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Como Ser Uma Dama

(O Clube do Falcão 02)

Katharine Ashe
Sinopses

Viola Carlyle não se importa em transgredir as regras


que a sociedade vitoriana lhe impõe. Embora se supõe que as
damas nunca devem beijar a um homem que não seja seu
prometido, ela anseia com desespero beijar ao atraente
capitão Jinan Seton.
Ele também está interessado, mas tem um propósito
oculto: saldar uma antiga dívida. E embora haja jurado não
permitir que Viola conquiste seu coração, essa dama que tem
muito pouco de dama poderia acabar sendo a mulher que por
fim o dobre.
A consciência, verdugo invisível que tortura a alma, é um açoite
implacável e feroz.

Sátira XIII, JUVENAL, século I a. C.

(Chamado no The Pirates Own Book, século XIX)


Prólogo

Devonshire, 1803

As meninas brincavam como se nada de ruim pudesse


acontecer com elas. Porque nada podia lhes ocorrer na verde
colina da qual se observava o oceano e onde tinham brincado
toda a vida. Seu pai era um barão, de modo que usavam
grossas anáguas brancas de musselina que as cobriam até às
panturrilhas e aventais bordados com fio de seda.
Soprava uma leve brisa que lhes colava as saias às
pernas e lhes alvoroçava o cabelo, inclinando seus chapéus
uma e outra vez. A mais velha, que tinha treze anos e era alta
e com membros longos como se fosse um moço, estava
recolhendo delicados jacintos silvestres para fazer um
ramalhete. A pequena, baixa e risonha, girava com os braços
cruzados, lançando ao ar uma chuva de violetas silvestres.
Correu para a borda do escarpado com seus cachos escuros
flutuando ao vento. Sua irmã a seguiu com um brilho
sonhador nos olhos enquanto seus loiros cabelos se agitavam
em torno de seus ombros.
No horizonte, a muitas milhas de distância, ali onde o
céu azul se encontrava com o resplandecente oceano,
apareceu uma vela.
— Ser, se fosse um marinheiro — gritou a sua irmã
pequena, — converter-me-ia no capitão de um navio imenso e
navegaria até os limites do mundo para poder contar minha
façanha depois.
Serena meneou a cabeça com carinho.
— Vi, as mulheres não podem ser marinheiras, não é
permitido.
— Quem se importa com o que é permitido e o que não
é? — A risada de Viola flutuou na brisa, a seu redor.
— Se alguma garota pode converter-se em capitã de um
navio, é você — replicou Serena, com um brilho carinhoso
nos olhos.
Viola correu para abraçar a sua irmã pela cintura.
— Serena, você é uma princesa.
— E você é um duende, por isso te admiro muito.
— Mamãe admira os marinheiros. — Viola começou a
saltar muito perto da borda do escarpado. — A vi falando com
um em Clovelly, no dia que fomos comprar as fitas.
— Mamãe é amável com todo mundo. — Serena sorriu.
— Tenho certeza que estava dando esmola.
Entretanto, Viola não achava que sua mãe estava dando
esmola. Tinha-a visto falar com o marinheiro durante um
bom tempo e quando retornou ao seu lado, tinha os olhos
cheios de lágrimas.
— Talvez ele quisesse mais dinheiro do que o que
mamãe podia lhe dar.
O navio se aproximou e dele desceu um bote com doze
remos. As irmãs observaram a cena. Elas estavam
acostumadas, já que viviam muito perto do porto, mas
possuíam a curiosidade típica das crianças.
— Ser, acha que são contrabandistas?
— Poderiam sê-lo, suponho. A cozinheira disse que
havia contrabandistas pela área na quarta-feira, quando foi
ao mercado. Papai disse que os contrabandistas são bem-
vindos porque estamos em guerra.
— Não reconheço o navio.
— Como vai reconhecer algum?
Viola revirou seus escuros olhos violetas.
— Pela bandeira, tola.
O bote se aproximou da praia situada aos pés do
escarpado, subindo e baixando sobre a espumosa crista das
ondas. Os marinheiros saltaram à água e molharam as
calças. Alguns arrastaram o bote até a pedregosa borda.
Quatro deles se dirigiram ao estreito atalho que subia pelo
escarpado.
— Parece que querem subir — comentou Serena, que
mordeu o lábio inferior. — Mas estas terras são de papai.
Viola se agarrou aos dedos de sua irmã. Encontrar-se
tão perto de contrabandistas era algo que só acontecia em
seus sonhos. Talvez perguntasse por suas viagens ou pelo
carregamento do navio. Talvez levassem algum tesouro a
bordo valioso procedente de terras longínquas. Certamente
eles tinham muitas histórias para contar de outras terras.
— Segure bem na minha mão, Ser — disse com a voz
trêmula pela emoção. — Nós vamos cumprimentá-los e lhes
perguntar o que oferecem.
O marinheiro que guiava os outros era um homem
musculoso, bonito e um tanto sinistro. Mas, absolutamente,
estava sujo ou mal vestido como seria de esperar. Tanto ele
como seus companheiros coroaram o escarpado e se
aproximaram diretamente a elas.
— Caramba! — exclamou Viola. — É o mesmo
marinheiro que mamãe estava falando no outro dia!
As meninas os observaram e não viram nada perigoso
na saudação sorridente e afável do marinheiro, cujos olhos se
cravaram em suas mãos unidas. Porque contavam com seu
amor fraternal, feroz e terno, e nada de ruim poderia
acontecer com elas.
1

Londres, 1818

Compatriotas britânicos:
Os cidadãos de nosso grande reino não devem continuar
vendo que o dinheiro que ganham com seu suor é esbanjado
pelos ricos ociosos. Minha missão continua! Enquanto
solicitava informação sobre o misterioso clube para cavalheiros
localizado em 14 V de Dover Street e conhecido como Clube
Falcon, descobri algo muito intrigante. Um de seus membros é
um homem do mar e o apelidam de Águia Pescadora.
Pássaros em todos os lugares! Qual será o próximo
apelido, Mamãe Pata?
Infelizmente, não consegui descobrir o nome de seu navio.
Mas não me surpreenderia nada que fosse um membro da
Armada ou um corsário. Outra despesa em nome dos cofres
públicos para apoiar os interesses pessoais daqueles que já
gozam de privilégios imensuráveis.
Não descansarei até que todos os membros do Clube
Falcon sejam descobertos ou, devido a minha investigação, até
que o dito grupo se debande por temor à identificação.
LADY JUSTICE

****

À atenção de Lady Justice Brittle & Sons, editores


Londres
Estimada senhora:
A sua persistência na descoberta da identidade dos
membros de nosso humilde clube é gratificante. Agrada-nos em
grande medida ser o centro de atenção de uma dama de
semelhante envergadura.
Acertou em cheio. Um de nossos membros é, certamente,
um homem de mar. Desejo-lhe muita sorte para identificá-lo
entre a legião de ingleses que navegam nos mares. Ah, a
propósito! Me permite ajudá-la? Possuo um modesto esquife1.
Ficarei feliz em emprestá-lo para que você possa ir ao mar em
busca de seu inimigo. Melhor ainda, ofereço-me para remar.
Talvez enquanto esteja sentado frente a você, conduzindo o
leme para sulcar as espumosas ondas, apaixone-me tanto por
sua beleza como por sua tenaz inteligência... porque só uma
beldade poderia ocultar-se atrás de um nome e um projeto tão
aterrador.
Confesso que a curiosidade me tomou e que estou tentado
em descobrir sua identidade com a mesma insistência com que

1Esquife ― Embarcação de pequeno porte que presta serviços e auxilia a embarcação


principal e maior.
você procura a nossa. Senhora, uma palavra sua bastará para
que leve meu barco até sua porta neste momento.
Atentamente,
PEREGRINO
Secretário do Clube Falcon

****

Estimado senhor:
Deixei a nota com o nome codificado em um lugar onde LJ
possa encontrá-la e não perder o tempo perseguindo sombras.
Não tenho dúvidas de que seus bolsos estão tão vazios quanto
sua bravata, de modo que deve manter contente seu editor.
De fato, o nome do código de Águia Pescadora pode dar-
se por perdido. Não tive comunicação direta com ele há quinze
meses. O Almirante me informou que embora siga ostentando
uma patente de corsário, não tem notícias dele desde que
acabou esse assunto escocês faz mais de um ano. Até
trabalhando para o Clube se regia por suas próprias normas.
Eu suspeito que ele renunciou, como já pensávamos. Devemos
agradecer, pelo menos, agora por ser leal à Coroa e não ao seu
inimigo.
A seu serviço, PEREGRINO
2

Jin Seton cravou a vista em seu único amor e o sangue


congelou em suas veias. O vento e a chuva o açoitavam
enquanto observava como a personificação da beleza se
afundava no fundo do oceano Atlântico, envolto em chamas e
fumaça negra.
O veleiro mais elegante que jamais tinha sulcado os
mares.
Desaparecia.
Seu peito exalou um gemido silencioso quando os
últimos restos de madeira ardente, de vela e de quilha
desapareceram sob a borbulhante superfície esverdeada.
Alguns pedaços saíram flutuando, pedaços de pranchas e de
mastros, barris vazios e farrapos de velas. Sua preciosa
carapaça permaneceu no fundo.
A coberta do bergantim2 norte-americano se balançava
sob seus pés separados e a chuva aumentava, ocultando os

2Bergantim é uma embarcação do tipo da galé, de um a dois mastros e velas redondas


ou vela latinas. Levava trinta remos e era utilizado como elemento de ligação,
exploração, como auxiliar de armadas ou em outros serviços do gênero. Wikipédia
restos de seu navio naufragado, a uns cinquenta metros de
distância. Fechou os olhos com força para conter a dor.
— Foi muito bom, Jin — disse o grande homem ao lado
dele, sacudindo sua cabeça morena. — Não foi sua culpa que
ele tenha ido ao fundo.
Jin franziu o cenho. Não era culpa dele. Abençoados
corsários americanos que atiravam em tudo o que navegava!
— Eles se comportaram como piratas, — replicou entre
dentes com voz rouca. — Eles afundaram um barco. Eles
dispararam sem aviso prévio.
— Eles nos disparam sem perceber. — A enorme cabeça
assentiu.
Jin soprou e apertou os dentes enquanto seus braços se
esticavam contra as cordas que o amarravam ao mastro do
bergantim. Alguém ia pagar por isso. Da forma mais dolorosa
que lhe ocorresse.
— Tratou-a como a uma rainha, é claro que sim —
resmungou Mattie, cuja voz se impôs ao crescente rugir da
raiva que alagava os ouvidos de Jin.
Uma raiva que amortecia os gritos e os gemidos dos
feridos a seu redor. Voltou á cabeça para dar uma olhada a
seu enorme timoneiro, procurando, contando. Matouba
estava amarrado a um corrimão; Juan, a um equipamento de
barco. Pequeno Billy se debatia contra um marinheiro que o
dobrava em tamanho. Grande Mattie cobriu o resto da
coberta, mas havia trinta...
— Os outros conseguiram subir nos botes quando
começou a queimar, — grunhiu Mattie. — Os caras são muito
bons, porque se não fossem não seriam piratas... Você não
precisa se preocupar com nada.
— Não terei que preocupar-me com nada. — Jin soltou
uma gargalhada amarga. — Estou mais amarrado do que um
peru no forno e a Cavalier está no fundo do mar. Não, eu não
tenho que me preocupar.
— Não me venha com essa. Sei que se preocupa mais
com nossos moços que por sua dama, e olhe que a mimava.
— Equivoca-te como sempre, Matt.
Levantou a cabeça e viu a bandeira do estado de
Massachusetts que se pendurava murcha pela chuva que lhe
golpeava o rosto. Tinha perdido o chapéu. Sem dúvida
alguma o perdeu em algum momento durante a escaramuça
que o levou do barco para o convés inimigo, quando de
repente percebeu que havia ordenado que seus homens que
abordassem um navio corsário norte-americano, não um
navio pirata. A chuva escorria do nariz para a boca. Ele
cuspiu e olhou ao redor.
A coberta do bergantim, encoberta por uma capa
cinzenta, estava cheia de homens e de madeira. Homens de
ambas as tripulações jaziam deitados enquanto outros
tentavam curar as feridas com urgência. As velas pendiam
dos mastros, algumas rasgadas. Uma das vergas3 estava
quebrada e os corrimões tinham acabado destroçados pelos
tiros de canhão. Além disso, havia restos de pólvora por toda
parte. Embora tivesse sido pego de surpresa, Cavalier se
defendeu bem. Entretanto, o navio ianque ainda estava

3Vergas ― Pau atravessado no mastro e a que se prende a vela do navio.


flutuando. Enquanto que o navio de Jin, Cavalier, estava no
fundo do mar.
Voltou a fechar os olhos. Seus homens estavam vivos e
ele podia permitir-se comprar outro navio. Podia permitir-se
comprar mais doze navios. É obvio, tinha prometido ao
anterior dono de Cavalier que cuidaria dela. Mas tinha
prometido a si mesmo muito mais. Esse golpe não o deteria.
— Estivemos piores. — Mattie arqueou suas espessas
sobrancelhas.
Jin lhe lançou um olhar sombrio.
— Vamos, você esteve pior — se corrigiu o timoneiro.
Em situações muitíssimo piores. Mas nenhuma tão
humilhante nem tão dolorosa. Ninguém ganhava de sua mão.
Ninguém.
— Quem fez isso? — grunhiu, entrecerrando os olhos
para protege-os da chuva. — Quem diabos conseguiu se
aproximar tão rápido sem ser detectado?
— Pois foi Sua Alteza, senhor. — A voz cantando veio até
ele. O menino, magricela, sardento e ruivo sorriu para ele
mostrando-lhe os dentes, levou uma mão à cintura e fez uma
reverência. — Bem-vindo a bordo de Tempestade de Abril,
capitão Faraó.
Jin ficou tenso da cabeça aos pés.
«A Tempestade de Abril», pensou.
— Quem é o capitão deste navio, moço?
O menino estremeceu ao escutar seu tom desanimado.
Então ele examinou as cordas que os amarravam ao mastro
principal pela cintura, peito e mãos, e os magros ombros
relaxaram.
— Violet Laveel, senhor — replicou.
— Deixa de se mover, menino, e diga a sua senhoria que
venha — rugiu Mattie.
O menino arregalou os olhos e partiu a toda pressa.
— Violet a Vil? — resmungou Mattie antes de apertar
seus grossos lábios. — Mmmm.
Jin inspirou fundo para acalmar-se, mas o coração
pulsava muito depressa.
— Os moços estão preparados?
— Estão há meses. Claro, não importa agora, porque
estão todos amarrados.
— Estou falando... — Mattie franziu seu enorme nariz.
— Mattie, se não fechar a boca, vou fechá-la, mesmo
que esteja amarrado.
— Sim, capitão. Como quiser.
— Maldito seja, Mattie, como depois de todo esse tempo
você consegue pensar até...
— Bem, bem, bem, o que temos aqui, meninos? — A voz
lhes chegou antes de ver a mulher, uma voz melódica,
harmoniosa e doce, como a carícia da seda contra a pele.
Muito distinta de qualquer outra mulher feita ao mar que Jin
conhecesse.
Entretanto, quando apareceu ante seus olhos depois de
rodear seu timoneiro, Jin comprovou que seu aspecto era
muito comum. Através da intensa chuva, viu pela primeira
vez a mais famosa e mais bem sucedida corsária de
Massachusetts: Violet, a Vil.
A mulher que ele estava procurando há quase dois anos.
Os marinheiros a rodearam de forma protetora,
olhando-a com adoração e lançando olhares assassinos a Jin
e seu timoneiro. A mulher era mais baixa que os homens que
a protegiam. Ela lhe chegaria ao queixo. Vestia calças largas e
um longo casaco de lona desgastado; além disso, ela usava
um enorme lenço preto em volta do pescoço, um boldrié4 com
pelo menos três pistolas diferentes e um chapéu de abas
abertas que escondia seu rosto. Não se parecia muito com
sua irmã. Entretanto, Jin tinha passado incontáveis noites
nos portos de Boston para Vera Cruz, embebedando
marinheiros e a mercadores, subornando-os com algo que
tivesse a mão para solicitar informação sobre a menina que
desaparecera quinze anos atrás. O fato de que a mulher que
tinha encontrado não se parecesse absolutamente com uma
elegante dama inglesa não importava.
Violet, a Vil era Viola Carlyle, a menina a quem tinha
saído para procurar desde Devonshire há vinte e dois meses
atrás. A menina que, aos dez anos, foi raptada por um
contrabandista norte-americano da casa de um cavalheiro. A
garota que todos, exceto sua irmã, achavam que estava
morta.
A aba do chapéu se elevou devagar na chuva. Ante seus
olhos, apareceu um queixo alongado, seguido de uma boca

4Boldrié ― Correia usada por militares cruzado no peito, para prender a arma;
talabarte.
franzida, um nariz fino e bronzeado e um par de olhos
entrecerrados, com rugas nos cantos. Olhos que o
observaram da cabeça aos pés. A mulher ergueu uma
sobrancelha e seus lábios brilharam com um sorriso irônico.
— Então, este é o famoso Jin Seton que tanto ouvi
falar... O Faraó. — Sua voz se deslizava como uma vela sobre
um mastro bem engordurado. As espessas pestanas se
agitaram enquanto o observava de novo, embora mais rápido
nessa ocasião. Ela balançou a cabeça e fez beicinho. — Que
decepção.
Mattie quase se engasgou. Jin entrecerrou os olhos.
— Como sabe quem sou?
— Seus homens. Eles se gabavam de você, mesmo que
estivesse perdendo a luta. — Riu e colocou os braços sobre os
quadris antes de voltar-se para os homens que a rodeavam.
— Olhem, meninos! A Armada britânica enviou seu pior
pirata para me apreender.
Os marinheiros aclamaram, e os aplausos e assobios se
estenderam pelo convés. Os homens se aproximaram com
grandes sorrisos, deixando a descoberto suas dentaduras
maltratadas, e rindo a gargalhadas, brandindo mosquetes e
espadas. Ela ergueu a mão e houve silêncio, tudo o que você
podia ouvir era o golpe das ondas contra a quilha do
bergantim e o da chuva contra as velas e a madeira. A mulher
cravou o olhar, tão afiado como uma faca, em Jin.
— Suponho que deveria me sentir adulada... — Sua voz
era como o veludo.
Por um instante, um momento totalmente inusitado, Jin
sentiu um nó na garganta. Nenhuma mulher deveria falar
com essa voz. Salvo quando estava na cama.
— Por que você afundou meu navio? — Adotou a nota de
aço que costumava usar quando era mais jovem sem nenhum
esforço. — Era a embarcação mais rápida do Atlântico. Que
tipo de corsário é que afunda semelhante botim? Poderia
haver ficado ou havê-la vendido. Teria ganhado bastante
dinheiro.
A mulher arqueou as sobrancelhas.
— É verdade, eu poderia ter ficado, capitão inglês. Ou
havê-la vendido. Mas me dava á impressão de que o capitão
de Cavalier não ia permitir que passasse a outras mãos.
Equivoquei-me? — Sorriu. — Claro que não. Assim que
recuperasse a liberdade, o capitão me perseguiria para
recuperá-la, de modo que teria que afundar outro de seus
navios até que se afastasse de minha costa. Não, obrigado. —
Seus olhos reluziram.
— Nossos países já não estão em guerra. Você deveria
ter nos deixado tranquilos assim que percebeu quem nós
éramos.
— Não me deram alternativa, dispuseram a abordar
meu navio sem convite.
Jin meneou a cabeça, assombrado.
— Você nos abordaria. O que fazem espreitando como
piratas no abrigo da chuva?
— Procuramos tolos ansiosos pela fama — respondeu
ela com tranquilidade — Que tipo de imbecil ataca um navio
pirata?
O tipo de imbecil que tinha testemunhado como os pés
de um homem foram pregados em uma tábua entre outras
torturas inimagináveis. O tipo de imbecil que uma vez foi tão
cruel como aqueles piratas e que naquela época tentavam
expiar esses pecados. Jamais permitiria que um navio pirata
sulcasse os mares livremente.
— Não importa — ela continuou ao mesmo tempo em
que dava de ombros, — ver como se afundava o todo-
poderoso Cavalier foi tão divertido que não pude resistir.
Jin viu tudo vermelho. Piscou para tentar livrar-se da
raiva. Doía-lhe o estômago. Por todos os infernos, morria de
vontade de ter uma faca e uma pistola. Ou possivelmente
morria por uma garrafa de rum.
A mulher esboçou um sorriso desdenhoso.
«Duas garrafas», corrigiu-se. Rumorejava-se de que ela
era uma marinheira muito boa para ser uma mulher, mas
ninguém lhe havia dito que estava louca.
— O que vai fazer com minha tripulação? — Tremia-lhe
a voz.
Por todos os infernos!
A mulher voltou a arquear uma sobrancelha.
— O que acha que vou fazer com eles? Vendê-los?
Jin ficou tenso.
— Não o faria. Não poderia vender nem a metade.
— É obvio que não vou fazê-lo, tolo. — Apesar das
palavras, sua voz permaneceu aveludada.
— Então, o que?
Uma rajada de ar fez com que a chuva caísse de lado. O
bergantim se inclinou e a mulher separou ainda mais as
pernas. Viu que ela apertava os lábios.
— Desembargar-lhes-ei esta noite quando atraquemos
no porto. Eles o levarão ao cárcere e o chefe do porto decidirá
o que fazer com você.
— O chefe do porto? — resmungou Mattie.
— O que acontece, homem? Quer ficar a bordo? — Ela
olhou para ele com um sorriso torto. — Me viria muito bem
um gigante como você. É bem-vindo se quiser ficar e deixar
de ser senhor Faraó e não apodrecer no cárcere com os
outros.
Mattie ficou muito vermelho. Os punhos de Jin eram
doíam de vontade de estampar a mandíbula de seu timoneiro.
Mattie ficava tolo com as mulheres.
Entretanto, inspirou fundo para tranqüilizar-se. Com
esse pequeno discurso, ela revelou tudo o que ele precisava
saber. A mulher havia traído suas origens.
Ao longo de seus vinte e nove anos, Jin tinha navegado
de Madagascar para Barbados. Embebedou-se com homens
desde Cantão até Cidade do México, e tinha escutado muitos
idiomas. Nada tinha sido mais doce e delator de sua origem
que a curiosa dicção de Violet, a Vil. Se essa mulher não
tinha nascido e crescido em Devonshire, ele não era
marinheiro. Não importava que tivesse perdido a Cavalier.
Tinha encontrado seu objetivo.
Sua tripulação acreditava que ela era uma corsária para
ser capturada e conseguir recompensa, um objetivo fixado
por seu trabalho para o governo. Não o era, era uma missão
particular. Com a volta de Viola Carlyle a Inglaterra, por fim
saldaria a dívida que tinha com o homem que tinha salvado
sua vida.
— Obrigado, senhorita. — Mattie tentou fazer uma
reverência apesar das amarras. — Ficarei com meus
companheiros.
— Você — Ela olhou para Jin. — Suponho que espera
que te desate, pirata.
— Claro. E depressa.
— Já não é pirata, senhorita — resmungou Mattie. —
Não é há dois anos.
Os olhos da mulher relampejaram.
— Agrada-me chamá-lo assim — disse, arqueando uma
sobrancelha. — É evidente que não gosta. É tão arrogante
como dizem.
A mulher se aproximou dele, detendo-se a escassos
centímetros. Jogou a cabeça para trás, de modo que a aba do
chapéu ficou por cima do nariz de Jin, enquanto o observava
através das pálpebras entrecerradas. Uma cor incomum. De
um azul tão escuro que poderia dizer-se que eram violetas.
Daí vinha o apelido, sem dúvida alguma.
De perto, sua pele irradiava o calor do sol e estava
bronzeada, justamente o contrário da delicada brancura de
uma dama inglesa. Tinha os lábios mais carnudos do que
tinha suposto em um princípio, em forma de coração e com
um pequeno sinal junto ao lábio inferior. Uma chuva de
sardas salpicava seu nariz plano.
Embora não fosse tão plano. Delicado. Quase como a de
uma dama. Devolveu-lhe o olhar insolente. Viu-a franzir esse
apêndice que era quase como o de uma dama.
— Arrogante. — Ela soltou um sonoro suspiro. — E
continua me decepcionando. Eu admito que esperava muito
mais da lenda.
— Posso te dar mais se o desejar. — E o faria. Assim que
se livrasse da corda que o imobilizava, daria a Viola Carlyle
justo o que deveria ter tido quinze anos atrás.
Daria a sua família. Viola soltou uma gargalhada.
— De verdade?
— Eu posso machucá-la, mesmo com as mãos
amarradas atrás das costas. — Sua voz era grave; e seus
gélidos olhos azuis, intensos.
Em todas as histórias que Viola tinha escutado do
infame pirata reconvertido em corsário britânico, esses olhos
não foram mencionados. Entretanto, os marinheiros eram um
rebanho de néscios que não se precaviam desses detalhes.
Todos os membros de sua tripulação podiam lhe dizer a
direção exata que soprava o vento no cabo de Nantucket em
pleno dezembro ou a diferença entre o nó plano e o nó
redondo. Mas apostaria qualquer coisa que eles não sabiam
de que cor ela tinha o cabelo, mesmo que ela aparecesse com
a cabeça descoberta, e isso que era sua capitã por dois anos e
os conhecia há quinze. Os marinheiros não eram muito
observadores a esse respeito.
Uma lástima que esse não fosse seu caso. Jinan Seton
era um magnífico espécime masculino.
Sorriu.
— Eu gostaria de ver como você tenta. — Zombar de um
homem amarrado a um mastro não era muito digno. Mas sim
era divertido, sobretudo quando dito homem era muito
bonito, além de um reconhecido descarado.
— Você gostaria? — Os gélidos olhos reluziram.
— Se vanglorie e alardeie tudo o que queira, pirata. —
Viola ignorou a repentina secura de sua garganta enquanto
assinalava as cordas que o atavam. — Meus homens sabem
como fazer nós.
— Não me cabe a menor dúvida. — Sua voz era grave.
Relaxada.
Destilava muita confiança.
— Você está me desafiando? Rodeado por sessenta de
meus homens enquanto que os teus estão tão amarrados
quanto você? — Meneou as sobrancelhas.
— Por que não?
Ele bateu os dentes. E Viola sentiu uma repentina dor
no nariz. Conseguiu libertar-se e se afastou de um salto ao
tempo que levava uma mão ao rosto.
O gigante se dobrou em risada.
— Parece que não ouviu tudo o que se conta do capitão
Jin, né? Verdade, senhorita?
Viola fulminou o homem com o olhar, desceu a mão e se
aproximou de Seton novamente. Uma barba incipiente lhe
escurecia o queixo, quase negro por completo, tão molhado
como o resto dos que estavam a bordo. Estava chovendo por
três dias seguidos, uma manta de água tão densa que quase
nada era visível. Sua intenção não tinha sido a de
surpreender Cavalier. Isso tinha sido questão de sorte.
Os olhos de Seton eram tão duros como o cristal.
Talvez não tivesse sido questão de sorte depois de tudo.
Apertou os dentes.
— Não volte a fazer algo assim na vida. — Cravou-lhe
um dedo no colete encharcado. Encontrou músculos debaixo.
Embora isso fosse normal em um marinheiro. — Ou farei que
lhe atem a carranca5 da proa em um abrir e fechar de olhos.
— Desafiou-me, de fato. Percebe-se que não tinha
pensado como é devido. — O gélido azul refulgia. . Ele estava
se divertindo. Esses olhos, que estavam tão perto dos seus,
passaram por seu nariz dolorido antes de enfrentar de novo
seu olhar. Sua voz ecoou como uma tempestade de verão,
séria e um pouco ameaçadora. — Poderia ter arrancado um
pedaço.
— Ele já fez isso antes — acrescentou o gigante, de bom
humor. — E em alguns o lóbulo da orelha. Uma vez ele
arrancou o dedo de um pequeno rapaz.
Viola era incapaz de afastar o olhar desses gélidos olhos.
— Retiro o apelido de Faraó. Você é um animal.

5Carranca ― é uma escultura com forma humana ou animal, produzida em madeira e


utilizada a princípio na proa das embarcações.
— E você está muito perto para sua própria segurança.
Com os cabelos escuros colados na ponta do nariz e nas
maçãs do rosto afiadas, seus olhos pareciam quase
sobrenaturais e muito inteligentes. Seu nariz longo e seu
queixo forte lhe deram um ar aristocrático. Além disso, falava
com o acento de um homem educado, embora com um toque
estrangeiro. Não era do todo inglês. Nos portos, de Boston até
Havana, chamavam-no Faraó por um bom motivo.
Um brilho esbranquiçado apareceu entre seus lábios.
Dente. Dentes muito afiados. Deveria afastar-se deles.
Viola não o fez. E não só porque nunca tinha retrocedido
ante um inimigo diante de sua tripulação, mas sim porque,
em realidade, estava hipnotizada. Seus lábios eram perfeitos,
de forma muito erótica e moldados da forma mais
maravilhosa e sensual. A masculinidade em estado puro.
Tentou recordar os lábios de Aidan. Não pôde. Tinham
passado meses da última vez que o viu, verdade, mas ela
estava apaixonada por Aidan Castle. Apaixonada há dez anos.
Deveria recordar seus lábios, não?
Os lábios perfeitos de Seton esboçaram um lento sorriso.
Seu hálito lhe roçava o rosto e se mesclava com a chuva.
Levantou a vista. Ele se inclinou um pouco para diante e lhe
murmurou em tom confidencial, como se fossem amantes
que compartilhassem a cama:
— Fá-lo-ei de novo se não se afastar.
— Isso acredito, sim. — Ela estremeceu por dentro, a
traição de uma mulher adulta que havia estado muito tempo
no comando de homens brutos. Entretanto, seu pai sempre
lhe havia dito que ela era de sangue quente. — Mas nesse
caso teria que te matar e nenhum dos dois quer que isso
aconteça, verdade?
— Se afaste ou averiguaremos.
— Não me tente. A adaga que uso no meu quadril gosta
do sangue pirata.
— Ele não é mais um pirata, senhorita — resmungou o
gigante.
— Parece-me que ela não capta a mensagem mais
importante — disse Seton, que inclinou a cabeça, de modo
que esses lábios perfeitos ficaram muito perto dos seus.
Cheirava a sal, a chuva e a vento. E a algo mais. Era um
aroma almiscarado e viril, não o fedor rançoso e suado de um
marinheiro qualquer. Cheirava a homem. Um aroma que a
percorreu como uma chama.
Viola deixou de respirar.
— Talvez seja dura de ouvido. Ou talvez acabe de
afundar seu navio e você é meu prisioneiro.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Pois me mate se for seu desejo.
— Talvez eu faça isso.
— Não o fará. — Ele parecia confiante.
— Como sabe?
Seton desceu a voz até convertê-la em um sussurro e
cravou o olhar em sua boca.
— Você nunca matou uma mosca. Não começará
comigo. — Ela não respondeu. Para que? Esse desgraçado
tinha razão.
Muito devagar, ele afastou a cabeça. Viola se permitiu
respirar. O rosto de Seton seguia impassível. Deslizou o pé
direito alguns centímetros para trás. Continuando, fez o
mesmo com o esquerdo. Se ele sequer sorrisse, cravar-lhe-ia
a adaga e ao inferno com ele e seu juramento de não
converter-se na classe de marinheiro que foi seu pai.
Como se Seton soubesse o que estava pensando, seus
olhos se iluminaram uma vez mais. Com um brilho travesso.
Ela estreitou os olhos.
— Não acha que vai passar a noite atrás das grades,
verdade? —Seton não respondeu.
— O capitão Jin não é um daqueles que mentem,
senhorita — disse o gigante com voz rouca, — mas não
acredito que queira insultá-la diante de seus homens, sabe?
— Como se chama, marinheiro?
— Matthew, senhorita.
— Matthew, fique com a boca fechada ou eu vou fechá-
la por você. —A boca perfeita de Seton esboçou um sorriso
torto.
Viola ficou sem fôlego. Afastou o olhar ao ponto e gritou
para o leme:
— Becoua, dirija-se para o porto.
— Sim, capitã!
— Homem Louco! — gritou para a outra extremidade do
convés, para o seu segundo de bordo. — Ficaremos com tudo
que esses homens tenham antes de entregá-los ao chefe do
porto.
Seu segundo de bordo andava como um caranguejo e
era um saco de ossos com uma grande barba branca.
— Tudo, capitã?
Viola sorriu, inspirou fundo uma vez mais e cruzou os
braços.
— Tudo. — Apontou com a cabeça para Faraó. — E,
Louco, comece com senhor Seton.
Viola se precaveu de seu engano em seguida. Depois de
uma longa viaje, sua tripulação valorizava mais a roupa que
as armas ou o dinheiro, e os marinheiros de Cavalier estavam
mais bem vestidos que a maioria. Deveria ter deixado Seton
tranquilo. Afinal, ele era o dono de seu próprio navio há anos,
era seu igual no mar. Era uma questão de boas maneiras
tratar os outros capitães com respeito.
Em resumidas contas, sua perfeição ia além da boca.
Foi incapaz de afastar a vista. Seton sustentou seu
olhar, enquanto mãos afrouxavam as cordas e o despojavam
primeiro do capote, do lenço e do colete, e depois da camisa e
das calças. Seus olhos a desafiaram durante todo o processo.
Entretanto, em um ponto, ela parou de olhar para o rosto
dele.
Santa Bárbara bendita, parecia mais um Deus que um
homem!
Ombros largos reluzentes pela chuva, torso magro e
musculoso com uma linha de pêlo escuro que se perdia sob
os calções, que se colavam a seus quadris. Depois de passar
anos no navio de seu pai, Viola tinha visto inúmeros homens
nus. Os marinheiros eram muito magros pela vida no mar ou
eram muito musculosos devido ao trabalho árduo. Jinan
Seton não era nem um nem o outro. Sua altura conferiu-lhe
esses braços fibrosos, esse torso e a esse duro abdômen um
aspecto muito agradável para os olhos.
Começou a respirar entrecortadamente. Certamente que
tinha passado muito tempo da última vez que viu Aidan.
— Você gosta do que vê, capitã? — Seton mal tinha
movido os lábios, mas sua voz soou forte e desagradável.
Arrogante filho de uma baleia Jubarte! Embora tivesse
motivos para ser arrogante, claro.
— Você gosta do tempo que está fazendo, Seton? — Ele
tinha que estar tão gelado como um iceberg de Nova Escócia.
Sua tripulação também. Seria melhor que os desembarcasse
antes que morreram congelados.
Viu-o sorrir.
— Faz bastante calor para ser primavera, não acha?
Certo. Mas não além de sua pele. A seu lado, Matthew
estava tremendo, mas o Faraó permanecia imóvel como uma
estátua. Deveria aproximar-se dele para comprovar se ele
tinha a pele arrepiada. Quando o navio subiu uma onda,
Seton travou os pés e seus músculos ficaram tensos... O
torso, os braços, o pescoço e as panturrilhas. Viola quase se
engasgou pela surpreendente quebra de onda de calor que a
atravessou.
E o sorriso de Seton se alargou.
Com passo tranquilo, ela se dirigiu à escada, lhe dando
as costas, e desceu sob coberta.
Uma vez em seu camarote, abriu o armário de remédios
e tirou um pote com iodo, láudano e outras pequenas
garrafas, metendo-lhe nos bolsos de seu capote, junto com
uma tesoura e um grosso cilindro de ataduras. Estaria bem
ocupada até o anoitecer curando cortes e arranhaduras, mas
não tinha visto feridas graves nem entre sua tripulação nem
entre os marinheiros de Cavalier. Acrescentou uma agulha e
fio antes de subir ao convés.
Começou a atender aos feridos conforme os encontrava,
acostumada a essa tarefa. Desde que tinha dez anos, quando
cruzou o oceano pela primeira vez no bergantim que seu pai
utilizava para o contrabando, este deixou que ela se
encarregasse dessas responsabilidades, que recaíam no
capitão. Seu pai disse que dessa forma os homens
apreciariam sua presença em vez de rechaçá-la.
A maioria deles nunca tinha sido cuidado por uma
mulher e se acostumaram com isso imediatamente. Viola se
assegurou de que fosse assim. Afinal, o único consolo depois
de perder sua família na Inglaterra era a aventura que a vida
no mar representava. Naquela época, fazia tudo o que
pensava para convencer seu pai de deixá-la a bordo em vez
de em terra com sua irmã viúva e seus três filhos chorões.
Tinha-a recompensado durante as primaveras e os verões,
mas a deixava em terra, na cidade de Boston, durante o resto
do ano para que recebesse aulas e esperasse impaciente sua
volta em abril.
Mais adiante, quando cresceu um pouco, deu-se conta
de que seu pai a deixava acompanhá-lo no navio porque
recordava a sua mãe. Seu verdadeiro amor. Quando
conheceu Aidan Castle, por fim compreendeu a devoção de
seu pai.
Deixou de chover justo quando Viola atava a última
bandagem e indicava ao marinheiro que voltasse para o
trabalho. Sua tripulação limpava e reparava, com martelos,
pregos e cordas. De fato, seu navio não tinha ficado muito
mal em batalha. Tendo em conta a identidade de seu
oponente, era extraordinário que tivessem saído vitoriosos.
Obrigou-se a olhar para a popa. Amarrado ao mastro,
Seton permanecia com os olhos fechados e a cabeça apoiada
na madeira. Entretanto, ela não se deixou enganar. Um
homem como ele não dormiria enquanto estava retido a bordo
de outro navio. Certamente estava planejando sua fuga.
Viu-o abrir os olhos e olhá-la no rosto. Naquela ocasião,
ele não sorriu. Viola sabia que ao longo da última década a
rápida Cavalier tinha passado quase todo o tempo
perseguindo navios britânicos, e que durante a guerra com
Napoleão tinha derrotado alguns navios de guerra franceses.
De vez em quando abordava algum corsário norte-americano,
mas nunca um comerciante ou um navio da Marinha dos
Estados Unidos. No entanto, há alguns meses atrás, havia
um rumor de que Cavalier tinha afundado um navio pirata
perto de Havana. Pouco depois, tinha entregue outro pirata,
um veleiro mexicano, a um capitão norte-americano em
Trindade. Bom trabalho.
Decente.
Mesmo assim, com o colorido passado do navio e com a
reputação do Faraó, se Viola entregava sua tripulação às
autoridades portuárias de Boston, era muito provável que
Seton e seus homens acabassem enforcados.
Olhou por cima do ombro a seu segundo de bordo que
estava enganchando uma adriça6 no mastro principal.
— Louco, seria desonesto que um pirata ocultasse sua
identidade para que não o enforcassem?
— Não seria desonesto, capitã. — Os olhos do homem
eram muito perspicazes. Desde que tinha dez anos, Louco lhe
tinha ensinado a metade do que ela sabia sobre o mar e da
vida. — Diria que seria sensato — acrescentou, depois do
qual lançou um olhar de soslaio para o capitão de Cavalier.
— Acha que nossos moços poderão manter a boca
fechada? — perguntou em voz baixa. — Ou quererão
alardear? Afinal, não afundaram um navio qualquer. Eles têm
o direito de sentir-se orgulhosos.
Louco soprou.
— Estes moços fariam qualquer coisa por você e sabe
disso. — Disse-o sem sentimentalismo algum.
Os marinheiros não ficaram sentimentais,
independentemente do afeto que tivessem entre si. Viola
tinha aprendido imediatamente. Ela também aprendeu a
engolir as lágrimas como qualquer homem.

6Adriça ou driça é um cabo que serve para içar vergas, velas e faz parte do chamado
massame fixo -. No iatismo toma muitas vezes o nome da vela a que pertence pelo que
se fala de adriça da vela grande, de genoa, ou de spinnaker. Fabricadas em canábis ou
em algodão entre a Idade Média e o Século XIX as adriças são atualmente em metal ou
numa mistura metal/fibra, onde a fibra cobre a parte interna metálica. Corda de
polipropileno.
— Bem, certifique-se de correr a voz. — Fez uma pausa.
— Mas não diga a Seton nem aos seus homens.
Louco assentiu e se afastou para cumprir suas ordens.
Viola relaxou os ombros. Quando atracassem no porto em
questão de uma hora, contaria ao chefe do porto a respeito de
um navio à deriva que disparou ao seu por engano. Diria que
tinha resgatado à tripulação a bordo e que os tinha amarrado
se por acaso quisessem armar confusão. Mas que, apesar de
tudo, ela estava convencida de que não eram perigosos.
Demônios, se não tinham sido capazes de salvar seu próprio
navio, como eles poderiam ser uma ameaça?
Os documentos de Cavalier se afundaram com ela. Sem
provas de sua origem, deteriam sua tripulação essa noite.
Mas com sua história, não os reteriam por muito tempo a
menos que Seton abrisse sua boca arrogante e proclamasse
sua identidade e a de seu navio.
Ela não teria a culpa de que o enforcassem. Deixaria
que Faraó se encarregasse disso sozinho.
3

O chefe do porto, um velho amigo, engoliu a história


sem hesitação. Ou, pelo menos, fingiu engolir. O saco cheio
de moedas de ouro que Viola havia obtido em um bergantim
espanhol dois meses antes e que tinha metido com
dissimulação em seu bolso, certamente que tinha muito que
ver com sua boa disposição.
Viola acompanhou à tripulação de Cavalier enquanto
desembarcava e se encarregou de transladá-los para a prisão
portuária, depois disso lavou as mãos.
— Senhorita Violet, você fez o correto. — Louco
caminhava junto a ela pela doca em direção à rua, lotada de
marinheiros, estivadores, comerciantes e as prostitutas que
agradavam a todos. Através das portas dos botequins,
escutavam-se gargalhadas e vozes. A névoa noturna ainda
flutuava no ar. — Falei com alguns membros da tripulação de
Cavalier. Não são más pessoas.
— Salvo o capitão.
— Você sabe como são os rumores. As pessoas mudam.
Viola olhou de esguelha para seu segundo de bordo
enquanto tirava o groso lenço para coçar o pescoço. As
pernas não se acostumaram ainda com a terra firme. A
travessia de dez semanas não a tinha esgotado. E embora
adorasse tomar um banho quente e lavar suas roupas com
água limpa, ela estava ansiosa para embarcar novamente e se
dirigir para o sul.
Voltar para Aidan.
Tinha quase vinte e cinco anos e tinha decidido lhe
confessar que estava disposta a viver em terra pelo menos
seis meses ao ano. Nessa ocasião, Aidan se casaria com ela.
Certamente que sim.
— Você acha que sua esposa irá conhecê-lo desta vez,
Louco?
O aludido passou uma mão pelo queixo, coberto por
uma áspera barba branca.
— Quando parti, disse-me que o faria, mas na verdade
não é muito constante.
— Bem, você tem sorte. Nós vamos buscá-lo em agosto.
— Você rumará para o Porto da Espanha então?
Viola passou uma mão sobre a testa, afastando o cabelo
úmido. Tudo estava molhado, desde seu capote até... Suas
expectativas.
— Ahran. — Cravou a vista nas tochas que iluminavam
os portais da rua. Entretanto, nelas não encontraria uma
resposta. Para tê-lo, teria que ir ao ensolarado Caribe.
— Não teve notícias do senhor Castle ultimamente,
verdade?
— Não desde dezembro.
Louco pigarreou e replicou:
— Os plantadores geralmente estão muito ocupados.
Além disso, ele ainda está aprendendo o ofício do comércio.
Não é habitual que um homem do mar se estabeleça em terra
e cuide de uma fazenda.
— Louco, não é uma fazenda. — Com o dinheiro que
tinha economizado ao longo de seis anos enquanto
trabalhava como segundo de bordo no navio do pai de Viola,
Aidan tinha comprado uma plantação de cana-de-açúcar de
mais de vinte hectares.
Seu segundo franziu o cenho.
— Seria melhor se eu fosse vê-lo e ver o que está
acontecendo.
— Você se importaria de dar uma olhada em minha casa
de caminho à tua? Os inquilinos são boas pessoas, mas eu
gostaria de saber se eles precisam de alguma coisa.
— Não zarpará até dentro de quinze dias. Por que não o
comprova você mesma?
— Haverá muito trabalho a fazer aqui, entre descarregar
e carregar de novo. Não terei tempo. — Nem vontade.
— Não guarda muito carinho dessa casa, verdade?
— Conhece o cárcere que enviamos esses moços? — Fez
um gesto.
Louco assentiu em silêncio.
Viola arqueou uma sobrancelha e seu segundo de bordo
riu entre dentes.
— Não gostaria que a deixassem ali, senhorita Violet?
— Não, senhor.
Entretanto, quando começou a guerra em 1812 e
conseguiu a patente secreta de corso das autoridades de
Massachusetts, seu pai a deixava nessa casa durante meses
e meses, com sua tia e seus primos enquanto ele ia ao mar.
Nunca tinha gostado de cozinhar, nem lavar, nem costurar.
Só gostava de ler periódicos e novelas de aventuras, quando
podia obtê-los.
Na primavera, quando seu pai a levava com ele a bordo,
afirmava que estava pronta para navegar, que não podia
deixá-la em terra.
Serena sempre havia dito que ela se adaptaria
perfeitamente à vida no mar. Serena... Sua preciosa e doce
irmã mais velha que fazia tanto tempo a deu por morta,
assim como sua mãe. Serena, que talvez já não pensasse
mais nela. E que certamente se escandalizaria se visse no que
se converteu sua irmã mais nova: sua pele bronzeada, suas
maneiras toscas e o vulgar grupo de marinheiros que
liderava, sempre a disposição do governo americano.
Depois que seu pai a seqüestrou diante de sua irmã e a
levou da propriedade daquele, que até então, tinha acreditado
que era seu verdadeiro progenitor, Viola tinha passado anos
esperando voltar para a Inglaterra. Tinha escrito cartas e
mais cartas que enviava quando seu pai estava no mar, para
que não se inteirasse e assim não sofresse. Fionn Daly, um
marinheiro curtido, tinha um coração de gelatina no que se
referia às mulheres que amava: sua irmã viúva, Viola e a mãe
desta, a quem jamais tinha deixado de amar embora estivesse
casada com outro homem. Seguiu-a amando até o dia que
morreu por causa de sua extravagante devoção.
Serena jamais respondeu a suas cartas. Nenhuma só ao
longo de seis anos. De modo que aos dezesseis, Viola deixou
de escrever. Entretanto, às vezes ainda se perguntava o que
acontecera com ela e desejava poder ter uma luneta capaz de
alcançar as costas de Devon-shire. A essas alturas,
certamente que Serena estava casada e tinha alguns filhos.
Entretanto, jamais saberia com certeza. Iria casar-se
com Aidan. Como ele se negava a voltar para a Inglaterra até
não ter feito fortuna, ela tampouco iria. Sua vida estava nesse
lugar. Na América. Com Aidan.
— Boa sorte com a esposa, Louco. Espero que desta vez
te aceite.
— Obrigado, senhorita. — Riu entre dentes. — Não seria
mal que rezasse por mim se tiver tempo.
— Ah! — Viola soltou uma gargalhada. — Deus já não
escuta minhas preces sobre esse tipo de coisas. Faz anos que
não o faz.
Despediu-se agitando a mão e continuou em direção a
hospedaria. O prédio estava localizado em uma rua estreita,
longe da agitação das docas, garantia a paz e a tranquilidade
que jamais poderia desfrutar a bordo de seu navio.
Entretanto, Viola era incapaz de suportar por mais de quinze
dias seguidos.
Uma anciã encurvada lhe abriu a porta.
— Senhora Digby, retornei outra vez em busca de sua
torta de maçã crocante.
— Senhorita Violet — replicou a mulher, com um sorriso
que lhe enrugou ainda mais a extremidade dos olhos, — bem-
vinda em casa.
Não se podia dizer que fosse sua casa, mas os lençóis
sempre estavam secos e não tinham percevejos nem pulgas.
— Para os gastos. — Viola deixou um punhado de
moedas na mão tremula da mulher e subiu para seu quarto.
Embora a senhora Digby não pudesse permitir-se luxos, era
um lugar razoavelmente cômodo.
Uma vez nele tirou a roupa de lã e linho molhados pela
chuva, sal e suor. A criada chegou para acender a lareira e
Viola lhe deu um penique7. Depois, lavou-se de pé em uma
tina, para o qual usou uma jarra de água quente. Secou o
cabelo diante do fogo, desembaraçando com os dedos e se
deitou na cama. Dormiria até domingo se não tivesse que
madrugar no dia seguinte para fiscalizar a carga de
Tempestade de Abril.
Antes que seus olhos se fechassem, reparou na
figurinha que descansava na mesa de cabeceira. Sua posse
mais preciosa depois do navio.
Seu pai tinha trocado uma baixela de prata que tinha
roubado de um casco de navio holandês mercante por esse
tesouro. Ele deu a ela de presente no dia em que completou
treze anos. Do mesmo tamanho que seu dedo indicador,
estava esculpido com grande delicadeza e grafitado com

7Penique– atualmente penny/pence (centavo)é um valor de troca monetária usado no


Reino Unido ; vale a pena um centésimo de libra esterlina. Wikipedia.
detalhe. Tinha tons dourados, vermelhos, azuis, verdes e
amarelos. Era a estatueta de um rei egípcio.
De um faraó.
Anos depois, quando escutou pela primeira vez que
havia um pirata com esse apelido, um homem de mar tão
afortunado que até os corsários espanhóis temiam cruzar-se
com ele, quis conhece-lo. Quis ver com seus próprios olhos
quem era esse homem tão afamado. Essa lenda viva.
Ultimamente, ao escutar nos botequins dos portos que o
Faraó se dedicava exclusivamente em afundar navios piratas,
seus desejos de conhecê-lo aumentaram.
Por fim o tinha conhecido.
E por sua culpa, culpa de uma mulher, o poderoso
Faraó estava dormindo em uma cela. E também por sua
culpa, ao chegar o manhã ele seria livre. Sempre e quando
mantivera essa preciosa boca fechada.
Viola dormiu com um sorriso nos lábios.

****

Jin despertou tremendo.


Conteve a reação de seu corpo. Não tremia de frio.
Ele estava tremendo por causa das barras de ferro em
frente a seus olhos.
Endireitou-se contra a parede, respirou fundo duas
vezes e desterrou o suor frio que ameaçava cobrir seu corpo e
o pânico latente que enfraqueceu seus membros. A luz do
amanhecer se filtrava pela janelinha da cela, situado por
cima da cabeça de um homem. A seu redor e também na cela
contigua, encontrava-se sua tripulação. Seus homens
dormiam ou descansavam atirados pelo mofado chão. Todos
eram capazes de descansar em qualquer lugar. Igual a ele.
Normalmente.
Estava há doze anos sem estar detrás das grades, desde
que tinha dezessete anos. Naquela ocasião, dois homens
pagaram por sua liberdade. Ele se encarregou de que
pagassem. Com suas vidas.
Oito anos antes desse momento, arrastaram-no
acorrentado e esperneando a um leilão de escravos sob o
ardente sol de Barbados. Naquela ocasião, foi um menino
quem pagou por sua liberdade. Com ouro. Um menino de
doze anos a quem lhe devia a vida. Após, cada dia que
passava em liberdade lhe parecia um tesouro roubado.
Voltou à cabeça ao escutar um golpe. Em um canto da
cela, frente a ele, Pequeno Billy lançava um dado de madeira
estragado contra a parede. Ao vê-lo acordado, o moço estirou
o pescoço e esboçou um sorriso.
— Bom dia, capitão. — Aos dezesseis anos, Billy seguia
fazendo honra a seu apelido. Era baixinho, magro e
desajeitado. Sorria como se fora um menino. — Está
preparado para o juiz?
— Não haverá juiz, Bill. — Jin passeou seu olhar pelos
muros e das barras da cela em busca de algum ponto débil
em sua estrutura.
Fê-lo por costume, já que não era necessário. Liberá-los-
iam ao cabo de algumas horas. Ele já havia ouvido na noite
passada dos lábios do chefe do porto, antes que trouxesse os
trapos que ele e sua tripulação usavam, em vez de sua
própria roupa. A capitã de Tempestade de Abril tinha mentido
ao chefe do porto sobre ele e sobre seu navio.
Essa mulher estava louca. Teria que levar uma louca a
Inglaterra, para devolvê-la ao seio de uma família respeitável.
Mattie, que se encontrava a seu lado, soltou um sonoro
bocejo. Depois, levou as mãos tão grandes como dois
presuntos em seu rosto, que procedeu a esfregar antes de
sacudir a cabeça e olhar para Jin com o cenho franzido, como
era habitual.
— Qual é o plano, capitão?
— Estou nisso.
— Capitão, por que não paga a estes tipos por ela? —
Pequeno Billy engatinhou até eles e apontou o teto, indicando
aparentemente aos governadores do litoral. — Para que se
livrem dela.
— Não está pensando com a cabeça. — Mattie empurrou
um dos ossudos ombros do moço. — Essa moça não é
propriedade de ninguém.
— Pois isso não importou quando fez amigas em
Corunha8. — replicou Billy, sua testa pálida enrugada já que
tinha franzido o cenho.
— O que você saberá? — disse Matouba com seu
vozeirão. Encontrava-se do outro lado da cela e seus olhos
eram duas esferas brancas em seu rosto negro. — Era um
bebê naquela época.

8Corunha é uma cidade portuária situada num promontório na região da Galiza, no


noroeste de Espanha.
— Não fez amizade com aquela moça — grunhiu Mattie.
— Além disso, essa não era livre. O senhor Jin a comprou da
pessoa que a chicoteava. — Voltou à cabeça para Jin. — O
que aconteceu com essa moça espanhola?
Jin deu de ombros, mas se lembrava perfeitamente.
Recordava de todas as pessoas que tinha libertado.
Recordava seus rostos e seus nomes. A essa moça tinha
procurado um trabalho como criada na casa de uma
solteirona. Uma anciã respeitável. Era o melhor que pôde
encontrar em uma cidade desconhecida. Nos portos que
conhecia, essa empresa sempre achou mais fácil.
O mesmo era verdade. Toda vez que ele comprou a
liberdade de alguém, conseguia se livrar de um pouco de
raiva e desespero que ele carregava. No entanto, eles eram
pedaços muito pequenos e a laje ainda era muito grande.
Teria que libertar alguns milhares antes de desaparecer
completamente.
— Eu digo que compre quatro navios, ou possivelmente
cinco ou seis, e os encha de homens — disse Matouba. —
Assim poderá rodear Tempestade de Abril em mar aberto e
levá-la de volta a Inglaterra.
— Não. — Jin meneou a cabeça. — Deve ir de forma
voluntária. — Uma mulher como Violet, a Vil só o
acompanharia se realmente quisesse fazê-lo. Se não, teria
que atá-la e mantê-la encerrada na adega durante o mês de
travessia. Mas ele não tratava a nenhum ser humano dessa
forma. Não mais. — Não — repetiu. — Tenho outro plano.
Quando começou a procurar Viola Carlyle, albergava a
esperança de encontrá-la em uma pequena casa na costa,
ansiosa por retornar a Inglaterra, mas sem os recursos ou o
valor necessários para fazê-lo. Entretanto, depois de vários
meses de busca, quando as pistas descobertas o levaram a
corsária apelidada de Violet a Vil, viu-se obrigado a reavaliar
a situação. Seu verdadeiro pai, Fionn Daly, foi um
contrabandista medíocre antes de converter-se em um
corsário mais medíocre ainda. Possivelmente, só lhe
permitisse embarcar por motivos práticos, para que se
encarregasse das tarefas domésticas e economizar dessa
maneira o pagamento de um marinheiro. De modo que supôs
que ela ficaria encantada de voltar para a Inglaterra e de
reintegrar-se na sociedade.
Supôs mal. A capitã de Tempestade de Abril, era uma
mulher segura, temerária e absolutamente nada parecida
com uma dama, não partiria voluntariamente. Não obstante,
ele devia convencê-la. Tinha passado toda uma vida mentindo
e abrindo caminho com unhas e dentes para conseguir uma
vitória atrás de outra. no final, a senhorita Viola Carlyle
zarparia rumo à Inglaterra com ele por decisão própria e
retomaria a vida para o qual nasceu. Não lhe cabia a menor
dúvida.
Estava obrigado a consegui-lo.
Vinte anos antes, Alex Savege tinha comprado sua
liberdade e tinha salvado sua vida. Uma década depois,
quando ele só era um ladrão enfurecido que o mundo em
geral pagava por sua raiva, Alex lhe ofereceu outra
alternativa. Subiu-o a bordo de Cavalier e lhe mostrou o que
significava ser um homem. A nova esposa de Alex acreditava
que sua meia-irmã mais velha ainda estava viva. Alex, que a
essas alturas era um aristocrata inglês, não necessitava do
dinheiro de Jin nem da ajuda que lhe emprestava com seu
navio. Só lhe interessava a felicidade de sua esposa.
De modo que partiu sem dizer nada a lorde e lady
Savege, em busca de Viola Carlyle. Para saldar sua dívida.
Devolvê-la-ia sã e salva ao seio de sua família ou morreria no
intento.
O chefe do porto virou a cabeça quando olhou Jin de
cima abaixo pela terceira vez e lhe exigia ouro.
Jin emitiu uma nota promissória. O oficial do porto
sorriu. Fechou seu escritório com chave e foi ao banco em
pessoa. Jin esperou com tranquilidade A conta que o senhor
Julius Smythe, comerciante, tinha no Banco de
Massachusetts era muito volumosa.
Ao cabo de pouco tempo, o chefe do porto voltou com
um sorriso de orelha a orelha.
— Felicidades, senhor Smythe — lhe disse ao tempo que
o fazia uma reverência, como se Jin fosse o cavalheiro que
fingia ser quando ia fazer negócios ao banco. — É livre para
partir com três de seus homens.
De volta nos docas, com o sol primaveril do meio-dia
penetrando entre os mastros e refletindo-se nas desgastadas
passarelas, Jin disse a Matouba, a Mattie e a Billy que
partissem até que os mandasse chamar. O moço e Matouba o
fizeram discutindo, como de costume. Mattie o olhou com
grande seriedade antes de segui-los.
Jin caminhou pela doca observando a cena agitada, o
tráfico de carretas, marinheiros e comerciantes, até dar com o
que procurava: um novo e reluzente navio cujos corrimões
não estavam ainda colocados. Do convés lhe chegava às
marteladas contra a madeira. Um par de moços estava
lixando a coberta principal, cuja madeira ainda não tinha
sido envernizada nem alcatroada9.
Não era a Cavalier. Nenhuma embarcação se
assemelharia jamais a ela. Mas o que tinha diante de si era
uma beleza, pequena e rápida, tal como lhe tinham
assegurado que seria seis meses antes em Boston, quando
viu os planos. Era perfeita para o que necessitava.
Entretanto, um homem não podia aparecer para
comprar uma embarcação como se acabasse de passar a
noite no cárcere. De modo que se voltou e se dirigiu ao banco.
Duas horas mais tarde, recém barbeado e arrumado, Jin
dobrava a carta que tinha estado esperando-o por quatro
meses no banco antes de guardar no colete. Esteve a ponto
de sorrir. O Almirante conseguia lhe enviar uma ou outra
carta através dos capitães da Armada. Essa, entretanto, não
lhe tinha chegado mediante esse canal.
O visconde Colin Gray ainda estava procurando por ela.
Jin tinha passado anos trabalhando para outra
instituição a serviço da Coroa, que não tinha nada que ver

9Alcatroada/alcatrão ― substância escura e viscosa que se obtém pela destilação da


hulha ou do petróleo.
com o Almirante. Tratava-se de uma organização secreta
enraizada no Ministério do Interior, cuja existência só
conhecia aqueles que precisavam de sua ajuda. O Clube
Falcon.
O clube se desmanchou no ano anterior. Pelo menos
nominalmente. Estava composta por cinco membros, mas
quatro ainda estavam ativos. O parceiro de Jin e apenas o
contato com o misterioso diretor do clube, Colin Gray,
recusaram-se a abandonar a missão da organização: a busca
das almas perdidas que precisavam voltar para casa. Mas
não se tratava de qualquer alma. As pessoas que procurava o
Clube Falcon eram aquelas cujo desaparecimento, ou às
vezes sua simples existência, punha em perigo a paz da elite
do reino e aquelas cuja ausência e devolução deviam manter-
se em segredo. Para a segurança da Inglaterra.
Jin não tinha abandonado, em teoria. Mas no momento
não tinha tempo nem vontade de agradar a Gray nem ao
Almirante. Por fim tinha encontrado à pessoa que se propôs
em localizar dois anos antes. Outra alma perdida. Uma
mulher que estava tanto tempo fora que já não sabia que
estava perdida.
Avançou pela doca e passou junto ao navio que o tinha
levado ao porto. A Tempestade de Abril, que devia ter uns
vinte anos, descansava no atracadouro, qual cavalo velho
entre as varas de uma carruagem, para puxá-la. Era um
bergantim de tamanho meio, com as velas quadradas para
obter maior velocidade, mas com um casco muito pesado
para manobrar.
Retorceram-lhe as vísceras. Que o tivesse capturado
semelhante embarcação depois de ter ultrapassado a todas as
que cruzavam o Atlântico era quase ridículo.
Seu olhar posou sobre uma moça que trabalhava
enrolando umas cordas na doca, junto ao navio, e sua
expressão relaxou. Estava inclinada e de costas para ele, o
que deixava à vista um traseiro perfeitamente abrangente
pelas mãos de um homem. As calças ajustadas se amoldavam
a suas coxas e deixavam à vista umas panturrilhas
torneadas. Usava uma camisa branca de trabalho, que se
ajustava a seus ombros e revelava ossos delicados e braços
magros.
Os calcanhares das botas de Jin no chão a fizeram olhar
por cima do ombro, detendo-se ao vê-lo. Endireitou-se, tirou
o chapéu e passou o dorso da mão em sua testa suada.
Jin se excitou enquanto contemplava a bela imagem da
mulher, uma imagem muito incomum desde que se
empenhou em completar sua missão. Tinha uma testa larga e
limpa, enormes olhos azuis escuros estavam rodeados por
largas pestanas, um nariz arrebitado e lábios carnudos e
rosados que convidavam ao prazer. Algumas mechas de
cabelo castanho ondulavam sobre sua testa, mas o resto o
tinha recolhido com uma tira de couro. Seu rosto parecia
familiar. E muito bonita. Muito para estar trabalhando nas
docas.
— A capitã do navio está por aqui? — perguntou-lhe,
apontando para Tempestade de Abril.
Ela assentiu com a cabeça. Em seus olhos apareceu um
brilho peculiar, ressaltado pelo sol da primavera. Jin esboçou
um sorriso. Fazia um século que não tinha uma mulher
debaixo dele, e a aparência direta daquela mulher era muito
promissora.
— Nesse caso, vá procurá-la. — Seu sorriso se alargou.
— E não demore.
— Não demorarei absolutamente, marinheiro. Tem-na
diante de seus olhos.
Sua voz era tão sedosa como seu cabelo acetinado. Viu-
a pôr as mãos nos quadris e nesse momento Jin se precaveu
do sinal que tinha sob o lábio inferior.
Seu sorriso se desvaneceu.
Não obstante, nos eróticos lábios de Viola Carlyle
apareceu um doce sorriso.
— Libertaram-lhe, não? Que tolos são. — pôs-se a rir e
retornou ao trabalho. — Vejo que encontrou roupas.
— Bem, sim. — A roupa que ela usava se amoldava a
esse corpo feminino da mesma maneira que antes, quando
não sabia que estava louca e que era uma dama. — Comprei
minha liberdade. Junto com a de Mattie, de Billy e de
Matouba.
O resto da tripulação teria que esperar. Seria
contraproducente que o vissem gastar ouro de mãos cheias.
Entretanto, seus homens estavam acostumados a viverem em
lugares estreitos e o chefe do porto os libertaria cedo ou
tarde.
Ela meneou a cabeça.
— Os chefes de porto fazem qualquer coisa por uma
bolsa de ouro.
— E também ajuda a palavra de uma corsária de
confiança. Obrigado por sua ajuda.
Ela se endireitou de novo e seus olhos o percorreram
devagar dos pés à cabeça. Embora ela não se movesse, seu
porte delatava uma atitude temerária. Colocou sua mão sobre
o punho da comprida adaga como se essa fosse sua posição
desde dia que nasceu.
Mas não era assim. Essa mão não tinha nascido para
isso, a não ser para usar luvas de pele de pelica. Para usar a
fita de um cartão de dança no pulso. Para descansar no braço
de um homem.
— Eu não gosto de ver homens do mar em terra —
aduziu ela. — Embora sejam piratas.
Algumas palavras sinceras. Jin admirou sua
honestidade.
— Levo anos sem exercer a pirataria e jamais abordei
navios americanos. — O primeiro capitão de Cavalier, Alex
Savege, só abordava embarcações de enriquecidos nobres
ingleses. — Mas já sabia, verdade?
— É possível. — Sua boca esboçou um sorriso torto.
— De todas as formas, está em dívida comigo. — Jin
enfrentou seu olhar sem pestanejar. — Você afundou meu
navio.
— Acha que te devo alguma coisa, marinheiro? Quer que
te dê meu navio? — Ela soltou uma gargalhada rouca que
esbanjava alegria. — Você acreditou nisso.
Era evidente que gostava de rir e o aveludado som se
deslizou pelo peito de Jin de caminho à braguilha de suas
calças.
— Seu navio não é compensação suficiente — replicou
com uma voz desanimada que a ele mesmo surpreendeu. —
Me deve a oportunidade de recuperar parte do que perdi e
agora careço de uma embarcação com a qual conseguir.
Viola arqueou as sobrancelhas.
— Não me diga que espera se alistar em meu navio.
— Bem, sim. Com três de meus homens.
— Eu disse que não me dissesse isso. Não acredito. O
Faraó quer unir-se à tripulação de uma corsária que trabalha
para o estado de Massachusetts? Dê a outro cachorro esse
osso, marinheiro.
Jin não encontrou uma réplica adequada. Sua voz
sedutora bastava para distrair um homem.
— Tinha dinheiro suficiente para comprar sua liberdade
e para comprar roupa — acrescentou ela.
— Gastei todos os recursos de que dispunha. — Em
realidade, nem sequer tinha gasto uma quarta parte. — Já
tinha entregue o pagamento inicial para a embarcação que
está naquele estaleiro.
Ela assobiou baixo e meneou a cabeça. Saltava à vista
que não ficava nem rastro da educação que tinha recebido
durante seus dez primeiros anos na casa de um aristocrata.
— É uma preciosidade — comentou ao tempo que
olhava em direção ao estaleiro. — E deve ser muito rápido.
Certamente que mais rápido que Cavalier.
— Terei que entregar o resto do pagamento quando
estiver terminado. Ouvi que zarpará de volta ao sul dentro de
quinze dias.
— Bem, sim, mas não vou procurar benefícios no
caminho, a menos que cruze com alguma presa que não
possa deixar escapar. Nesta viagem levarei um carregamento.
— Tenho certo capital em Tobago que devo recolher para
poder comprar o navio. Viria-me bem a travessia para o sul e
você poderia se beneficiar de minha presença a bordo.
Viola pareceu refletir a respeito e seus olhos adquiriram
uma expressão receosa. Ao cabo de um instante, voltou-se
para retomar o trabalho e disse:
— Pensarei.
Jin sentiu um golpe de fúria que apertou seus ombros.
Moveu-se para diante e se deteve a borda da sombra de Viola.
— Você vai pensar agora.
Ela elevou a vista para olhá-lo com os olhos
entrecerrados. Seu pulso latejava enlouquecido em sua
delicada garganta.
— Marinheiro, não se aproxime mais ou vai sentir a
folha de minha adaga.
— Como você me nega o que me pertence, vou fazer você
se arrepender por mais tempo do que precisaria para
converter esse velho barco em uma nave decente.
Seu comentário fez que ela se ruborizasse.
— Esta velho barco afundou sua embarcação. É que
seus pais não lhe ensinaram boas-maneiras, Seton?
O que sua mãe lhe ensinou foi de pouca utilidade depois
que o vendessem como escravo. Quanto a seu pai, era um
inglês cujo nome nem sequer conhecia. Enfim, esse era outro
motivo para ir a Tobago.
— Suponho que não — respondeu com voz serena. —
Você vai contratar-me e a meus homens?
— Afaste-se das minhas costas e te responderei.
Obedeceu-a afastando alguns passos e dissimulou a
satisfação que sentia. A moça começava a ceder. O assunto
seria resolvido mais cedo do que o esperado.
Viu-a segurar de novo o chapéu enquanto se
endireitava.
— Meu segundo de bordo está de licença — disse afinal.
— E meu cozinheiro recrutou-se esta manhã em uma fragata
da Marinha.
Alguns de seus homens eram experientes com as
frigideiras? Se não fossem, seriam-no. Assentiu com a
cabeça.
— A verdade, viria-me bem um segundo de bordo —
reconheceu Viola com os olhos entrecerrados, a mesma
expressão que tinha a primeira vez em que a viu, sob o açoite
da chuva. — Como levaria esse posto depois de ter sido
capitão de uma nave?
— Não te darei problema algum.
Ela franziu o cenho.
— Duvido-o muito.
Jin se permitiu um sorriso. Essa mulher não ganhou o
comando cometendo enganos.
— Seton, isto não é um navio pirata. Meus homens me
são leais. Se o que você trama é assumir o controle do meu
navio, não conseguirá.
— Não quero Tempestade de Abril. — O que queria era
ter em junho à senhorita Viola Carlyle em seu navio, rumo à
Inglaterra. — Me contrata ou não?
Ela observou seu rosto com um olhar penetrante.
— Suspeito que acabarei me arrependendo disto. —
Entretanto, aproximou-se dele com uma mão estendida.
Ele a aceitou. Sua palma era áspera; seus dedos, finos;
seu aperto, firme. Era uma dama e uma mulher do mar. E de
perto seguia sendo linda. O sol primaveril se refletia sobre
características delicadas. Segundo os registros oficiais tinha
quase vinte e cinco anos, mas apesar do tom de pele
bronzeada, ela ainda parecia uma jovem. Uma expressão que
deixava bem claro a confiança que sentia apesar da constante
incerteza da vida de um marinheiro. Essa confiança era fruto
dos dez primeiros anos de sua vida, durante os quais não
teve a menor preocupação.
— Não se arrependerá.
Por que ia arrepender-se? O lugar de uma dama estava
no lar de um cavalheiro. E ele se asseguraria de que Viola
Carlyle ocupasse seu lugar.
4

Viola deu duas semanas de licença a seus homens para


que arrumassem animação nos diferentes botequins da
cidade enquanto ela abastecia o navio, encarregava-se da
ditosa papelada e lutava com o empregado de escritório que
trabalhava para o comerciante cujos produtos levaria a
Trindade. Assim que entregasse o carregamento e desfrutasse
de algumas semanas em companhia de Aidan, retornaria às
águas do norte em busca de inimigos de seu país adotivo, tal
como lhe havia sido confiado pelo estado de Massachusetts
há quase dois anos, depois de que morrera seu pai. De fato,
tinha sido de fato a capitã desde que sua enfermidade o
deixou incapacitado dois anos antes. Mas ele não queria
abandonar seu navio e a bordo ela podia cuidá-lo.
O carregamento por fim estava na adega: barris de
farinha, ervilhas, presunto, maçãs e grande quantidade de
móveis que enchiam o navio, mas que não pesavam demais.
Tempestade de Abril era tão leve que eles realizariam o trajeto
em quase nada de tempo, em menos de um mês se não
cruzassem com piratas.
Entretanto, para isso tinha contratado Faraó. Sua
segurança pessoal. Se os problemas aparecessem, teria o
respaldo do homem adequado.
Quando por fim subiu a bordo, com uma única bolsa de
viagem na mão, ele já estava ali, dando ordens a seus
homens. A coberta era uma colméia de atividade.
— Ganhando a tripulação com a esperança de levantar
um motim, Seton?
— Não, senhora. — Sua maravilhosa boca esboçou um
meio sorriso. — Eu apenas faço o meu trabalho.
Obrigou-se a afastar a vista dessa boca e cravá-la nas
diferentes plataformas, onde seus homens estavam
preparando o guincho, levantando a âncora e organizando
tudo, tal como ela queria. Sua tripulação tinha aceitado a
liderança de Seton sem piscar. E não podia culpá-los. Sua
postura deixava bem claro que estava no comando, irradiava
segurança e confiança; tinha a aura que ela tinha
desenvolvido ao longo dos anos com muito esforço para
quando a enfermidade de seu pai acabasse, converter-se em
uma boa capitã para sessenta homens.
O céu era de um azul resplandecente, a água da baía
era excitante e a brisa era fresca e promissora. Entretanto,
um calafrio premonitório arrepiou o pêlo da sua nuca,
coberto em camadas de pano grossas.
— Tudo em ordem?
— Sim, senhora.
— A tripulação toda subiu?
— Sim, senhora.
— Alguma vez navegou sob as ordens de uma mulher,
Seton?
— Não, senhora.
Claro que não. Podia contar com os dedos de uma mão,
e lhe sobravam quatro, as mulheres que capitaneavam navios
que tinha conhecido.
— Pode me chamar capitã.
— Como quiser. — Sua voz soou indiferente, mas havia
certo brilho em seus olhos.
Não confiava nele. Havia-lhe dito que não se
arrependeria de havê-lo contratado. Mas os piratas tinham o
costume de mentir. duvidava muito que quisesse vingança.
Parecia o tipo de homem que exigia o que queria... Da mesma
maneira que tinha exigido que ela o contratasse.
Ainda não a tinha chamado «capitã».
Tinha-o olhado através da chuva enquanto era seu
prisioneiro, meio nu e amarrado ao mastro. Nesse momento,
usava calças, uma camisa branca que ressaltava sua pele
morena, um simples colete e uma gravata, assim como uma
expressão um tanto desafiante em seu lindo rosto, como se
não necessitasse incomodar-se em projetar uma imagem
mais ameaçadora.
Viola separou os pés e sentiu o agradável peso da pistola
que usava no boldrié e que roçou seu seio.
— Que olha, marinheiro?
Seus gélidos olhos não piscaram.
— A minha capitã.
— Volte para trabalho, Seton.
Ele fez uma reverência.
Uma reverência?
em seguida, obedeceu-a. Viola inspirou fundo e se
dirigiu a seu camarote. Ainda não tinham zarpado e já estava
zombando dela. Tinha cometido um engano muito tolo ao
permitir que ele embarcasse. Mas não ia admiti-lo nesse
momento, embora ainda estivessem atracados e poderia
expulsá-lo do navio. Talvez quando estivessem em mar aberto
poderia desembaraçar-se de parte do carregamento, aliviar o
navio e chegar a Trindade muito antes. Ou poderia atirar
Seton pela amurada.

****

Jin jamais tinha visto nada semelhante. E quanto mais


presenciava, mais surpreso ficava.
Adoravam-na. Do magricela grumete até o gigante que
dirigia o leme e que fazia com que Grande Mattie parecesse
uma boneca de pano. A tripulação completa a tratava como a
uma rainha. Como uma rainha da que não se cansava.
Quando ela não estava presente, falavam de sua capitã em
tom reverente. lisonjeador. Carinhoso. Quando estava diante,
a tratavam com atenção ou corriam para cumprir suas
ordens sem pigarrear. Mattie e Billy já tinham caído sob seu
influxo, os idiotas. Inclusive o estóico Matouba parecia estar
sucumbindo.
Jin não estava acostumado a sentir-se aturdido. Mas
assim se sentia.
Até certo ponto, entendia sua devoção. A maioria de
marinheiros viu muito poucas mulheres ao longo de sua vida,
e muitíssimas não usavam o cabelo tingido de vermelho e que
não tivessem a pele pálida depois de passar os dias dormindo
pelas noites de trabalho. Quando tirava o chapéu que lhe
conferia o aspecto de uma bruxa desajeitada, as bochechas
de Viola Carlyle brilhavam rosadas. O cabelo que tinha
recolhido em uma trança ou em um coque era muito escuro e
se enrolava ali onde as mechas conseguiam escapar de seu
confinamento. E sua pele era delicada e suave apesar dos
anos passados em alto-mar. Era uma mulher arrebatadora,
embora nunca mostrasse um ápice do doce e voluptuoso
corpo que ele tinha visto na doca... Algo que, por mais
intrigante que fosse, Viola Carlyle não fazia. Sua tripulação
tinha que admirá-la por força.
Entretanto, sua devoção ia mais à frente. Só necessitou
alguns dias com seus homens para dar-se conta.
— A capitã disse que lerá a noite como na última
viagem. — Um homem magro e velho, de uns sessenta anos,
dispunha-se a remendar uma vela rasgada.
— Eu gosto desse tipo que foi atingido no calcanhar por
uma flecha. — replicou seu companheiro, um jovenzinho de
pele escura, enquanto subia pelo equipamento de barco. —
Sua mãe deveria ter colocado o braço até o cotovelo para
banhá-lo no rio.
Puseram-se a rir.
— Senhor Jin, sabe que a capitã sabe ler? — Os olhos
do jovem olharam para Jin com evidente orgulho.
— Sério?
— É obvio. Tinham-na educado quando criança da casa
de um aristocrata.
— Sim, senhor. Leu-nos a história desse cavalo feito de
madeira e os imbecis não viram o truque até que já era muito
tarde.
Jin não conhecia nenhuma dama que lesse a respeito da
guerra de Troya. O calcanhar de Aquiles, os feitos daquele
guerreiro sanguinário não era considerado uma leitura
adequada para as mulheres jovens e de linhagem. Claro que
um homem que seqüestrava sua filha e a colocava para
trabalhar em um navio de contrabandistas aos dez anos não
se preocuparia com tais coisas.
— Mas geralmente busca os sermões de sacerdotes. — O
homem mais velho assentiu, sorrindo.
— A capitã é uma mulher que teme a Deus.
Deus, talvez. Mas ainda não o temia. Quando falavam,
mantinha o queixo em alto e o olhava nos olhos. Embora,
fosse verdade, falava pouco com ele e só quando era
estritamente necessário. A diferença dos capitães com os
quais ele tinha navegado, comia sozinha em seu camarote.
Além disso, não permanecia no convés quando fazia bom
tempo, o mar estava calmo e os homens relaxavam até o
ponto que começavam a cantar ou a tocar algum
instrumento. Se devia a sua presença, ele ainda não sabia.
Entretanto, quando cruzava com ele no convés ou na
escada, não se detinha para conversar. Era o melhor que
poderia acontecer com ele nesta fase da viagem. Ela se sentia
desconfortável na frente dele. Se o temia, acabaria por
obedecê-lo. Sempre o faziam, tanto homens como mulheres.
— O que faz aí parado, Seton? Espera que apareça
alguém para esculpir sua estátua em pedra? — A voz sensual
de Violet, a Vil lhe chegou do tombadilho. — Ah, perdão. Já é
de pedra. A estátua é redundante.
Não, definitivamente ainda não lhe tinha medo.
Jin voltou á cabeça para o tombadilho. O sol vespertino
brilhava atrás dela, recortando sua silhueta. Vestida com
roupas largas e aquele ridículo chapéu, parecia um saco de
batatas.
Sabia que não era assim. Tinha visto suas curvas. As
tinha imaginado a sua mercê.
Assentiu com a cabeça.
— Estou cuidando desta vela quebrada.
À mortiça luz, mal a viu entrecerrar os olhos como era
habitual. As damas não entrecerravam os olhos. Tirar-lhe-
iam esse hábito assim que retornasse à casa de seu pai.
Entretanto e apesar das voltas do lenço que lhe envolvia o
pescoço e cobria parte das suas bochechas, a expressão não
minguou seu atrativo. Embora sim a fez mais irritante.
— Não está tão quebrado para nos arriscar a perder o
vento se for reparado agora. — Fez um gesto. — Deixem para
a noite.
Os marinheiros deixaram o que estavam fazendo e se
olharam sem saber o que fazer.
— Com o devido respeito — replicou Jin com voz serena,
— agora quase não há vento. Quando começar a soprar ao
cair da noite, será conveniente ter a vela fixada para
aproveitar ao máximo.
— Está questionando minhas ordens, marinheiro?
Jin inspirou fundo. Durante dois anos não tinha tido
outro patrão que a si mesmo. Antes tinha passado quase um
ano inteiro a seu livre-arbítrio, quando Alex esteve em terra e
ele capitaneou Cavalier em seu lugar. Durante uma década
não tinha discutido nenhuma só vez com seu superior.
Mas antes de acordar com Alex, o último capitão com
quem Jin navegou o tinha desafiado freqüentemente,
questionando sua autoridade com os marinheiros e suas
decisões. A atitude desrespeitosa de dito capitão encontrou
um abrupto final quando, depois de tentar acerta-lhe uma
facada em Jin, encontrou-se com uma ferida mortal infligida
por sua própria faca.
Uma faca que Jin tinha pegado emprestado.
Entretanto, Viola Carlyle não era uma pirata. Nem
sequer deveria estar em um navio. Por mais que atuasse e
parecesse uma despótica bucaneira10, ela era uma dama, e
seu objetivo era o de resgatá-la dessa existência. Embora
penetrasse sob suas defesas como nenhum outro marinheiro
tinha conseguido fazer. Ou outra mulher. Claro que jamais
tinha conhecido uma mulher marinheira com uma voz tão
aveludada como o conhaque e com a tendência a dizer justo o
que ele não queria escutar.

