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Para

S. L. O.,
Um cavalheiro americano,
De acordo com cujo gosto clássico
A seguinte narrativa foi projetada,
E ao qual ela é agora, em retorno por numerosas horas agradáveis,
E com os melhores votos,
Dedicada por seu amigo afeiçoado,
O AUTOR.
PARA O COMPRADOR HESITANTE:

Se os contos e canções dos marinheiros,


Tempestades e aventuras, calor e frio,
Escunas, ilhas e homens nelas abandonados
E Bucaneiros e Ouro enterrado,
E todos os velhos romances, recontados,
Exatamente da maneira antiga,
Podem agradar, como a mim agradavam antigamente,
Aos jovens mais espertos de hoje:
– Seja assim, então: venham! Se não quiserem,
Se a juventude estudiosa não mais anseia,
Se esqueceu de seus antigos apetites,
Por Kingston, ou Ballantyne, o Bravo,
Ou por Cooper, das florestas e das ondas,
Então seja assim também! E possamos eu
E todos os meus piratas partilhar da tumba
Em que jazem estes e todas as suas criações!
PARTE I
O VELHO BUCANEIRO

CAPÍTULO 1
O VELHO LOBO DO MAR NO “ALMIRANTE BENBOW”
O Proprietário Rural, Conde Trelawney, o Dr. Livesey e o resto dos
cavalheiros me pediram para escrever o relato completo da história da Ilha
do Tesouro, do seu início até o seu final, não deixando nada de fora, exceto
a localização da ilha; e isto somente porque ainda lá se encontra parte do
tesouro que não foi transportada; assim, eu tomo da pena no Ano da Graça
de 17– e retorno ao tempo em que meu pai era o proprietário da estalagem
“Almirante Benbow”, quando o velho marinheiro queimado de sol, com a
cicatriz de sabre no rosto, alojou-se pela primeira vez sob nosso teto.
Eu me recordo dele como se fosse ontem, como ele veio caminhando
pesadamente até a porta da hospedaria, com seu baú de marinheiro
transportado em um carrinho de mão: um homem alto, forte, corpulento,
bronzeado como uma casca de noz; o rabo de cavalo alcatroado caindo
sobre os ombros de seu casaco azul enxovalhado; suas mãos nodosas e
cheias de cicatrizes ostentando unhas negras e quebradas; e o corte de sabre
ao longo de uma das faces, de uma coloração branca, suja e lívida. Eu me
lembro de vê-lo olhando ao redor da enseada, assobiando para si mesmo, e
então começando a cantar aquela velha canção de marinheiros, que ele
depois iria repetir tantas vezes:
Quinze homens sobre a mala do defunto –
Io-ho-hô! – e uma garrafa de rum!
com sua voz aguda, velha e trêmula, que parecia ter sido afinada e quebrada
nas barras do cabrestante. Então, ele bateu à porta com um bastão retorcido,
que sempre carregava, o qual se assemelhava também a uma bimbarra de
cabrestante; e, quando meu pai atendeu, pediu grosseiramente um copo de
rum. Quando este lhe foi trazido, ele o bebeu lentamente, como um
conhecedor, saboreando o gosto devagar, ainda olhando ao redor, em
direção aos recifes, e para cima, a fim de observar nossa tabuleta.
– Esta é uma enseada bem acessível – disse ele, finalmente –, e uma
taverna agradavelmente bem-situada. A freguesia é grande, patrão?
Meu pai disse-lhe que não, que a freguesia era muito pouca, o que, aliás,
era uma pena.
– Bem, então – disse ele –, este é o lugar para o meu beliche. Ei, você,
companheiro! – gritou ele para o homem que empurrava o carrinho de mão.
– Empurre essa coisa até aqui e me ajude a carregar o meu baú. Vou parar
aqui uns tempos – ele prosseguiu. – Eu sou um homem simples: rum,
toucinho e ovos é só o que eu quero; e aquele quarto lá em cima, para poder
olhar os navios ao longe. Como é que você vai me chamar? Pode me
chamar de Capitão. Ah, já sei o que está pensando: pronto! – e ele lançou
três ou quatro peças de ouro na soleira da porta. – Basta você me avisar
quando eu tiver gasto isso tudo – disse ele, parecendo tão feroz quanto um
comandante.
E, sem dúvida, mesmo que suas roupas fossem de má qualidade e que
falasse de maneira tão grosseira, ele não tinha a aparência de um marinheiro
comum; mais parecia com um imediato ou um piloto, acostumado a ser
obedecido ou a bater. O homem que veio com o carrinho de mão contou-
nos que a carruagem do correio o tinha deixado pela manhã diante da
estalagem “Royal George”; que ele tinha feito indagações sobre que
hospedarias havia ao longo da costa; e, ao ouvir boas informações a respeito
da nossa, eu suponho, tendo sido descrita como solitária, a havia escolhido
dentre todas as outras como seu lugar de residência. E isso foi tudo o que
pudemos saber sobre o nosso hóspede.
Ele costumava ser um homem muito silencioso. O dia inteiro, caminhava
ao redor da enseada ou sobre os rochedos, com um telescópio de bronze;
todas as noites, ele se assentava em um canto do salão, perto do fogo, e
bebia uma mistura muito forte de rum com água. A maior parte das vezes,
ele não falava quando o interrogavam; somente lançava um olhar súbito e
feroz e assoprava pelo nariz como uma sirena de nevoeiro; deste modo, nós,
e também as pessoas que frequentavam nossa casa, logo aprendemos a
deixá-lo em paz. Todos os dias, quando retornava de seu passeio, ele
indagava se algum marinheiro havia passado pela estrada. A princípio, nós
imaginávamos que era a falta da companhia de gente de sua própria
profissão que o fazia perguntar; mas, finalmente, começamos a perceber
que ele realmente queria era evitá-los. Quando um marinheiro aparecia no
“Almirante Benbow” (o que acontecia de vez em quando, se eles se
dirigissem a Bristol pelo caminho da estrada costeira), ele olhava para o
salão, através da cortina da porta, antes de se decidir a entrar; e era certo
que permanecia quieto como um camundongo quando algum deles estava
presente. Para mim, pelo menos, não havia segredo quanto a esse assunto,
porque, de certa forma, eu partilhava de sua inquietação. Um dia, ele me
levara para um canto e me prometera uma moeda de quatro pence de prata
no dia primeiro de cada mês, se eu mantivesse “meus olhos abertos e
vigilantes para um homem do mar com uma perna só” e lhe contasse no
momento em que este aparecesse. Com bastante frequência, quando o dia
primeiro de cada mês se aproximava e eu lhe reclamava meu salário, ele
fungava forte pelo nariz e me olhava com uma expressão tão terrível, que
me fazia baixar os olhos, porém, antes que a semana findasse, ele pensava
duas vezes, trazia-me a moedinha de prata e repetia suas ordens para ficar
cuidando “o homem do mar com uma perna só”.
Está claro que eu não preciso descrever como esta personagem
assombrava meus sonhos. Nas noites de tempestade, quando o vento
sacudia os quatro cantos da casa e a rebentação rugia ao longo da enseada e
subia pelos rochedos, eu a imaginava de mil formas e com mil expressões
diabólicas. Algumas vezes, a perna aparecia cortada no joelho, outras, à
altura da coxa; outras ainda, ela era um tipo de criatura monstruosa, que
nunca tivera mais do que uma perna, e esta surgia do meio do corpo. Vê-la
pular e correr e perseguir-me pelas sebes e valas era o pior dos pesadelos. E,
considerando tudo isso, eu pagava bastante caro por minha moedinha
mensal de quatro pence, em troca da qual imaginava estas fantasias
abomináveis.
Mas, embora eu estivesse tão apavorado pela ideia do homem do mar
com uma perna só, eu tinha muito menos medo do próprio Capitão do que
qualquer outra pessoa que o conhecesse. Havia noites em que ele tomava
muito mais rum do que sua cabeça podia aguentar; e então ele se punha a
cantar suas canções marinhas, pecaminosas, antigas e selvagens, sem se
importar com ninguém; mas, outras vezes, ele mandava servir uma rodada
de bebida para todos e obrigava a plateia trêmula a escutar suas histórias ou
a fazer coro às suas cantorias. Frequentemente, eu escutei a casa
estremecendo com Io-ho-hô! – e uma garrafa de rum! – ocasião em que
todos os vizinhos cantavam a plenos pulmões, com o medo da morte em
seus corações, cada um procurando cantar mais alto que o outro, para evitar
repreensões. Porque, quando ele tinha estes acessos, ficava mais prepotente
do que se possa imaginar; batia com a mão espalmada sobre a mesa, a fim
de exigir silêncio de todos; explodia numa cólera apaixonada se lhe
fizessem alguma pergunta ou, algumas vezes, porque ninguém perguntava
nada, e assim ele achava que não estavam acompanhando sua história. E
nem tampouco permitia que qualquer pessoa saísse da estalagem até que ele
mesmo tivesse bebido o suficiente para ficar com sono e fosse cambaleando
para a cama.
Mas eram suas histórias que mais amedrontavam as pessoas. Eram
histórias pavorosas: sobre enforcamentos e pessoas que eram obrigadas a
caminhar pela prancha, e tempestades no mar, e as Ilhas Tortugas, e proezas
selvagens no Mar das Caraíbas. De acordo com seu próprio relato, ele havia
vivido entre alguns dos homens mais malvados a que Deus jamais permitira
navegarem pelo mar, e a linguagem em que ele contava estas histórias
escandalizava nossa gente simples do campo, quase tanto quanto os crimes
que ele descrevia. Meu pai estava sempre dizendo que ele iria arruinar a
estalagem, porque as pessoas logo iam parar de frequentá-la, a fim de não
serem tiranizadas, humilhadas e enviadas trêmulas para seus leitos, mas eu
realmente acredito que sua presença nos fez bem. Na hora, as pessoas
ficavam assustadas; porém, mais tarde, quando se lembravam, elas até
gostavam; era uma bela excitação, que contrastava com a tranquila vida
campestre; havia até mesmo um grupo dos homens mais jovens que o
admirava, dizendo que ele era “um verdadeiro lobo do mar” e que trazia
“água salgada nas veias” e outras coisas parecidas, afirmando que ele era o
tipo de homem que havia transformado a Inglaterra na senhora dos sete
mares.
De certo modo, sem a menor dúvida, ele ajudou a nos arruinar, pois foi
ficando semana após semana e, depois, mês após mês, de tal modo que o
dinheiro que ele tinha dado já de há muito estava gasto, e mesmo assim,
meu pai nunca teve coragem suficiente para pedir-lhe um pouco mais. Das
poucas vezes em que mencionou o assunto, o Capitão assoprou pelo nariz
com tanta força, que parecia quase um rugido, e então mostrou uma
expressão tão terrível que meu pobre pai saiu da sala. Eu o via torcendo as
mãos de pavor depois destes encontros e tenho certeza de que o
aborrecimento e o terror em que vivia devem ter apressado sua morte
prematura e infeliz.
Durante todo o tempo em que viveu conosco, o Capitão não fez a menor
modificação em seu vestuário, salvo da vez em que comprou algumas meias
de um vendedor ambulante. Quando um dos penachos de seu grande chapéu
afrouxou, ele deixou que ficasse pendurado a partir desse dia, embora lhe
causasse grande aborrecimento quando balançava com o vento. Eu me
lembro bem da aparência de seu casaco, que ele mesmo remendava em seu
quarto no andar de cima, o qual, rapidamente, se transformou num grande
conjunto de remendos. Ele nunca escrevia, nem recebia cartas e nunca
falava com ninguém, exceto os vizinhos da hospedaria; e mesmo com estes,
na maioria das vezes, somente quando tinha se emborrachado de rum.
Quanto ao grande baú de marinheiro, nenhum de nós o viu aberto durante
todo o tempo em que se hospedou conosco.
Ele foi contrariado somente uma vez; e isso foi perto do fim, quando meu
pobre pai já se achava muito avançado na doença que o matou. O Dr.
Livesey chegou no final de uma tarde, a fim de ver o paciente, aceitou um
pequeno jantar de minha mãe e foi até o salão para fumar uma cachimbada,
enquanto seu cavalo era trazido da aldeia, porque nós não tínhamos
estábulos no velho “Benbow”. Eu o acompanhei e me recordo de observar o
contraste entre o Doutor, limpo e elegante, com sua peruca tão branca como
a neve, seus olhos escuros e brilhantes, e suas maneiras agradáveis, e as
pessoas do campo mal-ajambradas e, especialmente, com aquele nosso
pirata, que mais parecia um espantalho, imundo, pesado e rameloso, que se
sentava cheio de rum, com as mãos sobre a mesa. Repentinamente, ele,
quero dizer, o Capitão, começou a vociferar sua eterna canção:
“Quinze homens sobre a mala do defunto –
Io-ho-hô! – e uma garrafa de rum!
O rum e o Diabo levaram os outros –
Io-ho-hô! – e uma garrafa de rum!”
No princípio, eu imaginava que “a mala do defunto” fosse justamente
aquele seu imenso baú que ficava no quarto da frente do andar superior, e
esse pensamento tinha se misturado em meus pesadelos com o homem do
mar de uma perna só. Mas nessa ocasião, todos nós já tínhamos parado de
dar atenção particular à música, todos os que ali estavam já a conheciam
bem, exceto o Dr. Livesey, e observei que não produziu um efeito agradável
sobre ele, porque, por um momento, ergueu os olhos com uma expressão
zangada, antes de prosseguir sua conversa com o velho Taylor, o jardineiro,
sobre uma nova cura para o reumatismo. Enquanto isso, o Capitão foi se
alegrando gradualmente com sua própria música e, finalmente, bateu com a
mão sobre a mesa de uma forma que todos sabíamos o que significava –
silêncio. As vozes cessaram imediatamente, exceto a do Dr. Livesey, que
prosseguiu como antes, falando clara e gentilmente e dando baforadas fortes
em seu cachimbo no intervalo entre cada duas ou três palavras. O Capitão
olhou-o ferozmente por alguns instantes, bateu outra vez com a mão
espalmada sobre a mesa, olhou-o com uma expressão ainda mais feroz e,
finalmente, explodiu em um brado grosseiro e profundo:
– Façam silêncio no tombadilho, agora mesmo!
– Por acaso está falando comigo, senhor? – disse o Doutor, e quando o
bucaneiro lhe disse, com outra maldição, que, de fato, estava, replicou-lhe o
Doutor, sem ao menos se voltar para ele: – Só tenho uma coisa para lhe
dizer, senhor, se continuar a beber rum desse jeito, muito em breve o mundo
se livrará de um patife muito sujo!
A fúria do velho marinheiro foi terrível. Ele levantou-se de um salto,
sacou uma faca de mola, de marinheiro, e balançando-a aberta na palma de
sua mão, ameaçou empalar o Doutor contra a parede.
Este nem ao menos se moveu. Falou-lhe, como antes, por cima do
ombro, e no mesmo tom de voz; de fato, bastante alto, de tal modo que
todos os que estavam da sala pudessem escutar; porém perfeitamente calmo
e firme:
– Se você não puser essa faca de volta no bolso neste instante, eu lhe
prometo, por minha honra, que você será enforcado da próxima vez em que
se reunir o tribunal.
Seguiu-se, então, uma batalha de olhares entre os dois, mas o Capitão
logo se submeteu, guardou sua arma e sentou-se novamente, resmungando
como um cachorro que tivesse sido espancado.
– E agora, senhor – continuou o Doutor –, uma vez que eu sei que existe
um sujeito como você em meu distrito, pode ter certeza de que vou mantê-
lo sob vigilância dia e noite. Eu não sou apenas um médico, sou um
magistrado; e se eu escutar a sombra de uma queixa contra você, mesmo
que seja apenas por um ato de incivilidade, como o desta noite, usarei dos
meios necessários para caçá-lo e capturá-lo. Acho que isto basta.
Logo depois, o cavalo do Dr. Livesey chegou até a porta e ele montou e
foi embora, mas o Capitão se manteve quieto essa noite e assim permaneceu
por muitas noites depois dela.

CAPÍTULO 2
O CÃO NEGRO APARECE E DESAPARECE
Não foi muito tempo depois disso que ocorreu o primeiro de uma série de
incidentes misteriosos que nos livrou finalmente do Capitão, embora não,
como se verá, de seus negócios. Foi um inverno muito frio, com geadas
longas e pesadas, e fortes tempestades, em que ficou claro, desde os
primeiros dias, que meu pobre pai teria pouca probabilidade de ver a
primavera. A cada dia que passava, ele piorava mais ainda, minha mãe e eu
tínhamos de cuidar sozinhos da estalagem, que nos mantinha muito
ocupados, sem darmos muita atenção ao nosso hóspede desagradável.
Foi em uma manhã de janeiro, muito cedo – uma manhã incômoda e
gelada –, a enseada toda cinzenta de geada, as ondas batendo de mansinho
contra as pedras, o sol ainda baixo, apenas tocando o alto das colinas e
brilhando ao longe, na direção do mar. O Capitão tinha se levantado mais
cedo que de costume e saído a caminhar pela praia, seu cutelo a balançar
sob as largas abas do velho casaco azul, o telescópio de bronze embaixo do
braço, seu chapéu inclinado para trás, sobre a cabeça. Eu recordo sua
respiração, pairando como fumaça atrás dele, enquanto dava largas
passadas; o último som que escutei quando dobrou o rochedo grande foi um
suspiro profundo de indignação, como se sua mente ainda estivesse ocupada
com o Dr. Livesey.
Bem, minha mãe estava no andar de cima, atendendo a meu pai, e eu
arrumava os talheres para o desjejum, aguardando a volta do Capitão,
quando a porta do salão se abriu e entrou um homem sobre o qual eu nunca
havia posto os olhos antes. Era uma criatura pálida e amarelada, a quem
faltavam dois dedos na mão esquerda e, embora carregasse um cutelo, não
dava muito a impressão de ser um lutador. Eu mantinha sempre os meus
olhos abertos, a fim de identificar os marinheiros, tivessem eles uma perna
ou duas, e recordo-me de que este me deixou intrigado. Ele não tinha jeito
de marinheiro, porém, ao mesmo tempo, apresentava um certo aspecto de
gente do mar.
Eu lhe perguntei em que podia servi-lo, e ele disse que tomaria uma
caneca de rum, mas, no momento em que eu saía da sala para trazer a
bebida, sentou-se em cima de uma mesa e fez sinal para que eu me
aproximasse. Fiz uma pausa no lugar onde estava, com o guardanapo na
mão.
– Chegue até aqui, filhinho – disse ele. – Venha aqui perto.
Eu dei um passo em sua direção.
– Esta mesa aqui foi posta para esperar meu companheiro Bill? – ele
perguntou, enquanto fazia uma espécie de careta.
Eu lhe disse que não sabia quem era seu companheiro Bill, mas que a
mesa estava posta para uma pessoa que morava em nossa casa, a quem
chamávamos de Capitão.
– Bem – disse ele –, meu companheiro Bill bem que gostaria de ser
chamado de Capitão, sem a menor dúvida. Ele tem uma cicatriz em uma das
bochechas e é uma pessoa muito agradável de se tratar, particularmente
quando bebe, o meu companheiro Bill. Vamos supor, somente para
argumentar, que o seu Capitão tem um corte na bochecha – e vamos supor,
se você quiser, que o corte fica na bochecha direita. Ah, bem! É como eu
disse. Bem, o meu companheiro Bill está aqui nesta casa ?
Eu lhe disse que ele tinha saído para dar um passeio.
– Para que lado, filhinho? Para que lado ele foi?
E quando eu lhe apontei o rochedo e disse que o Capitão provavelmente
retornaria logo e lhe respondi algumas outras perguntas, ele disse:
– Ah, isto vai ser tão bom quanto beber à saúde de meu companheiro
Bill!
A expressão de seu rosto, enquanto ele dizia estas palavras, não era
absolutamente agradável e eu tinha minhas próprias razões para acreditar
que o estranho estava enganado, mesmo supondo que ele realmente
quisesse dizer o que tinha dito. Mas o assunto não era meu, foi o que
pensei; e, além disso, era muito difícil decidir o que fazer. O estranho
permanecia parado, bem do lado de fora da porta da estalagem, olhando em
volta, tal como um gato esperando por um camundongo. Eu mesmo
experimentei caminhar até a estrada, mas ele imediatamente me chamou de
volta e como eu não obedeci rápido o bastante para satisfazê-lo, ocorreu
uma mudança verdadeiramente horrível em sua face amarelada e ele
ordenou-me que entrasse, com uma praga que me fez pular. Assim que eu
voltei para dentro, retornou a seus modos anteriores, meio me adulando,
meio troçando, deu-me uma palmadinha no ombro e me disse que eu era
um bom menino e que ele tinha gostado muito de mim.
– Eu também tenho um filho – disse ele. – Tão parecido consigo como
dois cubos de madeira, e ele é todo o orgulho de meu coração. Mas o que os
meninos realmente necessitam é a disciplina, filhinho – a disciplina. Ora, se
você tivesse tentado se escapar de Bill, não teria ficado parado ali para
receber a ordem de voltar duas vezes – não você. Esse nunca foi o jeito de
Bill, nem o jeito de qualquer um que navegasse com ele. E aqui nesta casa,
sem a menor dúvida, está o meu companheiro Bill, com uma luneta
embaixo do braço, que Deus abençoe seu velho coração, claro que sim.
Agora você e eu, filhinho, vamos simplesmente voltar para o salão, nos
esconder por trás da porta e, assim, daremos a Bill uma surpresinha – que
Deus abençoe seu velho coração, digo eu de novo.
Falando assim, o estranho voltou comigo para dentro do salão e me
colocou no canto, atrás dele, de tal maneira que ficássemos ambos
escondidos pela porta aberta. Eu estava muito inquieto e assustado, como
bem se pode imaginar, e uma coisa que aumentava bastante o meu medo era
observar que o estranho certamente também estava amedrontado. Ele abriu
a presilha que prendia o cabo de seu cutelo e afrouxou a lâmina dentro da
bainha: e durante todo o tempo em que esperávamos, ficava engolindo,
como se tivesse o que nós costumávamos chamar de um nó na garganta.
Finalmente, o Capitão entrou, bateu a porta por trás de si, sem olhar para
a direita ou a esquerda, e marchou através da sala para a mesa em que o
aguardava o seu desjejum.
– Bill – disse o estranho, com uma voz que, segundo eu pensei, ele
tentava fazer parecer forte e ousada.
O Capitão girou nos calcanhares e nos enfrentou, todo o bronzeado tinha
desaparecido de sua face e até seu nariz estava azul, ele tinha o aspecto de
um homem que viu um fantasma, ou o Maligno, ou coisa pior, se é que
existe, e dou minha palavra como senti pena dele, transformado de uma
hora para outra em um velho doente.
– Vamos, Bill, você me conhece, você reconhece um velho companheiro
de bordo, Bill, sem a menor dúvida – disse o estranho.
O Capitão pareceu engolir em seco.
– Cão Negro! – disse ele.
– E quem mais seria? – retornou o outro, mostrando-se um pouco mais à
vontade. – Cão Negro, como sempre foi, que veio visitar seu velho
companheiro de bordo, Billy, na estalagem do “Almirante Benbow”. Ah,
Bill, Bill, nós dois vimos tantas coisas juntos, desde que eu perdi minhas
duas garras – disse ele, erguendo sua mão mutilada.
– Agora, olhe aqui – disse o Capitão –, você já me encontrou, aqui estou
eu. Muito bem, então fale logo: o que deseja?
– Assim é que se fala, Bill – retornou o Cão Negro –, você é que está
certo, Billy. Eu vou tomar um copo de rum, que este lindo menino aqui vai
me buscar, porque eu estou realmente gostando muito dele, e nós vamos nos
sentar, se você quiser, e teremos uma boa conversa, como velhos
camaradas.
Quando eu retornei com o rum, eles já estavam sentados frente a frente,
na mesa em que estava servido o desjejum do Capitão. O Cão Negro estava
assentado próximo à porta, um pouco de lado, de modo a manter um olho
em seu velho companheiro de bordo e o outro, segundo eu pensei, na porta
de saída.
Ele me disse que fosse embora, mas deixasse a porta bem aberta:
– Não quero saber de nenhuma fechadura, filhinho – disse ele. E assim
eu os deixei juntos e me retirei para o balcão das bebidas.
Por um longo tempo, embora eu certamente fizesse o máximo possível
para escutar, não pude ouvir nada, exceto um murmúrio baixo e confuso,
mas, finalmente, as vozes começaram a ficar mais altas e eu pude apanhar
uma palavra ou duas das proferidas pelo Capitão, especialmente maldições.
– Não, não, não e não! O assunto está encerrado! – gritou ele, uma vez. E
novamente – Se chegarmos a ser enforcados, então balançaremos todos
juntos, é o que eu digo!
Então, de repente, houve uma tremenda explosão de blasfêmias e de
outros ruídos – a cadeira e a mesa viraram, seguiu-se um choque de aço
contra aço e, então, um grito de dor e, no instante seguinte, eu vi Cão Negro
correndo, perseguido tenazmente pelo Capitão, ambos com os cutelos
desembainhados, enquanto escorria sangue aos borbotões do ombro
esquerdo do visitante. Exatamente ao chegarem na porta, o Capitão dirigiu
ao fugitivo um último e tremendo golpe, que certamente o teria cortado em
dois, se não tivesse sido interceptado pela moldura de nossa grande tabuleta
do “Almirante Benbow”. Até hoje ainda se pode ver o talho na parte
inferior da tabuleta.
Este foi o último golpe da batalha. Assim que se encontrou na estrada,
Cão Negro, apesar do ferimento, demonstrou possuir um maravilhoso par
de pernas e desapareceu no alto da colina em meio minuto. O Capitão ficou
parado, olhando para a tabuleta, como se estivesse muito surpreso. Então,
passou a mão sobre os olhos diversas vezes e, finalmente, entrou de novo na
casa.
– Jim – disse-me ele –, traga-me um pouco de rum.
E, enquanto falava, ele vacilou um pouco e segurou-se com uma das
mãos contra a parede.
– Está ferido? – eu gritei.
– Rum – ele repetiu –, tenho de ir embora daqui. Rum! Rum!
Eu fui correndo buscar, mas estava muito nervoso por causa de tudo o
que havia acontecido e, primeiro, quebrei um copo, depois, me atrapalhei
com a torneira do barril, e, enquanto ainda estava tentando me organizar,
escutei um estrondo no salão e, ao correr para lá, deparei com o Capitão
estendido de todo o comprimento no chão. Ao mesmo tempo, minha mãe,
alarmada pelos gritos e pelo barulho da luta, desceu correndo a escada para
me ajudar. Com algum esforço, erguemos-lhe a cabeça. Ele estava
respirando muito alto e com dificuldade, mas seus olhos estavam fechados e
seu rosto apresentava uma coloração horrível.
– Ai, meu Deus, meu Deus! – gritou minha mãe. – Que desgraça caiu
sobre nossa casa! E seu pobre pai está tão doente!
Enquanto isso, nós não tínhamos ideia do que fazer para ajudar o
Capitão, nem qualquer outro pensamento, salvo o de que ele tinha sofrido
um ferimento mortal no combate com o estranho. Eu fui buscar o rum, por
garantia, e tentei fazê-lo descer por sua garganta, mas seus dentes estavam
apertados firmemente e suas mandíbulas eram fortes como ferro. Porém,
para nosso alívio, a porta se abriu e o Dr. Livesey entrou para fazer sua
visita costumeira a meu pai.
– Oh, Doutor! – nós gritamos –, o que faremos? Onde ele está ferido?
– Ferido? Mas que disparate! – disse o Doutor. – Não está mais ferido
que vocês ou eu. O homem teve um derrame cerebral, bem como eu o havia
prevenido. Agora, Mrs. Hawkins, faça-me o favor de subir ao quarto de seu
marido e, se for possível, não lhe diga nada a respeito do que aconteceu. Da
minha parte, eu devo fazer o melhor que puder a fim de salvar a vida três
vezes inútil deste camarada. Jim, vá buscar uma bacia.
Quando eu retornei com a bacia, o Doutor já tinha rasgado a manga do
Capitão até em cima e exposto seu braço grosso, cheio de tendões salientes.
Este se encontrava tatuado em diversos lugares, com frases como: “A marca
da sorte”, “Um vento favorável” e “O desejo de Billy Bones”, escritas com
letras claras e bonitas em seu antebraço. Já mais para cima, perto do ombro,
havia o desenho de uma forca, com um homem pendurado pelo pescoço –
um desenho executado, segundo eu pensei, com grande maestria.
– Profético – disse o Doutor, tocando com o dedo na figura. – E agora,
Mestre Billy Bones, se é mesmo este o seu nome, vamos dar uma espiadela
na cor do seu sangue. Jim – acrescentou ele –, você tem medo de ver
sangue?
– Não, senhor – disse eu.
– Bem, então – disse ele –, fique segurando a bacia. – E logo a seguir, ele
pegou seu bisturi e abriu uma veia.
Jorrou uma grande quantidade de sangue, antes que o Capitão abrisse os
olhos e olhasse confusamente ao seu redor. Primeiro, ele reconheceu o
Doutor, franzindo o cenho de maneira inconfundível, então, seu olhar recaiu
sobre mim e ele pareceu aliviado. Mas, de repente, sua cor mudou e ele
tentou erguer-se, gritando:
– Onde está o Cão Negro?
– Não há nenhum Cão Negro por aqui – disse o Doutor –, salvo aquele
que você traz em suas próprias costas. Você esteve bebendo rum demais.
Você teve um derrame cerebral, precisamente como eu tinha lhe prevenido.
E eu acabei de puxá-lo pelo pescoço, muito contra a minha vontade, para
fora da sepultura. Agora, Mr. Bones...
– Esse não é meu nome – ele interrompeu.
– O que muito me importa – retorquiu o Doutor. – É o nome de um
bucaneiro que eu conheço, e para encurtar a conversa, é o nome que vou
usar para chamá-lo, e o que eu tenho a lhe dizer é o seguinte: um único
copo de rum não irá matá-lo, mas, se você tomar um, vai querer tomar outro
e mais outro, e eu aposto minha peruca como, se você não deixar da bebida
imediatamente, vai morrer. Você consegue entender isso? Vai morrer e
partir para o lugar a que você pertence, como o homem da Bíblia1. Agora
vamos, faça um esforço e vou ajudá-lo a ir para a cama, pelo menos desta
vez.
Os dois juntos, com muito esforço, conseguimos carregá-lo até o andar
de cima e o colocamos em sua cama; sua cabeça descaiu sobre o
travesseiro, como se estivesse quase desmaiando.
– Agora, preste bem atenção – disse o Doutor. – Quero ter a minha
consciência limpa – a própria palavra rum, para você, significa morte.
E com essa advertência, ele saiu para ver o meu pai, levando-me com ele
pelo braço.
– Isso não foi nada – disse ele, assim que fechou a porta. – Eu tirei
sangue dele o bastante para mantê-lo quieto por algum tempo. Ele deve
permanecer deitado por uma semana, exatamente no lugar em que está. – E
isso é o melhor que pode acontecer, tanto para você como para ele mesmo,
mas, se tiver outro derrame, esse vai acabar com ele.

CAPÍTULO 3
O SINAL NEGRO
Mais ou menos ao meio-dia, eu parei à porta do Capitão, com uma
bebida refrescante e alguns remédios. Ele estava deitado quase do mesmo
jeito em que eu o havia deixado, somente um pouco mais erguido no
travesseiro; e parecia, ao mesmo tempo, fraco e excitado.
– Jim – disse-me ele –, você é a única pessoa que vale alguma coisa por
aqui, e sabe que eu sempre fui bom para você. Não houve um único mês em
que eu deixasse de lhe dar a moedinha de prata que lhe havia prometido. E
agora você me vê, companheiro, eu estou em péssimo estado e abandonado
por todos: ora, Jim, você agora vai trazer uma canequinha de rum para mim,
não vai, companheirinho?
– Mas o Doutor ... – eu comecei.
Nesse ponto, ele começou a maldizer o Doutor, em uma voz muito fraca,
mas, mesmo assim, cheia de fúria:
– Esses Doutores só entendem de curativos – disse ele. – E esse
Doutorzinho aí, ora, o que é que ele sabe a respeito dos homens do mar? Eu
estive em lugares onde era tão quente como piche derretido e via meus
companheiros caindo em volta com a febre amarela, e a bendita terra se
sacudindo igual ao mar, com os terremotos – que é que o Doutor sabe de
terras como essas? E uma coisa lhe digo: por lá, eu me sustentava só com
rum. O rum tem sido para mim alimento e bebida: somos como marido e
mulher, sempre juntos; e se eu não puder tomar rum agora que sou um
casco velho, abandonado em uma praia deserta, meu sangue vai cair sobre
você, Jim, e sobre a cabeça daquele curandeiro.
E ele continuou a falar assim por algum tempo, misturando pragas e
maldições.
– Olhe, Jim, como os meus dedos tremem – ele continuou, em um tom
suplicante. – Eu não consigo fazer com que eles parem, não consigo. Eu
não tomei uma só gota em todo este dia bendito. Aquele Doutor é um
bobalhão, eu lhe digo. Se eu não tomar uma dose de rum, Jim, eu vou ter
um ataque horrível; eu já tive alguns antes. Estou vendo o velho Flint
parado no canto aí, por trás de você; eu o vejo tão claro como uma folha
impressa. E olhe, se eu tiver um desses meus ataques horríveis, sou um
homem que levou uma vida muito agitada e vou fazer uma tremenda
barulheira. Olhe, até o seu Doutor disse que um único copo de rum não ia
me fazer mal. Eu lhe darei um guinéu de ouro por uma caneca, Jim.
Ele estava falando cada vez mais alto e isto me deixou alarmado, por
causa de meu pai, que estava passando muito mal naquele dia e necessitava
de repouso; além disso, o fato de ele ter citado as palavras do Doutor
reafirmou minha resolução; e, ao mesmo tempo, fiquei bastante ofendido
por sua oferta de um suborno.
– Não me interessa o seu dinheiro – disse eu –, salvo o que você deve a
meu pai. Eu vou lhe trazer um copo, mas depois não trago mais nenhum.
Quando eu retornei com o copo, ele o agarrou ansiosamente e bebeu de
uma só vez.
– Ah – disse ele. – Estou-me sentindo muito melhor, sem a menor
dúvida. E agora, companheirinho, diga-me uma coisa: aquele Doutor falou
por quanto tempo eu devo ficar deitado aqui neste velho beliche?
– Por uma semana, pelo menos – disse eu.
– Com mil trovões! – gritou ele. – Uma semana! Mas eu não posso ficar
aqui por mais uma semana: se eu esperar todo esse tempo, eles vão mandar-
me o Sinal Negro. Aqueles grumetes estão dispostos a acabar comigo, neste
exato momento. São uns marinheiros de primeira viagem, que não sabem
guardar o dinheiro que recebem e agora querem tirar o que é dos outros. Lá
isso é o comportamento de um bom marujo, diga-me você, não concorda
comigo? Mas eu sou uma pessoa econômica, nunca desperdicei o meu
dinheiro e nem tampouco o perdi: pois eu vou passar-lhes outra rasteira. Eu
não tenho medo deles. Vou-me desviar de outro recife, companheirinho, e
deixá-los para trás de novo.
Enquanto ele falava deste jeito, começou a erguer-se da cama, com
grande dificuldade, segurando-se em meu ombro com tal força, que quase
me fez gritar de dor, porém movendo as pernas com dificuldade, como se
fossem um peso morto. Suas palavras, por mais ferozes que fossem em seu
significado, contrastavam tristemente com a fraqueza da voz em que eram
proferidas. Ele fez uma pausa, quando conseguiu se colocar sentado na
beira da cama.
– Aquele Doutor acabou comigo – murmurou. – Minhas orelhas estão
zumbindo. Ponha-me de volta na cama.
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa para ajudá-lo, ele tombou
sozinho no lugar em que se achava antes e ficou deitado por algum tempo,
em silêncio.
– Jim – ele disse, finalmente –, você viu aquele marinheiro que veio aqui
hoje?
– O Cão Negro? – eu indaguei.
– Ah, o Cão Negro – disse ele. – Esse, sim, é um malvado, mas há outros
ainda piores que mandam nele. Agora, se não houver jeito nenhum de eu ir
embora e eles me passarem o Sinal Negro, preste bem atenção: é o meu
velho baú de marinheiro que eles querem. Você deve arranjar um cavalo –
você sabe montar, não é verdade? Bem, então você consegue um cavalo e
vai avisar – bem, sim, é isso mesmo que nós vamos fazer! – Vai avisar
aquele tal Doutor que só presta para limpar o tombadilho e diga-lhe para
convocar toda a gente – os magistrados, a polícia, esses todos – e ele vai
pegá-los a bordo do “Almirante Benbow” – toda a tripulação do velho Flint,
marinheiros e grumetes, todos os que ainda restam deles. Eu era o imediato,
eu era o imediato do velho Flint e eu sou o único que conhece o lugar. Ele
revelou-me em Savannah, quando estava deitado em seu leito de morte,
como eu estou agora, pior do que você me vê. Mas você não vai dar um pio,
a não ser que eles me mandem o Sinal Negro ou se você encontrar aquele
Cão Negro de novo ou um homem do mar com uma perna só, Jim – esse
acima de tudo.
– Mas o que é o Sinal Negro, Capitão? – perguntei eu.
– É uma convocação, marujo. Eu lhe direi se eles trouxerem. Mas
conserve seus olhos bem abertos em cima da gávea, Jim; eu vou dividir
com você, meio a meio, juro por minha honra!
Ele seguiu resmungando um pouco mais, sua voz ficando cada vez mais
fraca; mas logo depois que eu lhe dei seu remédio, que tomou como uma
criança, com a observação: “Se jamais um marujo precisou tomar remédio,
esse sou eu”, ele caiu finalmente em um sono pesado como um desmaio e
eu o deixei dormindo. O que eu teria feito, se não tivesse havido nenhum
problema, eu realmente não sei. Provavelmente, teria ido contar a história
inteira para o Doutor, porque eu sentia um medo mortal de que o Capitão se
arrependesse de suas confissões e resolvesse acabar comigo. Mas do jeito
que as coisas aconteceram, meu pobre pai morreu subitamente naquela
noite, e isso pôs de lado qualquer outro assunto. A nossa natural tristeza, as
visitas dos vizinhos, os arranjos para o funeral e todo o trabalho da
estalagem, que tinha de ser realizado apesar disso, todas essas coisas me
mantiveram tão ocupado que eu mal tive tempo para pensar no Capitão,
quanto mais ficar com medo dele.
Sem dúvida, na manhã seguinte, ele desceu para o salão e fez suas
refeições como de costume, embora comesse pouco e bebesse mais,
segundo eu penso, que sua dose normal de rum, porque foi servir-se
diretamente no depósito de bebidas, fazendo cara de poucos amigos e
assoprando pelo nariz como um touro, de tal modo que ninguém ousou
contrariá-lo. Na noite anterior ao funeral, ele se achava tão bêbado como de
costume; e era uma coisa vergonhosa, naquela casa enlutada, escutá-lo
cantando bem alto sua velha e feia canção de piratas; mas, fraco como ele
se achava, vivíamos todos em um medo mortal dele e, subitamente, o
Doutor teve de se ocupar de um caso a muitas milhas de distância e passou
um longo tempo sem chegar perto da estalagem, depois da morte de meu
pai. Eu já disse que o Capitão estava fraco; e, sem dúvida, ele parecia antes
enfraquecer-se cada vez mais do que recuperar sua antiga força. Ele
manquitolava para cima e para baixo pelas escadas e ia do salão para o
depósito de bebidas e voltava outra vez ao salão; algumas vezes, punha o
nariz para fora da porta de entrada, a fim de sentir o cheiro do mar,
segurando-se pelas paredes enquanto caminhava, a fim de apoiar seus
passos vacilantes, respirando forte e apressado, como um homem que
estivesse subindo uma montanha íngreme. Ele nunca se dirigia a mim em
particular, e é minha impressão que tinha praticamente esquecido de suas
confidências; mas seu temperamento estava mais instável e, considerando-
se a sua fraqueza física, mais violento do que nunca. Agora, ele tinha o
costume alarmante, quando se achava embriagado, de pegar o seu cutelo e
colocá-lo desembainhado sobre a mesa, à sua frente. Porém, apesar disso
tudo, cada vez incomodava menos as pessoas e parecia trancado em seus
próprios pensamentos, como se se achasse divagando. Uma vez, por
exemplo, para nosso extremo assombro, ele começou a cantar uma música
diferente, uma espécie de melodia campestre que falava de amor, a qual ele
deveria ter aprendido em sua juventude, antes de ter seguido o caminho do
mar.
Assim as coisas se passaram, até que, no dia seguinte ao funeral, mais ou
menos pelas três horas de uma tarde de geada, fria e nevoenta, eu parei à
porta por um momento, cheio de pensamentos tristes sobre meu pai, quando
vi alguém que se aproximava lentamente pela estrada. Estava claro que o
homem era cego, porque ele batia no chão à sua frente com uma bengala e
usava um grande lenço verde sobre os olhos e o nariz; ele andava curvado,
pela idade ou por fraqueza; e usava uma velha capa de marinheiro
esfarrapada, com um capuz atrás, o que lhe atribuía um aspecto
positivamente deformado. Em toda a minha vida, eu nunca vi outra pessoa
com um aspecto mais pavoroso. Ele parou a uma certa distância da
estalagem e, erguendo sua voz de uma estranha maneira meio cantada,
dirigiu-se ao ar em frente dele:
– Será que algum bom amigo poderá informar a um pobre cego que
perdeu a preciosa visão de seu olhos na honrosa defesa de seu país natal, a
Inglaterra, e que Deus abençoe o Rei George! – onde ou em que parte deste
país ele pode se encontrar agora?
– Você está em frente à estalagem “Almirante Benbow”, na enseada de
Black Hill, meu bom homem – disse eu.
– Eu ouço uma voz – disse ele. – Escuto uma voz jovem. Quer dar-me
sua mão, meu jovem e gentil amigo, a fim de guiar-me?
Eu estendi-lhe a mão; e a criatura horrível, de voz macia e sem olhos,
agarrou-a no mesmo momento, como se fosse um torno. Eu fiquei tão
espantado, que comecei a lutar para retirar a mão; porém, o cego puxou-me
para perto dele com um único movimento de seu braço.
– Agora, menino – disse ele –, leve-me até onde está o Capitão.
– Senhor – disse eu –, eu não ousaria!
– Ora – zombou ele. – Então não tem coragem? Pois leve-me direto a ele,
senão quebro-lhe o braço.
E, enquanto falava, ele o torceu de tal forma, que me fez gritar.
– Senhor – disse eu –, é por sua causa que eu falei. O Capitão não se acha
em seu perfeito estado. Ele fica sentado com um cutelo desembainhado em
cima da mesa! Outro cavalheiro...
– Vamos, agora ande – interrompeu ele; e eu nunca escutei uma voz tão
cruel, tão fria e tão feia como a voz do cego. A voz acovardou-me mais do
que a dor; e eu comecei a obedecê-lo imediatamente, entrando direto pela
porta, em direção ao salão em que nosso velho bucaneiro doente estava
sentado, completamente tonto pelo rum. O cego se manteve bem perto de
mim, agarrando-me com um punho de ferro, e apoiando sobre mim quase
todo o seu peso, uma carga maior do que eu podia carregar.
– Leve-me direto até onde ele está, e quando eu estiver em frente a ele,
fale bem alto: “Aqui está um amigo seu, Bill”. Se você não falar, eu farei
isto. – E enquanto falava, ele me torceu o braço de novo com tanta força,
que eu pensei desmaiar. Com toda essa violência, eu me achava tão
atemorizado pelo mendigo cego, que esqueci de meu terror do Capitão; e
quando abri a porta do salão, gritei, com uma voz trêmula, as palavras que
ele tinha mandado eu dizer.
O pobre do Capitão ergueu os olhos e com um único olhar o rum saiu
para fora de seu cérebro e ele ficou sóbrio com olhos arregalados. A
expressão de seu rosto não era tanto de terror como de uma doença mortal.
Ele fez um movimento para erguer-se, mas eu não acredito que ele tivesse
força suficiente nos músculos de seu corpo.
– Agora, Bill, fique sentado aí mesmo onde você está – disse o mendigo.
– Eu não posso ver, mas posso escutar um dedo se movendo. Negócios são
negócios. Estenda a sua mão esquerda. Menino, segure a mão esquerda dele
pelo pulso e a traga para perto da minha direita.
Ambos o obedecemos com exatidão e eu vi quando ele passou alguma
coisa do côncavo de sua mão, a mesma que segurava a bengala, para a
palma da mão do Capitão, que imediatamente se fechou sobre ela.
– E agora está feito – disse o cego; e com estas palavras, soltou-me de
repente e, com incrível acurácia e agilidade, saltou para fora do salão e
chegou à estrada, de onde, embora eu ainda estivesse imóvel, pude escutar o
barulho de sua bengala contra o chão, desaparecendo na distância.
Passou-se algum tempo, antes que eu ou o Capitão pudéssemos recobrar
os nossos sentidos; porém, finalmente e quase ao mesmo tempo, eu soltei
seu pulso, que ainda continuava segurando até esse momento; e ele puxou a
mão para perto do rosto, olhando avidamente para a palma.
– Dez horas! – gritou ele. – Temos seis horas. Nós ainda vamos lográ-
los! – e levantou-se de repente.
Mas no mesmo instante em que se ergueu, ele cambaleou, levou uma das
mãos à garganta, ficou balançando por um momento e, então, fazendo um
ruído abafado, caiu ao comprido no assoalho, com o rosto para baixo.
Eu corri para seu lado imediatamente, chamando por minha mãe. Mas a
pressa não serviu de nada. O Capitão tinha morrido de uma apoplexia
fulminante. É uma coisa curiosa de se entender, porque eu certamente nunca
havia gostado do homem, embora, nos últimos dias, tivesse começado a
sentir pena dele; mas, assim que eu vi que ele estava morto, comecei a
chorar copiosamente. Era a segunda morte a que tinha assistido e a tristeza
da primeira ainda era nova em meu coração.

CAPÍTULO 4
O BAÚ DO MARINHEIRO
Eu não perdi tempo, naturalmente, e contei à minha mãe tudo o que
sabia; e talvez eu devesse ter lhe contado muito tempo antes; e nos vimos
agora, de repente, em uma posição muito difícil e perigosa. Uma parte do
dinheiro do homem – se é que ele tinha algum – certamente nos era devida;
mas não era provável que os companheiros de bordo de nosso Capitão,
acima de tudo os dois espécimes que eu tinha visto, Cão Negro e o mendigo
cego, estivessem dispostos a desistir de seu botim em pagamento das
dívidas do defunto. Se eu seguisse as ordens do Capitão e montasse a
cavalo imediatamente para avisar o Dr. Livesey, deixaria minha mãe
sozinha na estalagem, sem a menor proteção, uma coisa em que eu não
poderia sequer pensar. Sem dúvida, parecia impossível para qualquer um de
nós permanecer muito mais tempo na casa: a queda dos carvões no fogão da
cozinha, o próprio tique-taque do relógio, nos enchiam de susto. A
vizinhança, para nossos ouvidos, parecia assombrada por passos que se
aproximavam; e com o corpo morto do Capitão no assoalho do salão e o
pensamento naquele detestável mendigo cego rondando por perto, pronto
para retornar, houve momentos em que, como diz o ditado, eu pulei para
fora da pele, de tanto terror. Alguma coisa tinha de ser resolvida logo; e
finalmente decidimos sair juntos a fim de buscar auxílio na aldeia vizinha.
Assim que tomamos essa decisão, não perdemos mais tempo. De cabeças
descobertas, tal como estávamos, corremos para fora, em direção à noite
que se aproximava e para dentro do nevoeiro enregelante.
A aldeia não se achava a muitas centenas de metros de distância, embora
ficasse além da vista, do outro lado da próxima enseada. O que
grandemente me encorajou, foi que ficava na direção oposta àquela de onde
o homem cego tinha aparecido e para a qual presumivelmente havia
retornado. Nós não permanecemos muitos minutos na estrada, embora, às
vezes, parássemos e ficássemos abraçados, de ouvidos atentos. Mas não
havia nenhum som fora do comum – nada, exceto o murmúrio das ondas e o
crocitar dos corvos no bosque.
Já era hora de se acender as velas quando chegamos na aldeia; e nunca
esquecerei o quanto me alegrou ver-lhes o brilho amarelado, através das
portas e janelas; mas essa, como ficou demonstrado, foi a única ajuda que
conseguimos ali. Isto porque – e na verdade era de se pensar que homens
adultos tivessem mais vergonha de sua falta de coragem – nem uma só
pessoa consentiu em retornar conosco para o “Almirante Benbow”. Quanto
mais relatávamos nossas dificuldades, tanto mais todos eles – homens,
mulheres e crianças – se prendiam ao abrigo de seus lares. O nome do
Capitão Flint, embora fosse estranho para mim, era muito bem conhecido
de alguns deles e provocava-lhes um imenso terror. Alguns dos homens que
tinham estado a trabalhar nos campos que ficavam do outro lado do
“Almirante Benbow” lembravam-se, além disso, de terem avistado diversos
estranhos na estrada e fugido deles, por pensarem que fossem
contrabandistas; e pelo menos um dos aldeões tinha visto um pequeno barco
a vela, um lugre, em uma praia que denominávamos Kitt’s Hole. E falando
nisso, qualquer homem que tivesse sido companheiro de bordo do Capitão
era o suficiente para deixá-los mortalmente assustados. Para encurtar a
história, muitos de nossos vizinhos estavam dispostos a montar em um
cavalo e ir avisar o Dr. Livesey, que se encontrava na direção oposta, mas
ninguém iria nos ajudar a defender a estalagem.
Dizem que covardia pega, como uma doença infecciosa; mas que a
discussão, por outro lado, serve para criar coragem; e assim, depois que
todos os aldeões tinham dito tudo o que queriam, minha mãe lhes fez um
discurso. Ela não iria, conforme declarou, perder o dinheiro que pertencia a
seu filho órfão: “Se nenhum de vocês ousar”, disse ela, “Jim e eu
ousaremos. Nós vamos voltar pelo caminho por onde viemos sem grandes
agradecimentos a vocês, homens grandes e fortes, com corações de galinha.
Nós vamos abrir aquele baú, nem que tenhamos de morrer por causa disso.
E vou agradecer-lhe muito se me emprestar essa bolsa, Mrs. Crossley, a fim
de trazermos dentro dela o dinheiro que nos pertence”.
Está claro que eu disse que voltaria com minha mãe; e, naturalmente,
todos eles tentaram nos dissuadir em altas vozes de nossa temeridade; mas,
mesmo assim, nem um só homem quis voltar conosco. Tudo o que fizeram,
foi dar-me uma pistola carregada, para o caso de sermos atacados; e nos
prometeram deixar uns cavalos selados, que nos emprestariam, no caso de
sermos perseguidos; ao mesmo tempo que um rapaz ia cavalgar até onde se
achava o Doutor, a fim de buscar auxílio armado.
Meu coração batia fortemente quando nos lançamos pela estrada, através
da noite escura, em nossa perigosa aventura. A lua cheia estava começando
a subir e espiava, avermelhada, acima da parte superior do nevoeiro; e isto
aumentou nossa pressa, porque sabíamos perfeitamente, antes de
reencetarmos a jornada, que tudo ficaria tão claro e brilhante como o dia e
estaríamos expostos aos olhares de qualquer um que nos observasse.
Deslizamos ao longo das sebes, silenciosos e rápidos, e não vimos nem
escutamos coisa alguma que viesse aumentar nosso terror, até o momento
em que, para nosso imenso alívio, fechamos a porta do “Almirante
Benbow” por trás de nós.
Eu corri a tranca imediatamente e ficamos parados por um momento no
escuro, nossa respiração rápida e ofegante, sozinhos em casa com o corpo
morto do Capitão. Então, minha mãe achou uma vela no depósito de
bebidas e, de mãos dadas, avançamos até o salão. O Capitão estava deitado
no mesmo lugar em que o havíamos deixado, de costas, com os olhos
abertos e um dos braços esticado.
– Feche o postigo, Jim – sussurrou minha mãe –, eles podem chegar e
nos espiar de fora. E agora – disse ela, depois que eu havia obedecido –, nós
vamos ter de tirar a chave disso aí; e quem é que vai tocá-lo, eu gostaria de
saber! – e ela soltou uma espécie de soluço, enquanto proferia estas
palavras. Eu me ajoelhei imediatamente. Sobre o assoalho, bem perto de
sua mão, havia um pequeno círculo de papel, enegrecido de um lado. Eu
não tive dúvidas de que este era o Sinal Negro; e quando o levantei,
encontrei escrita do outro lado, com uma letra muito boa e clara, esta curta
mensagem: “Você tem até as dez horas da noite”.
– Ele tinha até as dez horas, mãe – disse eu, e no momento em que eu
falei, nosso velho relógio começou a bater. Este ruído súbito nos assustou
tremendamente, mas a notícia era boa – eram somente seis da tarde.
– Agora, Jim – disse ela –, pegue a chave.
Eu procurei em seus bolsos, um após o outro. Algumas moedinhas, um
dedal, um pouco de linha e agulhas grandes, um pedaço de um rolo de
tabaco de mascar mordido de um lado, sua navalha de cabo torto, uma
bússola de bolso e uma mecha para fazer fogo era tudo o que continham, e
comecei a me desesperar.
– Pode ser que esteja ao redor de seu pescoço – sugeriu minha mãe.
Combatendo uma forte repugnância, abri sua camisa no pescoço e ali,
sem a menor dúvida, pendurada a um pedaço de cordão alcatroado, que eu
cortei com sua própria navalha, achamos a chave. Ficamos cheios de
esperança com este triunfo e corremos sem demora para o andar superior,
até chegarmos ao quartinho em que ele tinha dormido por tanto tempo e
onde seu baú tinha permanecido, desde o dia de sua chegada. Olhando por
fora, era como qualquer outro baú de marinheiro, com a inicial “B” gravada
na tampa com um ferro em brasa e os cantos um tanto amassados e
quebrados pelo excesso de uso.
– Dê-me a chave – disse minha mãe; e, embora a fechadura estivesse
muito dura, ela conseguiu abri-la e jogou a tampa para trás em um abrir e
fechar de olhos.
Um forte cheiro de tabaco e de alcatrão ergueu-se do interior, mas não se
via nada na parte de cima, exceto algumas roupas muito boas,
cuidadosamente escovadas e dobradas. Nunca haviam sido usadas, segundo
disse minha mãe. Embaixo delas, começou a miscelânea – um quadrante,
um canecão de estanho, vários rolos de tabaco, um par de pistolas muito
elegantes, um lingote de prata, um antigo relógio espanhol e algumas outras
bagatelas de pouco valor, na maioria de fabricação estrangeira, um
compasso de bronze e cinco ou seis curiosas conchas das Índias Ocidentais.
Muitas vezes depois disso, eu tenho pensado que ele deve ter carregado
essas conchas consigo por toda parte, em sua vida errante, culpada e
assombrada pelos remorsos.
Até então, não havíamos encontrado nada de valor, salvo a barra de prata,
o relógio e as bagatelas, mas nenhuma destas nos interessava. Por baixo,
havia uma velha capa de marinheiro, esbranquiçada pelo sal de muitos
portos. Minha mãe puxou-a para fora, com impaciência, e lá estavam diante
de nós as últimas coisas que havia no baú, um pacote de oleado amarrado,
que dava a impressão de conter papéis; e uma bolsa de lona que, ao ser
tocada, tilintou como ouro.
– Eu vou mostrar a esses patifes que sou uma mulher honesta – disse
minha mãe. Eu vou tirar o que ele está me devendo, e nem um tostão a
mais. Segure a bolsa de Mrs. Crossley. – E ela começou a contar a quantia
correspondente à conta do capitão, retirando as moedas da bolsa do
marinheiro e colocando-as dentro daquela que eu estava segurando.
Foi um trabalho longo e difícil, porque as moedas eram de todos os
países e tamanhos – dobrões, luíses de ouro, guinéus, peças de oito e não sei
mais o que, todas misturadas ao acaso. O pior era que logo os guinéus eram
os mais raros; e era somente com estes que minha mãe sabia como fazer as
contas.
Quando estávamos mais ou menos na metade da tarefa, de repente eu pus
a mão em seu braço; porque tinha escutado, através do ar silencioso e
gélido, um som que me deixou de coração na boca – o barulho que fazia a
bengala do cego, ao bater na estrada gelada. Foi chegando cada vez mais
perto, enquanto permanecíamos sentados ali, prendendo a respiração. Nesse
momento, a ponta da bengala bateu forte contra a porta da estalagem, e
depois pudemos escutar o barulho do trinco sendo virado e o som da tranca
tremendo, enquanto aquele ser desgraçado procurava entrar. Seguiu-se um
longo período de silêncio, tanto dentro como fora da hospedaria.
Finalmente, as batidas no chão da estrada recomeçaram e, para nossa
alegria e gratidão indescritíveis, foram morrendo lentamente a distância, até
que cessaram de ser ouvidas.
– Mamãe – disse eu –, pegue isso tudo e vamos embora! – Porque eu
tinha certeza de que a porta trancada pareceria suspeita e, muito em breve,
traria o ninho de marimbondos inteiro para nos morder, embora ninguém
possa calcular como eu fiquei grato por ter trancado a porta, a não ser que
também já tivesse encontrado aquele terrível cego. Porém minha mãe,
assustada como se encontrava, não consentiu em tomar uma fração a mais
do que lhe era devido, enquanto ao mesmo tempo seu senso de justiça
obstinado não lhe permitia se contentar com menos. Ainda não eram nem
sete horas, foi o que ela me disse, ainda faltava muito para as sete; ela
conhecia seus direitos e eles seriam satisfeitos, e ainda estava discutindo
comigo, quando um assobio baixo soou a uma certa distância, sobre a
colina. Isto foi o suficiente, e mais do que suficiente, para nós dois.
– Eu vou ficar com o que já tenho – disse ela, pondo-se de pé de um
salto.
– E eu vou pegar isto, para completar a conta – disse eu, apanhando o
pacote de oleado.
No momento seguinte, estávamos os dois tateando escada abaixo,
deixando a vela ao lado do baú vazio, e no outro, já tínhamos aberto a porta
e estávamos em franca retirada. E não paramos um só momento mais cedo
do que devíamos. O nevoeiro estava rapidamente se dispersando, a lua já
brilhava muito clara nas colinas de ambos os lados. E era somente na parte
mais funda do vale e ao redor da porta da taverna que um véu fino de névoa
ainda permanecia intacto para esconder os primeiros passos de nossa
escapada. Bem antes da metade do caminho até a aldeia, logo depois do
ponto em que começava a parte inferior da colina, nós ficaríamos
totalmente expostos ao luar. E isto não era tudo: porque o som de diversas
passadas de homens correndo já soava em nossos ouvidos; e quando
olhamos nessa direção, uma luz movendo-se para cá e para lá e ao mesmo
tempo, avançando rapidamente, indicou-nos que um dos recém-chegados
trazia uma lanterna.
– Meu querido – disse minha mãe subitamente –, pegue o dinheiro e fuja.
Acho que vou desmaiar.
Este seria certamente o fim de nós dois, pensei eu. Como eu amaldiçoei a
covardia dos vizinhos; como eu culpei minha pobre mãe tanto por sua
honestidade como por sua cobiça, por sua temeridade anterior e presente
fraqueza! Por sorte, já estávamos perto da pontezinha; e eu a ajudei,
cambaleante como se achava, até a margem do riachinho, onde ela soltou
um longo suspiro e caiu sobre meu ombro. Eu não sei de onde tirei a força
para fazer tudo e tenho medo de ter sido bruto com ela; mas, de alguma
forma, eu consegui arrastá-la pela margem, para dentro do leito do riacho e
um pouco para baixo da ponte. Não podia movê-la mais além, porque a
ponte era muito estreita e baixa para me permitir mais do que arrastar-me
para baixo dela. Assim, tivemos de ficar ali – minha mãe quase
inteiramente exposta e ambos a uma distância tão pequena da estalagem,
que podíamos escutar o que se passasse lá.

