a
necessidade desta aliança.
— Não esperávamos menos dele — disse a rainha,
trocando um olhar com Loth e sorrindo. — Podemos
perguntar se os dragões do Oriente se encontram por
perto? Esperávamos vê-los a olho nu. Ou talvez sejam
mais pequenos do que sempre imaginámos.
Ouviram-se algumas risadinhas nervosas.
— Bem — disse o Imperador Eterno —, a lenda diz
que, em tempos, podiam diminuir de tamanho até
ficarem mais pequenos do que uma ameixa. Mas agora
estão tão grandes como imaginaram. — Torceu a boca. —
Estão sob as ondas, Majestade. A mergulhar na água,
fortalecendo-se. Espero que após esta batalha possam
conhecer o Dragão Imperial, a minha estrela guia.
Sabran manteve uma expressão neutra.
— Certamente seria uma grande honra — disse ela. —
Vossa Majestade Imperial... — a sua voz ficou tensa —,
montais nessa... criatura?
— Quando saio para ver o meu povo. E talvez esta
noite. — Inclinou-se ligeiramente para ela. — Embora
deva confessar que tenho algum receio de alturas. A
minha virtuosa avó diz-me que nisso não me asseme­lho
nada a todos os meus antecessores da Casa de Lakseng.
— Talvez seja um sinal favorável — disse Sabran. —
Afinal, este é um dia para inaugurar novas tradições.
Ele sorriu.
— Com certeza que sim.
Outra fanfarra, e o Senhor da Guerra de Seiiki juntou-
se ao grupo. Pitosu Nadama era um homem de cabelo
prateado, de um fino bigode, e tinha a compostura de
alguém que um dia fora guerreiro, mas que não tivera a
oportunidade de empunhar armas durante muitos anos.
Uma cota de ouro cobria-lhe a armadura. Com ele,
estavam trinta dos cava­leiros de dragão de Seiiki, que
inclinaram a cabeça perante os soberanos estrangeiros.
A cavaleira que Loth vira na água estava entre eles.
Tirara o elmo e a máscara, revelando um rosto
bronzeado e cabelo apanhado num coque. Olhou para
Tané, que lhe retribuiu o olhar.
Nadama saudou o Imperador Eterno na sua língua e
depois dirigiu-se a Sabran.
— Vossa Majestade — disse ele, com uma voz
marcial, clara e decidida. — Hoje, os meus cavaleiros
lutarão a vosso lado. Apesar das nossas diferenças. —
Olhou para o Imperador Eterno. — Desta vez, assegurar-
nos-emos de que o Inominável nunca mais regressará.
— Confiai que Inys está do vosso lado, honrado
Senhor da Guerra — respondeu Sabran. A sua respiração
formou pequenas nuvens brancas de vapor. — Neste dia
e para todo o sempre.
Nadama assentiu.
As trombetas anunciaram a chegada do rei Raunus da
Casa de Hraustr. Era um gigante pálido de cabelo
dourado, olhos como ferro e músculos enormes e bem
definidos. Saudou Sabran com um abraço sufocante e
depois apresentou-se aos soberanos do Oriente,
mantendo sempre a mão perto da espada que pendia ao
seu lado.
Apesar das apresentações amistosas, a tensão entre
os quatro era como uma chama baixa, pronta para avivar
a qualquer momento com uma simples rajada de vento.
Após séculos de distanciamento, Loth su­pôs que não era
de esperar que desconfiassem todos uns dos outros.
Após uma breve conversa em voz baixa, os soberanos
retiraram-se cada um para o seu navio. Os cavaleiros de
dragão seguiram o seu Senhor da Guerra. Assim que
partiram, Tané virou-se e seguiu na dire­ção oposta.
Ead acompanhou Sabran à cabina, mas gesticulou a
Loth para que se juntasse a elas. Loth esperou que a
maioria dos visitantes deixasse o convés. Assim que
passou pelos Cavaleiros do Corpo e fechou a porta,
abraçou Ead com força.
— Ser teu amigo é bastante exaustivo, sabes? —
Sentiu o sorriso de Ead contra a sua face enquanto
envolvia Sabran com o outro braço. — E o mesmo posso
dizer de ti.
— Belas palavras, vindas de um homem que navegou
com piratas e se aventurou no Oriente — disse Sabran,
com a boca junto ao seu ombro.
Loth conteve uma gargalhada. Quando soltou Ead,
viu que a mancha dos seus lábios desaparecera, embora
ela parecesse cansada.
— Estou bem — garantiu. — Graças a Tané. E a ti.
Ele segurou-lhe uma das mãos.
— Ainda estás fria.
— Irá passar.
Loth virou-se para Sabran e endireitou a coroa de
pérolas, que entor­tara com o abraço.
— Lembro-me de quando a tua mãe a usava. Ela
ficaria orgulhosa desta aliança, Sab.
Ela sorriu.
— Espero que sim — disse.
— Temos uma hora antes do início do terceiro dia da
primavera. É melhor ir ver a Meg.
— Meg não está aqui — disse Ead.
Loth estacou.
— O quê? — exclamou.
Ela contou-lhe tudo o que acontecera desde que
acordara do seu sono de morte. Que Tané comera do
fruto e que os soberanos do Sul haviam vindo forjar uma
aliança. Quando revelou exatamente onde estava a sua
irmã, Loth respirou fundo.
— Permitiram que fosse para Cárscaro — dirigiu-se a
ambas. — Para um cerco.
— Loth, foi a Meg que tomou a decisão — respondeu
Ead.
— Ela estava determinada a dar a sua contribuição
pessoal, e não vi motivo para lhe negar a oportunidade
de o fazer — explicou Sabran. — O Capitão Lintley está
com ela.
Loth imaginou a irmã naquela planície estéril, num
posto médico improvisado, rodeada de miséria e do
sangue da batalha. Pensou em Margret com o fogo nas
veias e sentiu-se enjoado.
— Devo dirigir-me aos marinheiros inysh — murmurou
Sabran. — Oxalá vivamos para ver o amanhecer.
Loth engoliu o medo que lhe comprimia a garganta.
— Que Cleolind nos proteja a todos.

***

No convés do Pérola Bailarina, Tané estava entre os


soldados e arqueiros reunidos em formação, aguardando
a chegada da hora.
O Imperador Eterno estava no convés superior. Atrás
dele, como uma sombra imensa, erguia-se o Dragão
Imperial. As suas escamas eram de um dourado escuro, e
os seus olhos azuis como glaciares. A sua longa crina era
do mesmo branco dos seus chifres. Atrás da popa,
estavam três dos dragões seiikines mais antigos. Apesar
de todo o tempo que Tané passara em companhia de
dragões, nunca vira um de tama­nho tão colossal.
O Senhor da Guerra de Seiiki estava perto dos
anciãos, observan­do a situação ao lado do general do
Mar. Tané sabia que o seu antigo superior estava mais do
que consciente da sua presença. Sempre que desviava o
olhar, sentia os seus olhos pousarem nela.
Entre os cavaleiros, estavam Onren e Kanperu, que
agora exibia uma cicatriz que lhe atravessava o olho de
cima a baixo. Os seus dragões es­peravam atrás do
Desafio.

Alguém lhe tocou no braço e ela virou-se. Atrás


dela, entre as som­bras, surgiu uma figura envolta numa
túnica com capuz.

Ead.
— Onde está o Roos? — perguntou Tané em voz
baixa.

— A febre instalou-se. Hoje, a sua batalha será pela


vida — disse Ead, sem desviar o olhar de Sabran. — O
teu dragão já chegou?

Tané abanou a cabeça.


— E não poderias montar um outro dragão?
— Já não sou cavaleira.
— Mas certamente hoje...
— Pareces não entender — interrompeu Tané. — Para
eles, sou uma desonra. Nem sequer se dignarão falar
comigo.
Ead assentiu.
— Não te afastes da joia — limitou-se a dizer, antes
de desaparecer novamente entre as sombras.
Tané tentou concentrar-se. Uma rajada de ar
acariciou-lhe as costas, revolveu-lhe o cabelo e agitou as
velas do Pérola Bailarina.
Nas profundezas do Abismo, algo se movia. Algo
ínfimo, como o ba­ter de asas de uma borboleta ou o
movimento de um bebé no ventre materno.
— Aí vem — anunciou o Dragão Imperial, e a sua voz
ecoou pelos navios.
Tané pegou na sua caixa. A joia estava tão fria que a
sentia através da madeira lacada.
O vento uivou, enchendo as velas. Chegara o
momento. As nuvens concentraram-se acima dos navios.
O Dragão Imperial convocou os seus irmãos na sua
língua. Os dragões seiikines juntaram as suas vozes à
dela, com as escamas cobertas de água e bolhas. A
humidade que levantaram ao emergir, aquela que lhes
dava força, transformou-se numa névoa espessa,
deixando um rasto de jatos de água que encharcou os
humanos no convés. Tané sacudiu a cabeça para afastar
a água dos olhos.
Aconteceu tudo muito rápido. Silêncio, exceto pela
chuva.
Depois, caos.
O seu primeiro pensamento foi que o Sol tinha
nascido, tal era a luz que brilhava a norte. Depois, veio
um calor que lhe impedia a respiração. Uma onda de
fogo explodiu no Crisântemo, o navio de guerra seiikine,
e, momentos antes de uma segunda erupção abrir
caminho pela frota do rei do Norte, um rugido estrondoso
anunciou a chegada do inimigo.
Ao surgir do Sombra Ocidental preto, o vento gerado
pelo seu bater de asas apagou as lamparinas de todos os
navios.
— Fýredel! — gritou uma voz.
Tané tossiu, sufocada pelo fedor das escamas. Alguém
gritou. À luz do fogo do wyrm, viu Loth levar a Rainha
Sabran e deixá-la com os Cavaleiros do Corpo e a Guarda
Imperial, enquanto rodeavam o Imperador Eterno. De
repente, um ombro bateu-lhe no peito e ela caiu no chão.
Na escuridão, ouviu-se o búzio de guerra. Os
cavaleiros desaparece­ram com os seus dragões no mar.
Apesar do caos que a rodeava, Tané só conseguia pensar
em como gostaria de estar entre eles.
O Sombra Ocidental sobrevoou a frota em círculos,
enquanto os seus servos se lançavam contra os navios e
se misturavam com os dragões orientais, agitando-se
como morcegos e batendo as caudas como chicotes.
Um wyvern lançou-se diretamente contra o mastro
principal do Reconciliação. O mastro estalou e cedeu, e a
vela principal caiu com ele. No convés ouviu-se um grito
agonizante.
As velas do Crisântemo blindado de ferro estavam
envoltas em chamas. Tané correu com a multidão, de
pistola na mão. A força que sentiu den­tro de si, o seu
siden, pulsou-lhe nas veias como um segundo batimento
cardíaco.
Uma besta de fogo aterrou à sua frente. Maior do que
um garanhão. Duas patas. E uma língua escarlate que se
agitava entre as mandíbulas.
Um wyvern.
Preparara-se para aquilo toda a sua vida. Fora para
aquilo que nascera.
Tané tirou a joia crescente, que emitiu um clarão de
luz branca, e o wyvern soltou um uivo de raiva,
protegendo-se do brilho com uma asa. Tané fê-lo recuar,
afastando-o dos arqueiros.
Outro wyvern caiu estrondosamente atrás de si,
abanando o convés. Os olhos dó monstro brilhavam
como brasas. Presa entre ambos, Tané voltou a guardar a
joia na caixa com uma mão e, com a outra, desem­‐
bainhou a sua espada inysh. O peso desequilibrou-a e o
primeiro golpe perdeu-se no ar, mas o segundo atingiu o
alvo. A lâmina cortou escamas e ossos, e um jorro de
sangue escarlate irrompeu. O wyvern tombou no convés,
decapitado, ainda convulsionando.

E por um breve instante, viu Susa naquela poça de


sangue, uma cabeça de cabelo escuro que rolava para
uma vala, e ficou paralisada. O primeiro wyvern vomitou
uma labareda de chamas nas suas costas.

Virou-se a tempo. Sem o planear, ergueu a mão e


uma luz dourada emanou da palma. O fogo draconiano,
desviado, queimou-lhe a camisa na parte do ombro,
fazendo-a soltar um grito de dor, mas o resto das chamas
perdeu-se na névoa.
O wyvern ergueu a cabeça e fitou-a com as suas
pupilas felinas, antes de emitir outro uivo horrível e
lançar uma nova rajada de fogo azul. Tané deu um passo
atrás, com a espada pronta para atacar. Precisava de
uma espada seiikine. Ninguém se conseguiria mover
como a água com aquele peso morto na mão.
O seu inimigo cuspia ondas de fogo. A chuva batia-
lhe nas costas. Quando o tinha suficientemente perto,
Tané desviou-se de uma dentada de dentes putrefactos e
desferiu-lhe um golpe com a espada nas patas. O
movimento seguinte foi demasiado lento, e uma
volumosa cauda atingiu-lhe a lateral: escapou por pouco
dos espinhos, mas foi lançada pelo convés.
A espada escorregou-lhe da mão, instantes antes de
Tané colidir com um dos mastros e bater com a cabeça.
O impacto deixou-a aturdida. Pelo menos uma costela
estava quebrada e sentia as costas em farrapos. No
momento em que o wyvern se lançou sobre ela, soltando
fumo pe­las narinas, um soldado seiikine cravou-lhe uma
espada nas costas. Nos primeiros momentos da sua
raiva, rodeou o wyvern e tentou acertar-lhe no olho com
a espada. Mas a criatura agarrou-lhe a perna com as
man­díbulas e atirou-o contra o convés, uma e outra vez,
como se fosse um pedaço de carne. Tané ouviu o ranger
dos ossos, os seus gritos cada vez mais abafados. A
criatura lançou o que restava dele pela borda do navio.
A pouca distância, descobriu os restos carbonizados
de um soldado vestido com uma armadura azul e
prateada. Tané pegou-lhe no escudo, com o brasão do
Reino de Hróth, e colocou-o no braço esquerdo, cer­rando
os dentes para suportar a dor nas costelas. Com a outra
mão, agarrou na sua espada ensanguentada.
O calor do fogo que ardia por toda a parte aumentara
a temperatura, e a espada escorregava-lhe da mão
suada.
Já não tinha consciência das outras bestas de fogo
que sobrevoavam os navios, arrancando-lhes as velas e
cuspindo grandes nuvens de fogo, nem dos soldados que
lutavam à sua volta. A única coisa que via era o wyvern,
e a única coisa que o wyvern via era Tané.
Quando ele se lançou sobre ela, ela esquivou-se à sua
mordida ro­lando pelo chão e depois desviou-se do
chicote da cauda, que descia com força em direção aos
seus joelhos. Por não ter membros superio­res, o wyvern
não possuía a agilidade necessária para lutar tão de
perto com algo tão pequeno e rápido como um humano.
Aquela criatura fora criada para mergulhar em queda
livre e atacar com o bico, como uma ave de rapina.
Enquanto a perseguia, Tané conseguiu afundar a espada
na ferida deixada pelo soldado. Deteve uma labareda
com o escudo, e o wyvern arrancou-o das suas mãos.
Levantou a espada e cravou-a na mandíbula da criatura,
de baixo para cima, atravessando-lhe o céu da boca. O
fogo nos seus olhos apagou-se. Tané recuou um passo,
afastando-se do cadáver.
O seu siden recarregou-a de energia antes que se
pudesse sentir can­sada. Nada mais a poderia deter. Nem
sequer a morte. Enquanto o Sombra Ocidental preto
derrubava o mastro do Madre Água, Tané pegou numa
lança caída.
Doíam-lhe os olhos. Via os wyverns como se fossem
partículas de poeira à luz de um raio de sol. Estendeu o
braço e a lança voou em direção a uma criatura com
cabeça de pássaro, atravessando-lhe a asa e colando-a
ao corpo. Batendo desesperadamente com a outra asa, a
criatura caiu nas ondas.
O Reconciliação afastou-se do Pérola Bailarina. O
mesmo fizeram o Desafio e o Crisântemo. Os seus
canhões apontavam para cima. Tané ouviu o es­trondo de
um canhão giratório e viu que o Reconciliação disparara
toda a sua carga. As suas balas encadeadas subiram ao
céu, enroscando-se nas asas e caudas dos wyrms. Ao
mesmo tempo, ouviu-se um estrondo en­surdecedor. As
bestas dispararam dos navios lacustres, e as suas flechas
subiram como estilhaços de bronze brilhando à luz do
fogo. Ouviu os capitães a gritar ordens e os disparos das
pistolas do convés do Desafio, as­sim como o estalar das
bestas a lançar as suas flechas de todos os navios.
O estrondo era assoberbante. Sentiu a cabeça a
girar. Estava embria­gada com siden, o que a fez ver toda
a batalha como uma única visão.
Uma arma. Precisava de outra arma. Se conseguisse
chegar ao Desafio, talvez encontrasse algo. Num passo,
subiu para a amurada e lançou-se ao mar.
O silêncio debaixo de água aplacou o fogo que
continha dentro de si. Emergiu e nadou com força em
direção ao Desafio. Ali perto, havia um na­vio ersyri em
chamas e a tripulação saltava para a água por todos os
lados.
Haveria pólvora no navio. Muita. Respirou fundo e
mergulhou.
Quando o navio explodiu, sentiu a onda de calor
penetrar a água. Uma terrível luz alaranjada invadiu o
Abismo, e a força da explosão arremessou-a para o lado.
Agitou as pernas com força para retomar o curso, a sua
visão obstruída pelos seus próprios cabelos. Já perto do
Desafio, voltou a emergir à superfície.
Da carcaça em chamas do navio incendiado, erguia-se
uma coluna de fumo negro. Por um momento, Tané não
conseguiu desviar o olhar daquela imagem de
devastação.
O Sombra Ocidental preto pousou sobre as ruínas
como se fossem um trono. Aquela besta voraz e
musculada possuía dimensões grotescas. As pontas da
sua cauda tinham cerca de três metros de comprimento.
Fýredel.
— Sabran Berethnet — bramou, com a voz plena de
ódio. — O meu mestre vem, por fim, buscar-te. Onde está
a tua filha, aquela que te de­veria proteger dele?
Enquanto escarnecia da rainha de Inys, um antigo
dragão seiikine emergiu das águas do Abismo, reluzente
como uma joia. Com um gran­de salto, pousou no Pérola
Bailarina e apanhou um wyvern com a boca. Entre os
dentes, estalou um relâmpago. Os seus olhos brilhavam
com uma luz azul esbranquiçada. Tané viu o wyvern
explodir num clarão branco antes de o dragão se
submergir no mar, levando o troféu consigo. Fýredel
observou aquela demonstração de força, exibindo os
dentes.
— Dranghien Lakseng. — O nome ribombou pela
água. — Não me vais mostrar o teu rosto?
Tané continuou a nadar. Os canhões do Desafio
retumbavam como trovões. Encontrou a escada e subiu.

