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Katharine Ashe
Sinopses
Devonshire, 1803
Londres, 1818
Compatriotas britânicos:
Os cidadãos de nosso grande reino não devem continuar
vendo que o dinheiro que ganham com seu suor é esbanjado
pelos ricos ociosos. Minha missão continua! Enquanto
solicitava informação sobre o misterioso clube para cavalheiros
localizado em 14 V de Dover Street e conhecido como Clube
Falcon, descobri algo muito intrigante. Um de seus membros é
um homem do mar e o apelidam de Águia Pescadora.
Pássaros em todos os lugares! Qual será o próximo
apelido, Mamãe Pata?
Infelizmente, não consegui descobrir o nome de seu navio.
Mas não me surpreenderia nada que fosse um membro da
Armada ou um corsário. Outra despesa em nome dos cofres
públicos para apoiar os interesses pessoais daqueles que já
gozam de privilégios imensuráveis.
Não descansarei até que todos os membros do Clube
Falcon sejam descobertos ou, devido a minha investigação, até
que o dito grupo se debande por temor à identificação.
LADY JUSTICE
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Estimado senhor:
Deixei a nota com o nome codificado em um lugar onde LJ
possa encontrá-la e não perder o tempo perseguindo sombras.
Não tenho dúvidas de que seus bolsos estão tão vazios quanto
sua bravata, de modo que deve manter contente seu editor.
De fato, o nome do código de Águia Pescadora pode dar-
se por perdido. Não tive comunicação direta com ele há quinze
meses. O Almirante me informou que embora siga ostentando
uma patente de corsário, não tem notícias dele desde que
acabou esse assunto escocês faz mais de um ano. Até
trabalhando para o Clube se regia por suas próprias normas.
Eu suspeito que ele renunciou, como já pensávamos. Devemos
agradecer, pelo menos, agora por ser leal à Coroa e não ao seu
inimigo.
A seu serviço, PEREGRINO
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4Boldrié ― Correia usada por militares cruzado no peito, para prender a arma;
talabarte.
franzida, um nariz fino e bronzeado e um par de olhos
entrecerrados, com rugas nos cantos. Olhos que o
observaram da cabeça aos pés. A mulher ergueu uma
sobrancelha e seus lábios brilharam com um sorriso irônico.
— Então, este é o famoso Jin Seton que tanto ouvi
falar... O Faraó. — Sua voz se deslizava como uma vela sobre
um mastro bem engordurado. As espessas pestanas se
agitaram enquanto o observava de novo, embora mais rápido
nessa ocasião. Ela balançou a cabeça e fez beicinho. — Que
decepção.
Mattie quase se engasgou. Jin entrecerrou os olhos.
— Como sabe quem sou?
— Seus homens. Eles se gabavam de você, mesmo que
estivesse perdendo a luta. — Riu e colocou os braços sobre os
quadris antes de voltar-se para os homens que a rodeavam.
— Olhem, meninos! A Armada britânica enviou seu pior
pirata para me apreender.
Os marinheiros aclamaram, e os aplausos e assobios se
estenderam pelo convés. Os homens se aproximaram com
grandes sorrisos, deixando a descoberto suas dentaduras
maltratadas, e rindo a gargalhadas, brandindo mosquetes e
espadas. Ela ergueu a mão e houve silêncio, tudo o que você
podia ouvir era o golpe das ondas contra a quilha do
bergantim e o da chuva contra as velas e a madeira. A mulher
cravou o olhar, tão afiado como uma faca, em Jin.
— Suponho que deveria me sentir adulada... — Sua voz
era como o veludo.
Por um instante, um momento totalmente inusitado, Jin
sentiu um nó na garganta. Nenhuma mulher deveria falar
com essa voz. Salvo quando estava na cama.
— Por que você afundou meu navio? — Adotou a nota de
aço que costumava usar quando era mais jovem sem nenhum
esforço. — Era a embarcação mais rápida do Atlântico. Que
tipo de corsário é que afunda semelhante botim? Poderia
haver ficado ou havê-la vendido. Teria ganhado bastante
dinheiro.
A mulher arqueou as sobrancelhas.
— É verdade, eu poderia ter ficado, capitão inglês. Ou
havê-la vendido. Mas me dava á impressão de que o capitão
de Cavalier não ia permitir que passasse a outras mãos.
Equivoquei-me? — Sorriu. — Claro que não. Assim que
recuperasse a liberdade, o capitão me perseguiria para
recuperá-la, de modo que teria que afundar outro de seus
navios até que se afastasse de minha costa. Não, obrigado. —
Seus olhos reluziram.
— Nossos países já não estão em guerra. Você deveria
ter nos deixado tranquilos assim que percebeu quem nós
éramos.
— Não me deram alternativa, dispuseram a abordar
meu navio sem convite.
Jin meneou a cabeça, assombrado.
— Você nos abordaria. O que fazem espreitando como
piratas no abrigo da chuva?
— Procuramos tolos ansiosos pela fama — respondeu
ela com tranquilidade — Que tipo de imbecil ataca um navio
pirata?
O tipo de imbecil que tinha testemunhado como os pés
de um homem foram pregados em uma tábua entre outras
torturas inimagináveis. O tipo de imbecil que uma vez foi tão
cruel como aqueles piratas e que naquela época tentavam
expiar esses pecados. Jamais permitiria que um navio pirata
sulcasse os mares livremente.
— Não importa — ela continuou ao mesmo tempo em
que dava de ombros, — ver como se afundava o todo-
poderoso Cavalier foi tão divertido que não pude resistir.
Jin viu tudo vermelho. Piscou para tentar livrar-se da
raiva. Doía-lhe o estômago. Por todos os infernos, morria de
vontade de ter uma faca e uma pistola. Ou possivelmente
morria por uma garrafa de rum.
A mulher esboçou um sorriso desdenhoso.
«Duas garrafas», corrigiu-se. Rumorejava-se de que ela
era uma marinheira muito boa para ser uma mulher, mas
ninguém lhe havia dito que estava louca.
— O que vai fazer com minha tripulação? — Tremia-lhe
a voz.
Por todos os infernos!
A mulher voltou a arquear uma sobrancelha.
— O que acha que vou fazer com eles? Vendê-los?
Jin ficou tenso.
— Não o faria. Não poderia vender nem a metade.
— É obvio que não vou fazê-lo, tolo. — Apesar das
palavras, sua voz permaneceu aveludada.
— Então, o que?
Uma rajada de ar fez com que a chuva caísse de lado. O
bergantim se inclinou e a mulher separou ainda mais as
pernas. Viu que ela apertava os lábios.
— Desembargar-lhes-ei esta noite quando atraquemos
no porto. Eles o levarão ao cárcere e o chefe do porto decidirá
o que fazer com você.
— O chefe do porto? — resmungou Mattie.
— O que acontece, homem? Quer ficar a bordo? — Ela
olhou para ele com um sorriso torto. — Me viria muito bem
um gigante como você. É bem-vindo se quiser ficar e deixar
de ser senhor Faraó e não apodrecer no cárcere com os
outros.
Mattie ficou muito vermelho. Os punhos de Jin eram
doíam de vontade de estampar a mandíbula de seu timoneiro.
Mattie ficava tolo com as mulheres.
Entretanto, inspirou fundo para tranqüilizar-se. Com
esse pequeno discurso, ela revelou tudo o que ele precisava
saber. A mulher havia traído suas origens.
Ao longo de seus vinte e nove anos, Jin tinha navegado
de Madagascar para Barbados. Embebedou-se com homens
desde Cantão até Cidade do México, e tinha escutado muitos
idiomas. Nada tinha sido mais doce e delator de sua origem
que a curiosa dicção de Violet, a Vil. Se essa mulher não
tinha nascido e crescido em Devonshire, ele não era
marinheiro. Não importava que tivesse perdido a Cavalier.
Tinha encontrado seu objetivo.
Sua tripulação acreditava que ela era uma corsária para
ser capturada e conseguir recompensa, um objetivo fixado
por seu trabalho para o governo. Não o era, era uma missão
particular. Com a volta de Viola Carlyle a Inglaterra, por fim
saldaria a dívida que tinha com o homem que tinha salvado
sua vida.
— Obrigado, senhorita. — Mattie tentou fazer uma
reverência apesar das amarras. — Ficarei com meus
companheiros.
— Você — Ela olhou para Jin. — Suponho que espera
que te desate, pirata.
— Claro. E depressa.
— Já não é pirata, senhorita — resmungou Mattie. —
Não é há dois anos.
Os olhos da mulher relampejaram.
— Agrada-me chamá-lo assim — disse, arqueando uma
sobrancelha. — É evidente que não gosta. É tão arrogante
como dizem.
A mulher se aproximou dele, detendo-se a escassos
centímetros. Jogou a cabeça para trás, de modo que a aba do
chapéu ficou por cima do nariz de Jin, enquanto o observava
através das pálpebras entrecerradas. Uma cor incomum. De
um azul tão escuro que poderia dizer-se que eram violetas.
Daí vinha o apelido, sem dúvida alguma.
De perto, sua pele irradiava o calor do sol e estava
bronzeada, justamente o contrário da delicada brancura de
uma dama inglesa. Tinha os lábios mais carnudos do que
tinha suposto em um princípio, em forma de coração e com
um pequeno sinal junto ao lábio inferior. Uma chuva de
sardas salpicava seu nariz plano.
Embora não fosse tão plano. Delicado. Quase como a de
uma dama. Devolveu-lhe o olhar insolente. Viu-a franzir esse
apêndice que era quase como o de uma dama.
— Arrogante. — Ela soltou um sonoro suspiro. — E
continua me decepcionando. Eu admito que esperava muito
mais da lenda.
— Posso te dar mais se o desejar. — E o faria. Assim que
se livrasse da corda que o imobilizava, daria a Viola Carlyle
justo o que deveria ter tido quinze anos atrás.
Daria a sua família. Viola soltou uma gargalhada.
— De verdade?
— Eu posso machucá-la, mesmo com as mãos
amarradas atrás das costas. — Sua voz era grave; e seus
gélidos olhos azuis, intensos.
Em todas as histórias que Viola tinha escutado do
infame pirata reconvertido em corsário britânico, esses olhos
não foram mencionados. Entretanto, os marinheiros eram um
rebanho de néscios que não se precaviam desses detalhes.
Todos os membros de sua tripulação podiam lhe dizer a
direção exata que soprava o vento no cabo de Nantucket em
pleno dezembro ou a diferença entre o nó plano e o nó
redondo. Mas apostaria qualquer coisa que eles não sabiam
de que cor ela tinha o cabelo, mesmo que ela aparecesse com
a cabeça descoberta, e isso que era sua capitã por dois anos e
os conhecia há quinze. Os marinheiros não eram muito
observadores a esse respeito.
Uma lástima que esse não fosse seu caso. Jinan Seton
era um magnífico espécime masculino.
Sorriu.
— Eu gostaria de ver como você tenta. — Zombar de um
homem amarrado a um mastro não era muito digno. Mas sim
era divertido, sobretudo quando dito homem era muito
bonito, além de um reconhecido descarado.
— Você gostaria? — Os gélidos olhos reluziram.
— Se vanglorie e alardeie tudo o que queira, pirata. —
Viola ignorou a repentina secura de sua garganta enquanto
assinalava as cordas que o atavam. — Meus homens sabem
como fazer nós.
— Não me cabe a menor dúvida. — Sua voz era grave.
Relaxada.
Destilava muita confiança.
— Você está me desafiando? Rodeado por sessenta de
meus homens enquanto que os teus estão tão amarrados
quanto você? — Meneou as sobrancelhas.
— Por que não?
Ele bateu os dentes. E Viola sentiu uma repentina dor
no nariz. Conseguiu libertar-se e se afastou de um salto ao
tempo que levava uma mão ao rosto.
O gigante se dobrou em risada.
— Parece que não ouviu tudo o que se conta do capitão
Jin, né? Verdade, senhorita?
Viola fulminou o homem com o olhar, desceu a mão e se
aproximou de Seton novamente. Uma barba incipiente lhe
escurecia o queixo, quase negro por completo, tão molhado
como o resto dos que estavam a bordo. Estava chovendo por
três dias seguidos, uma manta de água tão densa que quase
nada era visível. Sua intenção não tinha sido a de
surpreender Cavalier. Isso tinha sido questão de sorte.
Os olhos de Seton eram tão duros como o cristal.
Talvez não tivesse sido questão de sorte depois de tudo.
Apertou os dentes.
— Não volte a fazer algo assim na vida. — Cravou-lhe
um dedo no colete encharcado. Encontrou músculos debaixo.
Embora isso fosse normal em um marinheiro. — Ou farei que
lhe atem a carranca5 da proa em um abrir e fechar de olhos.
— Desafiou-me, de fato. Percebe-se que não tinha
pensado como é devido. — O gélido azul refulgia. . Ele estava
se divertindo. Esses olhos, que estavam tão perto dos seus,
passaram por seu nariz dolorido antes de enfrentar de novo
seu olhar. Sua voz ecoou como uma tempestade de verão,
séria e um pouco ameaçadora. — Poderia ter arrancado um
pedaço.
— Ele já fez isso antes — acrescentou o gigante, de bom
humor. — E em alguns o lóbulo da orelha. Uma vez ele
arrancou o dedo de um pequeno rapaz.
Viola era incapaz de afastar o olhar desses gélidos olhos.
— Retiro o apelido de Faraó. Você é um animal.
6Adriça ou driça é um cabo que serve para içar vergas, velas e faz parte do chamado
massame fixo -. No iatismo toma muitas vezes o nome da vela a que pertence pelo que
se fala de adriça da vela grande, de genoa, ou de spinnaker. Fabricadas em canábis ou
em algodão entre a Idade Média e o Século XIX as adriças são atualmente em metal ou
numa mistura metal/fibra, onde a fibra cobre a parte interna metálica. Corda de
polipropileno.
— Bem, certifique-se de correr a voz. — Fez uma pausa.
— Mas não diga a Seton nem aos seus homens.
Louco assentiu e se afastou para cumprir suas ordens.
Viola relaxou os ombros. Quando atracassem no porto em
questão de uma hora, contaria ao chefe do porto a respeito de
um navio à deriva que disparou ao seu por engano. Diria que
tinha resgatado à tripulação a bordo e que os tinha amarrado
se por acaso quisessem armar confusão. Mas que, apesar de
tudo, ela estava convencida de que não eram perigosos.
Demônios, se não tinham sido capazes de salvar seu próprio
navio, como eles poderiam ser uma ameaça?
Os documentos de Cavalier se afundaram com ela. Sem
provas de sua origem, deteriam sua tripulação essa noite.
Mas com sua história, não os reteriam por muito tempo a
menos que Seton abrisse sua boca arrogante e proclamasse
sua identidade e a de seu navio.
Ela não teria a culpa de que o enforcassem. Deixaria
que Faraó se encarregasse disso sozinho.
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10Os bucaneiros foram piratas originários dos portos do Caribe, que inicialmente
atacavam os navios e cidades espanholas no Caribe e na América Central.
Mordeu a língua para não pronunciar as palavras que
queria.
— Não, senhora.
— Não... Capitã.
Menos mal que o sol estava se pondo muito depressa.
Porque assim não podia ver seus olhos. Olhos enormes e
escuros de longas pestanas que esse ridículo disfarce não
podia ocultar.
Olhou para os marinheiros que mantiveram o equilíbrio
na catraca.
— Senhor French, senhor Obuay, desdobrem a vela e
baixem.
Os marinheiros amarraram a vela uma vez mais e a
desdobraram, fazendo que a leve brisa agitasse o fino rasgão.
Sem voltar a olhá-la, Jin deu meia volta e atravessou o
convés em direção a cabine de proa.
— Está fazendo migalhas com a capitã, heim?
— Fecha o bico, Mattie. — Jin fez um gesto com a mão a
alguns marinheiros que estavam junto ao mastro, que se
dispuseram a descer a bandeira para passar a noite.
— Bom, este é o plano?
— É.
Agarrou a luneta do corrimão onde o tinha deixado
antes. Logo depois do amanhecer um marinheiro tinha
avistado uma vela no horizonte, de modo que ordenou a
Mattie que vigiasse durante todo o dia, com o olho atento de
Matouba no topo. Talvez fosse a mulher mais irritante dos
sete mares, mas ele não ia permitir que ninguém a tocasse.
Até que não a tivesse a salvo em seu navio, nenhuma
embarcação ia aproximar-se de Viola Carlyle... Fosse amiga
ou inimiga.
Observou o horizonte crepuscular, enquanto as
correntes faziam que a quilha11 sulcasse o mar com elegância
sob seus pés. O oceano estava limpo até onde alcançava a
vista.
— Viu algo hoje?
Mattie apoiou o corpo no corrimão enquanto limpava os
dentes com um palito.
— Peixes. Ondas. Nuvens.
— Nuvens? — O céu era uma imensidão azul salpicada
de pinceladas rosa e lavanda.
— Disse isso para comprovar algo. Parece muito
distraído ultimamente. Não sabia se daria conta.
— Mattie — replicou em voz baixa, — matei a homens
por insultos muito menos graves.
Mattie grunhiu antes de franzir seus lábios gordinhos.
— Mas não matou a nenhuma dama, verdade?