CAPÍTULO 5
O ÚLTIMO APARECIMENTO DO CEGO
Em certo sentido, minha curiosidade era maior que meu medo; porque eu
não consegui permanecer onde estava e me arrastei de volta para a margem,
de onde, escondendo minha cabeça por trás de um pé de macega, eu podia
enxergar a estrada até nossa porta. Mal tinha assumido minha posição,
quando meus inimigos começaram a chegar, sete ou oito deles, correndo
depressa, seus pés batendo descompassadamente ao longo da estrada, com o
homem que trazia a lanterna algumas passadas à frente. Três homens
corriam juntos, de mãos dadas; e eu percebi, mesmo em meio ao nevoeiro,
que o homem no meio deste trio era o mendigo cego. No momento
seguinte, sua voz me convenceu de que eu estava certo.
– Derrubem a porta! – gritou ele.
– Agora mesmo, senhor! – responderam dois ou três, e logo uma
investida foi feita contra o “Almirante Benbow”, tendo atrás o portador da
lanterna, e então eu vi quando fizeram uma pausa e escutei suas vozes
baixas, como se estivessem surpresos por encontrarem a porta aberta.
Porém a pausa foi breve, pois o cego de novo lançou um comando. Sua voz
parecia mais alta e mais forte, como se ele estivesse queimando de
ansiedade e cólera.
– Entrem, entrem, entrem! – gritou ele, amaldiçoando-os pela demora.
Quatro ou cinco deles obedeceram imediatamente, permanecendo dois na
estrada, junto ao formidável mendigo. Houve uma pausa, então um grito de
surpresa e depois uma voz, gritando de dentro da casa:
– Bill está morto!
Mas o cego lançou-lhes pragas novamente pelo atraso.
– Revistem-no, seus grumetes vagabundos; e o resto de vocês suba para
pegar o baú – gritou ele.
Eu podia escutar seus pés subindo barulhentamente por nossa velha
escada, de tal modo que a casa estremecia. Logo depois, ergueram-se novos
gritos de espanto; a janela do quarto do Capitão foi aberta com um estrondo
e um tilintar de vidros quebrados; e um homem inclinou-se à luz do luar,
pondo para fora a cabeça e os ombros, dirigindo-se ao mendigo cego na
estrada abaixo dele.
– Pew – gritou ele –, eles estiveram aqui antes de nós. Alguém revirou o
baú de cabeça para baixo!
– Mas a coisa está aí? – rugiu Pew.
– O dinheiro está aqui.
O cego amaldiçoou o dinheiro.
– O papel escrito por Flint, é o que quero dizer – gritou ele.
– Isso nós não encontramos, de jeito nenhum – retorquiu o homem.
– Ei, vocês aí embaixo, está com Bill? – gritou o cego outra vez.
Ouvindo isso, outro camarada, provavelmente um que tinha ficado para
revistar o corpo do Capitão, chegou até a porta da estalagem.
– Bill já está todo remexido – disse ele. – Não sobrou nada.
– Foi esse pessoal da estalagem – foi aquele menino. Gostaria de ter lhe
furado os olhos! – gritou o cego, que era chamado pelos outros de Pew. –
Eles estiveram aqui não faz muito, a porta estava trancada, quando eu tentei
entrar da outra vez. Espalhem-se, rapazes, e tratem de encontrá-los!
– Mas é claro! Eles deixaram a vela acesa aqui – disse o camarada que se
achava à janela.
– Pois então, espalhem-se e vão encontrá-los! Vasculhem a casa toda! –
reiterou Pew, batendo com a ponta da bengala na estrada. Seguiu-se então
uma grande barulheira por toda a casa, pés pesados correndo daqui para lá,
móveis sendo derrubados, portas sendo chutadas, até que os próprios
rochedos começaram a fazer eco e os homens saíram de novo, um após o
outro, e se reuniram na estrada, afirmando que não conseguiam nos
encontrar em lugar algum. E nesse instante, o mesmo assobio que tanto
tinha alarmado minha mãe e eu, quando contávamos o dinheiro do velho
Capitão, tornou-se outra vez claramente audível, mas agora repetido duas
vezes. Eu pensava que era um sinal do cego, a fim de convocar sua
tripulação para o assalto, mas então percebi que era um sinal que provinha
das colinas em direção à aldeia e, a julgar pelo seu efeito sobre os piratas,
era para avisá-los de um perigo que se aproximava.
– É Dirk de novo – disse um. – Dois apitos! Temos de nos sacudir,
companheiros!
– Sacuda-se você, seu idiota! – gritou Pew. – Dirk é um tolo e estava
acovardado desde o princípio, vocês não devem se preocupar com ele. Essa
gente da estalagem deve estar por perto; eles não podem estar longe; vocês
estão com as mãos sobre eles. Espalhem-se e procurem por eles, cães! Pela
minha alma – gritou ele –, se ao menos eu tivesse olhos!
Este apelo pareceu produzir algum efeito, pois dois dos camaradas
começaram a procurar aqui e ali entre os montes de lenha, mas sem muito
entusiasmo, pensei eu, lançando olhares ao redor o tempo todo, para
identificar um possível perigo que se aproximasse, enquanto o resto dos
homens permanecia na estrada, indecisos sobre o que fazer.
– Vocês tem milhões nas mãos, seus tolos, e ficam aí sem mexer as
pernas! Vocês se tornariam tão ricos como reis, se ao menos pudessem
encontrá-lo, e vocês sabem que está aqui e mesmo assim ficam parados sem
fazer nada! Nenhum de vocês ousava enfrentar Bill e eu vim e enfrentei –
logo eu, um cego! E agora vou perder a única oportunidade que terei na
vida por causa de vocês? Então eu vou ser um pobre mendigo, que se
arrasta de porta em porta pedindo esmolas e suplicando um trago de rum
aos antigos camaradas, quando poderia andar de carruagem! Se vocês
tivessem a coragem de um caruncho num biscoito, conseguiriam agarrá-los!
– Calma aí, Pew, nós conseguimos achar os dobrões! – resmungou um
deles. – Eles podem ter escondido a bendita coisa – disse outro. – Pegue as
moedas do Rei George, Pew, em vez de ficar aí parado aos berros.
Berrar era a palavra certa para aquilo, pois a cólera de Pew cresceu mais
ainda, ao escutar estas objeções; até que, finalmente, quando sua paixão
tomou completamente conta dele, começou a bater cegamente à direita e à
esquerda, mas mesmo assim sua bengala acertou pesadamente em vários
dos assaltantes.
Estes começaram a praguejar contra o bandido cego, ameaçando-o com
termos horríveis, enquanto tentavam, em vão, agarrar-lhe a bengala e puxá-
la de suas mãos.
Esta briga foi a nossa salvação; pois, enquanto eles se digladiavam, outro
som surgiu no alto da colina, vindo do lado da aldeia – o barulho de cavalos
galopando. Quase ao mesmo tempo, o brilho e o estrondo de um tiro de
pistola vieram do lado da sebe. Este era claramente o último sinal de perigo;
pois os bucaneiros voltaram-se no mesmo instante e correram, separando-se
em todas as direções, um indo para o lado do mar, ao longo da enseada, um
subindo em diagonal a colina; e assim por diante, de modo que, em meio
minuto, nem um sinal deles permanecia; exceto Pew. Eles o haviam
desertado, talvez de puro pânico ou então por vingança de suas imprecações
e golpes, isso eu não sei; mas ali ficou ele, sozinho, batendo freneticamente
com a ponta da bengala na estrada, para cima e para baixo, estendendo o
outro braço e chamando seus camaradas. Finalmente, ele correu para o lado
errado, passando a poucos passos de mim, em direção à aldeia, gritando:
– Johnny, Cão Negro, Dirk – além de outros nomes –, vocês não vão
abandonar o velho Pew, companheiros – não vão deixar sozinho o velho
Pew!
Nesse mesmo instante, o barulho dos cavalos ultrapassou a ladeira e
quatro ou cinco cavaleiros surgiram à luz da lua, descendo a galope pelo
nosso lado.
Foi então que Pew descobriu seu erro, voltou-se com um grito de pavor e
correu diretamente para a valeta, rolando para dentro dela. Mas ficou de pé
novamente em um segundo e fez outra tentativa para fugir, agora
completamente confuso, atirando-se justo sob as patas do mais próximo dos
cavalos que se aproximavam.
O cavaleiro tentou salvá-lo, mas em vão. Pew caiu com um uivo que
ecoou muito alto dentro da noite; e os quatro cascos o atropelaram e
esmagaram, enquanto o cavalo passava. Ele caiu de lado e então lentamente
virou de cara para o chão e não se moveu mais.
Eu saltei em pé e chamei os cavaleiros. Eles já estavam mesmo parando,
horrorizados com o acidente, e logo pude distinguir quem eram. Aquele que
vinha atrás de todos era o rapaz que tinha saído da aldeia para buscar o Dr.
Livesey, o resto eram funcionários da Alfândega que ele tinha encontrado
no caminho e com os quais tinha tido a ideia inteligente de retornar de
imediato. Alguma notícia do lugre que estava ancorado em Kitt’s Hole tinha
chegado ao conhecimento do Supervisor Dance e ele tinha partido naquela
noite em nossa direção, e foi a esta circunstância que minha mãe e eu
devemos nossa preservação da morte.
Pew estava tão morto como uma pedra. Quanto à minha mãe, quando a
carregamos até a aldeia, deram-lhe um pouco de água fria e sais e logo ela
recobrou a consciência, sem ter sofrido nada de maior, exceto pelo terror
que sentira, embora ainda continuasse a se lastimar pelo saldo de seu
dinheiro, porque não tinha conseguido pegar a soma inteira que lhe era
devida. Enquanto isso, o Supervisor seguiu em frente, o mais depressa que
pôde, até Kitt’s Hole, porém seus homens tiveram de desmontar e procurar
por todo o vale, conduzindo e às vezes até sustentando seus cavalos, em um
temor constante de uma emboscada. Assim, não ficaram muito
surpreendidos quando, ao chegarem à baía, viram que o lugre já tinha
levantado âncora, embora não estivesse a uma distância muito grande. O
Supervisor ainda chamou o navio. Uma voz replicou, dizendo-lhe que não
ficasse parado ao luar, caso contrário iria levar chumbo, e, ao mesmo
tempo, uma bala assobiou perto de seu braço. Logo depois, o lugre dobrou
o promontório e desapareceu. Mr. Dance ficou parado ali, como ele mesmo
disse, “como um peixe fora da água”, e tudo quanto pôde fazer foi enviar
um homem a Bristol a fim de pedir que lançassem ao mar o cúter da
Marinha Real.
– E isso – disse ele – foi o mesmo que nada. Eles escaparam sem a menor
dificuldade e aí terminou a história. A única coisa boa – ele acrescentou –
foi que eu pisoteei a casca de Mestre Pew.
A essa altura, ele já tinha escutado minha história.
Voltei com ele até o “Almirante Benbow” e não se pode imaginar uma
casa que tenha ficado mais destroçada; até o relógio tinha sido jogado no
chão por aqueles camaradas, em sua furiosa busca por minha mãe e eu; e
embora nada tivesse sido roubado, exceto o saco de dinheiro do Capitão e
um pouquinho de prata da caixa registradora, eu pude ver imediatamente
que estávamos arruinados. Mr. Dance não conseguiu entender nada.
– Eles levaram o dinheiro, você disse? Bem, então, Hawkins, que diabo
eles estavam procurando? Mais dinheiro, eu suponho?
– Não, senhor. Não era dinheiro, penso eu – foi o que respondi. – De
fato, senhor, eu acredito que tenho a coisa que eles queriam no bolso da
frente de meu casaco, e, para dizer-lhe a verdade, bem que eu gostaria de
colocar essa coisa em segurança.
– Sem dúvida, menino, tem toda a razão – disse ele. – Eu posso guardar
para você, se quiser.
– Eu pensei que, talvez, o Dr. Livesey... – comecei.
– Perfeitamente – ele interrompeu, bastante alegre por se livrar da
responsabilidade indesejada. – Perfeitamente. Trata-se de um cavalheiro e
de um magistrado. E agora, pensando bem, posso perfeitamente cavalgar
até lá e fazer um relatório a ele ou ao Conde. Mestre Pew está morto, no fim
das contas. Não que eu lamente, mas ele está morto, não é verdade? E as
pessoas podem lançar isso contra um oficial da Alfândega de Sua
Majestade. Agora, vou dizer-lhe uma coisa, Hawkins: se você quiser, vou
levá-lo comigo.
Agradeci-lhe profusamente pela oferta e caminhamos de volta à aldeia,
onde se achavam os cavalos. Ao mesmo tempo em que eu revelava meu
propósito à minha mãe, os cavalos foram encilhados.
– Dogger – disse Mr. Dance –, você tem um bom cavalo. Leve este rapaz
na garupa.
Assim que eu montei, segurando-me ao cinto de Dogger, o Supervisor
deu voz de comando e o grupo partiu em rápido trote pela estrada que
conduzia à residência do Dr. Livesey.
CAPÍTULO 6
OS PAPÉIS DO CAPITÃO
Cavalgamos depressa por todo o caminho, até que chegamos diante da
porta do Dr. Livesey. A frente da casa estava completamente às escuras.
Mr. Dance disse-me para pular e bater à porta, e Dogger alcançou-me o
estribo para facilitar minha descida. A porta foi aberta quase imediatamente
por uma empregada.
– O Dr. Livesey está em casa? – perguntei.
– Não – disse ela. – Ele esteve em casa de tarde, mas foi até o castelo
para jantar com o senhor Conde, o proprietário rural.
– Então, é para lá que nós vamos – disse Mr. Dance.
Desta vez, como a distância era curta, eu nem montei, mas corri,
segurado a correia do estribo de Dogger, até o portão da guarita de entrada e
depois ao longo da avenida, onde as árvores sem folhas deixavam passar o
luar, até que a linha branca dos edifícios da mansão surgiu de ambos os
lados dos grandes jardins antigos. Ali, Mr. Dance desmontou e, levando-me
consigo, foi admitido na residência, após uma palavra à porta.
O criado nos levou por um corredor atapetado e finalmente nos
introduziu em uma grande biblioteca, cujas paredes estavam recobertas de
estantes, com bustos colocados sobre elas, onde o Conde e o Dr. Livesey, de
cachimbo na mão, estavam de ambos os lados de um fogo brilhante.
Eu nunca tinha visto o Conde tão de perto. Ele era um homem alto, com
mais de um metro e oitenta de altura e de ombros proporcionalmente largos,
e tinha um rosto franco e de expressão firme, endurecido, avermelhado e
enrugado por suas longas viagens. Suas sobrancelhas eram muito negras e
moviam-se facilmente, o que lhe dava o aspecto de uma pessoa de
temperamento forte, não má, realmente, porém pronta a encolerizar-se.
– Entre, Mr. Dance – disse ele, muito digno e condescendente.
– Boa noite, Dance – disse o Doutor, cumprimentando-o com a cabeça. –
E boa noite para você também, meu amigo Jim. E que bons ventos os
trazem aqui?
O Supervisor ficou de pé diante deles, muito empertigado; e contou-lhes
a história, tal como se recitasse uma lição; e você deveria ter visto como os
dois cavalheiros se inclinaram para a frente e depois olharam um para o
outro; e até se esqueceram de fumar, em sua surpresa e interesse. Quando
eles souberam da maneira que minha mãe tinha voltado para a estalagem, o
Dr. Livesey deu um forte tapa na coxa e o Conde gritou “Bravo!” e quebrou
sem querer o seu longo cachimbo contra a grade da lareira. Muito antes que
a narrativa tivesse terminado, Mr. Trelawney (este, como vocês devem
recordar, era o nome do Conde) levantou-se de sua poltrona e começou a
caminhar em longas passadas pela sala; e o Doutor, como se fosse para
escutar melhor, tirou sua peruca empoada e ficou sentado ali, parecendo
muito estranho, com seus cabelos pretos cortados rentes.
Finalmente, Mr. Dance completou sua história.
– Mr. Dance – disse o Conde. – Você agiu de uma maneira muito nobre.
E quanto ao fato de ter atropelado aquele bandido atroz e maligno, eu o
considero, senhor, como um ato virtuoso, tal como esmagar uma barata.
Este rapaz, Hawkins, é bem valente, eu percebo. Hawkins, quer tocar
aquela campainha? Mr. Dance deve estar precisando de um pouco de
cerveja.
– Quer dizer então, Jim – disse o Doutor –, que você tem a coisa que eles
estavam procurando, não tem?
– Aqui está, senhor – disse eu. E entreguei-lhe o pacote de oleado.
O Doutor examinou-o de todos os lados, como se seus dedos estivessem
comichando para abri-lo, mas, em vez disso, colocou-o tranquilamente no
bolso de seu casaco.
– Sr. Conde – disse ele –, quando Dance tiver tomado sua cerveja, ele
deve, naturalmente, sair para executar o serviço de Sua Majestade, mas eu
gostaria que Jim Hawkins ficasse por aqui para dormir em minha casa; e,
com sua permissão, proponho mandar buscar o pastelão frio, para que ele
possa jantar.
– Como quiser, Livesey – disse o Conde. – Hawkins merece muito mais
que um pastelão frio.
Assim foi trazido um grande pastelão de pombo e disposto em uma
mesinha lateral, onde jantei muito bem, porque eu estava faminto como um
gavião, enquanto Mr. Dance recebia novos elogios e, finalmente, era
dispensado.
– E agora, Conde – disse o Doutor.
– E agora, Livesey – disse o Conde, ao mesmo tempo.
– Um de cada vez, um de cada vez – riu-se o Dr. Livesey. – Você já ouviu
falar desse Flint, suponho eu?
– Ouvi falar? – exclamou o Conde. – Ouvi falar dele, diz você? Ele foi o
bucaneiro mais sedento de sangue que já navegou por esses mares. Barba
Negra era uma criança comparado com Flint. Os espanhóis tinham um
medo tão prodigioso dele que, eu lhe digo, senhor, às vezes eu até me
orgulhava de que ele fosse inglês. Eu vi o alto de suas velas com meus
próprios olhos, perto de Trinidad; e aquele transportador de rum covarde
com quem eu navegava, retornou e foi esconder-se – fugiu, senhor, e foi
esconder-se em Port of Spain.
– Bem, eu ouvi falar dele aqui mesmo, na Inglaterra – disse o Doutor. –
Mas a questão é a seguinte: ele tinha dinheiro?
– Dinheiro? – exclamou o Conde. – Mas você não conhece a história? O
que mais queriam esses vilões, senão dinheiro? Por que mais eles se
interessavam, se não fosse por dinheiro? Por que outra razão eles iriam
arriscar suas carcaças de patifes, senão por dinheiro?
– Isso nós vamos saber logo – replicou o Doutor. – Mas você tem uma
cabeça tão esquentada e grita tanto, que eu não posso dizer uma palavra. O
que eu quero saber é o seguinte: suponhamos que eu tenha aqui em meu
bolso alguma pista do lugar em que Flint escondeu o seu tesouro. Será que
esse tesouro representa uma grande quantia?
– Quantia, senhor? – gritou o Conde. – Vou-lhe dizer a respeito de uma
quantia. Se eu dispusesse da pista de que você fala, aprestaria um navio na
doca de Bristol e levaria você e Hawkins comigo a fim de achar esse
tesouro, nem que tivesse de passar um ano procurando!
– Muito bem – disse o Doutor. – Então, agora, desde que Jim concorde,
vamos abrir o pacote. – E colocou-o diante dele, sobre a mesa.
O pacote havia sido costurado: e o Doutor teve de ir buscar sua maleta de
instrumentos e cortar os pontos com uma tesoura cirúrgica. Ele continha
duas coisas – um livro e um papel selado.
– Primeiro, vamos tentar o livro – disse o Doutor.
Tanto o Conde como eu estávamos olhando por cima de seus ombros,
enquanto ele abria, porque o Dr. Livesey tinha tido a gentileza de me
chamar com um gesto para que eu deixasse a mesa lateral em que havia
comido e me aproximasse, a fim de gozar da alegria da busca. Na primeira
página, havia somente umas garatujas, como se um homem com uma pena
de ganso em sua mão estivesse rabiscando ou praticando o uso do
instrumento. Havia algumas frases: uma era a mesma que se achava na
tatuagem, “O desejo de Billy Bones”; depois havia outras, como, “Mr. W.
Bones, imediato”; “Nada mais de rum”; “Em frente à Ilhota da Palmeira,
ele levou a dele”; e mais outras coisas, na maior parte palavras isoladas e
ininteligíveis. Eu não pude deixar de imaginar quem era que “tinha levado a
dele” e o que era que ele tinha levado. Provavelmente, uma facada nas
costas.
– Não podemos aprender muita coisa por aqui – disse o Dr. Livesey. E
passou adiante.
As próximas dez ou doze páginas estavam cheias de uma curiosa série de
anotações. Havia uma data de um lado da linha; e do outro, uma soma de
dinheiro, como é comum em livros de contabilidade; mas em vez de uma
escrita explanatória, somente um número variável de cruzes entre as duas
colunas. A 12 de junho de 1745, por exemplo, claramente ficara devida uma
soma de setenta libras a alguém; mas não havia nada mais que seis cruzes
para explicar a causa. Em alguns lugares, é claro, era acrescentado o nome
de um lugar, como “ao largo de Caracas”; ou uma mera anotação de latitude
e longitude, como 62o17’20’’ ou 10o2’40’’.
O registro durava por quase vinte anos, a quantia das anotações
separadas ficando mais alta, à medida que o tempo passava; e, no final, um
grande total tinha sido calculado, depois de cinco ou seis adições erradas; e
estas palavras tinham sido acrescentadas: “Bones, sua parte”.
– Eu não consigo entender nada disso – falou o Dr. Livesey.
– Para mim, a coisa está tão clara como o sol ao meio-dia – exclamou o
Conde. – Esse é o livro de contabilidade desse cão de coração negro. Essas
cruzes representam o nome dos navios que afundaram ou das cidades que
saquearam. As somas são a parte do patife; e onde ele temia uma
ambiguidade, vocês podem ver que acrescentava alguma coisa mais clara,
como “ao largo de Caracas”; esse deve ser algum navio infeliz que foi
abordado nessa costa. Deus tenha piedade das pobres almas que o
tripulavam – foram para os corais há muito tempo!
– Certo! – disse o Doutor. – É para isso que serve você ter sido um
viajante. – Certo! E as quantias aumentaram, vocês veem, à medida que ele
subia de posto.
Havia pouco mais no volume, exceto algumas coordenadas de lugares,
anotadas nas páginas em branco perto do fim; e uma tabela para a
conversão de moedas francesas, inglesas e espanholas a um mesmo valor.
– Homem econômico! – exclamou o Doutor. – Ele era esperto demais
para ser enganado.
– E agora – disse o Conde. – Vamos ver o outro!
O papel tinha sido selado em diversos lugares por meio de um dedal, em
vez de sinete; talvez o mesmo dedal que eu havia encontrado no bolso do
Capitão. O Doutor abriu o lacre com muito cuidado e de dentro caiu o mapa
de uma ilha, com latitude e longitude, sondagens de profundidade, nomes
de colinas, baías e angras e cada particular que pudesse ser necessário para
levar um barco a uma ancoragem segura em suas praias. Tinha mais ou
menos nove milhas de comprimento por cinco de largura e o formato
aproximado de um dragão gordo empinado sobre as patas traseiras; tinha,
além disso, duas ótimas localizações para portos protegidos pela terra; e
uma colina na parte central, marcada “A Luneta do Marinheiro”. Havia
várias adições de data posteriores; porém, acima de tudo, três cruzes em
tinta vermelha – duas na parte norte da ilha e uma no sudoeste. Ao lado
desta última, na mesma tinta vermelha, com uma letra pequena e clara,
muito diferente dos caracteres meio tortos do Capitão, havia estas palavras:
“A parte principal do tesouro está aqui”.
Na parte de trás, a mesma mão havia escrito mais estas informações:
Árvore alta, flanco da Luneta, tendo uma ponta voltada para o N de
NNE. Ilha do Esqueleto ESE por E. Três metros. A prata em barra está no
depósito do norte; você pode encontrá-la seguindo a senda da colina do
leste, dez braças ao sul do rochedo negro que tem um rosto. As armas são
fáceis de encontrar, na colina de areia a N, na ponta norte do cabo da
angra, na direção E e a um quarto de N.

J.F.

Isso era tudo, mas mesmo sendo breve e, para mim, incompreensível, o
Conde e o Dr. Livesey ficaram cheios de alegria.

– Livesey – disse o Conde –, você vai desistir dessa estúpida clínica hoje
mesmo. Amanhã, eu vou partir para Bristol. Em um prazo de três semanas –
que, três semanas! – duas semanas – dez dias – nós disporemos do melhor
barco, senhor, do melhor barco e da tripulação mais bem escolhida da
Inglaterra. Hawkins virá conosco, como grumete. Você será um excelente
grumete, Hawkins. Você, Livesey, será o médico de bordo; e eu serei o
almirante. Vamos levar Redruth, Joyce e Hunter. Vamos ter ventos
favoráveis, uma passagem rápida, e não vai haver a menor dificuldade para
encontrarmos o local; e vamos ter dinheiro de sobra – dinheiro para jogar
fora –, vamos nadar em dinheiro daqui para a frente!
– Trelawney – disse o Doutor. – Eu irei com você; e aposto que Jim
também irá de boa vontade e será de grande auxílio em nossa empresa. Há
somente um homem de quem eu tenho medo.
– E quem é esse? – quis saber o Conde. – Diga o nome desse cão,
senhor!
– É você mesmo – replicou o Doutor. – Você não sabe ficar de boca
fechada. Nós não somos os únicos homens que sabem que esse papel existe.
Esses camaradas que atacaram a estalagem esta noite – combatentes
ousados e desesperados, sem a menor dúvida – e o resto, que permaneceu a
bordo daquele lugre; e mais outros, acredito eu, que não se acham muito
distantes; todos eles devem estar querendo conseguir esse dinheiro a
qualquer custo. Nenhum de nós deve andar sozinho, até que estejamos no
mar. Jim e eu ficaremos juntos enquanto esperamos. Você leve Joyce e
Hunter quando viajar a Bristol; mas, sobretudo, do começo ao fim, nenhum
de nós pode soltar uma palavra a respeito do que encontramos.
– Livesey – respondeu o Conde –, você sempre tem razão. Serei tão
silencioso como um túmulo!

1 Alusão à parábola do Homem Rico e do mendigo Lázaro, ambos morrem e Lázaro vai para o
Paraíso, enquanto o Homem Rico “vai para o lugar a que pertence” onde, estando em tormentos,
pede a Jeová que mande Lázaro ajudá-lo. (N.T.)
PARTE II
O COZINHEIRO DE BORDO

CAPÍTULO 7
EU VOU A BRISTOL
Levou mais tempo do que o Conde imaginava até que estivéssemos
prontos para o mar, e nenhum de nossos planos originais – nem ao menos o
plano do Dr. Livesey de conservar-me a seu lado – pôde ser realizado
conforme pretendíamos. O Doutor teve de ir a Londres, a fim de conseguir
um médico que assumisse a sua clínica; o Conde trabalhava duramente em
Bristol, e eu fiquei morando no castelo, sob a guarda do velho Redruth, o
guarda-caça, sentindo-me quase um prisioneiro, porém cheio de sonhos
com o mar e as mais encantadoras antecipações de estranhas ilhas e
aventuras. Eu passava horas olhando para o mapa, cujos detalhes lembro até
hoje. Sentado à beira do fogo, na sala da governanta, eu me aproximei
daquela ilha em minha fantasia, chegando de todas as direções possíveis.
Explorei cada acre de sua superfície. Trepei mil vezes ao topo daquela alta
colina, que eles chamavam de Luneta do Marinheiro e lá de cima apreciei
as paisagens mais mutáveis e maravilhosas. Algumas vezes, a ilha estava
cheia de selvagens, com os quais combatíamos; de outras, estava cheia de
animais perigosos, que nos caçavam; mas em todas as minhas fantasias,
nada me ocorreu que fosse tão estranho e trágico como nossas aventuras
verdadeiras.
Assim as semanas se passaram, até que, um belo dia, chegou uma carta
dirigida ao Dr. Livesey, com esta observação: “Deve ser aberta, no caso de
sua ausência, por Tom Redruth ou pelo jovem Hawkins”. Obedecendo a
esta ordem, descobrimos, ou antes eu descobri – porque o guarda-caça tinha
dificuldade de ler qualquer coisa que não fosse impressa – as seguintes
notícias importantes:
Hospedaria da Velha Âncora, Bristol, 1o de março de 17–.

Caro Livesey – Uma vez que eu não sei se você está no castelo ou ainda
em Londres, vou enviar esta carta em duplicata para ambos os lugares.

O navio foi comprado e equipado. Está ancorado, pronto para o mar.


Você jamais imaginaria ver uma escuna mais bonita – uma criança pode
velejá-la –, duzentas toneladas, nome: Hispaniola.
Eu a obtive por intermédio de meu velho amigo, Blandly, que demonstrou
ser realmente um sujeito do maior valor. Esse admirável camarada
literalmente escravizou-se a meu serviço; e assim, eu posso dizer, fez tudo
quanto era necessário em Bristol, assim que teve uma boa ideia do porto
para o qual navegávamos – quero dizer, a Ilha do Tesouro.

– Redruth – disse eu, interrompendo a leitura da carta. – O Dr. Livesey


não vai gostar nada disso. O Conde acabou falando, apesar das
recomendações.
– Bem; e quem tem mais direito? – resmungou o guarda-caça. – Não
faltava mais nada se o Conde não pudesse falar em nome do Dr. Livesey, é
o que eu penso.
Depois disso, eu desisti de fazer qualquer comentário e continuei lendo
até o fim:

Foi o próprio Blandly que encontrou o Hispaniola; e por meio das


negociações mais admiráveis, conseguiu fazer a compra por uma
verdadeira bagatela. Existe uma classe de homens em Bristol que tem um
preconceito monstruoso contra Blandly. Eles chegam ao ponto de declarar
que esta honesta criatura faria qualquer coisa por dinheiro, que o
Hispaniola era de sua propriedade e que ele mo vendeu por um preço
absurdamente alto – as calúnias mais transparentes. Nenhum deles ousa,
entretanto, negar os méritos do barco.
Por enquanto, não houve nenhum problema. Os trabalhadores,
naturalmente – os empregados do estaleiro e os outros –, trabalharam
muito lentamente e me aborreceram bastante; mas com o tempo, tudo se
resolveu. Foi a tripulação o que me deu mais problemas.
Eu queria uns vinte bons homens – para o caso de encontrarmos nativos,
piratas ou os odiosos franceses – e tive a maior dificuldade para conseguir
somente uma meia dúzia, até que o golpe de sorte mais espantoso me trouxe
justamente o homem de quem eu precisava.
Eu estava parado no tombadilho, quando, por um simples acidente,
comecei a conversar com ele. Descobri que era um velho marinheiro,
possuía uma taverna, conhecia todos os marujos de Bristol, tinha perdido a
saúde em terra firme, e queria um bom beliche, como cozinheiro, para pôr-
se novamente ao mar. Tinha manquitolado até ali naquela manhã, disse ele,
somente para poder sentir de novo o cheiro da água salgada.
Fiquei monstruosamente comovido – como você também ficaria – e, por
pura piedade, engajei-o no mesmo instante para ser o cozinheiro do navio.
Long John Silver é o seu nome; e ele perdeu uma perna; porém isso eu
considerei como uma recomendação, porque ele a perdeu na defesa de seu
país, quando servia sob as ordens do imortal Almirante Hawke. Ele nem
tinha pensão, Livesey! Imagine a época abominável em que vivemos!
Bem, senhor, eu pensei que tinha somente encontrado um cozinheiro, mas
de fato, tinha descoberto uma tripulação. Entre Silver e eu, reunimos em
poucos dias uma companhia dos marinheiros mais robustos que se pode
imaginar. Não é uma gente bonita, mas os rostos desses camaradas dizem
que têm um espírito indomável. Aposto que poderíamos lutar contra uma
fragata!
Long John até mesmo livrou-se de um ou dois dos seis ou sete que eu já
havia engajado. Em um momento, ele demonstrou-me que eles eram apenas
o tipo de lambazes de água doce que tínhamos de temer em uma aventura
de tal importância.
Estou gozando da saúde e disposição as mais magníficas, comendo como
um touro, dormindo como uma árvore, todavia não vou realmente apreciar
um momento, até que escute meus velhos panos alcatroados girando ao
redor do cabrestante. Para o mar, vamos! Para o diabo com o tesouro! É a
glória do mar que conquistou meu coração. Assim, Livesey, não perca mais
tempo: venha logo, se tem algum respeito por mim.
Mande o jovem Hawkins ir imediatamente avistar-se com sua mãe,
guardado por Redruth; e, depois, que os dois venham a toda velocidade
para Bristol.
John Trelawney
PÓS-ESCRITO – Eu não lhe contei que Blandly, que, a propósito, vai
mandar um navio de apoio atrás de nós se não aparecermos até o final de
agosto, descobriu um homem admirável para servir como Timoneiro. É um
homem muito reservado, o que lamento, mas, em todos os outros respeitos,
é um tesouro. Long John Silver desenterrou um homem muito competente
para o cargo de Imediato, um homem chamado Arrow. Eu tenho também
um Contramestre que sabe realmente comandar, Livesey; assim, as coisas
vão funcionar igual a um navio da Marinha Real a bordo da boa nau
Hispaniola.
Esqueci de contar-lhe que Silver é um homem de posses; soube, por
outras fontes, que ele possui conta em um banco e nunca sacou além do
saldo. Ele vai deixar sua esposa tomando conta da estalagem; e, uma vez
que ela é uma mulher de cor, um par de velhos solteirões, como você e eu,
pode ser desculpado se acreditarmos que é a esposa, tanto quanto a saúde,
que o envia de volta à vida errante.
J. T.

P. P. S. – Hawkins pode passar uma noite com sua mãe.


J. T.

Pode-se imaginar a excitação em que esta carta me deixou. Eu


transbordava de felicidade; e, se alguma vez eu desprezei um homem, foi o
velho Tom Redruth, que não fazia mais do que resmungar e lamentar-se.
Qualquer um de seus guarda-caças auxiliares teria alegremente trocado de
lugar com ele; mas não era essa a vontade do Conde; e a vontade do Conde
era lei entre eles. Ninguém, salvo o velho Redruth, teria ousado ao menos
resmungar.
Na manhã seguinte, ele e eu partimos a pé para o “Almirante Benbow” e
lá eu vi que minha mãe gozava de boa saúde e melhor disposição. O
Capitão, que por tanto tempo tinha sido uma causa de constante
desconforto, tinha ido para o lugar onde os malvados cessam de incomodar.
O Conde tinha mandado pintar a hospedaria toda, consertar a taverna e até
pintar a tabuleta de novo, e, além disso, acrescentou um pouco de
mobiliário – acima de tudo, uma linda poltrona para mamãe sentar-se,
enquanto atendia atrás do balcão de bebidas. Ele também tinha encontrado
um menino para servir como aprendiz, de tal modo que não lhe faltaria
ajuda, enquanto eu estivesse fora.
Foi ao ver aquele menino que eu compreendi, pela primeira vez, minha
verdadeira situação. Até aquele momento, eu tinha pensado nas aventuras
que se achavam à minha frente e nem um pouco no lar que estava deixando.
Mas então, ao ver aquele estranho desajeitado que ia ficar ali, em meu
lugar, ao lado de mamãe, tive meu primeiro ataque de choro. Acho que eu
tratei aquele menino pior que um cachorro, pois, como ele era novo no
trabalho, tive cem oportunidades de corrigi-lo e demonstrar-lhe meu
desprezo, e não perdi tempo para aproveitar-me de cada uma delas.
A noite passou e, no dia seguinte, após a refeição, Redruth e eu
estávamos caminhando novamente pela estrada. Dei adeus à mamãe e à
enseada onde tinha vivido desde que nascera; e ao velho e querido
“Almirante Benbow” – se bem que, depois de repintado, tinha ficado com
um aspecto bem diferente e já não me parecia mais tão querido. Um de
meus últimos pensamentos foi para o Capitão, que tantas vezes tinha
caminhado à beira da praia, com seu chapéu atirado para trás da cabeça, sua
face com a cicatriz de sabre e seu velho telescópio de bronze. No momento
seguinte, nós tínhamos dobrado a curva e meu velho lar saiu da vista.
A carruagem do correio nos apanhou ao entardecer, frente à hospedaria
“Royal Dutch”, que ficava junto à charneca. Eu fiquei apertado entre
Redruth e um velho cavalheiro robusto e, a despeito do rápido movimento e
do frio ar da noite, devo ter cochilado bastante desde o começo da viagem;
e depois dormi como um tronco, por montes e vales, parada após parada;
até que finalmente me acordei com uma batida nas costelas e abri os olhos
para descobrir que havíamos parado diante de um grande edifício em uma
rua da cidade; e que o dia já tinha nascido há muito tempo.
– Onde estamos? – eu perguntei.
– Em Bristol – disse Tom. – Desça.
Mr. Trelawney tinha tomado residência em uma estalagem perto das
docas, a fim de superintender o trabalho na escuna. Era para lá que
tínhamos agora de caminhar; e nosso caminho, para minha grande alegria,
seguia ao longo das docas e passava pela grande multidão de barcos de
todos os tamanhos, velames e nações. Em um deles, os marinheiros estavam
cantando enquanto trabalhavam; em outro, havia homens lá no alto, muito
acima de minha cabeça, pendurados a cordames que não me pareciam mais
grossos que fios de teia de aranha. Embora eu tivesse morado à beira da
praia toda a minha vida, parecia que nunca havia estado perto do mar até
então. O cheiro de alcatrão e de sal era novo para mim. Eu via as figuras de
proa mais maravilhosas, que tinham estado em oceanos muito distantes. E
via, além disso, muitos marinheiros velhos, com argolas nas orelhas e
barbas que se enrolavam em cachos, e tranças alcatroadas, e sua maneira
desajeitada e balouçante de caminhar, como se ainda estivessem no mar.
Ora, se eu tivesse visto o mesmo número de reis ou arcebispos, não teria
ficado mais encantado!
E eu mesmo ia lançar-me ao mar; ia para o mar em uma escuna, com um
contramestre que sabia dar ordens e marinheiros de tranças que cantavam;
ia para o mar em busca de uma ilha desconhecida a fim de procurar
tesouros enterrados!
Enquanto eu caminhava dentro deste sonho delicioso, chegamos
subitamente à frente de uma grande hospedaria e lá encontramos o Conde
Trelawney, vestido como um oficial da Marinha, em resistente tecido azul,
saindo pela porta com um sorriso no rosto e uma bela imitação do gingado
com que os marinheiros caminhavam.
– Aqui estão vocês – disse ele. – E o Doutor chegou a noite passada de
Londres. Bravo! A tripulação do navio está completa!
– Oh, senhor! – gritei eu. – Quando zarpamos?
– Quando? – disse ele. – Ora, amanhã!
CAPÍTULO 8
NA TABULETA DA “LUNETA MARÍTIMA”
Quando eu tinha acabado de fazer o desjejum, o Conde me entregou uma
nota endereçada a John Silver, que seria encontrado pela tabuleta da
“Luneta Marítima”, e disse-me que eu facilmente identificaria o lugar,
seguindo a linha das docas e mantendo os olhos bem abertos, até encontrar
uma pequena taverna cuja tabuleta mostrava um grande telescópio de
bronze. Eu parti, muito contente por esta oportunidade de ver mais barcos e
marinheiros, e fui achando meu caminho em meio a uma multidão de
pessoas, carroções e fardos, porque a doca se achava agora na hora de maior
movimento, e prossegui até encontrar a taverna em questão. Era um local de
diversão bastante alegre. A tabuleta fora pintada há pouco tempo, as janelas
tinham cortinas vermelhas limpas, e sobre o assoalho tinha sido espalhada
areia com todo o cuidado, conforme era o costume, para que as pessoas não
escorregassem. Havia uma rua de cada lado e abriam-se portas para ambas,
o que tornava a sala grande e baixa bastante clara, apesar das nuvens de
fumaça de tabaco.
Os fregueses eram, na sua maioria, homens do mar, e eles falavam tão
alto, que eu fiquei parado à porta quase com medo de entrar. Enquanto eu
estava esperando, um homem saiu de uma sala lateral e, à primeira vista,
tive certeza de que seria Long John. Sua perna esquerda tinha sido cortada
perto do quadril, e sob o ombro esquerdo ele trazia uma muleta que
manejava com maravilhosa destreza, pulando por toda a parte, como se
fosse um pássaro. Era muito alto e forte, com um rosto grande como um
pernil – feio e pálido, mas esperto e sorridente. Sem dúvida, ele parecia
estar muito bem-disposto, assobiando enquanto se movia por entre as
mesas, com uma palavra agradável ou um tapinha no ombro dos seus
fregueses mais apreciados.
Para lhe falar a verdade, desde a primeira menção de Long John na carta
do Conde Trelawney, tinha surgido um certo temor em minha mente de que
ele fosse o próprio marinheiro de uma perna só pelo qual eu havia
aguardado por tanto tempo no velho “Almirante Benbow”. Mas um único
olhar para o homem que estava diante de mim foi o suficiente. Eu tinha
visto o Capitão, e o Cão Negro e o cego Pew e achava que conhecia a
aparência de um bucaneiro – uma criatura muito diferente, de acordo com
minha maneira de pensar, daquele dono de taverna asseado e de
temperamento agradável.
Criei coragem imediatamente, cruzei o umbral e caminhei diretamente ao
lugar em que o homem se achava, apoiado na muleta e falando com um
freguês.
– É Mr. Silver, senhor? – indaguei eu, estendendo-lhe o bilhete.
– Sim, meu rapaz – disse ele. – Tal é o meu nome, sem a menor dúvida.
E quem poderá ser você?
Então ele viu a carta do Conde e deu-me a impressão de ter tido quase
um sobressalto.
– Oh! – disse ele, muito alto e oferecendo-me a mão. – Estou vendo.
Você é o nosso novo grumete. Muito prazer em conhecê-lo.
E ele segurou minha mão, em um aperto longo e firme.
Bem nesse instante, um dos clientes que estava sentado do lado mais
distante, ergueu-se de repente e dirigiu-se para a porta. Esta se achava bem
perto dele e, num momento, ele já estava na rua. Mas sua pressa atraiu
minha atenção e eu o reconheci com um único olhar. Era o homem de rosto
amarelado, a quem faltavam dois dedos, que tinha vindo primeiro ao
“Almirante Benbow”.
– Oh! – disse eu. – Parem esse homem! É o Cão Negro!
– Não dou a menor importância a quem ele seja – exclamou Silver. –
Mas ele não pagou a conta. Harry, corra atrás dele e pegue-o!
Um dos outros homens, que estava mais perto da porta, deu um salto e
pôs-se a correr atrás dele.
– Ainda que ele fosse o próprio Almirante Hawke, teria de pagar a conta
– exclamou Silver. E, então, soltando minha mão, ele perguntou:
– Quem você disse que ele era? Negro o quê?
– Cão Negro, senhor – disse eu. – Mr. Trelawney não lhe contou a
respeito dos piratas? Ele era um deles.
– Pois então era? – gritou Silver. – Em minha casa! Ben, corra e ajude
Harry! Um daqueles patifes, então? Era você que estava bebendo com ele,
Morgan? Venha até aqui.
O homem a quem ele chamou de Morgan – um marinheiro velho, de
cabelos grisalhos e rosto queimado de sol, da cor de carvalho antigo –
avançou com um jeito meio encabulado, torcendo nos dedos um rolo de
tabaco.
– Ora, Morgan – disse Long John austeramente –, você nunca tinha posto
os olhos antes nesse Cão – Cão Negro antes, tinha?
– Eu não, senhor – disse Morgan, fazendo uma espécie de continência.
– Você não sabia o nome dele, sabia?
– Não, senhor.
– Pelos poderes divinos, Tom Morgan, foi essa a sua sorte! – exclamou o
taverneiro. – Se você andasse por aí misturado com gente dessa espécie,
nunca mais punha os pés em minha casa, pode contar com isso. E o que é
que ele estava lhe dizendo?
– Eu nem sei direito – respondeu Morgan.
– E você chama de cabeça isso que tem sobre os ombros, ou é uma
bendita bigota? – gritou Long John. – Nem sabe direito, não é? Talvez você
nem saiba direito com quem estava falando, hein? Vamos lá, sobre o que ele
estava falando – viagens, capitães, barcos? Fale de uma vez! Sobre o que
era?
– Falávamos daquele castigo que existe, de passar alguém por baixo da
quilha, preso a uma corda.
– De passar pela quilha, era isso? Pois era um assunto muito adequado,
bem que vocês mereciam. Volte para seu lugar, você não passa de um
marinheiro de primeira viagem, Tom!
E então, enquanto Morgan retornava à sua cadeira, Silver acrescentou,
em um sussurro confidencial que me deixou cheio de orgulho:
– Tom Morgan é um homem muito honesto, só que é meio estúpido. – E
agora – prosseguiu ele, em voz alta –, vamos ver. Cão Negro? Não, não me
recordo de ter ouvido esse nome antes, tenho certeza que não. Entretanto,
pensando melhor, acho que já vi esse lambaz antes. Sim, ele costumava vir
aqui, junto com um mendigo cego, costumava, claro que sim!
– Deve ser isso mesmo – disse eu. – Eu conheci esse cego também. O
nome dele era Pew.
– Pois era! – gritou Silver, muito excitado. – Pew! Claro que era esse o
nome dele. Ah, ele parecia um tubarão, não parecia? Se nós capturarmos
agora esse Cão Negro, será uma boa notícia para o Capitão Trelawney!
Benjamin é um bom corredor, poucos marinheiros correm melhor do que
ele. Ele deve ser capaz de apanhá-lo bem depressa, pelos poderes divinos!
Ele falava de passar alguém pela quilha, não era? Pois bem, eu é que vou
passá-lo pela quilha!
Durante todo o tempo em que estava cuspindo estas frases, ele
manquitolava para cima e para baixo pela taverna, agarrado à muleta, dando
tapas nas mesas com a mão livre e apresentando um espetáculo de
indignação tão grande que teria convencido um juiz do Tribunal Old Bailey
ou um advogado de Bow Street. Minhas suspeitas tinham de novo
despertado, ao encontrar Cão Negro na “Luneta Marítima”; e eu observava
o cozinheiro com muito cuidado. Mas ele era muito experiente, estava
preparado e era esperto demais para mim; e, quando os dois homens
voltaram, meio sem fôlego, e confessaram que haviam perdido a pista no
meio da multidão, sendo repreendidos como dois ladrões, eu teria jurado
pela inocência de Long John Silver.
– Agora veja bem, Hawkins – disse ele. – Essa foi uma coisa
tremendamente desagradável para acontecer a um homem como eu, não
acha? Veja o Capitão Trelawney – o que ele vai pensar? Eu tenho aqui este
maldito filho da mãe sentado em minha própria casa, bebendo meu próprio
rum! Então chega você e me conta tudo, bem claro; e o que é que eu faço?
Deixo que ele fuja de nós todos, bem na frente de minhas lanternas de proa!
Agora, Hawkins, seja justo comigo diante do Capitão. Você é um rapaz, eu
sei, mas é muito esperto. Eu percebi isso no momento em que você entrou.
Agora, escute só: o que é que eu podia fazer, com este pedaço de madeira
velha que me serve de perna? Quando eu era um marinheiro de primeira
classe com a perna inteira, eu teria corrido ao lado dele, sim, lado a lado; e
lhe teria dado um bom par de sacudidas; mas agora...
E então, de repente, ele parou e seu queixo caiu, como se tivesse
lembrado de alguma coisa.
– A conta! – ele explodiu. – Três rodadas de rum! Ora essa, cortem
minha muleta, se eu não havia esquecido da conta!
E, caindo sentado em um banco, ele riu até que as lágrimas lhe rolaram
pelas faces. Eu não pude evitar de acompanhá-lo, e rimos juntos, gargalhada
após gargalhada, até que a taverna inteira nos acompanhou.
– Ora, eu não passo de um velho filhote de vaca marinha! – disse ele,
finalmente, secando as bochechas. – Você e eu vamos nos dar muito bem,
Hawkins, pois, pelo espírito do mar, eu deveria ser considerado um
grumete. Mas espere, que agora vamos sair. Não pode ficar assim. Dever é
dever, meus camaradas de rancho. Eu vou colocar meu velho tricórnio na
cabeça e vamos juntos ao Capitão Trelawney para relatar este negócio. Mas,
pense bem, esta é uma questão séria, jovem Hawkins, e nem você nem eu
vamos sair dela com grandes elogios. Você também não vai sair-se lá muito
bem. Não vai parecer muito esperto. Nenhum de nós dois vai passar por
esperto. Mas, pelos botões do meu casaco! Foi muito boa a história da
conta!
Ele começou a rir de novo, demonstrando tanto contentamento que,
embora eu não conseguisse achar tanta graça como ele, fui de novo
obrigado a participar de sua alegria.
Em nosso curto passeio ao longo das docas, ele demonstrou ser o mais
interessante dos companheiros, dando-me informações sobre os diversos
navios por que passávamos, dizendo qual era o seu velame, tonelagem e
nacionalidade; e explicando-me o trabalho que estava sendo realizado –
como um estava descarregando, o outro sendo carregado e um terceiro já
estava se aprestando para o mar; e, de vez em quando, contando-me
algumas anedotas sobre barcos ou marujos; ou repetindo alguma frase
náutica, até que eu a tivesse decorado perfeitamente. Comecei a perceber
que ali se achava um dos melhores companheiros para navegar.
Quando chegamos à estalagem, encontramos o Conde e o Dr. Livesey
sentados juntos, terminando uma jarra de cerveja com um brinde, antes de
subirem à escuna para uma visita de inspeção.
Long John contou-lhes a história do princípio ao fim, com grande
entusiasmo e a maior exatidão:
– Foi assim que aconteceu, não foi, Hawkins? – dizia ele, de vez em
quando, e eu o corroborava inteiramente.
Os dois cavalheiros lamentaram que Cão Negro tivesse fugido; mas
todos concordamos que não havia nada a fazer; e, depois de ter sido
cumprimentado, Long John pegou sua muleta e partiu.
– Toda a equipagem a bordo pelas quatro da tarde – gritou o Conde atrás
dele.
– Sim. Sim, senhor! – gritou o cozinheiro da saída.
– Bem, Conde – disse o Dr. Livesey –, eu não boto muita fé em suas
descobertas, em geral. Mas vou dizer-lhe uma coisa: esse Long John me
agrada.
– O homem é uma perfeita joia – declarou o Conde.
– E agora – acrescentou o Doutor –, Jim pode subir a bordo conosco, não
pode?
– É claro que pode – disse o Conde. – Pegue seu chapéu, Hawkins,
vamos ver o navio.