— Contemplem o Rugido de Hróth, que se esconde


na neve — ridicu­larizou Fýredel, mostrando novamente
os dentes. Os canhões do Guarda do Urso estalaram em
resposta. — Contemplem o Senhor da Guerra de Seiiki,
que prega a união entre os humanos e as criaturas
marinhas. Acabaremos com os vossos protetores e
expulsá-los-emos como ovelhas, como fizemos há
séculos. Deixaremos a areia negra de costa a costa.

Tané alcançou o convés do Desafio. Os soldados


seiikines empunha­vam arcos e pistolas. Uma seta cortou
o ar e atingiu um wyvern. Tané ti­rou uma espada da mão
de uma cavaleira morta. Algures, na escuridão, um
dragão lamentava a sua perda.

— Ficam para trás os dias dos heróis — disse


Fýredel. — Do Norte ao Sul, do Este ao Oeste, o vosso
mundo arderá.

Tané tirou a joia crescente da sua caixa. Se Kalyba


estivesse por perto, sentir-se-ia atraída para ela.
O sterren impulsionou as ondas, atravessando o mar
como uma agu­lha atravessaria a seda, e lançou-as como
um manto sobre Fýredel. A besta elevou-se para o céu
com um rosnado, sacudindo a água das asas. As suas
escamas emitiam vapor de água.
— Velas negras, oeste-sudoeste! — exclamou
alguém.
Ao longe, através da parede de fumo, Tané também
as viu.
— Bandeira de Yscalin! — gritou o capitão do
Reconciliação. — A frota draconiana!
Tané contou-os. Vinte navios.
Outro wyvern mergulhou e ela protegeu-se atrás de
um mastro. Imediatamente, uma linha inteira de
arqueiros posicionou-se atrás da cauda da besta. Um
soldado atacou com a sua alabarda, atingindo-a na coxa.
Um arqueiro caiu por cima da borda com os ossos
partidos. Tané guardou a joia e pegou no seu arco e
aljava. Restavam-lhe quatro flechas.
— Besta de fogo! — rugiu o vigia sobre as suas
cabeças. — A bom­bordo, a bombordo!
O resto dos arqueiros virou-se e apontou as suas
armas enquanto ou­tros carregavam as suas pistolas.
Tané também carregou uma seta.
Da escuridão, surgiu um segundo Sombra Ocidental,
pálido como uma garça. Tané observou-o a dobrar as
asas: de repente, as suas escamas transformaram-se em
pele, os seus olhos tornaram-se brancos e onde antes
estavam os chifres apareceu um emaranhado de cabelo
negro. Quando aterrou no Desafio, o wyrm transformou-
se na mesma mulher que Tané vira em Lasia. A língua
viperina desapareceu por trás de uns lábios vermelhos.
— Criança — disse Kalyba em inysh —, dá-me essa
joia.
Tané sentiu algo dentro de si a impeli-la a obedecer.
— Não é uma arma. É o desequilíbrio — acrescentou a
bruxa, aproximando-se. — Dá-ma.
Sobressaltada, Tané puxou a corda do arco e esforçou-
se para não olhar para o que Kalyba tinha nas mãos. A
lâmina brilhava com o pra­teado mais puro, como uma
estrela.
Ascalon.
— Um arco. Oh, querida. Eadaz devia ter-te avisado
que não po­des matar uma bruxa com um pedaço de
madeira. Nem com fogo. — Kalyba continuava a
aproximar-se, despida, com um olhar desvairado. —
Devia ter esperado essa atitude de desafio da semente
de Neporo.
A cada passo que Kalyba dava no convés, Tané dava
outro para trás. Em breve chegaria ao fim do navio. O
arco de nada serviria: a sua inimi­ga podia mudar de
forma e esquivar-se da seta num instante, e era claro que
a espada também podia transformar-se com ela. Quando
a tinha na mão, era como outro braço.
— Pergunto-me se serias capaz de me vencer num
combate. Afinal, és uma Primeiro Sangue — disse Kalyba,
torcendo a boca. — Vem cá, sangue da amoreira.
Vejamos quem é a bruxa mais poderosa.
Tané largou o arco. Abriu bem os pés e deixou o siden
surgir do seu interior, erguendo-se como o sol entre as
suas mãos.
71
Abismo

No Reconciliação, Loth montava guarda junto à sua


rainha, na sombra do tombadilho do navio, rodeado por
doze Cavaleiros do Corpo.
Uma das gáveas estava em chamas, o convés cheio
de cadáveres. Os canhões disparavam andanças de bolas
encadeadas, precedidas pelos gritos de Fogo! do
contramestre, enquanto a artilharia dos barcos de Pedra
Alta lançava redes com ganchos que se enredavam nas
patas e asas das bestas voadoras.
Era tudo o que os artilheiros podiam fazer para evitar
os dragões do Oriente. Enquanto alguns estavam em
pleno combate, esmagando os seus próprios congéneres
da mesma forma que as serpentes asfixiavam as suas
presas, outros haviam adotado um modo de matar
diferente: mergulhavam sob as ondas e depois nadavam
com todas as suas forças até à superfície. Um mordiscar
com as mandíbulas e, em seguida, arras­tavam as presas
de volta às profundezas.
As suas escamas gotejavam água que respingava no
Reconciliação, fa­zendo crepitar as chamas.
Sabran segurava a Espada da Virtude. Observou o
wyrm pálido a transformar-se numa mulher e aterrar no
Desafio.
Kalyba.
A Bruxa de Inysca.
— Ead irá atrás dela! — gritou Sabran para se fazer
ouvir acima daquele estrondo. — Alguém tem de distrair
a bruxa para que ela possa atacá-la.
O Exército Draconiano avançava para eles. Um barco
a velas quadra­das vermelhas aproximou-se do
Reconciliação.
— Todos para bombordo! — gritou o capitão. —
Artilheiros, cancelem a última ordem! Fogo naquele
barco!
Ouviu-se um terrível estalido de madeira e metal. O
navio embateu no Rainha Ondina.
— Muito bem — disse Loth a Sabran. — Para o
Desafio.
Os Cavaleiros do Corpo já estavam em movimento.
Rodeando Sabran, atravessaram o convés. Enquanto
corriam, livraram-se das armaduras mais pesadas. As
couraças, as grevas e as placas de ombro foram caindo e
batendo no chão. Os canhões dispararam contra o navio
inimigo.
— Às espadas! — gritou o capitão, desembainhando
o seu cutelo. — Levem Sua Majestade para o navio!
— Não há tempo — gritou Loth.
O capitão cerrou os dentes. O cabelo colava-se-lhe ao
rosto.
— Então, levai-a convosco, Lorde Arteloth, e não
olheis para trás! — respondeu. — Depressa!
Sabran escalou a borda do navio. Loth chegou ao seu
lado e deu-lhe a mão.
As ondas engoliram-nos a todos.

***
Tané lançou um jato de fogo que atravessou o Desafio.
As chamas dança­ram pelo convés, alcançando os charcos
de sangue draconiano. Quando Kalyba respondeu ao
ataque com o seu próprio fogo, vermelho e tão quente
que eliminou toda a humidade do ar, Tané agarrou com
firmeza a joia crescente. A água do mar bateu no navio,
que balançou sob os seus pés, e os fogos extinguiram-se.
Todos os soldados e arqueiros haviam fugido da cena
do duelo. O navio era o seu campo de batalha.
Kalyba mudava de forma, ora mulher, ora pássaro, à
velocidade da luz. Tané gritou, furiosa, ao sentir um bico
a rasgar-lhe a face e uma es­pora quase a furar-lhe o olho.
Cada vez que a bruxa mudava de forma, Ascalon mudava
com ela. Quando assumia a forma humana, empu­nhava
a espada, e quando Tané lutava contra ela e as suas
lâminas se chocavam, a joia crescente ressoava em
resposta.
— Consigo ouvi-la — sussurrou Kalyba. — Dá-ma.
Tané deu uma cabeçada e golpeou-a com uma faca
oculta, fazendo-lhe um corte na face. Kalyba retrocedeu,
os olhos desorbitados e o rosto manchado de vermelho.
Do seu crânio emergiu um par de chifres, e de repente
era um enorme veado branco, abominável e colossal, a
sangrar, A espada voltara a desaparecer.
Tané usou a joia para repelir o ataque de uma
cocatriz. O siden aguçava-lhe os sentidos, fazia-a mover-
se mais rápido do que acredita­va ser possível, evitando o
enorme animal que trotava estrondosamente pelo
convés. Viu que um dos chifres tinha a ponta prateada, e
no mo­mento em que a besta baixou a cabeça para
investir contra ela, Tané levantou a espada e cortou-o.
Kalyba colidiu contra o convés, novamente na sua
forma humana. Sangrava pelo ombro, onde lhe faltava
um pedaço de carne, e a seu lado jazia Ascalon, com o
brilho de um rubi. Tané lançou-se para ela, mas a bruxa
já tinha fogo nas mãos.
Tané refugiou-se atrás do mastro principal. Um fogo
vermelho roçou-lhe a coxa, tão ardente — era como ferro
fundido sobre a sua pele — que a fez gritar. Tinha os
olhos cheios de lágrimas, mas engoliu a dor e disparou a
correr pelo convés. Estava quase na popa quando parou
de repente.
A Rainha Sabran estava no Desafio. Loth encontrava-
se ao seu lado, de espada em punho, e doze guarda-
costas espalhavam-se ao redor deles. Estavam todos
encharcados.
— Sabran — sussurrou Kalyba.
A rainha olhou para a sua antepassada. Os seus rostos
eram idênticos.
— Vossa Majestade — balbuciou um dos guardas.
Todos olhavam para a rainha e para a sua dupla. — Isto é
bruxaria.
— Recuem — ordenou Sabran aos guardas.
— Sim, obedecei, nobres cavaleiros. Fazei o que minha
descendente vos ordena. — Kalyba cerrou os dedos ao
redor da chama que queimava na palma da sua mão. —
Não vedes que eu sou a vossa Donzela, a ma­triarca de
Inys?
Os cavaleiros não se moveram. Nem a rainha, que
apertava o cabo da espada.
— Não passas de uma imitação minha — disse Kalyba,
venenosa. — Assim como a tua espada não passa de
uma imitação barata desta.
Ergueu Ascalon e Sabran estremeceu.
— Não queria acreditar em Ead — respondeu —,
mas agora vejo que a semelhança entre nós é inegável.
— Deu um passo em direção a Kalyba. — Roubaste-me a
minha filha, Bruxa de Inysca. Diz-me, depois de te dares
a tanto trabalho para fundar a Casa de Berethnet, porque
decidiste destruí-la?

Kalyba cerrou o punho, sufocando a chama.


— Um dos problemas da imortalidade é que tudo o
que criamos pare­ce demasiado pequeno, demasiado
efémero. Uma pintura, uma música, um livro... todas
essas coisas acabam por se degradar e desaparecer. Mas
uma obra de arte, criada ao longo de muitos anos,
muitos séculos... não posso descrever a satisfação que
proporciona. Veres as tuas ações, tudo o que fizeste
durante a vida, tornar-se um legado. — Ergueu Ascalon.
— Galian desejou Cleolind Onjenyu no momento em que
a viu. Embora eu o tenha embalado no meu peito,
embora lhe tenha oferecido a espada que era a
culminação de todos os meus feitos, e apesar da minha
beleza, ele desejava-a acima de tudo. Acima de mim.
— Então, foi um amor não correspondido — disse
Sabran. — Ou foram ciúmes?
— Um pouco dos dois, suponho. Naquela época eu
era mais jovem.
O meu coração sensível dominava-me.
Tané viu um brilho entre as sombras.
Sabran moveu-se um pouco para a esquerda. Kalyba
moveu-se com ela. Naquele ponto do barco, era como se
estivessem no olho do furacão. Perto da bruxa não havia
nenhum wyrm a exalar fogo.
— Observei como Inys crescia e se tornava uma
grande nação. No começo, isso bastava-me — confessou.
— Ver como as minhas filhas prosperavam.
— Ainda poderias fazê-lo — disse Sabran, com voz
terna. — Já não tenho mãe, Kalyba. Não me faria mal ter
outra.
Kalyba parou por um momento. E por um instante, o
seu rosto ficou tão despido de emoções como o seu
corpo se encontrava de roupa.
— Não, minha querida — disse, com a mesma
suavidade. — Pretendo ser rainha, como fui no passado.
Sentar-me-ei no trono que tu já não poderás manter. —
Aproximou-se de Sabran, e os Cavaleiros do Corpo
apontaram as espadas na sua direção. — Vi as minhas
filhas governarem um país durante mil anos. Vi-te pregar
contra o Inominável. O que não conseguiste ver é que a
única maneira de avançares é unires-te a ele.
» Quando eu for rainha, Inys não voltará a arder. Será
um reino dra­coniano, protegido. Nem mesmo o povo
notará tua ausência. Celebrarão ao saber que Sabran a
Nona, após se reconciliar com o Inominável, foi
abençoada por ele com a imortalidade. Que reinará para
sempre.
Sabran apertou a espada ainda com mais força.
Esperava por algo. Tané percebeu-o. O seu olhar
estava fixo algures além da sua antepassada, em direção
à proa do navio.
— Não acredito nas tuas grandiosas palavras — disse
a rainha. — Acredito que isso é apenas o último ato da
tua vingança. Do teu desejo de destruir qualquer vestígio
de Galian Berethnet. — O seu sorriso refle­tia desprezo. —
Estás tão apegada ao teu coração como sempre
estiveste.
De repente, Kalyba estava diante dela. Os Cavaleiros
do Corpo aproximaram-se, mas era tarde demais. A
bruxa estava perto o sufi­ciente para matar a rainha se
eles se movessem na sua direção. Sabran permaneceu
perfeitamente imóvel enquanto Kalyba lhe afastava uma
madeixa de cabelo molhado do rosto.
— Doer-me-á — sussurrou Kalyba. — Fazer-te mal. Tu
pertences-me... mas o Inominável trará grandes coisas a
este mundo. Coisas maiores do que tu poderias trazer. —
Beijou-lhe a testa. — Quando te entregar a ele, o
Inominável finalmente saberá que a minha devoção por
ele não conhece limites.
De repente, Sabran envolveu a bruxa com os seus
braços. O corpo de Tané ficou rígido.
— Perdoa-me — disse a rainha.
Kalyba afastou-se, os olhos a arder. Rápida como um
escorpião, virou-se, o fogo novamente na sua mão.
Uma lâmina fina atravessou-a. A lâmina de sterren.
Um fragmento do cometa.
Kalyba respirou com dificuldade. Enquanto observava
o fragmento de metal no seu peito, a sua agressora
encapuzada revelou o rosto.
— Faço-o por ti — disse Ead, aprofundando cada vez
mais a lâmina. Não havia maldade na sua expressão. —
Levar-te-ei para a árvore es­pinhosa, Kalyba. Espero que
te traga a paz que não encontraste aqui.
Sangue escuro jorrou da bruxa, percorrendo-lhe o
peito e o umbigo. Até mesmo os imortais sangravam.
— Eadaz uq-Nāra — disse, e o nome soou como uma
maldição. — Quão parecida és com Cleolind. — O sangue
manchou-lhe os lábios. — Após todo este tempo, vejo o
espírito dela. De alguma forma... ela viveu mais do que
eu.
A Bruxa de Inysca curvou-se sobre o seu ferimento
mortal com um grito que ressoou pela água, até às
profundezas do Abismo. Ascalon caiu-lhe das mãos e
Sabran apanhou-a. No último momento, Kalyba agarrou-
lhe a garganta.
— A tua dinastia — sussurrou para a rainha — está
construída sobre terreno estéril. — Sabran debateu-se
para se libertar, mas a sua mão era como um torniquete.
— Vejo caos, Sabran a Nona. Cuidado com a água doce.
Ead retirou a lâmina, e ainda mais sangue jorrou do
corpo de Kalyba, como vinho de um barril. Quando caiu
no convés, inerte, os seus olhos estavam frios e mortos
como esmeraldas.
Sabran observou em silêncio o corpo nu da sua
antepassada, levando uma mão à garganta, onde lhe
surgiam as marcas da pressão dos dedos. Ead tirou o
manto e cobriu a bruxa, enquanto Tané pegava noutra
espada.
Um sino ressoou por toda a frota de Inys. As velas do
Desafio tremula­ram. Tané observou o vento que também
fez a bandeira seiikine ondular. Até o estrondo dos
canhões parecia perder volume naquele momento de
estranha calma.
— É agora — disse Ead, a voz tranquila. — Ele está a
chegar.
No céu, as bestas de fogo moviam-se como
estorninhos, formando grandes nuvens de asas. Uma
dança de boas-vindas.
Ao longe, o mar explodiu numa erupção vertical.
As águas do Abismo agitaram-se, as ondas atingiram
os navios e na escuridão ouviram-se gritos de pânico por
todo o lado. Tané embateu na borda, arrastada pelo
balanço do Desafio, incapaz de desviar o olhar do
horizonte.
A coluna de água elevou-se o suficiente para ocultar
as estrelas. No meio do caos, tomou forma uma silhueta.
Ouvira histórias sobre a besta. Todas as crianças
tinham ouvido fa­lar do monstro que surgira da montanha
e devastara o mundo. Vira imagens em pinturas
decoradas em folha de ouro e laca vermelha, com pontos
de tinta negra no lugar onde deveriam estar os olhos.
Nenhum artista conseguira capturar a magnitude do
inimigo, a for­ma como o fogo ardia no seu interior. Não o
haviam podido ver por si mesmos. As suas asas tinham a
envergadura de duas das maiores embar­cações lacustres
juntas. Os seus dentes eram tão negros quanto os seus
olhos. As ondas quebravam e os trovões rugiam.
Orações em todas as línguas. Dragões emergindo do
mar em busca do seu inimigo, emitindo gritos
arrepiantes. Os soldados do Desafio bran­diam as suas
armas, e no Senhor do Trovão, os arqueiros trocavam as
suas setas por outras mais compridas decoradas com
penas de cor púrpura. As flechas envenenadas podiam
derrubar um wyvern ou uma cocatriz, mas nada
penetraria aquelas escamas. Só uma espada teria
alguma hipótese.
Ead pegou em Ascalon.
— Tané — gritou, no meio do estrondo —, toma.
Tané tomou-a nas mãos frias e húmidas. Esperava
que fosse pesada, mas era como se fosse oca.
A espada que poderia aniquilar o verdadeiro inimigo
do Oriente. A espada que poderia devolver-lhe a sua
honra.
— Vai! — instou Ead — Vai!
Tané concentrou todos os seus medos e esmagou-os
num canto escuro dentro de si. Certificou-se de ter a
espada que tinha apanhado do chão bem presa à lateral
e, em seguida, com Ascalon na mão, dirigiu-se à vela
mais próxima. Trepou, lutando contra o vento e a chuva,
até chegar ao topo.
— Tané!
Ela virou-se. Um dragão seiikine de escamas
prateadas elevava-se das ondas.
— Tané — gritou a cavaleira — Salta!
Tané não tinha tempo para pensar. Lançou-se para o
vazio. Uma mão envolta numa manopla segurou-a pelo
braço e puxou-a para cima, colocando-a na sela. Quase
deixou Ascalon escorregar da mão, mas prendeu-a com o
cotovelo.
— Já lá vai algum tempo — disse Onren.
Ambas cabiam na sela, mas a cavaleira de trás não
tinha onde se segurar.
— Onren — respondeu Tané —, se o honrado General
do Mar descobre que me deixaste montar...
— Tu és cavaleira, Tané — disse ela, com a voz
abafada pela máscara. — E este não é o lugar para
regras.
Tané colocou a Ascalon numa bainha fixada na sela e
prendeu-a. Os dedos estavam húmidos e frios, quase
insensíveis. A bainha não estava preparada para uma
lâmina tão comprida, mas protegê-la-ia melhor do que se
a segurasse nas mãos. Ao ver o esforço que ela estava a
fazer, Onren pegou num dos alforges e deu-lhe um par
de manoplas. Ela vestiu-as.
— Suponho que nas tuas viagens tenhas descoberto
como matar o Inominável — disse Onren.
— Tem uma escama solta no peito. — Tané teve de
gritar para ser ouvida, entre o estrondo das armas, os
rugidos dos wyrms e o fogo. — Temos de arrancá-la e
atravessar-lhe a carne com esta espada.
— Acredito que podemos fazer isso — disse Onren,
agarrando-se ao chifre da sela. — Não achas, Norumo?
O seu dragão soltou um assobio de aprovação e
lançou uma nuvem de vapor pelas narinas. Tané agarrou-
se a Onren e o seu cabelo flutuou, cobrindo-lhe o rosto.
Os dragões seiikines estavam a concentrar-se. A
maioria dos seus ca­valeiros empunhava arcos ou
pistolas. Ao mesmo tempo, as bestas de fogo vinham
proteger o seu mestre, formando um imponente enxame
à sua frente. Tané sentiu Onren ficar rígida. Apesar de
tudo o que tinham aprendido, apesar de todos os
sacrifícios que tinham feito, nada do que lhes tinham
ensinado as havia preparado para aquilo. Aquilo era a
guerra.
Estavam perto da primeira fila da formação, atrás dos
anciãos. A grande Tukupa, a Prateada, liderava, com o
General do Mar amarrado à sela, na sua garupa. O
Dragão Imperial voava ao seu lado, à frente dos dragões
lacustres. Tané semicerrou os olhos para se proteger da
chuva, esforçando-se para ver alguma coisa. O
Imperador Eterno parecia mi­núsculo sentado no grande
dragão.
Tané agarrou-se com força a Onren, preparando-se
para o que estava por vir. Norumo grunhiu e baixou a
cabeça.
Quando chegaram à linha de wyrms, o impacto quase
derrubou Tané da sela. Ela agarrou-se a Onren, que
brandia a espada cortando asas e caudas, enquanto
Norumo embatia com os seus chifres em tudo o que
encontrava pelo caminho. Tudo eram gritos e estrondo,
chiados e morte, chuva e devastação. Por um momento,
teve a sensação de que aquilo era apenas um terrível
pesadelo.
Um clarão fê-la ver a luz mesmo com as pálpebras
fechadas. Quando ergueu o olhar, encontrou os olhos do
Inominável, que a fitava diretamente na alma. E quando
ele abriu a boca, viu a morte no seu interior.
Da sua boca jorrou uma torrente de fogo e fumo.
Era como se um vulcão tivesse entrado em erupção
numa noite es­cura. Os dragões anciãos rodearam o
Inominável e atacaram-no pelos lados, mas Norumo, tal
como a sua cavaleira, parecia ter uma certa pro­pensão
para quebrar as regras.
Ele mergulhou sob aquela torrente de chamas e girou
sobre si mesmo. Tané agarrou-se com força a Onren
enquanto o mundo girava à sua vol­ta. Outro dragão-
fêmea tentou evitar a enorme boca, mas o Inominável
partiu-o ao meio com uma dentada, espalhando as suas
escamas, que brilharam como um punhado de moedas
lançadas ao ar. Tané observou, nauseada, enquanto as
duas metades do dragão caíam no mar.
O fumo entrou-lhe no peito e nos olhos. A cabeça
encheu-se de san­gue. Passaram por baixo do Inominável,
tão perto do calor da sua bar­riga que Tané sentiu a pele a
secar-se e custava-lhe respirar. Norumo lançou-se em
mergulho e Onren desembainhou a espada. Fez saltar
fagulhas ao chocar com as escamas vermelhas, mas não
deixou nenhu­ma marca. Norumo esquivou-se das puas
de uma cauda interminável, e de repente encontraram-se
a voar ainda mais alto, por cima da besta, de novo em
direção ao bando de wyrms.
Vejo-te, cavaleira.
Tané encarou o Inominável. Tinha os olhos cravados
nela.
Trazes uma espada que conheço bem. A voz ressoava
no interior da sua cabeça. A última pessoa a empunhá-la
foi a Wyrm Branca. Mataste-a para a arrebatar, como
esperas matar-me a mim?
Tané levou a mão à têmpora. Sentia a raiva na medula
dos ossos, no vazio do seu crânio.
— Temos de nos aproximar mais — disse Onren,
ofegante.
Norumo regressou à formação, mas tinha a respiração
tão agitada como a da sua cavaleira. O calor havia-lhe
secado as escamas.
Sinto o fogo no teu interior, filha do Oriente. Em breve
as tuas cinzas espalhar-se-ão pelo mar. Suponho que é
um fim bastante adequado para alguém que nada com
as lesmas do mar.
As lágrimas sulcavam-lhe o rosto. A cabeça estava
prestes a explodir.
— Tané, que se passa?