10Os bucaneiros foram piratas originários dos portos do Caribe, que inicialmente
atacavam os navios e cidades espanholas no Caribe e na América Central.
Mordeu a língua para não pronunciar as palavras que
queria.
— Não, senhora.
— Não... Capitã.
Menos mal que o sol estava se pondo muito depressa.
Porque assim não podia ver seus olhos. Olhos enormes e
escuros de longas pestanas que esse ridículo disfarce não
podia ocultar.
Olhou para os marinheiros que mantiveram o equilíbrio
na catraca.
— Senhor French, senhor Obuay, desdobrem a vela e
baixem.
Os marinheiros amarraram a vela uma vez mais e a
desdobraram, fazendo que a leve brisa agitasse o fino rasgão.
Sem voltar a olhá-la, Jin deu meia volta e atravessou o
convés em direção a cabine de proa.
— Está fazendo migalhas com a capitã, heim?
— Fecha o bico, Mattie. — Jin fez um gesto com a mão a
alguns marinheiros que estavam junto ao mastro, que se
dispuseram a descer a bandeira para passar a noite.
— Bom, este é o plano?
— É.
Agarrou a luneta do corrimão onde o tinha deixado
antes. Logo depois do amanhecer um marinheiro tinha
avistado uma vela no horizonte, de modo que ordenou a
Mattie que vigiasse durante todo o dia, com o olho atento de
Matouba no topo. Talvez fosse a mulher mais irritante dos
sete mares, mas ele não ia permitir que ninguém a tocasse.
Até que não a tivesse a salvo em seu navio, nenhuma
embarcação ia aproximar-se de Viola Carlyle... Fosse amiga
ou inimiga.
Observou o horizonte crepuscular, enquanto as
correntes faziam que a quilha11 sulcasse o mar com elegância
sob seus pés. O oceano estava limpo até onde alcançava a
vista.
— Viu algo hoje?
Mattie apoiou o corpo no corrimão enquanto limpava os
dentes com um palito.
— Peixes. Ondas. Nuvens.
— Nuvens? — O céu era uma imensidão azul salpicada
de pinceladas rosa e lavanda.
— Disse isso para comprovar algo. Parece muito
distraído ultimamente. Não sabia se daria conta.
— Mattie — replicou em voz baixa, — matei a homens
por insultos muito menos graves.
Mattie grunhiu antes de franzir seus lábios gordinhos.
— Mas não matou a nenhuma dama, verdade?
Jin se virou e pôs-se a andar para a escada que levava a
adega do bergantim. Na coberta dos canhões, cheirava a
ranço e nela se alinhavam dezesseis canhões de aço. Havia
redes penduradas, onde dormiam os marinheiros antes de
começarem a guarda noturna. Tempestade de Abril era maior
e mais velha que Cavalier. Era um bergantim feio e velho. As
tábuas rangeram sob seus pés enquanto se dirigia à sala de

11Quilha ― Parte inferior do navio, que constitui sua coluna vertebral, na qual se
apóiam todas as outras peças.
oficiais, um camarote diminuto, colado ao do capitão. E Viola
gostava de observar o anoitecer no tombadilho, de modo que
podia devolver a luneta sem uma confrontação.
Caminhou pelo estreito corredor entre os catres dos
oficiais e quase se chocou com ela.
Sem o lenço nem o chapéu que lhe ocultassem a cara,
seu rosto era um coração quase perfeito. Os cachos escuros
partiam da testa, deixando à vista uma pele delicada, uma
boca muito feminina e olhos que o olhavam como se fosse
uma espécie de monstro. Essas longas pestanas velaram seus
olhos violetas e muito devagar, como a maré, um rubor
começou a cobrir por suas bochechas.
Em perfeita sincronia, uma quebra de onda de calor lhe
assaltou a virilha.
Um inconveniente. Deveria haver se ocupado dessa
necessidade quando estava em Boston. Não necessitava que
uma mulher a bordo o fizesse comportar-se como um moço
atrevido, como um marinheiro que depois de uma longa viaje
caía de cara em cima de uma mulher bonita.
Embora não só fosse um rosto bonito. Nesse momento,
ela usava uma camisa branca de algodão. Nem capote nem
colete ocultavam as bordas da inútil roupa interior que usava
por debaixo... Uma roupa que não escondia a voluptuosa
beleza de seus seios contra a renda da camisa. Uns seios
perfeitos para as mãos de um homem.
Uma dama deveria usar mais roupa. Se essa dama em
concreto usasse mais roupa, não seria tão... Provocadora.
Enfeitiçante.
Entretanto, não necessitava que seus seios estivessem
tão perto dele para permanecer paralisado no corredor. A
curva desse lábio inferior e o sinal bastavam para paralisá-lo.
Era como se um professor tivesse pintado com carinho o
retrato de uma moça e, que parecendo ser muito perfeita,
tivesse-lhe acrescentado esse sinal para estragar sua beleza,
mas tivesse conseguido justamente o contrário.
— Não pode evitá-lo, verdade? — A voz de Viola surgiu
entre eles com um som maravilhoso.
Jin piscou. Levantou a cabeça, embora nem sequer se
deu conta de que tinha inclinado.
— Nunca pode — continuou, com o mesmo tom de voz.
Jin retrocedeu. Endireitou os ombros.
— Eu ia devolver isto. — Tirou a luneta. Sua voz soava
muito rouca.
— Roubou-o quando estava distraída e agora queria
devolvê-lo antes que te pegasse? — Arqueou uma
sobrancelha, um pouco descuidada para uma dama. —
Cuidado, Seton. Está se comportando como um pirata
nervoso.
Ele inspirou fundo e soprou.
— Vimos uma vela no horizonte esta manhã. Coloquei
um vigia.
Viola estreitou os olhos.
— E não te ocorreu me dizer isso — perguntou-lhe.
— Não voltou a aparecer.
— Acredito que está acostumado a fazer as coisas a sua
maneira.
— Gostaria de lhe evitar preocupações desnecessárias a
minha capitã quando sem dúvida tem coisas mais
importantes para cuidar.
Como pegar o espião desafortunado que estava
devolvendo a luneta porque assim poderia retornar o convés,
onde estava seu lugar e onde essa língua afiada e descarada,
junto com sua proprietária, não deveria aparecer. Tinha o
pescoço acalorado. E sentia a tensão em outras partes de seu
corpo. Entretanto, nunca tinha se deixado dominar pela
luxúria. Não permitiria que acontecesse nesse momento.
Entretanto, empurrava-o algo mais que a luxúria. Sabia
apesar de que quisesse negá-lo. Essa confiança tão atrevida,
essa língua descarada, seus êxitos face aos contratempos que
tinha proporcionado à vida... Inclusive a devoção de seus
tolos tripulantes indicava que era uma mulher excepcional.
Uma mulher que não se parecia com nenhuma outra que
tivesse conhecido.
E tinha conhecido a muitas.
— Tem muitas responsabilidades — murmurou. Ela
arqueou ainda mais a sobrancelha.
— Está adoçando-o mais que o necessário, não acha,
marinheiro?
— Estou me esforçando para servir a minha capitã,
como prometi. — E o fazia. Mas não como ela esperava.
Claro que um juramento era um juramento, e nem a
estranha confusão que o embargava nem as brincadeiras de
uma pequena mulher como essa arruinariam o trabalho de
vinte e dois meses.
— Voltando à tripulação contra você? Jin franziu o
cenho ao escutá-la. — French e Sam — explicou ela. — A vela
quebrada.
— Fiz o que você me ordenou.
Viu-a apoiar as mãos em seus arredondados quadris.
— Mas sabem que não estavam de acordo.
— Para mim não importa o que eles acreditam. Um
capitão está em seu direito de contradizer a ordem de seu
segundo de bordo quando lhe convier.
— Capitão?
Se ela não fosse uma mulher...
— Capitã.
Viu-a entrecerrar os olhos. Mas o gesto não lhe subtraiu
beleza. Por todos os demônios! Oxalá fosse um pirralho plano
que pudesse derrubar com um soco.
— É incapaz de dizê-lo, verdade? — Elevou a voz um
pouco. — Não suporta me chamar «capitã». Mata-se em
imaginá-lo sequer, filho arrogante de um egípcio.
O temperamento de Jin, reprimido durante dias,
escapou de suas amarras. Aproximou-se dela de modo que
mal ficou espaço entre seus corpos e cravou o olhar em seu
rosto.
— Ouça, bruxa presumida, posso estar sob seu
comando, mas não tenho por que agüentar...
— Bruxa presumida? Bruxa? — repetiu ela, a voz quase
um grito. — Acredito que nenhum homem se atreveu a me
chamar assim na vida.
— Talvez se algum tivesse feito, não seria tão...
— Como sabe se estou presumida ou não?
— Vejo-o no comportamento de seus homens.
— Te adverti de que você não gostaria.
— Que eu não gostaria do que? — Seus olhos
relampagueantes? Seus lábios carnudos? A mecha rebelde
que caía pela testa, que ocultava sua perfeição e aumentava
seu atrativo ao mesmo tempo?
— Servir a meus pés.
A seus pés. Em cima. Como ela quisesse. E tendo em
conta seu temperamento, suspeitava que fosse gostar
bastante. Dadas às circunstâncias, gostava da idéia mais do
que deveria. O brilho beligerante de seus olhos lhe cravou
diretamente na virilha.
— Você não consegue suportá-lo, presunçoso corsário
de meia tigela. — Esboçou um sorriso satisfeito. — Ahran.
Isso te pegou.
Em certo sentido...
Jin inspirou fundo para acalmar sua raiva e sua
excitação ao mesmo tempo.
— Não sou um corsário de meia tigela. Sou um corsário
legítimo.
— Acha que porque o governo britânico te deu a patente
de corso você já não tem os instintos de um pirata?
A excitação desapareceu de repente, como se lhe
tivessem jogado um cubo de água gelada.
— Sim.
— Demonstre-o.
Agarrou-lhe a mão, que estava fechada em punho, e
separou seus dedos. em seguida, colocou-lhe a luneta na
palma dela e a obrigou a fechar os dedos.
— Não tomo o que não me pertence por direito. —
Soltou-a.
Viola tinha uma expressão aturdida nos olhos e a
respiração, agitada. A reação parecia excessiva, mas ele
gostava. Aproximava-se mais ao medo que a atitude que
tinha demonstrado antes.
— - Você diz por que eu sou uma mulher — afirmou
com uma nota trêmula em sua aveludada voz. — Alguns
homens são incapazes de aceitar ordens de uma mulher.
— Digo-o porquê você é uma bruxa. E eu não sou como
a maioria dos homens.
Dito isso, ele partiu. Se ele tivesse ficado no corredor um
instante mais, teria sucumbido à tentação de lhe contar a
verdade.
Não se tratava de que fosse uma mulher, uma mulher
muito bonita com lábios carnudos que imaginava realizando
todos os tipos de coisas que não tinham nada a ver com
insultos. Não se tratava de que ele tivesse sido um pirata a
maior parte de sua vida. Nem sequer se tratava de que
prometeu a si levá-la a Inglaterra acontecesse o que
acontecesse. Tratava-se de que ao longo dos dois anos que
tinha passado procurando uma menina que tinha sido
seqüestrada de sua casa, precaveu-se de algo um pouco
perturbador. Algo sobre o que raramente se permitia meditar.
Viola tinha um lar para retornar. Tinha uma família. O
fato de que nesse momento o negasse, inclusive depois de
tantos anos, e de que vivesse como se a família que a adorava
não existisse, o enfurecia.
Sim, estava furioso. Com uma mulher que ele mal
conhecia.
Quando jovem, a raiva o tinha consumido. Entretanto,
durante uma década inteira tinha conseguido dobrar essa
raiva e utilizá-la para algo útil. Mas agora a ira o olhava com
o rosto de uma mulher teimosa que não compreendia que o
presente que ela desprezava era justo o que alguns, e o que
ele, sempre tinha sonhado ter.
5

— Está triste hoje, senhora? Certamente que é pelo


tempo.
Viola olhou carrancuda para seu grumete, e se
arrependeu assim que viu a expressão abatida em seu rosto
sardento. Nem sequer tinha completado sete anos e era um
menino alegre, entusiasmado por tudo, tal como ela era
quando seu pai a subiu a bordo desse mesmo navio pela
primeira vez. Um navio que era seu há quase dois anos. Um
navio que considerava seu lar e que a levava para encontrar-
se com o homem com quem um dia ela esperava também
formar um lar.
Ela revirou os cabelos alaranjados de Gui e seu sorriso
reapareceu, dando-lhe uma enorme semelhança com seu avô,
Frenchie. Ela saltou do corrimão do tombadilho, onde estava
sentada e uma vez no convés deu uma palmada em sua
magricela coxa. O vento lhe alvoroçou o cabelo ainda mais.
— Sei muito bem o que pode animá-la, capitã. O mingau
de Pequeno Billy. — Desceu às carreiras a estreita escada do
tombadilho e desapareceu.
O mingau de Pequeno Billy era incapaz de levantar o
ânimo de ninguém. Apostaria seu navio que esse moço não
tinha cozinhado na vida antes de embarcar em Tempestade
de Abril.
Embora a verdade fosse que ela estava de mau humor. A
essas alturas tinha falado mal com Sam, queimou o braço
com uma corda e tropeçou com um balde, e nem sequer era
meio-dia. O céu estival era de um plúmbeo cinza e sua mente
estava igual de encapotada, daí sua irritação.
Ela sabia muito bem qual era o motivo disso. Quem a
provocava. Um homem que se encontrava na cabine de proa,
sempre de costas para ela. Seus ombros e suas pernas
recortadas contra o oceano brilhante. Parecia gostar de
passar o tempo na proa do navio. Talvez porque assim
mantinha a maior distancia possível dela.
Viola sabia que não tinha gostado de seus insultos da
noite anterior. Nenhum homem gostaria. Em realidade, não
sabia por que o tinha insultado. As feias palavras pareciam
sair de sua boca por vontade própria, uma atrás de outra.
Embora, no fundo, seguro que ele merecia a metade do que
lhe havia dito, não deveria ter dado rédea solta a sua língua.
sobretudo enquanto a olhava como se...
Não, certamente tinha sido imaginações dela.
No início, Aidan sempre a olhava assim antes de beijá-
la. Esse olhar ardente e fixo que parecia indicar algo
totalmente distinto do que diziam suas palavras. Entretanto,
não conhecia Jinan Seton. Talvez essa fosse a sua forma de
olhar às pessoas que o insultavam.
Devia reconhecer que era um homem que controlava seu
temperamento. Se o perdesse algum dia, poderia acusá-lo de
motim. Entretanto, um homem que tinha levado o tipo de
vida que tinha tido não perderia os estribos as primeiras de
mudança. Quando isso aconteceu, foi um pouco alarmante.
Ou melhor, excitante. Tinha-lhe agarrado a mão, e a
força controlada que ele exerceu sobre ela a afetou muito.
Tal como estava acostumado a fazer quando o observava
de longe, voltou-se nesse momento e seus olhares se
encontraram. em seguida, viu-o descer da proa com passos
decididos e cruzar o convés de caminho ao tombadilho. Teve
a impressão de que o tinha chamado com seu olhar e que,
como seu fiel servo, ele tinha respondido. Como se quisesse
agradá-la.
«Um sonho absurdo», disse a si mesmo.
Serena era a sonhadora. Ela, a aventureira.
Jinan Seton também era um aventureiro em certo modo.
Olhou-o de cima abaixo com gesto arrogante. Tinha
aprendido que os homens dominantes olhavam de cima
abaixo, que os homens honestos olhavam aos olhos e que os
desonestos desviavam o olhar.
— Os homens comentam que vamos atracar em Corolla.
— Depois do incidente acontecido sob a coberta, quando seu
repentino contato a deixou tremula, olhava-a aos olhos
diretamente e se mostrava eficiente. — Eles dizem que o
fizeram em outras ocasiões durante o mesmo trajeto.
Ela franziu o cenho.
— Na Corolla, têm uma de suas reservas de jogos
favoritos. — Um bordel onde as moças usavam apenas meias
de rede e roupa interior de renda.
Isso lhe havia dito um marinheiro em uma noite bêbado
como uma Cuba. Naquela época, ela só tinha dezessete anos,
e estava desejando saber o que poderia despertar o interesse
de Aidan. Ela estava prestes a subornar o marinheiro para
retornar ao bordel e comprar algumas roupas que as meninas
estavam vestindo. No entanto, ele não teve a coragem de fazê-
lo. Quando ele disse a Aidan mais tarde, ele riu, acariciou o
queixo e disse-lhe que era uma moça muito decente para esse
tipo de coisas.
— Por que não permitir-lhes isso? — Seton desviou o
olhar para o horizonte e depois para a água, a bombordo.
A brisa estava quente. Viola tinha se precavido de que a
esse homem não escapava nada. Sempre estava observando,
calculando e planejando o próximo movimento do navio.
— Um dia em terra não alterará muito nossos planos. E
a tripulação poderia mostrar-lhe o bordel.
— Não. — Em realidade, eles podiam gastar alguns dias
em terra. Essa demora não os prejudicaria. — Não. Devemos
continuar. Com a imprevisibilidade das tempestades, não
quero perder a vantagem que temos agora.
— Imprevisíveis? — replicou ele, embora seu rosto
bonito permanecesse impassível.
— As tempestades de verão. Deve ter navegado por estas
águas centenas de vezes. — Olhou-o com receio. — Sabe tão
bem como eu.
— Não necessariamente. Durante os últimos anos passei
grande parte de meu tempo do outro lado do oceano.
sobretudo nas costas inglesas.
Ele falou com grande segurança, tal como fazia com todo
o resto. Viola nunca tinha visto um homem do mar tão
competente nem tão seguro. Era um homem consciente de
quem era e seguro de suas intenções. Sua forma de ser
despertou o vestígio de uma lembrança nela, reminiscências
de uma época durante a qual os homens que habitavam seu
mundo se moviam como se tivessem direito a tudo. Suas
lembranças infantis estavam infestadas de homens que
tratavam às mulheres não só com deferência, como sua
tripulação tinha aprendido a fazer, mas também com
consideração. De homens que não só faziam o que lhes
diziam, mas sim se antecipavam aos desejos de uma mulher.
No dia do sétimo aniversário, o barão a levou até o
antigo carvalho da propriedade e lhe mostrou o balanço que
tinha instalado. Sem necessidade de perguntar, soube o que
ela desejava por cima de tudo. Naquele dia, ele a levou pela
mão, uma mão que parecia diminuta em sua cálida palma, e
ela olhou o rosto sorridente do homem que amava como pai,
porque era o que tinha sido para ela, embora ele estivesse
ciente da verdade.
Ela achou curioso que um antigo pirata lembrasse seu
pai. Entretanto, Jinan Seton tinha um aura de cavalheiro, as
maneiras de um homem educado apesar de sua profissão
pouco cavalheiresca. Talvez seja assim que ele ganhou seu
apelido real. E sua arrogância.
Nesse momento, parecia avaliá-la com atenção, como se
estivesse esperando sua reação. Enquanto o fazia seu olhar
se tornou intensa e ardente, tal como aconteceu no dia
anterior no corredor.
— Em todo caso — comentou ela, que decidiu passar
por cima de seu acelerado pulso, — sabe muito bem que as
tripulações tentam enrolar seus capitães para que façam o
que desejam, apesar das conseqüências negativas que podem
implicar.
Jinan Seton franziu o cenho.
— Que conseqüências negativas...?
— Capitã! — gritou o vigia. — A verga da catraca se
soltou!
— Outra vez — murmurou ela. — Terão que repará-la
quando atracarmos em Trindade. — Fez gesto de afastar-se
para a escada.
Entretanto, Seton a impediu ao estender um braço.
— Eu me encarrego. — Aqueles olhos claros não
olhavam para ela interrogativamente, mas sim se mostraram
cautelosos.
Ela assentiu com a cabeça.
Seton se encarregou da verga solta. Viola o observou o
melhor que pôde entre as velas, impressionada como de
costume por sua maneira serena de comandar a tripulação, e
pela rápida disposição desta para acatar suas ordens. Uma
vez que a difícil tarefa se completou, voltou para seu lado
junto ao leme, como se ela o tivesse chamado de novo. Algo
que não tinha feito, embora certo demônio interior tivesse
estado desejando-o sem outro motivo aparente, salvo que
gostava que a estimulasse. Ou simplesmente porque gostava
de vê-lo de perto. Em certos ângulos, deixavam-na quase sem
fôlego.
Ou melhor, em todos os ângulos. Era incapaz de passar
por cima esse físico atlético que havia visto nu, e essa boca
incrível. Se fosse uma mulher normal, possivelmente estaria
apaixonada por ele até as sobrancelhas.
Sua irritação aumentou.
— O que quer, Seton?
— Mais ordens.
— Não. O que você quer é irritar-me.
— Parece que você está conseguindo sozinha. — Cruzou
os braços diante do peito e essa boca perfeita esboçou um
sorriso torto.
Ele só estava usando um colete sobre a camisa, e a
absoluta beleza masculina desses músculos que esticavam o
linho a estava atordoando.
— São os homens — admitiu, embora fosse apenas
metade da verdade. — Não levam nem quinze dias a bordo e
já estão desejando pisar em terra.
— Acabam de voltar de sua última travessia. Não acha
que você é um pouco dura com eles?
— Bom, talvez seja. — Como réplica não valia grande
coisa, mas o sorriso de Seton se alargou.
Viola tirou o chapéu procurando réplicas tolas capazes
de converter o gesto em um sorriso de orelha a orelha.
— Não tem por que lutar com tudo isto — disse ele em
voz baixa. — Nunca mais. Poderia vender Tempestade de
Abril e se despedir destes marinheiros mal-humorados e das
vergas soltas para sempre. Se quisesse.
Viola riu entre dentes, esforçando-se para não olhar
seus braços. Entretanto, apanharam-na esses olhos
cristalinos, com a mecha de cabelo escuro que caía sobre
eles.
— Por que eu ia querer fazer algo assim? — E
acrescentou a modo de brincadeira: — Está cobrindo o sol,
Seton?
— Talvez se deva aos absurdos desejos de seus homens.
Outra vez o feliz bordel.
— Os homens não necessitam uma parada em Corolla
esta semana — disse a toda pressa, porque a idéia de que
esses claros olhos azuis se cravassem nela enquanto usava
meias de rede e roupa interior de renda se apropriou de seus
pensamentos. — O que precisam é verem dentro de três
semanas é uma praia de areias brancas e palmeiras que se
agitam com a suave brisa.
Seton guardou silêncio um instante antes de lhe
perguntar:
— E o que você necessita, Viola Carlyle? — Ela ficou
petrificada. — Ou deveria dizer «senhorita» Carlyle... Sua irmã
acredita que ainda está viva. — Seu olhar não fraquejou em
nenhum momento. — Estive procurando por você em todos
os lugares e vim para levá-la para casa.
6

Viola sentiu um nó na garganta.


— Não tenho irmãs.
— Tem uma, e está a quinze anos esperando sua volta.
— Está me confundindo com outra pessoa.
Ele franziu o cenho.
— Por que você não voltou?
Ela apertou os lábios para evitar que tremessem.
— Está me confu...
— Por que você não voltou para casa?
A resposta não podia ser compartilhada com esse
homem. Mal tinha sido capaz de dar-lhe a seu pai, em seu
leito de morte, quando lhe fez essa mesma pergunta depois
de treze anos.
— Poderia ter retornado a Inglaterra a qualquer
momento destes últimos anos. Tem um navio a sua
disposição e dinheiro de sobra. — Seton a olhava fixamente.
Dava a sensação de que podia lhe sustentar o olhar todo o
tempo que quisesse, uma hora, um dia ou duas semanas, até
obter uma resposta.
Exceto no dia anterior, quando por um instante
pareceu, por mais estranho que soasse, impaciente.
— Não tenho dinheiro suficiente para nada. Por que
acha que trabalho para comerciantes americanos? — replicou
ela e teve a impressão de que a olhava com mais atenção.
— Assim admite ser inglesa.
— Admito ter nascido na Inglaterra. Mas isso não me
converte na pessoa que diz que sou.
— Não pode negá-lo.
— Sim, posso. Tem provas?
— Não preciso disso. Delata-te cada vez que abre a boca.
Viola abriu a boca e a fechou em seguida, de repente.
Ele se apoiou no corrimão, como se dispusesse de todo o dia
para continuar com a conversa. Algo que era verdade. Tinha-
a apanhado em seu próprio navio em metade do oceano
Atlântico. O Faraó era um homem muito ardiloso.
— Seu acento se diferencia muito pouco do dos Yankees
— disse ele, — mas a entonação e a pronúncia de certas
vocais delatam suas origens. — Inclinou a cabeça. — E usa
palavras que nenhum marinheiro conheceria.
— Não é verdade.
— A primeira vez que subi a bordo, usou a palavra
«pseudônimo». E faz uns momentos empregou a palavra
«enrolar».
— Eu leio muito.
— Por quê?
— Por que não faria isso?
— Deve fazê-lo. É a filha de um cavalheiro. De um
aristocrata...
— Todo mundo sabe que meu pai era contrabandista.
— ...e de uma dama.
Isso ela não podia negá-lo. Sua mãe nasceu no seio de
uma boa família, bem situada economicamente, com uma
casa elegante e boas terras. Quando o pai de Maria Harrell
concedeu sua mão em matrimônio ao tímido e estudioso
barão Carlyle para aumentar o prestígio social da família, mal
tinha dezessete anos, contava com um dote considerável, era
bonita e já estava apaixonada por Fionn Daly, um marinheiro
que jamais deveria ter conhecido, muito menos lhe entregado
seu coração.
A chama nunca se apagou. Nove anos depois, durante
uma maravilhosa primavera em que lorde Carlyle se
encontrava em Londres participando das sessões da Câmara
dos Lordes e lady Carlyle ficou em casa para cuidar de sua
primogênita, o marinheiro irlandês retornou ao porto... e
gerou Viola. Dez anos mais tarde, Fionn voltou de novo em
busca de sua amada e de sua filha. Com conseqüências
desastrosas.
Viola mordeu a língua. Tudo o que dissesse nesse
momento não serviria de nada e, além disso, o coração lhe
pulsava muito depressa para falar com calma. Percorreu a
coberta com o olhar, olhando os marinheiros. Todos lhe eram
leais, e os conhecia de toda a vida. Sua vida. Sua realidade.
Não o mundo no que tinha nascido e que desejava a milhões
de quilômetros de distância, além de ser do outro lado do
oceano.
Entretanto, nem todos os homens a bordo pertenciam a
essa vida. Grande Mattie estava junto do mastro, fulminando
com o olhar a um jovem marinheiro que estava segurando as
velas. Um intruso em seu lar. Igual aos outros dois
marinheiros de Cavalier. E de Seton.
Voltou-se para ele. Seton a observava com atenção, tal
como fez no corredor no dia anterior. Tentou desembaraçar-
se da sensação de que ele a conhecia. Não a conhecia
absolutamente. Só conhecia um nome de uma época muito
longínqua.
— Seus homens sabem? — exigiu saber.
— Sua verdadeira identidade?
— Meu passado.
— Só os três a bordo. — Seu rosto permaneceu
impassível.
— E quanto aos meus homens? Você contou a eles?
— Não.
— Porque não?
— Por que ia fazê-lo? — Tinha o cenho franzido e sua
expressão era sincera. Tanto que era perturbador.
Aproximou-se um pouco a ele, com o coração acelerado,
até que estavam à mesma distância do dia anterior sob a
coberta. O céu cinza emoldurava seu rosto bonito.
— Quem é você? — Seton não piscou.
— Minha identidade não é a que está sendo
questionada.
— Por que você me procurou? O que interessa se eu
volto para a Inglaterra ou não?
— Sua irmã se casou recentemente. Seu marido deseja
te encontrar.
Entre tudo o amálgama de emoções e pensamentos, algo
agudo se agitou em seu interior. Jin Seton tinha embarcado a
seu navio com a intenção de ganhar algo. Mas ela já sabia,
assim não deveria incomodar-se que confirmasse.
— Acha que o desejo de um desconhecido basta para me
arrastar de volta a Inglaterra contra minha vontade?
— Sim. Mas preferiria que viesse voluntariamente. —
Disse-o com voz serena, mas em seus olhos apareceu um
brilho feroz.
O instinto dizia a Viola que se afastasse. Não o fez. Não
demonstraria debilidade. Um homem como ele só usaria essa
vulnerabilidade a seu favor.
— Por que não diz a ambos que me encontrou sã, salva
e muito feliz, e o que deixar? Depois de todos esses anos,
tenho certeza de que ela está feliz com isso.
Se acaso lhe importava. Serena não tinha respondido
nenhuma das cartas que lhe escreveu durante os primeiros
anos. Talvez a amasse, mas uma vez que descobriu quem era
seu pai, quais eram suas origens, sua irmã mais velha devia
estar envergonhada. Como seu pobre pai... Melhor dizendo, o
barão.
Seton franziu a testa.
— Diga seu nome.
Viola piscou.
— O de quem?
— O de sua irmã.
Esses olhos azuis a olhavam com uma expressão
penetrante, algo que lhe cravou na alma e provocou um
estremecimento. No fundo de sua mente voltou a evocar
lembranças quase esquecidas: salões iluminados pelo sol e
impregnados com o aroma de lavanda e rosa; cós, rendas e
seda em cores pastel; fitas das cores das pedras preciosas
adornando pregas e penteados; o aroma de madeira velha e
seca; falésias cobertas de grama úmida; livros empoeirados
em uma biblioteca e o brilho do corrimão, feito com limão,
cera e tomilho; campos da cor da esmeralda salpicados de
ovelhas brancas e prados cheios de flores silvestres. Recordou
um sorriso muito doce e olhos de diferentes cores
emolduradas por uma juba de cabelos loiros escuros. Sua
irmã, sua melhor companheira, sua amiga da alma, a menina
com quem tinha convivido durante seus primeiros dez anos
de vida e a quem ainda amava.
Todo isso cobrou vida em sua mente, apenas pensando
no nome de sua irmã e sentindo o olhar fixo de um pirata
egípcio.
Não só egípcio. E já não era um pirata. Era um corsário
britânico.
Enviado para encontrá-la? À filha ilegítima de um
contrabandista e uma adultera já falecida?
— Quem é o marido de minha irmã?
— O conde do Savege, o vizinho mais próximo de lorde
Carlyle em Devonshire.
Viola sentiu um nó no estômago. A coisa piorava no
momento. Um aristocrata? Um conde? Deveria alegrar-se por
sua irmã, lhe desejar o melhor e acreditar que era um
matrimônio desejado. Entretanto, ela não tinha lugar nesse
mundo, nem queria tê-la.
— Será uma decepção quando você voltar sem mim, não
me cabe a menor dúvida. Mas não tem autoridade sobre mim,
por mais gentil que seja.
— Voltará comigo.
— Não o farei. — Separou ainda mais as pernas e
colocou as mãos nos quadris. A postura diminuiu sua
agitação e fez com que quase voltasse a sentir-se à vontade
novamente. Como em casa. Em um lugar que gostava.
— Inglaterra é seu lugar — afirmou ele sem o menor
indício de dúvida. Viola soltou uma gargalhada ao escutá-lo,
embora soasse forçada.
— Meu lugar está a bordo de meu navio, com meus
homens. Medite na idéia, Seton. — voltou-se para descer a
escada, soltando ordens a direta e esquerda. Entretanto,
sentia seu olhar cravado nela e a confusão a carcomia.
Se seu lugar estava em seu navio com seus homens, por
que estava tão determinada a sentar a cabeça com Aidan
Castle e viver em sua plantação no trópico, embora só fosse
por alguns meses ao ano? Amava-o, é obvio. Amava-o desde
que ele trabalhava no escritório desse comerciante em Boston
e seu pai o levou para casa para jantar uma noite. A noite
que ela descobriu seu coração de mulher.
Tinha quinze anos, ainda sonhava em voltar para há
Inglaterra algum dia, mas não sabia se esse sonho poderia se
tornar realidade. Sua mãe havia morrido. Sem esse laço,
Viola não era nada para Charles Carlyle. E Fionn sempre
insistiu que ela era tudo para ele. Sua única filha. Seu
melhor marinheiro. E algum dia a senhora de Aidan Castle,
conforme lhe disse um dia.
Fionn os deixou a sós em muitas ocasiões. Emprestou a
Aidan o dinheiro necessário para comprar sua plantação,
mesmo que seu navio mal tivesse as velas necessárias.
Claramente, arrependia-se de tudo o que tinha arrebatado de
Viola, uma vida respeitável entre outras coisas, e queria que
algum dia tivesse algo melhor. Tinha visto esse «melhor» em
Aidan Castle, um homem autoproduzido, nascido na
Inglaterra como Viola, primo de um nobre inglês, mas se
transformou em um americano como Fionn. Como Viola. Seu
pai lhe tinha proporcionado o marido ideal em uma idade
muito jovem. E ela lhe tinha dado o gosto ao apaixonar-se por
ele.
Nesse caso, por que a idéia de ver Aidan em menos de
um mês já não lhe produzia alegria? Não era tola. Aidan
estava há um século sem lhe escrever. Mas quando voltasse a
vê-la, as coisas seriam como antes e lhe pediria que se
casasse com ele, como ele havia insinuado durante anos. E
ela seria feliz.
Uma imagem de Seton, colado a ela diante da porta de
seu camarote, fez que não se dirigisse a seu refúgio. Em
troca, foi em rumo à adega. Quando por fim a pisou, reparou
em todas e cada uma das fendas da madeira, em todas e cada
uma das pranchas estragadas. Lotada de barris, caixas e
móveis envoltos em panos, parecia um navio mercante. Os
dois marinheiros que vigiavam o mar levaram as mãos às
boinas. Ela lhes devolveu a saudação e se dispôs a examinar
o carregamento.
Por que levava mercadorias a Trindade? Era uma
corsária, pelo amor de Deus. Deveria estar sulcando o oceano
em busca de piratas, não transportando farinha.
Inspirou o ar, mofado e carregado, enquanto desterrava
esses inquietantes pensamentos. Seton tinha a culpa. Tudo
estava indo às mil maravilhas antes que ele subisse a bordo.
Poderia desviar-se para Outer Banks, tal como queria sua
tripulação, e desembarcar Seton em alguma das ilhas. Não
necessitava que ele dirigisse seu navio por ela.
Não o necessitava absolutamente.
— Sam!
O marinheiro que conversava com o guarda dos barris
de pólvora permaneceu firme.
— Capitã?
— Diga ao Sr. Seton que eu quero dobrar a velocidade.
Quero atracar em Trindade dentro de dezoito dias.
— Sim, capitã. — Ele correu para o andar de cima.
Viola cravou o olhar no porão de seu navio, cheio de
bens de outro homem, e pela primeira vez em sua vida
sentiu-se presa no mar.

****
— Capitão Jin? — Pequeno Billy serviu uma concha de
sopa de algo que parecia guisado em uma terrina e o
ofereceu. — Estive pensando.
Jin deixou a terrina em uma pequena mesa na sala de
jantar. O camarote que servia de cozinha não tinha nem um
metro quadrado, mas era o único lugar onde nunca tinha
visto viola Carlyle.
Tampouco tinha que haver-se incomodado em evitá-la,
ela já se encarregava disso. Estava a quatro dias lhe
transmitindo ordens através de sua tripulação. Suas palavras
deve ter lhe causado uma grande impressão. Ele só tinha que
decidir como aproveitar essa impressão para conseguir seus
objetivos. E controlar seu gênio. O desafio que lhe tinha
arrojado seguia ardendo como se o tivesse insultado. Devia
aplacar seu aborrecimento antes de voltar a falar com ela.
Encheu a colher de guisado.
— No que, Bill?
— Nos rebeldes escoceses que perseguimos no mar do
Norte. E no menino que levamos para casa antes disso, na
Espanha.
Jin engoliu o insípido guisado e levou outra colherada à
boca. O melhor seria acabar logo com o guisado, já que devia
enfrentar à senhorita Viola Carlyle. Ele não esperava uma
recusa tão forte.
Claro que deveria havê-lo feito. Embora fosse muito
tarde para lamentar-se.
— Sério? — murmurou.
— Sim, senhor. — Billy colocou uma batata sem cortar
na panela e removeu o conteúdo. — Não conseguimos um
saque, e isso que o governo relaxou bem. Mas eu queria saber
por que estamos fazendo isso.
“Por justiça. Para ajudar aos desesperados. Para servir à
Coroa. Para servir ao Clube Falcon.”
Tinham passado quase dois anos desde que abandonou
o seleto clube e zarpou em busca de uma desaparecida a
quem sua família dava por morta. Menos sua irmã.
Entretanto, Serena Savege não estava a par de sua missão,
Alex tampouco. Ele não tinha contado.
— Fizemo-lo porque Sua Majestade nos pediu isso, Bill.
— Uma verdade pela metade, embora fosse melhor que nada.
Talvez devesse haver contado uma verdade pela metade
a Viola Carlyle. Talvez ainda tivesse margem de manobra
para inventar outra história, uma que a convencesse de que o
que ele propunha era o melhor.
Não. Tinha passado muitos anos vivendo de mentiras de
um lado a outro do Atlântico. Não voltaria a começar, muito
menos com uma dama, por mais teimosa que esta fosse.
Ele tomou o cozido e colocou a tigela no balcão.
— Você gostou do guisado, senhor?
— Não, mas pelo menos consegue que seja digerível. —
Deu-lhe uma tapinha no ombro. — Obrigado, Bill.
O rosto do moço se iluminou com um sorriso irregular.
— De nada, capi.
— Billy...
— De nada, senhor Jin. — O moço piscou um olho.
Jin examinou os canhões e fez um gesto de cabeça aos
marinheiros encarregados de seu cuidado antes de subir à
coberta principal. Uma vez em cima, deteve-se. Viola Carlyle
estava sentada na proa, debaixo de umas velas cheias,
rodeada de marinheiros, com o céu azul e as ondas do mar
como cortina de fundo. Diante dela, quatro homens
formavam uma linha perfeita e estavam cantando. Cantavam
para ela.
Ao meio dia. A dez nós de velocidade com a corrente a
seu favor.
Cantando. A ela.
A canção não era nada do outro mundo, uma toada
popular muito conhecida, embora cantassem com incrível
harmonia. Era evidente que ela gostava. Jogara o chapéu
para trás, deixando a descoberto grande parte de seu rosto.
Sorria enquanto olhava aos marinheiros, um a um, com o sol
refletido em seus olhos.
Por um instante, Jin foi incapaz de mover-se, assaltado
por uma quebra de onda de desejo. Nos quatro dias em que
ele mal a tinha visto não se permitiu pensar em quão bonita
era.
Era óbvio que seus homens pensavam nisso naquele
momento. O olhar de todos e cada um dos cantores, e de
todos e cada um dos homens que a rodeavam, estava cravada
nela. Quase quarenta homens permaneciam hipnotizados por
sua capitã, enquanto o navio sulcava as ondas, cabeceando
com força, mas sem perder velocidade, aparentemente
timoneado por fantasmas.
A canção acabou e ela começou a aplaudir ao tempo que
escutava a risada mais sincera e sensual que tinha ouvido.
Uma risada linda, carregada de inocente alegria e de prazer
incauto. Os marinheiros golpearam o chão com os pés para
mostrar sua aprovação. Mas Jin só escutava a ela.
Nesse momento, Viola desviou o olhar e o viu, e sua
alegria desapareceu no ato.
Jin sentiu um nó na garganta que lhe dificultou a
respiração. Inclusive com o cenho franzido, era atrativa. Era
atraente, mesmo jogasse faíscas pelos olhos, e ele morria por
tê-la por debaixo, por desterrar o descontentamento de seus
olhos e substituí-lo com uma veemente submissão.
Algo que não podia fazer. Pelo menos da maneira que ele
queria.
Quando Viola afastou o olhar, ele pôs-se a andar,
fazendo que os marinheiros se dispersassem para deixá-lo
passar. Os cantores se deram palmadas nas costas,
felicitando-se com ar satisfeito. Com um sorriso doce e um
tom agradável, ela os felicitou e agradeceu, fazendo que as
curtidas bochechas dos marinheiros se ruborizassem.
Quando passaram junto a ele, Jin lhes ordenou que se
encarregassem das tarefas que já deveriam estar fazendo e
seguiu para sua capitã.
— Jonah, você se lembra do problema que eu falei sobre
a noite passada e que você precisa de uma correção? —
perguntou ela a um dos homem.
O marinheiro que tinha diante si tirou a boina como um
criado de um aristocrata antes de assentir com a cabeça.
— Claro que sim, capitã. Terei que desentupir o tigre.
— Sim. — Olhou ao marinheiro com um sorriso
pormenorizado. — As coisas vão ficar muito feias se as
deixarmos presas por um longo tempo, não acha?
— Sim, capitã! Eu vou corrigi-lo em um instante. —
Assentiu com a cabeça e se afastou a toda pressa.
Jin olhou para as costas do marinheiro antes de olhar
para a mulher capaz de enviar um homem para limpar a
latrina com um sorriso feliz. Apontou para a proa.
— A que veio isto?
Ela franziu a testa e ajustou o chapéu.
— Eu também te desejo bom dia — resmungou ela. —
Que inseto te picou? Claro, que ao melhor sempre é igual de
suscetível.
— Suscetível? E é isso o que diz a mulher que me
insulta a menor oportunidade e que me evita o resto do
tempo?
— Não sou suscetível. — Desviou o olhar. — Ou não era
antes que você subisse a bordo.
— O que faziam esses homens? Vamos a toda vela.
Deveriam estar controlando que o curso não mude, não
cantando como imbecis para te agradar.
— O navio vai perfeitamente — replicou ela. — Como
pode ver.
— E se o vento tivesse mudado de repente, já teríamos
naufragado.
— Mas não mudou e seguimos navegando — disse Viola.
Seton tinha razão, mas por um instante, enquanto desfrutava
da companhia de sua tripulação e seus pensamentos lhe
davam uma trégua em não pensar nesse homem, tinha sido
feliz. E muito irresponsável. — Coloca em dúvida meus
conhecimentos sobre meu navio?
— Somente como você trata a sua tripulação. Que classe
de capitão monta um concerto indo a toda vela e com a
corrente a favor?
— Um capitão que sabe muito mais de seus marinheiros
que você. Claro que não me surpreende. — Fez gesto de
rodeá-lo, mas ele a interrompeu. — Saia do caminho, Seton,
ou te abrirei sua cabeça com a culatra de minha pistola.
— Não ameace golpear um homem que sabe muito bem
como devolver os golpes... Senhorita Carlyle.
Algo tinha trocado, e pela primeira vez desde que esse
homem com reputação de violência desenfreada subisse a
bordo de seu navio, sentiu medo. Não de que fizesse mal a
ela. Não acreditava que ele fizesse, não depois de havê-la
chamado «senhorita Carlyle» e de querer levá-la de volta a
Inglaterra, para junto de seu cunhado, que era um conde
inglês. Entretanto, a frieza tinha desaparecido de seus olhos e
tinha sido substituída por algo muito distinto. Algo
apaixonado e volátil. Em qualquer outro homem, teria
pontuado de incerteza. Inclusive de confusão. Em Jinan
Seton, tão arrogante como um pavão, assustava-a.
Tinha as mãos úmidas e frias; mas sentia algo muito
quente nas entranhas.
Tentou ignorar a sensação.
— Se voltar a me chamar assim uma vez mais em meu
navio, ordenarei que lhe atirem pela amurada ao mar.
— Se seguir capitaneando o navio como até agora,
acabaremos os dois dando um mergulho no mar.
Olhou-o com os olhos entrecerrados, mas isso só
aumentou a sensação que algo queimava em seu interior. Ela
cruzou os braços.
— É meu aniversário... A canção era meu presente.
Ele continuou igual.
— Seu aniversário.
— Sim. Faço vinte e cinco anos. A partir de hoje, sou
maior de idade. Nem sequer na Inglaterra um homem pode
ter autoridade sobre mim.
— Por isso a canção? — Apontou aos marinheiros. —
Queria reforçar sua autoridade sobre os homens?
— Administro meu navio como me agrada. Tem algum
problema com isso, marinheiro?
— Tenho-o quando você coloca toda a tripulação em
perigo. — Olhou-a no rosto com gesto inescrutável, uma
expressão que para ela era muito mais perigosa que qualquer
outra coisa. — Os trata como se fossem pretendentes.
— Trato-os como se fossem minha família. Que é o que
são. — A única família que tinha depois que seu pai a afastou
da que sempre tinha conhecido.
— Flerta com eles.
— Faço que o trabalho lhes pareça interessante.
— E por que Jonah saiu como uma castanhola para
limpar o tigre? Diga-me. A sua estupidez é supina?
— É muito leal. Ele faz o que sua capitã lhe diz com
supremo gosto, a diferença de alguns marinheiros aos que
não vou nomear, embora sabemos de quem estou falando.
Seton meneou a cabeça com expressão incrédula.
— Suponho que se ordenar a Jonah que se meta na
boca de uma baleia, fá-lo-á sem titubear.
— Pronto. Estou muito impressionada.
— O que há de errado? Teria gostado mais de uma
referência aos mitos gregos das histórias que você lê na hora
de dormirem como uma babá a seus tutelados? Não é de
admirar que eles olhem para você com os olhos de um
cordeiro morto.
A compostura de Jinan Seton começava a fraquejar.
Viola percebia na tensão de seu pescoço e na tensão de sua
mandíbula. Estava conseguindo que o frio e seguro Faraó
perdesse os nervos, e o êxito lhe subiu à cabeça como um
bom gole de gin. Sob seu atento olhar, sentia-se um pouco
embriagada. Um pouco ousada. Como a menina que foi em
outro tempo.
— Com ciúmes de sua devoção, Seton? Talvez se você
lesse, também o olhassem com olhos de cordeiro morto. —
Meneou as sobrancelhas.
— Essa não é forma de capitanear um navio. Os homens
estão meio apaixonados por você.
O coração deu-lhe um estranho salto ao escutá-lo, mas
se obrigou a encolher os ombros.
— Se funciona, por que queixar-se? — Esboçou um
sorriso zombador. — Por isso te incomoda tanto que o tenha
evitado? Você também está meio apaixonado por mim?
— Pelo amor de Deus! — Ele franziu o cenho. — Toma-
me por um completo imbecil?
— Um homem tem que ser um imbecil para apaixonar-
se por mim?
— E também meio cego e sem capacidade de raciocínio,
por não mencionar que deve ter tendências suicidas.
Isso doeu e ela não gostava que um só fio de seu cabelo
doesse. Tentou responder, revirou os miolos em busca de
uma réplica, de modo que as palavras lhe saíram sozinhas.
— Aposto que você quer que eu possa fazer você se
apaixonar por mim.
«Pelo amor de Deus!»
Seton soltou uma gargalhada seca.
— Se atreva se for capaz.
— Hah! — Maldita fora seu língua! Pensou. — Muito
bem. Apostamos? — As irresponsáveis palavras seguiam
saindo de sua boca. Entretanto, a idéia evocava algo
emocionante, algo perigoso, tentador... Algo que não deveria
sentir.
Seton ficou boquiaberto.
Santa Bárbara bendita, esses lábios a deixava louca!
Quase podia saboreá-los. Teria sabor de homem, a paixão e
força. Uma lástima que a olhasse como se tivesse escapado
de um manicômio. E, é obvio, uma lástima que ela não o
suportasse.
— Está louca — murmurou ele, assombrado. —
Verdade?
— Nunca rechacei um desafio. Como acha que cheguei
até aqui? Eu, uma simples mulher. — Apontou a proa.
— Fala sério. — Seton estreitou os olhos. — Você não
pode dizer isso seriamente.
— Dá-te medo que ganhe?
— Certamente que não.
— Pois acordemos as condições. Se eu ganhar, fico com
seu novo navio.
— Não!
— E se ganhar você, voltarei para a Inglaterra contigo.
Isso o pegou pelo pé. Viola achou difícil respirar
normalmente. Não sabia de onde tinham saído essas
palavras. Não desejava voltar para a Inglaterra.
Embora valesse a pena vê-lo retorcer-se de desconforto
enquanto ela se agarrava a ele na tentativa de seduzi-lo. Não
conseguiria, claro. Seton tinha uma pedra por coração e uma
vontade férrea, e acabaria ganhando. Mas ela sempre podia
retornar para casa depois... Depois de ver serena. Sua meia-
irmã. A condessa.
«Ai, Deus, o que eu fiz?»
— Quanto duraria a aposta? — perguntou ele no final.
— Duas semanas.
— Duas semanas?
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Há homens que se apaixonaram por mim em questão
de minutos. — Aidan sempre lhe dizia que esse era seu caso.
Seton a olhou com evidente incredulidade.
— Não me cabe a menor dúvida de que alguns homens
estão loucos como você.
Essas palavras foram humilhantes. E lhe arderam. De
fato, doeram-lhe.
Isso a irritou.
— Talvez você também esteja, escória de pirata.
— E volta aos insultos. Está perdendo seu alto caráter
moral.
— Meu caráter moral segue em alta, obrigada. Aceita a
aposta?
Seton a olhou em silêncio por um momento, com uma
expressão misteriosa nos olhos.
— Sim.
De repente, custou-lhe respirar. Entretanto, ela tinha se
metido nessa bagunça sozinha. E ia ter que tocá-lo nesse
momento, e sentir o calor que irradiava de sua pele mais uma
vez, como no corredor. Um contato que lhe tinha alterado o
sonho desde aquela noite.
Os olhos de Seton brilharam.
— Já se arrepende de sua impulsividade... Senhorita
Carlyle?
Seu coração pulou ao escutá-lo.
— Eu lhe disse que não me chame assim a bordo de
meu navio.
Essa boca perfeita esboçou um sorriso torto, e nessa
ocasião destilava segurança.
— Exponha suas condições.
Condições? Devia lhe falar com respeito e permitir a ela
toda classe de liberdades com sua pessoa. Ruborizou-se. O
olhar de Seton percorreu suas bochechas e apareceu uma
pequena ruga em seu rosto.
— Você deve permanecer a bordo em todos os momentos
— ele se apressou a dizer, — inclusive quando atracarmos em
algum porto, até no final da quinzena, a menos que eu
também desembarque. Nesse caso, acompanhar-me-á aonde
eu for. — Maldita fosse sua imagem por lhe fazer isso, por
fazer sua língua dizer coisas que não deveria e por ser tão
arrogante e tão bonito que lhe fazia água na boca.
— Muito bem.
Sob o olhar atento desses olhos azuis, seus
pensamentos se dispersaram. Mas tinha que chegar até o
final. Seu orgulho estava em jogo.
— Se desembarcar por qualquer motivo, renuncia à
aposta e eu ganho automaticamente.
— E minha parte? Se me jogar fora do navio, renuncia à
aposta e eu ganho?
— Exato. — Não o faria. Tinha suportado sua
inquietante presença durante quase duas semanas a essas
alturas. Mas esses olhos claros lhe diziam que estava
tramando algo. Tinha cometido uma tolice, um engano.
desceu a vista a seus lábios. Um engano tolo e gritante — E
no final da quinzena tem que dizer a verdade — acrescentou.
— Nada de mentir para ganhar.
— É obvio.
Ele estendeu a mão.
— Trato feito?
Quando a mão de Seton envolveu a sua, seu corpo
cobrou vida. Seu aperto era forte, e ela queria sentir essa
força em outros lugares. Queria sentir essas mãos sobre seu
corpo. Era uma desavergonhada infiel que desafiava um
homem para que a tocasse enquanto seu coração pertencia a
outro.
— No final da quinzena, Viola Carlyle, você embarcará
em meu navio e viajará a Inglaterra comigo. — Falou em voz
baixa e serena, justamente o contrário do que ela estava
sentindo por dentro.
— No final da quinzena, Seton, se arrependerá de haver
se aproximado sequer de Violet Daly.
Seton soltou sua mão e se afastou, com parcimônia, sem
ser consciente de que o ar vibrava a seu redor. Ela seguiu
onde estava, com a vista cravada em suas costas, enquanto o
via desaparecer sob a coberta, amaldiçoando-se em silêncio e
amaldiçoando-o. Far-lhe-ia a vida impossível. Obrigá-lo-ia a
abandonar o navio com suas atenções e a deixá-la em paz.
Depois, retomaria sua relação com Aidan, onde a deixaram
na última vez que ele a abraçou e disse que ela era a melhor
coisa que já havia acontecido na sua vida.
No entanto, a idéia de abraçar Aidan não acelerou seu
coração naquele momento. A Aidan precisamente, não.
7

Milady:
Meu pai, meu irmão e eu estamos encantados com seu
último panfleto sobre as Desprezíveis Condições Trabalhistas
que sofrem os trabalhadores das fábricas têxteis em
Manchester. Suas chamadas escritas são uma fonte de
inspiração para a Grã-Bretanha.
Entretanto, devo lhe pedir com todo meu respeito para
remover A Sereia do escritório.
Seu tamanho e seu estado de nudez causaram
desconforto entre nossos clientes e uma considerável falta de
concentração entre os operários da imprensa. Se for
conveniente, estarei encantado de me encarregar de sua
transferência.
Josiah Brittle

****

Estimado senhor Brittle:


Sinto muito o inconveniente causado pela estátua. Por
favor, encarregue-se da devolução ao remetente para o
seguinte endereço: senhor Peregrino, Clube Falcon, número 14
1/2 de Dover Street, Londres.
Uma sereia deve estar ali onde possa ocasionar a maior
destruição possível. Não ao lado desses pobres trabalhadores,
a não ser bem perto dos ricos indolentes que a mereçam.
Atentamente,
Lady Justice
8

Viola Carlyle era uma desavergonhada.


No transcurso de um dia, sua atitude hostil e irritável
desapareceu e agora eram olhares de soslaio e pálpebras
entrecerrados. Jin teria achado engraçado se ela não o fizesse
tão bem. Se não fosse tão convincente. Como se ela realmente
quisesse sua atenção. Adotou o papel de uma mulher
recatada que lhe atirava laços como se fosse uma consumada
atriz, mas com muito mais delicadeza e com a vantagem de
contar com um rosto bonito e um corpo bem formado.
Um corpo que estava mais que disposto a explorar
novamente.
Durante esse dia, abandonou o casaco que a cobria
como um saco e vestiu um colete apertado que se amoldava a
seus seios e a sua estreita cintura, enfatizando a delicadeza
de sua silhueta. No boldrié que usava no ombro e que
cruzava seu torso até o quadril oposto havia uma pistola
pequena e uma adaga cujo punho apontava para um lugar
onde os olhos de um homem não deveriam descansar. O
espantoso chapéu também tinha desaparecido, substituído
por uma boina com viseira quando estava no convés. Se
estava no porão, não usava nada na cabeça. Sua abundante
juba, recolhida em um simples rabo de cavalo como no dia
que a viu nas docas semanas atrás, brilhava como cetim e se
balançava na brisa, lhe roçando os lábios.
Não cometeu o erro de abandonar seu papel de capitã.
Manteve um firme controle sobre seu navio e sobre as
atividades da tripulação, deixando a ele suas tarefas
habituais. Entretanto, comunicava suas ordens sem
brincadeiras nem insultos, empregando uma voz serena que
sugeria uma plena confiança nele e no desempenho de suas
responsabilidades.
Era sedutora, elegante e absolutamente serviçal ou
muito reservada. Era a tentação em pessoa, como uma dama
bem educada que reservasse seus favores para o homem que
considerasse adequado. E só para ele.
Era um demônio enganosa e manipuladora.
Entretanto, tudo isso serviu para convencê-lo de que
seu lugar estava entre a alta sociedade britânica. Sua beleza
e seu elegante flerte, somados à atitude confiante com que ela
se movia em seu mundo, assinalavam-na como a aristocrata
que estava destinada a ser. Como a filha de sua mãe, não a
de seu pai.
Não obstante, Jin esteve envolvido em jogos muito mais
perigosos há duas décadas, e ele sabia como lidar com a
situação. De modo que manteve a distância.
Ela fez as coisas difíceis para ele. Começou a comer com
os homens. Toda vez que Jin estava no convés, Viola
conseguia aparecer. Era evidente que pensava que a chave do
êxito estava na proximidade. Então ele se afastou dela mais
do que gostaria. Nenhum homem lhe dizia o que tinha que
fazer, e certamente não seria uma mulher. Passaram-se vinte
anos desde que alguém lhe havia dado ordens. No entanto, a
proximidade de Viola o distraía. Demais.
Depois das nuvens, dos ventos e do dia ensolarado em
que fizeram a aposta, chegou à chuva. Jin se encontrava em
seu camarote, preparando-se para deitar-se quando apareceu
Becoua.
— Senhor, o céu está parcialmente claro. Vêem-se
algumas estrelas. Pensei que gostaria de sabê-lo, porque a
capitã já está dormindo.
— Obrigado, senhor Malouf.
Becoua se voltou para partir, mas se deteve.
— Senhor Jin, a capitã cheira a flores de um tempo para
cá, verdade? Como se usasse perfume, não?
— Não reparei.
Becoua o olhou nos olhos com uma expressão maliciosa
e curiosa. Jin meneou a cabeça.
— Volte para trabalho, marinheiro.
O contramestre resmungou algo enquanto se afastava.
Jin passou a mão pelo rosto, depois do qual agarrou a parte
de trás do pescoço. Ele tinha que verificar se o navio estava
na direção certa olhando as estrelas. Talvez passassem dias
antes que o céu voltasse a limpar-se.
Não obstante, Viola guardava o sextante12 em seu
camarote.
Que era onde ela se encontrava nesse momento. Sabia
disso porque tinha passado um momento antes diante da
porta de sua cabana, deixando para trás um cheiro de flores
e ervas. Sim, estava há dias usando perfume, um óleo de
rosas das Índias Orientais ou talvez fosse óleo de
champaca13. Uma fragrância forte e embriagadora que se
mesclava com seu aroma de mulher e que inclusive a certa
distância poderia afetar a um homem e acariciá-lo
justamente onde mais ele necessitava.
Uma fragrância óbvia. Desavergonhada.
E que estava sortindo efeito. O resto do navio cheirava a
suor e a homens sujos, enquanto que sua capitã cheirava
como o vestiário de uma dama. Jin se arrependia de não ter
visitado os bordéis de Boston antes de embarcar nessa
travessia. Com esses olhares doces e o incitante perfume,
estava-o excitando, e também estava despertando o desejo de
dar-lhe uma lição sobre as conseqüências de tentar um
homem que não tinha uma mulher por muito tempo.
Se ele estava frustrado, o resto da tripulação deveria
estar também. A confusão de Becoua provava isso.
Essa mulher era um demônio irresponsável! Ou talvez
estivesse louca, como pensou na primeira vez que a viu.

12Instrumento de reflexão, cujo limbo graduado ocupa a sexta parte do círculo (60º),
usado para medir a altura dos astros e suas distâncias angulares, tomadas de um
navio ou aeronave. (Medindo com um sextante a altura do Sol, determina-se a
latitude.).
13Magnolia champaca é uma árvore de folhas perenes, nativa do Sudeste Asiático e

Ásia Meridional. É muito conhecida por sua forte fragrância e tem flores amarelas ou
brancas
Caminhou até a porta de seu camarote e chamou.
Abriu-a uma mulher que não parecia absolutamente com a
capitã de um navio. Seu cabelo estava solto e seus fios
ondulados moldavam seu rosto como a mais cara da pele de
Marta Zibelina14. Ela estava usando apenas uma camisa
branca diáfana com laços desatados, que deixava à vista
grande parte de seu decote. Em uma mão segurava um livro
aberto.
Seus grandes olhos violetas olharam para ele com uma
expressão distraída, que não demorou para modificar-se.
Pestanejou várias vezes enquanto se ruborizava, e por um
instante pareceu sufocada. Não obstante, ao cabo de um
momento, desceu o livro e lhe ofereceu um sorriso feminino
um tanto calculista.
— Senhor Seton, uma visita tardia. É um prazer.
— Você sempre abre a porta para seus marinheiros
vestida assim? — Apontou a pele sedosa de seu decote que a
camisa deixava à vista, umas curvas muito tentadoras.
Porque elas eram.
Tentavam-no.
Precaveu-se de que ela esboçava um sorriso torto.
— Absolutamente. Eu estava esperando por você.
— Com insultos e fanfarronice seria mais fácil me
convencer que abandonasse o navio.
— Posso ganhar a aposta de duas formas.

14Marta zibelina é de uma espécie de fuinha castanho-escuro da Europa setentrional e


partes do Norte da Ásia, um dos mais valiosos animais produtores de pele. Em
algumas classificações, a zibelina é classificada dentro do gênero Mustela.
— Exatamente como eu. — Ele apoiou um ombro na
ombreira da porta. — Não suportará por muito tempo minha
indiferença. Seu orgulho sofrerá e me atirará pela amurada
movida pela exasperação.
— Poderia ser assim se você se mostrasse indiferente. —
Seu olhar desceu e se cravou nos lábios de Jin, onde se
deteve um instante antes de prosseguir para seu torso. Fê-lo
como se fosse uma carícia, devagar.
E ele sentiu esse olhar como tal. Como uma carícia.
Viola o olhou de novo nos olhos.
— Mas não é o caso — concluiu.
Jin cruzou os braços na frente de seu peito com
indiferença e se permitiu um sorriso, embora no fundo fizesse
isso para imobilizar os braços. Ou melhor, as mãos.
— E você gostaria.
— No outro dia, aqui no corredor — ela continuou em
voz baixa. Uma voz feminina, doce e tentadora, — queria me
beijar.
— Viola Carlyle, se tivesse querido te beijar, o teria feito
— replicou ele também em voz baixa.
— Você mente.
Jin não replicou, limitou-se a olhá-la como se não o
tivesse insultado, com um brilho decidido nos olhos.
Viola sentiu uma espantosa secura na boca. Ansiava ter
uma taça de vinho na mão e livrar-se da presença de Jinan
Seton. Essa charada era insuportável. Quanto mais obrigada
se via em pestanejar como uma tola e a manter-se perto dele
no convés vestida com muito menos roupa que costumava
vestir para deitar-se, mais difícil era recordar que tudo era
um teatro. Tinha aberto a porta desse jeito porque ela estava
tentando ler um livro que amava desde quando era criança e,
ao invés disso, passara o tempo imaginando como seriam
seus beijos.
— O que está lendo? — Ele perguntou como se fosse a
coisa mais natural do mundo.
— Um livro — respondeu de má maneira. Essa boca tão
maravilhosa e perfeita, esses braços musculosos e todo o
resto estavam muito perto. — Esta é a sua maneira de tentar
iniciar uma conversa?
— Ora, a ferazinha voltou — comentou ele com um
sorriso que lhe provocou um comichão no estômago. — É
possível que eu acabe saltando pela amurada depois de tudo.
— Oxalá.
Jinan Seton teve a audácia de rir entre dentes.
— Pensando bem, prefiro esta atitude à outra. Eu gosto
de marinheiros honestos.
— Você quer dizer mulheres, não?
Seus olhos parecera escurecerem-se.
— Pessoas em geral — ele respondeu.
Entretanto, essas palavras não refletiram o que estava
pensando. Viola viu em sua expressão, e soube sem o menor
gênero de dúvida que esse homem tinha sido testemunha da
desonestidade de uma mulher e que tinha saído mal disso.
Afligida por um repentino impulso, Viola fez algo muito
tolo.
Ele estendeu o braço, colocou a mão em seu peito e se
ouviu dizer:
— Eu sempre sou honesta.
E era, no concernente a esse tema. Porque queria estar
a seu lado mesmo contra sua vontade e tocá-lo.
Sentiu que seu torso subia e baixava rapidamente sob a
palma de sua mão, mas quando replicou, sua voz soou firme:
— Você está desempenhando um papel que nenhum de
nós gosta. Remova a aposta É infantil e você sabe que vai
perder.
Entretanto, ela não se sentia infantil. Sua forma de
olhá-la com essa intensidade cristalina, mesmo se mostrando
distante, a fazia sentir-se como uma mulher. Deveria afastar
a mão de seu corpo. Por debaixo do fino tecido de linho,
muito fino para um homem do mar, só havia músculo.
— E se eu não me importasse em perder? — perguntou,
em vez disso, estendendo os dedos. Percebeu seu calor
corporal e os batimentos de seu coração, e sentiu um
estranho palpitar. Deslizou um dedo até colocá-lo sobre os
laços da camisa e com um leve movimento a abriu. Pele. Sob
seu dedo sentiu o roce firme e quente dessa pele masculina.
Afastou o tecido, deixando à vista sua clavícula e sua pele
morena. Sua respiração se alterou. — E se eu estiver
gostando da aposta?
Jinan Seton agarrou-a pelo pulso e colocou sua mão
debaixo da camisa.
Viola ficou sem ar nos pulmões. No começo, ele segurou
sua mão, pressionando-a contra seu mamilo. Então inclinou
a cabeça e disse em voz baixa:
— Viola Carlyle, você não precisa amarrar-me a um
mastro para me despir. Se me pedir, farei-o com prazer.
— Ah, sim? — Pelo amor de Deus! Certamente que ele
sentia seus estremecimentos.
Ansiava acariciá-lo sem disfarces, ordenar que se
despisse imediatamente. Ansiava senti-lo por inteiro! Seguir
experimentando essa deliciosa sensação que a embargava
nesse momento. Porque nunca havia sentido isso. Por
nenhum homem. Salvo pelo Aidan, claro. Possivelmente. Ou
talvez não.
O que estava acontecendo com ela?
— Só tem que dizê-lo, capitã — sussurrou ele contra sua
testa.
Viola ficou paralisada. A proximidade fazia com que
seus sentidos se saturassem com o aroma desse homem. Era
um aroma estupendo, embriagador, agradável e quente.
— É consciente de que acaba de me chamar «capitã»? —
lhe perguntou, e sentiu que ele estava acariciando seu pulso
com a gema do polegar.
— Sou — respondeu ele com uma gargalhada. — Olhe
para você Talvez porque estou aguardando uma ordem.
Se ela virasse a cabeça, seus lábios se encontrariam.
Ansiava-o tanto que mal se lembrava do orgulho nem a voz
da razão. Desejava-o mais que a Aidan.
— E se você me contar por que você veio à minha cabine
a estas horas?
Jinan Seton soltou sua mão e acariciou seu braço. Com
uma delicadeza que jamais teria imaginado nele.
— Vim pelo sextante.
Viola piscou, consciente de que se ruborizou, consciente
da sua expressão de que ele sabia até que ponto a tinha
afetado.
— Enfim, você poderia havê-lo dito antes. — voltou-se
para o interior da cabine para ocultar seu rubor e soltou o
livro para agarrar o instrumento de navegação.
— Faz-me graça provocá-la — disse ele quando ela
voltou para o seu lado.
— Não duvido. — Viola arqueou uma sobrancelha e
fingiu ignorar que ele era consciente da verdade. Fingiu que a
verdade não era a verdade: que por um momento se derreteu
sob a carícia de sua mão e que seguiria derretida se ele não a
tivesse soltado. — O céu está limpo?
— Em parte. — Ele aceitou o sextante e olhou para a
mesa em que ela tinha deixado o livro. — Está lendo
Heródoto15.
Ele disse isso como afirmação. Uma declaração sem
qualquer inflexão na voz, embora Viola tenha captado certa
surpresa. Nesse momento, ele a olhou nos olhos, e o
palpitante formigamento começou outra vez.

15Heródoto, também conhecido como o pai da história, foi um grande historiador e


geógrafo dos tempos antigos. Viveu entre 485 a.C e 425 a.C. Nasceu em Halicanarsso,
que hoje é Bodrum, na Turquia. Heródoto foi criado pelo seu tio Pamiatis que lhe
ofereceu uma boa educação e também muitas viagens pelo mundo
— Sim. — Desejou que ele tivesse sua camisa abotoada
até o pescoço. Desejou que ele usasse o capote abotoado até o
queixo. Desejou estar em qualquer outro lugar, bem longe do
olhar cristalino desse homem. Não estava preparada para
essa situação tão confusa, para desejar um homem embora
amasse a outro. — O leu?
Viu-o assentir com a cabeça. Tinha franzido o cenho.
— Bom — ela disse levemente, — pois já temos algo
mais em comum além da aposta. Impressionante. — obrigou-
se a esboçar o que esperava que fosse um sorriso recatado.
Ele levantou o sextante.
— Obrigado — disse, e partiu.
Viola cravou o olhar em suas costas até que
desapareceu na escuridão do corredor de canhões.
Fionn estava acostumado a dizer que ela era muito
teimosa. O barão afirmava, com certo brilho nos olhos e um
sorriso nos lábios, que ela era imprudente. Seus dois pais
tinham razão.

****

— O que você acha? — Mattie colocou seus grossos


cotovelos no corrimão e esfregou o queixo coberto pela barba.
O mar debaixo dele estava escuro, salvo pela branca
espuma das cristas das ondas. O céu, cinza chumbo. Soprava
um vento úmido e salgado.
Jin levantou a luneta e observou a embarcação que se
via no horizonte cinzento. A julgar por seu movimento,
errático e lento, ele estava à deriva. As velas foram abaixadas
e um dos mastros descansava no convés, quebrado. Uma
bandeira desconhecida, vermelha e branca, ondeava ao vento.
Tratava-se de um bergantim muito similar à Tempestade de
Abril, mas de maior tamanho e com uma proa maior. Um
navio mercante com parte da carga a bordo. Uma presa dos
piratas ou não?
— Não podemos nos arriscar — disse em voz baixa.
— Becoua! — gritou a capitã de Tempestade de Abril do
tombadilho. Sua voz era sedutora mesmo quando gritava. —
Dirija-se para essa nave, devagar, mas sem perder o rumo.
Sedutora como seus seios meio nus, como esses
enormes e curiosos olhos, e como sua esbelta mão enquanto
lhe explorava a pele.
Jin se virou e procurou seus olhos ao longe. Devia
convencê-la que deixasse em paz essa embarcação
desconhecida. No entanto, isso exigiria uma conversa
privada; e depois do incidente na porta de sua cabine, ele
reconhecia que aproximar-se novamente dela não seria
sensato. Estava há dias evitando-a.
Viola também tinha mantido distância. O que sugeria
que talvez fosse útil variar sua estratégia a fim de obter que
retornasse a Inglaterra. Podia conseguir seu propósito
empregando outro método.
Porque não era imune a ele. À luz do abajur no corredor,
percebeu que seu corpo respondia à proximidade dele. Se
Viola tivesse consciência disso, se tivesse visto sua camisa
apertar seus mamilos endurecidos, talvez ela não tivesse
recuperado sua atitude desafiadora tão cedo.
Embora, possivelmente sim, fosse consciente.
Capitaneava um navio como se fosse um homem, lia
livros que eram leitura obrigatória para os cavalheiros
educados na faculdade e, entretanto, era a mulher mais
excitante que tinha conhecido. Na porta de sua cabine, com
os olhos brilhantes sob a luz dourada e o sorriso nos lábios,
ele estava prestes a fazer o que não deveria fazer. Embora,
talvez, esse fosse o método mais rápido para devolvê-la a
Inglaterra. Uma mulher sob a influência do desejo estava
acostumada a fazer aquilo que o homem queria e desejava.
Era algo que ele aprendeu muito cedo, observando o
comportamento de sua mãe com seu marido. Quando ele era
mais velho, usou essa lição para seu próprio benefício.
Não desejava mentir para Viola Carlyle. Ela não era o
que aparentava ser, não era o que ela queria que os outros
vissem. Por um instante, na porta de seu camarote, tinha
visto algo muito distinto em seus olhos escuros.
Vulnerabilidade. E confusão pelo desejo que a embargava.
Se ele assim decidisse, poderia aproveitar desse desejo.
Mas já não era esse tipo de homem. Preferia conquistar a
Viola sem subterfúgios.
— Não vai convencê-la.
Jin voltou á cabeça.
Mattie tinha um gesto torto.
— Não o escutará se lhe disser que não se dirija a essa
embarcação.
— Nesse caso, talvez fosse melhor que você dissesse.
Dei-me conta que ela gosta de você.
Mattie soltou uma gargalhada e ficou muito vermelho.
Jin meneou a cabeça e devolveu o olhar ao horizonte.
Quando estavam separados somente por meia milha do
navio, decidiu que não podia mais adiar o momento. Ele
endireitou os ombros e caminhou em direção ao tombadilho.
— Isto é uma insensatez — disse, com a vista cravada
no mar.
— Não pedi sua opinião.
— É meu dever oferecê-la quando considero ser
necessário.
— Necessário, por quê? É óbvio que está abandonado.
Não há por que temer um ataque.
— Poderia ser uma armadilha. Para atraí-la.
Viola o olhou e arqueou as sobrancelhas.
— Ora! Conhece essa tática? Sem dúvida a pôs em
prática durante seus dias de pirata. — Seu tom seguiu sendo
amável e manteve as pálpebras entrecerradas.
Jin não pôde evitar um sorriso. A combinação de harpia
ofensiva e recatada sedutora lhe adequava muito bem.
Viu-a piscar várias vezes antes que desviasse o olhar.
Jin a seguiu, incapaz de afastar os olhos dela. Tinha uma
aura encantadora e inocente que rodeava sua fachada de
mulher curtida pela vida no mar, e tinha sido um imbecil em
não precaver-se disso no dia que a encontrou na doca, em
Boston. Há vinte anos não sentia seu coração se acelerar
quando estava no convés de um navio. Nesse momento se
acelerou.
— Se quer chegar a Trindade em quinze dias — lhe disse
com uma brutalidade que não foi premeditada, — será
melhor que continue o rumo. É mais seguro.
Ela pôs as mãos sobre os quadris.
— O que aconteceu? Não posso acreditar que o Faraó se
preocupe com uma possível escaramuça, assim deve tratar-se
de outra coisa. — Manteve o olhar no horizonte e desceu a
voz. — Tem medo de que eu morra e você não possa dar o
saque ao conde?
— Sim.
O vento soprou seu cabelo, que teve que afastar da
bochecha.
— Pois é uma possibilidade com a que terá que aprender
a conviver.
— Não posso — replicou ele.
Viola afastou os punhos dos quadris e curvou os
ombros. Imediatamente, afastou-se dele sem dizer uma
palavra.
A tripulação do navio à deriva tentou apresentar
batalha. As velas penduravam-se feitas farrapos das vergas,
embora a maior parte jazesse no chão. A coberta principal
estava negra pela pólvora e fogo de canhão, assim como os
castiçais. Mas o detalhe mais convincente era o estado da
catraca, inclinado totalmente para a proa. No convés, havia
quatro cadáveres, poucos homens, certamente que se tratava
de um navio mercante. Os marinheiros precisos para
conduzir a embarcação e manter o curso. Se não havia
ninguém mais no deck, o resto da tripulação deve ter sido
forçada a abandonar o navio. Melhor viver a vida de um
pirata até o próximo porto que morrer no alto-mar. Jin viu
muitos marinheiros tomarem essa decisão.
— Transportavam rum — resmungou Mattie enquanto
se colocava a seu lado. — O que vai fazer? — Ele perguntou,
ao tempo que assinalava com a cabeça para Viola, que se
encontrava no convés inferior dando ordens à tripulação
enquanto se aproximavam do outro navio.
— Convidá-los para tomar um chá, sem dúvida. — Jin
respirou fundo e desceu ao convés principal. Quando ele
chegou até ela, disse:
— Não o faça.
— Cala a boca, Seton, ou eu o libero de seu dever.
— Contratou-me precisamente para este propósito.
— Contratei-te sob um falso pretexto. Gui, traga meu
sabre! Sam, Frenchie, baixem o bote. Vocês dois, Stew, Gabe
e Ayo me acompanharão.
Os marinheiros começaram a se juntar ao lado da grade
com os olhos fixos no convés do outro barco.
— Nesse caso, me permita acompanhá-la — disse Jin
em voz baixa.
— Eu disse para você calar a boca.
— Um capitão deve permanecer em seu navio.
— E deixar a diversão para os outros?
— Diversão? Existem cadáveres nesse navio.
Viola olhou para o grumete16, que entregou um sabre de
folha larga.
Ela o colocou no boldrié.
— Gui, você fica aqui. Vou te trazer um presente, eu
prometo.
O grumete franziu o cenho e seu olhar furioso foi quase
tão convincente como o do Mattie. Ela mexeu em seu cabelo e
soltou a trava que segurava sua pistola.
— Segurem as velas e baixem o bote!
Jin continuou falando em voz baixa, apesar do tumulto.
— Que tipo de marinheiro arrisca a vida só por divertir-
se?
— Você começa a se parecer com minha velha babá.
— Possivelmente porque você está se comportando como
uma menina maluca que não sabe o que lhe convém.
Viola se voltou para escutá-lo, com um olhar
determinado.
— Eu consegui ficar muito bem em alto-mar por quinze
anos sem você, Jinan Seton. Não tenho dúvidas de que
continuarei bem pelo menos durante muito mais anos. — Ela
abriu caminho entre a tripulação de caminho à escada.
Jin a seguiu, amaldiçoando em voz baixa. Ela chegou
primeiro ao lugar e desceu com grande agilidade. O pequeno
bote se balançava na água cinzenta. Os marinheiros
desceram os remos e partiram rumo ao navio. Quando

16Praça inferior da Marinha, que a bordo faz a limpeza e ajuda os marinheiros nos
diferentes trabalhos; aprendiz.
chegaram junto a ele, Sam lançou um gancho de ferro. Jin foi
o primeiro em subir, depois do qual desceu uma escada.
Viola subiu e se deteve em metade do convés enquanto
observava a cena.
— Malditos piratas — murmurou.
Jin se aproximou de um dos cadáveres. O homem tinha
o cabelo cheio de sangue seco, como o peitilho da camisa, que
também estava queimado por um disparo. A folha da espada
que ainda segurava com uma mão lívida estava manchada de
sangue.
— Três dias no máximo — disse Jin, quando se
endireitou. — Ainda não há sinais de aves de rapinas.
— Estamos muito longe da costa — apontou Viola, que
se benzeu enquanto seus lábios se moviam em uma
silenciosa prece. Depois, disse em voz alta: — Ninguém os
estará procurando.
— Não seja tola — disse Jin, que ardiam seus ombros
sob o ardente sol. — Sempre há alguém.
— Por que não o afundaram? Por que não a tomaram
para regatear suas partes?
— Porque estão escondidos no porão, esperando o
momento certo para sair, nos matar e ficar com seu navio? É
uma hipótese.
— Covarde.
Jin a olhou sem falar.
Ela sorriu. Por mais estranho que parecesse, e apesar
das circunstâncias, o gesto provocou uma série de desejos.
Aparentemente, aquela mulher não sabia o que era o medo. E
ela ficava linda quando sorria com essa cara travessa.
— Moços — disse, dirigindo-se a seus homens, — quem
quer descer comigo e ver o que essas pobres almas estavam
preparando para o jantar antes que o Senhor as levasse para
o paraíso?
Jin se aproximou da escada e outros seguiram onde
estavam... demonstrando uma grande sensatez. Viola o
seguiu.
— Seton, você não tem medo de dar uma olhada? —
perguntou-lhe.
Desceu as escadas logo atrás dele e seus passos
ecoaram no deck.
— Se voltar a me chamar covarde, alvejar-te-ei com um
tiro mesmo com o risco de enfrentar a raiva do Conde.
Ela se pôs a rir. Sua risada era rouca e musical. Devia
reconhecer que era uma mulher descarada. E sem medo.
Tiveram que abaixar a cabeça para entrar no convés dos
canhões. O reduzido espaço era opressivo. As bocas estavam
protegidas e não havia nenhuma indicação de que tinham
disparado o canhão. Não havia cadáveres naquele lugar, mas
havia algumas gaiolas abertas perto da base de proa.
— Os animais foram levados, mas não o carregamento
completo. Também deixaram o equipamento e as velas. Nem
sequer levaram a água.
Ele assentiu com a cabeça.
— Eles estavam com pressa. Talvez porque tinham outro
objetivo em mente.
— Então, já não acha que eles vão nos atacar como
fantasmas? — perguntou Viola. — Desculpe-me de dar essa
decepção.
O comentário o deixou à beira do sorriso.
— Talvez eu mesmo tenha que te matar depois de tudo.
— Tente-o. — Viola virou-se e continuou a descer. Jin se
viu seguindo-a de novo.
— Você não está interessada em revistar a cabine do
capitão?
— Não precisa. Ele estava no convés.
— Como sabe?
— Eu o conhecia — respondeu ela como se fosse natural
a situação.
Jin se obrigou a afastar o olhar da sedosa cascata que
caía pelas suas costas para esquadrinhar o amplo espaço.
Estava meio vazio. Entretanto, restavam barris e sacos de
lona, alguns abertos, com seu conteúdo espalhado. Ali
tampouco havia seres humanos.
— Quem era?
— Jason Pettigrew. Um amigo de meu pai. — Colocou as
mãos sobre os quadris. — Fionn capitaneou um de seus
bergantins antes da guerra. Jason sempre dizia que... — Sua
voz desceu e ele franziu a testa.
— Acompanhou seu pai a bordo desse navio? —
perguntou ele, tentando animá-la para que continuasse.
— Fionn quase sempre me levava com ele.
— Desde o começo?
— Sim. Seton, isto é um interrogatório? Quer que me
sente e que conte minha vida? Ou talvez você prefira ler meus
diários? Embora talvez sejam muito aborrecidos para seu
gosto.
— Suspeito que serão tão fascinantes como sua autora.
Viola o olhou nesse momento. Entretanto, já não franzia
o cenho. Olhou-o com receio. Sem medir palavra, deu meia
volta e começou a subir a escada.
Jin a seguiu, observando as curvas de seus quadris.
— Ordeno que transladem o carregamento?
— Só a água fresca. Temos provisão de sobra.
— E o que fazemos com os corpos?
Ela o olhou de esguelha, surpreendida. Jin sustentou
seu olhar sem fraquejar. Se acreditava que ele era desumano,
em outra época não teria andado muito longe da verdade.
— Diga aos moços que cortem o equipamento e as velas
para envolvê-los. Vamos enterrá-los ao pôr-do-sol.
— Sim, capitã.
Viola entregou a pistola e o sabre a Sam. Então
desabotoou o colete e tirou os sapatos. Depois se aproximou
do corrimão enquanto segurava o punhal que usava no cinto.
Jin franziu o cenho.
— O que vai fazer?
Ela esboçou um sorriso torto que produziu um efeito
imediato na sua virilha antes dela lançar-se de cabeça ao
mar.
9

Jin correu para ela na tentativa de segurá-la, mas


chegou muito tarde e acabou agarrando o corrimão enquanto
ela desaparecia sob a superfície cinzenta.
— Por todos os infernos...!
— A capitã dá sempre estes mergulhos, senhor, é claro
que sim — disse Sam.
— Que á nestes mergulhos? — tonto e com o coração na
garganta, o pânico o afogava como as ondas que haviam
engolido Viola Carlyle. Ele olhou para o oceano. — O que ela
está fazendo?
— Não sei, senhor. Suponho que está procurando algo.
Mas tem bons pulmões.
— O bote — disse enquanto lançava a escada.
Foi o momento mais longo de sua vida, incluindo os que
ele passou a vinte anos atrás, acorrentado com grilhões de
ferro à adega do navio negreiro17 enquanto cruzava o
Atlântico. Passaram dois minutos. E mais. Tirou o capote,

17Navio Negreiro – navio de escravos.


disposto a mergulhar. E nesse momento a cabeça de Viola
apareceu na superfície agitada do oceano e ele finalmente
conseguiu respirar, embora de forma superficial.
Viu-a nadar em direção ao bote, levantando os braços
por cima das ondas e com o cabelo colado à cabeça. E não só
o cabelo. Levava uma corda, coberta com algas marinhas que
se agarravam a seu rosto, entre os dentes
Ele se inclinou sobre a borda do bote e a agarrou,
ajudado pelo senhor French, e com um grande chapinhar
conseguiram subi-la. Viola sacudiu a água e tentou recuperar
o equilíbrio, mas Jin não a soltou. Depois de tirar a corda da
boca, puxou a corda que segurava e que trazia às costas. A
corda deixou uma trilha esverdeada no rosto, no pescoço e na
camisa branca, que lhe colava ao corpo. Um corpo que
tiritava de frio.
Envolveu-a com seu capote.
— O que pescou, capitã?
— Um tesouro, Ayo, é obvio.
Viola sorriu ao marinheiro enquanto aguardava a
tempestade desencadear com mais turbulência ao lado dela.
Seton segurava seu braço como um grilhão. Ele a arrastou
para um dos assentos e, soltou-a, os marinheiros desceram
os remos à água. Viola agradeceu sua rapidez, e também pelo
capote de Seton. O mar estava impiedoso naquele dia. Ela
estava acostumada a mergulhos longos, mas tinha
permanecido submersa por mais tempo do que deveria nessa
ocasião. Seus dentes tocavam castanholas e sua cabeça
estava girando.
Seton não falou nem a olhou. Depois de deixar em seu
regaço a caixa que ela tinha recuperado das águas do mar, o
olhou de esguelha. Tinha um tic nervoso no queixo, de modo
que fechou os olhos.
Depois de alguns minutos, que passaram voando,
estavam de novo no navio, que ela subiu pela escala,
encharcada e congelada. A suas costas, Seton ordenou aos
marinheiros que movessem as reservas de água do navio
mercante à adega de Tempestade de Abril. Viola começou a
caminhar em direção as escada. Ele a seguiu, mas se
manteve em silêncio enquanto deixavam os marinheiros se
aglomerando no convés principal. Quando ela colocou um pé
no primeiro degrau, Seton finalmente falou, embora tenha
feito com uma voz firme e calma.
— Suponho que Pettigrew te falou em alguma ocasião
dessa caixa.
Ela desceu os degraus, apertando com mais força o
tesouro que tanto esforço havia feito para conseguir. Tinha
perdido a adaga com o último prego que segurava a caixa ao
casco do navio, que tinha se soltado de repente, fazendo com
que o punho escorregasse de entre os dedos adormecidos.
— Evidentemente.
— Seu conteúdo tem que ser muito valioso. — Seguiu-a
até seu camarote, mas esse tom sereno não a enganava. —
Ouvi falar desses tesouros. De caixas singelas com conteúdo
de valor incalculável. Entendo que você possa correr riscos
tolos para recuperar semelhante objeto. — Sua voz adquiriu
um tom cortante.
— Não foi uma tolice. Em outras ocasiões, permaneci
debaixo da água muito mais tempo.
— Sam me contou isso. — Tinha feito uma ligação com
ela. Seton estendeu uma mão para abrir a porta de seu
camarote, cercando-a por um momento. Viola passou por
debaixo de seu braço e se aproximou da bacia de lavar as
mãos. Ele entrou atrás dela. — De qualquer modo, foi uma
imprudência arriscar-se por uma possibilidade.
— Não era uma possibilidade. — Passou um pano úmido
pelo rosto e podia sentir o cheiro do sal do mar. — Sabia o
que estava procurando e o recuperei em seguida. Meus
homens sabem...
Ele a pegou pelo ombro e a forçou a girar.
— Eu não sou um de seus homens e não sabia que você
iria se jogar de cabeça no mar agitado. — Esses olhos
cristalinos brilhavam a tênue luz enquanto que seus dedos se
cravavam no seu ombro.
Viola escorregou de suas mãos, embora sua pele
queimasse onde ele a tocou.
— Parece uma velha casada, Seton. Vá e dê seu sermão
a outro.
Aqueles olhos azuis, expressão intensa e mal-humorada,
examinaram-no o rosto. Mas havia algo neles... um brilho
curioso. De repente, seus joelhos se afrouxaram.
Seus joelhos se afrouxaram? agarrou-se a jarra de água.
— Vá embora.
— Maldita seja! — Seton falava em voz baixa. — Às vezes
se comporta como se estivesse possuída.
— Possuída pelo o repentino arrependimento de haver te
contratado?
— O que há na caixa, Viola?
Viola. Só Viola. Não senhorita Carlyle. Não capitã.
Ficou sem ar nos pulmões. Talvez estivesse louca. Ou,
quando menos, era uma idiota. Era suficiente para ela ouvir
seu primeiro nome, essa familiaridade simples, de modo que
a pouca força que ficava nas pernas a abandonasse por
completo. Ninguém a chamou por seu nome real em quinze
anos. Nem sequer seu pai.
— Uma carta.
— Que carta?
— Acha que se eu soubesse teria mergulhado no oceano
gelado para recuperá-la do casco do navio mercante?
— Viola...
— Uma carta para sua esposa e filhos. — Revirou os
olhos. — Não é nada. Ele me disse que costumava colar uma
pequena caixa no casco do navio toda vez que ele se
preparava para zarpar em uma nova viagem. Dessa maneira,
se um pirata abordava seu navio e o lançava pela amurada,
algum dia alguém poderia encontrar a carta e enviá-la para
sua família. Como uma espécie de despedida.
O peito de Seton se agitou ele respirou fundo, mas não
falou.
— Eu disse a ele que era a coisa mais ridícula que tinha
ouvido na vida. — Ele afrouxou a garra de ferro com um gesto
da mão, mas seus movimentos eram erráticos. — Que tipo de
pirata enviaria uma carta à mulher do homem que acabara
de matar? Além disso, havia uma boa chance de que ele
acabaria no fundo do mar ou que eles nem sequer
reparassem nela, por mais decorada que estivesse a caixa.
Mas ele disse que se havia a menor oportunidade de alcançar
o seu... — Sua voz falhou quando ela percebeu a intensidade
de seu olhar. Ela começou a tremer, encharcado até os ossos
como estava. — Quero dizer que não me parecia muito lógico
que ele...
Seton separou os lábios, como se quisesse falar, mas
não o fez.
— Por que me olhas assim? — Ela perguntou, irritada.
— Você arriscou sua vida para recuperar a carta de um
falecido para sua família?
— Eu disse que não havia perigo de...
Agarrou-a pelos ombros e a colou a ele, lhe arrancando
um ofego. em seguida, inclinou a cabeça, e seu fôlego lhe
roçou a pele gelada. Viola tentou não fechar os olhos, tentou
reprimir o desejo que a consumia.
— Você vai morder meu nariz novamente como um
garoto de dez anos, Seton? — Sua voz tremia.
— Não.
Nesse momento, Viola descobriu que aquela boca
perfeita era ainda mais perfeita do que parecia à primeira
vista. Ele a beijou, e de repente a questão de saber se
permitiria ou não se converteu em quanto tempo poderia
fazer com que o beijo durasse.
Não foi um beijo breve nem simples. Não desde o início.
Encontraram-se a meio caminho e se abraçaram, imóveis.
Durante muito tempo. Muito perto. Com muita intimidade.
Como se ele desejasse beijá-la tanto como ela tinha desejado
fazê-lo, mas com a certeza de que se separassem o mínimo
possível, a realidade desapareceria. Como se Seton quisesse
impregnar-se de sua essência. Aidan nunca a tinha beijado
assim. Aidan a beijava como se pudesse afastar-se a qualquer
momento, como se beijá-la fosse um favor que estava fazendo
e que não gostava muito.
Isso era diferente. Isso era uma conquista em toda
regra. Era alívio e certeza em partes iguais. Era ânsia de estar
perto e de permanecer assim enquanto pudesse agüentar a
respiração. O desejo de desfrutar da incrível intimidade do
abraço, de sua mão na nuca, imobilizando-a contra sua boca,
embora estivesse mais que disposta em ficar entre seus
braços e ele não precisava segurá-la. Por Deus, como gostava
de estar entre seus braços! Jinan Seton era a personificação
da força e do calor, e não precisava respirar se ele não a
soltasse.
No final, ele a soltou, mas só o tempo para tomar ar,
como ela , antes de unir suas bocas novamente.
Nesse instante, fez-se evidente que não só se tratava de
um homem capaz de afogar a uma mulher, mas sim também
possuía um vasto conhecimento sobre os beijos para queimá-
la. Em um abrir e fechar de olhos, a inquietante intimidade
deu passo a uma sensualidade esmagadora.
Seton a saboreou, prestando especial atenção a seu
lábio inferior e no lado interno deste, antes de continuar com
o lábio superior. Isso a excitou ainda mais. Separou os lábios
para lhe permitir acesso. Depois de forçá-la a jogar a cabeça
para trás, Seton a torturou, acariciando-a lentamente até ela
se colar a ele em busca de mais. Ela ficou nas pontas dos
pés. Quando ele lambeu seus lábios, urgindo-a a separá-los
mais, o prazer a inundou completamente.
Choramingou como uma gata desesperada.
Seton enterrou os dedos nos seus cabelos e roçou sua
língua com a sua de forma tentadora. A ânsia se estendeu
por seu corpo enquanto ele continuava a beijá-la com uma
familiaridade que ia além da mera intimidade, conquistando-
a pouco a pouco até que pôde senti-lo em seu interior e a
assaltaram os estremecimentos. agarrou-o pelo pulso, forte,
como só podia ser o pulso de um homem, o símbolo da força
que a segurava, mas queria senti-lo por toda parte. Sua pele
exigia. Essa mão se deslizou por sua nuca e o sangue de
Viola se converteu em lava ardente.
Ele afastou a boca. Durante um instante se manteve
muito perto dela, ambos respirando de forma entrecortada.
— Olhe — disse ele com voz rouca, — isso conseguiu te
silenciar durante um minuto inteiro.
— Mais de um minuto. — Engoliu saliva para desfazer o
nó enorme que tinha na garganta. — Eu diria que sim. — A
mão de Seton seguia fazendo maravilhas em sua nuca.
Parecia muito grande. É verdade que ela era baixa, mas pela
primeira vez na vida também se sentia delicada. Como uma
dama.
Claro que uma dama não gostaria de lamber esses
lábios, mesmo que pudesse reunir a coragem de fazê-lo, algo
que ela era incapaz apesar da perfeição dessa boca úmida tão
perto da sua.
A boca esboçou um sorriso torto. Suas mãos a soltaram,
sua cabeça se afastou, e Viola ficou imóvel, molhada e com
seu capote como única fonte de calor, enquanto ele cruzava o
pequeno camarote, saía e fechava a porta.
Retrocedeu um passo e os joelhos de repente
afrouxaram, embora teve a sorte de correr para uma cadeira,
sobre a qual se deixou cair. Deveria estar furiosa. Deveria ter
arrancado seus olhos. Em troca, tinha deixado que a beijasse
sem opor a menor resistência.
Entretanto, não tinha beijado um homem por muito
tempo.
Era lógico que não tivesse resistido. Embora da próxima
vez, faria-o.