CAPÍTULO 9
PÓLVORA E ARMAS
O Hispaniola estava fundeado a uma certa distância e passamos por
figuras de proa e pela frente de muitos navios presos por cabos ao cais; e
estes, algumas vezes, ficavam pendurados e frouxos abaixo de nós,
enquanto outros balançavam bem esticados acima de nossas cabeças.
Finalmente chegamos ao lado de nosso barco e o imediato, Mr. Arrow, um
velho marujo bronzeado, com brincos nas orelhas e um olho vesgo, veio ao
nosso encontro e prestou continência no momento em que subimos ao
navio. Ele e o Conde pareciam muito amigos, mas eu logo observei que as
coisas não eram as mesmas entre Mr. Trelawney e o Capitão.
Este último era um homem de aspecto rude que parecia estar zangado
com tudo o que se passava a bordo, e logo iria nos dizer o porquê, pois tão
logo entramos na cabine, um marinheiro nos seguiu:
– O Capitão Smollett, senhor, pede para falar-lhe – disse ele.
– Estou sempre às ordens do Capitão. Mande-o entrar – disse o Conde.
O Capitão, que estava logo atrás de seu mensageiro, entrou em seguida; e
fechou a porta por trás de si.
– Bem, Capitão Smollett, o que nos tem a dizer? Está tudo bem, espero;
tudo nas melhores condições e pronto para navegar?
– Bem, senhor – disse o Capitão –, acho melhor falar claro; é o que
acredito, mesmo que corra o risco de ofender. Eu não gosto deste cruzeiro;
não gosto dos homens; e não gosto de meu imediato. Pronto, já disse o que
tinha a dizer.
– Talvez, senhor, não goste do navio? – inquiriu o Conde, muito zangado,
como pude ver.
– Não posso falar sobre isso, senhor, porque ainda não o experimentei –
disse o Capitão. – Parece-me uma embarcação adequada; mais do que isso
não posso dizer.
– Possivelmente, senhor, tampouco gosta de seu empregador? – disse o
Conde.
Mas aqui o Dr. Livesey interrompeu:
– Espere um pouco – disse ele. – Espere um pouco. Não adianta fazer
este tipo de perguntas, porque só podem produzir ressentimentos. O Capitão
falou demais; ou, talvez, tenha falado de menos; e sou obrigado a dizer que
desejo uma explicação de suas palavras. Você diz que não gosta deste
cruzeiro. Bem, por quê?
– Eu fui contratado, senhor, na base do que chamamos de ordens seladas,
a fim de conduzir este navio para o lugar que este cavalheiro desejar – disse
o Capitão. – Até aqui, está tudo bem. Mas agora eu descubro que cada
homem da tripulação sabe mais sobre a viagem do que eu. Não acho que
isso seja justo; o senhor acha?
– Não – disse o Dr. Livesey. – Não acho.
– A seguir – disse o Capitão –, fico sabendo que vamos em busca de um
tesouro – fico sabendo disso por intermédio de um membro de minha
própria tripulação, veja só! Agora, procurar tesouros é assunto muito
arriscado, eu nunca apreciei qualquer viagem atrás de tesouros e, acima de
tudo, eu não gosto de viagens secretas, especialmente quando (pedindo-lhe
desculpas, Mr. Trelawney) o segredo foi contado ao papagaio.
– O papagaio de Silver? – perguntou o Conde.
– É uma maneira de falar – disse o Capitão. – Quero dizer que soltaram a
língua aos quatro ventos. É minha crença que nenhum de vocês,
cavalheiros, sabe o tamanho da encrenca em que se meteu; mas eu lhes direi
o que penso disso: é uma questão de vida ou morte; e a corrida é apertada.
– Isto ficou bem claro e, ouso dizer, é bem verdade – replicou o Dr.
Livesey. – Nós assumimos um risco, mas não somos tão ignorantes como
você pensa. A seguir, você diz que não gosta da tripulação. Eles não são
bons marinheiros?
– Eu não gosto deles, senhor – retrucou o Capitão Smollett. – E acho que
a escolha dos homens deveria ter ficado a meu critério, já que estamos
falando nisso.
– Talvez devesse – concordou o Doutor. – Meu amigo deveria, talvez, tê-
lo levado junto para fazer a escolha, mas a desfeita, se houve uma, não foi
intencional. E o senhor não gosta de Mr. Arrow?
– Não, não gosto, senhor. Acredito que seja um bom marujo, mas ele se
mostra camarada demais com a tripulação para ser um bom oficial. Um
imediato deve ser reservado – não pode ficar bebendo junto com os
marinheiros comuns!
– Você quer dizer que ele bebe demais? – exclamou o Conde.
– Não, senhor – replicou o Capitão. – Somente que ele dá muita
familiaridade aos homens.
– Bem, e agora, para encurtar o assunto, Capitão? – perguntou o Doutor.
– Fale logo o que pretende dizer.
– Bem, cavalheiros, vocês estão determinados a continuar com este
cruzeiro?
– Determinados como ferro – respondeu o Conde.
– Muito bem – disse o Capitão. – Então, uma vez que já me escutaram
com toda a paciência, dizendo coisas que eu não posso provar, escutem
mais algumas palavras. Eles estão colocando a pólvora e as armas no
compartimento da proa. Ora, o senhor tem um bom espaço sob a cabine, por
que não as guarda aí? Este é o primeiro ponto. Além disso, o senhor está
trazendo quatro membros de seu próprio pessoal consigo e eles me dizem
que alguns deles devem ir para os beliches da proa. Por que não os aloja
aqui, ao lado da cabine? – segundo ponto.
– Alguma coisa mais? – quis saber Mr. Trelawney.
– Uma coisa mais – disse o Capitão. – Tem havido tagarelice demais.
– Muito além da conta – concordou o Doutor.
– Eu vou lhes dizer o que eu mesmo escutei – continuou o Capitão
Smollett. – Ouvi dizer que vocês têm o mapa de uma ilha, que há cruzes no
mapa, para mostrar onde se encontra o tesouro, e que a ilha fica... – E então,
ele declarou exatamente a latitude e a longitude que estavam registradas no
mapa.
– Mas eu nunca contei isso! – gritou o Conde. – Não falei a uma só
pessoa!
– Toda a tripulação sabe disso, senhor – retornou o Capitão.
– Livesey, deve ter sido você ou então Hawkins! – gritou o Conde.
– Não importa quem foi – replicou o Doutor. Eu pude perceber que nem
ele nem o Capitão deram muita importância aos protestos de Mr. Trelawney.
Nem eu, para falar a verdade, pois ele era muito falador. Todavia, em um
ponto eu acreditei que ele estivesse realmente falando a verdade: que não
tivesse revelado a ninguém a situação da ilha.
– Bem, cavalheiros – continuou o Capitão –, eu não sei quem tem este
mapa, mas quero deixar bem claro: ele deve ser mantido em segredo, não
deve ser mostrado nem mesmo a mim ou a Mr. Arrow. Caso contrário, eu
lhes pedirei que aceitem minha demissão.
– Eu entendo – disse o Doutor. – Você quer manter essa questão em
segredo e organizar uma guarnição na popa do navio, formada pela própria
gente de meu amigo, provida de todas as armas e pólvora a bordo. Em
outras palavras, você tem medo de um motim.
– Senhor – disse o Capitão Smollett. – Sem ter a intenção de ofendê-lo,
eu nego seu direito de pôr palavras na minha boca. Nenhum capitão, senhor,
teria justificativas para pôr-se ao mar, se tivesse razões suficientes para
afirmar isso. Quanto a Mr. Arrow, acredito que seja um homem totalmente
honesto; alguns dos homens também são; talvez o sejam todos, pelo muito
que sei. Mas sou responsável pela segurança do navio e pela vida de cada
homem que estiver a bordo. Eu vejo que as coisas, segundo minha maneira
de pensar, não estão totalmente corretas. E assim, eu lhe peço para tomar
certas precauções; ou então, permita-me demitir-me. Isso é tudo.
– Capitão Smollett – começou o Doutor, com um sorriso. – Você já
escutou a fábula da montanha e do rato? O senhor vai me perdoar, mas ouso
dizer que me faz recordar essa fábula. Quando o senhor entrou aqui, aposto
minha peruca como achei que pretendia dizer-nos muito mais.
– Doutor – disse o Capitão. – O senhor é um homem esperto. Quando eu
entrei aqui, pretendia ser liberado de meu cargo. Pelo que eu pensava, Mr.
Trelawney não estaria disposto a escutar um só palavra.
– E realmente, eu não escutaria – exclamou o Conde. – Se o Dr. Livesey
não estivesse aqui, eu o teria despedido. De qualquer forma, eu o escutei. E
farei tudo o que deseja, mas não faço boa opinião do senhor.
– Como queira, senhor – respondeu o Capitão. – Mas descobrirá que eu
cumpro o meu dever.
E com essa sentença, retirou-se.
– Trelawney – disse o Doutor –, ao contrário de minha impressão inicial,
acho que conseguiu pôr a bordo dois homens honestos – esse homem e John
Silver.
– Silver, se quiser – gritou o Conde. – Mas quanto a este grosseirão
intolerável, eu afirmo ser da opinião que sua conduta não é a de um homem,
não é a de um marinheiro e, definitivamente, não é inglesa.
– Bem – disse o Doutor –, vamos ver.
Quando chegamos ao tombadilho, os homens já haviam começado a
transportar as armas e a pólvora, cantando io-ho-hôs enquanto trabalhavam,
ao mesmo tempo que o Capitão e Mr. Arrow supervisionavam.
O novo arranjo agradou-me plenamente. A escuna inteira tinha sido
reformada, seis beliches tinham sido construídos na popa, na parte traseira
do porão principal. E este conjunto de cabines somente se ligava à cozinha
de bordo e ao castelo de proa2 por uma estreita passagem do lado de
bombordo. Pretendia-se originalmente que o Capitão, Mr. Arrow, Hunter,
Joyce, o Doutor e o Conde ocupassem esses seis alojamentos. Agora,
Redruth e eu ficaríamos com dois deles, enquanto o Capitão e Mr. Arrow
iriam dormir sob a cobertura da escada do tombadilho, que tinha sido
aumentada dos dois lados até se transformar no que poderia ser chamado de
cabine. Naturalmente, ainda era muito baixo, mas havia lugar para se
pendurar duas redes e até o Imediato parecia satisfeito com o arranjo.
Talvez ele mesmo tivesse tido suas dúvidas quanto à tripulação, mas estou
apenas adivinhando, porque, como se verá, não tivemos por muito tempo o
benefício de sua opinião.
Estávamos todos trabalhando muito, trocando o lugar da pólvora e
arrumando os beliches, quando os últimos homens, Long John entre eles,
chegaram em um escaler.
O cozinheiro trepou à amurada como se fosse um macaco, mas assim que
viu o que estávamos fazendo, reclamou:
– Ora essa, companheiros – disse ele –, o que é isso?
– Estamos trocando o lugar da pólvora, Jack3 – respondeu um dos
homens.
– Mas por que, pelos poderes celestes? – gritou Long John. – Se fizermos
isso, vamos perder a maré da manhã!
– São ordens minhas! – disse o Capitão, bruscamente. – Você pode
descer agora, homem. Os marujos vão querer uma refeição.
– Sim. Sim, senhor! – respondeu o cozinheiro. E, fazendo continência,
desapareceu logo em direção à cozinha.
– Esse é um bom homem, Capitão – disse o Doutor.
– Muito provavelmente, senhor – replicou o Capitão Smollett. – Devagar
com isso, homens, vamos com calma! – ele prosseguiu, dirigindo-se aos
camaradas que estavam transportando a pólvora; e então, subitamente, ao
observar que eu examinava o canhão giratório que levávamos na parte
central do navio, um longo canhão de bronze de nove polegadas: – Ei, você
aí, grumete! – gritou ele. – Saia já daí! Vá procurar o cozinheiro e arranje
algum trabalho.
E, enquanto eu obedecia apressadamente, ouvi-o dizer ao Doutor, em voz
bem alta:
– Não quero saber de favoritos em meu navio!
Garanto a vocês que depois disso eu concordei inteiramente com o
Conde e passei a odiar o Capitão profundamente.

CAPÍTULO 10
A VIAGEM
Passamos toda aquela noite muito ocupados, armazenando as coisas em
seus devidos lugares e recebendo botes cheios dos amigos do Conde, Mr.
Blandly e outros, vindos para desejar-lhe uma boa viagem e seguro retorno.
Nunca tivemos uma noite no “Almirante Benbow” em que eu tivesse de
trabalhar tanto como em minha primeira noite a bordo; e estava cansado
como um cachorro quando, um pouco antes da aurora, o Contramestre fez
soar o seu apito e a tripulação começou a segurar as barras do cabrestante.
Eu poderia estar sentindo o dobro do cansaço, contudo não teria deixado o
tombadilho. Era tudo tão novo e interessante para mim – os breves
comandos, a nota aguda do apito, os homens ocupados em seus lugares,
suas peles reluzindo ao brilho das lanternas do navio.
– Agora, Churrasqueiro4, cante-nos uma canção! – gritou uma voz.
– Cante aquela antiga! – gritou outra.
– Claro que sim, companheiros – disse Long John, que estava parado ali,
com a muleta sob o braço. E imediatamente iniciou a melodia e as palavras
que eu conhecia tão bem:
– Quinze homens sobre a mala do defunto
E então, a equipagem inteira fez coro:
– Io-ho-hô! – e uma garrafa de rum!
E ao terceiro “hô”! empurraram as barras diante deles com toda a força.
Mesmo nesse excitante momento, em um segundo eu estava de volta ao
velho “Almirante Benbow”; e me pareceu escutar a voz do Capitão
entrando no coro. Mas logo a âncora foi levantada; em seguida estava
pendurada e pingando água junto à proa; depois, as velas começaram a
enfunar-se e a terra e os navios passaram deslizando de ambos os lados; e
antes que eu tivesse tempo de me deitar para cochilar uma hora, o
Hispaniola tinha começado sua viagem para a Ilha do Tesouro.
Eu não vou relatar a viagem em detalhes. Foi relativamente próspera. O
navio demonstrou ser um bom navio; a tripulação era composta por homens
capazes; e o Capitão entendia perfeitamente de seu ofício. Porém, antes de
percorrermos toda a distância até a Ilha do Tesouro, duas ou três coisas
ocorreram que merecem ser contadas.
Em primeiro lugar, Mr. Arrow demonstrou ser ainda pior do que o
Capitão tinha temido. Ele não sabia comandar os homens e as pessoas
faziam com ele o que lhes agradava. Mas isso não era em absoluto o pior da
história, porque, depois de um dia ou dois no mar, ele começou a aparecer
no tombadilho com os olhos vidrados, as faces coradas, língua enrolada e
outros sinais de embriaguez. Vezes sem conta, o Capitão mandou-o descer
para sua cabine, e ele obedecia, cheio de vergonha. Algumas vezes, ele caía
e se cortava, de outras, ficava deitado o dia inteiro em seu pequeno beliche
de um dos lados da escada, mas, de vez em quando, ficava quase sóbrio por
um dia ou dois e tomava conta de seu trabalho pelo menos razoavelmente.
Enquanto isso se passava, não conseguíamos descobrir onde ele
arranjava a bebida. Esse era o mistério do navio. Por mais que o
observássemos, não podíamos fazer nada para resolver o problema, e
quando alguém lhe perguntava, ele somente ria, se estivesse bêbado, e, caso
estivesse sóbrio, negava solenemente que jamais bebesse outra coisa senão
água.
Ele não somente era inútil como oficial e uma má influência sobre os
homens, como estava claro que, nesse ritmo, ele logo se mataria; assim,
ninguém ficou muito surpreendido, nem lamentou muito, quando, em uma
noite escura, com o mar um pouco mais agitado que o comum, ele
desapareceu inteiramente e ninguém mais o viu.
– Caiu pela amurada! – disse o Capitão. – Bem, cavalheiros, isto nos
poupa o trabalho de pô-lo a ferros.
Porém agora nos encontrávamos sem um imediato, e seria necessário,
está claro, promover um dos homens. O contramestre, Job Anderson, era o
que tinha melhores possibilidades, e, embora mantivesse seu antigo título,
de certo modo já fazia o papel de imediato. Mr. Trelawney tinha experiência
no mar e seu conhecimento o tornava muito útil, pois frequentemente ficava
de vigília, quando o tempo estava bom. E o timoneiro, Israel Hands, era um
velho marinheiro cuidadoso, astuto e experimentado, que merecia confiança
em uma emergência, para resolver quase qualquer coisa.
Ele era um grande confidente de Long John Silver e, assim, a menção de
seu nome me leva a falar do cozinheiro de nosso barco, o Churrasqueiro,
como os homens o chamavam.
A bordo do navio, ele carregava sua muleta presa por uma tira de couro
ao redor de seu pescoço, a fim de ter as mãos tão livres quanto possível.
Valia a pena vê-lo firmando a ponta da muleta contra um tabique e, apoiado
nela, balançando a cada movimento do navio, prosseguir em seu trabalho,
como se estivesse cozinhando tranquilamente em terra firme. Ainda mais
estranho, era vê-lo atravessar o tombadilho quando o tempo estava ruim.
Ele tinha amarrado uma corda ou duas, para ajudá-lo a atravessar os
espaços mais largos – os marujos as chamavam de brincos de Long John, e
ele passava de um lado para outro, segurando-se com as mãos, um pouco
apoiando-se na muleta, um pouco puxando-a atrás de si pela correia, tão
depressa quanto qualquer outro homem poderia caminhar. Todavia, alguns
dos marinheiros que tinham velejado com ele em outros tempos
demonstravam pena por vê-lo nessa situação.
– Ele não é um homem comum, o Churrasqueiro – disse-me o timoneiro.
– Ele estudou bastante quando era jovem e sabe falar tão bem como um
livro, quando deseja; e como é corajoso! – um leão é nada, perto de Long
John! Eu já o vi lutar contra quatro e bater as cabeças de uns contra os
outros – e totalmente desarmado!
Toda a tripulação o respeitava e até obedecia. Ele tinha uma maneira
especial de falar com cada um; e de prestar a cada um serviços particulares.
Comigo, demonstrava-se invariavelmente gentil, e sempre contente de me
ver na cozinha, que ele mantinha tão limpa como um alfinete novo. Os
pratos ficavam pendurados e polidos e seu papagaio permanecia em uma
gaiola no canto.
– Venha, Hawkins – ele dizia. – Venha bater um papo com John.
Ninguém é mais bem-vindo que você, meu filho. Sente-se e escute as
notícias. Aqui está o Capitão Flint. Eu chamo meu papagaio de Capitão
Flint, em homenagem ao famoso bucaneiro – aqui está o Capitão Flint,
predizendo o sucesso de nossa viagem. Não estava, Capitão?
E o papagaio dizia, com grande rapidez: “Peças de oito! Peças de oito!
Peças de oito!”, até que você começasse a se indagar como ele não perdia o
fôlego, ou até que John tapasse a gaiola com seu lenço.
– Agora esse pássaro – ele dizia – tem, talvez, duzentos anos de idade,
Hawkins – a maioria deles vive para sempre, e, se alguém viu maior
maldade, deve ter sido no próprio Diabo. Ele velejou com England, o
grande Capitão England, o pirata. Esteve em Madagascar, em Malabar, no
Suriname, em Providence e em Portobello. Lá estava ele, quando tiraram do
fundo do mar os carregamentos de prata de navios afundados. Foi aí que
aprendeu a dizer “Peças de oito!” e não é de se espantar: encontraram
trezentas e cinquenta mil delas, Hawkins! Esteve na abordagem do navio do
Vice-Rei das Índias, ao largo de Goa. Esteve nesses lugares todos, mas se
você olhar para ele agora, parece um bebê. Mas você sentiu o cheiro da
pólvora, não sentiu, Capitão?
– Preparem-se para o combate! – berrava o papagaio.
– Ah, é um espertalhão, não é? – dizia o cozinheiro, e dava-lhe açúcar,
que tirava do bolso; e então o pássaro bicava os torrões e praguejava sem
parar, coisas tão horríveis que nem dá para acreditar. – É assim mesmo –
acrescentava John –, ninguém toca no piche sem se sujar, rapaz. Eis aqui o
meu pobre pássaro velho e inocente praguejando como fogo, e não
aprendeu nada, pode ter certeza disso, rapaz. Ele iria praguejar da mesma
forma, eu lhe garanto, na frente do capelão, se nós tivéssemos um. – E John
tocava a mecha de cabelo em sua testa, com aquele jeito solene que tinha, o
qual me fazia pensar que ele fosse o melhor dos homens.
Enquanto isso, o Conde e o Capitão Smollett mantinham um
relacionamento bastante distante. O Conde não fazia o menor segredo: ele
desprezava o Capitão. Este, por sua vez, nunca lhe falava, exceto para
responder a uma pergunta, e, então, dava-lhe uma resposta áspera, curta e
seca, sem desperdiçar uma só palavra. Ele admitia, quando pressionado, ter
estado errado a respeito da tripulação, que alguns deles eram tão prestativos
quanto ele desejava, e que todos vinham se comportando relativamente
bem. Quanto ao navio, tinha gostado plenamente dele:
– Ele merece mais confiança sob o vento do que um homem pode esperar
ter em sua própria esposa, senhor. Mas – acrescentava – tudo o que digo é
que ainda não voltamos para casa e eu continuo não gostando do cruzeiro.
O Conde, ao ouvir isso, dava-lhe as costas e marchava para cima e para
baixo pelo convés, com o queixo bem erguido.
– Se escutar mais uma só palavra desse homem – dizia ele –, eu vou
explodir!
Pegamos um período de mau tempo, o que somente demonstrou as boas
qualidades do Hispaniola. Todos os homens a bordo pareciam bem
contentes; e devia ser gente difícil de agradar, se estivessem insatisfeitos,
porque é minha crença de que nunca houve uma tripulação de navio mais
mimada desde que Noé se pôs ao mar. Tinham ração dupla de grogue pelo
menor motivo, volta e meia havia pudim, quando, por exemplo, o Conde
soubesse que era aniversário de algum dos homens, e havia sempre um
barril de maçãs aberto no tombadilho para que qualquer um se servisse à
vontade.
– Nunca vi bom resultado desse tipo de coisa – disse o Capitão ao Dr.
Livesey. – Mimar o pessoal do castelo da proa é o mesmo que criar
demônios. Essa é minha crença.
Mas, no final das contas, o barril de maçãs deu um bom resultado, como
se verá, porque, se não fosse por ele, não receberíamos nenhum aviso e
teríamos perecido na mão dos traidores.
Foi assim que aconteceu.
Nós tínhamos seguido os ventos da rota comercial5 até chegarmos ao
vento adequado para a ilha que procurávamos – não posso falar mais claro
do que isto –, e já estávamos nos aproximando dela, sempre vigilantes, dia e
noite. Era provavelmente o último dia de nossa viagem, segundo nossos
cálculos. Alguma hora naquela noite ou, no máximo, antes do meio-dia
seguinte, deveríamos avistar a Ilha do Tesouro. Estávamos indo em direção
sul-sudoeste e tínhamos uma brisa firme pelas costas em um mar calmo. O
Hispaniola avançava à velocidade constante, inclinando a proa às vezes,
com um borrifo de água salgada. Tudo corria perfeitamente bem; todos
estavam na mais corajosa disposição, porque nos achávamos agora perto do
fim da primeira parte de nossa aventura.
Ora, logo depois do pôr do sol, quando meu trabalho havia terminado, eu
estava a caminho de meu beliche quando me deu vontade de comer uma
maçã. Corri pelo convés. O pessoal de guarda estava todo na frente do
navio, esforçando-se para avistar a ilha. O homem no timão estava cuidando
a inflagem das velas e assobiando gentilmente para si mesmo; esse era o
único som, exceto o ruído que o mar fazia contra a proa e ao redor do casco
do navio.
Entrei de corpo inteiro no barril de maçãs e descobri que praticamente
tinham acabado; mas, sentado ali no escuro, com o marulhar das ondas e o
balanço do navio, eu já havia adormecido ou estava a ponto de dormir,
quando um homem pesado sentou-se perto, fazendo bastante barulho. O
barril sacudiu-se no momento em que o homem apoiou seus ombros contra
ele, e eu estava a ponto de saltar para fora, quando o homem começou a
falar. Era a voz de Silver, e antes que eu escutasse uma dúzia de palavras, já
decidira não me mostrar por nada deste mundo. Mas fiquei quieto lá,
tremendo e escutando, entre os extremos do medo e da curiosidade, porque
desta dúzia de palavras eu pude concluir que as vidas de todos os homens
honestos a bordo do navio dependiam somente de mim.

CAPÍTULO 11
O QUE EU ESCUTEI DENTRO DO BARRIL DE MAÇÃS
– Não, eu não – disse Silver. – Flint era o capitão, eu era o quartel-
mestre, antes de ter uma perna de pau. No mesmo combate em que eu perdi
a perna, o velho Pew perdeu os olhos. O homem que me amputou era um
mestre-cirurgião – esteve na universidade e tudo o mais –, sabia baldes de
latim e todas essas coisas. Mas ele foi enforcado como um cão, e secou ao
sol junto com os outros, em Corso Castle. Esses foram os homens de
Roberts, e a culpa foi de terem trocado o nome do navio várias vezes –
Royal Fortune e assim por diante. Agora, quando um navio recebe um
nome, esse é o nome que tem de ficar, é o que eu digo. Foi o que aconteceu
com o Cassandra, que nos trouxe a todos para casa em segurança, desde
Malabar, depois que England capturou o barco do Vice-Rei das Índias; e foi
a mesma coisa com o Walrus, o velho barco de Flint, que eu vi todo
gosmento de sangue vermelho e quase afundando de tanto ouro.
– Ah! – gritou outra voz, que pertencia ao marinheiro mais jovem a
bordo e estava evidentemente cheia de admiração. – Ele era a flor dos
marujos, esse Flint!
– Davis era um homem de verdade, também, segundo ouvi falar – disse
Silver. – Eu nunca velejei sob suas ordens; primeiro com England e depois
com Flint, esta é minha história. E agora vejam, por minha conta, por assim
dizer, eu consegui separar novecentas libras, enquanto estava com England,
e duas mil, no tempo em que passei com Flint. Nada mau para um homem
do castelo da proa – tudo seguro em um banco. Não é ganhar que importa, é
economizar o que se ganha, podem contar com isso. Onde estão todos os
homens de England agora? Eu não sei. Onde estão os de Flint? Ora, a
maioria deles está aqui a bordo e muito felizes quando ganham uma fatia de
pudim – estavam pedindo esmola antes disso, alguns deles. O velho Pew,
que tinha perdido a vista e podia ter criado vergonha com isto, gastou mil e
duzentas libras em um ano, como se fosse um lorde do Parlamento. Onde
está ele agora? Bem, está morto e embaixo da escotilha; mas por dois anos
antes disso, podem serrar minha perna de pau se não for verdade, o homem
andou passando fome. Ele pedia esmolas, roubava e até cortava gargantas,
mas mesmo assim, passava fome, pelos poderes divinos!
– Bem, não adiantou muito, no fim das contas – disse o jovem
marinheiro.
– Não adiantou muito para os tolos, pode contar com isso, botaram tudo
fora – gritou Silver. – Mas, agora, veja bem: você é jovem, sem dúvida, mas
é um rapaz esperto. Percebi isso da primeira vez que pus os olhos em você e
vamos ter uma conversa de homem para homem.
Você pode imaginar como me senti, quando eu escutei aquele patife
abominável dirigindo-se a outro com as mesmas palavras de adulação que
tinha usado comigo. Eu creio que, se pudesse, o teria matado através do
casco do barril. Enquanto isso, ele prosseguiu, sem a menor suspeita de que
estivesse sendo escutado.
– Nosso assunto é sobre cavalheiros da fortuna. Eles têm vidas difíceis e
se arriscam à forca, mas comem e bebem como galos de rinha, e quando
acaba um cruzeiro, ora, são centenas de libras em vez de centenas de
centavos em seus bolsos. Agora, a maior parte é gasta com rum e mulheres:
e lá vão eles de novo para o mar, só com as camisas no lombo. Mas não é
esse o curso que eu traço. Eu guardo tudo, um pouco aqui, um pouco ali, e
nunca ponho muito em um só lugar, a fim de não despertar suspeitas. Eu
tenho cinquenta anos, veja bem; assim que voltar deste cruzeiro, vou-me
estabelecer como um cavalheiro de verdade. E já é mais do que tempo, você
diz. Ah, mas eu tive uma vida fácil enquanto estive no mar; e nunca me
neguei nada que o coração desejasse; dormi no macio e comi do bom e do
melhor todos os meus dias, mas só quando estava no mar. E como foi que
eu comecei? Diante do mastro, dormindo no castelo de proa, igual a você!
– Bem – disse o outro –, mas todo esse dinheiro se perdeu agora, não foi?
Você não ousará mostrar o rosto em Bristol depois disto.
– Ora, onde você supõe que ele esteja? – perguntou Silver,
zombeteiramente.
– Em Bristol, nos bancos e em outros lugares – respondeu seu
companheiro.
– Estava – disse o cozinheiro. – Estava, quando levantamos âncora. Mas
a mulher velha já recolheu tudo agora. E a “Luneta Marítima” está vendida,
aluguel, crédito e cordame, e a mulher velha já viajou para me encontrar. Eu
podia dizer-lhe onde, porque tenho confiança em você, mas isso ia deixar
todos os outros caras com ciúme.
– E você pode confiar em sua dona? – indagou o outro.
– Cavalheiros da fortuna – retornou o cozinheiro – em geral tem pouca
confiança entre si, e com toda razão, pode contar com isso. Mas acontece
que eu tenho jeito para lidar com as coisas, tenho mesmo. Ainda está para
nascer um camarada que possa enrolar o velho John. Havia alguns que
tinham medo de Pew, e alguns que tinham medo de Flint, mas o próprio
Flint tinha medo de mim. Tinha medo de mim e sentia orgulho também. Era
a tripulação mais violenta do mar, a de Flint; o próprio Diabo teria medo de
sair ao mar com eles. Bem, agora vou lhe contar: eu não sou um gabola e
você viu por si mesmo como eu tenho facilidade de fazer amigos, mas
quando eu era quartel-mestre, os velhos flibusteiros de Flint podiam ser
tudo, menos cordeirinhos. E não havia nenhum que me desobedecesse. Ah,
você sabe onde pisa no barco do velho John!
– Bem, eu lhe digo agora – replicou o rapaz. – Eu não gostava nada da
tarefa, até que tive esta conversa com você, John. Mas acho que podemos
apertar as mãos.
– Você é um rapaz corajoso; e esperto também – respondeu Silver,
apertando-lhe a mão tão vigorosamente que o barril inteiro estremeceu. –
Nunca pus os meus olhos sobre uma figura mais bonita para ser um
cavalheiro da fortuna.
Nessa altura, eu já tinha começado a entender o significado de seus
termos. Por “cavalheiro da fortuna” ele claramente queria dizer, nada mais,
nada menos, que um pirata comum. A pequena cena que eu havia
surpreendido era o último ato da corrupção de um dos tripulantes honestos
– talvez o último que restasse a bordo. Mas quanto a esse ponto, eu logo
fiquei aliviado, pois Silver soltou um assobio curto e um terceiro homem
veio caminhando e sentou-se ao lado deles.
– Dick se resolveu – disse Silver.
– Oh, eu sabia que Dick se resolveria – respondeu a voz do timoneiro,
Israel Hands. – Não é nenhum idiota, o nosso Dick; e ele girou o tabaco na
boca e cuspiu. – Mas, olhe aqui – ele prosseguiu. – É isto que eu quero
saber, Churrasqueiro: por quanto tempo vamos ficar indecisos, andando
para cá e para lá, como um barco de mascate? Eu já aturei demais desse
Capitão Smollett; ele já me azucrinou por tempo demais, com mil trovões!
Eu quero entrar naquela cabine, quero mesmo. Quero pegar os picles e os
vinhos e as outras coisas que eles guardam por lá.
– Israel – disse Silver –, sua cabeça não serve para muita coisa e nunca
serviu. Mas você sabe escutar, acho eu, pelo menos tem orelhas bem
grandes. Agora, ouça o que eu digo: você vai dormir no castelo da proa e
vai passar trabalho, vai falar com educação e vai manter-se sóbrio, até que
eu dê as ordens; pode confiar em mim, filho.
– Bem, eu não disse que não confio, disse? – resmungou o timoneiro. – O
que eu digo é: quando? Isso é que eu digo.
– Quando? Pelos poderes divinos! – gritou Silver. – Bem, se você quer
saber, eu lhe direi quando. No último momento em que for possível,
percebe? É aí que nós vamos fazer a coisa. Nós temos um capitão de
primeira, o Capitão Smollett, dirigindo o navio para nós. Nós temos esse
Conde mais o Doutor, que tem um mapa e outras coisas. Eu não sei onde
está, você por acaso sabe? Você não sabe nada. Bem, então, eu pretendo
esperar até que o Conde e o Doutor encontrem o negócio e nos ajudem a
trazer tudo para bordo, com mil diabos! Então, nós veremos. Se eu tivesse
confiança em vocês todos, seus filhos da mãe, eu esperaria que o Capitão
Smollett nos trouxesse de volta metade do caminho até a Inglaterra, antes
de atacarmos.
– Ora, todos nós somos marujos experimentados, é o que eu penso –
disse o rapaz, cujo nome era Dick.
– Nós somos todos marujos do castelo da proa, você quer dizer – cortou
Silver. – Nós sabemos manter um curso, mas quem é que determina? É aí
que todos vocês, cavalheiros, me falham, do primeiro ao último. Pela minha
vontade, deixaria o Capitão Smollett nos levar até a rota dos ventos
comerciais, pelo menos, só assim não teríamos erros de cálculo para nos
desviar do caminho e nos deixar só com uma concha de água por dia. Mas
eu sei que tipo de gente vocês são. Sendo assim, eu vou acabar com eles na
ilha, tão logo o botim esteja a bordo; e vai ser uma pena. Mas vocês nunca
estão satisfeitos, exceto quando estão bêbados. Que um raio me parta, se
meu pobre coração não se entristece só de velejar com gente como vocês!
– Calma, Long John! – gritou Israel. – Quem é que está te contrariando?
– Ora, quantos veleiros de alto bordo, pensa você, eu já vi abordados? E
quantos belos rapazes secando ao sol no patíbulo? – gritou Silver. – E tudo
por causa da mesma pressa, pressa, pressa! Está me escutando? Eu já vi
uma coisinha ou duas no mar, vi, sim. Se ao menos você fosse capaz de
traçar o curso e pôr-se a barlavento, você andaria de carruagem, ah, andaria!
Mas você não sabe nada. Eu o conheço bem. Amanhã você se encherá de
rum; e depois, será enforcado.
– Todo mundo sabe que você gostava de fazer sermão, como um padre,
John, porém havia outros que sabiam distribuir o serviço e comandar tão
bem quanto você – disse Israel. – Só que eles gostavam também de se
divertir, gostavam, sim. Eles não eram tão altivos, de jeito nenhum, mas se
divertiam, eram camaradas alegres, todos eles.
– Ah, sim? – gritou Silver. – Bem, e onde eles se encontram agora? Pew
era bem desse tipo, e morreu como mendigo. Flint também era, e ele
morreu de tanto rum, em Savannah. Ah, eram uma bela tripulação, eles
eram! Mas onde estão agora?
– Mas – perguntou Dick – quando nós os pegarmos, o que vamos fazer
com eles?
– Isso que é um homem atilado! – gritou o cozinheiro, com admiração. –
Chegou direto ao assunto! Bem, o que é que você acha? Vamos deixá-los na
praia, abandonados? É isso que faria England. Ou vamos fazê-los em
pedaços, como se fossem porcos? É o que fariam Flint ou Billy Bones.
– Billy é que era o homem – disse Israel. – “Homens mortos não
mordem”, era o que ele dizia. Bem, agora ele está morto e sabe como é a
coisa. Se jamais um homem valente andou pelos portos, esse foi Billy.
– Tem toda a razão – disse Silver. – Valente e sempre pronto. Mas preste
atenção agora – eu também não sou mole. Eu posso me portar como um
cavalheiro, é o que dizem, mas desta vez a coisa é séria. Dever é dever,
companheiros. O meu voto é pela morte. Quando eu estiver no Parlamento,
andando na minha carruagem, não quero que nenhum desses camaradas que
estão no camarote retorne para casa, sem que ninguém espere, como o
Diabo entra nas orações. Vamos esperar, é o que eu digo: mas quando
chegar a hora, então toca a cortar!
– John – gritou o timoneiro. – Você é um homem de verdade!
– Deixe para falar, Israel, depois de me ver em ação – disse Silver. – Eu
só exijo uma coisa – exijo Trelawney. Vou torcer seu pescoço de bezerro e
arrancar-lhe a cabeça com minhas próprias mãos. Dick! – ele acrescentou,
interrompendo seu discurso –, agora levante-se, como um bom rapaz, e me
traga uma maçã para molhar minha garganta.
Você pode imaginar o terror em que eu fiquei! Eu teria pulado para fora
do barril e corrido o mais depressa possível, se tivesse forças para isso; mas
tanto meus membros como meu coração me traíram. Eu escutei enquanto
Dick começava a se erguer; e então, aparentemente, alguém o impediu, e a
voz de Hands exclamou:
– Ora, deixe disso! Você não vai comer essa porcaria empapada de
salsugem, John. Vamos tomar é um pouco de rum.
– Dick – disse Silver –, tenho confiança em você. Tenho uma torneira
posta no barrilete. Aqui está a chave; encontre um canecão e nos traga.
Horrorizado como estava, não pude deixar de pensar que devia ser assim
que Mr. Arrow conseguia a aguardente que o destruíra.
Dick não demorou muito, e, durante sua ausência, Israel falou
diretamente ao ouvido do cozinheiro. Só pude pegar uma palavra ou duas,
mas, mesmo assim, deduzi uma coisa importante, porque, entre outros
retalhos de conversa que tendiam ao mesmo propósito, uma frase inteira foi
audível: “Mais nenhum dos homens deles vai-se unir a nós”. Isto queria
dizer que ainda havia homens fiéis a bordo.
Quando Dick retornou, um após outro do trio tomou o canecão e bebeu –
da primeira vez, para terem boa sorte, da segunda, “em honra do velho
Flint”; e da terceira vez, ouvi a voz de Silver murmurando, quase como se
fosse uma canção: “Esta é para nós, e guardem seu pudim, um monte de
prêmios e bastante pra mim”.
Nesse exato instante, uma espécie de claridade caiu sobre mim dentro do
barril e, olhando para cima, vi que a lua tinha saído e estava cobrindo de
prata o alto da mezena e brilhando branca no bojo da vela dianteira. Quase
ao mesmo tempo, a voz do vigia soou: “Terra à vista!”.

CAPÍTULO 12
CONSELHO DE GUERRA
Houve uma grande correria ao longo do tombadilho. Pude escutar as
pessoas pulando para fora das cabines e do alojamento onde dormiam os
marinheiros. Em um instante, deslizei para fora do barril, escondi-me por
trás da vela dianteira e corri em direção à popa, surgindo na parte aberta do
convés a tempo de me juntar a Hunter e ao Dr. Livesey em sua corrida para
a proa.
Todos os marinheiros já se haviam congregado lá. Um cinto de nevoeiro
tinha se erguido quase simultaneamente com o aparecimento da lua. Para o
lado do sudoeste, avistamos duas pequenas colinas, separadas por mais ou
menos um par de milhas; e, erguendo-se por trás de uma delas, uma terceira
colina mais alta, cujo pico ainda estava enterrado no nevoeiro. Todas três
tinham um aspecto cônico e íngreme.
Foi tudo o que vi, quase em um sonho, pois ainda não havia me
recuperado do terrível medo de um minuto ou dois atrás. Escutei a voz do
Capitão Smollett, dando ordens. O Hispaniola foi desviado um par de
pontos na direção do vento; e agora seguia um curso que o desviava um
tanto da ilha, deixando-a do lado leste.
– E agora, homens – disse o Capitão, quando o curso estava demarcado
–, algum de vocês já viu essa terra à frente?
– Eu já, senhor – disse Silver. – Parei aqui uma vez para pegar água, em
um mercante no qual eu era cozinheiro.
– A ancoragem fica ao sul, por detrás de uma ilhota, imagino? – indagou
o Capitão.
– Sim, senhor. É a Ilha do Esqueleto, assim é que chamam. Houve uma
época em que era um dos valhacoutos preferidos dos piratas; e um
marinheiro que tínhamos a bordo sabia todos os nomes dela. Aquela colina
ao norte, eles chamavam de Colina do Mastro Dianteiro; há três colinas,
uma atrás da outra, indo em direção ao sul, chamavam de Mastro Dianteiro,
Mastro Principal e Mezena, senhor. Mas a Principal – aquela grande com a
nuvem –, eles geralmente chamavam de Monte da Luneta, em razão de um
ponto de vigia que costumavam manter enquanto faziam a limpeza da
ancoragem, porque era lá que eles costumavam querenar seus navios,
senhor, com sua licença.
– Eu tenho um mapa aqui – disse o Capitão Smollett. – Veja se esse é o
lugar.
Os olhos de Long John pareciam queimar nas órbitas, quando ele pegou
o mapa, mas, pelo aspecto novo do papel, vi que ele ia desapontar-se.
Aquele não era o mapa que havíamos encontrado no baú de Billy Bones,
mas uma cópia acurada, completa em todos os detalhes – nomes, alturas e
resultados das sondagens –, com a única exceção das cruzes vermelhas e
das anotações. Por maior que fosse a sua decepção, Silver teve força de
vontade para ocultá-la.
– Sim, senhor – disse ele. – Este é o lugar, com certeza; e está muito bem
desenhado. Quem terá feito esse mapa, imagino eu? Os piratas eram
ignorantes demais, eu acho. Sim, está bem aqui: “O Ancoradouro do
Capitão Kidd” – exatamente o nome que meu companheiro de tripulação
me disse. Há uma forte corrente indo para o Sul e depois vira para o Norte,
na costa oeste. Tem toda a razão, senhor – disse ele. – Deve ter cuidado com
o vento e manter uma certa distância da ilha, se for a sua intenção fundear e
querenar, mas não há lugar melhor para isso nestas águas todas.
– Muito obrigado, homem – disse o Capitão Smollett. – Depois pedirei
sua ajuda de novo. Agora, pode ir.
Eu fiquei surpreendido com a frieza com que John confessou seu
conhecimento da ilha: e admito que fiquei um tanto apavorado, quando o vi
aproximar-se de mim. Ele não sabia, é claro, que eu tinha escutado suas
declarações de dentro do barril de maçãs; e todavia eu tinha, a essa altura,
tomado um tal horror à sua crueldade, duplicidade e poder sobre os
marinheiros, que mal pude ocultar um estremecimento quando ele colocou a
mão em meu braço.
– Ah! – disse ele –, eis um belo lugar, esta ilha – um belo lugar para um
rapaz descer à praia. Dá para se tomar banho, trepar em árvores, caçar uns
cabritos, e você vai correr por essas colinas como se também fosse um
cabrito. Ora, eu me sinto jovem de novo. Quase me esqueci de minha perna
de pau. É uma coisa muito agradável ser jovem e ter os dez dedos dos pés,
pode ter certeza disso. Quando você quiser sair para explorar um pouco,
simplesmente peça ao velho John e ele vai preparar um bom lanche para
você levar.
E, batendo em meu ombro da maneira mais amigável, ele manquejou em
frente e desceu.
O Capitão Smollett, o Conde e o Dr. Livesey estavam conversando juntos
no tombadilho superior e, ansioso como eu estava para contar minha
história, não ousei interrompê-los abertamente. Enquanto eu ficava parado
ali, rebuscando meus pensamentos a fim de encontrar uma provável excusa,
o Dr. Livesey chamou-me para seu lado. Ele tinha deixado seu cachimbo no
camarote e, sendo escravo do tabaco, queria que eu fosse buscá-lo; mas,
assim que eu estive perto o bastante para falar com ele sem que me
escutassem, explodi imediatamente:
– Doutor, deixe-me falar. Leve o Capitão e o Conde para o camarote e, de
lá, arranje algum pretexto para mandar-me chamar. Tenho notícias terríveis!
Por um instante o Doutor mudou de expressão, mas, no momento
seguinte, já havia reassumido o controle.
– Muito obrigado, Jim! – disse ele, bem alto. – É só isso que eu queria
saber.
Ele falou como se tivesse feito uma pergunta e eu houvesse respondido.
E, então, girou nos calcanhares e voltou-se novamente para os outros
homens. Eles falaram juntos por algum tempo e, embora nenhum deles
desse sinais de surpresa, ou erguesse a voz, ou sequer assobiasse, ficou bem
claro que o Dr. Livesey tinha-lhes comunicado meu pedido; pois, no
momento seguinte, o Capitão deu uma ordem a Job Anderson e toda a
tripulação foi chamada ao convés.
– Meus rapazes – disse o Capitão Smollett –, tenho uma palavra a dizer-
lhes. Esta terra que avistamos é o lugar para o qual navegávamos. Mr.
Trelawney, que é um cavalheiro muito generoso, como todos sabemos,
acabou de fazer-me uma pergunta ou duas, e eu tive o prazer de dizer-lhe
que cada homem a bordo havia cumprido o seu dever e eu mesmo não
poderia ter exigido mais. Assim, nós vamos descer à sua cabine para beber
à saúde e sorte de todos vocês, enquanto vocês receberão um pouco de
grogue para beber à nossa. Eu vou lhes dizer o que penso disso: acho que
foi muito gentil da parte dele. E, se vocês pensam do mesmo modo que eu,
vão dar um grande aplauso marítimo para o cavalheiro responsável.
Seguiu-se o aplauso – é claro que eles aplaudiriam, mas soou tão
caloroso e sincero, que eu confesso que dificilmente poderia acreditar que
partia dos mesmos homens que estavam conspirando para derramar nosso
sangue.
– Mais um hurra para o Capitão Smollett – gritou Long John, quando o
primeiro tinha esmorecido.
E, novamente, eles aplaudiram com todo o entusiasmo.
Enquanto duravam os aplausos, os três cavalheiros desceram e, daí a
pouco, veio um recado informando que desejavam que Jim Hawkins
descesse ao camarote principal.
Encontrei os três sentados ao redor da mesa com uma garrafa de vinho
espanhol e algumas passas de uva sobre ela; o Doutor fumava às baforadas,
com a peruca no colo; isso, eu sabia, era um sinal de que se achava agitado.
A janela que dava para a popa estava aberta, porque era uma noite quente;
via-se a lua brilhando na esteira do navio.
– Agora, Hawkins – disse o Conde –, se você tem alguma coisa a dizer,
fale de uma vez.
Eu fiz o que me mandavam: resumindo o quanto era possível, contei
todos os detalhes da conversa de Silver. Ninguém me interrompeu, até que
eu terminasse, nem qualquer um dos três fez o menor movimento; porém
conservaram os olhos em meu rosto do princípio ao fim.
– Jim – disse-me o Dr. Livesey. – Pegue uma cadeira e sente-se.
Eles fizeram com que me assentasse à mesa com eles, serviram-me um
copo de vinho, encheram minhas mãos com passas de uva; e todos três, um
após o outro, fazendo-me um cumprimento, beberam à minha saúde, à sua
obrigação para comigo, por minha sorte e coragem.
– Agora, Capitão – disse o Conde –, vejo que tinha razão e eu estava
errado. Reconheço que sou um asno e ponho-me às suas ordens.
– Não foi mais um asno do que eu, senhor – retorquiu o Capitão. – Eu
jamais ouvi falar de uma tripulação que pretendesse amotinar-se sem
mostrar sinais disso antes, pois qualquer homem com olhos em sua cabeça
pode bem ver que se comportam mal e tomar as providências necessárias.
Mas esta tripulação – acrescentou ele – realmente me enganou.
– Capitão – disse o Doutor –, com sua permissão, há aquele Silver. Um
homem realmente notável.
– Ele ficaria notavelmente bem em uma verga de forca, senhor – replicou
o Capitão. – Mas isto tudo é conversa que não conduz a nada. Eu vejo três
ou quatro pontos importantes; e, com a devida permissão de Mr. Trelawney,
vou citá-los um por um.
– O senhor é o capitão: é o senhor quem deve falar – disse Mr.
Trelawney, com magnificência.
– Primeiro ponto – começou Mr. Smollett. – Temos de prosseguir, porque
não podemos retornar, Se eu desse ordem para virar de bordo, iam rebelar-
se imediatamente. Segundo ponto, nós ainda temos tempo – pelo menos, até
que o tesouro seja encontrado. Terceiro ponto, há alguns marinheiros fiéis.
Agora, senhor, vamos ter de brigar mais cedo ou mais tarde, e o que eu
proponho é segurar a ocasião pelo topete, como diz o ditado, e iniciar a
briga no dia em que eles menos esperem. Podemos contar, suponho eu, com
os criados de sua própria casa, Mr. Trelawney?
– Como se fossem eu mesmo – declarou o Conde.
– Três – contou o Capitão. – Conosco fazem sete, contando com
Hawkins. E, agora, quanto aos marinheiros honestos?
– Provavelmente, os próprios homens de Trelawney – disse o Doutor. –
Aqueles que ele escolheu sozinho, antes de cair nas mãos de Silver.
– Nem esses – replicou o Conde. – Hands era um dos meus.
– Eu realmente pensava que podia confiar em Hands – acrescentou o
Capitão.
– E pensar que todos eles são ingleses! – explodiu o Conde. – Senhor, eu
acharia coragem em meu coração para fazer explodir o navio!
– Bem, cavalheiros – disse o Capitão. – O melhor que posso dizer não é
muito encorajador. Devemos disfarçar bem, com sua permissão; e parecer
que estamos muito entusiasmados. Eu sei que é difícil portar-se assim. Seria
mais agradável iniciar a luta. Mas não podemos fazer nada até sabermos
quem está no nosso lado. Disfarcem e finjam que não sabem de nada, este é
meu conselho.
– O Jim – disse o Doutor – pode nos ajudar mais que qualquer outro. Os
homens ficam bem à vontade perto dele e ele é um rapaz esperto e percebe
tudo.
– Hawkins, ponho toda a minha confiança em você – acrescentou o
Conde.
Com tudo isso, eu comecei a sentir-me bastante desesperançado, pois me
achava totalmente inerme; todavia, por um estranho conjunto de
circunstâncias, foi realmente por mim que veio a segurança. Mas até então,
por mais que conversássemos, havia somente sete homens a bordo que
mereciam confiança, de um total de vinte e seis; e destes sete, um era
apenas um menino, de modo que os homens adultos de nosso lado eram seis
contra dezenove deles.
2 Nos grandes veleiros do século XVIII, havia duas construções acima do tombadilho: o castelo da
popa, onde ficavam os oficiais, e o castelo da proa, onde se alojavam os marinheiros comuns, motivo
porque “os homens que ficam diante do mastro” ou “os homens do castelo da proa” eram expressões
correntes para designar os marinheiros sem graduação. (N.T.)

3 “Jack” era, na época (e, em alguns lugares, até hoje), uma gíria náutica significando simplesmente
“marinheiro”, que poderia ser aplicada a qualquer um. (N.T.)
4 O apelido de Silver era “Barbecue” (Churrasco), por ele ser o cozinheiro, termo que decidimos
traduzir por “Churrasqueiro”. (N.T.)
5 Os ventos alísios. (N.T.)
PARTE III
MINHA AVENTURA NA PRAIA

CAPÍTULO 13
COMO EU COMECEI MINHA AVENTURA NA PRAIA
A aparência da ilha, quando eu subi ao tombadilho na manhã seguinte,
estava totalmente diferente. Embora a brisa tivesse cessado completamente,
tínhamos avançado muito durante a noite e agora estávamos em uma
calmaria, cerca de meia milha ao sudoeste da parte baixa da costa oriental.
Bosques acinzentados cobriam boa parte da superfície. Esta coloração
parelha era sem dúvida quebrada por faixas de areia amarelada nas terras
mais baixas; e também por muitas árvores altas, da família dos pinheiros,
que se erguiam muito acima das outras – algumas sozinhas, outras em
pequenos bosques; porém a coloração geral era uniforme e triste. As colinas
erguiam-se muito acima da faixa de vegetação, em espiras de rocha nua.
Todas tinham formas estranhas; e a Luneta do Marinheiro, que era uns
noventa a cento e vinte metros mais alta que as outras elevações da ilha,
tinha do mesmo modo a mais estranha configuração, erguendo-se íngreme
quase de todos os lados; e então era, subitamente, cortada no topo, como se
fosse um pedestal para colocar uma estátua.
O Hispaniola estava formando marolas contra a corrente do mar. Os
mastros auxiliares estavam rangendo contra as polés e o leme batia para cá
e para lá, com o navio inteiro estalando, gemendo e sacolejando como um
grande tear. Eu tive de me agarrar com firmeza ao patarrás do brandal, e o
mundo girava loucamente ao meu redor, pois, embora eu já fosse
relativamente um bom marinheiro, quando fazia bom tempo, este negócio
de ficar parado e ao mesmo tempo girar como uma garrafa era uma coisa
que eu ainda não havia aprendido a suportar sem um certo enjoo,
especialmente de manhã, com o estômago vazio.
Talvez fosse isso – talvez fosse o aspecto da ilha, com seus bosques
cinzentos e melancólicos e espiras de rocha bruta; e as ondas, que podíamos
tanto ver como escutar, batendo contra a costa íngreme –, embora o sol
estivesse brilhante e quente e as aves de arribação pescando e guinchando
ao nosso redor. Qualquer um teria se sentido feliz em descer à praia, depois
de permanecer por tanto tempo no mar, mas meu coração estava pequeno e,
a partir daquele primeiro olhar, passei a odiar a Ilha do Tesouro.
Durante toda a manhã, tivemos à nossa frente um trabalho estafante, pois
não havia sinal de vento e os escaleres tiveram de ser baixados e tripulados
a fim de rebocarem o barco à espia, durante três ou quatro milhas, passando
além do canto da ilha, subindo pela passagem estreita até o ancoradouro por
trás da Ilha do Esqueleto. Eu fui voluntário para um dos escaleres, onde,
naturalmente, a minha força não servia para nada. O calor era sufocante e os
homens resmungavam ferozmente enquanto remavam. Anderson estava no
comando de meu escaler e, em vez de chamar a tripulação à ordem, ele
resmungava ainda mais alto que os outros.
– Bem – disse ele, com uma praga –, não vai ser para sempre.
Eu considerei isso um mau sinal, pois até aquele dia os homens haviam
realizado suas tarefas com ânimo e disposição. No entanto, a própria visão
da ilha parecia haver relaxado as correias da disciplina.
Por todo o caminho, Long John tinha ficado parado junto ao timoneiro e
guiado o navio. Ele conhecia a passagem como a palma de sua mão; e,
embora o homem que media as braças encontrasse em toda parte maior
profundidade do que dizia no mapa, John não hesitou uma só vez.
– Há uma contracorrente forte com a vazante – disse ele. – Esta
passagem aqui parece ter sido escavada, por assim dizer, com uma enxada.
Nós fundeamos justamente no ponto em que a âncora estava desenhada
no mapa, cerca de um terço de milha náutica (uns seiscentos metros) de
cada praia, com a ilha principal de um lado e, do outro, a ilhota que
chamavam de Ilha do Esqueleto. O fundo do mar estava recoberto de areia
limpa. A queda de nossa âncora ergueu nuvens de pássaros, girando e
piando acima dos bosques; mas, em menos de um minuto, eles haviam
descido de novo e tudo estava silencioso outra vez.
O lugar era inteiramente protegido pela terra, cercado de bosques, cujas
árvores desciam até a marca da maré alta, as praias eram quase lisas e o
topo das colinas estava disposto ao redor e a uma certa distância, como uma
espécie de anfiteatro, uma aqui, outra ali. Dois riozinhos, que se
espraiavam, formando quase dois atoladouros, esvaziavam-se nesta laguna,
como poderia ser chamada, e a folhagem ao redor desta parte da praia tinha
uma espécie de brilho venenoso. Olhando do navio, não podíamos ver nada
da casa ou da paliçada que apareciam no mapa, porque estavam
profundamente enterradas entre as árvores; e, se não fosse por esse mesmo
mapa que tínhamos muito bem guardado no camarote, poderíamos pensar
que éramos os primeiros a ancorar ali, desde que a ilha surgira do mar.
Não havia uma só lufada de ar em movimento, nem um som, exceto o da
arrebentação trovejando a cerca de meia milha de distância ao longo das
praias e contra os rochedos. Havia um cheiro estagnado peculiar perto do
ancoradouro – um cheiro de folhas em decomposição e troncos
apodrecidos. Eu observei o Doutor fungando e franzindo o nariz, como
alguém que tivesse cheirado um ovo podre.
– Não sei a respeito de tesouros – disse ele. – Mas aposto minha peruca
que há febres por aqui.
Se a conduta dos homens tinha sido alarmante nos escaleres, tornou-se
realmente ameaçadora quando retornaram ao navio. Eles se atiraram pelo
tombadilho, resmungando e conversando em voz baixa. A menor ordem era
recebida por expressões pesadas e obedecida de má vontade e com desleixo.
Mesmo os poucos marinheiros honestos deviam ter pegado a infecção, pois
não havia um único homem a bordo que repreendesse os outros. Um motim,
estava claro, pairava sobre nós como uma nuvem de tempestade.
E não fomos somente nós, o grupo do camarote, que percebemos o
perigo. Long John esforçava-se o máximo que podia, indo de grupo em
grupo, dando conselhos; de fato, ninguém poderia ter dado um melhor
exemplo. Ele realmente superou a si próprio em disposição e civilidade,
enquanto distribuía sorrisos a todos. Se uma ordem fosse dada, John se
agarrava à sua muleta em um instante, soltando o mais alegre “Sim; sim,
senhor” do mundo, e, quando não havia mais nada a fazer, ele cantava uma
canção após outra, como que para disfarçar o descontentamento do resto.
De todas as características melancólicas daquela tarde desagradável, a
óbvia ansiedade de Long John me pareceu a pior.
Realizamos um conselho no camarote.
– Senhor – disse o Capitão –, se eu arriscar outra ordem, o navio inteiro
vai se levantar contra nós. O senhor vê, a coisa é assim: eu recebo uma
resposta grosseira, não é mesmo? Bem, se eu respondo à altura, em dois
segundos eles estarão puxando as facas; se eu não respondo, Silver logo vai
desconfiar de que alguma coisa não anda bem, e o jogo termina. Se quer
saber, só temos um homem em quem podemos confiar.
– E quem é? – perguntou o Conde.
– O próprio Silver – retorquiu o Capitão. – Ele está tão ansioso quanto
você e eu para acalmar as coisas. Isto é coisa passageira: logo ele vai
conversar com eles e fazer com que mudem de disposição, se tiver uma
oportunidade. O que eu proponho fazer é dar-lhe essa chance. Vamos dar
aos homens uma tarde na praia. Se todos eles forem, ora, vamos combater e
impedir que voltem ao navio. Se nenhum quiser ir, bem, então vamos
defender o camarote e Deus proteja quem está com a razão. Se alguns
forem e outros ficarem, então, senhor, pode marcar minhas palavras, Silver
trará de volta os que forem à praia como um bando de cordeirinhos.
Ficou decidido assim: distribuíram-se pistolas carregadas a todos os
homens de confiança, Hunter, Joyce e Redruth foram informados do
segredo e receberam a notícia com menos surpresa e melhor espírito do que
tínhamos esperado, e então o Capitão subiu ao tombadilho e dirigiu-se à
tripulação.
– Meus rapazes – disse ele –, tivemos um dia quente e todos estão
cansados e desanimados. Um passeio em terra não vai fazer mal a ninguém.
Os escaleres ainda estão na água; vocês podem pegar os remos e os que
quiserem podem ir passar a tarde na praia. Darei um tiro de canhão meia
hora antes do pôr do sol.
Eu acredito que aquele bando de tolos pensava que ia topar com tesouros
assim que chegasse à praia, pois todos eles deixaram o amuo no mesmo
momento, com uma saudação tão alta que um eco ribombou nas colinas
distantes e fez os pássaros revoarem e piarem ao redor do ancoradouro.
O Capitão era esperto demais para permanecer à vista. Desapareceu do
convés em um momento, deixando que Silver arranjasse a expedição, no
que acho que procedeu muito bem. Se ele permanecesse no tombadilho, não
poderia mais fingir que não entendia a situação. Estava claro como o dia.
Silver era o verdadeiro capitão, mas tinha uma tripulação profundamente
rebelde. Os marinheiros honestos – e logo descobrimos que ainda havia
alguns a bordo – devem ter sido bastante estúpidos. Ou, antes, suponho que
a verdade fosse esta: todos os marinheiros foram afetados pelo exemplo dos
cabeças da rebelião – só que alguns foram mais afetados do que os outros.
Uns, sendo por natureza bons camaradas, não poderiam ser liderados nem
empurrados mais além. Uma coisa é mostrar preguiça e má vontade, outra,
muito diferente, é tomar um navio e matar homens inocentes.
Enfim, a expedição foi preparada. Seis camaradas iam ficar a bordo; e os
treze restantes, inclusive Silver, começaram a embarcar.
Foi então que surgiu em minha cabeça a primeira de uma série de ideias
malucas que contribuíram em muito para salvar nossas vidas. Se seis
homens haviam ficado por ordem de Silver, estava claro que nosso lado não
podia tomar e defender o navio; do mesmo modo, se só haviam ficado seis,
também estava claro que o grupo do camarote não precisava de minha
assistência por algum tempo. Imediatamente me ocorreu a ideia de ir à
terra. Em um impulso, pulei a amurada e me enrosquei na parte dianteira do
barco mais próximo, quase ao mesmo momento em que o empurraram com
os remos contra o costado do navio.
Ninguém prestou atenção em mim, somente o remador da proa disse:
– É você, Jim? Conserve a cabeça baixa.
Porém Silver, que estava no outro barco, lançou-me um olhar aguçado e
chamou para ver se era eu mesmo que havia descido, e a partir desse
momento, comecei a lamentar o que tinha feito.
As tripulações jogaram carreira a fim de ver quem chegava primeiro à
praia, mas o barco em que eu estava tinha saído um pouco antes e, sendo ao
mesmo tempo o mais leve e o melhor tripulado, lançou-se muito à frente do
outro; e a proa havia chegado entre as árvores da praia e eu já havia
agarrado um galho para me balançar para fora, mergulhando no mato mais
próximo, enquanto Silver e o resto ainda estavam a uns noventa metros
atrás.
– Jim, Jim! – eu o ouvi gritar.
Mas, como se pode imaginar, não dei a menor atenção, e pulando,
escondendo-me e cortando por entre os arbustos, corri em frente até não
poder mais.