— Onren — disse, ofegante —, ouves a voz?

— Que voz?
Ela não me pode ouvir. Apenas aqueles que
provaram o fruto das árvores do conhe­cimento o podem
fazer, disse o Inominável. Tané soluçou, retorcendo-se de
dor. Eu nasci do fogo oculto, forjado na fornalha da vida
que apenas te deu uma faís­ca. E enquanto eu viver,
viverei dentro de ti, em todos os teus pensamentos e
recordações.

Um dos dragões seiikines, separado do resto da


formação, foi colidir contra o pescoço da besta. Tané não
conseguiu suportar a pressão e es­tremeceu, caindo
contra as costas de Onren.

— Tané!

O bando abriu em dois diante de Norumo. O Dragão


Imperial, que era quase tão grande quanto o monstro,
abriu caminho entre o enxa­me, soltou um grande rugido
e cravou as suas garras no Inominável. Saltaram fagulhas
douradas e, pela primeira vez, apareceram mossas na
sua armadura ancestral. O Inominável girou a cabeça,
mostrando os dentes, mas o Dragão Imperial já estava
fora do seu alcance.

Onren deu um soco no ar.

— Por Seiiki! — gritou. Outros cavaleiros fizeram o


mesmo.
Tané gritou até perder a voz.

O General do Mar tocou a sua concha de guerra


para reunir os dragões e preparar um segundo ataque.
Desta vez, o bando de wyrms que tinham à frente era
ainda maior, como um muro. Os cuspidores de fogo
abando­navam a luta nos barcos e vinham defender o seu
senhor. As fileiras cres­ciam ao redor do Inominável, que
se aproximava cada vez mais da frota.
— Não podemos passar pelo meio — disse Onren,
agarrando-se à sela. — Norumo, leva-nos para a primeira
fila.
O dragão grunhiu e posicionou-se ao lado dos
anciãos. Tané ficou tensa ao ver o General do Mar voltar-
se para fitá-las. Onren abriu um leque e fez sinal para
interromper a carga.
O General do Mar respondeu com outro leque,
indicando a sua res­posta. Queria que se aproximassem
de cima. Os outros cavaleiros foram transmitindo a
mensagem.
Elevaram-se, voando em direção à Lua. Quando
mergulharam, em perfeita sincronia, Tané semicerrou os
olhos. O vento parecia querer arrancar-lhe os cabelos.
Agarrou Ascalon e desembainhou-a.
Desta vez, seria ela a atacar.
De repente, as bestas de fogo ergueram-se para os
intercetar. Um mo­mento depois, Tané não viu mais do
que escuridão.
Norumo rugiu com força. Um brilho azul percorreu as
suas escamas e um clarão iluminou-lhe a boca. Tané
sentiu todos os pelos eriçarem-se. Enquanto Norumo
empalava um anfíptero com os seus cornos, outro cla­rão
explodiu em plena confusão. Passou junto a Onren como
um chicote, ressaltou na sua armadura e atingiu a pele
exposta do braço de Tané.
Sentiu o coração parar.
O clarão atingiu um wyvern, mas não antes de
incendiar a sua roupa. Onren gritou o seu nome, mas
Tané já fora lançada pelo caos que cobria o céu.
O vento abafou o fogo na sua camisa, mas não a
chama abrasadora que ardia sob a pele. Por um
momento, sentiu-se leve. Não ouvia nada, não cheirava
nada.
Quando recobrou a consciência, tinha as bestas de
fogo por cima e o mar negro por baixo, aproximando-se a
grande velocidade. Ascalon escapara-lhe da mão. Um
clarão prateado e desapareceu.
Tinha falhado. Perdera a espada. Agora, apenas a
morte a aguardava.
Não havia esperança, mas o seu corpo recusava-se a
render-se. Um instinto escondido fê-la lembrar-se do seu
treino. Todos os estudantes das Casas de Instrução
aprendiam o que fazer se alguma vez caíssem de um
dragão. Virou-se de frente para o Abismo e abriu os
braços, como se quisesse abraçá-lo.
De repente, uma rajada de cor verde passou a voar
por baixo e ela deu por si na espiral de uma cauda.
— Já te tenho, irmãzinha — disse Nayimathun,
colocando Tané no dorso. — Agarra-te.
Abriu os dedos, estendendo-os sobre as escamas
húmidas.
— Nayimathun — disse Tané, quase sem voz. Umas
marcas ver­melhas estendiam-se-lhe pelo ombro, braço
direito e pescoço. — Perdi Ascalon.
— Não — respondeu Nayimathun. — Isto não acabou.
Caiu no con­vés do Pérola Bailarina.
Tané olhou para baixo, para os barcos. Parecia-lhe
impossível que a espada tivesse evitado as águas
infinitas negras.
Outro barco explodiu em pedaços ao deflagrar a
pólvora que levava. A sangrar, com a asa ferida, Fýredel
ergueu a cabeça e emitiu um som longo vindo das
profundezas do seu corpo. Até Tané sabia o que aquilo
significava. Um apelo aos seus.
O bando de wyrms por cima dela entrou em
desordem. Perante o olhar de Tané, metade das bestas
de fogo afastou-se do Inominável e acorreu ao chamado
de Fýredel.
— Agora! — gritou Tané. — Agora, Nayimathun!
O seu dragão não hesitou. Voou em direção ao
inimigo.
— Aponta para o peito. — Tané desembainhou a
espada que trazia ao seu lado. A chuva batia-lhe no
rosto. — Temos de lhe atravessar as escamas.
Nayimathun mostrou os dentes. Investiu contra o
que restava da vanguarda. Os outros dragões
chamavam-na, mas ela não prestou atenção. Uma
labareda surgiu na sua direção, mas ela elevou-se aci­ma
do Inominável e encostou-se a ele, envolvendo-o com o
seu corpo, colocando a cabeça atrás da dele, fora do
alcance dos seus dentes e das suas chamas. Tané ouviu
as escamas do seu dragão começarem a crepitar.
— Vai, Tané!
Esquecendo os seus medos, Tané saltou do dorso do
dragão e agarrou-se a uma escama. O calor atravessava
as suas luvas, mas continuou a trepar pelo Inominável,
escalando as suas placas metálicas, usando as bordas
afiadas como pontos de apoio, contando a partir do topo
da garganta. Quando chegou à vigésima escama, viu a
imperfeição, o local onde as escamas não se tinham
encaixado perfeitamente devido à cicatriz por baixo.
Agarrando-se com uma mão, enfiou a lâmina da espada
sob a escama, apoiou as botas na escama abaixo e
puxou com todas as suas forças.
O Inominável abriu as mandíbulas e soltou uma
labareda terrível, mas mesmo coberta de suor e com
dificuldade em respirar, Tané conti­nuou a fazer força,
gritando pelo esforço e posicionando todo o seu peso.
A lâmina da sua espada partiu-se. Tané caiu três
metros antes de con­seguir estender a mão e agarrar-se a
outra escama.
Os braços tremiam-lhe. Estava prestes a escorregar.
Então, com um grito de guerra que ecoou nos seus
ossos, Nayimathun recuou, segurando o punho da
espada entre os dentes. E com um aba­não de cabeça,
arrancou a escama.
Da carne do Inominável jorrou um jato de vapor
abrasador. Tané estendeu um braço para evitar queimar-
se... e escorregou.
Os dedos agarraram-se a uma crina verde como algas
de rio. Subiu novamente para o dorso de Nayimathun.
Instantes depois, com as es­camas secas, esta
desenrolou-se e lançou-se ao oceano. Tané tossiu ao
inalar os vapores do metal quente. O Inominável seguiu-
as, com as mandíbulas escancaradas, revelando a chama
no fundo da garganta. Nayimathun soltou um gemido ao
sentir a mordida de dentes afiados como lâminas na
cauda.
O uivo ecoou em Tané. Pegou na sua adaga, girou a
cintura e lançou-a para as profundezas de um olho negro.
O monstro soltou a sua presa, mas não antes de lhe
rasgar carne e escamas. Nayimathun afastou-se dele em
direção ao Abismo, sangrando profusamente.
— Nayimathun... — disse Tané, quase sem conseguir
falar. — Nayimathun!
A chuva tornou-se prateada.
— Encontra a espada — foi tudo o que o dragão disse,
a voz dimi­nuindo. — Isto tem de terminar aqui. Tem de
ser agora.

***

O soldado atacou Ead com a sua partasana, por pouco


não a atingindo na bochecha. Tinha o rosto molhado e
frio, havia urinado nas calças, e tremia tanto que
entrechocava os dentes.
— Para de lutar, idiota descerebrado! — gritou Ead. —
Solta a arma, ou não me deixas outra opção!
Ele usava uma cota de malha e um elmo com placas
em forma de escamas. Tinha os olhos vermelhos de
exaustão, mas estava dominado por algo além da razão.
Quando atacou novamente com um movimento
pendular, ela esgueirou-se por baixo do seu braço e
ergueu a espada, abrindo-o desde o ventre até o ombro.
O homem viera do Exército Draconiano. Os seus
soldados lutavam como se estivessem possuídos, e
talvez estivessem. Possuídos pelo medo do que
aconteceria às suas famílias em Cárscaro se perdessem
aquela batalha.
O Inominável sobrevoava os barcos. Ead viu-o
debater-se e observou uma fita de cor verde pálida
soltar-se dele. O som de uma voz draconia­na ressoou
pelas ondas.

— A espada! — bradou Fýredel. — Encontrem a


espada!

Metade dos soldados yscals dispersou-se para


cumprir a ordem, en­quanto outros se lançavam ao mar. O
sangue espalhava-se pela água, juntamente com a cera
usada para proteger os barcos.

Um wyvern sobrevoou as pessoas e ateou fogo a


um rasto de detritos flutuante, provocando um coro de
uivos de soldados e marinheiros quei­mados vivos.

Ead envolveu a joia minguante com uma mão


ensanguentada. No seu interior, detetou um murmúrio.
Uma batida quase impercetível.

Encontra a espada.

A joia emitia o seu chamamento. Procurando entre


as estrelas.
Passou por cima de um cadáver, em direção à proa.
O murmúrio tornou-se mais fraco. Quando voltou para a
popa, intensificou-se. O Pérola Bailarina era o navio mais
próximo; estava à sua frente, ainda a flutuar.

Lançou-se ao mar, penetrando na água como uma


faca. Outra provi­são de pólvora explodiu, e um brilho
indicou-lhe o caminho.