****

Não haveria outro beijo. Tinha sido um erro. O cérebro


de Jin sabia embora seu corpo, excitado por tantas horas,
não. Viola tinha um sabor doce e picante ao mesmo tempo,
como uma mulher que precisava ser beijada. Como uma
mulher que necessitava muito mais que beijos.
Embora não deveria havê-lo feito. A idéia de que
aceitasse retornar a Inglaterra mediante a sedução não era
realista. Seria incapaz de controlar o desejo de Viola se não
conseguia controlar o seu próprio. Algo que ele já sabia de si
mesmo ser incapaz, enquanto estivesse tocando-lhe o cabelo,
o rosto e o corpo. Molhada e entorpecida pelo mergulho,
enquanto tentava justificar seu ridículo comportamento com
voz entrecortada, tinha-o olhado com esses olhos escuros e o
desejo tinha tomado sua barriga. No peito. Ele teve que beijá-
la. Só foi capaz de contentar-se com beijos ao recordar que,
apesar da evidência em contrário, ela era uma dama.
Ele não era um cavalheiro. Era o bastardo de uma
mulher que o amou tão pouco que permitiu que o vendessem
como escravo. Era um homem que tinha cometido os piores
pecados a sangue frio, que não faziam absolutamente
nenhuma coisa honrosa. Não era um homem que pudesse
desfrutar das carícias de uma mulher de linhagem, por mais
que ela negasse seus direitos de nascimento ou respondesse
com ardor a seus avanços. E também era o homem que ia
levá-la a Inglaterra, quer quisesse ou não .
Entretanto, não era um homem que se arrependesse de
seus atos. Simplesmente evitaria cometer o erro de
aproximar-se muito perto da conta. Para tal fim, manteve-se
afastado dela. E Viola fez o mesmo.
Era incrível o quão fácil que se podiam evitar em um
navio relativamente pequeno. Quando se pusessem rumo ao
Este em seu próprio navio, não seria possível, já que era
muito menor. Embora ele se preocuparia com isso quando
chegasse a hora.
Rodearam Cuba, passando bastante afastados da ilha,
sem encontrar oposição, e Jin contou os dias que faltavam
para chegar ao porto. Aproximaram-se das ilhas da Jamaica,
mais seguras, e só avistaram uma fragata norte-americana,
mas a perderam de vista nas intensas chuvas que se
seguiram. O toró durou doze horas e empapou as velas e tudo
o que havia a bordo, embora o vento se manteve e os
impulsionou pelo Caribe. Os homens quase não se
queixaram, já que sempre estavam de bom humor, graças a
sua capitã. Como cães mulherengos. Inclusive Matouba, que
subia e descia da plataforma encharcado, e o fazia com um
sorriso para sua capitã.
Entretanto, era chuva, não uma tempestade, de modo
que Jin devia contentar-se com seu progresso.
Na véspera de sua chegada ao porto, o vento do Norte
explodiu e começou a soprar. Jin levou o mapa á proa para
estudá-lo à vontade. De todas as formas, conhecia as ilhas,
as enseadas, as praias e as montanhas como a palma de sua
mão. Passou quase toda sua juventude navegando de uma
ilha a outra, aceitando os trabalhos que surgiam e roubando
quando não tinha nada.
Atracariam em questão de dezesseis horas. Dois dias
depois, a quinzena teria terminado e ele devolveria Viola
Carlyle a seu lar, ao lugar que ela pertencia. A sua família.
Escutou seus passos as suas costas, no convés,
aproximando-se dele. Movia-se com uma segurança que os
homens não possuíam, e a reconheceu por seus passos e pelo
aroma de flores selvagens que o vento trouxe. Conhecia sua
voz aveludada e o sabor de sua boca, e também a textura de
sua pele na delicada curva do pescoço. Conhecia sua teimosa
determinação e também o brilho indeciso de seus olhos
violetas. Conhecia-a muito melhor do que gostaria.
Voltou á cabeça, enfrentou seu olhar fixo e, de repente,
temeu que dois dias e dezesseis horas fossem uma
eternidade.
10

Evitar Jinan Seton não teve o efeito que Viola tinha


esperado. Ele ainda estava tão bonito como há quinze dias
atrás, quando lhe roubou o sentido comum com um beijo em
seu camarote. O sol poente criava uma sombra que
obscurecia seu rosto e suas mãos, recortando-o contra um
pano de fundo cobalto com pinceladas lavandas. Não era uma
imagem que a ajudasse a acalmar seus nervos.
Viola conteve o fôlego e pôs as mãos sobre os quadris.
— Não quero que volte a me beijar.
Ele arqueou as sobrancelhas e a julgar por sua
expressão, Viola soube que estava lançando mão de toda sua
paciência.
— Não me olhe como se não soubesse do que estou
falando.
— Não tenho a menor intenção de te beijar outra vez.
— Tampouco acredito que tivesse intenção de me beijar
no outro dia, mas o fez de todas as formas.
Ele riu entre dentes e balançou a cabeça.
— Não pode evitar discutir por nada, certo?
Viola tinha planejado aproximar-se dele com uma
estratégia mais sedutora, recorrendo ao flerte para negar-lhe
seus favores de modo que sua negativa o desesperasse e se
visse forçado a declarar seus sentimentos para conquistá-la,
e ela seria a ganhadora da aposta. Louco, seu segundo de
bordo, disse-lhe uma vez que um homem poderia ficar com
raiva quando a mulher a que deseja se nega a beijá-lo ou a
deitar-se com ele. Segundo Louco, nessas circunstâncias ele
era capaz de prometer qualquer coisa, dizer o que fosse para
sua esposa, embora no final fosse uma mentira, para
convencê-la de que lhe desse o que queria.
Entretanto, Seton não parecia desesperado. Parecia
estar em um ótimo momento. As coisas não estavam indo
como ela queria. Nenhum deles seguia o script18.
Viola fez beicinho.
— Não discuto quando estou de acordo com alguém, e
contigo jamais estou, assim não espere que te dê a razão.
A luz dourada do sol poente se refletia naqueles olhos
azuis. Viola sentiu a garganta seca ao recordar certa ocasião
em que tinha estado de acordo com ele. E Seton bem que se
aproveitou desse momento.
— Você tem algo para discutir comigo? — ele perguntou-
lhe com uma tranquilidade inquietante. — Refiro-me à
travessia.
— Uma vez que atraquemos no porto e que
descarreguemos, você e eu iremos a uma plantação situada
não muito longe da costa.

18Script ― roteiro
— Com que propósito?
— Para visitar um homem pelo o qual meu pai fazia
negócios. Um velho amigo.
— Posso ficar no navio — replicou ele.
Até que o prazo da aposta chegasse a seu fim, queria
dizer. Mas Viola não estava disposta a perder e tinha um as
guardado na manga: Aidan Castle. Conforme Louco havia lhe
dito, esse era outro método muito eficaz para enlouquecer de
desejo um homem. Apresentar-lhe seu competidor.
— Você virá comigo — insistiu. — Se quiser, diga ao
Mattie que nos acompanhe. Como proteção. — Sorriu e
arqueou uma sobrancelha.
Entretanto, não obteve a reação que esperava. Em vez
de se recusar ou ser indiferente, Seton continuou a olhar
para ela sem piscar de forma quase tenra.
— Não preciso de proteção para lidar com você, Viola
Carlyle.
— Durante as três primeiras semanas da travessia eu
não te vi no deck por um único dia durante o entardecer —
apontou ela. — Entretanto, esteve no convés por sete dias a
esta hora, desde que me beijou. Acredito que faz isso para
ver-me. — Ele inclinou a cabeça. —Tem certeza de que não
precisa de alguém para protegê-lo de mim, depois de tudo?
— Por que não está no leme? É onde você gosta de estar
ao entardecer, verdade?
— Vejo que está tentando livrar-se de mim. Interessante.
— É você que o diz. — Esboçou um sorriso torto e por
um instante o sol pareceu explodir em chamas no horizonte,
lançando uma chuva de faíscas ao céu.
Era estranho que conhecesse seus costumes, tal como
acontecia entre os marinheiros de um mesmo navio, e que,
pelo contrário, não o conhecesse absolutamente como pessoa.
A maioria de sua tripulação confiava nela, via-a como uma
irmã ou como a uma filha, alguns inclusive como uma mãe.
Mas esse homem jamais procurava conselho. Suspeitava que
Faraó não necessitava de confidente algum. O gesto decidido
de seu queixo e sua expressão firme, sua forma de
comportar-se, seu porte erguido e sua atitude dominante
deixavam bem claro que era um homem independente.
Viola mal conhecia Jinan Seton. Somente sabia que seu
incomum sorriso... A fazia ver as estrelas.
Via as estrelas cada vez que ele sorria. Estrelinhas.
Piscou para livrar-se delas.
— Durante meus primeiros anos em alto-mar, o
entardecer era o único momento que Fionn me permitia pegar
o leme. — Apoiou-se na curva do mastro de proa.
Seton a olhava com uma expressão inescrutável.
Entretanto, esse era seu navio e podia sentar-se onde
gostasse. E, nesse momento, gostaria de sentar-se a seu lado
durante o entardecer.
Parecia-lhe natural.
E possivelmente se sentava com ele por um tempo,
veria-o sorrir de novo.
— Tenho muito boas lembranças daqueles tempos —
acrescentou.
— Elas não são as únicas boas lembranças que você
tem — afirmou ele.
Ela meneou a cabeça.
— Certo. Tenho muitas. Mas... — Ele esperou que ela
continuasse, como sempre. Era sua característica manter-se
em silêncio e escutar. Não era como ela, que jamais tinha
obtido. A filha calada e sonhadora tinha sido Serena, o
complemento perfeito para a esmagadora energia de Viola.
Cravou a vista no reluzente horizonte e continuou: — O
crepúsculo é um momento especial.
Sempre tinha gostado de estar no convés durante o pôr-
do-sol. A luz cintilante do sol poente a fazia sentir-se muito
sozinha e, provocava-lhe certa saudade. Era o momento do
dia que parecia menos seguro, olhasse para onde olhasse e
sem importar para onde estivesse orientada a proa de
Tempestade de Abril, não parecia haver um porto seguro em
nenhum lugar. Nesse momento, durante o crepúsculo, podia
estar no tombadilho e sentir-se à deriva sob o céu que
mudava, sentir-se tão leve que parecia ser capaz de voar a
qualquer instante ou de desaparecer diluída nas cores do
firmamento ou arrastada pelo vento. De modo que imaginava
que sua linha de salvação era o leme, a âncora que a
mantinha no convés. No mundo real.
Era disparado. Como o que sentia por Jinan Seton.
Admitiu para seu adentro enquanto o olhava nos olhos,
brilhantes à luz do entardecer. Desde que o conheceu, há
semanas, sentia-se embargada por essa sensação de
saudade. E tinha decidido alimentar essa emoção porque
gostava. Seton obtinha que a saudade fosse algo desejável,
algo prazeroso, tal como sempre tinha parecido a ela.
— Quem é você, Seton? — Apoiou as mãos no mastro de
proa e jogou o corpo para trás. — Quais são as suas
lembranças felizes da infância?
Seu olhar se deslizou devagar por seu corpo, deixando a
sua passagem uma cálida esteira. Depois, olhou-a nos olhos.
— Suponho que estar no estrado depois que o traficante
de escravos me vendeu e ver como o menino que me comprou
tirou os grilhões dos meus pulsos para me libertar poderia
ser descrito como a melhor lembrança da minha infância,
senhorita Carlyle.
Viola levou alguns minutos para se recuperar o
suficiente para respirar normalmente.
— Suponho, que sim — comentou no final. Depois de
alguns minutos de silêncio durante os quais só se escutou o
rangido dos equipamentos de barco e as vozes dos
marinheiros no outro extremo da embarcação, arrastadas
pela brisa, disse: — Conheceu sua família?
— A minha mãe.
— Somente sua mãe?
— Ela testemunhou o momento em que seu marido
vendeu-me aos traficantes de escravos. Ele notou que o
menino que brincava de correr pelos aposentos dos
empregados se parecia muito com sua esposa e um inglês
que viveu na Alexandria sete anos antes. Tirou-lhe a verdade
a golpes e depois a castigou por sua infidelidade. E me
castigou.
— Piratas berberiscos19. — Criminosos capazes de
vender qualquer pessoa por um preço. Até mesmo uma
criança branca. No entanto, levá-lo para o Oeste para vendê-
lo em um mercado inglês era incomum. Alguém lhes pagou
uma fortuna para se certificar de que eles que o fizessem.
Seton a olhava com uma expressão inescrutável.
— Enfim, nossas histórias são parecidas como pode ver.
Mas tendo em conta a diferença principal, talvez, agora, você
entenda por que não estou muito feliz com sua relutância em
voltar para a Inglaterra.
Viola tinha o coração acelerado.
— Sua situação não se parece em nada à minha. — O
vento lhe açoitou o cabelo e uma mecha lhe penetrou entre os
lábios, mas estava tão paralisada que foi incapaz de levantar
uma mão para afastá-lo. — Deve dizer a sua família que se
encontra bem. Você deve isso a eles — comentou ele.
A ira começou a queimá-la por dentro, espancando sua
língua.
— Você contou a sua mãe, enquanto estava correndo ao
redor do mundo, roubando os navios de outros?
— Quando pude voltar para a Alexandria, ela tinha
morrido.
Viola ficou em pé.

19Berbericos ou Berber é o termo que os europeus usaram do século XVI para o


século XIX para se referir aos piratas e comerciantes de escravos que povoaram essas
costas e com base nessas atividades sua economia e isso supostamente uma ameaça
constante para os navios comerciais e até para as cidades costeiros do Mediterrâneo
— Não precisam ouvir isso dos meus lábios. Você pode
dizer a eles. Na verdade, será forçado a fazê-lo porque não
penso voltar contigo.
— Por que não? — perguntou-lhe sem mover um só
músculo.
— Porque não pertenço a esse lugar — soltou. —
Pertenço ao lugar que eu estou indo agora, e ninguém me
forçará a seguir outro curso. — Embora fosse uma mentira,
porque ao olhar esses olhos cristalinos pensou com grande
temor que faria o que ele quisesse quando chegasse o
momento indicado.
Não deveria ter lhe perguntado por seu passado. A
saudade se apropriou dela como uma nave avançando a toda
vela, tinha-lhe provocado um nó na garganta e uma emoção
tão intensa que não gostava muito disso. Esse homem não
era o que ela queria: um homem independente. Ela queria
Aidan Castle, que sempre lhe dizia quão perfeita era para ele.
Jinan Seton se manteve em silêncio, como estava
acostumado a fazer sempre que ela necessitava que dissesse
algo para variar o curso de seus pensamentos, algo que
pudesse rebater.
— Quando atracarmos amanhã no porto, virá comigo à
plantação — disse.
— De acordo.
— Porque se não o fizer, perderá a aposta.
— Irei contigo porque não penso te perder de vista até
deixá-la na casa de sua irmã.
Invadiu-a uma repentina debilidade que lhe afrouxou os
joelhos. Esse homem fazia com que se sentisse fraca quando
ela tinha sido forte toda sua vida. O barão sempre dizia que
era a menina mais forte e aventureira de toda a Inglaterra. A
mais temerária e imprudente.
Anos depois que ele a sequestrou, Fiona descobriu a
reação de sua família inglesa depois do incidente, graças a
um antigo amigo contrabandista que tinha passado por
Devonshire. Acreditavam-na bastante imprudente para subir
pelo escarpado sem cordas e sem a supervisão de um adulto,
e pensavam que tinha morrido, que se tinha caído ao mar das
rochas.
Viola não os culpava. Seu comportamento havia sido
muito irrefletido em certas ocasiões, mas não foi no dia em
que Fionn a agarrou, colocou-a a seu longo bote a remos e a
levou diante de sua irmã. Usou-a como isca para que sua
mãe a seguisse. Entretanto, sua mãe morrera.
E Jinan Seton dizia que Serena jamais a deu como
morta. Se queria descobrir a verdade, só tinha que ir a
Inglaterra, inclusive podia deixar sua embarcação para trás, e
depois retornar e seguir com sua vida tranquilamente, com
sua tripulação e com Aidan.
Entretanto o pânico a invadiu, lhe dizendo que não
fosse. Porque se o fizesse, talvez nunca retornasse a essa
vida, à vida que tinha feito no mar. Junto às pessoas que
apreciava e junto ao homem com quem queria casar-se.
Correria o risco de perder tudo, da mesma forma que tinha
perdido aquele mundo que conhecera de pequena. Tinha
aprendido a conviver sem ele. Tinha lutado para aprender a
conviver sem ele, suprimindo as lembranças e obrigando seu
coração a obedecê-la enquanto o mar se convertia em seu lar
pouco a pouco.
— Vá para o inferno, Jinan Seton.
Ele se pôs a rir, embora não fosse uma risada agradável.
— Temo que você chega muito tarde. Faz anos que
passei por lá.
Viola forçou-se a engolir saliva, apesar do doloroso nó
que tinha na garganta.
— Agora mesmo não me ocorre outra coisa pior que te
desejar.
— Esperarei feliz — replicou ao tempo que fazia uma
reverência.
Viola soltou o ar com força e desceu do mastro de proa
de um salto para afastar-se dele. Entretanto, não foi ao
tombadilho. A noite tinha caído e já não sentia a saudade que
a ajudava a esclarecer idéias e a livrar-se da confusão.
Essa era a razão pela qual gostava tanto de estar no
tombadilho, pela qual adorava o crepúsculo e lhe provocava
essa sensação dolorosa e prazerosa ao mesmo tempo. Porque
além da dor que a invadia por ter perdido seus seres
queridos, estavam os perigos da vida diária no mar que
convertiam o afeto dos rudes e curtidos marinheiros em algo
incerto. De modo que a única certeza em sua vida era a
solidão.
A solidão não era como o amor. A solidão era algo puro.
Era constante. Jamais a abandonaria.
E, nesses momentos, a solidão tinha o rosto de um
homem.
11

Peixaria Odwall Blankton, loja de Billingsgate.


RECIBO DE COMPRA:
4 kg de cavala, defumada
8 kg de linguado
1 dúzia de lagostas, vivas
2 kg de caviar
3 dúzias de ostras
20 limões
ENDEREÇO DE ENTREGA: À atenção do Lady Justice,
Brittle & Sons, Editores, Londres

NOTA ANEXA:

Milady, com meus melhores desejos.


Peregrino
12

— Matthew? — Viola deslizou uma mão por um dos


grossos raios do leme. Sentia o açoite do vento nas
bochechas. Do sotavento20 se avistava terra, praias de areia
branca, altas palmeiras e yucas21. Em menos de meia hora,
chegariam em Porto da Espanha, na ilha inglesa de Trindade.
— Capitã? — Matthew a saudou, levando a mão à boina.
Suas curtidas bochechas se ruborizaram. Apesar de ser um
homem muito corpulento, era tão tímido quanto uma jovem.
— Vocês são caçadores de recompensas? Foi o que
Cavalier estava fazendo já que ele abandonou a pirataria ?
O homem enrugou seu enorme nariz e coçou detrás de
uma orelha.
— Só somos marinheiros, senhora.
— Menos o capitão Jin. — Pequeno Billy estava sentado
sobre um cilindro de corda, limpando os dentes com um pau

20Barlavento e sotavento são termos de origem náutica que se referem ao lado da


embarcação de onde e para onde sopra o vento, respectivamente
21Yucca L. é um género botânico pertencente à família Agavaceae. Arbusto perene do
gênero Yucca, com cerca de 40 espécies, nativa da América Central e do sul dos
Estados Unidos. As folhas sempre verdes, em forma de espada, nascidas em verticilios
terminais, são resistentes, macias e geralmente têm um espinho
que era tão longo como seu esquálido braço. — Sempre está
atrás de pessoas perdidas que ele tem que levar para casa.
— Ah, sim? — Isso explicava muitas coisas: sua
determinação e sua firme disposição. Inclusive enquanto a
beijava, pensou.
Viola tinha chegado a pensar que talvez a tinha beijado
para animá-la a fazer o que ele queria. Muitos homens
tinham às mulheres por cabeças de chorlito22. Entretanto,
por mais que a irritasse, não acreditava que Jin Seton
pensasse isso dela. Que a tivesse por uma irresponsável e
uma louca, sim. Mas não por tola. O Faraó não teria se
colocado ao serviço de uma capitã a que acreditasse imbecil,
nem sequer para assegurar-se de cumprir seu objetivo.
— E não importa onde eles estejam, — Billy adicionou
em uma voz cantarina. — Ou se querem vir. O capitão Jin
não se detém até que encontra seu homem. — Mordeu o pau,
que sobressaía entre seus dentes. — Ou a sua mulher,
senhora. Quero dizer, capitã.
Viola sorriu. Billy podia parecer tolo, mas em realidade
era muito inteligente. Sabia que Seton tinha vindo por ela.
Grande Mattie e Matouba também sabiam. Entretanto, os
membros de sua tripulação ainda o ignoravam.
Era curioso que alguns piratas antigos fossem discretos.
— Que tipo de gente procura? — além dela, claro. Havia-
a perseguido até encontrá-la. A idéia ainda era surpreendente
e lhe provocava uma sensação incômoda. O legendário pirata

22Chorlito é um passaro de cabeça pequena em relação a seu corpo


a tinha procurado por dinheiro. Um dinheiro que tinha-lhe
prometido seu cunhado, o conde.
Entretanto, não a tinha beijado como se lhe pagassem
para fazê-lo. Tinha-a beijado como se quisesse fazê-lo. Como
se o necessitasse.
— De todo tipo — respondeu Billy alegremente,
enquanto acomodava seu ossudo traseiro sobre a corda.
O vento era fresco e os homens estavam contentes
porque se aproximava o final da travessia. Ela, por outro
lado, estava tão nervosa que tinha um nó no estômago.
Deveria pensar em Aidan. Deveria estar emocionada pela
idéia de vê-lo depois do que lhe pareciam séculos. E estava,
certamente que estava.
Mas não deixava de pensar em outro homem.
— Sério? — insistiu.
Billy assentiu com a cabeça.
— Às vezes são damas. Às vezes são cavalheiros.
— Damas e cavalheiros? — perguntou-lhe ela.
Dedicar-se-ia a isso de forma habitual desde que
abandonou a pirataria? Dedicar-se-ia a procurar pessoas que
tinham sido sequestradas como ela? Era ridículo. O número
de pessoas que teria sofrido o mesmo destino seria
incalculável.
— Alguns — Mattie disse com uma voz com voz
resmungona e com o cenho franzido. Tinha umas espessas
sobrancelhas castanhas. — Outros são rufiões.
— Como esses escoceses que estivemos perseguindo no
Norte — confirmou Billy, que seguia mordiscando o palito.
— Damas, cavalheiros e rufiões? E no Norte. Esteve
muito ocupado, verdade, meninos?
Ambos assentiram em silêncio.
Ela era uma a mais de entre muitos. Os nervos se
converteram em uma pesada bola no interior de seu
estômago.
— Tenho certeza de que você têm um estabelecimento
preferido em cada porto — se escutou dizer. — E uma
mulher, claro. — Sorriu como estava acostumada a fazer com
Louco e Frenchie quando falavam de suas esposas.
Billy ficou muito vermelho.
— Billy, já vejo que não — acrescentou ela enquanto ria
baixo. — E você, Matthew, há uma mulher especial em algum
porto? — Parecia incapaz de morder a língua.
As barbudas bochechas de Matthew também se
ruborizaram.
— Tem uma muito bonita em Dover — respondeu Billy.
— Uma mulher afortunada, como a mulher de seu
capitão — replicou ela
— O capitão não tem mulher, senhora. — Billy coçou o
cocuruto. — Não lhe duram mais de uma noite.
Viola ficou sem fala. Grande Mattie franziu o cenho
ainda mais.
— O capitão não gosta de manter relações longas com as
mulheres — murmurou o grande homem enquanto a olhava
com uma expressão perspicaz. — Não é um homem
constante.
— Ah, claro, é obvio — se obrigou a replicar Viola e a
assentir com a cabeça.
Decidiu concentrar-se na costa, já que não era muito
conhecida. Só tinha visitado Aidan em uma ocasião desde
que ele adquiriu a plantação. Naquela época, ele tinha
capinado os campos e a cana-de-açúcar cresceu em longas
filas. No entanto, ele nem sequer tinha um teto sobre as
tábuas recém-formadas no chão de seu novo lar. Isso foi há
dois anos, então a casa devia estar terminada. Já não teriam
que fazer amor em um canto da cozinha infestado de moscas
e mosquitos, cobertos por folhas de palmeira através das
quais penetrava a chuva.
Embora naquela ocasião mal fizessem amor. Aidan
estava cansado e nervoso por um problema levantado entre o
capataz e os trabalhadores dos campos. De modo que quando
satisfez seu desejo com ela, partiu para ver como se
desenvolviam os acontecimentos e a deixou desejando algo
mais. Outra coisa.
De fato, não sabia mais nada. Ela entregou-se a Aidan
quando tinha dezessete anos, quando Fionn ficou doente e foi
até Aidan em busca de conforto. Depois, ele repetiu mais
algumas vezes. Ele nunca a pressionou. Era um cavalheiro.
Seu olhar percorreu a costa. Dois anos atrás, antes de
abandonar essa ilha, ele a beijou, disse-lhe que era a pessoa
mais importante de sua vida, que sempre a amaria, e jurou
lhe escrever. Meses depois, quando chegou uma carta, Viola
leu com uma mescla de alegria e confusão, suas promessas
renovadas sobre o futuro que eles compartilhariam. Ainda
desejava casar-se com ela. Ele deveria lhe conceder um pouco
mais de tempo para assentar-se nessa nova vida antes de lhe
pedir que se reunisse com ele. Aidan era um contador antes
de ser um marinheiro, e teve que se acostumar com as
obrigações de um proprietário de terras. Uma vez que o
fizesse, mandaria chamá-la e se casariam.
Passaram cinco meses entre essa carta e a seguinte.
Nela, ele falava do mau tempo, dos trabalhadores rebeldes e
dos irritantes impostos, e reiterou seu amor. Seis meses
depois chegou á terceira, com o mesmo conteúdo. Desde
então, Viola só recebeu a breve nota em que Aidan confirmou
que recebeu a notícia de sua visita e que estava ansioso por
isso.
Ao longo da costa, havia penhascos altos cobertos com
um verde-esmeralda muito intenso sob o sol matinal. Deixou
que seus olhos desfrutassem contemplando a vegetação
enquanto tentava localizar os nervos que deveriam causar
uma colisão no estômago pela emoção de voltar a vê-lo depois
de tanto tempo. Entretanto, suas vísceras pareciam vazias.
Talvez necessitasse comida.
— Matthew, conhece este porto?
O timoneiro assentiu com a cabeça.
— Estive vindo aqui duas vezes ao ano durante um
tempo.
— Você nos guiará, então?
— Sim, capitã.
— Obrigada. — Viola sorriu e lhe entregou o leme,
depois se voltou para a escada.
— Sempre tão educada. — Seton a observava apoiado no
corrimão, aos pés da escada. — concordando com meus
homens. Então, eles vão esperar por mim para lisonjeá-los e
ficarão desapontados ao ver que não é assim. — Esses
preciosos lábios esboçaram a mais leve ameaça de sorriso.
Viola sentiu um formigamento no abdômen.
agarrou-se ao corrimão. Isso não devia ocorrer. Amava
Aidan, vê-lo-ia em questão de horas. Deveria estar pensando
nele. Não obstante, era incapaz de afastar o olhar do lindo
rosto de seu segundo de bordo.
Os olhos claros de Seton a olharam com seriedade, e o
sorriso desapareceu.
— O que acontece? — perguntou-lhe, afastando-se do
corrimão enquanto ela baixava o último degrau. — Algo está
errado, diga-me.
Viola engoliu saliva para ver se assim conseguia falar.
— Nada. Estou um pouco tonta, suponho. Me esqueci de
almoçar.
Ele franziu o cenho.
— Não é de estranhar. Nem sequer são as dez.
— Pois então vou agora mesmo. — Viola se encaminhou
para a outra escada.
— Estamos prestes a chegar ao porto. Não quer ficar no
convés ?
— Sim. — deteve-se. — Sim, claro.
Seton a olhou com gesto interrogante. Entretanto, ela
sentia o coração acelerado e não lhe ocorreu nada para
replicar. Virou-se e pôs-se a andar para proa. Seguiu em seu
posto até que rodearam o cabo e viraram para o porto. A
partir desse momento, começaram as manobras de
ancoragem e tiveram que anunciar sua presença às
autoridades portuárias que se aproximaram em um pequeno
bote, de modo que já não teve tempo para alimentar as
absurdas confusões. Era uma corsária respeitável que
acabava de atracar em um porto aliado. Cumpriria seu papel
com facilidade.
Seton facilitou as coisas para ela. Enquanto que Louco
costumava correr de um lado para outro gritando ordens aos
homens, Faraó parecia manter o controle sobre toda a
tripulação e não precisou falar muito. O resto do tempo
passou a seu lado, em silêncio, com as mãos unidas às
costas e as pernas separadas, aguardando suas ordens.
Não parecia haver muito agitação no porto, pois quase
não havia nenhum barco ancorado e nem nas docas. Um
velho balandro desvencilhado e um veleiro que nem sequer
valia o preço de seus arranjos que se balançavam nas
tranquilas e verdes águas do porto. Ambas as embarcações
pareciam estrangeiras. Havia também inúmeros barcos de
pesca e duas embarcações de recreio.
Uma vez que assinaram os documentos precisos, e que o
carregamento de Tempestade de Abril ficou situado no
registro a fim de pagar os impostos correspondentes, que os
barris e as caixas foram desembarcados e colocados em
carretas, enquanto os homens cantavam, Viola por fim
desceu a seu camarote em busca de sua bolsa de viagem.
Quando reapareceu no convés, restavam poucos marinheiros
a bordo. A tripulação mínima para custodiar o navio á noite
até que ela retornasse pela manhã a fim de afastar o navio da
doca e ancorá-lo na baía.
Seton a esperava sentado em um barril junto à
passarela, com as longas pernas estiradas à frente e a vista
cravada nela.
Ao vê-la, ficou em pé e se aproximou.
— Sempre é a última em descer quando chega ao porto?
— Sim.
Viu-o assentir com gesto pensativo enquanto estendia
um braço para agarrar sua bolsa. Ela o impediu, afastando-a.
— Não te atreva. — Sentia um nó na garganta.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Não é meu criado — aduziu Viola.
— Pois não.
— Então, por que tem que levar minhas coisas?
Seton retrocedeu e a olhou com receio.
— Entendo que o faz para negar seu sexo.
— Não estou negando. O que faço é lhe subtrair
importância.
— Entendo.
— De verdade?
— Acredito que começo a entendê-lo. — Agarrou sua
bolsa e a jogou ao ombro. — Espero que você não ache uma
imperfeição imperdoável da minha parte, mas eu arranjei
uma carruagem para nos esperar — ele disse levemente.
Seton tinha compreendido que devia demonstrar seu
valor em todos os portos, que devia criar uma boa impressão
e deixar que a tratassem como a qualquer outro capitão de
navio. Compreendia que essa tinha sido sua vida durante os
últimos dois anos, desde que seu pai morreu. O fato de que o
tivesse compreendido sem necessidade de que ela explicasse
lhe acelerou um pouco mais o coração.
— Obrigada. Antes preciso ir ao hotel que está do outro
lado da rua — disse, apontando para a cidade, cuja rua
principal estava muito tranquila sob o sol de meio-dia.
— Como desejar. — Apontou para a passarela pela qual
desceriam até o porto. — Senhora.
— Nada de reverências!
— Importar-te-ia de deixar de resmungar ordens agora
que estamos em terra?
Viola o olhou jogando faíscas pelos olhos... e lhe deu um
salto o coração. Tinha uma covinha em uma bochecha!
Começou a ver estrelinhas, estrelinhas! Como se lhe faltasse
o ar.
Estrelas. Em pleno dia.
— Se você não gosta — conseguiu dizer, — é livre para
partir.
— Ahran. Conheço esse truque. — Seu sorriso não
fraquejou.
Chegaram à rua e a atravessaram, evitando o pequeno
trânsito de veículos e pessoas. O brilhante sol do Caribe caía
sobre a cidade e uma nuvem de poeira subiu do chão,
formando uma capa cintilante.
Certamente que era por isso. Por culpa do sol. Não era
seu sorriso. Era o sol.
— Vejo-te muito alegre e acho estranho. Para ter
passado a vida no mar, parece que gosta de andar na terra.
O hotel, um edifício de três andares, estava recém-
pintado e tinha janelas altas. Ao lado dele havia edifícios
elegantes. A rua, limpa e arrumada, mostrava sinais claros de
riqueza. A modesta colônia inglesa prosperava.
Seton se deteve para que o precedesse pela escada de
entrada ao estabelecimento.
— Acredito que, em realidade, gosto muito de minha
capitã — ele a corrigiu em voz baixa.
Ela virou a cabeça, os olhos arregalados.
— O que está fazendo?
Seton arqueou as sobrancelhas.
— Suponho que entrando no hotel que você disse que
queria visitar, não?
— Quero dizer que não me adule.
Ele meneou a cabeça, revirou os olhos e entrou no
estabelecimento.
Uma vez no vestíbulo, Viola se aproximou do balcão e
tirou o moedeiro enquanto indicava com um gesto a Seton
que fosse a taberna adjacente. Obedeceu-a sem fazer o menor
comentário. Sabia que não a deixaria escapar, mas tinha a
estranha sensação de que Jin Seton confiava nela o suficiente
para saber que não tentaria dar-lhe um deslizamento.
Pensamentos ridículos. É obvio que não lhe passaria a
perna tendo em conta que seu navio estava na doca e que a
maioria de sua tripulação estaria bêbada há essa hora,
dispersos pela cidade.
Pagou pelo uso de um quarto, e a proprietária a
acompanhou por uma escada que subia em paralelo a uma
parede, depois lhe mostrou uma modesta estadia. Viola
desfez sua bagagem. Ao cabo de um momento, chegou uma
criada com água quente. Viola lavou as mãos e o rosto, e
bebeu a água restante da jarra, encantada com o sabor da
água fresca. em seguida, a moça se dispôs a desembaraçar
seu cabelo, e depois a ajudou a colocar uma roupa limpa.
Quando acabaram, Viola lhe entregou uma moeda e a
despachou.
A sós, Viola se colocou diante do espelho oval e
contemplou seu trabalho. Curvou os ombros. Sempre era
igual. Estava ridícula.
Tinha o rosto muito bronzeado pelo sol, seus cachos
eram indomáveis e odiava esse vestido. Entretanto, a
costureira de Boston tinha-lhe assegurado que era a última
moda: um corpete muito ajustado estava plissado na altura
do seio e mangas que mal cobriam seus ombros. A cor, pelo
menos, era aceitável: um marrom muito claro com listras
mais escuras. A costureira não concordou com sua escolha e
mostrou-lhe um espantoso pano amarelo com flores de
laranja bordados que Viola achou tão parecido com o tecido
da roupa interior e que a rechaçou. Se devia vestir-se como
uma mulher, pelo menos o faria sem ficar em ridículo. De
qualquer forma, contava com um xale para cobrir-se. Uma
prática peça de lã cinza que tinha tecido a esposa de Louco.
Colocou os pés nas incômodas botas escarpins que seu
pai lhe deu de presente há seis anos e guardou as meias, a
camisa e os sapatos na bolsa de viagem. Enquanto saía do
quarto, jogou uma última olhada no espelho e se deteve.
Certamente se devesse ao calor ou ao feito de usar o
cabelo afastado do rosto graças ao coque que a donzela tinha
feito. O caso era que suas bochechas pareciam resplandecer e
que seus olhos tinham um brilho peculiar.
De qualquer forma, estava ridícula.
Seton riria dela. Ou guardaria um silêncio tão eloquente
que ela saberia que a estava comparando com as damas
junto às quais conhecia, damas reais como sua irmã Serena,
e que sairia graciosa da dita comparação.
Não importava. Não o acompanharia a Inglaterra nem a
obrigariam a relacionar-se, nem a comparar-se com essas
damas. Ficaria em Trindade e se casaria com Aidan Castle.
Um homem que a conhecia desde que tinha quinze anos, que
a tinha visto a bordo do navio e em terra, que não se
importava se usava meias ou vestidos. Por que tinha trocado
de roupa antes de ir a sua casa?
Desceu a escada francamente zangada e se dispôs a
entrar na taberna desejando ser capaz de passar por cima da
opinião que tanto Aidan Castle como Jinan Seton tivessem
dela. Enquanto desejava ser capaz de ignorar também o
desejo, antes que ele se precavesse da mudança.
Encontrou-o com facilidade. Enquanto que outros
homens conversavam e bebiam em grupo, ele estava sozinho.
Apoiado na parede, com os braços cruzados diante do peito e
os olhos fechados, como se dormisse. Parecia muito a gosto,
como se a possibilidade de que surgisse uma ameaça ou
algum perigo fora ridícula. E por que não seria? O Faraó era
temido desde Lisboa até Porto Príncipe, passando por Nova
Iorque. Os marinheiros o temiam e o respeitavam. Não tinha
nada do que preocupar-se.
Como se tivesse percebido sua presença, abriu os olhos
e seu olhar cristalino se cravou nela por debaixo de uma
mecha de cabelo escuro. Viola se precaveu de que seus olhos
se detinham nas saias e depois voltavam a subir. Viu-o
separar os lábios, afastar os ombros da parede e descruzar os
braços.
Olhava-a fixamente.
Estava olhando para ela. E não parecia aborrecido.
Viola tinha os nervos á flor de pele. Sentia um intenso
calor nas vísceras, mas tinha as mãos frias. Seton assegurava
que não queria voltar a beijá-la. Ela se repetia que não
necessitava de seus beijos.
Entretanto, ambos mentiam.

****

Os olhos de Viola resplandeciam. Entretanto, seu olhar


ficava um tanto empanado pelo receio. Um receio do que Jin
não tinha visto antes nela e talvez ele fosse culpado.
Porque não parecia tão bem como ele. Essa faísca
impertinente e travessa que a acompanhava normalmente
não devia apagar-se.
Não obstante, estava linda. E fez uma bagunça, do
espantoso coque que usava na cabeça até as pontas dos
escarpins que apareciam pela barra do vestido, passando os
olhos pelo mesmo vestido, de desenho simples e
confeccionado com um tecido de uma cor espantosa.
Entretanto, o vestido revelava uma mulher que havia debaixo.
Uma mulher que o deixava sem fôlego. Magra mas com
curvas, com o queixo elevado de forma orgulhosa, mostrando
a brancura de seu pescoço. Parecia a dama que devia ser por
nascimento.
Chamava a atenção. Os clientes da taberna guardaram
silêncio ao vê-la descer a escada e caminhar para ele.
Entretanto, seus movimentos eram como os de um
marinheiro. Seus passos eram longos e acabou pisando a
barra do vestido. Ele a agarrou pelo cotovelo.
— Maldição! — murmurou ela, escapando com um
puxão de sua mão.
Jin sorriu.
Viu-a soprar com delicadeza pouco antes de lhe dizer
com evidente irritação:
— O que há de errado? Não me olhe assim.
— Assim como? Como a uma mulher bonita que
escolheu aproximar-se de mim entre todos os homens desta
taberna e do qual me sinto muito afortunado?
Sua réplica a fez pestanejar várias vezes e seu olhar se
tornou amável. Entretanto, acabou franzindo o cenho, o que
danificou suas delicadas características.
— Seton, guarde suas lisonjas para as mulheres frívolas.
Não vai desconcertar-me.
— Não pretendia fazê-lo.
— Aparentemente, esse é seu problema, que não
pretende fazer muitas coisas das quais faz.
— Está se contradizendo. Está desconcertada ou não?
— Você bem gostaria... — respondeu, fazendo uma
careta com esses lábios carnudos que tinham sabor de mel.
Jin teve que esforçar-se para não perder o fio de seus
pensamentos. Mas acabou perdendo-o. De um tempo para cá,
só sonhava beijando esses lábios com prazer. Em seus
sonhos, Viola se entregava por completo a ele para que fizesse
com ela o que quisesse.
— Onde terá se metido a jovem inocente e perfumada
que conheci no navio? — murmurou.
Ela arregalou os olhos um instante e adotou uma
expressão cândida.
— Não está muito longe. Por quê? Conseguiu te afetar?
Jin se pôs a rir.
— Quantas mulheres há nesse corpo, Viola Carlyle?
Ela franziu o cenho.
— Só uma, para ver se posso convencê-lo de que é
assim.
— Está celebrando algo especial? — ele perguntou,
apontando o vestido.
Não se permitiu olhar de novo o seio, mal oculto pelo
tecido do corpete, porque se o fizesse, ficaria a babar como o
resto dos homens que havia no estabelecimento.
Viola cobriu os ombros com um xale muito feio.
— Sou uma mulher, Seton. Uma mulher pode vestir um
vestido sem ter que celebrar nada.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— E o que aconteceu com a importância de diminuir a
importância de seu sexo?
— Continuo pensando o mesmo.
Jin jogou uma olhada pela taberna e chegou à
conclusão de que os homens que a olhavam não eram da
mesma opinião.
— Ahran. — Olhou-a de novo, detendo-se em seus
lábios. Adoraria lamber o sinal do seu lábio inferior e
continuar em todos os lugares. Para a suave curva do
pescoço, para seus mamilos endurecidos. Contentar-se-ia
podendo fazê-lo durante uma só noite. Ou quase. — Esse
cenho franzido é cativante, mas não faz consonância com a
roupa que usa. Talvez devesse se trocar.
— Talvez você devesse saltar da doca a um mar
infestado de tubarões famintos — replicou ela, passando a
seu lado.
O roce de seu ombro lhe provocou um desejo ardente.
Por um instante, Jin foi incapaz de mover-se e todos seus
músculos ficaram tensos.
Talvez ela fizesse de propósito. Mas se esse fosse o caso,
estaria lhe dando de presente castos sorrisos como no navio.
Mas, bem, Viola ignorava que uma dama jamais roçava em
um homem de forma acidental. Talvez, apesar dos quinze
anos que ela vivia entre marinheiros, não sabia o que
acontecia com um homem quando uma mulher o tocava.
— Os tubarões sempre estão famintos, senhorita Carlyle
— replicou enquanto se voltava para segui-la, mas nesse
momento ela se virou para olhá-lo.
— Não me chame assim neste lugar! — sussurrou. —
Nem quando chegarmos à plantação. Por favor. — Seus olhos
pareciam mais escuros por causa da vulnerabilidade que já
tinha visto em uma ocasião no navio. — Por favor, me
prometa que não o fará.
— É tão importante para você?
— Sou consciente de que não tenho nada para te
oferecer em troca dessa promessa. Mas sei que se me der sua
palavra, mantê-la-á.
— E por que está tão segura disso?
Viola piscou com rapidez. Seus olhos eram muito
expressivos.
— Eu sei disso sem mais.
Jin assentiu com a cabeça.
—Dou-te minha palavra.
Depois de piscar de novo, Viola se voltou e saiu do hotel.
13

Durante o longo trajeto pelo caminho da costa para o


interior da ilha, Viola ocultou o rosto sob a asa de seu chapéu
de palha e se manteve calada. Jin a observava em silêncio,
precavendo-se da tensão dos ombros sob o grosso xale que
usava como armadura apesar do calor do meio-dia e também
do modo como seus magros e calosos dedos se retorciam.
Era uma mulher mudada, nem tanto pela roupa como
pela atitude. Assim que o oceano desapareceu depois das
colinas e à medida que as palmeiras, os gorjeios dos pássaros
tropicais e o aroma da terra e a vegetação se faziam mais
evidentes, Viola se retraia. Entretanto, não era a mesma
quietude que a embargava durante suas vigílias ao
entardecer no tombadilho de Tempestade de Abril.
Ela desejava silêncio e ele concedia, feliz por esperar que
ela lhe desse uma explicação.
O cocheiro se enfiou por uma estreita entrada ladeada
por enormes yucas, e seu destino apareceu diante deles. Não
era uma propriedade diminuta, era uma plantação em toda
regra. A estrada não era muito larga, mas a casa era bastante
ampla, com dois andares, de estilo inglês e muito elegante,
pintada de branco e com uma varanda que percorria três de
seus quatro lados. O cultivo de cana-de-açúcar se estendiam
pelas ladeiras, como uma paisagem pintada à perfeição.
Viola levantou a cabeça e lhe escapou um ofego. Cravou
o olhar na casa, enquanto seus dedos se agarravam o
empoeirada borda da carruagem.
Jin falou por fim.
— De quem é esta plantação?
— Pertence á Aidan Castle. Em outro tempo foi contador
em Boston e então se alistou no navio do meu pai, depois
comprou estas terras. — Seu olhar percorreu com relutante
admiração a casa e os edifícios adjacentes, mas não com
prazer. — A última vez que estive aqui, ainda não tinha
construído a casa. É impressionante — acrescentou com voz
apagada.
A carruagem se deteve diante da varanda e pela porta
principal saiu um criado negro, vestido com singela roupa
branca. Jin desceu, e suas botas ressoaram no cascalho do
caminho, de onde surgiu uma nuvem de poeira. Ele se virou
para Viola e ofereceu a mão a ela, que nem olhou enquanto
arrumava as saias e o xale nos ombros.
Ela recuou do alto degrau, embora no final soltou um
suspiro exasperado e aceitou sua ajuda. Uma vez no chão,
apressou-se a soltar sua mão.
— Bom dia, senhora. Senhor. — O criado desceu a
bagagem da carruagem.
— Bom dia — replicou ela. — Seria amável de informar
ao senhor Castle que Violet Daly chegou?
O criado fez uma reverência e retornou a casa.
Jin voltou a lhe oferecer a mão para ajudá-la a subir os
degraus de acesso à varanda, mas ela se agarrou ao corrimão
e subiu sozinha. Então ele foi deixado para trás, observando
como ela passava as mãos por cima das saias várias vezes e
como arrumava de novo o chapéu e o xale. Depois, seguiu-a.
A porta se abriu. Um homem saiu do alpendre com
passo firme e seguro. Ele estava vestido com calças de linho e
jaqueta, sapatos brilhantes e um colete de seda, e parecia ter
mais ou menos sua idade, embora fosse mais largo de ombros
e um pouco mais baixo. A atenção do recém-chegado se
concentrou na mulher que havia entre ambos.
Viola se aproximou dele, desceu o queixo e lhe estendeu
a mão. Castle a agarrou e disse:
— Querida Violet, em seguida, abraçou-a, rodeou-lhe a
cintura com os braços e pressionou seu rosto contra o colete
dele.
Jin permaneceu muito quieto e em silêncio enquanto o
sol do meio da tarde se derramava sobre o terraço,
iluminando o casal, e a leve brisa procedente dos campos de
cultivo agitava as saias de Viola.
Não tinha lhe contado a verdade, é obvio, sua mudança
de roupa e de atitude se devia, aparentemente, a Aidan
Castle.

****
Ele parecia o mesmo, seu torso era igual forte e sólido, e
cheirava a sabão de barbear e a tabaco. Era um aroma tão
familiar que Viola quase sentiu a presença de seu pai, como
se pudesse levantar a vista e ver Fionn ao lado de Aidan.
Quando a soltou, permitiu-se observá-lo com atenção.
Também tinha o mesmo aspecto. O cabelo castanho claro
ondulavam sobre sua testa, um pouco longos, como
costumava usá-lo quando esquecia de cortá-lo. Seu rosto não
mudou, permaneceu o mesmo, embora não tão bronzeado,
com o mesmo nariz imponente, os mesmos lábios cheios, a
mesma covinha no queixo e os mesmos olhos esverdeados,
muito tenros, que a olhavam com expressão risonha nesse
momento.
— Suponho que sua viagem foi tranquila. — Sua voz
soava muito conhecida, uma voz que tinha escutado todos os
dias até que quatro anos atrás abandonou o navio de seu pai
para converter-se em um proprietário de terras.
— Sem problemas.
— É o que esperava. Supusemos que ainda era muito
cedo para que encontrasse tempestades estivais durante a
travessia. — Parecia alegrar-se de vê-la e a olhava fixamente,
sem aparente desconforto.
— Supuseram, em plural?
— Tenho certeza de que você se lembra do meu primo
Seamus. Na primavera passada veio me ver e não voltou a
partiu. — Ele riu, o mesmo som que ele tinha dependido
quando seu pai adoeceu e necessitava de segurança com
desespero. — Meus tios estavam ansiosos que abandonasse a
Irlanda, é obvio, que tinha se metido em confusões, como de
costume.
— Então... está aqui? — Viola conheceu Seamus Castle
durante uma visita que fez a Boston anos atrás. Um jovem
com um rosto duro e pouquíssima imaginação.
— Foi uma grande ajuda para administrar os
trabalhadores. Mas não fiquemos aqui fora com este calor.
Entre e tome algo fresco. — Fez gesto de lhe agarrar a mão,
mas se deteve ao olhar atrás dela. — Ah, perdão. O
cavalheiro...
— É meu segundo de bordo, enquanto Louco está de
licença. Aidan, apresento-lhe Jinan Seton.
— Prazer em conhecê-lo, senhor Seton. — Ele estendeu
a mão.
Seton deu um passo à frente e a estreitou.
— O prazer é meu — ele disse.
Viola sentiu que algo em seu interior dava um salto.
Aidan franziu o cenho.
— Acredito que me soa conhecido seu nome.
Seton soltou a mão de Aidan.
— Sério?
— Claro, suponho que Seton é um sobrenome muito
comum nestas latitudes, não?
— Suponho.
— Ah. — Aidan sorriu. — É inglês.
— Senhor Seton tem patente de corso da Armada Real
da Marinha— disse Viola, que os olhava a um e a outro. — Só
está servindo como meu segundo por que... Enfim... Por
que...
— Agora mesmo estou sem navio — concluiu ele.
— Ah, claro. — Aidan percorreu seu convidado com o
olhar. — Qualquer marinheiro do navio de Viola é bem-vindo
em meu lar. — Apontou a porta. — Por favor, quero que
conheça meus outros convidados.
Viola os precedeu ao entrar em um vestíbulo de teto alto
enquanto olhava de soslaio ao homem com quem tinha
navegado até essa ilha. Seton usava uma camisa branca,
calças limpas e uma jaqueta que ela nunca tinha visto, de
uma confecção tão elegante que fazia justiça a seus largos
ombros e a seu corpo atlético. Parecia tão cômodo com essa
roupa como quando usava o que foi colocado a bordo.
Durante a viagem na carruagem, concentrada como estava
em tentar não olhá-lo, não tinha reparado em sua
vestimenta.
Acima de tudo, como de costume, ela havia notado seus
olhos. E em suas mãos. E em sua boca. Sempre em sua boca.
Não se importava com o que ele estava vestindo. Ele era
bonito com qualquer coisa ou quase nada. Subiu o olhar
desde seu colete e, como no primeiro dia, ele também a
estava observando.
Aidan lhe ofereceu o braço. Por um instante, ficou
olhando sua manga sem saber o que fazer, incapaz de
esquecer da lembrança do peito nu de Jinan Seton sob a
chuva.
Nenhum dos dois homens falou.
— Violet?
— Ah. — ruborizou-se antes de colocar os dedos sobre o
braço de Aidan.
Este soltou uma risadinha e disse:
— Querida, é incrível. — Conduziu-a ao salão.
Era uma estadia muito acolhedora, decorada com suma
elegância e detalhes ingleses; entretanto, era outro aspecto da
casa que tinha construído sem consultá-la, apesar de que a
compartilharia com ela algum dia.
No salão havia quatro pessoas. Seamus Castle estava
apoiado em uma poltrona negra, fazendo girar a corrente de
um relógio de bolso de ouro com o índice.
— Bom dia, senhorita Violet. — Saudou-a com um gesto
de cabeça apenas imperceptível. Era um homem atraente,
com uma testa larga como Aidan e os mesmos cabelos
encaracolados, mas sua boca parecia congelada em um
perpétuo sorriso zombador, e seus olhos verdes tinham uma
expressão ladina. — Encantado de voltar a vê-la.
A última vez, cerca de cinco anos antes, tinha-a
encurralado em um canto oculto e tinha tentado tocar o seio.
Viola ficou com o joelho ferido durante vários dias depois de
impactar com a culatra da pistola que usava no cinto e que
ficava à altura da virilha de Seamus. Ele também causou o
impacto em suas partes baixas. Viola aprendeu várias
palavras muito sujas naquele momento.
— Senhor Hat, senhora Hat, me permitam lhes
apresentar à senhorita Daly e senhor Seton, amigos meus
cujo navio acaba de atracar no porto. — Aidan a fez voltar-se
para que os olhasse.
Viola soube imediatamente que eram prósperos
comerciantes de alguma cidade do norte. De Nova Iorque, da
Filadélfia ou de Boston. Todos os habitantes dessas cidades
tinham o mesmo aspecto: homens com excesso de peso,
mulheres com excesso de arrogância e ambos com excesso de
roupa.
O senhor Hat, que usava uma enorme gravata ao redor
de uma gola de camisa muito alta e uma jaqueta de lã com
enormes lapelas, levantou-se para apertar a mão de Seton.
— Encantado de conhecê-lo — disse com voz rouca.
— Senhor. — Ele se voltou para a senhora Hat e lhe fez
uma reverência. — Senhora.
A mulher deu um sorriso tenso e um vestido de tafetá
adornado com pérolas negras, muito caras e totalmente
inadequadas para o clima da área. Examinou Viola da cabeça
aos pés, procedeu a fazer o mesmo com Seton e, no final,
assentiu com a cabeça, fazendo com que a pluma negra de
seu chapéu se agitasse.
— E esta — anunciou Aidan com um sorriso amável — é
a senhorita Hat.
Era uma moça de aspecto angélico que não teria mais
de dezessete anos. Tão bonita que tirava o fôlego. Viola a
olhou embevecida enquanto se perguntava como a senhorita
Hat tinha conseguido que os cachos loiros emoldurassem a
perfeição sua testa e suas bochechas, e como podia usar tão
pouca roupa diante de tantas pessoas. Era alta como sua
mãe, com um corpo esbelto e olhos azuis emoldurados por
espessas pestanas douradas, e mantinha o olhar encurvado,
de forma recatada. A moça fez uma reverência e a diáfana
saia de seu vestido branco roçou suas pernas, enquanto suas
mãos estavam entre as dobras do tecido como lírios brancos.
— Senhor. Senhorita — sussurrou a moça a modo de
saudação. — Encantada de conhecê-los.
Seton fez uma reverência e pareceu tão inglês, tão
galante, que por um instante Viola também o olhou
embevecida.
Aidan a conduziu a uma poltrona.
— Viola, o senhor Hat é o proprietário de uma empresa
de roupas masculinas na Filadélfia. Veio em visita de
negócios com a idéia de expandir seus horizontes. Tivemos a
sorte de que sua família pudesse acompanhá-lo, não é
verdade, Seamus?
O irlandês esboçou um sorriso torto.
— Claro, primo. Sempre é bom contar com damas para
embelezar o lugar. — Olhou para Viola com expressão
lasciva.
O senhor Hat agarrou uma mão de sua filha e lhe deu
uns tapinhas.
— Queria que minha pequena Charlotte visse um pouco
do mundo antes de entregar sua mão ao homem afortunado
de tê-la para o resto de sua vida.
A senhorita Hat se ruborizou até a raiz do cabelo e
baixou o olhar, mas manteve o sorriso doce.
O criado que os recebeu na entrada se aproximou de
Viola com uma bandeja. Ela aceitou o copo e lhe sorriu.
— Obrigada.
— Ora! Por Deus, senhor Castle. — A senhora Hat tinha
a vista cravada nos pés de Viola. — Temo que fui muito
desconsiderada estes dois dias. Não tinha a menor idéia de
que as damas da ilha se dirigiam aos criados diante das
visitas. Tenha certeza de que vou corrigir o meu
comportamento.
Aidan soltou uma risadinha.
— As relações entre os servos e as pessoas de maior
posição é algo mais distinguida aqui que no Norte, é certo,
senhora. Mas você jamais a poderia ser rotulada como
desconsiderada.
O olhar da mulher subiu, parando no colo de Viola, e ela
olhou para baixo e notou que suas saias estavam dobradas à
altura dos joelhos, deixando expostas suas panturrilhas e as
meias baratas.
Ruborizou-se pela vergonha.
— Ora.
Ela deu duas tapinhas com as mãos úmidas para soltar
o tecido. Entretanto, viu-se obrigada a puxar com bastante
força e a levantar o traseiro para que a bainha alcançasse o
chão.
— Castle, tenho entendido que não possui a propriedade
há muito tempo. — A voz de Seton era serena no silêncio. —
Conheço vários plantadores de Barbados e da Jamaica, mas
nenhum desta ilha. Que tal vai o negócio por aqui?
— Bastante bem, na verdade. Meu vizinho mais
próximo, Palmerston, não é muito generoso com a água do
arroio que atravessa suas terras antes de chegar às minhas,
mas até o momento não tive problemas de irrigação. — Olhou
aos presente com um sorriso. — Se os pedissem menos
privilégios, seria um homem do mar muito contente.
— Eu já lhe disse, primo, que, se os homens tiverem
liberdade, eles a abusarão sempre que puderem. Você deveria
ter escravos em sua terra, não trabalhadores.
Aidan meneou a cabeça.
— Lamento tomar o contrário, Seamus.
— Já não se pode encontrar um escravo doméstico na
Filadélfia — acrescentou o senhor Hat, assentindo com a
cabeça. — Claro que é o melhor. É obvio, não há um só
escravo em meus armazéns, mas esse ditoso francês, Henri,
usa-os para descarregar seus navios e reduzir os custos.
— É uma questão, sim, senhor — resmungou Aidan.
— Mas de qualquer forma realizam o trabalho. E o
trabalho é o que nos interessa. — Seamus cruzou os braços
diante do peito, estirando o colete de caxemira. — E você o
que diz, Seton? O Parlamento deveria pedir que liberem os
escravos como gostaria aos abolicionistas ou deveríamos
manter a ordem como homens racionais?
O aludido olhou Seamus com expressão tranquila.
— Um homem deve seguir somente a sua consciência —
respondeu. — A lei, seja qual for, jamais poderá alterar esse
fato.
— Bem dito — murmurou Aidan, embora tivesse o
cenho franzido.
As bochechas de Viola queimavam e sentia um nó na
garganta. O olhar reprobatório da senhora Hat não tinha
desaparecido, como tampouco cessava o tímido exame que a
filha fazia.
Era-lhe igual uma coisa e a outra.
Seton a tinha resgatado de sua vergonha a propósito.
Certo que não tinha imaginado que a conversa tomasse esse
rumo, mas não acreditava que se importasse muito. Tal como
havia dito, não era um homem que se deixasse levar pelos
argumentos de outros. Era o único homem a quem Viola
conhecia que vivia segundo suas próprias regras, guiado por
um objetivo no que tinha fé cega. Isso, muito mais que
qualquer outra coisa que soubesse dele, assustava-a.
Assustava-a e a emocionava ao mesmo tempo.
Com a queda da noite, a brisa fresca que soprava pela
plantação ao entardecer desapareceu. A calma era total, as
canas-de-açúcar permaneciam imóveis, e inclusive os
pássaros se calaram com a escuridão. Jantaram na sala de
jantar, e o calor que subia da terra aquecida era opressivo no
interior da casa, o que lhe tirava o apetite de Viola.
Os Hat se comportaram como se ela não existisse. A
senhora Hat felicitou seu anfitrião pelas impressionantes
renovações. O senhor Hat interrogou Seton sobre a atividade
no porto de Boston que Viola poderia ter respondido melhor
que ele. A senhorita Hat bicou de seu prato e manteve o olhar
curvado. Seamus bebeu um copo depois de outro de rum
adoçado enquanto olhava para Seton com os olhos
entrecerrados.
Depois de tomar o chá no salão, os Hat anunciaram sua
intenção de visitar a cidade no dia seguinte.
— Senhor Castle, espero que possa nos acompanhar. —
A senhora Hat esboçou um sorriso elegante e
condescendente.
Aidan assentiu com a cabeça.
— É obvio, senhora. Será um prazer levá-los às
melhores lojas. — dirigiu-se a seu marido. — O madeireiro é
um bom amigo, embora seja mais um comerciante de
madeira que um madeireiro como tal. Conhece em pessoa ao
proprietário dessa estranha madeira que lhe mencionei
ontem. Estarei encantado de apresentá-los.
— Estupendo, estupendo. — O senhor Hat deu umas
palmadas em seu volumoso ventre e o espartilho que usava
protestou quando ficou em pé. — Bem, até amanhã, Castle.
A senhora Hat pegou o braço da filha, a senhorita Hat
fez uma reverência e os três partiram. Seamus olhou para
Viola com um sorriso insolente.
— Enfim, senhorita Violet — disse ele, — agora que é a
única mulher presente, como vai entreter-nos? Vai tocar algo
ao piano?
Aidan pigarreou.
— Viola não sabe tocar piano, é obvio. — aproximou-se
dela e lhe ofereceu o braço. — Acompanho a seu quarto?
Ela assentiu com a cabeça, colocou a mão no seu braço
e olhou para Seton.
Que lhe fez uma reverência.
O ambiente se voltou mais abafado conforme subiam a
escada. Era uma casa muito bonita, mas não parecia
desenhada para a climatologia local, a não ser para cumprir
os requisitos do frio tempo inglês. Entretanto, a porta que
Aidan a conduziu tinha uma bonita gravura e parecia recém-
pintada apesar da umidade. Tinha trabalhado muito duro
para construir um lar e deveria sentir-se orgulhosa dele.
Agarrou-a pelas mãos.
— Estou feliz em vê-la novamente, Violet. Tenho sentido
sua falta.
— Eu também estou feliz em vê-lo depois de tanto
tempo.
Aidan franziu o cenho e a olhou com expressão séria.
— Querida, agora lembrei por que me soava familiar o
sobrenome Seton.
Sua garganta ficou seca quando o ouviu.
— Supus que o recordaria cedo ou tarde.
— A julgar por sua expressão, deduzo que sabia quando
o contratou. Por que o fez? — Seu tom tinha um leve
acusação.
— Enfim, é complicado.
Não queria lhe dizer que tinha afundado Cavalier. Aidan
já não tinha nada que ver com seu navio ou com seu
trabalho. Por que ia lhe dar detalhes? Além disso, custava-lhe
falar de Jinan Seton em voz alta, porque a desestabilizava.
Aidan apertou suas mãos com mais força.
— Eu não gosto disso.
Ela tentou lhe subtrair importância.
— O governo britânico o perdoou, Aidan. Não parece ser
razão suficiente para que você também confie nele?
— Não. — Meneou a cabeça. — Sabe o muito que me
preocupo com você, então não me parece bem que este
homem a acompanhe a bordo, Fionn me daria á razão. Uma
coleira de leopardo pode ser colocada, mas o cativeiro não
mudará sua natureza.
Viola cravou o olhar em seus olhos esverdeados e esteve
a ponto de lhe dar razão na impossibilidade de que um
homem trocasse sua natureza. Desde que tinha quinze anos,
esse homem a tinha cortejado com palavras e tinha aceito
sua devoção como se fosse algo normal para ele. Mas tinha se
negado a cumprir com suas promessas uma e outra vez.
Quando trabalhava para seu pai, insistiu em que não se
casaria até não assentar-se em terra e construir um lar para
sua família. Tinha quatro anos como dono e senhor da dita
terra.
Nesse momento, via em seus olhos que se acreditava
com direito sobre ela. Depois de meses sem receber uma só
carta e depois de dois anos sem ver-se, Aidan se acreditava
com direito de lhe dizer como organizar sua vida, a oferecer
conselhos que ela não tinha pedido, e além disso pensava que
ela estava na obrigação de obedecê-lo. Por fim o via
claramente.
Jinan Seton esperava o mesmo... pelo menos no
referente à parte da obediência. Mas quando a olhava como
se não estivesse louca, em seus olhos também via respeito e
igualmente, atração e desejo. Admiração. E paixão.
Independente de todas as vezes que Aidan tinha brincado
com ela e lhe havia dito o muito que significava para ele,
nunca a tinha olhado assim.
— Acredito que se equivoca a respeito dele — replicou
em voz baixa.
— Os piratas são ladrões e mentirosos, Violet. Comete
uma imprudência ao confiar nele.
— Isso eu tenho que decidir. — Soltou-se de sua mão. —
Obrigada pelo jantar. Boa noite.
Aidan se inclinou para ela ainda com o cenho franzido e
a beijou na bochecha.
— Fico feliz que você esteja aqui, querida.
Ela assentiu com a cabeça. Aidan titubeou um momento
antes de descer a escada.
Viola tocou com os dedos o ponto onde seus lábios a
tinham roçado. Amava-o. Levava dez anos amando-o. Aidan
sabia muito dela, de seu pai e de sua vida no mar. É obvio,
ele já não fazia parte de desta vida. Mas sim fazia parte de
seu passado, e durante muito tempo soube que fazia parte de
seu futuro. Que ele seria seu futuro. Entretanto, por estranho
que parecesse, tanto conhecimento lhe parecia bastante
como... ignorância. Até aquele beijo inócuo tinha sido
estranho para ela.
Talvez alguns dias em sua mútua companhia mudassem
essa impressão. Os amigos, inclusive aqueles que se
conheciam muito bem, necessitavam tempo para acostumar-
se ao outro depois de períodos de ausência. Ou não?
Colocou-se junto à janela e o calor a envolveu. A cama
tinha camadas e camadas de tecido, e era muito repulsivo
para ela. Assim que viu os outros convidados, soube que
Aidan não lhe pediria para compartilhar sua cama. Nunca o
fazia quando havia outras pessoas. Mas isso não lhe
importava nesse momento. De todas as maneiras, fazia muito
calor para essas atividades; além disso, o estômago lhe rugia
de fome e tinha uma sensação estranha, incômoda, na pele.
O sono parecia ser algo impossível.
Uma estante muito modesta oferecia material de leitura,
livros de sermões e cadernos de negócios. Escolheu o menos
aborrecido e se sentou junto ao abajur. Entretanto, a leitura
não conseguiu distraí-la, e o suor começou a amontoar-se na
ponta de seu nariz, por isso se viu obrigada a enxugá-la com
a manga antes que as gotas escorregassem. Aproximou-se da
janela, afastou as cortinas e a rodeou um enxame de
mosquitos.
— Oh! — Fechou a janela com força.
Nada de brisa. Talvez por isso Aidan tinha podido
comprar uma propriedade de semelhante extensão. Com a
ausência de brisa e a umidade que reinava, as propriedades
do interior da ilha deviam estar a um preço acessível. Se fazia
tanto calor em junho, seria insuportável em pleno verão. Mas
ela tinha suportado toda classe de privações durante seus
anos em alto-mar. Se ia converter-se em sua esposa, teria
que suportar o calor e os mosquitos.
Entretanto, não tinha por que suportá-lo tão
estoicamente. O único lugar onde poderia encontrar um
pouco de ar fresco seria no jardim ou na estrada de entrada.
Além disso, sentia-se inquieta. Sentia falta do constante
balanço do navio sob seus pés e o sussurro do mar nos
ouvidos. Ali, entre campos, colheitas e quatro paredes, era
incapaz de respirar.
Embora não gostava da idéia de sair agarrou o xale de lã
se por acaso se encontrasse com a recatada senhorita Hat e
sua viperina mãe, e desceu a escada. A porta principal estava
fechada, mas no salão havia outra porta pela qual se
acessava a varanda que rodeava a casa. Abriu-a e saiu à
escuridão da noite.
Ocultou-se na sombra que proporcionava o limiar da
porta.
Mais à frente do alpendre, estendia-se um jardim em
direção aos campos de cultivo, salpicado de vetustas árvores
e sebes exóticos, delimitado com esmero por uma cerca
branca estofa com trepadeiras. As flores tropicais floresciam a
luz chapeada da lua e os estridentes insetos saturavam a
escuridão.
Sob a copa de uma árvore, um homem e uma mulher
passeavam muito juntos um ao lado do outro. O vestido
branco da senhorita Hat parecia brilhar sob a luz da lua. O
cavalheiro agarrou uma flor e lhe ofereceu, falando em voz
baixa. E no silêncio reinante, a voz de Aidan chegou até seus
ouvidos enquanto agarrava a mão da senhorita Hat como se
fosse feita de porcelana, para levá-la aos lábios e beijá-la.
E a seguir a beijou na boca.
Viola ofegou quando seu estômago se agitou. Virou-se e
se chocou contra Jin.
— Cuidado. — Ele a agarrou pela cintura e cravou os
olhos em seu rosto antes de desviar o olhar para o jardim.
Jin franziu o cenho, mas ela já tinha os olhos cheios de
lágrimas e as mãos contra seu peito. Encontrar-se com ele
tão de repente só conseguiu confundi-la ainda mais. Porque,
por fim, compreendeu que Jinan Seton não a fazia sentir-se
débil.
Aidan sim, com Aidan sempre tinha a sensação de que
não era o bastante boa, claro que Charlotte Hat sim, parecia
sê-lo. Era bonita, refinada, dispunha de um bom dote e
procedia de uma família de bom berço. Podia passear com ela
a meia-noite por um jardim e lhe beijar a mão, enquanto que
fazia-lhe promessas que nunca cumpria.
Elevou o olhar para Jin e nesses olhos cristalinos viu
compreensão junto com um golpe de raiva.
Sentiu um nó no estômago. Nunca fingia com ela. A seu
lado, sentia-se insegura, sim, sobretudo nos raros momentos
que perdia o férreo controle de suas emoções. Mas também a
fazia sentir-se viva e cheia de esperança.
— Violet? — Suas mãos lhe apertaram a cintura, com
força e segurança. Não voltou a olhar o jardim, mas sim se
concentrou nela por completo.
Uma lágrima escorregou pela bochecha de Viola.
— Não — sussurrou. Ele tinha exigido, mas nesse
preciso momento não queria que a chamasse assim. Queria
que a chamasse por seu verdadeiro nome.
Escapou de suas mãos, passou os dedos pelo rosto e
correu para o interior da casa.
14

O sono a evitava. Viola jazia na cama com seu feio


vestido marrom, contemplando a asfixiante escuridão
enquanto continha as lágrimas, chorar não a ajudaria, só
demonstraria que era tão tola como uma mulher qualquer.
Entretanto, ela não era uma mulher qualquer. Era Violet
a Vil, capitã de seu próprio navio e de cinquenta homens
completamente entregues a ela, com uma patente de corso do
estado de Massachusetts, forte e pronta para conduzir essa
situação da mesma maneira que tinha conduzido outras
muitas adversidades, atoleiros e tropeços durante os anos
transcorridos no mar. A mulher que tinha afundado à
legendária Cavalier não entraria em colapso nem explodiria
em lágrimas porque o homem que amava há dez anos e
queria se casar beijou outra mulher, uma jovem inocente e
elegível, diante de todos, incluído ela. Antes preferia a morte.
Mas doía. E detestava sentir-se ferida. De repente, seu
futuro tinha mudado, mas também tinha mudado seu
passado. Todas as ocasiões nas quais Aidan tinha lhe
prometido matrimônio tinham sido falsas? Tinha sido a maior
tola do mundo por acreditar depois de tantos anos que ele
cumpriria suas promessas? E o pior de tudo: seu pai sabia?
Tinha dado a Aidan o dinheiro que lhe permitiu abandonar o
navio para que ela não seguisse com as esperanças de seus
sonhos de juventude?
Continuou contemplando a escuridão sem chorar, com o
peito e a garganta doloridas por seu afã de conter os soluços.
Ao escutar os gritos, pensou que eram produto de sua
imaginação. Entretanto, as vozes aumentaram de volume e se
fizeram mais estridentes.
Saltou da cama e se aproximou da janela. Na distância,
a uns cinco quilômetros da casa, a plantação de cana-de-
açúcar se tingia de vermelho pelo fogo e a fumaça subia para
o céu noturno.
Jogou o xale sobre os ombros enquanto colocava os
escarpins e saiu a toda pressa do dormitório em direção à
varanda. No exterior reinava o caos. Havia homens correndo
em todas as direções. Alguns puxaram bois, outros uma
mula. Todos gritavam. Seamus e Aidan elevavam suas vozes
por cima das de outros para dar ordens. Escutou-se o zurro
de um burro. A fumaça era densa e cheirava o caramelo
queimado.
Aidan se aproximou dela e lhe agarrou as mãos.
— Violet, deve entrar e dizer... Ah! — interrompeu-se ao
olhar atrás dela. — Aqui estão. Obrigado, Seton.
Viola se voltou e encontrou o olhar de Jin. A senhorita
Hat se agarrava a seu braço com as mãos tão brancas como
as de um espectro, enquanto ele até a estrada, seguindo de
seus pais, que tinham aparecido com a roupa de dormir,
igual à filha.
— O que está acontecendo, senhor Castle? — exigiu
saber a senhora Hat. — Existe o risco de que nos alcance o
fogo?
Aidan negou com a cabeça.
— Absolutamente, senhora. Asseguro-lhe que meus
homens estão fazendo todo o necessário para contê-lo.
Estamos acostumados a queimar os campos já colhidos a fim
de preparar a terra para a seguinte colheita, de modo que
estamos acostumados a isto.
— Castle, isso não é um campo colhido e o medo de
seus homens é evidente — comentou Seton com serenidade,
ao tempo que deixava à moça aos cuidados de sua mãe para
aproximar-se de Aidan. — Salta à vista que é intencional,
porque o que estão ardendo são as canas. Quem tem motivos
para fazer algo assim?
— Esses malditos trabalhadores, que tentam obrigar
que lhes conceder maiores privilégios — respondeu Seamus,
que chegou nesse momento. — Eles o provocaram. As
ridículas idéias de meu primo conseguiram que o fogo acabe
com tudo o que tínhamos conseguido.
— É apenas um campo — apontou Aidan, que passou
uma mão pelo cabelo. — Os homens estão enchendo os
canais de água. Não se espalhará.
— Qualquer palavra que saia de sua boca é ouro para a
família da Inglaterra, mas aqui não vale nada — soltou
Seamus, cujas bochechas estavam acesas. — Se usasse
escravos como todos outros, isto não teria acontecido.
—Não usarei trabalhadores forçados quando há homens
dispostos a fazer o trabalho por um salário. Não o farei! —
Falava como se algo estivesse preso na garganta.
Seamus fez um gesto com uma mão em direção ao
campo que estava ardendo. Os zurros dos burros e das
mulas, somados aos gritos dos homens, elevavam-se na
sufocante escuridão. A fumaça, densa e pegajosa, cobria
tudo.
— Olhe que dispostos estão, você vê?
Jin olhou para trás e passou junto de Viola, fazendo
com que ela se voltasse. Pequeno Billy corria para eles
procedente dos abrigos. O corpulento Matouba corria atrás
dele.
— Nós os vimos, capitão. — Pequeno Billy o olhava com
grande seriedade. — Os vimos colocando fogo nas hastes das
canas e fugirem.
— Para onde foram?
— Para a estrada — apontou Matouba.
— Para o Norte? Para o porto?
— Sim, capitão.
— O que dizem esses homens? — Aidan estava tirando a
jaqueta, com a vista cravada nas chamas que se
aproximavam das yucas que separavam os campos do jardim.
Viola tocou o braço de Matouba.
— Por que os trabalhadores do senhor Castle fugiriam
para o porto? Se eles provocaram o incêndio, por que não
ficar aqui e fingirem que são inocentes?
— Porque não foram os trabalhadores do senhor Castle.
— O que quer dizer com isso? — resmungou Seamus.
— Eram marinheiros, senhor — respondeu Billy. —
Falavam holandês, como os moços que estavam carregando o
balandro23 esta tarde na doca.
— Pelo amor de Deus! — Aidan parecia estar muito
branco. — Palmerston.
Viola meneou a cabeça.
— Esse não é seu vizinho?
— Maldito seja, Aidan! — exclamou Seamus. — Vê o que
está dizendo? Ei, vocês dois! — gritou a um dois homens que
corriam para o campo em chamas. — Molhem os arbustos.
Essas faíscas não devem alcançar a casa. — E saiu correndo.
Jin se aproximou da casa.
— E os cavalos?
— Estão prontos, senhor — respondeu Pequeno Billy. —
No caminho.
— Aonde vão? — gritou Viola. — Por que Billy tem
cavalos? Se tivéssemos um cavalo, poderíamos... —
interrompeu-se porque a fumaça lhe impedia de respirar. —
Aonde vai?
— Recolher meus efeitos pessoais — lhe respondeu por
cima do ombro.