CAPÍTULO 14
O PRIMEIRO GOLPE
Eu estava tão contente por ter fugido de Silver, que comecei a gostar de
estar ali e a olhar com interesse para a estranha terra em que me encontrava.
Eu havia atravessado um trecho meio alagado, cheio de salgueiros,
juncos e estranhas árvores das regiões pantanosas, de um tipo que nunca
vira antes, e tinha chegado à beira de uma região ondulante e arenosa, com
cerca de uma milha de comprimento, pontilhada por alguns pinheiros e um
grande número de árvores contorcidas, parecidas com carvalhos no porte,
mas de folhagem pálida como a dos salgueiros. Do outro lado, havia um
espaço aberto, junto a uma das colinas, com dois picos rochosos de formato
estranho, que brilhavam vividamente ao sol.
Senti então, pela primeira vez, a alegria da explorar. A ilha não era
habitada, meus companheiros de bordo eu tinha deixado bem atrás, e não
existia nada diante de mim, exceto animais silvestres e aves. Voltei-me para
cá e para lá entre as árvores. Aqui e ali encontrava plantas em flor que me
eram totalmente desconhecidas. Em certos lugares, vi cobras, e uma ergueu
a cabeça sobre uma plataforma de rocha e assobiou para mim com um
barulho que não era muito diferente do chiar de um pião em movimento.
Não me passou pela cabeça que este fosse um inimigo mortal ou que o
ruído fosse o famoso chocalhar da cascavel.
Então, cheguei a um longo bosquete daquelas árvores que se pareciam
com carvalhos – eram chamados de robles ou de carvalhos-buxos, como
depois me disseram – que cresciam junto à areia, mais ou menos da altura
de espinheiros, os galhos curiosamente retorcidos, a folhagem compacta,
lembrando um telhado de colmo, como são comuns na Inglaterra. O
bosquete começava no alto de uma das dunas de areia, espalhando-se e
ficando mais alto à medida que avançava, até atingir a margem do banhado
largo e cheio de caniços, através do qual o mais próximo dos riozinhos se
dirigia, em sua esteira lamacenta, para o ancoradouro. O pântano soltava
vapor ao sol forte, e o contorno da Luneta do Marinheiro tremia em meio ao
nevoeiro.
Imediatamente percebi uma espécie de buliço entre os juncos, e um pato
selvagem alçou voo, com um grasnido, logo seguido de outro. E em breve,
sobre a superfície inteira do pântano, uma grande nuvem de pássaros piava
e fazia círculos no ar. Não duvidei que algum de meus camaradas de bordo
devia estar se aproximando, do outro lado da entrada do banhado. E não
estava enganado: pois logo escutei o som baixo e não muito distante
produzido por uma voz humana, a qual, à medida que eu prestava atenção,
ficava cada vez mais alta e mais próxima.
Isto me deixou muito amedrontado, e rastejei até encontrar-me sob a
proteção do carvalho-buxo mais próximo, e fiquei agachado ali, escutando,
tão silencioso como um camundongo.
Outra voz respondeu, e então, a primeira voz, que agora eu reconhecia
como sendo a de Silver, recomeçou a falar, e permaneceu por longo tempo
em um jato de palavras, que só de vez em quando era interrompido pela
outra. Pelo som, deveriam estar conversando seriamente, quase ferozmente,
mas nem uma só palavra chegava com clareza a meus ouvidos.
Finalmente, os homens que conversavam pareceram ter passado, ou
talvez tivessem sentado, pois não somente eu deixei de ouvir o ruído de
seus passos a aproximar-se, como os pássaros começaram a aquietar-se e a
se acomodar novamente em seus ninhos em meio ao charco.
E, então, eu me dei conta de que estava esquecendo das minhas
obrigações, porque, já que eu tinha sido audacioso o suficiente para descer à
praia com aquele bando de desesperados, o mínimo que eu podia fazer era
escutar o que planejavam, e o meu dever claro e óbvio era o de aproximar-
me o máximo que pudesse, sob a proteção favorável dos ramos das árvores.
Podia dizer com bastante exatidão a direção em que se encontravam os
dois homens que conversavam, não somente pelo som de suas vozes, mas
pelo comportamento dos poucos pássaros que, alarmados, ainda voavam em
círculos sobre as cabeças dos intrusos.
Rastejando, avancei firme, mas lentamente, em sua direção, até que,
finalmente, erguendo minha cabeça por uma abertura no meio das folhas,
pude avistar com clareza uma pequena clareira verde ao lado do charco,
bem apertada por entre as árvores, onde Long John Silver e outro membro
da tripulação se encontravam, frente a frente, entabulando uma conversa.
O sol batia forte sobre eles. Silver tinha jogado o chapéu no chão, a seu
lado, e seu rosto claro, macio e grande, brilhando com o calor, estava
voltado para o outro, como se estivesse fazendo um apelo.
– Companheiro – ele estava dizendo –, é somente porque eu penso que
você vale como pó de ouro – pó de ouro, pode acreditar no que digo! Se eu
não gostasse tanto de você, se meu coração não estivesse grudado em você
como piche, acha que eu estaria parado aqui somente para preveni-lo? O
negócio já está resolvido – você não pode fazer nada, de um jeito ou de
outro; só estou falando para salvar-lhe o pescoço, e se um daqueles
camaradas malvados souber disso, onde é que eu fico, Tom – diga-me lá:
onde é que eu fico?
– Silver – disse o outro homem. Eu observei que não somente ele estava
de rosto vermelho, mas que falava com uma voz tão rouca como a de um
corvo, e que tremia, também, como uma corda esticada. – Silver – disse ele
–, você é velho e é um cara honesto, ou, pelo menos, tem reputação de ser.
E você também tem dinheiro, o que a maioria dos pobres marinheiros não
consegue juntar, e também é um homem corajoso, ou muito me engano. E
agora você me diz que está sendo levado para esse negócio por aquele
bando de lambazes? Você não! Tão certo como Deus me vê agora, prefiro
perder a mão do que me voltar contra meu dever...
E então, subitamente, ele foi interrompido por um barulho. Eu havia
encontrado um dos marinheiros honestos – e, neste mesmo momento, veio
notícia de outro. Bem a distância, em meio ao pântano, ouviu-se
subitamente um som como um grito de cólera, logo seguido de outro e,
então, um grito horrível e prolongado. As rochas da Luneta ecoaram e
reecoaram vinte vezes, o bando inteiro de pássaros do charco ergueu-se de
novo, escurecendo o céu, com o farfalhar simultâneo de muitas asas, e, por
longo tempo, aquele grito de morte ficou ecoando em meu cérebro, depois
que o silêncio tinha restabelecido seu império e somente o som das asas dos
últimos pássaros que desciam e o trovejar distante da arrebentação na praia
perturbava o langor da tarde.
Ao escutar o barulho, Tom pulou como um cavalo ao ser esporeado, mas
Silver nem piscou um olho. Ele ficou parado onde estava, apoiado
tranquilamente em sua muleta, observando o companheiro como uma cobra
a ponto de saltar.
– John! – gritou o marinheiro, estendendo o braço.
– Não me toque! – gritou Silver, pulando um metro para trás, com o que
me pareceu a velocidade e segurança de um atleta treinado.
– Não vou tocá-lo, se é isso que você quer, John Silver – disse o outro. –
É sua consciência pesada que o faz ter medo de mim. Mas, em nome dos
céus, diga-me: o que foi isso?
– Isso? – respondeu Silver, com um sorriso nos lábios, porém mais
cauteloso do que nunca, seus olhos transformados em pontinhos nas órbitas,
mas brilhantes como cacos de vidro. – Isso? Ora eu acho que isso foi Alan.
E, nesse ponto, o pobre Tom portou-se como um herói.
– Alan! – gritou ele. – Então que Deus dê descanso à sua alma de
marinheiro fiel! E quanto a você, John Silver, há muito tempo que é meu
camarada, mas a partir de agora não é mais. Se eu morrer como um cão,
vou morrer cumprindo meu dever. Então vocês mataram Alan? Pois matem-
me também, se puderem. Mas eu os desafio!
E, com esta afirmação, este homem corajoso voltou as costas ao
cozinheiro e saiu caminhando para a praia. Mas não estava destinado a ir
muito longe. Com um grito, John agarrou-se ao galho de uma árvore,
retirou rapidamente a muleta de debaixo de seu braço e lançou aquele míssil
grosseiro pelo ar. Atingiu o pobre Tom, com a ponta para a frente e com
espantosa violência, bem no meio das costas. Suas mãos se ergueram, ele
emitiu uma espécie de arquejo e, depois, tombou.
Se ele ficou muito ou pouco ferido, ninguém jamais saberá. É bem
provável, a julgar pelo ruído, que suas costas tenham se quebrado naquele
instante. Mas ele não teve tempo para se recobrar. Ágil como um macaco,
mesmo sem perna ou muleta, Silver estava sobre ele no momento seguinte,
enterrando a faca duas vezes, até o cabo, no seu corpo indefeso. Do lugar
em que me achava emboscado, pude escutá-lo bufando alto, enquanto
desferia os golpes.
Eu não sei o que é realmente desmaiar, só sei que, nos momentos que se
seguiram, o mundo inteiro pareceu nadar diante de meus olhos, como um
nevoeiro em redemoinho; Silver, os pássaros, o alto cume da Luneta dando
voltas e mais voltas, turvamente, diante de meus olhos, uma porção de sinos
tocando em meus ouvidos, acompanhados de vozes distantes, em altos
gritos.
Quando eu voltei a mim, o monstro já se havia erguido e ajeitado, com a
muleta embaixo do braço e o chapéu na cabeça. Exatamente diante dele,
Tom jazia imóvel sobre o gramado; mas o assassino não lhe deu a menor
atenção, enquanto limpava a lâmina da faca, manchada de sangue, com um
tufo de capim. Tudo permanecia igual, com o sol ainda brilhando sem
misericórdia sobre o vapor que subia do pântano e o alto pináculo da
montanha; eu mal conseguia persuadir a mim mesmo de que um assassinato
acabara de ser cometido; e que uma vida humana havia sido ceifada
cruelmente um momento antes, diante de meus próprios olhos.
Mas, então, John colocou a mão no bolso, tirou um apito e assoprou
várias vezes um som modulado, que retiniu bem alto através do ar quente.
Naturalmente, eu não sabia o significado do sinal, mas este,
instantaneamente, despertou-me o medo. Mais homens estariam chegando
em breve e eu poderia ser descoberto. Eles já tinham assassinado dois dos
homens honestos; depois de Tom e Alan, não poderia chegar minha vez?
Instantaneamente, eu comecei a me desvencilhar do meio das folhagens e
a rastejar de novo, com toda a velocidade e silêncio possíveis, para o lado
do bosque que ficava mais aberto. Enquanto o fazia, pude escutar as
saudações que iam e vinham entre o velho bucaneiro e seus camaradas. Este
som perigoso deu-me asas. Logo que saí do meio das árvores, corri como
nunca tinha corrido antes, quase sem me importar com a direção para onde
ia, desde que me levasse para longe dos assassinos, e, enquanto eu corria, o
medo crescia cada vez mais dentro de mim, até transformar-se em uma
espécie de frenesi.
Sem a menor dúvida, poderia alguém estar mais inteiramente perdido do
que eu? Quando o canhão soasse, como eu ousaria descer aos escaleres, no
meio daqueles demônios, ainda cheirando a seus crimes? Pois então, o
primeiro que me visse não ia torcer-me o pescoço como o de uma galinha?
E minha própria ausência não evidenciaria a eles meu alarme e, portanto,
meu conhecimento fatal? Eu pensei que tudo estava acabado. Adeus ao
Hispaniola; adeus ao Conde, ao Doutor e ao Capitão! Não me restava nada,
senão a morte lenta pela fome ou a morte rápida às mãos dos amotinados.
E tendo corrido durante todo esse tempo, sem me dar conta, tinha
chegado próximo ao sopé da colina com os dois picos e havia atingido uma
parte da ilha em que os carvalhos-buxo cresciam bem mais separados e se
assemelhavam mais a árvores de florestas, tanto em seu porte como em suas
dimensões. Misturados a essas, estavam alguns pinheiros isolados, alguns
com quinze e outros com quase vinte metros de altura. O ar também tinha
um cheiro mais fresco do que na região próxima aos alagadiços.
E ali um novo susto me fez parar de repente, com o coração batendo.

CAPÍTULO 15
O HOMEM DA ILHA
Do lado da colina, que ali era íngreme e pedregosa, uma torrente de
cascalho foi deslocada e caiu, chocalhando e saltando por entre as árvores.
Meu olhar, instintivamente, voltou-se naquela direção, e vi uma figura
pular, com grande rapidez, para trás de um tronco de pinheiro. O que fosse,
se urso, homem ou macaco, não dava para ver. Parecia escuro e cabeludo, e
mais eu não poderia dizer. Porém o terror desta nova aparição me fez parar.
Eu estava agora, segundo me parecia, cercado dos dois lados: por trás de
mim, os assassinos, à minha frente, esta coisa misteriosa e indescritível.
Imediatamente, eu comecei a preferir os terrores que já conhecia àqueles de
que não sabia nada. O próprio Silver pareceu-me menos terrível em
contraste com esta criatura dos bosques; e voltei-me, olhando assustado por
sobre o ombro, recomeçando a traçar meus passos em direção aos escaleres.
Instantaneamente, a figura reapareceu e, fazendo um largo circuito,
começou a cortar-me a retirada. De qualquer maneira, eu já estava cansado,
mas mesmo que estivesse tão descansado como se acabasse de me levantar,
logo vi que seria inútil tentar competir em velocidade com tal adversário. A
criatura pulava de tronco em tronco, escondendo-se como um veado,
correndo como um homem, sobre duas pernas, mas diferente de qualquer
um que eu já tivesse visto, porque se dobrava quase pela metade, enquanto
corria. Todavia, era um homem, não podia haver mais dúvida quanto a isso.
Eu comecei a recordar o que tinha ouvido a respeito de canibais. Por um
momento, quase gritei por socorro. Porém, o mero fato de ele ser um
homem, ainda que selvagem, havia, de certo modo, despertado minha
autoconfiança, e meu medo de Silver começou a ressurgir, na mesma
proporção. Fiquei parado, portanto, e olhei em torno, buscando algum meio
de escapar. Enquanto pensava nisso, como um relâmpago, a lembrança de
minha pistola surgiu em minha mente. Assim que lembrei que não estava
totalmente sem defesa, a coragem reacendeu em meu coração, e voltei o
rosto resolutamente para aquele homem da ilha, caminhando vigorosamente
em sua direção.
Nessa altura, ele estava escondido por trás de outro tronco de árvore, mas
devia estar me observando cuidadosamente, porque assim que comecei a
mover-me em sua direção, ele reapareceu e deu um passo ao meu encontro.
Então, ele hesitou, recuou, voltou de novo e, finalmente, para meu espanto e
confusão, jogou-se ao chão de joelhos e estendeu-me as mãos, unidas em
uma súplica.
Quando isso aconteceu, eu parei de novo.
– Quem é você? – perguntei.
– Ben Gunn – respondeu ele. Sua voz soava áspera e desajeitada, como
uma fechadura enferrujada. – Eu sou o pobre Ben Gunn, eu sou, e não falo
com um cristão há três anos.
Agora, eu podia ver que ele era um homem branco, como eu; e que suas
feições eram até agradáveis. Mas sua pele, em todos os lugares que estava
exposta, era queimada do sol, até mesmo seus lábios estavam negros. Seus
olhos claros tinham um aspecto incongruente em um rosto tão escuro. De
todos os mendigos que eu já tinha visto ou imaginado, ele era de longe o
mais esfarrapado. Estava vestido de trapos de lona de navio misturados com
pedaços de pano velho alcatroado, e aquela colcha de retalhos espantosa era
costurada com um sistema de ligaduras dos mais variados tipos que se
possa imaginar: botões de latão, pedaços de madeira e laços de tecido
alcatroado. Ao redor da cintura, ele usava um velho cinto de couro com
fivela de latão, que era a única coisa consistente em sua estranha
indumentária.
– Três anos! – gritei eu. – Você naufragou?
– Não, companheiro – disse ele. – Fui abandonado na praia.
Eu já tinha ouvido falar a respeito disso, eu sabia que representava um
terrível tipo de punição, bastante comum entre os flibusteiros, na qual o
ofensor é abandonado, com um pouco de pólvora e munição, em uma praia
deserta em alguma ilha desolada e distante.
– Fui abandonado há três anos – continuou ele. – Vivi deste então de
carne de cabrito, frutinhas e ostras. Onde quer que um homem se encontre,
é o que eu digo, sempre pode dar um jeito de sobreviver. Porém,
companheiro, meu coração está ansioso por uma dieta cristã. Por acaso,
você tem um pedaço de queijo nos bolsos? Não? Bem, por muitas e longas
noites, eu sonhei com queijo – especialmente, queijo defumado – e, depois,
me acordava e ainda estava aqui.
– Se eu conseguir subir a bordo de novo – disse eu –, você terá quanto
queijo quiser.
Todo este tempo, ele passava a mão pelo tecido de meu casaco,
acariciando-me as mãos, olhando para minhas botas; e, em geral, nos
intervalos de sua fala, demonstrando um prazer infantil por se achar na
presença de outra criatura humana. Mas ao escutar minhas últimas palavras,
ele demonstrou uma espécie de astúcia espantada.
– Se conseguir subir a bordo de novo, diz você? – ele repetiu. – Ora, e
quem é que vai impedi-lo?
– Certamente não será você – foi minha resposta.
– E tem toda a razão! – gritou ele. – Agora, você – como é que você se
chama, companheiro?
– Jim – disse eu.
– Jim, Jim – disse ele, aparentemente muito satisfeito. – Bem, escute,
Jim: eu vivi uma vida tão violenta, que você teria vergonha só de escutar.
Agora, por exemplo, só de olhar para mim, você acreditaria que eu tive uma
mãe muito religiosa? – indagou ele.
– Ora, não; não exatamente – eu respondi.
– Ah, bem – disse ele. – Pois tive, extraordinariamente piedosa. E eu era
um rapaz bem-educado e religioso também, era capaz de recitar o
Catecismo tão depressa que você não conseguiria separar as palavras. E
veja o ponto em que eu cheguei, Jim; e tudo começou com uma brincadeira
de jogar moedinhas sobre as benditas sepulturas do cemitério! Foi assim
que tudo começou, mas é claro que foi muito mais longe, e minha mãe me
avisou e disse o que ia me acontecer, aquela mulher santa! Mas foi a
Providência Divina que me colocou aqui. Eu tive tempo de pensar muito,
nesta ilha solitária; e agora voltei para a religião. Você não vai me pegar
bebendo quantidades de rum; somente o suficiente para encher um dedal, é
claro, na primeira oportunidade que eu tiver. Eu assumi o compromisso
firme de me tornar um homem bom e sei exatamente como fazer. E, Jim –
ele correu os olhos em torno e baixou sua voz para um murmúrio –, eu sou
rico.
Nesse momento, eu senti que o pobre camarada tinha ficado maluco em
sua solidão; e suponho que demonstrei esse sentimento em meu rosto;
porque ele reiterou a declaração com calor:
– Rico! Rico, digo eu! E vou-lhe dizer uma coisa: vou fazer de você um
homem rico, também, Jim. Ah, Jim, você vai abençoar sua boa estrela,
porque você foi o primeiro que me encontrou!
Nesse momento, uma sombra súbita passou pelo seu rosto, e ele apertou-
me a mão mais fortemente, enquanto erguia um dedo indicador, como uma
ameaça, diante de meus olhos.
– Agora, Jim, você me fale a verdade: aquele não é o navio de Flint? –
ele perguntou.
Foi então que eu tive uma feliz inspiração. Comecei a acreditar que havia
encontrado um aliado, e respondi-lhe no mesmo instante:
– Não é o navio de Flint, e Flint está morto, mas vou-lhe contar a
verdade, conforme me pediu: há alguns dos homens de Flint a bordo, para
má sorte do resto de nós.
– Há um homem... com uma perna só? – ele falou com uma voz meio
engasgada.
– Silver? – eu perguntei.
– Ah, Silver! – disse ele. – Era esse o nome dele.
– Ele é o cozinheiro, e o chefe dos amotinados, também.
Ele ainda estava segurando minha mão; e, nesse instante, torceu-me o
pulso violentamente.
– Se você foi enviado por Long John – disse ele –, eu não valho mais que
um pedaço de carne de porco salgada, e sei muito bem disso. Mas o que
você estava dizendo?
A essa altura, eu já tinha tomado minha resolução e, à guisa de resposta,
contei-lhe a história inteira de nossa viagem e a situação precária em que
nos encontrávamos. Ele escutou-me com o mais vivo interesse e, quando eu
acabei, deu-me um tapinha amigável no alto da cabeça.
– Você é um bom rapaz, Jim – disse ele. – Estou vendo que vocês todos
estão em uma bela encrenca, não é verdade? Bem, você colocou sua
confiança em Ben Gunn – e Ben Gunn é o homem para tirá-los dela. Agora,
você acha provável que esse seu Conde seja um homem generoso, no caso
de ser ajudado – considerando que ele também se acha em uma bela duma
enrascada, como você me contou?
Eu lhe disse que o Conde era o mais generoso dos homens.
– Ah, mas você vê – retorquiu Ben Gunn –, eu não quero que ele me dê
um emprego de porteiro e uma libré para usar como uniforme e essas
coisas, não é isso que me serve, Jim. O que eu quero dizer é o seguinte: será
que ele me daria, digamos, mil libras desse dinheiro que já é praticamente
meu?
– Tenho certeza de que daria – disse eu. – Já estava combinado que todos
os marinheiros receberiam uma parte.
– E me daria uma passagem para casa? – acrescentou ele, com um olhar
muito astucioso.
– Ora – exclamei eu –, o Conde é um cavalheiro. E, além disso, se nós
nos livrarmos dos outros, vamos precisar de sua ajuda para levar o barco
para casa.
– Ah! – disse ele –, realmente, vocês vão precisar.
Ele parecia muito aliviado.
– Agora, vou-lhe dizer o que fazer – ele prosseguiu. – Eu vou lhe contar
uma coisa e nada mais. Eu estava no navio de Flint, quando ele enterrou o
tesouro, ele e mais seis – seis marujos fortes. Eles ficaram na praia por
quase uma semana, enquanto o resto de nós permanecia no velho Walrus.
Um belo dia, ouvimos o sinal, e Flint chegou sozinho em um barquinho,
com um lenço azul amarrado na cabeça. O sol já se erguia, e ele estava
mortalmente pálido. Mas lá estava ele, entenda, e os outros seis estavam
mortos – mortos e enterrados. Como ele fez isso, ninguém a bordo pôde
imaginar. Foi batalha, assassinato e morte súbita, no mínimo – ele contra
seis. Billy Bones era o imediato, Long John era quartel-mestre, e eles lhe
perguntaram onde estava o tesouro. “Ah!”, disse ele, “vocês podem descer à
praia se quiserem, e até ficar”, foi o que ele disse, “mas o barco vai partir
em busca de mais, com mil trovões!” Foi só isso que ele disse. Bem, eu
estava em outro barco, três anos atrás, e nós avistamos esta ilha. “Rapazes”,
disse eu, “aqui está o tesouro de Flint. Vamos desembarcar e encontrá-lo.”
O Capitão não gostou disso, mas meus companheiros estavam todos
decididos e desembarcaram. Por doze dias procuramos pelo tesouro, e a
cada dia, tinham palavras piores para me dizer, até que, uma bela manhã,
todos estavam de volta ao navio.
“– Quanto a você, Benjamin Gunn – disseram eles –, pegue este
mosquete, foi o que disseram, e vamos lhe deixar uma pá e uma picareta.
Você pode ficar por aqui e encontrar o dinheiro de Flint para si mesmo –
disseram eles.”
– Bem, Jim, há três anos eu estou aqui, e desde aquele dia sem uma
colher de comida cristã. Mas agora, olhe aqui, olhe para mim. Eu tenho cara
de um homem que dormia no castelo da proa? Não, você dirá. Nem eu
tampouco era, digo eu.
Ao dizer isto, ele piscou e deu-me um forte beliscão.
– Você vai dizer somente estas palavras a seu Conde, Jim – prosseguiu
ele. – Não, ele não era marinheiro – estas são as palavras. Por três anos, ele
foi o homem da ilha, no claro e no escuro, com tempo bom ou chuva, e
algumas vezes (você diz) ele fazia suas orações, e algumas vezes ele talvez
pensasse em sua velha mãe, se ela ainda está viva (você dirá isso), mas a
maior parte do tempo de Gunn (é isso que você dirá também) – a maior
parte de seu tempo foi ocupada com outro assunto. E então, você lhe dará
um beliscão, como eu faço em você.
E ele beliscou-me de novo.
– Então – ele continuou –, então você espera um momento e depois diz
isto: Gunn é um bom homem (dirá você), e aí ele terá muito mais confiança
– sim, uma confiança muito maior, acredite em mim –, porque esses
cavalheiros de nascimento tem muito mais confiança – e merecem muito
mais – que esses cavalheiros da fortuna. Eu sei, porque já fui um.
– Bem – disse eu –, eu não entendo uma palavra do que você está
falando. Mas, de fato, isto não tem a menor importância. Como eu vou subir
a bordo?
– Ah! – disse ele. – Esse é o problema, é claro. Bem, acontece que eu
tenho um barco, que eu mesmo fabriquei com minhas próprias mãos. Eu o
guardo embaixo da rocha branca. Se não descobrirmos outro jeito, podemos
experimentar este, depois que escurecer. – Ei! – exclamou ele. – O que foi
isso?
Pois naquele instante, embora houvesse ainda uma ou duas horas de sol,
todos os ecos da ilha despertaram e bramiram em resposta ao estrondo de
um canhão.
– Eles já começaram a lutar! – exclamei eu. – Siga-me!
E comecei a correr em direção à ancoragem, todos os meus terrores
esquecidos, enquanto, a meu lado, o homem abandonado vestido de peles
troteava com facilidade e leveza.
– À esquerda, à esquerda – disse ele. – Continue para a esquerda,
companheiro Jim! Ande por baixo das árvores! Foi aí que eu matei minha
primeira cabra. Elas não descem mais aqui, ficam todas escondidas nas
colinas por medo de Benjamin Gunn. Ah! Lá fica o “cetimério” – decerto
ele queria dizer cemitério. – Você vê os montinhos de terra? Eu vinha aqui
para rezar, de vez em quando, cada vez que achava que era domingo. Não
era exatamente uma capela, mas parecia um lugar mais solene, e depois,
você dirá, Ben Gunn não tinha muitas coisas para rezar – nem um capelão,
nem uma Bíblia, nem ao menos uma bandeira, é o que você dirá.
Ele continuou a falar enquanto corríamos, nem esperando nem recebendo
resposta.
Ao tiro de canhão seguiu-se, depois de um intervalo considerável, o
disparo de várias armas menores.
Outra pausa e, então, a menos de um quarto de milha à minha frente, eu
contemplei a Union Jack, a bandeira do Reino Unido, flutuando no ar, sobre
um bosque.
PARTE IV
A PALIÇADA

CAPÍTULO 16
NARRATIVA CONTINUADA PELO DOUTOR: COMO O BARCO FOI
ABANDONADO

Já eram mais ou menos uma e meia da tarde – três badaladas, na


linguagem do mar – quando os dois escaleres saíram do Hispaniola e foram
para a praia. O Capitão, o Conde e eu estávamos debatendo o assunto no
camarote. Se houvesse um pouco de vento, nós teríamos caído sobre os seis
amotinados que permaneceram a bordo, levantado âncora e partido para o
mar. Mas não havia um sopro de vento e, para piorar a situação, Hunter veio
com a notícia de que Jim Hawkins tinha descido a um dos escaleres e ido à
praia com os demais.
Nunca nos ocorreu pôr em dúvida a lealdade de Jim Hawkins, porém
ficamos preocupados por sua segurança. Com os homens na disposição em
que se encontravam, havia apenas cinquenta por cento de probabilidade de
ver o rapaz de novo. Corremos para o tombadilho. Estava tão quente que o
piche borbulhava nas calafetagens entre as tábuas; o fedor nojento do lugar
deu-me náuseas; se jamais um homem conseguiu cheirar febre e disenteria,
foi nesse ancoradouro abominável. Os seis patifes estavam sentados,
resmungando à sombra de uma vela no castelo de proa; na praia, pudemos
ver os dois escaleres amarrados, com um homem sentado dentro de cada
um, perto do local em que o rio corria para o ancoradouro. Um deles estava
assobiando “Lillibullero”.
A espera era insuportável; e decidimos que Hunter e eu iríamos à praia
no bote de carga, em busca de informações. Os escaleres tinham aproado à
esquerda; mas Hunter e eu fomos direto à frente, na direção da paliçada que
aparecia no mapa. Os dois que tinham sido deixados para guardar os botes
pareceram muito preocupados com nosso aparecimento: o que assobiava
“Lillibullero” parou, e pude ver que discutiam o que deveriam fazer. Se eles
tivessem ido contar a Silver, tudo poderia ter sido diferente; mas eles
tinham suas ordens, suponho eu; e decidiram ficar sentados tranquilamente
onde estavam; o homem retornou ao “Lillibullero”.
Havia um pequeno promontório na costa e eu levei o barco nesta direção,
a fim de colocá-lo entre os vigias e nós. Desta forma, mesmo antes de
desembarcarmos, já não avistávamos mais os escaleres. Eu pulei à praia e
caminhei o mais depressa que consegui, com um grande lenço de seda por
baixo do chapéu, para me proteger do calor intenso, e um par de pistolas
prontas para atirar, por uma questão de segurança.
Não havia percorrido noventa metros, quando cheguei à paliçada.
Eis como ela era: uma fonte de águas claras erguia-se, quase no topo de
uma pequena colina; no alto desta, incluindo a fonte, haviam construído
uma resistente cabana de troncos, capaz de conter quarenta pessoas em caso
de necessidade, com buracos nas paredes abertos em todas as direções para
dar passagem a mosquetes. Ao redor desta cabana, havia sido aberto um
amplo espaço, e a construção tinha sido cercada por uma paliçada de um
metro e oitenta de altura, sem porta ou aberturas, forte demais para ser
derrubada, a não ser com muito tempo e muito trabalho, e ao mesmo tempo
aberta demais para oferecer abrigo aos sitiantes. As pessoas que estivessem
na cabana de troncos teriam toda a vantagem, era só permanecerem
tranquilas dentro do abrigo e alvejá-los como se fossem perdizes. Tudo o
que era necessário era uma boa guarda e comida. A não ser que houvesse
uma completa surpresa, o local poderia ser defendido contra um regimento.
O que particularmente me agradou foi a fonte. Pois, embora tivéssemos
um lugar excelente no camarote do Hispaniola, com quantidade de armas e
munição, coisas para comer e excelentes vinhos, havíamos esquecido de
uma coisa – não tínhamos água. Eu estava meditando sobre esse assunto,
quando ecoou sobre a ilha o grito de um homem na agonia da morte. Morte
violenta não era novidade para mim – servi à Sua Alteza Real, o Duque de
Cumberland, e até fui ferido na batalha de Fontenoy –, mas senti meu
coração dar um salto e meu pulso apressar-se.
– Jim Hawkins foi morto! – foi o meu primeiro pensamento.
Uma coisa é ter sido um velho soldado; e outra, muito diferente, é ter
sido médico. Não há tempo a perder em nosso trabalho. Assim, tomei uma
decisão imediata e, sem perder tempo, retornei à praia e saltei no bote.
Nossa boa fortuna foi que Hunter era um remador rápido. Nós voamos
sobre a água; logo o barco estava junto ao casco e subi a bordo da escuna.
Encontrei-os todos perturbados, como era natural. O Conde estava
sentado, branco como um lençol, pensando no mal a que nos tinha
conduzido, pois era uma alma santa! – e percebi que um dos seis
marinheiros à proa estava pouco melhor do que ele.
– Ali está um homem – disse o Capitão Smollett, com um sinal de cabeça
em sua direção – que é novo nestas coisas. Ele quase desmaiou, Doutor,
quando escutou o grito. Basta um toque no leme e esse homem vem para
nosso lado.
Contei meu plano ao Capitão e, entre nós, estabelecemos os detalhes de
sua realização. Colocamos o velho Redruth na galeria entre o camarote e o
castelo de proa, com três ou quatro mosquetes carregados e um colchão
para servir-lhe de amurada. Hunter deu a volta com o barco até a popa, e
Joyce e eu começamos a trabalhar, carregando-o com latas de pólvora,
mosquetes, caixas de biscoitos, barris de carne de porco salgada, um
barrilete de conhaque e, o que valia mais que tudo, minha arca de remédios.
Enquanto isto, o Conde e o Capitão permaneceram no tombadilho, e o
último chamou o timoneiro, que era o homem mais graduado a bordo.
– Mr. Hands – disse ele –, aqui estamos nós dois, cada um com um par de
pistolas, que sabemos usar muito bem. Se qualquer um de vocês fizer
qualquer tipo de movimento, será um homem morto.
Eles ficaram muito perturbados e, após uma rápida consulta, foram
descendo um a um pela escada dianteira, esperando, sem dúvida, poder
atacar-nos por trás. Porém, quando encontraram Redruth esperando por eles
na galeria protegida, retornaram pelo mesmo caminho, e logo uma cabeça
apontou no convés.
– Para baixo, cão! – gritou o Capitão.
A cabeça desapareceu de novo. Nada mais escutamos, pelo menos por
algum tempo, da parte desses marinheiros medrosos.
Nessa altura, misturando as coisas à medida que iam chegando, tínhamos
carregado o bote o máximo possível. Joyce e eu saímos pela escotilha da
popa e voltamos para a praia tão depressa quanto os remos nos podiam
levar.
Esta segunda viagem despertou completamente os homens que cuidavam
dos escaleres na praia, “Lillibullero” foi interrompida de novo e, um
momento antes de sairmos de sua vista, por trás do pequeno promontório,
um deles pulou para a praia e desapareceu. Por um momento, pensei em
mudar meus planos e destruir os escaleres, mas temi que Silver e os demais
estivessem muito próximos, e assim poderíamos perder tudo ao tentar
conseguir demais.
Logo tocamos terra no mesmo lugar que antes e começamos a
aprovisionar a casamata. Fizemos a primeira jornada pesadamente
carregados, e jogamos nossas provisões por cima da paliçada. Então,
deixando Joyce para guardá-las – apenas um homem, mas com meia dúzia
de mosquetes carregados –, Hunter e eu retornamos ao bote para
carregarmos outra vez. Assim procedemos, sem uma pausa para respirar, até
que a carga inteira tinha sido transportada e guardada, quando os dois
criados ficaram montando guarda na casamata; e eu, com toda a força que
tinha, remei de volta para o Hispaniola.
Que nós nos tenhamos arriscado a transportar um segundo bote
carregado, parece um feito de maior ousadia do que realmente foi. Eles
tinham a vantagem dos números, naturalmente, mas nós tínhamos a
vantagem das armas. Nem um só dos homens na praia dispunha de um
mosquete, e antes que conseguissem chegar a uma distância suficiente para
dar um tiro de pistola, nós tínhamos a pretensão de ser capazes de dar conta
de meia dúzia, pelo menos.
O Conde estava esperando por mim na janela da popa e seu desalento o
tinha abandonado completamente. Agarrou o cabo que eu lhe lancei e
amarrou-o firmemente, e recomeçamos a carregar o bote como se nossas
vidas dependessem disso. A carga era especialmente carne de porco
salgada, pólvora e biscoitos, além de um mosquete e um cutelo para cada
um, isto é, para o Conde, para Redruth, para o Capitão e para mim. O resto
da pólvora e das armas nós jogamos pela amurada a duas braças e meia de
profundidade, de modo que podíamos ver o reflexo do aço brilhante lá
embaixo, no mar, contra o fundo limpo e arenoso.
Naquele momento, a maré estava começando a baixar, e o navio girava
ao redor da âncora. Começamos a escutar vozes fracas provindas dos dois
escaleres, e isto, embora nos reassegurasse de que Joyce e Hunter estavam
em segurança, porque eles tinham ficado bem para leste, foi um sinal para
que nosso grupo partisse.
Redruth retirou-se de seu posto na galeria e pulou para o bote, que então
viramos em sentido contrário ao do navio, a fim de ficarmos mais próximos
e facilitar ao Capitão Smollett.
– Agora, homens – disse ele –, estão escutando o que digo?
Não houve resposta do castelo de proa.
– É com você, Abraham Gray – é com você que estou falando.
Nenhuma resposta ainda.
– Gray – reassumiu Mr. Smollett, um pouco mais alto. – Estou deixando
este navio e lhe ordeno agora que siga seu Capitão. Eu sei que no fundo
você é um homem bom; ouso dizer que nenhum de vocês é tão mau como
finge ser. Estou com meu relógio na mão, dou-lhe trinta segundos para se
unir a mim.
Houve uma pausa.
– Venha, meu bom rapaz – continuou o Capitão. – Não hesite tanto.
Estou arriscando minha vida e as vidas destes bons cavalheiros a cada
segundo de espera.
Houve um ruido súbito de pés arrastados, um som de golpes, e Abraham
Gray surgiu de repente, com um corte de faca do lado do rosto, e veio
correndo para o Capitão, como um cachorro ao ouvir um apito.
– Estou do seu lado, senhor – disse ele.
No momento seguinte, tanto ele como o Capitão tinham saltado para o
bote e juntos tínhamos dado impulso contra o casco e iniciado nosso
caminho.
Já estávamos longe do navio, mas ainda não havíamos chegado à praia; e
muito menos à nossa paliçada.
CAPÍTULO 17
NARRATIVA CONTINUADA PELO DOUTOR: A ÚLTIMA VIAGEM DO BOTE DE
CARGA

Esta quinta viagem foi bem diferente de todas as outras. Em primeiro


lugar, o barquinho em que nos encontrávamos estava seriamente
sobrecarregado. Cinco homens a bordo; e três deles – Trelawney, Redruth e
o Capitão – com mais de um metro e oitenta de altura, já eram uma carga
maior do que aquela para a qual o bote tinha sido construído. Acrescente-se
a isto a pólvora, a carne salgada e os fardos de biscoitos. A amurada estava
quase ao nível da água do lado da popa. Diversas vezes fizemos um pouco
de água, e meus calções e as abas de meu casaco estavam ensopados antes
que tivéssemos navegado cem metros.
O Capitão nos fez distribuir o peso dentro do barco e conseguimos que se
equilibrasse melhor. Mesmo assim, tínhamos medo até de respirar.
Em segundo lugar, a maré baixa agora estava se firmando – uma corrente
forte e ondulante dirigindo-se para oeste através da bacia, e então para o sul
e para o mar através dos estreitos por onde havíamos entrado de manhã.
Mesmo as ondulações leves eram um perigo para nosso barco
sobrecarregado, porém, o pior de tudo é que fomos arrastados para fora de
nosso curso estabelecido e já estávamos longe do lugar adequado para
desembarcar, por trás do promontório. Se deixássemos a corrente nos levar,
acabaríamos desembarcando junto aos escaleres, onde os piratas poderiam
aparecer a qualquer momento.
– Não consigo manter o curso em direção à paliçada, senhor – disse eu ao
Capitão. Era eu que estava ao leme, enquanto ele e Redruth, que estavam
com os braços descansados, manejavam os remos. – A maré continua a
empurrar-nos na direção errada. Não dá para remar um pouco mais forte?
– Não, sem inundarmos o barco – disse ele. – Você deve se esforçar para
manter o curso, senhor, por favor. Faça um esforço para manter o curso até
ver que estamos ganhando terreno à maré.
Eu tentei, e descobri por experiência e erro que a maré continuaria nos
empurrando para oeste até que eu apontasse a proa do bote diretamente para
leste, ou seja, aproximadamente em ângulo reto com a direção que
deveríamos seguir.
– Neste ritmo, não vamos chegar à praia nunca! – disse eu.
– Se for o único curso que pudermos manter, senhor, devemos mantê-lo
com firmeza – retornou o Capitão. – Temos de prosseguir corrente acima.
Se por um momento nós derivarmos para sotavento do lugar de
desembarque, é difícil dizer em que ponto da praia aportaremos, além da
possibilidade de sermos abordados pelos escaleres, mas se continuarmos da
forma que estamos, a corrente pode enfraquecer e, então, poderemos
deslizar para o ponto desejado ao longo da praia.
– A corrente já está mais fraca, senhor – disse o marinheiro Gray, que
estava sentado na amurada dianteira. – Já dá para afrouxar um pouco.
– Muito obrigado, marujo – disse eu, como se nada tivesse acontecido,
pois tacitamente havíamos concordado em tratá-lo como a um de nós.
De repente, o Capitão falou de novo, e eu achei que sua voz tinha
mudado um pouco.
– O canhão! – disse ele.
– Eu pensei nisso – respondi, pois tinha certeza de que ele estava
pensando em um possível bombardeio do forte. – Eles nunca conseguiriam
levar o canhão até a praia, e mesmo que pudessem, não há meio de
transportá-lo por entre as árvores.
– Olhe para a popa, Doutor – replicou o Capitão.
Tínhamos todos esquecido completamente o longo canhão de nove
polegadas, e, para nosso horror, víamos os cinco patifes ao redor dele,
retirando-lhe a “jaqueta”, como eles chamavam a forte cobertura de oleado
grosso sob a qual estava a peça. E não só isso, pois nesse mesmo momento
explodiu em minha mente a lembrança de que havíamos deixado não
somente as balas como a pólvora do canhão, e que bastariam umas
machadadas na porta do camarote para que os malvados que haviam ficado
a bordo se apoderassem delas.
– Israel era o artilheiro de Flint – disse Gray, com uma voz rouca.
Enfrentando o risco, aproamos o barco diretamente para o ponto de
desembarque. Nessa altura, já tínhamos saído bastante da corrente principal
e era possível manter o leme na direção certa, mesmo com nosso ritmo de
remadas inevitavelmente lento. Deste modo, pude manter o barco aproado
diretamente para o alvo. Mas o pior era que, com o curso que então eu
mantinha, voltávamos o lado do bote para o Hispaniola, em vez da popa,
oferecendo um alvo tão grande como uma porta de celeiro.
Pude escutar, tão bem quanto ver, aquele patife de cara vermelha de
bebida, Israel Hands, largando uma das balas de canhão no tombadilho.
– Quem é o melhor atirador? – perguntou o Capitão.
– Mr. Trelawney é de longe o melhor – disse eu.
– Mr. Trelawney, quer-me fazer a gentileza de atingir um daqueles
homens, senhor? Hands, se for possível – disse o Capitão.
Trelawney parecia frio como aço. Ele olhou através da alça de mira de
sua arma.
– Agora – gritou o Capitão –, vá com calma com esse mosquete, senhor,
senão inundará o bote. Toda a tripulação esteja a postos para equilibrar o
bote quando ele fizer a pontaria.
O Conde ergueu o mosquete, enquanto os outros paravam de remar, e nos
inclinamos para o outro lado a fim de manter o barco em equilíbrio; foi tudo
tão bem-feito, que não deixamos entrar uma só gota.
A essa altura, eles haviam girado o canhão ao redor do tornel do rodízio e
Hands, que estava junto à boca com o socador, consequentemente, ficara na
posição mais exposta. Entretanto, não tivemos sorte, pois no momento em
que Trelawney disparou, ele se curvou e a bala assobiou sobre ele, e foi um
dos outros quatro que tombou.
O grito que ele deu foi ecoado não somente por seus companheiros a
bordo, mas por um grande número de vozes provindas da praia. Olhando
naquela direção, vi os outros piratas correndo aos tropeções para fora das
árvores e se precipitando para seus lugares nos escaleres.
– Os escaleres estão vindo, senhor – disse eu.
– Então vamos andar depressa – gritou o Capitão. – Agora não tem mais
importância se alagarmos o barco. Se não conseguirmos chegar à praia,
estará tudo acabado.
– Somente um dos escaleres está sendo tripulado, senhor – acrescentei
eu. – A tripulação do outro provavelmente vai dar a volta pela praia a fim
de nos cortar a retirada.
– Vão ter de correr muito, senhor – retorquiu o Capitão. – E como são
marinheiros em terra firme, sera difícil conseguirem. Não é com eles que
me preocupo, é com o canhão. Com mil trovões! Até a criada de minha
senhora não erraria. Avise-nos, Conde, quando vir a mecha acesa, e
viraremos o barco.
Enquanto isso, já tínhamos progredido uma boa distância para um barco
tão sobrecarregado, e no processo tínhamos feito pouca água. Já estávamos
bem perto, com trinta ou quarenta remadas levaríamos o barco à praia, pois
a baixamar já havia deixado exposta uma faixa estreita de areia abaixo da
linha das árvores. Não havia mais razão para temer o escaler; o pequeno
promontório já o escondia de nossos olhares. A baixamar, que nos tinha
atrasado tão cruelmente, estava agora como que fazendo uma reparação,
pois atrasava era os que nos assaltavam. A única fonte de perigo era o
canhão.
– Se eu ousasse – disse o Capitão –, pararia para alvejar outro homem.
Mas estava claro que eles não pretendiam deixar que nada lhes impedisse
o tiro. Nem sequer tinham parado para olhar seu camarada caído, embora
ele não estivesse morto e desse para ver que tentava arrastar-se pelo convés.
– Pronto! – gritou o Conde.
– Agora! – gritou o Capitão, rápido como um eco.
E ele e Redruth recuaram simultaneamente com um grande impulso, que
fez a popa submergir completamente. O ribombar do canhão soou naquele
mesmo instante. Esse foi o primeiro som que Jim escutou, pois o som do
tiro do Conde não chegou até onde ele estava. Nenhum de nós soube com
certeza onde foi cair a bala do canhão, mas eu imagino que tenha passado
sobre nossas cabeças, e que o vento que produziu tenha contribuído para
nosso desastre.
De qualquer modo, o barco afundou muito mansamente, começando pela
popa, em apenas um metro de água, deixando o Capitão e eu de pé, olhando
meio surpreendidos um para o outro. Os outros três foram cobertos até a
cabeça, erguendo-se depois, empapados e cuspindo água.
Por enquanto não havia nenhum grande mal. Nenhuma vida estava
perdida e podíamos vadear até a praia em segurança. Mas todos os nossos
suprimentos tinham ficado no fundo e, para tornar as coisas piores, somente
dois de nossos cinco mosquetes estavam em condições de funcionar. O
meu, eu tinha retirado rapidamente de meus joelhos e erguido acima da
cabeça, quase instintivamente. Quanto ao Capitão, ele tinha carregado o seu
ao ombro, preso por um talabarte; e, como um homem experiente, deixara o
gatilho e a escorva para cima. Os outros três tinham afundado com o barco.
Para aumentar nossa preocupação, escutamos vozes se aproximando
pelas matas ao longo da praia; e não somente estávamos em perigo de ficar
de fora da paliçada, em nosso estado de semi-inermidade, como também
temíamos por Hunter e Joyce, porque, se eles fossem atacados por meia
dúzia, seriam capazes de permanecer firmes? Hunter merecia confiança,
disso nós sabíamos, mas Joyce era um caso duvidoso: um homem educado
e agradável em seu trabalho de valete, ótimo para escovar as roupas do
patrão, porém não exatamente um homem de guerra.
Com tudo isto em nossas mentes, vadeamos para a praia o mais depressa
que pudemos, deixando para trás o pobre bote de carga e metade de nossa
pólvora e provisões.

CAPÍTULO 18
NARRATIVA CONTINUADA PELO DOUTOR: O FIM DO COMBATE DO
PRIMEIRO DIA

Corremos o mais depressa possível através da faixa arborizada que agora


nos separava da paliçada e, a cada passo, escutávamos as vozes dos
bucaneiros chegando mais perto. Logo era possível escutar o rumor de seus
passos enquanto corriam e o ruído dos galhos sendo quebrados enquanto
atravessavam o mato.
Comecei a achar que poderíamos ter uma séria escaramuça e examinei as
condições de meu mosquete.
– Capitão – disse eu –, Trelawney é o melhor atirador. Dê-lhe sua arma,
porque a dele está inutilizada.
Eles trocaram os mosquetes; e Trelawney, silencioso e frio como havia
estado desde o começo do encontro, parou por um momento a fim de ver se
tudo estava pronto para disparar. Ao mesmo tempo, observando que Gray
estava desarmado, passei-lhe meu cutelo. Nossa coragem aumentou ao vê-
lo cuspir nas palmas das mãos, franzir a testa e fazer a lâmina cantar através
do ar. Estava claro, em todas as linhas de seu corpo, que nosso novo
companheiro valia quanto pesava.
Mais quarenta passos e chegamos à beira do bosque, enxergando a
paliçada bem à nossa frente. Atingimos o cercado aproximadamente na
metade do lado sul, mas quase no mesmo momento sete amotinados – com
Job Anderson, o contramestre, à sua frente – apareceram aos berros do lado
sudoeste.
Eles entrepararam, como se estivessem surpresos, e, antes que se
recuperassem, não somente o Conde e eu, como Hunter e Joyce de dentro
da casamata, tivemos tempo para atirar. Os quatro tiros saíram em uma
rajada fora de compasso, mas cumpriram sua função: de fato, um dos
inimigos tombou, e o resto, sem hesitação, girou nos calcanhares e enfiou-
se pelo meio das árvores.
Depois de recarregar as armas, caminhamos ao longo da parte externa da
paliçada, para ver se podíamos fazer alguma coisa pelo inimigo caído. Ele
estava morto como uma pedra, com um tiro no coração.
Começamos a nos regozijar com nosso sucesso, mas, justamente neste
momento, uma pistola soou no mato, uma bala assobiou perto de minha
orelha, e o pobre Tom Redruth cambaleou e caiu ao comprido no chão.
Tanto o Conde quanto eu revidamos o tiro, mas como não tínhamos nenhum
alvo em que atirar, somente desperdiçamos pólvora. Então, recarregamos e
voltamos nossa atenção para o pobre Tom.
O Capitão e Gray já o estavam examinando, e percebi, pelo canto do
olho, que tudo havia terminado.
Acredito que a rapidez de nossa resposta havia espalhado os amotinados
outra vez, pois nos permitiram, sem sermos molestados novamente,
transportar o pobre guarda-caça por cima da paliçada, depois o carregamos,
gemendo e sangrando, até a cabana de troncos.
O pobre camarada não havia soltado uma palavra de surpresa, queixa,
medo ou até mesmo de concordância, desde o começo de nossas
dificuldades até agora, quando o deitamos no chão da cabana de troncos
para morrer. Ele tinha combatido como um herói troiano por trás do colchão
na galeria, tinha seguido cada ordem recebida silenciosa e obstinadamente,
o melhor que podia; ele era o mais velho de nós, por uma diferença de mais
de vinte anos, e agora, o criado silencioso, velho e prestativo era o que
deveria morrer primeiro.
O Conde caiu de joelhos a seu lado e beijou-lhe a mão, chorando como
se fosse uma criança.
– Eu estou partindo, Doutor? – ele perguntou.
– Tom, meu velho amigo – disse eu –, você está partindo para casa.
– Eu gostaria de ter tido a oportunidade de dar-lhes uns bons tiros antes –
replicou ele.
– Tom – disse o Conde –, diga que me perdoa, por favor!
– Mas seria isso um sinal de respeito, vindo de minha parte, senhor
Conde? – foi a resposta. – De qualquer maneira, assim seja, amém!
Depois de alguns momentos de silêncio, ele disse achar que alguém
poderia ler uma oração. “É o costume, senhor”, acrescentou ele, como uma
desculpa. E, não muito depois, sem outra palavra, faleceu.
Enquanto isso, o Capitão, que eu já observara estar espantosamente
estufado ao redor do peito e nos bolsos, começava a revelar uma grande
variedade de suprimentos – a bandeira britânica, uma Bíblia, um rolo de
corda forte, pena de escrever, tinta, o Diário de Bordo e várias libras de
tabaco. Ele tinha encontrado uma árvore semelhante a um abeto,
relativamente comprida e reta, caída no chão dentro da paliçada; e, com a
ajuda de Hunter, ele a tinha erguido a um canto da cabana, onde os troncos
se cruzavam e formavam ângulo. Então, trepando ao teto, com suas próprias
mãos, hasteara a bandeira.
Isto pareceu aliviá-lo muitíssimo. Entrou na cabana de troncos e
começou a fazer um inventário dos suprimentos, como se fosse sua única
obrigação, mas o tempo todo ele vigiava a agonia de Tom, e, quando tudo
terminou, avançou com uma bandeira sobressalente e, com toda a
reverência, colocou-a sobre o corpo.
– Não fique tão abalado, senhor – disse ele, apertando a mão do Conde. –
Está tudo bem com ele; nada a recear por um marinheiro que foi alvejado
enquanto cumpria o seu dever para com o Capitão e o proprietário do navio.
Pode ser que isso não seja boa teologia, mas é um fato.
Então ele me puxou a um lado, para uma conversa em particular.
– Dr. Livesey – disse ele –, dentro de quantas semanas o senhor e o
Conde esperam o navio de apoio?
Eu lhe disse que não era uma questão de semanas, mas de meses, e que,
se não estivéssemos de volta pelo final de agosto, Blandly enviaria um
navio de apoio para nos encontrar; mas nem antes, nem depois.
– Você pode fazer os cálculos sozinho – disse eu.
– Ora, é claro – retornou o Capitão, coçando a cabeça. – Mesmo dando
uma grande margem, senhor, e esperando todo o apoio da Providência, devo
dizer que estamos em uma situação bastante difícil.
– O que quer dizer? – perguntei.
– É uma pena, senhor, que tenhamos perdido aquele segundo
carregamento. É isso que eu quero dizer – replicou o Capitão. – Quanto a
pólvora e balas, estamos bem providos. Mas as rações estão curtas, muito
curtas – tão curtas, de fato, Dr. Livesey, que talvez tenha sido bom não
termos mais aquela boca.
E apontou para o corpo que jazia por baixo da bandeira.
Foi bem neste momento que, com um rugido e um assobio, um tiro de
canhão passou bem alto por cima do telhado da cabana de troncos e foi cair
muito além de nós por entre as árvores.
– Ahá! – gritou o Capitão. – Atirem à vontade! Vocês já tem muito pouca
pólvora mesmo, meus rapazes!
Na segunda tentativa, a mira foi melhor; a bala desceu no lado de dentro
da paliçada, espalhando uma nuvem de areia, mas sem causar qualquer
outro dano.
– Capitão – disse o Conde. – A casa fica completamente invisível do
navio. Deve ser a bandeira que está servindo de alvo. Não seria mais
aconselhável retirá-la?
– Arriar minhas cores! – gritou o Capitão. – Não, senhor, eu não retiro
minha bandeira por nada deste mundo!
Acho que, assim que ele proferiu estas palavras, todos nós concordamos
com ele. Porque não era somente um sentimento honesto, bom e corajoso
de um marinheiro; também era uma boa política, pois mostrava a nossos
inimigos que desprezávamos sua canhonada.
Durante toda a tarde eles continuaram a atirar. Bala após bala voou por
cima de nós ou nem chegou perto, embora algumas conseguissem levantar
um pouco de poeira e areia dentro do recinto, mas eles tinham de mirar tão
alto, que os tiros vinham sem força e se enterravam na areia macia. Não
precisávamos ter medo de ricochetes; e embora, finalmente, uma das balas
tivesse atravessado o teto da cabana de troncos e se enterrado no assoalho,
que também era formado por troncos, mas sem causar grandes danos, logo
nos acostumamos com aquele tipo de brincadeira violenta, e não demos
maior importância a ela do que às bolas de uma partida de críquete.
– Há uma coisa boa em tudo isso – observou o Capitão. – Provavelmente,
foram todos para o navio, e a mata diante de nós deve estar vazia. A
baixamar já teve tempo para descobrir o resto da praia; nosso suprimentos
devem estar a descoberto. Quero voluntários para ir buscar a carne salgada.
Gray e Hunter foram os primeiros a se apresentar. Bem armados, eles
saíram para fora da paliçada, porém sua missão foi inútil. Os amotinados
eram mais ousados do que pensáramos; ou, então, tinham muita confiança
na canhonada de Israel, pois quatro ou cinco deles estavam ocupados a
transportar nossos suprimentos, vadeando com eles para um dos escaleres
que estava próximo, remando de quando em vez, somente para manter o
barco firme contra a corrente. Silver estava no comando, sentado à popa; o
pior é que agora cada um de seus homens dispunha de um mosquete,
certamente de um arsenal secreto que haviam trazido.
O Capitão sentou-se para escrever em seu diário; aqui está o começo de
suas anotações:
Alexander Smollett, capitão do navio; David Livesey, médico de bordo;
Abraham Gray, auxiliar de carpinteiro; John Trelawney, proprietário; John
Hunter e Richard Joyce, criados do proprietário, homens da terra – todos
os que permanecem fiéis dentre a tripulação do navio – com suprimentos
para dez dias em rações reduzidas, vieram para a praia neste dia e
ergueram as cores britânicas sobre a cabana de troncos na Ilha do Tesouro.
Thomas Redruth, criado do proprietário, homem da terra, foi alvejado e
morto pelos amotinados; James Hawkins, grumete...
E naquele momento, eu também estava imaginando o destino do pobre
Jim Hawkins.
Houve um chamado vindo do lado da terra.
– Alguém está nos chamando – disse Hunter, que estava de guarda.
– Doutor! Conde! Capitão! Alô, Hunter, é você? – soaram os gritos.
E eu corri para a porta a tempo de ver Jim Hawkins, em plena saúde e
segurança, passando por cima da paliçada.