Filha de Zāla.
Sabia que aquela voz lhe ecoava na mente. Era tão
clara, tão suave, como se o seu interlocutor estivesse
próximo o suficiente para sentir a sua respiração. Mas
debaixo de água, era como se viesse do próprio Abismo.
A voz do Inominável.
Conheço o teu nome, Eadaz uq-Nāra. Os meus
servos sussurraram-me com vozes cheias de temor.
Falam da raiz de uma laranjeira, uma raiz que se pode
espalhar pelo mundo e ainda assim queimar com uma luz
dourada como o Sol.
Eu sou a serva de Cleolind, serpente. De alguma
forma, sabia como lhe responder. Esta noite completarei
o seu trabalho.
Sem mim, não tereis nada que vos una. Mergulhareis
em guerras por riqueza e religião. Estareis em conflito
uns com os outros. Como sempre fizestes. E acabareis
por vos matardes a vós próprios.
Ead nadou, ouvindo o som da joia branca a zumbir
contra a sua pele.
Não precisas de desistir da tua vida. A sua cabeça
quebrou a superfície e continuou a nadar. Há outro fogo a
arder dentro de ti Sê a minha donzela, e pouparei a vida
de Sabran Berethnet. Se não o fizeres, disse a voz,
acabarei com ela.
Terás de acabar comigo primeiro. E já provei que não
é fácil.
Subiu para o barco e levantou-se.
Assim seja.
E assim, o Inominável, o pesadelo de todas as nações,
lançou-se con­tra o navio.
Todas as chamas do Abismo se apagaram. O único
som que Ead ou­via eram os gritos de terror ao
aproximarem-se da morte, na forma de uma sombra que
caía do céu. Apenas a luz das estrelas pontuava a escu­‐
ridão, e, à luz das estrelas, Ascalon brilhava.
Ead atravessou o Pérola Bailarina em corrida. O seu
mundo eclipsou-se até que restassem apenas as batidas
do seu coração e a espada. Pediu à Mãe que lhe desse a
força que tivera naquele dia em Lasia.
Um metal sobrenatural, que ganhava vida ao toque. O
Inominável abriu as suas mandíbulas, e um sol branco
surgiu de dentro dele. Ead viu o ponto onde parte da sua
armadura fora arrancada. Ergueu a espada forjada por
Kalyba, empunhada por Cleolind, que vivera na lenda por
mil anos.
E afundou a lâmina na carne.
Ascalon brilhou com uma luz ofuscante. Ead teve
apenas um momento para ver a pele das suas mãos
banhadas de suor — um momento, uma eternidade ou
algo intermediário — antes que a espada lhe fosse arran­‐
cada das mãos. Foi arremessada pelo convés, pela borda,
para o mar. Um monstro de escamas caiu sobre o Pérola
Bailarina, partindo-o ao meio.
As forças abandonaram-na com a mesma rapidez com
que haviam surgido.
Cravara a lâmina no coração do Inominável, algo que
a Mãe não havia conseguido fazer, mas não fora
suficiente. Teria de o acorrentar ao Abismo para que
morresse. E ela tinha a chave.
A joia apareceu diante dela. A estrela no seu interior
reluzia na escu­ridão. Como desejava poder dormir
eternamente.
Outra luz brilhou entre as sombras. Um relâmpago,
aprisionado num enorme par de olhos.
Tané e o seu dragão. Uma mão aproximou-se,
atravessando a água, e Ead agarrou-a firmemente.
Elevaram-se acima do oceano, em direção às estrelas.
Tané segurava a joia azul numa mão. O Inominável
afundou-se no Abismo, com a cabeça para trás, cuspindo
fogo pela boca como lava expelida do manto da terra,
com Ascalon ainda afundada no peito.
Tané segurou firmemente a mão de Ead e apertou-lhe
os dedos, fazendo-os passar entre os dela, de modo que
ambas segurassem a joia minguante, pressionada contra
os seus corações, que batiam cada vez mais fracos.
— Juntas — sussurrou Tané. — Por Neporo. Por
Cleolind.
Devagar, Ead aproximou a outra mão e os seus dedos
entrelaçaram-se em torno da joia crescente.
A cada respiração, a sua mente enfraquecia, mas o
seu sangue sabia o que tinham de fazer. Era algo
instintivo, tão arraigado e tão antigo quanto a própria
árvore.
O oceano elevou-se obedecendo aos seus comandos.
Jogaram aquela partida final por turnos, nunca se
separando uma da outra.
Envolveram-no como um casulo, costurando a
superfície das ondas como habilidosos alfaiates. Entre
fumo e vapor, o Inominável foi amar­rado ao fundo do
mar, e a escuridão sufocou a chama ardente do seu
coração.
Ele ergueu o olhar e olhou para Ead pela última vez, e
ela olhou para ele. Do ponto onde Ascalon havia
penetrado, surgiu um clarão cegante, e a Besta da
Montanha emitiu um último grito antes de desaparecer.
Ead sabia que se lembraria daquele som até ao seu
último suspiro. Ressoar-lhe-ia nos sonhos mais inquietos,
como uma canção pelo deser­to. Os dragões do Oriente
mergulharam atrás dele, para vê-lo afundar-se até à sua
sepultura. O mar fechou-se sobre eles.
E o Abismo ficou em silêncio.
72
Oeste

No sopé da Roca, a wyrm Valeysa jazia morta, atingida


por um arpão. À sua volta, o chão estava repleto de
despojos mortais de humanos e wyrms.
Fýredel não ficara para trás para defender o seu
território draconiano, mas ordenara a retirada dos seus
exércitos combinados do Norte, do Sul e do Oeste.
Haviam falhado. Quanto ao próprio Fýredel, fugira após o
desaparecimento do Inominável sob as ondas, e os seus
servos dispersa­ram mais uma vez.
O sol nascia sobre Yscalin, iluminando a paisagem de
sangue e cin­zas, fogo e ossos. Uma mulher seiikine
chamada Onren levara Loth até lá de dragão para que
ele pudesse procurar Margret. De pé na planície
devastada, olhou para a distância e viu Cárscaro.
Uma coluna de fumo erguia-se do que outrora fora
uma grande cida­de. Ninguém lhe soube dizer se a
Donmata Marosa havia sobrevivido à noite. O que se
sabia era que o Rei Sigoso, o assassino de rainhas,
estava morto. O seu cadáver envelhecido estava
pendurado no Portão Niunda. A visão do cadáver fizera
os seus soldados desertar.
Loth rezou para que a princesa ainda estivesse viva.
Desejou com toda a sua alma que ela ainda lá estivesse,
pronta para ser coroada.
O posto médico improvisado ficava a uma légua de
distância do local onde os combates tinham começado:
uma série de tendas montadas jun­to a um riacho, com as
bandeiras de todas as nações no exterior.
Os feridos gemiam em agonia. Alguns estavam
gravemente queimados.
Outros tinham o corpo tão coberto de sangue que
eram irreconhecíveis.
Loth localizou o Rei Jantar do Ersyr entre os
gravemente feridos, num leito rodeado pelos seus
guerreiros, a receber tratamento de todos os lados. Uma
mulher com a perna esmagada mordia uma correia de
ca­bedal enquanto os barbeiros-cirurgiões a serravam
abaixo do joelho. Os curandeiros traziam baldes de água.
Encontrou Margret numa tenda destinada aos feridos
inysh, com as lonas levantadas para arejar e dissipar o
fedor a vinagre.
Ela usava um avental manchado de sangue sobre a
saia. Estava ajoelhada ao lado de Sir Tharian Lintley, que
jazia imóvel e contun­dido numa cama. Tinha uma ferida
profunda que ia da mandíbula à têmpora. Fora suturada
cuidadosamente, mas ficaria com uma cicatriz para o
resto da vida.
Margret levantou a cabeça e viu Loth. Por um
momento, ficou com o olhar vago, como se se tivesse
esquecido de quem era.
— Loth.
Ele agachou-se ao lado dela. Envolveu-a com os
braços e apoiou o queixo na sua cabeça.
— Acho que ele vai ficar bem. — Meg cheirava a fumo.
— Foi um soldado, não um wyrm.
A sua irmã aconchegou-se ao peito dele.
— Ele está morto — respondeu Loth e beijou-lhe a
testa. — Acabou, Meg.
Meg tinha o rosto sujo de cinzas e os olhos cobertos
de lágrimas. Levou uma mão trémula à boca.
Lá fora, um fio de luz surgiu no horizonte, da cor de
uma rosa selva­gem. Um novo dia de primavera
começava na Roca e eles, abraçados, contemplaram o
sol a pintar o céu de dourado.
73
Oeste

Brygstad, capital do Estado Livre de Mentendon, a joia


da coroa da sabedoria no Oeste. Os anos que passara a
sonhar em voltar às suas ruas.
Estavam as casas altas e estreitas, todas com
telhados de duas águas, ainda com restos de neve.
Estava o elaborado pináculo do Santuário do Santo, que
se elevava sobre o centro da cidade.
Niclays Roos ia sentado numa carruagem aquecida,
envolto num manto com bordas de peles. Durante a sua
convalescença no Palácio de Ascalon, a Grã-Princesa
Ermuna enviara-lhe uma carta solicitando a sua presença
na corte. O seu conhecimento do Oriente, dissera ela na
carta, ajudaria a enriquecer as relações entre Mentendon
e Seiiki. Poderia até ser convocado para participar nas
negociações de um novo acordo comercial com o Império
dos Doze Lagos.
Ele não queria saber de nada disso. A corte estava
amaldiçoada para ele. Se comparecesse ao palácio, tudo
o que veria seriam os fantasmas do passado.
Ainda assim, precisava de dar a cara. Não se podia
recusar um convite da realeza, sobretudo quando se quer
evitar um novo exílio.
A carruagem cruzou, rangendo, a Ponte do Sol.
Através da janela, ele observou as águas congeladas do
rio Bugen e a neve sobre os telhados da cidade de que
tanto sentira falta. Cruzara aquela mesma ponte pela
primeira vez quando visitara a corte, depois de viajar de
Rozentun numa carroça de feno. Naquela época, não se
pudera dar ao luxo de viajar de carruagem. A sua mãe
confiscara-lhe a herança, apontando, não sem razão, que
fora o que custara o seu diploma. As suas únicas posses
eram a sua eloquência e a camisa que levava no corpo.
Para Jannart, fora suficiente.
Agora, o seu braço esquerdo terminava logo abaixo do
cotovelo. Embora às vezes doesse, já aprendera a
suportá-lo.
No Pérola Bailarina, sentira o sopro da morte. Os
médicos inysh haviam-lhe assegurado que o pior já tinha
passado, que o que restava do braço iria curar. Ele nunca
confiara muito nos médicos inysh — a maio­ria não
passava de charlatães hipócritas —, mas não tinha outra
opção senão acreditar neles.
Fora Eadaz uq-Nāra quem ferira mortalmente o
Inominável com a Espada da Verdade. E depois, como se
isso não fosse heroísmo suficiente, ela própria e Tané
Miduchi o tinham destruído usando as joias. Era algo
lendário, uma história destinada a ser enaltecida em
canções populares, e Niclays passara todo esse tempo a
dormir. Só de pensar nisso, começa­va a rir. Jannart teria
rido bastante.
Algures na cidade, os sinos tocavam. Alguém se
casara.
A carruagem passou perto do Teatro do Estado Livre.
Em algumas noites, Edvart disfarçara-se como um lorde
de segunda categoria e fora assistir a uma ópera, um
concerto ou uma peça de teatro com Jannart e Niclays.
Depois, acabavam sempre a tomar bebidas no Bairro
Antigo, para que Edvart pudesse esquecer as suas
preocupações por um tempo. Niclays fechou os olhos,
recordando as gargalhadas dos seus amigos de­‐
saparecidos há tanto tempo.
Pelo menos alguns dos seus amigos tinham
conseguido manter-se vi­vos. Após o cerco de Cárscaro,
enviaram uma expedição em busca de Laya. Enquanto
estivera deitado no Pérola Bailarina, atormentado pela
febre, lembrara-se de algumas coisas sobre a caverna
que fora a sua pri­são, especialmente o veio vermelho das
paredes.
Encontraram-na no Monte do Pavor. Estivera prestes a
morrer de sede, mas recebera os cuidados necessários
num posto médico, e a Alta Governante Kagudo levara-a
de volta para Nzene no seu próprio navio. Após décadas
longe de casa, regressaria à sua pátria, e já o convidara
para uma visita.
Iria em breve, quando tivesse absorvido o suficiente
de Mentendon para ter a certeza de que não era um
sonho. De que estava realmente lá.
A carruagem parou em frente às portas do Palácio de
Brygstad, uma estrutura austera de arenito escuro que
ocultava um interior de mármo­re branco e dourado. Um
lacaio abriu a porta.
— Doutor Roos — disse —, Sua Alteza Real, a Grã-
Princesa Ermuna, dá-vos as boas-vindas à corte mêntica.
Os olhos ardiam com o calor. Viu o vitral da janela no
quarto mais alto do palácio.
— Ainda não.
O lacaio parecia confuso.
— Doutor, Sua Alteza Real espera-vos ao meio-dia.
— Ao meio-dia, meu caro. Ainda não é meio-dia. —
Recostou-se no seu assento. — Podem levar os meus
pertences, mas agora irei ao Bairro Antigo.
Relutantemente, o lacaio deu a ordem.
A carruagem sacudiu-se pela parte norte da cidade,
passando por li­vrarias e museus, por edifícios oficiais e
padarias. Niclays contemplava ansiosamente apoiado no
cotovelo. Os aromas do mercado chegavam até ele,
aromas com os quais tanto sonhara em Orisima.
Biscoitos de gengi­bre e geleia de marmelo. Tartes que
podiam ser cortadas sem faca, com recheios deliciosos
de pera, queijo e pedaços de ovo cozido. Panquecas
mergulhadas em licor açucarado. As pequenas tortas de
maçã que tanto apreciara durante os seus longos
passeios pelo rio.
Em cada esquina havia bancas a vender panfletos e
livrinhos. Ao vê-los, pensou em Purumé e Eizaru, os seus
amigos do outro lado do mundo. Talvez um dia, quando a
proibição fosse levantada, se fosse levantada, pudessem
percorrer aquelas ruas com ele.
A carruagem parou em frente a uma taberna de
aparência sombria num beco próximo à Praça Brunna. A
placa já perdera a pintura dou­rada de outrora, mas, por
dentro, o Sol Resplandecente era exatamente como o
recordava.
Restava-lhe uma coisa a fazer antes de enfrentar a
corte: tinha de pro­curar os fantasmas antes que eles o
encontrassem a ele.

***

Em Mentendon, era tradição enterrar os falecidos no


seu local de nascimento. Apenas em casos excecionais
era permitido que fossem sepultados noutro lugar.
Jannart era um desses casos excecionais. A tradição
ditava que deveria ser enterrado em Zeedeur, mas
Edvart, desolado pela morte do seu me­lhor amigo,
concedera-lhe um túmulo no Cemitério da Prata, onde
esta­vam enterrados os membros da Casa de Lievelyn.
Pouco depois, Edvart contraíra a enfermidade suada e
acabara por lhe fazer companhia, jun­tamente com a sua
filha recém-nascida.

O cemitério ficava a uma curta caminhada do Bairro


Antigo. A neve cobria-o com um espesso manto.

Niclays nunca visitara o mausoléu. A sua fuga para


Inys fora um ato de negação. Ele não acreditava numa
vida após a morte, por isso não via necessidade de falar
com uma lápide de pedra.

No interior do mausoléu, fazia um frio glacial. Uma


efígie esculpida em alabastro jazia sobre o túmulo.

Niclays inspirou fundo e aproximou-se. Quem quer


que tivesse feito aquela estátua conhecia bem Jannart na
época em que ele rondava os quarenta anos. No escudo
da estátua, que representava a proteção do Santo na
morte, havia uma inscrição.

JANNART UTT ZEEDEUR


NÃO PROCURES O SOL DA MEIA-NOITE NA TERRA,
PROCURA-O DENTRO DE TI

Niclays passou a mão sobre aquelas palavras.


— Os teus ossos ficam para trás. Não tenho nada
pela frente. Estás morto, e eu sou um velho —
murmurou. — Estive zangado contigo du­rante muito
tempo, Jannart. Eu vivia tranquilo, convencido de que
mor­reria antes de ti. Talvez até tenha tentado garantir
isso. Odiei-te, odiei a tua memória, por partires antes de
mim. Por me deixares sozinho.

Com um nó na garganta, virou-se. Caiu no chão


com as costas apoia­das no túmulo e os braços entre os
joelhos.

— Falhei-te, Jan — disse, com uma voz fraca. —


Perdi-me e perdi de vista a tua neta. Quando os lobos
atacaram Truyde, eu não estava lá para os afugentar.

» Pensei... — Niclays abanou a cabeça. — Pensei


em deixar-me mor­rer. Quando me tiraram de dentro do
Pérola Bailarina, vi o mar em cha­mas. Luz na escuridão.
Fogo e estrelas. Olhei para o Abismo e quase me deixei
cair. — Estalou a língua, contendo uma gargalhada. — E
depois recuei. Estou demasiado amargurado para viver,
mas sou demasiado co­barde para morrer. Ainda assim...
enviaste-me nesta jornada por um motivo. A única forma
de honrar a tua memória é continuar vivo.
» Amaste-me. Incondicionalmente. Viste a pessoa que
eu poderia ser. E serei essa pessoa, Jan. Resistirei, meu
sol da meia-noite. — Tocou no rosto de pedra mais uma
vez, aqueles lábios que se assemelhavam tanto aos
verdadeiros. — Ensinarei ao meu coração a bater
novamente.
Doía deixá-lo assim, na escuridão. Mesmo assim, fê-lo.
Aqueles ossos já o tinham abandonado há muito tempo.
No exterior, a neve já caía menos, mas o frio era
gélido. Enquanto regressava pelo caminho do cemitério,
com lágrimas geladas nas faces, uma mulher atravessou
as portas de ferro forjado, vestida com um man­to
adornado com pele de zibelina. Quando ergueu o olhar,
abriu a boca, atónita, e Niclays estacou.
Conhecia-a bem.
Era Aleidine Teldan utt Kantmarkt.
— Niclays — sussurrou ela.
— Aleidine — respondeu, incrédulo.
Ainda era uma mulher bonita nos seus anos de
maturidade. Tinha cabelo de cor castanha, tão denso
como sempre, com algumas madeixas brancas, penteado
de forma elegante. Ainda usava a aliança com o nó do
amor, embora não no dedo indicador, onde deveria estar.
Nenhum outro anel tinha ocupado o seu lugar.
Olharam-se. Aleidine foi a primeira a reagir.
— É mesmo verdade que regressaste. — Libertou um
som semelhan­te a um riso. — Ouvi rumores, mas não
queria acreditar.
— Pois é. Depois de passar por algumas adversidades.
— Niclays ten­tou recompor-se, mas ainda sentia um nó
na garganta. — Eu, bem... Então... Agora vives aqui? Em
Brygstad, quero dizer, não no cemitério.
— Não, não. Ainda estou na Sala de Seda, mas
Oscarde está aqui agora. Vim visitá-lo. E ocorreu-me
passar para visitar Jannart.
— Claro.
Houve uma breve pausa entre os dois.
— Senta-te comigo, Niclays — convidou Aleidine,
esboçando um sorriso. — Por favor.
Questionou-se se seria sensato segui-la, mas fê-lo
de qualquer forma. Caminharam até um banco de pedra
ao lado do muro do cemitério. Aleidine afastou a neve
com a mão e sentou-se. Ele lembrava-se de como ela
sempre insistia em fazer coisas que os criados poderiam
fazer, como limpar as mesas ou tirar o pó aos retratos
que Jannart costumava pendurar por toda a casa.