23Balandro era um navio leve de design holandês. Foi equipado com duas ou três
velas quadradas antes do mastro e plataformas de arco a popa .Era uma barra rápida
com excelente manobrabilidade, extremamente útil em ventos leves.
— Deus Santo, temos que controlar o incêndio! —
exclamou Aidan com voz trêmula e acrescentou, dirigindo-se
a Viola: — Violet, peço-te o favor que cuide da senhorita Hat e
de seus pais. Não estão familiarizados com este tipo de
situação e não quero que se deixem levar pelo pânico. Isso me
dificultaria ás coisas.
— Aidan, por que acha que seu vizinho está
comprometido nisso?
— Violet...
— Diga-me.
— Os curaçaenses24 destas ilhas falam holandês.
Palmerston é o único plantador da região que usa seus
serviços e que comercializa às vezes com eles. Se estes
homens afirmarem que os que provocaram o fogo falavam
holandês, Palmerston poderia haver-lhes pago.
— Por que ele faria isso? Ele odeia você tanto assim?
— Querida, isso não importa agora. Devo te pedir que
acompanhe aos Hat ao interior e que os tranquilize. Faça-o
por mim, por favor.
Viola olhou esses olhos esverdeados de expressão
suplicante e seu coração seguiu pulsando no ritmo normal.
— Vou ao porto. Matouba e Billy acreditam que esses
homens se dirigem para lá. O balandro que vimos ancorado
na doca pode ser dele. Se Tempestade de Abril puder evitar

24Curaçao ou Curaçau (em neerlandês e em inglês, Curaçao; em papiamento,


Kòrsou) é um país insular das Antilhas Menores no sul do Mar das Caraíbas e na
região das Caraíbas holandesas, a aproximadamente 65 quilômetros (40 milhas) ao
norte da costa venezuelana. Quem nasce em Curação é curaçaense.
que escapem e te trago alguma prova que demonstre a
implicação de seu vizinho, agradecer-me-á por isso.
— Não, Violet. Não é assunto teu. Deixe esses homens
fazê-lo e fique aqui, me ajudando. A senhorita Hat é uma
criança frágil, inocente e muito jovem. Necessita de seu apoio.
Viola puxou as mãos e forçou-se a segurar os soluços
que lutavam por brotar de sua garganta.
— Sinto muito, Aidan. Terão que arrumarem-se sem
mim. — Virou-se e pôs-se a andar para a casa.
Ao chegar à varanda, Jin se aproximou dela, enquanto
afivelava o cinto onde usava a pistola e o facão. Olhou-a de
cima abaixo.
— Não vem?
O coração, machucado até então, lhe subiu à garganta.
— Agora mesmo.
— Não há tempo para que se troque. — Passou a seu
lado em direção à entrada da estrada. — Pode montar
escarranchada com isso?
Viola inspirou fundo, apesar da fumaça.
— É obvio. — E correu atrás dele.
Quem tinha provocado o incêndio não contavam com
que os seguissem. Enquanto Viola descia do cavalo que
compartilhava com Billy com o vestido feito farrapos, já que
ela mesma tinha rasgado para poder montar com condições,
escutou vozes procedentes do outro extremo da doca. Os
homens riam, relaxados e contentes, como se estivessem
satisfeitos com um trabalho bem feito. E falavam holandês.
Deu um passo para eles.
Jin a agarrou pelo uma pulso, detendo-a na sombra do
edifício.
— Mas... — protestou ela.
— Billy — Jin sussurrou enquanto que a soltava, —
corra a taberna. Procure os homens e leve-os a Tempestade
de Abril depressa, sem fazer barulho.
— Sim, senhor. — O moço saiu correndo.
— Menos mal que não estamos atracados na doca —
disse Matouba em voz muito baixa e rouca. — Mas não ocorre
nenhuma gota de ar esta noite.
— Carregaremos os canhões — sussurrou Viola — e os
ameaçaremos. Se não se renderem, dispararemos embora
tenhamos que fazê-lo a partir do porto.
— E acabaremos encerrados no cárcere por disparar da
baía — apontou Matouba com tristeza.
— Não seria a primeira vez que você se viu nisso, moços.
— Viola moveu-se graças aos nervos e à energia que estes
suscitavam. Olhou para Jin e sentiu um nó nas vísceras.
Ele respondeu com um sorriso. Seu olhar estava
cravado nos marinheiros da pequena embarcação que se
dispunham a abandonar o porto em plena noite, qual
rebanho de ladrões. Ou como alguns incendiários que não
estavam preocupados que os descobrissem.
Não obstante, os curaçaenses realizavam os
preparativos para zarpar antes do que esperavam. A coberta
do pequeno balandro, iluminada por várias lanternas, era
perfeitamente visível da doca. Quando Viola, Matouba e Jin
chegaram junto ao navio, correndo entre as sombras e
subiram a bordo em silêncio, o balandro já se afastava.
— Não — sussurrou ela, correndo para a escada do
convés de canhões enquanto os farrapos do vestido se
agitavam em torno de suas pernas. — Não escaparão. Não
permitirei.
Becoua corria atrás dela.
— Boa noite, capitã — sussurrou enquanto chegavam
mais homens de sua tripulação que avançavam pela doca e
se dispunham a carregar os canhões à luz da lua.
Não obstante, cheiraram a rum e avançavam enquanto
deslizavam as balas nos canhões e colocavam as mechas.
Estavam bêbados. Estavam de licença, bêbados e, entretanto,
tinham atendido a sua chamada.
Viola retornou ao convés. Abaixo ela escutou o rangido
de uma das escotilhas que um de seus homens tinha aberto
muito rápido. O som ressoou por todo o porto.
Os marinheiros do balandro, localizados a cerca de
cinquenta metros de distância, ficaram paralisados.
Imediatamente, escutou-se uma ordem em holandês. O
movimento se reatou, e se escutaram mais gritos.
—Ordens, capitã? — perguntou-lhe Jin, que estava a
seu lado.
O pulso de Viola se acelerou. Devia fazê-lo. Devia
demonstrar a Aidan que era capaz de fazê-lo. Talvez não fosse
uma dama elegante que ele pudesse beijar sua mão, mas
tinha seus talentos. Não podia falhar.
— Você fala holandês?
— Acredito que já é muito tarde para isso.
Um tiro de canhão foi ouvido, seguido pelo apito de uma
bala e uma nuvem de faíscas caiu de uma das vergas do
mastro.
Tempestade de Abril cobrou vida. Jin começou a dar
ordens a gritos e os homens correram para seus postos. Os
tiros dos canhões encheram a escura noite de fumaça e fogo.
As chamas eram rapidamente sufocadas em ambas as
embarcações. Os marinheiros amaldiçoavam e os canhões de
Tempestade de Abril abriam fogo sem parar. As baterias do
balandro respondiam uma e outra vez.
Entretanto, depois de alguns minutos, Viola percebeu
que era muito tarde. O casco do balandro cortava a água tão
rápido como um golfinho e a deixava para trás como só
podiam fazê-lo as embarcações pequenas quando não havia
vento. Viola pôs rumo a mar aberto. Um tiro de canhão
acertou uma das velas de Tempestade de Abril, que começou
a arder e caiu no convés das armas envolvidas em uma
cascata de faíscas.
Entre os tiros de canhão, também se escutava o repique
dos sinos que alertavam de um problema. Os oficiais do porto
estavam acordados.
Viola reconheceu que não havia nada que fazer. O
balandro se afastou muito, ficando fora do alcance de seus
canhões, até mesmo dos de mais longo alcance, e disparou
uma última salva de canhões, embora as balas caíram à
água, entre ambas as embarcações.
— Os homens já estão nos remos — lhe informou Jin
com serenidade. — Somos poucos para lidar com os remos e
os canhões ao mesmo tempo. De qualquer forma, você quer
persegui-los?
Viola se agarrou ao corrimão e contemplou como as
luzes do balandro se afastavam na escuridão.
— Malditos sejam.
— Isso é um sim ou um não?
— Não! — Voltou-se para ele com o coração acelerado.
— É obvio que não. Seria impossível alcançá-los. Toma-me
por uma imbecil? — Virou-se para examinar o desastre do
convés principal, furada em certos lugares pelos canhões e
queimada em outros. — Maldição!
— Os danos não são graves. Os homens os repararão
em um dia.
Viola sabia. O balandro não tinha tentado lhes fazer
danifico, só distraí-los enquanto se afastava. Na foz do porto,
um brilho branco lhe indicou que os curaçaenses tinham
içado as velas ao encontrar um pouco de vento. Os culpados
de provocar o incêndio tinham escapado.
Alguém subia pela passarela. Era um homem com um
casaco mal posto, uma peruca cinza torcida e os sapatos
desatados, que chegou à coberta acompanhado por dois
soldados vestidos com uniforme vermelho e respectivos
mosquetes.
— Quem é o capitão desta embarcação? — perguntou o
homem da peruca com o orgulho primordial do qual apenas
um oficial de porto inglês era capaz em tais circunstâncias.
Viola se adiantou com um nó no estômago e respondeu
com voz tranquila:
— Eu sou a capitã. O que acontece, senhor?
— Você? — O homem reparou na saia, feita farrapos, e
depois cravou a vista atrás dela. — É verdade?
— Está falando com Violet Daly, senhor, capitã de
Tempestade de Abril de Boston — respondeu Jin, enfatizando
seu acento inglês.
— E a capitã sabe que acaba de ganhar uma multa de
cento e cinquenta libras por abrir fogo dentro dos limites do
porto?
— Não me surpreenderia que soubesse, senhor.
— Que me crucifiquem! Acaso acredita que pode abrir
fogo em plena noite sem que ninguém se inteire? — Fez um
gesto com os braços, apontando para a multidão que se
amontoava na rua. — Despertou a toda a cidade! A minha
mulher teve um susto de morte.
— A senhorita Daly tinha motivos justificados para
disparar.
O chefe do porto a olhou por fim.
— Será melhor que a razão seja boa, jovenzinha.
Viola sentiu que lhe retorciam as tripas. Nenhum
homem lhe falava como se fosse uma menina, muito menos
depois de ter sofrido o segundo revés mais importante de sua
vida. Nenhum homem!
— Um balandro cheio de curaçaenses culpados de
provocar um incêndio acaba de abandonar seu porto. — Fez
um grande esforço controlar a voz. — Não faz nem duas
horas que atearam fogo à plantação de Aidan Castle.
Seguimo-los até aqui e tentávamos interceptá-los apesar da
falta de vento.
O chefe do porto arregalou os olhos.
— Disse que provocaram um incêndio? E com todos
esses tiros de canhões não foi capaz de capturá-los?
Viola fez uma careta.
— Não tenho a menor dúvida de que se tivéssemos
contado com sua ajuda nos tiros de canhões os teríamos
capturado. Lamento que você chegou tão tarde .
O chefe do porto estava tão indignado que começou a
balbuciar:
— Pequena miserável, ouça, jovenzinha...!
Jin se adiantou para interrompê-lo.
— Senhor, suponho que você vai querer voltar para a
cama dada á hora. Se estiver bem, poderemos adiar esta
conversa até amanhã de manhã. Tenho certeza de que a Srta.
Daly ficará feliz em ajudar.
— Seton, não se intrometa.
— Pelo menos há uma pessoa sensata neste navio —
replicou o chefe do porto com secura em seguida, apontou
para Viola com um dedo. — A espero em meu escritório as
nove, senhorita. E se descobrir que desapareceu no meio da
noite, não vou hesitar em enviar um barco para persegui-la,
capturá-la e cobrar a multa.
Viola mordeu a língua a fim de não soltar a réplica que
merecia e assentiu com a cabeça. Depois de observar seu
traje de novo sem dissimular seu assombro e meneando a
cabeça, o chefe do porto se virou e abandonou a coberta
seguido por seus soldados.
Viola se voltou para Jin.
— O que você acha que faz quando fala por mim?
— Ajudá-la.
— Não necessito sua ajuda.
A luz da lua se refletiu nos olhos azuis.
— Humildemente acredito que se equivoca.
— Você não sabe o que é humildade. É um arrogante e
um...
— Talvez também deveria propor adiar esta conversa até
manhã.
— Maldita seja minha expressão, cento e cinquenta
libras!
Não tinha nem cinquenta libras no navio, muito menos
o triplo de dita quantidade, encaminhou-se para a escada
para refugiar-se em seu camarote, o único lugar que lhe
pertencia, onde nenhum homem podia insistir em que o
obedecesse.
A vela que tinha caído bloqueava o caminho.
— Tire isso fora do caminho! — gritou aos marinheiros
que estavam mais perto.
Os homens se dispuseram a obedecê-la, embora
fizessem lentamente, cansados pela batalha ou talvez pelo
excesso de rum. Viola olhou a seu redor. Todos seus homens
tinham olhos vidrados e ombros curvados. No fundo, sabia
que se sentiam tão decepcionados com a derrota como ela.
Entretanto, era algo mais. Os olhos escuros de Becoua a
olhavam com expressão tenra, quase...
Não podia ser pena . Não suportaria que a olhassem
com pena.
— Não. — Agitou uma mão na frente de seus olhos. —
Não, fora daqui! Fora do navio até que lhes diga que voltem.
— Tremiam-lhe as mãos. Estava exausta pela cavalgada, os
nervos e as emoções que a tinham embargado durante todo o
dia. Sentia uma dolorosa opressão no peito e queria estar
sozinha. Devia estar sozinha. — Todos fora! — Voltou-se para
Seton. — Menos você.
Não podia expulsá-lo do navio. Ainda restava um dia.
Talvez pudesse ganhar a aposta depois de tudo. Não sabia
como, porque esse homem era imperturbável. Não o tinha
afetado com suas artimanhas sedutoras nem o tinha
frustrado com suas rudes maneiras. Provocar-lhe alguma
emoção era impossível.
Nesse momento, contemplava-a com esses olhos azuis,
um olhar impenetrável, sem mover-se enquanto a tripulação
abandonava o navio, acovardada e em silêncio. Pequeno Billy
foi o último em aproximar-se da passarela. Viola o deteve.
— Billy, por que levou esses cavalos à plantação do
senhor Castle? O que faziam Matouba e você ali?
Ele deu de ombros.
— O capitão nos ordenou, senhora. — Depois de
responder, desceu a passarela.
Viola inspirou o ar noturno tentando respirar. As
sensações que a embargavam eram desconhecidas, similares
ao pânico, mas muito mais profundas e frias.
Algo estava errado. Deveria sentir raiva, deveria sentir-
se traída. Deveria estar fervendo de fúria. Entretanto, o que
sentia era pior. Ela experimentou isso apenas em uma
ocasião, meses depois de que Fionn a tirou da Inglaterra. No
dia que finalmente descobriu que ele nunca a levaria de volta
para sua casa, não importava o quanto ela suplicasse.
Encaminhou-se outra vez para a escada. A gávea que
tinha caído e ainda estava emaranhada entre os
equipamentos do barco, porque era muito pesada para que a
movesse apenas um homem. De todas as formas, tentou
afastá-la. Começou a puxá-la, tropeçando sobre o
equipamento queimado do barco e a bainha de seu vestido
rasgado.
— Viola, deixe-o. Ou deixe que chame alguns dos
homens para que voltem e a afastem antes que se machuque.
— Seton tentou conquistá-la com sua voz.
Mais lástima, e precisamente de quem menos esperava.
O frio que a embargava aumentou.
— Maldita seja, maldita seja! — Agitou um braço no ar
como se brandindo um sabre para cortar a vela arruinada. —
Maldita seja! Me dê sua espada — lhe disse, estendendo uma
mão.
— Não necessita uma espada e não tem por que se
amaldiçoar dessa maneira.
Ela se voltou para olhá-lo.
— Não tem nem idéia do que necessito.
— Equivoca-se. — Seus olhos lhe disseram muito mais.
Tinha-os visto no jardim. Tinha-a visto chorar.
Compreendia-a. Seu rosto, iluminado pela luz da lua, era o
vivo retrato da beleza masculina e da segurança mais
inquebrável.
O coração de Viola pulsava com força, apressado em seu
peito. Desejava se livrar do dano que tinha sofrido. Desejava
a ele! Desejava esse homem. Não a Aidan. Seu desejo por
Jinan Seton era tão intenso que quase podia saboreá-lo.
— Não sabe nada. Não pode sabê-lo. — Até a poucos
instantes, nem ela mesma era consciente do que necessitava.
Seton seguia olhando-a sem fraquejar.
— É uma menina — disse em voz baixa. — Por que você
quer um homem que, por sua vez, quer uma outra mulher?
Viola ficou sem fôlego. Voltou-se e pisou na vela, que se
deslizou, fazendo com que ela escorregasse e tivesse que
agarrar-se o corrimão, depois que ela pulou para o convés
inferior para não cair. Ele a segurou com agilidade, como se
no dia a dia fosse costume evitar as velas que caíam sobre as
escadas. Embora talvez em algum momento de sua vida sim,
tivesse sido assim. Uma vida que conhecia por boca de
outros, não porque ele a tivesse contado.
— Viola...
—Só faltava que você me dissesse o que necessito. Um
homem que finge não estar interessado em beijar uma
mulher depois de ter demonstrado claramente que sim, está.
Os olhos de Seton se escureceram ao chegar à
penumbra da passagem inferior.
— Agora sim, você que se comporta como uma menina.
Castle poderia pôr uma creche — replicou com a mandíbula
tensa.
Tinha conseguido atravessar essa couraça? Seguro que
tinha ferido o orgulho.
— É um bastardo arrogante — sussurrou. Entretanto,
no silêncio do deck, a palavra se escutou claramente.
Viu que a ira relampejava os olhos azuis e sentiu um nó
no estômago. Não podia acreditar que houvesse dito algo
assim.
— Jin, por favor, me perdoe. — levou-se o dorso de uma
trêmula mão à boca.
— Por que devo te perdoar? Por se comportar como uma
menina? — replicou ele em voz baixa.
Uma raiva ardente finalmente a queimou nesse
momento.
— Como uma menina, a isso fiquei reduzida? — A
sensação de derrota mesclada com o desejo a estava
afligindo. Cobriu os olhos com a palma da mão. — Isso não é
o que queria...
— Isto é absurdo. — Jin lhe agarrou a mão, puxou-a
para colá-la contra seu peito e a beijou.
Não foi um beijo tenro, mas sim, a beijou com o mesmo
ardor como a tinha beijado em seu camarote. Foi um beijo
feroz, ávido e possessivo que exigia que não resistisse.
Viola não pôde resistir. Porque era isso o que desejava.
Entretanto, não queria que terminasse tão rápido. Não, não
queria que terminasse jamais. Beijou-o com a mesma paixão
e permitiu que conquistasse sua boca a bel prazer. Sentia
sua força e saboreava seu desejo, de modo que se entregou
como se fosse uma droga, estimulada pela paixão e a
urgência.
Ele terminou o beijo ao afastar-se. A mão que ainda se
agarrava a ele estava entre seus corpos e com ela sentia o
batimento ensurdecedor de seu coração, ou talvez fosse o de
Seton . Esses olhos azuis brilhavam como lascas de cristal
enquanto percorriam seu rosto, transbordantes de desejo.
Entretanto, também havia insegurança neles. Talvez uma
dúvida. Viola sentiu que lhe afrouxavam as pernas. No
silêncio da noite, só se escutavam suas aceleradas
respirações e os rangidos da madeira.
Foi incapaz de suportar a situação. Levantou o braço
livre e passou os dedos pelo cabelo, desfrutando do simples
prazer de tocá-lo. Esteve a ponto de suspirar.
Seton agarrou sua mão com mais força.
Ela ficou nas pontas dos pés e quando o instou a
inclinar-se, beijou-a de novo. As sensações ultrapassavam
algo que Viola tivesse experimentado com antecedência.
Qualquer incerteza que o tivesse assaltado tinha
desaparecido e parecia ter um objetivo: conquistá-la. E se
deixou conquistar alegremente, encantada. Sentiu que ele
colocava uma mão no seu queixo e que o pressionava com o
polegar, de modo que separou os lábios. Imediatamente, sua
língua a invadiu e ele reclamou o interior de sua boca com
voracidade e urgência.
Colou-a á seu corpo e começou a acariciá-la. Suas mãos
lhe exploraram o pescoço, os ombros, as curvas da cintura e
depois o traseiro. Viola gemeu, embargada pelo desejo,
quando uma de suas enormes mãos lhe deu um aperto antes
de descer por sua coxa. A paixão os abrasava, apropriava-se
dela, penetrava sob sua pele e atingia seus beijos. Ele
agarrou sua perna e instou-a a levantá-la , colocando-lhe
sobre o quadril para poder pressionar sua dura ereção contra
ela. O roce lhe arrancou outro gemido. Levantou as mãos e
tomou-lhe o rosto entre elas, ansiando que voltasse a lhe
introduzir a língua na boca. Como era possível sentir-se tão
bem e seguir ansiando mais? Perguntou-se.
Começou a mover-se, inquieta, já que precisava senti-lo
mais perto.
— Disse-me que não tinha a menor intenção de voltar a
me beijar.
—Isto não é um beijo. — Colou-a ao corrimão da escada
e se esfregou contra ela ao tempo que lhe acariciava um seio.
— Deus! — exclamou Viola.
Estava desejando por semanas que ele a tocasse dessa
forma. O roce de sua ereção e as carícias de suas mãos
estimulavam seu desejo a tal ponto que era-lhe doloroso. Era
muito, suas carícias eram muito deliciosas, mal suportava
sentir-se capturada por esse corpo, era uma sensação
abrasadora. Deu-lhe um puxão na sua jaqueta e ele a tirou.
Tinha a camisa úmida e o tecido se colava a seus músculos.
Viola ansiava subir por seu corpo, colar-se por completo a
ele. Moveu um pé e tropeçou em um dos farrapos do vestido,
de forma que perdeu o equilíbrio. Ele a apanhou, e depois a
deixou no chão, sobre a vela que cobria os últimos degraus
da escada.
Voltou a beijá-la nos lábios enquanto lhe acariciava uma
coxa com urgência, levantando seu vestido. Viola entendeu a
pressa e sua intenção. Ela também o desejava. Arqueou o
corpo para ele, ofegou e Seton a colou a seu corpo. Roçou-lhe
a língua com a sua antes de introduzir-lhe na boca, com a
mão ao redor de um joelho.
Nesse momento, levantou a cabeça e separou seus
lábios.
— Viola... — disse com voz tensa, — não penso te forçar.
Separe as pernas ou eu vou.
E, nesse momento, ela reparou que seus joelhos
estavam presos, juntos. O que ele estava fazendo? Ela se
perguntou.
— No navio? — replicou com voz trêmula.
— Você gostará. — Apanhou seus lábios novamente.
Ela se deixou levar, deixou-se arrastar pelo medo e a
certeza que a obrigavam a manter as pernas unidas, pela
apreensão de saber que tudo estava mudando nesse instante.
— Eu não gostaria. — Tratou de beijá-lo com mais
paixão, lhe mordiscando os lábios e sugando-lhe. Ansiava
possuí-lo. Que a possuísse. Invadia-a uma ânsia frenética. —
Não agora, quero dizer — se apressou a acrescentar, embora
parecesse rude.
Claro que Seton não se queixou. Começou a acariciá-la
entre as coxas, de modo que Viola decidiu entregar-se,
porque era o que ele esperava e o que ela desejava. A união.
Simplesmente, não suportava estar separada dele.
Separou as coxas, acolheu-o entre elas enquanto tremia
de forma incontrolável e o sentiu na entrada de sua gruta.
Penetrou-a com uma forte investida e um grunhido de prazer
masculino. Viola tentou respirar enquanto que lhe cravava os
dedos nos ombros. Sentia-se incômoda, invadida e dolorida.
Mas era uma dor maravilhosa. Seton começou a mover-se,
saindo de seu corpo e voltando a entrar.
— Não! — disse-lhe, aferrando-se a ele. — Deus, não. —
Doía-lhe muito. Mas não se tratava de uma dor física. Porque
o prazer que a invadia era tal que sossegava qualquer dor que
seu corpo pudesse sofrer.
Era uma dor anímica, muito pior do que a física.
Seton ficou quieto, respirando de forma superficial
enquanto a agarrava pelos quadris para mantê-la perto dele.
— Viola — sussurrou contra sua bochecha, — é muito
tarde para negar-se.
— Não. Sim. Sim! — Levantou os quadris para ele,
extasiada pela mescla de prazer e dor.
Ele a beijou sem mover-se e manteve seus corpos unidos
dessa forma como se fosse capaz de prolongar essa união,
enquanto quisesse. Depois, deixou de beijá-la e começou a
mover os quadris de novo.
Viola tinha pensado que entendia o que acontecia.
Porque já o tinha feito antes.
Entretanto, o que estava acontecendo era uma novidade.
Com cada investida, lhe provocava um golpe de prazer, e se
sentia obrigada a devolver-lhe. Seton a guiava com as mãos a
cada movimento, penetrando-a cada vez mais depressa e
mais profundamente até que ela começou a gemer. O prazer
aumentou de uma forma abrupta, um prazer que só tinha
experimentado a sós e que jamais tinha pensado poder sentir
com um homem. O êxtase foi esmagador. Ofegou em busca
de ar e levantou os quadris para recebê-lo mais dentro,
gemendo sem cessar. Seton a instou a seguir apoiada nos
degraus colocou as mãos a ambos os lados de seu corpo
enquanto ela estremecia de prazer. Depois, colocou uma
bochecha ao lado do dela e se afundou até o fundo dela. A
força desse corpo masculino era tal que Viola parecia não
poder saciar-se. O prazer aumentou de novo e voltou a
apropriar-se dela, lhe arrancando um grito enquanto
estremecia uma e outra vez. Ele agarrou sua mão, e se
introduziu todo em seu interior.
Sentia como seu peito se movia sobre ela, trabalhando
em excesso para recuperar o fôlego. Ela também ofegava,
ainda impressionada com o fato de ele ter se derramado
dentro dela. Nada a tinha preparado para algo assim, para
um homem como ele. A euforia era tão grande que sentiu
desejos de rir. E de cantar. Mas tinha a garganta seca e entre
suas coxas descansava um pirata, de modo que não lhe
pareceu muito apropriado. Jamais tinha imaginado que
pudesse ser assim. Nem que pudesse ser tão incômodo
sentar-se nos degraus de uma escada coberta por uma vela.
Seton se afastou. Ela fechou as pernas e abriu os olhos,
embriagando-se com sua imagem. O suor lhe corria pelo
queixo, e também tinha outro gotejamento na clavícula que
continuou em seu peito até que ele estivesse perdido debaixo
da camisa. O tecido se agarrava à pele, revelando o contorno
de seus músculos à perfeição.
Uma vez que ele fechou suas calças, estendeu-lhe a
mão. Ela o olhou em silêncio.
— Vem. — Flexionou os dedos várias vezes para lhe
indicar que o seguisse. Não de forma insistente, a não ser a
modo de convite. Seus olhos a olhavam com um brilho
peculiar.
Viola tinha a boca muito seca, possivelmente pelos
gemidos e os gritos.
— Aonde? O que você quer? — perguntou-lhe, com voz
aguda.
Ele se inclinou, tomou seu rosto entre as mãos e ele
correu a ponta do polegar sobre o lábio inferior sensível. Seu
fôlego lhe roçou a pele quando ele disse:
— Você o que acha?
Viola engoliu saliva. Pelas barbas de Netuno! Ela
também o queria. Outra vez. Imediatamente. Sentia-se
maravilhosamente saciada, mas o desejo a embargava
somente o olhando.
Ele agarrou sua mão e deu um aperto.
— Vamos. — Afastou-se para que se levantasse.
Os joelhos de Viola tremiam como as velas desdobrados.
Depois do que se moveu debaixo dele, nesse momento era
incapaz de dar um passo.
— Está bem? — perguntou-lhe Seton com o cenho
franzido.
— Sim. Não. Bom, não sei.
A tensão se apoderou de seu queixo e seus belos traços
fizeram uma expressão preocupada.
— Você...? — Inspirou fundo. — Você já fez isso antes?
Quero dizer... Você fez...?
— Não! — Viola sentiu que o rosto ardia. — Você não me
machucou. E sim, eu tinha feito isso antes. — Desejou estar
usando calças, pistola e faca. Sentia-se exposta, muito tola e
em total desvantagem. — Mas faz já um tempo. E nada
parecido como agora. — Absolutamente.
Como era possível que tivesse feito amor várias vezes
com o homem que tinha passado anos adorando e que sua
lembrança tivesse ficado apagada depois de haver feito uma
única vez, na escada do navio com o homem que tinha diante
de si?
Esses lábios perfeitos e masculinos esboçaram um lento
sorriso.
— Ah, não?
Ela franziu o cenho. O fato de que ele tivesse feito em
incontáveis ocasiões não ficava muito bem.
— Vejo-te um pouco instável, não?
— Não ria de mim, Seton.
— Não estou rindo.
— Porque, como você fez, foi diferente para mim...
— Sinto-me lisonjeado .
— Bem, não vá subir à cabeça. Quis dizer que nunca
tinha feito em uma escada. Tenho as pernas intumescidas.
— É obvio. — Não tinha acreditado nela. E com razão. —
Mas sigo me sentindo lisonjeado.
— Sua arrogância não conhece limites.
Seton sorriu. O gesto a desarmou e, como era de
esperar, voltou a ver estrelinhas. Era uma exímia idiota .
— Não posso evitá-lo. Vamos. — Ajudou-a a levantar-se
e a agarrou pela cintura. — Penso fazer mais méritos para me
sentir mais lisonjeado antes que amanheça.
Viola estremeceu entre seus braços. Era evidente que
Seton pretendia fazê-lo de novo. Agarrou-se a seus braços
para manter-se de pé. Suas pernas pareciam de gelatina.
— Necessita ajuda para permanecer em pé? —
murmurou ele.
— Bem, sim, — era verdade.
Sua resposta o fez esboçar um sorriso torto.
— Mas você não quer que eu a leve nos braços, verdade?
— É obvio que não. — Antes preferia a morte. —
Podemos ficar aqui?
Seton soltou uma gargalhada. Então ele colocou seus
braços em volta do pescoço dele, voltou-se para lhe dar as
costas e posou as mãos atrás de suas coxas.
— Vamos.
Viola saltou a suas costas, enquanto ria as gargalhadas
e se agarrava com os joelhos a seus lados e com os braços a
seus ombros.
— Estou te oferecendo à oportunidade perfeita para que
me estrangule, evidentemente — comentou enquanto
começava a andar para o camarote de Viola.
— Talvez depois. Agora necessito de seus serviços.
A distância não era longa, apenas nove metros.
Entretanto, no mesmo corredor onde ele a tinha olhado como
se quisesse beijá-la, embora não o fez, a paciência de Viola se
esfumou. Acariciou-lhe o pescoço com o nariz e, depois,
estirou-se um pouco para lhe mordiscar o queixo. O sabor de
sua pele e a aspereza de sua barba lhe provocaram um golpe
de prazer no ventre. Instou-o a voltar à cabeça e esteve a
ponto de pendurar-se sobre seu ombro em seu afã por beijá-
lo nos lábios. Esses lábios perfeitos que ansiava colados aos
seus sem demora. Ele deu-lhe o que queria, mas por muito
pouco tempo. Quase imediatamente a deixou no chão, diante
da porta de seu camarote.
Viola entrou e se sentou para tirar os sapatos. Enquanto
baixava as meias, elevou a vista. Seton estava no vão da
porta, com o olhar cravado em sua escrivaninha. Sobre ela
havia um objeto: a luneta que ele tinha pedido emprestado
aquele dia que parecia tão longínquo, e que ela o provocou
dizendo que ele o roubara. Uma acusação que ele respondeu
dizendo que não tomava o que não era seu por direito.
No final, olhou-a. A expressão apaixonada tinha
desaparecido, e os cristalinos olhos azuis a contemplavam
pensativos e sérios. Como se a estivessem avaliando.
Viola sentiu um calafrio nas costas. Ao longo da
travessia, tinha-a olhado muitas vezes dessa forma do outro
extremo da coberta. De uma grande distância, porque não se
tratava de metros nem de centímetros, mas sim de uma
distância muito mais profunda. Quando a olhava dessa
maneira, a solidão que tinha em seu interior soprava como
uma baleia de Maine.
— A reunião amanhã com o chefe do porto vai ser
desconfortável — comentou ela para pôr fim ao silêncio e
apagar essa distância de seus olhos. — Não tenho cento e
cinquenta libras.
Seton entrou no camarote.
— Aqui no navio ou se refere a que não tem esse
dinheiro?
— Nem aqui nem em nenhum lugar.
— Tenho certo capital em Tobago. Emprestarei-te essa
quantia.
—Tem cento e cinquenta libras!? Em Tobago? Para que?
— Para este tipo de situação.
O que lhes recordou abruptamente a situação em que se
encontravam e o fato de que não deveriam estarem falando de
libras nem de chefes portuários, mas sim de outros assuntos
mais pessoais.
Viola tentou falar, mas tinha um nó na garganta.
Tentou-o depois de instantes e conseguiu articular algumas
palavras:
— Jin, não posso aceitar...
Ele pediu que ela se levantasse, abraçou-a e inclinou a
cabeça.
— Não é nada.
— Mas são cento e cinquenta...
— Não é nada.
E, nesse momento, seus lábios voltaram a encontrar-se,
apesar da distância, do dinheiro e do assombro de Viola. Ou
talvez precisamente por tudo isso. Beijaram-se como se não o
tivessem feito antes, e depois como se não pudessem parar de
fazê-lo, acariciando-se com as mãos e os lábios, estimulados
por um desejo sublime e violento ao mesmo tempo. Tiraram a
roupa com rapidez. O vestido, a camisa de Jin, as anáguas.
Entretanto, o espartilho demonstrou ser um desafio. Jin lhe
acariciou os seios, que seguiam confinados, e ela gemeu ao
sentir o roce através da regata. De repente, teve a impressão
de que não podiam perder mais tempo despindo-se. Ele a
arrastou até a cama, colocou-se em cima e a beijou com
paixão, como se não tivesse ficado satisfeito antes.
Entretanto, Viola era presa da mesma urgência, de modo que
não a surpreendeu.
Acariciou-lhe as costas, percorrendo a pele suave e
suada, enquanto se agarrava a ele por completo para senti-lo
por todo o corpo. Era óbvio que a desejava. Nunca tinha
imaginado que um homem podia desejar de uma forma tão
intensa a uma mulher durante uma noite.
Não obstante, recordou ter chorado diante dele por
culpa de Aidan.
Interrompeu o beijo e lhe introduziu os dedos no cabelo
para lhe afastar a cabeça. Pelo amor de Deus, era um homem
muito bonito! O desejo brilhava em seus olhos e essa boca tão
perfeita era toda dela se assim o desejava.
— Está fazendo por piedade? Porque me viu chorar na
varanda?
Ele a silenciou com um beijo, separou-lhe os lábios e a
fez desejar com ânsia tê-lo dentro de si de novo. Era um
homem apaixonado e versado nessas lides, e seus beijos
tinham sabor de perigo e de entrega por igual. Suas carícias a
tornaram febril.
Viola o afastou de novo.
— Me responda.
— Você o que acha? — Acariciou-lhe um seio com dedos
peritos.
Ela aceitou o toque com prazer.
— Não sei o que pensar.
— Nesse caso, sim. — Jin se inclinou e sugou um de
seus mamilos através do fino tecido da regata.
— Ai, Deus! — Viola estremeceu por inteiro. — Sim, o
que?
—Sim. Antes desta noite não te desejava assim. —
Levantou-lhe a regata até a cintura enquanto agarrava uma
de suas pernas para exortá-la que lhe rodeasse os quadris
com ela e esfregou seus corpos da forma mais íntima. — Tudo
isto o faço por piedade. — Apoiou todo seu peso sobre ela
enquanto que lhe acariciava um mamilo com o polegar,
enlouquecendo-a e avivando seu desejo. — Me dá piedade,
Viola Carlyle, e o único que desejo é te consolar.
Ela se agarrou a sua cintura e arqueou o corpo,
enfebrecida ao sentir o duro roce de sua ereção. Escutou-o
emitir um gemido rouco. Esse era o poder que ostentava
sobre ele.
— Acredito que está mentindo — conseguiu replicar,
apanhada entre o colchão e seu corpo. Apanhada no paraíso.
Jin lhe agarrou uma mão.
— É obvio que estou mentindo — lhe assegurou
enquanto introduzia sua mão entre seus corpos e a obrigava
a acariciar seu pênis.
Era suave e duro, e estava muito quente. Jin a
encorajou a mover a mão com os olhos fechados e os dentes
apertados. Vê-lo assim lhe provocou um estremecimento.
Depois de um momento e com evidente relutância, lhe soltou
a mão e enterrou os dedos no seu cabelo.
— Viola? — perguntou-lhe com voz rouca.
— O que? — sussurrou ela, livre para acariciá-lo como
quisesse, assustada e eufórica por essa possibilidade.
— Você decide.
Viola exalou um suspiro.
— Você decide como o fazemos. E quando. — Jin estava
rígido pela tensão. Sua expressão, seus braços e seus
ombros. — Mas te rogo que não demore muito em se decidir.
Viola tremia pela emoção e o prazer.
— Eu decido? Por completo?
— Sim.
Soltou-o.
— Deite de costas, marinheiro.
Jin abriu os olhos, separou-se dela até ficar convexo de
lado no colchão e esboçou um sorriso que a deixou sem
fôlego.
— Sim, minha capitã — replicou enquanto que se
colocava de costas.
Tinha-o todo para ela. Para fazê-lo novamente e como
quisesse.
E ele parecia gostar da situação. Claro que no fundo era
sua capitã e lhe devia obediência. Como tinha demonstrado
ser um excelente segundo de bordo nos assuntos
relacionados com a intendência do navio, também
demonstrou possuir excepcionais qualidades de outra índole
nesse instante. Em um dado momento, entre as ardentes
carícias e os beijos, o que Viola queria se converteu no
mesmo que ele queria. Ou talvez ambos estiveram de acordo
desde o começo.
Quando por fim conseguiu recuperar-se depois da
euforia do prazer, encontrou-se montada em um canalha,
exausta e satisfeita. Ele esboçava de novo um sorriso e as
estrelinhas seguiam sendo tão brilhantes como sempre,
embora talvez um tanto imprecisas.
Se aconchegou a ele, com uma bochecha apoiada sobre
seu torso. Seus sentidos se embriagaram com o aroma da
fumaça da cana-de-açúcar, do mar e do homem, lhe
impedindo de conciliar o sono. A respiração de Jin era
profunda, e seu peito subia e baixava com tranquilidade.
Entretanto, a mão que tinha colocado na base de suas costas,
assim como o braço que a rodeava não estavam relaxados.
Aidan nunca a tinha abraçado. Sempre partia quando
acabavam.
— Está me abraçando. Não se vá.
Jin replicou com voz rouca:
— Estou muito cansado para me mover.
Um pouco antes, primeiro na escada e depois na cama,
ele não parecia estar cansado absolutamente. Claro que os
homens eram capazes de levantar-se da tumba se havia sexo
por meio, e o desejo que sentiam um pelo outro era
extraordinário. O que explicava por que tinha deixado de
pensar em Aidan desde que conheceu Jin Seton. Apesar das
mentiras que contavam às jovenzinhas, os homens sabiam a
verdade: o desejo de fornicar era mais poderoso do que a
razão e os princípios morais. Como exemplo bastava o caso
de seu pai e de sua mãe.
Viola disse tudo isso sem esgrimir desculpa alguma.
Entretanto, as dúvidas sobre sua capacidade de ver as coisas
com claridade abriram caminho em seu interior. Acariciou
seu abdômen suado e duro com a palma da mão. Jin pareceu
conter o fôlego antes de soltá-lo devagar. Sob a palma de sua
mão, sentia o calor de seu corpo, o batimento do coração e
sentiu algo estranho no coração.
Engoliu saliva para livrar do nó que tinha na garganta e,
controlando a voz, disse:
— Deveria partir.
—Deveria. — Fez uma pausa. — Me está ordenando que
saia deste camarote ou do navio?
A veneziana rangeu sob o impacto de uma cálida rajada
de ar tropical. Das árvores chegava o canto das cigarras, que
se mesclava com o chapinhar da água.
— Vou ganhar — murmurou ela. — Está se
apaixonando por mim.
— Nem sonhe com isso.
— Mas vou ganhar. E quando o fizer, ficarei com sua
nova embarcação e terá que retornar ao lugar de que veio e
me deixar em paz.
Jin se separou dela e mudou suas posições tão rápido
que só alcançou a olhá-lo com os olhos arregalados, sem
possibilidade de dissimular seu assombro. Tomou seu rosto
entre as mãos, essas mãos fortes e grandes. Quando falou, fê-
lo sem deixar de olhá-la nos olhos.
— Viola Carlyle, veja se coloca isto na cabeça de uma
vez por todas: não irei sem você.
Viola sentiu que o coração lhe subia à garganta.
— Terá que fazê-lo.
— Levar-te-ei para casa queira ou não.
— Seton, vai perder. Já está perdendo.
Ele há olhou um instante mais em silêncio e depois fez
algo inesperado. inclinou-se e a beijou. Foi um beijo tenro e
maravilhoso, ideado para agradá-la como se a aposta fosse ao
contrário e estivesse tentando que se apaixonasse por ele. E a
agradou, certamente.
Quando se afastou, olhou-a de novo em silêncio, soltou-
a e se deitou outra vez.
— Durma, bruxa.
— Não me dê ordens.
Ouviu-o rir baixo.
No entanto, não a abraçou. Mas tampouco partiu.
15

— Maldita seja!
A faca caiu no convés. Jin tirou a mão do leme do barco
e atravessou pelo casco, já que estava de barriga para cima.
Viu que o sangue brotava do corte que feito de um lado a
outro da palma.
— Maldita seja!
Ele tinha merecido por permitir uma noite sem dormir.
Permitir-se...
Pequeno Billy o olhou com curiosidade da proa do barco.
— Cuidado, capitão. Está afiada.
Jin passou a mão ilesa pelo rosto e depois a levou a
nuca enquanto observava como o sangue se amontoava ao
redor da ferida, embora mal sentisse dor. O sol de meia
amanhã se refletia sobre a doca e a água lambia os lados do
navio que tinham adiante. Poucas semanas antes, tinha
olhado para Tempestade de Abril tal como fazia nesse
momento e tinha cometido o tremendo engano de pensar que
seria fácil encurralar uma mulher como Viola Carlyle. Não era
uma mulher que seguisse ordens sem pigarrear. mostrou-se
desafiante inclusive quando faziam o amor.
A noite sensual foi aliviada pelo assalto do vento do
Norte. Ao longe, viam-se cristas brancas coroando as ondas,
mais à frente do porto, e a brisa enchia as velas e agitava os
cabos. Se o vento seguisse soprando toda a semana,
navegariam a bom ritmo para a Inglaterra.
Um dia a mais. Acreditava na honestidade de Viola,
embora ele não tivesse tanta certeza de que ela estava sã.
Relutantemente ou não, partiria quando lhe dissesse que
devia fazê-lo... quando lhe dissesse o que devia dizer para
obter seu objetivo de levar uma dama para casa. Uma dama a
quem não devia fazer amor.
Uma cabeça ruiva apareceu a seu lado.
— Melhor costurar isso, senhor. — O grumete olhou as
gotas de sangue que manchavam a coberta.
— Obrigado, Gui. Farei-o.
O rosto do moço não tinha a vitalidade de costume.
Durante toda a manhã, os marinheiros tinham estado
chegando ao navio com o rabo entre as pernas. Como cães
castigados que tinham falhado a seu amo.
Jin sentiu a tensão no pescoço. Nenhum homem deveria
acabar reduzido a isso. Maldita fosse, estavam de licença,
mas todos e cada um deles se desculpou com ele por deixar
que os incendiários escapassem. O feitiço que ela lhes tinha
jogado era pura bruxaria. Nesse momento, todos se
ocupavam de tarefas menores como se estivessem
preparando Tempestade de Abril para retornarem ao mar em
vez de jogar âncora no abrigo do porto. Enquanto ele estava
lá de pé no convés, sangrando.
Ele tirou o lenço e o enrolou na mão.
— Que corte mais feio — comentou Gui.
— O capitão não está acostumado a ser torpe — replicou
Billy com seu habitual bom humor. — O mesmo não dormiu
ontem à noite com tanta emoção é isso. — Esboçou um
sorriso irregular. — Eu não prego o olho depois de uma
batalha.
Jin apertou o lenço com o punho. Não deveria ter
sucumbido a ela. Não só era uma mulher teimosa,
apaixonada e decidida. Também era uma mulher com o
coração ferido. Porque tinha se aproveitado disso.
Não foi seu melhor momento.
Ela tinha acreditado que ele tinha piedade dela. Apertou
o lenço com mais força, provocando dor, e apertou os dentes.
Não se compadeceria absolutamente dessa bruxa descarada.
Ele foi estimulado pela necessidade de apagar a dor e a
confusão de seus enormes olhos violetas. E a luxúria. Uma
luxúria que ainda não tinha satisfeito. Sua boca, suas mãos,
suas pernas fortes e torneadas… Bastava-lhe pensar nela
para excitar-se. E sua voz, esses doces gritos de prazer…
Engoliu saliva e piscou.
— Capitão? Está bem?
— Acerte o leme — ordenou.
Oxalá estivesse somente enfeitiçado. Mas o que sentia
era outra coisa, muito mais do que ele queria contemplar... E
se negava a contemplá-lo. Um homem que trazia as cicatrizes
que os grilhões tinham deixado em seus pulsos não merecia
uma dama que por seu sangue e sua posição pertencia aos
salões de baile londrinos, por mais que tivesse se afastado
desse lugar. Ele se encarregaria de que recuperasse sua vida,
e assim saldaria sua dívida. Nada se interporia em seu
caminho, nem por teimosia dela nem seu próprio desejo.
Concentrou-se de novo na tarefa, mas o sangue tinha
encharcado o lenço e a mão escorregou uma vez mais.
— Por todos os infernos!
— Eu não gosto de te ouvir amaldiçoar — disse uma voz
acetinada a suas costas.
Viola vestia sua roupa de marinheiro mais uma vez, seu
habitual casaco e o chapéu, e não o vestido estragado que ele
tinha tirado a toda pressa para tocar sua pele. Entretanto,
estava tão impaciente para entrar nela que não tinha lhe
tirado a roupa interior, e em sua imaginação se via como um
moço inexperiente. Suas mãos sabiam que a seus olhos
gostaria do que iriam ver.
Viu-a esboçar um minúsculo sorriso.
— Billy, Gui, podem ir — disse ele. Os moços
obedeceram.
Envolveu de novo a mão com o lenço.
— Como foi à entrevista?
— Há muito sangue. Deveria curar esse corte.
— O que disse ao chefe do porto?
— Tenho iodo e ataduras em mi...
— Maldita seja, mulher, me responda!
— Não me dê ordens. E não te direi nada até que me
deixe curar essa ferida como é devido. — Olhou a navalha. —
Se cortou com essa navalha velha? Poderia infectar-se em um
abrir e fechar de olhos. E perderia a mão.
Esta mão desejava acariciar a curva de sua bochecha
exposta ao sol, explorar de novo o corpo que tinha sido seu
na escuridão.
Retornou ao trabalho.
— Nesse caso, porei um gancho de ferro para espantar
as mulheres irritantes.
Viola pôs as mãos sobre os quadris enquanto a brisa lhe
agitava o cabelo ao redor do rosto e dos ombros.
— Está de muito mal-humor. — Soltou uma gargalhada.
— Não dormiu?
— Seus roncos me despertaram. — Parecia muito mal-
humorado, pensou.
Embora não estivesse de bom humor, Viola tirava o pior
dele. Tirava o louco obcecado pela luxúria. Esses olhos
violetas o faziam pensar em lençóis revoltos e corpos
entrelaçados; e seus lábios... nublou-se a vista ao imaginar
esses lábios ao redor de seu...
— Eu não ronco.
— Sim, ronca — replicou, exasperado. — O que há?
Nenhum homem reuniu a coragem necessária para lhe dizer
Violet, a Vil que ronca como um estivador bêbado? — Soltou
o cabo e pôs-se a andar para a passarela.
— Nenhum outro homem esteve a meu lado enquanto
dormia.
Isso o deteve.
— Não acredito em você.
— Porco.
— Nunca?
Viu-a soprar.
O coração pulou uma batida e sentiu algo frio e
resistente, como o pânico que sentiu durante a noite, quando
por um instante acreditou havê-la desvirginado. Desterrou o
medo.
— É obvio. — obrigou-se a soltar uma gargalhada
desdenhosa. — Isso seria como se um lorde permitisse que
seu ajudante de câmara o visse dormir, não? Não pode
permitir que seus criados a vejam em um estado vulnerável.
Melhor dizendo, seus acólitos. — Ou um antigo escravo cujo
primeiro amo lhe disse que era um animal pela violência que
viu nele... Era impossível lutar contra a natureza.
— É um caipira — resmungou ela.
Afastou-se de Viola pela passarela, com a cabeça em
uma confusão. Entretanto, embargava-o o desenquadrado
desejo de retornar e lhe contar a verdade, de lhe dizer que
nunca havia sentido as carícias de uma mulher como as dela,
que jamais lhe tinha sido difícil abandonar a cama de uma
mulher até que ela chegou à sua.
Tinha permitido que a visse dormir.
Quando despertou antes do amanhecer, observou seu
peito subindo e baixando com tranquilidade, seus lábios
carnudos e seu queixo arrebitado, suas bonitas
características em repouso, suavizadas pelo sono. Mas Viola
não lhe pertencia para poder abraçá-la; e se afastou de seu
lado sem voltar a tomar o que desejava dela.
Nesse momento, seus passos o seguiram-no.
— Você deve me acompanhar no escritório do chefe do
porto. Eu assegurei-lhe que eu lhe daria o dinheiro a tempo,
mas ele não acreditou em mim. Somente a menção do seu
nome despertou seu interesse. Parece que sua reputação o
precede. E parece que você não tem má reputação nos portos
ingleses
Jin virou-se para olhá-la.
— Por que tenho que recordá-la uma vez mais que tenho
patente de corso da Armada Real?
Viola se aproximou dele, quase tanto como aquele
primeiro dia quando esteve prisioneiro em seu navio, quase
tanto como na noite anterior. Ele viajou com aqueles olhos
escuros
— Admito que é difícil de acreditar. Eu acho difícil
acreditar que um homem como você aceite alegremente a ser
amarrado, parece-me improvável. — Um brilho interrogante
lhe iluminava os olhos, e deixava entrever mais coisas que
suas palavras.
O coração de Jin desbocou. Era impossível. Não estava
feito para ela, nem sequer para satisfazer um desejo de forma
temporária. Ela podia aspirar a mais.
— Não se confunda, Viola — se obrigou a dizer. —
Somente faço aquilo que me convém.
O sorriso desapareceu de seus lábios.
— Nesse caso, aconselho-te que me acompanhe ao
escritório do chefe do porto agora mesmo ou você acabará no
cárcere com todos nós. E tenho certeza de que isso não te
conviria mesmo. — afastou-se pelo convés. — Mas primeiro
curarei sua mão. E é uma ordem, segundo.
Viu-a desaparecer sob a coberta com um nó no peito. A
seu redor, fez-se um silêncio muito curioso. Os marinheiros
permaneciam imóveis, observando-o.
— Aqueles ganchos de ferro! — gritou. — Preparem-se
para levantar a âncora. — Subiu as escadas que davam ao
leme, onde Mattie o recebeu com o cenho franzido e
meneando a cabeça.
— O que você disse para ela ficar tão rígida depois da
noite passada e o que foi aquilo?
— Nada de sua incumbência. Ponha rumo a esses
manguezais, a cerca de cinquenta metros do porto. Vamos
ancorar ali.
— Você disse algo que ela não gostou? Ou fez algo? Algo
que você não deveria fazer. Você a confundiu?
— É um imbecil embevecido como outros.
Mattie franziu o cenho.
— Eu não gosto que tratem mal às damas. — O tom
brusco era uma advertência. — E esta não merece.
Jin olhou a seu timoneiro com cara de poucos amigos.
— Decide agora se quer me ajudar ou ficar contra, Matt.
Mas a estas alturas, se decidir pôr as coisas difíceis, se
assegure de dormir com uma adaga à mão.
O gigante ficou branco.
— Conhecemo-nos há quinze anos. Você não seria
capaz.
— Me ponha à prova.
Jin desceu à coberta principal e depois à escada da
câmara, afligido por uma raiva inusitada. Tinha ameaçado
um homem a quem conhecia desde que era um moço. Claro
que Mattie sabia melhor que ninguém do que ele era capaz.
Tinha-o visto com seus próprios olhos. Eram imagens que
não desapareciam da mente de um homem. Jamais. Da
mesma maneira que os ditos atos jamais abandonavam a
alma de um homem.
O navio virou a boca no porto como uma taturana,
avançando a contragosto. Jin atravessou o curto corredor que
levava ao camarote da capitã. Estava vazio, e muito
ordenado, já que a cama em que tinha satisfeito seu desejo
com uma mulher de sangue aristocrático estava pulcramente
feita. A luneta já não se achava sobre a escrivaninha e tinha
sido substituído por um estojo de primeiro socorros de
madeira, cujas gavetas estavam etiquetadas, e por pedaços de
algodão.
Agarrou a garrafa de álcool iodado e jogou uma gota em
uma ponta do lenço antes de tirar a improvisada bandagem e
mover a mão. O sangue voltou a brotar da ferida. Fechou o
punho, e também os olhos, enquanto aspirava seu aroma,
que o rodeava por completo. Cheirava a rosa e a mulher
endemoniada.
— Dá-te medo que arda? — Sua risada lhe chegou da
porta como uma cascata que caísse das pedras até a praia.
Tinha o chapéu pendurado de um dedo.
Jin apertou o lenço impregnado de iodo sobre a ferida.
— Tem medo de ficar tonto quando vê o sangue? —
Viola se aproximou.
— Tenho treze anos sendo mulher, Seton. Estou quase
segura de que vi mais sangue do que você verá na vida.
— Bonita imagem. — esfregou o lenço contra a ferida
para desinfetá-la, sem sentir a ardência. — Acredito que
conviria refrear essa encantadora honestidade quando estiver
vivendo de novo na casa de seu pai, em Devonshire.
Viu-a titubear um momento.
— A casa de meu pai me pertence agora e se encontra
em Massachusetts.
O sangue seguia brotando com cada passar do lenço.
— Que incompetente. — Viola agarrou o algodão da
mesa e segurou sua mão, pondo o algodão sobre o corte e
pressionando com força. — Está há anos capitaneando seu
próprio navio e ainda não sabe como curar uma ferida?
Sabia. À perfeição, é obvio. Tinha curado tantas feridas
de seus marinheiros que tinha perdido a conta. Mas não
tinha desejo de cortar a hemorragia ainda. Esse dia queria
sangrar.
Com o cenho franzido, Viola agarrou a garrafa e
impregnou outra parte do algodão, que colocou sobre a
ferida, estendendo o anti-séptico com movimentos destros e
seguros. Enquanto isso, seus finos dedos o acariciavam, tal
como tinha feito quando o abraçou à luz da lua.
— De verdade não lhes importam nada? Não sente nada
por eles? — Cravou o olhar em seu rosto enquanto ela
trabalhava em excesso na tarefa que tinha entre mãos. — Não
se comove que quem lhe chama irmã e filha sigam esperando
que volte? Que lhe considerem parte de sua família?
Viu-a abrir uma gaveta do armário e tirar uma garrafa
selada com cera.
— Não sabe do que fala.
— Sim, eu sei.
Viola trabalhava com rapidez, tão destra nessa tarefa
como era na hora de dobrar a sua tripulação a fim de que
fizessem sua vontade. Com movimentos suaves, aplicou o
linimento pela palma de sua mão antes de colocar um pano
sobre a ferida e segurá-lo com uma bandagem, que procedeu
a atar para depois soltar sua mão, em seguida, limpou suas
mãos e colocou os remédios no armário. Quando acabou,
fechou-o e guardou a chave no bolso antes de pôr as mãos
sobre os quadris.
— Não aperte o punho se puder evitá-lo. E não use a
mão, salvo para as tarefas mais insignificantes. — Piscou,
como se lhe acabasse de ocorrer uma tarefa não tão
insignificante. — Sempre que poder evitá-lo — repetiu com
certa tensão.
Bonita, atrevida e tímida, confundida como uma virgem,
tudo em uma só mulher. Pela primeira vez no dia, Jin se
encontrou sorrindo, de modo que disse sem pensar:
— E se não poder evitá-lo?
Ela afastou a vista.
— Nesse caso, conheço um ferreiro estupendo que
poderia ter pronto um gancho de ferro em menos de uma
semana. — Agarrou o armário e o colocou no chão, ao pé de
seu catre.
Apesar do grande capote que ocultava suas curvas, Jin
era incapaz de afastar o olhar dela. Poderia passar uma
eternidade contemplando-a enquanto ela se movia, ria,
rebolava os quadris ou permanecia imóvel no tombadilho com
o cabelo ondeando ao vento.
O calor o assaltou... mas era um calor desconhecido,
insistente, que não nascia do desejo. O coração acelerou,
pulsando a um ritmo que só tinha experimentado uma vez na
vida, doze anos atrás. Quando fugiu de seus amos e escapou
através dos campos de cana-de-açúcar. O coração acelerou
da mesma maneira quando lhe fraquejaram as pernas,
exaustas pela fome, com os pés descalços lhe sangrando
pelos canas secas, e seus perseguidores lhe deram caça.
Quando por fim o apanharam, defendeu-se.
Obrigou-se a falar.
— Por que se nega a voltar para casa, Viola? Não pode
desejar viver para sempre desta maneira. — Não precisava
que apontasse a madeira desgastada das paredes nem a
janelinha de seu diminuto camarote, nem os móveis irregular
que mantinha em bom estado sem a ajuda de um criado, só a
de um grumete de sete anos. — Poderia ter muito mais.
Nasceu para ter mais.
— O senhor Castle passou por aqui enquanto eu estava
no escritório do chefe do porto? — Seu precioso rosto
permanecia imóvel.
E essa era sua resposta. O mesmo que ele suspeitava
apesar da noite anterior.
— Não.
Viola pôs-se a andar para a porta enquanto colocava o
chapéu.
— Na cidade recebi notícias sobre o fogo.
Aparentemente, ele se espalhou para um segundo campo,
mas ninguém sabe se chegou a casa. Oxalá estejam todos
bem. — Depois disso, desceu ao convés de canhões. Os
marinheiros a saudaram levando a mão à boina e ela lhes
respondeu com sorrisos, como de costume, mas estava
distraída. Tinha a cabeça em outro lugar. E, aparentemente,
o mesmo podia dizer-se de seu coração. Que estava com
Aidan Castle.
— Mandei Matouba a cavalo — disse. — Deve estar a
ponto de voltar com notícias.
Ela o olhou de esguelha antes de subir a escada de
caminho à coberta principal. Os marinheiros moviam o
guincho, liberando as cordas enquanto cantarolava uma
velha canção e movendo a enorme corrente de âncora, metro
a metro. Jin ordenou que baixassem um bote antes de
encarregar Becoua que arriassem as velas e terminassem
outras tarefas. Ele ignorou o olhar assassino de Mattie e
abandonou Tempestade de Abril junto a sua capitã em
direção ao porto e, dali, à cidade.
O chefe do porto rodeou a escrivaninha com a mão
estendida.
— Senhor Seton, se tivesse sabido ontem à noite quem
era, o teria convidado para almoçar hoje. Mas terei que me
conformar com o jantar desta noite. É obvio, a senhorita Daly
também está convidada. Uma lástima que não tenha visto o
capitão Eccles. Acaba de zarpar para Havana. O capitão
lamentará não havê-lo visto.
— Acredito que não o conheço, senhor.
— É obvio que o conhece. — O chefe do porto aproximou
uma cadeira e fez um gesto a Viola para que se sentasse,
coisa que ela fez, mas com muita indecisão e com os olhos
arregalados.
O chefe do porto voltou a sentar.
— Segundo Eccles, a última vez que se viram ele ainda
não era capitão de seu próprio navio e navegava sob o
comando do capitão Halloway.
— Ah, o segundo de bordo no comando de Halloway .
— Aquele desagradável assunto do pirata Redstone e
aquele conde, como se chamava? Poole? — O chefe do porto
subtraiu importância e começou a procurar algo na gaveta de
sua escrivaninha. — Mas foi uma história muito boa. Minha
esposa e eu achamos muita graça. Eccles deixou isso para
você no caso de que aparecesse pelo porto. É curioso que
tenha aparecido apenas duas semanas depois que ele veio
aqui. — Deslizou o sobre lacrado pela a mesa.
Jin o meteu no bolso do colete.
— Agradeço-lhe o convite para jantar esta noite, senhor.
Mas o que é isso de multa para Tempestade de Abril? Você
me dará permissão para ir a Tobago a fim de retirar os
recursos do banco da senhorita Daly e retornar com a
quantidade estipulada em quinze dias?
— É obvio, é obvio. Não somos selvagens. — O homem
soltou uma gargalhada e ficou em pé. — Mas não até manhã,
depois de ter saboreado a torta de carne de porco e gelatina
da minha esposa. Um homem não viveu plenamente até não
ter provado sua torta de carne de porco. — deu-se uns
tapinhas na barriga antes de acompanhá-los até a porta. —
Por sinal, Seton, tenho que lhe agradecer que apreendesse
Estella no inverno passado. Esses piratas cubanos se
abordaram pelo menos dois navios mercantes carregados que
saíram deste porto e suspeito que também um terceiro
desaparecido que nunca se soube nada mais. São homens
brutais. Brutais, sim, a julgar pelas histórias que contaram
os sobreviventes. Claro que tampouco houve tantos. —
Meneou a cabeça antes de colocar uma mão no ombro de Jin.
— Alegra-me ter um navio como Cavalier por estas águas.
Onde está esse rápido veleiro?
— Atualmente está indisposto, senhor.
— Na doca seca, com certeza. Enfim, devolva-o logo à
água onde poderá ajudar aos homens de bem. E não
cheguem tarde ao jantar ou minha senhora vai me
repreender. As sete em ponto, nem um minuto a mais. —
Fechou a porta.
De volta à rua, entre compradores que passavam com
carretas cheias de produtos habituais em uma cidade
portuária, Viola o olhou.
— Os ingleses são as pessoas mais extravagantes que
conheci na vida. E sabem disso, verdade?
Sob o brilhante céu equatorial, o sangue de Jin corria
devagar por suas veias depois de ter banido a raiva por
enquanto. Isso era ao que se acostumara, para que se
adestrou durante uma década. Para esse jogo que fingia que
seu passado não existia, um passado que só foi escravo,
assassino e ladrão.
— Claro que sabem — respondeu.
Viola o observava oculta pela asa de seu chapéu.
— Suponho que o preferem como aliado que como
inimigo.
Não viu motivo algum para replicar, no final, ela voltara
a falar.
— Tenho que ir a uma loja. Meu vestido ficou destroçado
depois de montar a cavalo ontem à noite e... e... — calou-se
de repente. — Talvez possa me esperar no hotel.
— Como desejar.
Observou-a afastar-se pela rua porque lhe pareceu
impossível não fazê-lo, por mais que quisesse. Duas mulheres
com sombrinhas de rendas se afastaram a toda pressa ao
passar junto dela. Olharam-na, com as cabeças muito juntas,
enquanto cochichavam.
Jin se dirigiu ao hotel. Tirou a carta do bolso do colete
quando entrou na taberna. Sentou-se a uma mesa em um
canto, com as costas contra a parede, e abriu a carta com
sua faca.
Não era do Comandante do Almirantado. Nem sequer do
visconde Colin Gray, seu antigo parceiro no Clube Falcon. A
caligrafia era delicada e pertencia a outro membro do clube
cada vez mais reduzido; em concreto, à única mulher agente,
uma dama com recursos de sobra e muitos contatos no
Almirantado, o suficiente para enviar dúzias de cartas por
todo o oceano Atlântico em sua busca. Uma dama que não o
teria feito sem um bom motivo.
Aparentemente, Constance Read precisava dele.

Londres, 12 de abril de 1818


Querido Jin:
Tomara que esteja bem quando receber esta carta. Mas
não vou perder tempo com bons desejos que não lhe
interessam. Irei ao ponto.
Nosso amigo Wyn não está bem. Ele se recusa a admitir,
mas fala por enigmas mais do que nunca, mostra-se evasivo e
não permite me aproximar dele. Mas temo por ele. Não me cabe
a menor dúvida de que Colin escreveu para você: tem um
projeto para você no Este. Escrevo-te para te suplicar que leve
Wyn, que lhe dê um propósito nesta vida e uma distração que
o cure. Jinan, acredito que neste momento é o único entre
nosso reduzido grupo de amigos que pode ajudá-lo a apagar o
passado e começar do zero.
Digo adeus com a esperança de que você volte para a
Inglaterra em breve. Com carinho,
Constance
Wyn Yale, nascido no deserto galês, sentia-se mais
cômodo em Londres, em Paris ou inclusive na Calcutá do que
no País de Gales. Nem sequer tinham a mesma idade, mas
segundo Constance, o galés não encontrava seu lugar em
nenhuma parte.
Dentre os cinco membros do Clube Falcon, Wyn era o
mais indicado para o trabalho de encontrar pessoas famosas
e desaparecidas e devolvê-las para casa. Colin, o visconde de
Gray e secretário do clube, era um líder, um homem
destinado a ocupar um posto de poder, não a esconder-se
entre as sombras, Leam Blackwood tinha entrado a
contragosto, evitando assim as responsabilidades que o
afogavam como nobre escocês, mas nesse momento tinha
abandonado o trabalho. Mas antes que Leam deixasse o
clube, tinha convidado a sua jovem prima, Constance Read, a
unir-se ao grupo. Ela tinha submerso no trabalho com
devoção, indo de um evento social a outro, deslumbrando a
todos com seu engenho e sua beleza, ao mesmo tempo em
que obtinha os segredos que escapavam das bocas de alguns
informantes que não sabiam o que revelavam. Quanto a ele,
sua busca de redenção tinha feito que o clube fosse perfeito.
Durante um tempo.
Entretanto, Wyn era um espião dos pés à cabeça. Estava
feito para algo melhor que o clube, como Viola Carlyle foi feito
para algo melhor que ser uma pirata.
Releu a carta de Constance. Tinha-lhe escrito porque
acreditava ser a pessoa mais indicada para ajudar a seu
amigo galés. Porque era o único deles que tinha matado a
sangue frio.
Podia ajudar Wyn e mitigar a preocupação de
Constance. Escreveria nesse mesmo dia uma carta ao galés,
que residia em Londres, e a enviaria antes de partir para a
Inglaterra com Viola. Oferecer-lhe-ia uma tarefa que esse
jovenzinho tolo e cavalheiresco seria incapaz de rechaçar. Jin
tinha bem impregnado seu jovem companheiro. Quando
chegasse a Inglaterra com Viola, Wyn os estaria esperando,
disposto a ajudar.
Aproximou-se da chaminé e arrojou a carta de
Constance ao fogo.
— Uma carta de amor de uma jovem que você não quer,
Seton?

****

Aidan Castle estava a suas costas, com um chicote


fortemente apertado entre os dedos. — Talvez já tivesse mais
que de sobra agora. — Parecia justo o que era, um plantador
modesto, um homem de certo status bem-vestido, embora
não à última moda. Entretanto, tinha o rosto tenso. Ele
tampouco tinha dormido.
— Tome uma taça comigo, Castle. — Apontou uma
cadeira. — Vai ser útil depois da noite que passou.
— Uma taça ou dez. Sim, me viria bem. — Uma
garçonete lhes levou uma garrafa.
— Queria lhe agradecer a ajuda que me prestou ontem à
noite. — Castle agarrou a taça. — Seu homem, Matouba,
disse-me tudo quando chegou esta manhã. Contou-me do
balandro. — Jogou um olhar pela taberna. — As notícias
voam em uma ilha. É obvio, agora todo mundo sabe.
— O que aconteceu depois que nós viemos embora?
— O fogo não alcançou a casa. Mas queimou o
armazém, o estábulo e dois campos de trabalho antes que
pudéssemos frear seu avanço. — Meneou a cabeça e bebeu
um bom gole. — Há rastros do fogo por toda parte. A casa
estava inabitável até que seja limpa de cima abaixo.
Jin serviu-lhe outra bebida. Castle bebeu apoiado na
parte de trás da cadeira, finalmente soltou o chicote.
— Tenho certeza de que foi Palmerston — resmungou,
com a língua solta pela bebida ou, talvez, pela falta de sono.
Um homem revelava muitas coisas nessa situação.
— Seu vizinho?
— É da mesma opinião que meu primo. Acredita que se
os plantadores como eu seguimos usando trabalhadores, e
temos êxito, a ilha insistirá em abolir a escravidão. Faz
negócios com Curação de vez em quando. Nenhum outro
plantador da região o faz. A maioria os considera pouco mais
que mercenários.
Jin sabia muito bem. Em outro tempo, ele trabalhou
para os ilhéus holandeses.
— Poderia ser uma coincidência.
Castle negou com a cabeça.
— Palmerston já me ameaçou.
— É normal que um homem ameace quando acredita
que seus interesses estão em perigo.
Os olhos de Castle relampejaram. Nesse momento, com
uma abrupta mudança de atitude que quase fez com que Jin
tivesse lástima, agarrou a garrafa e preencheu o copo.
— Como está Violet hoje? Não quero nem pensar em
como a afetou tudo isto. Viu-se envolta no caos assim que
chegou.
Jin o observou, precaveu-se da tensão de sua
mandíbula e da expressão receosa de seus olhos, embora
quisesse aparentar naturalidade.
— Dada a profissão da senhorita Daly — replicou, —
acredito que está acostumada a este tipo de situações. — A
lástima não desapareceu, mas ia acompanhada de outra
emoção menos agradável. Apesar de sua tolice com lady Hat,
esse homem gostava de Viola. — Preocupado com sua
segurança e a de seus convidados.
— Conta-lhe essas coisas? Isso quer dizer que você
ganhou sua confiança?
Jin considerou o motivo pelo que ela tinha navegado
durante um mês ao Sul dessa ilha sem que ele soubesse.
— Somente em certos assuntos.
Nesse instante, viu a mesma suspeita e ciúme que
apareceram nos olhos de Castle na noite anterior. De repente,
seu caminho ficou claro. Esse homem poderia ser seu
aliado... mesmo que ele não estivesse ciente desse papel.
Escolheu as palavras com supremo cuidado.
— Deu-me a impressão de que se desgostou com ela por
perseguir os incendiários. Dado seu longo relacionamento,
devia saber que o faria.
Castle meneou a cabeça.
— A verdade, Seton, é que não sei o que fazer com ela.
Nunca soube. — Soltou uma gargalhada, uma dessas
gargalhadas fingidas nas conversações entre homens, mas no
fundo de seus olhos Jin viu o cuidado com o qual ele também
escolheu suas palavras. — Como trabalhou com ela, já deve
saber ao que me refiro. Sempre foi assim, teimosa, obstinada
e sem entender tudo o que vê e o que ouve.
Sim aos dois primeiros epítetos. Mas não ao último.
Viola entendia o que queria entender.
Mas com essa tentativa de rebaixá-la ante ele, Castle lhe
proporcionou a oportunidade perfeita.
— Talvez seja sua natureza — comentou. — E tem a ver
com sua educação.
— Sua educação? — Castle o olhou com estranheza. —
Fionn era um homem teimoso, certo, mas também racional, e
com uma mente muito ativa. Conheceu-o em pessoa?
— Só conheço seu pai adotivo — ele respondeu
levemente, — o homem que a criou como se fosse sua própria
filha antes que deixasse a Inglaterra.
Castle o olhou fixamente.
— Pai adotivo? Não entendo. Sua mãe era inglesa, já sei.
Mas depois de sua morte, Fionn e sua irmã criaram Violet
sozinhos.
Assaltou-o uma profunda satisfação. Castle não tinha a
menor idéia da verdadeira identidade de Viola. Era impossível
que fingisse tão bem sua surpresa.
Mas estava prestes a descobrir. Ele iria usá-lo, da
mesma maneira que estava usando seus homens há anos.
Castle estava cortejando aos Hat por seus contatos e sua
riqueza. Mas trocaria de direção assim que soubesse a que
família pertencia Viola. Ele não hesitaria em pedir-lhe que
voltasse para seu lado.
E, ao empurrá-la aos braços desse homem, ele poderia
libertar-se da necessidade de tê-la entre os seus. Obteria o
que desejava, saldaria sua dívida e ela também conseguiria o
que desejava. O sério e formal Aidan Castle, pertencente a
um estado social mais ou menos modesto, tinha trabalhado
duro para conseguir fortuna e status social. Nunca tinha
matado um homem para conseguir seus objetivos, nem
roubado ou mentido. E tinha afeto por Viola.
— Até que Fionn Daly a trouxe para a América contra
sua vontade quando tinha dez anos — acrescentou, — viveu
em uma propriedade na costa de Devonshire. Sua mãe, filha
de um cavalheiro de família enriquecida, foi infiel a seu
marido. A senhorita Daly foi produto de uma relação ilícita.
Castle não podia estar mais surpreso. Ele proferiu
apenas uma palavra, uma palavra que fez Jin revirar seu
estômago, por triunfo e também por algo menos satisfatório.
— Propriedade?
— O marido de sua mãe era um barão. Um aristocrata.
— Fez uma pausa. — O barão Carlyle, chamou-a Viola, e
embora sempre esteve a par de sua verdadeira paternidade,
sempre a considerou como sua verdadeira filha.
Castle moveu os lábios, mas no final só conseguiu emitir
um assobio afogado.
— A filha de um aristocrata. Pelo amor de Deus, jamais
teria imaginado isso.
— Não?
Castle franziu o cenho.
— Como eu poderia mesmo pensar? Ela é uma mulher
do mar desde que a conheci. — O cenho desapareceu. — A
mais bonita que tenha sulcado o Atlântico, verdade, mas...
uma aristocrata? — Meneou a cabeça. E o brilho do ciúme
reapareceu em seu olhar. — Como se inteirou de tudo isto?
Ela contou?
— Conheci sua família antes de partir da Inglaterra. Vim
aqui, de fato, para levá-la de volta para casa. Ao lado de Lord
Carlyle — acrescentou. Embora não fosse necessário. Os
olhos de Castle reluziam, nem tanto pela surpresa como pelo
alívio e a emoção. De fato, olhava-o com menos intensidade,
como se por fim o entendesse.
Quando em realidade não entendia nada. Não entendia
absolutamente o que ele estava renunciando para que Viola
tivesse o que deveria ter.
— Interrompo? — Viola apareceu junto a eles, com um
pacote espesso sob o braço.
Jin ficou em pé e Castle o imitou. Viola o olhou com
curiosidade antes de desviar o olhar para o plantador, em um
ponto que sua expressão se suavizou.
— Está bem, Aidan? E seu primo e os Hat? Como estão
lidando com isso hoje? Ouvi na loja que conseguiram sufocar
o fogo antes do amanhecer.
Castle o olhou de esguelha enquanto a agarrava pela
mão.
— Estamos todos bem. Seamus e eu. E também os Hat,
que se transladaram ao hotel com sua filha. E você, Vi... —
Pigarreou. — Violet, como está?
— Bem. Sinto que não conseguimos pegar os
incendiários, Aidan. Sua plantação deve ter sofrido
tremendos danos.
— Perdemos um quarto dessa safra e agora a casa é
inabitável. — Soltou uma risadinha incômoda. — É obvio, já
não tenho um teto para te oferecer minha hospitalidade.
— Isso é uma tolice dadas às circunstâncias —
resmungou ela. Jin tirou uma moeda do bolso e a deixou na
mesa.
— Tenho trabalho a fazer. Devo partir, Castle. —
Recolheu o chapéu. — Senhorita Daly, vou enviar-lhe o barco
para procurá-la. — Fez uma reverência.
— Obrigado pelo convite, Seton. E pela conversa.
Jin partiu. Viola o observou enquanto se afastava. Não
queria que se fosse. Mas esse dia se mostrou muito
contraditório, confundindo-a com suas palavras e com seus
atos; entretanto, bastava-lhe olhar para que se sentisse arder
lá onde ele a tocara. Um ardor doce e inquietante que a
punha de muito mau humor.
Voltou-se a contragosto para o outro homem de sua vida
e que a confundia... ou talvez já não fizesse parte de sua vida.
Aidan a olhava fixamente.
— Por que me olha assim? — perguntou-lhe.
— Como?
— Como se me visse pela primeira vez, quando em
realidade passamos toda à tarde de ontem juntos. — antes
que o visse beijar a senhorita Hat.
— Não sei a que se refere, Violet. Está dizendo tolices. —
Deu-lhe um toque debaixo do queixo.
Ela afastou o rosto e lhe perguntou:
— O que vai fazer agora?
— O que você quer dizer?
— À plantação, é obvio.
Aidan olhou a seu redor antes de reparar em sua roupa.
Parecia refletir sobre o assunto antes de tomar uma decisão
silenciosa.
— Gostaria de dar um passeio comigo? Estou tão
cansado que se me sentar, tenho certeza de que adormeço. —
pôs-se a rir.
— Você não adormeceu enquanto estava sentado com
senhor Seton. Pareciam muito absorto na conversa. —
Permitiu que a conduzisse para fora da taberna, embora seus
dedos apenas se lhe tocaram o cotovelo. — Do que falavam?
— De você, é obvio.
O coração lhe deu um salto e franziu o cenho.
— Tanto custa você acreditar nisso? — perguntou ele
em voz baixa. — Temos poucas coisas em comum, ou melhor,
uma: nós dois navegamos com você.
Tinham muito mais em comum do que Aidan pensava.
Sentiu que lhe ardiam as bochechas e se alegrou de que o
chapéu ocultasse o rubor. Saíram à rua e Aidan a conduziu
por um caminho que percorria as docas. Jogou uma olhada
ao mar, mas o porto era um formigueiro de atividade e não
viu nem Jin nem seu navio.
— Permite-me que segure o pacote. — Aidan retirou-lhe
o pacote que continha seu novo vestido e roupa interior . — O
que comprou?
— Nada em particular. Aidan, por favor, me diga o que
aconteceu com a plantação.
— Há pouco a contar. Passará bastante tempo antes que
a casa volte a ser habitável. — Entraram por um caminho
ladeado por palmeiras e yucas, enquanto os insetos zumbiam
pelo calor. As gaivotas sobrevoavam, brincando com a brisa
que lhe agitava o chapéu, uma brisa fresca, como gostava os
marinheiros. — Veio com a certeza de que te ofereceria
hospitalidade, assim que peço que me permita pagar a
habitação do hotel. — Sorriu-lhe.
— Só esperava sua companhia, algo do que eu gostaria
de desfrutar com ou sem a estadia de um hotel. Além disso,
disponho de meu camarote no navio.
Aidan a deteve sob uma palmeira.
— Querida, não pretendia insultar sua honra nem exigir
qualquer forma de intimidade que não queira me dar. — Sua
voz soava rouca, com um toque íntimo que fez com que Viola
sentisse um nó no estômago.
— Eu não quis dizer que você fez isso. Além disso, desde
quando você ficou preocupado com minha honra? Desde
quando você acha que eu já tive isso?
Aidan esboçou um enorme sorriso.
— Por favor, fique no hotel esta noite, eu irei cobrir os
gastos. É obvio, estarei na plantação até tarde, fiscalizando os
trabalhadores. Mas me aliviará saber que está instalada
comodamente aqui. — Deu-lhe um aperto na mão. —
Reconheço o invólucro. — Apontou o pacote. — Você comprou
algo em uma costureira.
Ela assentiu com a cabeça.
— Você vai colocá-lo esta noite para o jantar?
— Sim, mas para o jantar com o chefe do porto.
Convidou para jantar senhor Seton e a mim. — Os nervos
agarraram seu interior.
— Uma grande honra.
— No final, ele disse que, pelo menos, desfrutaremos de
uma excelente torta de carne de porco. — Franziu o cenho. —
Aidan...
— Bom amanhã, então. Você vai vestir seu novo vestido
para mim amanhã? Levar-te-ei a Chaguanas e a convidarei
para almoçar na melhor casa de chá que possa imaginar.
Melhor do que em Boston, e tenho certeza ainda melhor do
que em Londres.
— Desde quando você está interessado nas casas de chá
em Londres? Amanhã tenho que trabalhar, é obvio. Mas o
mais importante é que você também terá muitas coisas que
fazer. E seus convidados...
Aidan lhe apertou a mão ainda mais forte.
— Nada disso importa agora que está comigo e podemos
começar a planejar nosso futuro juntos. — Seus olhos
esverdeados tinham um olhar implorante.
O coração de Viola afundou.
— Aidan, por favor, deixe disso agora. — Escapou de
sua mão. — Eu vi você beijar lady Hat ontem à noite no
jardim.
Ele ficou branco.
— Viu-nos?
— Sim, o vi. Eu estava no alpendre.
—Não foi nada, Violet.
— Pois me pareceu algo.
Aidan franziu o cenho e pareceu retesar os ombros.
— Enfim, se a beijei, foi porque você me provocou.
— Eu fiz o que? Acabava de percorrer centenas de
milhas para te ver!
— Acreditava que tinha que entregar um carregamento.
— A Tempestade de Abril é uma embarcação corsária,
não uma mula de carga. Aceitei o carregamento para
amortizar a viagem. Tenho que pagar minha tripulação, ou
você esqueceu os detalhes mundanos da minha vida?
— Talvez tenham me esquecido. Mas, Violet, você
esqueceu do meu? Eu tenho vivido aqui sozinho há meses.
Esperava que quando chegasse... — interrompeu-se e passou
uma mão pelo cabelo antes de olhá-la aos olhos. — Quando
me despedi ontem à noite de você, estava... distante.
Ela arregalou os olhos ao escutá-lo. Entretanto, via-se
de novo ao pé da escada, imobilizada pelo olhar cristalino e
apaixonado de um homem em particular.
— Eu não sabia o que esperava de mim ontem à noite —
conseguiu replicar. — Supus que dada à presença de seus
convidados, queria ser discreto. Não estamos casados.
Aidan meneou a cabeça.
— Certamente que não esperava isso de você. Me
perdoe, falei sem pensar. Mas, Violet...
— Deveria ter me contado a verdade do que sente por
lady Hat. Encontrando essa rejeição assim que cheguei...
Enfim, doeu-me.
Ele pegou as mãos novamente.
— Violet, por favor. Estou muito nervoso e me comporto
de maneira irracional. Embora seus pais desejem o enlace e
vieram com a intenção de que assim fosse, não sinto nada
por ela. Mas vi sua situação com Seton e foi como se...
— Que situação com Seton?
Aidan titubeou.
— Quando te disse que tomasse cuidado com ele,
defendeu-o.
— Limitei-me a sugerir que reservasse sua opinião até
conhecê-lo.
— E você o conhece? — Os olhos esverdeados se
cravaram nela. — Até que ponto, Violet?
Foi incapaz de deter o rubor que se estendeu por suas
bochechas. Não era boa em mentir, embora tampouco sabia
se devia fazê-lo nesse momento. Aidan não lhe tinha sido fiel.
A noite anterior acreditou que já não queria casar-se com ela.
Mas não, sua intenção não era machucar o homem que tinha
amado durante tanto tempo, que tinha sido seu amigo antes
que seu amante. Nesse momento, parecia conhecer muito
poucas verdades a respeito de sua vida. Não precisava
conhecer essa verdade em concreto.
— É um bom homem. — Acreditava, apesar da sua
confusão e do passado de Jin. Sua vida era um fiel reflexo
desse fato e, além disso, demonstrava-o no comportamento
que tinha mantido com sua tripulação (jamais cruel, sempre
respeitoso e justo). Inclusive com ela era honesto, embora
estivesse ciente por que ele a procurara. Não lhe tinha feito
falsas promessas. Limitou-se a lhe contar a verdade e
explicar qual era sua intenção. — Confio nele.
— Confiança. — Aidan tinha os lábios muito tensos. —
O olha como se...
— Como se o que?
— Quando o olha, não te reconheço.
— Como pode dizer isso? Agora me conhece muito
pouco. Algumas cartas e uma visita em quatro anos não
oferecem muita intimidade.
Aidan lhe agarrou as mãos com tanta força que só
poderia libertar-se lutando.
— Pode ser que tenha razão e já não nos conheçamos
tão bem como antes. Mas deixe que recuperemos a
intimidade que compartilhamos em outros momentos. Fique
comigo durante um tempo. Não lhe faltará nada.
— Acaba de dizer que sua casa não é habitável.
Ele esboçou um sorriso cálido.
— Vamos consertar isso, como planejamos há anos.
— O que me diz da senhorita Hat e de seus pais?
Aidan inclinou a cabeça.
— Eles estão prestes a deixar a ilha. Mas mesmo que
não fosse assim, não importa. Querida Violet, rogo-te que me
perdoe essa pequena indiscrição. Por favor, me perdoe.
Prometo-te que não voltará a acontecer.
Para ela não tinha sido uma pequena indiscrição. Em
um abrir e fechar de olhos, esse único beijo tinha partido seu
mundo em dois. Ou talvez só tivesse aumentado uma fissura
já existente. E Jinan Seton tinha enchido o vazio. Durante
um momento, entre seus braços, tinha arremetido a solidão
que era sua constante companheira.
Entretanto, ali estava o homem com quem tinha
sonhado compartilhar sua vida, insistindo em que poderia
fazer realidade o dito sonho.
Meneou a cabeça.
— Eu não confio em você.
— Mas poderia voltar a fazê-lo?
— Segue querendo se casar comigo, Aidan?
— É obvio, querida Violet. Você é a melhor coisa que me
aconteceu na vida. Sempre foi.
As mesmas palavras que lhe havia dito antes, em
numerosas ocasiões. Nesse momento, foi incapaz de olhá-lo
no rosto, de modo que cravou o olhar nas enormes mãos que
seguravam as suas. Muito familiares, mas, ao mesmo tempo,
a familiaridade lhe parecia errônea.
— Por favor, me solte.
Ele obedeceu rápido.
— Tenho trabalho que fazer. Tenho que conseguir outro
carregamento para pagar a viagem de volta para casa em
Tempestade de Abril. Talvez encontremos um navio inimigo
no caminho e nos façamos com um saque, mas, é obvio, não
posso dá-lo por feito.
— Mas este será seu lar agora, Violet.
— Necessito tempo para pensar. — Não tinha planejado
voltar para Boston tão cedo. Não até que as palavras saíram
de sua boca. — Sei que só foi um beijo. Enfim, suponho que
só foi um beijo...
— Foi.
— Mas a situação mudou muito para mim. — Não era a
mesma moça ingênua de antes. Além disso, estava-lhe
ocultando toda a verdade. — Talvez possa voltar amanhã, ou
depois de amanhã, e seja capaz de falar do tema contigo. Mas
ainda não.
Aidan assentiu com a cabeça. Fez gesto de segurar suas
mãos uma vez mais, mas pensou melhor.
— Pois até manhã. — inclinou-se para ela e lhe deu um
beijo na bochecha por debaixo da aba do chapéu.
Ela não levantou a cabeça, e depois de um momento,
Aidan se afastou.
16