Jin se virou e pôs-se a andar para a escada que levava a
adega do bergantim. Na coberta dos canhões, cheirava a
ranço e nela se alinhavam dezesseis canhões de aço. Havia
redes penduradas, onde dormiam os marinheiros antes de
começarem a guarda noturna. Tempestade de Abril era maior
e mais velha que Cavalier. Era um bergantim feio e velho. As
tábuas rangeram sob seus pés enquanto se dirigia à sala de
11Quilha ― Parte inferior do navio, que constitui sua coluna vertebral, na qual se
apóiam todas as outras peças.
oficiais, um camarote diminuto, colado ao do capitão. E Viola
gostava de observar o anoitecer no tombadilho, de modo que
podia devolver a luneta sem uma confrontação.
Caminhou pelo estreito corredor entre os catres dos
oficiais e quase se chocou com ela.
Sem o lenço nem o chapéu que lhe ocultassem a cara,
seu rosto era um coração quase perfeito. Os cachos escuros
partiam da testa, deixando à vista uma pele delicada, uma
boca muito feminina e olhos que o olhavam como se fosse
uma espécie de monstro. Essas longas pestanas velaram seus
olhos violetas e muito devagar, como a maré, um rubor
começou a cobrir por suas bochechas.
Em perfeita sincronia, uma quebra de onda de calor lhe
assaltou a virilha.
Um inconveniente. Deveria haver se ocupado dessa
necessidade quando estava em Boston. Não necessitava que
uma mulher a bordo o fizesse comportar-se como um moço
atrevido, como um marinheiro que depois de uma longa viaje
caía de cara em cima de uma mulher bonita.
Embora não só fosse um rosto bonito. Nesse momento,
ela usava uma camisa branca de algodão. Nem capote nem
colete ocultavam as bordas da inútil roupa interior que usava
por debaixo... Uma roupa que não escondia a voluptuosa
beleza de seus seios contra a renda da camisa. Uns seios
perfeitos para as mãos de um homem.
Uma dama deveria usar mais roupa. Se essa dama em
concreto usasse mais roupa, não seria tão... Provocadora.
Enfeitiçante.
Entretanto, não necessitava que seus seios estivessem
tão perto dele para permanecer paralisado no corredor. A
curva desse lábio inferior e o sinal bastavam para paralisá-lo.
Era como se um professor tivesse pintado com carinho o
retrato de uma moça e, que parecendo ser muito perfeita,
tivesse-lhe acrescentado esse sinal para estragar sua beleza,
mas tivesse conseguido justamente o contrário.
— Não pode evitá-lo, verdade? — A voz de Viola surgiu
entre eles com um som maravilhoso.
Jin piscou. Levantou a cabeça, embora nem sequer se
deu conta de que tinha inclinado.
— Nunca pode — continuou, com o mesmo tom de voz.
Jin retrocedeu. Endireitou os ombros.
— Eu ia devolver isto. — Tirou a luneta. Sua voz soava
muito rouca.
— Roubou-o quando estava distraída e agora queria
devolvê-lo antes que te pegasse? — Arqueou uma
sobrancelha, um pouco descuidada para uma dama. —
Cuidado, Seton. Está se comportando como um pirata
nervoso.
Ele inspirou fundo e soprou.
— Vimos uma vela no horizonte esta manhã. Coloquei
um vigia.
Viola estreitou os olhos.
— E não te ocorreu me dizer isso — perguntou-lhe.
— Não voltou a aparecer.
— Acredito que está acostumado a fazer as coisas a sua
maneira.
— Gostaria de lhe evitar preocupações desnecessárias a
minha capitã quando sem dúvida tem coisas mais
importantes para cuidar.
Como pegar o espião desafortunado que estava
devolvendo a luneta porque assim poderia retornar o convés,
onde estava seu lugar e onde essa língua afiada e descarada,
junto com sua proprietária, não deveria aparecer. Tinha o
pescoço acalorado. E sentia a tensão em outras partes de seu
corpo. Entretanto, nunca tinha se deixado dominar pela
luxúria. Não permitiria que acontecesse nesse momento.
Entretanto, empurrava-o algo mais que a luxúria. Sabia
apesar de que quisesse negá-lo. Essa confiança tão atrevida,
essa língua descarada, seus êxitos face aos contratempos que
tinha proporcionado à vida... Inclusive a devoção de seus
tolos tripulantes indicava que era uma mulher excepcional.
Uma mulher que não se parecia com nenhuma outra que
tivesse conhecido.
E tinha conhecido a muitas.
— Tem muitas responsabilidades — murmurou. Ela
arqueou ainda mais a sobrancelha.
— Está adoçando-o mais que o necessário, não acha,
marinheiro?
— Estou me esforçando para servir a minha capitã,
como prometi. — E o fazia. Mas não como ela esperava.
Claro que um juramento era um juramento, e nem a
estranha confusão que o embargava nem as brincadeiras de
uma pequena mulher como essa arruinariam o trabalho de
vinte e dois meses.
— Voltando à tripulação contra você? Jin franziu o
cenho ao escutá-la. — French e Sam — explicou ela. — A vela
quebrada.
— Fiz o que você me ordenou.
Viu-a apoiar as mãos em seus arredondados quadris.
— Mas sabem que não estavam de acordo.
— Para mim não importa o que eles acreditam. Um
capitão está em seu direito de contradizer a ordem de seu
segundo de bordo quando lhe convier.
— Capitão?
Se ela não fosse uma mulher...
— Capitã.
Viu-a entrecerrar os olhos. Mas o gesto não lhe subtraiu
beleza. Por todos os demônios! Oxalá fosse um pirralho plano
que pudesse derrubar com um soco.
— É incapaz de dizê-lo, verdade? — Elevou a voz um
pouco. — Não suporta me chamar «capitã». Mata-se em
imaginá-lo sequer, filho arrogante de um egípcio.
O temperamento de Jin, reprimido durante dias,
escapou de suas amarras. Aproximou-se dela de modo que
mal ficou espaço entre seus corpos e cravou o olhar em seu
rosto.
— Ouça, bruxa presumida, posso estar sob seu
comando, mas não tenho por que agüentar...
— Bruxa presumida? Bruxa? — repetiu ela, a voz quase
um grito. — Acredito que nenhum homem se atreveu a me
chamar assim na vida.
— Talvez se algum tivesse feito, não seria tão...
— Como sabe se estou presumida ou não?
— Vejo-o no comportamento de seus homens.
— Te adverti de que você não gostaria.
— Que eu não gostaria do que? — Seus olhos
relampagueantes? Seus lábios carnudos? A mecha rebelde
que caía pela testa, que ocultava sua perfeição e aumentava
seu atrativo ao mesmo tempo?
— Servir a meus pés.
A seus pés. Em cima. Como ela quisesse. E tendo em
conta seu temperamento, suspeitava que fosse gostar
bastante. Dadas às circunstâncias, gostava da idéia mais do
que deveria. O brilho beligerante de seus olhos lhe cravou
diretamente na virilha.
— Você não consegue suportá-lo, presunçoso corsário
de meia tigela. — Esboçou um sorriso satisfeito. — Ahran.
Isso te pegou.
Em certo sentido...
Jin inspirou fundo para acalmar sua raiva e sua
excitação ao mesmo tempo.
— Não sou um corsário de meia tigela. Sou um corsário
legítimo.
— Acha que porque o governo britânico te deu a patente
de corso você já não tem os instintos de um pirata?
A excitação desapareceu de repente, como se lhe
tivessem jogado um cubo de água gelada.
— Sim.
— Demonstre-o.
Agarrou-lhe a mão, que estava fechada em punho, e
separou seus dedos. em seguida, colocou-lhe a luneta na
palma dela e a obrigou a fechar os dedos.
— Não tomo o que não me pertence por direito. —
Soltou-a.
Viola tinha uma expressão aturdida nos olhos e a
respiração, agitada. A reação parecia excessiva, mas ele
gostava. Aproximava-se mais ao medo que a atitude que
tinha demonstrado antes.
— - Você diz por que eu sou uma mulher — afirmou
com uma nota trêmula em sua aveludada voz. — Alguns
homens são incapazes de aceitar ordens de uma mulher.
— Digo-o porquê você é uma bruxa. E eu não sou como
a maioria dos homens.
Dito isso, ele partiu. Se ele tivesse ficado no corredor um
instante mais, teria sucumbido à tentação de lhe contar a
verdade.
Não se tratava de que fosse uma mulher, uma mulher
muito bonita com lábios carnudos que imaginava realizando
todos os tipos de coisas que não tinham nada a ver com
insultos. Não se tratava de que ele tivesse sido um pirata a
maior parte de sua vida. Nem sequer se tratava de que
prometeu a si levá-la a Inglaterra acontecesse o que
acontecesse. Tratava-se de que ao longo dos dois anos que
tinha passado procurando uma menina que tinha sido
seqüestrada de sua casa, precaveu-se de algo um pouco
perturbador. Algo sobre o que raramente se permitia meditar.
Viola tinha um lar para retornar. Tinha uma família. O
fato de que nesse momento o negasse, inclusive depois de
tantos anos, e de que vivesse como se a família que a adorava
não existisse, o enfurecia.
Sim, estava furioso. Com uma mulher que ele mal
conhecia.
Quando jovem, a raiva o tinha consumido. Entretanto,
durante uma década inteira tinha conseguido dobrar essa
raiva e utilizá-la para algo útil. Mas agora a ira o olhava com
o rosto de uma mulher teimosa que não compreendia que o
presente que ela desprezava era justo o que alguns, e o que
ele, sempre tinha sonhado ter.
5
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— Capitão Jin? — Pequeno Billy serviu uma concha de
sopa de algo que parecia guisado em uma terrina e o
ofereceu. — Estive pensando.
Jin deixou a terrina em uma pequena mesa na sala de
jantar. O camarote que servia de cozinha não tinha nem um
metro quadrado, mas era o único lugar onde nunca tinha
visto viola Carlyle.
Tampouco tinha que haver-se incomodado em evitá-la,
ela já se encarregava disso. Estava a quatro dias lhe
transmitindo ordens através de sua tripulação. Suas palavras
deve ter lhe causado uma grande impressão. Ele só tinha que
decidir como aproveitar essa impressão para conseguir seus
objetivos. E controlar seu gênio. O desafio que lhe tinha
arrojado seguia ardendo como se o tivesse insultado. Devia
aplacar seu aborrecimento antes de voltar a falar com ela.
Encheu a colher de guisado.
— No que, Bill?
— Nos rebeldes escoceses que perseguimos no mar do
Norte. E no menino que levamos para casa antes disso, na
Espanha.
Jin engoliu o insípido guisado e levou outra colherada à
boca. O melhor seria acabar logo com o guisado, já que devia
enfrentar à senhorita Viola Carlyle. Ele não esperava uma
recusa tão forte.
Claro que deveria havê-lo feito. Embora fosse muito
tarde para lamentar-se.
— Sério? — murmurou.
— Sim, senhor. — Billy colocou uma batata sem cortar
na panela e removeu o conteúdo. — Não conseguimos um
saque, e isso que o governo relaxou bem. Mas eu queria saber
por que estamos fazendo isso.
“Por justiça. Para ajudar aos desesperados. Para servir à
Coroa. Para servir ao Clube Falcon.”
Tinham passado quase dois anos desde que abandonou
o seleto clube e zarpou em busca de uma desaparecida a
quem sua família dava por morta. Menos sua irmã.
Entretanto, Serena Savege não estava a par de sua missão,
Alex tampouco. Ele não tinha contado.
— Fizemo-lo porque Sua Majestade nos pediu isso, Bill.
— Uma verdade pela metade, embora fosse melhor que nada.
Talvez devesse haver contado uma verdade pela metade
a Viola Carlyle. Talvez ainda tivesse margem de manobra
para inventar outra história, uma que a convencesse de que o
que ele propunha era o melhor.
Não. Tinha passado muitos anos vivendo de mentiras de
um lado a outro do Atlântico. Não voltaria a começar, muito
menos com uma dama, por mais teimosa que esta fosse.
Ele tomou o cozido e colocou a tigela no balcão.
— Você gostou do guisado, senhor?
— Não, mas pelo menos consegue que seja digerível. —
Deu-lhe uma tapinha no ombro. — Obrigado, Bill.
O rosto do moço se iluminou com um sorriso irregular.
— De nada, capi.
— Billy...
— De nada, senhor Jin. — O moço piscou um olho.
Jin examinou os canhões e fez um gesto de cabeça aos
marinheiros encarregados de seu cuidado antes de subir à
coberta principal. Uma vez em cima, deteve-se. Viola Carlyle
estava sentada na proa, debaixo de umas velas cheias,
rodeada de marinheiros, com o céu azul e as ondas do mar
como cortina de fundo. Diante dela, quatro homens
formavam uma linha perfeita e estavam cantando. Cantavam
para ela.
Ao meio dia. A dez nós de velocidade com a corrente a
seu favor.
Cantando. A ela.
A canção não era nada do outro mundo, uma toada
popular muito conhecida, embora cantassem com incrível
harmonia. Era evidente que ela gostava. Jogara o chapéu
para trás, deixando a descoberto grande parte de seu rosto.
Sorria enquanto olhava aos marinheiros, um a um, com o sol
refletido em seus olhos.
Por um instante, Jin foi incapaz de mover-se, assaltado
por uma quebra de onda de desejo. Nos quatro dias em que
ele mal a tinha visto não se permitiu pensar em quão bonita
era.
Era óbvio que seus homens pensavam nisso naquele
momento. O olhar de todos e cada um dos cantores, e de
todos e cada um dos homens que a rodeavam, estava cravada
nela. Quase quarenta homens permaneciam hipnotizados por
sua capitã, enquanto o navio sulcava as ondas, cabeceando
com força, mas sem perder velocidade, aparentemente
timoneado por fantasmas.
A canção acabou e ela começou a aplaudir ao tempo que
escutava a risada mais sincera e sensual que tinha ouvido.
Uma risada linda, carregada de inocente alegria e de prazer
incauto. Os marinheiros golpearam o chão com os pés para
mostrar sua aprovação. Mas Jin só escutava a ela.
Nesse momento, Viola desviou o olhar e o viu, e sua
alegria desapareceu no ato.
Jin sentiu um nó na garganta que lhe dificultou a
respiração. Inclusive com o cenho franzido, era atrativa. Era
atraente, mesmo jogasse faíscas pelos olhos, e ele morria por
tê-la por debaixo, por desterrar o descontentamento de seus
olhos e substituí-lo com uma veemente submissão.
Algo que não podia fazer. Pelo menos da maneira que ele
queria.
Quando Viola afastou o olhar, ele pôs-se a andar,
fazendo que os marinheiros se dispersassem para deixá-lo
passar. Os cantores se deram palmadas nas costas,
felicitando-se com ar satisfeito. Com um sorriso doce e um
tom agradável, ela os felicitou e agradeceu, fazendo que as
curtidas bochechas dos marinheiros se ruborizassem.
Quando passaram junto a ele, Jin lhes ordenou que se
encarregassem das tarefas que já deveriam estar fazendo e
seguiu para sua capitã.
— Jonah, você se lembra do problema que eu falei sobre
a noite passada e que você precisa de uma correção? —
perguntou ela a um dos homem.
O marinheiro que tinha diante si tirou a boina como um
criado de um aristocrata antes de assentir com a cabeça.
— Claro que sim, capitã. Terei que desentupir o tigre.
— Sim. — Olhou ao marinheiro com um sorriso
pormenorizado. — As coisas vão ficar muito feias se as
deixarmos presas por um longo tempo, não acha?
— Sim, capitã! Eu vou corrigi-lo em um instante. —
Assentiu com a cabeça e se afastou a toda pressa.
Jin olhou para as costas do marinheiro antes de olhar
para a mulher capaz de enviar um homem para limpar a
latrina com um sorriso feliz. Apontou para a proa.
— A que veio isto?
Ela franziu a testa e ajustou o chapéu.
— Eu também te desejo bom dia — resmungou ela. —
Que inseto te picou? Claro, que ao melhor sempre é igual de
suscetível.
— Suscetível? E é isso o que diz a mulher que me
insulta a menor oportunidade e que me evita o resto do
tempo?
— Não sou suscetível. — Desviou o olhar. — Ou não era
antes que você subisse a bordo.
— O que faziam esses homens? Vamos a toda vela.
Deveriam estar controlando que o curso não mude, não
cantando como imbecis para te agradar.
— O navio vai perfeitamente — replicou ela. — Como
pode ver.
— E se o vento tivesse mudado de repente, já teríamos
naufragado.
— Mas não mudou e seguimos navegando — disse Viola.
Seton tinha razão, mas por um instante, enquanto desfrutava
da companhia de sua tripulação e seus pensamentos lhe
davam uma trégua em não pensar nesse homem, tinha sido
feliz. E muito irresponsável. — Coloca em dúvida meus
conhecimentos sobre meu navio?
— Somente como você trata a sua tripulação. Que classe
de capitão monta um concerto indo a toda vela e com a
corrente a favor?
— Um capitão que sabe muito mais de seus marinheiros
que você. Claro que não me surpreende. — Fez gesto de
rodeá-lo, mas ele a interrompeu. — Saia do caminho, Seton,
ou te abrirei sua cabeça com a culatra de minha pistola.