O silêncio prolongou-se. Niclays observou os flocos


de neve a cair. Passara anos a perguntar a si mesmo o
que diria a Aleidine se a voltasse a ver. Agora, não
conseguia encontrar as palavras.

— Niclays, o teu braço.

O manto escorregara para trás, revelando o coto.

— Ah, sim. Acredites ou não, foram os piratas —


disse, com um sor­riso forçado.

— Acredito. Nesta cidade as pessoas falam. Agora


tens fama de aven­tureiro — disse ela, devolvendo-lhe um
sorriso que realçava as rugas em torno dos seus olhos. —
Niclays, sei que... nunca tivemos uma conversa séria
após a morte de Jannart. Partiste para Inys tão
repentinamente.
— Não, por favor — disse, com voz rouca. — Sei que
deves ter perce­bido. Todos aqueles anos...
— Não pretendo repreender-te, Niclays. — O tom de
Aleidine era suave. — Eu amava muito Jannart, mas sabia
que o coração dele não podia ser meu. Como sabes, o
nosso casamento foi acordado pelas nos­sas famílias. Não
fomos nós que o escolhemos. — Os flocos de neve
colavam-se-lhe às pestanas. — Ele era um homem
extraordinário. Eu apenas queria que ele fosse feliz. Tu
proporcionavas-lhe essa felicidade, Niclays, e não te
culpo por isso. Na verdade, agradeço-te.
— Jannart jurou não dar o seu afeto a mais ninguém
além de ti. Jurou-o num santuário, na presença de
testemunhas — disse Niclays, com a voz tensa. —
Sempre foste uma mulher muito piedosa, Ally.
— Fui e sou, e por isso, mesmo que Jannart tenha
quebrado os seus votos, eu recusei-me a quebrar os
meus. Jurei, acima de tudo, amá-lo e protegê-lo — disse
ela, apoiando delicadamente uma mão sobre a dele. —
Ele precisava do teu amor. A melhor maneira de honrar
as promessas que fizera era permitir que ele te amasse
em paz. E permitir que tu cor­respondesses com o teu
amor.
Ela falava honestamente. A sinceridade estava-lhe
gravada no rosto Niclays tentou falar, mas as palavras,
quaisquer que fossem, ficaram-lhe presas na garganta.
Girou a mão e segurou a dela.
— Truyde... — disse finalmente. — Onde repousa o
seu corpo?
A dor nos olhos dela era insuportável.
— A Rainha Sabran enviou-me os restos mortais.
Está enterrada nas nossas terras em Zeedeur.
Niclays apertou-lhe ainda mais a mão.
— Ela sentiu muito a tua falta, Niclays — disse. —
Era tão parecida com Jannart... Eu via-o no seu sorriso,
no seu cabelo, na sua inteligên­cia... Queria que a
tivesses visto tornar-se uma mulher.
Niclays sentiu uma pressão no peito que lhe
dificultou a respiração.
Precisou de grande esforço para controlar os
tremores do seu maxilar.
— Que farás agora, Niclays?
Ele engoliu uma saliva amarga como a sua tristeza.
— A nossa jovem princesa quer oferecer-me um
cargo na corte, mas preferiria um cargo como professor.
Embora não seja como se alguém me tivesse oferecido
um.
— Pede-o — sugeriu Aleidine. — Estou certa de que
na Universidade de Brygstad teriam todo o gosto em
receber-te.
— Um eLivros que brinca com a alquimia e que
passou semanas a trabalhar para os piratas — disse ele,
com voz seca. — Sim, eles iriam mesmo querer alguém
assim para moldar as mentes da próxima geração.
— Já viste mais do mundo do que muitos daqueles que
escreveram sobre ele. Imagina o que lhes poderias
oferecer, Niclays. Poderias sacudir o pó dos púlpitos, dar
nova vida aos livros.
Pensar nessa possibilidade reconfortou-o. Não o
considerara seriamente, mas talvez perguntasse a
Ermuna se poderia interceder por ele na universidade.
Aleidine olhou na direção do mausoléu. A sua
respiração criava man­chas trémulas de vapor branco.
— Niclays. Entendo que talvez queiras viver a tua vida
como alguém diferente. Mas... se quiseres vir visitar-me
de vez em quando...
— Sim — disse ele, dando-lhe uma palmadinha na
mão. — Claro que o farei, Aleidine.
— Eu adoraria. E, é claro, poderia reintroduzir-te na
sociedade. Sabes que tenho um bom amigo na
universidade, mais ou menos da nossa idade, que ficaria
feliz em conhecer-te. Alariks. Dá aulas de astro­nomia. —
Os seus olhos brilhavam. — Tenho quase a certeza de
que ele gostaria de ti.
— Bem, parece...
— E o Oscarde... Oh, o Oscarde ficaria encantado em
rever-te. E, claro, podes ficar lá em casa pelo tempo que
quiseres...
— Certamente não quero ser um incómodo, mas...
— Niclays — interrompeu. — Tu és família. Nunca
poderias ser um incómodo.
— És muito amável.
Entreolharam-se, quase sem fôlego após aquela
enxurrada de corte­sias. Por fim, Niclays sorriu, e Aleidine
também.
— Bem — disse ela —, acho que tens uma audiência
com a nossa princesa. Não devias preparar-te?
— Devia — reconheceu Niclays —, mas primeiro
queria pedir-te um pequeno favor.
— Claro.
— Quero que me contes, em... — consultou o seu
relógio de bolso — duas horas, tudo o que aconteceu
desde que saí de Ostendeur. Perdi anos de política e
notícias, e não quero parecer um tolo perante a nossa
nova princesa. Jannart era o historiador, eu sei — disse,
tentando aliviar o tom —, mas quando se trata de
mexericos, eras tu quem estava atualizada.
Aleidine sorriu.
— Não sei se devo sentir-me lisonjeada — disse ela.
— Vem, pode­mos passear junto ao Bugen. Assim também
poderás contar-me a tua aventura.
— Oh, querida senhora — disse Niclays. — A minha
história seria suficiente para encher um livro.
74
Oeste

Em Serinhall, o Lorde Arteloth Beck trabalhava num


escritório, com um monte de cartas e um caderno de
couro a seu lado. Os seus pais haviam ido passar uma
semana fora, obviamente para mudar de ambiente, mas
Loth sabia que a sua mãe já estava a tentar arranjar um
plano para o seu futuro. Tornar-se Conde de Goldenbirch,
ter um lugar no Conselho das Virtudes, e ser responsável
pela maior provín­cia de Inys.
Esperava que ao longo dos anos algo mudasse
dentro dele, como um mecanismo em movimento, e que
quando chegasse a altura, estivesse pronto. No entanto,
o que queria mesmo era estar na corte.
Um dos seus amigos mais queridos morrera. Quanto
a Ead, sabia que ela não poderia ficar em Inys para
sempre. A notícia de que ela matara o Inominável
espalhara-se, e ela não queria de todo a fama que isso
lhe traria. Mais cedo ou mais tarde, o seu caminho iria
virar-se para o sul.
A corte nunca mais seria a mesma sem os dois. E, no
entanto, era lá que se sentia bem. Era lá que Sabran iria
governar durante muitos anos. E ele queria estar lá, com
ela, no coração do seu país, para ajudá-la na transição
para uma nova era dourada de Inys.
— Boa noite — disse Margret, entrando no escritório.
— Julgo que o correto seja bater — disse Loth,
reprimindo um bocejo.
— Eu bati, irmão. Várias vezes — respondeu ela,
apoiando uma mão no seu ombro. — Toma. Vinho quente.
— Obrigado. — Deu um gole com gosto. — Que
horas são?

— Já faz muito tempo que devíamos os dois estar


na cama. — Margret esfregou os olhos. — É estranho
estarmos aqui sozinhos. Sem a mamã e o papá. Que
fazes acordado até tão tarde?

— Tudo.

Sentiu que ela o observava enquanto fechava o


livro. Este continha as contas de despesas da casa.

— Preferias estar no palácio — disse Margret


suavemente.
Conhecia-o muito bem. Loth bebeu o vinho e não
respondeu; deixou que o calor da bebida preenchesse o
vazio que sentia no estômago.
— Sempre adorei Serinhall. E tu sempre adoraste a
corte. No entanto, eu nasci como segunda filha, e tu
como primogénito, por isso terás de ser tu o próximo
Conde de Goldenbirch. — Margret suspirou. — Suponho
que a mãe pensou que merecias uma infância longe de
Goldenbirch, uma vez que quando fosses adulto terias de
viver ancorado a este lugar. Na verdade, ela fez-nos
apaixonarmo-nos ambos pelo lugar errado.
— Sim. — Não conseguiu evitar sorrir perante o
absurdo daquilo. — Bem, não podemos fazer nada
quanto a isso.
— Não sei. Inys está a mudar — disse Margret, com
os olhos brilhan­tes. — Os próximos anos serão difíceis,
mas darão uma nova face a este país. Devíamos permitir-
nos expandir os nossos horizontes.
Loth olhou para ela com uma expressão franzida.
— Certamente dizes coisas muito estranhas, irmã.
— Os mais sábios raramente são apreciados na sua
época — disse ela, encolhendo os ombros. Depois
colocou uma carta à sua frente. — Isto chegou esta
manhã. Tenta dormir um pouco, irmão.
Ela saiu. Loth pegou na carta e viu o selo com uma
pera impressa: o símbolo da Casa de Vetalda.
O coração apertou-se-lhe como um punho. Quebrou o
selo e desdobrou a carta, escrita numa caligrafia
elegante.
Enquanto lia, uma brisa entrou pela janela aberta.
Cheirava a relva recém-cortada, a feno e à vida de que
sentira falta quando estivera longe de casa. Os aromas
de Goldenbirch.
Agora, algo tinha mudado. Outros aromas invadiam-
lhe os sonhos, como a espuma das ondas. Aromas de sal,
alcatrão e do vento frio do mar. De vinho quente,
temperado com gengibre e noz-moscada. E de lavanda. A
flor que perfumava o seu sonho de Yscalin.
Pegou na sua pena e começou a escrever.
***

O fogo ardia lento na Câmara Privada do Palácio de


Briar. A geada decorava todas as janelas como se fosse
um bordado. Na penumbra, Sabran estava deitada de
costas no escano, relaxada, com ar de estar prestes a
adormecer. Ao lado da lareira, Ead contemplava-a,
exausta.
Às vezes, quando olhava para Sabran, quase se sentia
como o Rei Melancólico, perseguindo uma miragem entre
as dunas. Mas bastava que Sabran lhe desse um beijo
nos lábios, ou que se deitasse a seu lado ao luar para
perceber que era real.
— Tenho algo para te dizer. — Sabran olhou para ela.
— O Sarsun veio visitar-me há alguns dias — murmurou
Ead. — Com uma carta do Chassar.
A águia voara até ao Palácio de Ascalon e pousara-lhe
no braço com um bilhete. Ead demorou um bom tempo a
reunir a coragem necessária para a ler, e ainda mais
tempo para desembaraçar os seus sentimentos depois de
o fazer.

Querida,
Não tenho palavras para expressar o orgulho que
sinto com o que ouvi das tuas proezas no Abismo, nem o
alívio ao saber que o teu coração bate com a mesma
força de sempre. Quando a Prioresa enviou a tua irmã
para te silenciar, não pude fazer nada. Sou um cobarde, e
falhei-te, apesar de ter prometido a Zāla que nunca o
faria.
Embora isto me lembre, como tantas outras vezes,
que nunca precisaste da minha proteção. Tu és o teu
próprio escudo.
Escrevo-te para comunicar a notícia que tanto
esperávamos. As Damas Vermelhas desejam que
regresses a Lasia e que vistas o manto da Prioresa. Se
aceitares, irei ao teu encontro em Kumenga no primeiro
dia do inverno. As Damas Vermelhas beneficiarão da tua
mão firme e mente clara E, acima de tudo, irão beneficiar
deter o teu grande coração a seu lado.
Espero que me possas perdoar. De qualquer forma, a
laranjeira está à tua espera.

— Correu a notícia de que eu matei a besta — disse.


— É a maior honra que me podem conceder.
Sabran ergueu-se lentamente.
— Fico feliz por ti. — Segurou a mão de Ead. —
Mataste o Inominável. E esse era o teu sonho. — Os seus
olhares encontraram-se. — Aceitarás?
— Se for, poderei moldar o futuro do Priorado — disse
Ead, entrelaçando os dedos com os de Sabran. — Quatro
dos Sombras Ocidentais estão mortos. Isso significa que
os seus wyverns, e a prole que possam ter gerado,
perderam o seu fogo. Mas mesmo sem ele, ainda
representam um perigo para o mundo. Devemos caçá-los
e eliminá-los onde quer que estejam. E, é claro... temos
um grande inimigo solto.
— Fýredel.
Ead assentiu.
— Temos de o caçar — disse. — Mas como Prioresa,
também pos­so garantir que as Damas Vermelhas
trabalham pela estabilidade deste novo mundo. Um
mundo livre das sombras do Inominável.
Sabran serviu dois copos de sidra de pera.
— Estarás em Lasia — disse, tentando não alterar o
tom de voz.
— Sim.
De repente, a tensão era palpável no ar.
Ead nunca fora ingénua o suficiente para pensar que
poderiam viver juntas a vida toda em Inys. Como
viscondessa, poderia casar com uma rainha, mas não
poderia ser princesa consorte. Não desejava mais títulos
ou favores, não queria um lugar ao lado do trono de
mármore. Casar-se com uma rainha significava ser leal a
um único reino, e a única lealdade que Ead professava
era à Mãe.
No entanto, não podiam negar o que existia entre
elas. Era Sabran Berethnet quem dava vida à sua alma.
— Eu visitar-te-ia — garantiu Ead. — Não... com tanta
frequência, isso tu compreendes. A Prioresa precisa de
estar no Sul. Mas eu en­contraria solução. — Pegou um
copo. — Sei que já te disse isto antes, Sabran, mas não
te culparia se decidires que não queres viver assim.
— Viveria sozinha cinquenta anos só para passar um
dia ao teu lado.
Ead levantou-se e foi em direção a ela. Sabran moveu-
se e ambas se sentaram com as pernas entrelaçadas.
— Também tenho algo para te contar — disse Sabran.
— Daqui a uma década, mais ou menos, pretendo
abdicar do trono. Usarei esse tempo para garantir uma
transição tranquila da Casa de Berethnet para o próximo
soberano.
Ead arqueou as sobrancelhas.
— O teu povo acredita na divindade da tua dinastia
— disse. — Como irás explicar-lhes isso?
— Dir-lhes-ei que agora que o Inominável está morto,
a Casa de Berethnet já cumpriu o seu voto ancestral de
os proteger contra ele. E depois, honrarei a promessa
que fiz a Kagudo — disse. — Contarei a ver­dade ao meu
povo. Sobre Galian. Sobre Cleolind. Haverá uma Grande
Reforma do Reino das Virtudes. — Escapou-lhe um
suspiro. — Será muito difícil. Haverá anos de negação, de
raiva... mas tenho de o fazer.
Ead viu a determinação férrea no olhar de Sabran.
— Que assim seja — disse ela, apoiando a cabeça no
seu ombro. — Mas quem irá reinar depois de ti?
Sabran encostou a face à testa de Ead.
— Creio que inicialmente deveria ser alguém da nova
geração dos Duques Espirituais. As pessoas tendem a
aceitar mais facilmente um novo soberano se ele vier da
nobreza. Mas a verdade é que... não acho que seja bom
para o futuro de qualquer país depender de alguém
conce­ber filhos ou não. Uma mulher é mais do que um
ventre para fertilizar. Talvez possa ir mais além com essa
Grande Reforma. Talvez consiga abalar os próprios
alicerces das regras de sucessão.
— Tenho a certeza de que consegues. — Ead traçou-
lhe a clavícula com um dedo. — Quando queres,
consegues ser muito persuasiva.
— Suponho que herdei esse dom da minha
antepassada.
Ead sabia como as palavras de Kalyba, a profecia que
lhe fizera, afeta­vam Sabran. Muitas vezes, Sabran
acordava a meio da noite, lembrando-se da bruxa, cujo
rosto era idêntico ao dela.
Depois de recuperar das suas feridas, Ead levara o
cadáver de Kalyba para Nurtha. Encontrar alguém que
quisesse transportá-la de barco até à ilha não fora fácil,
mas no final, após reconhecerem Ead como a
Viscondessa de Nurtha, uma jovem oferecera-se para a
levar pelo Mar Menor.
Os poucos habitantes de Nurtha apenas falavam
morgano e pendura­vam coroas de espinheiro nas suas
portas. Ninguém lhe dirigiu a palavra enquanto
atravessava as florestas.
O espinheiro estava tombado, mas não apodrecido.
Ead pôde ver que em tempos devia ter sido tão
magnífico quanto a sua irmã do Sul. Ao entrar entre os
seus ramos, imaginou uma menina inysh a apanhar uma
baga vermelha dos seus ramos, uma baga que mudaria a
sua vida para sempre.
Deixara a Bruxa de Inysca sob os ramos para que o
seu corpo ali re­pousasse. A única Primeiro Sangue que
restava era aquela que vivia em Sabran e em Tané.
Durante algum tempo, apenas o crepitar do fogo
quebrava o silêncio, até que Sabran se sentou no banco
em frente a Ead, de modo que ficas­sem frente a frente, e
entrelaçaram os dedos.
— Não te rias de mim.
— Porquê? Vais dizer algum disparate?
— Talvez sim. — Sabran fez uma pausa como que
para reunir for­ças. — Nos tempos anteriores ao Reino das
Virtudes, as pessoas que se amavam em Inysca
costumavam trocar peças de roupa como prova de amor.
Como uma promessa de que iriam construir um lar
juntas. — Os seus olhos nunca se desviaram dos de Ead.
— Tens de cumprir o teu dever como Prioresa. Eu tenho
de cumprir o meu, como rainha de Inys. Durante algum
tempo, teremos de seguir caminhos separados... mas
daqui a dez anos, irei à tua procura na praia de Pedra
Alta. E encontra­remos o nosso lugar.
Ead baixou a cabeça e pousou o olhar nas suas mãos
unidas.
Dez anos sem estar ao seu lado todos os dias. Dez
anos de separação.
Era doloroso pensar nisso.
Mas sabia sofrer por algo distante. Sabia aguentar.
Sabran ficou a olhar para ela, até que Ead se
aproximou e a beijou.
— Dez anos — disse — e nem mais um nascer do
sol.
75
Este