Enquanto o sol brilhava depois do horizonte, na boca da


baía, a esposa do chefe do porto enviou a Viola um convite
por escrito. Ela estava tirando da caixa o vestido novo, cujo
tecido parecia firme e grossa graças ao engomado, quando
recebeu a nota junto com outra. Leu-a, a luz de um abajur
com as mãos suadas. Junto a eles jantariam outros seis
convidados entre os quais se incluíam dois oficiais navais e
suas respectivas esposas.
A outra mensagem era de Aidan. Desdobrou-o para ler.
Alguém bateu na porta do camarote. Ao abrir, sentiu-se
como uma idiota. Como era possível que lhe afrouxassem os
joelhos só olhando Jin Seton?
Usava uma jaqueta simples e elegante, que se amoldava
a seus ombros e a seu esbelto torso como se a tivessem
confeccionado a medida. A camisa, a gravata e o colete eram
brancos, e tinha se barbeado.
Seus olhos azuis lhe deram uma rápida olhada.
— Ainda não se arrumou para o jantar?
— Não vou — soltou apertando as mãos atrás de suas
costas, enrugando as cartas. — É que...
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Tenho outro compromisso esta noite — disse. —
Com...
Jin levantou uma mão para silenciá-la. A mão ferida que
ela tinha insistido em curar só para poder tocá-lo de novo.
Essa manhã, ferida e indignada depois que ele deixasse
claras suas intenções, não percebeu o motivo de sua
insistência. Mas nesse momento entendia perfeitamente. E
sabia que não podia acompanhar esse homem a um jantar
com desconhecidos e comportar-se como era devido. Não
recordava como se fazia. De fato, jamais tinha aprendido a
fazê-lo. Entretanto, só olhando o porte seguro e elegante
desse antigo pirata sabia que ele não teria problemas. Ele,
sim, seria capaz de comportar-se de igual para igual com o
chefe do porto e seus convidados, embora não pudesse
superá-los no vestir nem nas maneiras.
— Não é necessário que me explique isso — lhe disse. —
É teu assunto. Transladarei suas desculpas aos anfitriões.
— Obrigada. — Viola mordeu o lábio. — Acredito.
Viu-o esboçar um sorrisinho e o coração lhe deu um
salto, chocando de algum modo com o estômago, de modo
que acabou sentindo náuseas.
— Não sei o que significa «transladar suas desculpas» —
admitiu.
— Vou inventar uma história credível para evitar que os
anfitriões sejam ofendidos pelo anúncio da sua ausência no
último minuto. Suspeito que deseja continuar em bons
términos com o chefe do porto.
— Sinto muito. Tinha um compromisso prévio para
jantar com... com o senhor Castle, no hotel. Não tive
oportunidade de lhe dizer isso antes.
Ele assentiu com a cabeça.
— Nesse caso, passe uma boa noite.
— Reservou quartos para todos nós no hotel. — Apontou
as cartas enrugadas. — Para os Hat e para mim. E para você.
Ele disse que espera que você aceite seu convite para ocupar
um alojamento confortável, pois não pode oferecer-lhe a
hospitalidade de sua casa como esperávamos. Como eu
esperava.
Jin inclinou a cabeça.
— Devo entender que se me negar e sigo me alojando no
navio considerará motivo de rebelião sobre a aposta?
Viola não pôde conter um sorriso.
— Certamente.
— Nesse caso, pode estar tranquila porque passarei a
noite no hotel. — Voltou-se para partir, mas se deteve. —
Entretanto, não o farei em qualidade de convidado do senhor
Castle. Pagarei minha própria habitação.
Viola sentiu que lhe acelerava o pulso.
— Além da arrogância, sofre de um orgulho
desmesurado, não?
Ele a olhou em silêncio.
— O orgulho tem pouco que ver. Boa noite, Viola.
Seguiu durante todo um minuto no vão da porta de seu
camarote, escutando os rangidos de seu navio e o silêncio
prevalecente dada a ausência da maioria da tripulação.
Então, preparou uma pequena bolsa de viagem. Não havia
planos para jantar com Aidan essa noite. Na nota, limitava-se
a lhe suplicar que aceitasse sua oferta para descansar
comodamente no hotel essa noite enquanto ele tentava limpar
a casa o suficiente para sua volta. Suspeitava que os Hat
também estariam alojados no hotel e que possivelmente
também jantariam ali. Entretanto, duvidava de que Aidan os
visitasse depois das promessas dessa tarde. Tinha-lhe
parecido sinceramente arrependido de seu erro e disposto a
começar do zero com ela.
Então, se transladaria ao hotel, tomaria um banho e
lavaria o cabelo com sabão. Depois, dormiria entre lençóis
limpos em um colchão seco e pela manhã levantaria
descansada. Porque com a manhã chegaria o fim da aposta e
devia estar preparada para discutir outra vez com Seton
quando lhe exigisse que retornasse a Inglaterra.
Nessa ocasião, pensou ganharia.
Na loja também tinha comprado uma nova camisola que
se ajustava à cintura com um cordão e se abotoava no peito
mediante fitas. Uma vez que esteve no modesto e limpo
quarto do hotel, banhou-se e colocou a roupa nova.
Continuando, penteou-se, e seu cabelo insistia em ondular-se
já que a umidade da noite tropical impedia que secasse por
completo. Os cachos se agarravam à sua testa e à nuca.
Aproximou-se da janela e a abriu. A brisa lhe agitou o
cabelo e a camisola, que se colava ao corpo. Sentiu seu roce
nos mamilos. De repente, recordou as carícias dos lábios de
Jin e a invadiu o desejo, lhe debilitando as extremidades e lhe
provocando um grande ardor entre as coxas. Ainda seguia
um pouco dolorida, mas se sentia palpitante. Uma simples
lembrança e seu corpo estava ansioso por acolhê-lo de novo.
Era inquietante. E... maravilhoso.
Agarrou-se ao batente da janela enquanto contemplava
as resplandecentes e escuras águas da baía. Os mastros de
Tempestade de Abril eram os mais altos de todos. Nenhuma
outra embarcação atracada no porto fazia sombra quanto ao
tamanho, embora algumas fossem mais novas.
Contemplou o bergantim de seu pai à luz da lua e sentiu
a conhecida pontada de dor por sua ausência que nesses
momentos eram como uma sombra em seu interior. Deveria
trocar de navio, sim, mas carecia de recursos para comprar
uma nova embarcação. Sem Tempestade de Abril, ficaria sem
trabalho, a menos que se arrolasse no navio de outro capitão.
Uma opção que nem sequer contemplava, é obvio. As
mulheres nos navios só podiam ocupar uma posição: a de
putas.
Teria que conseguir quatro ou cinco saques valiosos
para começar sequer a expor a idéia de comprar outro navio
do mesmo tamanho. Entretanto, os saques escasseavam, já
que as guerras se disputavam muito ao Norte. Se continuava
nas ilhas, talvez capturasse um par de piratas mexicanos ou
cubanos. Não obstante, frente a esse tipo de inimigo corria o
risco de acabar morta, ou algo pior, sobretudo em águas que
lhe eram desconhecidas.
Necessitava do navio que descansava na doca de
Boston. O navio novo de Jin Seton. Necessitava que perdesse
a aposta.
Essa manhã, irritou-se com ela porque a desejava.
Saltava à vista e ela não era estúpida o suficiente para
ignorá-lo. Entretanto, não queria desejá-la. Talvez porque o
desejo era muito intenso? Mais do que gostaria? Até o ponto
de apaixonar-se por ela e perder a aposta?
Parecia um tanto desatinado. Talvez só estivesse irritado
pelo cansaço, como ela. Ou talvez não. Talvez. Ainda, pudesse
proclamar-se ganhadora. Talvez se, se entregasse de novo a
ele, Jin Selton acabasse apaixonando-se.
Pelo menos, podia tentá-lo.
Seguiu obstinada no batente, mas lhe tremiam os dedos.
Tirou o velho relógio de seu pai, sem corrente de ouro a essas
alturas, já que teve que vendê-lo há muito tempo para
adquirir alguma coisa necessária para o navio que já nem
recordava. Eram dez horas, há essa hora ele deveria ter
chegado ao hotel. Embora não soubesse que quarto ocupava.
Seu pulso acelerou. Não podia aparecer em seu quarto e
seduzi-lo sem mais. Ou sim?
Sim que podia. Se soubesse em que quarto se alojava.
Mas não podia perguntar na recepção.
Meteu-se na cama e se aconchegou, com os nervos a flor
de pele e o corpo tenso. Já lhe ocorreria algo. Fechou os olhos
para pensar, mas acabou recordando sua boca, suas mãos,
seu queixo e seus olhos. Depois, recordou como a tinha
olhado e tocado, como se não pudesse saciar-se dela. E como
ela tinha desejado que não a deixasse jamais. Como tinha
desejado que o momento não acabasse. Nunca.
Despertou sobressaltada ao escutar vozes no corredor.
O abajur de sua mesinha de noite seguia acesa, mas a vela
que descansava no suporte da chaminé estava consumida.
Sacudiu a cabeça para acordar e aguçou o ouvido.
Sentiu que lhe derretiam as vísceras. Era ele. Com o
senhor Hat?
Saiu da cama sem fazer ruído e colou uma orelha à
porta.
Esteve a ponto de soltar uma risadinha, mas conseguiu
contê-la. Por Deus! A noite anterior se precipitaram um sobre
o outro em cima de uma vela caída de uma escada. Que
sentido tinha que andasse nas pontas dos pés a essas
alturas?
Não obstante, essa noite era diferente. Essa noite, ia
buscá-lo e ele a aceitasse, nenhum poderia atribuí-lo a uma
explosão repentina de paixão.
Não escutou vozes femininas, só as dos dois homens.
Mas antes devia assegurar-se quem eram os dois cavalheiros
no corredor, porque parecia que estavam desejando boa
noite. Tirou o ferrolho da porta e, com dedos trêmulos, girou
o trinco para abrir e aparecer no corredor.
Jin Seton se encontrava a uns três metros de distância.
Seus olhos se cravaram nela, depois do qual voltou a olhar ao
senhor Hat, que nesse momento lhe dizia:
— Boa noite, Seton. Foi um prazer conhecê-lo.
— Desejo a você e a sua família uma boa viagem,
senhor. — Voltou-se e caminhou pelo corredor até deter-se na
última porta. Uma vez ali, tirou uma chave, abriu e entrou.
O senhor Hat desapareceu escada acima. Viola fechou a
porta, voltou para a cama e se sentou na borda. Tremiam-lhe
as mãos. Tremia-lhe todo o corpo.
Não era, absolutamente, como na noite anterior. Não
poderia fazê-lo. Mas se o fizesse, ganharia a aposta.
Tremiam-lhe inclusive os lábios e tinha a impressão de
que os pulmões não funcionavam a plena capacidade.
Colocou os pés no chão, começando pelos dedos e acabando
pelos talões. Endireitou-se e caminhou até a porta.
A tênue luz do corredor, procedente de um candelabro
situado na escada inferior, sua habitação parecia estar a
quilômetros de distância. Entretanto, ela era Violet, a Vil. Ela
mesma tinha posto esse apelido, é obvio, mas o nome se
espalhou depois de receber vários prisioneiros importantes
por ano. E antes disso, também tinha ajudado seu pai a
capturar vários navios inimigos. Tinha afundado a infame
Cavalier, pelo amor de Deus! Não teria problemas para
conquistar o seu capitão.
Caminhou até sua porta. O trinco girou sob sua mão.
Entrou sem chamar.
Viu-o sentado a uma pequena mesa. Seus penetrantes
olhos a olhavam fixamente. Tinha um livro na mão ferida e a
outra empunhava uma faca escondida na bota de cano alto.
— Não a lance! — exclamou. — Embora suponho que
você gostaria fazê-lo.
Ele acabou de tirar a arma e a deixou sobre a mesa.
— Não agora, embora sim em outros momentos. —
Soltou o livro e ficou em pé.
Tirou a jaqueta e o colete. Um par de suspensórios se
penduravam do cinto de suas calças. Já não usava gravata e
desabotoara a gola da camisa. A luz dourada da vela
ressaltava seu poderoso e varonil corpo. Viola descobriu que
era difícil para ela respirar.
— Por que você não colocou a trava?
— Não me dei conta de que havia uma.
— Ah, não?
— Estou cansado e distraído, refletindo sobre os
acontecimentos desta noite. Deste dia.
Para Viola pareceu sincero. Como sempre. Salvo essa
manhã, quando atuou de forma estranha como se estivesse
assustado, algo incomum nele.
— Não foi porque esperava que eu viesse te ver? — Seus
olhos a olharam com certo receio.
— O que faz acordada? Tem toda a pinta de ter estado
dormindo.
— Ah, sim?
Ele a apontou com uma mão.
— O cabelo.
Viola levou uma mão à cabeça. Tinha todo o cabelo
encaracolado e embaraçado, já que tinha secado
parcialmente enquanto dormia. Por Deus! Não sabia como
seduzir um homem nessas circunstâncias. Não tinha contado
com uma mãe que a instruísse, com uma irmã mais velha e
nem com ninguém.
Entretanto, contava com seu instinto e com a
experiência dos anos passados junto aos marinheiros. De
modo que sabia o que mais os homens gostavam nas
mulheres. Levou a mão ao seio e desatou a fita da camisola,
depois há afastou um pouco.
— Pois não o olhe — replicou com voz trêmula.
Ela puxou a camisola pelos ombros e deixou que caísse
pelos braços. Estava seminua diante dele, com o coração
acelerado, mas já não tremia. Decidiu-se.
Ele não se moveu. Nem sequer lhe olhou os seios.
Entretanto, nesses olhos frios como o gelo e iluminados pela
luz da vela, reconheceu o brilho da paixão.
— Viola — lhe disse em voz baixa, — não.
Ela engoliu saliva.
— Não?
— Assim não obterá o que quer.
Então ele sabia que ainda esperava ganhar a aposta e
por isso a rechaçava. Não obstante, o desejo seguiu
iluminando seus olhos, e a tensão que se evidenciava em seu
queixo, nos músculos de seu pescoço e nos seus braços
sugeria que não era imune à tentação.
Viola tomou uma baforada de ar para infundir-se
coragem. E outra. Depois, levantou uma mão e deslizou um
solitário dedo entre seus seios. Aidan tinha lhe pedido em
uma ocasião que se tocasse para ele. Naquele tempo, foi
incapaz de fazê-lo, já que estava muito envergonhada pela
petição e por sua incapacidade em agradá-lo com sua simples
nudez. Nesse momento, entretanto, e sob o olhar de Jin,
pareceu-lhe o mais natural do mundo acariciar a curva de
um seio e passar os dedos sobre a aréola. Devia agradá-lo.
Queria agradá-lo. Parecia-lhe surpreendentemente
satisfatório. Estava se comportando de forma descarada, mas
era honesta.
Ele se aproximou.
Deteve-se frente a ela, afastou-lhe a mão e com voz
rouca lhe disse:
— Me permita.
E, nesse instante, começou a tremer outra vez, mas com
suavidade, devido à emoção e ao desejo mais delirante. Sem
tocá-la, Jin lhe tirou um braço da camisola e depois o outro.
O calor de seu corpo lhe acariciava a pele, mas tinha os
mamilos tão duros como se estivesse gelada. Jin seguiu com
o cordão da cintura. Com muito cuidado, desatou-lhe o laço e
afrouxou a roupa. Em seguida, inclinou a cabeça e pareceu
tomar uma baforada de ar, já que seu torso subiu e desceu
muito devagar. Viola entrecerrou as pálpebras. Ansiava que a
acariciasse. Sentia um formigamento nos seios, cujos
mamilos estavam tão perto do peitilho de sua camisa.
No final e com grande delicadeza, desceu-lhe a camisola
pelos quadris e a roupa caiu ao chão. Não usava mais roupa.
Afinal, preparou-se para ir para a cama.
Viola estendeu os braços para tirar sua camisa da calça
e a passou por sua cabeça. Vê-lo nu lhe produziu uma
repentina embriaguez e lhe afrouxou de novo os joelhos. A
noite anterior não conseguiu ver muito na escuridão. Nesse
momento a luz dourada que banhava sua pele e que fazia
brilhar seus largos ombros lhe provocou um golpe de desejo.
Alongou a mão para acariciar a protuberância na parte da
frente de suas calças. Ele a impediu.
— Ainda não?
— Ainda não — especificou ele. — Mais devagar.
Entretanto, Viola queria tocá-lo. A necessidade de fazê-
lo era dolorosa.
— Já não sou eu quem decide como e quando?
— Isso foi ontem à noite. Esta noite veio me buscar.
Você se colocou em minhas mãos voluntariamente. Hoje eu
decido. — Ele passou o dorso dos dedos por uma bochecha e
depois lhe acariciou o sinal do lábio inferior. — Sabe quão
bonita é? Com a roupa posta. — Sua voz tinha um toque
risonho, mas recuperou a seriedade imediatamente. — Você
não precisa retirá-la para se gostar.
— Os homens me olham com desejo. — E acreditavam
estarem apaixonados, porque não sabiam distinguir uma
coisa da outra. Precisamente a esse fato se agarrava no caso
de Jin. Inclinou a cabeça para receber suas carícias e fechou
os olhos. — Mas os homens são crianças luxuriosas em geral.
— Certamente que somos. — Seus dedos desceram por
seu pescoço, lhe provocando uma miríade de calafrios.
Viola sussurrou:
— Mas você me olha de outra forma.
— Ah, sim? — Acariciou-lhe a curva de um seio com os
nódulos.
— Sim — respondeu, alargando a palavra com um
gemido.
Jin inclinou a cabeça enquanto seguia acariciando seu
seio com as gemas dos dedos, rodeando sua aréola até cobri-
la com a palma da mão. Entretanto, não chegou a acariciar o
endurecido mamilo.
— E como eu olho para você?
— Não sei. — Viola respirava com dificuldade. — Não...
— Arqueou o torso para receber suas carícias. — Oh, Jin... —
Nesse instante ele passou a ponta do polegar sobre seu
mamilo, apenas uma vez. — Oooooh! — Viola sentiu que seu
corpo se estremecia por inteiro. Agarrou-se a seus braços
para manter-se erguida e lhe suplicou: — Outra vez.
— Se o fizer — replicou ele com ironia, — será capaz de
seguir de pé?
— Se o fizer — respondeu ela, — tentarei.
E o fez uma vez e outra mais. O roce desse dedo caloso
sobre o delicado mamilo era sublime, um ato tão simples mas
tão prazeroso. Não necessitou mais para derretê-la. Para que
o desejo a invadisse por completo.
— Não sei se poderei seguir de pé mais tempo —
confessou, falando com rapidez.
Jin a levantou nos braços como se fosse uma menina e
a levou para cama. Não houve brincadeiras, nem risadas,
nem zombou dela por não poder caminhar o escasso metro e
meio que a separava da cama. Não havia nada a provar. Jin
tirou as botas, devorando-a com os olhos enquanto o fazia.
Ele também teve problemas para respirar. Viola o abraçou
quando ele se deitou, e ele colocou seus braços ao redor dela
enquanto a beijava .
Foi como na vez anterior. A mesma união, a mesma
plenitude, como seu primeiro beijo. Jin colocou as mãos os
lados da sua cabeça e ela agarrou seus ombros enquanto
separava os lábios para lhe permitir a entrada. Não a
torturou; entregou-se ao beijo, acariciou-a com a língua e lhe
mordiscou os lábios. Enquanto isso, seus dedos lhe
acariciavam o queixo, exploravam seu rosto como se dessa
forma pudesse aumentar as sensações. O calor dessa mão
desceu até seu pescoço e dali até um ombro. Sua boca não
demorou para riscar o mesmo caminho. Viola se agarrava a
seus braços, tremendo com cada carícia e desejando o
momento de que ele se colocasse sobre ela e a penetrasse.
Separou os joelhos com a esperança de evitar lhe confessar
que não podia esperar mais, de evitar lhe suplicar. Nesse
momento sentiu a úmida carícia de sua língua em um
mamilo e as súplicas lhe pareceram uma opção razoável.
Gemeu sob o assalto dessa língua e esqueceu todas as
dúvidas, todas as preocupações sobre o que devia fazer ou
não. Enterrou os dedos no seu cabelo, concentrando-se no
momento, que era o mais importante. A partir desse instante,
nada existia salvo essa deliciosa boca com suas sedutoras
carícias, salvo seu enfebrecido corpo e salvo o desejo. Um
desejo de fazer amor que superava com acréscimo qualquer
outra emoção que jamais tivesse experimentado.
Deslizou os dedos sobre a protuberância na frente de
suas calças. Ele agarrou sua mão e levou-a aos lábios. O
olhar desses olhos azuis a abrasou.
— Não — sussurrou contra sua mão.
— Não? Mas...
Capturou seus lábios com um beijo e ela deu um festim,
desfrutando de seu sabor, de seu calor e da dureza de seu
corpo. Jin a agarrou pelos ombros e a instou a levantar-se de
joelhos para continuar a beijá-la repetidas vezes. Deslizou as
mãos por seus braços e transladou-as a sua cintura,
deixando um rastro ardente a sua passagem. E, depois,
tocou-a entre as coxas. Tocou-a e o mundo chegou a seu fim
e começou de novo.
Porque na noite anterior não havia tocado nesse lugar.
As duas ocasiões tinham sido tão rápidas como uma
tempestade do verão e não tinha havido tempo para nada
mais. Nesse momento, tocava-a de forma tão íntima que se
sentia mudada.
Viola nunca deu muita importância às partes mais
femininas de sua anatomia. Simplesmente serviam para o
que serviam, como todo o resto, e também serviam para obter
prazer com um homem, claro estava agora. Mas jamais tinha
imaginado que podiam ser adoradas dessa forma.
As carícias de Jin foram delicadas no princípio. Ela
estremeceu e os beijos cessaram, mas continuaram com os
lábios juntos. Ele também respirava de forma superficial,
como ela. Em um momento, Viola arqueou o corpo, fechou os
olhos e as carícias adquiriram outro aspecto. O prazer lhe
arrancou um gemido, e cada magistral roce de seus dedos
avivou o desejo. Com cada carícia, Jin lhe dizia que a
controlava dessa maneira, que a dominava e que sabia que
nesse instante ela faria o que ele pedisse. Viola se deixou
levar, arrastada pela paixão e sem lhe importar a derrota.
— Viola, abre os olhos — ele lhe disse, sussurrando
contra sua testa. — Me olhe.
Ela obedeceu devagar, já que lhe pesavam as pálpebras
pelo insuportável desejo.
— Sim — claudicou com um suspiro, elevando os
quadris para a mão que a acariciava. Ofegou porque cada
roce de seus dedos avivava o desejo de tê-lo dentro. — Por
quê? — Nesse instante a penetrou com os dedos. — Oh,
Deus!
Enquanto movia os dedos e a possuía de uma forma
sublime, Jin lhe respondeu:
— Quero que veja que sou eu quem está te dando
prazer.
Viola gemeu e começou a mover os quadris, instando-o
a penetrá-la ainda mais, ansiando senti-lo bem dentro.
Enterrou-lhe as mãos no cabelo e replicou:
— Já sei que é você. — Beijou-o, mas o desejo era muito
intenso, quase doloroso. Levantou os quadris, frenética por
causa da agonia. — Jin, agora, por favor. Não posso suportar
mais.
— Sim, pode.
— Não!
— Não só vai suportar — insistiu ele com voz rouca,
enquanto voltava a deixá-la estendida sobre o colchão. — Vai
pedir-me mais. — Aumentou a cadência de seus dedos,
separou-lhe os joelhos e se inclinou para acariciá-la com a
boca.
Viola não lhe pediu mais. Suplicou.
Rogou.
Entre gemidos desesperados. Porque jamais tinha
experimentado nada semelhante. Jamais tinha imaginado
que um homem pudesse agradar de uma forma tão deliciosa.
Entretanto, cada vez que chegava a borda do êxtase, cada vez
que estava a ponto de conseguir o que mais ansiava, ele o
negava. As carícias ardentes e delicadas de sua língua a
enlouqueceram enquanto a penetrava com os dedos até que o
prazer se converteu em uma tortura tão insuportável que
seus lábios só foram capazes de expressar um desejo:
— Por favor — suplicou, obstinada aos lençóis. — Deixe-
me agradá-lo também.
Isso pareceu decidir.
Viola estendeu os braços para recebê-lo e ele a penetrou
imediatamente, rodeando-a com seu corpo e afundando-se
até o fundo dela. O prazer foi tão intenso que teve que conter
um grito de alegria enquanto o abraçava. Por fim estavam
unidos por completo. Seus corpos estavam imóveis, salvo por
suas respirações, que faziam que seus torsos se roçassem.
Jin passou os dedos por seu cabelo, beijou-lhe a testa,
uma bochecha e o pescoço. Enquanto isso, a outra mão lhe
acariciava a cintura e subiu até um seio para rodear um
endurecido mamilo. O roce fez que ela murmurasse seu nome
e se movesse para senti-lo mais dentro, para deleitar-se com
sua presença.
Até que ele começou a se mover muito devagar,
aceitando o prazer que ela lhe deu. Que era incomensurável,
conforme parecia. Porque, embora deveriam havê-lo previsto
(se algum dos dois tivesse podido parar e refletir a respeito),
foi impossível continuar com essa frouxidão. Ela o instou a ir
mais rápido e ele se deixou levar, e entre ambos
demonstraram que não havia necessidade que se incendiasse
uma plantação de cana-de-açúcar, nenhuma cavalgada
frenética, nem um enfrentamento a canhões, nenhuma
escada para exortá-los a copular com uma urgência animal e
experimentar um êxtase divino. A cama rangia como se fosse
romper-se e da garganta de Viola escapavam sons que nunca
antes tinha emitido. Em comparação, as duas vezes
anteriores pareciam controladas; e quando tudo acabou,
sentia-se maravilhosamente saciada e como se lhe tivessem
dado uma surra. Jin, além disso, tinha quatro profundos
arranhões em cada ombro.
— Eu machuquei você — exclamou ela enquanto
tentava recuperar o fôlego.
— Bem, sim. Bruxa. — Jin não parecia satisfeito com os
beijos que tinham compartilhado, de modo que se inclinou
para beijá-la de novo nos lábios.
Entretanto, a carícia dessa boca tão perfeita foi muito, já
que as brasas do êxtase a tinham deixado em excesso
sensível. Talvez ele tivesse exagerado com essas preliminares
sensuais. Nesse momento, voltou a estremecer-se, muito
consciente do corpo que tinha sobre ela. Estava um tanto
assustada.
— Sangra-te a mão de novo — ela disse, acariciando um
braço musculoso. — No final, terá que pôr um gancho de
ferro.
— Terá valido a pena. — Jin se separou dela e se deitou
de costas, lhe agarrando uma mão. De repente, ficou imóvel.
Soltou-lhe a mão, levantou-se e a cobriu com um lençol. Sem
dizer uma palavra, voltou a deitar-se de costas.
Ela se colocou de lado para olhá-lo, dobrando as pernas
e os braços.
— Não tenho frio.
— Você está tremendo.
— Estou esgotada.
— Pois durma.
Na tênue luz do abajur, estava muito bonito. O cabelo
caía sobre sua testa e suas pálpebras estavam meio fechadas.
Suas pestanas escuras contrastavam com o azul gelado de
seus olhos que também poderia ser abrasador.
Viola percebeu que tinha uma mancha vermelha no
único pedaço de roupa que estava vestindo.
— Eu gostaria de limpar suas feridas primeiro.
— Você vai fazê-lo mais tarde — replicou com voz serena
e rouca, como se estivesse a ponto de dormir.
— Você não quer que eu vá embora?
Ele não a olhou nem abriu os olhos para responder:
— Não.
Viola se levantou e o lençol ficou enrugado em seu
regaço.
— Tenho que enfaixar de novo a ferida da mão.
Com um movimento lânguido muito pouco característico
dele, colocou o braço a seu lado, com a palma da mão para
cima.
— Como deseja, bruxa.
Vê-lo assim lhe provocou um formigamento quente em
seu interior. Jin parecia... feliz. Simplesmente feliz.
Esse era o efeito que provocavam os prazeres carnais
nos homens. Ela sabia disso como qualquer mulher que
tivesse vivido entre os homens, toda a vida adulta dela
saberia. Os homens eram crianças simples, ou pelo menos a
maioria deles, e quando estavam fisicamente satisfeitos (seja
para uma boa refeição ou um boa transa), eram felizes.
Entretanto e embora conhecesse muito pouco Jin Seton,
sabia que não era um homem simples. E se não estava
equivocada, a felicidade não era algo típico nele.
Viola saiu da cama e se aproximou da bagagem de Jin,
onde encontrou o que procurava: enfaixa limpas e unguento.
Embora tivesse se oferecido para curar a ferida, como uma
desculpa para tocá-lo, sabia que o capitão de um navio não
era negligente com essas coisas. Muito menos esse homem.
Ela voltou para a cama e removeu a atadura manchada.
Ele continuou se fazendo que dormia enquanto ela o
atendia, embora a ferida devia doer. Era um corte profundo,
embora limpo. Sanaria bem. Enfaixou-o de novo e lhe deixou
a mão sobre o cobertor. Em seguida, agarrou um pouco de
unguento com as gemas dos dedos, inclinou-se e o passou
sobre os arranhões. Sua pele era firme e tenra, como seus
músculos. Ansiou atrasar-se todo o possível para desfrutar de
seu aroma, para poder acariciá-lo. Entretanto, repetiu o
processo no outro ombro e se afastou.
A carícia das ataduras e de sua mão quente nas costas
nuas a desarmou.
Engoliu para livrar do nó que sentia na garganta.
— Não deve usar essa mão.
— Beije-me.
— Não me dê ordem...
— Suplico-lhe que me beije, senhorita Carlyle. — Viola
cedeu e fez o que lhe pedia enquanto ele a acariciava entre as
coxas brevemente antes de deslizar a mão completamente.
Quando ela se afastou, viu que tinha os olhos fechados e que
seus lábios esboçavam um sorrisinho.
— Obrigado — o ouviu murmurar.
— Por te haver curado ou pelo beijo? — O sorriso se
alargou.
Viola puxou o cobertor para agasalhar-se e fechou os
olhos para dormir, arrulhada por estrelinhas.
17

Viola sorriu, esticou-se e estremeceu com a deliciosa dor


que sentiu, e abriu os olhos. A luz do sol filtrou-se pelas
cortinas, derramando seu brilho no quarto.
Sentou-se de repente.
Salvo por sua camisola, que estava no respaldo de uma
cadeira, e por ela mesma, no quarto só havia móveis. Não
havia rastro do homem com quem tinha feito amor de forma
apaixonada apenas horas antes, aquele que pagara por esse
quarto.
Viola ficou imóvel um momento enquanto pensava que
de todas as tolices que tinha cometido ao longo de sua vida,
ter perpetrado essa falta de previsão era talvez a pior de
todas. Como tola que era, não tinha previsto que assim que
terminasse a aposta, ele se afastaria de seu lado, com
independência das circunstâncias.
Nesse instante, a dor não lhe pareceu tão delicioso. De
fato, sentia-se bastante mal, com o estômago revolto e as
pernas sem forças.
Desceu da cama e agarrou a camisola. Ela ficou presa
passando-a sobre sua cabeça, porque seus cabelos se
enroscaram com as fitas. Deu um puxão para passar e
abotoou sobre o peito. Como boa marinheira que era, estava
acostumada a levantar-se com o sol e seu corpo lhe indicou
que ainda era cedo, assim que talvez não cruzasse com
ninguém no corredor. Entretanto, esse mesmo instinto
também lhe havia dito que Jinan Seton estaria ali quando
despertasse. Parecia que seus instintos não era tão confiáveis
como sempre tinha acreditado.
Ao colocar a mão no trinco da porta, deteve-se.
A aposta tinha chegado a seu fim. Ele a tinha deixado.
Mas isso não queria dizer que ela tivesse perdido. De fato,
podia significar que tinha ganho. Se ele tivesse se apaixonado
por ela, tinha que admiti-lo antes de lhe ceder as escrituras
de propriedade de seu novo navio e deixá-la em paz para
sempre. Inclusive nesse momento podia estar a caminho de
Tobago para recolher seus pertences, o que lhe permitiria
comprar o elegante veleiro em Boston. Talvez tenha partido
para cumprir com as condições da aposta.
Ou talvez não.
A seu revolto estômago gostava mais da primeira opção.
Foi a seu quarto, colocou calças, uma camisa e um
colete, pendurou um capote no ombro e agarrou sua bolsa.
Depois de deixar a chave do quarto na recepção, pôs uma
moeda na palma da mão da donzela e saiu à ensolarada
manhã.
Apenas a separavam cinquenta metros da doca. Sam
estava sentado junto a um bote que se balançava sobre as
águas, com uma fibra de palha entre os dentes. Ficou em pé
de um salto e levou a mão à boina.
— Bom dia, capitã. Que tal o hotel? Nunca pisei em um.
— Bom dia, Sam. O hotel estava bem, obrigada.
Subiu ao bote e Sam remou para levá-los ao navio.
Nesse momento, os nervos e a incerteza lhe provocaram uma
espécie de formigamento no estômago. Jin devia estar a
bordo, porque do contrário Sam não a teria estado esperando
na doca.
Subiu a escala e plantou os pés na sólida coberta de seu
navio. Seu lar.
— Agora pode fazer o que quiser — gritou para Sam, que
seguia na água. — Leve o bote, mas volte ao meio-dia para
me levar a terra. — Para negociar um carregamento que
levaria de volta a Boston, tal como havia dito a Aidan que
faria nesse dia.
Pôs-se a andar pela coberta vazia. Só o velho French
estava de guarda, no tombadilho, além dos dois marinheiros
que patrulhavam por coberta. Salvo por esses três homens, o
navio estava deserto.
E com exceção de Jin Seton.
Seu coração subiu a garganta assim que o viu subir as
escadas. Estava como sempre, vestido com simplicidade,
sóbrio e arrumado. Perfeito.
Viu-a e se deteve ao chegar no último degrau. olharam-
se, separados por uma coberta matizada pelas sombras que a
luz matutina arrancava aos mastros e das cordas. Com o
coração acelerado, Viola pôs-se a andar, e ele fez o mesmo,
até que ficaram separados por muito pouca distância. O
coração de Viola deu um salto. Com que palavras iam
começar esse dia?
Entretanto, foi ele quem falou.
— Quando poderá partir?
Ficou sem respiração ao escutá-lo. Seu olhar era muito
sério.
Um nódulo se formou em sua garganta.
— Suponho que esta é sua maneira de me dizer que
ganhou a aposta.
O olhar de Jin permaneceu fixo nela.
Tinha-lhe feito amor e tinha lhe proporcionado um
pouco de prazer, mas quando fizeram a aposta ele prometeu
lhe contar a verdade. Assim que essa era a verdade: não
tinha conseguido que se apaixonasse por ela. E Viola, apesar
do fato de que seu interior protestasse como um furacão, teve
que cumprir as condições acordadas.
— Posso estar pronta em quinze dias. Menos não,
certamente — se escutou dizer sem saber de onde procediam
as palavras. — Preciso concluir as negociações do
carregamento que meu navio levará a Boston. E fazer os
acertos pertinentes com meus homens, é obvio. Becoua
capitaneará Tempestade de Abril de volta a Boston e a
deixará em mãos de Louco.
— Lamento que tenha que voltar para casa contra sua
vontade — se desculpou ele afinal. — Oxalá não fosse assim.
— Falou com uma sinceridade inegável que se cravou no
ventre dela como um arpão. — Viola, eu... — Fez uma pausa.
— Sinto muito.
Sentia por ela. Sentia que tivesse perdido a aposta.
Sentia que não tivesse conseguido fazer com que se
apaixonasse por ela.
Entretanto, nesse sentido ela era a ganhadora. Porque
sentia muito mais que ele. Muito mais. Porque nesse
momento a verdade a golpeou como uma flecha em uma
tempestade. Tinham passado muitos dias desde que desejou
ganhar pelo motivo que aduziu no princípio, sua negativa de
voltar para a Inglaterra. A essas alturas queria ganhar porque
isso significaria que ele a amava e queria que isso
acontecesse. Desejava-o. Jin lhe provocava um desejo
inexplicável, fazendo com que a solidão que a embargava
quando contemplava o crepúsculo a consumisse, e só ele
podia acalmá-la. Estava apaixonada por ele. Nesse instante,
soube que se entregou na noite do incêndio não porque
necessitasse consolo, mas sim porque estava apaixonada.
Apaixonou-se por ele muito antes que atracassem em Porto
Espanha.
Ela embarcou em um jogo muito tolo e tinha perdido.
— Não vou voltar atrás, se for isso o que está
preocupando.
— Sei que não o fará — repôs ele.
Talvez fosse pena o que Jin sentia, mas a distância
desses olhos cristalinos pareceu muito maior naquele
momento.
E em um abrir e fechar de olhos, a ira se apoderou dela.
Talvez o fizesse tão rápido porque tinha antecipado esse final.
No fundo, mesmo na noite anterior, quando foi a seu quarto
decidida a seduzi-lo, soube que perderia. Mas foi a seu
encontro de todas formas.
— Aluguei um balandro — continuou ele. — Hoje
viajarei a Tobago para retirar o dinheiro de meu banco e
pagar a multa de Tempestade de Abril e depois comprarei um
navio para ir rumo ao Este. Foi-me dito que existe um navio
adequado ancorado em Scarborough.
— E por que não passamos por Boston para usar seu
veleiro? — Ela não se importava se eles cruzassem o Atlântico
em uma canoa ou uma fragata com centenas de armas. Dava
tudo no mesmo, naquele momento ela só queria bater a
cabeça contra a parede por causa do quão estúpido era.
Estava cansada de apaixonar-se por homens que não
lhe correspondiam. Aidan nunca a tinha amado. Pronunciava
palavras e fazia o correto. Mas não a tratava com amor. Nesse
momento, via-o com mais claridade que nunca. Talvez porque
o homem que tinha diante de si nunca tinha pronunciado
palavras nem tinha feito o correto, mas o desejava mais do
que jamais tinha desejado Aidan.
Essa debilidade... enfurecia-a. Essa teimosia dela. Essa
ridícula cegueira. A partir desse momento, jamais voltaria a
apaixonar-se por um homem até que ele se apaixonasse por
ela. Jamais. Não ser correspondida doía muito. Doía-lhe
como se lhe tivessem arrancado as vísceras com um arpão.
— Deveríamos partir antes que comece a época das
tempestades — replicou ele. — É melhor não atrasar a
marcha. O veleiro de Boston pode esperar.
— Entendo. — Enviaria uma carta à senhora Digby, a
seus arrendatários e a Louco para lhes fazer saber que
estaria fora bastante tempo. Negociaria um carregamento
para que sua tripulação levasse na viagem de volta e assim
ganhassem um pouco de dinheiro. Tinha muitas coisas que
fazer e nenhum motivo para ficar ali plantada, chorando a
perda de uma devoção não correspondida, salvo que seu
corpo queria permanecer junto ao dele, como se ele fosse o
polo e ela a patética agulha de uma bússola. Secou as palmas
úmidas nas calças. — Devo pôr mãos à obra se quiser que
tudo esteja preparado para quando você voltar de Tobago —
disse com brutalidade. — Estará ausente por duas semanas,
não?
— Sim. — Seus olhos eram muito gélidos nesse
momento.
— De acordo. — Assentiu com a cabeça. — Já nos
veremos, Seton.
Passou junto a ele e se dirigiu para seu camarote, onde
tinha feito amor. Sabia que estava observando-a e esperava
que o afligisse a culpa por obrigá-la a fazer o que não queria.
Entretanto, ele não era tolo e os dois sabiam a verdade. Jin
sempre tinha sabido que esse seria o resultado. Tal como lhe
disse em seu momento, a aposta tinha sido muito infantil.
E ela tinha perdido.
Tinha perdido inclusive a ele antes de tê-lo. Nem toda a
raiva do mundo poderia mitigar a dor que isso lhe provocava.

****

— Senhor Julius Smythe?


Jin levantou a vista do copo de rum que segurava em
uma mão.
— O mesmo — respondeu com voz monótona.
Tudo era monótono nesse tipo de loja de licores tropical,
perdida em uma das ruas menos exploradas de Tobago. A
taberna estava tão perto do escarpado, contra o que rompiam
as ondas a uns poucos metros por debaixo, que mal se
escutava outra coisa. De vez em quando, o grasnido das
gaivotas. Embora eram mais habituais os protestos de sua
consciência.
Observou ao homem como se fosse a primeira vez que o
via. De baixa estatura e compleição magra, com o cabelo
castanho e encaracolado, a pele de ébano e olhos penetrantes
(inglês, africano, espanhol e das Índias Orientais), parecia um
espécime humano de pouca importância. Um mestiço. Não
um homem distinto. Ninguém de renome. Algo que fazia que
era muito bom em seu trabalho. E especialmente útil para
Jin desde que se conheceram já fazia vários anos.
Joshua Bose lhe estendeu a mão, uma farsa que eles
realizavam toda vez que se encontravam, se por acaso alguma
parte interessada os via.
— Sou Gisel Gupta — disse Joshua, aparentemente,
nessa ocasião era das Índias Orientais. — É um prazer
conhecê-lo, senhor.
Jin apontou a cadeira que tinha a sua frente.
— Gostaria de tomar uma taça comigo, Gupta?
— Obrigado, senhor. — Joshua se sentou quase com
elegância, sem apoiar as costas no respaldo. Deixou uma
bolsa de couro na mesa, segura por ambas as mãos. —
Espero que o trajeto até Tobago tenha sido prazeroso.
— Esteve bem. — Tinha sido breve, já que o balandro
que tinha alugado em Porto Espanha era uma embarcação
bastante decente.
— Senhor Smythe, a última vez que nos encontramos
me estava mal informado a respeito da localização do objeto
que busca.
Jin não mostrou sua surpresa, nem sua decepção.
Esperava que nessa ocasião Joshua lhe levasse um cofre. De
fato, tinha rezado para que assim fosse. Entretanto, as preces
dos homens como ele eram surdas para Deus, pois, para ele,
apenas contavam as boas ações. Por um tempo, as ações de
Jin não foram boas. Claro, talvez Deus não existisse. Isso
explicaria muitas coisas.
— Uau — ele se limitou a dizer.
— Veja, a informação que recebi de meu contato no Rio
não me satisfez. Indicou-me que o objeto mudou de mãos em
Caracas, em 1812, quando, de fato e segundo o itinerário que
lhe proporcionei em agosto, parecia impossível que seu
correio pudesse estar em semelhante área por essas datas.
De fato, encontrava-se em Bombaim.
— Então, em Bombaim... — Jin assentiu com a cabeça,
pensativo. Ele não se preocupou com toda essa informação.
Mas Joshua insistiria em contar-lhe tudo, porque adorava os
pormenores de seu trabalho e não podia dizer a ninguém
mais.
Jin só queria o conteúdo desse cofre, se acaso seu
conteúdo permanecia no interior depois de dezesseis anos.
Estava quase seguro de que já não estava ali. Entretanto,
embarcou no jogo. Converteu-se em um professor nesse tipo
de jogos. Como o que tinha jogado com Viola Carlyle três dias
atrás, na coberta de Tempestade de Abril, antes de
abandonar Trindade.
O taberneiro deixou um copo sujo na mesa e olhou com
o cenho franzido o copo cheio de Jin. Então ele torceu a mão
e deixou cair à garrafa na mesa com um baque antes de se
afastar.
Joshua meteu a mão no bolso de seu colete e tirou um
lenço. Com muito cuidado, limpou o copo, dobrou o lenço e o
devolveu ao bolso, e depois aproximou o copo a Jin para que
o enchesse. Depois disto, deu um sorvo e deixou o copo na
mesa.
— Como eu disse, esta informação não me satisfez. De
modo que fui Rio para averiguar a verdade em pessoa. —
Esteve a ponto de esboçar um sorriso. — Me alegro de poder
dizer que no Rio descobri o que sabíamos desde o começo.
O coração de Jin acelerou. Afrouxou um pouco a
pressão que exercia sobre o copo.
— Sério?
Joshua soprou e, nessa ocasião, esboçou um sorriso.
— Bem, sim. Se me permitir, senhor, posso dizer-lhe o
quanto estou feliz em oferecer-lhe as informações para as
quais você me contratou há três anos?
— O permito.
Uma gaivota se dirigiu para a costa, como se fosse um
vigilante no céu azul.. O vento açoitava as folhas de palmeira
que cobriam o telhado da taberna e o sol abrasava tudo o que
não protegia o local. Devido a esse momento, fosse qual fosse
o resultado de sua busca, sempre recordaria desse lugar. Sua
maldição consistia em recordar o que era melhor esquecer,
como a mulher a quem tinha chamado mãe e a última coisa
que ela lhe havia dito antes de permitir que seu marido o
levasse para vendê-lo no mercado de escravos.
— Onde está, Gupta?
— Na posse de Sua Excelência o Bispo Frederick
Baldwin, ministro da Igreja Anglicana. — Removia-se na
cadeira, claramente orgulhoso. — Em sua residência de
Londres, senhor. Está ali por vários anos, como parte de uma
coleção de objetos orientais.
Londres. Não em uma terra longínqua. Não perdido para
sempre, destruído, pois eles devem ter destruído o resto dos
pertences de sua mãe quando morreu cinco anos depois de
terem se livrado de seu filho bastardo.
Em Londres. Onde ele também estaria em finais do
verão, depois que levasse Viola junto a sua família, em
Devonshire.
— Te agradeço, Gupta. — Ficou em pé. — Aonde quer
que lhe envie seus honorários?
Joshua piscou e arregalou os olhos. Jin supôs que
deveria lhe recompensar com algo mais, com alguma
demonstração de satisfação ou de emoção. Mas nesse
momento não tinha ânimos para isso.
Depois de menear a cabeça uma vez, Joshua ficou em
pé e colocou a bolsa debaixo do braço.
— Ao lugar de costume, senhor Smythe. — Jin lhe
tendeu a mão.
— Foi um prazer fazer negócios com você, senhor Gupta.
— O mesmo digo, senhor. Espero que não se esqueça de
Gisel Gupta a próxima vez que necessite de algo.
— Vou entrar em contato com você. — Joshua se
afastou da mesa. — Gupta, um momento, necessito algo de
você. Em Boston.
— É obvio, senhor. Boston é uma bonita cidade.
— Necessito que procure um marinheiro e fale com ele
em meu nome. chama-se Louco.
Dois minutos depois, Joshua abriu passagem entre as
mesas e as cadeiras para sair ao pátio de pedra, onde
esperava seu cavalo, e se afastou.
Jin olhou o copo de rum que não havia tocado. Bem
poderia ter o prazer de comemorá-lo. Estava a três anos
pagando a Joshua Bose para que encontrasse o cofre.
Durante vinte anos tinha pensado nele, imaginando que
continha sua salvação, a chave para descobrir sua verdadeira
identidade. Nesse momento, por fim sabia que estava ao
alcance de sua mão. Entretanto, não gostava de beber rum,
nem nenhum outro licor que sido colocado antes ele nos
últimos três dias.
Três dias, e o doce e apaixonado sabor de Viola ainda
perdurava em sua língua. Três dias, e ainda não tinha
conseguido eliminá-la de seus sentidos. Três dias, e já tinha a
sensação de que tinham passado mil anos.
Ainda a desejava. Desejava que o tocasse, com as mãos
e com esses doces lábios; e desejava ver esses olhos nublados
pela paixão e o desejo enquanto a fazia dele. Desejava-a de
novo. Maldito fosse, desejava-há todos os dias, por um mês.
Durante um ano. Ordenou-se deixar de pensar nela. Não, não
tinha conseguido.
Castle a seguiria até sua casa, tinha certeza. cruzou-se
com o plantador, quando este se dirigia para Tempestade de
Abril e ele deixava Porto Espanha.
Tinha-o orquestrado assim, mas não gostava. Talvez
Castle fosse um tipo irreprochável, mas não gostava desse
mal nascido oportunista.
Não, não. Isso era injusto. Castle não era um mal
nascido. Jin tinha passado a noite com o chefe do porto e
vários oficiais da Armada, além de que com suas esposas,
averiguando coisas a respeito de Aidan Castle, e não tomou
uma surpresa. Castle era o filho de uma família de posses,
embora não fosse rica, de Dorset; um membro respeitável da
classe média inglesa, um homem que poderia tentar
aparentar-se com uma família aristocrática através de uma
filha ilegítima.
Ele era o mal nascido. O bastardo. O homem sem
família nem lar. O mercenário. O ladrão. O assassino que
nunca poderia redimir todos os maus atos que tinha
cometido. Não poderia porque seguia fazendo coisas que eram
contra sua consciência.
Viola não queria retornar a Inglaterra, não queria
abandonar sua vida no mar, e, entretanto, ele a obrigava a
fazê-lo. Talvez sua culpa se visse mitigada pelo que lhe estava
dando em troca. Merecia alguém melhor que Aidan Castle,
mas ela o amava. Talvez essa boa obra o consolasse se seu
próprio desejo não o distraísse.
A viagem duraria entre um mês e seis semanas, sempre
e quando os ventos fossem favoráveis. O bergantim de trinta
canhões que comprou no dia anterior lhes asseguraria uma
viagem cômoda. Embora seria um mês infernal, e
longuíssimo, porque teria que parecer indiferente a ela. Se
voltasse a tocá-la, estaria criando falsas expectativas para
ambos. Ele não era o homem indicado para a senhorita Viola
Carlyle.
Quando ela apareceu em seu quarto de hotel para
seduzi-lo, disse-se que nenhum dos dois sofreria por
desfrutar de outra noite juntos. Entretanto, quando Viola lhe
perguntou se queria que se fosse, sentiu o amalucado
impulso de lhe agarrar a mão uma vez mais e insistir para
que nunca partisse. O pânico que o assaltou naquele
momento ainda o acompanhava.
— Capitão Seton?
Voltou-se enquanto passava a mão pelo punho da
camisa, onde descansava o leve peso de sua adaga, pronta
para ser utilizada a qualquer momento.
— Ahran! Não sabia que teria sorte tão cedo! Na doca me
disseram que tinha tomado esta direção fazia menos de duas
horas. — O oficial naval se aproximou da taberna no lombo
de um bonito tordo25. Usava o uniforme azul e branco com os
galões dourados de sua posição e as condecorações nos
ombros e peito. As suas costas, dois oficiais detiveram seus
cavalos a certa distância, enquanto a brisa agitava as plumas
de seus chapéus.
Jin soltou o punho da adaga e se encaminhou a borda
do abrigo, a pleno sol.
— No que posso ajudá-lo?
O oficial tirou o chapéu e o saudou do cavalo.
— Capitão Daniel Eccles, a seu serviço, senhor.
Eccles, o tenente do Halloway quando a Armada Real
por fim capturou o pirata Redstone.
— O mesmo digo, capitão. — Fez-lhe uma reverência.
Eccles esboçou um sorriso de orelha a orelha.
— Gostaria de tomar uma taça comigo?
— É obvio.

25Cavalo Tordo ― se chama tordo devido o pelo de cor semelhante ao de um pássaro


chamado tordo, isto é, cinza com manchas brancas de várias formas
Eccles fez um gesto a seus oficiais para que
desmontassem e procedeu a realizar as apresentações. Os
dois eram homens de aspecto sério, muito pulcros com seus
uniformizes bem engomados, nada que ver com os
marinheiros de Tempestade de Abril. Entretanto, os homens
de mar eram iguais no fundo. Com poucas palavras,
demonstraram serem homens muito agradáveis e muito
inteligentes. Além disso, ambos eram cavalheiros, como
Eccles.
— A embarcação que ancorou em Scarborough deve ser
a sua — disse Jin, enquanto os via beber. — É
impressionante.
— Sou afortunado de tê-la. Mas não vi Cavalier no porto.
Onde está ancorada, em Crown Point?
— Afundaram-na.
Eccles arregalou os olhos. Seus oficiais se olharam entre
si.
— Afundada? A Cavalier? — Franziu o cenho. — Não
acreditava ser possível, não com você no comando.
— Admito que foi algo inesperado. — Igual ao nó que
sentia no peito e que não se desfazia. — Para onde vão? —
perguntou. — Conforme me contou o chefe do porto de Porto
Espanha, estão sulcando por meses estas águas.
— Ah, já tenho resposta a minha pergunta. Esperava
que lhe entregasse a carta que deixei para você.
— Fê-lo. Obrigado. — Eccles sorriu.
— Quando minha superior imediato me encarrega uma
missão, obedeço-a, é obvio. Tem amigos muito influentes em
Whitehall, Seton. Acredito que estou com um pouco de
ciúmes.
— Um homem com semelhante navio não tem que estar
com ciúmes de ninguém, Eccles.
O oficial soltou uma gargalhada.
— Tem razão. O assunto é que retornaremos a Inglaterra
dentro de pouco tempo. Nosso desdobramento está a ponto
de chegar ao seu fim, só temos que nos reabastecer e seguir
rumo para casa.
Jin se inclinou para diante lentamente, agarrando por
fim o copo de rum. Ali estava sua solução.
— Capitão Eccles, também me encomendaram uma
missão espinhosa para a qual necessito ajuda. Pergunto-me
se você poderia me ajudar.
— Se estiver ao meu alcance, dá-lo por feito. Qualquer
coisa pelo homem que obteve que Cavalier deixasse de
dedicar-se ao roubo para fazer o bem. Redstone não o teria
feito, por mais que o acossássemos. — Olhou para Jin com
seriedade.
Eccles conhecia a verdadeira identidade de Redstone,
como os poucos que estiveram presentes naquele dia, frente
às costas de Devonshire. Não tinham esquecido o pirata
Redstone, que tinha atacado os navios dos ricos aristocratas,
nem tampouco o tinham perdoado de tudo. Era irônico, dado
que foi Jin quem capitaneou Cavalier durante a maior parte
do tempo que Alex Savege foi seu dono. Entretanto, ele tinha
se convertido em um herói enquanto que Alex era o malfeitor
de quem todos desconfiavam, apesar de sua nobre linhagem.
Não, não era irônico. Era uma brincadeira à decência.
— Obrigado — respondeu. — Tenho a honra de conduzir
uma dama desde Trindade a Devonshire. É a filha de lorde
Carlyle. Não me cabe a menor dúvida de que se sentirá muito
mais cômoda a bordo de um navio cheio de oficiais que com
marinheiros comuns.
Eccles assentiu com a cabeça.
— O navio está preparado para levar damas a bordo.
São alojamentos modestos, mas adequados. Minha esposa
nos acompanha e ficará encantada de ter companhia
feminina. Você também nos acompanhará?
— Seguirei-os em minha embarcação. — Eccles voltou a
assentir com a cabeça.
— Quanto mais artilharia, melhor, se por acaso tivermos
algum inconveniente.
Jin bebeu o rum e sentiu que o licor lhe queimava a
garganta até chegar a seu estômago.
— Eccles, teria espaço a bordo para outro passageiro?
Um conhecido, que também se encontra em Trindade, pode
ser que esteja interessado em adquirir passagem para a
Inglaterra.
— Podemos fazer espaço para isso, se desejar. — Eccles
levantou o copo. — Qualquer amigo seu é bem recebido em
meu navio. De quem se trata?
— De um plantador. Inglês de nascimento, mas muito
americano na atualidade. E é amigo da dama. chama-se
Castle. — O homem que passaria o mês com ela em seu
lugar, tal como teria feito se ele não a tivesse encontrado para
mudar sua vida.
Olhou o copo meio vazio que Joshua tinha deixado na
mesa. Depois de três anos, a busca por seu pai estava a
ponto de terminar. E depois de dois anos, Viola Carlyle já não
teria sentido em sua vida. Sua busca terminaria e sua dívida
ficaria saldada.
Eccles levantou seu copo outra vez.
— Pela Inglaterra — brindou.
Jin desviou o olhar para o mar revolto.
— Pela Inglaterra.
18

Queridos compatriotas ingleses: A arrogância da


aristocracia não deixa de me surpreender. Quero que
meditem a respeito da nota que recebi ontem, procedente do
Chefe do Executivo:

Milady:
Tenho o enorme prazer de lhe comunicar que a Águia
Pescadora retornou a Inglaterra e que está a sua inteira
disposição para que o persiga. Temo que assim que o conheça,
já não quererá saber nada mais do resto de membros de nosso
insignificante clube. Como é frequente acontecer com os
homens do mar, eles deixam loucas todas às mulheres. Se isto
chegar a acontecer, meu coração chorará a perda de sua
atenção. Mas não lamento que finalmente possa averiguar a
identidade de um dos nossos. Portanto, se de verdade
descobrir seu verdadeiro nome, rogo-lhe que me conceda a
honra de avisar a hora e o lugar do encontro a fim de me
esconder entre os arbustos e suspirar pelo que vou perder.
Entretanto, terei que conceder às damas o que desejam, e se
estiver em minhas mãos à possibilidade de fazer realidade
seus desejos, farei-o feliz, por mais que vá contra meus
próprios desejos.
A seus pés e tal,
PEREGRINO,
Secretário do Clube Falcon

Flerta comigo como se eu fosse uma cortesã para


lisonjear com tolices. Acredita que as mulheres carecem de
capacidade para o raciocínio e que nossa cabeça está oca.
Pois entenda bem, Peregrino, não me afeta seu flerte.
Descobrirei a verdadeira identidade de Águia Pescadora e o
trarei a luz, a ele e a todos os outros, para que os pobres
cidadãos britânicos, cuja riqueza vocês esbanjam como
meninos jogando cartas, saibam quem são.
Lady Justice
19

— É... maior do que eu recordava. — Viola contemplava


a casa que se elevava frente a ela através do guichê da
carruagem.
Não era uma casa. Era uma montanha.
Savege Park era um labirinto de pedra, argamassa,
parapeitos, centenas de chaminés, dúzias de janelas viradas
ao Oeste que se refletia o oceano e outras viradas para o
leste, que se refletiam as verdes colinas salpicadas de ovelhas
e dos últimos cultivos do verão.
A casa senhorial da condessa Savege.
A uns oito quilômetros de distância e perto de um alto
escarpado, encontrava-se Glenhaven Hall, a casa senhorial
do barão de Carlyle, o lar onde ela tinha passado seus
primeiros dez anos de vida. Entretanto, Jin lhe tinha dado a
escolher quando desembarcaram em Exmouth, em Devon e
ela tinha decidido ir primeiro a Savege Park, encontrar-se
com Serena antes de ver de novo ao homem que não era seu
pai.
Possivelmente teria escolhido mal.
— Acredito que só a vi em uma ocasião — murmurou.
Estava cansada pela rápida viagem, doíam-lhe os ossos e
todos os músculos pelo constante vaivém da carruagem, mas
tinha os nervos agitados, qual grumete durante sua primeira
tempestade.
— É uma pena que seu amigo, o senhor Castle, não
esteja aqui para desfrutar desta visão — começou com voz
agradável o cavalheiro que se sentava junto a ela.
O senhor Yale sempre era agradável, embora fosse um
tanto sarcástico, e sempre estava ébrio. Entretanto, isso não
parecia afetar a suas deliciosas maneiras nem o brilho
perspicaz de seus olhos cinzas. Tinha demonstrado ser uma
companhia agradável durante o longo trajeto em carruagem.
Uma companhia amena.
Jane, a donzela alta, magra e de pele bronzeada que Jin
a tinha obrigado a contratar em Trindade, mal tinha aberto a
boca.
Jin tinha viajado a cavalo.
Apesar de haver assegurado um mês e meio antes que
não a perderia de vista até deixá-la na casa de sua irmã, mal
o tinha visto durante esse tempo. Em Trindade, mantiveram
uma única conversa antes de partir, onde a apresentou a
Jane e informou que viajaria a Inglaterra em um navio da
Armada. Aparentemente, tinha amizades influentes. Algumas
no Almirantado.
Durante a travessia, só o tinha visto de longe, em seu
navio. No total, eram três as embarcações que viajavam
juntas, e não se encontraram com nenhuma nave inimiga. A
fragata do capitão Eccles contava com cento e vinte canhões e
o navio que Jin tinha comprado em Tobago era bastante
competente. Não era bonita como Cavalier, mas bem melhor
que Tempestade de Abril. Em nenhum momento tinha se
sentido preocupada, mas sim, mal-humorada.
A companhia de Aidan durante a travessia não tinha
melhorado absolutamente seu humor. Surpreendeu-a ao lhe
anunciar em Porto Espanha que deveria voltar para a
Inglaterra para visitar sua família. Segundo ele, poderia
deixar as reparações da plantação em mãos de seu
administrador. Não obstante, seus constantes e solícitos
cuidados uma vez que estiveram a bordo começaram a
exasperá-la, e Seamus provou ser uma companhia terrível.
Os oficiais da Marinha, como a esposa do capitão Eccles,
reportaram-lhe certo alívio. Entretanto, passou quase todo o
tempo lendo em seu camarote. Não gostava de ser uma
passageira no navio de outro capitão. Perguntou-se como Jin
a tinha suportado.
Nesse momento, tratava de cumprir sua promessa de
levá-la para casa. Durante esse último mês, tinha sido
somente uma sombra. Dentro de pouco desapareceria por
completo.
Seria o melhor. Porque jamais poderia esquecê-lo se, se
convertia em uma constante em sua vida.
— Sim, suponho que o senhor Castle gostaria —
replicou, desviando o olhar da imensa mansão para o senhor
Yale.
Quando desembarcaram em Exmouth, e Aidan viu o
atraente cavalheiro galés que ia acompanhá-los até Savege
Park, ficou muito sério. Entretanto, Viola não entendia o
motivo de seus ciúmes. O elegante londrino era muito belo.
Seu cabelo moreno e sua roupa negra, jaqueta, colete e
calças, conferiam-lhe um ar decididamente misterioso.
Entretanto, não podia comparar-se com o antigo pirata.
Aidan tinha se mostrado muito nervoso pela idéia de
abandoná-la, enquanto visitava seus pais, e durante os
últimos dias da travessia não tinha deixado de repetir o
muito que sentia não poder estar presente quando ela se
encontrasse com sua família.
— Suponho que estará acostumado a este tipo de coisas
— murmurou Viola. — Como é inglês, quero dizer.
— Como você. — O senhor Yale a olhou de esguelha.
O cavalheiro desembarcou da carruagem de um salto e
lhe ofereceu a mão.
Ela conseguiu descer os degraus sem pisar nas saias.
Apesar da afável reprimenda da senhora Eccles, fizera a
travessia vestida com suas calças e seu colete. Não obstante,
quando o capitão lhe informou essa manhã de que
atracariam, colocou um vestido. Detestava havê-lo feito.
Detestava por demonstrar semelhante debilidade.
O culpado de sua debilidade desmontou, deixou seu
cavalo aos cuidados de um criado (Deus Santo, um criado
vestido com libré negra e dourada!) e se aproximou deles. O
traje de cavalheiro lhe sentava muito bem. Sua roupa era
simples, mas parecia de melhor qualidade que a do senhor
Yale.
Entretanto, isso não importava. Como aconteceu
naquela manhã durante o amanhecer cinza no porto de
Exmouth, ela só teve que enfrentar esse olhar desapaixonado
para que um nó se formasse nas suas entranhas.
A porta da mansão se abriu nesse momento e apareceu
uma mulher nos degraus. Ela usava um vestido bonito,
estava penteada com um cabelo elegante e, apesar dos quinze
anos que se passaram, era dolorosamente familiar. Eram os
mesmos olhos risonhos e pensativos, mas coalhados de
lágrimas. Os mesmos dedos elegantes e largos em sua
bochecha. A mesma boca de lábios grossos, aberta pela
surpresa.
— Vi-Viola? — conseguiu balbuciar. — Viola? —
sussurrou.
Ela assentiu algumas vezes, embora mal conseguisse
mover a cabeça.
Serena desceu voando os degraus com as saias
agitando-se a cada passo e lhe deu um forte abraço. Tinha-
lhe quase uma cabeça de altura. Cheirava a canela. Viola
enterrou o nariz em seu ombro, abraçou-a pela cintura e
fechou os olhos com força. Não tinha imaginado esse
recebimento. Em realidade, não sabia como iriam recebê-la,
mas não tinha passado pela sua cabeça que pudesse ser
assim. Que a acolhesse com tanta emoção. Com tanto amor.
Pensou que talvez fosse uma péssima profeta em sua própria
vida.
Serena afrouxou o abraço o suficiente para afastar-se
um pouco e colocou uma mão em uma de suas bochechas.
— Não sei por onde começar. — Seus olhos, esses
preciosos olhos de distinta cor, um azul e outro violeta,
brilhavam por causa das lágrimas enquanto a examinavam
com avidez. — Poderia gritar de alegria ao ver na beleza em
que se converteu, mas sempre foi linda. Poderia crivar-te de
perguntas, mas deve estar cansada do longa viagem. —
Abraçou-a de novo. — Assim prefiro te olhar. Não posso
acreditar que seja você .
— Sou — disse com um fio de voz. Nesse momento, sob
o amor do olhar de sua irmã, lhe contraíram as vísceras e só
lhe ocorreram duas palavras: — Sinto muito.
Serena arqueou as sobrancelhas.
— O que você sente?
— Não ter voltado antes para casa.
O sorriso desapareceu dos lábios de sua irmã, mas seu
olhar seguiu sendo carinhoso.
— Ora. Veja, você e eu temos muitas coisas que falar. —
Soltou uma gargalhada metade alegre e metade triste, e
voltou a abraçá-la. — Temos quinze anos do que falar —
acrescentou em um sussurro. Agarrou-lhe uma mão com
força. — Mas antes, devo agradecer. — Voltou-se para os
homens que se mantiveram afastados. — Senhor Yale, é um
prazer vê-lo. Espero que sua visita seja prolongada — disse
com a elegância de uma rainha, enquanto realizava uma
elegante reverência. Seu elegante vestido e seu cabelo loiro
brilhavam a luz do abajur que sustentava um criado a fim de
aliviar a crescente escuridão do crepúsculo. — Obrigada por
colaborar na volta de minha irmã.
O senhor Yale lhe fez uma reverência.
— Foi um grande prazer, lady Savege.
Os dedos de Serena a soltaram para aproximar-se de Jin
com as mãos estendidas. Uma vez que esteve frente a ele,
agarrou-lhe as mãos e disse em voz baixa e com certa
dificuldade:
— Não sei nem como lhe agradecer isso.
Os olhos de Jin brilhavam como Viola jamais os tinha
visto brilhar.
Com uma luz muito poderosa, como se estivesse em paz.
— Não precisa.
— Em realidade, é impossível. Não há nada que possa
dizer ou fazer que se equipará ao que fez.
Jin esboçou o indício de um sorriso.
— Sinto-me recompensado. — Seu olhar se cravou em
Viola.
E ela foi incapaz de respirar. Suas palavras e seu olhar
sempre tinham o mesmo efeito em seu rebelde corpo:
deixavam-na totalmente paralisada. Entretanto, agora fora
pior. Porque dentro de pouco, quando o conde lhe pagasse,
ele partiria.
— Senhorita Carlyle, permite-me acompanhá-la ao
interior? — perguntou-lhe o senhor Yale, lhe oferecendo o
braço.
Serena se voltou de repente.
— Ah, não, senhor! Não penso permitir que passe um
minuto em companhia de outra pessoa até que a tenha pelo
menos quinze dias somente para mim. — Rodeou a cintura
de Viola com um braço e a guiou para a escada, inclinando a
cabeça para lhe dizer: — Meu marido estará ausente uns
dias, mas espero que volte ainda esta semana. Quando a
carta urgente de Jinan chegou esta manhã por mensageiro,
enviei uma nota a Alex pedindo que ele apreçasse seu
retorno. Se alegrará muito em te conhecer. Mas, por favor,
suplico-te que não se deixe influir pelo que senhor Seton
tenha contado sobre ele. Deve formar sua própria opinião.
— O senhor Seton não me contou nada sobre lorde
Savege, a bem da verdade.
Serena riu entre dentes.
— Típico de Jinan, é obvio. — Olhou para trás. —
Cavalheiros, entrem e deixem que o senhor Button lhes sirva
algo para beber no salão, enquanto os criados se encarregam
de tudo.
E, certamente, os criados se encarregaram de tudo. Um
exército de criados vestidos de negro e dourado transladou a
bagagem, ao mesmo tempo em que outros se mantinham em
seus postos, aguardando qualquer ordem, enquanto Serena a
acompanhava pelo vestíbulo de dois andares em direção a
escada. O chão era de mármore branco e cinza. Os degraus
estavam cobertos por um tapete oriental e a madeira do
corrimão reluzia à luz das numerosas velas. Na parede do
patamar superior, havia um retrato de Serena. Com um bebê.
Viola o olhou fixamente. No retrato, Serena usava um
luxuoso vestido dourado, assim como diamantes no pescoço,
nas orelhas e no cabelo. O bebê que sustentava estava
vestido de branco. O olhar da mãe contemplava à criança
com ternura.
—Não olhe para essa ridicularia! Alex insistiu. É um pai
orgulhoso. Mas me aborreci cada minuto que estive posando,
como também aborreceu Maria. Não parou de chorar.
— Tem uma filha — sussurrou Viola.
Serena lhe deu um aperto na cintura.
— Sua sobrinha.
— E a chamou de Maria.
— Como mamãe. — Agarrou pela mão de Viola. —
Vamos, suba. A senhora Tubbs preparou o melhor quarto
para você, e lhe esperam o chá e um banho bem quente.
Quando estiver vestida, poderá jantar, se estiver em
condições de fazê-lo. Não é que me queixe, mas não entendo
por que Jinan insistiu em que fizessem a viagem em um dia.
São mais de noventa quilômetros desde Exmouth e por um
caminho montanhoso. Deve estar esgotada.
— Não muito — conseguiu dizer com os olhos
arregalados, como se fora uma menina.
O corredor parecia não ter fim, dobraram vários cantos e
subiram e desceram várias escadas até Serena parar em
frente a uma bela porta de carvalho.
O quarto não era tão grande como o tombadilho de
Tempestade de Abril, mas o seria se incluísse o vestiário
adjacente. As paredes estavam adornadas com painéis de
madeira em cor clara e pintadas com um delicado tom rosa.
As tapeçarias eram douradas e marfim. Contava com uma
cama com dossel e suntuosas cortinas, uma penteadeira com
detalhes dourados e um espelho. A estadia parecia saída dos
contos de fadas como os que sonhava desde pequena.
— É seu dormitório? — perguntou a sua irmã.
— Não, tola. É o teu. Aí está o banheiro. Dentro de um
momento, subirá uma donzela para te ajudar, embora eu
gostaria de ficar contigo enquanto se instala, se não se
importar.
Viola se voltou em direção ao corredor.
— Acredito que Jane está...
Serena a agarrou do braço e a obrigou a entrar no
dormitório, depois fechou a porta.
— A senhora Tubbs, que é minha ama de chaves e uma
grande pessoa, encarregar-se-á de que sua donzela jante e
descanse antes de retomar as suas ocupações amanhã. Esta
noite, a atenderá minha donzela. — Franziu o cenho. — Está
bem assim? Sinto-o muito. Deveria haver te perguntado
primeiro, mas supus que depois de uma viagem tão longa...
— mordeu-se o lábio inferior, um gesto tão familiar para Viola
que poderia pensar que pertencia a um sonho, embora, em
realidade, procedia de suas lembranças. — Viola?
— Mmmm?
— Não está bem, é claro. — A voz de sua irmã tremia. —
Sem dúvida está exausta. — Aproximou-se da penteadeira
onde descansava uma bandeja com um delicado bule de
porcelana, várias xícaras e um prato de biscoitos banhados
com açúcar. — Deve tomar um pouco de chá. Tenho certeza
de que te reconfortará. Ai, Por Deus! — exclamou quando a
porcelana tilintava entre suas mãos. — Tenho os nervos
destroçados. Qualquer um diria que é a primeira vez que me
reencontro com minha irmã, que todos deram por morta há
quinze anos, menos. — Voltou o rosto com a xícara e o pires
nas mãos. Tremiam-lhe os ombros.
— Ai, Ser! — exclamou Viola com os olhos cheios de
lágrimas.
Serena a olhou e viu que estava chorando. Assim que
soltou a xícara e o pires, aproximou-se dela e se abraçaram
com força. Seguiram abraçadas em silêncio durante um bom
momento.

****

Serena se desculpou com os cavalheiros e ordenou que


levassem um leve jantar ao dormitório de Viola, que depois de
se banhar vestiu sua camisa e seus calções habituais. Ao
olhar para sua irmã e ver sua expressão, soube o que opinava
a respeito de seu traje. O fato de ter sido capaz de ler os
pensamentos de Serena desde que eram meninas não evitou
o nó que sentia no estômago.
— Você não gosta do que uso para dormir.
— Ah! É para dormir? Que alívio! — Sua irmã esboçou
um sorriso. — Pensei que possivelmente pretendia andar pela
casa dessa forma. Os criados se escandalizariam, se por
acaso você não sabe. — Soltou uma risadinha.
Viola riu as gargalhadas. Depois recordou o escasso
traje que usava na noite que Jin foi a seu camarote em busca
do sextante, e a risada morreu em sua garganta.
— Me perdoe, irmã. — Serena se aproximou dela e lhe
acariciou uma bochecha, um gesto de intimidade tipicamente
feminina de sua mãe e que Viola não tinha esquecido. — Não
tenho a menor idéia da vida que levaste. Temo que ignoro
tudo. — Seus olhos percorreram o rosto de Viola enquanto
franzia o cenho. — Jinan disse que você esteve no mar por
um tempo.
Viola levou a mão ao rosto.
— Já sei que estou muito morena.
— Não. Quero dizer que não está morena. Sempre tinha
a pele bonita assim desde quando éramos pequenas.
— Você também.
— Mas não como a sua. Sempre estava radiante de
vitalidade. Ainda está depois de tantos anos?
Viola piscou.
— Eu... isso espero.
Serena tomou suas mãos, mas Viola não conseguiu
mais morder a língua.
— Ser, por que não respondeu minhas cartas? — Sua
irmã arregalou os olhos.
— Que cartas?
— As cartas que te escrevi durante os primeiros anos. —
Serena negou com sua loira cabeça.
— Não me chegou carta alguma. Nada. — Viola sentiu o
salto que deu seu coração.
— Nenhuma carta?
Serena lhe apertou as mãos com mais força.
— Escreveu-me? — sussurrou.
A essas alturas, Viola tinha um nó na garganta.
— Tenho certeza de que não as enviou.
— Quem?
— Minha tia. Eu vivia com ela e com seus filhos.
Cuidava-os. — Esforçou-se por seguir respirando enquanto
Serena tomava seu rosto entre as mãos.
— Entendi — sussurrou, — conte-me tudo. Desde o
começo.
Começou lhe falando de Fionn, comparando sua história
com a de Serena. Seu pai tinha descoberto a verdade. Todo
mundo a deu por morta menos Serena, a moça que passava o
dia inventando contos de fadas e de príncipes azuis, a quem
ninguém quis escutar. Entretanto, sua mãe passara toda
aquela noite esperando-a junto do escarpado, sob a chuva.
Morreu quinze dias depois, sem mencionar Fionn, devido à
febre que contraiu depois daquela noite.
Serena falou da segunda esposa do barão, já falecida a
essas alturas, e das filhas que tinha deixado (Diantha, que
tinha dezesseis anos, e da pequena Faith) e que estavam
vivendo em Glenhaven Hall. Charity, a mais velha das meio-
irmãs de Serena, casou-se. E seu meio-irmão, sir Tracy
Lucas, encontrava-se em sua propriedade de Essex. Era
evidente que Serena adorava seus três meio-irmãos e a sua
irmã mais nova, Faith. Entretanto, enquanto relatava sua
história aumentou a pressão com que ela se agarrava às
mãos de Viola.
A sua vez, ela narrou sua história, incluindo a parte de
Aidan. Sentindo-se protegida pelo carinho que demonstrava
sua irmã, reviveu o carinho e também o amparo que lhe
ofereceu Aidan nos piores momentos da enfermidade e da
morte de Fionn.
— Ama muito ao senhor Castle, verdade? — perguntou-
lhe Serena em voz baixa.
— Sim. — Amava-o. Seria absurdo jogar ao mar o
passado que compartilharam pela culpa ou pela desilusão,
sobretudo porque ela jamais o tinha pressionado para que se
casassem. Em troca, concentrou-se com todas suas forças em
sua vida em alto-mar.
— Onde ele está?
— Não lhe disse o Senhor Seton?
— Mal tive tempo para falar com ele.
— O senhor Castle nos acompanhou das Índias
Ocidentais a Exmouth. Partiu para Dorset para reunir-se com
sua família depois de muitos anos. Disse-me que gostaria de
me visitar, se você não se importar.
Serena soltou a xícara de chá e agarrou uma das mãos
de Viola.
— É obvio que não me importo — lhe deu um aperto nos
dedos. — Veja, o que acha se atrasarmos um pouco o
encontro com nosso pai e nossos meio-irmãos por alguns dias
para poder desfrutar de umas férias aqui? Antes que Alex
retorne. Só nós duas.
— E quanto ao senhor Yale e o senhor?
— O senhor Yale estará muito contente de entreter-se só
e Jinan pensava partir amanhã de todas as formas. Nunca
fica muito tempo conosco, nem em nenhum outro lugar,
suponho. — Esboçou um sorriso de cumplicidade. —
Teremos a casa virtualmente para nós.
Viola sentiu um vazio no estômago. Entretanto, o
carinho que viu nos olhos de sua irmã a aliviou em parte.
— Parece-me maravilhoso.
Essa noite dormiu no divã. Não teve outra alternativa. A
cama era muito grande, muito branda e muito firme para
sentir-se cômoda nela. A fim de não ferir os sentimentos de
sua irmã, enrugou os lençóis pela manhã e enquanto sua
donzela a penteava, sentou-se no almofadão adornado com
renda para que parecesse que o tinha usado.
— Dói-me... o traseiro — murmurou a modo de desculpa
com sua donzela.
— É obvio, senhorita — replicou Jane enquanto torcia
duas mechas de cabelo antes de colocar em seu lugar.
— Ai!
— Certamente, que a condessa não se queixa nem se
move enquanto sua donzela a penteia, não acha?
Viola a olhou através do espelho, jogando faíscas pelos
olhos.
— Não se supõe que é uma criada? Minha criada? Falou
assim com o senhor Seton quando a contratou? Pediu-lhe
referências?
— Não e sim, senhorita. — A donzela apertou os lábios.
Quando Jane acabou de penteá-la, Viola deu uma
olhada e esteve a ponto de rir. Ou de chorar.
Fez uma careta e se tirou todas as forquilhas que lhe
seguravam os cabelos recolhido. Quando soltou o cabelo, o
escovou. Quando o teve desembaraçado, fez uma trança,
levantou o queixo com orgulho e assim passou frente à Jane,
enquanto saía do dormitório para descer a sala do desjejum
matinal.
Perdeu-se. Antes de chegar, três criados distintos lhe
indicaram o caminho. Quando por fim encontrou a sala de
jantar, estava um pouco tonta e não soube muito bem como
tinha chegado. A estadia era muito bonita. A porta estava
ladeada por dois criados e os raios do sol entravam pelas
altas janelas.
— Bom dia, senhorita Carlyle — a saudou o senhor Yale,
que soltou o jornal e se levantou para fazer uma reverência.
Jin, que estava ao lado de uma janela, voltou-se e lhe fez
um gesto com a cabeça a modo de saudação.
Uma nuvem de tempestade invadiu a mente de Viola.
Apesar de estar na casa de um conde de repente decide não
lhe fazer uma reverência, e sim a tinha feito quando estavam
a bordo de um navio? Era um homem insuportável, e
encontrar-se em sua presença depois de tantas semanas sem
vê-lo era como beber água fresca depois de ter estado em
uma ilha deserta.
Precaveu-se de que observava sua camisa, seu colete e
suas meias com o indício de um sorriso nos lábios. E a
invadiu uma repentina debilidade. Por fora ainda parecia
uma mulher do mar, salvo pela ausência do boldrié onde
carregava suas armas, que estavam guardadas. Entretanto,
por dentro se sentia como um dos profiteroles26 de nata
francesa que Serena a tinha obrigado a comer na noite
anterior depois do jantar. Era maravilhoso sentir-se como um
profiterole de nata! Ao longo dos anos, obrigou-se a
endurecer-se, mas no fundo jamais tinha gostado. Porque ela
não era assim por natureza.
Por desgraça, sua natureza a instava a apaixonar-se por
homens que não a correspondiam. Jin devia partir. Devia
fazê-lo. E depois desfrutaria, finalmente, dessa temporada de
descanso entre os ricos e os poderosos.
— Pensava que já tinha partido — comentou, tratando-o
com formalidade.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Tenho pensado fazê-lo em breve. Mas gostaria de
tomar o café da manhã antes.
Viola sentiu-se envergonhada. «Tola, tola, tola», pensou.
— Aonde vai?
O senhor Yale riu baixo.
— Isso é como perguntar a um tubarão o que planeja
jantar. O senhor Seton sempre vai onde lhe agrada, senhorita
Carlyle, e nunca comunica a ninguém. Não é assim, meu
amigo?
Jin se aproximou do aparador e agarrou uma xícara.

26Profiterole ― Profiterole é uma sobremesa feita com uma massa açucarada recheada
com cremes, sorvetes e caldas de acordo com a preferência do consumidor. O doce é
bastante popular na França, país no qual foi considerado uma iguaria real em meados
do século XVI.
— Espera seguir meus movimentos, Yale? — perguntou
enquanto se servia de café. — Pensava que já não fazia esse
tipo de coisas.
— É um antigo costume — aduziu o senhor Yale para
lhe subtrair a importância enquanto puxava a cadeira de
Viola. — Senhorita Carlyle, quer que peça a um destes
eficientes cavalheiros que lhe prepare um prato com uma
seleção de delícias para tomar o café da manhã? — sugeriu,
apontando para os criados.
Viola tinha o estômago um pouco revolto por culpa dos
profiteroles de nata da noite anterior. Essas delícias não
podiam ser boas para um estômago acostumado às bolachas
duras e cereais infestadas de gorgulhos27.
— Chá — disse enquanto se sentava, consciente de que
os olhares dos homens estavam cravadas nela. Pigarreou. —
Como é que se conhecem?
— Apresentou-nos um velho amigo.
— Quem? — perguntou ela, que ficou de pé para aceitar
a xícara e o pires que lhe levava o criado. Suas mãos se
chocaram, o chá se derramou e tanto o punho de sua camisa
como a luva do criado acabaram manchados. — Ai, sinto
muito! — desculpou-se enquanto agarrava um guardanapo
para lhe limpar a luva.
— Não é nada, senhorita — lhe assegurou o criado,
avermelhado como um tomate.
— Oh, não deveria... Sinto-o muito.

27Gorgulho ― Nome comum a várias espécies de insetos coleópteros, de cabeça


alongada em forma de bico que costuma infectar cereais.
O criado lhe fez uma reverência e partiu da estadia. O
senhor Yale se aproximou do aparador e lhe serviu outra
xícara de chá.
— Apresentou-nos o visconde Gray. Um homem sério e
responsável; um grande tipo, de fato. E além de me
apresentar a nosso lobo de mar, aqui presente, indiretamente
também foi o artífice de que conheça você, por isso estou
agradecido. — Deixou uma fumegante xícara de chá frente a
ela e esboçou um sorriso afável.
— Não acredito que suas adulações sejam sinceras,
senhor Yale — murmurou ela.
— São, senhorita Carlyle — lhe assegurou o cavalheiro.
— Nem todos os dias se tem a sorte de conhecer uma jovem
que tem feito algo útil com sua vida. A conversa muito
interessante que mantivemos ontem sobre seu navio
contribuiu a que a viagem me parecesse muito curta.
— Obrigada. — Olhou para Jin de soslaio. Ele parecia
estar analisando sua xícara de café. — Devo admitir que não
recordo muito bem do que estivemos falando, embora gostei
da história que nos contou sobre a irmã de lorde Savege e
como conheceu seu marido enquanto estavam presos em
uma estalagem por culpa de uma tempestade de neve.
Suponho que estava cansada. — Ou bem distraída, pensando
no homem que cavalgava depois da carruagem e na forma de
arrancar-lhe o coração.
— Ah, sim. Fizemos o trajeto a uma velocidade
incomum. Nosso amigo aqui é um tipo ditatorial, que não tem
em conta os desejos dos outros, nem sequer os de uma dama
— comentou o senhor Yale com sua característica
dissimulada. — Poderia dizer-se que é um pouco brutal.
Viola o olhou e se precaveu de que havia algo mais em
seu olhar além da ironia. O homem desviou a vista para o
outro extremo da estadia e a cravou em Jin.
— Aqui estão! — Serena entrou na sala de jantar
matinal com um enorme sorriso. Usava um vestido de
musselina azul debruado com renda. Ao agarrar a mão de
Viola, precaveu-se de que tinha o punho da camisa molhado.
— Senhor Yale, o que fez? Atirou o chá em cima de minha
irmã? Que trapaceiro...
— Parece-me um término muito medieval — replicou ele,
entrecerrando seus olhos cinzas. — Senhorita Carlyle, se
adotar o papel de trapaceiro, consideraria a idéia de ser uma
dama em apuros? Assim poderia me reformar e sua irmã me
olharia com melhores olhos.
Viola desejou poder sorrir, mas foi incapaz de fazê-lo.
— Ser, o senhor Yale não derramou o chá. Fui eu.
— Não importa quem tenha feito isso, mas você não
pode continuar com essa camisa manchada. Venha, querida.
— Insistiu que levantasse da cadeira. — Trocará de roupa e
tomaremos o café da manhã no terraço. Tem vistas ao mar e
a brisa é maravilhosa esta manhã, assim não passaremos
calor. — Colou-se ao lado do braço molhado de Viola. —
Jinan, o senhor Button me disse que ordenou que selem seu
cavalo. Deve ir tão cedo? Pelo menos, fique até que Alex volte
de Londres.
Jin lhe fez uma reverência.
— Milady, sinto-o muito, mas tenho assuntos a resolver
na cidade.
Viola sentiu uma estranha opressão no coração. Jin
falava com um acento muito inglês... e estranhamente formal.
— Negócios — murmurou o senhor Yale, — sempre
negócios apesar dos votos e das declarações.
— Yale, vai me perdoar, mas não recordo ter feito
declaração alguma.
— Vejo que não incluiu os «votos».
— Bem, não. Embora eu tenha certeza de que essa
conversa aborreça as damas. Lady Savege, se for tão amável,
diga a seu marido que voltarei assim que possa. Farei-o com
prazer.
— Excelente — replicou Serena, dando um aperto na
mão de Viola. — Vamos, pois?
Ela assentiu em silêncio. Jin a estava olhando. Que
dissesse que pensava em voltar significava bem pouco.
Poderia estar longe quinze dias ou um ano.
Essa era uma despedida. Obrigou-se a falar.
— Que tenha uma boa viagem — conseguiu dizer.
Jin se curvou para ela em uma reverência, mas se
manteve em silêncio e distante. Viola sentiu a ardência das
lágrimas na garganta. Afastou o olhar dele e seguiu Serena.
— Ser — disse enquanto subiam à escada, — eu
gostaria de comprar um vestido novo. Tenho algum dinheiro.
Há algum estabelecimento perto onde possa fazê-lo?
— É obvio. O que você queira. Mas nem pensar de que
vai a uma loja. Faremos à costureira vir de Avesbury.
Confecciona os vestidos mais bonitos de toda Devonshire.
Será muito divertido vesti-la, tanto como quando o fazia
desde que era pequena. Nunca se importou com a roupa que
usasse, sempre e quando te desse liberdade para correr com
comodidade.
Viola respirou fundo.
— Eu gostaria que me ensinasse a ser uma dama.
Serena franziu o cenho.
—Ora, você é uma...
— Não, salta à vista que não sou. Se alguma vez aprendi
tudo sobre ser uma dama, devo ter esquecido. — Endireitou
os ombros. — Mas eu gostaria de aprender a ser uma antes
de decidir se me convém ou não.
— Se lhe convém? — perguntou sua irmã, com voz
estridente. — Está planejando voltar para a América? Tão
cedo?
Viola lhe agarrou as mãos.
— Não. Não. Não sei com segurança. De verdade. Eu
adoraria ficar aqui contigo, mas é que deixei toda minha vida
para trás. Meu navio, minha tripulação e... enfim, não
importa. Ser, deve me ensinar a ser uma dama. Prometo-te
que serei uma aluna aplicada.
Da mesma forma que tinha aprendido a içar uma vela e
a comandar um navio, aprenderia a ser uma dama. Quinze
anos antes o fato de aprender o ofício de um marinheiro tinha
sido o único modo de suportar a perda de sua família, de sua
vida em Glenhaven Hall e a morte de sua mãe.
Nesse momento, lançar-se-ia totalmente ao projeto de
converter-se em uma dama que sua irmã se orgulhasse. Já
não dormiria no divã, nem se vestiria como um homem, nem
derramaria o chá nos serventes. E se mantivesse ocupada
com essa monumental tarefa, talvez esquecesse uns
cristalinos olhos azuis e os devastadores abraços do homem
brutal a quem tinha entregue bobamente o coração.