CAPÍTULO 19
NARRATIVA CONTINUADA POR JIM HAWKINS: A GUARNIÇÃO DA
PALIÇADA

Assim que Ben Gunn viu a bandeira, ele parou, segurou-me por um
braço e sentou-se no chão da mata.
– Agora – disse ele –, são os seus amigos, sem a menor dúvida.
– É muito mais provável que sejam os amotinados – respondi eu.
– O quê!? – gritou ele. – Ora, em um lugar como este, em que ninguém
aporta senão os cavalheiros da fortuna, Silver hastearia a Jolly Roger, a
bandeira dos piratas, sem a menor dúvida. Não, aqueles são os seus amigos.
Houve luta, também, e garanto que seus amigos venceram, e aqui estão
eles, em terra, dentro da paliçada velha, que foi construída anos e anos atrás
por Flint. Ah, aquele homem merecia uma coroa, Flint merecia! Tirando o
vício do rum, não havia ninguém igual a ele. Ele não tinha medo de nada,
ele não; só respeitava Silver – Silver era o único cavalheiro da fortuna que
ele respeitava.
– Bem – disse eu –, pode ser, vamos dizer que seja; tanto mais razão para
que eu me apresse a me reunir a meus amigos.
– Não, companheiro – retornou Ben. – Você ainda não vai até lá. Você é
um bom rapaz, ou muito me engano, mas ainda é apenas um menino.
Agora, Ben Gunn é esperto. Nem rum me levaria lá, nesse lugar aonde você
vai – nem rum me atrairia, até que eu veja seu grande cavalheiro e receba
sua palavra de honra. E você não vai esquecer minhas palavras: “Muito
mais confiança (é o que você vai dizer), a palavra de um cavalheiro merece
muito mais confiança” – e então, dê-lhe um beliscão.
E ele me beliscou pela terceira vez, com o mesmo ar de esperteza.
– E quando precisarem de Ben Gunn, você sabe onde encontrá-lo, Jim.
Bem no lugar onde o encontrou hoje. Mas olhe: a pessoa que vier me
encontrar, deve levar alguma coisa branca na mão; e deve ir sozinha. Oh, e
você vai dizer isto também: “Ben Gunn”, você diz, “tem suas próprias
razões”.
– Bem – disse eu –, acho que entendi. Você tem alguma coisa a propor e
deseja avistar-se com o Conde ou com o Doutor; e poderá ser encontrado no
mesmo lugar em que eu o achei. Isso é tudo?
– E quando, você diz? – ele acrescentou. – Ora, na hora em que
costumam fazer as observações de localização do navio, as que fazem
sempre ao meio-dia, nas seis badaladas.
– Tudo bem – disse eu. – E agora, posso ir?
– Você não vai esquecer? – ele inquiriu, ansiosamente. – Muito mais
confiança e suas próprias razões, você fala. Suas próprias razões, esse é o
mastro principal; ele quer falar de homem para homem. Bem, então – ainda
estava-me segurando –, creio que você pode ir agora, Jim. E, Jim, se você
encontrar Silver, não vai vender Ben Gunn? Não vai contar a meu respeito
nem que o amarrem a quatro cavalos bravos? Não, diz você. E se esses
piratas acamparem na praia, Jim, o que você vai dizer, será que seus amigos
resistem até de manhã?
Aqui ele foi interrompido por um forte estrondo, quando uma bala de
canhão veio rasgando as árvores e lançou-se à areia, a menos de cem metros
de onde estávamos conversando. No momento seguinte, cada um de nós
tinha virado nos calcanhares em direções opostas.
A seguir, por mais de uma hora, o frequente ribombar do canhão sacudiu
a ilha e as balas continuaram a cair por entre os bosques. Eu me movia de
esconderijo para esconderijo, sempre perseguido, segundo me parecia, por
esses mísseis aterrorizantes. Mas já para o final do bombardeio, embora
ainda não ousasse me aventurar na direção da paliçada, porque era para
aquele lado que as balas caíam com maior frequência, eu tinha recomeçado,
de certa maneira, a criar coragem de novo, e, depois de fazer um longo
rodeio em direção ao leste, deslizei novamente para o meio das árvores que
ficavam perto da praia.
O sol acabava de se pôr e a brisa do mar movia as folhas e sacudia os
galhos da mata, encrespando a superfície cinzenta do ancoradouro. A maré
também tinha baixado muito, descobrindo grandes extensões de areia; o ar,
depois do calor do dia, me enregelava através de meu casaco.
O Hispaniola ainda se encontrava onde havia ancorado, porém, sem a
menor dúvida, lá estava hasteada a Jolly Roger – a bandeira negra dos
piratas –, flutuando do mastro mais alto. E bem na hora em que eu olhava,
houve outro trovejar e outro relâmpago vermelho, fazendo ribombar os
ecos; e mais outra bala assobiou pelo ar. Mas este foi o final do canhoneio.
Permaneci deitado por algum tempo, contemplando a atividade que se
sucedia ao ataque. Havia homens demolindo alguma coisa com machados
na praia, próximo à paliçada; era o pobre bote de carga, como depois eu
soube. À distância, perto da embocadura do rio, uma grande fogueira
brilhava no meio das árvores e, entre aquele ponto e o rio, um dos escaleres
continuava indo e vindo, e os homens, que eu tinha visto tão macambúzios,
gritavam aos remos como um bando de crianças. Mas havia uma tonalidade
em suas vozes que sugeria rum.
Finalmente, eu achei que poderia retornar para a paliçada. Eu já havia
caminhado bastante ao longo da ponta de areia baixa que protegia o
ancoradouro do lado leste e percebi que, na maré baixa, aquela se unia à
Ilha do Esqueleto, e então, quando eu fiquei de pé, avistei, a uma certa
distância, perto do final da ponta arenosa, erguendo-se de um emaranhado
de mato, uma rocha isolada, bastante alta e de uma coloração branca
peculiar. Ocorreu-me que aquela poderia ser a rocha branca de que Ben
Gunn havia falado, e que, se em um desses dias um barco viesse a ser
necessário, eu saberia onde procurar.
Então me desviei por entre os bosques até chegar à parte traseira, ou seja,
o lado da paliçada que dava para a terra, e logo fui recebido com alegria
pelo pessoal que permanecera fiel.
Assim que contei minha história, comecei a olhar em torno. A cabana de
troncos fora construída inteiramente de troncos de pinheiro sem acabamento
– teto, paredes e assoalho. O piso era erguido acima da superfície da areia
até uma altura que variava de trinta a quarenta e cinco centímetros. Havia
um alpendre na porta e, sob este alpendre, uma fontezinha brotava e se
derramava em uma espécie de bacia artificial muito estranha – tratava-se de
uma caldeira de ferro retirada de um grande navio, à qual tinham cortado o
fundo e enterrado no meio da areia “até a amurada”, como dizia o Capitão.
Existia muito pouca coisa além da estrutura da casa, mas, em um canto,
havia uma laje de pedra colocada de modo a servir como fogão e um velho
cesto de ferro meio comido de ferrugem, usado para conter o fogo.
Toda a madeira dos flancos da colina e do terreno por dentro da paliçada
tinha sido usada para construir a casa, e podíamos ver pelos tocos dos
troncos cortados que um belo bosque altaneiro havia sido destruído. A
maior parte da camada superior do solo fora lavada pela chuva e pelo vento
ou amontoada em certos pontos, após a remoção das árvores, e somente no
local onde um riachinho corria a partir da caldeira enterrada, um espesso
canteiro de musgo, algumas samambaias e lianas ainda se mostravam
verdes em meio à areia. Muito próximo ao redor da paliçada – perto demais
para defesa, segundo disseram –, o bosque ainda florescia alto e denso, um
grande renque de abetos do lado da terra, mas já para o lado da praia havia
grande mistura de carvalhos-buxo de estatura mediana.
A brisa fria do crepúsculo, que eu já havia mencionado antes, assoviava
através de cada fresta da construção grosseira, borrifando o solo com uma
chuva contínua de areia fina. Havia areia em nossos olhos, areia em nossos
dentes, areia em nossa comida, areia dançando na fonte, no fundo do
reservatório, tão grossa que parecia um mingau começando a ferver. Nossa
chaminé era um buraco quadrado no teto, somente uma pequena parte da
fumaça encontrava a saída, o resto redemoinhava dentro da casa nos
fazendo tossir e lacrimejar.
Acrescente a tudo isso que Gray, nosso novo companheiro, tinha o rosto
amarrado em uma bandagem devido ao corte que havia levado quando se
separou dos amotinados, e o corpo do pobre e velho Tom Redruth, ainda
insepulto, jazia ao longo da parede, duro e frio, sob a bandeira britânica.
Se nos tivessem deixados desocupados, provavelmente todos teríamos
ficado melancólicos, mas o Capitão Smollett não era um homem que caísse
nesse erro. Todos os homens foram convocados por ele, e nos dividiu em
duas guardas. O Doutor, Gray e eu estávamos em uma; o Conde, Hunter e
Joyce na outra. Mesmo cansados como estávamos, dois foram enviados em
busca de lenha; dois mais foram postos a cavar uma sepultura para Redruth;
o Doutor foi nomeado cozinheiro; eu fiquei de sentinela à porta; e o próprio
Capitão ia de um posto a outro, mantendo firme nosso entusiasmo e dando
uma mão onde quer que fosse necessário.
De tempos em tempos, o Doutor chegava até a porta a fim de tomar um
pouco de ar e descansar seus olhos, que a fumaça incomodava muito;
sempre que fazia isto, tinha uma palavra a trocar comigo.
– Esse homem, Smollett – disse ele uma vez –, é melhor do que eu. E
quando eu digo uma coisa dessas, quero dizer muita coisa, Jim.
Em outra ocasião, ele veio e ficou silencioso durante algum tempo. Então
virou o rosto meio de lado e me olhou.
– Este Ben Gunn é um bom homem? – ele indagou.
– Eu não sei, senhor – disse eu. – Eu nem tenho certeza se ele é bom da
cabeça.
– Se existe alguma dúvida a respeito disso, posso garantir que é –
respondeu o Doutor. – Um homem que ficou três anos roendo as unhas,
sozinho em uma ilha deserta, Jim, não pode parecer tão são quanto você ou
eu. Não está na natureza humana. Foi queijo que ele declarou ter tanta
vontade de comer?
– Sim, senhor, queijo – eu respondi.
– Bem, Jim – disse ele –, veja o bem que existe em gostar da boa comida.
Você já viu minha caixa de rapé, não viu? E por acaso alguma vez me viu
cheirar rapé? A razão é, que dentro de minha caixa de rapé, eu carrego um
pedaço de queijo parmesão – um queijo feito na Itália, muito nutritivo.
Bem, este queijo será dado a Ben Gunn!
Antes do jantar, enterramos o velho Tom na areia e permanecemos ao
redor dele por algum tempo, de cabeças descobertas na brisa. Haviam
trazido bastante lenha, mas não o suficiente para agradar o Capitão, e ele
sacudiu a cabeça e disse que “amanhã vocês devem voltar ao trabalho com
muito mais entusiasmo”. Então, depois de comermos nossa carne de porco
salgada e bebermos um copo cada um, cheio de grogue de brandy, os três
chefes se reuniram em um canto para discutir nossas perspectivas.
Parece que eles realmente não sabiam bem o que fazer, já que os
suprimentos eram tão escassos que iríamos passar fome e ser forçados a nos
render, muito antes que chegasse o barco de apoio. Mas nossa maior
esperança, assim foi concluído, era matar os bucaneiros um a um, até que
eles baixassem a bandeira negra ou partissem com o Hispaniola. De
dezenove, eles já estavam reduzidos a quinze; dois estavam feridos e um,
pelo menos, o homem que fora atingido ao lado do canhão, severamente
ferido, se não estivesse morto. Cada vez que tivéssemos uma oportunidade
de atingi-los, deveríamos aproveitá-la, salvando nossas próprias vidas com
o cuidado mais extremo. Além disso, nós tínhamos dois aliados muito
poderosos – o rum e o clima.
Quanto ao primeiro, embora estivéssemos a cerca de meia milha de
distância, podíamos escutá-los berrando e cantando até tarde da noite; e
quanto ao segundo, o Doutor disse que apostava sua peruca como,
acampados no lugar em que se achavam, junto ao pântano e desprovidos de
remédios, metade deles estaria doente antes de uma semana.
– Assim – ele acrescentou –, se nós não formos todos alvejados antes,
eles ficarão felizes de ir embora na escuna. Sempre é um navio, e suponho
que possam voltar à profissão de bucaneiros.
– É o primeiro navio que eu jamais perdi – disse o Capitão Smollett.
Eu estava morto de cansaço, como você pode imaginar, e quando
finalmente dormi, o que só ocorreu depois que me revirei bastante, dormi
como uma acha de lenha.
Os demais já estavam acordados há muito tempo e já haviam tomado o
café da manhã e aumentado a pilha de lenha para mais do dobro do que era
antes, quando eu fui acordado por um movimento e o som de vozes.
– Uma bandeira de trégua! – ouvi alguém dizer. E então, imediatamente
depois, com um tom de surpresa: – É o próprio Silver!
E, nesse momento, eu me levantei e, esfregando os olhos, corri para uma
das seteiras que havia na parede.

CAPÍTULO 20
A EMBAIXADA DE SILVER
Sem a menor dúvida, lá estavam dois homens, justamente no lado de fora
da paliçada, um dos quais sacudia um pano branco; o outro, nem mais nem
menos que o próprio Silver, estava parado placidamente a seu lado.
Era ainda muito cedo, e a manhã mais fria que me lembro de ter
enfrentado em toda a minha vida; um frio que se embrenhava até a medula
dos ossos. O céu estava brilhante e sem nuvens, e sob ele, o topo das
árvores reluzia em tons de rosa. Mas onde Silver se encontrava com seu
lugar-tenente, tudo ainda se achava em sombras, e eles vadeavam até os
joelhos em uma nuvem de vapor branco, que tinha se arrastado durante a
noite vindo do brejo e cobrira a terra. O frio e o vapor juntos contribuíam
para dar uma má impressão da ilha. Pelo menos aquele lugar era úmido,
pouco saudável e propício a doenças.
– Mantenham-se dentro da cabana, homens – disse o Capitão. – Aposto
dez para um como isto é um truque.
Então, ele saudou o bucaneiro.
– Quem vem lá? Pare ou atiraremos!
– Bandeira de trégua! – gritou Silver.
O Capitão permanecia no alpendre, mantendo-se cuidadosamente fora do
alcance de um tiro traiçoeiro, caso pretendessem disparar algum. Ele
voltou-se para nós e nos falou:
– A guarda do Doutor que fique de sobreaviso. Dr. Livesey, cuide o lado
norte, por favor; Jim, o leste; Gray, o oeste. A outra guarda fique preparada
para recarregar os mosquetes. Prestem atenção, homens e tenham todo o
cuidado!
E, então, ele voltou-se de novo para os amotinados.
– E o que vocês querem com essa bandeira de trégua? – ele exclamou.
Desta vez foi o outro homem que replicou.
– O Capitão Silver, senhor, deve subir a bordo e apresentar nossos termos
– gritou ele.
– Capitão Silver! Não conheço. Quem é ele? – gritou o Capitão. E
pudemos escutar enquanto ele resmungava para si mesmo: – Capitão, ora
essa! Pelo meu coração, que bela promoção!
Long John respondeu, por sua vez:
– Eu, senhor. Estes pobres rapazes me escolheram como capitão, depois
de sua deserção, senhor.
Ele deu uma ênfase particular à palavra “deserção”.
– Estamos dispostos a nos submeter, se pudermos chegar a um acordo
sobre os termos, e não vamos criar problemas. Só o que eu peço é sua
palavra de honra, Capitão Smollett, de que eu sairei são e salvo desta
paliçada e que vou ter um minuto para sair do alcance de tiro, antes que
qualquer um seja disparado.
– Homem – disse o Capitão Smollett –, não tenho a menor vontade de
falar com você. Se você quiser falar comigo, pode vir, mas isto é tudo. Se
houver alguma traição, vai ser do seu lado; e que o Senhor o ajude!
– Isso basta, Capitão! – gritou Long John, alegremente. – Uma palavra
sua é quanto basta. Eu conheço um cavalheiro quando vejo um, pode contar
com isso.
Pudemos ver que o homem carregando a bandeira de trégua tentava
impedir Silver de entrar. Nem isso era de espantar, considerando o tom
altaneiro da resposta do Capitão. Mas Silver riu alto e deu-lhe um tapa nas
costas, como se a ideia de alarme fosse absurda. Então, ele avançou até a
paliçada, jogou a muleta por cima, segurou-se com os braços enquanto
passava a única perna; e, com grande vigor e habilidade, conseguiu
ultrapassar a cerca e cair de nosso lado em segurança.
Eu devo confessar que estava demasiado interessado no que estava
acontecendo para ter a menor utilidade como sentinela; sem dúvida, eu
praticamente desertei minha seteira oriental e caminhei silenciosamente por
trás do Capitão, que agora estava sentado no limiar da porta, com os
cotovelos fincados nos joelhos, a cabeça apoiada nas mãos e seus olhos
fixos na água, enquanto esta borbulhava para fora do velho reservatório de
ferro enterrado na areia. Ele até começou a assobiar baixinho uma melodia
chamada “Venham, moças e rapazes”.
Silver teve uma dificuldade tremenda para galgar a colina. Primeiro,
porque a inclinação já era de si íngreme e cheia de troncos de árvore
cortados; depois, na areia macia, ele e sua muleta eram tão inúteis como um
navio colocado sobre suportes em um estaleiro. Mas ele prosseguiu na
tarefa corajosamente, em silêncio, e finalmente chegou diante do Capitão, a
quem prestou continência da forma mais garbosa. Ele estava vestido com
suas melhores roupas: um imenso casaco azul, cheio de botões de bronze,
que descia-lhe até os joelhos, e um belo chapéu enfeitado de rendas, que ele
colocara inclinado para a parte de trás de sua cabeça.
– Pois já que conseguiu chegar, homem – disse o Capitão, levantando a
cabeça –, é melhor que se sente de uma vez.
– Não vai deixar que eu entre, Capitão? – queixou-se Long John. – É
uma manhã muito fria, sem dúvida, senhor, para ficar sentado na rua em
cima da areia.
– Ora, Silver – disse o Capitão –, se você tivesse tido o prazer de
permanecer um homem honesto, poderia estar sentado ainda dentro de sua
cozinha quente. A escolha foi sua. Ou você é o cozinheiro de meu navio – e
nessa função você foi tratado muito bem – ou é o Capitão Silver, um
amotinado e pirata comum, e nesse caso, só merece a forca!
– Bem, bem, Capitão – retornou o cozinheiro de bordo, sentando-se na
areia como lhe fora ordenado –, só que o senhor vai ter de me dar uma mão
para que eu possa me levantar de novo. Você tem um belo lugarzinho aqui.
Ah, lá está Jim. O melhor de tudo para você esta manhã, Jim. Doutor, aceite
meus serviços. Ora, aqui estão todos vocês reunidos, uma verdadeira
família feliz, como se diz.
– Se você tem alguma coisa a dizer, homem, é melhor que a diga logo –
falou o Capitão.
– Tem toda a razão, Capitão Smollett – replicou Silver. – Dever é dever,
sem a menor dúvida. Bem, então, olhe aqui, foi uma obra muito bem-feita,
a sua obra da noite passada. Eu não nego que agiu com grande esperteza.
Alguns de vocês são muito habilidosos com um mosquete. E também não
posso negar que alguns da minha gente ficaram muito perturbados – talvez
todos tenham ficado perturbados; talvez até eu mesmo tenha me perturbado;
e é por isso que eu estou aqui para negociar. Mas preste atenção, Capitão:
não vai acontecer a segunda vez, com mil trovões! Nós vamos ter de montar
sentinela e diminuir um pouco o rum. Quem sabe o senhor pensa que todos
nós estávamos tão tontos como uma vela sacudida pelo vento? E eu lhe digo
que estava sóbrio, eu estava somente cansado como um cão, e se tivesse
acordado um minuto mais cedo, teria pegado vocês no ato, ah, teria! Ele
não estava morto, quando eu o agarrei, ah, não estava!
– Bem, e daí? – disse o Capitão Smollett, com a maior frieza.
Tudo o que Silver tinha dito era um enigma para ele, mas ninguém
adivinharia pelo seu tom de voz. Quanto a mim, comecei a fazer uma certa
ideia. As últimas palavras de Ben Gunn voltaram à minha mente. Eu
comecei a supor que ele tinha feito uma visita aos bucaneiros, enquanto
todos dormiam bêbados ao redor da fogueira; e pensei, com alegria, que
agora só tínhamos quatorze inimigos para nos preocupar.
– Bem, aqui está – disse Silver. – Nós queremos aquele tesouro e vamos
tê-lo, de um jeito ou de outro – esse é o nosso ponto! Vocês preferem salvar
suas vidas, acho eu. Esse é o ponto de vocês. Você tem um mapa, não tem?
– Até pode ser que tenha – replicou o Capitão.
– Tudo bem, vocês têm, eu sei disso – retornou Long John. – Você não
precisa ser tão grosseiro com um homem; isso não adianta para nada, pode
acreditar. O que eu quero dizer é: nós queremos seu mapa. Agora saiba que
eu mesmo nunca pretendi fazer-lhe mal algum.
– Essa conversa não vai funcionar comigo, homem – interrompeu o
Capitão. – Nós sabemos exatamente o que você pretende fazer e não nos
importamos, porque agora, como vê, não nos pode fazer mais nada.
O Capitão olhou para ele calmamente, enquanto enchia seu cachimbo.
– Se Abe Gray... – explodiu Silver.
– Agora, chega! – gritou Mr. Smollett. – Gray não me contou nada e eu
nada lhe perguntei, e se quer saber, antes de perguntar qualquer coisa, eu
preferia que você, ele e esta ilha inteira explodissem em um monte de
centelhas! Esta é minha opinião sobre esse assunto, homem!
Esta pequena explosão pareceu esfriar Silver. Antes, era ele que estava se
encolerizando, mas então reassumiu o controle de si mesmo.
– Está bem – disse ele –, não sou eu que vou estabelecer limites para o
que cavalheiros possam considerar como um navio bem aprestado. Nem
poderia mesmo, neste caso. Porém, vendo que o senhor está a ponto de dar
uma cachimbada, Capitão, vou tomar a liberdade de fazer o mesmo.
E ele encheu um cachimbo e acendeu-o; e os dois homens ficaram
sentados ali por um longo tempo, fumando silenciosamente, às vezes
olhando um para o rosto do outro, às vezes ajeitando o tabaco, às vezes
inclinando-se para a frente a fim de cuspir. Olhar os dois era o mesmo que
assistir a uma peça de teatro.
– Agora – Silver reassumiu no ponto em que havia parado –, é o
seguinte: vocês me dão o mapa para nós pegarmos o tesouro, e param de
atirar em pobres marujos ou de rebentar suas cabeças enquanto estão
dormindo. Se concordarem com isso, nós lhe ofereceremos uma escolha.
Ou vocês sobem a bordo conosco, assim que o tesouro tiver sido carregado
– e nesse caso eu lhes faço um juramento, sob palavra de honra, de que os
desembarcarei em algum lugar, numa praia segura – ou, se não se
agradarem da ideia, já que alguns de meus rapazes são muito violentos e
têm contas antigas a ajustar, por um motivo ou outro, então vocês podem
permanecer aqui, se quiserem. Nós dividimos os suprimentos com vocês,
cabeça por cabeça, e eu lhes darei meu juramento solene, como antes, de
que falarei com o primeiro barco que avistarmos, para que venha até aqui
apanhá-los. Você vai reconhecer que é uma boa proposta. Coisa melhor não
vai conseguir, de jeito nenhum. E eu espero – disse ele, erguendo a voz –
que toda a tripulação desta casamata aqui vai dar atenção às minhas
palavras, porque o que eu digo para um, estou dizendo para todos.
O Capitão Smollett ergueu-se de onde estava sentado e bateu com as
cinzas do cachimbo na palma de sua mão esquerda.
– E isso é tudo? – ele perguntou.
– São minhas últimas palavras, com mil trovões! – respondeu John.
Recuse isso e a próxima coisa que ouvirá de mim serão balas de mosquete.
– Muito bem – disse o Capitão –, agora, é você que vai me escutar. Se
vocês subirem até aqui, um por um, desarmados, eu me comprometo a
colocá-los todos a ferros e a levá-los todos para casa, a fim de terem um
julgamento justo na Inglaterra. Se vocês não vierem, assim como meu nome
é Alexander Smollett e pelas cores de meu soberano que desfraldei, vou
mandar todos vocês ao encontro de Davy Jones, o demônio do mar. Vocês
não podem encontrar o tesouro. Vocês não sabem pilotar o navio – não
existe entre vocês um só homem que possa encontrar o curso. Vocês não
podem combater contra nós. Gray, que está aí dentro, conseguiu se livrar
sozinho de cinco de vocês. Seu navio é o porão onde será posto a ferros,
Mestre Silver; você está abandonado na praia, como logo irá descobrir. Eu
permaneço aqui e lhe digo, e estas serão as últimas boas palavras que vai
ouvir de mim, pois, em nome de Deus, vou meter-lhe uma bala nas costas
da próxima vez em que o encontrar. Dê o fora, meu rapaz. Arraste-se para
fora daqui, por gentileza, nem que tenha de caminhar com as mãos;
somente fuja o mais depressa que puder!
O rosto de Silver parecia um quadro, seus olhos estavam arregalados e
pareciam saltar das órbitas de tanta raiva. Ele sacudiu as cinzas e as brasas
de seu cachimbo.
– Dê-me uma mão para eu me levantar! – gritou ele.
– Eu não – respondeu o Capitão.
– Quem vai me dar uma mão para eu poder me levantar? – rugiu ele.
Nem um só de nós se moveu. Grunhindo as imprecações mais imundas,
ele se arrastou ao longo da areia, até chegar ao alpendre, onde pôde apoiar-
se novamente em sua muleta. Então, ele cuspiu no chão.
– É isso – gritou ele –, é isso que eu penso de vocês. Em menos de uma
hora eu vou rebentar a sua velha casamata como se fosse um barrilete de
rum! Riam, com mil trovões, riam! Em menos de uma hora, vocês vão rir
de barriga aberta! E, então, os sortudos serão os que morrerem primeiro!
E, com uma praga pavorosa, ele manquejou para longe, lavrando a areia
com a muleta e o pé. Após quatro ou cinco fracassos, foi ajudado a pular a
paliçada pelo homem que trazia a bandeira de trégua, desaparecendo um
instante depois por entre as árvores.

CAPÍTULO 21
O ATAQUE
Assim que Silver desapareceu, o Capitão, que o estava vigiando de perto,
voltou-se para o interior da casa e descobriu que nenhum de nós estava em
seu posto, exceto Gray. Foi a primeira vez, em toda a aventura, que
realmente o vimos furioso.
– Todos aos seus postos! – ele rugiu. E então, enquanto nós todos
corríamos de volta para nossos lugares: – Gray – disse ele –, vou colocar
seu nome no Livro de Bordo; você permaneceu em seu posto como um bom
marujo. Mr. Trelawney, o senhor me surpreendeu. Doutor, pensei que o
senhor tivesse usado o uniforme do Rei! Se foi assim que serviu em
Fontenoy, senhor, teria sido melhor se permanecesse em seu beliche.
A guarda do Doutor voltou imediatamente para suas seteiras, enquanto o
resto se ocupava em carregar os mosquetes de reserva, todos de rostos
vermelhos de vergonha, pode ter certeza, como se tivessem sido mordidos
por pulgas.
O Capitão ficou olhando para nós em silêncio. Então falou:
– Meus rapazes – disse ele –, acabei de dar um tiro no costado de Silver.
Eu lhe cravei um ferro em brasa de propósito. Em menos de uma hora,
como ele disse, vamos ser abordados. Estamos em minoria, não preciso
dizer-lhes isto, mas nós combatemos abrigados, e, um minuto atrás, eu
poderia ter dito que combatemos com disciplina. Não tenho a menor dúvida
de que poderemos derrotá-los, desde que vocês ajam da maneira certa.
Então, ele fez a ronda e viu, segundo disse, que tudo estava bem.
Nos dois lados estreitos da casa, leste e oeste, somente havia duas
seteiras; no lado sul, onde ficava o alpendre, mais duas; mas do lado norte,
havia cinco. Tínhamos vinte mosquetes para nós sete; a lenha tinha sido
disposta em quatro pilhas – que eram quase quatro mesas – cada uma
colocada mais ou menos na metade de cada parede; e, sobre cada uma
dessas mesas improvisadas, um pouco de munição; quatro mosquetes
carregados estavam colocados a pequena distância de cada um dos
defensores. No meio, os cutelos estavam empilhados em boa ordem.
– Apaguem o fogo – disse ele. – O frio da manhã já passou e não
podemos ficar com fumaça nos olhos.
O cesto de ferro cheio de brasas foi carregado para fora por Mr.
Trelawney; e as brasas foram apagadas com areia.
– Hawkins não comeu nada nesta manhã. Hawkins, sirva-se de um pouco
de comida e retorne a seu posto para comer lá – continuou o Capitão
Smollett. – Depressa agora, rapaz; você vai sentir falta do alimento antes
que isto acabe. Hunter, sirva uma dose de brandy para todos.
E enquanto ia sendo obedecido, o Capitão completou, dentro de sua
própria mente, o plano de defesa.
– Doutor, o senhor se encarregue da porta – recomeçou ele. – Mas veja,
não se exponha, fique do lado de dentro e atire através do alpendre; Hunter,
assuma o lado leste; Joyce, você fica do lado oeste, homem. Mr. Trelawney,
o senhor é o melhor atirador: o senhor e Gray defenderão a longa parede
norte, com as cinco seteiras, é desse lado que vem o maior perigo. Se eles
conseguirem chegar até ela e disparar através de nossas próprias escotilhas,
as coisas vão sujar para o nosso lado. Hawkins, nem você nem eu somos de
muita valia como atiradores, vamos ficar a postos para carregar e dar uma
mão onde for necessário.
Como o Capitão tinha dito, o frio havia passado. Assim que o sol subiu
acima do cinturão de árvores que nos rodeava, caiu com toda a força sobre a
clareira, e evaporou a névoa como se a bebesse de um só gole. Logo a areia
estava tão quente que parecia cozinhar ao sol, e a resina escorria derretida
dos troncos que formavam a casamata. Tiramos casacos e sobrecasacas,
abrimos as camisas no pescoço e enrolamos as mangas até os ombros; e ali
ficamos, cada um parado em seu posto, em uma febre de calor e
antecipação.
Uma hora passou-se lentamente.
– Que o Diabo os enforque! – exclamou o Capitão. – Isto é tão
aborrecido como as calmarias do Equador. Gray, assobie para chamar o
vento!
Justamente neste momento, chegaram as primeiras novas do ataque.
– Por favor, senhor – disse Joyce –, se eu vir alguém, devo atirar?
– Foi justamente o que eu disse! – gritou o Capitão.
– Obrigado, senhor – respondeu Joyce, com a mesma tranquilidade.
Nada se seguiu por algum tempo, porém aquela observação nos tinha
posto em alerta, todos esforçando ao máximo olhos e ouvidos – os que
apontavam os mosquetes com as armas equilibradas nas mãos, o Capitão
parado bem ao meio da casamata, com os lábios muito apertados e o cenho
franzido.
Assim se passaram alguns segundos, até que, de repente, Joyce ergueu
seu mosquete e atirou. Mal o estampido tinha cessado de soar, quando foi
repetido muitas vezes, do lado de fora, em uma salva descompassada, tiro
após tiro, como uma fila de gansos voando pelo ar, atingindo o recinto
vindos de todos o pontos do quadrante. Diversas balas atingiram a cabana
de troncos, mas nem uma só entrou; e, à medida que a fumaça se dissipava
e desaparecia, a paliçada e os bosques a seu redor pareciam tão calmos e
vazios quanto anteriormente. Nem sequer um ramo se movia, nem o brilho
de um só cano de mosquete traía a presença de nossos inimigos.
– Você atingiu seu homem? – perguntou o Capitão.
– Não, senhor – replicou Joyce. – Acredito que não, senhor.
– Pelo menos está falando a verdade – resmungou o Capitão Smollett. –
Carregue a arma dele, Hawkins. Quantos você diria que estavam do seu
lado, Doutor?
– Eu sei exatamente – disse o Dr. Livesey. – Foram disparados três tiros
deste lado. Eu vi os três clarões – dois bem perto um do outro – e mais um
para oeste.
– Três! – repetiu o Capitão. – E quantos do seu lado, Mr. Trelawney?
Mas esta pergunta já não foi tão fácil de responder. Muitos tiros tinham
vindo do lado norte – sete, pela computação do Capitão; oito ou nove, de
acordo com Gray. Já do leste e do oeste, somente um único tiro havia sido
disparado. Estava claro, portanto, que o ataque viria do lado norte, enquanto
dos outros três lados, nós somente seríamos aborrecidos por demonstrações
de hostilidade. Mas o Capitão Smollett não fez nenhuma modificação em
seus arranjos. Se os amotinados tivessem sucesso em cruzar a paliçada, ele
argumentou, tomariam posse de qualquer seteira que não estivesse sendo
defendida e nos alvejariam como ratos dentro de nossa própria fortaleza.
Nem nos sobrou muito tempo para pensar. Subitamente, com um grande
alarido, um pequeno bando de piratas saltou dos bosques que ficavam do
lado norte e correu diretamente para a paliçada. No mesmo momento,
abriram fogo novamente do meio das árvores, e uma bala cantou através da
porta, fazendo em pedaços o mosquete do Doutor.
Os assaltantes treparam na cerca como macacos. O Conde e Gray
atiraram de novo e mais uma vez; três homens tombaram, um para a frente,
dentro do cercado, e dois para o lado de fora. Porém, destes, um estava
evidentemente mais assustado do que ferido, porque se ergueu novamente
em um segundo, desaparecendo instantaneamente por entre as árvores.
Dois foram feridos, um fugiu; mas quatro conseguiram penetrar em
nosso perímetro de defesa; ao passo que, do abrigo dos bosques, sete ou
oito homens, cada um evidentemente dispondo de vários mosquetes,
continuavam mantendo um fogo constante, se bem que inútil, contra os
troncos da cabana.
Os quatro que tinham abordado nossas defesas correram em frente, na
direção da edificação, gritando enquanto corriam, e os homens que estavam
entre as árvores também gritavam para encorajá-los. Diversos tiros foram
disparados, mas os atiradores estavam com tanta pressa, que nenhum
pareceu ter efeito. Em um momento, os quatro piratas tinham galgado a
elevação e estavam sobre nós.
A mão de Job Anderson, o contramestre, apareceu na seteira central.
– Ataquem todos, ataquem todos! – rugiu ele, em uma voz estentória.
No mesmo momento, outro dos piratas agarrou o mosquete de Hunter
pelo cano, arrancou-o de suas mãos, puxou-o através da seteira e, com um
golpe violento da coronha, prostrou o pobre camarada sem sentidos no
chão. Enquanto isso, um terceiro, correndo sem ser molestado ao redor da
casa, apareceu subitamente à porta e caiu, de cutelo em punho, sobre o
Doutor.
Nossa posição estava completamente revertida. Um momento antes,
estávamos atirando sob cobertura, contra um inimigo exposto; agora,
éramos nós que estávamos a descoberto, e não podíamos devolver um
golpe.
A cabana estava cheia de fumaça, e foi a isso que devemos nossa
comparativa segurança. Gritos e confusão, clarões e estampidos de pistola e
um gemido alto soaram em meus ouvidos.
– Para fora, rapazes, para fora, vamos combatê-los do lado de fora!
Peguem os cutelos! – gritou o Capitão.
Eu peguei um cutelo da pilha, e alguém, segurando outro ao mesmo
tempo, fez-me um corte nos nós dos dedos, que eu mal senti. Pulei para fora
da porta, para a clara luz do sol. Alguém vinha logo atrás de mim, não sei
quem. Bem à minha frente, o Doutor estava perseguindo seu assaltante
colina abaixo, e derrubou-o de costas no chão, com um grande talho no
rosto.
– Ao redor da casa, rapazes! Ao redor da casa! – gritou o Capitão; e
mesmo na escaramuça, eu percebi uma mudança em sua voz.
Mecanicamente, obedeci, virei-me para leste e, com o cutelo erguido,
corri ao redor da esquina da casa. No momento seguinte, estava face a face
com Anderson. Ele deu um berro de fúria, e sua espada subiu acima de sua
cabeça, cintilando à luz do sol. Não tive tempo de ter medo, mas, enquanto
o golpe não caía sobre mim, dei um pulo rápido de lado e, perdendo o pé na
areia macia, rolei com a cabeça para frente ladeira abaixo.
Quando saí pela porta, os outros amotinados já estavam enxameando pela
paliçada acima, a fim de acabar conosco. Um homem, usando um barrete
vermelho, prendendo o cutelo entre os dentes, já tinha chegado ao topo e
colocado uma das pernas para o lado de dentro. Bem, o intervalo tinha sido
tão curto, que quando eu me pus sobre meus pés de novo, todos estavam na
mesma postura, o homem do barrete vermelho ainda metade dentro e
metade fora, enquanto outro ainda mostrava apenas a cabeça acima do topo
da paliçada. E todavia, neste átimo de tempo, o combate tinha terminado e a
vitória era nossa.
Gray, que vinha logo atrás de mim, tinha cortado o grande contramestre
com um golpe de cutelo, antes que ele tivesse tido tempo para se recuperar
de seu próprio golpe dado em falso. Outro dos piratas tinha sido alvejado
através de uma seteira, justo no momento em que pretendia dar um tiro para
dentro da casa; este jazia em agonia, com a pistola ainda fumegando em sua
mão. Um terceiro, como eu tinha visto, o Doutor acabou com um golpe
certeiro. Dos quatro que tinham escalado a paliçada, faltava só um; mas
este, tendo abandonando seu cutelo no campo de luta, estava agora se
esforçando para subir a paliçada de volta para fora, premido pelo medo da
morte.
– Fogo! Atirem de dentro da casa! – gritou o Doutor. – E vocês, rapazes,
protejam-se de novo.
Mas suas palavras não foram atendidas, nenhum tiro foi disparado e o
último assaltante conseguiu escapar, desaparecendo com o resto no meio do
mato. Em três segundos, não restava mais nada da tropa de assalto, salvo os
cinco que haviam tombado, quatro no interior e um do lado de fora da
paliçada.
O Doutor, Gray e eu corremos a toda velocidade para o abrigo. Os
sobreviventes logo estariam de volta aos postos em que tinham deixado
seus mosquetes; e, a qualquer momento, o fogo poderia recomeçar.
A esta altura, a casa já estava meio limpa da fumaça, e vimos num
relance o preço que havíamos pago pela vitória. Hunter estava deitado do
lado de sua seteira, ainda desmaiado; Joyce também jazia junto à sua, com
um tiro na cabeça, para não se erguer nunca mais; e, bem no centro, o
Conde estava segurando o Capitão, cada qual mais pálido que o outro.
– O Capitão está ferido – disse Mr. Trelawney.
– Eles fugiram? – perguntou Mr. Smollett.
– Todos os que puderam, pode ter certeza – retorquiu o Doutor. – Mas há
cinco deles que nunca correrão de novo.
– Cinco? – gritou o Capitão. – Bem, essa é uma boa notícia. Cinco contra
três nos deixa quatro contra nove. Estamos em melhor proporção que no
início. Então éramos sete contra dezenove, ou pensávamos ser; e isso era
muito mais difícil de aguentar.6

6 Logo descobrimos que os amotinados eram somente oito. O homem alvejado a bordo da escuna por
Mr. Trelawney morreu naquela mesma noite em consequência de seu ferimento. Mas isto,
naturalmente, só chegou ao conhecimento do grupo leal a nós bem mais tarde.
PARTE V
MINHA AVENTURA NO MAR

CAPÍTULO 22
COMO EU COMECEI MINHA AVENTURA NO MAR
Os amotinados não retornaram – nem ao menos para darem outro tiro de
dentro do bosque. Eles tinham “recebido a ração daquele dia”, como definiu
o Capitão; assim, tivemos o lugar só para nós e uma certa tranquilidade para
tratar dos feridos e preparar o jantar. O Conde e eu cozinhamos do lado de
fora, apesar do perigo, mas mesmo de fora mal conseguíamos nos
concentrar no que estávamos fazendo, devido aos terríveis gemidos
emitidos pelos pacientes do Doutor, que chegavam até nós.
Dos oito homens que tinham tombado em ação, somente três ainda
respiravam – o pirata que havia sido alvejado na seteira, Hunter e o Capitão
Smollett; dentre estes, os primeiros dois estavam praticamente mortos; o
amotinado, de fato, morreu sob a faca do Doutor; e Hunter, por mais que
nos esforçássemos, não mais recobrou a consciência neste mundo. Ele
durou o dia todo, estertorando alto, como o velho bucaneiro em nossa casa,
depois do ataque de apoplexia, mas os ossos de seu peito tinham sido
esmagados pelo coronhaço e seu crânio fraturado na queda; deste modo, em
algum momento da noite que se seguiu, sem dar outro sinal ou som, ele foi
para seu Criador.
Quanto ao Capitão, suas feridas eram realmente dolorosas, mas não
apresentavam perigo. Nenhum órgão tinha sido atingido de forma fatal. A
bala de Anderson – pois foi Job que lhe acertou o primeiro tiro – tinha
quebrado a sua omoplata e roçado pelo pulmão, porém apenas de leve; a
segunda bala tinha somente ferido e deslocado alguns músculos na
panturrilha. Certamente ele se recobraria, disse o Doutor, mas, enquanto
isso, por várias semanas, ele não poderia caminhar nem mover o braço; de
fato, nem sequer deveria falar, quando pudesse evitá-lo.
Meu próprio corte acidental nos nós dos dedos era como uma picada de
pulga. O Dr. Livesey fez um curativo com um pouco de gesso e puxou-me
as orelhas como parte do tratamento.
Após o jantar, o Conde e o Doutor sentaram-se junto ao lugar em que
jazia o Capitão, a fim de decidirem o que fazer, e quando tinham falado
tudo o que achavam necessário, já tendo passado um pouco do meio-dia, o
Doutor pegou seu chapéu e um par de pistolas, colocou um cutelo à cintura
e o mapa em seu bolso e, com um mosquete ensarilhado ao ombro, cruzou a
paliçada do lado setentrional, iniciando uma marcha vigorosa e rápida entre
as árvores.
Gray e eu haviámos sentado juntos, do outro lado da casamata, em uma
posição em que fosse difícil escutar a conversa que nossos oficiais faziam
entre si; e Gray tirou o cachimbo da boca e praticamente esqueceu-se de
colocá-lo de novo de tão assombrado ficou com esta ocorrência.
– Ora, com os demônios! – exclamou ele –, o Dr. Livesey ficou louco?
– Ora, é claro que não – disse eu. – Acho que ele é o último de nós que
enlouqueceria, pelo menos é o que eu penso!
– Bem, companheiro – disse Gray –, pode ser que ele não esteja maluco,
mas se não está, o maluco sou eu!
– Eu sei por que – repliquei eu. – O Doutor tem uma ideia na cabeça. Se
não estou enganado, ele saiu para se encontrar com Ben Gunn.
Eu estava certo, como fiquei sabendo depois, mas, enquanto isso, já que
a casa estava muito quente e abafada e o pequeno trecho de areia que ficava
por dentro da paliçada parecia em fogo sob o sol do meio-dia, eu comecei a
dar ouvidos a outro pensamento em minha cabeça, que não era em absoluto
tão correto como o do Doutor. O que me aconteceu foi simplesmente ficar
com inveja do Doutor, caminhando sob a sombra fresca das árvores, com os
passarinhos cantando ao seu redor e o agradável perfume dos pinheiros,
enquanto eu ficava sentado ali, fervendo no calor, com as roupas de minhas
costas grudadas à resina quente que escorria das paredes e muito sangue
espalhado em volta de mim, e tantos pobres corpos mortos por todo lado,
que senti um desgosto por aquele lugar tão forte quanto o medo.
Durante todo o tempo em que eu estava lavando o assoalho da casamata
e, depois, os objetos que tinham ficado sujos desde a última refeição, este
desgosto e inveja continuaram crescendo dentro de mim, ficando cada vez
mais fortes, até que, finalmente, estando perto de um fardo de biscoitos,
sem ninguém que me observasse, dei o primeiro passo para minha fuga,
enchendo com eles ambos os bolsos de meu casaco.
Eu fui um tolo, se quiserem, e certamente pretendia fazer uma coisa
idiota e temerária, mas estava determinado a fazê-la com todas as
precauções possíveis. Estes biscoitos, caso alguma coisa me sucedesse, pelo
menos impediriam que passasse fome por uma boa parte do dia seguinte.
A segunda coisa que eu peguei foi um par de pistolas; como eu já tinha
um polvorinho e balas, achei que estava bem suprido de armas.
Quanto ao esquema que eu tinha em minha cabeça, não era tão mau
assim. Eu ia descer até a ponta arenosa que separava o ancoradouro do mar
aberto, encontrar a rocha branca que tinha observado na noite anterior, e
verificar se era ali ou não que Ben Gunn tinha escondido seu barco; uma
coisa que, em si, valia realmente a pena fazer, eu acredito até hoje. Mas
como eu tinha certeza de que não me dariam permissão para deixar a
paliçada, meu único plano era sair à francesa: deslizar para fora quando
ninguém estivesse me cuidando; e essa foi uma forma tão errada de fazê-lo,
que tornou o próprio ato em uma coisa errada. Mas eu era somente um
menino e minha mente estava decidida.
Bem, de qualquer maneira, tive uma oportunidade admirável. O Conde e
Gray estavam ocupados, ajudando o Capitão a fazer um curativo, a costa
estava clara, dei uma corrida e pulei por cima da paliçada, enfiando-me por
entre as árvores no lugar em que estavam mais cerradas, e, antes que minha
ausência fosse observada, estava fora do alcance de um grito de meus
companheiros.
Esta foi minha segunda tolice, muito pior que a primeira, porque eu
deixei somente dois homens ilesos para guardar a casa; mas, como a
primeira, no final nos ajudou a salvar-nos a todos.
Tomei o caminho que levava diretamente à costa oriental da ilha, pois
estava determinado a descer à ponta de areia do lado que dava para o mar,
para evitar qualquer possibilidade de ser observado a partir do ancoradouro.
Já estávamos no final da tarde, embora continuasse quente e ensolarado.
Enquanto eu percorria os altos bosques, podia escutar, ainda longe à minha
frente, não somente o trovejar contínuo da arrebentação, mas um certo
movimento das folhagens e um ranger de galhos que me demonstravam que
a brisa marítima estava mais forte que de costume. Logo comecei a ser
atingido por lufadas de ar frio, e, depois de mais alguns passos, cheguei ao
limite do bosque e vi o mar estendendo-se azul e ensolarado até o horizonte,
e as ondas quebrando e lançando sua espuma ao longo da praia.
Eu nunca vi um mar calmo ao redor da Ilha do Tesouro. O sol brilhava
com chamas fortes acima de minha cabeça, o ar estava abafado e difícil de
respirar, a superfície do mar estava lisa e azulada; mas ainda assim, grandes
ondas quebravam ao longo de toda a costa, bramindo e trovejando dia e
noite; é difícil de acreditar que houvesse um lugar na ilha em que um
homem pudesse descansar sem ouvir-lhes o barulho.
Caminhei ao longo da praia com grande prazer; até que, achando que já
tinha caminhado o bastante em direção ao sul, escondi-me sob alguns
arbustos espessos e arrastei-me cuidadosamente até a parte mais elevada da
ponta de areia.
Por trás de mim estava o mar; à frente, o ancoradouro. A brisa marítima,
como se tivesse esgotado suas forças durante o período em que assoprara
com violência incomum, já tinha cessado; mas tinha sido sucedida por
lufadas ocasionais, leves e variáveis, provindas do sul e do sudoeste,
carregando consigo grandes bancos de nevoeiro; e o ancoradouro, sob a
proteção da Ilha do Esqueleto, permanecia tranquilo e abafado, como da
primeira vez que ingressamos nele. O Hispaniola, naquele espelho sem
rachaduras, era refletido com exatidão, desde o velame e os mastros até a
linha da água, com a Jolly Roger desfraldada no mastro mais alto.
Junto ao casco estava um dos escaleres, e Silver sentado sobre o paneiro
da popa – eu sempre conseguia reconhecê-lo –, enquanto dois homens se
inclinavam sobre as amuradas da ré, um deles com um barrete vermelho – o
próprio patife que eu tinha avistado algumas horas antes cavalgando a
paliçada. Aparentemente, eles estavam conversando e rindo, embora, àquela
distância, que era mais de uma milha, eu naturalmente não pudesse escutar
nenhuma palavra que proferissem. Mas imediatamente começaram os gritos
mais horríveis e fantasmagóricos, que no começo me assustaram muito,
embora eu logo recordasse a voz do Capitão Flint, o papagaio de Silver,
distinguindo o pássaro, por sua brilhante plumagem, empoleirado sobre o
pulso de seu dono.
Logo depois, o escaler se afastou do navio e foi conduzido para a praia,
enquanto o homem do barrete vermelho e seu companheiro entravam no
navio e desciam pela escada que levava ao camarote principal.
Foi justamente nesta hora que o sol se pôs por trás da Luneta, enquanto o
nevoeiro crescia rapidamente, e começou a ficar realmente escuro. Eu
percebi que não podia perder mais tempo, se queria encontrar o bote nessa
mesma noite.
A rocha branca, bastante visível acima do mato, estava ainda a uns
duzentos e cinquenta metros na direção da extremidade da ponta arenosa, e
levei um bom tempo para chegar até lá, arrastando-me frequentemente pelo
mato rasteiro. A noite tinha quase caído quando, finalmente, pus as mãos
em seus flancos ásperos. Logo abaixo dela, havia uma reentrância
extremamente pequena recoberta de pasto verde, com pequenas elevações
laterais que a escondiam, além de um aglomerado de lianas espessas que
chegavam mais ou menos à altura dos meus joelhos e cresciam por ali em
abundância, e, no centro da depressão, encontrava-se de fato uma pequena
tenda feita de peles de cabritos, como aquelas que os ciganos armam em
suas andanças pela Inglaterra.
Pulei para o interior do valado, ergui o lado da tenda, e lá estava o barco
de Ben Gunn – definitivamente um barco feito à mão: uma armação rude e
meio torta, feita de madeira dura, e esticada sobre ela havia uma cobertura,
também de peles de cabritos, com o pelo voltado para dentro. A coisa era
extremamente pequena, mesmo para mim, e era difícil imaginar que
pudesse flutuar com um homem adulto. Havia uma tábua servindo como
banco ao remador, colocada o mais baixo possível, uma espécie de tensor
firmando a proa por dentro e dois remos para propulsão.
Eu nunca tinha visto uma corácula, como construíam os antigos bretões,
mas naquele momento tive oportunidade de ver uma, e não lhes posso dar
uma ideia melhor do barco de Ben Gunn do que dizer que era como a
primeira corácula – e a mais mal-feita – que jamais construíram os bretões.
Mas a grande vantagem da corácula ele certamente possuía: era
extremamente leve e portátil.
Bem, agora que eu tinha encontrado o barco, qualquer um teria pensado
que eu me daria por satisfeito com minhas travessuras por aquela noite,
mas, nesse meio tempo, me veio outra ideia na cabeça, e me agradei dela
tão obstinadamente, que a teria posto em prática, acredito eu, mesmo
contrariando diretamente o próprio Capitão Smollett. A ideia que eu tive foi
a de remar, sob a proteção da noite, até o Hispaniola, cortar-lhe o cabo da
âncora e deixá-lo à deriva para que desse à praia onde pudesse. Eu
praticamente tinha resolvido que os amotinados, depois de terem sido
repelidos pela manhã, não tinham maior desejo do que levantar âncora e
pôr-se ao mar, e isto, pensei eu, seria uma coisa que eu deveria evitar. E
agora que eu tinha visto que eles haviam deixado seus vigias sem um
escaler, pensei que poderia fazê-lo sem grande risco.
Fiquei sentado por algum tempo esperando o anoitecer, e fiz uma boa
refeição com os biscoitos. Era uma noite que eu teria escolhido entre dez
mil para realizar meu propósito. O nevoeiro tinha coberto todo o céu. Assim
que os últimos raios da luz do dia foram se amortecendo e apagando,
firmou-se uma escuridão absoluta sobre a Ilha do Tesouro. E quando,
finalmente, eu coloquei a corácula ao ombro e saí aos tropeções para fora
do valado em que tinha feito minha refeição, havia somente dois pontos
visíveis em todo o ancoradouro.
Um, era a grande fogueira na praia junto à qual os piratas derrotados
estavam deitados, ainda bebendo, à beira do pântano. O outro, era uma
mera visão de luz enevoada que se destacava da escuridão, indicando a
posição do navio ancorado. Ele tinha se deslocado ao redor da âncora
durante a baixamar – sua proa voltava-se agora em minha direção – e as
únicas luzes a bordo estavam brilhando no camarote. Aquilo que eu via era
meramente o reflexo no nevoeiro dos raios de luz que saíam pela janela da
popa.
A baixamar já tinha passado há algum tempo, e eu tive de vadear através
de um longo cinturão de areia empapada, onde afundei diversas vezes até o
tornozelo, antes que pudesse chegar à linha da água que recuara da praia.
Vadeando mais um pouco mar a dentro, com um pouco de destreza e força,
coloquei minha corácula, com a quilha para baixo, sobre a água.

CAPÍTULO 23
A MARÉ BAIXA
A corácula – como constatei perfeitamente antes de acabar minha
excursão dentro dela – era um barco muito seguro para uma pessoa de
minha altura e peso, tanto com boa flutuação como firme no mar, mas era a
embarcação mais contraditória e difícil de se controlar. Fizesse eu o que
fizesse, ela sempre se deixava levar pela corrente, e dar voltas em torno de
si mesma era a manobra em que funcionava melhor. Até o próprio Ben
Gunn havia admitido que ela era “difícil de manobrar até que se conhecesse
bem o jeito dela”.
Certamente eu não conhecia o jeito dela. O barco se virava em todas as
direções, menos naquela para onde eu pretendia ir. A maior parte do tempo
ficávamos com o lado do barco voltado para a frente, e tenho certeza
absoluta de que nunca teria chegado até a escuna se não fosse pela maré.
Para minha boa fortuna, por mais que eu remasse, a maré me arrastava para
fora da praia, e lá estava o Hispaniola, bem no caminho. De fato, o difícil
mesmo era errar.
Primeiro, ele ergueu-se diante de mim como uma mancha ainda maior
que a escuridão; então, suas vergas e casco começaram a tomar forma e, no
momento seguinte, conforme me pareceu (pois quanto mais eu avançava,
mais forte crescia a corrente da baixamar), eu já estava ao lado do cabo da
âncora e segurava-me a ele.
O cabo estava tão esticado como uma corda de violino – tão forte era a
pressão que fazia contra a âncora. Ao redor do casco, no negror da noite, a
corrente agitada borbulhava e cantava como se fosse um regato de
montanha. Um corte de minha navalha de marinheiro e o Hispaniola
seguiria ao sabor da corrente.
Por enquanto, tudo estava bem, porém me lembro de ter pensado a seguir
que um cabo de navio cortado subitamente era tão perigoso como um coice
de cavalo. A possibilidade era de dez para um de que, se eu fosse tão
temerário a ponto de cortar o Hispaniola de sua âncora enquanto o cabo
estivesse esticado, tanto eu como a corácula seríamos jogados para fora da
água.
Isto me fez parar repentinamente, e, se a sorte de novo não tivesse vindo
particularmente em meu auxílio, eu teria sido forçado a abandonar meu
projeto. Mas as leves lufadas que vinham soprando do sudoeste e do sul
desde cair da noite sopravam agora mais firmes do sudoeste. Bem no
momento em que eu estava meditando, veio um sopro mais forte, apanhou o
Hispaniola e forçou-o corrente acima, e, para minha grande alegria, senti o
cabo afrouxar e a mão com que o segurava afundou por um segundo sob a
água.
Quando isto ocorreu, tomei uma decisão: agarrei a navalha e abri-a com
os dentes, cortando um fio do cabo após o outro, até que a embarcação
ficou presa somente por dois. Então me aquietei, esperando para cortar estes
últimos dois cabos quando a tensão fosse novamente diminuída por um
sopro de vento.
Todo este tempo, eu escutava o som de vozes altas provindas do
camarote, mas, para dizer a verdade, minha mente estava inteiramente
preocupada com outros pensamentos que mal tinha dado atenção a elas.
Agora, entretanto, que eu não tinha nada melhor para fazer, comecei a
escutar.
Uma das vozes eu reconheci como sendo a do contramestre Israel Hands,
que tinha sido o artilheiro de Flint no passado. A outra era, naturalmente, a
voz do meu amigo do barrete vermelho. Ambos estavam completamente
embriagados e, ainda assim, continuavam bebendo, pois, enquanto eu
escutava, um deles, com um grito de bêbado, abriu a janela da popa e jogou
alguma coisa para fora, que adivinhei ser uma garrafa vazia. Mas eles não
estavam somente embriagados, estavam extremamente furiosos. As pragas
voavam como granizo, e de vez em quando surgia tal explosão que eu tinha
certeza de que a questão seria resolvida a socos e pontapés. Mas cada uma
das vezes a dicussão abrandava e as vozes resmungavam mais baixo por
algum tempo, até começar a próxima, que, por sua vez, acabava sem
maiores consequências.
Na praia, eu podia avistar o clarão da grande fogueira do acampamento,
brilhando e aquecendo através das árvores mais próximas à margem.
Alguém estava cantando uma canção de marinheiro monótona, velha e
repetitiva, com uma queda e um trêmulo no final de cada verso, a qual,
aparentemente, só teria fim com a paciência do cantor. Eu já havia escutado
a mesma canção durante a viagem, mais de uma vez, mas só lembrava estas
palavras:
Só restava a bordo um único homem vivo,
Depois de pôr-se ao mar com setenta e cinco.
E achei que era uma cantilena bastante melancólica e apropriada para um
grupo de amotinados que tinha enfrentado perdas tão pesadas naquela
manhã. Mas, sem a menor dúvida, pelo que eu percebia, eles não estavam
se preocupando muito com os mortos: todos aqueles bucaneiros eram tão
calejados e sem piedade como o mar sobre o qual navegavam.
Finalmente, chegou a brisa, a escuna moveu-se de lado e chegou mais
perto de mim, eu senti o cabo afrouxar-se uma vez mais e, com um bom e
enérgico golpe, cortei as últimas fibras que restavam.
A brisa fizera pouco efeito sobre a corácula, e, quase instantaneamente,
eu fui jogado contra a proa do Hispaniola. No mesmo instante, a escuna
começou a girar sobre a quilha, voltando-se lentamente, uma ponta e depois
a outra, através da corrente.
Lutei como um demônio, pois pensei que a corácula seria inundada a
qualquer momento e, uma vez que percebi que não podia empurrá-la para
fora do caminho da escuna, remei diretamente para a popa. Finalmente,
livrei-me de meu perigoso vizinho, e no exato momento em que dei o
último impulso, minhas mãos encontraram uma corda fina que estava
pendendo da amurada sobre o parapeito da popa. Instantaneamente, eu a
segurei.
Por que foi que agi assim, não faço a menor ideia. A princípio, foi por
puro instinto, mas assim que coloquei minhas mãos na corda e descobri que
estava bem amarrada e firme, a curiosidade me venceu e decidi a dar uma
espiada pela janela do camarote.
Subi agarrando-me na corda, e quando julguei que estava perto o
suficiente, ergui-me, com um risco infinito, uma distância de mais ou
menos metade de minha altura, e deste modo pude ver o teto e uma parte do
interior do camarote.
A esta altura, a escuna e sua pequena companheira estavam deslizando
com bastante velocidade pela água; sem dúvida, já estávamos na altura da
fogueira do acampamento. O navio estava “falando alto”, como dizem os
marinheiros, cruzando as inumeráveis marolas em um movimento rápido,
que espadanava e borrifava água incessantemente; mas até o momento em
que ergui os olhos acima do peitoril da janela, não pude compreender
porque os vigias não se haviam alarmado. Um olhar, entretanto, foi o
suficiente, e foi somente um olhar que eu ousei lançar estando numa
posição tão instável. Esse olhar mostrou-me Hands e seu companheiro
atracados em combate mortal, cada um com uma das mãos na garganta do
outro.
Caí de volta sobre o assento da corácula, e não sem tempo, porque quase
caí fora do barco. Não pude ver nada por um momento, pois permaneciam
em minha mente as duas faces furiosas e arroxeadas, oscilando sob a
lâmpada enfumaçada, e fechei meus olhos até que se acostumassem de
novo com a escuridão.
A balada sem fim tinha terminado, afinal, e o grupo de amotinados, que
havia diminuído tanto nas últimas horas e se assentava ao redor da fogueira
do acampamento, tinha iniciado aquele coro que eu tantas vezes escutara:
Quinze homens sobre a mala do defunto –
Io-ho-hô! – e uma garrafa de rum!
O rum e o Diabo levaram os outros –
Io-ho-hô! – e uma garrafa de rum!
Eu estava justamente pensando como a bebida e o Diabo estavam
ocupados naquele momento no camarote do Hispaniola, quando fui
surpreendido por um movimento súbito da corácula. Nesse mesmo instante,
ela se desviou subitamente e pareceu mudar de curso. Enquanto isso, sua
velocidade tinha aumentado estranhamente.
Abri meus olhos de imediato. Ao meu redor, de todos os lados, surgiam
pequenos redemoinhos, que subiam do fundo com um som agudo e eriçado
e um aspecto levemente fosforescente. O próprio Hispaniola, a uns poucos
metros de cuja esteira meu barco ainda se revirava, pareceu cambalear em
seu curso, e vi seus mastros oscilarem um pouco contra o negror da noite e,
enquanto olhava, verifiquei que a escuna também estava virando em direção
ao sul.
Olhei sobre meu ombro e meu coração pulou dentro do peito. Logo ali,
bem atrás de mim, estava o brilho da fogueira do acampamento. A corrente
tinha se voltado em ângulo reto, de tal modo que arrastara consigo a alta
escuna e a pequena corácula, que não parava de dançar, cada vez mais
depressa, cada vez subindo mais e fazendo mais bolhas, cada vez rosnando
mais alto, girando sem parar através dos estreitos que conduziam ao mar
aberto.
De repente, a escuna que vogava à minha frente deu uma violenta
guinada, virando-se, talvez, uns vinte graus, e, quase ao mesmo momento,
um grito sucedeu-se a outro vindo de bordo. Pude escutar o ruído de pés
correndo pela escada do camarote e imaginei que os dois bêbados tinham,
finalmente, sido interrompidos em sua luta e acordado para perceber o
desastre.
Deitei-me ao comprido no fundo daquele desgraçado barco e,
devotamente, recomendei meu espírito ao Criador. No final da passagem
dos estreitos, eu tinha certeza de que bateríamos de frente contra uma barra
de ondas furiosas, onde todos os meus problemas terminariam rapidamente.
Embora eu pudesse, talvez, suportar a ideia de morrer, não conseguia
suportar ficar olhando para meu destino à medida que este se aproximava.
Assim, eu devo ter ficado deitado no fundo do barco durante horas,
continuamente batido para cá e para lá pelos macaréus, ensopado vez por
outra pelos borrifos que voavam pelos ares e nunca cessando de esperar a
morte no próximo mergulho. Gradualmente, o cansaço cresceu sobre mim;
uma dormência, um estupor ocasional, caíram sobre minha mente em meio
a meus terrores, até que, finalmente, o sono me venceu e, dentro de minha
corácula agitada pelo mar, eu permaneci deitado sonhando com minha casa
e com a velha estalagem “Almirante Benbow”.