O Palácio Imperial estava muito parecido à última vez


que a senho­ra Tané do Clã Miduchi entrara nos seus
corredores, O anoitecer estava a cair e ela deixava para
trás os criados que limpavam os campos com pás,
soprando nas mãos para as aquecer.
Enquanto recuperava as forças para o seu regresso
formal à Alta Guarda do Mar, servia de embaixadora não
oficial entre Seiiki e o Império dos Doze Lagos. O
Imperador Eterno fora amável, como sem­pre. Entregara-
lhe uma carta para levar a Ginura, como habitualmente
fazia, e conversara com ela durante algum tempo sobre o
que se passava nos outros continentes.
Tudo parecia calmo no mundo, mas Tané estava
inquieta, pensando em algo do passado distante.
Nayimathun aguardava-a no Grande Pátio, rodeada
por um grupo de cortesãos lacustres bem vestidos que
lhe tocavam suavemente nas es­camas na esperança de
receber a sua bênção. Tané subiu para a sela e vestiu as
manoplas.
— Tens a carta? — perguntou o dragão.
— Sim — disse Tané, dando-lhe uma palmadinha no
pescoço. — Estás pronta, Nayimathun?
— Sempre.
Levantou voo, e pouco depois estavam sobre o Mar
do Sol Trémulo.
Ainda havia piratas nas suas águas. Embora
estivessem a tratar do as­sunto com Inys, a doença
vermelha ainda não fora erradicada e, de momento, o
Grande Édito continuava em vigor. Tané suspeitava de
que permaneceria assim durante algum tempo.
A Imperatriz Dourada estaria algures lá em baixo.
Viveria enquanto durasse a proibição e, enquanto
vivesse, o comércio de carne de dra­gão continuaria. Tané
tencionava cumprir o juramento que fizera a si própria
em Komoridu, à sombra da amoreira. Depois de
recuperar dos ferimentos, voltou ao trabalho para
recuperar a forma com Onren e Dumusa. Em breve
estaria pronta para regressar às ondas.
O Senhor da Guerra de Seiiki recompensara-a pelas
suas ações no Abismo. Oferecera-lhe uma mansão em
Nanta e devolvera-lhe a vida.
Com exceção de Susa. Essa perda seria para sempre
uma seta, cravada, enterrada num lugar tão profundo
que nunca seria capaz de a remover. Todos os dias
parecia-lhe que iria ver um novo fantasma a erguer-se do
mar. Um fantasma decapitado.
Nayimathun levou-a de volta a Ginura, onde
entregou a carta e re­gressou ao Castelo da Flor de Sal.
Enquanto se penteava, olhou para o espelho de bronze e
traçou com um dedo a cicatriz na maçã do rosto. A
cicatriz que a pusera no caminho que a levaria ao
Abismo.
Despiu a roupa suja da viagem e vestiu o manto. Ao
anoitecer, cami­nhou até à baía de Ginura, onde
Nayimathun se banhava, na mesma praia onde fora
capturada. Tané entrou na água até aos joelhos.
— Nayimathun. — Pousou uma mão nas suas
escamas. — Gostaria de ir agora. Se me quiseres levar.
— Sim — disse o dragão, fitando-a com os seus olhos
ferozes. — Para Komoridu.

***

Pouco antes, Tané regressara à aldeia de Ampiki — a


sua primeira visita desde criança — em busca de
qualquer vestígio de Neporo de Komoridu. A aldeia não
fora reconstruída após o incêndio. As únicas pessoas que
lá estavam eram os jovens que apanhavam algas na
costa.
Também regressou à Ilha das Penas para falar com o
Ancião Vara, que a recebeu de braços abertos. Contou-
lhe tudo o que sabia sobre Neporo, embora fosse muito
pouco. Havia escritos que diziam que se casara com um
pintor, muitas outras cartas que mencionavam um novo
governante no Oriente, e alguns desenhos que
mostravam como devia ser a Rainha de Komoridu.
No final, restava apenas um sítio onde a podia
encontrar.

A luz brilhava em Nayimathun enquanto voava. Ao


avistarem Komo­ridu, uma gota de tinta no meio do mar,
desceu à areia e Tané deixou-se cair da sela.

— Eu espero aqui — disse Nayimathun.


Tané deu-lhe uma palmadinha. Acendeu a
lamparina e começou a caminhar por entre as árvores.

Aquele era o seu legado. A ilha para proscritos.

Um dia, em Ampiki, quando era criança, Tané


seguira uma borbole­ta até ao mar. O Ancião Vara dissera-
lhe que, em algumas histórias, as borboletas eram os
espíritos dos mortos, enviados pelo grande Kwiriki. Como
os dragões, mudavam de forma, por isso o grande
Kwiriki, na sua imensa sabedoria, escolhera-as como
mensageiras do plano celeste. Se não fosse essa
borboleta, Tané teria morrido com os seus pais e a joia
ter-se-ia perdido.

Caminhou durante horas em silêncio pela floresta.


Aqui e ali, encon­trou vestígios do que ali existira mil anos
atrás. Os alicerces de casas em ruínas dessa altura.
Fragmentos de cerâmica com marcas de corda. A lâmina
de um machado. Perguntou a si mesma se haveria pilhas
de ossos sob o solo. Não sabia bem o que procurava,
nem porquê, por isso caminhou até encontrar uma gruta.
Lá dentro estava uma estátua de uma mulher esculpida
na rocha, o rosto desgastado, mas intacto.

Tané conhecia aquele rosto. Era o seu.


Pousou a lamparina e ajoelhou-se perante o Primeiro
Sangue. Tivera muito tempo para pensar em tudo o que
gostaria de lhe dizer, mas agora que estava ali, tinha
apenas uma palavra.
— Obrigada.
Neporo devolveu-lhe o olhar, impassível.
Tané observou-a, sentindo-se como se estivesse a
viver um sonho.
Ficou até que a luz da lamparina se apagou. Na
escuridão, repetiu os passos que tinha dado antes, até à
amoreira desenraizada que morrera sob as estrelas. Tané
deitou-se a seu lado e adormeceu.
De manhã, tinha uma borboleta branca na mão e a
sua lateral estava manchada de sangue.
76
Oeste

O Rosa Eterna contornou a costa oeste de Yscalin.


Desde o desapare­cimento de Fýredel, o povo começara a
reparar os danos sofridos durante os Anos Draconianos.
Casas de oração e santuários surgiram das ruínas.
Plantava-se alfazema nos campos queimados. E em
breve, as pereiras voltariam a dar as peras vermelhas
que outrora haviam adoça­do as ruas de Cárscaro.
Golfinhos saltavam aos pares por entre as ondas,
salpicando água. A noite já caíra, mas Ead nunca se
sentira tão acordada. O vento salgado brincava com o
seu cabelo, e ela respirou fundo, saboreando-o.
Prioresa. Aquela que tomou o lugar da Mãe. A
guardiã da laranjeira.
Toda a sua vida fora uma donzela. Não sabia o que
era governar.
Por outro lado, passara tempo suficiente com Sabran
para saber que uma coroa era um grande fardo — só que
o Priorado da Laranja não tinha coroa. Não seria
imperatriz ou rainha, mas um manto vermelho entre
muitos.
Descobriria onde Fýredel se escondera e acabaria
com ele como aca­bara com o seu senhor e mestre. Não
descansaria até que o único fogo que se erguesse da
terra fosse o da laranjeira e o das magas que comiam do
seu fruto. E quando a Estrela de Crina Longa regressasse,
o equilíbrio seria restaurado.
Gian Harlowe estava a seu lado, na popa do navio,
com o seu ca­chimbo de barro na mão. Acendeu-o com
uma vela, respirando fundo e exalando um círculo de
fumo azulado. Ead observou-o enquanto se afastava.
— Ouvi dizer que, na primavera, a Rainha Marosa
convidará gover­nantes estrangeiros para a sua corte —
disse ele — para que Yscalin se volte a abrir ao mundo
exterior.
Ead assentiu.
— Esperemos que esta paz dure.
— Sim.
Durante algum tempo, o único ruído foi o das ondas.
— Capitão — disse Ead, e Harlowe respondeu com
um rosnado baixo —, correm rumores sobre vós na corte
de Inys, sussurrados nas som­bras. Rumores de que
cortejáveis a Rainha Rosarian. — Observou a sua
expressão a obscurecer. — Dizem que tínheis tenções de
a levar para a Lagoa do Leite.
— A Lagoa do Leite é uma fábula — respondeu
secamente. — Uma história contada às crianças e aos
amantes sem esperança.
— Uma jovem sábia disse-me uma vez que todas as
lendas nascem de uma semente de verdade.
— Sois vós ou a rainha de Inys quem deseja a
verdade?
Ead esperou, observando-lhe o rosto. Aqueles olhos
estavam num pas­sado distante.
— Ela nunca se pareceu muito com a Rose. — O seu
tom suavizou. — Nasceu à noite, sabeis? Dizem que isso
faz a criança adquirir um carácter sombrio... Mas Rose
veio ao mundo com o canto das cotovias.
Ele deu mais uma baforada no cachimbo.
— Há verdades que beneficiam de permanecer
enterradas. Há caste­los que ficam melhor nas nuvens.
Histórias não contadas são promissoras. No reino das
sombras, desconhecido para a maioria. — Fitou-a. — Isso
deveis saber melhor do que ninguém, Eadaz uq-Nāra. Vós
que tendes segredos que um dia se tornarão canções.
Ead esboçou um sorriso maldisfarçado e olhou para
as estrelas.
— Um dia, talvez — disse. — Mas não hoje.
Os Intervenientes
Os nomes do Oriente são precedidos pelo sobrenome.
Os nomes do Ocidente, do Norte e do Sul são
precedidos pelo nome próprio.
+

OS QUE NARRAM A HISTÓRIA


Arteloth «Loth» Beck: Herdeiro da rica província
dos Prados, no norte de Inys, e da propriedade de
Goldenbirch. Filho primogénito do Lorde Clarent e da
senhora Annes Beck, irmão de Margret Beck e melhor
amigo de Sabran IX de Inys.
Eadaz du Zāla uq-Nāra (também conhecida como
Ead Duryan): Iniciada do Priorado da Laranjeira,
atualmente disfarçada de ca­mareira na corte de Sabran
IX de Inys. É descendente de Siyāti uq-Nāra, outrora a
melhor amiga de Cleolind Onjenyu.
Niclays Roos: Anatomista e alquimista do Estado
Livre de Mentendon e antigo amigo de Edvart II. Foi
eLivros por Sabran IX de Inys para Orisima, o último
posto de comércio ocidental em Seiiki.
Tané: Orfã seiikine que foi convocada para as Casas
de Instrução quando criança para treinar para a Alta
Guarda do Mar. Aprendiz principal da Casa Sul.

O ORIENTE
Ancião Vara: Curandeiro e arquivista na Casa Vane
na Ilha das Penas.
Comandante: O oficial responsável pela segurança
do posto de comércio mêntico de Orisima.
Dranghien VI: Imperador Eterno dos Doze Lagos,
atual líder da Casa de Lakseng. Como toda a sua
linhagem, afirma ser des­cendente do Portador da Luz,
que os lacustres acreditam ter sido o primeiro humano a
tornar-se amigo de um dragão quando este caiu dos
céus.
Dumusa: Aprendiz principal da Casa Oeste, de
ascendência Miduchi. O seu avô paterno era um
explorador do Sul, executa­do por desafiar o Grande
Edito.
General do Mar: Comandante da Alta Guarda do Mar
de Seiiki. Líder do Clã Miduchi. Atual cavaleiro de Tukupa,
a Prateada.
Ghonra: Herdeira da Frota do Olho de Tigre, filha
adotiva da Imperatriz Dourada e capitã do Corvo Branco.
Autodenominada «Princesa do Mar do Sol Trémulo».
Governador de Cabo Hisan: O oficial encarregado
de admi­nistrar a região seiikine de Cabo Hisan. É
responsável por garantir que os colonos lacustres e
mênticos seguem a lei seiikine.
Governadora de Ginura: A oficial encarregada da
administra­ção da capital seiikine de Ginura. É também a
chefe magistrada de Seiiki. Tradicionalmente, este cargo
é sempre ocupado por um membro da Casa de Nadama.
Grande Imperatriz Viúva: Membro da Casa de
Lakseng por casamento. Foi regente oficial do seu neto, o
Imperador Eterno dos Doze Lagos, antes de este atingir a
maioridade.
Ishari: Aprendiza da Casa Sul. Companheira de
quarto de Tané.
A Imperatriz Dourada: Líder da Frota do Olho de
Tigre — a frota pirata mais formidável do Oriente,
composta por cerca de 40 mil piratas — e capitã do seu
maior navio de tesouro, o Perseguição. Ela controla o
comércio ilegal de carne de dragão.
Kanperu: Aprendiz da Casa Oeste.
Laya Yidagé: Intérprete da Imperatriz Dourada. Foi
feita pri­sioneira pela Frota do Olho de Tigre após tentar
seguir o seu aventureiro pai até Seiiki.
Moyaka Eizaru: Médico de Ginura. Pai de Purumé.
Amigo e ex-aluno de Niclays Roos.
Moyaka Purumé: Anatomista e botânica de Ginura.
Filha de Eizaru. Amiga e ex-aluna de Niclays Roos.
Muste: Assistente de Niclays Roos em Orisima.
Companheiro de Panaya.
Nadama Pitosu: Senhor da Guerra de Seiiki e atual
líder da Casa de Nadama. É descendente do Primeiro
Senhor da Guerra, que empunhou armas para vingar a
caída Casa de Noziken.
Onren: Aprendiza principal da Casa Oriente.
Padar: Navegador do Perseguição.
Panaya: Residente de Cabo Hisan e intérprete dos
colonos de Orisima. Companheira de Muste.
Susa: Residente de Cabo Hisan e amiga de infância
de Tané. Vivia na rua até ser adotada por um
estalajadeiro.
Turosa: Aprendiz principal da Casa Norte,
descendente de Miduchi, famoso pela sua habilidade com
lâminas. Rival de lon­ga data de Tané.
Vice-rei de Orisima: O oficial mêntico que
supervisiona o posto de comércio de Orisima.

FALECIDOS E PERSONALIDADES HISTÓRICAS DO


ORIENTE
Donzela da Neve: Uma figura semilendária. Cuidou
da saúde de Kwiriki quando ele foi ferido e disfarçado de
pássaro. Para lhe agradecer, Kwiriki esculpiu o Trono do
Arco-íris e concedeu-lhe poder sobre Seiiki. Ela foi o
membro fundador da Casa de Noziken e a primeira
Imperatriz de Seiiki.
Menina das Sombras: Uma figura mítica. Uma
camponesa que sacrificou a vida para reunir o Dragão da
Primavera com a pérola que lhe fora roubada.
Neporo: Autoproclamada Rainha de Komoridu. Muito
pouco se sabe sobre ela.
Noziken Mokwo: Uma ex-imperatriz de Seiiki. Líder
da Casa de Noziken durante o seu reinado.

O SUL
Chassar uq-Ispad: Mago do Priorado da Laranjeira e
seu elo principal com o mundo exterior. Faz-se passar por
um embaixa­dor do Rei Jantar e da Rainha Saiyma do
Ersyr para ter acesso a cortes estrangeiras. Ajudou a
criar Eadaz uq-Nāra após a morte repentina da sua mãe
biológica. Chassar tem o dom de domesti­car pássaros,
muitas vezes usando Sarsun e Parspa para realizar o seu
trabalho.
Cleolind Onjenyu (a Mãe ou a Donzela): Princesa
herdeira do Domínio de Lasia e filha de Selinu, o
Guardador de Promessas. Fundadora do Priorado da
Laranjeira. A religião das Virtudes da Cavalaria professa
que se casou com Sir Galian Berethnet e se tornou a
rainha consorte de Inys depois de ele ter derrotado o
Inominável para a salvar. Os membros do Priorado
acreditam que foi Cleolind quem venceu a besta, e
muitos acreditam que ela não partiu com Galian. Cleolind
morreu após deixar o Priorado para tratar de negócios
desconhecidos, pouco depois da sua fundação.
Jantar I (o Esplêndido): Rei do Ersyr e atual líder da
Casa de Taumargam. Marido da Rainha Saiyma e aliado
do Priorado da Laranjeira.
Jondu du Ishruka uq-Nāra: Amiga de infância e
mentora de Eadaz uq-Nāra. Foi enviada para Inys para
encontrar Ascalon. Como Eadaz, é descendente de Siyāti
uq-Nāra.
Kagudo Onjenyu: Alta Governante do Domínio de
Lasia e atual líder da Casa de Onjenyu. Descendente de
Selinu, Guardador de Promessas, por meio do filho, o
meio-irmão de Cleolind Onjenyu. Kagudo é aliada do
Priorado da Laranjeira e tem sido guardada por Damas
Vermelhas desde o dia em que nasceu.
Mita Yedanya: Prioresa da Laranjeira. Anteriormente,
era a munguna, ou herdeira presuntiva.
Nairuj Yedanya: Uma Dama Vermelha do Priorado da
Laranjeira e sua presumível munguna.

FALECIDOS E PERSONALIDADES HISTÓRICAS DO


SUL
Cantor da Alvorada: Profeta do antigo Ersyr. Entre
as suas previsões, afirmou que o Sol nasceria do Monte
do Pavor e des­truiria Gulthaga, que estava, na época,
numa guerra azeda com o seu povo.
Rainha das Borboletas: Figura semimítica. Era uma
amada rainha consorte do Ersyr, mas morreu jovem,
deixando o seu rei imerso numa dor sem fim.
Rei Melancólico: Figura semimítica, que se diz ter
sido um dos primeiros reis da Casa de Taumargam.
Vagueou pelo de­serto, seguindo uma miragem da sua
esposa, a Rainha das Borboletas, e morreu de sede. Os
ersyris usam-no como um conto de advertência, na maior
parte das vezes como alerta contra o amor cego.
Saiyma Taumargam: Rainha consorte do Ersyr e
esposa de Jantar I.
Selinu, o Guardador de Promessas: Alto
Governante de Lasia e líder da Casa de Onjenyu quando
o Inominável se estabe­leceu em Yikala. Organizou uma
lotaria de vidas para apaziguar a besta, que apenas
terminou quando a sua própria filha, Cleolind, foi
escolhida como sacrifício.
Siyāti uq-Nāra: A querida amiga e serva de Cleolind
Onjenyu. Tornou-se Prioresa da Laranjeira depois de
Cleolind morrer no estrangeiro. Muitas irmãs e irmãos do
Priorado são descendentes de Siyāti por meio dos seus
sete filhos.
Zāla du Agriya uq-Nāra: Irmã do Priorado da
Laranjeira e mãe biológica de Eadaz du Zāla uq-Nāra. Foi
envenenada quan­do Eadaz tinha seis anos.