****

— É uma mulher deslumbrante — sussurrou Yale, com


a vista cravada no vão da porta em que tinham desaparecido
lady Savege e Viola. — Linda.
Jin olhou o criado e lhe ordenou sem palavras que
partisse. O galés soltou um suspiro afetado.
— Ah, pelo que vejo, não estamos de humor para falar
de mulheres bonitas, mas sim de negócios. Uma lástima. —
ele acomodou-se na cadeira, mostrando a imagem indolente
de um aristocrata moreno e elegante.
Jin não se deixou enganar por essa falsa aparência.
— Terá muitas oportunidades para flertar com a
senhorita Carlyle quando eu for.
— Mas seria muito divertido flertar com ela enquanto
você está aqui. Eu gosto de ver sofrer os homens ricos.
Jin não se incomodou em corrigi-lo. Como sempre, Yale
era muito perspicaz com as pessoas. Era uma das razões
pelas que confiava nele e também uma das duas razões pelas
que tinha decidido abandonar Savege Park tão rápido. A
outra era muito mais incômoda e tinha muito que ver com a
impossibilidade de estar na mesma habitação que ela sem
desejar tocá-la. Entretanto, não podia voltar a tocá-la, e
tampouco queria que seus pensamentos se vissem
submetidos ao escrutínio de Yale.
Tinha outro lugar que ir. Outro objetivo que devia obter
já que esse já estava resolvido.
— Segue a duas velas, Wyn?
— Por que você acha que me mostrei tão disposto em
acatar suas ordens do outro lado do oceano? Faço-o pela
esperança de que afrouxe um pouco essa massa, sabe?
— Eu não sei nada. Você nunca pediu uma libra. —
Apoiou-se no aparador. — Constance me escreveu. Está
preocupada com você.
— É obvio que está. Constance sempre deve preocupar-
se com alguém e já não tem Leam. Colin, o lorde Comandante
e o Chefe Supremo, não causa motivo de preocupação para
uma mulher terrível como ela e, em todo caso, está tão
ocupado zombando de lady Justice que sempre está alegre. E
você, é obvio, está tanto tempo ausente que nem sequer
recordávamos seu rosto. Assim, suponho que só pode
preocupar-se comigo.
— Um bom discurso. — Jin levou a xícara de café aos
lábios. Já estava frio, mas o dia prometia ser caloroso, assim
desfrutaria do calor uma vez que estivesse a caminho. Um
caminho que o afastaria de Viola Carlyle de uma vez por
todas, e para sempre. — Constance não é uma mulher
terrível, longe disso. Tem motivos para estar preocupada?
Yale se voltou para ele com os olhos entrecerrados e seu
característico sorriso torto.
— Não pode averiguá-lo por você mesmo, meu amigo?
— Não ordenei que lhe sigam.
— Ah — exclamou Yale ao tempo que assentia com a
cabeça, — uma novidade.
— É obvio, só ordenei que lhe seguissem naquela
ocasião.
— E suponho que agora dirá que era Leam quem mais
se preocupava naquele tempo.
— Bem, sim. É verdade.
Yale o olhou com expressão pensativa.
— Alguma vez mente, verdade, Jinan?
— Posso te ajudar em algo, Wyn? Necessita de dinheiro?
O galés tamborilou com os dedos sobre a resplandecente
mesa.
— Bem, eu preciso de uma bebida.
— Disso vem a carta de Constance.
Yale o olhou jogando faíscas pelos olhos.
— Sabe? Me acaba de ocorrer uma idéia maravilhosa,
Jinan. Constance necessita um homem de que preocupar-se
e você leva uma vida muito perigosa. Por que não se casa com
ela e tira-a de cima de mim?
Jin arqueou uma sobrancelha.
— Não. Me escute — insistiu Yale com um brilho
malicioso em seus olhos chapeados. — Uma herdeira casada
com um rei Midas aventureiro. O casal perfeito. Assim poderá
preocupar-se com você durante o resto da vida e não comigo.
Por que não?
— Sim, claro, por que não?
— Como você disse? Não te basta com uma beleza
extraordinária e um enorme dote como estímulos? — cruzou-
se de braços e adotou uma pose reflexiva. — Suponho que
uma dama também deve saber governar um navio para
chamar a atenção da Águia Pescadora.
Jin se separou do aparador e caminhou até a porta. Yale
riu baixo e acrescentou, com mais seriedade:
— Colin quer seu navio e você no Mediterrâneo. Em
Malta, aparentemente.
Isso o deteve no vão da porta.
— Em Malta?
— Isso acredito, sim. Algo sobre um complô para
derrocar nosso rei e não sei que herdeira fugiu e cujos pais a
deserdaram, mas que deve ser resgatada antes que acabe
ferida por culpa do fogo cruzado. Pediu-me que vá e que você
seja o capitão.
— Vou entrar em contato com você. — dirigiu-se ao
vestíbulo da entrada e saiu em busca de seu cavalo, que o
aguardava selado e com sua bolsa de viagem.
Montou sem olhar para trás, sem olhar para a casa ou
para o terraço onde nesse momento ela estaria tomando o
café da manhã, e partiu.
Não tinha mentido. Em Londres, esperava-o um bispo e
um cofre de madeira que devia comprar. Alojar-se-ia nos
aposentos que tinha em Piccadilly, visitaria Colin Gray e dois
almirantes, e se concentraria em seu empenho de recuperar o
cofre de sua mãe.
Entretanto, a opressão que sentia no peito lhe dizia
outra coisa bem distinta. Dizia-lhe que não tinha propósito
algum, que cavalgava sem objetivo. À medida que aumentava
a distância entre ele e a mulher que devia separar-se, sentiu-
se à deriva pela primeira vez em vinte anos.
20

No princípio, converter-se em uma dama era bastante


entretido. Chegou à costureira, começou a tirar esboços de
moda, tecidos e rendas, e se assombrou da delicada figura de
Viola ao mesmo tempo em que ria do bronzeado tão pouco
atrativo de sua pele. Continuando, envolveram-na com
diáfanas sedas, robustos tafetá e leves musselinas; mediram-
na, trespassaram-na com alfinetes e a trataram como a um
manequim. Apareceram anáguas e regatas, todas muito leves
e, em enormes quantidades. Casacos ridículos chamados de
casacos de pele, espartilhos que eram uma absoluta tortura,
xales com franjas, luvas de todas as cores e um sem-fim de
chapéus.
Viola se preocupou em procurar papel e lápis a fim de
apontar os nomes de todo os objetos para poder recordá-los
depois. Entretanto, ao redigir a lista, lembrou-se dos
primeiros meses a bordo de um navio, quando fez o mesmo,
anotando os nomes dos mastros, as cordas, as velas e o
armamento até que recordava como se chamavam até a
última parte de madeira, de aço, de corda e de tecido que
havia no navio. Além disso, escrever fez que sentisse falta do
diário de bordo, em que anotava todos os sucessos, por mais
aborrecidos que fossem, antes de deitar-se. Com a cabeça
cheia de lembranças, foi incapaz de desfrutar plenamente da
costureira. Não obstante, o prazer que obtinha Serena com
essa atividade era evidente, e não podia evitar.
Quando o senhor Yale enfiou a cabeça pela porta para
perguntar por seus progressos, a costureira o expulsou.
Aparentemente, o dormitório de uma mulher não era lugar
para um homem. Viola se perguntou o que pensariam a
senhora Hamper e Serena se lhes contasse que ela tinha
compartilhado seu «dormitório» com um homem, e com
supremo prazer.
Viola voltou a dormir no sofá, jurando-se que na noite
seguinte tentaria fazê-lo na cama. O som das ondas ao
romper contra a praia a reconfortava.
O segundo dia de provas e medidas seguiu ao primeiro.
A senhora Hamper modificou um dos vestidos de musselina
de Serena, e Jane colocou o espartilho ao redor das costelas
de Viola com evidente entusiasmo antes de proceder a
aprisioná-la com as roupas. Viola deixou que voltassem a
arrumar seu cabelo, algo que sua donzela realizava com
evidente gosto. À manhã do terceiro dia, já pôde descer à sala
de jantar para o café matinal com um aspecto bastante
parecido ao de uma dama que pertencia a um lar como
Savege Park, embora ela não se sentia assim.
A roupa, entretanto, não convertia ninguém em uma
dama.
— Qual uso para os ovos? — perguntou em um
sussurro ao homem que tinha ao lado.
O senhor Yale se inclinou para ela para lhe responder
no mesmo tom:
— A colherinha dos ovos.
Na estadia, além deles dois, só estavam Serena, em
frente a ela, e um criado a cada lado da mesa. Viola olhou de
esguelha aos criados. Os dois tinham cara de estarem se
fazendo de tolos.
— Qual é a colherinha dos ovos? — perguntou.
— A diminuta — respondeu o senhor Yale.
— Parecem tolos — disse Serena. — Ou seja o que
pensarão George e Albert de vocês.
O senhor Yale apontou com o indicador a colher mais
pequena antes de endireitar-se em seu assento.
— Por que não o perguntamos? George, Albert, acham
que a senhorita Carlyle e eu somos uns tolos? E digam a
verdade. Mas tenham presente que ofenderão a sua senhora
se o negarem.
George, que usava uma peruca branca, franziu o cenho.
— Enfim, a verdade é que não sei, senhor.
— Não se compromete. Muito treinado. E você, Albert?
— Wyn, tem que deixar de interrogar aos criados.
— Albert? — insistiu o senhor Yale.
— A verdade é que parece estranho, senhor —
respondeu o criado mais jovem com evidente sinceridade, —
que haja uma colherinha só para os ovos passados por água.
Ou isso me pareceu sempre.
— Ah, viu, milady? Albert dá razão a sua irmã e a mim.
Os aristocratas usam muitas colherinhas no café da manhã.
— Eu gostaria de saber que talher usar com cada coisa
— declarou Viola com firmeza. — Ontem à noite durante o
jantar não sabia o que fazer. Acredito que utilizei a colher
para a sopa com a gelatina, ou talvez foi ao contrário. —
Levantou a vista ao mesmo tempo em que Serena baixava o
jornal.
— Não nos importa qual colher você usa, Vi. Não é
verdade, senhor Yale?
— Totalmente certo.
— Pois não me parece igual. E quando lorde Savege
voltar, seguro que a ele tampouco. Não poderia ser a primeira
lição?
Sua irmã esboçou um sorriso amável.
— Viola...
— Disse que me ensinaria a ser uma dama, Ser. Penso
te obrigar que cumpra sua palavra.
— Muito bem. Se for o que deseja.
— É o que desejo.
— Posso me juntar ao projeto? — O senhor Yale cravou
uma parte de bacon com o garfo e o olhou com curiosidade.
— Necessito com desespero um estágio intensivo na nobre
arte da comida.
— Senhor Yale, digo-o a sério. — Viola se voltou para
ele. — Não quero envergonhar minha irmã e nem lorde
Savege quando tivermos companhia.
O aludido a olhou com sinceridade.
— E eu, senhorita Carlyle, digo muito a sério que quero
ajudá-la. Se deseja aparecer ante a sociedade como uma
dama, faremos de você uma dama.
— Obrigada — disse por enésima vez em quatro dias.
Tinha agradecido a todos. Salvo a Jinan Seton. O
homem que insistiu em que sua família a amava e que a
obrigou a retornar a Inglaterra para reunir-se com ela. O
homem que tinha suportado sua ridícula aposta e tinha-lhe
feito amor como nunca imaginou que pudesse fazer-se. O
homem que, por ser como era, demonstrou-lhe que cometeria
um enorme erro se, se casasse com Aidan.
O homem que a tinha deixado sem despedir-se sequer.
Não merecia que lhe agradecesse. Era um descarado de
marca maior. Havia dito que não ficaria com nada que não
fosse dele, mas lhe tinha roubado o coração. Como um pirata.
Não lhe devia nada. Nem sequer uma lembrança amável.
Assim que Viola teve a roupa adequada ((e
desconfortável), Serena e o senhor Yale começaram a lhe
ensinar tudo o que uma jovem devia saber: pintura, desenho,
canto, piano e fluência com o francês e o italiano. Logo ficou
patente que antes devia aprender coisas muito mais
fundamentais.
— Sei como andar. É só colocar um pé diante do outro.
— Certo, certo — replicou o senhor Yale, enquanto a
levava de uma cadeira convocada diante da mesinha auxiliar
até o centro do terraço. — Mas quando se é uma dama, terá
que pôr um pé diante do outro com menos força de que se
exerce a bordo de um navio. Sempre e quando quiser cruzar
uma estadia com a aparência de um anjo, é claro.
— Ahan! — Viola se pôs a rir. — Um anjo?
— Bem, sim. O que todos pensarão de você até que a
vejam pisar na bainha de seu vestido e a escutem soltar
semelhante gargalhada.
— Não foi uma gargalhada. É que as damas não riem?
— Claro que sim — respondeu Serena. — Mas se supõe
que não devem fazê-lo com evidente prazer. Uma norma
absurda na minha opinião.
— É, mas não a inventei — replicou o senhor Yale. — Só
atuo como intermediário desta estupidez que é a alta
sociedade inglesa. — Agarrou a mão de Viola com dedos
fortes e se afastou um pouco. — Agora, senhorita Carlyle, se
consegue dar quatro passos com apenas cinco centímetros de
separação entre o calcanhar do pé dianteiro e o dedo do pé
traseiro, será maravilhoso.
— Cinco centímetros?
— Para começar. — Seus olhos chapeados reluziam.
— Tenho que aprender a caminhar sem separar os pés
como se estivesse em um harém oriental?
Serena soltou uma gargalhada tão forte como a de Viola.
— Claro que não — lhe assegurou o senhor Yale. —
Começaremos exagerando um pouco, e quando dominar a
técnica, poderemos adaptar ao mais apropriado.
— Entendo. — Deu um passo.
Ele meneou a cabeça.
— Foram pelo menos trinta centímetros. E as damas
não falam de haréns orientais.
— De nenhum harém, em realidade. — Serena cravou a
agulha no bastidor.
— Cinco é ridículo. — Viola deu outro passo.
— Isso foram quinze.
— Trocar as fraldas da Maria é muito mais divertido que
isto.
— Outra vez quinze.
— Bem, para ver assim. — levantou a enorme
quantidade de saias e deu o menor passo imaginável.
— Ah. Muito melhor. Embora uma dama nunca deve
levantar as saias por cima da tíbia.
— É verdade, Ser?
— Temo que sim.
Viola apertou os dentes e deu outro passo.
— Aprende depressa — murmurou o senhor Yale.
— Sempre foi assim — replicou Serena.
— É impressionante.
— Muito. — Viola assobiou.
— Ainda estou aqui.
— E as damas nunca devem interferir em uma conversa
à qual elas não foram convidados. Nem assobiar.
— As damas parecem ser um aborrecimento.
— A maioria é.
Viola voltou para a cadeira com pequenos passos. Com
um enorme suspiro, deixou-se cair no assento, agarrou um
biscoitinho da bandeja de chá, meteu na boca e mastigou
com evidente prazer. Pelo menos a recompensa por seu duro
trabalho era deliciosa.
Depois de um momento, notou um enorme silêncio no
gabinete. Levantou a vista e viu que o senhor Yale e Serena
olhavam a trilha de açúcar que ela tinha sobre o regaço de
seu bonito vestido verde.
— Diabos!
A próxima aula estava relacionada com os talheres, a
seguinte com a arte de aceitar o braço de um homem e a
seguinte com sua pronúncia.
— Sei que tenho acento americano. Um pouco. Mas não
vejo o que tem isso de mau — disse Viola ao mesmo tempo
em que segurava o chapéu com as mãos para evitar que a
brisa marinha o arrastasse pela estrada.
Ver os quartos traseiros dos cavalos tão perto estava
inquietando-a, mas o senhor Yale conduzia as rédeas com
soltura e Serena parecia tranquila Os dois disseram que
tinha que se acostumar a viajar naqueles veículos.
— Seu acento é encantador, senhorita Carlyle.
— E o que tem de mau minha forma de falar?
— Deve ser menos colorido.
O senhor Yale sempre dava esses conselhos com uma
elegância muito viril, estivesse sóbrio ou bêbado. Esse dia
ainda não tinha provado uma gota de álcool, mas certamente
o faria assim que retornassem de seu passeio. Entretanto,
esse costume não parecia alterar sua forma de comportar-se
com ela, sempre de forma abertamente entusiasmada e
totalmente inofensiva. Não tinha muito claro por que tinha
imaginado que se sentiria ameaçada por ele, exceto pelo fato
de ser um verdadeiro cavalheiro e não ter visto um desde a
infância. Além disso, ele era muito bonito.
— O que acontece com minha linguagem?
— Nada — se preparou ele para responder. — Se deseja
parecer muito na moda e um pouco rápida, pode seguir
falando assim.
— Rápida?
O senhor Yale arqueou uma sobrancelha.
— Ah. Suponho que não quero. Porque não quero,
verdade?
— Certamente que não quer — sentenciou Serena.
Viola intercalou as aulas de boas maneiras com as
visitas ao quarto infantil para fazer cócegas a sua sobrinha e
brincar com seus dedos, assim como com períodos de tortura
que a visitava Jane e a altiva donzela de sua irmã, que
Serena assegurava que era muito agradável assim que a
conhecia. Entretanto, Viola não a tinha em muita estima
desde dia que lhe depilou as sobrancelhas até lhe provocar
uma dor de cabeça, que ordenou às criadas que lhe
esfregassem os pés, os cotovelos e as mãos com pedra-pomes
até lhe deixar a pele em carne viva, e desde que a submeteu
ao soberano aborrecimento que lhe cortassem, limpassem e
limassem as unhas como se ela não fosse capaz de assear-se
sozinha. Quando a donzela sugeriu a sua senhora que
deveriam lhe cortar seu cabelo para estar na moda, Viola
bateu o pé.
— Meu cabelo fica como está. Quando sopra o vento,
tem que ser bastante comprido para poder recolher em um
rabo de cavalo.
Serena acariciou os cachos de Viola com os dedos.
— É perfeito tal como está.
Quando Viola dominou o uso dos garfos, das colheres e
das facas, assim como a tarefa de servir o chá, sentiu-se
preparada para confrontar outros desafios. Seu otimismo
demonstrou ser muito ambicioso.
— Não tenho as mãos prontas para isto. — Os dedos,
avermelhados pelas fricções, escorregavam-se pelo pincel.
Uma mancha de água-marinha decorava o papel que estava
no cavalete.
— Elas não são feitos para isso — a corrigiu o senhor
Yale. — Suas mãos não estão feitas para isto. Mas, em todo
caso, uma dama nunca deve falar de suas mãos.
— Por que não?
— Porque os cavalheiros pensariam em coisas que não
deveriam pensar quando estão acompanhados.
Serena arregalou os olhos. Viola sorriu.
O senhor Yale as olhou para uma e a outra, com as
sobrancelhas arqueadas e uma expressão inocente.
— Tinha entendido que estávamos sendo sinceros para
ajudar na educação da senhorita Carlyle.
— E assim é. Mas, Wyn...
— Milady, tendo em conta que seu marido foi em outro
tempo o libertino mais famoso que pisou nos salões de
Londres, pergunto-me de onde saiu seu escrúpulo.
— Reformou-se. É obvio. — Havia um brilho risonho em
seus olhos de diferentes cores.
Viola espalhou mais tinta no papel e inclinou a cabeça.
Seu navio parecia um tatu. Suspirou.
— Nisso tem razão, Ser. Porque, vamos, como não...
— Porque, senão... — corrigiu-a Serena.
— Porque, senão era como não soubesse o que os
homens pensam a maior parte do tempo. Convivi com
cinquenta e quatro homens a bordo...
— Eu nem sequer conheço de vista cinquenta e quatro...
Pelo amor de Deus! Cinquenta e quatro?
— Eu conheci muito bem cinquenta e quatro homens
durante dez anos. Os homens só interessam uma coisa por
cima de todas as demais. — Como o imbecil que ela tinha
cometido a tolice de apaixonar-se só queria uma coisa dela...
além de levá-la a casa.
— Nem todos os homens. — Serena limpou a tela com
um trapo e mordeu o lábio. — O senhor Yale está a duas
semanas nos ajudando a te educar sem ter pensado sequer
nisso, não é verdade, Wyn?
Viola e ela o olharam em busca de confirmação.
— É verdade — respondeu ele sem inflexão alguma.
— Viu? — Serena se concentrou de novo em seu quadro.
O cavalheiro esboçou um sorriso torto e piscou um olho
para Viola. Esta se pôs a rir.
— Não se preocupe, senhor Yale, sei que não lhe
interesso dessa maneira.
Ele arregalou os olhos .
— Um momento, sou tão suscetível a um rosto e um
corpo bonito como qualquer homem.
— Não tem que... Quero dizer que não precisa que finja
indignação comigo, senhor. — Começou a dar pinceladas.
— Eu me esforçarei para não considerar isso um
insulto.
— Não deveria. Absolutamente... Mas eu... O fato é que
continuo sem saber por que permanece aqui, me ajudando,
quando não lhe interesso dessa maneira.
Serena soltou uma risadinha.
— Segue sendo tão sincera e tendo tanta confiança em
seus encantos como de costume, Vi. Adoro-te por isso —
confessou sua irmã.
— Você teve muita confiança quando era criança?
— Muito. Mesmo quando aqueles marinheiros subiram o
penhasco e começaram a caminhar em nossa direção. Você
começou a piscar e olhou para eles com um sorriso descarado
enquanto lhes exigia com voz doce que se apresentassem e
explicassem o que faziam na propriedade de seu pai. Ficaram
tão estupefatos que se tivesse nos ocorrido sair correndo,
acredito que lhes teríamos tirado vantagem de sobra.
— Mas não nos ocorreu sair correndo. E agora estou
aqui, aprendendo a pintar com aquarelas, algo que deveria
dominar a dez anos.
— Nunca o teria dominado. — O senhor Yale olhou por
cima de seu ombro. — Não tem um ápice de talento. Alguém
quer tocar piano?
Serena soltou o pincel.
— Que alívio. Eu não gosto de pintar absolutamente.
— E por que diabos...?
— Disse que queria aprender tudo o que devia saber
uma dama. — Serena pôs-se a andar para a porta. — O piano
está no salão, como a harpa, é obvio, e dentro de quinze
minutos também estará o chá.
Com o cabo do pincel entre os dentes, Viola viu como
sua irmã desaparecia. Olhou de novo seu desastre de pintura
e deixou cair os ombros. Mal tinham transcorrido sete dias e
já estava farta. Dominaria-o, mas oxalá pintar, comer e andar
fossem coisas tão singelas como jogar a âncora ou içar as
velas.
O senhor Yale ficou em pé e lhe ofereceu o braço. Viola
soltou um suspiro frustrado.
— Não tenho que pegar em seu braço para ir até o salão,
que está a duas portas mais à frente, verdade?
— Terá que praticar e praticar. — Olhou-o.
— Não está tão desinteressado como diz, verdade,
senhor Yale?
— Não é desinteresse, senhorita Carlyle — respondeu ele
com bastante seriedade. — Só sou leal a um homem que me
salvou a vida em mais de uma ocasião.
Olhou-o boquiaberta.
— As damas não olham boquiabertas a ninguém.
Viola fechou a boca e ficou em pé. Continuando, olhou
os pés de ambos, os reluzentes sapatos do senhor Yale e seus
delicados escarpins que apareciam por debaixo do vestido.
— Me repita como se conheceram.
— Não estou com disposição de contar isso. — O Senhor
Yale pegou sua mão e, em seguida, procedeu a colocar-lhe no
braço. — Mas talvez se perguntar a ele, esteja disposto a
contar-lhe. Suspeito que estaria.
— Acredito que interpretou mal a situação.
— Tenho certeza de que não.
O estômago lhe deu um salto.
— O que ele contou?
O senhor Yale a olhou em silêncio um bom momento
antes de responder:
— Não me contou nada. Não precisava.
— De qualquer forma, se equivoca. De toda maneira,
não acredito que volte a vê-lo, assim não poderei lhe
perguntar nada.
— Insisto, embora pareça muito mal educado, que é
você quem se equivoca e acabará me dando a razão.
— Senhor Yale, confesso que o maior desafio de me
converter em uma dama é aceitar que os cavalheiros
acreditam saber muito mais que eu. Na verdade, tenho a
impressão de que nunca conseguirei aceitá-lo. Então, talvez
nunca me converta em uma dama. — Ele deu um sorriso a
ela.
— Ah, Que alívio. Começava a me preocupar.
Partiu e abandonou a estadia sem nenhuma ajuda.

****

— Sua Excelência se recusa a vender. — O visconde


Gray estava sentado do outro lado da tosca mesa de madeira,
em frente à Jin, enquanto o sol de finais do verão penetrava
na tenebrosa taberna. O estabelecimento, situado em uma
área tranquila de Londres, estava vazio salvo por eles dois.
Como Jin, o visconde se vestia com simplicidade para a
entrevista, mas seu porte e seu olhar direto deixavam claro
que era um aristocrata.
— O secretário do bispo me assegurou que não se
desprenderá nem de um só objeto de sua coleção de arte
oriental nem por todo o ouro do mundo. Em especial, desse
objeto em concreto. — Gray levantou o copo de cerveja e o
olhou por cima da borda. — O que há no cofrezinho, Jin?
— Nada de valor. — Só sua verdadeira identidade.
— E por que me pediu ajuda? Não acredito que o tenha
feito antes, sob nenhuma circunstância. — Embora manteve
a voz serena e uma postura relaxada, Colin Gray não era tolo.
O Almirante e o Rei confiavam no chefe de seu clube secreto
por um bom motivo.
— Pareceu-me a forma mais rápida de adquiri-lo. —
Gray assentiu com a cabeça.
— É obvio.
Nenhum dos dois precisava dizer o óbvio: Jin tinha o
respeito de vários comissários que constituíam o Conselho do
Almirante. Mas Gray tinha contatos sociais, de modo que sua
petição de comprar uma peça antiga de uma coleção privada
passaria despercebida.
— Entretanto, tendo em conta que o ajudei sem fazer
perguntas — acrescentou o visconde, — eu gostaria de uma
explicação.
— Sua ajuda não me reportou em nada. E se não queria
me prestar esse favor, ninguém o obrigaria.
Jin fez um movimento para se levantar.
A mão do visconde lhe segurou o pulso, como um
grilhão.
— Pediu-me porque deseja se manter no anonimato. —
Uma gota de aço apareceu na voz de Gray. — Espero saber
por que.
— Colin, se não tirar a mão de cima de mim, eu vou
cortá-la. — Os olhos escuros e azuis se cravaram nos seus.
— Você está desarmado.
— Certeza?
Gray o soltou, mas seguiu olhando-o sem ceder um
ápice.
— Há sete anos, quando começamos, não entendi
porque Blackwood confiava em você cegamente.
— Não? E o que você tem jogado todo esse tempo para
me incluir no seu clube, Colin? Para manter seus amigos
próximos e seus inimigos mais perto ainda?
— No princípio, talvez. Contribuía muito com seus
contatos nos portos e em todos os estratos de Londres,
aparentemente. E com seu navio.
Jin se apoiou no respaldo da cadeira e cruzou os braços
diante do peito.
— Isso quer dizer que tenho certa utilidade?
— Mas logo percebi o que Leam sabia há muito tempo —
continuou Gray como se não o tivesse interrompido. — Você e
eu nunca nos demos bem. É imprevisível e parece não fazer
nada que vá contra seus interesses. Mas as aparências
enganam. Além de Leam, é o único homem a quem confiaria
minha vida, Jinan. — Olhou-o aos olhos. — Conte-me e talvez
possa te ajudar.
Jin observou o aristocrata. Gray estava imerso nessa
missão não porque estivesse obrigado a fazê-lo, já que sua
riqueza e seu título estavam assegurados. Servia a seu rei e a
seu país porque a honra e o dever eram mais importantes
para ele que sua própria vida. Gray considerava a todos seus
companheiros do clube (Leam, Wyn, Constance e inclusive ele
mesmo) parte desse dever. Sim, o dever era o primeiro.
— Não é por mim unicamente, verdade, Colin?
— Blackwood. E Yale. Sei melhor que ninguém o que
tem feito por eles. Sei que protegeu Leam de mim quando ele
quis abandonar o clube. Levou seu navio ao mar do Norte
para perseguir a esses rebeldes escoceses quando, em
realidade, desejava partir para o Oeste. Você o fez com a
esperança de que isso não implicasse Leam.
Jin não negou. Gray era muito inteligente para alguém
que tinha poucos anos a mais que ele.
— E embora Yale nunca tenha me contado nada, eu sei
que você estava lá na noite em que ele atirou naquela moça.
Sei que Constance te pediu que o ajuda-se, e suspeito que
acaba de vê-lo não porque ele quisesse encontrá-lo a sua
volta, mas o contrário.
— Sabe tudo isso? Pergunto-me o que ficou claro desta
informação.
Gray passou uma mão pela nuca.
— Pelo amor de Deus, é como falar com Sócrates.
Embora seja melhor que falar com o ar, depois de te mandar
cartas durante um ano e sem obter resposta alguma. — ficou
em pé. — Jin, se chegar a necessitar de minha ajuda, estarei
pronto para isso. Até esse momento, o diretor quer saber se
pode contar contigo para esse assunto em Malta. Suponho
que Yale terá falado do assunto.
— Mencionou-me isso.
— Você ainda está conosco ou seguiu o mesmo caminho
que Blackwood depois de tudo? Constance insiste em que
segue fazendo parte do clube, mas exijo saber de seus
próprios lábios.
Por que não? Bem podia sulcar o Mediterrâneo em outro
encargo do rei e do diretor secreto do Clube Falcon. Pela
primeira vez em dois anos, não tinha outra coisa melhor a
fazer, e distanciar-se da Inglaterra iria bem. O cofre que
queria estava fora de seu alcance, o mesmo que a mulher.
Ambos eram parte de uma sociedade que, como o homem
diante dele, tolerava sua presença por suas habilidades,
embora sempre desconfiaria dele pelo mesmo motivo.
Tinha forjado sua reputação a base de violência e,
apesar de tudo, não era um deles.
— Vou entrar em contato com você. — Gray assentiu
com a cabeça.
— Espero notícias tuas logo. — Estendeu-lhe a mão e
Jin a aceitou.
— Colin — disse com uma nota vacilante. As palavras
saíram de sua boca sem pensar, de uma parte de seu ser que
não queria reconhecer, — obrigado.
Os olhos do visconde reluziram.
— De nada.

****

Jin sentou-se sozinho na taberna por alguns minutos,


antes que Mattie e Billy chegassem.
— Matouba diz que veio aqui antes e que os
freqüentadores não gostaram muito dele. Ele ficou no navio.
— Billy sorriu ao tempo que se sentava.
Mattie grunhiu ao taberneiro e se sentou.
— Vimos Sua Excelência sair. Parecia tão negro como
Matouba. Você o irrita, verdade?
Jin o olhou com expressão séria.
— Você ouviu falar sobre algo interessante?
— Um criado de nível inferior. Não há muitos na casa. O
bispo tem muitas coisas que não quer que os criados toquem.
— Mattie franziu o cenho. — Não sei se será fácil de
surrupiar.
— Quando isso nos impediu? — Billy mostrou os dentes.
Mattie deu de ombros e agarrou seu copo.
— Como se chama o criado? — perguntou Jin.
— Hole Pecker...
Jin arqueou uma sobrancelha ao escutá-lo.
O sorriso do Billy se alargou ainda mais.
— Assim lhe chamou sua mãe.
— Tem um horário regular?
— Sai da casa as dez em ponto, quando o bispo entra. —
Mattie bebeu a cerveja e deixou as mãos na mesa. — A coisa
é que Billy, Matouba e eu queremos fazer isto em seu lugar.
— Não tenho intenção de fazer nada agora. Limitei-me a
expressar um inocente interesse pelo pessoal do bispo.
Billy arregalou os olhos. E Mattie os estreitou. Mas Jin
foi muito claro com o tom que imprimiu a sua voz.
— Um momento. — Mattie apertou os punhos. — Não
pode seguir fazendo estes truques.
— Tem razão, capitão — conveio Billy, com o sorriso um
tanto apagado. — Já não é bom para você fazer isso.
— Não estou fazendo nada, como acabo de dizer. Já não
nos dedicamos a isso, cavalheiros. Pelo menos, não enquanto
trabalhem para o mim...
— Agora vai dizer que nos metamos em nossos
assuntos, Billy — o interrompeu Mattie. — Acredito que a
senhorita Carlyle não se equivocou ao nos dizer que tínhamos
o asno mais teimoso e arrogante do mundo por capitão.
— Sim, ela disse. — Billy assentiu com a cabeça,
pensativo.
Jin sorriu.
— Sinto falta da senhorita. — As esquálidas bochechas
de Billy se ruborizaram. — Como ela vai na mansão, capitão?
— Bem, pelo menos na última vez que a vi.
— Estava bem? — Mattie o olhou com expressão
penetrante e o cenho franzido.
Billy sorriu de novo.
— Certamente que lady Redstone lhe pôs vestidos, fitas
e todas essas coisas que usam as damas.
Como deveria ser. Entretanto, ainda lhe surpreendia
que depois de todas essas semanas só gostaria de estar junto
a ela. Em qualquer lugar, com a roupa que ela quisesse usar.
Ou sem roupa.
— Cavalheiros, o navio está pronto?
— Pronto para zarpar. Vamos a alguma parte?
— Talvez.
Mattie franziu seus carnudos lábios.
— Não me dirá que vai subornar este criado para que
roube o cofre e entregá-lo ou deixar a porta de trás aberta
para você roubá-lo, verdade? Pois me parece que é o que
planeja.
— Não estou planejando nada, Matt. — ficou de pé. —
Só é curiosidade.
Partiu, entrando nas ruas movimentadas, cheias de
carruagens, transeuntes, vendedores ambulantes, floristas de
rua e demais agitação de Londres, o mesmo que tinha
conhecido pela primeira vez anos atrás, quando chegou à
Inglaterra em busca de redenção na terra de seus
antepassados. A parte desconhecida.
Gray tinha razão. Conhecia todos os estratos sociais de
Londres, dos aristocratas que se sentavam no Parlamento até
os meninos que roubavam suas carteiras aos ditos
aristocratas para alimentarem suas famílias famintas.
Conhecia-os todos, e a vida que levavam ele tinha feito parte.
Mas já não. A inquietação o afligia nesse momento,
incapaz de encontrar a paz. Claro que já não tinha um
objetivo e a porta para a esperança que ele manteve aberta
depois de deixar Viola em Devonshire tinha se fechado. Talvez
seu pai tenha sido um cavalheiro de boa família e riqueza.
Talvez. Mas sem o cofre nunca saberia.
Ele parou para deixar uma guiné no bolso de uma
mendiga cega. Rápida como o raio, a mulher lhe agarrou os
dedos.
— Que Deus te abençoe, filho — murmurou ela, com os
olhos velados e um rosto envelhecido pelos dias de trabalho
sem esperança em sua esquina.
— Nunca fui um filho, avó — replicou em voz baixa. —
Mas aceito sua bênção de todas as formas.
Devolveu-lhe o aperto a seus ossudos dedos, soltou-lhe
a mão e prosseguiu seu caminho através da agitação que já
não lhe produzia a mesma fascinação de costume. Não
desejava meditar sobre a mudança nem por que se produziu.
Não desejava percorrer esse caminho. Sabia que não devia
expor-se sequer.
Malta parecia cada vez mais atraente para ele.
21

— Lady Savege — disse a esposa do vigário com tristeza,


— temo que sua irmã jamais conseguirá tocar com destreza.
— Ah, não, senhora Appleby? — replicou Serena,
imitando o tom de voz da mulher.
— Embora possua a dureza necessária nos dedos para
tocar o instrumento...
Viola, que se encontrava depois da ombreira da porta no
corredor, não alcançava a ver a sombra da mulher, mas sabia
que devia retorcer as mãos. Um gesto que não tinha parado
de fazer durante as lições de harpa. Embora era uma virtuosa
do instrumento, também era uma má pessoa. Estava muito
agradecida de não ter tido que lidar com mulheres em seu
navio. Teria acabado enlouquecendo.
Embora, claro, Jin pensava que já estava louca.
— Carece de delicadeza para isso.
— A delicadeza?
— Do grau de elegância que um harpista deve alcançar.
— Não tenho delicadeza nem elegância — sussurrou
Viola ao homem que estava inclinado sobre seu ombro.
— Eu não diria tanto — replicou ele, também em voz
baixa.
— Mas sim, acha.
— Antes de admiti-lo prefiro que me fustiguem.
— Senhor Yale, você é muito peculiar.
— É a primeira vez que uma dama me diz isso.
Pontuaram-me de brilhante. De bonito. De alegre. De
peculiar, nunca.
— Bom, segundo a senhora Appleby não sou uma dama,
assim pode estar tranquilo.
Serena e a esposa do vigário se voltaram para a porta. O
senhor Yale agarrou Viola pelo braço e entrou com ela da
forma mais decorosa.
— Uau, senhora Appleby, nos causara pena não contar
mais com sua presença, mas parece que a senhorita Carlyle
machucou o mindinho com um... com um... — Deu um
aperto na mão de Viola.
— Tijolo! Digo... com uma roldana.
— Ah, sim, com uma roldana — afirmou ele que a
olhava de forma eloquente. — E por isso não pode continuar
com suas lições de harpa. — Soltou Viola e tomou à senhora
Appleby pelo braço. — Permita-me acompanhá-la até a
carruagem de lorde Savege. Albert a levará para casa. —
Afastou-se com ela.
— Albert? Ah, é um tipo excelente. Entretanto, não
entende para que necessitamos das colheres dos ovos e não o
culpo, a verdade...
— Não para de dizer tolices. — Serena tomou sua irmã
pelo braço. — E acredito que ele a admira muito. Se não fosse
por você, ele já estaria em Londres há muito tempo.
— Ele é muito gentil. Não recordava que os cavalheiros
fossem tão… tão...
— Jovens e bonitos?
— Eu ia dizer tolos, mas depois recordei que o barão
estava acostumado a nos entreter com aqueles ridículos
jogos, verdade?
A expressão de Serena se tornou séria.
— Sim. Recordo-o muito bem.
Nesse momento, apareceu um criado pela porta que as
saudou com uma reverência.
— Milady, um cavalheiro a espera no salão azul. Pediu
que não o anuncie e deseja que o você receba sozinha se não
se importar.
— Que estranho. — Intercambiou um olhar com o
criado. Seus olhos se arregalaram de surpresa. — Vi,
encarregarei-me deste assunto e voltarei dentro de um
momento. O jardineiro cortou flores e acredito que poderemos
fazer alguns buquês.
— Enquanto não tivermos que costurar ou tocar um
instrumento musical, perfeito — replicou ela, que se
aproximou da janela para contemplar o oceano que se
estendia até o horizonte.
Era um dia ventoso, o que indicava que se aproximava
uma tempestade do verão. Se estivesse a bordo de seu navio,
ordenaria a seus homens que protegessem as escotilhas e
baixassem as velas, deixando apenas algumas para guiá-los
quando aumentasse o vento. Enviaria a um terço da
tripulação para baixo e organizaria uma mudança de guardas
no caso da tempestade prolongar-se. Depois, abriria um
barril de rum de Madeira, Becoua tocaria uma canção em seu
bandolim enquanto Sam e Frenchie cantavam e celebrariam o
fato de ter sobrevivido a outro dos perigos do mar.
Suspirou e seu fôlego se condensou no cristal, embora
se evaporou imediatamente. Dois meses tinham passado
desde que deixou para trás seu navio e sua tripulação e... não
sentia falta dele.
Não sentia falta dele!
Tinha saudades de Louco, isso sim, porque era seu
velho amigo. Tinha saudades da sensatez da Becoua, o bom
humor de Sam e de Frenchie, e do pequeno Gui, que tinha
chorado muito no dia que partiu de Porto Espanha. Tinha
saudades do seu acolhedor e desmantelado camarote, e se
perguntava como estariam seus homens em Boston. Mas não
tinha saudades da vida no mar, e isso fazia com que se
sentisse mal.
Porque deveria ter saudades. Tinha-lhe encantado
capitanear seu próprio navio, rastrear a costa de
Massachusetts em busca de rufiões e manter-se afastada de
Aidan porque era incapaz de abandonar essa vida. Por fim o
tinha feito e não sentia falta dela.
Tinha saudades de Jin. Muito.
O projeto de converter-se em uma dama não bastava
para arrancar-lhe do pensamento. Nem das entranhas.
Sentia uma dor constante no coração e no abdômen que lhe
recordava todos os dias que ele tinha posto sua vida ao
contrário, mas que ainda não sabia se era para bem ou para
mau.
Brincou com as fitas que se penduravam por debaixo de
seus seios e tentou respirar fundo apesar do espartilho.
Doíam-lhe os pés por culpa dos estreitos e ridículos
escarpins, e estava cansada de passar uma hora todas as
manhãs diante do espelho enquanto Jane a penteava.
— A partir de manhã — murmurou, sem afastar-se da
janela e embaçando de novo o cristal — me pentearei com
uma trança, Serena rirá, Jane me olhará zangada e eu estarei
muito mais... — Tocou a parte embaçada do cristal com um
dedo. — Mais... — Repetiu o gesto. — Mais cômoda.
— Vi? — Serena a chamou do vão da porta.
— O que? — disse ela, voltando-se. — Quem veio?
— Temo que vai se zangar comigo. — Sua irmã tinha
unido as mãos diante da cintura. — Se inteirou pelos servos
de que estava aqui e me escreveu, mas lhe disse que não
devia vir até que você estivesse preparada. Entretanto, você
não o mencionou sequer uma vez e eu não queria te
pressionar...
— É o barão, verdade? Veio.
Serena assentiu com a cabeça.
— Tem muitas vontades de ver-te.
Viola atravessou a estadia, respirando o mais profundo
que lhe permitia o espartilho para tomar a mão que lhe
oferecia sua irmã.
— Nesse caso, não devemos fazê-lo esperar.
Caminhou pelo corredor que levava até o salão azul com
a serenidade que tinham ensinado sua irmã e o senhor Yale,
mas tinha os punhos apertados sobre as saias pela tensão.
Serena fez um gesto a um criado para que abrisse a porta.
O cavalheiro que aguardava de pé no centro da estadia
não podia se opor à opulência que o rodeava. Entre os ricos
tons dourados e azuis do salão, parecia um espantalho, meio
calvo e muito magro, e vestido com uma roupa pouco
elegante. Entretanto, seus olhos tinham a mesma expressão
carinhosa de antigamente e estavam cheios de lágrimas.
Viola sentiu um nó na garganta.
— Viola? — disse ele.
Conseguiu fazer uma reverencia.
— Bom dia, senhor. Ele franziu o cenho.
— Vai se mostrar cerimoniosa comigo? Acaso minha
garotinha se converteu em uma dama tão importante que
nem sequer vai aproximar-se para me apertar a mão
Viola se adiantou e ele estendeu ambas as mãos. Ela
tomou. Uma solitária lágrima se deslizou pela enrugada
bochecha do barão e caiu sobre seus dedos.
— Suas mãos são as mesmas — murmurou ela. Cálidas,
grandes e seguras como sempre tinham sido.
Tal como as tinha recordado todas as noites no navio
durante aquele primeiro mês e durante muitas noites depois,
quando sonhava com sua casa e se perguntava se seu pai iria
procurá-la. Depois, quando Fionn lhe disse que todos
acreditavam-na morta, deixou de sonhar. Os sonhos eram
coisa de Serena, não de uma menina aventureira como ela.
Não da menina aventureira que seu pai acreditava que era.
Seu pai queria que fosse corajosa.
E foi. Mas nesse momento tremia como se voltasse a ser
uma menina de dez anos.
— É uma beleza, como sua mãe. — Seu rosto, murcho e
enrugado como ela jamais teria imaginado, iluminou-se ao
esboçar um sorriso. — Minha garotinha. Minha Viola. Como
chorei sua perda!
Talvez Viola visse em seus olhos a magnitude de seu
sofrimento. Ou talvez o sentisse em seu coração. Entretanto,
não poderia suportar seu afeto se por acaso voltasse a perdê-
lo, se por acaso voltasse a perder Serena, se por acaso
voltasse a perder o afeto de todos aqueles que tanto se
esforçou por esquecer.
— Eu também senti sua falta — disse através do nó que
sentia na garganta, — papai.
Ele deu um aperto nas suas mãos e Serena conteve um
soluço de alegria.
Depois, houve muito do que falar e muitas, muitas
amostras de consolo.

****

— Vi, já estão aqui! — Serena estava nas pontas dos pés


na porta da cozinha.
— Estão, em plural? — perguntou-lhe Viola ao tempo
que soltava um ramalhete de romeiro e tirava o avental.
— Alex. E alguns amigos. Vêm quatro carruagens pela
avenida da entrada.
O coração de Viola se acelerou. Quatro carruagens! Com
quatro carruagens, inclusive com uma, talvez...
Não deveria estar tão ansiosa. Jogou uma rápida olhada
às ervas aromáticas penduradas para que se secassem. Era a
tarefa mais singela que tinha realizado como parte de seus
estudos para converter-se em uma dama, e tinha se
convertido em sua favorita. Embora poderiam esperar.
Detestava a si mesmo por albergar esperanças. Não
obstante, podia seguir detestando-se enquanto caminhava
atrás de sua irmã para a parte dianteira da mansão, onde os
servos já estavam transladando baús e bolsas da viagem.
Chegaram ao vestíbulo, onde se alinhavam as donzelas e os
criados, justo quando entrava um cavalheiro pela porta. Alto,
musculoso e muito atraente, com o cabelo castanho, porte
elegante e o sorriso de um homem seguro de si mesmo. Assim
que ele entrou, perguntou com descaramento:
— Onde está minha senhora e esposa?
— Aqui estou, Milorde.
Viola jamais tinha escutado sua irmã falar com essa voz
rouca e doce. O olhar de lorde Savege posou nela e sua
expressão relaxou ao esboçar um sorriso perverso.
— Aí está, sim, senhor. — aproximou-se dela, agarrou-
lhe uma mão e lhe deu um beijo bastante longo no dorso.
Depois, deu-lhe outro na palma.
Viola se emocionou ao presenciar a cena. Desviou o
olhar para a porta.
— Milady, como está você? — perguntou-lhe o conde
com um tom brincalhão. — Como está nossa filha?
— Nós duas estamos muito bem. Agora mesmo está
tirando uma soneca. — Serena tomou seu marido pelo braço.
— Alex, me permita apresentar a minha irmã, Viola.
— Senhorita Carlyle — a saudou seu cunhado com uma
reverência, — bem-vinda a casa.
Nesse momento, entraram três damas e um cavalheiro,
todos desconhecidos para Viola. Um criado fechou a porta
atrás deles, fazendo com que caísse a alma de Viola aos pés.
Recriminou-se em silêncio.
Depois de alguns minutos, entendeu perfeitamente por
que sua irmã se apaixonou pelo conde de Savege. Não era
como ela imaginava que devia ser um conde, rígido e correto.
Era um homem afável e muito simpático.
— Minha irmã Kitty, lady Blackwood, quer lhe conhecer
— disse a Viola, — mas ficou na cidade com seu bebê e
espera que nos reunamos com ela logo. De todas formas,
enviou suas amigas da alma como substituição.
Uma das damas, uma jovem esbelta de cachos
castanhos e olhos escuros, saudou-a com uma reverência.
— Sou Fiona Blackwood — se apresentou. Falava com
ligeiro acento escocês. — A irmã de lorde Savege, Kitty, está
casada com meu irmão e é minha melhor amiga. E você é
muito bonita.
— Mas o importante é que você tem dois dedos na frente
— replicou a outra moça, de cabelo loiro e curto, e olhos
verdes. Usava óculos de aros dourados e parecia observá-la
em detalhe. — Como está, senhorita Carlyle? Sou Emily Vale,
mas prefiro que me chamem Lisístrata28.
— Outra vez mudou o nome, milady? — perguntou-lhe o
senhor Yale, que acabava de aparecer no vestíbulo. — Deve
haver-se cansado de Boadicea29.
— Boadicea era o nome escolhido por Emily antes de
decidir-se por Lisístrata — lhe disse ao ouvido lady Fiona a
Viola.
— Não me cansei dele — assegurou a jovem ao senhor
Yale. — Mas já estou cansada de você, e isso que acabamos
de nos encontrar. — Fez uma pausa. — quanto mais tempo
passa, mais me canso de vê-lo.
O senhor Yale riu entre dentes.
— Não preste atenção a ma petite30 Emilie, chère
mademoiselle31 — disse uma dama muito elegante vestida de
negro, branco e vermelho enquanto saudava Viola beijando-a
nas bochechas, um gesto que a envolveu em uma nuvem de
perfume parisino. — Não gosta dos trajetos longos em
carruagem.
— Apresento madame Roche, senhorita Carlyle — as
apresentou lady Fiona, que ao sorrir revelou um par de
covinhas em suas bochechas de alabastro. — É a dama de
companhia de lady Emily, uma mulher muito graciosa. —

28Lisístrata é uma comédia famosa de Aristófanes. Escrita e encenada na Atenas


clássica em 411 a.C., provavelmente nas Lenéias, um dos festivais anuais atenienses
sagrados em homenagem ao deus Dionísio
29Boadiceia foi uma rainha celta que liderou os icenos, juntamente com outras tribos,
como os trinovantes, em um levante contra as forças romanas que ocupavam a Grã-
Bretanha em 60 ou 61 durante o reinado do imperador Nero
30Ma petite – minha pequena
31chère mademoiselle – querida milady
Seus olhos se cravaram no senhor Yale. — Mas vejo que
desfruta de um acompanhante do mesmo aspecto.
Serena se aproximou com um cavalheiro magro e de
cabelo loiro, com brilhantes olhos azuis.
— Viola, apresento nosso meio-irmão, sir Tracy Lucas.
— Espero que só me chame Tracy — disse ele que a
saudava com uma reverência e um atraente sorriso. — Será
uma honra te chamar irmã.
— Um grupo maravilhoso, verdade, senhorita Carlyle? —
Lady Fiona esboçou um sorriso radiante. Era mais alta que
Serena, a personificação da beleza juvenil vestida de
musselina branca. — Será esplêndido conhecê-la melhor e sei
que lady Emily, ou melhor dizendo, Lisístrata, também será
da mesma opinião quando tiver se recuperado da fadiga da
viagem. — Jogou-lhe outro olhar ao senhor Yale, de soslaio e
absolutamente inocente. — Acredita que poderemos dançar?
Viola arqueou as sobrancelhas.
— Em realidade, não sei dançar.
A expressão da jovem se iluminou.
— Isso é maravilhoso! Daremos-lhe algumas lições.
A alegria alagou a casa. Acostumada a viver com muitas
pessoas compartilhando um espaço reduzido, Viola não se
importou com tanta atividade. Entretanto, os londrinos não
eram como sua irmã e o barão, mas se pareciam com o
senhor Yale: de inteligência rápida, a última mania da moda e
muito atentos a ela. Não obstante, Viola procurou em mais de
uma ocasião se refugiou no atalho do escarpado, a cujos pés
rompiam as ondas sobre a areia da estreita praia, o lugar
onde melhor podia escutar os agudos grasnidos das gaivotas.
Ali podia inspirar o ar procedente do mar, desfrutar do calor
do sol nas bochechas e sentir-se quase feliz. Salvo por esse
vazio em seu interior que se negava a abandoná-la.
O senhor Yale se mostrou sempre muito atento. Mas
dava a sensação de que o prazer que tinha obtido com sua
visita a Savege Park parecia minguar.
— Lady Fiona o admira — lhe disse Viola enquanto
olhava de esguelha a jovem, que estava tocando uma alegre
toada no piano. Tinha uma voz muito doce, parecida com o
canto dos pássaros que se escutavam nos jardins de Serena,
situados ao sotavento.
— Sim, enfim... — replicou ele antes de beber um gole
de vinho do porto. — Se quisesse encorajar essa admiração,
seu irmão me enforcaria.
— Acreditava que lorde Blackwood e você eram bons
amigos.
— Precisamente.
Viola olhou nos olhos chapeados, que não pareciam
afetados pelo vinho apesar de havê-lo visto tomar três taças
durante o jantar.
— Não tem o menor interesse nela, verdade?
— É uma preciosidade. — Voltou a beber.
— Mas...
— Senhorita Carlyle, sinto muito não poder continuar
com esta conversa em concreto. Por favor, desculpe-me.
— Senhor Yale, depois destas três semanas em minha
companhia, ainda não me conhece?
Viu-o esboçar um sorriso.
— Oh, vejo que me confundi! — Olhou-a fixamente. —
Eu direi de outro modo. Não tenho o menor interesse nas
jovenzinhas recém-saídas da sala de aula.
— Entretanto, brinca com lady Emily cada vez que se
apresenta uma ocasião. Não acredito que tenha mais de vinte
anos.
Esses olhos chapeados resplandeceram de repente.
— Ela é muito diferente.
— Acha que você é um indolente. Terá razão?
— Como é natural, você deve tirar suas próprias
conclusões.
— Careço da experiência necessária para compará-lo
com outros cavalheiros. Só conheço lorde Savege e a lorde
Carlyle, de modo que...
— Acaba de omitir nosso mútuo amigo de sua lista. Não
o acha um cavalheiro, senhorita Carlyle?
Viola sentiu que lhe ardiam as bochechas.
— Não sei o que você quer dizer. — Viu-o esboçar um
sorriso.
— Oh, conseguiu! Converteu-se verdadeiramente na
dama que queria ser a um mês.
Viola não soube se ria ou chorava. Acaso o mundo no
que tinha vivido durante quinze anos tinha desaparecido em
questão de semanas? Se voltasse a colocar meias e fosse a
armada, recuperaria os calos das mãos com rapidez ou
lentamente, como quando teve que acostumar-se ao trabalho
manual?
Com a extremidade do olho, viu que as saias de um
vestido branco se aproximavam dela, como se fossem as asas
de uma gaivota sobre a gávea.
— Senhor Yale — disse lady Fiona que entrecerrava as
pálpebras. Tinha lindos olhos castanhos, — se eu tocar
amanhã, ensinará à senhorita Carlyle a dançar? Lady Savege
disse que celebraremos uma festa no próximo fim de semana
e que participarão os vizinhos dos arredores. A senhorita
Carlyle afirma que não sabe dançar, e não penso permitir que
passe toda a noite sentada enquanto nos divertimos. É muito
bonita para isso. — Agarrou uma das mãos de Viola e lhe deu
um aperto amistoso. — Nosso anfitrião também é um
bailarino excepcional. Com sua ajuda, senhor Yale, tenho
certeza de que a senhorita Carlyle estará mais que preparada
para dançar durante a festa. Fá-lo-á, senhor?
— Será uma honra. Senhorita Carlyle?
— Bom, por que não? — Era impossível que dançar em
um baile fosse pior que a pintura ou tocar a harpa.
Mas se equivocou. Era muito pior.
— Ai, sinto muito!
— Não precisa que se desculpe, querida. A culpa é
minha — replicou lorde Savege com um sorriso hesitante.
Viola estreitou os olhos com cepticismo e voltou a
tropeçar com os pés de seu cunhado.
— Isto é impossível.
— As damas não resmungam na pista de baile — lhe
recordou o senhor Yale, enquanto tomava sua mão e a
afastava do conde.
— Suspeito que as damas tampouco desejam ter seu
facão a mão para cortar quinze centímetros da bainha de seu
vestido ou para rachar o espartilho e assim poder respirar.
— Uh la láa! — exclamou madame Roche entre
gargalhadas. — Senhorita Carlyle, você é très amusante32, é
sim?
— Suponho — replicou o senhor Yale com
equanimidade.
Serena riu baixo. Lady Fiona, que estava tocando piano,
executou uma alegre combinação de notas. Inclusive lady
Emily, que estava sentada lendo um livro, alheia à aula de
baile, sorriu. A cálida brisa entrava através das janelas
abertas para receber o ar fresco da tarde estival, balançando
as cortinas e as saias de Viola. Não poderia estar triste. Suas
novas amizades eram uma grande alegria, devia superar o
desafio de dominar essa nova habilidade e também havia o
consolo de poder desfrutar da bela casa de sua irmã. Sentir
esse insistente vazio interno, que apesar de tudo, parecia
ridículo. A essas alturas, já deveria haver-se acostumado.
Lady Fiona voltou a colocar as mãos sobre as teclas e
Viola continuou dançando com renovado empenho. Em um
dos giros, ficou de frente à porta do salão e ali estava ele. Jin.
Sem prévio aviso. Tão bonito como sempre e observando-a.
De repente, soube que jamais se acostumaria a esse
vazio interior, nem que tentasse distrair-se sulcando os sete
mares em um navio. Não havia nada sobre a face da terra que
pudesse distraí-la o suficiente. Porque não havia aventura

32Très amusante – muito engraçada.


mais perigosa que amar Jin Seton e que ele não
correspondesse a seus sentimentos.
22

Jin era incapaz de afastar o olhar dela. Sabia que devia


fazê-lo. Mas enquanto a via tropeçar na metade da pista,
enredando-se com a bainha do vestido e com os pés de seu
par, arruinando a dança em definitivo, o nó que levava em
seu peito todo esse mês desapareceu. Estava linda, tão bonita
com seu disfarce de dama como tinha estado vestida de
marinheiro. Movia-se pela pista de baile sorrindo, mostrando
seu prazer e sua ocasional hesitação sem reservas e sem
teatro. Como capitã, tinha enfeitiçado seus homens; e nesse
momento, dançava com toda sua vontade, se bem que não
com muito sentido de ritmo.
Quando por fim seu olhar posou nele, arregalou os
olhos, e Jin ficou sem fôlego. Viu-a tropeçar uma vez mais.
— Jinan, voltou! — Lady Savege bateu palmas e seu
marido se voltou com um sorriso nos lábios.
Aproximou-se dele com passos longos e a mão estendida
para estreitar-lhe.
— Não o abraçarei em presença de toda esta gente —
disse o conde com voz baixa e sentida, lhe apertando com
força sua mão. — Não tenho dúvidas de que você me
esfaquearia pelo constrangimento. Mas quero que saiba que o
faria se pudesse.
Jin se permitiu esboçar um sorriso tenso, embora a
enorme laje que tinha pesado em seu coração, finalmente
tinha desaparecido. A dívida que o tinha vinculado a esse
homem, a seu amigo, durante vinte anos finalmente estava
saldada.
Alex meneou a cabeça e pôs-se a rir.
— Então é onde você esteve em todos esses meses
quando não sabíamos nada de você, certo? Procurando uma
mulher que todos acreditavam morta.
— Pareceu-me uma ocupação tão válida como qualquer
outra. — Soltou a mão de seu amigo.
— E como está meu navio? Bem, o seu.
— No fundo do mar, Alex.
— O que disse? O que aconteceu? Quem foi?
— Uma dama. — Desviou o olhar além de Alex, para
Viola. Seu amigo imitou o gesto antes de olhá-lo uma vez
mais com os olhos arregalados. — Sim. — Sorriu. — É...
extraordinária.
Outros esperavam um sinal de seu anfitrião, mortos de
curiosidade. Entretanto, a dama cujos olhos via todas as
noites em sonhos tinha afastado o rosto.
Serena se aproximou deles.
— Bem vindo, Jinan. Me permita te apresentar aos
outros. Lady Emily...
— Já nos conhecemos durante um breve encontro na
casa de meus pais, há quase dois anos — disse lady Emily de
seu assento e o saudou com um gesto da cabeça. — Como
está, senhor Seton? Suponho que você não quer levar o
Senhor Yale quando partir de novo, verdade?
— A dama exala charme, como sempre — replicou o
galés. — Como está à cidade, Seton?
— Bem, obrigado. — Sem a presença da única pessoa
que desejava ver e que seguia sem olhá-lo. — Lady Emily, é
um prazer voltar a vê-la. Entretanto, temo que não tenho
planos de partir em breve.
Nesse instante, Viola o olhou de esguelha, apenas uma
olhadinha em sua direção, com os lábios entrecerrados.
Jin não sabia o que ia dizer até que pronunciou as
palavras, algo que fez com o único propósito de atrair seu
olhar.
O pânico voltou a assaltá-lo. Não deveria ter vindo. Mas
tinha sido incapaz de resistir e já era muito tarde. Obrigou-se
a permanecer calmo e se dirigiu a acompanhante de lady
Emily, a quem lhe fez uma reverência.
— Madame Roche, j'espère que vous allez33 bem.
— Je vais très bien, monsieur. Merci34. — A dama o
saudou com uma reverência antes de apontar a jovenzinha
que estava ao piano. — Acredito que já conhece mademoiselle
Fiona, a irmã de lorde Blackwood, um bom amigo seu.

33j'espère que vous allez – espero que você esteja bem.


34Je vais très bien, monsieur. Merci. ― Estou bem Milorde, obrigada
Fez-lhe uma reverência e a jovenzinha correspondeu
com uma reverencia, ocultando seus olhos castanhos com as
pestanas.
— E obvio, não tenho que te apresentar a minha irmã.
— Serena era toda sorriso quando agarrou Viola pelo braço.
— Enfim, tomamos o chá? Dançar me deu uma sede
tremenda.
— Querida, se não se importa — disse Alex, — levarei os
cavalheiros em busca de um refrigério mais forte. Seton, Yale,
que acham?
— Uma sugestão magnífica — murmurou Yale, que
lançou a Jin um olhar risonho antes de começar a andar
para a porta.
Jin se despediu das damas com uma reverência e os
seguiu de boa vontade. Uma coisa era sonhar com os olhos,
os lábios e as carícias de uma mulher que se encontrava a
milhares de quilômetros e lamentar a distância que os
separava. E outra muito distinta era estar na mesma estadia
que ela, com o desejo lhe correndo pelas veias, e conservar a
prudência mais que ela.

****

Havia retornado. Assim sem mais. Viola não recebeu


advertência alguma, nenhum criado anunciou seu nome,
embora os criados passavam o dia anunciando as entradas
de um e outros.
Não foi assim hoje. Jin apareceu no meio de um minueto
e ficou na entrada da sala de estar como se levasse séculos
observando o grupo dançar com brio e estivesse feliz por ficar
ali também. E nesse momento, enquanto os convidados se
reuniam no salão antes do jantar, tinha desfrutado uma vez
mais de uma posição cômoda, dessa vez junto do piano. Lady
Fiona piscou para ele enquanto lhe mostrava sua partitura.
Madame Roche estava perto, mas a francesa, com um vestido
de organdi negro, cuja idade se desconhecia e que tinha
enviuvado por três vezes, não a preocupava, apesar de seus
olhos penetrantes e seu comportamento elegante. Só a
amável e virginal Fiona importava, uma moça a quem tinha
tomado afeto e que, com muito pesar, invejava nesse
momento. Lady Fiona tinha recebido a atenção de Jin, e isso
revolvia seu estômago.
Essa noite, ele usava uma jaqueta escura, calças escura
e camisa branca, como se não acabasse de chegar essa tarde.
Claro que a bordo de seu navio demonstrava a mesma
atitude, sempre controlado e no comando de todos aqueles
com quem cruzava. Incluído sua tola capitã.
Viola custava a respirar com normalidade e se sentia
como uma idiota. Mas Violet, a Vil não era uma idiota.
Superaria isso. Não permitiria que a alterasse. Nesse
momento, contava com sua família, com o afeto de sua irmã e
do barão, e com novos amigos, por mais exaltados que
parecessem. Mais ainda, tinha a força necessária para resistir
a ele. Em Trindade, seus sentimentos a tinham cegado. Mas,
por fim, sabia que perigos enfrentava. Lutaria até sem sua
pistola e sem sua adaga. E se isso não funcionasse, não
duvidaria em tirar as armas de seus baús e ameaçá-lo para
que partisse na ponta da faca.
A seu lado, Serena e o senhor Yale falavam sobre
plantas, de um jogo de cartas ou de algo misterioso, não
tinha a menor idéia. Entretanto, a enteada do barão, Diantha
Lucas, aparentemente sim.
— Lorde Abernathy e lorde Drake jogaram as orquídeas,
mas acabaram empatados. — Seus cachos castanhos se
agitaram, ocultando olhos azuis emoldurados por espessas
pestanas. — Eu li na coluna de fofocas do The Times.
— Que excêntricos. — Serena soltou uma risadinha.
O senhor Yale esboçou um sorriso que Viola tinha
aprendido a reconhecer. Um sorriso que dizia: «Esta tarde
bebi uma garrafa inteira de brandi e nada me afeta, nem
sequer alguns aristocratas ridículos que jogam centenas de
libras nas cartas por plantas exóticas.» Entretanto, o
cavalheiro se limitou a dizer:
— É admirável que leia jornais, senhorita Lucas.
Sob uma quantidade razoável de sardas, que nenhuma
dama gostaria de mostrar, as bochechas e o queixo de
Diantha se agarravam à redondeza infantil, embora essa não
fosse a única reminiscência infantil de sua pessoa.
Entretanto, seus olhos não perderam o brilho.
— Papai não gosta de jornal, mas eu aprendi a desfrutar
dele na Academia Bailey, é obvio.
— Claro. — Os olhos chapeados do senhor Yale
relampejaram.
— Senhor Yale, deveria beber menos e ler mais jornais.
— Diantha!
— Serena, só digo que os cavalheiros jovens e bonitos
não deveriam arruinar suas vidas desta maneira. Há muitas
alternativas à depravação, se por acaso não sabe.
— Para uma dama de... — O senhor Yale se interrompeu
e franziu o cenho. — Que idade tem, senhorita Lucas? Se não
se incomodar que lhe pergunte, claro.
— Dezesseis anos e quase nove meses.
— Para uma dama de dezesseis anos e quase nove
meses, senhorita Lucas, tem muito que dizer.
O rosto da moça evidenciou uma inocente surpresa.
— Por que eu não teria?
O senhor Yale arqueou as sobrancelhas.
— Certamente, por que não? É admirável.
— Ele acabou de dizer que é impertinente.
— Jamais. E se eu fizesse, deve ter sido um lapso. Rogo-
lhe que me perdoe.
A moça franziu os lábios com gesto cético.
— Não é sincero.
— Quase nunca. Mas é admirável uma mente bem
informada, senhorita Lucas, mesmo que acompanhada de
impertinência. — Com um sorriso torto, ficou em pé, fez uma
reverência as três e se afastou.
Serena deu tapinhas no braço a sua meio-irmã.
— Não faça conta, Diantha.
— A senhorita Yarley da Academia Bailey disse que os
cavalheiros sempre bebem mais da conta. Assegurei-lhe que
papai não o faz, mas que meu verdadeiro pai sim, o fazia,
assim que talvez a senhorita Yarley, então talvez a senhorita
Yarley tenha razão no caso de alguns cavalheiros. — Cravou
o olhar no senhor Yale com curiosidade e algo mais.
Lady Fiona tocou algumas notas e Viola desviou a vista
para o piano uma vez mais.
Jin a estava olhando.
Afastou o olhar do piano, e o vazio de seu interior jamais
lhe pareceu tão imenso. Além das portas do terraço, as
nuvens de tempestade se amontoavam sobre o oceano,
douradas na parte inferior pelo roce dos raios do sol poente.
Ficou em pé e atravessou as portas que davam ao terraço. A
seu redor tudo tinha um tom rosado, e se obrigou a apreciar
a beleza tal qual fazia quando estava ao leme.
— Sente falta de seu tombadilho? — Sua voz rouca
chegou por cima do seu ombro.
Ficou sem fôlego, mas se voltou para ele.
— Por sua culpa.
Jin lhe fez uma reverência.
— Eu também me alegro de vê-la, Viola.
— Suponho que esperas que te faça uma reverência.
— Acredito que esse é o costume. — Seus olhos
reluziam.
O estômago de Viola encolheu.
— Aprendi a fazê-lo, se quer saber. Além de muitas
outras conquistas próprias de uma dama.
— Não me cabe a menor dúvida.
— Por que me segui? Para me incomodar?
— Só queria te saudar. Mas ficarei feliz se tiver algo
mais com tão pouco esforço.
— Olhe, morro de dar risada. Você pode ver?
—Vejo. — A julgar pelo brilho que apareceu em seus
olhos enquanto examinava seu penteado e seus olhos, suas
palavras tinham um significado mais profundo.
Não podia suportá-lo, não quando o desejava tanto.
— Não me olhe assim.
— Como? Como uma mulher bonita que está diante de
mim e... ? — deteve-se. — Acredito recordar que já tivemos
uma conversa parecida.
No hotel, quando chegaram a Porto Espanha, antes que
todo seu mundo trocasse.
— Olha-me assim porque estiraram meus cabelos e
empoaram e agora já nem me reconhece.
— Ao contrário, é muito reconhecível e irracional.
— Je vous em prie35. — Fez uma reverencia, abriu o
leque e golpeou o nariz. Que procedeu a esfregar com uma
mão.
Essa boca perfeita esboçou um minúsculo sorriso.
— Aprendeu francês em um mês?
— Où est-c qu'onpeut danser36?
O sorriso se alargou.
— Você sabe o que isso significa?
— Sim, mas as únicas frases, além destas duas, que
memorizei são «Os camarões-rosa estão deliciosos» e «Haverá

35Je vous em prie – eu te imploro.


36Où est-ce qu'onpeut danser? – Onde podemos dançar?
jogos de cartas esta noite?». Por certo, se dançarmos,
certamente que pisarei nos seus pés, algo que me daria muito
prazer. Por que me chamou irracional?
— Sabe que te considerava bonita antes de esta noite.
Eu disse a você.
E ali estava ela, no terraço da mansão de um conde,
acalorada em lugares onde nenhuma dama deveria sentir-se
quente dadas às circunstâncias, e desejando jogar-se em
seus braços com desespero.
Deveria dizer algo para espantar o desespero que a
embargava, para assustá-lo antes de fazer gargalhar à alta
sociedade e também seu orgulho ao colar-se a ele como um
molusco a uma rocha.
— O senhor Yale é muito mais sutil que você quando
flerta.
— Não estou flertando contigo, Viola.
«Ai, Meu Deus!» Por que ele voltou? Doía-lhe, e não sabia
o que fazer para que deixasse de doer.
— Ele me chama senhorita Carlyle.
Nesse momento, algo relampejou em seus olhos. Algo
não totalmente seguro.
— Quer que volte a chamá-la de senhorita Carlyle?
— Não — respondeu muito depressa.
— Viola...
Algo em sua voz, um tom inseguro talvez, fez que seu
coração desse um salto, de modo que replicou de má
maneira:
— O que? — Porque o tumulto de emoções não eram
bem recebidos.
Jin arqueou as sobrancelhas e emitiu um som, como se
fosse replicar. Mas se conteve e apertou os lábios, que
ficaram convertidos em uma fina linha.
— Não.
Não desejava saber o que ele queria dizer com esse
«Não», nem por que não tinha respondido. Não podia ser nada
bom, e até o sangue que corria por suas veias tremia.
— Não... o que?
— Não, não combinarei sua idiotice com uma idiotice da
minha colheita. Saí para te saudar e para dizer-lhe que senti
sua falta .
O coração lhe subiu à garganta.
— De... verdade?
— Sim.
O horizonte engoliu o sol e a cor rosada abandonou o
céu, derramando um tom perolado sobre a suave inclinação
do jardim de Savege Park e os muros da casa. Entretanto, se
estivessem à luz rosada ou em qualquer outra, seus olhos
seguiam sendo belos e sua mandíbula, firme; e Viola não
gostava da sensação de estar a ponto de cair rendida a seus
pés, como gelatina derretida sobre a terraço.
Tentou esboçar um sorriso desdenhoso.
— Teve sua oportunidade, Seton. — Ele arqueou uma
sobrancelha.
—Disso não senti falta.
— Oh. — Viola se esforçou para manter uma fachada
desinteressada. — Tenho certeza que lá dentro pode
encontrar uma companhia mais agradável.
— Não tenho a menor dúvida. — Sua boca voltou a
esboçar esse sorrisinho minúsculo, e as estrelinhas
reapareceram.
— Minha irmã, por exemplo — disse, para ocultar seu
mal-estar. — Parece que você gosta muito dela, embora só
Deus conheça o porquê. E, claro, também tem Lady Fiona.
— Parece que você está me despachando como se eu
ainda fosse seu segundo de bordo.
— Estou te despachando como a um homem com quem
uma dama não deseja falar.
— Mmmm. — no final, ele sorriu.
E esse sorriso se cravou nas suas vísceras como uma
adaga.
— Por que sorri?
— Naquele dia, quando me disse no barco que você era
apenas uma mulher, disse a verdade. Uma... — Fez uma
pausa. — Uma mulher. — Voltou-se e pôs-se a andar para as
portas do terraço.
Assaltou-a o desejo de agarrá-lo pelo braço para detê-lo,
para que permanecesse a seu lado sob a penumbra do
crepúsculo. Para, simplesmente, tocá-lo. Desejava tocá-lo
mais do que tinha desejado outra coisa durante semanas. Ou
talvez durante toda sua vida.
— O que tem feito em Londres? — perguntou de repente.
Ele a olhou por cima do ombro.
— Nada de importante.
— Acreditava que tinha assuntos para tratar ali. Por que
voltou? — Seu olhar se tornou sério uma vez mais.
— Para saldar uma dívida.
— Com lorde Savege, relacionada comigo, é obvio. Mas
ele esteve em Londres. Não o viu ali?
— Não.
Jin retornou para junto dela até que ficou muito perto.
Tanto que teve que jogar a cabeça para trás para olhá-lo. A
brisa do crepúsculo fez que uma mecha de cabelo ocultasse
seus olhos. Viu-o inspirar fundo, embora ela mal podia
respirar.
— É feliz aqui, Viola?
— Que surpresa. Não imaginava que se importava.
— Importa-me.
— Se fosse assim, não teria me obrigado a voltar.
— A aposta — replicou ele, em voz muito baixa — foi sua
idéia, é obvio.
Ardiam-lhe as bochechas. De fato, ardia-lhe todo o
corpo. Ele estava muito perto, muito, mas era incapaz de
afastar-se. Queria estar mais perto ainda. Esse corpo
masculino irradiava uma tensão espectadora, enquanto
percorria seu rosto com os olhos, e era como se a estivesse
tocando com os dedos, como se estivesse acariciando as
bochechas, as sobrancelhas e os lábios. Era incapaz de
afastar os olhos dessa boca perfeita. Queria que a beijasse
com todas suas forças. Queria voltar a fazer amor com ele.
Jamais tinha desejado fazer amor com tanto desespero. E
queria que a abraçasse, que não a soltasse jamais.
— É feliz? — repetiu ele em voz baixa.
O momento era tão íntimo que sentiu um nó
insuportável no estômago. Retrocedeu um passo e cruzou os
braços diante do peito.
— Claro, como se no fundo você estivesse interessado
em saber.
No queixo de Jin apareceu um tic nervoso e seu olhar se
endureceu.
— Se não me interessasse, não lhe perguntaria isso.
Mas aparentemente a menina malcriada retornou e vou ficar
sem resposta. — separou-se dela.
Viola queria lhe gritar que não era uma menina, mas
uma mulher e aquela mulher estava sofrendo. Mas se limitou
a engolir saliva para aliviar o nó de sua garganta, enquanto
se perguntava se as verdadeiras damas permitiam que os
cavalheiros as fizessem sentir-se a beira da morte. Se
estivesse em seu navio...
Se estivesse em seu navio, não permitiria que lhe desse
um sermão antes de afastar-se.
Seguiu-o. Talvez ele soubesse que ela ia fazer
exatamente isso. Estava-a esperando na soleira da porta de
cristal, portas que nem sequer imaginava que podiam existir
até que chegou a essa casa onde muitas outras coisas lhe
eram desconhecidas, salvo ele.
— Estou... — Procurou as palavras adequadas. — Me
sinto... muito sedentária. — Afinal, era verdade. E não podia
lhe contar o que albergava em seu coração. Era melhor que
pensasse que o odiava por ter mudado sua vida. Algo que não
lhe fizesse pensar que ele tinha ganho. — Não estou
acostumada há estar tanto tempo em um lugar.
— Era de se esperar.
— Não vai dizer que me acostumarei? Que me
esquecerei de minha vida anterior?
— Por que ia dizê-lo? Nunca desejei que fosse infeliz,
Viola, só que se encontrasse com sua família. Se deseja
retomar a sua vida na América, não lhe impedirei, e suspeito
que nem lady Savege nem nenhuma outra pessoa o fará.
Amam-lhe e só desejam sua felicidade.
Ele não lhe disse olhando nos olhos dela, mas com os
olhos fixos em suas bochechas, na testa e na boca.
Especialmente na boca, já que seus olhos voaram uma e
outra vez ao sinal do lábio inferior. Recordava sua língua
nesse ponto. E a lembrança lhe afrouxou os joelhos. E
também a instou a entrecerrar as pálpebras.
— Jin, sinto ser tão respondona — se apressou a dizer.
— Viola, não me expressei bem. — Sua voz parecia mais
rouca. — Não posso ficar muito tempo. Meu navio... Veja...
Viola tinha os nervos de ponta.
— Está ancorado em Londres?
— Sim. — Inspirou fundo, fazendo com que seu peito se
inchasse.
Viola se agarrou ao trinco da porta que tinha atrás de si
com mãos trêmulas.
— Matthew, Billy e Matouba também estão ali?
— Sim. Tenho que estar em Malta em breve.
— Malta? — Não. Não! Como podia olhá-la dessa
maneira e lhe dizer ao mesmo tempo que ia partir para tão
longe? E sem ela! Meneou a cabeça.
— Viola, eu...
— Espero não interromper.
Jin se voltou para o barão, mas ela era incapaz de
afastar a vista. Esses olhos azuis tinham um olhar estranho e
seu coração não pulsava com normalidade. Morria por saber
o que tinha estado a ponto de dizer. Em seu navio, não
haveria semelhantes interrupções. Mas não podia lançar um
sorriso deslumbrante ao barão e ordenar que abandonasse a
ponte.
— Milorde. — Jin fez uma reverência.
— Me alegro de ter a oportunidade de falar com você em
privado, senhor Seton. — Os olhos castanhos do barão já não
luziam sua habitual expressão afável. Agarrou a mão de Viola
e a colocou sob o braço. — Trouxe minha filha de volta para
casa. E agradeço de todo coração.
— Foi uma honra para mim, senhor.
— Tenho entendido que é um marinheiro. — Pronunciou
essa palavra como se fosse um lixo.
— Sim, senhor.
— E que conhece meu genro há anos, desde que ambos
eram muito jovens.
— Está certo.
O olhar de Viola voou para o rosto de Jin, mas ele estava
concentrado no barão. Isso ele não tinha contado.
— Agora que há devolvido a minha filha ao seio de sua
família, o Almirantado certamente tem outra missão para
você. — Um brilho suspeito apareceu nos olhos do barão.
— Em breve rumarei para o Mediterrâneo Oriental. Sua
filha foi muito amável com minha tripulação no trajeto até a
Inglaterra — comentou Jin com tanta serenidade que ela
esteve a ponto de acreditar-lhe. Apenas queria lhe transmitir
os bons desejos de meus homens.
— Nesse caso, suponho que partirá logo de Savege Park,
antes que chegue o inverno e a navegação seja perigosa.
Suponho que a sua visita seja muito breve. — O barão
assentiu com a cabeça, satisfeito. — Mas me alegro de ter
tido a oportunidade de agradecer-lhe em pessoa.
Jin fez outra reverência.
— Aí está o mordomo — disse o barão com voz mais
distendida. — O jantar está servido e, graças a você, senhor
Seton, tenho o prazer de levar minha filha pelo braço. —
Olhou-a com um cálido sorriso e a afastou dele.
Viola olhou para Jin por cima do ombro, mas ele tinha a
vista cravada no terraço.
Não, não no terraço. Tinha-a cravado mais à frente, no
mar.
23

À atenção de lady Justice Brittle & Sons, editores


Londres
Querida dama:
Envolvido neste modesto pacote não encontrará um
deleite comestível, nem outro retrato de sua pessoa (com
cauda). Compreendo que esses presentes, amostras do carinho
que eu tenho por você, não foram de seu agrado. Eu mando é o
único que um cavalheiro que admira uma dama deve lhe
enviar: poesia. De Samuel Taylor Coleridge, mais
especificamente. Se a envio é porque depois de ter devolvido
todos os presentes que tenho lhe mandado, necessito ajuda
para saber o que deveria lhe enviar a fim de que o aceite. Uma
citação da Canção do velho marinheiro.
Se você quer saber para onde ir,
Ela o guia com delicadeza ou crueldade.
Olhe, irmão, olhe!
Com que elegância o guia.
Milady, rogo-lhe que me guie com clemente elegância e
que não devolva este humilde presente.
Sinceramente,
Peregrino

****

Peregrino, Secretário do Clube Falcon:


Por mais que tente polir suas plumas e por mais que se
vanglorie, acabará sendo depenado. E só terei que lhe dizer: «O
jogo se terminou! Eu ganhei, eu ganhei!»
Lady Justive
24

O senhor Yale se foi no dia seguinte. Viola o


acompanhou ao vestíbulo, onde ele agarrou sua mão e a
levou aos lábios, mas não a beijou.
— Foi um grande prazer, senhorita Carlyle. Espero vê-la
pela cidade.
— Obrigada. Você foi muito amável.
— A amabilidade não teve nada que ver.
— Não acredito que saiba o que teve ou deixou que ter
que ver. — Ela fez um gesto. — Não me expressei bem. Ou
pode ser que não seja gramaticalmente correto, pelo menos.
Depois de todos os seus esforços.
— Você é encantadora, senhorita Carlyle.
— Ainda não aprendi que taça se serve cada bebida ou
como atar minhas ligas.
— E, tal como parece, que tampouco aprendeu que
temas não deve discutir com um cavalheiro. — Seus olhos
cinzas reluziam. — Mas não se preocupe, um criado sempre
se ocupará disso primeiro e não me cabe a menor dúvida de
que outro homem ficará encantado com o segundo.
Ela ficou vermelha.
Ele sorriu.
— Sabe? Acredito que vou beijar sua mão depois de
tudo. Talvez eles não me deixem no futuro.
Viola afastou a mão a toda pressa. O senhor Yale riu
entre dentes, tirou o chapéu e partiu.
Lady Emily, que se encontrava no vão da porta do
vestíbulo, saiu nesse momento. Levava óculos da cor de seu
cabelo loiro platinado e um livro nas mãos.
— Partiu de verdade? — Sua voz soava mais aguda que
de costume.
— Sim. Ele gosta de discutir com você. Por quê?
— Porque tem a cabeça oca. Prefiro o senhor Seton. Ele
não aflige uma mulher com tolices, enquanto tenta fazê-la
acreditar que é uma conversa.
Desde o encontro frustrante no terraço, o senhor Seton
não a tinha afligido com conversa alguma. Não o tinha visto
para que a afligisse nem para dominá-la.
— O senhor Seton é taciturno — murmurou.
— Não. É um pensador, senhorita Carlyle. Homens
como ele não devem ser marcados como taciturnos sem mais.
— Um pensador?
— O senhor Seton lê. — Abriu o livro que estava
carregando como se estivesse procurando por algo. — «Aquele
que não tem medo dos fatos, também não tem medo de
palavras.» É uma citação de Sófocles. Eu encontrei-o na
biblioteca esta manhã, muito bem acompanhado por
Heródoto. Um companheiro inestimável.
Heródoto? Podia ser uma coincidência. Mas por que lhe
pulsava o coração como aquela noite diante da porta de seu
camarote, quando o tocou pela primeira vez?
— Heródoto? — perguntou com sua voz mais inocente.
— Acaso chegou outro cavalheiro a Savege Park a quem devo
conhecer?
— Heródoto morreu faz uns dois mil anos na Grécia.
Espero que não nos apareça. — Tinha uma expressão tão
sincera que Viola começou a rir.
Lady Emily estreitou seus olhos esmeraldas.
— Interroga quase tão bem como o senhor Yale,
senhorita Carlyle. — Mas sorriu.
— Não o odeia, verdade?
— Por desgraça, não posso. Ajudou-me em uma difícil
situação com meus pais, algo que não posso esquecer, por
mais que eu gostasse de fazê-lo. É como um irritante irmão
mais velho.
— Estou feliz. Ele me faz bem. É bom comigo.
Lady Emily voltou a inclinar a cabeça, com seu elegante
penteado, sobre o livro.
— Eu se fosse você, senhorita Carlyle, não atribuiria
esse fato ao senhor Yale. — Passou outra página. — É muito
fácil amá-la. Se todas as damas fossem como você, não me
importaria tanto ser apresentada a sociedade. — Depois de
dizer isso, pôs-se a andar para a porta oposta, imersa em seu
livro.