CAPÍTULO 24
O CRUZEIRO DA CORÁCULA
Já era dia claro, quando me acordei e descobri que estava balouçando
sobre o mar próximo à ponta sudoeste da Ilha do Tesouro. O sol já se havia
erguido, mas permanecia escondido por trás da grande massa da Luneta
que, vista deste lado, descia quase até o mar em penedos formidáveis.
O Promontório da Linha de Arrastão e a Colina do Mastro da Mezena
estavam na direção de meu cotovelo; a colina, nua e escura; o promontório,
limitado por rochedos de doze a quinze metros de altura e bordejado por
grandes massas de rochas tombadas. Eu não estava a mais do que uns
quatrocentos metros de distância da costa, e meu primeiro pensamento foi o
de remar até chegar lá.
Logo desisti desta ideia. Por entre as rochas tombadas do promontório, as
ondas se esbatiam e rugiam; fortes reverberações, esguichos grossos que
espumejavam e caíam sucediam-se uns aos outros de segundo em segundo.
Eu me imaginei, se ousasse chegar mais perto, esfacelado contra a costa
selvagem ou então gastando minhas forças em vão para escalar os rochedos
salientes.
E isso não era tudo, pois, arrastando-se juntos nas plataformas mais lisas
da rocha ou deixando-se cair no mar com estrondo, eu contemplei monstros
imensos, viscosos – lesmas, por assim dizer, mas de um tamanho incrível –,
quarenta ou sessenta deles juntos, fazendo as rochas ecoar com seus
ladridos.
Então compreendi que eram simplesmente leões-marinhos, animais
inteiramente inofensivos. Mas seu aspecto, acrescido à dificuldade de
acesso à margem e às ondas altas que rebentavam contra ela, foi mais do
que suficiente para me dissuadir daquele ponto de desembarque. Estava
mais disposto a passar fome no mar do que a confrontar-me com tais
perigos.
Enquanto isso, eu tinha uma melhor possibilidade diante de mim,
conforme supunha. Ao norte do Promontório da Linha do Arrastão, a terra
se dirigia bem para dentro do mar, deixando exposta, durante a baixamar,
uma larga faixa de areia amarela. E mais uma vez, ao norte desta praia,
havia um outro cabo – o Cabo dos Bosques, conforme estava marcado na
carta marítima –, recoberto por altos pinheiros verdes, que desciam até a
beira do mar.
Eu lembrei o que Silver havia dito a respeito da corrente que se dirigia
para o norte ao longo de toda a costa oeste da Ilha do Tesouro e,
percebendo, da posição em que me achava, que já estava sob a influência
dessa corrente, preferi deixar o Promontório da Linha do Arrastão para trás
e reservar minhas forças para uma tentativa de desembarcar no Cabo dos
Bosques, que tinha um aspecto muito mais hospitaleiro.
Havia uma ondulação grande e lisa sobre o mar à minha frente. O vento
soprava firme mas delicadamente vindo do sul, não havia contrariedade
entre o vento e a corrente e os macaréus erguiam-se e desciam sem se partir.
Se não tivesse sido assim, provavelmente eu já teria perecido há muito
tempo; mas naquelas condições de tempo, era surpreendente como o
pequeno e leve barco podia subir e descer as ondas com facilidade e
segurança. Várias vezes, durante o período em que eu permaneci deitado no
fundo do barco, mantendo apenas um olhar acima das beiradas, via o
grande topo de uma onda azul erguendo-se bem perto e acima de mim;
todavia, a corácula apenas balouçava um pouco, dançava como se estivesse
sobre molas, e recaía na profundeza do outro lado da onda, tão levemente
como um passarinho.
Depois de algum tempo, eu comecei a sentir-me bastante encorajado e
procurei uma posição sentada a fim de testar minha habilidade como
remador. Porém, mesmo uma pequena mudança na disposição do peso pode
produzir violentas mudanças no comportamento de uma corácula. E, mal eu
tinha me movido, quando o barco, desistindo de repente de seu movimento
gentil de dança, correu diretamente para um declive na água, tão íngreme
que me deixou tonto; e enfiou a proa, com um grande esguicho,
profundamente no flanco da próxima onda.
Eu fiquei ensopado e aterrorizado, e voltei imediatamente à minha antiga
posição, quando a corácula pareceu encontrar seu equilíbrio de novo e
conduziu-me, tão mansamente quanto antes, por entre os macaréus. Estava
claro que o barquinho não aceitava interferências; e agora, já que eu não
podia influenciar-lhe o curso de qualquer maneira, que esperança eu tinha
de dar à praia?
Comecei a ficar terrivelmente assustado, mas mesmo assim mantive o
controle. Em primeiro lugar, movendo-me com o maior cuidado,
gradualmente esvaziei o fundo da corácula com meu chapéu de lona grossa;
e então, pondo os olhos novamente acima da beirada, comecei a estudar
como era que ela conseguia deslizar tão mansamente por entre os altos
macaréus.
Descobri que cada onda, em vez de ser a grande montanha brilhante e
lisa que aparenta ser da praia ou do tombadilho de uma nave, assemelhava-
se mais a uma cadeia de colinas em terra seca, cheia de picos entremeados
de lugares menos elevados e de vales. A corácula, quando deixada a si
mesma, girava de um lado para outro, escolhendo seu caminho, por assim
dizer, pelo fundo das partes mais baixas, evitando os aclives mais fortes e os
topos mais elevados e agitados das ondas.
– Bem, agora – eu pensei comigo mesmo –, está claro que eu devo ficar
deitado onde estou e não perturbar o equilíbrio, mas está claro, também, que
eu posso erguer um remo sobre a amurada e, de vez em quando, nos lugares
mais calmos, dar-lhe um impulso ou dois em direção à terra.
Nem bem havia pensado nisso, já começava a fazê-lo. Fiquei deitado ali,
apoiado em meus cotovelos, na atitude mais cansativa, mas, de quando em
vez, dava uma ou duas remadas fracas, na intenção de virar-lhe a proa em
direção à praia.
Era um trabalho muito exaustivo e lento; todavia, ganhava terreno
visivelmente e, à medida que nos aproximávamos do Cabo dos Bosques,
embora eu percebesse que, infelizmente, não conseguiria aportar àquela
ponta de terra, mesmo assim tinha desviado cerca de cem metros na direção
oriental. De fato, já estava bem perto. Podia ver os frescos cumes verdes
das árvores balançando-se juntos na brisa; e tive certeza de que poderia
alcançar o próximo promontório sem maiores dificuldades.
Já não era sem tempo, porque comecei a ser torturado pela sede. O brilho
do sol acima, refletido mil vezes pelas ondas encapeladas, a água do mar
que caía e secava sobre mim, cobrindo-me os lábios com sal, tudo
combinava para fazer minha garganta arder e minha cabeça doer. A visão
das árvores tão próximas de mim quase me deixara doente de tanto que
ansiara por elas, mas a corrente logo me carregou para além da ponta e, tão
logo o mar se abriu novamente, contemplei uma visão que mudou por
completo a natureza de meus pensamentos.
Bem à minha frente, a uns seiscentos metros de distância, contemplei o
Hispaniola em movimento. No mesmo instante, é claro, achei que seria
capturado, mas estava tão perturbado pela falta de água, que nem sabia bem
se ficaria contente ou lamentaria por isso, e muito antes que eu chegasse a
uma conclusão, a surpresa assumiu pleno controle de minha mente e não
pude fazer mais nada senão arregalar os olhos e maravilhar-me.
O Hispaniola tinha desfraldadas a vela principal e duas bujarronas, e a
linda lona branca brilhava ao sol como neve ou prata. Da primeira vez em
que o avistei, todas as velas estavam içadas, estava em curso noroeste e
presumi que os homens a bordo estavam dando a volta na ilha para retornar
ao ponto de ancoragem. Dentro em pouco, a escuna começou a pender mais
e mais para oeste, de tal modo que pensei que me haviam avistado e
pretendiam dar-me caça. Finalmente, entretanto, ela começou a deixar-se
levar diretamente para o olho do vento, parou quase de repente e ficou ali
por algum tempo inerme, com as velas pandas e tremendo.
– Mas que camaradas desajeitados – disse eu. – Ainda devem estar
bêbados como corujas – e pensei como o Capitão Smollett os teria posto a
correr de volta ao serviço.
Nesse meio tempo, a escuna gradualmente virou de bordo, assumiu um
novo curso, velejou rapidamente por um minuto ou dois e novamente
deixou que seu curso morresse no olho do vento. Estes movimentos foram
sendo repetidos muitas vezes. Para cá e para lá, para cima e para baixo, para
o norte, para o sul, para leste e para oeste, o Hispaniola velejava aos trancos
e barrancos, por assim dizer; e cada repetição terminava como tinha
começado, com a lona das velas enfunando e desenfunando
preguiçosamente. Ficou claro para mim que ninguém estava manobrando o
barco. Se era assim, onde estavam os homens? Ou estavam como mortos de
tanta bebida ou tinham desertado o barco, foi o que pensei, e, talvez, se eu
conseguisse subir a bordo, poderia devolver o barco a seu Capitão.
A corrente estava puxando corácula e escuna para o sul em ritmo igual.
Quanto ao velejar da última, era tão desajeitado e intermitente, e ela
permanecia parada por períodos tão longos como se estivesse ancorada, que
não ganhava nenhum terreno sobre mim e talvez até estivesse perdendo. Se
eu apenas ousasse sentar-me e remar, tinha certeza de que poderia alcançá-
la. Esse plano tinha tal ar de aventura que me inspirou, e a lembrança do
barril de água ao lado da escada da proa dobrou-me a coragem.
Assim, eu me ergui e fui saudado quase instantaneamente por outra
nuvem de borrifos, mas, desta vez, conservei meu propósito e comecei, com
toda a força e precaução, a remar atrás do Hispaniola abandonado. Uma vez
enfrentei uma onda tão pesada que tive de parar para retirar a água que
havia entrado no barco, com meu coração batendo tão depressa como o de
um passarinho; porém, gradualmente, aprendi a manobrar o barquinho, e
guiei minha corácula por entre as ondas, sofrendo apenas um eventual golpe
em sua proa e um banho de espuma em minha face.
Estava agora encurtando rapidamente a distância que havia entre minha
embarcação e a escuna, podia ver o brilho do bronze na barra do leme,
enquanto esta batia frouxa, nesta e naquela direção, e, ainda assim, nem
uma só pessoa surgia sobre o tombadilho. A única coisa que pude supor é
que a escuna tinha sido abandonada. Caso contrário, todos os homens
jaziam embriagados no interior do barco, onde eu talvez pudesse dominá-
los e fazer o que quisesse com o navio.
Por algum tempo, ele fez justamente a pior coisa possível para mim –
ficou completamente parado. Dirigiu-se quase diretamente para o sul,
desviando-se do curso, naturalmente, durante todo o tempo. A cada vez que
se desviava, as velas enchiam-se parcialmente, e, por um momento, o
devolviam ao sabor dos ventos. Eu disse que isto era a pior coisa possível
para mim porque, mesmo que ele parecesse inerme nesta situação, com as
lonas estalando com um fragor que parecia de canhões, e as roldanas
rolando e batendo no convés, o barco continuava a se distanciar de mim,
não somente com a velocidade da corrente, mas ajudado por sua declinação,
que era naturalmente bastante grande.
Mas, finalmente, tive minha oportunidade. A brisa diminuiu, por alguns
segundos, ficando muito leve, e a corrente gradualmente foi girando o
barco. O Hispaniola revolveu lentamente sobre si mesmo e finalmente
apresentou-me a popa, com a janela do camarote ainda totalmente aberta e a
lâmpada sobre a mesa ainda ardendo, embora fosse dia claro. A vela
principal descaiu, drapejando como uma bandeira. O barco teria parado
completamente, como se estivesse sobre suportes no estaleiro, se não fosse
pela força da corrente.
No último trecho eu tinha até perdido terreno, mas aí redobrei meus
esforços e comecei novamente a vencer a corrida.
Eu estava a menos de cem metros da escuna, quando o vento retornou,
fazendo as velas estalarem como se estivessem batendo palmas e se
enfunarem a bombordo, e ela reiniciou seu curso, descendo e deslizando
como uma andorinha.
Meu primeiro sentimento foi de desespero, mas o segundo foi de alegria.
A escuna novamente girou, até ficar com o lado do casco em minha direção
– e, enquanto girava, foi cobrindo a metade, depois dois terços e,
finalmente, três quartos da distância que nos separava. Eu já podia avistar
as ondas que fervilhavam brancas contra sua linha de água. Agora o barco
me parecia imensamente alto, visto de minha posição rente ao mar, no
interior da corácula.
E então, num repente, comecei a compreender. Mal tive tempo para
pensar – mal tive tempo para agir e me salvar. Eu estava no alto de um
macaréu quando a escuna veio descendo rapidamente pelo declive da
próxima grande onda. A ponta do gurupés estava acima de minha cabeça.
Ergui-me de um salto e pulei; com o impulso, a corácula abandonada
encheu-se de água.
Com uma das mãos, segurei a ponta da verga da bujarrona, enquanto um
de meus pés alojou-se entre o estai e o suporte; e, enquanto permanecia ali
ofegante, um golpe surdo fez-me saber que a escuna tinha avançado e
abalroado a corácula; e que, agora, tinha minha retirada cortada e estava
prisioneiro do Hispaniola.

CAPÍTULO 25
A BANDEIRA DOS PIRATAS (O “JOLLY ROGER”)
Mal eu tinha conseguido galgar o gurupés, quando a bujarrona, que
voava solta, estalou e enfunou-se de novo em outra direção, com um
ribombar de canhão. A escuna tremeu em sua quilha, com a reversão do
curso; porém, no momento seguinte, com o empuxo das outras velas, a
bujarrona bateu e retornou, ficando novamente pendente e inútil.
Todo este movimento quase me havia jogado de volta ao mar; assim, não
perdi mais tempo, arrastei-me ao longo do gurupés e caí, de cabeça para
baixo, sobre o tombadilho.
Estava a sotavento do castelo de proa, e a vela principal, que ainda estava
panda e descaída, escondia de minhas vistas uma certa porção do convés da
popa. Nem uma alma à vista. As pranchas do tombadilho, que não tinham
sido esfregadas desde o motim, traziam as marcas de muitos pés, e uma
garrafa vazia, quebrada no gargalo, rolava de um lado para o outro, como se
fosse uma coisa viva, batendo nos embornais.
Subitamente, o Hispaniola entrou direto no caminho do vento. A
bujarrona, por trás de mim, deu um estalo agudo, o leme bateu, o navio
inteiro saltou e estremeceu, quase a ponto de me fazer enjoar, e, no mesmo
momento, a verga principal girou para dentro, com o panejamento gemendo
contra os polés, mostrando-me, finalmente, a parte posterior do tombadilho.
E lá estavam os dois vigias, naturalmente: Barrete Vermelho estava de
costas, duro como o ferro de uma picareta, com os braços estendidos como
os de um crucifixo, seus dentes aparecendo por entre os lábios entreabertos,
enquanto Israel Hands estava apoiado contra a proteção da amurada, com o
queixo caído contra o peito, os braços soltos e as mãos abertas encostadas
no convés, seu rosto tão branco, por baixo do bronzeado, como uma vela de
sebo.
Por algum tempo o barco continuou a empinar e a dar guinadas como um
cavalo bravio, as velas se enchendo, ora em uma direção, ora em outra, e a
verga principal balouçando para cá e para lá, até o mastro ranger alto com o
esforço. De vez em quando, também, uma nuvem de borrifos leves se
espraiava por cima da amurada, seguida de um pesado golpe da proa do
barco contra as vagas. O tempo parecia muito mais tempestuoso dentro
deste grande veleiro do que havia parecido dentro de minha corácula torta e
feita à mão, sem as ferramentas apropriadas, que agora havia descido para
descansar no fundo do mar.
A cada salto da escuna, Barrete Vermelho rolava para cá e para lá, mas –
o que era horrível de contemplar – nem sua atitude, nem seu sorriso fixo de
dentes à mostra eram perturbados por este estranho tratamento. A cada
salto, também, Hands parecia afundar mais ainda para dentro de si mesmo e
ir se acomodando no tombadilho, seus pés deslizando cada vez mais para
longe da amurada, enquanto o corpo inteiro se inclinava para o lado da
popa, de tal modo que seu rosto ficou, pouco a pouco, escondido de mim, e,
finalmente, eu não pude ver nada, exceto sua orelha e o cacho desgrenhado
de um lado de seu bigode.
Ao mesmo tempo, eu observei, espalhadas ao redor dos dois, largas
manchas de sangue escuro sobre as pranchas e comecei a ter certeza de que
eles tinham assassinado um ao outro durante o acesso de cólera embriagada.
Enquanto eu estava assim olhando e imaginando, em um instante de
calmaria, quando o barco havia parado por um momento, Israel Hands
voltou-se parcialmente e, com um gemido baixo, retorceu-se de volta até
recobrar a posição em que primeiro eu o vira. O gemido, que denunciava
dor e fraqueza mortais, e a maneira como seu queixo pendia aberto,
comoveram meu coração. Porém, quando eu lembrei da conversa que tinha
escutado de dentro do barril de maçãs, toda a piedade me deixou.
Eu caminhei na direção da popa até atingir o mastro principal.
– Bem-vindo a bordo, Mr. Hands – disse eu, ironicamente.
Ele rolou os olhos nas órbitas pesadamente, mas estava fraco demais para
expressar surpresa. Tudo o que pôde fazer foi murmurar uma palavra:
Brandy.
Ocorreu-me então que não havia tempo a perder e, desviando-me da
verga que outra vez se arrastava acima do convés, passei em direção à popa
e desci pelas escadas até o camarote.
Era uma cena de tal confusão que dificilmente se poderá imaginar. Todos
os armários e escaninhos trancados tinham sido arrombados, provavelmente
em busca do mapa. O assoalho estava grosso de barro nos lugares em que
os canalhas tinham sentado para beber ou confabular, depois de patinarem
na lama do pântano ao redor de seu acampamento. Os anteparos, que eram
pintados de uma tonalidade bem clara de branco e enfeitados com molduras
douradas, apresentavam agora marcas de mãos sujas. Dúzias de garrafas
vazias batiam umas contra as outras pelos cantos da sala, com o movimento
do navio. Um dos livros de medicina do Doutor estava aberto sobre a mesa,
com metade das folhas arrancadas, suponho eu, para ajudar a acender os
cachimbos dos amotinados. No meio de tudo isto, a lâmpada ainda lançava
um brilho mortiço e enfumaçado, obscuro e cor de terra.
Fui até o porão. Todos os barris haviam desaparecido e das garrafas um
número surpreendente havia sido bebido ou jogado fora. Certamente, desde
o início do motim, nem um só dos amotinados permanecera sóbrio.
Remexendo aqui e ali, descobri uma garrafa que ainda tinha um pouco de
brandy, para Hands, e, para mim mesmo, desencavei alguns biscoitos, umas
frutas em conserva, um grande pacote de passas de uva e um pedaço de
queijo. Carregado com estes, subi ao tombadilho, coloquei meu estoque por
trás da roda do leme e, tendo o cuidado de ficar bem fora do alcance do
timoneiro, fui à proa, até onde se encontrava o barril de água, e bebi
profundamente; depois, e só depois, fui até Hands e dei-lhe o brandy.
Ele deve ter bebido bem um quarto de litro, antes de tirar a garrafa da
boca.
– Sim – disse ele –, com mil trovões, como eu precisava disso!
Eu já tinha me sentado em meu próprio canto e havia começado a comer.
– Está muito ferido? – perguntei-lhe.
Ele grunhiu, quase poderia dizer que latiu:
– Se aquele maldito Doutor estivesse a bordo – disse ele –, eu ficaria
bom em um par de vigias, mas não tenho sorte mesmo; você vê, esse que é
o problema comigo. Quanto àquele lambaz, ele está morto e bem morto, ah,
está – disse ele, indicando Barrete Vermelho. – Ele não era um verdadeiro
marujo, de qualquer maneira. Mas de onde foi que você saiu?
– Bem – disse eu –, eu subi a bordo a fim de tomar posse deste navio,
Mr. Hands, e faça-me o favor de considerar-me como seu capitão por
enquanto.
Ele me olhou com um olhar turvo, mas não disse nada. Parte da cor tinha
retornado a suas faces, mas ele ainda parecia muito doente, e continuava a
deslizar e a se arrastar de volta contra a amurada, enquanto o barco
balançava.
– A propósito – continuei eu –, não posso ficar com essa bandeira, Mr.
Hands, e, com sua permissão, vou arriá-la do mastro. Melhor nenhuma
bandeira do que velejar com essas cores.
E, novamente me esquivando da verga, corri até as cordas da bandeira,
arriei sua maldita bandeira negra e a joguei por cima da amurada.
– Deus salve o Rei! – disse eu, sacudindo o chapéu em saudação. – Esse
é o fim do Capitão Silver!
Ele continuava a me olhar, matreira e astuciosamente, mas seu queixo
permanecia apoiado no peito.
– Eu suponho – disse ele, finalmente –, eu suponho, “Capitão Hawkins”,
que agora o senhor vai querer ir até a praia. É melhor termos uma
conversinha.
– Ora, sim – disse eu. – Com o maior prazer, Mr. Hands. Vamos, fale.
E retornei à minha refeição com bom apetite.
– Este homem – começou ele, movendo fracamente a cabeça em direção
ao cadáver –, O’Brien era seu nome – um irlandês sujo –, este homem e eu
erguemos as velas da escuna e pretendíamos levá-la de volta. Bem, ele está
morto, agora, bem morto – tão morto como a salsugem na carena; e quem
vai tripular este navio, não sei dizer. Se eu não lhe der as explicações, você
não será capaz, tanto quanto eu posso ver. Agora, olhe aqui, você me
alcança comida e bebida e me dá um pano de cabeça ou mesmo um lenço
velho para amarrar minha ferida e eu lhe ensinarei como velejar o navio. É
um trato justo, penso eu.
– Vou lhe dizer uma coisa desde já – falei eu. – Eu não vou voltar para o
Ancoradouro do Capitão Kidd. Eu pretendo seguir até a Angra Setentrional
e colocar o barco silenciosamente naquele abrigo.
– Tudo bem, que seja assim – exclamou ele. – Ora, eu não estou mareado
como um marinheiro de primeira viagem dos infernos, no final das contas.
Eu posso ver, não posso? Eu tentei minha sorte e perdi, e agora o vento está
soprando em seu favor. A Angra Setentrional, é o que você quer? Bem, eu
não tenho escolha, não sou eu que tenho. Eu o ajudaria a navegar até a Doca
das Execuções, com mil demônios! Até isso eu faria.
Bem, até que fazia sentido. Fizemos o trato ali mesmo. Em três minutos,
eu já conseguia que o Hispaniola velejasse facilmente a favor do vento, ao
longo da costa da Ilha do Tesouro, com uma boa esperança de dobrar a
ponta setentrional antes do meio-dia, e prosseguir novamente até a Angra
Setentrional antes da preamar, que poderíamos aproveitar para levar a
escuna até a praia em segurança e esperar que a descida da maré nos
permitisse desembarcar.
Então, eu amarrei a roda do leme firme no curso e desci a meu beliche,
onde, de meu próprio cofre, retirei um lenço de seda macio que minha mãe
me havia dado. Com este, ajudado por mim, Hands amarrou a grande
punhalada sangrenta que tinha recebido na coxa e, depois de comer um
pouco e dar uma talagada ou duas a mais na garrafa de brandy, ele começou
a melhorar visivelmente, sentou-se em uma posição mais ereta e começou a
falar mais alto e mais claro, parecendo outro homem.
A brisa nos auxiliou admiravelmente. Deslizamos à sua frente por entre
as ondas como voa um pássaro, com a costa da ilha passando por nós
rapidamente, a paisagem mudando a cada minuto. Logo havíamos
ultrapassado os planaltos e estávamos diante de uma região baixa e arenosa,
pontilhada aqui e ali por pinheiros anões; e logo estávamos além deste
trecho também, e tínhamos dobrado o canto da colina rochosa que termina a
ilha do lado norte.
Eu estava cheio de entusiasmo com meu novo comando, feliz com o
tempo brilhante e ensolarado e com estas diferentes perspectivas da costa.
Agora eu tinha água em abundância e quantidade de coisas boas para
comer; e minha consciência, que me havia castigado muito desde minha
deserção, tinha se acalmado devido à grande conquista que eu tinha feito.
Eu não teria nada mais a desejar, pensei eu, salvo pelos olhos do timoneiro,
que me seguiam zombeteiramente enquanto eu me movia pelo tombadilho,
e pelo estranho sorriso que aparecia continuamente em seu rosto. Era um
sorriso que continha simultaneamente dor e fraqueza – um sorriso de velho
esquálido; mas havia, além disso, uma pitada de zombaria, uma sombra de
traição que coloria sua expressão enquanto ele me cuidava, ardiloso, e me
observava durante meu trabalho.

CAPÍTULO 26
ISRAEL HANDS
O vento, que nos servia como se obedecesse a nossos desejos, agora nos
levava para oeste. Podíamos velejar com maior facilidade do canto nordeste
da ilha até a boca da Angra Setentrional, só que, como não havia maneira
de ancorarmos e eu não ousava levar a escuna até a praia até que a maré
tivesse avançado bastante, o tempo sobrava em nossas mãos. O timoneiro
me ensinou a retardar a marcha do navio; depois de uma série de tentativas,
obtive sucesso, e os dois nos sentamos em silêncio, enquanto fazíamos
outra refeição.
– “Capitão” – disse ele, finalmente, com aquele mesmo sorriso
desconfortável –, aqui está o meu velho camarada O’Brien; quem sabe você
o joga pela amurada? Em geral, eu não tenho muitos escrúpulos, e, na
verdade, não sinto nenhum remorso por haver acertado as contas com ele,
mas ele não parece lá muito decorativo assim, se sacudindo sobre o convés,
você não acha?
– Eu não tenho força suficiente e não gosto da tarefa; para mim, isso
encerra o assunto – disse eu.
– Este navio é azarado – este Hispaniola, Jim – ele prosseguiu, piscando.
– Muitos homens foram mortos neste Hispaniola – pobres marinheiros
foram mortos e partiram desta para a melhor desde que você e eu
embarcamos em Bristol. Eu nunca vi tanta má sorte junta, eu não. Agora há
aqui este O’Brien – ele está morto, não está? Bem, eu não tenho estudo e
você é um rapaz que sabe ler e contar, e, para falar com franqueza, você
acha que um homem morto morre de verdade, ou ele volta à vida de novo?
– Você pode matar o corpo, Mr. Hands, mas não pode matar o espírito,
você já deve saber disto – redargui eu. – O’Brien já está em outro mundo e
talvez esteja nos observando.
– Ah! – disse ele –, mas isso é uma falta de sorte – parece que matar uns
camaradas é uma perda de tempo. Seja lá como for, os espíritos não têm
muita importância, depois de tudo o que eu vi. Acho que estou disposto a
tentar a sorte com os espíritos, Jim. Agora, que você deu sua livre opinião,
seria muito gentil de sua parte se você descesse àquele camarote e me
trouxesse uma – bem, uma – macacos me mordam!, não sei dizer o nome
disso. Bem, você pode me trazer uma garrafa de vinho, Jim – este brandy
aqui está forte demais para minha cabeça.
Na verdade, a hesitação do timoneiro não me pareceu natural, e quanto à
ideia de que ele poderia preferir vinho a brandy, nisso eu realmente não
acreditava. A história inteira era um pretexto. Ele queria que eu saísse do
tombadilho – isto estava claro; mas com que propósito, eu não conseguia
imaginar. Seus olhos nunca enfrentavam os meus, ficavam errando para lá e
para cá, para cima e para baixo, ora olhando para o céu, ora descansando
rapidamente sobre o cadáver de O’Brien. E todo o tempo, ele prosseguia
sorrindo e colocando a ponta da língua para fora, da maneira mais culpada e
embaraçada, de modo que até uma criança poderia ver que ele pretendia
algum engodo. Minha resposta foi rápida, entretanto, porque eu sabia onde
se achava minha vantagem, mas com um camarada tão profundamente
estúpido, eu podia facilmente esconder minhas suspeitas até o fim.
– Quer um pouco de vinho? Acho mesmo que é muito melhor. Prefere
branco ou tinto?
– Bem, eu acho que tanto faz uma bendita coisa como a outra,
companheiro – ele redarguiu. – Se for forte e houver bastante, qual a
diferença?
– Está bem – eu respondi. – Vou trazer-lhe um pouco de vinho do porto,
Mr. Hands. Mas vai demorar, vou ter de procurar.
Depois de dizer isso, eu desci pela escada, fazendo todo o barulho que
podia, tirei meus sapatos, corri silenciosamente ao longo da galeria, subi
pela escada do castelo de proa e enfiei a cabeça pela abertura do convés. Eu
sabia que ele não esperava ver-me daquele lado; todavia, tomei todas as
precauções possíveis e, certamente, as piores de minhas suspeitas
demonstraram-se verdadeiras.
Ele se erguera da posição anterior e estava agora apoiado nas mãos e nos
joelhos, e, embora sua perna obviamente doesse muito quando ele se movia
– porque pude escutar seus gemidos abafados –, ele se arrastou de forma
rápida, se bem que meio sacolejante, e atravessou o tombadilho. Em meio
minuto, ele tinha atingido os embornais de bombordo; e, do meio de um
rolo de corda, tinha apanhado uma longa faca, ou talvez um punhal,
manchado até o cabo de sangue. Ele a contemplou por um momento,
esticando a mandíbula inferior, experimentou a ponta sobre a palma da mão,
e, então, escondendo-a apressadamente dentro de seu casaco, arrastou-se de
volta para seu lugar, contra o anteparo da amurada.
Era só isto que eu precisava saber. Israel conseguia mover-se; agora,
estava armado, e, se ele tivera tanto trabalho para encontrar um pretexto a
fim de se livrar de mim, estava claro que eu era a vítima pretendida. O que
ele pretendia fazer depois – se ele tentaria se arrastar através da ilha, desde
a Angra Setentrional até o acampamento por entre os pântanos, ou se ele
dispararia o Long Tom, o apelido que davam ao canhão, confiando que seus
camaradas viriam em seu auxílio, era, naturalmente, mais do que eu
conseguiria adivinhar.
Entretanto, eu tinha certeza de que podia confiar nele em um ponto, uma
vez que nossos interesses eram os mesmos, e esse era o destino a dar à
escuna. Ambos desejávamos levá-la à praia em segurança, colocá-la em um
local abrigado, de tal modo que, quando a ocasião chegasse, ela pudesse ser
desencalhada com um mínimo de trabalho e de perigo; até que isso fosse
feito, eu considerava que ele não tentaria contra minha vida.
Enquanto eu estava assim remoendo o assunto em minha mente, meu
corpo não havia ficado ocioso. Eu tinha voltado ao camarote, colocado
novamente os sapatos e pegado uma garrafa de vinho ao acaso; então,
usando esta como desculpa, reapareci sobre o tombadilho.
Hands estava deitado no mesmo lugar em que eu o deixara, todo
amontoado, como se fosse uma trouxa de roupa, com as pálpebras
abaixadas, fingindo estar fraco demais para suportar a luz. Ele abriu os
olhos, entretanto, quando eu voltei, quebrou o gargalo da garrafa, com a
prática de um homem que já tinha feito isso muitas vezes, e tomou uma boa
talagada, com seu brinde favorito de “Boa Sorte!” Então ficou deitado
muito quieto durante algum tempo e depois, retirando do bolso um cilindro
de fumo em rama, suplicou-me que lhe cortasse uma porção.
– Corte um pedaço para eu mascar – disse ele. – Porque eu estou sem
faca e, mesmo que tivesse, não teria forças para isso... Ah, Jim, Jim, acho
que desta vez me enganei! Corte-me uma mordida, meu rapaz, que
provavelmente será a última, porque vou embarcar para a última viagem,
não resta dúvida quanto a isso!
– Está certo – disse eu. – Vou cortar-lhe um pouco de tabaco, mas, se eu
fosse você e achasse estar tão mal assim, começaria a fazer minhas orações,
como um bom cristão.
– Por quê? – indagou ele. – Agora, diga-me, por quê?
– Por quê? – eu exclamei. – Não faz nada você estava perguntando o que
eu achava a respeito dos mortos. Você quebrou a palavra empenhada, você
viveu em pecado, mentiras e sangue. Ali um homem morto por você
jazendo a seus pés neste exato momento e você ainda me indaga por quê!?
Pela misericórdia de Deus, Mr. Hands, eis por quê!
Eu falei com um pouco de calor, pois pensava no punhal ensanguentado
que ele tinha escondido em seu bolso, com o qual intencionava, em seus
maus pensamentos, acabar com minha vida. Ele, por sua parte, tomou um
grande gole de vinho e falou com a maior solenidade, coisa que nele era
incomum:
– Por trinta anos – disse ele –, eu naveguei pelos mares e vi o bem e o
mal, o melhor e o pior, tempo bom e tempestade, provisões se acabando,
facas empunhadas e tudo o mais. Bem, agora eu lhe digo: nunca vi resultar
nenhum bem da bondade. Aquele que dá o primeiro golpe é o que
sobrevive, os mortos não mordem – é nisso que acredito, amém, assim seja.
E agora, olhe aqui – ele aduziu, mudando de tom subitamente –, já
perdemos tempo demais com esta tolice. A maré já está bem no ponto. Você
simplesmente obedeça minhas ordens, “Capitão Hawkins”, e vamos
navegar para dentro da angra e acabar com este negócio.
Ao todo, faltavam somente umas duas milhas, mas a navegação era
delicada, a entrada para aquele ancoradouro setentrional era não somente
estreita e prejudicada por recifes, mas ficava no sentido leste-oeste, de
modo que a escuna tinha de ser dirigida com cuidado para ingressar no
porto. Acho que eu era um bom e ágil subalterno e estou plenamente seguro
de que Hands era um excelente piloto, porque fomos dando voltas,
desviando-nos dos recifes, passando junto aos bancos de areia, com uma
certeza e exatidão que dava gosto de se ver.
Mal tínhamos passado as pontas dos promontórios e a terra já se fechava
em torno de nós. As margens da Angra Setentrional estavam tão
densamente recobertas de vegetação como no ancoradouro do sul, mas o
espaço era, ao mesmo tempo, mais comprido e mais estreito, semelhante ao
que de fato era, o estuário de um rio. Bem à nossa frente, na ponta
meridional, vimos os destroços de um navio nos últimos estágios da
dilapidação. Tinha sido um grande veleiro de três mastros, mas havia
permanecido por tão longo tempo exposto à intempérie, que estava
recoberto por grandes teias de algas gotejantes, até mesmo no que restava
do tombadilho, alguns arbustos haviam se enraizado e agora floresciam em
ramos luxuriantes de flores. Era uma visão triste, mas ao mesmo tempo nos
mostrava que o ancoradouro era calmo.
– Agora – disse Hands –, espie só: esse é um lugar ótimo para se
encalhar um barco. Praias lisas de areia fina, nem uma brisa, árvores
protegendo por toda a volta, flores brotando como se aquele navio velho
fosse um jardim.
– Mas depois que o navio estiver encalhado – eu inquiri –, como vamos
fazê-lo navegar de novo?
– Ora, assim – ele replicou. – Você leva um cabo grosso até a praia, lá do
outro lado, durante a baixamar; dá uma volta ao redor de um daqueles
pinheiros maiores, traz a corda de novo para o barco, dá uma volta ao redor
do cabrestante e fica esperando que a maré volte. Quando chega a preamar,
todas as mãos dão um puxão bem forte na linha e lá vem o navio, doce
como a Natureza. E agora, menino, fique de prontidão. Estamos perto do
ponto e o navio está ainda com muito impulso. Um pouco a estibordo –
assim – firme – estibordo de novo – um pouco a bombordo – firme – firme!
Assim ele emitia seus comandos enquanto eu obedecia quase sem
respirar, até que ele gritou:
– Agora, meu valente, orça!
Eu puxei o leme com força e o Hispaniola girou rapidamente na direção
desejada e correu diretamente para a margem baixa e coberta de árvores.
O excitamento provocado por aquelas últimas manobras tinha de algum
modo interferido na vigilância que eu tinha mantido até então,
constantemente, sobre o timoneiro. E, mesmo depois, eu continuava tão
ansioso, esperando que o navio tocasse a praia, que tinha esquecido
inteiramente do perigo que pairava sobre minha cabeça, e parei, esticando o
pescoço sobre o anteparo de estibordo, olhando as ondulações que se
espraiavam largamente diante da proa. Eu poderia ter tombado sem sequer
lutar pela minha vida, se uma súbita inquietação não tivesse se apossado de
mim e me feito virar a cabeça. Talvez eu tenha escutado um estalo das
tábuas do convés, talvez tenha avistado sua sombra a mover-se com o rabo
dos olhos; talvez fosse um instinto, como o de um gato; mas, sem dúvida,
quando eu olhei em torno, lá estava Hands, já na metade do caminho,
aproximando-se de mim com o punhal na mão direita.
Nós dois devemos ter gritado, quando nossos olhares se cruzaram, mas,
enquanto o meu era um grito agudo de terror, o dele era um rugido de fúria,
como de um touro atacando. No mesmo instante, ele jogou-se para a frente
e eu pulei para o lado, em direção à serviola. Quando fiz este movimento,
larguei a cana do leme, que voltou sozinha para sotavento, com um tranco
violento, e eu creio que foi isso que me salvou a vida, pois ela atingiu
Hands no peito e fê-lo parar onde estava, imóvel por um momento.
Antes que ele pudesse se recobrar, eu já estava livre, fora do canto em
que ele me havia encurralado, com todo o tombadilho às minhas costas para
me movimentar. Bem em frente do mastro principal, eu parei, retirei uma
pistola de meu bolso e fiz a mira com toda a frieza, embora ele já tivesse
girado e estivesse outra vez se aproximando diretamente sobre mim, e puxei
o gatilho. O cão da arma bateu, mas não houve nem clarão nem som,
porque a espoleta estava inutilizada, ensopada pela água do mar. Maldisse a
mim mesmo por minha negligência. Por que eu não tinha, há muito tempo,
limpado e recarregado minhas únicas armas? Então eu não estaria, como
agora, fazendo o papel de uma mera ovelha fugindo do açougueiro.
Ferido como estava, era maravilhoso ver como conseguia mover-se
depressa, o cabelo grisalho caindo-lhe sobre o rosto, o rosto tão vermelho
quanto um estandarte de batalha, em sua pressa e fúria. Não tive tempo de
experimentar minha outra pistola nem, de fato, muita inclinação, pois estava
seguro de que também seria inútil. Uma coisa eu percebia claramente: não
bastava que eu simplesmente fugisse dele, pois sem demora o celerado me
encurralaria contra a serviola, como um momento antes ele quase tinha feito
no lado da popa. Uma vez que ele conseguisse me prender, nove ou dez
polegadas do punhal manchado de sangue seriam minha última experiência
deste lado da eternidade. Coloquei minhas palmas contra o mastro
principal, que era bastante grande, e esperei, com todos os nervos do corpo
tensionados.
Percebendo que eu pretendia desviar-me para a direita ou para a
esquerda, ele também fez uma pausa, e, durante um momento ou dois, fez
fintas e negaças, com movimentos correspondentes de defesa de minha
parte. Era parecido com um jogo de que eu costumava participar, por sobre
as rochas da enseada de Black Hill, porém nunca antes, disto podem ter
certeza, com o coração batendo tão violentamente como agora. Todavia,
como eu disse, era igual a uma brincadeira de meninos, e eu achei que era
capaz de me defender perfeitamente, especialmente contra um marinheiro
velho que tinha um ferimento na coxa. Sem dúvida, minha coragem tinha
aumentado tanto que me permiti alguns pensamentos rápidos sobre o que
poderia ser o final do negócio, e, mesmo que eu, consciente de que poderia
continuar a desviar-me por um longo tempo, não tinha esperança de poder
escapar-me no final.
Bem, enquanto as coisas estavam neste pé, subitamente o Hispaniola
bateu, sacudiu-se, arrastou-se por um instante sobre a areia e, então, rápido
como uma bofetada, inclinou-se para o lado de bombordo, até que o
tombadilho estivesse em um ângulo de quarenta e cinco graus e quase a
quantidade de água suficiente para encher um barril esguichasse para dentro
dos embornais e formasse uma poça entre o tombadilho e o anteparo.
Em um segundo, nós dois caímos, e ambos rolamos, quase juntos, contra
os embornais; o cadáver de Barrete Vermelho, com os braços ainda abertos,
foi rolando atrás de nós. Tão perto estávamos, que minha cabeça bateu
contra o pé do timoneiro com um impacto que me abalou os dentes. Mas
com golpe e tudo, eu fui o primeiro a ficar novamente em pé, pois Hands
tinha ficado enroscado no cadáver. A súbita inclinação do barco tinha
deixado o convés impróprio para correr; eu tinha de encontrar outro meio
de fuga, e bem depressa, pois meu inimigo já estava quase a tocar-me.
Rápido como o pensamento, eu pulei no velame do mastro da mezena,
arrastei-me de pés e mãos e não respirei até que estivesse sentado nos
contramastros.
Eu me salvei porque estava preparado e era rápido: o punhal cravou-se a
uns quinze centímetros abaixo de mim, enquanto eu fugia mastro acima, e
lá estava Israel Hands, de boca aberta e o rosto voltado em minha direção,
uma perfeita estátua de surpresa e desapontamento.
Agora que eu tinha um momento para mim mesmo, não perdi tempo e
logo troquei a espoleta de minha pistola, e então, tendo uma pronta para o
serviço, e para garantir-me duplamente, prossegui retirando a carga da
outra, recarregando-a novamente.
Minha nova atividade subitamente atingiu a mente de Hands, e ele
começou a ver que os dados estavam contra ele. Depois de uma óbvia
hesitação, ele também se suspendeu pesadamente no velame e, mantendo o
punhal nos dentes, começou a subir, lenta e penosamente. Custaram-lhe
muito tempo e gemidos suspender a perna ferida. Eu terminei
tranquilamente meu trabalho, antes que ele tivesse conseguido subir mais
que um terço do caminho. Então, com uma pistola em cada mão, dirigi-lhe
a palavra:
– Mais um passo, Mr. Hands – disse eu – e vou lhe explodir o cérebro!
Os mortos não mordem, como você sabe muito bem – acrescentei, com uma
risadinha.
Ele parou instantaneamente. Pude ver, pela forma que seu rosto se movia,
que ele estava tentando pensar, e o processo era tão lento e laborioso que,
em minha segurança recém-recuperada, eu dei uma gargalhada. Finalmente,
depois de engolir uma ou duas vezes, ele falou, com o rosto ainda trazendo
a mesma expressão de perplexidade. Para isso, ele teve de retirar a adaga da
boca, porém, em tudo mais, permaneceu imóvel.
– Jim – disse ele –, acho que estamos em má situação, você e eu, e temos
de assinar os artigos de paz. Eu teria pegado você, se não fosse aquela
guinada, mas eu não tenho sorte, nunca tive, e acho que vou ter de me
entregar a um grumete de navio como você, Jim, o que não fica nada bem
para um mestre marinheiro como eu.
Eu estava bebendo suas palavras e sorrindo feito bobo, tão vaidoso como
um galo cantando em cima de um muro, quando, no intervalo de uma
respiração, sua mão direita voltou-se para trás, acima do ombro. Eu senti
um golpe e então uma dor aguda, e fiquei cravado ao mastro pelo ombro.
Na horrível dor e surpresa do momento – mal posso dizer que foi por minha
própria vontade, e tenho certeza de que não mirei conscientemente –
minhas duas pistolas dispararam, e ambas escaparam de minhas mãos. Mas
não caíram sozinhas: com um grito sufocado, o timoneiro largou do velame
e mergulhou de cabeça para baixo na água.

CAPÍTULO 27
“PEÇAS DE OITO”
Devido à inclinação do barco, os mastros pendiam bem por cima da
água; e, de meu poleiro nos contramastros, eu não tinha nada por baixo
senão a superfície da baía. Hands, que não tinha subido tão alto, estava, em
consequência, mais próximo do navio, e caiu entre o lugar em que eu me
achava e a amurada. Ele ergueu-se uma vez até a superfície, recoberto de
espuma e de sangue, e, então, afundou novamente, desta vez para sempre.
Quando a água se acalmou, eu pude vê-lo deitado e encolhido contra a areia
limpa e clara à sombra do flanco do navio. Um peixe ou dois passaram por
seu corpo. Algumas vezes, quando a água se movia, ele parecia sacudir-se
um pouco, como se estivesse tentando erguer-se. Mas estava
completamente morto, sem a menor dúvida, ferido por um tiro e afogado,
tinha virado comida de peixe justamente no local em que havia planejado
assassinar-me.
Tão logo me assegurei disso, comecei a sentir-me enjoado, tonto e
apavorado. Sangue quente corria por minhas costas e pelo peito. O punhal,
no lugar em que havia cravado meu ombro contra o mastro, parecia
queimar-me como ferro em brasa, e, todavia, não eram tanto os sofrimentos
reais que me perturbavam, porque estes, segundo me parecia, eu podia
suportar sem um murmúrio; era o horror que surgira em minha mente de
cair dos contramastros naquela água verde e parada, ao lado do corpo do
timoneiro.
Segurei-me com ambas as mãos até que me doeram as unhas, e fechei os
olhos, para não ver o perigo. Gradualmente, meu espírito assumiu o
controle de novo, meu pulso baixou para um ritmo mais natural, e retomei o
controle de mim mesmo.
Meu primeiro pensamento foi o de arrancar o punhal, mas ou este estava
cravado muito fundo ou me faltou coragem, e desisti, com um tremor
violento. E, coisa singular, foi esse mesmo tremor que resolveu o problema.
A faca, na realidade, por um triz não havia me tocado, estava cravada em
mim apenas por uma dobra da pele, que se rasgou quando eu estremeci. O
sangue correu mais depressa, naturalmente, mas eu era dono de mim
mesmo de novo, preso ao mastro somente por minha camisa e pela manga
de meu casaco.
Estes eu rasguei com um puxão violento e, então, retornei ao tombadilho
pelo velame de estibordo. Por nada deste mundo eu teria de novo me
aventurado, abalado como estava, sobre o velame que se pendurava a
bombordo, do qual Israel tinha tombado há pouco.
Desci para o camarote, e fiz o que pude para curar minha ferida, que
estava doendo muito e ainda sangrava bastante, mas não era nem profunda
nem perigosa, e nem sequer me incomodava muito quando eu usava meu
braço. Então eu olhei ao redor e como, em um certo sentido, o navio era
agora meu, comecei a pensar em como livrá-lo de seu último passageiro – o
homem morto, Barrete Vermelho, ou O’Brien.
Ele tinha escorregado, conforme eu disse, contra a amurada, onde jazia,
como uma espécie de marionete horrível e disforme, em tamanho natural,
sem dúvida, mas como era diferente da cor natural ou do aspecto da vida!
Naquela posição, agora era fácil manobrá-lo, e, como o hábito destas
aventuras trágicas tinha praticamente desgastado meu horror pelos mortos,
segurei-o pela cintura como se fosse um saco de farelo e, com um bom
impulso, joguei-o por sobre a amurada. Ele caiu com um mergulho sonoro,
o barrete vermelho saiu da cabeça e permaneceu flutuando na superfície, e,
tão logo os círculos concêntricos da queda se aquietaram, pude ver tanto ele
quanto Israel, deitados lado a lado, os dois ondulando com o movimento
tremulante das águas. O’Brien, embora fosse ainda um homem jovem, já
era bem calvo. E lá permaneceu ele, deitado com a cabeça sobre os joelhos
do homem que o tinha morto, enquanto os peixinhos rápidos corriam para
cá e para lá por cima dos dois.
Agora, eu estava sozinho no navio, a maré recém tinha virado. O sol já
estava a tão poucos graus do ocaso que a sombra dos pinheiros sobre a
margem ocidental começou a projetar-se sobre as águas da angra e a formar
desenhos sobre o tombadilho. A brisa do entardecer tinha se levantado e,
embora o barco ainda estivesse bem protegido pela colina com dois picos
que ficava a leste, o cordame começou a cantar baixinho e as velas pandas a
sacudir-se para cá e para lá.
Comecei a perceber o perigo para o navio. As bujarronas, eu rapidamente
baixei, fazendo-as cair em um montão sobre o tombadilho, mas a vela
principal já era bem mais difícil. É claro, quando a escuna se inclinou, a
verga girou e ficou pendendo além da amurada; de fato, sua ponta e um
meio metro de velame estavam sob a água. Eu achei que isto tornava a coisa
ainda mais perigosa; a tensão era tão forte que eu tinha medo de mexer na
vela. Finalmente, peguei minha faca e cortei as adriças. A parte superior das
velas caiu instantaneamente, formando uma grande barriga de lona sobre a
água, que flutuou livremente sobre o mar; e uma vez que, por mais que eu
puxasse, não conseguia mover os cabos, isso foi tudo que pude fazer.
Quanto ao mais, o Hispaniola deveria confiar na sorte, tal como eu.
A essa altura, o ancoradouro inteiro tinha caído nas sombras – os últimos
raios do sol, segundo me lembro, caíam através de uma clareira do bosque,
e brilhavam como joias sobre o manto coberto de flores do destroço.
Começou a esfriar; a maré estava rapidamente descendo para o mar e a
escuna, por sua vez, descendo cada vez mais e inclinando-se para as vergas.
Eu rastejei para a proa e examinei. Parecia bastante raso; segurando com
as duas mãos, para maior segurança, o cabo que havia cortado, deixei-me
cair devagar por sobre a amurada. A água mal me chegava à cintura, a areia
estava firme e coberta com as marcas provocadas pelas marés anteriores, e
eu vadeei até a praia com toda a disposição, deixando o Hispaniola caído de
lado, com sua vela principal arrastando-se por uma larga extensão de água
sobre a superfície da baía. Mais ou menos ao mesmo tempo, o sol desceu
completamente, enquanto a brisa assoprava de mansinho no crepúsculo por
entre os pinheirais balouçantes.
Finalmente, depois de tanto trabalho, eu tinha conseguido sair do mar e
não havia retornado de mãos vazias. Lá estava a escuna, finalmente limpa
de bucaneiros e pronta para que nossa própria gente a manobrasse e levasse
de volta ao mar. Eu não tinha outro plano que não fosse o de retornar para
casa, isto é, para a paliçada, a fim de me gabar de minhas realizações.
Possivelmente me repreenderiam um pouco por ter saído sem permissão,
mas a recaptura do Hispaniola era uma resposta irretorquível, e eu esperava
que até mesmo o Capitão Smollett admitisse que eu não perdera tempo.
Assim pensando e cheio de entusiasmo, comecei a traçar meu curso de
volta à casamata e a meus companheiros. Eu recordei que o rio que corria
mais a oriente dos que desaguavam no Ancoradouro do Capitão Kidd descia
a partir da colina de dois picos que ficava à minha esquerda, e orientei meu
caminho nessa direção, para que pudesse atravessar o regato enquanto era
estreito. Naquela parte da ilha, o bosque era bem aberto, e, como eu
permaneci caminhando ao longo dos afloramentos mais baixos, logo
encontrei o canto daquela colina; e, não muito tempo depois, estava
vadeando o regato com água pela metade das canelas.
Isto me conduziu próximo ao local em que tinha encontrado Ben Gunn, o
marinheiro abandonado na ilha, e caminhei com maior atenção, mantendo
os olhos abertos para todos os lados. A escuridão era agora quase completa
e, quando passei pela fenda que dividia os dois picos, percebi um brilho que
ondulava contra o céu onde, segundo julguei, o homem da ilha estava
assando seu jantar sobre uma fogueira. E no entanto, no fundo de meu
coração, eu imaginava como ele poderia ser tão descuidado a ponto de
mostrar-se. Claro estava que, se eu podia ver a luz da fogueira, ela também
poderia chegar aos olhos do próprio Silver, no lugar em que ele acampava
na praia, no meio dos brejos.
Gradualmente, a noite foi ficando mais negra. Tudo o que eu podia fazer
era me orientar na direção aproximada de meu destino. A colina dupla
diante de mim e a Luneta à minha direita tornavam-se cada vez mais
difíceis de distinguir, as estrelas eram poucas e pálidas e, pelo terreno baixo
por onde agora andava, tropeçava a todo momento em arbustos e, às vezes,
rolava para dentro de covas na areia.
De repente, uma espécie de claridade caiu a meu redor. Olhei para cima:
a luz pálida do luar tinha pousado sobre o cume da Luneta, e logo depois eu
vi alguma coisa larga e prateada movendo-se a pouca altura por entre as
árvores, e então soube que a lua tinha-se erguido.
Com a ajuda dela, percorri rapidamente o que restava de minha jornada,
e, algumas vezes caminhando e outras correndo, impacientemente atirei-me
em direção à paliçada. Todavia, quando comecei a caminhar pelo bosque
que se erguia diante dela, não fui tão descuidado que não diminuísse o
passo e caminhasse com um pouco mais de precaução. Teria sido um mau
final de minhas aventuras se levasse um tiro de meus próprios amigos por
engano.
A lua subia cada vez mais alto, sua luz começou a cair aqui e ali em
trechos esparsos através dos pontos mais abertos da mata; então, bem em
frente a mim, uma luz de uma tonalidade diferente apareceu entre as
árvores. Era vermelha e parecia quente, e, de vez em quando, escurecia um
pouco – como se fossem brasas de uma fogueira fumegando.
Não teria sido capaz de adivinhar o que era, nem que minha vida
dependesse disso.
Finalmente, eu cheguei nos exatos limites da clareira. O lado ocidental já
estava iluminado pela luz da lua, o resto, e a própria casamata, ainda
estavam em uma sombra negra, listrada por longos raios de luz prateada.
Do outro lado da casa, uma fogueira imensa tinha queimado até se
transformar em brasas claras e lançava um reflexo vermelho e constante,
contrastando fortemente com a palidez macia do luar. Não havia sinal de
qualquer pessoa, e nem um som, exceto o ruído da brisa.
Eu hesitei, com muito espanto em meu coração, e talvez também um
pouco de terror. Não era nosso costume erigir grandes fogueiras; de fato,
seguindo as ordens do Capitão, nós éramos mais que econômicos, até
mesquinhos no uso da lenha. Eu comecei a temer que alguma coisa tivesse
dado muito errado durante minha ausência.
Fiz a volta pelo lado oriental, mantendo-me escondido pelas sombras, até
que, em um lugar conveniente, no qual a escuridão era mais espessa, cruzei
a paliçada.
Para ter ainda maior segurança, coloquei-me sobre as mãos e os joelhos e
me arrastei, sem fazer um som, até o canto da casa. Enquanto me
aproximava, meu coração subitamente ficou muito mais leve. Não é um
som propriamente agradável, e muitas vezes queixei-me dele em outras
ocasiões, porém, naquele momento, foi como música escutar meus amigos
todos juntos roncando alto e pacificamente. O grito do mar do vigia, aquele
belo “Está tudo bem!” nunca pareceu mais tranquilizador para meus
ouvidos.
Enquanto isso, não havia dúvida de uma coisa: a sentinela era infame. Se
Silver e seus rapazes tivessem se arrastado até eles, nenhum de meus
companheiros teria visto o nascer do sol. Esse era o resultado, pensei eu, de
o Capitão estar ferido, e novamente senti fortes remorsos por tê-los deixado
naquele perigo com tão pouca gente para montar guarda.
A essa altura, eu já tinha chegado até a porta e me levantado. Tudo estava
escuro do lado de dentro, de modo que eu não conseguia distinguir nada.
Quanto ao som, havia o ruído constante dos roncos, além de um barulhinho
ocasional, uma pancadinha ou uma bicada que eu não conseguia identificar
de jeito nenhum.
Com meus braços estendidos à frente, caminhei confiantemente para
dentro. Eu deveria deitar em meu próprio lugar (foi o que pensei, com uma
risadinha silenciosa) e gozar a surpresa de seus rostos quando me
encontrassem de manhã.
Meu pé bateu em alguma coisa macia – era a perna de um dos homens
adormecidos, e ele voltou-se e resmungou, porém sem acordar.
E, então, subitamente, uma voz aguda surgiu do meio da escuridão:
– Peças de oito! Peças de oito! Peças de oito! Peças de oito! Peças de
oito! – e assim por diante, sem pausa ou mudança, como se fossem os
estalidos de um moinho.
O papagaio verde de Silver, o Capitão Flint! Era ele que eu tinha
escutado bicando um pedaço de casca dos troncos das paredes; era ele,
mantendo melhor guarda que qualquer ser humano, que assim anunciou
minha chegada com seu refrão cansativo.
Nem tive tempo para me recuperar. Com a voz aguda e destacada do
papagaio, os homens adormecidos acordaram e se puseram de pé em um
salto, e, com uma praga terrível, soou a voz de Silver:
– Quem está aí?
Virei-me para correr, bati violentamente contra uma pessoa, desviei para
trás e caí bem nos braços de uma segunda, que, por sua vez, fechou-os
rapidamente e manteve-me bem seguro.
– Traga uma tocha, Dick – disse Silver, quando minha captura estava
assegurada.
E um dos homens saiu da cabana de troncos, retornando pouco depois
com um galho aceso.
PARTE VI
O CAPITÃO SILVER