REINO DAS VIRTUDES


Aleidine Teldan utt Kantmarkt: Membro da rica
famí­lia Teldan, foi enobrecida após o seu casamento com
o Lorde Jannart utt Zeedeur, futuro Duque de Zeedeur. É
conhecida como a duquesa viúva de Zeedeur. Avó de
Truyde.
Annes Beck (Senhora Goldenbirch): Filha do Barão e
Baronesa de Greensward. Condessa de Goldenbirch por
meio do casa­mento com o Lorde Clarent Beck Mãe de
Arteloth e Margret. Ex-Dama do Leito Real de Rosarian IV
de Inys.
Arbella «Bella» Glenn (Viscondessa Suth): Uma das
três Damas do Leito Real de Sabran IX de Inys e Guardiã
das Joias da Rainha. Também foi a Dama do Leito Real,
ama de leite e Senhora dos Trajes da falecida Rosarian IV
Desde a morte de Rosarian, nunca mais falou.
Aubrecht II (o Príncipe Vermelho): Grande Príncipe do
Estado Livre de Mentendon, Arquiduque de Brygstad e
atual chefe da Casa de Lievelyn. Sobrinho-neto do
falecido príncipe Leovart e sobrinho do falecido príncipe
Edvart. Irmão de Ermuna, Bedona e Betriese. É o mais
velho dos irmãos.
Bedona Lievelyn: Princesa do Estado Livre de
Mentendon. Irmã de Aubrecht, Ermuna e Betriese.
Betriese Lievelyn: Princesa do Estado Livre de
Mentendon. Irmã de Aubrecht, Ermuna e Bedona. É a
mais nova dos irmãos, nascida logo depois de Bedona,
sua irmã gémea idêntica.
Calidor Stillwater: Segundo filho de Nelda Stillwater,
a Duquesa da Bravura. Companheiro da senhora Roslain
Crest e pai da senhora Elain Crest
Chefe de Askrdal: Nobre do mais alto escalão do
antigo Ducado de Askrdal em Hróth. Amigo da senhora
Igrain Crest.
Clarent Beck (Lorde Goldenbirch): Conde de
Goldenbirch e Guardião dos Prados. Companheiro da
senhora Annes Beck. Pai de Arteloth e Margret.
Elain Crest: Filha da senhora Roslain Crest e do Lorde
Calidor Stillwater. Deverá herdar o Ducado da Justiça
depois da sua mãe, que é a próxima na linhagem.
Ermuna Lievelyn: Princesa herdeira do Estado Livre
de Mentendon e Arquiduquesa de Ostendeur. Irmã de
Aubrecht, Bedona e Betriese.
Estina Melaugo: Contramestre do Rosa Eterna.
Gautfred Plume: Intendente do Rosa Eterna.
Gian Harlowe: Um corsário inysh e capitão do Rosa
Eterna. Dizem que foi amante de Rosarian IV de Inys, que
lhe ofereceu o navio como presente.
Grance Lambren: Membro dos Cavaleiros do Corpo.
Gules Heath: Membro mais antigo dos Cavaleiros
do Corpo.
Hallan Bourn: Médico Real de Sabran IX de Inys.
Helchen Roos: Mãe de Niclays Roos. Está afastada
do filho há décadas.
Igrain Grest: Duquesa da Justiça, senhora Alta
Tesoureira de Inys e atual líder da família Grest. Foi
regente em tudo, exce­to no nome, durante a menoridade
de Sabran IX de Inys e continua a ser a sua conselheira
de confiança no Conselho das Virtudes.
Jillet Lidden: Uma dama de companhia na Casa
Superior de Sabran IX de Inys. Costuma cantar na corte.
Joan Dale: Membro dos Cavaleiros do Corpo e a
segunda em comando de Sir Tharian Lintley. É uma
parente distante de Sir Antor Dale.
Kalyba (a Dama da Floresta ou a Bruxa de Inysca):
Uma figura misteriosa na história de Inysh. Criadora de
Ascalon. Diz-se que viveu na floresta de Haithwood, no
norte de Inys, e que raptava e assassinava crianças.
Katryen «Kate» Withy: Senhora dos Trajes e uma
das três Damas do Leito Real de Sabran IX de Inys. É a
sobrinha favorita do Lorde Bartal Withy, o Duque da
Camaradagem.
Kitston Glade: Poeta da corte de Sabran IX de Inys e
amigo do Lorde Arteloth Beck. Único herdeiro do conde e
condessa de Honeybrook. Herdeiro aparente da província
das Planícies.
Lemand Fynch: Duque da Temperança em exercício
e Lorde Almirante de Inys no lugar do seu tio
desaparecido. Lorde Wilstan Fynch, cuja posição ocupa
no Conselho das Virtudes. Líder inte­rino da família Fynch.
Linora Payling: Filha do Conde e Condessa de
Payling Hill. É uma camareira comum na Casa Superior
de Sabran IX de Inys.
Margret «Meg» Beck: Filha mais nova do Lorde
Clarent e da senhora Annes Beck É uma camareira
comum na Casa Superior de Sabran IX de Inys e Guardiã
da Biblioteca Privada. Irmã de Arteloth Beck
Marke Birchen: Membro dos Cavaleiros do Corpo.
Marosa Vetalda: Donmata de Yscalin. Filha de
Sigoso III e sua falecida companheira, a Rainha Sahar.
Nelda Stillwater: Duquesa da Bravura e Senhora
Chanceler de Inys. Atual líder da família Stillwater.
Oliva Marchyn: Genetriz das Damas, que
supervisiona as damas de companhia.
Oscarde utt Zeedeur: Duque de Zeedeur e
embaixador mênti­co no Reino Inys. Filho de Lorde Jannart
utt Zeedeur e da senhora Aleidine Teldan utt Kantmarkt.
Priessa Yelarigas: Primeira Dama do Leito Real de
Donmata Marosa de Yscalin.
Ranulf Heath, o Jovem: Conde de Deorn e Guardião
dos Lagos. O seu pai, Ranulf Heath, o Velho, era o
príncipe consorte de Jillian VI de Inys, avó de Sabran IX.
Raunus III: Rei de Hróth e atual chefe da Casa de
Hraustr.
Ritshard Eller: Duque da Generosidade e atual líder
da famí­lia Eller. Membro dos Duques Espirituais.
Roslain Crest: Líder das Damas do Leito Real da
Rainha Sabran IX de Inys e herdeira aparente do Ducado
da Justiça. A sua mãe, a senhora Helain Crest, ocupava a
mesma posição na casa de Rosarian IV Roslain é a
companheira do Lorde Calidor Stillwater, mãe da senhora
Elain Crest e neta da senho­ra Igrain Crest.
Sabran IX (a Magnífica): Trigésima sexta rainha de
Inys e atual líder da Casa de Berethnet. Filha de Rosarian
IV Como todos os membros da sua dinastia, afirma ser
descendente de Sir Galian Berethnet e da Princesa
Cleolind de Lasia.
Seyton Combe (o Falcão da Noite): Duque da
Cortesia, secre­tário principal e mestre dos espiões de
Sabran IX de Inys.
Sigoso III: Rei de Yscalin e atual líder da Casa de
Vetalda, atualmente autodenominado de Rei Terreno.
Uma vez leal ao Reino das Virtudes, renunciou às
Virtudes da Cavalaria e agora jura a sua lealdade ao
Inominável. Pai de Marosa Vetalda, sua filha com Sahar
Taumargam.
Tallys: Um ajudante de cozinha na Casa Inferior de
Sabran IX de Inys.
Tharian Lintley: Capitão dos Cavaleiros do Corpo, a
guarda pessoal de Sabran IX de Inys. Um plebeu de
sangue, tornou-se membro do Conselho das Virtudes
quando foi nomeado cavaleiro.
Thim: Desertor do Pomba Negra, agora artilheiro do
Rosa Eterna.
Triam Sulyard: Antigo pajem na Casa Inferior de
Sabran IX de Inys, depois escudeiro de Sir Marke Birchen.
É casado em segredo com a senhora Truyde utt Zeedeur.
Truyde utt Zeedeur: Herdeira aparente do Ducado
de Zeedeur. Filha de Oscarde utt Zeedeur e sua falecida
compa­nheira. Serve como dama de companhia na Casa
Superior de Sabran IX de Inys.
Wilstan Fynch: Duque da Temperança, Lorde
Almirante de Inys e príncipe consorte da falecida
Rosarian IV de Inys. Tornou-se embaixador residente de
Inys no Reino de Yscalin após a morte dela. O seu
sobrinho, o Lorde Lemand Fynch, mantém a sua posição
no Conselho das Virtudes durante a sua ausência.

FALECIDOS E PERSONALIDADES HISTÓRICAS DO


REINO DAS VIRTUDES
Autor Dale: Cavaleiro que se casou com Rosarian I
de Inys depois de jogar um jogo público de amor com ela.
O seu pai, Isalarico IV de Yscalin, concedeu uma
permissão especial para que o casamento fosse
realizado, já que era popular entre as pes­soas. Sir Antor
personifica os ideais da cavalaria.
Brilda Glade: Primeira Dama do Leito Real de Sabran
VII de Inys, que acabou por se tornar sua companheira.
Carnelian I (a Flor de Ascalon): Quarta rainha da
Casa de Berethnet.
Carnelian III: Vigésima quinta rainha da Casa de
Berethnet. Causou agitação quando se recusou a
contratar uma ama de lei­te para a sua filha, a Princesa
Marian. Apaixonou-se pelo Lorde Rothurt Beck, mas não
conseguiu casar com ele.
Carnelian V (a Pomba de Luto): Trigésima terceira
rainha da Casa de Berethnet, famosa pela sua bela voz e
períodos de triste­za. Bisavó de Sabran IX de Inys.
Edrig de Arondine: Amigo de confiança de Sir Galian
Berethnet, que serviu como seu cavaleiro. Quando Galian
foi coroado Rei de Inys, Edrig foi nomeado Guardião dos
Prados e recebeu o nome de família Beck.
Edvart II: Grão-Príncipe do Estado Livre de
Mentendon. Edvart e a sua filha morreram pouco depois
de Jannart utt Zeedeur durante o Terror de Brygstad,
quando metade da corte mêntica morreu da enfermidade
suada. Foi sucedido pelo tio, Leovart.
Galian Berethnet (o Santo ou Galian, o Impostor): O
primei­ro Rei de Inys. Galian nasceu na aldeia inysca de
Goldenbirch, mas tornou-se escudeiro de Edrig de
Arondine. A religião das Virtudes da Cavalaria, que Galian
baseou no código de cava­laria, professa que ele venceu o
Inominável em Lasia, casou-se com a Princesa Cleolind
da Casa de Onjenyu, e com ela fundou a Casa de
Berethnet. Adorado no Reino das Virtudes, mas vili­‐
pendiado em muitas partes do Sul, os seus seguidores
acreditam que Galian governa em Halgalant, a corte
celestial, onde aguar­da os justos na Grande Mesa.
Glorian II (Glorian Hartbane): Décima rainha da Casa
de Berethnet. Uma caçadora talentosa. O seu casamento
com Isalarico IV de Yscalin trouxe o seu país para o Reino
das Virtudes.
Glorian III (Glorian Shieldheart): Vigésima rainha da
Casa de Berethnet, indiscutivelmente a sua monarca
mais conhecida e amada. Liderou Inys durante a
Ascensão das Sombras e ficou famosa por levar a sua
filha recém-nascida, Sabran VII, para o campo de
batalha. Essa ação inspirou os seus soldados a lutar até
ao fim.
Haynrick Vatten: Regente de espera de Mentendon
durante a Ascenção das Sombras. Foi prometido a Sabran
VII de Inys quan­do tinha quatro anos. Os Vatten, que
governaram Mentendon durante séculos em nome da
Casa de Hraustr, acabaram por ser derrotados e eLivross
de volta a Hróth, mas os seus descendentes ainda
exerciam poder em Mentendon.
Isalarico IV (o Benevolente): Rei de Yscalin e príncipe
consorte de Inys. Prometeu o país ao Reino das Virtudes
após o seu casa­mento com Glorian II de Inys.
Jannart utt Zeedeur: O falecido Duque de Zeedeur,
anteriormente Marquês de Zeedeur. Era amigo próximo
de Edvart II de Mentendon, o amante secreto de Niclays
Roos, e companheiro da senhora Aleidine Teldan utt
Kantmarkt. Jannart foi um histo­riador apaixonado.
Jillian VI: Trigésima quarta rainha da Casa de
Berethnet Avó materna de Sabran IX de Inys. Jillian era
musicalmente talento­sa, religiosamente tolerante e
defendia laços mais estreitos entre o Reino das Virtudes
e o resto do mundo.
Leovart I: Grão-Príncipe do Estado Livre de
Mentendon. Não era candidato ao trono, mas persuadiu o
Conselho Real a deixá-lo ocupar o lugar do seu sobrinho-
neto, Aubrecht, que Leovart declarou ser demasiado
benevolente e inexperiente para gover­nar. Era famoso
por pedir em casamento incontáveis mulheres nobres e
reais.
Lorain Crest: Um dos seis membros do Sagrado
Séquito, ami­ga de Sir Galian Berethnet A senhora Lorain
é recordada em Inys como a Cavaleira da Justiça.
Nunca Rainha: Cognome da Princesa Sabran de Inys,
filha de Marian IV Ela era a vigésima quarta mulher real
da Casa de Berethnet, mas morreu ao dar à luz a futura
Rosarian II antes que pudesse ser coroada.
Rosarian I (a Maçã de Todos os Olhos): Décima
primeira ra­inha da Casa de Berethnet O seu reinado
popular integrou tra­dições de Yscalin — o reino do seu
pai, Isalarico IV
Rosarian II (a Arquiteta de Inys): Vigésima quarta
rainha da Casa de Berethnet. Era uma arquiteta talentosa
que viajou muito na juventude, enquanto ainda era
princesa. Rosarian projetou pessoalmente muitos
edifícios em Inys, incluindo a torre do reló­gio de mármore
do Palácio de Ascalon.
Rosarian IV (a Rainha Ondina): Trigésima quinta
rainha da Casa de Berethnet, mãe de Sabran IX de Inys.
Foi assassinada através de um vestido envenenado.
Rothurt Beck: Conde de Goldenbirch. Carnelian III de
Inys apaixonou-se por ele, mas ele já era casado.
Sabran V: Décima sexta rainha da Casa de
Berethnet. O seu reinado marcou o início do Século do
Descontentamento, que viu três rainhas polémicas de
seguida. Era conhecida pela sua crueldade e estilo de
vida extravagante.
Sabran VI (a Ambiciosa): Décima nona rainha da
Casa de Berethnet. Mais famosa por trazer Hróth para o
Reino das Virtudes através do seu casamento por amor
com Bardholt Hraustr. A sua coroação encerrou o Século
de Descontentamento. Sabran e Bardholt foram mortos
por Fýredel, deixando a sua fi­lha, Glorian III, para
enfrentar a Ascenção das Sombras.
Sabran VII: Vigésima primeira rainha da Casa de
Berethnet. Filha de Glorian III de Inys. Foi prometida a
Haynrick Vatten, Regente de Espera de Mentendon, no
dia em que nasceu. Depois da sua morte e da sua própria
abdicação, Sabran casou-se com a sua principal Dama do
Leito Real, a senhora Brilda Glade.
Sahar Taumargam: Uma princesa do Ersyr que se
tornou rainha consorte de Yscalin após o seu casamento
com Sigoso III. Irmã de Jantar I do Ersyr. Morreu em
circunstâncias suspeitas.
Wulf Glenn: Amigo e guarda-costas de Glorian III de
Inys. Um dos cavaleiros mais famosos da história de
Inysh, um ideal de coragem e nobreza. Ancestral da
senhora Arbella Glenn.