****
Depois do almoço, em que os cavalheiros não estavam
presentes, Viola foi à biblioteca em busca da leitura. Mais de
uma vez.
Era a maior tola do mundo. Jin não estava ali, é obvio.
De volta no salão, lady Fiona lhe comunicou que os
cavalheiros tinham saído para cavalgar. Viola pensou em ir
ao estábulo e selar um cavalo, mas não sabia como fazê-lo.
Os cavalheiros voltaram pouco antes do jantar. No
salão, seu meio-irmão lhe deu de presente muitos elogios,
mas não se preocupou com sua tolice. Pelo menos, falava
com ela.
Durante o jantar e o chá que se seguiu, a conversa foi
bastante animada e geral, e Jin não se aproximou dela. Viola
tinha aprendido o suficiente a respeito de boas maneiras para
saber que não podia levantar-se de seu assento para ocupar
um mais perto dele. Mas o faria se Jin demonstrasse, embora
fosse só um pouco, que gostaria que ela o fizesse, algo que
não aconteceu. Parecia distraído, com a atenção dividida
entre o grupo onde se encontrava e a porta do terraço.
Essa noite dormiu mal, atenta aos roncos de madame
Roche através da parede, já que seus dormitórios estavam
colados, e enquanto se perguntava onde estaria o dormitório
de Jin. A idéia de que pudesse estar em uma das estadias
mais acessíveis nesse momento, talvez bebendo no salão ou
jogando bilhar com Alex e Tracy, quase a animou a vestir-se
para ir em sua busca. Entretanto, seu orgulho ferido não
permitia. Ele não a desejava, assim não o perseguiria.
No dia seguinte, Serena se reuniu com as damas para
tomar o chá em um estabelecimento de Avesbury, um lugar
muito fofo ao lado da costureira. Depois do refresco, Serena
levou Viola, sozinha, para a loja adjacente.
— O que fazemos aqui, Ser? — Deu uma olhada pelo
diminuto local, cheio de fitas, renda e metros de tecido. —
Tenho certeza de que a senhora Hamper entregou todos
meus... — levou-se uma mão à boca. — Mãe do amor de Deus
é lindo! É para mim?
O sorriso de Serena era tão radiante que não lhe coube
dúvida de que o reluzente vestido que a costureira trazia nas
mãos era para ela.
— Você gosta?
Viola estendeu uma mão para tocar a suave seda da cor
do entardecer, com diminutas pérolas e lentejoulas no
corpete que caíam pela diáfana saia como gotas de chuva
banhadas pelo sol.
— Como não vou gostar? Mas...
— É para o baile de amanhã á noite. Os vestidos que
você tem são lindos, mas nenhum é adequado para uma
celebração desse calibre.
Viola arregalou os olhos .
— Me diga que o baile não é por mim.
— Claro que é por você. Todos os vizinhos de vários
quilômetros da redonda se inteiraram que está aqui. Morrem
por vê-la de novo depois de tantos anos. — Serena torceu o
rosto. — Mas... você não quer comemorar?
— Claro que sim. — Absolutamente. A mera de idéia de
converter-se no centro da atenção lhe provocava suores frios.
Estava segura de que ia fazer algo muito mau e que
envergonharia Serena, Alex e o barão. — Obrigada, Ser. É
muito generosa e estarei encantada de ver todas essas
pessoas. Pergunto-me se me lembrarei delas. — Não se
importava. Só desejava a companhia de um homem de que
logo se veria privada para sempre.
Malta. Malta! Ao outro lado do mundo... Não?
Quando voltaram para casa, foi direto à biblioteca. Ele
não estava ali, mas sim, viu um atlas com tampas douradas.
Abriu o enorme tomo, encontrou a Inglaterra e riscou uma
linha até uma bota que era a Itália. Soltou um enorme
suspiro. Pelo amor de Deus, estava se comportando como
uma menina, tal como ele lhe tinha recriminado. Entretanto,
a lágrima que escorregou por sua bochecha continha a
tristeza de uma mulher.
A enxugou, fechou o livro com força e o devolveu a sua
prateleira.
Importava-lhe um rabanete o que ele fizesse e aonde
fosse. Estaria muito bem sem ele. E talvez, quando o projeto
de converter-se em uma dama transbordasse sua paciência,
retornaria a Boston, onde era seu lugar. Se Alex lhe
emprestasse dinheiro, poderia comprar outro navio e, com
melhor equipamento, embarcaria em novos projetos. A
viagem a Porto Espanha com o carregamento teria sido
lucrativo se o tivesse feito com a idéia de ganhar dinheiro.
Alugaria o navio a um desses ricos mercantes como o senhor
Hat, de modo que poderia devolver o dinheiro a seu cunhado
em um ano. Com sorte. Com um navio em condições,
também poderia viajar frequentemente a Inglaterra para ver
sua família. Isso seria maravilhoso. A atividade lhe sentava
muito melhor que a passividade de ser uma dama, à espera
de que acontecessem coisas ou à espera de que outra pessoa
tomasse as decisões em seu nome, como celebrar uma festa
que participariam famílias de vários quilômetros da redonda.
Ou à espera de que um homem voltasse a olhá-la como se a
desejasse e quisesse lhe dizer algo importante.
Ai, Por Deus!
Levou as mãos aos olhos e inspirou fundo de forma
entrecortada. Não desejava retornar a Boston nem ao mar. Só
desejava Jin. Mas não ia tê-lo. Tinha que controlar-se.
Endireitou os ombros, dirigiu-se à porta, abriu-a e caiu de
rosto em um corpo duro.
Jin a agarrou pelos ombros. E isso bastou para que ela
se perdesse, afogada pelo prazer de tocá-lo de novo, enquanto
seu corpo ardia por completo. Conseguiu abrir os olhos,
embora as pálpebras lhe pesassem muito, e viu sua bonita
boca a escassos centímetros da sua, assim como o tic nervoso
de seu queixo.
«Me beije. Me beije», suplicou em silêncio.
Jin a afastou, voltou-se e desapareceu pelo corredor.
Trêmula, confundida e furiosa porque, pela primeira vez
na vida, não podia dizer a um homem o que pensava em
realidade, Viola foi em busca de Serena para ajudá-la a
preparar o baile do dia seguinte, esse grande evento que a
apresentaria à sociedade, quando em realidade ela somente
queria voltar para o mastro de proa de seu velho navio, para
contemplar o entardecer com um pirata egípcio.
Sua irmã estava deitada no divã de seu vestiário, vestida
com uma bata azul, enquanto embalava sua filha nos braços.
— Está muito tranquila para ser uma mulher a ponto de
celebrar um baile — comentou Viola.
— Estou saboreando este momento de paz. Passei todo o
dia recebendo os convidados que passarão a noite aqui e
certificando-se de que tudo foi feito corretamente. Agora, meu
marido está cuidando do resto. Ele é muito bom em organizar
festas. — Esboçou um sorriso muito doce, com uma
aparência íntima.
O coração de Viola deu um salto.
— Papai chegou a odiar mamãe quando morreu ou só
odiava Fionn?
Serena arregalou os olhos .
— Não acredito que odiasse a nenhum dos dois.
— Não. Tenho certeza de que odiava a meu pai. — Viola
brincou com o cordão do delicado leque branco e dourado,
decorado com pássaros exóticos. Serena acabava de dar de
presente depois que Jane a vestiu em seu bonito vestido e lhe
arrumasse o cabelo. — Foi muito desagradável com o senhor
Seton quando falaram na outra noite. Sobretudo ao
pronunciar a palavra «marinheiro». Quase se engasgou.
— De verdade? — Serena mordeu o lábio inferior. — Não
parece próprio de papai. Mas suponho que tampouco é de
surpreender, tendo em conta a relação entre mamãe e Fionn.
— Suponho que semelhante devoção, que durou anos
apesar de que não se viram, é impressionante.
Esse dia tampouco tinha visto Jin, mas tinha os nervos
à flor da pele de só pensar que ia passar a noite com ele. Que
ia a passar com umas setenta pessoas que lhe importavam
muito pouco.
— Nunca deveriam ter se conhecido, e muito menos
conversado. — Serena suspirou. — Mas o fizeram. E ele foi
incapaz de renunciar a ela, e ela tampouco pôde fazê-lo por
inteiro.
— Com razão papai não gosta dos marinheiros.
— Você é uma marinheira e ele a ama muito.
— Posso entrar? — Vestido com roupas formais, o conde
de Savege irradiava uma aura elegante e viril que não
passaria despercebida para nenhuma mulher.
Viola tinha ouvido o suficiente de boca de madame
Roche para saber que no passado muitas mulheres tinham
reparado em Alex Savege. De fato, não chegava a entender
como sua doce e sonhadora irmã tinha aceito o cortejo de
semelhante homem. Entretanto, não lhe cabia a menor
dúvida de que era fiel a Serena; sua devoção era evidente.
— Entre. — Serena acariciou a cabeça da Maria com um
dedo. — Sua filha acaba de adormecer, então não faça ruído.
— Percorreu-o com o olhar. — Está incrível esta noite.
— Vi-me obrigado a fazer a vã tentativa de estar à
altura de seu esplendor. — Fez-lhe uma reverência. — Não
quero te envergonhar.
— Mas eu posso fazer isso — disse Viola, franzindo o
nariz.
— Claro que não o fará — lhe assegurou Serena. — Está
linda e quase dominou todas as aulas que o senhor Yale te
deu. — Tinha um brilho risonho nos olhos.
— «Quase», isso é o mais importante. Não deixei de pisar
Alex enquanto dançávamos... E não o negue.
— Se não quiser dançar esta noite, não tem por que
fazê-lo — disse ele.
— Suponho que não acontecerá nada se eu dançar
somente com meu pai e contigo. Mas preferiria não ter que
pisar os pés de um desconhecido.
— Jinan não é um desconhecido — comentou Serena. —
Pode pisar seus pés e com certeza não se importará. Tracy
tampouco.
O conde apoiou um de seus largos ombros no marco da
porta.
— O fato de Jin participar de uma festa é um milagre.
Quando Yale anunciou no outro dia que partiria, quase
esperava que Jin também o fizesse. Que tenha ficado mais de
um dia me surpreende.
— Passaram quase dois anos da última vez que se
viram.
— Isso não importaria. Sua lealdade e seu carinho não
funcionam assim. Mas nunca o vi tão inquieto. Não está bem.
— Talvez necessite uma atividade adequada a sua
natureza. Deve sentir falta de seu navio. — Serena a olhou de
repente. — E talvez você também tenha, verdade, Vi?
A boca de Viola secou.
— Um pouco.
— Serena, não se surpreenda se ela se for tão de repente
como chegou — advertiu Alex. — Pode ser amanhã ou na
semana que vem.
— Não me surpreenderia absolutamente. Não sou uma
completa ignorante a respeito dos costumes dos marinheiros.
— Os olhos de sua irmã relampejaram. Alex sorriu.
E Viola sentiu o coração a ponto de explodir. Tanto que
ficou em pé.
— Terminarei de me arrumar. — Ela quase correu para
a porta.
— Mas você já está...
Fugiu da estadia. Não suportava a idéia de que se fosse.
Outra vez não. Não tão rápido. Porque seria uma despedida
definitiva. Partiria e ela não voltaria a vê-lo na vida, e seria o
melhor.
Maldito fosse. Maldito fosse por retornar e alterá-la
tanto.
Alterá-la? Não estava alterada como uma idiota
inocente. Estava confundida, certamente que a qualquer
momento, quando ele decidisse partir tão repentinamente
quanto Alex havia previsto, seu coração terminaria de
romper-se.
Os convidados tinham chegado ao longo de todo o dia.
Quando o sol se pôs, inundando o oceano envolto em
pinceladas cinzas e rosadas, a casa estava a transbordar. Não
era um grupo muito numeroso, assegurou-lhe madame
Roche.
— Rien qu'unepetite fête37. Só umas oitenta pessoas.
Umas oitenta pessoas, que Viola se enfastiava muito
mais. Todas elegantemente vestidas, conversando sobre a
capital e de quando voltariam para a temporada social.
Pareciam-lhe muito sofisticadas. Os criados se moviam entre
o matagal de gente com bandejas cheias de taças de
champanha, enquanto as damas se congregavam em grupos
e os cavalheiros bebiam vinho e outras bebidas mais fortes.
No salão, lady Fiona tocava o piano com perfeição, depois
outra jovem ocupou seu lugar que também cantou. Houve
muita conversa animada, mais música a cargo do quarteto
contratado, um lauto jantar e, por fim, o baile. A luz das velas
arrancavam brilhos a todas as superfícies. As risadas saíram
até o terraço, iluminado com lanternas chinesas, enquanto os
bailarinos desfrutavam da cálida noite. Todos pareciam
encantados com os entretenimentos, dando de presente
sorrisos e felicidade à esquerda e a direita.
Viola, em troca, tentava esconder-se.
No princípio, tinha desfrutado de um pouco. Mas
recordava muito poucas das pessoas. As damas d mais
velhas se viraram para ela, insistindo que ela tinha sido uma
garota muito bonita.
— E tão... briosa — proclamou uma dama com um
sorriso de orelha a orelha. — Uau, Amelia, recorda aquele

37Rien qu'unepetite fête – apenas uma festinha.


domingo na igreja quando ela banhou seu gatinho na pilha
batismal?
— Disse que a água benta curaria sua patinha ferida. —
A dama em questão meneou a cabeça. — Hester, não se
esqueça da torta de sapo que levou uma tarde à casa da
senhora Creadle. Sempre disse à querida Maria que sua
Viola era uma selvagem. Uma selvagem... — Pronunciou essa
última frase como se Viola não estivesse sentada a seu lado.
— Entretanto, tinha uma vida muito tranquila com sua
tia em Boston, embora nenhuma de nós sabia que estava ali.
E que jovenzinha mais recatada se transformou, verdade,
Amelia?
— Encantadora, Hester. Tenho que elogiar a sua tia
americana.
Tinham que estarem mentindo como velhacas que eram.
Ou ser umas ignorantes. Ou umas tolas. Desconhecia de
onde tinham partido esses rumores, mas duvidava de que
Serena e Alex os tivessem espalhado.
Logo se cansou de fingir que não tinha passado quinze
anos de sua vida no mar. À única pessoa nesse salão que
conhecia toda a verdade a respeito de sua vida era um antigo
pirata, mas ele tampouco se parecia em nada ao que tinha
sido. Essa noite, usava uma jaqueta e calças escuras, com
um alfinete rematado por uma pedra preciosa vermelha na
gravata. Era perfeito, mas não se aproximou nem a dez
metros dela.
Para evitá-la desdita mais absoluta, Viola fingiu que ele
não estava presente. Ficou no outro extremo do salão, não
olhou para ele e, em resumidas contas, tentou não pensar
sequer nele.
Era evidente que lady Fiona optou pela tática oposta.
Com a partida do senhor Yale, toda sua atenção se
concentrava em Jin. Com sorrisos tímidos, conseguiu iniciar
uma conversa com ele sem que Jin aparecesse irritado. De
fato, enquanto falava com ela não revirou os olhos nem
franziu o cenho uma só vez.
— Não é a adequada para ele, ma chère.— Madame
Roche agitou um dedo, com a unha pintada de vermelho,
diante de seu rosto.
Viola piscou.
— Como disse? Ah, perdão. Pardonnez-moi38?
Seus lábios carmesim esboçaram um sorriso
encantador, que ressaltou em seu rosto empoado e
branquíssimo.
— Mademoiselle Fiona não é adequada para ele. Non. —
Agitou um lenço de renda negro, impregnado de perfume. —
É très jolie39. Mas ele não está interessado.
— Como sabe?
— Porque por toda a noite está olhando para você. — A
dama se retirou, envolta em sua renda.
Seu coração pulsava desenfreado. Levantou a vista.
Efetivamente, ele estava olhando-a.

38Pardonnez-moi – perdoe-me.
39très jolie – muito bonita
Nesse caso, por que não a tinha beijado na biblioteca?
Por que tinha partido? Não, por que tinha fugido? E por que
não se aproximava dela para falar nesse momento?
Voltou-se, passou a outra estadia e encontrou três
cavalheiros, a quem distraiu lhes contando anedotas
escandalosas. As inventou em sua maioria. Se estavam
casados com as damas que inventaram as histórias sobre ela,
já estariam acostumados.
Dançou um pouco. A primeira peça com o barão, depois
com Tracy e por último com um dos três anciões. Quase não
pisou a nenhum deles. Vários cavalheiros mais jovens a
convidaram para dançar, mas ela recusou com um sorriso.
— Seus sapatos reluzem muito. Eu não gostaria de
deslustrá-los pisando com a sola de meus escarpins.
De fato, sorriu sem parar, riu abertamente das frases
mais engenhosas, inventou uma anedota atrás de outra, a
cada qual mais inverossímil, e tentou demonstrar a si
mesmo, e a Jin, que não se importava com ele. Como
tampouco se importavam com as jovenzinhas com quem ele
parecia desfrutar dessa noite.
Em um dado momento, tarde da noite, ou talvez deveria
dizer quase entrada da manhã, e quando acreditou que lhe
cairiam os pés se não conseguia livrar-se dos apertados
escarpins, os convidados começaram a partir. Os que viviam
perto subiram a suas carruagens, e os que tinham vindo de
pontos mais afastados se retiraram dando saltos pelos
corredores em labirinto em direção a seus quartos.
— Todos se apaixonaram por você. — Serena passou um
braço pela sua cintura e a beijou na bochecha. — E parecia
que estava se divertindo. Estou muito feliz.
— Obrigada por esta estupenda festa, Ser. Foi
maravilhosa.
E por fim terminou, de modo que podia partir para seu
dormitório e passar o resto da noite chorando pelo homem
que tinha cometido a estupidez de apaixonar-se. A última vez
que o viu, lady Fiona estava agarrada a seu braço, enquanto
duas jovenzinhas a olhavam com inveja. Pelo menos, não era
a única que sentia ciúmes, embora lhe revolvessem o
estômago.
— Vamos, acompanho-te — disse Serena.
— Não, não. Claro que quer ver Maria antes de se deitar,
e tem que estar esgotada.
— Pois subiremos juntas. E aqui vem meu marido para
nos acompanhar. Sobe conosco?
O conde se aproximou delas e agarrou a mão de Serena
para beijar-lhe
— Estou no comando dos jogos de cartas. Cartas! Como
se minha adorável esposa não estivesse me esperando.
Alguns homens jamais aprenderão.
— Mas tem que te comportar como um bom anfitrião —
replicou sua adorável esposa enquanto arrastava Viola para
a escada.
No patamar do terceiro andar, Viola se soltou.
— Obrigada. Anda, vá ver Maria.
Serena, apesar do cansaço, esboçou um sorriso antes de
partir.
Arrastando os pés, Viola pôs-se a andar pelo corredor às
escuras, desejando ter levado consigo um candelabro ou uma
pequena lâmpada, depois se alegrou de não havê-lo feito.
sentia-se tão cansada e tão derrotada que parecia ter
atravessado uma tempestade. E o fato de sentir-se tão mal
depois que sua irmã atirasse a casa pela janela com uma
fabulosa festa em sua honra fez com que se sentisse ainda
pior. No meio do corredor, encontrou-se com um par de
damas, muito juntas uma da outra, fofocando sem cessar.
Desejou-lhes boa noite e elas responderam com gestos da
mão, sem deixar de cochichar. Viola continuou andando,
apesar dos pés doloridos e cheios de ampolas.
Depois de cinco minutos andando, deu-se conta de que
tornou a se perder. Nessa ocasião, literalmente. O corredor
estava agora iluminado pelos faz ambarinos dos abajures de
parede, dispostos a intervalos regulares. Não reconheceu
nada, nem a mesinha auxiliar nem o quadro da parede.
Nunca tinha estado nesse corredor. Escutou vozes ao longe.
Parecia que os servos onipresentes tinham perdido o poder da
onipresença.
Deteve-se e se virou. Jin caminhava para ela. O coração
começou a pulsar com força no peito.
— Que probabilidade tem que me perca e você apareça
de um nada para me levar de volta ao lugar que me pertence?
— perguntou com voz trêmula.
— Nenhuma. — deteve-se diante dela, tão perto como a
noite do terraço, quando falou com ela pela última vez, e
como na porta da biblioteca, quando ele não o fez. — Estava
te procurando.
— A mim? — Foi incapaz de morder a língua.
Aparentemente, ele estava conectado ao seu coração. — Tem
certeza de que não estava à procura de Lady Fiona?
— Muita certeza.
Aqueles olhos azuis a percorreram por completo,
começando pelo cabelo, seguindo pelos ombros e detendo-se
no ponto onde sua respiração agitada fazia com que seu peito
tremesse debaixo do corpete. Queria que a olhasse assim,
verdade, mas já a tinha olhado assim antes e a tinha
rechaçado depois.
— Ela deseja-te — resmungou em um intento por
afugentá-lo com essas palavras.
— Eu não a desejo. — Jin a agarrou pelos braços, e com
muito pouco cavalheirismo, inclinou-se para ela. — Desejo
somente você.
E, por fim, voltou a beijá-la.
25

Depois do que tinha parecido uma vida inteira sem ele,


Jin a estava beijando. Não com delicadeza nem com
indecisão, a não ser com plena segurança de que lhe
devolveria o beijo. E o fez. Aceitou com prazer as carícias de
sua língua e aproveitou do momento como um náufrago que
estivesse se afogando e necessitasse de ar para sobreviver,
mas sem poder evitar que a água enchesse seus pulmões.
Porque seguro que isso ia matá-la. Não obstante, beijou-o
porque não podia negar-se. Jin tinha colocado uma mão na
sua nuca e a mantinha colada a ele como aquela primeira
vez. A paixão não demorou para apropriar-se deles. Com uma
rapidez entristecedora. E absolutamente silenciosa.
Mordiscou-lhe os lábios e ela ofegou, e o acariciou com a
língua. Ele gemeu e se afastou.
— Desejo-te, Viola — repetiu contra seus lábios. Ela
tentou lutar contra as emoções.
— Bem, pois eu não.
Jin puxou o decote do vestido e lhe desceu o corpete, as
taças do espartilho e a regata, deixando seus seios
descobertos.
— Terá que demonstrar-me de uma forma mais
convincente.
Viola olhou para baixo. Tinha os mamilos endurecidos.
Voltou a olhá-lo aos olhos, contrariada pela traição de seu
corpo.
— Isso é só luxúria.
Seus olhos azuis pareceram derreter-se pela paixão.
— Você precisa de mais?
Mais? Queria tudo dele! Tudo o que ele não queria lhe
dar. Mattie lhe havia dito que ele não era um homem
constante. Seu comportamento com ela demonstrava isso e
as palavras de Alex, quando anunciou que logo partiria,
tinham-na assustado de um modo irracional.
— É um imbecil arrogante — soltou para proteger seu
orgulho e possivelmente para convencer seu coração.
Entretanto, suas palavras não sortiram efeito nele, nem
tampouco em seu coração. O olhar transbordante de desejo
desses olhos azuis permaneceu como estava e a dolorosa
pontada que sentia no peito não encontrou alívio. — Por que
não fala comigo? Por que não me beijou ontem na biblioteca?
— Estava tentando ser forte. — Enterrou as mãos no
seu cabelo enquanto a observava com uma expressão tão
abrasadora que o sangue de Viola se converteu em lava.
— E agora?
— Agora serei obrigado a suportar como a capitã Viola
Carlyle capitaneia toda uma casa cheia de gente como fazia
com um navio cheio de marinheiros: conquistando a todos. —
Tinha a voz muito rouca. — Ao chifre tentar ser forte.
Viola rodeou seu pescoço com os braços e permitiu que
a beijasse, que acariciasse seus seios, animando-o com
gemidos que era incapaz de conter. Não deveria estar fazendo
isso. Em seu navio era uma mulher do mar, livre para fazer o
que quisesse. Entretanto, Fiona Blackwood jamais permitiria
que um homem lhe acariciasse os seios no corredor às
escuras da mansão de um conde. Uma dama de verdade
jamais o permitiria.
Mas ela não era uma dama de verdade. Ambos sabiam.
Jin lambeu seu lábio inferior enquanto a acariciava com
a gema de um polegar, lhe provocando uma pontada de
desejo, que se transformou em uma dor palpitante. Ela o
abraçou com mais força e se colou por completo a ele. Jin a
beijou com mais paixão, lhe acariciando o traseiro e
esfregando-a contra seu membro ereto. Era maravilhoso.
Muito maravilhoso. E desesperador. Porque só a queria para
isso. Embora talvez fosse melhor que nada, e era certo que a
desejava. Com a mesma urgência que a desejara aquela
primeira vez a bordo de seu navio. Era como estar no paraíso.
Ou pelo menos, a caminho do paraíso, sem importar que as
portas estivessem fechadas.
— Venha a meu dormitório — sussurrou Jin contra sua
boca, como se não queria separar-se dela nem sequer para
falar.
— Não me dê ord...
— Ordens, já sei. — Beijou-a uma e outra vez, uma
chuva de beijos que apesar de sua brevidade, exortou-a a
abraçá-lo mais forte se pudesse. — Bem, ao seu, então.
Viola se colou a ele, ansiosa por senti-lo mais perto do
que a roupa lhes permitia.
— Está colado ao de madame Roche. Não posso...
Jin pegou sua mão e puxou-a para continuar andando
pelo corredor. Ele abriu a primeira porta que encontraram.
— O armário da roupa branca? — Entretanto, eles
conseguiram perfeitamente em uma escada. À perfeição.
Viola esteve a ponto de soltar uma risadinha, mas ele a
meteu no armário, fechou a porta e cobriu sua boca de novo.
Assim que sentiu que enterrava as mãos no seu cabelo,
começou a lhe devolver os enfebrecidos beijos. Beijos ferozes
e ávidos que avivaram o desejo que a consumia. Jin a instou
a se virar para encostá-la contra a porta e assim poder colar-
se a ela.
— Vejo-te um pouco dominante. — Ela estava sem
fôlego.
— Bem, sim. Se quiser, pode fazer o mesmo comigo. —
Seus beijos no pescoço eram um delírio. Suas mãos subiam
as saias até os quadris, seguras e firmes.
Viola puxou os botões de sua camisa até acariciar sua
pele morna e macia.
— Alguma parte em particular que queira que domine?
— O que você goste. — Beijou-a na garganta e deixou
uma trilha de beijos ardentes até chegar a sua boca, que
esboçava um sorriso. — Mas não deixe de me tocar. —
Agarrou-lhe o traseiro com as mãos e a fundiu a ele. — Deus,
é maravilhoso ter você assim! Estou há semanas desejando
tocá-la de novo.
Viola suspeitava que deveria lhe replicar, zombar dele ou
soltar uma risadinha. Entretanto, só atinou a seguir
acariciando-o tal como ele desejava e a afastar a camisa para
poder desfrutar dessa pele ardente e de seus incríveis
músculos. Permitiu-lhe que a acariciasse como quisesse,
deixando que sua boca e suas mãos a explorassem de forma
íntima até enlouquecê-la. Quando já não pôde suportar mais
as carícias, separou as coxas e lhe permitiu que a possuísse.
Permitiu... Adorava senti-lo dentro! Adorava a sensação de
acolhê-lo em seu interior, enlouquecia-a. Com as saias nos
quadris e o corpo enfebrecido, começou a mover-se ao
compasso de suas investidas até que ficou sem fôlego e nem
sequer pôde gritar de prazer.
— Viola — sussurrou ele. Seu corpo a esmagava contra
a porta, em que tinha apoiado uma mão, enquanto a possuía.
— Viola...
A nota rouca de sua voz, a urgência e o desespero até
ele profundamente. Porque havia algo diferente. Viola o sentia
nas entranhas, no sangue, na alma. Vibrou por todo seu
corpo enquanto alcançava o orgasmo entre gemidos e
obstinada a ele. Jin a seguiu, e voltou a fazê-la sua.
Seus frenéticos movimentos diminuíram até
transformar-se em quietude. Por um instante, permaneceram
tal como estavam, frente contra frente e ofegantes. Depois,
com cuidado e com suas fortes mãos, ele a deixou no chão.
Viola tirou os braços do seu pescoço e alisou as enrugadas
saias do vestido, depois tentou arrumar o cabelo. Ele abotoou
as calças. Sem mediar palavra, Jin voltou para abraçá-la.
Viola não esperava.
Enterrou o rosto em seu ombro e aspirou seu aroma de
forma entrecortada.
— Fique comigo esta noite — ela sussurrou, com medo
do momento que estava prestes a acontecer, quando ele a
soltasse e ela se visse obrigada a retomar a distância que os
separava. — Fique comigo.
Jin a soltou.
— Viola...
— Esta noite, a festa não... Apesar de ter conseguido
isso, não foi fácil para mim. Eu acho que você é o único que
pode me entender — se apressou a explicar. — Somente esta
noite. Para me consolar. Não tem por que me fazer amor
outra vez. — Estava suplicando e, a verdade fosse dita,
mentindo. Porque precisava de muito mais do que simples
conforto. Necessitava-o para sempre. — Quero sentir seus
braços a meu redor.
Jin a olhou em silêncio um bom momento. Seus olhos
resplandeciam como o cristal e voltavam a ser distantes. Essa
expressão a deixou a borda da morte.
— Se voltar a te abraçar esta noite — replicou no final,
— não poderia evitar fazer amor outra vez.
Ela piscou para conter a ardência das lágrimas e tentou
refrear a esperança.
— E se não fizermos ruído?
— Acredito que é impossível para você. Sob qualquer
circunstância. Viola sentiu um nó na garganta.
— Imbecil.
— Bruxa. Onde está seu dormitório?
— Não tenho certeza. Em realidade, tinha-me perdido.
Jin pegou sua mão e entrelaçou os dedos com os seus.
— Aparentemente, para isso eu vim. — Abriu uma
fresta.
— Espaçoso. — Ele a empurrou para o corredor escuro e
soltou sua mão.
Viola começou a andar, aturdida e emocionada. Queria
que lhe fizesse outra vez amor, sim, mas o que mais ansiava
era que voltasse a apertar sua mão. Alongou um braço até
encontrar-lhe e agarrou sua mão. Esses dedos fortes se
fecharam ao redor dos seus, acelerando seu pulso.
Entretanto, mal teve tempo de desfrutar dessa enorme
fonte de prazer, porque ele retirou a mão. Depois de um
momento, Viola escutou as vozes. Por Deus, que bom ouvido
o seu! Com razão tinha tido tanto êxito quando era criminoso.
Pelo corredor apareceu um cavalheiro, seguido de outro.
— Aqui está — disse Tracy. — Seton, nosso anfitrião me
enviou para te localizar a fim de igualar o número de
jogadores na mesa. — Olhou para Viola com um sorriso
cansada. — Boa noite, Viola. Como está? — Olhou para seu
amigo e seu sorriso se alargou. — Espero que esteja com
ciúmes, Hopkins. Nem todos os dias se herda uma meio-irmã
tão bonita como a minha. Embora suponho que em meu caso
é algo repetitivo. Acontece-me a cada dez anos ou assim.
Todos riram.
Jin se limitou a sorrir.
Viola desejou enviá-los ao fundo do oceano, um
pensamento muito pouco fraternal de sua parte, sim, mas
sabia muito bem como ia acabar a cena.
— O que você acha, Seton? Você quer perder alguns
guinéus por uma boa causa? — perguntou o senhor Hopkins,
que deu uns tapinhas eloquentes no bolso do colete, um
gesto que o fez parecer um veleiro a toda velocidade.
Tracy se inclinou para diante como se fosse uma fazer
uma confidência e disse em voz baixa:
— Deu de olho nos cavalos de Michael, que irá a leilão
na próxima semana. Mas ele ainda não pode pagar. Disse-lhe
que será fácil te depenar nas cartas, Seton. Quero esses
cavalos para mim, entende? — Ele piscou um olho. — Dê
uma mão a um velho amigo, quer acha?
— Que inseto! — exclamou o senhor Hopkins.
— A senhorita Carlyle não encontrava seu dormitório —
explicou Jin.
Viola era consciente de que não necessitava nem olhá-lo
para derreter-se a seus pés.
— Me permitam acompanhá-la e imediatamente estarei
com vocês.
— Em realidade — replicou Viola olhando-o de soslaio e
com a alma nos pés, — essa é a porta de meu dormitório —
concluiu, apontando-a com o dedo. Era inevitável. —
Obrigada, senhor Seton. — Tudo tinha acabado. Já não a
abraçaria nem poderiam fazer amor. Jin não voltaria. Já
tinha conseguido o que queria.
Ele lhe fez uma reverência.
— Boa noite, senhorita Carlyle.
Viola se despediu de seu meio-irmão e do seu amigo com
um gesto da cabeça e entrou em seu dormitório. Quando
fechou a porta, pressionou a testa na madeira e tentou
respirar. Custava-lhe pelo espartilho, com certeza. Ou não.
Meteu-se na cama e cravou o olhar no dossel, piscando ao
compasso dos roncos de madame Roche, que dormia na
câmara ao lado.
Era melhor assim. Jin sempre obtinha que ela fizesse os
sons mais inapropriados e escandalosos quando faziam amor.
Nesse dormitório careceriam de intimidade.
Seguiu deitada, olhando o dossel um momento, e logo
começou a mover-se para diante e para trás. A cama golpeou
a parede. Os roncos de madame Roche cessaram e reinou o
silêncio. De repente, escutou-se um ronco enorme que
atravessou a parede e a dama recuperou sua cadência
habitual.
Viola suspirou e fechou os olhos. Mesmo que Jin
estivesse naquela noite com ela, eles não podiam fazer amor.
A cama não o permitiria. Mas ele não viria. Devia contentar-
se com os rescaldos do escarcéu amoroso que tinham
compartilhado no armário da roupa branca.
Abriu os olhos e os cravou no tapete da lareira. Dias
antes, sentou-se muito comodamente nela enquanto tirava
cabelos de gato de seu xale depois de uma visita ao estábulo,
onde havia uma nova ninhada de gatinhos. Supunha que as
damas que tinham fofocado tanto, tinham acertado em algo:
sempre lhe tinham gostado dos gatinhos dos estábulos.
Sempre tinha gostado dos estábulos, porque estavam cheios
de aventuras e desordem. Tempestade de Abril lhe recordava
um pouco um estábulo. Um estábulo flutuante. Talvez por
isso ainda não a tinha descartado.
Desceu da cama, levando o cobertor consigo. Algum
criado acendera o fogo e o tapete estava quente e macio.
Ajoelhou-se, deitou de lado e se agasalhou com o cobertor.
Enquanto se deixava arrastar pelo sono, permitiu imaginar
que um belo pirata lhe fazia amor durante toda a noite.

****

Viola dormia como um marinheiro, em qualquer lugar e


a sono solto. Entretanto, parecia toda uma dama com as
mãos sob uma bochecha e o brilho das pedras preciosas dos
prendedores de cabelo. Ela ainda usava o vestido reluzente
que moldava suas curvas e com o qual conseguira atrair a
atenção de todos os convidados masculinos da festa, tivessem
oitenta anos ou oito. Nesse momento, o tecido se esticava em
torno de seus seios, e pelo decote apareciam suas rosadas
aréolas.
A boca de Jin secou, embora já a havia visto nua e tinha
desfrutado de seu corpo, sabia que esse delicioso vislumbre
não deveria afetá-lo tanto. Não obstante, se passasse todo o
dia tentando convencer-se de que Viola era uma a mais entre
muitas mulheres, nunca conseguiria.
Agachou-se e tocou sua bochecha. A respiração de Viola
mudou e pestanejou várias vezes. Deslizou os dedos pelos
escuros cachos que lhe cobriam sua testa, maravilhando-se
pela perfeição de sua textura.
Ela abriu os olhos.
— Você está de volta.
— Mas não me esperou muito. Acredito que me
decepciona esta falta de entusiasmo. — Sorriu enquanto lhe
acariciava a elegante curva do pescoço.
Viola piscou, ainda com sono.
— Que não te esperei muito? Sim, estou entusiasmada.
— Conteve um bocejo. — Quanto tempo demorou?
— Nem meia hora.
— Foi uma partida rápida.
— Eu me deixei vencer.
— O senhor Hopkins poderá comprar seu par de
cavalos.
— Isso não me importa um nada. Viola, vou sair e
deixarei que siga dormindo.
Ela lhe agarrou pelo pulso.
— Não! — levantou-se e o cabelo caiu desordenado
sobre os ombros e sobre o peito. — Não vá. — «Jamais»,
pensou. — Oxalá...
— Não irei.
Viu-a umedecer o lábio inferior com a ponta da língua
antes de fazer o mesmo com o superior. Foi incapaz de
afastar a vista. Manter distância com ela tinha sido a
provação mais difícil de sua vida. Não necessitava da
desaprovação de Carlyle para recordar que não era um
pretendente adequado. Soube somente em conhecê-la. Mas
ela o desejava e não podia negar o pouco que era capaz de lhe
dar. Pelo menos por essa noite.
— Você veio fazer amor novamente?
— Bem, sim. — Acariciou-lhe de novo a bochecha com a
gema dos dedos. Jamais se cansaria de sentir o roce sedoso
de sua pele. Continuando, deslizou os dedos por seu pescoço,
em direção ao espaço entre seus seios.
Viola fechou os olhos e inspirou, o que fez que seus
seios se elevassem.
— Mas antes — disse sem abrir os olhos — devo beber
algo. Vinho.
Jin sorriu.
— Deve?
— Tenho a boca pastosa. Não quero que me beije até
haver enxaguado a boca.
Ele soltou uma gargalhada e ela abriu os olhos de
repente.
— O que há de errado? — perguntou-lhe.
Jin meneou a cabeça. Embora afirmava ser uma mulher
segura de si mesmo, no fundo ignorava onde residia seu
verdadeiro encanto. Essa inocência a fazia ainda mais bela.
— Viola, isso não me importa. — Ela fez uma careta.
— Pois a mim, sim. Na mesinha de noite há vinho.
Jin ficou em pé para ir em busca do licor. Quando
voltou, Viola estava de pé olhando para a lareira. O cabelo
caía como uma cascata escura pelas costas, e as rugas do
vestido não impediam que se amoldassem à curva de seu
traseiro. Seu perfil era delicado. A imagem fez que estivesse a
ponto de deixar cair à taça ao chão. Viola era a mais linda
que tinha visto na vida e a essas alturas ainda era incapaz de
acreditar em sua boa sorte.
Ela o olhou por cima do ombro. A luz do fogo se refletia
em seus olhos, ainda sonolentos. Aceitou a taça e bebeu um
sorvo, depois manteve o licor um tempo na boca antes de
engolir O delicado movimento de sua garganta ao engolir foi
como uma droga para ele. Viu-a soltar a taça.
O momento se alongou muito. Tanto que o coração lhe
pulsava acelerado. Colocou as mãos nos seus ombros e a
atraiu para ele. Uma vez que teve suas costas coladas ao
torso, inclinou a cabeça para aspirar seu aroma. Não usava
perfume. Cheirava a ela: a doce, teimosa e embriagadora
Viola.
— Me diga onde quer que te toque. — Afastou-lhe o
cabelo do rosto com suavidade e a beijou na nuca. Uma nuca
perfeita e feminina. Era perfeita e feminina em seu conjunto,
mas começaria por aí.
Escutou que lhe acelerava a respiração. Uma leve carícia
e era capaz de afetá-la dessa forma. Quase podia fingir que
estava feita para suas mãos. Mãos que tinham feito sofrer a
muitos homens de forma brutal.
— O que quer dizer com isso de que onde quero que me
toque? — sussurrou ela.
Beijou-a no ombro, uma curva mais feminina.
— Uma dama merece que a toquem onde deseja —
murmurou contra sua pele com a vista cravada em seus
mamilos, apenas ocultos sob a borda do tecido do corpete.
Ansiava lamber-lhe Precisava saboreá-la por inteiro. — Só
onde você deseje.
— De meu corpo?
Ele sorriu.
— De seu corpo.
— Não ria de mim.
— Onde, Viola?
— Em todos lugares — sussurrou. Jin se ajoelhou. — Se
apóie em meus ombros.
— O que vai fazer? — Entretanto, obedeceu-o.
Ele levantou-lhe um pé do chão e tirou um sapato.
Depois fez o mesmo com o outro.
— Ai, sim! — exclamou ela. — Odeio esses escarpins. Os
odeio!
— Vamos queimá-los assim que terminarmos. — Foi
subindo a mão por uma panturrilha e seguiu para o rosto
interno da coxa.
Viola se deixou levar.
— Não quero que acabemos. — levou uma mão à boca.
— Quero dizer... Oh!
Jin só pretendia tirar suas ligas. Entretanto, o simples
feito de tocá-la o enlouquecia de desejo e fazia que seu corpo
decidisse por si mesmo, embora não se arrependesse. Viola
era a personificação da beleza e já estava úmida. Começou a
mover os quadris para esfregar-se contra seus dedos.
— Aí — a ouviu sussurrar. Tinha fechado os olhos e
jogado a cabeça para trás. — Quero que me toque aí.
Acariciou-a com delicadeza e depois com menos
delicadeza à medida que seus ofegos aumentavam e que
separava os joelhos. Imediatamente, começou a esfregar-se
contra sua mão, lhe suplicando com o corpo e gemendo. Tudo
aconteceu em um abrir e fechar de olhos. O êxtase
transformou a expressão de seu rosto e lhe provocou uma
dolorosa ereção. Viola gemeu e seguiu esfregando-se contra
ele com os lábios separados.
No final, deixou-se cair contra ele.
— Eu... eu... — balbuciou enquanto tentava recuperar o
fôlego e jogava os braços ao seu pescoço. — Não quero voltar
a fazer de pé e vestida.
— A verdade é que só tratava de te despir.
— Pois não fez um grande trabalho, digamos. —
Brilhavam-lhe os olhos. Começou a lhe desabotoar o colete.
— As damas e os cavalheiros usam muita roupa. — Desceu-
lhe a roupa pelos ombros.
— Talvez seja para dissuadir de praticar esta atividade
em concreto — repôs ele, que tirou o colete quando ela lhe
tirava a camisa das calças para passar-lhe pela cabeça.
Viola colocou as mãos no seu peito e cravou a vista nele.
Nele.
Jamais tinha estado tão pronto para possuir uma
mulher, nem sequer com ela nas ocasiões prévias.
— Oh, Jin — murmurou. — Se todos os cavalheiros
fossem como você, as damas necessitariam um sem-fim de
roupa a mais para dissuadi-las de despir-se em plena rua
todos os dias.
Isso lhe arrancou uma gargalhada, embora foi um som
um tanto afogado.
— Obrigado, suponho.
— Supõe nada, é um elogio em todas as regras —
sussurrou ela enquanto explorava seu torso com as gemas
dos dedos, avivando o desejo de que essas mãos o tocassem
por todos os lados.
Entretanto, notou algo diferente em suas carícias.
Agarrou-lhe um pulso e voltou sua mão para observar
sua palma à luz do fogo.
— Sua pele...
Ela puxou sua mão e a levou ao peito para que o
cobrisse enquanto exalava um suspiro.
— Lixaram-me para tirar os calos. — levou a mão às
costas. — As damas não têm calos. Mas não importa, porque
com calos ou sem eles, não consigo tirar este vestido sozinha.
E agora mesmo detesto ser uma dama. Jin, me dispa. Por
favor, me dispa.
— Vejo-te muito educada em suas exigências. —
Deslizou as mãos até suas costas e começou a lhe desabotoar
os diminutos botões.
— Bem, sim. Na verdade, não gostei de que os
convidados que participaram da festa nunca digam «obrigado»
ou «por favor». Acaso não sabem que pegam mais moscas com
mel que com...? Oh! — Apoiou as costas em suas mãos. —
Obrigada. É muito mais rápido com o espartilho que Jane.
— Tenho boas razões para sê-lo. — Beijou-a no pescoço
ao mesmo tempo em que a despojava da seda, da renda e do
resplandecente tecido até que só ficou uma fina regata, que
ela tirou e jogou no chão.
— Graças a Deus. Já não necessito mais seus serviços...
nesse âmbito.
Um rubor virginal cobriu as bochechas da bonita
mulher que tinha montada sobre o regaço, nua salvo pelas
meias e as ligas. Enquanto a contemplava, Jin chegou à
conclusão de que talvez estivesse tremendo. Pela primeira vez
em sua vida, se não lhe falhava a memória. Tremendo.
— Viola? — sussurrou, embora mal se escutou por cima
dos ensurdecedores batimentos do seu coração.
— O que? — murmurou enquanto passava um dedo
pela cintura, e se deteve na braguilha das calças. — O que?
— Estarei sempre á seu serviço, peça-me o que pedir.
Ela piscou várias vezes com rapidez e engoliu saliva.
Depois, fechou os olhos e o acariciou lentamente.
Ficar a serviço de Viola foi o mais natural do mundo.
Viola riscou o contorno de seus peitorais e dos músculos
de seus braços em primeiro lugar. Esta exploração foi muito
satisfatória, embora tenha despertado o desejo de mordê-lo. E
de lambê-lo. De modo que o fez, com suavidade. Como viu
que o agradava, desfrutou em grande medida do momento,
enquanto o obrigava a deitar-se para trás até que o teve
apoiado sobre os cotovelos. Dessa forma a tarefa de acariciá-
lo era mais singela. Jin estava feito à imagem de um deus.
Como a estatueta de seu faraó, mas muito maior, claro. E
mais quente. Acariciá-lo dessa forma, saboreá-lo a bel prazer,
também a excitou.
— Viola — o ouviu dizer com voz tensa.
Ela levantou a cabeça para escutá-lo. Jin tinha a vista
cravada no teto e respirava com dificuldade.
— Alguma coisa errada? — Colocou as mãos no seu
torso e foi subindo por seu corpo para beijá-lo no queixo. O
roce áspero da barba era maravilhoso.
— Ao contrário. — Seus olhos eram como duas safiras
líquidas. Azuis como o mar. — Embora corra o risco de
parecer impaciente, estou...
— Impaciente?
— Ansioso por consumar o momento.
— Isso é o mesmo.
— Não de tudo. — Colocou uma mão na sua nuca e
puxou-a para beijá-la, depois murmurou contra seus lábios:
— Se importaria em não discutir neste preciso instante? —
Soltou-a para tirar as calças.
Viola se estremeceu por inteiro.
— É obvio — respondeu, apressando-se a olhá-lo de
novo nos olhos. Ao fazê-lo, viu que tinha uma expressão
zombadora. — Queria dizer que é obvio que discutirei se
desejo fazê-lo ou se houver um motivo de peso para...
Jin a fez sentar-se em seu regaço e, de repente, não
encontrou motivo algum para discutir com ele.
Fizeram amor. Sem discussões. Ele não zombou dela,
nem a torturou, como era seu costume. Entretanto, sim ficou
a seu serviço, embora nem sequer precisou lhe pedir nada.
Talvez foi essa entrega de sua parte o que alterou o
desejo que sentiam um pelo outro. Ou talvez foi o assombro
que Viola sentia ao contemplar a beleza e a seriedade desses
olhos azuis enquanto a acariciava. Porque depois de alguns
minutos não houve risadas, nem respostas engenhosas, nem
exigências, nem expressões educadas de gratidão. Somente
gemidos de prazer foram ouvidos em ambos os lados, um
prazer entregue e compartilhado na mesma medida, e as
batidas trovejantes de seus corações chegando ao limite do
abismo mais sublime.
Viola se lançou voluntariamente nesse abismo. Ou, em
vez disso, tinha sido lançado há vários meses, compreendeu
nesse momento, que jamais poderia sair dele por mais que
tentasse. Jin a abraçou com força, rodeando-a com os braços
e com o rosto enterrado em um ombro. Estava tenso, a borda
do êxtase que ele queria levá-la. Viola lhe acariciou as costas.
— Jin?
Ele a olhou nos olhos e a intensidade desse olhar a
deixou sem fôlego. Também havia distanciamento e dor.
Isso a alarmou.
— Jin?
Ele a tirou do regaço, deixou-a sobre o macio tapete e
voltou a penetrá-la. Ao entrar nela, gemeu, depois saiu de
novo de seu corpo para investir uma vez mais.
— Oh! — exclamou Viola. Era maravilhoso. Muito mais
que maravilhoso.
Ela agarrou-se a seus ombros e se acoplou ao ritmo de
seus quadris. A cadência e a força de suas investidas
aumentaram, até que ela acabou aferrando-se a borda do
tapete, com o corpo arqueado para recebê-lo, para instá-lo a
ir mais rápido, presa de um desejo frenético. Mal que podia
respirar, enquanto seu corpo o acolhia, afligido pelo prazer.
Por um delicioso prazer! Até que o abraçou pela cintura e o
obrigou a afundar-se até o fundo dela. Uma e outra vez.
O êxtase foi esmagador, muito mais satisfatório e brutal
que em outras ocasiões.
— Ooooh! — gemeu ela.
— Deus, Viola! — Jin estremeceu com os músculos
duros pela tensão.
Viola tomou uma funda baforada de ar e o abraçou
pelos ombros, convidando-o a deitar-se sobre ela.
Entretanto, não demorou para afastar-se.
— Estou te esmagando — aduziu. Seus músculos
relaxaram, mas sua voz parecia tensa.
— Não me importa. — «Absolutamente», acrescentou
Viola para seus adentros.
— Não importa. — afastou-se dela e ficou sentado sobre
os calcanhares. Seu olhar, entretanto, não a abandonou. Sem
deixar de olhá-la aos olhos, disse em voz baixa: — Senhorita
Carlyle, você é muito linda.
Apesar da fadiga e da completa satisfação que sentiu,
Viola conseguiu esboçar um pícaro sorriso.
— Cavalheiro, a estas alturas conheço muito bem as
ocas adulações dos homens. Só diz com a esperança de me
levar para a cama.
Jin esboçou o indício de um sorriso e a elevou nos
braços.
— Mais vale tarde que nunca — replicou.
Deixou-a sobre as mantas e Viola se aconchegou
debaixo delas. Sua pele suada não acusava o frio noturno, já
que o fogo estava se apagando. Jin diria algo razoável ou
talvez algo inquietante, e partiria. E ela passaria os seguintes
quarenta anos de sua vida tentando recompor seu destroçado
coração.
Entretanto, não partiu. Deitou-se a seu lado, tal como
tinha feito no hotel, e fechou os olhos. Pareceu a coisa mais
natural do mundo. Entretanto, o mundo de Viola estava
virado de cabeça para baixo.
Com os nervos a flor de pele, seguiu acordada,
observando-o durante momentos. Seu lindo rosto não relaxou
durante o sono, mas adotou um ricto severo à mortiça luz
das brasas. Pouco a pouco, Viola descobriu o que não tinha
visto antes: um homem cansado e preocupado, como se
durante o sono não pudesse ocultar o que jamais revelaria
acordado.
Vê-lo assim a comoveu. Quis saber o que o preocupava.
Ansiou acariciar essa bela boca para aliviar a tensão de sua
mandíbula. Ansiou abraçá-lo e lhe dizer que não tinha por
que enfrentar sozinho suas preocupações.
Claro que não gostaria absolutamente que o fizesse. Era
um homem que não necessitava da ajuda de ninguém. Viola
começava a assimilá-lo, e isso a afligia mais do que teria
imaginado.
Não obstante, inclinou-se para ele, cedendo ao desejo de
lhe acariciar uma bochecha.
— Você sempre tem dificuldade em dormir? —
perguntou-lhe ele com voz rouca.
Viola se afastou com um sobressalto.
— Acreditava que estava dormido.
— Como deveria você estar.
O coração começou a pulsar tão rápido como quando o
encontrou no corredor, mas com um desejo muito mais
poderoso.
— Tenho medo de dormir e de não te encontrar quando
despertar — confessou com um fio de voz.
Jin abriu os olhos, e a ternura que viu neles não só a
deixou sem fôlego, mas sim lhe roubou a alma. Chegou à
conclusão de que também era o dono desta, não só de seu
coração.
Viu-o colocar-se de lado para lhe acariciar uma
bochecha enquanto esfregava o polegar pelos seus lábios.
— Não irei.
— É o que sempre faz. — Não se importou em revelar
suas cartas dessa forma. Amava-o muito.
— Viola, se você não quiser, não irei.
Ansiava lhe perguntar se referia a essa noite ou há essa
semana. Não obstante, a coragem que ela mostrou durante o
sequestro, as tempestades, o sofrimento e a solidão,
abandonou-a. Sentia-se incapaz de enfrentar sua resposta
porque ignorava qual era. Essa noite queria, durante um
precioso instante, estar sozinha com ele e imaginar que seria
para sempre.
inclinou-se para ele e o beijou nos lábios. Jin a agarrou
pela nuca para beijá-la com doçura e delicadeza, de modo
que imaginou que ele sentia algo por ela. Claro que também
possuía um coração negro capaz de enganá-la e fazer que se
iludisse dessa maneira. Se fosse uma mulher fraca, poderia
acabar destroçada quando a abandonasse. Por sorte, era feita
de uma massa mais dura.
Separou-se dele, envolveu seu coração dolorido,
agasalhou-se dos pés até o queixo, e finalmente dormiu.
26

Despertou antes do amanhecer com uma chuva de


beijos. Começava pela boca e continuou pelas bochechas e o
pescoço, excitando-a pouco a pouco; embora isso mudou
quando sua mão posou sobre um seio. Com as pontas dos
dedos, acariciou-lhe o mamilo antes de proceder a fazê-lo
com a língua. Ela gemeu para lhe fazer saber que gostava,
abraçou-o pela cintura e ainda com os olhos fechados,
acolheu-o em seu corpo.
Dessa vez foi diferente. Conheciam seus corpos, se
familiarizaram com sua pele e com seu calor, de modo que se
moveram lentamente, deleitando-se com sua união. Não
havia urgência nem pressas, só a perfeição de ser um só ser.
No princípio.
Depois de um tempo, invadiu-os o mesmo frenesi que
experimentaram no armário da roupa branca. Entretanto,
desfrutaram do momento, com muito entusiasmo, apesar de
como era e que continuavam sonolentos.
— Eu... — Jin suspirou contra seu cabelo. — Não era
minha intenção que isso acontecesse.
— De verdade? — Passou as mãos por seus largos
ombros e pelas costas, desejando que nunca abandonasse
esse lugar entre suas pernas, e com a sensação de que, em
relação ao recato, era um fracasso absoluto. — A cama não
golpeou a parede como temia. Você notou?
— Não. — Sua voz soava muito rouca. — Só podia ver
você.
Seu coração saltou, algo ridículo, porque era óbvio que
ele só podia vê-la. Que homem não faria o mesmo dadas às
circunstâncias?
Viu que uma mecha de cabelo escuro caía sobre esses
olhos azuis, enquanto que seus lábios esboçavam um sorriso
torto.
— Só queria te beijar.
— Admite-o. — A bravata poderia salvá-la. — Não tem
controle sobre seus atos no que se refere a mim. —
Entretanto, ao olhar seus olhos risonhos, duvidou da
efetividade. Já nada podia salvá-la.
— Tenho pouco controle — conveio ele. — Embora o
suficiente para partir antes que apareçam os criados. —
Separou-se dela, colocou as calças e, depois de recolher a
camisa, retornou à cama para sentar-se a seu lado. — Está
satisfeita?
Viola arregalou os olhos ao escutá-lo.
Nos lábios de Jin havia um sorriso travesso.
— Satisfeita de que não tenha te deixado sozinha esta
noite. — Não, pensou ela.
— Sim — disse ela em troca. — Obrigada.
Se atrevesse, estenderia o braço, pregaria-o a ela e o
abraçaria para que não partisse, de modo que a criada
encarregada da lareira os visse juntos, e Serena e Alex lhe
exigissem que se casasse com ela. Isso era o que faziam os
cavalheiros quando comprometiam uma dama. Eram as
regras.
Entretanto, Viola tinha se comprometido fazia muito
tempo sem sua participação, e Jin sabia que ela não era uma
dama. Não tinha que respeitar todas as regras, só as que
mais lhe convinham.
Ele pegou a camisa e se inclinou para ela.
— Não, senhorita Carlyle. — Beijou-lhe uma comissura
dos lábios com doçura antes de fazer o mesmo com o outro
lado. — Obrigado, a você.
Ela o agarrou por um pulso. De forma impulsiva.
Ridícula. Imprudente. Era incapaz de trocar sua forma de ser,
por mais que o tentasse.
— Me diga que sairá de Savege Park esta manhã, Jin
Seton, levanto-me da cama, pego minha pistola que guardo
na cômoda e atravesso seu coração com um tiro.
Acreditou ver muitas coisas passando por esses olhos
azuis, muitas emoções. Surpresa. Satisfação. Esperança. Até
mesmo aceitação. Mas nada disso podia comparar-se com o
que havia nessas profundidades azuis: precaução e, uma vez
mais, receio.
Soltou-lhe a mão com o coração destroçado na garganta.
Jin olhou o ponto onde sua mão descansava sobre a colcha,
junto à sua, sem tocar-se.
— Disse-te que não iria — assegurou ele.
— Certo. — Tentou controlar o tremor de sua voz. — E o
valor de um marinheiro se mede por sua palavra, verdade?
Ele ficou em pé e pôs-se a andar para a porta, onde se
deteve.
— E por suas ações.
— Como o fato de devolver uma filha pródiga a sua
família?
Quando a olhou, Jin tinha uma expressão séria. E
partiu sem responder.
Viola colocou o seu melhor vestido matinal, assobiou
enquanto Jane arrumava seu cabelo e foi incapaz de tomar
um só bocado do café da manhã que lhe levaram a hora
tardia das dez da manhã. Não tinha a menor idéia de Jin
seguia em Savege Park; de fato, duvidava da possibilidade,
mas a esperança era enorme.
Quando por fim apareceu na planta baixa, apesar das
bolhas dos pés, descobriu que o vestíbulo era um formigueiro
de atividade. Convidados com muito má aspectos e olhos
avermelhados atravessavam o vestíbulo em direção a suas
carruagens, que os esperavam no exterior. Os criados saíam
carregados com bolsas e baús. Entretanto, três cavalheiros e
duas damas entraram pela porta.
Viola se deteve na escada de pelo arrepiado e observou
como os cavalheiros tiravam os chapéus. Sentiu um nó no
estômago. E o medo lhe provocou um calafrio. A tensão era
tal que não se via capaz de descer outro degrau.
Como se visse atraído por sua imobilidade em meio de
tanta agitação, Aidan olhou para a escada, para ela. Em seu
rosto apareceu um sorriso de orelha a orelha, quando
caminhou em direção ao pé da escada, onde ela se juntou a
ele.
— Olá, Aidan.
— Violet. Uau. Por Deus... — Meneou a cabeça. —
Tenho repetido muitas vezes que não o faria, mas acabo de
fazê-lo. Senhorita Carlyle, como você está?
— Violet está bem. É como me chamou todo este tempo.
— Mas agora é uma dama de linhagem. — Percorreu-a
com o olhar. — Não deveria ser tão atrevido.
Ela franziu o cenho ao escutá-lo.
— Que coisa ridícula. Mas... — Olhou para os outros.
Seamus lhe fez uma reverência zombadora. Os outros, um
homem já entrado em anos, uma dama e uma moça muito
jovem, olhavam a seu redor com os olhos arregalados. —
Aidan, o que faz aqui?
— Nós o convidamos, é claro. — Serena desceu a escada
e se colocou a seu lado. — Senhor Castle? E esta deve ser sua
família. — Separou-os da agitação de criados e convidados. —
Senhores Castle, é um prazer conhecê-los.
— Lady Savege, o prazer é nosso, certamente. — Sua
mãe falava com voz doce e agradável.
Aidan tinha herdado seus lábios carnudos, e também
seus olhos.
O rosto e o nariz eram de seu pai, sem lugar a dúvidas.
O senhor Castle fez uma reverência.
— Milady, é uma grande honra sermos hóspedes em sua
casa. Nosso filho nos contou muitas coisas a respeito de sua
amizade com a senhorita Carlyle e com seu pai ao longo dos
anos. Agrada-nos ter a oportunidade de conhecê-la por fim.
Senhorita Carlyle. — Saudou viola com um gesto da cabeça.
— Como está?
— Apresento minha irmã, Caitria. — Aidan instou a
jovem a adiantar-se, que fez uma tímida genuflexão. — E meu
primo, Seamus.
— Como podem ver, estamos sumidos no caos. —
Serena abrangeu a estadia com um gesto da mão. —
Gostariam de irem ao salão para tomar seus quartos suas
habitações? — Convidou-os a acompanhá-la. — Caitria, que
nome mais bonito. A irmã de meu marido também se chama
Katherine, embora todos a chamamos Kitty.
Aidan e Seamus foram deixados para trás.
— Bonita casa que você procurou, Vi. — O irlandês lhe
piscou o olho a uma criada que passava a toda pressa.
— A casa não é minha. É do conde e de minha irmã. Eu
estou de visita.
— Como vai sua visita? — Nesse momento, Aidan pegou
sua mão. — Você está gostando de sua reunião familiar? Não
recebi cartas tuas, embora esperava alguma. Quando chegou
o convite de lady Savege, admito que me aferrei à
oportunidade de vir. Oxalá o tivesse feito antes. — Em seus
olhos esverdeados viu uma mescla de esperança e
recriminação.
— Você poderia ter me escrito. — escapou de sua mão e
reprimiu o impulso de olhar a seu redor.
— Queria fazê-lo, mas não sabia se você gostaria.
— Por que eu não gostaria? Estamos nos escrevendo há
anos. É meu amigo mais antigo. — Mas já não era seu
amante, e já não possuía seu coração. Nunca o tinha tido.
Não como Jin. Não de forma tão completa e irremediável.
Ele voltou a lhe agarrar a mão.
— Você mudou muito, Violet. Viola. — Soltou uma
risadinha incômoda. — Está tão mudada que já não sei como
te chamar. Temia que isso acontecesse isso se me
mantivesse afastado, embora fossem umas poucas semanas,
como aconteceu. Parece uma dama.
— Pode ser que pareça, mas por dentro sou a mesma.
— Não. — Aidan meneou a cabeça e franziu o cenho. —
Sou seu amigo mais antigo, sim, e por isso sei que há algo
diferente em você.
Viola voltou a soltar-se.
— Tolices. É melhor irmos ao salão para tomar o chá.
Eu gosto da idéia de conhecer por fim Caitria e seus pais.
Tenho a sensação de que já os conheço.
— E eles estão ansiosos para conhecê-la. Eu admito que
o atraso em chegar foi porque minha mãe tinha planejado um
jantar e que não pudemos partir antes disso. Caso contrário,
teria chegado pelo menos duas semanas atrás. — Sorriu e se
voltou para seu primo. — Seamus?
— Vou aos estábulos, primo. Há tanta agitação que será
melhor ter certeza de que os cavalos estão bem cuidados.
Dito isso, levantou uma sobrancelha e saiu da porta.
Cruzou-se com uma criada quando atravessava o vestíbulo e
sua mão desapareceu da vista. A criada ofegou, abaixou a
cabeça e acelerou o passo.
Viola franziu o cenho.
— Por que veio?
— Voltaremos para as Índias. Zarparemos de Bristol na
próxima segunda-feira, assim que nos partamos daqui.
— Tão cedo?
— Quando chegar a Trindade, terão passado quase
quatro meses desde que parti. Tempo de sobra para que a
casa já esteja reparada, para que tenham terminado os
edifícios adjacentes e para a colheita. Devo voltar antes que
meu administrador e sua mulher se acostumem muito à
cama do dormitório principal. — Sorriu.
Viola foi incapaz de olhá-lo nos olhos. Em troca,
permitiu que colocasse sua mão no braço dele para guiá-la
até sua família.

****

Jin deteve o cavalo ao chegar à borda da ravina. As


bridas estavam úmidas pelo suor do pescoço do animal, cuja
respiração era visível pela brisa marinha. Entretanto, só um
dos dois estava satisfeito depois da dura cavalgada.
As ondas rompiam na praia que havia abaixo, uma
mescla de cinza e branco. O calor fazia que a brisa do mar
fosse mais pesada. Além disso, as nuvens de tempestade
formavam redemoinhos no céu, fazendo que os raios do sol
titubeassem. Titubear... justo o que acontecia com ele.
sentia-se indeciso e fora de controle. Viola virou seu mundo
de cabeça para baixo e não sabia se gostava... se gostava
dessa necessidade desesperada para estar com ela, esse
vínculo que era quase violento por sua força. Semelhante
vínculo não acabaria em nada. Não podia dar resultados, tal
como passou com outro vínculo que experimentou há muito
tempo.
Sua mãe o tinha mantido com ela, não havia lhe
permitido sair dos aposentos de seus criados pessoais por
medo de que o descobrissem. Mas sabia que lhe pertencia e
que o amava. Tinha sido muito reservado desde pequeno, e
nunca compartilhou seu segredo com outros, já que a fúria
de seu marido era conhecida por todos. Mesmo tão jovem, ele
sabia o que poderia acontecer se a verdade fosse descoberta.
Então foi descoberto, ou talvez um dos criados, que
tinha visto muito e desejava ganhar o favor de seu senhor,
contou-o. E em um abrir e fechar de olhos, sua mãe se
desprendeu dele. Seu amor demonstrou ser muito débil. Em
seus brilhantes olhos, viu uma dor e uma pena que não
acreditou existir. Arrancado do mundo que sempre tinha
conhecido, seguro por grilhões e ela receber uma surra por
sua ousadia, Jin acreditou que ela não sofreu ao vê-lo partir.
A partir desse momento, ventilou sua raiva contra o
mundo sempre que lhe apresentou a ocasião. Uma raiva
nascida do pânico de acreditar que não haveria nada mais
para ele por mais que lutasse. Que não havia bondade e paz
para almas como a sua.
Nesse momento, o pânico o afligia de novo. Viola tinha
errado em seus desejos. Era uma mulher teimosa, cabeça
dura e apaixonada, que com cada palavra e com cada carícia
lhe oferecia algo que ela não imaginava. Algo no que não
podia confiar. Nem aceitar. Pelo bem dela. Merecia algo
melhor. Um pouco melhor que ele. E podia o ter. Devia o ter.
Entretanto, a verdade que o atormentava era que,
simplesmente, tinha medo. Conhecia todos os caminhos que
levavam ao inferno desde esse mundo. E também os de volta.
Tinha semeado esses caminhos com seus atos e se converteu
em seu dono. Mas não conhecia esse caminho que reluzia
diante dele, esse outro reino que espionava ao longe. Essa
perfeição. E isso o assustava.
Fazia tantos anos que não sentia medo que tinha
esquecido que existia.
Às cegas, cavalgou a borda do escarpado, enquanto o
céu cinza pressagiava a tempestade que se desataria mais
adiante, quando o calor aumentasse à medida que avançava
o dia, como o calor que tinha encontrado nela. Queria sua
língua afiada, suas tolas discussões, sua arrojada rebeldia e
sua loucura. Tinha passado anos procurando o perdão de
Deus com a crença de que esse era seu único desejo: a
redenção. Entretanto, nesse momento só queria a ela, e isso o
aterrava.
Claro que cavalgar até que seu cavalo caísse rendido
não era a solução. Acariciou o pescoço do animal e se dirigiu
para a casa. Os edifícios que compunham Savege Park se
adivinhavam entre as árvores e os sebes que os protegiam da
costa. O estábulo era uma edificação enorme com baias,
picadeiros e garagens. Jin entrou pela parte posterior, o mais
afastado possível dos convidados que partiam, desmontou e
tirou o chapéu e as luvas.
Não havia nem um só moço à vista. Desencilhou sozinho
o cavalo e tirou as bridas. O sino tilintou ao sair do focinho
do animal. E nesse instante, ouviu-o.
Teve um mau pressentimento.
Um som amortecido. Não o ruído que fariam os cascos
de um cavalo sobre a palha ou o gemido de um animal.
Gritos abafados. O grito de uma mulher sob uma mão
forte. Em uma baia, não muito longe de onde ele se
encontrava. A sétima... não, a oitava baia nessa fileira.
Deixou as bridas em um gancho da porta e pôs-se a
correr. Os cavalos voltaram à cabeça. Ao chegar à sétima
porta, levou a mão ao colete, mas encontrou o bolso vazio.
Tinha saído desarmado. Claro que os punhos nunca lhe
tinham falhado. Abriu a porta da oitava baia.
As pontas da camisa branca do homem estavam
manchados de sangue, como a parte interna das coxas da
moça. Uma mão grande impedia que a moça gritasse, embora
estivesse chorando, e a mantinha imobilizada sobre a palha
enquanto que com a mão livre abotoava a braguilha.
— Feche a boca ou amanhã farei o mesmo. — Separou-a
dele. — E se começar a chiar como um porco, direi a seu
senhor que me suplicou por isso.
— Seu senhor não acreditaria em você. Ele é um homem
justo. — Seamus Castle se voltou.
Jin entrou na quadra.
— Mas eu não — acrescentou, olhando à moça. —
Procure à senhora Tubbs e conte-lhe o que aconteceu.
A moça não se moveu, então Jin lhe tendeu a mão.
— Nada vai acontecer. Vamos lá. — Com um soluço, a
moça agarrou sua mão e deixou que a ajudasse a ficar em pé.
— Vá em busca da senhora Tubss. Corra. Diga-lhe que eu te
mandei.
A moça saiu correndo.
— Que comovedor, Seton. — Seamus o olhou com
expressão zombadora. — Eu sabia que você gostava de
escravos, mas não o considerava babá das criadas.
O punho de Jin impactou contra a mandíbula do
irlandês com tanta força que o rangido ressoou por todo o
estábulo. Seamus caiu na palha, e levou as mãos ao rosto
enquanto amaldiçoava. Quando Jin se aproximou dele,
arregalou os olhos e recuou como um caranguejo, com o
sangue (o seu, agora) lhe manchando o queixo e a camisa.
Entretanto, conseguiu esboçar um sorriso desdenhoso.
— O que há de errado com você, Seton? Não tem o
bastante se colocando entre as pernas de Violet? Também
quer a criada para você? É isso?
Sentiu o amargor da bílis na garganta ao escutá-lo e
apertou os punhos.
O irlandês soltou uma gargalhada e se levantou. Então,
Jin o socou novamente.
E procedeu a lhe dar uma surra.
27

Jin estava caminhando nervosamente pelo escritório de


Alex, mas os calcanhares das botas não o impediram de se
lembrar dos ossos quebrados de Seamus Castle ao fraturar-
se. Era incapaz de ficar quieto. Lavou o rosto e as mãos para
livrar-se do sangue do irlandês, e tinha trocado de roupa,
mas isso não tinha servido muito. A besta que possuía dentro
de si poderia usar uma coroa e uma capa de arminho que
continuaria sendo uma besta.
Alex entrou e fechou a porta atrás dele. Estava muito
sério.
— Ele vai viver. Pelos cabelos.
Jin virou o rosto para a janela atrás da qual o mar se
estendia, embora mal se distinguia pela chuva.
Alex atravessou a estadia.
— O médico está quase acabado. Suturou-lhe as feridas
e lhe emendou as fraturas que facilmente pôde...
— Não quero escutá-lo.
Atrás dele se ouviu o tinido do cristal.
— Eu disse para você tomar um brandi.
— Vá aos diabos e leve o seu brandi. Como está a moça?
— Assustada. O médico disse que se curará. A senhora
Tubbs e Serena estão cuidando dela. — Alex se aproximou
dele e lhe colocou o copo nas mãos. — Beba isso Depois,
servirei-te outro e beberá esse também. Beberá a garrafa
inteira.
— Alex, não me trate como se fosse um menino, ou
acabará sendo o terceiro paciente do doutor.
— Eu gostaria que o tentasse. — O conde se apoiou em
sua escrivaninha, um móvel enorme de mogno com a parte
superior de mármore, adequado para um aristocrata, da
mesma maneira que era a mansão.
Jin, por outro lado, não era adequado. Ele soltou o copo.
— Eu estava prestes a matá-lo. Poderia havê-lo matado.
— O fato de que pudesse fazê-lo e não tenha feito é
muito significativo. — Alex cruzou os braços diante do peito,
relaxado. — Sei por que o fez.
— Não sabe.
— Suspeito que sou a única pessoa que pode sabê-lo. Se
por acaso não recorda, conheci Frakes.
Jin apertou os dentes.
— Não sabe nem a metade.
— Sei o que ele fez com aquelas moças enquanto
estavam acorrentadas a bordo — disse Alex, aludindo
levemente à lembrança horrível. — Você me contou isso. Eu
tinha apenas doze anos e nunca tinha ouvido nada parecido.
Mas você testemunhou tudo com nove anos e, acorrentado
como estava, pouco pôde fazer para evitá-lo. Entendo
perfeitamente o que deve ser para você.
— O mais importante, por sinal, é o que tudo aquilo
significava para ele.
— Refere à Frakes? — Alex o olhou diretamente aos
olhos. — Quando?
— Quatro anos depois. — produziu-se um longo silêncio.
— Foi atrás dele, verdade?
Alex o conhecia. Possivelmente não tão bem como
Mattie, mas o suficiente.
— Fui atrás dele. Encontrei-o.
— Matou-o a sangue frio.
— A Frakes? Não. — A chuva repicava contra os cristais.
— O castrei. — Cravou o olhar além da chuva. — Era
apropriado para mim.
— Pelo amor de Deus, Jin! — exclamou Alex. — Você era
apenas um garoto de treze anos.
— Um garoto de treze anos muito forte e inteligente. E
também era o animal que Frakes me disse que era. Só me
limitei a demonstrar-lhe.
— Era jovem e estava zangado. Não poderia ter
compreendido o que estava fazendo.
— Teria feito o mesmo hoje com Seamus Castle se
tivesse levado uma faca comigo.
— Não o teria feito.
— Maldita seja minha reputação! — Tampou os olhos
com uma mão e respirou fundo, lutando contra as náuseas
provocadas pela ira e o desespero. — Sim, o teria feito. — Não
pensava enganar-se a si mesmo. Nunca o tinha feito, por
muitos mares que tivesse sulcado nem por todos os escravos
tivesse libertado. Nem pela perfeição da mulher com quem
decidisse esquecer tudo. Afastou a mão — Esse é o homem
que eu sou.
— Jin, é um bom homem.
— E você, meu amigo, vive em um mundo de fantasia. —
aproximou-se da janela. — Castle vai apresentar acusações?
— Duvido-o. Seu tio e seu primo estão furiosos, e
envergonhados. E com razão. Como Carlyle é o magistrado...
— Não é você?
— Não. Mas Carlyle está disposto a aceitar sua palavra e
a da moça por cima da de Castle. Assim não há do que
preocupar-se.
— Eu não teria tanta certeza.
— Pois deveria ter. Carlyle é um homem razoável.
— Não posso ficar aqui. — Pronunciou essas palavras
para convencer-se delas, embora não desejava partir. O único
que desejava era livrar-se do medo que o dominava. — Eu
não deveria ficar e tenho problemas pendentes em outro
lugar.
— Em Londres?
— Em outro lugar. — Caminhou para a porta.
— A verdade, surpreendeu-me que tenha ficado tanto
tempo conosco. Não recordo que o tenha feito antes.
Jin se deteve com a mão no trinco da porta e enfrentou
o olhar de seu amigo.
— Alex, estou apaixonado por Viola.
O conde se sentou no escritório, devagar.
— Ah. Isso explica tudo. — Franziu o cenho. — Carlyle
se mostra muito protetor com ela, sim. Deu-lhe motivos
para...?
— Não.
Alex assentiu com a cabeça.
— De acordo. É teu assunto. Mas não sei o que vai
conseguir indo agora.
Alguém chamou com urgência à porta antes de abri-la.
Jin se afastou justo quando Viola entrava apressada.
— Onde...? — deteve-se o vê-lo. — Aqui está você— em
seguida olhou para seu cunhado. — Olá, Alex. Serena está te
procurando.
O conde saiu da mesa e se aproximou deles.
— Nesse caso, será melhor não fazê-la esperar. Jin, se
despeça de minha mulher antes de partir. Sua partida a
entristecerá.
A porta se fechou com um estalo metálico.
— Vai partir? — Viola tinha ficado muito branca. — Vai
a Avesbury para comprar um colete que não esteja manchado
de sangue? Ou vai... vai?
— Já é hora de partir, Viola.
Esses olhos escuros o olharam com expressão alterada.
— Deixando de lado o que me disse a algumas horas,
que você não iria se eu não desejasse que o fizesse, me diga
que é capaz de dar uma surra de morte em um homem e
selar seu cavalo para partir no mesmo dia. Não pode falar a
sério.
— Ele violou uma criada.
— Já sei! Acabo de escutar a história de lábios de Jane,
a quem contou a terceira garçonete, a quem contou à
faxineira que sabia porque disse a cozinheira, a quem havia
dito a senhora Tubbs, que se inteirou pela pobre criada em
pessoa. E sabe por que teve que passar a informação por
tanta gente até chegar a mim? Porque todo mundo nesta
casa, salvo você, acredita que sou virgem, porque isso é o que
são as damas solteiras nesta sociedade. — A histeria pareceu
abandoná-la de repente e curvou os ombros. — Sinto muito.
Estou zangada. Todo mundo está. Aidan, seus pais e Serena,
é obvio, porque os convidou acreditando que eu...
— Tem direito a estar zangada. Faz muitos anos que
conhece Seamus.
Viu-a franzir o cenho.
— Quando Aidan não estava, Seamus estava
acostumado a me encurralar em qualquer lugar para
acariciar meus seios... sem convite. Alguém deveria levar-lhe
ao estábulo e dar-lhe mais do que apenas uma simples surra.
Pelo que fez a essa moça deveriam castr...
— Não, Viola!
— Não, o que? — perguntou-lhe, aproximando-se dele.
— Sinto muito que fosse você quem os surpreendesse. Sinto-
o por você. Mas Seamus Castle é um homem mau . Nunca
tinha dito a Aidan porque me dava à impressão de que eram
muito unidos. Mas essa família faria bem em deixá-lo a sua
própria sorte. Ou seria melhor se eles o alistassem na
Marinha, onde ele aprenderia o que é a crueldade.
— O que saberá você de crueldade? — Ela piscou.
— Como?
— Não sabe nada. Nada — disse em voz muito baixa,
animado pelo fogo que queimava suas vísceras. — E é melhor
que nunca saiba. Não sabe nada porque nunca tive que
manchar as mãos, enquanto Fionn e sua tripulação se
asseguravam de que sempre estivesse a salvo.
— O que você diz? — Piscou várias vezes. — Do que está
falando? Não tem nem idéia do que têm feito meu pai ou
minha tripulação.
— Passei um mês em alto-mar com homens que o
conheciam há anos. Você acha que não descobri algumas
coisas sobre Violet Daly e seu pai?
Aqueles olhos violetas olharam para cima e para baixo.
Suas bochechas estavam queimando.
— Do que está falando?
— Sabe que Fionn queria que você voltasse para a
Inglaterra? Ele fez tudo o que pôde para protegê-la da dura
realidade de sua vida e devolvê-la à vida da qual te arrancou.
Para te devolver ao lugar onde pertencia. Mas você, arrogante
e teimosa como é, não prestou atenção nele. Cada vez que te
oferecia a oportunidade, você a rechaçava.
— Você não faz idéia do que está falando. Quem lhe
contou todas essas mentiras?
— Não são mentiras. É a verdade e foi-me dito por
homens que eram leais ao seu capitão até o momento da sua
morte. Ele só queria o melhor para você. Todos a amavam .
— Como se atreve a me deixar agora que capturei tão
poucos prisioneiros durante estes anos porque minha
tripulação estava me enganando, juro-te que vou pegar a faca
do fruto do mar se não encontrar minha adaga antes e a
cravarei onde mais te doa.
— Seu pai forçou Castle a prometer-lhe que se casaria
contigo e a traria de volta a Inglaterra quando ele morresse.
Acreditava que quando você pisasse em chão inglês de novo,
gostaria de voltar com sua família.
Viola estava boquiaberta.
— Mentira. Isso é ridículo.
— Tenho em meu poder uma carta de seu antigo
segundo de bordo. Seu pai lhe encarregou que contasse a
Aidan a verdade sobre sua família depois que se casassem,
para que ele a incentivasse a retornar. Louco costuma
mentir, Viola?
— Uma carta? Por que diabos você tem uma carta de
Louco? É que esteve me espionando?
— É um de meus múltiplos talentos — aduziu ele,
embora Viola não tenha notado suas palavras.
— Louco deve ter interpretar mal as coisas. Meu pai
gostava de inventar histórias. Era um marinheiro. —
Entretanto, Viola parecia lutar consigo mesma para não
acreditar no que ele havia dito.
A expressão dos olhos violetas lhe dizia que estava
lembrando de todas às vezes em que Fionn a encorajava a
voltar para a Inglaterra, e seu afã de opor-se. Isso bastava
para Jin. Entretanto, distanciar-se dela era mais doloroso do
que tinha imaginado. Embora não poderia tê-la, tampouco
queria arrojá-la aos braços de Aidan Castle.
— Sabia se Aidan planejava retornar a Inglaterra? —
Viola franziu o cenho.
— Eu pensei que continuaria alguns anos a mais nas
Índias. Surpreendeu-me que decidisse viajar logo depois do
incêndio.
— Tanto como ele foi surpreendido, suspeito.
— O que quer dizer? — perguntou-lhe com os olhos
entrecerrados. — Você disse alguma coisa? Naquele dia após
o incêndio, quando os vi falando no hotel, estavam muito
estranhos. Contou-lhe algo, verdade? E me ocultou isso.
Jin poderia dizer-lhe a verdade, mas nesse caso não
conseguiria se afastar dela e isso já era difícil. Assim
procurou com muito tato as palavras que selariam seu
destino.
— Viola, eu menti para você desde o dia em que nos
conhecemos. Entretanto, você segue confiando em mim.
— Não entendo. Você não me mentiu — replicou, com o
coração na garganta e tremendo.
Jin se limitou a olhá-la com o olhar distante e frio. Sem
mediar palavra, caminhou até a porta e partiu.
Viola ficou paralisada pelo espanto no inicio.
Depois, saiu da estadia correndo e perguntou a um
criado:
— Para onde foi o senhor Seton? — O homem apontou
com um dedo.
Alcançou-o quando descia a escada que levava à
entrada, vazia naquele momento de carruagens. À distância,
as colinas verdes macias eram pontilhadas de árvores e
ovelhas. Viola o seguiu rapidamente, evitando os atoleiros.
— Não pense que pode fazer um comentário misterioso e
partir sem mais.
Jin se deteve.
— Meu comentário não foi misterioso. Mas se por acaso
serve de algo repeti-lo-ei: eu menti para você. Em várias
ocasiões. Acha mais fácil entender agora?
Viola se agarrou as suas mãos para evitar aferrar-se a
ele. A chuva caía sobre eles.
— Assim sim. É fácil de entender. — Decidiu desterrar a
incerteza. — Mas não acredito que isso tenha muita
importância.
— Não acredita — repetiu ele, que passou uma mão pelo
rosto e soltou um profundo suspiro. — Viola, volte para casa,
o lugar a que pertence.
Viola tiritava pelo frio da chuva que molhava seus
braços e pela certeza de que essa discussão não estava
relacionada com Aidan nem com sua tripulação, nem com
seu navio. Era sobre esse homem, a vida que ele liderara e a
vida que desejava levar. Uma vida muito diferente da que ela
tinha conhecido e que há assustava um pouco. Mas ele não a
assustava. Porque já fazia parte dela.
— É por causa de Seamus, certo? Se eu o tivesse pego,
Jin, também lhe teria dado uma surra de morte. Se tivesse a
força suficiente para fazê-lo, claro.
Jin se aproximou tanto dela com uma só pernada que
viu como se deslizavam as gotas de água por seu queixo e por
seus lábios, o que atraiu seu ávido olhar.
— Viola, por que me desafiou com a aposta no navio?
Depois de quinze anos em alto-mar, segue sem entender os
homens como eu? De verdade não nos entende?
Ela sentiu uma opressão no coração. Não havia outros
como ele.
Era único.
— Desafiei-te porque... porque queria voltar para casa.
— Tremeu-lhe a voz. — É isso que você queria ouvir? Tinha
saudades de minha vida de uma forma insuportável, apesar
de todos os anos transcorridos e por mais que tentasse fingir
que não tinha. Desejava recuperá-la. — Com a mesma
intensidade que desejava a ele. Naquele tempo, acreditou que
não poderia perdê-lo.
Mas tinha perdido e nesse momento voltava a fazê-lo. A
expressão distante desses olhos azuis deixava bem claro.
Como também deixava claro o que tinha feito pouco antes a
Seamus. Essa vida o estava matando. Se Jin quisesse, ele
poderia ser um cavalheiro. Tanto por sua educação quanto
por suas maneiras. Mas ele descartaria essa opção. E
também a rechaçaria se decidisse abandonar sua vida na
Inglaterra e voltar para o mar.
Viola se afastou dele .
— Por que você voltou para Savege Park se sabia que
iria de novo? E não me diga que o fez para saldar uma dívida
que tinha com Alex, porque poderia havê-lo visto em Londres.
— Viola, voltei porque não podia me manter longe de
você. Agora, embora desejo sair deste lugar e tenho assuntos
pendentes em outro lugar, resisto a fazê-lo por você. Só por
você. — Disse-o de uma forma absolutamente romântica, mas
bem furiosa. A mesma fúria que parecia brilhar em seus
cristalinos olhos.
De todas as maneiras, os joelhos de Viola se
afrouxaram.
— Neste momento em concreto, você não parece querer
estar onde estou— conseguiu replicar.
Jin se aproximou, agarrou-a pelos os ombros e inclinou
a cabeça para lhe dizer:
— Em uma ocasião, pensei que você estivesse louca. Eu
tinha certeza disso. Mas agora eu sei que o louco sou eu. —
Sua voz era rouca e seu fôlego lhe acariciou a testa. — Você
somente é uma ingênua teimosa.
— Não sei por que pensa isso, quando sei muitas mais
coisas do mundo que qualquer uma das damas que conheci
na Inglaterra.
— Você não entende por que não sou o homem certo
para você. É por isso que você parece ingênua para mim. E
uma mulher impossível.
Desejava-a, mas não queria desejá-la. Estava claro. O
pânico a afligiu e seu ataque era mais frio do que a chuva.
Esse era o final de verdade.
— Então, vai? Neste momento? Agora mesmo? — Ele a
soltou e assentiu em silêncio.
«Não. Por Deus, não!», exclamou para seus adentros.
— Vai para Londres? É onde está seu navio?
— Sim.
— Em Londres? Durante todo este tempo? Deve custar
uma fortuna ter o navio atracado no porto. Como diabo pode
pagar...?
— Viola — a interrompeu ele, que afastou a vista
aparentemente com impaciência.
— Aonde irá? — Tinha perdido. Tinha perdido de novo.
Mas agora a perda lhe provocava uma dor maior que tinha
experimentado na vida, muito pior que a que sentiu durante
os primeiros meses na América, muito pior que a dor da
solidão. — A Boston para recolher sua nova embarcação? Ou
a Malta, suponho.
— Ao Este.
— Quando concluir seus negócios, poderá retornar —
disse sem pensar, parecia que o desespero tinha roubado o
controle da sua língua. — Ou poderia adiar um pouco sua
viagem. — Estava abrindo seu coração para que ele o
destroçasse de novo. Mas não importava. Não podia deixá-lo
partir! — Serena e Alex falaram sobre abrir a propriedade
para o público, embora pelo que eu ouvi tudo isso parece ser
uma brincadeira, mas...
— Viola, é o suficiente.
Ela apertou os lábios. Jin a contemplava com expressão
distante, como naquele dia no navio, quando a esperança a
guiava, quando foi ingênua em acreditar que esse homem
poderia amá-la.
— Não diga mais — replicou controlando a voz, embora
tenha tido muito esforço. — Faça isso. Tem a mesma
expressão que aquele dia no navio, quando ganhou a aposta.
— Precisava ouvi-lo dizer que não a queria. Porque, apesar de
tudo, sabia que não lhe mentiria nisso.
— Meus sentimentos não mudaram desde então. — E,
como aconteceu naquele dia, ele parecia ter dificuldade em
confessá-lo. Pelo menos, senti pena dela.
Viola se pôs a tremer, afligida pela angústia.
— Bom, seus sentimentos são legítimos, suponho, seja
lá o que for. — Endireitou os ombros, mas o vestido estava
muito apertado e lhe cravaram as aspas do espartilho. De
repente, sentiu-se presa e à beira das lágrimas, embora
chorar na frente dele fosse a pior coisa que poderia acontecer
com ela. — Bem, Seton, pois adeus. Espero que tenha uma
bonita vida. — Estendeu a mão para lhe dar um aperto, mas
ele não fez gesto de aceitá-la.
— Aidan Castle não merece você.
Viola engoliu saliva para tentar desfazer o gigantesco nó
que tinha na garganta.
— Por mais surpreendente que possa te parecer, senhor
arrogante, importa-me muito pouco sua opinião sobre o
assunto. — A dor era entristecedora. Virou-se, piscando para
conter as lágrimas. — Bem, estou indo...
Jin agarrou seu pulso, puxou-a para detê-la e levou os
dedos até os lábios.
— Algum dia conhecerá um homem que te mereça de
verdade, Viola Carlyle — lhe disse em voz baixa. — Não se
conforme com menos. — Beijou-a nos nódulos e, depois, na
testa.
Viola inalou seu aroma, absorvendo sua proximidade e
tudo o que adorava dele. Quando a soltou, Jin se virou e se
afastou para o estábulo.
Ela entrou na casa, encerrou-se em seu dormitório e
deu rédea solta às lágrimas, tantas que bem poderiam encher
o oceano Atlântico.
28