CAPÍTULO 28
NO ACAMPAMENTO DO INIMIGO
O brilho vermelho da tocha iluminando o interior da casamata mostrou-
me a realização do pior de meus pesadelos. Os piratas haviam tomado posse
tanto da casa como dos suprimentos: lá estava o barrilete de conhaque, a
carne de porco salgada e os fardos de biscoitos, como antes; e, o que
aumentou dez vezes o meu horror, não havia sinal de qualquer prisioneiro.
Eu podia apenas julgar que todos haviam perecido, e meu coração me
condenou amargamente por eu não ter estado ali para morrer com eles.
Haviam somente seis bucaneiros, no total, nem um só dos outros estava
vivo. Cinco deles estavam sãos e de pé, mas vermelhos e de rosto inchado,
subitamente chamados de seu sono embriagado. O sexto tinha somente se
erguido em um dos cotovelos, estava mortalmente pálido e a bandagem
manchada de sangue ao redor de sua cabeça revelava que ele tinha sido
ferido recentemente e, ainda mais recentemente, tinha recebido o curativo.
Eu lembrei do homem que tinha sido alvejado e havia corrido de volta para
o meio das árvores durante o grande ataque, e não duvidei que fosse este.
O papagaio estava sentado, exibindo sua plumagem, no ombro de Long
John, que parecia um pouco mais pálido e mais sério do que costumava ser.
Ainda estava usando o belo terno de tecido grosso, dentro do qual havia
cumprido sua missão de parlamentar, mas este estava em muito piores
condições devido ao uso, sujo de barro e rasgado pelos espinhos agudos da
floresta.
– Pois então – disse ele –, aqui está Jim Hawkins, com mil demônios!
Veio nos fazer uma visitinha, não foi? Bem, ora essa, vou considerar isso
um ato de amizade!
E, com esse exórdio, sentou-se sobre um barrilete de brandy, começando
a encher o cachimbo.
– Me empreste um pouco essa lenha, Dick – disse ele, e prosseguiu,
depois que já tinha conseguido uma boa chama. – Assim está bom, rapaz.
Agora ponha essa tocha presa bem firme na pilha de lenha, para podermos
enxergar, e vocês, cavalheiros, podem ficar à vontade! Não há necessidade
de ficarem em pé por causa de Mr. Hawkins: ele vai desculpá-los, podem
contar com isso. E assim, Jim – ele falou enquanto ajeitava o fumo no
cachimbo –, aqui está você, e que surpresa agradável para o pobre e velho
John. Eu percebi que era um rapaz esperto desde que pus meus olhos em
você pela primeira vez, mas o que está fazendo aqui foge ao meu entender,
isto foge.
Como se pode supor, eu não lhe dei resposta.
Eles tinham me colocado com as costas contra a parede, e eu fiquei
parado ali, olhando Silver no rosto, aparentando muita coragem – eu
esperava –, mas cheio de um negro desespero em meu coração.
Silver deu uma baforada ou duas em seu cachimbo, com toda a
dignidade, e então recomeçou a falar:
– Agora, você vê, Jim, já que você está aqui – disse ele –, eu vou lhe
dizer o que é que eu penso. Sempre gostei de você, gostei mesmo, é um
rapaz valente e o meu retrato, quando eu era jovem e bonito. Eu sempre
quis que você se juntasse a nós e recebesse sua parte e acabasse sua vida
como um cavalheiro, e agora, meu galinho de briga, é isso que você vai ter
de fazer. O Capitão Smollett é um ótimo marinheiro, isso eu reconheço em
qualquer lugar, mas é um pouco duro na disciplina. “Dever é dever”, é o
que ele diz; e, na verdade, tem toda a razão. Você vai ter de ficar fora do
caminho do Capitão. Até o Doutor está furioso com você – “patifezinho
ingrato”, foi o que ele disse; e para encurtar uma história tão comprida,
você não pode voltar para seus amigos, porque eles não querem mais saber
de você; e, a não ser que pretenda formar uma terceira tripulação por sua
conta, o que pode ser meio solitário, vai ter de ficar do lado do Capitão
Silver.
Por enquanto estava tudo bem. Ficara sabendo, então, que meus amigos
ainda estavam vivos; e, embora eu acreditasse em parte na declaração de
Silver, de que o grupo do camarote estava zangado comigo por causa de
minha deserção, eu estava mais aliviado do que entristecido pelo que
escutara.
– Eu nem estou dizendo nada a respeito do fato de que você já está
mesmo em nossas mãos – continuou Silver. – Embora, de fato, você esteja,
pode contar com isso. Eu sempre preferi argumentar; nunca vi bem nenhum
resultar de ameaças. Se você gostar do serviço, muito bem, então você se
une ao nosso bando, e, se você não quiser, Jim,ora você sempre tem
liberdade de dizer não – tem liberdade e o meu respeito, companheiro; e se
uma coisa mais justa puder ser dita por um marinheiro mortal, então podem
serrar minha muleta!
– Quer dizer que tenho de dar uma resposta agora? – eu perguntei, com
uma voz muito trêmula. Através de toda aquela conversalhada zombeteira,
eu percebia perfeitamente a ameaça de morte que pairava sobre mim,
minhas faces queimavam e meu coração batia penosamente dentro de meu
peito.
– Rapaz – disse Silver –, ninguém está pressionando você. Primeiro, faça
uma sondagem e veja a quantas anda. Nenhum de nós vai apressá-lo,
companheiro; o tempo passa de maneira tão agradável em sua companhia,
você vê.
– Bem – disse eu, sentindo-me um pouco mais ousado –, se eu tenho de
escolher, tenho também o direito de saber o que é que estou escolhendo, e
por que vocês estão aqui e onde estão os meus amigos.
– Ele quer saber o que está escolhendo – repetiu um dos bucaneiros, com
um resmungo rouco. – Ah, teria muita sorte quem soubesse disso!
– Acho melhor você deixar fechadas suas escotilhas até que lhe
perguntem alguma coisa, meu amigo – gritou Silver truculentamente para o
homem que havia falado. E então, no mesmo tom educado com que se
dirigira a mim antes, ele me respondeu. – Ontem de manhã, Mr. Hawkins –
disse ele –, ontem de manhã, na vigília da madrugada, desceu o Doutor
Livesey com uma bandeira de trégua. Disse ele: “Capitão Silver, você foi
traído. O navio partiu”. Bem, talvez nós estivéssemos tomando um copo ou
dois, com uma canção para ajudar a descer. Não vou dizer que não. Pelo
menos, nenhum de nós tinha ficado cuidando o mar. Aí nós olhamos e, com
mil trovões! – o velho navio tinha desaparecido. Eu nunca vi um monte de
idiotas ficarem com umas caras mais espantadas. Todo mundo de boca
aberta, como peixes fora da água, e pode ter certeza disso, se lhe disser que
era eu que estava com a maior cara de peixe. “Bem”, disse o Doutor,
“vamos negociar”. Nós barganhamos, ele e eu, e aqui estamos nós, com os
suprimentos, o brandy, a casamata e a pilha de lenha que vocês tiveram o
cuidado de juntar; por assim dizer, ficamos com todo o barco abençoado,
dos contramastros até o porão. Quanto a eles, foram embora, partiram, não
sei para onde foram e não sei onde é que estão.
Ele deu uma nova baforada no cachimbo, com toda a calma.
– E antes que você ponha nessa cabecinha – prosseguiu ele – a ideia de
que foi incluído no tratado, aqui está a última palavra que foi dita. “Quantos
de vocês”, perguntei eu, “quantos de vocês vão partir?” “Quatro”, disse ele,
“quatro e um de nós está ferido. Quanto àquele rapaz, eu nem sei onde ele
está, que Deus o castigue”, foi o que ele disse, “e nem tampouco me
importo. Já estamos fartos dele”. Estas foram as suas últimas palavras.
– E isso é tudo? – eu quis saber.
– Bem, isso é tudo que você vai escutar, meu filho – redarguiu Silver.
– E agora, eu tenho de fazer a minha escolha?
– E agora, você tem de fazer sua escolha, pode contar com isso – disse
Silver.
– Bem – disse eu –, eu não sou um idiota tão perfeito que não saiba
muito bem o que me espera. Se tiver de acontecer o pior, não estou mais me
importando muito. Já vi gente demais morrer desde que me encontrei com
você. Mas há uma coisa ou duas que eu tenho a lhe dizer – prossegui eu; e
nesta altura, estava bastante excitado. – E a primeira é esta: vocês estão em
péssima situação: navio perdido, tesouro perdido, homens perdidos, todo o
negócio de vocês naufragou, e, se vocês querem saber quem foi o culpado,
fui eu! Eu estava dentro do barril de maçãs na noite em que avistamos terra,
e escutei você, John, e você, Dick Johnson, juntamente com Hands, que
agora se encontra no fundo do mar, e contei todas as palavras que vocês
disseram, antes que se passasse uma hora. E quanto à escuna, fui eu quem
cortou-lhe o cabo, e fui eu quem matou os homens que estavam a bordo
dela, e fui eu que a levei sozinho para um lugar em que vocês jamais a
encontrarão, nem um só de vocês. A risada final é minha; eu tive controle
do negócio desde o princípio; e não tenho mais medo de você que teria de
uma mosca. Mate-me, se quiser; ou então poupe-me. Mas uma coisa eu vou
dizer e essa vai ser a última: se vocês me pouparem, tudo ficará esquecido,
e quando vocês forem levados ao tribunal, sob acusação de pirataria, eu vou
salvá-los a todos, se puder. São vocês que têm de escolher. Matem mais um,
sem terem vantagem nenhuma nisso, ou me poupem, e terão uma
testemunha para salvá-los do patíbulo.
Aqui eu parei, porque vou confessar que já estava sem fôlego, e, para
meu espanto, nem um só homem dentre eles se moveu, mas todos ficaram
parados, de olhos arregalados, olhando para mim como outras tantas
ovelhas. E, enquanto eles estavam ainda a me olhar, eu comecei de novo:
– E agora, Mr. Silver – disse eu –, acredito que você seja o melhor
homem por aqui; e, se as coisas tomarem o pior curso, lhe agradecerei
muito se disser ao Doutor a maneira como agi.
– Vou conservar isso em mente – disse Silver, em um tom de voz tão
estranho que eu não poderia, mesmo que minha vida dependesse disso,
saber se ele estava rindo de meu pedido ou se tinha sido favoravelmente
afetado por minha coragem.
– Vou acrescentar mais uma coisa em cima de tudo isso – gritou o velho
marinheiro que tinha o rosto da cor de carvalho antigo, seu nome era
Morgan, a quem eu tinha visto na taverna de Long John sobre os cais de
Bristol. – Também foi ele que reconheceu o Cão Negro.
– Bem, e vejam mais esta – acrescentou o cozinheiro de bordo. – Eu
posso pôr ainda outra coisa em cima de tudo, com mil trovões! Pois foi este
mesmo menino que roubou o mapa de Billy Bones. Desde o princípio até o
fim nós demos de cara com Jim Hawkins!
– Então, chegou a hora! – disse Morgan, soltando uma praga.
E, sacando a faca, saltou para meu lado, como se tivesse vinte anos.
– Parado aí! – gritou Silver. – Quem é você, Tom Morgan? Talvez você
pense que é agora o capitão aqui, quem sabe? Pelos poderes celestes, vou
ensinar-lhe uma lição! Tente me contrariar e você irá para o lugar para onde
foram muitos homens bons antes de você, do primeiro ao último, nestes
últimos trinta anos – alguns para a verga, rebentem o meu casco! –, e outros
andaram pela prancha, e todos viraram comida de peixe. Nunca houve um
só homem que me olhasse nos olhos e me desafiasse e visse o dia seguinte,
Tom Morgan, pode ter certeza disso!
Morgan fez uma pausa, porém um murmúrio rouco veio dos outros.
– Tom está certo – disse um.
– Eu já ouvi muitos desaforos daquele capitão – acrescentou outro. – Que
me enforquem se vou ouvir desaforos de você, John Silver!
– Algum de vocês, cavalheiros, quer resolver a questão agora comigo? –
rugiu Silver, inclinando-se bem para a frente do lugar em que estava
sentado sobre o barrilete, com o cachimbo ainda brilhando em sua mão
direita. – Ponham um nome no que estão pretendendo fazer, vocês não são
patetas, acho eu. Aquele que quiser, vai levar primeiro. Então eu vivi todos
estes anos e agora qualquer filho da mãe nascido de um barril de rum vai
colocar o chapéu de banda e se atravessar na minha frente como se eu não
valesse mais nada? Vocês sabem como é que se faz. Vocês todos são
cavalheiros da fortuna, segundo vocês mesmos dizem. Bem, eu estou
pronto. Pegue um cutelo, aquele que ousar; e eu verei que cores ele tem por
dentro, com muleta e tudo, antes de esvaziar meu cachimbo!
Nem um só homem se moveu; nem um só respondeu.
– É assim que vocês são, não é? – ele acrescentou, retornando o
cachimbo à boca. – Bem, vocês são um bando muito engraçado, de
qualquer maneira. Nem um de vocês vale muito em um combate, nem um
só de vocês. Mas talvez vocês possam entender o inglês do Rei George. Eu
sou capitão aqui por eleição. Eu sou capitão aqui, porque sou o melhor
homem que existe em muitas milhas. Vocês não se animam a lutar como
devem os cavalheiros da fortuna, então, com mil trovões, vocês vão
obedecer, podem acreditar nisso! Pois, agora, fiquem sabendo que eu gosto
desse menino. Nunca vi um menino que fosse melhor do que ele. Ele é mais
homem que quaisquer dois ratos de vocês que estão dentro desta casa, e o
que eu digo é o seguinte: quero ver se algum camarada se atreve a pôr um
dedo em cima dele – é isso que eu digo, e vocês podem contar com isso!
Houve uma longa pausa depois disto. Eu permaneci ereto contra a
parede, meu coração batendo ainda como um malho na bigorna, mas agora
com um raio de esperança a brilhar-me no peito. Silver apoiou as costas
contra a parede, de braços cruzados, seu cachimbo preso ao canto da boca,
tão calmo como se estivesse na igreja, e, todavia, seus olhos continuavam
errando furtivamente, enquanto ele mantinha guarda sobre seus seguidores
rebelados. Eles, por sua vez, reuniram-se gradualmente no lado oposto da
casamata, e o tom baixo de seus murmúrios soava continuamente em meus
ouvidos como o som de um riacho. Um após outro, eles voltavam o rosto
para nossa direção, e a luz vermelha da tocha caía por um segundo sobre
suas faces nervosa. Mas não era para mim, era para Silver que eles
voltavam os olhares.
– Vocês parecem ter muita coisa para dizer – observou Silver, cuspindo
bem longe. – Falem logo e deixem-me ouvir o que é, ou então vão se deitar.
– Com seu perdão, senhor – retorquiu um dos homens –, o senhor está
tomando muitas liberdades com algumas das regras; talvez nos faça a
gentileza de prestar atenção nas outras. Esta tripulação está insatisfeita, esta
tripulação não aceita ser maltratada sem motivo, esta tripulação tem os seus
direitos como qualquer outra tripulação, tomo a liberdade de dizer, e se
seguir suas próprias regras, queremos ter direito de conversar uns com os
outros. Peço-lhe perdão, senhor, reconhecendo que neste momento é o
capitão, mas exijo meus direitos, e vou sair porta afora para iniciar uma
assembleia.
E, com uma elaborada continência marinha, aquele camarada, um
homem alto mas de má catadura, com olhos amarelados e uns trinta e cinco
anos de idade, caminhou friamente para a porta e desapareceu lá fora. Um
após outro, o resto seguiu-lhe o exemplo, cada um prestando continência
enquanto passava, cada um acrescentando uma espécie de desculpa. “De
acordo com as regras”, disse um. “Conselho do castelo da proa”, disse
Morgan. E assim, com uma observação ou outra, todos saíram da casa,
deixando Silver e eu sozinhos com a tocha.
O cozinheiro de bordo instantaneamente retirou o cachimbo da boca.
– Agora, veja aqui, Jim Hawkins – disse ele, num sussurro firme, que não
era mais do que audível. – Você está à meia prancha da morte e, o que é
muito pior, da tortura. Está claro que eles vão me depor. Mas, olhe bem,
estou do seu lado, por pior que fique a situação. Na verdade, eu não
pretendia; não, até que você falou. Eu estava quase desesperado por perder
todo aquele dinheiro e acabar sendo enforcado como consequência. Mas
agora eu vejo que você é que está certo, por assim dizer. Eu disse para mim
mesmo: fique do lado de Hawkins, John, e Hawkins ficará do seu lado.
Você é sua última cartada e, raios, John, ele é sua última cartada também.
Costas contra costas, digo eu. Você salva sua testemunha e ela salvará seu
pescoço!
Eu comecei a entender vagamente.
– Quer dizer que tudo está perdido? – perguntei.
– Sim, por mil trovões, é o que eu acho! – ele respondeu. – Perde-se o
navio, perde-se o pescoço – esse é o tamanho da coisa. No momento em
que eu olhei para aquela baía, Jim Hawkins, e vi que não havia mais escuna
– bem, eu sou um cara durão, mas desta vez, eu desisti. Quanto àquela
turma e o seu conselho, pode marcar minhas palavras, eles são um bando de
tolos e uns completos covardes. Eu vou salvar-lhe a vida – vou fazer tudo o
que for possível –, e não deixarei que lhe façam mal. Mas olhe aqui, Jim – é
uma coisa pela outra –, você também salvará meu pescoço e não deixará
que eu balance na forca.
Eu estava espantadíssimo. Aquilo que ele me pedia parecia uma coisa tão
sem esperança – logo ele, o velho bucaneiro, o chefe dos amotinados do
princípio ao fim.
– O que eu puder, isto farei – disse eu.
– O negócio está feito! – gritou Long John. – Você fale com coragem,
como falou comigo e, com mil trovões!, eu terei uma chance!
Ele cambaleou até a tocha, no lugar em que ela se encontrava presa no
meio da lenha, e pegou fogo novamente para reacender o cachimbo.
– Agora, me entenda, Jim – disse ele, retornando. – Eu tenho uma boa
cabeça em meus ombros, lá isso eu tenho. Estou do lado do Conde agora.
Eu sei que você colocou aquele navio em segurança em algum lugar. Como
você conseguiu, eu não sei, mas tenho certeza de que está em segurança.
Acho que Hands e O’Brien amoleceram. Eu nunca acreditei muito mesmo
em qualquer dos dois. Agora, marque minhas palavras: eu não vou fazer
perguntas e nem deixar que os outros façam. Eu sei quando o jogo está
terminado, isso eu sei. E eu também sei quando um rapaz merece confiança.
Ah, como você é jovem! Você e eu poderíamos ter feito um monte de coisas
boas juntos!
Ele derramou um pouco de conhaque em um canecão de estanho.
– Quer provar, companheiro de rancho? – indagou ele, e, depois que eu
recusei, prosseguiu. – Bem, eu mesmo vou tomar um pouco, Jim – disse
ele. – Eu preciso me preparar, porque as dificuldades estão à frente. E, já
que falamos de dificuldades, por que aquele Doutor me deu o mapa, Jim?
Meu rosto expressou tamanho espanto, que ele não viu necessidade de
fazer outras perguntas.
– Ah, bem, mas ele me deu, fique sabendo – disse ele. – E há alguma
coisa por trás disso, sem a menor dúvida. Há alguma artimanha, Jim, por
trás dessa manobra, pode contar com isso – só não sei se é uma coisa boa ou
uma coisa má.
E ele tomou outro gole da bebida, sacudindo seu grande rosto claro como
um homem que está esperando que lhe aconteça o pior.

CAPÍTULO 29
O SINAL NEGRO DE NOVO
O conselho dos bucaneiros já durava há algum tempo, quando um deles
retornou à casa e, com uma repetição da mesma saudação, que a meus olhos
tinha um ar irônico, pediu por um momento o empréstimo da tocha. Silver
concordou com um breve aceno de cabeça, e o emissário retirou-se de novo,
deixando-nos sozinhos no escuro.
– Há uma brisa chegando, Jim – disse Silver, que a essa altura já tinha
adotado um tom de voz inteiramente familiar e amigável.
Eu me voltei para a abertura mais próxima de mim e olhei para fora. As
brasas da grande fogueira tinham se extinguido quase completamente e
agora emitiam uma luminosidade tão fraca e mortiça, que entendi porque
aqueles conspiradores precisavam da tocha. A cerca de metade da distância
entre a cabana de troncos e a paliçada, o grupo havia se reunido. Um
segurava a luz, outro estava ajoelhado no meio deles, e eu vi a lâmina de
uma navalha aberta brilhar em sua mão em reflexos variados do luar e da
tocha. Todos os demais pareciam um pouco inclinados em sua direção,
como se observassem as manobras do primeiro. Eu apenas conseguira ver
que ele tinha um livro em suas mãos, além da faca, e estava ainda
imaginando como uma coisa tão incongruente como um livro estava em
posse deles, quando a figura ajoelhada ergueu-se novamente, e o bando
inteiro de rebelados começou a mover-se de volta para a casa.
– Aí vêm eles – disse eu. E retornei para minha posição anterior, pois me
parecia abaixo de minha dignidade que eles percebessem que eu os estivera
observando.
– Bem, deixe que eles venham, rapaz – deixe que eles venham – disse
Silver, alegremente. – Ainda tenho um tiro em meu mosquete.
A porta abriu-se e os cinco homens, dando apenas alguns passos para
dentro e permanecendo embolados em um grupo, empurraram um deles
para a frente. Em quaisquer outras circunstâncias, teria sido cômico assistir
a seu lento avanço, hesitando antes de colocar cada pé no chão, mas
mantendo a mão direita fechada bem à frente.
– Ande logo, rapaz – exclamou Silver. – Não vou comê-lo. Entregue logo
o negócio, seu marinheiro de primeira viagem. Eu conheço as regras,
conheço bem. Não vou ferir um emissário.
Assim encorajado, o bucaneiro avançou mais rapidamente, e, tendo
passado alguma coisa de sua mão para a mão de Silver, deslizou ainda mais
depressa para o meio de seus companheiros.
O cozinheiro de bordo olhou para o que lhe tinha sido entregue.
– O Sinal Negro! Foi o que eu pensei – ele observou. – E de onde foi que
vocês tiraram este papel? Ora, mas é claro! Agora, vejam só: isto não vai
trazer-nos sorte! Vocês tiveram o atrevimento de cortar um pedaço da
Bíblia! Qual foi o idiota que cortou uma Bíblia?
– Ah, então! – disse Morgan. – Pois então! O que foi que eu disse?
Nenhum bem vai resultar disso, foi o que eu falei.
– Bem, agora vocês decidiram a coisa mesmo, todo o bando de vocês! –
continuou Silver. – Todos vocês vão balançar na forca, tenho certeza. Quem
é o marinheiro de primeira viagem que tinha coração mole e andava com
uma Bíblia?
– Era Dick – disse um deles.
– Dick, então era ele? Então, Dick, pode começar a rezar agora mesmo –
disse Silver. – Ele deu adeus à sua última fatia de sorte, foi o que Dick fez,
podem contar com isso.
Mas neste ponto, o homem de pernas compridas com os olhos
amarelados interrompeu:
– Acabe com essa conversa mole, John Silver – disse ele. – Esta
tripulação lhe entregou o Sinal Negro, depois do plenário da assembleia,
como manda o dever, agora você vire o papel, como manda o dever; e veja
o que está escrito atrás dele. Depois, você pode falar.
– Muito obrigado, George – replicou o cozinheiro de bordo. – Você foi
sempre rápido nos negócios, e conhece de cor todas as regras, George, e
folgo em sabê-lo. Bem, o que está escrito, afinal? Ah! “Deposto” – então é
isso, não é? E está muito bem-escrito, com certeza, juro que parece
impresso. É a sua letra, George? Ora, a mim me parece que você está
assumindo plena liderança desta tripulação aqui. Você será o próximo
capitão, não vou ficar nem um pouco espantado. Mas agora me faça a
gentileza de alcançar a tocha de novo, por favor. Meu cachimbo está
entupido.
– Vamos lá – disse George. – Você não vai mais enganar esta tripulação.
Você é um homem muito esperto, segundo pensa, mas agora acabou, o que
você tem a fazer é sair desse barrilete e ajudar-nos a votar.
– Eu pensei que você tinha dito que conhecia as regras – retornou Silver,
com o maior desprezo. – Mas, pelo menos, se você não conhece, eu
conheço bem, e vou ficar esperando aqui – por enquanto sou ainda o seu
capitão, prestem bem atenção –, até que vocês declarem as suas queixas e
eu tenha respondido. Enquanto isso, seu Sinal Negro não vale um biscoito.
Depois que tudo for dito e respondido, nós veremos.
– Oh! – replicou George –, você não tem necessidade de ficar se
preocupando com isso, nós todos sabemos o que queremos, nós
concordamos. Primeiro, você fez a maior confusão deste cruzeiro – tem de
ser mesmo muito atrevido para negar. Em segundo lugar, você deixou o
inimigo sair aqui desta armadilha a troco de nada. Por que é que eles
queriam ir embora? Eu não sei, mas está bem claro que essa era a vontade
deles. Em terceiro lugar, você não nos deixou atacá-los durante a marcha.
Oh, está muito claro, John Silver, o que você quer é jogar dos dois lados, é
isso que está errado com você. E então, em quarto lugar, tem esse menino
aqui.
– E é só isso? – quis saber Silver, tranquilamente.
– E já é o bastante – ripostou George. – Todos nós vamos balançar e
secar ao sol por causa das suas besteiras!
– Tudo bem, agora, olhem aqui. Eu vou dar minha resposta a esses quatro
pontos; um depois do outro, vou responder a todos. Então, eu armei a maior
confusão neste cruzeiro, não foi? Bem, agora, todos vocês sabem o que eu
queria fazer, e todos vocês também sabem que, se as coisas tivessem sido
feitas do meu jeito, nós ainda estaríamos a bordo do Hispaniola, como nas
noites anteriores, como se nada tivesse acontecido, todos os homens vivos e
em boas condições, com o estômago cheio de um bom pudim de ameixa, e
o tesouro bem guardado no porão, com mil trovões! Bem, quem foi que me
contrariou? Quem foi que me forçou a mão, eu que era o capitão legítimo?
Quem foi que me entregou aquele outro Sinal Negro, no próprio dia em que
desembarcamos, dando início a toda esta dança? Ah, é uma bela dança – e,
pelo visto, estou dançando junto com vocês – só que se parece muito com
um camarada balançando na ponta de uma corda na Doca das Execuções na
cidade de Londres, é com isso que se parece. Mas quem foi que fez isso?
Ora, foi Anderson, e foi Hands, e foi você, George Merry! E agora você é o
último a bordo, de cambulhada com a mesma tripulação de intrometidos! E
você tem a insolência de Davy Jones, do Demônio do Mar, para se levantar
e querer ser capitão em meu lugar – logo você, que nos afundou a todos!
Pelos poderes celestes! Mas esta é a história mais incrível que já ouvi!
Silver fez uma pausa e pude ver pelos rostos de George e seus camaradas
que estas palavras não tinham sido ditas em vão.
– Isso é pelo número um – gritou o acusado, secando o suor de sua testa,
porque tinha falado com uma veemência que sacudira a casa. – Ora, eu lhe
dou minha palavra, já estou cansado de falar com vocês. Vocês não tem
nem senso comum nem memória, e não faço a menor ideia de onde estavam
as mães de vocês quando deixaram que vocês viessem para o mar. Para o
mar! Cavalheiros da fortuna! Acho que a profissão de vocês devia ser a de
alfaiates!
– Ande de uma vez, John – disse Morgan. – Fale dos outros.
– Ah, os outros! – replicou John. – Fazem um belo conjunto, não fazem?
Vocês dizem que este cruzeiro foi uma porcaria. Ah, com mil demônios, se
vocês conseguissem entender até que ponto chegou a porcaria, aí é que
vocês iam ver! Estamos tão perto da forca, que meu pescoço está duro, só
de pensar nisso. Vocês já os viram, talvez, enforcados em correntes, com os
pássaros bicando em volta e os marinheiros passando e apontando para eles,
enquanto a maré sobe e desce. “Quem é aquele?”, pergunta um. “Aquele?
Ora, aquele é John Silver. Eu o conheci muito bem”, diz um outro. E você
pode escutar o barulho das correntes, os elos estalando uns contra os outros,
enquanto você passa de uma boia para outra. Pois bem, é exatamente o
lugar em que estamos, cada filho da mãe de nós, e graças a ele, e a Hands, e
a Anderson, e ao resto dos idiotas chapados desse bando de vocês! E agora
vocês querem saber a respeito do número quatro, sobre esse menino; ora,
rebentem meu casco! Pois ele não é nosso refém? E agora nós vamos
desperdiçar um refém? Não, nós não vamos, ele pode ser nossa última
oportunidade, isto não me espantaria nem um pouco! Matar esse menino?
Eu não, companheiros! E quanto ao número três? Ah, bem, há um monte de
coisas para se dizer a respeito do número três. Talvez vocês achem que não
vale nada ter um verdadeiro Doutor de universidade vir para atendê-los
todos os dias? Especialmente você, John, com a cabeça quebrada! Ou
mesmo você, George Merry, que teve um ataque de malária dos piores seis
horas atrás, com os seus olhos da cor de casca de limão, desde então? E
talvez, quem sabe, vocês não soubesem que um navio de apoio ia chegar?
Pois fiquem sabendo que vem, e tampouco vai demorar muito, e vamos ver
quem vai ficar contente de ter um refém na hora em que ele chegar. E,
quanto ao número dois e por que eu fiz um trato – ora, vocês vieram se
arrastando de joelhos, me pedindo que fizesse um! – vocês vieram de
joelhos, de tão desanimados que se encontravam – e vocês teriam morrido
de fome, também, se eu não tivesse feito o trato! –, mas tudo isso é uma
bagatela! Olhem aqui – foi por isso que eu fiz o trato!
E ele jogou no assoalho um papel que eu instantaneamente reconheci –
nenhum outro senão a carta marítima desenhada sobre papel amarelado,
com as três cruzes vermelhas, que eu tinha encontrado dentro do oleado no
fundo do baú do Capitão. Por que o Doutor tinha lhe entregado o mapa?
Isso era mais do que eu podia adivinhar.
Porém, se era inexplicável para mim, o aparecimento do mapa era
incrível para os amotinados sobreviventes. Eles saltaram sobre ele como um
bando de gatos sobre um camundongo. Passou de mão em mão, um
arrancando o mapa da mão do outro; e, pelas pragas, e gritos, e alegria
infantil com a qual acompanharam a análise dele, qualquer um teria
pensado que, não somente eles estavam manipulando o tesouro
propriamente dito, mas que, além disso, já estavam no mar com ele, em
plena segurança.
– Sim – disse um dos piratas –, essa é a assinatura de Flint, sem a menor
dúvida. J. F., com um traço por baixo e um nó, como ele fazia sempre.
– Muito lindo – disse George. – Mas como é que vamos poder carregar o
tesouro, agora que não temos mais barco?
Silver subitamente deu um salto e pôs-se de pé, apoiando-se com uma
das mãos contra a parede de troncos:
– Agora, eu vou dar-lhe um aviso, George – gritou ele. – Mais uma
palavra atrevida de sua parte e vou agarrá-lo para uma briga de verdade.
Ora, como! E como é que eu vou saber? É você que tinha de me dizer
como, você e todo esse bando de inúteis, que deram um jeito de perder a
minha escuna. Que queimem todos no inferno pela sua maldita
interferência! Mas é claro que não é você que me irá dar a resposta, você
não pode, não tem a esperteza de uma barata. Mas falar com educação você
pode, George Merry, e é assim que vai falar, pode contar com isso.
– Isso é bastante justo – disse o velho Morgan.
– Justo! Mas é claro que é justo! – disse o cozinheiro de bordo. – Vocês
perderam o barco, eu encontrei o mapa do tesouro. Qual é o melhor
homem? Quem foi que se saiu melhor? Pois agora, eu me demito, com mil
trovões! Elejam quem quiserem para ser seu capitão daqui pra frente! Eu
estou cheio disso tudo!
– Silver! – eles gritaram. – Churrasqueiro para sempre! Churrasqueiro
para capitão!
– Então agora o tom é esse, não é? – exclamou o cozinheiro. – George,
acho que você vai ter de esperar mais um pouco por sua vez, meu amigo. E
a sua sorte é a de que eu não sou um homem vingativo. De fato, vingativo
eu nunca fui, vocês sabem. Sempre resolvi os meus problemas no ato. E
agora, companheiros, o que é que faço com este Sinal Negro? Não serve
para muita coisa agora, serve? Só serviu para Dick liquidar com a própria
sorte e estragar sua Bíblia, foi só para isso que serviu.
– Mas ainda posso beijar o Livro, não posso? – grunhiu Dick, que,
evidentemente, não estava nada satisfeito com a maldição que tinha trazido
sobre si mesmo.
– Uma Bíblia com um pedaço cortado de propósito! – retornou Silver
zombeteiramente. – Não adianta mais. Não serve mais que um livro de
baladas.
– Não serve mais, então? – gritou Dick, com uma estranha espécie de
alegria. – Ora, eu acho que um livro desses também valeria a pena se ter!
– Tome, Jim. Aqui está uma curiosidade para você guardar – disse Silver.
E então, ele me jogou o pedaço de papel.
Era um papel arredondado, mais ou menos do tamanho de uma dessas
moedas que chamam de Coroa; de um lado, não havia nada, pois era a
última folha do livro; o outro continha um versículo ou dois do Livro da
Revelação, o Apocalipse – e entre as outras, continha justamente estas
palavras, que causaram grande impacto em minha mente: “Do lado de fora
ficam os cães, os feiticeiros, os impuros, os assassinos”. O lado impresso
tinha sido escurecido com cinza de madeira, que já tinha começado a cair e
sujou-me os dedos; foi assim que eu consegui ler o versículo, mas do lado
que estava em branco tinha sido escrito, com o mesmo material, uma única
palavra: “Deposto”. Guardei essa curiosidade até hoje e a tenho aqui, a meu
lado, neste momento, mas nem um traço de escrita permanece, salvo um
risco mais fundo, tal como aquele que um homem poderia ter feito com a
unha de seu polegar.
E esse foi o fim dos negócios da noite. Logo em seguida, depois de todos
tomarem um gole de bebida, deitamo-nos para dormir, mas a vingança de
Silver foi colocar George Merry de sentinela e ameaçá-lo com a sentença de
morte se dormisse em seu posto.
Passou-se muito tempo antes que eu pudesse fechar os olhos, e os céus
sabem que eu tinha coisas suficientes para pensar: no homem que eu tinha
matado naquela tarde, em minha própria situação tão perigosa e, acima de
tudo, no jogo espantoso que Silver agora estava coordenando – conservar os
amotinados juntos com uma das mãos e, com a outra, por todos os meios
possíveis e imagináveis, arranjar uma maneira de fazer as pazes e conservar
sua miserável vida. Ele mesmo dormiu pacificamente e roncando alto;
todavia, meu coração lamentava por ele, malvado como era, pensando nos
terríveis perigos que o envolviam e no laço vergonhoso da forca que o
esperava.

CAPÍTULO 30
LIBERDADE CONDICIONAL
Eu fui acordado – sem dúvida, todos nós fomos acordados, pois eu pude
ver até a sentinela sacudir-se e despertar no local em que havia caído, junto
ao marco da porta – por uma voz clara e vigorosa, que nos saudava vindo
do bosque:
– Alô, da casamata! – gritou. – Aqui está o Doutor.
E era realmente o Doutor. Embora eu tivesse ficado feliz por escutar o
som de sua voz, minha alegria não era completa, estava misturada a outros
sentimentos. Eu lembrava, confusamente, de minha conduta insubordinada
e astuciosa, e quando eu vi a que ponto ela tinha me levado – entre que
companheiros eu estava e rodeado por tantos perigos –, sentia vergonha de
olhá-lo no rosto.
Ele devia ter se levantado enquanto ainda estava escuro, pois o dia mal
havia clareado, e quando eu corri para uma das seteiras e olhei para fora, vi-
o parado ali, como anteriormente tinha visto Silver, com o vapor do
nevoeiro subindo até a metade de suas pernas.
– O senhor, Doutor! Desejo a melhor manhã possível, senhor! – gritou
Silver no mesmo momento, completamente desperto e radiante de
entusiasmo. – Chegou alegre e bem cedo, sem a menor dúvida, e é o
pássaro que chega mais cedo, como se diz, que ganha as melhores
minhocas. George, sacuda seu esqueleto, filho, e ajude o Dr. Livesey a subir
pela amurada do navio. Estão se dando muito bem, todos os seus pacientes
– todos estão bem e alegres.
Assim ele continuou a tagarelar, parado no alto da colina, com a muleta
sob o cotovelo enquanto se apoiava com a outra mão contra a parede da
cabana de troncos – era o mesmo velho John, tanto em voz, como em
maneira e expressão.
– Mas temos uma ótima surpresa para o senhor, também – continuou ele.
– Temos um pequeno estranho entre nós aqui, he-he! Um novo
companheiro de cama e mesa, senhor, que parece de boa saúde, preparado
para o baile como um rabequista; dormiu a noite toda como se fosse a parte
de cima da carga, ah, dormiu, bem do lado de John – bordo contra bordo
nós passamos, a noite toda.
A essa altura o Dr. Livesey já havia transposto a paliçada e estava bem
perto do cozinheiro, e eu pude perceber a alteração em sua voz, quando ele
falou:
– Não é Jim?
– O mesmo Jim de sempre – disse Silver.
O Doutor parou no mesmo instante, embora não dissesse nada, e se
passaram alguns segundos antes que ele fosse capaz de se mover.
– Bem, bem – ele disse, finalmente. – Primeiro a obrigação e depois a
diversão, como você mesmo diria, Silver. Vamos examinar os seus
pacientes.
Um momento depois, ele tinha entrado na casamata e, fazendo um
cumprimento de cabeça muito sério para mim, prosseguiu com seu trabalho
entre os doentes. Parecia não sofrer de nenhuma apreensão, embora
certamente soubesse que sua vida, no meio daqueles demônios traiçoeiros,
dependia de um fio de cabelo; e ele conversava sem parar com seus
pacientes como se estivesse fazendo uma visita profissional corriqueira a
uma tranquila família inglesa. Seu comportamento, eu suponho, causava
efeito sobre os homens, porque eles se portavam com ele como se nada
tivesse ocorrido – como se ele ainda fosse simplesmente o médico de bordo,
e eles ainda fossem marinheiros fiéis dormindo no castelo de proa à frente
do mastro.
– Você está indo bem, meu amigo – disse ele ao camarada que tinha a
bandagem na cabeça. – Mas se alguma vez alguém esteve a um fio de
perder a vida, esse foi você, sua cabeça deve ser tão dura como ferro. Bem,
George, como é que você está indo? Está com uma linda cor, certamente;
ora, seu fígado, homem, deve estar de cabeça para baixo. Você tomou
aquele remédio? Ele tomou aquele remédio, homens?
– Sim; sim, senhor, ele tomou, claro que tomou – respondeu Morgan.
– Isto porque, vocês veem, já que eu sou o médico dos amotinados, ou o
médico da prisão, como eu prefiro dizer – disse o Dr. Livesey, em seu tom
de voz mais agradável –, para mim é uma questão de honra não perder um
só homem para o Rei George (Deus o abençoe!) ou para seu patíbulo.
Os patifes olharam uns para os outros, mas engoliram a brincadeira em
silêncio.
– Dick não se sente bem, senhor – disse um.
– Ah, não? – replicou o Doutor. – Bem, chegue até aqui, Dick, e deixe-
me ver-lhe a língua. Não! Estaria surpreendido se ele estivesse bem. A
língua do homem está em um estado suficiente para assustar toda a marinha
francesa. Outro que está com febre.
– Pois é – disse Morgan. – Esse é o resultado de estragar Bíblias.
– Esse é o resultado, como você diz, de serem uns tremendos burros –
redarguiu o Doutor. – Vocês não têm o bom-senso suficiente para distinguir
entre um ar saudável e um ar envenenado, ou a terra seca de um charco vil e
pestilento. Eu acho que o mais provável – embora, naturalmente, seja só
uma opinião – é que todos vocês vão ter muitos problemas, antes que a
malária saia de seus organismos. Pois então foram logo acampar em um
pântano, não foram? Silver, você me surpreendeu. Você é menos tolo que a
maioria, no geral: mas não me parece que tenha uma noção das regras mais
elementares de saúde.
– Bem – disse ele, depois de ter dado remédios a todos e todos terem
tomado suas prescrições, com uma humildade realmente risível, mais como
se falasse a crianças de um orfanato do que a amotinados e piratas com as
mãos tintas de sangue. – Bem, por hoje, acabamos. E agora, por favor, eu
gostaria de dar uma palavra ou duas com esse rapaz.
E inclinou a cabeça em minha direção descuidadamente.
George Merry estava parado à porta, cuspindo e remexendo com a língua
dentro da boca, como se o medicamento que tinha tomado tivesse um gosto
ruim; porém, à primeira palavra da proposta do Doutor, ele se virou, com o
rosto muito vermelho, e gritou:
– Não! – enquanto rogava pragas.
Silver deu uma batida forte com a mão aberta sobre a tampa do barrilete.
– Si-lêncio! – ele rugiu, olhando em volta com um aspecto que
positivamente lembrava o de um leão. – Doutor – ele prosseguiu, em sua
tonalidade normal. – Eu já estava mesmo pensando nisso, sabendo como o
senhor gosta desse menino. Estamos todos humildemente gratos por sua
bondade, e, como o senhor vê, temos fé no senhor e tomamos esses
remédios todos como se fossem uma boa dose de grogue. E eu acho que
encontrei uma solução que vai servir para todos. Hawkins, você me dá sua
palavra de honra, como um jovem cavalheiro – porque você é um jovem
cavalheiro, mesmo que tenha nascido pobre –, você me dá sua palavra de
honra de que não vai tentar romper as amarras?
Eu prontamente assumi o compromisso requerido.
– Então, Doutor – disse Silver –, o senhor sai daqui e passa por cima
daquela paliçada; assim que estiver do outro lado, eu levo o menino até lá,
pelo lado de dentro; acredito que vocês possam tecer uma conversa através
dos intervalos entre os postes. Um bom-dia para o senhor e nossos respeitos
para o Conde e o Capitão Smollett.
Os protestos de desaprovação do bando de amotinados, que nada exceto
a carantonha mais feia de Silver tinha conseguido dominar, explodiram logo
depois que o Doutor saiu da casa. Silver foi acusado diretamente de jogar
dos dois lados – de tentar fazer as pazes em separado – de sacrificar os
interesses de seus cúmplices e vítimas; em uma palavra, foi acusado
exatamente daquilo que de fato pretendia fazer. A coisa, para mim, parecia
tão óbvia, neste caso, que eu não podia imaginar o que ele faria para
debelar-lhes a cólera. Mas ele era duas vezes mais homem que qualquer um
dos outros, e a vitória da noite anterior lhe tinha garantido uma enorme
preponderância sobre aquelas mentes limitadas. Ele chamou a todos de
bobos e patetas, como você pode imaginar, disse que era necessário que eu
falasse com o Doutor, sacudiu o mapa em frente às caras deles e perguntou-
lhes se eles tinham condições de quebrar o tratado no próprio dia em que
pretendiam sair à caça do tesouro.
– Não, com mil trovões! – ele gritou. – Nós só podemos quebrar o
tratado quando for a hora certa; até lá eu vou jogar meu jogo para iludir esse
Doutor, mesmo que eu tenha de engraxar as botas dele com brandy!
E então, ele lhes deu ordem para acender a fogueira e saiu caminhando
com o apoio de sua muleta, uma mão sobre meu ombro, deixando-os
completamente confusos, silenciados muito mais pela sua loquacidade do
que por estarem realmente convencidos.
– Devagar, rapaz, devagar – disse ele. – Eles podem nos cercar em um
piscar de olhos, se lhes parecer que estamos com muita pressa!
Muito deliberadamente, então, avançamos até onde o Doutor nos
esperava, do outro lado da paliçada. Assim que chegamos a uma distância
boa para conversar, Silver parou.
– Agora você vai anotar isto também, Doutor – disse ele. – E o menino
vai lhe contar ainda como foi que eu salvei a vida dele, mesmo a custo de
receber o Sinal Negro e ser deposto, também, e pode contar com isto.
Doutor, quando um homem está pilotando o barco em uma tempestade –
jogando com a última respiração de seu corpo, por assim dizer –, não
acharia demais, talvez, dar uma palavrinha em seu favor? Porque agora,
veja bem, não se trata somente da minha vida – a vida desse menino entrou
na barganha, e o senhor vai falar bonito a meu favor, Doutor, e me dar um
pouco de esperança em que me agarrar, por piedade.
Silver parecia outra pessoa, assim que ficou sozinho conosco e deu as
costas para seus amigos na casamata, até mesmo suas bochechas pareciam
ter ficado chupadas e sua voz tremia; nunca vi alguém falar com maior
seriedade.
– Ora, John, você não está com medo, está? – perguntou o Dr. Livesey.
– Doutor, sabe muito bem que eu não sou um covarde! Não, eu não sou,
nem um tiquinho como esse! – e estalou os dedos. – E mesmo que eu fosse,
não diria a ninguém. Mas uma coisa eu vou admitir, eu fico tremendo só em
pensar na forca. O senhor é um homem bom e leal, nunca vi um homem
melhor em toda a minha vida! E o senhor não vai se esquecer de que eu
também pratiquei o bem, não vai esquecer mais que do mal que eu fiz. Eu
vou caminhar para longe – está vendo? – e deixar o senhor e Jim sozinhos.
E o senhor também vai tomar nota disso, porque sabe muito bem que não é
coisa pouca!
Assim falando, ele deu alguns passos para trás, até estar em uma posição
em que não podia nos escutar; e lá sentou-se sobre um toco de árvore
cortada e começou a assobiar, enquanto girava, de vez em quando, ao redor
do assento a fim de espiar, algumas vezes, a mim e ao Doutor e, outras
vezes, o grupo de patifes descontentes que se movimentava para cá e para
lá, entre a fogueira – que eles se ocupavam em reacender – e a casa, de
onde eles traziam carne de porco salgada e biscoitos para a primeira
refeição do dia.
– Então, Jim – disse o Doutor, tristemente –, eis o ponto em que você
chegou. Foi você que fez a sopa e agora vai ter de tomá-la, menino. Sabem
os Céus que não posso culpá-lo em meu coração, mas uma coisa deve ser
dita, seja gentil ou não: enquanto o Capitão Smollett estava bem, você não
ousou sair de lá; mas, assim que ele adoeceu e não podia impedi-lo, você
fugiu – e, por São Jorge, foi uma ação muito covarde!
Confesso que, naquele momento, eu comecei a chorar.
– Doutor – eu disse –, por favor, não me repreenda. Eu já culpei a mim
mesmo o suficiente, minha vida está perdida, de qualquer jeito, eu já estaria
morto, se Silver não tivesse ficado do meu lado e me defendido; e, Doutor,
acredite nisso, eu não me importo de morrer – ouso dizer que até mereço –,
mas o que eu temo é a tortura. Se eles começarem a me torturar...
– Jim – interrompeu o Doutor, com a voz muito mudada. – Jim, não
posso suportar isso. Pule por cima da paliçada e vamos fugir juntos!
– Doutor – disse eu –, eu dei minha palavra.
– Eu sei, eu sei! – exclamou ele. – Agora já aconteceu, Jim, não podemos
fazer mais nada. Eu assumo a responsabilidade e levo toda a culpa e toda a
vergonha, menino. Mas não posso deixá-lo ficar aqui. Pule! Basta um salto
e você está fora, e nós correremos como dois antílopes!
– Não – repliquei eu. – O senhor sabe muito bem que, se estivesse na
minha situação, não é isso que faria; nem o senhor, nem o Conde, nem o
Capitão, e eu tampouco o farei. Silver confiou em mim, eu dei minha
palavra e vou voltar. Mas, Doutor, o senhor não me deixou acabar. Se eles
vierem a me torturar, eu posso deixar escapar uma palavra sobre o lugar em
que está o barco, porque eu capturei o barco, um pouco por sorte e um
pouco assumindo riscos, e agora ele está na praia sul da Angra Setentrional,
logo abaixo da linha da água. No período entre as marés, deve estar quase a
seco.
– O barco! – exclamou o Doutor.
Rapidamente, eu lhe descrevi minhas aventuras e ele escutou tudo em
silêncio.
– Há uma espécie de destino em tudo isso – observou ele, quando eu
havia terminado. – A cada passo, é você que salva as nossas vidas, você
supõe que haja alguma possibilidade de deixarmos que perca a sua? Seria a
maior das injustiças, meu menino. Foi você que descobriu a conspiração,
foi você que descobriu Ben Gunn – a melhor coisa que você já fez e jamais
fará, nem que viva noventa anos. Oh, por Júpiter! – falando de Ben Gunn,
ora, ele é o Diabo em figura de gente. Silver! – ele gritou. – Silver! Eu vou
lhe dar um conselho – ele continuou, enquanto o cozinheiro se aproximava
outra vez. – Não se apresse muito a procurar o tal tesouro!
– Ora, senhor, eu faço o que posso, mas – disse Silver –, com o seu
perdão, a única maneira que sei de salvar a minha vida e a do menino é
procurando pelo tal tesouro; e pode apostar nisso.
– Bem, Silver – replicou o Doutor. – Se for assim, eu lhe darei mais um
conselho: espere tempestades, quando o encontrar.
– Senhor – disse Silver –, de homem para homem, o que está dizendo é
ao mesmo tempo demasiado e muito pouco. O que é que vocês querem, por
que saíram da casamata, por que nos deram aquele mapa, eu não entendo,
não entendo mesmo. E, mesmo assim, eu fiz a sua vontade com os olhos
fechados, sem uma palavra de esperança! Mas não, isto agora é demais. Se
não vai me dizer exatamente o que quer dizer, em palavras bem fáceis,
então me avise, que eu abandono o timão.
– Não – disse o Doutor, pensativamente. – Não tenho o direito de dizer
mais, o segredo não é só meu, Silver, se fosse, eu lhe dou minha palavra que
lhe contaria. Mas eu vou avançar o máximo que posso e um passo além –
mas olhe que o Capitão vai estraçalhar minha peruca se eu estiver errado!
Em primeiro lugar, eu vou lhe dar um pouco de esperança: Silver, se nós
dois sairmos juntos desta armadilha para lobos, eu farei o melhor que puder
para salvá-lo, só não cometerei perjúrio!
O rosto de Silver ficou radiante.
– O senhor não poderia dizer mais, tenho certeza, senhor, nem que fosse
minha própria mãe – exclamou ele.
– Bem, essa é minha primeira concessão – aduziu o Doutor. – A minha
segunda, é mais um conselho: mantenha o menino bem perto de você, e
quando necessitar de auxílio, então me chame. Na verdade, vou em busca
de auxílio, e isso basta para lhe mostrar que não estou falando à toa. Adeus,
Jim.
E o Dr. Livesey apertou-me a mão através dos intervalos da paliçada, fez
um cumprimento de cabeça para Silver e virou-se para o bosque,
caminhando rapidamente.

CAPÍTULO 31
A CAÇA AO TESOURO: O PONTEIRO DE FLINT
– Jim – disse Silver, quando nos encontramos a sós –, se eu salvei sua
vida, você também salvou a minha, e eu não vou esquecer disso. Eu vi
quando o Doutor lhe fez sinal para pular o muro e correr – eu vi com o rabo
de meu olho, vi, sim, e vi quando você disse que não, tão claro como se
tivesse escutado. Jim, essa eu fico lhe devendo. Esta é a primeira centelha
de esperança que eu tenho, desde que o ataque falhou, e é a você que eu
devo. E agora, Jim, nós vamos partir para esta caçada ao tesouro, com
ordens seladas, também, e não gosto nem um pouco disso. Você e eu temos
de ficar juntos o tempo todo, como se estivéssemos de costas contra costas,
e vamos salvar nossos pescoços a despeito do destino e da sorte.
Nesse momento, um dos homens chamou lá da fogueira, dizendo que o
desjejum estava pronto. E logo estávamos todos sentados, aqui e ali pelo
chão, comendo biscoitos e carne de porco frita. Eles tinham acendido uma
fogueira que dava para assar um boi, esta tinha ficado tão quente, que eles
somente podiam aproximar-se dela do lado de barlavento, e mesmo assim
com bastante precaução. No mesmo espírito de desperdício, eles tinham
cozinhado, eu suponho, três vezes mais do que poderíamos comer, e um
deles, com um riso idiota, jogou o que havia sobrado dentro do fogo, que
brilhou e estrepitou de novo ao consumir este combustível inusitado. Nunca
em minha vida vi homens tão descuidados com o dia de amanhã. Viviam da
mão para a boca, é somente assim que posso descrever a forma como
agiam, com desperdício de comida e sentinelas que adormeciam, embora
fossem ousados o bastante para uma briga rápida, pude ver que eram
totalmente despreparados para uma campanha prolongada.
Mesmo Silver, comendo à vontade, com o Capitão Flint em seu ombro,
não foi capaz de dizer a menor palavra de reprovação diante de sua falta de
cuidado. E foi isso que mais me surpreendeu, porque eu pensei que ele
nunca havia se demonstrado tão ardiloso como se mostrou nessa ocasião.
– Sim, companheiros – disse ele –, vocês têm sorte de terem o velho
Churrasqueiro para tomar conta de vocês e pensar com esta cabeça daqui.
Eu consegui o que queria, ah, consegui! Descobri, com plena certeza, que
eles têm o navio. Onde esconderam, eu ainda não sei, mas, assim que
tivermos encontrado o tesouro, teremos de descobrir onde é que está. E
então, companheiros, depois que tivermos o barco, somos nós que vamos
ficar por cima!
Assim ele continuou a tagarelar, com a boca cheia de toucinho quente,
assim ele restaurou-lhes a esperança e a confiança, mas tenho uma suspeita
muito forte de que estava falando mais para restaurar a própria confiança.
– Quanto ao refém – continuou ele –, esta vai ser a última conversa, acho
eu, que ele vai ter com essa gente de que gosta tanto. Já consegui a notícia
que queria e foi graças a ele, mas isto já está acabado e terminado. Eu vou
levá-lo preso a uma corda quando formos à caça do tesouro, porque temos
de conservá-lo como se valesse seu peso em ouro, em caso de algum
acidente, vocês entendem, por precaução. Assim que tivermos tanto o barco
como o tesouro e partirmos para o mar como alegres camaradas, ora, então
conversaremos a respeito de Mr. Hawkins, sem dúvida, e lhe daremos a
parte que merece, sem a menor dúvida, por toda a sua bondade.
Não era de espantar que agora os homens estivessem de bom humor. Da
minha parte, eu estava horrivelmente desanimado. Se o esquema que ele
tinha agora proposto se demonstrasse praticável, Silver, que agora já era
duplamente um traidor, não hesitaria em adotá-lo. Ele ainda estava com um
pé em cada acampamento, e não restava dúvida de que ele preferiria
riquezas e liberdade com os outros piratas, do que simplesmente escapar-se
da forca, o que era o melhor que ele tinha a esperar, se ficasse do nosso
lado.
Não, mesmo que as coisas sucedessem de tal modo que ele fosse
obrigado a manter seu compromisso com o Dr. Livesey, mesmo então, que
perigos estavam à nossa frente! Como seria o momento em que as suspeitas
de seus companheiros se transformassem em certeza, e ele e eu tivéssemos
de lutar pela vida – ele, um aleijado e eu, um menino – contra cinco homens
do mar fortes e ágeis!
Acrescente-se a esta dupla apreensão o mistério que ainda pairava sobre
o comportamento de meus amigos, seu inexplicável abandono da paliçada,
sua incompreensível cessão do mapa ou, o que era ainda mais difícil de
compreender, o último aviso do Doutor a Silver: “Espere tempestades,
quando o encontrar” – e você certamente saberá como eu tive pouco gosto
ao comer aquela refeição, e como meu coração estava inquieto quando eu
caminhei atrás de meus captores em nossa busca pelo tesouro.
Nós fazíamos um curioso espetáculo, caso alguém estivesse lá para nos
ver: todos usando imundas roupas de marinheiro, e todos, menos eu,
armados até os dentes. Silver tinha dois mosquetes a tiracolo – um
atravessado no peito e outro nas costas –, além do grande cutelo em sua
cintura e uma pistola em cada bolso de seu casaco comprido com abas
quadradas. Para completar sua estranha aparência, o Capitão Flint
continuava empoleirado em seu ombro, tartamudeando frases sem sentido,
aprendidas pelos sete mares. Eu tinha uma corda amarrada à cintura e
seguia obedientemente o cozinheiro de bordo, que segurava a outra ponta
da corda em sua mão livre ou, algumas vezes, entre seus dentes poderosos.
Parecia que eu estava sendo conduzido como um urso dançarino.
Os outros homens traziam cargas variadas – uns portavam picaretas e pás
–, pois este tinha sido o primeiro artigo de necessidade que eles tinham
trazido à praia, logo que desceram do Hispaniola. Outros estavam
carregados com carne de porco salgada, biscoitos de marinheiro e brandy
para a refeição do meio-dia. Todos os suprimentos, eu observei, provinham
de nossos estoques; e pude ver que as palavras de Silver na noite anterior
eram verdadeiras. Se ele não tivesse feito uma barganha com o Doutor, ele e
seus amotinados, tendo perdido o navio, seriam forçados a sobreviver com
água fresca e aquilo que conseguissem caçar. A água não teria sido lá muito
de seu gosto; um marinheiro, em geral, não sabe atirar muito bem; e, além
de tudo isso, quando eles estivessem quase sem comida, provavelmente não
teriam tampouco grande abundância de munição.
Bem, assim equipados, todos nós partimos – mesmo o camarada com a
cabeça quebrada, que deveria certamente ter permanecido na sombra – e
fomos caminhando, sem muita ordem, até a praia, onde os dois escaleres
nos aguardavam. Mesmo estes apresentavam traços da loucura embriagada
dos piratas, um com um banco quebrado, e ambos enlameados e cheios de
água. Os dois deveriam ser levados conosco, por uma questão de segurança,
e assim, tendo nos dividido entre eles, partimos através do ancoradouro.
Enquanto remávamos, houve alguma discussão sobre o mapa. A cruz
vermelha era, naturalmente, grande demais para nos servir de guia, e os
termos na nota nas costas do mapa eram escritos de uma maneira que
permitia uma certa ambiguidade. O que estava escrito, como o leitor poderá
recordar, é o seguinte:

Árvore alta, flanco da Luneta, tendo uma ponta voltada para o N de


NNE.
Ilha do Esqueleto, ESE por E.
Três metros.