— Não ameace golpear um homem que sabe muito bem
como devolver os golpes... Senhorita Carlyle.
Algo tinha trocado, e pela primeira vez desde que esse
homem com reputação de violência desenfreada subisse a
bordo de seu navio, sentiu medo. Não de que fizesse mal a
ela. Não acreditava que ele fizesse, não depois de havê-la
chamado «senhorita Carlyle» e de querer levá-la de volta a
Inglaterra, para junto de seu cunhado, que era um conde
inglês. Entretanto, a frieza tinha desaparecido de seus olhos e
tinha sido substituída por algo muito distinto. Algo
apaixonado e volátil. Em qualquer outro homem, teria
pontuado de incerteza. Inclusive de confusão. Em Jinan
Seton, tão arrogante como um pavão, assustava-a.
Tinha as mãos úmidas e frias; mas sentia algo muito
quente nas entranhas.
Tentou ignorar a sensação.
— Se voltar a me chamar assim uma vez mais em meu
navio, ordenarei que lhe atirem pela amurada ao mar.
— Se seguir capitaneando o navio como até agora,
acabaremos os dois dando um mergulho no mar.
Olhou-o com os olhos entrecerrados, mas isso só
aumentou a sensação que algo queimava em seu interior. Ela
cruzou os braços.
— É meu aniversário... A canção era meu presente.
Ele continuou igual.
— Seu aniversário.
— Sim. Faço vinte e cinco anos. A partir de hoje, sou
maior de idade. Nem sequer na Inglaterra um homem pode
ter autoridade sobre mim.
— Por isso a canção? — Apontou aos marinheiros. —
Queria reforçar sua autoridade sobre os homens?
— Administro meu navio como me agrada. Tem algum
problema com isso, marinheiro?
— Tenho-o quando você coloca toda a tripulação em
perigo. — Olhou-a no rosto com gesto inescrutável, uma
expressão que para ela era muito mais perigosa que qualquer
outra coisa. — Os trata como se fossem pretendentes.
— Trato-os como se fossem minha família. Que é o que
são. — A única família que tinha depois que seu pai a afastou
da que sempre tinha conhecido.
— Flerta com eles.
— Faço que o trabalho lhes pareça interessante.
— E por que Jonah saiu como uma castanhola para
limpar o tigre? Diga-me. A sua estupidez é supina?
— É muito leal. Ele faz o que sua capitã lhe diz com
supremo gosto, a diferença de alguns marinheiros aos que
não vou nomear, embora sabemos de quem estou falando.
Seton meneou a cabeça com expressão incrédula.
— Suponho que se ordenar a Jonah que se meta na
boca de uma baleia, fá-lo-á sem titubear.
— Pronto. Estou muito impressionada.
— O que há de errado? Teria gostado mais de uma
referência aos mitos gregos das histórias que você lê na hora
de dormirem como uma babá a seus tutelados? Não é de
admirar que eles olhem para você com os olhos de um
cordeiro morto.
A compostura de Jinan Seton começava a fraquejar.
Viola percebia na tensão de seu pescoço e na tensão de sua
mandíbula. Estava conseguindo que o frio e seguro Faraó
perdesse os nervos, e o êxito lhe subiu à cabeça como um
bom gole de gin. Sob seu atento olhar, sentia-se um pouco
embriagada. Um pouco ousada. Como a menina que foi em
outro tempo.
— Com ciúmes de sua devoção, Seton? Talvez se você
lesse, também o olhassem com olhos de cordeiro morto. —
Meneou as sobrancelhas.
— Essa não é forma de capitanear um navio. Os homens
estão meio apaixonados por você.
O coração deu-lhe um estranho salto ao escutá-lo, mas
se obrigou a encolher os ombros.
— Se funciona, por que queixar-se? — Esboçou um
sorriso zombador. — Por isso te incomoda tanto que o tenha
evitado? Você também está meio apaixonado por mim?
— Pelo amor de Deus! — Ele franziu o cenho. — Toma-
me por um completo imbecil?
— Um homem tem que ser um imbecil para apaixonar-
se por mim?
— E também meio cego e sem capacidade de raciocínio,
por não mencionar que deve ter tendências suicidas.
Isso doeu e ela não gostava que um só fio de seu cabelo
doesse. Tentou responder, revirou os miolos em busca de
uma réplica, de modo que as palavras lhe saíram sozinhas.
— Aposto que você quer que eu possa fazer você se
apaixonar por mim.
«Pelo amor de Deus!»
Seton soltou uma gargalhada seca.
— Se atreva se for capaz.
— Hah! — Maldita fora seu língua! Pensou. — Muito
bem. Apostamos? — As irresponsáveis palavras seguiam
saindo de sua boca. Entretanto, a idéia evocava algo
emocionante, algo perigoso, tentador... Algo que não deveria
sentir.
Seton ficou boquiaberto.
Santa Bárbara bendita, esses lábios a deixava louca!
Quase podia saboreá-los. Teria sabor de homem, a paixão e
força. Uma lástima que a olhasse como se tivesse escapado
de um manicômio. E, é obvio, uma lástima que ela não o
suportasse.
— Está louca — murmurou ele, assombrado. —
Verdade?
— Nunca rechacei um desafio. Como acha que cheguei
até aqui? Eu, uma simples mulher. — Apontou a proa.
— Fala sério. — Seton estreitou os olhos. — Você não
pode dizer isso seriamente.
— Dá-te medo que ganhe?
— Certamente que não.
— Pois acordemos as condições. Se eu ganhar, fico com
seu novo navio.
— Não!
— E se ganhar você, voltarei para a Inglaterra contigo.
Isso o pegou pelo pé. Viola achou difícil respirar
normalmente. Não sabia de onde tinham saído essas
palavras. Não desejava voltar para a Inglaterra.
Embora valesse a pena vê-lo retorcer-se de desconforto
enquanto ela se agarrava a ele na tentativa de seduzi-lo. Não
conseguiria, claro. Seton tinha uma pedra por coração e uma
vontade férrea, e acabaria ganhando. Mas ela sempre podia
retornar para casa depois... Depois de ver serena. Sua meia-
irmã. A condessa.
«Ai, Deus, o que eu fiz?»
— Quanto duraria a aposta? — perguntou ele no final.
— Duas semanas.
— Duas semanas?
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Há homens que se apaixonaram por mim em questão
de minutos. — Aidan sempre lhe dizia que esse era seu caso.
Seton a olhou com evidente incredulidade.
— Não me cabe a menor dúvida de que alguns homens
estão loucos como você.
Essas palavras foram humilhantes. E lhe arderam. De
fato, doeram-lhe.
Isso a irritou.
— Talvez você também esteja, escória de pirata.
— E volta aos insultos. Está perdendo seu alto caráter
moral.
— Meu caráter moral segue em alta, obrigada. Aceita a
aposta?
Seton a olhou em silêncio por um momento, com uma
expressão misteriosa nos olhos.
— Sim.
De repente, custou-lhe respirar. Entretanto, ela tinha se
metido nessa bagunça sozinha. E ia ter que tocá-lo nesse
momento, e sentir o calor que irradiava de sua pele mais uma
vez, como no corredor. Um contato que lhe tinha alterado o
sonho desde aquela noite.
Os olhos de Seton brilharam.
— Já se arrepende de sua impulsividade... Senhorita
Carlyle?
Seu coração pulou ao escutá-lo.
— Eu lhe disse que não me chame assim a bordo de
meu navio.
Essa boca perfeita esboçou um sorriso torto, e nessa
ocasião destilava segurança.
— Exponha suas condições.
Condições? Devia lhe falar com respeito e permitir a ela
toda classe de liberdades com sua pessoa. Ruborizou-se. O
olhar de Seton percorreu suas bochechas e apareceu uma
pequena ruga em seu rosto.
— Você deve permanecer a bordo em todos os momentos
— ele se apressou a dizer, — inclusive quando atracarmos em
algum porto, até no final da quinzena, a menos que eu
também desembarque. Nesse caso, acompanhar-me-á aonde
eu for. — Maldita fosse sua imagem por lhe fazer isso, por
fazer sua língua dizer coisas que não deveria e por ser tão
arrogante e tão bonito que lhe fazia água na boca.
— Muito bem.
Sob o olhar atento desses olhos azuis, seus
pensamentos se dispersaram. Mas tinha que chegar até o
final. Seu orgulho estava em jogo.
— Se desembarcar por qualquer motivo, renuncia à
aposta e eu ganho automaticamente.
— E minha parte? Se me jogar fora do navio, renuncia à
aposta e eu ganho?
— Exato. — Não o faria. Tinha suportado sua
inquietante presença durante quase duas semanas a essas
alturas. Mas esses olhos claros lhe diziam que estava
tramando algo. Tinha cometido uma tolice, um engano.
desceu a vista a seus lábios. Um engano tolo e gritante — E
no final da quinzena tem que dizer a verdade — acrescentou.
— Nada de mentir para ganhar.
— É obvio.
Ele estendeu a mão.
— Trato feito?
Quando a mão de Seton envolveu a sua, seu corpo
cobrou vida. Seu aperto era forte, e ela queria sentir essa
força em outros lugares. Queria sentir essas mãos sobre seu
corpo. Era uma desavergonhada infiel que desafiava um
homem para que a tocasse enquanto seu coração pertencia a
outro.
— No final da quinzena, Viola Carlyle, você embarcará
em meu navio e viajará a Inglaterra comigo. — Falou em voz
baixa e serena, justamente o contrário do que ela estava
sentindo por dentro.
— No final da quinzena, Seton, se arrependerá de haver
se aproximado sequer de Violet Daly.
Seton soltou sua mão e se afastou, com parcimônia, sem
ser consciente de que o ar vibrava a seu redor. Ela seguiu
onde estava, com a vista cravada em suas costas, enquanto o
via desaparecer sob a coberta, amaldiçoando-se em silêncio e
amaldiçoando-o. Far-lhe-ia a vida impossível. Obrigá-lo-ia a
abandonar o navio com suas atenções e a deixá-la em paz.
Depois, retomaria sua relação com Aidan, onde a deixaram
na última vez que ele a abraçou e disse que ela era a melhor
coisa que já havia acontecido na sua vida.
No entanto, a idéia de abraçar Aidan não acelerou seu
coração naquele momento. A Aidan precisamente, não.
7
Milady:
Meu pai, meu irmão e eu estamos encantados com seu
último panfleto sobre as Desprezíveis Condições Trabalhistas
que sofrem os trabalhadores das fábricas têxteis em
Manchester. Suas chamadas escritas são uma fonte de
inspiração para a Grã-Bretanha.
Entretanto, devo lhe pedir com todo meu respeito para
remover A Sereia do escritório.
Seu tamanho e seu estado de nudez causaram
desconforto entre nossos clientes e uma considerável falta de
concentração entre os operários da imprensa. Se for
conveniente, estarei encantado de me encarregar de sua
transferência.
Josiah Brittle
****
12Instrumento de reflexão, cujo limbo graduado ocupa a sexta parte do círculo (60º),
usado para medir a altura dos astros e suas distâncias angulares, tomadas de um
navio ou aeronave. (Medindo com um sextante a altura do Sol, determina-se a
latitude.).
13Magnolia champaca é uma árvore de folhas perenes, nativa do Sudeste Asiático e
Ásia Meridional. É muito conhecida por sua forte fragrância e tem flores amarelas ou
brancas
Caminhou até a porta de seu camarote e chamou.
Abriu-a uma mulher que não parecia absolutamente com a
capitã de um navio. Seu cabelo estava solto e seus fios
ondulados moldavam seu rosto como a mais cara da pele de
Marta Zibelina14. Ela estava usando apenas uma camisa
branca diáfana com laços desatados, que deixava à vista
grande parte de seu decote. Em uma mão segurava um livro
aberto.
Seus grandes olhos violetas olharam para ele com uma
expressão distraída, que não demorou para modificar-se.
Pestanejou várias vezes enquanto se ruborizava, e por um
instante pareceu sufocada. Não obstante, ao cabo de um
momento, desceu o livro e lhe ofereceu um sorriso feminino
um tanto calculista.
— Senhor Seton, uma visita tardia. É um prazer.
— Você sempre abre a porta para seus marinheiros
vestida assim? — Apontou a pele sedosa de seu decote que a
camisa deixava à vista, umas curvas muito tentadoras.
Porque elas eram.
Tentavam-no.
Precaveu-se de que ela esboçava um sorriso torto.
— Absolutamente. Eu estava esperando por você.
— Com insultos e fanfarronice seria mais fácil me
convencer que abandonasse o navio.
— Posso ganhar a aposta de duas formas.
****
16Praça inferior da Marinha, que a bordo faz a limpeza e ajuda os marinheiros nos
diferentes trabalhos; aprendiz.
chegaram junto a ele, Sam lançou um gancho de ferro. Jin foi
o primeiro em subir, depois do qual desceu uma escada.
Viola subiu e se deteve em metade do convés enquanto
observava a cena.
— Malditos piratas — murmurou.
Jin se aproximou de um dos cadáveres. O homem tinha
o cabelo cheio de sangue seco, como o peitilho da camisa, que
também estava queimado por um disparo. A folha da espada
que ainda segurava com uma mão lívida estava manchada de
sangue.
— Três dias no máximo — disse Jin, quando se
endireitou. — Ainda não há sinais de aves de rapinas.
— Estamos muito longe da costa — apontou Viola, que
se benzeu enquanto seus lábios se moviam em uma
silenciosa prece. Depois, disse em voz alta: — Ninguém os
estará procurando.
— Não seja tola — disse Jin, que ardiam seus ombros
sob o ardente sol. — Sempre há alguém.
— Por que não o afundaram? Por que não a tomaram
para regatear suas partes?
— Porque estão escondidos no porão, esperando o
momento certo para sair, nos matar e ficar com seu navio? É
uma hipótese.
— Covarde.
Jin a olhou sem falar.
Ela sorriu. Por mais estranho que parecesse, e apesar
das circunstâncias, o gesto provocou uma série de desejos.
Aparentemente, aquela mulher não sabia o que era o medo. E
ela ficava linda quando sorria com essa cara travessa.
— Moços — disse, dirigindo-se a seus homens, — quem
quer descer comigo e ver o que essas pobres almas estavam
preparando para o jantar antes que o Senhor as levasse para
o paraíso?
Jin se aproximou da escada e outros seguiram onde
estavam... demonstrando uma grande sensatez. Viola o
seguiu.
— Seton, você não tem medo de dar uma olhada? —
perguntou-lhe.
Desceu as escadas logo atrás dele e seus passos
ecoaram no deck.
— Se voltar a me chamar covarde, alvejar-te-ei com um
tiro mesmo com o risco de enfrentar a raiva do Conde.
Ela se pôs a rir. Sua risada era rouca e musical. Devia
reconhecer que era uma mulher descarada. E sem medo.
Tiveram que abaixar a cabeça para entrar no convés dos
canhões. O reduzido espaço era opressivo. As bocas estavam
protegidas e não havia nenhuma indicação de que tinham
disparado o canhão. Não havia cadáveres naquele lugar, mas
havia algumas gaiolas abertas perto da base de proa.
— Os animais foram levados, mas não o carregamento
completo. Também deixaram o equipamento e as velas. Nem
sequer levaram a água.
Ele assentiu com a cabeça.
— Eles estavam com pressa. Talvez porque tinham outro
objetivo em mente.
— Então, já não acha que eles vão nos atacar como
fantasmas? — perguntou Viola. — Desculpe-me de dar essa
decepção.
O comentário o deixou à beira do sorriso.
— Talvez eu mesmo tenha que te matar depois de tudo.
— Tente-o. — Viola virou-se e continuou a descer. Jin se
viu seguindo-a de novo.
— Você não está interessada em revistar a cabine do
capitão?
— Não precisa. Ele estava no convés.
— Como sabe?
— Eu o conhecia — respondeu ela como se fosse natural
a situação.
Jin se obrigou a afastar o olhar da sedosa cascata que
caía pelas suas costas para esquadrinhar o amplo espaço.
Estava meio vazio. Entretanto, restavam barris e sacos de
lona, alguns abertos, com seu conteúdo espalhado. Ali
tampouco havia seres humanos.
— Quem era?
— Jason Pettigrew. Um amigo de meu pai. — Colocou as
mãos sobre os quadris. — Fionn capitaneou um de seus
bergantins antes da guerra. Jason sempre dizia que... — Sua
voz desceu e ele franziu a testa.
— Acompanhou seu pai a bordo desse navio? —
perguntou ele, tentando animá-la para que continuasse.
— Fionn quase sempre me levava com ele.
— Desde o começo?
— Sim. Seton, isto é um interrogatório? Quer que me
sente e que conte minha vida? Ou talvez você prefira ler meus
diários? Embora talvez sejam muito aborrecidos para seu
gosto.
— Suspeito que serão tão fascinantes como sua autora.
Viola o olhou nesse momento. Entretanto, já não franzia
o cenho. Olhou-o com receio. Sem medir palavra, deu meia
volta e começou a subir a escada.
Jin a seguiu, observando as curvas de seus quadris.
— Ordeno que transladem o carregamento?