Com a ajuda de Jane, Viola conseguiu que seus olhos


inchados e seu rosto pálida estivessem bastante
apresentáveis para reunir-se com sua irmã e com os outros
na manhã seguinte.
— Melhorou sua enxaqueca, senhorita Carlyle? —
perguntou Caitria, interessada. — Lady Fiona e lady Savege
estavam muito preocupadas com você. Minha mãe e eu
também. E meu irmão, é obvio.
Viola olhou para Aidan, que se encontrava no outro
extremo da sala de jantar. Parecia cansado, mas esboçou um
sorriso hesitante. Mais tarde, foi procurá-la na biblioteca.
— Suponho que um dia chuvoso é ideal para desfrutar
de um bom livro com uma xícara de chá — lhe disse
enquanto se aproximava dela.
Viola fechou o livro, que não tinha lido uma só palavra
na hora que estava ali, e o observou enquanto ele se sentava
a seu lado. Era um homem agradável, decente, e por fim
compreendia por que acreditou amá-lo durante todos esses
anos. Tinha necessitado de um amigo e não sabia o que era o
verdadeiro amor.
— O que você lê — Tirou-lhe o livro das mãos e o abriu
pela primeira página. — Virgílio? Não está em latim?
— Sério? — Ela baixou os pés no chão, que estavam
apoiados onde estava sentada e alisou as saias. Estavam
enrugadas, mas não se importava.
Aidan soltou o livro e a agarrou pela mão.
— Viola, é um momento horrível para todos, sobretudo
como ele está pagando por isso. Pedi perdão à lady Savege
por ter trazido meu primo a sua casa, e ela me concedeu isso,
mas...
— Mas?
Não se importava com o que ele queria dizer. De fato,
desejava que a deixasse sozinha com sua solidão. Em algum
lugar da casa, lady Fiona e madame Roche estavam
ensinando a Caitria a fazer tranças ao estilo francês. Lady
Emily estaria sentada por perto, com um livro, fazendo
comentários engenhosos. Sua irmã estaria no quarto infantil
com o bebê. Mas ela somente queria estar a sós para lamber
as feridas da qual nunca se recuperaria.
Aidan lhe apertou os dedos.
— Viola, Seamus não retornará às Índias comigo. De
toda forma, tenho que embarcar na nave que sai de Bristol
dentro de seis dias. Quero que me acompanhe. Como minha
esposa.
— Agora me pede que me case contigo? Quero dizer,
você finalmente me pede para me casar com você.
— Sei que foi uma longa espera para ambos. Mas
sempre soube que seria minha esposa, Viola. Sempre.
Afastou a mão.
— Aidan, por que deixou Trindade há dois meses e
meio? Suponho que te custou muito deixar em mãos de outro
homem o trabalho de reabilitação da casa e a construção de
um novo edifício. A verdade é que me surpreende que decidiu
visitar sua família tão de repente.
Aidan estreitou os olhos e a olhou com ternura.
— Certamente sabe que eu vim porque não queria estar
longe de você.
— Depois de tantos anos estando separados, de repente
já não suportava? — Franziu o cenho. — Meu pai lhe
emprestou o dinheiro para a plantação com a condição de se
casar comigo e me trazer de volta para a Inglaterra para
morar aqui?
O rosto de Aidan era um poema.
Viola ficou em pé com os pés destroçados, como seu
coração, sem saber se podia confiar que algum homem lhe
dissesse a verdade. Todos a utilizavam para seus propósitos.
Seu pai a tinha utilizado para recuperar sua amante. O barão
tentava utilizá-la para reviver a lembrança da mesma mulher.
E Jin a tinha usado para ganhar dinheiro, e para obter
prazer. O fato de que ela o desejasse não o exonerava disso.
Só a convertia em uma tola desventurada.
— Aquele dia no hotel de Porto Espanha, antes de pedir
desculpas por ter beijado à senhorita Hat e me assegurar que
me amava, Jin lhe contou a verdade sobre minha família.
Sobre a minha família inteira. Verdade?
Aidan ficou em pé.
— Violet, te amei desde que você era criança, e sim,
prometi a Fionn que eu a traria para viver na Inglaterra, mas
naquela época não tinha idéia sobre sua família e ainda
assim teria me casado com você. Que importa? — Gesticulou
com impaciência. — Case-se comigo e esqueçamos o passado
para construirmos um futuro juntos.
Viola tinha um nó na garganta, mas os olhos secos.
— Não, Aidan, não quero me casar contigo. Sinto te
desiludir, mas já não sou a mesma menina que te seguia pelo
convés há dez anos. Mudei.
— Entendo — disse ele no final, com o cenho franzido.
— Vejo que perdi minha oportunidade. Movi minha ficha
muito tarde.
Não havia necessidade de ela responder.
— Se você quiser se livrar de mim — continuou Aidan
com secura, tenso, — posso pegar a estrada esta tarde. Meus
pais e Caitria devem ficar aqui até que Seamus possa viajar.
Mas eu partirei se você assim desejar.
— Não há necessidade. — De fato, não se importava com
o lugar onde ele estava. Aidan assentiu com a cabeça e saiu
da biblioteca.
Entretanto, a tensão e a secura de Aidan persistiram, e
isso ela não gostou. Depois de dois dias, recebeu com alívio a
sugestão de Serena de se mudar para a cidade.
— Não sentirá falta de papai?
— Um pouco. Mas, Ser, é... um pouco pegajoso.
— Pegajoso? É outro de seus simpáticos
americanismos?
— É possível, mas vou melhorando com a pronúncia.
Parecerei uma autêntica inglesa. — Tentou sorrir, mas o
ardiloso olhar de Serena a observava com muita
concentração. Voltou-se. — Quando vamos?
— Na terça-feira. Não me cabe a menor dúvida de que
Fiona, Emily e madame Roche também estão ansiosas para
retornar à capital. Tracy nos acompanhará. Converteremos
em uma festa.
— Soa maravilhoso.
Observou a partida de Aidan, que partiu sozinho. No
final, partiu sem pigarrear e tinha aceito seu rechaço com
resignação. Apesar de ossos quebrados e feridas abertas,
Seamus se recusou a ficar para trás depois da partida de seu
primo, de modo que a família Castle se foi por completo.
No dia seguinte, cinco carruagens carregadas com
criados, cavalheiros, damas e Viola se puseram rumo a
Londres. Tinha visto muito pouco da campina em sua
apressada viagem desde Exmouth a Savege Park. Nesse
momento, dividiram o trajeto em várias etapas curtas,
detendo-se em belas estalagens ao longo do caminho para
jantarem tranquilamente todas as noites, como se fossem
férias. Após o primeiro dia, Viola conseguiu viajar sempre na
carruagem de Lady Emily, já que ela não deixou seu livro e
não conversou, de modo que a viagem era suportável.
Londres se parecia tanto a Boston como Savege Park
parecia com a plantação de Aidan. Era uma vasta extensão,
com ruas intermináveis cheias de pessoas e todos os sons
imagináveis, dos bufos dos cavalos, passando pelo chocalho
das carruagens até os gritos dos vendedores de ruas. Com
uma atmosfera carregada pelo carvão, a cidade vibrava pelo
movimento e a vida. Cravou o olhar além do guichê e tirou o
xale e as luvas, já que tinha as mãos suadas.
— O ar na cidade é muito insalubre a estas alturas de
outono, senhorita Carlyle — comentou lady Emily, que, por
fim, fechou o livro, com os olhos faiscantes. — Mas há muitos
lugares que uma dama pode desfrutar dos melhores prazeres
da vida.
— Lady Fiona me falou de uma loja de sorvetes Gunter's
— replicou sem prestar muita atenção.
Ao longe, para a direita, viam-se os inconfundíveis
mastros dos navios depois do telhado de um edifício. Alagou-
a o alívio. Londres não era de tudo diferente.
— Refiro aos museus, às exibições científicas e às
conferências, é obvio.
— Estamos perto do rio? Vejo navios.
— Vários quarteirões ao norte. Você gosta de navegar,
Miss Carlyle?
— Um pouco.
A casa de Alex e Serena, enorme e muito elegante,
encontrava-se em uma esquina da praça e parecia uma
mansão. Tinha duas salas de estar, um saguão, um salão,
uma sala de jantar, um amplo vestíbulo, um modesto salão
de baile na parte posterior, um jardim e um sem-fim de
quartos nos andares superiores. Serena tinha mobiliado
pensando na comodidade, mas também com uma beleza
muito singela. Viola supôs que devia acostumar-se a esse
esplendor. Apesar de que pertencia à aristocracia e ostentava
um título nobiliário, Serena seguia sendo Serena, e Alex era
tão amável e tão atento como sempre. Além disso, a pequena
Maria os tinha acompanhado. Disse-se que era mais
afortunada que qualquer pessoa a quem tivesse conhecido.
Não obstante, sem a contínua presença de amigos e sem
um penhasco com vista para o mar onde se refugiar, ela logo
se sentiu intranquila Muito sedentária. Quando Tracy veio de
visita para convidá-la a dar um passeio pelo parque em seu
novo tílburi40, aceitou encantada. Quando lady Emily a
convidou uma tarde à conferência que daria uma famosa
ensaísta41, aceitou com menos entusiasmo, mas gostou muito
da saída. A famosa ensaísta utilizou uma série de palavras
que tanto Serena como o senhor Yale tinham insistido que ela
não utilizasse, e o tema da conversa era que as mulheres
deveriam poder realizar qualquer profissão, como os homens.
Muitas damas saíram da sala de conferências com muito má
expressão, enquanto cochichavam escondidas atrás de seus
leques, mas Viola se sentiu revitalizada.
Entretanto, não demorou para voltar a deprimir-se.
Contra o seu bom juízo, aceitou um convite de lady Fiona e
madame Roche para uma noitada jogando cartas.

40Tílburi ― carro de duas rodas e dois assentos, com capota e sem boleia, puxado por
um só animal.
41Ensaísta -diz-se de ou autor de ensaio literário.
— Ah, ma chère mademoiselle, joga hoje muito pior do
que jogou no campo, em casa de sua irmã. — Ela disse com
um sussurro francês.
— De fato, estou jogando mal — replicou Viola com um
resmungo.
— Como você está fazendo com os alfinetes que lhe
sustentam a bainha? — perguntou lady Fiona com expressão
esperançada.
— Me cravam nos tornozelos. Mas é o mínimo que
mereço por pisar mal ao descer da carruagem.
— Que dilacerador! — Madame Roche lançou um par de
ases.
— Dilacerador? — Viola começou a sentir a ardência das
lágrimas nos olhos.
— Sim, sabe, pelos arranhões na roupa ou na pele,
senhorita Carlyle. — Lady Emily olhou suas cartas com o
cenho franzido. — O acento do Clarice é encantador, mas às
vezes não se expressa bem. — Olhou para Viola com atenção.
De fato, ela tinha muito medo de que suas amigas e sua
irmã conhecessem muito bem como se sentia dilacerada.
Estavam tão conscientes dela que a colocaram nervosa. Era
impossível apreciar as maravilhosas vistas de Londres com
tal estado de irritação; além disso, Viola detestava sentir-se
assim. Necessitava um pouco de atividade para espantar seu
mau humor.
Com isso em mente, depois de quatro dias residindo em
Londres, acompanhou Serena e Alex a um jantar, que depois
se celebraria um baile. E dançou. Pisou nos pés de distintos
cavalheiros. Ninguém se divertiu com ela ou riu, embora,
talvez, o mais devastador foi que, quando terminou a música,
nenhum cavalheiro perfeito apareceu pelo corredor, estreitou-
a entre seus braços e fez amor com ela.
Jin tinha partido. Enquanto ela vivia como uma dama,
quando em realidade não era, quando não tinha o menor
vínculo com o que tinha vivido há tantos anos. E isso era o
desastre no que tinha se convertido sua vida.
Na tarde seguinte, do outro lado das janelas da sala,
havia uma paisagem maravilhosa tingida de cinza e dourado,
que os terraços pareciam de bronze brunido contra as
colunas de fumaça cinza. Entretanto, ela não podia desfrutar
de dita paisagem. Estava sentada em uma poltrona, com o
bastidor no regaço e um livro sobre a mesinha auxiliar que
tinha ao lado, mas era incapaz de afastar o olhar do cristal,
enquanto desejava com todas suas forças retornar ao
tombadilho de Tempestade de Abril. Porque ali poderia
rebelar-se contra a solidão que seguia atormentando-a ainda,
apesar de estar em Londres, rodeada pelas pessoas a quem
amava. Por todas menos uma.
Quando Serena lhe tocou no ombro, deu um pulo,
atirando o bastidor no chão.
— Sinto muito. — Sua irmã se sentou no divã na frente
dela. Era uma bela imagem, vê-la sentada com um vestido de
seda água-marinha com pérolas bordadas. — Você vai sair
esta noite?
— Sim. Te falei da noite musical durante o café da
manhã. Vim te dizer que a carruagem estará pronta em
seguida, mas vejo que não está arrumada. — Inclinou a
cabeça.
— Sinto muito, Ser. Parece-me que esta tarde não estou
de humor para nada.
Sua irmã lhe tocou o dorso da mão.
— Vi, você está se sentindo mal? Quero dizer, você é
infeliz.
Também tinha lhe perguntado isso, havia-lhe dito que
era incapaz de manter-se afastado dela e depois partira.
— Estou muito feliz por estar com você, Ser. E com Alex
e Maria. E amanhã vou encontrar Kitty e Lord Blackwood.
Depois de tudo o que você me contou sobre a irmã de Alex,
não posso esperar para conhecê-la.
Serena lhe apertou a mão.
— Mas é feliz?
A pergunta trouxe um nó na garganta.
— Ele me trouxe aqui — sussurrou, deixando que as
palavras, por fim, brotassem de seus lábios — e você me
converteu em uma dama, mas nunca serei uma. Não, de
verdade, por muito que me esforce. Por fora, posso esfregar o
rosto com suco de limão e tocar a harpa (mesmo que seja
péssimo), mas por dentro sigo amaldiçoando como um
marinheiro. — Cravou o olhar no entardecer, que tingia o céu
de tons rosas e cinzas, uma vez que tinha desaparecido o
dourado. — Mas não posso retornar a minha antiga vida. Ser,
onde está meu lugar agora?
— Não quer isto, Vi?
— Sim, quero-o. — Agachou a cabeça e levou as mãos
aos olhos. — Mas quero muito mais a ele.
— Refere-te ao senhor Castle? — Serena parecia cética.
— Refiro-me ao senhor Seton.
Depois de um breve silêncio sua irmã disse:
— Ai, Vi.
— Eu sei — gemeu antes de ficar em pé de um salto e
aproximar-se da janela, o mais perto do crepúsculo que
podia. — Sei, de verdade que sim. Acredito que soube apenas
em vê-lo. — Se agarrou à cortina de brocado e apoiou a testa
no tecido. — Entretanto, para ele fui apenas um saque para
obter um prêmio. — E prazer transitivo. Pelo menos tinha lhe
dado isso. Talvez até lhe tenha dado algum entretenimento.
Gostava de fazê-lo sorrir, gostava de ver estrelinhas. Mas
jamais voltaria a desfrutar dessa alegria.
— Um prêmio?
Viola se sentou no batente acolchoado.
— O botim que Alex lhe pagou por me encontrar e trazer
de volta a casa.
Serena se aproximou dela.
— Alex não lhe pagou um só xelim, Vi.
— Claro que sim.
— Não, não o fez. Além disso, mesmo que Alex tivesse
oferecido pagamento, Jinan não teria aceitado. Por Deus, se
ele é mais rico que Creso42. Acho que ainda mais rico do que

42Creso ― Creso foi o último rei da Lídia, da dinastia Mermnada, filho e sucessor de
Aliates que morreu em 560 a.C .
meu marido, depois de todas as noites que Alex passou nas
mesas de jogo. Não sabia?
Viola engoliu saliva para desfazer o nó que tinha na
garganta.
— Não — conseguiu dizer com um fio de voz. — Não
sabia. — Meneou a cabeça. — Mas por que ele passou tantos
meses procurando por mim e teve tantos problemas para me
convencer a voltar se não o fizesse pelo dinheiro de Alex?
Serena se sentou a seu lado.
— Eu diria que era o contrário. Jinan acreditava que ele
estava em dívida com Alex.
— Que ele estava em dívida?
— Não queria que fosse eu quem te contasse isto, mas
acredito que deve sabê-lo. Quando criança, Jinan foi escravo
durante dois anos. Alex, que não era muito mais velho que
ele naquela época, conseguiu libertá-lo.
Viola respirava com dificuldade.
— Mas isso aconteceu há vinte anos.
— Vejo que sabia.
— Mas eu não sabia que Alex estava envolvido.
— Jinan te buscou por mim, porque acreditava que era
a única forma que podia pagar a meu marido. É obvio, Alex
jamais esperou nenhum pagamento ou pediu, Jin não tinha
que fazer nada.
Viola ficou em pé e cruzou a estadia, muito alterada de
repente.
— E todo este tempo acreditei... — Não podia pensar. —
Nunca...
Sua volta à Inglaterra tinha sido mais importante para
ele do que supunha. Tinha entendido o amor que seu amigo
sentia por sua mulher e, de algum jeito, também o vínculo
entre Serena e ela quando eram meninas. Ele era um homem
que estava tão sozinho quanto podia, tanto pela tragédia de
sua vida como por decisão própria, mas tinha decidido saldar
sua dívida daquela maneira. Porque Alex lhe tinha dado o
mais importante para ele.
Sentia uma dor muito profunda, pelo menino que foi e
pelo homem no que se converteu. E o amava com desespero.
— Viola, você vai se vestir para sair? — A voz de Serena
soava estranha.
Voltou-se para sua irmã e se engoliu a desdita.
— Ser, de verdade que não tenho vontades de...
— Por favor, vista-se. Eu gostaria de fazer uma visita a
Kitty antes da festa desta noite. Não tem que se arrumar para
a noite. Deixaremos você em casa depois de visitar lady
Blackwood.
— Muito bem. — Pôs-se a andar para a porta, com a
cabeça encurvada e sem se importar para aonde ia.

****

Jane a colocou em um vestido adequado para visitas


enquanto resmungava que Viola deveria dormir com fatias de
pepino em seus olhos para mitigar o inchaço. Viola a ignorou
e se juntou com sua irmã e com seu cunhado no vestíbulo.
Serena e o conde a envolveram com uma conversa banal,
enquanto cavalgavam os dois quarteirões que os separavam
da casa de Lord e Lady Blackwood, que, embora mais
modestas do que sua mansão, ainda era bastante grande.
A dama que os recebeu era tão elegante como seu
entorno, alta e magra, com cabelo escuro e olhos cinzas
muito parecidos com os de seu irmão, e vestida com um
requintado vestido azul. Aproximou-se de Viola, agarrou-lhe
ambas as mãos e a beijou nas duas bochechas.
— Morria por te conhecer. — Tinha a voz mais bonita
que Viola tinha escutado na vida, e seus risonhos olhos
jogavam por terra a aura de superioridade. — E não sabe
quanto me alegro de que agora sejamos família.
— Obrigada, milady.
— Não, não, sou Kitty. E penso te chamar de Viola, a
irmã perdida que nunca tive. — Lançou um sorriso travesso a
Serena e lhe piscou um olho. — A outra irmã perdida. —
Olhou para seu irmão. — Leam não está em casa. Saiu. Está
tratando de encontrar Wyn, que está desaparecido e, por
certo, a quem Viola enfeitiçou. A tal ponto que jura que
jamais voltará a olhar para uma dama, a menos que tenha
um conhecimento intrínseco do mar e que não deseje pintar
com aquarela.
Viola desejou ser capaz de sorrir. Conseguiu esboçar um
sorriso trêmulo.
— Espero que ele esteja bem.
— Deixa-se ver muito pouco ultimamente, assim não
sabemos, e isso nos preocupa. — Kitty soltou suas mãos. —
Mas pelo menos, antes de desaparecer desta vez, falou-nos do
tempo que esteve em Savege Park e nos falou de você. É
obvio, foi muito mais comunicativo que Jinan, que
seguramente tinha muitas outras coisas para contar, mas
que se mostrava, como esperado, muito mais parco em
palavras. — Meneou a cabeça. — Será que alguma vez
alguém sabe o que Jin pensa ou faz, verdade, Alex?
O conde se apoiou no suporte da lareira com os braços
cruzados.
— Muito poucas vezes. — Olhou para Viola.
Tinha a estranha sensação de que todos esperavam que
ela falasse em seguida. De modo que se armou de coragem
para evitar que tremesse sua voz ao fazê-lo.
— Suponho que estava muito ocupado preparando-se
para zarpar. Talvez, agora, que está em pleno oceano, tenha
mais tempo para escre... escrever cartas — titubeou. — Eu
sempre levava um diário de bordo, é obvio. E, às vezes,
escrevia cartas. — Essa última frase foi apenas um sussurro.
Custava-lhe falar dele. O fato de que, aparentemente, sua
família e amigos o conhecessem tão bem e o apreciassem
tanto foi um descobrimento muito doloroso.
Fez-se o silêncio. Olhou a seu redor e se precaveu de
que Kitty olhava para Alex com o cenho franzido. O conde
assentiu com a cabeça.
— Viola — disse Kitty, — Jinan não está na metade do
oceano. pelo menos, ainda não. Está aqui, em Londres.
— Aqui? — Olhou para Kitty antes de desviar a vista a
Alex. — Em Londres?
— Sim.
— Disse-me que ia zarpar, que se dirigia para Malta
para... — Sua voz quebrou. — Me mentiu.
— Não de tudo. Pode ser que entre em seus planos,
quando chegar o momento.
— E até então? — Mas a verdade pouco importava. Jin
tinha abandonado Devonshire sabendo, quase com toda
segurança, o que ela sentia. — O que está fazendo em
Londres?
— Está procurando a sua família, Vi — disse Serena em
voz baixa.
O coração de Viola deu um salto.
— Que família? Disse-me que sua mãe morreu há muito
tempo.
Serena meneou a cabeça e deu de ombros. Viola
tampouco encontrou resposta nos rostos do Alex e de Kitty.
— Suponho que me alivia saber que não sou a única
pessoa com quem ele compartilha tão pouco de si mesmo —
resmungou, arrancando um sorriso para Alex e um olhar
doce para Serena.
Kitty, em troca, seguiu muito séria.
— Viola, sei que é difícil compreendê-lo, mas Jinan é um
bom homem. Está fazendo o que acredita que é o correto. Se
lhe tiver afeto, como acredito que é o caso, deve confiar nele.
Uma hora depois, enquanto caminhava de um lado para
o outro no quarto dela, as palavras de Kitty continuavam
ecoando em sua cabeça. Talvez ele acreditava fazer o que lhe
parecia correto, mas tinha que fazê-lo sozinho? Talvez não a
amasse nem precisasse dela. Mas ela o amava e desejava
ajudá-lo. Ansiava ajudá-lo, tal como ele a tinha ajudado.
E o faria.
Serena e Alex não sabiam onde ele se encontrava, como
tampouco sabiam Kitty e lorde Blackwood. Aparentemente,
Jin vivia como uma sombra em Londres. Entretanto, Viola
conhecia as docas muito melhor que sua aristocrática família.
Se seu navio seguia amarrado no porto, encontrar-lo-ia. É
obvio, não poderia ir vestida como Viola Carlyle.
Dirigiu-se ao armário, rebuscou no fundo e encontrou
suas calças, uma camisa e um colete. O desafio de escapar
da casa e de chegar às docas sem que a descobrissem os
solícitos criados de sua irmã não era fácil. Estava calçando o
sapato esquerdo enquanto metia as pontas da camisa pelas
calças e esticava a cabeça pela janela para estudar a
trepadeira que cobria a parede da casa quando Jane entrou
no dormitório.
A donzela ofegou.
Viola deixou cair o sapato.
Jane estreitou os olhos e retrocedeu para a porta.
— Nem pense nisso. — Jane apertou os lábios.
— Aonde acredita que vai?
— As docas.
— Não conseguirá sair.
— Claro que sim. — Pôs-se a andar para ela, coxeando
com um sapato a menos. — E você me vai ajudar.
— Ah, não, não o farei.
— É claro que sim, e o fará, porque senão, direi lady
Savege que roubou uma gravata do senhor Yale e que a
esconde entre sua roupa interior.
Jane levou as mãos à boca.
— Não se atreveria — chiou.
— Claro que sim. — Inclinou a cabeça. — Bem, o que
prefere? Me ajudar ou não voltar a encontrar um posto de
trabalho entre a alta sociedade?
Jane a fulminou com o olhar. Mas a ajudou.
Viola pensou que ela estava começando a ter a força de
ser uma dama.

****

Primeiro encontrou Matouba. Foi bastante fácil. O lacaio


que Jane tinha subornado com favores íntimos (certamente
escolhido para tal fim porque com seu cabelo negro e seus
olhos escuros se parecia com certo galés) buscou-lhe uma
carruagem de aluguel para Viola. Uma vez que conseguiu sair
pela porta traseira enquanto o dito criado e Jane distraíam os
outros criados, foi um trajeto muito curto até as docas.
Acomodou-se bem o chapéu e entrou na primeira
taberna que encontrou, e ali estava Matouba. Sua pele escura
ressaltava contra o couro do colete e a madeira da mesa, mas
ficou em pé em seguida e seus olhos se cravaram
imediatamente nela. A sorte irlandesa de seu pai a
acompanhava. Ou talvez fosse seu pai quem guiava seus
atos. Fionn tinha sido bastante matreiro para ter êxito em
seus planos. Depois de tudo, tinha roubado uma menina de
um barão. Recuperar a família de um homem devia ser pão
dormido.
Abriu-se caminho entre a multidão.
— É bom te ver. Onde estão Mattie e Billy? E o mais
importante, onde ele está?
Matouba se retesou, enquanto colocava uma mão na
aba de seu chapéu para cumprimentá-la antes de agarrá-la
pelo braço e praticamente arrastá-la para a rua sem dizer
uma palavra. Viola escapou de sua mão. A luz que iluminava
a porta da taberna se refletia nos paralelepípedos, e as
gargalhadas e as vozes procedentes dos locais se escutavam
por toda parte. Era o distrito dos marinheiros e ela se
encontrava no centro. Entretanto, era evidente que Matouba
não se divertia com a presença dela. Seus olhos não
deixavam de olhar a seu redor, e estava muito perto dela,
protegendo-a com seu corpo em metade da rua às escuras.
— Onde ele está, Matouba?
— Enfim, senhorita, suponho que não posso dizer-lhe
— Por que? Porque não tenho que sabê-lo?
— Porque ele não sabe — respondeu uma voz as suas
costas.
Voltou-se e viu Mattie. Billy estava colado em seu
cotovelo, observando-a com um grande sorriso.
— Me alegro de vê-la, capitã, senhora.
— Obrigado, Billy. — Olhou ao enorme timoneiro. —
Sabe onde ele está?
Mattie negou com a cabeça.
— Não sabemos, capitã. — Billy meneou a cabeça. — Ele
nunca diz-nos isso.
— E como se põem em contato com ele? — Olhou-os aos
três. — Deve dizer-lhes quando e onde, não? — Colocou as
mãos sobre os quadris. — E depois diz que eu sou impossível.
— Sem ofensa, senhorita, mas não sabemos onde está
esta noite. — Quando sorriu, foi evidente que faltavam vários
dentes em Mattie. — Estivemos pensando-o entre nós. A
coisa é que nos viria bem um marinheiro que saiba falar
como uma dama para este trabalho.
Os copos tilintavam no interior da taberna, um violinista
começou a tocar, passou uma carroça levantando uma
nuvem de pó que cheirava a peixe e suor, e o marinheiro mais
grosseiro e mal-humorado que Viola tinha conhecido na vida
lhe piscou um olho.
Seu coração desbocou. Estendeu o braço com a palma
para baixo.
— Estou pronta.
Uma mão magricela cheia de sardas apareceu sobre a
sua.
— Eu também, capitã.
Dedos muito escuros cobriram os de Billy.
— E eu, senhorita.
A mão de Mattie foi à última, enorme, curtida e tão
reconfortante como um presunto inteiro no domingo de
Páscoa.
— Bem, nos movamos.
29

Sentado em uma poltrona de sua residência londrina e


mergulhado na escuridão da noite, Jin olhava fixamente o
teto com o coração acelerado. Embora o desejo o embargava,
não havia acompanhante feminina alguma esperando-o no
dormitório. Não quando Viola Carlyle se encontrava a
trezentos quilômetros de distância. Jamais voltaria a estar
com uma mulher, fora qual fosse a distância que o separasse
de Viola. Sua vida celibatária tinha dado começo.
Mas não duraria muito. Porque ela tinha roubado seu
coração e, apesar de tudo o que tinha feito, apesar de ter se
condenado a seus olhos, sabia que não podia viver sem seu
coração. Não podia viver sem ela. De modo que se lançou ao
perigo. A situação em Malta era complicada, e parecia ser um
lugar tão bom para morrer como qualquer outro. Talvez ali
encontrasse por fim a morte e assim se livrasse da tortura de
não ter Viola, e de saber que outro homem a teria.
Ela merecia muito mais que Aidan Castle. Ela merecia
tudo.
Mas sua opinião não serviria de nada. Viola ficaria com
o homem que quisesse, fosse Castle ou qualquer outra pessoa
sortuda que conseguisse ganhá-la. E ele seguiria sozinho, tal
como tinha estado ao longo dos últimos vinte anos, tal como
devia estar. Sozinho... ou morto.
Mas tudo era uma mentira. Uma maldita mentira. Mas
não estivera mentindo a Viola naquele dia. Mentia-se a si
mesmo.
Tinha retornado a Londres e seguia na cidade,
demorando sua partida ao Este para realizar a missão do
Clube porque queria o cofrezinho. Fizera mais dois intentos
para comprá-lo, de forma anônima através de seu procurador
e depois através do procurador de Blackwood. O bispo se
mantinha inflexível, e a essas alturas começava a suspeitar
do interesse que tinha despertado a antiguidade nos outros.
Não a venderia. Ele fechou qualquer oportunidade.
Entretanto, ele deve obtê-lo. Não podia pensar em outra
coisa, salvo em Viola. Jamais seria um bom homem. Seu
passado o perseguiria sempre. Mas que o enforcassem se
permitisse que ela partisse sem saber que ele era um homem
com um sobrenome verdadeiro. Pelo menos, ele devia isso a si
mesmo. E a ela.
Com o olhar perdido na escuridão, esperou a que o
relógio marcasse a hora. Os ruídos da noite penetravam
através da janela aberta. Ele continuou esperando. Ninguém
tinha lhe ordenado que executasse uma vigilância noturna.
Tampouco tinha um propósito concreto. Não pensava em
roubar o cofre do bispo nem queria que alguém saísse ferido
para tirá-lo alguma outra forma. Essa faceta de sua vida
tinha acabado. Decidiu-se depois de ver o rosto
ensangüentado de Seamus Castle e ouvir a defesa exaltada
que Viola tinha feito do castigo que lhe infligiu. Não queria
que voltasse a defendê-lo porque, ao fazê-lo, ela mesma se
mancharia. Para chegar a merecê-la, se acaso se
apresentasse essa oportunidade, devia limpar sua alma.
No final, levantou-se da poltrona e se vestiu com a
roupa adequada para o trabalho que pensava fazer. Ainda
não tinha falado com o lacaio do bispo. Não obstante, tinha-o
vigiado todas as noites durante quinze dias. Faltava uma
hora para que o homem saísse da residência do bispo. Tal
como acostumava a fazer, dirigir-se-ia a sua taberna favorita,
onde beberia dois copos de genebra antes de passar quinze
minutos no quarto traseiro com a puta ruiva. Depois, iria
para casa. Se a ruiva não estivesse de trabalho, iria com a
loira, mas não com a morena. Alguns homens careciam de
gosto, supunha ele.
Caminhou até a casa do bispo. Não estava longe de seus
aposentos de Piccadilly, e a agitação da atividade noturna de
Londres o ajudou a ficar alerta, embora sua mente vagasse
com pensamentos sobre certa capitã de olhos violetas.
Ao chegar, percebeu a mudança. Em algumas janelas da
casa, que há essa hora acostumavam estarem às escuras,
via-se luz. Especificamente, numa janela no piso inferior, em
que se via uma fresta de luz dourada através das cortinas
corridas. Uma luz que piscou antes de apagar-se.
Alguém percorria a casa com um abajur em mão. Mas
não era Pecker. De seu esconderijo, escondido entre os sebes
situados ao outro lado da rua, Jin viu o homem no estreito
beco que separava a casa do bispo da adjacência. O lacaio
assobiava alegremente e caminhava arrojando um objeto ao
ar que recolhia antes que caísse ao chão. Quando a luz da
lua se refletiu no objeto, Jin ficou petrificado.
Uma moeda de ouro. Seria esse o pagamento por ter
deixado entrar na casa algum estranho?
A raiva fez uma aparição. Naquela manhã, eles tentaram
convencê-lo a deixá-los entrar furtivamente na casa para
roubar o cofre. Matouba tinha se mostrado firme, embora não
tivesse falado muito, e Billy o tinha feito com entusiasmo.
Entretanto, Mattie tinha se limitado a olhá-lo por cima de seu
narigão e lhe disse:
— Já é hora de fazê-lo.
Aparentemente, eles tinham invadido a casa do bispo
apesar de havê-los o proibido. Não obstante, eram
marinheiros, acostumados a roubar em alto-mar, no convés
de um navio, não a mover-se de forma furtiva pelo salão de
um cavalheiro. Acabariam apanhando-os por sua culpa e não
podia permiti-lo.
Tal parecia que seu encontro com a morte teria lugar
antes do previsto.
Cruzou a rua furtivamente e dirigiu-se pelo beco lateral.
A porta do bispo estava aberta. Ele se moveu cautelosamente
para o corredor estreito do porão e subiu até o térreo. Não viu
criado algum.
Era estranho. Entretanto, já era tarde e o bispo, que era
um homem velho, estava acostumado a deitar-se cedo. No
final do corredor que dava acesso ao hall de entrada, havia
mais duas portas. Certamente uma seria a do salão e a outra,
a da sala de jantar. A casa do bispo Baldwin estava lotada de
objetos: estatuetas, bússolas, livros, jóias expostas em
pedestais, instrumentos musicais e centenas de cacarecos
mais, embora fosse um lugar modesto como convinha a um
clérigo aposentado.
Viu uma luz intermitente na fresta inferior de uma
porta. Imediatamente, escutou uma série de ruídos que
aconteceram com rapidez: um móvel se arrastou pelo chão,
um objeto de cristal se rompeu, alguém soltou um impropério
em voz baixa e depois se produziu um golpe.
Não tinha outra escolha: abriu a porta. Apesar da
escuridão, viu um abajur feito pedacinhos no chão na borda
do tapete. Sobre ela se encontrava uma figura com um
cofrezinho nas mãos.
A emoção que o embargou foi tão forte como o impacto
de um vendaval. Recordou imediatamente o cofrezinho,
adornado com um mosaico de peças de ouro e esmalte, como
se o tivesse visto no dia anterior sobre a penteadeira de sua
mãe, cujos aposentos sempre estavam cheios de sedas e
almofadas. Além disso, reconheceria Viola Carlyle mesmo
que a escuridão fosse total, sem importar a roupa que
usasse. Reconhecê-la-ia embora estivesse cego, surdo e
desprovido do resto dos sentidos. Assim seria até o dia que
morresse.
Ela o olhou e imediatamente cravou a vista no teto. No
andar de cima, ouviram-se passos.
— Maldita seja! — murmurou ela com uma voz tão
aveludada que chegava à alma de Jin.
Abriu a porta e a convidou sair com um gesto da mão.
Entretanto, não haveria escapatória possível. No patamar da
escada, havia pelo menos três homens. Claro que deviam
atacá-los e para isso tinha que obrigar-se a pensar com
claridade. Entretanto, tinha a mente inchada porque o objeto
de seus desejos caminhava para ele nesse momento.
Viola mal olhou para ele antes de correr para o corredor.
Ele a seguiu. Billy apareceu por uma porta e o saudou
levando uma mão à boina, depois do qual correu para a porta
traseira, onde Matouba os esperava, ladeado por dois homens
de uniforme.
Eles foram pegos. Embora ele se asseguraria de que
Viola se livrasse das conseqüências. Estendeu um braço e a
agarrou pelo ombro.
Billy se deteve em seco no final do corredor enquanto
Jin puxava-a e colava-a ao torso.
— Não fale a menos que eu lhe diga — lhe sussurrou
rapidamente ao ouvido enquanto o embargavam o alívio e a
euforia de sentir de novo suas mãos.
Então ele a soltou e houve um grande alvoroço. Um bom
número de homens apareceu no corredor em ambas às
extremidades, armados com abajures, velas e um deles com
um atiçador. Vestiam libré ou uniforme. Um ancião de nariz
aquilino com um gorro de dormir torto e cabelo grisalho se
adiantou.
— Ahran! Imaginava que haveria jogo sujo. — Colocou a
vela perto do rosto de Viola e a cera derretida manchou seu
capote. — Eu te fiz uma armadilha! Deixei que esse tolo do
Pecker ficasse com seu dinheiro, trombadinha. Ahran,
apanhei-te! — Entregou-lhe a vela a um criado e agarrou o
cofrezinho. — Agora não terá meu cofre, mas sim, ganhou dez
anos em Newgate.
Viola se manteve rígida.
— Deixe-me levá-lo, velho cruel! Vou pagar por ele.
Todos ofegaram, salvo Billy, que estava imobilizado por
dois criados, e o homem que se mantinha em silêncio junto
de Viola.
O rosto do bispo adotou uma expressão surpreendida e
à luz da vela suas rugas pareceram sulcos de um arado.
— É uma moça!
— Não sou uma moça! E você um tipo egoísta e avaro.
Por que não quer vender o cofre?
— Porque fui eu quem o descobriu e não acostumo a
vender meus tesouros, jovenzinha. — Estreitou os olhos. —
Suspeito que acha que não vou entregar-te às autoridades
pelo fato de ser uma mulher. Pois se equivoca. O Senhor
perdoa os patifes arrependidos, mas a lei deve aplicar-se para
dar exemplo. — Arrebatou-lhe o cofre das mãos e Viola sentiu
que lhe caía a alma aos pés. — Oficiais, amanhã a visitarei
em sua cela de Newgate para escutar suas desculpas. Levem-
nos. A ela e a seus cúmplices por intento de roubo. — Olhou
de passagem para Jin. — Volto para a cama. Com meu cofre.
— Excelência, ela não é culpada.
Viola deu um salto. Jin tinha falado com uma voz que
não era a sua. Sim, o timbre era tão grave como sempre, mas
tinha um acento estranho, parecido ao de Billy ou ao do
lacaio que Jane tinha subornado.
— Ah, não, jovem? Então quem a tem? Você?
— Bom, veja, a causadora de tudo isto é minha irmã,
ilustríssimo. — Começou a mover-se como se estivesse
nervoso, mudando o peso do corpo de um pé ao outro.
Viola ofegou. Sua irmã? O que ele estava jogando?
— Esta é sua irmã?
— Não, senhor. — Jin a olhou de esguelha com uma
expressão que Viola teria jurado que era tímida. Mas isso era
impossível. — Minha irmã é a donzela da dama aqui
presente.
— Esta é uma dama? — O bispo agarrou uma vela e a
aproximou de novo do rosto de Viola.
— Sim, senhor. É a irmã de um aristocrata, como você,
ilustríssimo.
— Pois não me parece isso. É verdade que ela não
parece um ladrão, mas parece uma garota da rua.
Jin assentiu com a cabeça.
— Não é uma típica dama, com certeza, ilustríssimo.
Mas só tem que lhe olhar as mãos.
O bispo franziu o cenho.
— Senhorita, me mostre às mãos.
Viola o obedeceu.
O bispo se inclinou para o criado que tinha a seu lado.
— Clement, acha que são as mãos de uma dama?
— Sim, ilustríssimo. Acredito que o são.
O bispo virou a cabeça e olhou para Jin com os olhos
entrecerrados.
— E o que faz em minha casa, me roubando o cofre?
— Enfim, senhor. É que eu quero esse cofre. E minha
irmã, bem, é um pouco bagunceira. A dama aqui presente...
— titubeou, como se estivesse envergonhado.
Era uma atuação surpreendente que Viola teria
contemplado boquiaberta se não fosse porque seu coração
poderia sair pela boca.
— Esta dama aqui presente é uma aventureira,
ilustríssimo. Assim quando minha irmã a desafiou a roubar o
cofre, pensou que seria uma travessura muito divertida.
— E a acompanhou para roubá-lo?
— Não podia deixar que o fizesse sozinha, senhor. É
uma dama e isso... — Viola esteve a ponto de cair
redondamente no chão. Jin tinha se ruborizado! Jamais teria
acreditado ser possível. Ser testemunha do bom ator que ele
era revolveu seu estômago. O bispo assentiu com a cabeça.
— Nesse caso, será você quem vai direto para Newgate
esta noite, jovem. Não por participar de um roubo, mas sim
por não ser homem o bastante para endireitar sua irmã e lhe
ensinar a distinguir entre o bem e o mal. Eva é o sexo débil e
propensa ao mal. Adão deve dobrar sua natureza selvagem e
demonstrar com suas fortes mãos, tanto sua superioridade
moral como sua compaixão.
Clérigo ou não, Viola não estava contente com a
reprimenda.
— Mas ele não...
— Silêncio, senhorita. Me diga o nome de seu irmão.
— É o conde de Savege, ilustríssimo — disse Jin.
— Savege, você disse? O libertino. — Franziu o cenho. —
Esta mesma noite estará de volta em sua residência. Um
homem deve controlar melhor aquilo que lhe pertence. —
Apertou o cofre contra o peito.
— Mas...
— Silêncio, senhorita, ou a enviarei a Newgate junto
com estes ladrões. Oficiais, verei-os amanhã no cárcere.
Clement, leve a irmã de lorde Savege ao salão e ordene que
preparem minha carruagem. — Abriu caminho entre a
multidão.
Dois pares de mãos agarraram Jin pelos braços.
— Esperem! — exclamou Viola. — Não...
— Moça — disse Jin com sua própria voz, — não suba
aquelas escadas atrás do bispo e volte para casa agora, ou
não voltarei a te dirigir a palavra novamente na minha vida.
Viola sentiu uma opressão no peito.
— Isso significa que pensava falar comigo antes de
ocorrer tudo isto?
— Vá embora — ele resmungou.
Os soldados o levaram. Também levaram Billy e
Matouba. Ignorava onde se encontrava Mattie. Mas ele tiraria
todos do cárcere. Alex se encarregaria de que assim fosse.
Voltou-se para não ver como o levavam com os grilhões nos
pulsos e correu escada acima.

****

Mattie chegou pouco antes do amanhecer à prisão de


Newgate, uma confusão de pedras e argamassa. O edifício
parecia grandioso por fora, mas seu interior era pestilento e
sujo. Mattie subornou ao sargento que vigiava a entrada
usando o conteúdo de uma bolsa que aparecia pelo seu
punho. Depois, fez o mesmo com o vigilante da asa
correspondente as celas e também com o soldado postado na
porta da cela, que babou em ver os quatro reluzentes guinéus
na palma de sua mão. Deixou de pinçá-los com os dentes
como se fosse um osso para abrir a porta da cela.
— Veremo-nos, senhor Smythe. Volte quando queira e
traga seus amigos. — Fez uma reverência zombadora ao
tempo que cuspia ao chão.
Ainda estava escuro quando eles saíram no frio dia de
outono, como se não tivessem sido detidos e acusados de
roubo por um bispo da Igreja, algumas horas antes. O
dinheiro tinha suas vantagens.
Jin tinha a roupa colada ao corpo, molhada de suor
depois da breve estadia na úmida cela cheia de homens. Era
a resposta incontrolável de seu corpo, embora se mantivera
sentado sem se mover, controlando o pavor. Entretanto, Viola
não tinha tido que suportar a imundície de uma cela similar,
nem os perigos reais que espreitavam uma mulher em
semelhante lugar. Os habitantes habituais das prisões
desconheciam o que era a vergonha, o pudor ou a lástima.
Teriam lanchado alguém como Viola Carlyle. A menos, é
obvio, que os tivesse enrolado como enrolava todo mundo,
salvo possivelmente o bispo. Com ele se mostrou petulante,
algo mais do que inconveniente.
Atravessou o pátio e cruzou a porta exterior enquanto
enchia de ar os pulmões para desterrar os últimos vestígios
do terror que apreendeu seus membros.
— Você não vai falar conosco? — resmungou Mattie.
Matouba e Billy caminhavam em silêncio atrás deles.
O moço era ardiloso, mas a cor da pele de Matouba não
agradou muitos seus companheiros de cela. Jin tinha-os
deixado a sua sorte. Mereciam qualquer desconforto que
tivessem sofrido por ter arrastado Viola para aquele caso.
Como também ele merecia. Entretanto, seria capaz de passar
mil noites, encerrado no cárcere se isso assegurasse o bem-
estar de Viola.
— Nada do que eu lhes diga poderá surpreendê-los. —
Caminhou até a rua. — Conseguiu guardar alguma moeda
para uma carruagem de aluguel ou tenho que voltar andando
para casa?
Mattie agitou a bolsa e as moedas tilintaram. Jin a
agarrou.
— Nem obrigado, você vai me dar... — balbuciou o
timoneiro. Jin se deteve e se voltou para olhá-los.
— Mattie, me dê sua faca.
Três pares de olhos o olharam totalmente arregalados.
Matouba tinha as bochechas cinzentas.
Jin revirou os olhos.
— Preciso dela mais tarde. Nossos anfitriões tiraram a
minha, então estou desarmado e você tem outra no navio. —
Aceitou a arma e a escondeu no cano da bota. — Se quisesse
lhes matar — acrescentou enquanto se afastava pela rua, —
teria feito há anos.
— Capitão, sentimos muito que a senhorita Viola
atirasse o abajur — disse Billy, que não confiava muito em
seu humor. — Estava fazendo tudo fenomenal até aquele
momento.
Jin não duvidava.
— Amadores... Deveriam ter vergonha.
— Não tínhamos pensado que ela entraria na casa.
Tentamos atrasar o momento o máximo possível, mas não
houve forma — murmurou Mattie. — Achamos que você
chegaria mais cedo. Como fez todas as noites durante esses
quinze dias.
— Capitão, você nunca se atrasa sem um motivo —
acrescentou Billy.
— Escolheu a melhor noite para perder tempo —
apontou Matouba com sua voz rouca.
Jin se virou devagar, contendo a risada que pugnava por
sair de sua garganta.
— São um rebanho de imbecis.
— Somos imbecis, sim — replicou Mattie enquanto
cruzava os braços diante do peito. — Mas não estamos cegos.
Não tanto como você, pelo menos.
Jin observou em silencio os membros de sua tripulação
um instante. Depois, deteve uma carruagem de aluguel e
partiu para sua casa para dormir.
30

Ele acordou no meio da tarde, lavou-se para se livrar do


sal e o cheiro de sua estadia na prisão e enviou uma nota ao
outro lado da cidade através de um mensageiro.
Esperou.
Três quartos de hora depois, chegou à resposta. Pecker
lhe explicava, empregando o idioma com muita dificuldade,
como tinha aproveitado a ausência do bispo essa manhã
(enquanto o ilustríssimo ia a Newgate a fim de encontrar-se
com seus prisioneiros) para pegar o cofre do dormitório de
seu senhor e escondê-lo. Os nervos, entretanto, estavam-no
traindo, de modo que ansiava livrar-se logo do saque. Jin
devia encontrar-se com ele em um lugar concreto no porto de
Londres, onde entregaria o cofre em troca de ouro.
O lugar era ancoradouro que Jin havia alugado.
Tirou a faca de Mattie do cano da bota e a deixou sobre
a mesa. Não queria ferir mais pessoas. Não gravemente. Não
desde que viu viola Carlyle em um salão escuro, a meia-noite,
vestida com calças e camisa de homem.
Cavalgou até o porto, deixou seu cavalo em um estábulo
e se dirigiu a doca. Ao olhar seu navio sentiu complacência.
Apesar da inquietação que embargara Viola nos últimos
momentos que compartilharam em Savege Park, tinha se
assombrado ao compreender que deveria gastar uma fortuna
para manter o navio em um atracadouro de um porto tão
transitado como o de Londres. Possuía um espírito inquieto,
uma mente ágil... e uma veemência que tinha lhe roubado o
coração e o tinha conquistado por completo. Passasse o que
passasse ao cofre, e sem importar o tesouro que descobrisse
em seu interior, ou que não descobrisse, não a deixaria
partir. Preferia perdoar-se todos os dias de sua vida e pedir
perdão ao resto do mundo antes de perdê-la.
O cais estava calmo devido ao tempo. Os estivadores
transladavam a carga a bordo dos navios que zarpariam pela
manhã e os marinheiros realizavam suas tarefas nas
embarcações atracadas. Não havia nem rastro do lacaio do
bispo. Entretanto, sim viu um marinheiro apoiado na parte
inferior da passarela de acesso ao navio atracado junto ao
dele. O pouco que mostrava de seu rosto sob a aba do chapéu
se parecia muito com Pecker.
— Pareceu-me que era você — disse a Jin a modo de
saudação. — Eu disse ao meu irmão Hole, mas ele não
acreditou nisso. Pensava que minha intenção era tomar o
dinheiro e sair correndo. — Embora a brisa do entardecer de
setembro fosse cálida, uma brisa que balançava os
equipamentos de barco e que fazia ondear as bandeiras dos
mastros, o tipo levava um grosso capote suspeitosamente
volumoso na lateral. — Mas eu não faria isso com um irmão,
sabe? E me tomava à curiosidade.
— Eu deveria te conhecer?
— Não, mas eu conheço você, Sr. Smythe. Ou devo
chamá-lo de Faraó? — Esboçou um sorriso satisfeito. —
Alguns anos atrás, comprou uma moça no leilão de escravos
onde eu trabalhava. Uma menina muito bonita. Ela adorava
gritar, também. Passou muito bem com ela, verdade?
— Você trouxe o cofre? — O marinheiro se endireitou.
— Bom, não precisa ser tão rígido com o velho Muskrat.
Eu não acho que haja nada de errado em falar calmamente
antes de resolver um negócio.
— Seu irmão e eu chegamos a um acordo com respeito
ao dinheiro. Me dê o cofre e te darei o ouro.
Muskrat se esfregou o barbudo queixo e pareceu refletir
um instante.
— Bom, é que há um problema, senhor Smythe. Hole
não é um gênio. Eu peguei toda a inteligência da família,
sabe? — deu alguns golpes com um dedo no chapéu. — E
preciso solucionar um assunto que... enfim, senhor Smythe,
que o velho Muskrat não tem estômago para certas coisas. —
Meneou a cabeça com gesto triste.
— Não tenho tempo para tolices. O que quer?
— Veja, tenho um problema que devo solucionar. —
Franziu o cenho. — Mandá-lo ao outro bairro, vamos. — A
brisa se fez mais forte nesse instante, colando o capote ao
corpo, de modo que o volume ao lado ficou mais evidente. —
Foi-me dito que você não treme o pulso na hora de liquidar
problemas desse tipo.
— Já não me dedico a esse tipo de trabalho. De fato, vim
desarmado a este encontro. — sentiu-se bastante bem ao
admiti-lo. Embora fosse uma imprudência, claro. Talvez o
efeito que Viola tinha sobre ele fosse maior do que pensava.
— Não me diga! — Muskrat coçou de novo o queixo,
depois apontou para o lado inferior da passarela de seu
navio, onde um moço estava sentado com um abajur na mão
— Este é Mickey. Meu irmão mais novo e de Hole. O caso é
que Mickey vai levá-lo a um lugar onde sei que meu problema
está bebendo genebra agora mesmo. E depois que me você
solucione esse problema, o velho Muskrat lhe dará o cofre
aqui mesmo. O que me diz?
— Digo-te que não sabe com quem está falando. —
Muskrat fez um gesto torto.
— Disseram-me que era um tipo duro.
— Disseram-lhe a verdade.
— E também me disseram que não tinha ferido ninguém
por anos. Mas ocorreu-me que com um bom incentivo...
— Nisso se equivocaram. Embora já não me dedique a
esse tipo de trabalho, pode-se fazer muitas coisas por simples
diversão. — Uma simples indireta não o condenaria. — Com o
incentivo adequado, claro. Me dê o cofre, Muskrat. Agora
mesmo.
— Minha mãe! — exclamou o marinheiro. — O poderoso
Faraó me pedindo um favor sem contar com uma pistola nem
uma faca...
— Mas conto com minhas mãos. Me dê o cofre e sua
mãe poderá descansar tranquila porque não te acontecerá
nada.
Muskrat o olhou com os olhos entrecerrados. Nesse
momento, viu algo detrás dele que o fez arregalar os olhos. O
moço desceu de um salto da passarela e se aproximou deles,
enquanto a luz do abajur oscilava sobre as pranchas da doca,
com a vista cravada no mesmo que tinha visto seu irmão.
— Acredito que já estou no céu, porque por aí vem um
anjo — comentou Muskrat, meneando as sobrancelhas. —
Suponho que é meu dia de sorte.
— Sinto muito decepcionar — disse a sedosa voz de
Viola, que nesse instante se colocou junto de Jin. — O que
perdi? — Ela usava um vestido verde claro, um delicado xale
e luvas. Seu cabelo tinha sido puxado para trás em um coque
escondido sob um pequeno e adorável chapéu. Só faltava a
sombrinha e seria a viva estampa de uma dama preparada
para passear pelo parque.
Era a coisa mais bonita que Jin já havia visto. Seu
coração estava batendo mais rápido do que nunca.
— Senhora, não estava convidada a esta reunião —
disse ele com toda a tranquilidade de que foi capaz. — Sugiro
que parta agora mesmo.
— Deixa de frescuras! — Esses olhos violetas se
cravaram em Jin antes de olhar o marinheiro. — Por sinal, o
bispo está possesso. Deveria havê-lo visto entrar esta manhã
em casa, exigindo justiça. Parece que foi a Newgate e após
descobrir sua ausência, decidiu acusar Alex de traição à
Igreja e à Coroa. — Esboçou um sorriso satisfeito. — Alex
fingiu não conhecer o bispo, quando em realidade tinham
falado apenas algumas horas antes... Eu não sabia que meu
cunhado era um ator tão bom. Não foi assim, por sinal
também não sabia que você também fosse, por certo. — O
olhou de esguelha. — De qualquer forma, quando Alex
insistiu que eu tinha passado toda a noite velando nossa
pobre tia solteirona que está em seu leito de morte, o bispo
ficou vermelho como um tomate. Partiu acreditando estar
meio louco. Foi muito gracioso.
— Não me diga que você veio sozinha.
— Não tive escolha! Porque vim sozinha. Não queria
envolver Billy, nem Mattie, nem Matouba, não depois do que
aconteceu ontem à noite. Então subornei o senhor Pecker
para que me contasse tudo. Que boa sorte que ele tivesse algo
interessante para me contar sobre seu encontro com seu
irmão Muskrat. Muskrat e Hole, percebeu? 'Rato' e 'Buraco',
sua mãe deve ser uma pessoa muito peculiar. Preocupava-me
em não chegar a tempo. Cheguei a tempo?
— Viola, vá.
— Não. Vim para ajudar.
— Você não pode ficar afastada mesmo que seja apenas
uma vez?
— Bem, não. — meteu uma mão em um bolso e tirou
uma adaga. — Tome. Billy me disse que lhe confiscaram as
armas no cárcere, então eu trouxe isto.
Muskrat afastou o capote para deixar em descoberto a
culatra de uma pistola que tinha metida na calça.
— Bem, eu trouxe minha pistola. Que comece a festa! —
Viola pôs as mãos sobre os quadris.
— Com pistola ou sem ela, dê-lhe o cofre ou ele vai
matá-lo para tirá-lo de você.
— Sua pombinha faz agora os trabalhos por você,
Faraó? Vejo que você virou a página, sim — replicou o
marinheiro, que piscou um olho a Viola.
— Senhorita Daly — disse Jin em voz baixa, — já é hora
de você partir.
— Não sou sua pombinha, embora tampouco saiba o
que é isso. Sou a filha de um aristocrata, do barão Carlyle, e
criarei um sem-fim de problemas se você não lhe der esse
cofre agora mesmo.
Muskrat soprou.
— Sim, claro, e eu sou o príncipe regente.
— Alteza, é uma honra conhecê-lo — replicou Viola com
uma reverência. — Dê-me o cofre.
O homem a olhou com receio.
— Se seu pai é Carlyle, por que o Faraó a chamou Daly?
— Todo mundo sabe que o sobrenome de um aristocrata
não tem que ser o mesmo de seu título, ignorante. Mas em
meu caso, meu sobrenome é Carlyle. O senhor Seton me
chamou Daly para proteger minha identidade. Mas como não
me importa um nada agora, é isso.
— Viola, não está ajudando — murmurou Jin.
— É claro que sim. Não vê que já sei no que está
pensando?
— Eu admito que eu não tinha notado.
— Bom, pois sua capacidade de observação é mais
limitada que a minha.
— Não em certos assuntos.
O olhar de Muskrat voava de Jin para Viola.
— Refere à Aidan e o seu desejo de criar importantes
vínculos sociais? No final, acabei descobrindo.
— Perguntava-me se o faria.
— Não é um mau homem. Não tão mau como você,
certamente. E é pouco complicado. Ao contrário de você, mais
uma vez.
Muskrat olhou ao Jin e soltou um resmungo zombador.
— Viola, temos que falar disto aqui e agora?
— Você abordou o tópico da conversa.
— Nisso tem razão, Faraó. — Viola deu de ombros.
— Às vezes é um pouco obtuso, realmente — replicou
ela.
Jin revirou os olhos e respirou fundo, obviamente
frustrado. Com tal rapidez que Viola nem sequer se precaveu
de suas intenções, voltou-se e deu um murro em Muskrat. O
homem caiu redondo no chão. Sem lhe dar tempo para reagir,
Jin o agarrou pela gravata e apertou seu pescoço. Muskrat
começou a lutar enquanto tratava de respirar, e o cofre caiu
de debaixo do seu capote. Viola se apressou a pegá-lo, mas o
barulho do marinheiro dificultava a tarefa. De repente,
apareceu um moço que agarrou o cofre e saiu correndo.
— Jin, o cofre! Esse garoto o pegou!
O menino tinha se colocado a correr, e mal podia levar
de uma vez o cofre e o abajur. Enquanto corria pela doca,
olhou por cima do ombro e tropeçou com a rampa do navio ao
qual passava nesse momento. O cofre e o abajur saíram
voando. O primeiro caiu no Tamisa e o segundo, para o
convés do barco mais próximo, onde se rompeu. O fogo se
estendeu pela coberta, onde se derramara o azeite.
Viola levou as mãos à boca.
— Mãe do amor lindo! Jin! É esse o seu navio?
Muskrat tinha os olhos totalmente arregalados.
— Smythe, pode ficar com o cofre. — E com essas
palavras saiu correndo. O moço o seguiu, evitando aos
homens que corriam pela doca para sufocar o fogo.
Viola correu também, mas quando chegou à rampa, as
chamas tinham sido extintas e só restavam os tufos de
fumaça negra. Nesse momento, desembarcaram os
estivadores e marinheiros que o tinham sufocado, com baldes
de água vazias e partes de uma lona queimada. Alguns
olharam para Jin e o saudaram com respeito levando a mão à
boina antes de afastar-se.
Viola voltou para seu lado boquiaberta, uma expressão
muito pouco elegante para uma dama.
— Fico feliz por não ter idéia de quem você realmente
era no dia que se apresentou na doca de Boston me exigindo
que te desse trabalho. Naquele tempo, senti-me incrivelmente
satisfeita comigo mesma por ter chamado a atenção do
famoso Faraó. Se tivesse sabido a verdade, teria me
apavorado a simples idéia de falar com um personagem tão
importante.
— Nesse caso, fico feliz de que desconhecesse a verdade.
Viola reuniu por fim a coragem necessária para olhá-lo
no rosto. Esses olhos cristalinos resplandeciam a luz do
entardecer.
Levou-se de novo as mãos à boca e exclamou:
— O cofre! Jin, desculpe-me! — Gemeu. — Desapareceu.
— Não o quero. Já não o necessito. — Ela o olhou com
os olhos arregalados.
— Ah, não? Mas pensava que... — Jin negou com a
cabeça.
Viola pôs as mãos sobre os quadris.
— O que necessita então?
— De você. — Seu olhar a abrasou. — Necessito de você.
Viola, necessito-te.
— Está se repetindo. Porque está tratando de se
convencer, verdade?
— É uma mulher insuportável. Insiste em discutir
comigo até quando declaro meu amor.
— Bom, se tivesse mencionado a palavra «amor» em
primeiro lugar, não acredito que...
Ele interrompeu suas palavras com o beijo mais doce
que alguma vez deram a uma mulher, pelo menos na opinião
de Viola. Ambos acabaram sem respiração.
De repente, Jin pôs fim ao beijo e a afastou, agarrando-a
pelos braços. Modos terríveis, como sempre, mas não se
importava. Além disso, ele tinha um nó na garganta que o
impediu de discutir de qualquer maneira.
— Amo-te, Viola. Desejo-te. Quero estar contigo para
sempre — confessou-lhe com voz trêmula. Maravilhosamente
trêmula. — Diga que você também me ama.
— Não me dê ordens — conseguiu dizer com muita
dificuldade.
— Não é uma ordem. É uma súplica.
Viola engoliu saliva. Duas vezes. Pela primeira vez em
quinze anos, desde que a amordaçou um grupo de
marinheiros esfarrapados, foi incapaz de falar.
Jin examinou seu rosto com uma expressão tensa e
ansiosa ao mesmo.
— Viola, estou morrendo aqui na sua frente. Você está
me matando! — exclamou com voz tensa. — Diga algo.
Ela assentiu com a cabeça.
— O que significa isso?
Ela repetiu o gesto com mais rapidez. O nó que sentia
na garganta era de alegria.
Os olhos de Jin pareceram refulgir.
— Você me ama.
Viola se sentia tonta de tanto assentir com a cabeça.
— Por que não fala? Por que...? — Ela levou uma mão
ao pescoço.
— Não... posso — conseguiu dizer. — Ufa!
Jin parecia atônito. Em seguida, afastou-lhe a mão do
pescoço e lhe deu um beijo sobre a traquéia.
— Preciso voltar a escutar sua maravilhosa voz, bruxa
— murmurou enquanto deixava uma chuva de beijos em seu
pescoço. Enterrou os dedos no seu cabelo e inclinou sua
cabeça para trás. — Fale. Quero ouvir as palavras. Preciso
ouvi-las.
— É obvio que te amo — sussurrou ela com um fio de
voz. Entretanto, parecia ser o suficiente para ele. Abraçou-a
com força. Viola enterrou o rosto em seu pescoço e fechou os
olhos. — Em Savege Park disse-me que seus sentimentos não
tinham mudado — lhe recordou, com um soluço de alegria.
— Eles não tinham. — Beijou-a na testa. — Não tinham
mudado.
— Mas...
Silenciou-a de novo com seus lábios. Silenciou-a de
forma maravilhosa. Perfeita. Era o mais perto do paraíso que
Viola tinha sonhado estar. Porque por fim era dela.
De repente, assimilou a importância de suas palavras e
o separou de um empurrão.
— Já me amava então? No final dos quinze dias?
Ele a manteve segura pelos pulsos. Tinha os olhos
brilhantes, mas se manteve em silêncio.
— Fez-me acreditar... — Ofegou. — Quer dizer que eu
ganhei a aposta?
— Sim.
— Mentiu-me para saldar sua dívida?
— Eu fiz isso. E também fiz porque acreditei que devia
voltar para o lugar que pertencia.
Entendia-o. Mas não de tudo.
— Esteve a ponto de me romper o coração! — Ele franziu
o cenho.
— Viola, naquele tempo você estava apaixonada por
outro.
— Eu... — Apertou os lábios. Era muito arrogante para
lhe dizer certas coisas que talvez fosse melhor guardar. Ou
talvez não fosse. — Talvez eu já não estivesse naquela época.
Jin abriu os olhos, surpreso, e esboçou um sorriso
satisfeito e possessivo.
— Prometo te compensar — disse.
— Me compensar? — Pôs as mãos sobre os quadris. —
Carece por completo de honra.
— Jamais disse o contrário. — Abraçou-a pela cintura e
puxou-a para o corpo dele, a fim de beijá-la no pescoço. —
Viola, não sou um cavalheiro. Jamais serei.
— Não, eu vejo isso.
Deu-lhe um ardente beijo justo atrás do lóbulo de uma
orelha.
— Se case comigo de toda forma.
— Eu pensarei sobre isso — replicou ela com voz
trêmula.
Jin deslizou as mãos pelo seu traseiro enquanto
apertava uma bochecha contra a dela.
— Eu te amo, linda. Mais do que imagina.
— Já pensei sobre seu pedido. Sim.
Ele se pôs a rir e a beijou nos lábios. Não obstante, Viola
se afastou. Como Jin parecia aturdido, esteve a ponto de
trazê-la de volta para ele. Em vez disso, ela tirou os alfinetes
que seguravam seu chapéu e se despojou deste, do xale e das
luvas. Em seguida, tirou os sapatos.
— Segure isso — disse a Jin. O coração pulsava com
muita rapidez.
— Para que?
Ela beijou-o na bochecha, virou-se e depois de uma
breve corrida se lançou no rio.
A água estava um pouco mais fria e mais escura do que
gostaria. O sol do entardecer se filtrava pela superfície e
iluminava os despojos que flutuavam e nos quais não queria
pensar. De toda forma, tampouco tinha tempo para fazê-lo.
Mergulhar com saias era muito difícil e o fundo era mais
profundo do que pensava. Além disso, havia muita lama, o
que retardava sua tarefa. De modo que demorou muito em
localizar o cofre.
Saiu à superfície ofegando em busca de ar. Jin a
esperava para segurá-la, e assim que a teve entre seus braços
deixou uma chuva de beijos em seu rosto apesar de que
estava sujo, depois ele a entregou a dois estivadores que
aguardavam na doca, para içá-la. Não soltou o cofre em
nenhum momento, até que Jin saiu da água e voltou a
abraçá-la.
Ele afastou seu cabelo do rosto e a beijou no nariz.
— Está louca.
— Não. Estou muito apaixonada por você e quero que
seja feliz.
Seus olhos azuis resplandeceram.
— Não necessito desse cofre para ser feliz. Não mais.
— Sim. Mas não se alegra de tê-lo de toda forma? —
Sorriu, deixando à vista suas covinhas. — Por sinal, Jin, o
que há dentro?
31

À atenção de Lady Justice


Brittle & Sons, editores de Londres

Querida senhora:
Escrevo-lhe para comunicar uma péssima notícia: a Águia
Pescadora abandonou o Clube. De modo que nosso número se
viu dramaticamente reduzido. Agora somos um patético
grupo... de três. Seria tão amável de abandonar sua
campanha contra nosso pequeno grupo de companheiros, tê-la-
ia para sempre na lista de meus adversários mais dignos e
jamais cessaria de elogiá-la.
Se o fizer, não obstante, confesso que sentirei sua perda.
Atentamente,
PEREGRINO,
Secretário do Clube Falcon

****

Para Peregrino:
Suas adulações não me afetam. Não retrocederei jamais
em meu empenho. Sejam três, dois ou só um, encontrá-los-ei e
os exporei ao escrutínio público. Ande de olhos abertos, senhor
secretário. O dia de seu julgamento se aproxima.
Lady Justice

P. S.: Obrigada pelos arenques defumados. Deveria ter


começado por eles. Eu adoro arenques defumados. Cretino!
Epílogo

O cofrezinho de ouro e marfim jazia sobre a mesa de


madeira, com a tampa quebrada e vazio. As mãos que
seguravam as cartas que saíram do cofrezinho eram muito
brancas e tremiam, como a pele quase translúcida sob a
renda dos punhos.
— Casaram-se em segredo. — A voz da anciã era muito
frágil, já que mal a usava. — O vigário anglicano não
aprovava a união, mas viu um amor de juventude e era uma
boa pessoa. — Franziu o cenho com delicadeza. — Mas ela
não era tão corajosa como teria gostado. Dias mais tarde,
quando seu pai a levou para casá-la com o homem que tinha
escolhido, um muito poderoso no mundo dos sultões e
senhores da guerra, ela não se negou. Imaginou seu castigo,
e também o perigo que meu irmão estava correndo em seu
país, e temia por sua vida mais do que temia a desaprovação
de Deus.
Viola se inclinou para ela, boquiaberta.
— Casou-se pela segunda vez? — A anciã assentiu com
a cabeça.
— Não o fizeram pela Igreja, então ela não se acreditou
unida no santo matrimônio ao seu novo marido. Meu irmão
lhe escreveu estas cartas meses depois de partir da
Alexandria. No princípio, da Grécia. Depois, da Prússia. E,
por último, daqui. — Passou um dedo pelas folhas com uma
expressão doce em seus pálidos olhos azuis. — Não queria
abandonar o Egito, mas ela insistiu. Ela lhe disse que perdeu
a criança, que não podia mais vê-lo, que seu marido iria
descobri-los e mataria aos dois. — Olhou para Jin. — Mas
mentiu. Não perdeu a criança.
Jin inspirou fundo. Em frente a ele, em uma pequena
sala decorada com simplicidade e elegância, sua tia o olhava
com um sorriso amável e enrugado.
— Eu só queria proteger seu pai. Meu irmão era muito
jovem, com toda uma vida pela frente. Disse-lhe que voltasse
para a Inglaterra, que a esquecesse, que acreditasse que
estava morta, que se casasse e começasse uma nova família.
— Mas ele nunca fez isso, verdade? — perguntou Viola,
emocionada. — Nunca voltou a se casar.
— Assim foi, era o quinto filho. De um baronete, é
verdade. Mas nossos irmãos já tinham muitos filhos e nossos
pais nunca insistiram. Eu me casei muito jovem, é obvio, e
enviuvei anos mais tarde, sem filhos. Então quando meu
irmão me pediu, fiquei encantada de me mudar com ele e
exercer a função de anfitriã quando a situação o requeria.
Nós conduzimos uma vida muito tranquila, e ele nunca
deixou de escrever-lhe, enviando as cartas ao sacerdote com
a esperança de que ela as recebesse. — Apertou os dedos em
torno das cartas que o pai de Jin tinha escrito, ocultas no
cofre durante vinte anos. — E então, finalmente, ela escreveu.
Jin entreabriu os lábios. Viola inclinou-se para a frente.
— Sério? Quando?
— Quando seu marido me vendeu. — Jin falou com
segurança, olhando para sua tia. — Foi nesse momento,
verdade?
A anciã assentiu com a cabeça.
— Falou com meu irmão de você, contou-lhe a verdade
que tinha ocultado anos atrás, lhe suplicando que te
encontrasse, já que ela não podia fazê-lo por si mesma. Sua
vida era muito mais restrita do que ele imaginara mesmo
durante os primeiros meses. Ela era uma prisioneira na casa
de seu marido. Ela se arriscou muito enviando uma única
carta.
O silêncio se apoderou da estadia por um momento, e o
único movimento era o das bolinhas de pó que flutuavam no
ar, douradas pela luz que penetrava pelas janelas.
— Ele fez o que ela pediu? — perguntou Jin finalmente,
com uma voz mais rouca do habitual.
— Sim. — A anciã franziu o cenho. — Por fim contou a
nossos irmãos a verdade e depois partiu a sua procura,
decidido em encontrar seu filho. Escreveu-me durante um
tempo, me contando suas pesquisas, sempre esperançado.
Mas depois, interrompeu-se a comunicação. Meses mais
tarde, inteiramo-nos de que o navio em que tinha embarcado
tinha desaparecido, que achavam que tinha afundado. Ele
nunca voltou para casa.
A anciã voltou a elevar a vista, soltou as cartas e
estendeu o braço para agarrar a mão de Jin, segurando-o
com seus frágeis dedos. Os de Jin eram fortes e curtidos pela
vida no mar. Essas mãos bonitas e seguras que Viola
adorava.
— Mas agora está aqui. — Sua tia esboçou um sorriso
enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. — Bem-vindo a
sua casa, Jinan.

****

Jin fechou a porta da carruagem e se sentou junto de


Viola, procurando sua mão e entrelaçando seus dedos
enquanto o veículo se colocava a caminho, afastando-se da
casa. Não olhou pelo guichê. Tinha a vista cravada à frente,
perdido na distância que ela havia aprendido a reconhecer.
Entretanto, essa distância não significava o que ela
acreditava em outra época. Por fim sabia que era esperança,
oculta sob uma fingida segurança.
Viola colocou uma mão no seu rosto, que ele procedeu a
levar aos lábios.
— Não é como eu esperava — ela disse, com um
sorrisinho.
Jin desceu a mão, mas não a soltou. Mal a soltava esses
dias, da mesma forma que ela quase não o deixava, salvo
quando era estritamente necessário. Supôs que estavam
recuperando o tempo perdido, todos os dias e todas as horas
que tinham passado juntos sem tocarem-se, mesmo que
estivessem morrendo de vontade de fazê-lo. Ou talvez
gostassem de fazê-lo mais ainda.
— Quanto tempo você quer ficar? — perguntou
enquanto lhe acariciava a palma com suavidade, lhe
provocando um calafrio por todo o corpo apesar das luvas.
Porque eram luvas muito finas, as melhores, compradas
por seu riquíssimo marido. Muito rico, em realidade. Teria
que procurar uma obra de caridade para esbanjar parte de
seu dinheiro. Se algum dia Jin sentisse a necessidade de
voltar para o mar, seria melhor se ele não tivesse dinheiro
suficiente para comprar um barco. Porque sabia muito bem
que jamais quereria navegar de novo sob as ordens de outro
capitão.
Claro que se tivesse que voltar para mar por algum
motivo, ela o acompanharia.
— Podemos ficar todo o tempo que queira, é obvio. O
convite de sua tia também foi para o Natal. Uma visita
bastante prolongada, certamente para que possa conhecer
seus tios, suas tias e seus primos. — Sorriu. — É uma
mulher muito doce, e parecia lamentar que você partisse
embora só fosse por esta tarde. — alisou-se as saias. — Por
sinal, por que saímos?
— Para poder fazer isto. — A colocou no regaço.
— Ah! Está me enrugando o vestido. E hoje tentei por
todos os meios ir feita um manequim. Queria causar uma boa
impressão.
Jin passou os dedos pelos cabelos, lhe tirando o chapéu.
— Você a impressionou. — Acariciou-lhe a bochecha
com o nariz. — E o mais importante é que você está me
causando uma boa impressão, mulher. Uma impressão
excelente.
— E outra vez com isso de «mulher», como se eu não
tivesse nome. — Inclinou a cabeça para permitir que Jin lhe
beijasse o pescoço, coisa que ele acessou a fazer de boa
vontade. — Pergunto-me por que foi tão difícil para você me
chamar de «capitã».
— Não foi difícil para mim fazê-la minha capitã
absolutamente. — Colocou a mão por baixo de sua capa. —
Nem a ela fazer-se comigo. Foi muito simples.
Viola suspirou.
— Tem limites sua arrogância?
Jin a acariciou por debaixo do corpete.
— Viola, vou fazer-te amor agora mesmo.
O desejo se apoderou dela, um desejo que só ele podia
saciar.
— Como...? Na carruagem?
— Sim, na carruagem. — Já estava levantando suas
saias.
— Não pode esperar?
— Não posso esperar. — Levantou o tecido, enrolando-o
em torno dos seus quadris.
Ela o ajudou com a respiração entrecortada.
— Deseja-me agora?
— Desejava-te cinco minutos atrás, mas agora também
está muito bem.
— Isto é muito inapropriado.
— E como sabe?
— Aulas. Intermináveis aulas. — dispôs-se a lhe
desabotoar a braguilha com movimentos impaciente. — E
livros de protocolo que especifica que uma dama nunca deve
permitir que seu marido faça amor com ela em uma
carruagem para celebrar, por que acaba de encontrar-se com
sua família.
Suas mãos a agarraram pelos quadris e ela o abraçou
pelo pescoço enquanto o movimento da carruagem a
balançava sobre ele.
— Esses livros se equivocam. — Beijou-a nos lábios. —
Porque é uma dama, Viola Seton. — Voltou a beijá-la, e
quando essa boca perfeita se apoderou da sua com ânsia e
ternura ao mesmo tempo, o amor transbordou no coração de
Viola — Minha, —sussurrou, com olhos brilhantes. — E
também minha dona.
Então, obrigou-a a demonstrar-lhe isso.
Nota da autora

Graças ao árduo e prolongado trabalho dos


abolicionistas e de um grupo de impetuosos parlamentares,
Inglaterra proibiu o tráfico de escravos da África em 1807.
Mas foi só em 1833 que o Parlamento aprovou uma lei que
proibiu a escravidão em todas as suas formas. Entretanto,
Grã-Bretanha estava à frente de seu tempo, já que muitos
navios negreiros continuaram a operar, capitaneados por
súditos e cidadãos de outros países, que continuaram
vendendo escravos pelas Américas em troca de ouro.
No final do século XVIII, uma criança de pele clara como
Jin teria sido uma raridade nos mercados de escravos
orientais, e sua presença só teria sido aceita se seus captores
e posteriores donos o considerassem um mulato. Por esse
motivo, Frakes, o abusivo mercador negreiro de minha
história, mentiu sobre a origem de Jin às autoridades do
mercado de escravos de Barbados, aduzindo que Jin era filho
de uma escrava africana e de seu amo branco, procedente de
outra ilha caribenha. Semelhantes mentiras eram habituais
nos mercados de escravos, de modo que pessoas de diferentes
regiões eram vendidas ou submetidas por toda uma vida
sempre que o preço conviesse.
Mais uma vez, Stephanie W. McCullough compartilhou
comigo seu amplo conhecimento náutico e leu o manuscrito
para comprovar sua autenticidade. Da mesma maneira, os
agudos comentários de Marquita Valentine sobre o que um
verdadeiro herói deveria ser, me ajudaram a fazer de Jin o
melhor homem possível. Estas duas maravilhosas mulheres
ganharam minha mais profunda gratidão.

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