PERSONAGENS NÃO HUMANAS


Aralaq: Um ichneumon, criado no Priorado da
Laranjeira por Eadaz e Jondu uq-Nāra.
Dragão Imperial: Líder de todos os dragões
lacustres, eleito por meios misteriosos. O Dragão
Imperial atual é uma fêmea nascida no Lago das Folhas
Douradas em 209 EC. Tradicionalmente, o Dragão
Imperial aconselha a família real humana do Império dos
Doze Lagos e escolhe qual dos seus herdeiros herdará o
trono.
Fýredel: Líder do Exército Draconiano, leal ao
Inominável e conhecido como sendo a sua asa direita.
Liderou uma campanha implacável contra a humanidade
em 511 EC. Alguns dizem que emergiu do Monte do
Pavor ao mesmo tempo que o Inominável, enquanto
outros acreditam que ele emergiu ao mesmo tempo que
os seus irmãos, durante a Segunda Grande Erupção.
Inominável: Um enorme wyrm vermelho, criado de
uma pro­liferação de siden no centro do mundo. É
considerado a primeira criatura a emergir do Monte do
Pavor e é o senhor do Exército Draconiano, que foi criado
para ele por Fýredel. Pouco se sabe sobre o Inominável,
mas presume-se que o seu objetivo final era semear o
caos e conquistar a humanidade. O seu confronto com
Cleolind Onjenyu e Galian Berethnet em Lasia em 2 AEG
tornou-se um fundamento da religião e da lenda no
mundo inteiro.
Kwiriki: Os seiikines acreditam ter sido o primeiro
dragão a ter um cavaleiro humano, adorado como uma
divindade. Esculpiu o Trono do Arco-Íris — agora
destruído — com o seu chifre. Os seiikines acreditam que
Kwiriki partiu para o plano celestial e que enviou o
cometa que acabou com a Grande Desolação. As
borboletas são suas mensageiras.
Nayimathun das Neves Profundas: Um dragão
lacustre que lutou na Grande Desolação. Uma errante por
natureza, é agora membro da Alta Guarda do Mar de
Seiiki.
Norumo: Um dragão seiikine e membro da Alta
Guarda do Mar de Seiiki.
Orsul: Um dos cinco Sombras Ocidentais que
lideraram o Exército Draconiano durante a Ascensão das
Sombras.
Parspa: A última hawiz conhecida — uma espécie de
pássaro gigante comedor de plantas, nativo do Sul.
Responde apenas a Chassar uq-Ispad, que a domesticou.
Sarsun: Uma águia de areia. Amigo de Chassar uq-
Ispad e mensageiro do Priorado da Laranjeira.
Tukupa (a Prateada): Um dragão-fêmea ancião
seiikine des­cendente de Kwiriki. Tradicionalmente, o
General do Mar de Seiiki é seu cavaleiro, mas ela
também pode carregar o Senhor da Guerra de Seiiki e
membros da sua família.
Valeysa: Um dos cinco Sombras Ocidentais que
lideraram o Exército Draconiano durante a Ascensão das
Sombras.
Glossário

Alabarda: Arma seiikine bimanual com uma lâmina


larga e curva numa das extremidades.
Baldaquino: Um dossel ornamentado que se ergue
sobre o meão de um santuário.
Barda: Armadura do cavalo.
Bodmino: Um gato-selvagem, conhecido por vaguear
pelos pântanos de Inys. A sua pelagem é quente e,
devido à sua raridade, cara.
Broquel: Pequeno escudo redondo.
Brulote: Navio de guerra mêntico com um
mecanismo de relógio que acende um fusível e provoca
uma explosão maciça.
Carcanete: Um colar ou corrente adornada com joias.
Charamela: Instrumento de vento de madeira.
Confite: Sementes de funcho cobertas de açúcar.
Dipsas: Veneno de uma pequena cobra nativa do
Ersyr.
Dote: Transferência de dinheiro aquando do
casamento.
Eachy: Vaca-marinha.
Eria: Um imenso deserto de sal para lá do Portão de
Ungulus. Não se sabe de ninguém que o tenha
atravessado e sobrevivido.
Erva-gato: Valeriana.
Escano: Um assento de madeira estofado,
semelhante a um sofá. Pode não ser estofado nas
famílias mais pobres.
Escudeiro: Um assistente ao serviço de um
cavaleiro ou de um cava­leiro errante, geralmente com
idades compreendidas entre os catorze e os vinte anos.
Esmalte: Vidro de cobalto azul-escuro profundo.
Faixa: Banda ou correia decorativa, incrustada com
joias, usada à volta das ancas como cinto.
Febre das Rosas: Febre do feno.
Fogo Noturno: Bioluminescência, causada por
fungos em decomposição.
Fustão: Tecido grosso de algodão, com pelo de um
dos lados, utilizado como colcha.
Gibão: Um casaco justo com mangas compridas e
colarinho alto.
Górnia: Peixe que encontra o seu alimento nas
profundezas do mar. A palavra é usada em Inys como um
insulto.
Grialina: Uma flor de Inys. A seiva que produz é
valiosa: combinada com água, forma um creme espesso
que limpa e aromatiza os cabelos. Quando preparada
corretamente, a sua raiz induz o sono.
Haithwood: Floresta primitiva ao norte de Inys que
divide as provín­cias dos Prados e dos Lagos. Está
associado ao legado da Dama da Floresta.
Halgalant: O Além na religião das Virtudes da
Cavalaria. Diz-se que foi criado no céu por Sir Galian
Berethnet após a sua morte. Está associado à imagem de
um belo castelo rodeado de terrenos abundan­tes, onde o
Rei Galian recebe os justos à volta da sua mesa.
Herigauta: Peça de vestuário utilizada pelos
sanctários em Inys, geral­mente feita de tecido verde e
branco. Há quem acredite que as cores representam as
folhas e as flores do espinheiro.
Informador: Espião.
Jardim Ossário: Lugar onde se enterram ossos,
geralmente situado num santuário.
Manganela: Um dispositivo semelhante a uma
catapulta. Outrora utilizado durante os cercos a cidades,
foi reaproveitado para ser usado contra o Exército
Draconiano durante a Grande Desolação.
Meão: O centro elevado de um escudo. Em Inys,
esta designação é atribuída à plataforma situada no
centro de um santuário, onde o sa­cerdote profere as suas
pregações e onde se realizam as cerimónias.
Monosso: Osso de ichneumon. É usado pelo
Priorado da Laranjeira para fazer arcos.
Morgano: Língua originária da ilha inysh de Morga.
Munguna: Presume-se que seja a herdeira do
Priorado da Laranjeira.
Neblina Mental: Um termo inysh para depressão
ou desânimo, co­mum entre as rainhas Berethnet.
Ondina: Velho termo morgano que designa seres
sereianos lendários.
Orris: Íris.
Pajem: Servente de um palácio real inysh,
geralmente com idade entre os seis e os doze anos.
Entregam mensagens e prestam serviço a nobres.
Palanquim: Cabina suportada por varas horizontais
para o transporte de pessoas sobre os ombros.
Pargh: Um pano enrolado à volta do rosto e da
cabeça para manter a areia afastada dos olhos, mais
frequentemente utilizado no Ersyr.
Partasana: Uma arma inysh semelhante a uma
lança.
Pássaro chorão: Pássaro preto seiikine com a voz de
um bebé a cho­rar. Reza a lenda que uma imperatriz
seiikine enlouqueceu quando o ouviu. Há quem diga que
pássaros chorões são possuídos pelos espíri­tos de nados-
mortos, enquanto outros acreditam que o seu canto pode
provocar abortos. Este facto levou à sua caça e
perseguição ao longo da história de Seiiki.
Pedra do Sol: Cristal incolor extraído em Hróth,
utilizado pelos ma­rinheiros do mundo antigo para
localizar o sol num dia nublado. A Pedra do Sol é
tradicionalmente cortada na forma de uma flor de
laranjeira e incrustada nos anéis oferecidos às Damas
Vermelhas do Priorado da Laranjeira. Simboliza a ligação
entre uma Dama Vermelha e a luz da árvore, e a sua
capacidade de a encontrar sempre.
Pestilência: Peste bubónica. Outrora uma ameaça
séria, foi praticamente extinta.
Pomar dos Deuses: A vida após a morte na religião
politeísta domi­nante de Lasia.
Porco-delfim: Um golfinho ou uma toninha.
Priorado: Um edifício onde os cavaleiros das Ilhas
de Inysca se reu­niam em tempos antigos. A eles sucedeu
o santuário.
Proteção: Feitiço protetor que requer siden para a
sua criação. Existem dois tipos de proteções: as
proteções de terra e as proteções de vento. Uma
proteção de terra pode ser fixada em terra, madeira ou
pedra e alerta a maga quando alguém se aproxima. Uma
proteção de vento, que requer mais siden, é uma barreira
contra o fogo draconiano.
Rato-de-carvalho: Espécie de esquilo.
Samite: Material caro e pesado utilizado em
ornamentos e cortinados.
Santuário: Um edifício religioso em Inys, onde
aqueles que acreditam nas Seis Virtudes da Cavalaria
podem rezar e ouvir ensinamentos. Os santuários
desenvolveram-se a partir dos antigos priorados, onde os
cavaleiros iam em busca de conforto e orientação. A
câmara principal de um santuário é redonda como um
escudo e nas imediações costu­ma haver um jardim
ossário.
Sangue de caramujo: Corante azulado, extraído da
concha de ca­ramujos do Mar do Sol Trémulo, utilizado em
tintas e cosméticos seiikines.
Selinyi: Uma antiga língua do Sul que se supõe ter
tido origem para lá de Eria. Com o passar do tempo, foi
permeando os vários dialetos de Lasia, mas na sua forma
original ainda é a língua da Casa de Onjenyu e das
senhoras do Priorado da Laranjeira.
Siden: Nome dado à magia terrestre. Tem origem no
Ventre de Fogo e é canalizada através das árvores siden.
É equilibrada pelas sterren.
Sidra de Pera: Bebida típica ligeiramente alcoólica. A
cidade de Córvugar, em Yscalin, produziu uma variedade
famosa com peras vermelhas que inspirou a versão de
Inys.
Sobretúnica: Peça de vestuário feita de cabedal.
Pode ser usada isoladamente ou como uma camada
adicional por baixo de uma peça de vestuário mais
formal.
Sóis: Moeda do Ersyr.
Sol da Meia-Noite: Na escola de alquimia ensinada
a Niclays Roos, o sol da meia-noite (também conhecido
como sol vermelho ou Sol de Rosarian) representa a
etapa final da Grande Obra. O sol branco, que precede o
vermelho, é um símbolo de purificação após a primeira
etapa, a putrefação.
Sterren: Nome dado à magia sideral, procedente da
poeira estelar da Estrela de Crina Longa.
Toucado: Adorno ou acessório em formato de coração
usado na cabe­ça pelas mulheres nas províncias do norte
de Inys.
Ventre de Fogo: O núcleo do mundo. É a fonte do
siden e o local de nas­cimento do Inominável e dos seus
seguidores, os Sombras Ocidentais.
O siden é extraído naturalmente do Ventre de Fogo
através das árvores de siden como parte do equilíbrio
universal, mas as bestas draconianas — resultado do
desequilíbrio — surgem pela Montanha do Pavor.
Vertugado: Saia em forma de aro, reforçada com
osso de baleia, usada por baixo dos vestidos inysh e
yscali para lhes conferir uma forma caraterística de sino.
Viseira: Máscara de veludo forrada de seda. Quem a
usa tem de mor­der uma conta para a manter no sítio, o
que o impede de falar.
Wisteria: Glicínia. Floresce em abundância no verão.
Wyverling: Um wyvern jovem ou de tamanho
pequeno.
Wyvern: Criatura draconiana alada de duas patas. Tal
como os Sombras Ocidentais, os wyverns são originários
do Monte do Pavor. Fýredel cruzou-os com outros animais
para criar a infantaria do seu Exército Draconiano. Um
exemplo é a cocatriz. Cada wyvern está ligado a um
Sombra Ocidental. Se o Sombra Ocidental morrer, a
chama dos seus wyverns extingue-se, tal como a chama
de qualquer criatura descendente desses wyverns.
Cronologia

ANTES DA ERA COMUM (AEC)


2 AEC: A Primeira Grande Erupção do Monte do Pavor.
O Inominável emerge do Ventre de Fogo e estabelece-se
na cidade lasiana de Yikala, trazendo com ele a peste
draconiana
O Inominável é vencido e desaparece
O Priorado da Laranjeira é fundado

ERA COMUM (EC)


1 EC: Fundação de Ascalon
279 EC: A Corrente do Reino das Virtudes é formada
quando Isalarico IV de Yscalin se casa com Glorian II de
Inys
509 EC: A Segunda Grande Erupção do Monte do
Pavor dá origem aos Sombras Ocidentais e seus wyverns

Fýredel cria o Exército Draconiano

511 EC: A Ascensão das Sombras, ou Grande


Desolação, começa e a praga draconiana regressa ao
mundo
512 EC: A Casa de Noziken cai. A Ascensão das
Sombras, ou Grande Desolação, termina com a chegada
da Estrela de Crina Longa
960 EC: Niclays Roos chega à corte de Edvart II de
Mentendon e co­nhece Jannart utt Zeedeur
974 EC: A Princesa Rosarian Berethnet é coroada
Rainha de Inys
991 EC: Morre a Rainha Rosarian IV A sua filha, a
princesa Sabran, é coroada rainha e entra no seu período
de menoridade. Tané inicia oficialmente a sua educação e
treino para a Alta Guarda do Mar
993 EC: Jannart utt Zeedeur morre, deixando a sua
companheira, Aleidine Teldan utt Kantmarkt, viúva.
Edvart II de Mentendon e a sua filha morrem da
enfermidade suada alguns meses depois. Edvart é suce­‐
dido pelo tio, Leovart
994 EC: Morre a Rainha Sahar de Yscalin, deixando a
Princesa Marosa Vetalda como única herdeira do Rei
Sigoso
995 EC: A menoridade da Rainha Sabran termina.
Niclays Roos torna-se o seu alquimista da corte
997 EC: Ead Duryan chega à corte. Tané conhece
Susa.
998 EC: Niclays Roos é banido da corte para o posto
de comércio mêntico de Orisima, em Cabo Hisan
1000 EC: A celebração dos mil anos do governo
Berethnet
1003 EC: Truyde utt Zeedeur chega à corte de Inys.
Fýredel acorda sob o Monte Fruma e assume o controlo
de Cárscaro. Sob as suas ordens, Yscalin declara lealdade
ao Inominável
1005 EC: Começa a história de O Priorado da
Laranjeira. Tané tem deza­nove anos, Ead tem vinte e
seis, Loth tem trinta e Niclays tem sessenta e quatro.
Agradecimentos

O Priorado da Laranjeira é o romance mais longo que


já publiquei e demorei mais de três anos a terminá-lo.
Escrevi as primeiras palavras em abril de 2015 e concluí
a última versão em junho de 2018. Quando se parte
numa aventura como esta, é preciso um exército de
pessoas que nos ajudem a chegar ao fim.
A vocês, meus leitores, obrigada por mergulharem
neste mundo co­migo. Sem vocês, sou apenas uma
rapariga com uma cabeça cheia de ideias curiosas.
Lembrem-se, quem quer que sejam e onde quer que
estejam, o mundo da aventura nunca está fechado para
vocês. Sois o vosso próprio escudo.
Agradeço ao meu agente, David Godwin, que
acreditou neste livro tanto quanto acreditou cm The Bone
Season E que está sempre presente para me dar
confiança e apoio. E a Heather Godwin, Kirsty McLachlan,
Lisette Verhagen, Philippa Sitters e ao resto das pessoas
da DGA por te­rem sido fantásticas durante todo o
processo.
Ao meu Sagrado Séquito de editores: Alexa von
Hirschberg, Callum Kenny, Genevieve Herr e Marigold
Atkey. Fizeram um trabalho extraor­dinário para trazer ao
de cima o melhor d’O Priorado. Muito obrigada pela
paciência, sabedoria e empenho, e por compreenderem
tudo o que eu queria alcançar com esta história.
A equipa da Bloomsbury International: Alexandra
Pringle, Amanda Shipp, Ben Turner, Garrie Hsieh, Gesca
Hopwood, Cindy Loh, Cristina Gilbert, Francesca Sturiale,
Genevieve Nelsson, Hermione Davis, Imogen Denny, Jack
Birch, Janet Aspey, Jasmine Horsey, Josh Moorby,
Kathleen Farrar, Laura Keefe, Laura Phillips, Lea
Beresford, Marie Goolman, Meenakshi Singh, Nancy
Miller, Sarah Knight, Phil Beresford, Nicole Jarvis, Philippa
Cotton, Sarah Mercúrio, Trâm-Anh Doan e todos os
outros: obrigada por continuarem a publicar os frutos da
minha peculiar imaginação. É um sonho e um privilégio
trabalhar com vocês.
A David Mann e Ivan Belikov, os talentos
responsáveis pela magní­fica capa. Obrigada a ambos
pela atenção aos detalhes, por captarem tão bem a
essência da história e por ouvirem atentamente as
minhas sugestões.
A Lin Vasey, Sarah-Jane Forder e Verónica Lyons, que
se submergi­ram na busca de pérolas no mar que é este
livro, para pescar tudo o que me tinha escapado.
A Emily Faccini, pelos mapas e ilustrações que
tornaram O Priorado tão belo.
A Katherine Webber, Lisa Lueddecke e Melinda
Salisbury: lembro-me perfeitamente de me terem dito
que mal podiam esperar para ver o livro do dragão sobre
o qual eu estava sempre a fazer comentários enig­‐
máticos. O vosso forte apoio e entusiasmo pelo Priorado
deu-me o ímpeto de que precisava durante meses, e
depois anos. Teria demorado muito mais tempo a
terminar se não soubesse que vocês estavam lá, à
espera de mais um capítulo. Obrigada. Adoro-vos.
A Alwyn Hamilton, Laure Eve e Nina Douglas, a
minha equipa em Londres. Obrigada por todos os cafés,
pelas gargalhadas e pela procras­tinação nos dias de
escrita, e por me injetarem a força de vontade para
escalar a montanha interminável de versões estruturais
no meu portátil.
As pessoas maravilhosas — como Dhonielle Clayton,
Kevin Tsang, Molly Night, Natasha Pulley e Tammi Gill —
que me ajudaram com feedback e conselhos sobre vários
aspetos d’O Priorado. Obrigada pelas vossas ideias e
generosidade.
A Claire Donnelly, Ilana Fernandes-Lassman, John
Moore, Kiran Millwood Hargrave, Krystal Sutherland, Laini
Taylor, Leiana Leatutufu, Victoria Aveyard, Richard Smith
e Vickie Morrish, todos amigos fantás­ticos e grandes
apoiantes.
À Dra. Siân Grønlie, que me apresentou o inglês
antigo e despertou o meu interesse pela etimologia.
A todos os fãs da minha série The Bone Season,
incluindo os seus incrí­veis apoiantes: obrigado por terem
sido tão pacientes enquanto eu estava a fazer outra
coisa, e por me acompanharem numa nova viagem.
Aos livreiros, bibliotecários, revisores e bloggers em
todas as platafor­mas, aos outros escritores e aos
amantes de livros em geral. Tenho muito orgulho em
fazer parte desta comunidade de grande coração.
O Priorado refuta, incorpora, reimagina e/ou foi
influenciado por ele­mentos de vários mitos, lendas e
obras históricas de ficção, incluindo o conto de
Hohodemi, tal como é contado no Kojiki e no Nihongi; A
Rainha das Fadas, de Edmund Spenser; e várias versões
da história de São Jorge e o Dragão, incluindo A Lenda
Dourada, de James de Voragine; A História Renomada
dos Sete Campeões da Cristandade, de Richard Johnson;
e o Codex Angelicus.
Devo também grande parte da minha inspiração a
acontecimentos e situações reais do passado. Estou
profundamente grata aos historiado­res e linguistas cujas
publicações me ajudaram a decidir como integrar estes
acontecimentos n'O Priorado, como construir o seu
mundo e como escolher os melhores nomes para os seus
locais e personagens. A British Library deu-me acesso a
muitos dos textos de que necessitei durante a minha
investigação. Nunca devemos subestimar o valor das
bibliotecas, nem a necessidade urgente de as proteger,
num mundo que tantas vezes parece esquecer a
importância das histórias.
Os meus agradecimentos finais vão para a minha
incrível família, especialmente para a minha mãe,
Amanda Jones — a minha melhor amiga —, que me
inspirou a tornar este mundo tão alto quanto vasto.

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