— Só a água fresca. Temos provisão de sobra.
— E o que fazemos com os corpos?
Ela o olhou de esguelha, surpreendida. Jin sustentou
seu olhar sem fraquejar. Se acreditava que ele era desumano,
em outra época não teria andado muito longe da verdade.
— Diga aos moços que cortem o equipamento e as velas
para envolvê-los. Vamos enterrá-los ao pôr-do-sol.
— Sim, capitã.
Viola entregou a pistola e o sabre a Sam. Então
desabotoou o colete e tirou os sapatos. Depois se aproximou
do corrimão enquanto segurava o punhal que usava no cinto.
Jin franziu o cenho.
— O que vai fazer?
Ela esboçou um sorriso torto que produziu um efeito
imediato na sua virilha antes dela lançar-se de cabeça ao
mar.
9
****
18Script ― roteiro
— Com que propósito?
— Para visitar um homem pelo o qual meu pai fazia
negócios. Um velho amigo.
— Posso ficar no navio — replicou ele.
Até que o prazo da aposta chegasse a seu fim, queria
dizer. Mas Viola não estava disposta a perder e tinha um as
guardado na manga: Aidan Castle. Conforme Louco havia lhe
dito, esse era outro método muito eficaz para enlouquecer de
desejo um homem. Apresentar-lhe seu competidor.
— Você virá comigo — insistiu. — Se quiser, diga ao
Mattie que nos acompanhe. Como proteção. — Sorriu e
arqueou uma sobrancelha.
Entretanto, não obteve a reação que esperava. Em vez
de se recusar ou ser indiferente, Seton continuou a olhar
para ela sem piscar de forma quase tenra.
— Não preciso de proteção para lidar com você, Viola
Carlyle.
— Durante as três primeiras semanas da travessia eu
não te vi no deck por um único dia durante o entardecer —
apontou ela. — Entretanto, esteve no convés por sete dias a
esta hora, desde que me beijou. Acredito que faz isso para
ver-me. — Ele inclinou a cabeça. —Tem certeza de que não
precisa de alguém para protegê-lo de mim, depois de tudo?
— Por que não está no leme? É onde você gosta de estar
ao entardecer, verdade?
— Vejo que está tentando livrar-se de mim. Interessante.
— É você que o diz. — Esboçou um sorriso torto e por
um instante o sol pareceu explodir em chamas no horizonte,
lançando uma chuva de faíscas ao céu.
Era estranho que conhecesse seus costumes, tal como
acontecia entre os marinheiros de um mesmo navio, e que,
pelo contrário, não o conhecesse absolutamente como pessoa.
A maioria de sua tripulação confiava nela, via-a como uma
irmã ou como a uma filha, alguns inclusive como uma mãe.
Mas esse homem jamais procurava conselho. Suspeitava que
Faraó não necessitava de confidente algum. O gesto decidido
de seu queixo e sua expressão firme, sua forma de
comportar-se, seu porte erguido e sua atitude dominante
deixavam bem claro que era um homem independente.
Viola mal conhecia Jinan Seton. Somente sabia que seu
incomum sorriso... A fazia ver as estrelas.
Via as estrelas cada vez que ele sorria. Estrelinhas.
Piscou para livrar-se delas.
— Durante meus primeiros anos em alto-mar, o
entardecer era o único momento que Fionn me permitia pegar
o leme. — Apoiou-se na curva do mastro de proa.
Seton a olhava com uma expressão inescrutável.
Entretanto, esse era seu navio e podia sentar-se onde
gostasse. E, nesse momento, gostaria de sentar-se a seu lado
durante o entardecer.
Parecia-lhe natural.
E possivelmente se sentava com ele por um tempo,
veria-o sorrir de novo.
— Tenho muito boas lembranças daqueles tempos —
acrescentou.
— Elas não são as únicas boas lembranças que você
tem — afirmou ele.
Ela meneou a cabeça.
— Certo. Tenho muitas. Mas... — Ele esperou que ela
continuasse, como sempre. Era sua característica manter-se
em silêncio e escutar. Não era como ela, que jamais tinha
obtido. A filha calada e sonhadora tinha sido Serena, o
complemento perfeito para a esmagadora energia de Viola.
Cravou a vista no reluzente horizonte e continuou: — O
crepúsculo é um momento especial.
Sempre tinha gostado de estar no convés durante o pôr-
do-sol. A luz cintilante do sol poente a fazia sentir-se muito
sozinha e, provocava-lhe certa saudade. Era o momento do
dia que parecia menos seguro, olhasse para onde olhasse e
sem importar para onde estivesse orientada a proa de
Tempestade de Abril, não parecia haver um porto seguro em
nenhum lugar. Nesse momento, durante o crepúsculo, podia
estar no tombadilho e sentir-se à deriva sob o céu que
mudava, sentir-se tão leve que parecia ser capaz de voar a
qualquer instante ou de desaparecer diluída nas cores do
firmamento ou arrastada pelo vento. De modo que imaginava
que sua linha de salvação era o leme, a âncora que a
mantinha no convés. No mundo real.
Era disparado. Como o que sentia por Jinan Seton.
Admitiu para seu adentro enquanto o olhava nos olhos,
brilhantes à luz do entardecer. Desde que o conheceu, há
semanas, sentia-se embargada por essa sensação de
saudade. E tinha decidido alimentar essa emoção porque
gostava. Seton obtinha que a saudade fosse algo desejável,
algo prazeroso, tal como sempre tinha parecido a ela.
— Quem é você, Seton? — Apoiou as mãos no mastro de
proa e jogou o corpo para trás. — Quais são as suas
lembranças felizes da infância?
Seu olhar se deslizou devagar por seu corpo, deixando a
sua passagem uma cálida esteira. Depois, olhou-a nos olhos.
— Suponho que estar no estrado depois que o traficante
de escravos me vendeu e ver como o menino que me comprou
tirou os grilhões dos meus pulsos para me libertar poderia
ser descrito como a melhor lembrança da minha infância,
senhorita Carlyle.
Viola levou alguns minutos para se recuperar o
suficiente para respirar normalmente.
— Suponho, que sim — comentou no final. Depois de
alguns minutos de silêncio durante os quais só se escutou o
rangido dos equipamentos de barco e as vozes dos
marinheiros no outro extremo da embarcação, arrastadas
pela brisa, disse: — Conheceu sua família?
— A minha mãe.
— Somente sua mãe?
— Ela testemunhou o momento em que seu marido
vendeu-me aos traficantes de escravos. Ele notou que o
menino que brincava de correr pelos aposentos dos
empregados se parecia muito com sua esposa e um inglês
que viveu na Alexandria sete anos antes. Tirou-lhe a verdade
a golpes e depois a castigou por sua infidelidade. E me
castigou.
— Piratas berberiscos19. — Criminosos capazes de
vender qualquer pessoa por um preço. Até mesmo uma
criança branca. No entanto, levá-lo para o Oeste para vendê-
lo em um mercado inglês era incomum. Alguém lhes pagou
uma fortuna para se certificar de que eles que o fizessem.
Seton a olhava com uma expressão inescrutável.
— Enfim, nossas histórias são parecidas como pode ver.
Mas tendo em conta a diferença principal, talvez, agora, você
entenda por que não estou muito feliz com sua relutância em
voltar para a Inglaterra.
Viola tinha o coração acelerado.
— Sua situação não se parece em nada à minha. — O
vento lhe açoitou o cabelo e uma mecha lhe penetrou entre os
lábios, mas estava tão paralisada que foi incapaz de levantar
uma mão para afastá-lo. — Deve dizer a sua família que se
encontra bem. Você deve isso a eles — comentou ele.
A ira começou a queimá-la por dentro, espancando sua
língua.
— Você contou a sua mãe, enquanto estava correndo ao
redor do mundo, roubando os navios de outros?
— Quando pude voltar para a Alexandria, ela tinha
morrido.
Viola ficou em pé.
NOTA ANEXA:
****
****
Ele parecia o mesmo, seu torso era igual forte e sólido, e
cheirava a sabão de barbear e a tabaco. Era um aroma tão
familiar que Viola quase sentiu a presença de seu pai, como
se pudesse levantar a vista e ver Fionn ao lado de Aidan.
Quando a soltou, permitiu-se observá-lo com atenção.
Também tinha o mesmo aspecto. O cabelo castanho claro
ondulavam sobre sua testa, um pouco longos, como
costumava usá-lo quando esquecia de cortá-lo. Seu rosto não
mudou, permaneceu o mesmo, embora não tão bronzeado,
com o mesmo nariz imponente, os mesmos lábios cheios, a
mesma covinha no queixo e os mesmos olhos esverdeados,
muito tenros, que a olhavam com expressão risonha nesse
momento.
— Suponho que sua viagem foi tranquila. — Sua voz
soava muito conhecida, uma voz que tinha escutado todos os
dias até que quatro anos atrás abandonou o navio de seu pai
para converter-se em um proprietário de terras.
— Sem problemas.
— É o que esperava. Supusemos que ainda era muito
cedo para que encontrasse tempestades estivais durante a
travessia. — Parecia alegrar-se de vê-la e a olhava fixamente,
sem aparente desconforto.
— Supuseram, em plural?
— Tenho certeza de que você se lembra do meu primo
Seamus. Na primavera passada veio me ver e não voltou a
partiu. — Ele riu, o mesmo som que ele tinha dependido
quando seu pai adoeceu e necessitava de segurança com
desespero. — Meus tios estavam ansiosos que abandonasse a
Irlanda, é obvio, que tinha se metido em confusões, como de
costume.
— Então... está aqui? — Viola conheceu Seamus Castle
durante uma visita que fez a Boston anos atrás. Um jovem
com um rosto duro e pouquíssima imaginação.
— Foi uma grande ajuda para administrar os
trabalhadores. Mas não fiquemos aqui fora com este calor.
Entre e tome algo fresco. — Fez gesto de lhe agarrar a mão,
mas se deteve ao olhar atrás dela. — Ah, perdão. O
cavalheiro...
— É meu segundo de bordo, enquanto Louco está de
licença. Aidan, apresento-lhe Jinan Seton.
— Prazer em conhecê-lo, senhor Seton. — Ele estendeu
a mão.
Seton deu um passo à frente e a estreitou.
— O prazer é meu — ele disse.
Viola sentiu que algo em seu interior dava um salto.
Aidan franziu o cenho.
— Acredito que me soa conhecido seu nome.
Seton soltou a mão de Aidan.
— Sério?
— Claro, suponho que Seton é um sobrenome muito
comum nestas latitudes, não?
— Suponho.
— Ah. — Aidan sorriu. — É inglês.
— Senhor Seton tem patente de corso da Armada Real
da Marinha— disse Viola, que os olhava a um e a outro. — Só
está servindo como meu segundo por que... Enfim... Por
que...
— Agora mesmo estou sem navio — concluiu ele.
— Ah, claro. — Aidan percorreu seu convidado com o
olhar. — Qualquer marinheiro do navio de Viola é bem-vindo
em meu lar. — Apontou a porta. — Por favor, quero que
conheça meus outros convidados.
Viola os precedeu ao entrar em um vestíbulo de teto alto
enquanto olhava de soslaio ao homem com quem tinha
navegado até essa ilha. Seton usava uma camisa branca,
calças limpas e uma jaqueta que ela nunca tinha visto, de
uma confecção tão elegante que fazia justiça a seus largos
ombros e a seu corpo atlético. Parecia tão cômodo com essa
roupa como quando usava o que foi colocado a bordo.
Durante a viagem na carruagem, concentrada como estava
em tentar não olhá-lo, não tinha reparado em sua
vestimenta.
Acima de tudo, como de costume, ela havia notado seus
olhos. E em suas mãos. E em sua boca. Sempre em sua boca.
Não se importava com o que ele estava vestindo. Ele era
bonito com qualquer coisa ou quase nada. Subiu o olhar
desde seu colete e, como no primeiro dia, ele também a
estava observando.
Aidan lhe ofereceu o braço. Por um instante, ficou
olhando sua manga sem saber o que fazer, incapaz de
esquecer da lembrança do peito nu de Jinan Seton sob a
chuva.
Nenhum dos dois homens falou.
— Violet?
— Ah. — ruborizou-se antes de colocar os dedos sobre o
braço de Aidan.
Este soltou uma risadinha e disse:
— Querida, é incrível. — Conduziu-a ao salão.
Era uma estadia muito acolhedora, decorada com suma
elegância e detalhes ingleses; entretanto, era outro aspecto da
casa que tinha construído sem consultá-la, apesar de que a
compartilharia com ela algum dia.
No salão havia quatro pessoas. Seamus Castle estava
apoiado em uma poltrona negra, fazendo girar a corrente de
um relógio de bolso de ouro com o índice.
— Bom dia, senhorita Violet. — Saudou-a com um gesto
de cabeça apenas imperceptível. Era um homem atraente,
com uma testa larga como Aidan e os mesmos cabelos
encaracolados, mas sua boca parecia congelada em um
perpétuo sorriso zombador, e seus olhos verdes tinham uma
expressão ladina. — Encantado de voltar a vê-la.
A última vez, cerca de cinco anos antes, tinha-a
encurralado em um canto oculto e tinha tentado tocar o seio.
Viola ficou com o joelho ferido durante vários dias depois de
impactar com a culatra da pistola que usava no cinto e que
ficava à altura da virilha de Seamus. Ele também causou o
impacto em suas partes baixas. Viola aprendeu várias
palavras muito sujas naquele momento.
— Senhor Hat, senhora Hat, me permitam lhes
apresentar à senhorita Daly e senhor Seton, amigos meus
cujo navio acaba de atracar no porto. — Aidan a fez voltar-se
para que os olhasse.
Viola soube imediatamente que eram prósperos
comerciantes de alguma cidade do norte. De Nova Iorque, da
Filadélfia ou de Boston. Todos os habitantes dessas cidades
tinham o mesmo aspecto: homens com excesso de peso,
mulheres com excesso de arrogância e ambos com excesso de
roupa.
O senhor Hat, que usava uma enorme gravata ao redor
de uma gola de camisa muito alta e uma jaqueta de lã com
enormes lapelas, levantou-se para apertar a mão de Seton.
— Encantado de conhecê-lo — disse com voz rouca.
— Senhor. — Ele se voltou para a senhora Hat e lhe fez
uma reverência. — Senhora.
A mulher deu um sorriso tenso e um vestido de tafetá
adornado com pérolas negras, muito caras e totalmente
inadequadas para o clima da área. Examinou Viola da cabeça
aos pés, procedeu a fazer o mesmo com Seton e, no final,
assentiu com a cabeça, fazendo com que a pluma negra de
seu chapéu se agitasse.
— E esta — anunciou Aidan com um sorriso amável — é
a senhorita Hat.
Era uma moça de aspecto angélico que não teria mais
de dezessete anos. Tão bonita que tirava o fôlego. Viola a
olhou embevecida enquanto se perguntava como a senhorita
Hat tinha conseguido que os cachos loiros emoldurassem a
perfeição sua testa e suas bochechas, e como podia usar tão
pouca roupa diante de tantas pessoas. Era alta como sua
mãe, com um corpo esbelto e olhos azuis emoldurados por
espessas pestanas douradas, e mantinha o olhar encurvado,
de forma recatada. A moça fez uma reverência e a diáfana
saia de seu vestido branco roçou suas pernas, enquanto suas
mãos estavam entre as dobras do tecido como lírios brancos.
— Senhor. Senhorita — sussurrou a moça a modo de
saudação. — Encantada de conhecê-los.
Seton fez uma reverência e pareceu tão inglês, tão
galante, que por um instante Viola também o olhou
embevecida.
Aidan a conduziu a uma poltrona.
— Viola, o senhor Hat é o proprietário de uma empresa
de roupas masculinas na Filadélfia. Veio em visita de
negócios com a idéia de expandir seus horizontes. Tivemos a
sorte de que sua família pudesse acompanhá-lo, não é
verdade, Seamus?
O irlandês esboçou um sorriso torto.
— Claro, primo. Sempre é bom contar com damas para
embelezar o lugar. — Olhou para Viola com expressão
lasciva.
O senhor Hat agarrou uma mão de sua filha e lhe deu
uns tapinhas.
— Queria que minha pequena Charlotte visse um pouco
do mundo antes de entregar sua mão ao homem afortunado
de tê-la para o resto de sua vida.
A senhorita Hat se ruborizou até a raiz do cabelo e
baixou o olhar, mas manteve o sorriso doce.
O criado que os recebeu na entrada se aproximou de
Viola com uma bandeja. Ela aceitou o copo e lhe sorriu.
— Obrigada.
— Ora! Por Deus, senhor Castle. — A senhora Hat tinha
a vista cravada nos pés de Viola. — Temo que fui muito
desconsiderada estes dois dias. Não tinha a menor idéia de
que as damas da ilha se dirigiam aos criados diante das
visitas. Tenha certeza de que vou corrigir o meu
comportamento.
Aidan soltou uma risadinha.
— As relações entre os servos e as pessoas de maior
posição é algo mais distinguida aqui que no Norte, é certo,
senhora. Mas você jamais a poderia ser rotulada como
desconsiderada.
O olhar da mulher subiu, parando no colo de Viola, e ela
olhou para baixo e notou que suas saias estavam dobradas à
altura dos joelhos, deixando expostas suas panturrilhas e as
meias baratas.
Ruborizou-se pela vergonha.
— Ora.
Ela deu duas tapinhas com as mãos úmidas para soltar
o tecido. Entretanto, viu-se obrigada a puxar com bastante
força e a levantar o traseiro para que a bainha alcançasse o
chão.
— Castle, tenho entendido que não possui a propriedade
há muito tempo. — A voz de Seton era serena no silêncio. —
Conheço vários plantadores de Barbados e da Jamaica, mas
nenhum desta ilha. Que tal vai o negócio por aqui?
— Bastante bem, na verdade. Meu vizinho mais
próximo, Palmerston, não é muito generoso com a água do
arroio que atravessa suas terras antes de chegar às minhas,
mas até o momento não tive problemas de irrigação. — Olhou
aos presente com um sorriso. — Se os pedissem menos
privilégios, seria um homem do mar muito contente.
— Eu já lhe disse, primo, que, se os homens tiverem
liberdade, eles a abusarão sempre que puderem. Você deveria
ter escravos em sua terra, não trabalhadores.
Aidan meneou a cabeça.
— Lamento tomar o contrário, Seamus.
— Já não se pode encontrar um escravo doméstico na
Filadélfia — acrescentou o senhor Hat, assentindo com a
cabeça. — Claro que é o melhor. É obvio, não há um só
escravo em meus armazéns, mas esse ditoso francês, Henri,
usa-os para descarregar seus navios e reduzir os custos.
— É uma questão, sim, senhor — resmungou Aidan.
— Mas de qualquer forma realizam o trabalho. E o
trabalho é o que nos interessa. — Seamus cruzou os braços
diante do peito, estirando o colete de caxemira. — E você o
que diz, Seton? O Parlamento deveria pedir que liberem os
escravos como gostaria aos abolicionistas ou deveríamos
manter a ordem como homens racionais?
O aludido olhou Seamus com expressão tranquila.
— Um homem deve seguir somente a sua consciência —
respondeu. — A lei, seja qual for, jamais poderá alterar esse
fato.
— Bem dito — murmurou Aidan, embora tivesse o
cenho franzido.
As bochechas de Viola queimavam e sentia um nó na
garganta. O olhar reprobatório da senhora Hat não tinha
desaparecido, como tampouco cessava o tímido exame que a
filha fazia.
Era-lhe igual uma coisa e a outra.
Seton a tinha resgatado de sua vergonha a propósito.
Certo que não tinha imaginado que a conversa tomasse esse
rumo, mas não acreditava que se importasse muito. Tal como
havia dito, não era um homem que se deixasse levar pelos
argumentos de outros. Era o único homem a quem Viola
conhecia que vivia segundo suas próprias regras, guiado por
um objetivo no que tinha fé cega. Isso, muito mais que
qualquer outra coisa que soubesse dele, assustava-a.
Assustava-a e a emocionava ao mesmo tempo.
Com a queda da noite, a brisa fresca que soprava pela
plantação ao entardecer desapareceu. A calma era total, as
canas-de-açúcar permaneciam imóveis, e inclusive os
pássaros se calaram com a escuridão. Jantaram na sala de
jantar, e o calor que subia da terra aquecida era opressivo no
interior da casa, o que lhe tirava o apetite de Viola.
Os Hat se comportaram como se ela não existisse. A
senhora Hat felicitou seu anfitrião pelas impressionantes
renovações. O senhor Hat interrogou Seton sobre a atividade
no porto de Boston que Viola poderia ter respondido melhor
que ele. A senhorita Hat bicou de seu prato e manteve o olhar
curvado. Seamus bebeu um copo depois de outro de rum
adoçado enquanto olhava para Seton com os olhos
entrecerrados.
Depois de tomar o chá no salão, os Hat anunciaram sua
intenção de visitar a cidade no dia seguinte.
— Senhor Castle, espero que possa nos acompanhar. —
A senhora Hat esboçou um sorriso elegante e
condescendente.
Aidan assentiu com a cabeça.
— É obvio, senhora. Será um prazer levá-los às
melhores lojas. — dirigiu-se a seu marido. — O madeireiro é
um bom amigo, embora seja mais um comerciante de
madeira que um madeireiro como tal. Conhece em pessoa ao
proprietário dessa estranha madeira que lhe mencionei
ontem. Estarei encantado de apresentá-los.
— Estupendo, estupendo. — O senhor Hat deu umas
palmadas em seu volumoso ventre e o espartilho que usava
protestou quando ficou em pé. — Bem, até amanhã, Castle.
A senhora Hat pegou o braço da filha, a senhorita Hat
fez uma reverência e os três partiram. Seamus olhou para
Viola com um sorriso insolente.
— Enfim, senhorita Violet — disse ele, — agora que é a
única mulher presente, como vai entreter-nos? Vai tocar algo
ao piano?
Aidan pigarreou.
— Viola não sabe tocar piano, é obvio. — aproximou-se
dela e lhe ofereceu o braço. — Acompanho a seu quarto?
Ela assentiu com a cabeça, colocou a mão no seu braço
e olhou para Seton.
Que lhe fez uma reverência.
O ambiente se voltou mais abafado conforme subiam a
escada. Era uma casa muito bonita, mas não parecia
desenhada para a climatologia local, a não ser para cumprir
os requisitos do frio tempo inglês. Entretanto, a porta que
Aidan a conduziu tinha uma bonita gravura e parecia recém-
pintada apesar da umidade. Tinha trabalhado muito duro
para construir um lar e deveria sentir-se orgulhosa dele.
Agarrou-a pelas mãos.
— Estou feliz em vê-la novamente, Violet. Tenho sentido
sua falta.
— Eu também estou feliz em vê-lo depois de tanto
tempo.
Aidan franziu o cenho e a olhou com expressão séria.
— Querida, agora lembrei por que me soava familiar o
sobrenome Seton.
Sua garganta ficou seca quando o ouviu.
— Supus que o recordaria cedo ou tarde.
— A julgar por sua expressão, deduzo que sabia quando
o contratou. Por que o fez? — Seu tom tinha um leve
acusação.
— Enfim, é complicado.
Não queria lhe dizer que tinha afundado Cavalier. Aidan
já não tinha nada que ver com seu navio ou com seu
trabalho. Por que ia lhe dar detalhes? Além disso, custava-lhe
falar de Jinan Seton em voz alta, porque a desestabilizava.
Aidan apertou suas mãos com mais força.
— Eu não gosto disso.
Ela tentou lhe subtrair importância.
— O governo britânico o perdoou, Aidan. Não parece ser
razão suficiente para que você também confie nele?
— Não. — Meneou a cabeça. — Sabe o muito que me
preocupo com você, então não me parece bem que este
homem a acompanhe a bordo, Fionn me daria á razão. Uma
coleira de leopardo pode ser colocada, mas o cativeiro não
mudará sua natureza.
Viola cravou o olhar em seus olhos esverdeados e esteve
a ponto de lhe dar razão na impossibilidade de que um
homem trocasse sua natureza. Desde que tinha quinze anos,
esse homem a tinha cortejado com palavras e tinha aceito
sua devoção como se fosse algo normal para ele. Mas tinha se
negado a cumprir com suas promessas uma e outra vez.
Quando trabalhava para seu pai, insistiu em que não se
casaria até não assentar-se em terra e construir um lar para
sua família. Tinha quatro anos como dono e senhor da dita
terra.
Nesse momento, via em seus olhos que se acreditava
com direito sobre ela. Depois de meses sem receber uma só
carta e depois de dois anos sem ver-se, Aidan se acreditava
com direito de lhe dizer como organizar sua vida, a oferecer
conselhos que ela não tinha pedido, e além disso pensava que
ela estava na obrigação de obedecê-lo. Por fim o via
claramente.
Jinan Seton esperava o mesmo... pelo menos no
referente à parte da obediência. Mas quando a olhava como
se não estivesse louca, em seus olhos também via respeito e
igualmente, atração e desejo. Admiração. E paixão.
Independente de todas as vezes que Aidan tinha brincado
com ela e lhe havia dito o muito que significava para ele,
nunca a tinha olhado assim.
— Acredito que se equivoca a respeito dele — replicou
em voz baixa.
— Os piratas são ladrões e mentirosos, Violet. Comete
uma imprudência ao confiar nele.
— Isso eu tenho que decidir. — Soltou-se de sua mão. —
Obrigada pelo jantar. Boa noite.
Aidan se inclinou para ela ainda com o cenho franzido e
a beijou na bochecha.
— Fico feliz que você esteja aqui, querida.
Ela assentiu com a cabeça. Aidan titubeou um momento
antes de descer a escada.
Viola tocou com os dedos o ponto onde seus lábios a
tinham roçado. Amava-o. Levava dez anos amando-o. Aidan
sabia muito dela, de seu pai e de sua vida no mar. É obvio,
ele já não fazia parte de desta vida. Mas sim fazia parte de
seu passado, e durante muito tempo soube que fazia parte de
seu futuro. Que ele seria seu futuro. Entretanto, por estranho
que parecesse, tanto conhecimento lhe parecia bastante
como... ignorância. Até aquele beijo inócuo tinha sido
estranho para ela.
Talvez alguns dias em sua mútua companhia mudassem
essa impressão. Os amigos, inclusive aqueles que se
conheciam muito bem, necessitavam tempo para acostumar-
se ao outro depois de períodos de ausência. Ou não?
Colocou-se junto à janela e o calor a envolveu. A cama
tinha camadas e camadas de tecido, e era muito repulsivo
para ela. Assim que viu os outros convidados, soube que
Aidan não lhe pediria para compartilhar sua cama. Nunca o
fazia quando havia outras pessoas. Mas isso não lhe
importava nesse momento. De todas as maneiras, fazia muito
calor para essas atividades; além disso, o estômago lhe rugia
de fome e tinha uma sensação estranha, incômoda, na pele.
O sono parecia ser algo impossível.
Uma estante muito modesta oferecia material de leitura,
livros de sermões e cadernos de negócios. Escolheu o menos
aborrecido e se sentou junto ao abajur. Entretanto, a leitura
não conseguiu distraí-la, e o suor começou a amontoar-se na
ponta de seu nariz, por isso se viu obrigada a enxugá-la com
a manga antes que as gotas escorregassem. Aproximou-se da
janela, afastou as cortinas e a rodeou um enxame de
mosquitos.
— Oh! — Fechou a janela com força.
Nada de brisa. Talvez por isso Aidan tinha podido
comprar uma propriedade de semelhante extensão. Com a
ausência de brisa e a umidade que reinava, as propriedades
do interior da ilha deviam estar a um preço acessível. Se fazia
tanto calor em junho, seria insuportável em pleno verão. Mas
ela tinha suportado toda classe de privações durante seus
anos em alto-mar. Se ia converter-se em sua esposa, teria
que suportar o calor e os mosquitos.
Entretanto, não tinha por que suportá-lo tão
estoicamente. O único lugar onde poderia encontrar um
pouco de ar fresco seria no jardim ou na estrada de entrada.
Além disso, sentia-se inquieta. Sentia falta do constante
balanço do navio sob seus pés e o sussurro do mar nos
ouvidos. Ali, entre campos, colheitas e quatro paredes, era
incapaz de respirar.
Embora não gostava da idéia de sair agarrou o xale de lã
se por acaso se encontrasse com a recatada senhorita Hat e
sua viperina mãe, e desceu a escada. A porta principal estava
fechada, mas no salão havia outra porta pela qual se
acessava a varanda que rodeava a casa. Abriu-a e saiu à
escuridão da noite.
Ocultou-se na sombra que proporcionava o limiar da
porta.
Mais à frente do alpendre, estendia-se um jardim em
direção aos campos de cultivo, salpicado de vetustas árvores
e sebes exóticos, delimitado com esmero por uma cerca
branca estofa com trepadeiras. As flores tropicais floresciam a
luz chapeada da lua e os estridentes insetos saturavam a
escuridão.
Sob a copa de uma árvore, um homem e uma mulher
passeavam muito juntos um ao lado do outro. O vestido
branco da senhorita Hat parecia brilhar sob a luz da lua. O
cavalheiro agarrou uma flor e lhe ofereceu, falando em voz
baixa. E no silêncio reinante, a voz de Aidan chegou até seus
ouvidos enquanto agarrava a mão da senhorita Hat como se
fosse feita de porcelana, para levá-la aos lábios e beijá-la.
E a seguir a beijou na boca.
Viola ofegou quando seu estômago se agitou. Virou-se e
se chocou contra Jin.
— Cuidado. — Ele a agarrou pela cintura e cravou os
olhos em seu rosto antes de desviar o olhar para o jardim.
Jin franziu o cenho, mas ela já tinha os olhos cheios de
lágrimas e as mãos contra seu peito. Encontrar-se com ele
tão de repente só conseguiu confundi-la ainda mais. Porque,
por fim, compreendeu que Jinan Seton não a fazia sentir-se
débil.
Aidan sim, com Aidan sempre tinha a sensação de que
não era o bastante boa, claro que Charlotte Hat sim, parecia
sê-lo. Era bonita, refinada, dispunha de um bom dote e
procedia de uma família de bom berço. Podia passear com ela
a meia-noite por um jardim e lhe beijar a mão, enquanto que
fazia-lhe promessas que nunca cumpria.
Elevou o olhar para Jin e nesses olhos cristalinos viu
compreensão junto com um golpe de raiva.
Sentiu um nó no estômago. Nunca fingia com ela. A seu
lado, sentia-se insegura, sim, sobretudo nos raros momentos
que perdia o férreo controle de suas emoções. Mas também a
fazia sentir-se viva e cheia de esperança.
— Violet? — Suas mãos lhe apertaram a cintura, com
força e segurança. Não voltou a olhar o jardim, mas sim se
concentrou nela por completo.
Uma lágrima escorregou pela bochecha de Viola.
— Não — sussurrou. Ele tinha exigido, mas nesse
preciso momento não queria que a chamasse assim. Queria
que a chamasse por seu verdadeiro nome.
Escapou de suas mãos, passou os dedos pelo rosto e
correu para o interior da casa.
14
23Balandro era um navio leve de design holandês. Foi equipado com duas ou três
velas quadradas antes do mastro e plataformas de arco a popa .Era uma barra rápida
com excelente manobrabilidade, extremamente útil em ventos leves.
— Deus Santo, temos que controlar o incêndio! —
exclamou Aidan com voz trêmula e acrescentou, dirigindo-se
a Viola: — Violet, peço-te o favor que cuide da senhorita Hat e
de seus pais. Não estão familiarizados com este tipo de
situação e não quero que se deixem levar pelo pânico. Isso me
dificultaria ás coisas.
— Aidan, por que acha que seu vizinho está
comprometido nisso?
— Violet...
— Diga-me.
— Os curaçaenses24 destas ilhas falam holandês.
Palmerston é o único plantador da região que usa seus
serviços e que comercializa às vezes com eles. Se estes
homens afirmarem que os que provocaram o fogo falavam
holandês, Palmerston poderia haver-lhes pago.
— Por que ele faria isso? Ele odeia você tanto assim?
— Querida, isso não importa agora. Devo te pedir que
acompanhe aos Hat ao interior e que os tranquilize. Faça-o
por mim, por favor.
Viola olhou esses olhos esverdeados de expressão
suplicante e seu coração seguiu pulsando no ritmo normal.
— Vou ao porto. Matouba e Billy acreditam que esses
homens se dirigem para lá. O balandro que vimos ancorado
na doca pode ser dele. Se Tempestade de Abril puder evitar
— Maldita seja!
A faca caiu no convés. Jin tirou a mão do leme do barco
e atravessou pelo casco, já que estava de barriga para cima.
Viu que o sangue brotava do corte que feito de um lado a
outro da palma.
— Maldita seja!
Ele tinha merecido por permitir uma noite sem dormir.
Permitir-se...
Pequeno Billy o olhou com curiosidade da proa do barco.
— Cuidado, capitão. Está afiada.
Jin passou a mão ilesa pelo rosto e depois a levou a
nuca enquanto observava como o sangue se amontoava ao
redor da ferida, embora mal sentisse dor. O sol de meia
amanhã se refletia sobre a doca e a água lambia os lados do
navio que tinham adiante. Poucas semanas antes, tinha
olhado para Tempestade de Abril tal como fazia nesse
momento e tinha cometido o tremendo engano de pensar que
seria fácil encurralar uma mulher como Viola Carlyle. Não era
uma mulher que seguisse ordens sem pigarrear. mostrou-se
desafiante inclusive quando faziam o amor.
A noite sensual foi aliviada pelo assalto do vento do
Norte. Ao longe, viam-se cristas brancas coroando as ondas,
mais à frente do porto, e a brisa enchia as velas e agitava os
cabos. Se o vento seguisse soprando toda a semana,
navegariam a bom ritmo para a Inglaterra.
Um dia a mais. Acreditava na honestidade de Viola,
embora ele não tivesse tanta certeza de que ela estava sã.
Relutantemente ou não, partiria quando lhe dissesse que
devia fazê-lo... quando lhe dissesse o que devia dizer para
obter seu objetivo de levar uma dama para casa. Uma dama a
quem não devia fazer amor.
Uma cabeça ruiva apareceu a seu lado.
— Melhor costurar isso, senhor. — O grumete olhou as
gotas de sangue que manchavam a coberta.
— Obrigado, Gui. Farei-o.
O rosto do moço não tinha a vitalidade de costume.
Durante toda a manhã, os marinheiros tinham estado
chegando ao navio com o rabo entre as pernas. Como cães
castigados que tinham falhado a seu amo.
Jin sentiu a tensão no pescoço. Nenhum homem deveria
acabar reduzido a isso. Maldita fosse, estavam de licença,
mas todos e cada um deles se desculpou com ele por deixar
que os incendiários escapassem. O feitiço que ela lhes tinha
jogado era pura bruxaria. Nesse momento, todos se
ocupavam de tarefas menores como se estivessem
preparando Tempestade de Abril para retornarem ao mar em
vez de jogar âncora no abrigo do porto. Enquanto ele estava
lá de pé no convés, sangrando.
Ele tirou o lenço e o enrolou na mão.
— Que corte mais feio — comentou Gui.
— O capitão não está acostumado a ser torpe — replicou
Billy com seu habitual bom humor. — O mesmo não dormiu
ontem à noite com tanta emoção é isso. — Esboçou um
sorriso irregular. — Eu não prego o olho depois de uma
batalha.
Jin apertou o lenço com o punho. Não deveria ter
sucumbido a ela. Não só era uma mulher teimosa,
apaixonada e decidida. Também era uma mulher com o
coração ferido. Porque tinha se aproveitado disso.
Não foi seu melhor momento.
Ela tinha acreditado que ele tinha piedade dela. Apertou
o lenço com mais força, provocando dor, e apertou os dentes.
Não se compadeceria absolutamente dessa bruxa descarada.
Ele foi estimulado pela necessidade de apagar a dor e a
confusão de seus enormes olhos violetas. E a luxúria. Uma
luxúria que ainda não tinha satisfeito. Sua boca, suas mãos,
suas pernas fortes e torneadas… Bastava-lhe pensar nela
para excitar-se. E sua voz, esses doces gritos de prazer…
Engoliu saliva e piscou.
— Capitão? Está bem?
— Acerte o leme — ordenou.
Oxalá estivesse somente enfeitiçado. Mas o que sentia
era outra coisa, muito mais do que ele queria contemplar... E
se negava a contemplá-lo. Um homem que trazia as cicatrizes
que os grilhões tinham deixado em seus pulsos não merecia
uma dama que por seu sangue e sua posição pertencia aos
salões de baile londrinos, por mais que tivesse se afastado
desse lugar. Ele se encarregaria de que recuperasse sua vida,
e assim saldaria sua dívida. Nada se interporia em seu
caminho, nem por teimosia dela nem seu próprio desejo.
Concentrou-se de novo na tarefa, mas o sangue tinha
encharcado o lenço e a mão escorregou uma vez mais.
— Por todos os infernos!
— Eu não gosto de te ouvir amaldiçoar — disse uma voz
acetinada a suas costas.
Viola vestia sua roupa de marinheiro mais uma vez, seu
habitual casaco e o chapéu, e não o vestido estragado que ele
tinha tirado a toda pressa para tocar sua pele. Entretanto,
estava tão impaciente para entrar nela que não tinha lhe
tirado a roupa interior, e em sua imaginação se via como um
moço inexperiente. Suas mãos sabiam que a seus olhos
gostaria do que iriam ver.
Viu-a esboçar um minúsculo sorriso.
— Billy, Gui, podem ir — disse ele. Os moços
obedeceram.
Envolveu de novo a mão com o lenço.
— Como foi à entrevista?
— Há muito sangue. Deveria curar esse corte.
— O que disse ao chefe do porto?
— Tenho iodo e ataduras em mi...
— Maldita seja, mulher, me responda!
— Não me dê ordens. E não te direi nada até que me
deixe curar essa ferida como é devido. — Olhou a navalha. —
Se cortou com essa navalha velha? Poderia infectar-se em um
abrir e fechar de olhos. E perderia a mão.
Esta mão desejava acariciar a curva de sua bochecha
exposta ao sol, explorar de novo o corpo que tinha sido seu
na escuridão.
Retornou ao trabalho.
— Nesse caso, porei um gancho de ferro para espantar
as mulheres irritantes.
Viola pôs as mãos sobre os quadris enquanto a brisa lhe
agitava o cabelo ao redor do rosto e dos ombros.
— Está de muito mal-humor. — Soltou uma gargalhada.
— Não dormiu?
— Seus roncos me despertaram. — Parecia muito mal-
humorado, pensou.
Embora não estivesse de bom humor, Viola tirava o pior
dele. Tirava o louco obcecado pela luxúria. Esses olhos
violetas o faziam pensar em lençóis revoltos e corpos
entrelaçados; e seus lábios... nublou-se a vista ao imaginar
esses lábios ao redor de seu...
— Eu não ronco.
— Sim, ronca — replicou, exasperado. — O que há?
Nenhum homem reuniu a coragem necessária para lhe dizer
Violet, a Vil que ronca como um estivador bêbado? — Soltou
o cabo e pôs-se a andar para a passarela.
— Nenhum outro homem esteve a meu lado enquanto
dormia.
Isso o deteve.
— Não acredito em você.
— Porco.
— Nunca?
Viu-a soprar.
O coração pulou uma batida e sentiu algo frio e
resistente, como o pânico que sentiu durante a noite, quando
por um instante acreditou havê-la desvirginado. Desterrou o
medo.
— É obvio. — obrigou-se a soltar uma gargalhada
desdenhosa. — Isso seria como se um lorde permitisse que
seu ajudante de câmara o visse dormir, não? Não pode
permitir que seus criados a vejam em um estado vulnerável.
Melhor dizendo, seus acólitos. — Ou um antigo escravo cujo
primeiro amo lhe disse que era um animal pela violência que
viu nele... Era impossível lutar contra a natureza.
— É um caipira — resmungou ela.
Afastou-se de Viola pela passarela, com a cabeça em
uma confusão. Entretanto, embargava-o o desenquadrado
desejo de retornar e lhe contar a verdade, de lhe dizer que
nunca havia sentido as carícias de uma mulher como as dela,
que jamais lhe tinha sido difícil abandonar a cama de uma
mulher até que ela chegou à sua.
Tinha permitido que a visse dormir.
Quando despertou antes do amanhecer, observou seu
peito subindo e baixando com tranquilidade, seus lábios
carnudos e seu queixo arrebitado, suas bonitas
características em repouso, suavizadas pelo sono. Mas Viola
não lhe pertencia para poder abraçá-la; e se afastou de seu
lado sem voltar a tomar o que desejava dela.
Nesse momento, seus passos o seguiram-no.
— Você deve me acompanhar no escritório do chefe do
porto. Eu assegurei-lhe que eu lhe daria o dinheiro a tempo,
mas ele não acreditou em mim. Somente a menção do seu
nome despertou seu interesse. Parece que sua reputação o
precede. E parece que você não tem má reputação nos portos
ingleses
Jin virou-se para olhá-la.
— Por que tenho que recordá-la uma vez mais que tenho
patente de corso da Armada Real?
Viola se aproximou dele, quase tanto como aquele
primeiro dia quando esteve prisioneiro em seu navio, quase
tanto como na noite anterior. Ele viajou com aqueles olhos
escuros
— Admito que é difícil de acreditar. Eu acho difícil
acreditar que um homem como você aceite alegremente a ser
amarrado, parece-me improvável. — Um brilho interrogante
lhe iluminava os olhos, e deixava entrever mais coisas que
suas palavras.
O coração de Jin desbocou. Era impossível. Não estava
feito para ela, nem sequer para satisfazer um desejo de forma
temporária. Ela podia aspirar a mais.
— Não se confunda, Viola — se obrigou a dizer. —
Somente faço aquilo que me convém.
O sorriso desapareceu de seus lábios.
— Nesse caso, aconselho-te que me acompanhe ao
escritório do chefe do porto agora mesmo ou você acabará no
cárcere com todos nós. E tenho certeza de que isso não te
conviria mesmo. — afastou-se pelo convés. — Mas primeiro
curarei sua mão. E é uma ordem, segundo.
Viu-a desaparecer sob a coberta com um nó no peito. A
seu redor, fez-se um silêncio muito curioso. Os marinheiros
permaneciam imóveis, observando-o.
— Aqueles ganchos de ferro! — gritou. — Preparem-se
para levantar a âncora. — Subiu as escadas que davam ao
leme, onde Mattie o recebeu com o cenho franzido e
meneando a cabeça.
— O que você disse para ela ficar tão rígida depois da
noite passada e o que foi aquilo?
— Nada de sua incumbência. Ponha rumo a esses
manguezais, a cerca de cinquenta metros do porto. Vamos
ancorar ali.
— Você disse algo que ela não gostou? Ou fez algo? Algo
que você não deveria fazer. Você a confundiu?
— É um imbecil embevecido como outros.
Mattie franziu o cenho.
— Eu não gosto que tratem mal às damas. — O tom
brusco era uma advertência. — E esta não merece.
Jin olhou a seu timoneiro com cara de poucos amigos.
— Decide agora se quer me ajudar ou ficar contra, Matt.
Mas a estas alturas, se decidir pôr as coisas difíceis, se
assegure de dormir com uma adaga à mão.
O gigante ficou branco.
— Conhecemo-nos há quinze anos. Você não seria
capaz.
— Me ponha à prova.
Jin desceu à coberta principal e depois à escada da
câmara, afligido por uma raiva inusitada. Tinha ameaçado
um homem a quem conhecia desde que era um moço. Claro
que Mattie sabia melhor que ninguém do que ele era capaz.
Tinha-o visto com seus próprios olhos. Eram imagens que
não desapareciam da mente de um homem. Jamais. Da
mesma maneira que os ditos atos jamais abandonavam a
alma de um homem.
O navio virou a boca no porto como uma taturana,
avançando a contragosto. Jin atravessou o curto corredor que
levava ao camarote da capitã. Estava vazio, e muito
ordenado, já que a cama em que tinha satisfeito seu desejo
com uma mulher de sangue aristocrático estava pulcramente
feita. A luneta já não se achava sobre a escrivaninha e tinha
sido substituído por um estojo de primeiro socorros de
madeira, cujas gavetas estavam etiquetadas, e por pedaços de
algodão.
Agarrou a garrafa de álcool iodado e jogou uma gota em
uma ponta do lenço antes de tirar a improvisada bandagem e
mover a mão. O sangue voltou a brotar da ferida. Fechou o
punho, e também os olhos, enquanto aspirava seu aroma,
que o rodeava por completo. Cheirava a rosa e a mulher
endemoniada.
— Dá-te medo que arda? — Sua risada lhe chegou da
porta como uma cascata que caísse das pedras até a praia.
Tinha o chapéu pendurado de um dedo.
Jin apertou o lenço impregnado de iodo sobre a ferida.
— Tem medo de ficar tonto quando vê o sangue? —
Viola se aproximou.
— Tenho treze anos sendo mulher, Seton. Estou quase
segura de que vi mais sangue do que você verá na vida.
— Bonita imagem. — esfregou o lenço contra a ferida
para desinfetá-la, sem sentir a ardência. — Acredito que
conviria refrear essa encantadora honestidade quando estiver
vivendo de novo na casa de seu pai, em Devonshire.
Viu-a titubear um momento.
— A casa de meu pai me pertence agora e se encontra
em Massachusetts.
O sangue seguia brotando com cada passar do lenço.
— Que incompetente. — Viola agarrou o algodão da
mesa e segurou sua mão, pondo o algodão sobre o corte e
pressionando com força. — Está há anos capitaneando seu
próprio navio e ainda não sabe como curar uma ferida?
Sabia. À perfeição, é obvio. Tinha curado tantas feridas
de seus marinheiros que tinha perdido a conta. Mas não
tinha desejo de cortar a hemorragia ainda. Esse dia queria
sangrar.
Com o cenho franzido, Viola agarrou a garrafa e
impregnou outra parte do algodão, que colocou sobre a
ferida, estendendo o anti-séptico com movimentos destros e
seguros. Enquanto isso, seus finos dedos o acariciavam, tal
como tinha feito quando o abraçou à luz da lua.
— De verdade não lhes importam nada? Não sente nada
por eles? — Cravou o olhar em seu rosto enquanto ela
trabalhava em excesso na tarefa que tinha entre mãos. — Não
se comove que quem lhe chama irmã e filha sigam esperando
que volte? Que lhe considerem parte de sua família?
Viu-a abrir uma gaveta do armário e tirar uma garrafa
selada com cera.
— Não sabe do que fala.
— Sim, eu sei.
Viola trabalhava com rapidez, tão destra nessa tarefa
como era na hora de dobrar a sua tripulação a fim de que
fizessem sua vontade. Com movimentos suaves, aplicou o
linimento pela palma de sua mão antes de colocar um pano
sobre a ferida e segurá-lo com uma bandagem, que procedeu
a atar para depois soltar sua mão, em seguida, limpou suas
mãos e colocou os remédios no armário. Quando acabou,
fechou-o e guardou a chave no bolso antes de pôr as mãos
sobre os quadris.
— Não aperte o punho se puder evitá-lo. E não use a
mão, salvo para as tarefas mais insignificantes. — Piscou,
como se lhe acabasse de ocorrer uma tarefa não tão
insignificante. — Sempre que poder evitá-lo — repetiu com
certa tensão.
Bonita, atrevida e tímida, confundida como uma virgem,
tudo em uma só mulher. Pela primeira vez no dia, Jin se
encontrou sorrindo, de modo que disse sem pensar:
— E se não poder evitá-lo?
Ela afastou a vista.
— Nesse caso, conheço um ferreiro estupendo que
poderia ter pronto um gancho de ferro em menos de uma
semana. — Agarrou o armário e o colocou no chão, ao pé de
seu catre.
Apesar do grande capote que ocultava suas curvas, Jin
era incapaz de afastar o olhar dela. Poderia passar uma
eternidade contemplando-a enquanto ela se movia, ria,
rebolava os quadris ou permanecia imóvel no tombadilho com
o cabelo ondeando ao vento.
O calor o assaltou... mas era um calor desconhecido,
insistente, que não nascia do desejo. O coração acelerou,
pulsando a um ritmo que só tinha experimentado uma vez na
vida, doze anos atrás. Quando fugiu de seus amos e escapou
através dos campos de cana-de-açúcar. O coração acelerou
da mesma maneira quando lhe fraquejaram as pernas,
exaustas pela fome, com os pés descalços lhe sangrando
pelos canas secas, e seus perseguidores lhe deram caça.
Quando por fim o apanharam, defendeu-se.
Obrigou-se a falar.
— Por que se nega a voltar para casa, Viola? Não pode
desejar viver para sempre desta maneira. — Não precisava
que apontasse a madeira desgastada das paredes nem a
janelinha de seu diminuto camarote, nem os móveis irregular
que mantinha em bom estado sem a ajuda de um criado, só a
de um grumete de sete anos. — Poderia ter muito mais.
Nasceu para ter mais.
— O senhor Castle passou por aqui enquanto eu estava
no escritório do chefe do porto? — Seu precioso rosto
permanecia imóvel.
E essa era sua resposta. O mesmo que ele suspeitava
apesar da noite anterior.
— Não.
Viola pôs-se a andar para a porta enquanto colocava o
chapéu.
— Na cidade recebi notícias sobre o fogo.
Aparentemente, ele se espalhou para um segundo campo,
mas ninguém sabe se chegou a casa. Oxalá estejam todos
bem. — Depois disso, desceu ao convés de canhões. Os
marinheiros a saudaram levando a mão à boina e ela lhes
respondeu com sorrisos, como de costume, mas estava
distraída. Tinha a cabeça em outro lugar. E, aparentemente,
o mesmo podia dizer-se de seu coração. Que estava com
Aidan Castle.
— Mandei Matouba a cavalo — disse. — Deve estar a
ponto de voltar com notícias.
Ela o olhou de esguelha antes de subir a escada de
caminho à coberta principal. Os marinheiros moviam o
guincho, liberando as cordas enquanto cantarolava uma
velha canção e movendo a enorme corrente de âncora, metro
a metro. Jin ordenou que baixassem um bote antes de
encarregar Becoua que arriassem as velas e terminassem
outras tarefas. Ele ignorou o olhar assassino de Mattie e
abandonou Tempestade de Abril junto a sua capitã em
direção ao porto e, dali, à cidade.
O chefe do porto rodeou a escrivaninha com a mão
estendida.
— Senhor Seton, se tivesse sabido ontem à noite quem
era, o teria convidado para almoçar hoje. Mas terei que me
conformar com o jantar desta noite. É obvio, a senhorita Daly
também está convidada. Uma lástima que não tenha visto o
capitão Eccles. Acaba de zarpar para Havana. O capitão
lamentará não havê-lo visto.
— Acredito que não o conheço, senhor.
— É obvio que o conhece. — O chefe do porto aproximou
uma cadeira e fez um gesto a Viola para que se sentasse,
coisa que ela fez, mas com muita indecisão e com os olhos
arregalados.
O chefe do porto voltou a sentar.
— Segundo Eccles, a última vez que se viram ele ainda
não era capitão de seu próprio navio e navegava sob o
comando do capitão Halloway.
— Ah, o segundo de bordo no comando de Halloway .
— Aquele desagradável assunto do pirata Redstone e
aquele conde, como se chamava? Poole? — O chefe do porto
subtraiu importância e começou a procurar algo na gaveta de
sua escrivaninha. — Mas foi uma história muito boa. Minha
esposa e eu achamos muita graça. Eccles deixou isso para
você no caso de que aparecesse pelo porto. É curioso que
tenha aparecido apenas duas semanas depois que ele veio
aqui. — Deslizou o sobre lacrado pela a mesa.
Jin o meteu no bolso do colete.
— Agradeço-lhe o convite para jantar esta noite, senhor.
Mas o que é isso de multa para Tempestade de Abril? Você
me dará permissão para ir a Tobago a fim de retirar os
recursos do banco da senhorita Daly e retornar com a
quantidade estipulada em quinze dias?
— É obvio, é obvio. Não somos selvagens. — O homem
soltou uma gargalhada e ficou em pé. — Mas não até manhã,
depois de ter saboreado a torta de carne de porco e gelatina
da minha esposa. Um homem não viveu plenamente até não
ter provado sua torta de carne de porco. — deu-se uns
tapinhas na barriga antes de acompanhá-los até a porta. —
Por sinal, Seton, tenho que lhe agradecer que apreendesse
Estella no inverno passado. Esses piratas cubanos se
abordaram pelo menos dois navios mercantes carregados que
saíram deste porto e suspeito que também um terceiro
desaparecido que nunca se soube nada mais. São homens
brutais. Brutais, sim, a julgar pelas histórias que contaram
os sobreviventes. Claro que tampouco houve tantos. —
Meneou a cabeça antes de colocar uma mão no ombro de Jin.
— Alegra-me ter um navio como Cavalier por estas águas.
Onde está esse rápido veleiro?
— Atualmente está indisposto, senhor.
— Na doca seca, com certeza. Enfim, devolva-o logo à
água onde poderá ajudar aos homens de bem. E não
cheguem tarde ao jantar ou minha senhora vai me
repreender. As sete em ponto, nem um minuto a mais. —
Fechou a porta.
De volta à rua, entre compradores que passavam com
carretas cheias de produtos habituais em uma cidade
portuária, Viola o olhou.
— Os ingleses são as pessoas mais extravagantes que
conheci na vida. E sabem disso, verdade?
Sob o brilhante céu equatorial, o sangue de Jin corria
devagar por suas veias depois de ter banido a raiva por
enquanto. Isso era ao que se acostumara, para que se
adestrou durante uma década. Para esse jogo que fingia que
seu passado não existia, um passado que só foi escravo,
assassino e ladrão.
— Claro que sabem — respondeu.
Viola o observava oculta pela asa de seu chapéu.
— Suponho que o preferem como aliado que como
inimigo.
Não viu motivo algum para replicar, no final, ela voltara
a falar.
— Tenho que ir a uma loja. Meu vestido ficou destroçado
depois de montar a cavalo ontem à noite e... e... — calou-se
de repente. — Talvez possa me esperar no hotel.
— Como desejar.
Observou-a afastar-se pela rua porque lhe pareceu
impossível não fazê-lo, por mais que quisesse. Duas mulheres
com sombrinhas de rendas se afastaram a toda pressa ao
passar junto dela. Olharam-na, com as cabeças muito juntas,
enquanto cochichavam.
Jin se dirigiu ao hotel. Tirou a carta do bolso do colete
quando entrou na taberna. Sentou-se a uma mesa em um
canto, com as costas contra a parede, e abriu a carta com
sua faca.
Não era do Comandante do Almirantado. Nem sequer do
visconde Colin Gray, seu antigo parceiro no Clube Falcon. A
caligrafia era delicada e pertencia a outro membro do clube
cada vez mais reduzido; em concreto, à única mulher agente,
uma dama com recursos de sobra e muitos contatos no
Almirantado, o suficiente para enviar dúzias de cartas por
todo o oceano Atlântico em sua busca. Uma dama que não o
teria feito sem um bom motivo.
Aparentemente, Constance Read precisava dele.
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Milady:
Tenho o enorme prazer de lhe comunicar que a Águia
Pescadora retornou a Inglaterra e que está a sua inteira
disposição para que o persiga. Temo que assim que o conheça,
já não quererá saber nada mais do resto de membros de nosso
insignificante clube. Como é frequente acontecer com os
homens do mar, eles deixam loucas todas às mulheres. Se isto
chegar a acontecer, meu coração chorará a perda de sua
atenção. Mas não lamento que finalmente possa averiguar a
identidade de um dos nossos. Portanto, se de verdade
descobrir seu verdadeiro nome, rogo-lhe que me conceda a
honra de avisar a hora e o lugar do encontro a fim de me
esconder entre os arbustos e suspirar pelo que vou perder.
Entretanto, terei que conceder às damas o que desejam, e se
estiver em minhas mãos à possibilidade de fazer realidade
seus desejos, farei-o feliz, por mais que vá contra meus
próprios desejos.
A seus pés e tal,
PEREGRINO,
Secretário do Clube Falcon
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26Profiterole ― Profiterole é uma sobremesa feita com uma massa açucarada recheada
com cremes, sorvetes e caldas de acordo com a preferência do consumidor. O doce é
bastante popular na França, país no qual foi considerado uma iguaria real em meados
do século XVI.
— Espera seguir meus movimentos, Yale? — perguntou
enquanto se servia de café. — Pensava que já não fazia esse
tipo de coisas.
— É um antigo costume — aduziu o senhor Yale para
lhe subtrair a importância enquanto puxava a cadeira de
Viola. — Senhorita Carlyle, quer que peça a um destes
eficientes cavalheiros que lhe prepare um prato com uma
seleção de delícias para tomar o café da manhã? — sugeriu,
apontando para os criados.
Viola tinha o estômago um pouco revolto por culpa dos
profiteroles de nata da noite anterior. Essas delícias não
podiam ser boas para um estômago acostumado às bolachas
duras e cereais infestadas de gorgulhos27.
— Chá — disse enquanto se sentava, consciente de que
os olhares dos homens estavam cravadas nela. Pigarreou. —
Como é que se conhecem?
— Apresentou-nos um velho amigo.
— Quem? — perguntou ela, que ficou de pé para aceitar
a xícara e o pires que lhe levava o criado. Suas mãos se
chocaram, o chá se derramou e tanto o punho de sua camisa
como a luva do criado acabaram manchados. — Ai, sinto
muito! — desculpou-se enquanto agarrava um guardanapo
para lhe limpar a luva.
— Não é nada, senhorita — lhe assegurou o criado,
avermelhado como um tomate.
— Oh, não deveria... Sinto-o muito.
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Depois do almoço, em que os cavalheiros não estavam
presentes, Viola foi à biblioteca em busca da leitura. Mais de
uma vez.
Era a maior tola do mundo. Jin não estava ali, é obvio.
De volta no salão, lady Fiona lhe comunicou que os
cavalheiros tinham saído para cavalgar. Viola pensou em ir
ao estábulo e selar um cavalo, mas não sabia como fazê-lo.
Os cavalheiros voltaram pouco antes do jantar. No
salão, seu meio-irmão lhe deu de presente muitos elogios,
mas não se preocupou com sua tolice. Pelo menos, falava
com ela.
Durante o jantar e o chá que se seguiu, a conversa foi
bastante animada e geral, e Jin não se aproximou dela. Viola
tinha aprendido o suficiente a respeito de boas maneiras para
saber que não podia levantar-se de seu assento para ocupar
um mais perto dele. Mas o faria se Jin demonstrasse, embora
fosse só um pouco, que gostaria que ela o fizesse, algo que
não aconteceu. Parecia distraído, com a atenção dividida
entre o grupo onde se encontrava e a porta do terraço.
Essa noite dormiu mal, atenta aos roncos de madame
Roche através da parede, já que seus dormitórios estavam
colados, e enquanto se perguntava onde estaria o dormitório
de Jin. A idéia de que pudesse estar em uma das estadias
mais acessíveis nesse momento, talvez bebendo no salão ou
jogando bilhar com Alex e Tracy, quase a animou a vestir-se
para ir em sua busca. Entretanto, seu orgulho ferido não
permitia. Ele não a desejava, assim não o perseguiria.
No dia seguinte, Serena se reuniu com as damas para
tomar o chá em um estabelecimento de Avesbury, um lugar
muito fofo ao lado da costureira. Depois do refresco, Serena
levou Viola, sozinha, para a loja adjacente.
— O que fazemos aqui, Ser? — Deu uma olhada pelo
diminuto local, cheio de fitas, renda e metros de tecido. —
Tenho certeza de que a senhora Hamper entregou todos
meus... — levou-se uma mão à boca. — Mãe do amor de Deus
é lindo! É para mim?
O sorriso de Serena era tão radiante que não lhe coube
dúvida de que o reluzente vestido que a costureira trazia nas
mãos era para ela.
— Você gosta?
Viola estendeu uma mão para tocar a suave seda da cor
do entardecer, com diminutas pérolas e lentejoulas no
corpete que caíam pela diáfana saia como gotas de chuva
banhadas pelo sol.
— Como não vou gostar? Mas...
— É para o baile de amanhã á noite. Os vestidos que
você tem são lindos, mas nenhum é adequado para uma
celebração desse calibre.
Viola arregalou os olhos .
— Me diga que o baile não é por mim.
— Claro que é por você. Todos os vizinhos de vários
quilômetros da redonda se inteiraram que está aqui. Morrem
por vê-la de novo depois de tantos anos. — Serena torceu o
rosto. — Mas... você não quer comemorar?
— Claro que sim. — Absolutamente. A mera de idéia de
converter-se no centro da atenção lhe provocava suores frios.
Estava segura de que ia fazer algo muito mau e que
envergonharia Serena, Alex e o barão. — Obrigada, Ser. É
muito generosa e estarei encantada de ver todas essas
pessoas. Pergunto-me se me lembrarei delas. — Não se
importava. Só desejava a companhia de um homem de que
logo se veria privada para sempre.
Malta. Malta! Ao outro lado do mundo... Não?
Quando voltaram para casa, foi direto à biblioteca. Ele
não estava ali, mas sim, viu um atlas com tampas douradas.
Abriu o enorme tomo, encontrou a Inglaterra e riscou uma
linha até uma bota que era a Itália. Soltou um enorme
suspiro. Pelo amor de Deus, estava se comportando como
uma menina, tal como ele lhe tinha recriminado. Entretanto,
a lágrima que escorregou por sua bochecha continha a
tristeza de uma mulher.
A enxugou, fechou o livro com força e o devolveu a sua
prateleira.
Importava-lhe um rabanete o que ele fizesse e aonde
fosse. Estaria muito bem sem ele. E talvez, quando o projeto
de converter-se em uma dama transbordasse sua paciência,
retornaria a Boston, onde era seu lugar. Se Alex lhe
emprestasse dinheiro, poderia comprar outro navio e, com
melhor equipamento, embarcaria em novos projetos. A
viagem a Porto Espanha com o carregamento teria sido
lucrativo se o tivesse feito com a idéia de ganhar dinheiro.
Alugaria o navio a um desses ricos mercantes como o senhor
Hat, de modo que poderia devolver o dinheiro a seu cunhado
em um ano. Com sorte. Com um navio em condições,
também poderia viajar frequentemente a Inglaterra para ver
sua família. Isso seria maravilhoso. A atividade lhe sentava
muito melhor que a passividade de ser uma dama, à espera
de que acontecessem coisas ou à espera de que outra pessoa
tomasse as decisões em seu nome, como celebrar uma festa
que participariam famílias de vários quilômetros da redonda.
Ou à espera de que um homem voltasse a olhá-la como se a
desejasse e quisesse lhe dizer algo importante.
Ai, Por Deus!
Levou as mãos aos olhos e inspirou fundo de forma
entrecortada. Não desejava retornar a Boston nem ao mar. Só
desejava Jin. Mas não ia tê-lo. Tinha que controlar-se.
Endireitou os ombros, dirigiu-se à porta, abriu-a e caiu de
rosto em um corpo duro.
Jin a agarrou pelos ombros. E isso bastou para que ela
se perdesse, afogada pelo prazer de tocá-lo de novo, enquanto
seu corpo ardia por completo. Conseguiu abrir os olhos,
embora as pálpebras lhe pesassem muito, e viu sua bonita
boca a escassos centímetros da sua, assim como o tic nervoso
de seu queixo.
«Me beije. Me beije», suplicou em silêncio.
Jin a afastou, voltou-se e desapareceu pelo corredor.
Trêmula, confundida e furiosa porque, pela primeira vez
na vida, não podia dizer a um homem o que pensava em
realidade, Viola foi em busca de Serena para ajudá-la a
preparar o baile do dia seguinte, esse grande evento que a
apresentaria à sociedade, quando em realidade ela somente
queria voltar para o mastro de proa de seu velho navio, para
contemplar o entardecer com um pirata egípcio.
Sua irmã estava deitada no divã de seu vestiário, vestida
com uma bata azul, enquanto embalava sua filha nos braços.
— Está muito tranquila para ser uma mulher a ponto de
celebrar um baile — comentou Viola.
— Estou saboreando este momento de paz. Passei todo o
dia recebendo os convidados que passarão a noite aqui e
certificando-se de que tudo foi feito corretamente. Agora, meu
marido está cuidando do resto. Ele é muito bom em organizar
festas. — Esboçou um sorriso muito doce, com uma
aparência íntima.
O coração de Viola deu um salto.
— Papai chegou a odiar mamãe quando morreu ou só
odiava Fionn?
Serena arregalou os olhos .
— Não acredito que odiasse a nenhum dos dois.
— Não. Tenho certeza de que odiava a meu pai. — Viola
brincou com o cordão do delicado leque branco e dourado,
decorado com pássaros exóticos. Serena acabava de dar de
presente depois que Jane a vestiu em seu bonito vestido e lhe
arrumasse o cabelo. — Foi muito desagradável com o senhor
Seton quando falaram na outra noite. Sobretudo ao
pronunciar a palavra «marinheiro». Quase se engasgou.
— De verdade? — Serena mordeu o lábio inferior. — Não
parece próprio de papai. Mas suponho que tampouco é de
surpreender, tendo em conta a relação entre mamãe e Fionn.
— Suponho que semelhante devoção, que durou anos
apesar de que não se viram, é impressionante.
Esse dia tampouco tinha visto Jin, mas tinha os nervos
à flor da pele de só pensar que ia passar a noite com ele. Que
ia a passar com umas setenta pessoas que lhe importavam
muito pouco.
— Nunca deveriam ter se conhecido, e muito menos
conversado. — Serena suspirou. — Mas o fizeram. E ele foi
incapaz de renunciar a ela, e ela tampouco pôde fazê-lo por
inteiro.
— Com razão papai não gosta dos marinheiros.
— Você é uma marinheira e ele a ama muito.
— Posso entrar? — Vestido com roupas formais, o conde
de Savege irradiava uma aura elegante e viril que não
passaria despercebida para nenhuma mulher.
Viola tinha ouvido o suficiente de boca de madame
Roche para saber que no passado muitas mulheres tinham
reparado em Alex Savege. De fato, não chegava a entender
como sua doce e sonhadora irmã tinha aceito o cortejo de
semelhante homem. Entretanto, não lhe cabia a menor
dúvida de que era fiel a Serena; sua devoção era evidente.
— Entre. — Serena acariciou a cabeça da Maria com um
dedo. — Sua filha acaba de adormecer, então não faça ruído.
— Percorreu-o com o olhar. — Está incrível esta noite.
— Vi-me obrigado a fazer a vã tentativa de estar à
altura de seu esplendor. — Fez-lhe uma reverência. — Não
quero te envergonhar.
— Mas eu posso fazer isso — disse Viola, franzindo o
nariz.
— Claro que não o fará — lhe assegurou Serena. — Está
linda e quase dominou todas as aulas que o senhor Yale te
deu. — Tinha um brilho risonho nos olhos.
— «Quase», isso é o mais importante. Não deixei de pisar
Alex enquanto dançávamos... E não o negue.
— Se não quiser dançar esta noite, não tem por que
fazê-lo — disse ele.
— Suponho que não acontecerá nada se eu dançar
somente com meu pai e contigo. Mas preferiria não ter que
pisar os pés de um desconhecido.
— Jinan não é um desconhecido — comentou Serena. —
Pode pisar seus pés e com certeza não se importará. Tracy
tampouco.
O conde apoiou um de seus largos ombros no marco da
porta.
— O fato de Jin participar de uma festa é um milagre.
Quando Yale anunciou no outro dia que partiria, quase
esperava que Jin também o fizesse. Que tenha ficado mais de
um dia me surpreende.
— Passaram quase dois anos da última vez que se
viram.
— Isso não importaria. Sua lealdade e seu carinho não
funcionam assim. Mas nunca o vi tão inquieto. Não está bem.
— Talvez necessite uma atividade adequada a sua
natureza. Deve sentir falta de seu navio. — Serena a olhou de
repente. — E talvez você também tenha, verdade, Vi?
A boca de Viola secou.
— Um pouco.
— Serena, não se surpreenda se ela se for tão de repente
como chegou — advertiu Alex. — Pode ser amanhã ou na
semana que vem.
— Não me surpreenderia absolutamente. Não sou uma
completa ignorante a respeito dos costumes dos marinheiros.
— Os olhos de sua irmã relampejaram. Alex sorriu.
E Viola sentiu o coração a ponto de explodir. Tanto que
ficou em pé.
— Terminarei de me arrumar. — Ela quase correu para
a porta.
— Mas você já está...
Fugiu da estadia. Não suportava a idéia de que se fosse.
Outra vez não. Não tão rápido. Porque seria uma despedida
definitiva. Partiria e ela não voltaria a vê-lo na vida, e seria o
melhor.
Maldito fosse. Maldito fosse por retornar e alterá-la
tanto.
Alterá-la? Não estava alterada como uma idiota
inocente. Estava confundida, certamente que a qualquer
momento, quando ele decidisse partir tão repentinamente
quanto Alex havia previsto, seu coração terminaria de
romper-se.
Os convidados tinham chegado ao longo de todo o dia.
Quando o sol se pôs, inundando o oceano envolto em
pinceladas cinzas e rosadas, a casa estava a transbordar. Não
era um grupo muito numeroso, assegurou-lhe madame
Roche.
— Rien qu'unepetite fête37. Só umas oitenta pessoas.
Umas oitenta pessoas, que Viola se enfastiava muito
mais. Todas elegantemente vestidas, conversando sobre a
capital e de quando voltariam para a temporada social.
Pareciam-lhe muito sofisticadas. Os criados se moviam entre
o matagal de gente com bandejas cheias de taças de
champanha, enquanto as damas se congregavam em grupos
e os cavalheiros bebiam vinho e outras bebidas mais fortes.
No salão, lady Fiona tocava o piano com perfeição, depois
outra jovem ocupou seu lugar que também cantou. Houve
muita conversa animada, mais música a cargo do quarteto
contratado, um lauto jantar e, por fim, o baile. A luz das velas
arrancavam brilhos a todas as superfícies. As risadas saíram
até o terraço, iluminado com lanternas chinesas, enquanto os
bailarinos desfrutavam da cálida noite. Todos pareciam
encantados com os entretenimentos, dando de presente
sorrisos e felicidade à esquerda e a direita.
Viola, em troca, tentava esconder-se.
No princípio, tinha desfrutado de um pouco. Mas
recordava muito poucas das pessoas. As damas d mais
velhas se viraram para ela, insistindo que ela tinha sido uma
garota muito bonita.
— E tão... briosa — proclamou uma dama com um
sorriso de orelha a orelha. — Uau, Amelia, recorda aquele
38Pardonnez-moi – perdoe-me.
39très jolie – muito bonita
Nesse caso, por que não a tinha beijado na biblioteca?
Por que tinha partido? Não, por que tinha fugido? E por que
não se aproximava dela para falar nesse momento?
Voltou-se, passou a outra estadia e encontrou três
cavalheiros, a quem distraiu lhes contando anedotas
escandalosas. As inventou em sua maioria. Se estavam
casados com as damas que inventaram as histórias sobre ela,
já estariam acostumados.
Dançou um pouco. A primeira peça com o barão, depois
com Tracy e por último com um dos três anciões. Quase não
pisou a nenhum deles. Vários cavalheiros mais jovens a
convidaram para dançar, mas ela recusou com um sorriso.
— Seus sapatos reluzem muito. Eu não gostaria de
deslustrá-los pisando com a sola de meus escarpins.
De fato, sorriu sem parar, riu abertamente das frases
mais engenhosas, inventou uma anedota atrás de outra, a
cada qual mais inverossímil, e tentou demonstrar a si
mesmo, e a Jin, que não se importava com ele. Como
tampouco se importavam com as jovenzinhas com quem ele
parecia desfrutar dessa noite.
Em um dado momento, tarde da noite, ou talvez deveria
dizer quase entrada da manhã, e quando acreditou que lhe
cairiam os pés se não conseguia livrar-se dos apertados
escarpins, os convidados começaram a partir. Os que viviam
perto subiram a suas carruagens, e os que tinham vindo de
pontos mais afastados se retiraram dando saltos pelos
corredores em labirinto em direção a seus quartos.
— Todos se apaixonaram por você. — Serena passou um
braço pela sua cintura e a beijou na bochecha. — E parecia
que estava se divertindo. Estou muito feliz.
— Obrigada por esta estupenda festa, Ser. Foi
maravilhosa.
E por fim terminou, de modo que podia partir para seu
dormitório e passar o resto da noite chorando pelo homem
que tinha cometido a estupidez de apaixonar-se. A última vez
que o viu, lady Fiona estava agarrada a seu braço, enquanto
duas jovenzinhas a olhavam com inveja. Pelo menos, não era
a única que sentia ciúmes, embora lhe revolvessem o
estômago.
— Vamos, acompanho-te — disse Serena.
— Não, não. Claro que quer ver Maria antes de se deitar,
e tem que estar esgotada.
— Pois subiremos juntas. E aqui vem meu marido para
nos acompanhar. Sobe conosco?
O conde se aproximou delas e agarrou a mão de Serena
para beijar-lhe
— Estou no comando dos jogos de cartas. Cartas! Como
se minha adorável esposa não estivesse me esperando.
Alguns homens jamais aprenderão.
— Mas tem que te comportar como um bom anfitrião —
replicou sua adorável esposa enquanto arrastava Viola para
a escada.
No patamar do terceiro andar, Viola se soltou.
— Obrigada. Anda, vá ver Maria.
Serena, apesar do cansaço, esboçou um sorriso antes de
partir.
Arrastando os pés, Viola pôs-se a andar pelo corredor às
escuras, desejando ter levado consigo um candelabro ou uma
pequena lâmpada, depois se alegrou de não havê-lo feito.
sentia-se tão cansada e tão derrotada que parecia ter
atravessado uma tempestade. E o fato de sentir-se tão mal
depois que sua irmã atirasse a casa pela janela com uma
fabulosa festa em sua honra fez com que se sentisse ainda
pior. No meio do corredor, encontrou-se com um par de
damas, muito juntas uma da outra, fofocando sem cessar.
Desejou-lhes boa noite e elas responderam com gestos da
mão, sem deixar de cochichar. Viola continuou andando,
apesar dos pés doloridos e cheios de ampolas.
Depois de cinco minutos andando, deu-se conta de que
tornou a se perder. Nessa ocasião, literalmente. O corredor
estava agora iluminado pelos faz ambarinos dos abajures de
parede, dispostos a intervalos regulares. Não reconheceu
nada, nem a mesinha auxiliar nem o quadro da parede.
Nunca tinha estado nesse corredor. Escutou vozes ao longe.
Parecia que os servos onipresentes tinham perdido o poder da
onipresença.
Deteve-se e se virou. Jin caminhava para ela. O coração
começou a pulsar com força no peito.
— Que probabilidade tem que me perca e você apareça
de um nada para me levar de volta ao lugar que me pertence?
— perguntou com voz trêmula.
— Nenhuma. — deteve-se diante dela, tão perto como a
noite do terraço, quando falou com ela pela última vez, e
como na porta da biblioteca, quando ele não o fez. — Estava
te procurando.
— A mim? — Foi incapaz de morder a língua.
Aparentemente, ele estava conectado ao seu coração. — Tem
certeza de que não estava à procura de Lady Fiona?
— Muita certeza.
Aqueles olhos azuis a percorreram por completo,
começando pelo cabelo, seguindo pelos ombros e detendo-se
no ponto onde sua respiração agitada fazia com que seu peito
tremesse debaixo do corpete. Queria que a olhasse assim,
verdade, mas já a tinha olhado assim antes e a tinha
rechaçado depois.
— Ela deseja-te — resmungou em um intento por
afugentá-lo com essas palavras.
— Eu não a desejo. — Jin a agarrou pelos braços, e com
muito pouco cavalheirismo, inclinou-se para ela. — Desejo
somente você.
E, por fim, voltou a beijá-la.
25
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40Tílburi ― carro de duas rodas e dois assentos, com capota e sem boleia, puxado por
um só animal.
41Ensaísta -diz-se de ou autor de ensaio literário.
— Ah, ma chère mademoiselle, joga hoje muito pior do
que jogou no campo, em casa de sua irmã. — Ela disse com
um sussurro francês.
— De fato, estou jogando mal — replicou Viola com um
resmungo.
— Como você está fazendo com os alfinetes que lhe
sustentam a bainha? — perguntou lady Fiona com expressão
esperançada.
— Me cravam nos tornozelos. Mas é o mínimo que
mereço por pisar mal ao descer da carruagem.
— Que dilacerador! — Madame Roche lançou um par de
ases.
— Dilacerador? — Viola começou a sentir a ardência das
lágrimas nos olhos.
— Sim, sabe, pelos arranhões na roupa ou na pele,
senhorita Carlyle. — Lady Emily olhou suas cartas com o
cenho franzido. — O acento do Clarice é encantador, mas às
vezes não se expressa bem. — Olhou para Viola com atenção.
De fato, ela tinha muito medo de que suas amigas e sua
irmã conhecessem muito bem como se sentia dilacerada.
Estavam tão conscientes dela que a colocaram nervosa. Era
impossível apreciar as maravilhosas vistas de Londres com
tal estado de irritação; além disso, Viola detestava sentir-se
assim. Necessitava um pouco de atividade para espantar seu
mau humor.
Com isso em mente, depois de quatro dias residindo em
Londres, acompanhou Serena e Alex a um jantar, que depois
se celebraria um baile. E dançou. Pisou nos pés de distintos
cavalheiros. Ninguém se divertiu com ela ou riu, embora,
talvez, o mais devastador foi que, quando terminou a música,
nenhum cavalheiro perfeito apareceu pelo corredor, estreitou-
a entre seus braços e fez amor com ela.
Jin tinha partido. Enquanto ela vivia como uma dama,
quando em realidade não era, quando não tinha o menor
vínculo com o que tinha vivido há tantos anos. E isso era o
desastre no que tinha se convertido sua vida.
Na tarde seguinte, do outro lado das janelas da sala,
havia uma paisagem maravilhosa tingida de cinza e dourado,
que os terraços pareciam de bronze brunido contra as
colunas de fumaça cinza. Entretanto, ela não podia desfrutar
de dita paisagem. Estava sentada em uma poltrona, com o
bastidor no regaço e um livro sobre a mesinha auxiliar que
tinha ao lado, mas era incapaz de afastar o olhar do cristal,
enquanto desejava com todas suas forças retornar ao
tombadilho de Tempestade de Abril. Porque ali poderia
rebelar-se contra a solidão que seguia atormentando-a ainda,
apesar de estar em Londres, rodeada pelas pessoas a quem
amava. Por todas menos uma.
Quando Serena lhe tocou no ombro, deu um pulo,
atirando o bastidor no chão.
— Sinto muito. — Sua irmã se sentou no divã na frente
dela. Era uma bela imagem, vê-la sentada com um vestido de
seda água-marinha com pérolas bordadas. — Você vai sair
esta noite?
— Sim. Te falei da noite musical durante o café da
manhã. Vim te dizer que a carruagem estará pronta em
seguida, mas vejo que não está arrumada. — Inclinou a
cabeça.
— Sinto muito, Ser. Parece-me que esta tarde não estou
de humor para nada.
Sua irmã lhe tocou o dorso da mão.
— Vi, você está se sentindo mal? Quero dizer, você é
infeliz.
Também tinha lhe perguntado isso, havia-lhe dito que
era incapaz de manter-se afastado dela e depois partira.
— Estou muito feliz por estar com você, Ser. E com Alex
e Maria. E amanhã vou encontrar Kitty e Lord Blackwood.
Depois de tudo o que você me contou sobre a irmã de Alex,
não posso esperar para conhecê-la.
Serena lhe apertou a mão.
— Mas é feliz?
A pergunta trouxe um nó na garganta.
— Ele me trouxe aqui — sussurrou, deixando que as
palavras, por fim, brotassem de seus lábios — e você me
converteu em uma dama, mas nunca serei uma. Não, de
verdade, por muito que me esforce. Por fora, posso esfregar o
rosto com suco de limão e tocar a harpa (mesmo que seja
péssimo), mas por dentro sigo amaldiçoando como um
marinheiro. — Cravou o olhar no entardecer, que tingia o céu
de tons rosas e cinzas, uma vez que tinha desaparecido o
dourado. — Mas não posso retornar a minha antiga vida. Ser,
onde está meu lugar agora?
— Não quer isto, Vi?
— Sim, quero-o. — Agachou a cabeça e levou as mãos
aos olhos. — Mas quero muito mais a ele.
— Refere-te ao senhor Castle? — Serena parecia cética.
— Refiro-me ao senhor Seton.
Depois de um breve silêncio sua irmã disse:
— Ai, Vi.
— Eu sei — gemeu antes de ficar em pé de um salto e
aproximar-se da janela, o mais perto do crepúsculo que
podia. — Sei, de verdade que sim. Acredito que soube apenas
em vê-lo. — Se agarrou à cortina de brocado e apoiou a testa
no tecido. — Entretanto, para ele fui apenas um saque para
obter um prêmio. — E prazer transitivo. Pelo menos tinha lhe
dado isso. Talvez até lhe tenha dado algum entretenimento.
Gostava de fazê-lo sorrir, gostava de ver estrelinhas. Mas
jamais voltaria a desfrutar dessa alegria.
— Um prêmio?
Viola se sentou no batente acolchoado.
— O botim que Alex lhe pagou por me encontrar e trazer
de volta a casa.
Serena se aproximou dela.
— Alex não lhe pagou um só xelim, Vi.
— Claro que sim.
— Não, não o fez. Além disso, mesmo que Alex tivesse
oferecido pagamento, Jinan não teria aceitado. Por Deus, se
ele é mais rico que Creso42. Acho que ainda mais rico do que
42Creso ― Creso foi o último rei da Lídia, da dinastia Mermnada, filho e sucessor de
Aliates que morreu em 560 a.C .
meu marido, depois de todas as noites que Alex passou nas
mesas de jogo. Não sabia?
Viola engoliu saliva para desfazer o nó que tinha na
garganta.
— Não — conseguiu dizer com um fio de voz. — Não
sabia. — Meneou a cabeça. — Mas por que ele passou tantos
meses procurando por mim e teve tantos problemas para me
convencer a voltar se não o fizesse pelo dinheiro de Alex?
Serena se sentou a seu lado.
— Eu diria que era o contrário. Jinan acreditava que ele
estava em dívida com Alex.
— Que ele estava em dívida?
— Não queria que fosse eu quem te contasse isto, mas
acredito que deve sabê-lo. Quando criança, Jinan foi escravo
durante dois anos. Alex, que não era muito mais velho que
ele naquela época, conseguiu libertá-lo.
Viola respirava com dificuldade.
— Mas isso aconteceu há vinte anos.
— Vejo que sabia.
— Mas eu não sabia que Alex estava envolvido.
— Jinan te buscou por mim, porque acreditava que era
a única forma que podia pagar a meu marido. É obvio, Alex
jamais esperou nenhum pagamento ou pediu, Jin não tinha
que fazer nada.
Viola ficou em pé e cruzou a estadia, muito alterada de
repente.
— E todo este tempo acreditei... — Não podia pensar. —
Nunca...
Sua volta à Inglaterra tinha sido mais importante para
ele do que supunha. Tinha entendido o amor que seu amigo
sentia por sua mulher e, de algum jeito, também o vínculo
entre Serena e ela quando eram meninas. Ele era um homem
que estava tão sozinho quanto podia, tanto pela tragédia de
sua vida como por decisão própria, mas tinha decidido saldar
sua dívida daquela maneira. Porque Alex lhe tinha dado o
mais importante para ele.
Sentia uma dor muito profunda, pelo menino que foi e
pelo homem no que se converteu. E o amava com desespero.
— Viola, você vai se vestir para sair? — A voz de Serena
soava estranha.
Voltou-se para sua irmã e se engoliu a desdita.
— Ser, de verdade que não tenho vontades de...
— Por favor, vista-se. Eu gostaria de fazer uma visita a
Kitty antes da festa desta noite. Não tem que se arrumar para
a noite. Deixaremos você em casa depois de visitar lady
Blackwood.
— Muito bem. — Pôs-se a andar para a porta, com a
cabeça encurvada e sem se importar para aonde ia.
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Querida senhora:
Escrevo-lhe para comunicar uma péssima notícia: a Águia
Pescadora abandonou o Clube. De modo que nosso número se
viu dramaticamente reduzido. Agora somos um patético
grupo... de três. Seria tão amável de abandonar sua
campanha contra nosso pequeno grupo de companheiros, tê-la-
ia para sempre na lista de meus adversários mais dignos e
jamais cessaria de elogiá-la.
Se o fizer, não obstante, confesso que sentirei sua perda.
Atentamente,
PEREGRINO,
Secretário do Clube Falcon
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Para Peregrino:
Suas adulações não me afetam. Não retrocederei jamais
em meu empenho. Sejam três, dois ou só um, encontrá-los-ei e
os exporei ao escrutínio público. Ande de olhos abertos, senhor
secretário. O dia de seu julgamento se aproxima.
Lady Justice
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