Uma árvore alta era então o principal marco. Agora, bem à nossa frente,
o ancoradouro era limitado por um planalto de uns sessenta a cem metros de
altura, ligando-se pelo lado setentrional ao flanco sul da Luneta, que aqui
formava uma ladeira, e erguendo-se de novo em direção ao sul para uma
eminência áspera e rochosa, chamada a Colina do Mastro da Mezena. O
alto do planalto estava espessamente pontilhado por pinheiros de alturas
variadas. Aqui e ali, uma árvore de espécie diferente crescia a uns doze ou
quinze metros acima de suas vizinhas, qual era a “árvore alta” em particular
que o Capitão Flint mencionara podia somente ser decidido se fôssemos até
o local utilizando leituras da bússola.
Entretanto, embora esse fosse o caso, cada homem a bordo dos escaleres
tinha escolhido uma árvore favorita, antes que tivéssemos percorrido
metade do caminho. Somente Long John dava de ombros e lhes dizia que o
melhor seria esperar até que tivéssemos chegado lá.
Remamos sem fazer muita força, consoante às instruções de Silver, a fim
de não cansarmos os braços prematuramente, e, depois de um percurso
bastante longo, desembarcamos na embocadura do segundo rio – aquele que
descia de uma fenda coberta de bosques, que atravessava a Luneta. Dali,
curvando-nos para a esquerda, começamos a subir a ladeira em direção ao
planalto.
No começo da jornada, um solo pesado e lamacento e uma vegetação
emaranhada de banhado atrasaram muito nosso progresso, mas, bem aos
poucos, a colina começou a ficar mais íngreme e pedregosa sob nossos pés;
e o bosque começou a mudar de caracterísca e a crescer de forma mais
ordenada e mais aberta. A parte da ilha de que nos estávamos aproximando,
era sem dúvida uma de suas porções mais agradáveis. Fileiras de giestas
perfumadas e muitos outros arbustos em flor tinham quase substituído
completamente o capim. Grupos de árvores de noz-moscada pontilhavam
aqui e ali por entre as colunas vermelhas dos troncos e as sombras largas
dos pinheiros; e as primeiras mesclavam seu odor de especiarias ao aroma
resinoso das outras. O ar, além disso, era fresco e revigorante; e tudo isto,
sob os raios do sol que caíam diretamente sobre nós, refrescava
maravilhosamente os nossos sentidos.
O grupo espalhou-se em forma de leque por entre as árvores, gritando e
pulando para cá e para lá. Mais ou menos no ponto central, a vários passos
atrás dos outros, seguíamos Silver e eu. Eu andava amarrado pela minha
corda, ele, caminhando com dificuldade e ofegando profundamente, por
entre os seixos deslizantes. De fato, de vez em quando eu tinha de ajudá-lo,
caso contrário ele perderia o pé e cairia de costas, rolando colina abaixo.
Deste modo avançamos por cerca de oitocentos metros e estávamos nos
aproximando da parte mais elevada do planalto, quando o homem que
estava à extrema-esquerda começou a gritar alto, como se estivesse
aterrorizado. Grito após grito vinham de sua direção e os outros começaram
a correr para lá.
– Ele não pode ter encontrado o tesouro – disse o velho Morgan,
passando por nós enquanto corria vindo da direita. – Está claro que o
tesouro está lá em cima.
Sem dúvida, como descobrimos ao atingirmos o lugar, tratava-se de uma
coisa completamente diferente. Ao pé de um belo e grande pinheiro,
envolvido por trepadeiras verdes, que haviam até parcialmente erguido
alguns dos ossos menores, jazia um esqueleto humano, com alguns farrapos
de roupas, estendido sobre o solo. Acredito que, nesse momento, um arrepio
perpassou por cada coração.
– Ele era um marinheiro – disse George Merry, que, mais ousado que os
outros, já havia se aproximado e estava examinando os farrapos de roupa. –
Pelo menos, este é um bom pano de marinheiro.
– Sim, sim – disse Silver. – Muito provavelmente, não era de se esperar
que encontrássemos um bispo por aqui, acho eu. Mas que estranha maneira
de ficarem os ossos, isto não é natural.
Sem dúvida, a um segundo olhar, parecia impossível imaginar que aquele
corpo estivesse em uma posição natural. Salvo por alguns pequenos
desarranjos (obra, provavelmente, dos pássaros que se haviam alimentado
do cadáver, ou da trepadeira de crescimento lento que lhe tinha
gradualmente envolvido os restos), o homem jazia perfeitamente reto – seus
pés apontando em uma direção, suas mãos, erguidas acima de sua cabeça
como as de um mergulhador, apontando diretamente na direção oposta.
– Pois acaba de surgir uma ideia em minha velha cabeça oca – observou
Silver. – Este cara aqui é um compasso, lá está a ponta superior da Ilha do
Esqueleto, projetando-se como um dente. Agora tirem as medidas, por
gentileza, ao longo da linha destes ossos.
Assim foi feito. O corpo apontava diretamente na direção da ilha e o
compasso lia, conforme se esperava, ESE por leste.
– Foi o que eu pensei – gritou o cozinheiro. – Este fulano aqui é um
ponteiro. Bem aqui está nossa linha para a Estrela do Norte e os lindos
dobrões. Mas, com mil trovões!, fico gelado por dentro só de pensar em
Flint. Esta é uma de suas piadinhas, podem apostar. Ele ficou sozinho aqui
na ilha com aqueles seis. Ele foi matando um a um, cada um dos seis. E este
homem aqui ele arrastou e esticou conforme a bússola, com os diabos! São
ossos compridos e o cabelo era amarelo. Sim, esse camarada deve ter sido
Allardyce. Você se lembra de Allardyce, Tom Morgan?
– Sim, sim! – ripostou Morgan. – É claro que me lembro dele: ele me
devia um dinheiro, devia, sim, e além disso, trouxe minha faca para a praia.
– Falando de facas – disse um outro –, por que a faca dele não está aqui
por perto? Flint não era homem de esvaziar os bolsos de alguém, e acho que
os pássaros não iam mexer na faca!
– Pelos poderes celestes, isso é verdade! – gritou Silver.
– Não sobrou nada por aqui – disse Merry, ainda remexendo entre os
ossos –, nem um botão de cobre, nem uma caixa de tabaco. Isso não me
parece natural.
– Não, com mil demônios, não parece – concordou Silver. – Não é
natural, nem tampouco é bonito, como você diz. Diabos, companheiros, se
Flint estivesse vivo, este lugar não seria lá muito bom, nem para vocês nem
para mim. Eles eram seis e nós somos seis, e todos eles viraram um monte
de ossos.
– Eu vi Flint morto com esses olhos que a terra há de comer – disse
Morgan. – Billy me levou aonde ele estava. Ele estava deitado e bem morto,
com duas moedinhas de cobre tapando os olhos!
– Morto – sim, sem a menor dúvida, ele está morto e foi lá para baixo –
disse o camarada que trazia a bandagem. – Mas se jamais um espírito falou,
esse seria o de Flint. Ai, meu coração, como ele teve uma morte ruim; sim,
ele teve!
– É, teve uma morte bem ruim – observou outro. – Às vezes ele delirava,
outras vezes berrava por rum, e de vez em quando cantava. “Quinze
homens” era a única canção de que ele gostava, companheiros, e, para lhes
falar a verdade, nunca mais gostei de escutar esta música, desde que ele
morreu. Estava muito quente e a janela estava aberta, e eu escutava essa
velha música saindo pela janela, bem clara e límpida – e a caveira da morte
já estava sobre o homem!...
– Vamos, vamos – disse Silver –, acabem com esta conversa. Ele está
morto e não caminha mais, disso eu tenho certeza; pelo menos, ele não vai
ficar andando por aí de dia, podem contar com isso. Excesso de precaução
matou o gato. Vamos procurar esses dobrões!
Recomeçamos a marcha, certamente, porém, apesar do sol quente e do
reflexo furioso de sua luz, os piratas não mais corriam separados e aos
gritos através da mata, porém mantinham-se lado a lado e falavam por entre
dentes. O terror do bucaneiro morto havia tombado sobre seus espíritos.

CAPÍTULO 32
A CAÇA AO TESOURO: A VOZ ENTRE AS ÁRVORES
Em parte devido ao efeito desanimador deste último acontecimento, em
parte para dar descanso a Silver e aos doentes, todo o bando dos amotinados
sentou-se no chão assim que atingiu o alto da ladeira.
Como o planalto se inclinava um pouco para o oeste, o lugar em que
havíamos parado mostrava uma ampla perspectiva de ambos os lados.
Diante de nós, acima das árvores, contemplávamos o Cabo dos Bosques
bordado pelas ondas da rebentação; atrás de nós, não somente víamos o
ancoradouro e a Ilha do Esqueleto, mas enxergávamos – claramente, além
da ponta de areia e das terras baixas que ficavam a oriente – uma grande
extensão de mar aberto para o leste. Íngreme à nossa frente, erguia-se a
Luneta, que naquela parte estava pontilhada de pinheiros isolados, porém
um pouco adiante ficava negra de precipícios. Não havia som, exceto o dos
vagalhões distantes que se arrojavam à praia, reverberando por todos os
lados da ilha, além do chilreio de um número sem fim de insetos que
provinha do mato rasteiro. Nem um só homem, nem uma vela no mar; a
própria largueza da vista aumentava nosso senso de solidão.
Silver, enquanto descansava, tomou algumas medidas com sua bússola.
– Há três “árvores altas” – disse ele. – Todas três estão mais ou menos na
linha certa a partir da Ilha do Esqueleto. “O flanco da Luneta”, acho eu,
significa aquela ponta mais baixa que fica ali. Agora é brincadeira de
criança encontrar o troço. Estou com vontade de almoçar primeiro.
– Eu não estou me sentindo bem – grunhiu Morgan. – Pensando em Flint
– acho que foi pensar nele que me deixou assim.
– Pois muito bem, meu filho, agradeça à sua boa estrela por ele já estar
morto – disse Silver.
– Ele era um diabo muito feio – gritou um terceiro pirata, com um
estremecimento. – Até tinha a cara azul!
– Isso foi quando o rum tomou conta dele – acrescentou Merry. – Azul!
É, eu acho que ele ficou azul. Essa é a palavra certa!
Desde que eles tinham encontrado o esqueleto e iniciado esta linha de
pensamentos, começaram a falar cada vez mais baixo, e a essa altura,
estavam quase sussurrando, de tal modo que o som de suas vozes mal
interrompia o silêncio do bosque. De repente, do meio das árvores à nossa
frente, uma voz fina, aguda e trêmula deu início às palavras e à melodia
bem conhecidas:
Quinze homens sobre a mala do defunto –
Io-ho-hô! – e uma garrafa de rum!
Eu nunca vi homens mais pavorosamente assustados que o bando de
piratas. A cor abandonou os seis rostos, como por encanto, alguns se
ergueram de um pulo, outros se agarraram a um dos companheiros, Morgan
chegou ao ponto de se jogar no chão.
– É Flint, com mil demônios! – gritou Merry.
A canção tinha se interrompido tão bruscamente como começara – tinha-
se quebrado, por assim dizer, no meio de uma nota, como se alguém tivesse
colocado a mão sobre a boca daquele que cantava. Já que a melodia nos
tinha chegado através da atmosfera ensolarada e clara, por entre os topos
verdes das árvores, eu pensei que tinha soado leve e alegremente, e tanto
mais estranho me pareceu o efeito que tivera sobre os piratas.
– Vamos – disse Silver, esforçando-se para emitir as palavras. – Isto não
pode ficar assim. Todos a postos para investigar as redondezas. Eu não
posso identificar a voz, mas certamente isto é coisa de bêbado, é alguém se
divertindo às nossas custas – alguém de carne e osso, podem apostar.
Sua coragem ia retornando à medida que falava; e parte da cor de seu
rosto retornara também com ela. Os outros já começavam a demonstrar uma
certa reação a seu estímulo e a reassumir o controle sobre si mesmos,
quando a mesma voz surgiu de novo – desta vez sem cantar, porém
emitindo um chamado distante e fraco, cujo eco soava ainda mais fraco
dentre as espaldas da Luneta.
– Darby M’Graw – gemeu a voz, pois essa é a palavra que melhor
descreve o som. – Darby M’Graw! Darby M’Graw! – repetindo de novo, e
outra vez e mais outra ainda; e então subindo um pouco de tom, com uma
praga tão terrível que nem vou escrevê-la. – Vá buscar o rum, Darby!
Os bucaneiros ficaram enraizados no chão, seus olhos tão esbugalhados
que quase lhes saíram das órbitas. Por muito tempo depois que a voz tinha
se extinguido, eles ainda estavam olhando para a frente, em silêncio,
apavorados, sem ousar fitar uns aos outros.
– Agora, chega! – falou um deles, em um murmúrio sufocado. – Vamos
embora!
– Estas foram suas últimas palavras – gemeu Morgan. – Suas últimas
palavras sobre o tombadilho!
Dick tinha tirado sua Bíblia do bolso e rezava sem parar. Ele tinha sido
educado da forma correta, o pobre Dick, antes de se lançar ao mar e cair em
tão má companhia.
Todavia, Silver não fora derrotado. Dava para escutar seus dentes
batendo uns contra os outros, mas ele não havia se rendido, não ainda.
– Ninguém nesta ilha maldita jamais ouviu falar de Darby – murmurou
ele. – Ninguém, exceto nós aqui.
E então, fazendo um grande esforço, prosseguiu:
– Companheiros – ele exclamou –, eu estou aqui para pegar aquele troço;
e não vou ser batido nem por homem, nem por demônio. Eu nunca tive
medo de Flint quando ele era vivo, e, pelos poderes celestes, vou enfrentá-
lo depois de morto! Há setecentas mil libras a menos de quatrocentos
metros daqui. Quando foi que um cavalheiro da fortuna virou as costas para
tantos dobrões, só por causa de um velho marinheiro bêbado que morreu de
cara azul – e que está morto e bem morto?
Mas não houve o menor sinal de que seus seguidores recobrassem a
coragem; muito pelo contrário, seu terror cresceu ante a irreverência de suas
palavras.
– Fique quieto aí, John! – disse Merry. – Não contrarie um “esprito”!
E o resto estava apavorado demais para replicar. Eles teriam saído
correndo, cada um para seu lado, se tivessem ousado, porém o medo os
mantinha juntos e perto de John, como se sua coragem os ajudasse a
suportá-lo. Ele, por sua parte, já tinha vencido quase toda a sua própria
fraqueza.
– “Esprito”? Tudo bem, pode ser que seja um – disse ele. – Mas há uma
coisa que não ficou clara para mim. Havia um eco. Agora, ninguém jamais
viu um espírito com sombra. Bem, o que é que esse “esprito” está fazendo
com um eco? Eu gostaria de saber. Isso não é natural, seguramente?
Para mim, aquele argumento pareceu muito fraco. Mas você nunca pode
dizer o que vai afetar os supersticiosos, e, para meu grande espanto, George
Merry ficou completamente aliviado.
– Bem – disse ele –, isso é bem verdade. Você tem uma cabeça entre os
ombros, John, não tem erro. Vamos virar o barco, companheiros! Esta
tripulação está no rumo errado, eu acredito, realmente eu acredito. E,
pensando melhor, era como a voz de Flint, lá isso era, mas não era
exatamente a voz dele. Era como a voz de alguém mais, ora essa! – era mais
como...
– A voz de Ben Gunn, pelos poderes celestes! – rugiu Silver.
– Sim, de fato, parecia a voz dele – gritou Morgan, erguendo-se do chão
e pondo-se de joelhos. – Era a voz de Ben Gunn!
– Mas não faz muita diferença, faz? – perguntou Dick. – Ben Gunn não
está aqui em corpo, não mais do que Flint.
Mas os marinheiros mais velhos acolheram esta observação com
desprezo.
– Ora, quem é que se importa com Ben Gunn? – gritou Merry. – Morto
ou vivo, ninguém dá bola para ele.
Foi extraordinário como o autocontrole de todos retornou, e como a cor
natural reviveu em suas faces. Logo eles estavam conversando uns com os
outros, com intervalos em que escutavam, e, não muito depois, já que não
ouviam mais nenhum som fantasmagórico, colocaram as ferramentas ao
ombro e reiniciaram a marcha, com Merry caminhando à frente, tendo na
mão a bússola de Silver a fim de mantê-los na linha certa em relação à Ilha
do Esqueleto. Ele tinha dito a verdade: morto ou vivo, ninguém se
incomodava com Ben Gunn.
Somente Dick ainda segurava sua Bíblia, e olhava em torno enquanto
caminhava, com olhares assustados de soslaio, mas ninguém lhe
demonstrava simpatia, enquanto Silver até mesmo troçava de suas
precauções.
– Eu disse a vocês – falou ele. – Eu disse a vocês que ele tinha estragado
a sua Bíblia. Agora que não serve mais nem para se jurar sobre ela, o que
acham vocês que um “esprito” vai dar por ela? Nem isto!
E ele estalou os dedos, parando por um momento, apoiado em sua
muleta.
Mas Dick não estava a fim de ser confortado nem repreendido. Sem
dúvida, logo ficou claro para mim que o rapaz estava ficando doente;
aumentada pelo calor, exaustão e pelo choque de seu susto, a febre que o
Dr. Livesey havia previsto estava, evidentemente, subindo bem depressa.
Aquele era um lugar aberto e bom para caminhar, sobre o alto da colina;
nosso caminho agora descia um pouco, pois, como disse anteriormente, o
planalto se inclinava para o lado oeste. Os pinheiros, grandes e pequenos,
cresciam a grande distância uns dos outros, e, mesmo entre os bosquetes de
noz-moscada e touceiras de azaleias, largos espaços abertos eram torrados
pela quente luz do sol. Caminhando quase na direção noroeste da ilha,
fomos chegando, por um lado, cada vez mais próximos aos flancos da
Luneta, e, por outro, podíamos cada vez avistar melhor a baía ocidental
onde eu tinha, não muito tempo atrás, vagado e sido jogado pelas ondas
dentro da corácula.
Chegamos à primeira das árvores grandes, mas, de acordo com a direção
do compasso, não era a árvore certa. O mesmo aconteceu com a segunda. A
terceira erguia-se a quase sessenta metros de altura, acima de um grupo de
árvores menores: era uma planta gigantesca, com uma coluna vermelha de
tronco tão larga quanto uma cabana; e uma ampla sombra ao redor, sob cuja
proteção uma companhia inteira de soldados poderia ter realizado
manobras. Seu aspecto era conspícuo, visível de longe no mar, tanto do
leste como do oeste, e poderia ter sido facilmente incluída no mapa como
um ponto de referência para os navegantes.
Mas não era o seu tamanho que agora impressionava meus
companheiros, era a consciência de que setecentas mil libras de ouro
estavam enterradas em alguma parte à sua sombra gigantesca. O
pensamento do dinheiro, à medida que se aproximavam, engoliu todos os
seus terrores de antes. Seus olhos queimavam de cobiça, seus pés se
moviam mais rápido e com maior leveza, sua alma inteira estava
comprometida com a busca da fortuna, sua vida inteira de extravagâncias e
de busca de prazer, com aquela fortuna que estava logo ali, esperando por
cada um deles.
Silver manquitolava, resmungando, apoiado em sua muleta, suas narinas
estavam abertas e trêmulas, ele praguejava como se estivesse doido, quando
as moscas pousavam em sua fisionomia quente e suada, ele puxava
furiosamente a corda que me prendia e, de vez em quando, lançava os olhos
sobre mim com uma expressão mortal. Certamente, ele não fazia o menor
esforço para ocultar seus pensamentos e, mais certamente ainda, eu os podia
ler como se estivessem impressos. Na proximidade imediata do ouro, tudo
mais havia sido esquecido, tanto sua promessa como os avisos do Doutor
eram coisas do passado, e eu não duvidava que ele esperava tomar posse do
tesouro, encontrar e abordar o Hispaniola sob a proteção da noite, cortar
cada pescoço honesto que encontrasse nessa ilha e navegar para longe,
como era sua primeira intenção, carregado de crimes e de riquezas.
Abalado como eu estava com todos estes temores, era-me difícil
acompanhar o ritmo rápido dos caçadores de tesouros. De vez em quando,
eu tropeçava, e era então que Silver puxava violentamente a corda e me
lançava seus olhares assassinos. Dick, que tinha ficado mais para trás de
nós e agora mantinha a retaguarda, balbuciava para si mesmo tanto orações
como pragas, e sua febre continuava a subir. Isto também se somava à
minha desgraça, e, para coroar tudo, eu era perseguido pelo pensamento da
tragédia que um dia fora encenada naquele mesmo planalto, quando o
bucaneiro maligno de cara azulada – o mesmo que morrera em Savannah,
cantando e berrando por bebida – tinha, com suas próprias mãos, matado
seus seis cúmplices. Aquele bosque, que era agora tão pacífico, devia ter
ressoado com gritos de morte, pensei eu, e, acompanhando este
pensamento, parecia-me ainda escutar esses gritos.
Estávamos agora junto à margem do pequeno bosque.
– Agora, companheiros, vamos todos juntos! – gritou Merry.
E os que se achavam mais à frente puseram-se a correr.
E, de repente, não mais de dez metros além, vimos todos pararem.
Ouviu-se um grito de desalento. Silver dobrou seu ritmo, enterrando no
chão a ponta de sua muleta como se estivesse possesso; e, no momento
seguinte, tanto ele como eu paramos de repente.
Bem diante de nós havia uma grande escavação, não muito recente, pois
as beiradas já haviam desmoronado para dentro e um pouco de capim havia
crescido no fundo. Lá dentro, havia o cabo de uma picareta quebrado em
dois, e as tábuas de diversas caixas de mercadorias espalhadas por aqui e
por ali. Em uma dessas tábuas eu pude ver, gravada com ferro em brasa, o
nome Walrus, que era o nome do navio de Flint.
Tudo estava bem claro e não necessitava de provas. O tesouro tinha sido
encontrado e retirado, as setecentas mil libras tinham desaparecido!

CAPÍTULO 33
A QUEDA DE UM LÍDER
Acho que não pode ter ocorrido desapontamento maior. Cada um
daqueles homens parecia ter sido atingido por um raio. Porém, no caso de
Silver, o golpe foi absorvido quase que instantaneamente. Cada pensamento
de sua alma tinha sido lançado diretamente, como um cavalo de corrida, na
busca daquele dinheiro. Bem, ele ficou como morto durante um segundo,
mas manteve a cabeça, reassumiu o controle de si mesmo e mudou seus
planos antes mesmo que os outros tivessem tido tempo de perceber
totalmente o próprio desalento.
– Jim – murmurou ele –, pegue isso e prepare-se para problemas.
E ele me entregou uma pistola de cano duplo.
Ao mesmo tempo, ele começou tranquilamente a mover-se em direção ao
norte e, alguns passos adiante, o buraco já se encontrava entre nós dois e os
outros cinco. Então, ele olhou para mim e fez um sinal com a cabeça, como
quem diz: “Estamos em uma situação bem difícil” – e, sem a menor dúvida,
era o que eu mesmo achava. Seu olhar era agora o mais amigável possível,
e eu fiquei tão revoltado com estas mudanças constantes, que não pude
evitar de sussurrar:
– Então, você mudou de lado outra vez.
Não houve tempo para que ele me respondesse. Os bucaneiros, com
pragas e gritos, começaram a pular, um após o outro, para dentro da cova, e
a cavar com os dedos, jogando as tábuas para os lados enquanto o faziam.
Morgan teve a sorte de encontrar uma peça de ouro. Ele ergueu-a bem alto
com um perfeito chafariz de pragas e maldições. Era uma peça de dois
guinéus, e ela passou de mão em mão rapidamente.
– Dois guinéus! – rugiu Morgan, sacudindo a moeda em direção de
Silver. – Então são estas as suas setecentas mil libras, são? Você que é o
homem esperto para fazer tratos, não é? Você é o camarada que nunca fez
nenhuma besteira, seu grumete de cabeça de pau!
– Continuem cavando, meninos – disse Silver, com a mais fria
insolência. – Vocês vão encontrar algumas nozes e castanhas, sem a menor
dúvida.
– Nozes! – repetiu Merry, com um berro. – Companheiros, escutaram
isso? Eu vou lhes dizer agora, esse homem aí sabia de tudo o tempo todo!
Olhem para a cara dele e vão ver tudo escrito nela!
– Ah, Merry – observou Silver. – Já está concorrendo de novo para
capitão? Você é um rapaz empreendedor, sem a menor dúvida.
Porém, desta vez, todos estavam inteiramente a favor de Merry. E
começaram a se arrastar para fora da escavação, lançando olhares furiosos.
Mas uma coisa eu observei, que nos era favorável: todos eles subiram do
lado oposto a Silver.
Bem, lá ficamos, dois de um lado, cinco do outro, a cova entre nós, mas
sem que ninguém tivesse coragem bastante para dar o primeiro golpe.
Silver nem sequer se movia, ele apenas os observava, muito reto, apoiado
em sua muleta, parecendo tão frio como sempre. Ele era um homem
valente, não há como negar.
Finalmente, Merry pareceu achar que um discurso ia ajudar na questão.
– Companheiros – disse ele –, eles são dois parados ali sozinhos, e um é
esse velho aleijado que nos trouxe até aqui e nos enganou com as suas
besteiras e o outro é aquele filhote cujo coração eu pretendo arrancar.
Agora, companheiros...
Ele estava erguendo ao mesmo tempo o braço e a voz; e, sem a menor
dúvida, pretendia liderar uma carga. Mas justamente nesse momento –
Crac! Crac! Crac! – três tiros de mosquete estouraram do meio do mato.
Merry caiu de cabeça para baixo dentro da escavação, o homem com a
bandagem na cabeça girou sobre si mesmo, como se fosse um pião, e caiu
de lado, ao comprido, jazendo morto, embora ainda se remexesse um
pouco, enquanto os outros três deram meia-volta e saíram correndo a toda a
velocidade.
Antes que você pudesse piscar o olho, Long John tinha disparado os dois
canos de uma pistola contra Merry, que ainda se debatia, e, enquanto o
homem rolava os olhos para ele na última agonia, ele disse:
– Pois é, George, acho que acertamos as contas.
No mesmo momento, o Doutor, Gray e Ben Gunn se juntaram a nós, a
fumaça ainda saindo de seus mosquetes, vindos do meio das árvores de noz-
moscada.
– Avante! – gritou o Doutor. – O mais depressa possível, meus rapazes.
Temos de impedir que eles alcancem os escaleres!
E corremos, a grande velocidade, algumas vezes penetrando no meio das
touceiras de arbustos até a altura do peito.
Eu eu garanto a vocês que Silver estava muito ansioso para nos
acompanhar. O esforço que aquele homem realizou, pulando de muleta até
que os músculos de seu peito pareciam explodir, foi um esforço que
nenhum homem são jamais fez, e é o que o Doutor também pensa. Mesmo
assim, ele já estava uns trinta metros atrás de nós e quase sufocando por
falta de fôlego, quando chegamos ao alto da ladeira.
– Doutor! – ele gritou. – Veja lá! Não há pressa!
Sem dúvida, não havia mais motivo para pressa. Em uma parte mais
aberta do planalto, pudemos ver os três sobreviventes ainda correndo na
mesma direção em que tinham começado, indo diretamente para a Colina
da Mezena. Já nos encontrávamos entre eles e os escaleres, assim, nós
quatro nos sentamos para respirar, enquanto Long John, secando o rosto de
suor, caminhou lentamente até nos alcançar.
– Muito obrigado por sua gentileza, Doutor – disse ele. – Você veio
justamente no momento exato, acho eu, tanto para mim como para
Hawkins. Mas então é você, Ben Gunn! – ele aduziu. – Bem, você é um
bom camarada, sem dúvida!
– Eu sou Ben Gunn, sou eu, sim – replicou o marinheiro abandonado,
retorcendo-se como uma enguia em seu embaraço. E acrescentou, após uma
longa pausa: – E como passa você, Mr. Silver? Bastante bem, obrigado, é o
que vai dizer.
– Ben, Ben – murmurou Silver. – E pensar que foi você que me enganou!
O Doutor mandou Gray buscar uma das picaretas abandonadas pelos
amotinados em fuga e, então, enquanto descíamos a passo lento a colina, até
o ponto em que os escaleres estavam fundeados, relatou-nos, em poucas
palavras, o que havia sucedido. Era uma história que interessou Silver
profundamente, e Ben Gunn, o marinheiro abandonado, mesmo parecendo
meio apatetado, era o herói do começo ao fim.
Ben, em seus longos passeios errantes pela ilha, tinha encontrado o
esqueleto – fora ele quem remexera os ossos, ele tinha encontrado o
tesouro, ele o tinha escavado (era o cabo de sua picareta que estava
quebrado dentro da escavação), ele tinha carregado o tesouro nas costas, em
muitas viagens cansativas, desde o sopé do alto pinheiro até uma caverna
que ele havia encontrado sob a colina de dois picos no ângulo nordeste da
ilha, e lá o tesouro tinha permanecido guardado em segurança durante os
dois meses que antecederam a chegada do Hispaniola.
Quando o Doutor conseguiu fazer com que Ben Gunn contasse o
segredo, na própria tarde do ataque, e quando, na manhã seguinte, ele viu o
ancoradouro deserto, ele foi até Silver, entregou-lhe o mapa, que agora era
inútil – e até lhe deu os suprimentos, porque a caverna de Ben Gunn estava
bem estocada com carne de cabrito que ele mesmo salgara – deu-lhe tudo,
em troca da oportunidade de mover-se em segurança da paliçada até a
colina bifurcada, onde não somente ficariam a salvo da malária, como
poderiam manter guarda sobre o dinheiro.
– Quanto a você, Jim – disse ele –, eu agi contra o desejo de meu
coração, mas fiz o que achei melhor para aqueles que haviam cumprido o
seu dever; e se você não era um deles, de quem foi a culpa?
Naquela mesma manhã, ao descobrir que eu estaria envolvido no
desapontamento que tinha preparado para os amotinados, ele correra todo o
caminho até a caverna, onde, deixando o Conde para tomar conta do
Capitão, ele convocara Gray e o marinheiro abandonado e encetara a
jornada, traçando uma diagonal através da ilha, a fim de estar junto ao
pinheiro antes que lá chegássemos. Logo, entretanto, ele percebeu que o
grupo dos bucaneiros já tinha a vantagem de ter saído mais cedo; deste
modo, Ben Gunn, que tinha pés muito rápidos, foi despachado à frente a
fim de fazer sozinho o que melhor pudesse. Foi então que lhe ocorreu
trabalhar com a superstição de seus antigos companheiros de bordo, e nisso
obteve tanto resultado, que Gray e o Doutor tiveram tempo de chegar e de
se emboscar antes da chegada dos caçadores de tesouros.
– Ah! – disse Silver –, a minha sorte foi que eu tinha Hawkins comigo.
Vocês teriam deixado o velho John ser feito em pedaços, sem sequer pensar
duas vezes, se o rapaz não estivesse comigo, Doutor.
– Não teríamos pensado nem uma vez – replicou o Dr. Livesey,
alegremente.
A essa altura, já tínhamos chegado aonde se encontravam os escaleres. O
Doutor, com a picareta que mandara Gray buscar, demoliu um deles e,
então, nós todos subimos a bordo do outro e nos preparamos para dar a
volta à ilha por mar até a Angra Setentrional.
Seria uma jornada de oito ou nove milhas. Silver, embora estivesse quase
morto de fadiga, recebeu um remo, como o resto de nós, e logo estávamos
deslizando rapidamente sobre um mar tranquilo. Em seguida, ultrapassamos
os estreitos que levavam ao ancoradouro e dobramos o canto sudeste da
ilha, ao redor do qual, somente quatro dias antes, nós havíamos trazido o
Hispaniola.
Quando passamos pela colina bifurcada, pudemos ver a boca negra da
caverna de Ben Gunn, e uma figura parada ao lado dela, apoiada a um
mosquete. Era o Conde, e nós lhe sacudimos um lenço e demos três gritos
de saudação, dos quais Silver participou com tanto entusiasmo como
qualquer um de nós.
Três milhas mais além, logo à entrada da Angra Setentrional, o que
deveríamos encontrar senão o próprio Hispaniola, navegando sozinho! A
última preamar o havia deslocado do ponto em que estava encalhado e, se
tivesse havido muito vento e uma corrente forte, como no ancoradouro
meridional, nós jamais o teríamos encontrado, ou então teria encalhado a
um ponto que não poderíamos mais retirá-lo. Do jeito que aconteceu, pouca
coisa estava estragada, além do desastre que eu mesmo tinha provocado na
vela principal. Retiramos outra âncora do porão e o fundeamos a uma braça
e meia de água. Todos nós remamos de novo até a Enseada do Rum, o
ponto mais próximo do lugar em que Ben Gunn guardava o tesouro, e então
Gray, sem ser acompanhado por ninguém, retornou com o escaler até o
Hispaniola, onde deveria passar a noite montando guarda.
Uma descida suave ia da praia até a entrada da caverna. Lá no topo,
fomos saudados pelo Conde. Ele foi cordial e gentil comigo, não dizendo
nada de minha escapada, seja repreensão, seja louvor. Mas diante da
saudação polida de Silver, ele ficou um pouco vermelho.
– John Silver – disse ele –, você é um vilão prodigioso e um impostor –
um monstruoso impostor, senhor. Bem, disseram-me que eu não deveria
fazer nada contra você agora. Então eu não farei. Mas os homens mortos,
senhor, estão pendurados ao redor de seu pescoço como um fardo
esmagador.
– Muito obrigado por sua bondade, senhor – replicou Long John, fazendo
nova continência.
– Não se atreva a me agradecer! – gritou o Conde. – É uma grande
ofensa a meu dever. Nem se aproxime!
Depois disso, todos nós entramos na caverna. Era um lugar grande e
arejado, com uma pequena fonte e uma lagoa de águas claras, ao redor da
qual cresciam samambaias. O chão era coberto de areia. Diante de uma
grande fogueira estava deitado o Capitão Smollett, e, em um canto mais
distante, iluminado apenas fracamente pelo brilho do fogo, eu contemplei
uma grande pilha de moedas e quadriláteros formados por barras de ouro
empilhadas. Esse era o tesouro de Flint, que tínhamos vindo de tão longe
para procurar, e que já custara as vidas de dezessete homens do Hispaniola.
Quantas vidas tinha custado para ser reunido, quanto sangue e quanto
sofrimento, quantos bons navios afundados para as profundezas do mar,
quantos homens bravos caminhando vendados pela prancha, quantos tiros
de canhão, quanta vergonha, e mentiras, e crueldade, talvez nenhum homem
vivo pudesse contar. Todavia, ainda havia três homens na ilha – Silver, o
velho Morgan e Ben Gunn – que tinham, cada um a seu modo, partilhado de
todos esses crimes, ao passo que cada um tinha esperado em vão
compartilhar da recompensa.
– Entre, Jim – disse o Capitão. – À sua maneira, você é um bom menino,
Jim, mas eu não penso que você e eu vamos navegar juntos outra vez. Você
é favorecido demais pela sorte. Mas é você, John Silver? O que o traz aqui,
homem?
– Voltei a meu dever, senhor – replicou Silver.
– Ah! – disse o Capitão. E não acrescentou mais nada.
Que jantar nós tivemos aquela noite, com todos os meus amigos ao meu
redor, e que refeição boa que foi, com a carne de cabrito salgada de Ben
Gunn e algumas guloseimas e uma garrafa de vinho velho que havíamos
encontrado no Hispaniola. Tenho certeza de que nunca houve um grupo de
pessoas mais alegre ou mais feliz. E lá estava conosco Silver, sentado um
pouco mais para trás, quase fora do alcance da luz do fogo, mas comendo
com apetite, pronto a erguer-se bem depressa quando alguma coisa era
necessária; e até mesmo unindo-se submissamente a nossos risos – o
mesmo marinheiro educado, polido e obsequioso que fora durante a
viagem.
CAPÍTULO 34
E FINALMENTE
Na manhã seguinte, começamos a trabalhar bem cedo, a fim de
transportarmos a grande massa de ouro por quase uma milha por terra e até
a praia, e daí, por mais três milhas, de barco até o Hispaniola. Foi uma
tarefa considerável para um número de trabalhadores tão pequeno. Os três
bucaneiros que ainda estavam na ilha não nos perturbaram muito; uma
única sentinela no flanco da colina era o suficiente para nos garantir contra
algum ataque súbito; pensávamos, também, que a quantidade de combates
de que eles haviam participado tinha sido mais do que suficiente.
Deste modo, o trabalho foi realizado com entusiasmo. Gray e Ben Gunn
iam e vinham com o escaler, enquanto o resto, durante sua ausência,
empilhava o tesouro na praia. Duas das barras de ouro, amarradas com uma
corda, constituíam uma boa carga para um homem adulto – uma carga com
que ele tinha prazer de andar lentamente. Da minha parte, como eu não
tinha muita serventia para carregar aquele peso, fui mantido ocupado
durante todo o dia na caverna, colocando o dinheiro cunhado dentro de
sacos de biscoitos.
Era um conjunto estranho, tal qual o do baú de Billy Bones, pela
diversidade da cunhagem, mas tão maior e tão mais variado que eu penso
nunca ter tido maior prazer do que quando estava classificando essas
moedas. Eram moedas inglesas, francesas, espanholas, portuguesas,
Georges e Luíses de ouro, dobrões e guinéus duplos, moidores portugueses
e sequins árabes, os retratos de todos os reis da Europa durante os últimos
cem anos, estranhas peças orientais estampadas com o que pareciam ser
pedaços de cordão ou fios de teia de aranha, peças redondas e peças
quadradas, peças chinesas perfuradas no meio, como se fossem feitas para
serem penduradas ao redor do pescoço – quase toda variedade possível de
dinheiro do mundo devia, segundo eu penso, estar representada naquela
coleção; quanto à quantidade, tenho certeza de que eram como as folhas de
outono, de tal modo que minhas costas ficaram doloridas de curvar-me
sobre elas e meus dedos ficaram dormentes de tanto classificá-las.
Este trabalho prosseguiu dia após dia; a cada noite, uma fortuna tinha
sido depositada a bordo, porém havia ainda outra fortuna esperando pela
manhã, e, durante todo este tempo, não soubemos nada dos três amotinados
sobreviventes.
Finalmente – eu penso que foi na terceira noite –, o Doutor e eu
estávamos passeando pelo flanco da colina no ponto em que ela dominava
as terras baixas da ilha, quando, da espessa escuridão abaixo, o vento nos
trouxe um barulho que parecia uma mistura de uivos e de canto. Foi
somente um pequeno trecho que chegou a nossos ouvidos, seguido pelo
mesmo silêncio de antes.
– Deus os perdoe – disse o Doutor. – São os amotinados!
– Todos embriagados, senhor – contribuiu a voz de Silver, vinda de trás
de nós.
Silver, eu devo dizer, gozava de plena liberdade, e, a despeito de
repreensões diárias, parecia considerar-se uma vez mais como um
dependente amigo e privilegiado. Sem dúvida, era notável a maneira como
suportava os pequenos atos e frases de desprezo, e a polidez constante com
que continuava tentando alcançar a benevolência de todos. Entretanto,
segundo penso, ninguém o tratava melhor que a um cão, a não ser Ben
Gunn, que ainda tinha um medo terrível de seu antigo quartel-mestre, ou eu,
que na realidade tinha motivos para ser-lhe grato. Embora, na verdade, eu
suponho que tivesse razões para pensar ainda pior dele que os demais,
porque eu era testemunha do momento em que pensara numa nova traição,
quando acharam que tinham descoberto o tesouro. Deste modo, foi de uma
forma bastante rude que o Doutor lhe respondeu:
– Bêbados ou delirando – disse ele.
– Tem toda a razão, senhor – replicou Silver. – Na verdade é bastante
difícil dizer como, tanto para o senhor como para mim.
– Suponho que você dificilmente me pediria para considerá-lo um
homem generoso – retrucou o Doutor, franzindo o cenho –, e assim, meus
sentimentos podem até surpreendê-lo, Mestre Silver. Mas, se eu tivesse
certeza de que estavam delirando – e tenho uma certeza moral de que pelo
menos um deles está doente de febre –, eu deveria deixar este acampamento
e, qualquer que fosse o risco para minha própria carcaça, levar-lhes a minha
assistência.
– Pedindo-lhe perdão, senhor, acho que estaria muito errado – falou
Silver. – O senhor perderia sua vida preciosa, pode contar com isso. Eu
estou do seu lado agora, como a mão está para a luva, e não gostaria de ver
nosso lado enfraquecido, principalmente na sua falta, sabendo o quanto lhe
devo. Mas esses homens lá embaixo não são capazes de manter a palavra –
não mesmo, nem se quisessem, e, o que é pior, eles não acreditariam que
você mantivesse a sua.
– Não – disse o Doutor. – É você o homem que sempre mantém a
palavra, nós todos sabemos disso.
Bem, essa foi quase a última notícia que tivemos dos três piratas.
Somente uma vez nós escutamos um tiro a grande distância, e supusemos
que estavam caçando. Reunimos um conselho e foi decidido que
deveríamos deixá-los na ilha – para a grande alegria, devo dizer, de Ben
Gunn, e com a forte aprovação de Gray. Nós lhes deixamos um bom
estoque de pólvora e de munição, a maior parte da carne de cabrito salgada,
alguns remédios e também outras coisas necessárias, como ferramentas,
roupas, uma vela de reserva, uma braça ou duas de corda e, para atender a
um desejo particular do Doutor, um presente considerável de tabaco.
Essa foi praticamente a última coisa que fizemos na ilha. Antes disso,
tínhamos embarcado o tesouro, além de bastante água e do restante da carne
de cabrito salgada, para um caso de necessidade, e, finalmente, em uma
bela manhã, levantamos a âncora, o que nos custou um grande esforço,
porque éramos muito poucos, e saímos da Angra Setentrional com a mesma
bandeira flutuando que o Capitão tinha hasteado para combater à sua
sombra na paliçada.
Os três camaradas deveriam estar-nos observando de mais perto que
havíamos imaginado, como logo se demonstrou. Isto porque, quando
atravessávamos os estreitos, tivemos de passar muito perto da ponta
meridional, e então vimos os três ajoelhados juntos em uma ponta de areia,
com os braços erguidos em súplica. Doeu em nossos corações, penso eu,
deixá-los ali naquele estado lastimável, mas não nos podíamos arriscar a
outro motim, e levá-los conosco para casa somente a fim de entregá-los ao
carrasco teria sido uma espécie de bondade cruel. O Doutor chamou-os e
disse-lhes que havíamos deixado os suprimentos e em que lugar da ilha
poderiam encontrá-los. Porém eles continuaram a nos chamar e a apelar, por
amor de Deus, pedindo, por misericórdia, que não os deixássemos para
morrer naquele lugar.
Finalmente, vendo que o barco ainda mantinha seu curso e já estava
agora rapidamente chegando a um ponto em que não poderíamos mais
escutar, um deles – não sei qual foi – pulou de pé com um grito rouco,
levou o mosquete ao ombro e deu um tiro, que assobiou por cima da cabeça
de Silver e furou a vela principal.
Depois disso, ficamos sob a proteção da amurada e, da outra vez que
olhei, eles já não se achavam mais sobre a ponta arenosa; de fato, mesmo
esta já tinha quase desaparecido de vista na distância crescente. Esse foi,
felizmente, o fim do episódio; e antes do meio-dia, para minha inexprimível
alegria, a rocha mais elevada da Ilha do Tesouro já havia afundado no
horizonte azul do mar.
Nossa tripulação estava tão reduzida, que todos a bordo tinham de
trabalhar todo o tempo para manter o navio em seu curso. Somente o
Capitão permanecia deitado em um colchão junto à popa, de onde emitia
suas ordens; isto porque, embora já estivesse a caminho da recuperação,
ainda necessitava de sossego. Dirigimos o curso para o porto mais próximo
da América Espanhola, porque não nos podíamos arriscar a fazer a viagem
toda através do oceano sem contratarmos mais alguns marinheiros; e assim
mesmo, com ventos contrários, inclusive um ou dois golpes de vento mais
fortes, estávamos todos exaustos antes de atingirmos esse porto.
Foi justamente ao pôr do sol que lançamos âncora em um golfo muito
belo, cercado de terra por quase todos os lados; fomos imediatamente
rodeados por barcos provindos da praia, cheios de negros e de índios
mexicanos e de mestiços, vendendo frutas e hortaliças e se oferecendo para
mergulhar em busca de moedinhas que jogássemos. A visão de tantos rostos
bem-humorados (especialmente os dos negros), o gosto das frutas tropicais
e, acima de tudo, as luzes que começaram a brilhar na cidade, tudo isso fez
um contraste encantador com nossa escura e sangrenta estadia na ilha, e o
Doutor e o Conde, levando-me com eles, desceram à praia a fim de passar
em terra as primeiras horas da noite. Lá eles encontraram o capitão de um
navio de guerra inglês, entabularam conversação com ele, foram a bordo de
seu navio e, para encurtar a história, passamos uma noite tão agradável, que
o dia já estava raiando quando retornamos ao Hispaniola.
Ben Gunn estava sozinho no tombadilho, e, assim que chegamos a bordo,
ele começou, com maravilhosas contorsões e caretas, a nos fazer uma
confissão. Silver tinha ido embora. O marinheiro abandonado tinha
concordado com sua fuga e o levara até a praia algumas horas antes, e agora
nos garantia que só o tinha feito no intuito de preservar-nos as vidas, que
certamente seriam perdidas se “aquele homem com uma perna só tivesse
permanecido a bordo”. Mas isto não foi tudo. O cozinheiro de bordo não
tinha partido de mãos vazias. Ele tinha perfurado um dos anteparos sem ser
observado e removido um dos sacos de moedas, valendo, talvez, trezentos
ou quatrocentos guinéus, a fim de financiar suas próximas aventuras.
Eu acho que todos ficamos satisfeitos por nos livrarmos dele a um preço
tão baixo.
Para encurtar uma longa história, colocamos alguns novos marinheiros a
bordo, fizemos um bom cruzeiro de retorno ao lar e o Hispaniola chegou a
Bristol bem na ocasião em que Mr. Blandly estava começando a pensar em
aprestar o navio de apoio. Somente cinco homens retornaram de todos os
que haviam embarcado nele. “O rum e o Diabo tinham levado os outros” –
o refrão tinha funcionado pior do que se esperava. Embora, naturalmente,
nós não estivéssemos em uma situação tão má como aquele outro navio de
que a canção falava:
Só restava a bordo um único homem vivo,
Depois de pôr-se ao mar com setenta e cinco.
Todos nós recebemos uma ampla porção do tesouro, e a utilizamos com
sabedoria ou tolamente, de acordo com nossa natureza. O Capitão Smollett
aposentou-se de suas fainas no mar. Gray não somente economizou seu
dinheiro, como foi subitamente atingido por um desejo de subir na vida e
estudou sua profissão: ele é agora imediato e proprietário de parte de um
belo navio mercante de velame completo, casou-se também e já tem filhos.
Quanto a Ben Gunn, ele recebeu as mil libras que havia pedido, as quais ele
gastou ou perdeu em três semanas, ou, para ser mais exato, em dezenove
dias, porque no vigésimo, já estava pedindo mais. Então, ele recebeu uma
cabana de caça para tomar conta, justamente o que tinha temido quando
estava na ilha; e ainda está morando lá, tratado com muita estima pela
população do lugar, embora seja alvo das brincadeiras dos meninos, mas é
um excelente cantor na igreja, que frequenta todos os domingos e dias
santos.
De Silver nunca mais soubemos nada. Aquele formidável marinheiro
com uma perna só tinha finalmente saído de minha vida, mas eu ouso dizer
que ele conseguiu encontrar de novo a sua negra velha, e talvez ainda viva
em conforto com ela e com o Capitão Flint. É de se esperar, eu suponho,
pois suas possibilidades de alcançar uma posição confortável no outro
mundo são muito pequenas.
As barras de prata e as armas ainda jazem, tanto quanto eu sei, nos locais
em que Flint as enterrou, e certamente, no que depender de mim, vão ficar
lá para sempre. Nem que me amarrassem a uma junta de bois, conseguiriam
levar-me de volta àquela ilha maldita. Os piores pesadelos que tenho são
quando eu escuto a arrebentação se esbatendo e rugindo contra suas costas,
ou quando eu me sento subitamente na cama, com a voz aguda do Capitão
Flint ainda soando em meus ouvidos: “Peças de oito! Peças de oito!”.

FIM
GLOSSÁRIO DE TERMOS NÁUTICOS
Adriça – Corda ou cabo grosso usado para içar uma vela, uma verga ou
uma bandeira.
À espia – Reboque de um navio por meio de cabos amarrados à
embarcação. Em caso de calmaria, os escaleres eram atrelados ao veleiro e
os marinheiros remavam para rebocá-lo.
Baixamar – Maré baixa.
Barlavento – Direção de onde sopra o vento. Bordo do navio que está
voltado para essa direção.
Bigota – Peça arredondada com orifícios para dar passagem às adriças.
Bimbarra – Alavanca recurvada usada para manobrar o cabrestante ou para
mover peças de artilharia a bordo de um navio.
Brandal – Cabo ou cordame que escora os mastros superiores.
Brandy – Aguardente inglesa à base de frutas. O brandy referido no texto é
de uma qualidade e teor de álcool muito mais forte que os do licor
conhecido modernamente como Cherry Brandy.
Bombordo – Parte à esquerda do navio, quando se olha da popa para a
proa.
Bucaneiro – Os antigos piratas da Jamaica alimentavam-se em boa parte de
nozes-pecãs, e por isso foram chamados de pecaneiros; com o tempo o
termo transformou-se em bucaneiros; o mesmo que piratas ou flibusteiros;
às vezes, também chamados corsários (ver este termo).
Bujarrona – Vela triangular que se iça à proa de um veleiro.
Cabrestante – Máquina de eixo vertical usada para suspender a âncora, içar
as velas etc.
Cadernal – Encaixe ou dispositivo com duas ou mais roldanas, usado para
levantar pesos.
Calafetagem – Vedação das junturas do barco com estopa e piche ou
alcatrão.
Carangueja – Verga longa e oblíqua em relação à linha do horizonte,
destinada a sustentar uma vela latina.
Carena – O mesmo que Querena.
Castelo de proa – Parte mais elevada à frente do convés dos antigos
veleiros que contém os beliches dos marinheiros comuns.
Coberta – Pavimento superior de um navio; convés. Nos veleiros era feito
de madeira.
Contramastro – Barra de madeira grossa afixada transversalmente ao
mastro para sustentar o velame; o mesmo que vergas.
Contramestre – O mais graduado dos marinheiros, que ajuda ou substitui o
imediato.
Convés – A cobertura de madeira superior de um veleiro; pode ser também
chamado de coberta ou ainda, por extensão, de tombadilho.
Corácula – Pequeno barco formado pela cobertura de uma armação de
vime com pele ou couro, usado pelos antigos bretões; mais modernamente,
um barco formado por aros largos, recoberto por couro de cavalo, lona ou
oleado, usado ainda hoje em certas regiões das Ilhas Britânicas.
Corsário – Em época de guerra, certos governos emitiam Cartas de Corso,
que davam direito a certos capitães e seus marinheiros praticar legalmente a
pirataria contra os inimigos desse país; na prática, havia pouca diferença
dos piratas independentes, mas, enquanto durassem as hostilidades, os
corsários eram protegidos pelo governo que lhes dera a autorização, embora
fossem justiçados quando capturados pelo inimigo.
Cutelo – Espécie de espada de lâmina grossa e recurvada, com um punho
protetor de metal envolvendo um cabo de madeira.
Cúter – Pequeno navio de um só mastro e mastaréu, muito leve e rápido.
Embornais – Buracos feitos nos trincanizes da amurada, com inclinação
para o costado, destinados ao escoamento da água que se derrama sobre o
convés ou coberta.
Escorva – Cápsula onde se deita pólvora para abrir fogo; cilindro que
envolve a pólvora que vai comunicar fogo à carga.
Escotilha – Abertura em um navio que põe em comunicação a coberta, o
convés e o porão.
Escuna – Veleiro pequeno de um ou dois mastros. Porém o barco descrito
no texto aparentemente possui três. Provavelmente um foi acrescentado
durante a grande reforma mandada realizar pelo Conde Trelawney.
Espoleta – Peça destinada a produzir a inflamação da carga de um projétil.
Estai – Cabo grosso fixo na proa do navio por meio de cadernais.
Estaleiro – Lugar onde se constroem ou consertam navios.
Estibordo – Parte que fica à direita do navio quando se olha da popa para a
proa.
Flibusteiro – Palavra de origem francesa, sinônimo de corsário, designando
por extensão os piratas das Antilhas durante os séculos XVI e XVII. A
palavra “flibusteiro” era considerada honrosa pelos piratas.
Fragata – Veleiro de três mastros da Marinha de Guerra.
Gávea – Plataforma circular no alto de um mastro; geralmente com uma
grade protetora que permita a um marinheiro observar a distância em
relativa segurança.
Gurupés – Mastro colocado obliquamente na proa de um navio,
projetando-se para a frente.
Grumete – Praça inferior da Marinha, que faz a limpeza e ajuda nos
trabalhos mais inferiores; nos veleiros, este cargo pertencia ao marinheiro
mais jovem, frequentemente um menino; também significa aprendiz; e pode
ser empregado para designar um adolescente que trabalhe em um navio
como camareiro.
Lambaz – Vassoura de corda usada para varrer o convés; no texto, é usado
pejorativamente para indicar marinheiro de primeira viagem e sem
experiência.
Latitude – Distância de um barco ou de um ponto ao equador. Mede-se a
latitude norte e sul em graus, minutos e segundos.
Leme – Peça de superfície plana, situada na proa de um navio
(modernamente, na parte traseira de um aeroplano). O leme dá direção ao
barco no sentido lateral e é movido do convés pelo timão ou roda do leme.
Longitude – Distância de um barco ou de um ponto ao Meridiano de
Greenwich, na Inglaterra (ou Meridiano de Paris, na França). Mede-se a
longitude leste e oeste, em graus, minutos e segundos.
Lugre – Pequeno veleiro, estreito na traseira e largo na parte dianteira.
Marola – Onda grande e agitada, formada naturalmente ou pela proa de um
navio.
Mezena – A vela mais próxima da popa do navio, envergada na carangueja
do mastro da ré em caso de mau tempo.
Mosquete – Arma de fogo portátil de cano longo usada nos séculos XVI e
XVII. Era carregada pela boca e disparava um único tiro até ser
recarregada, operação que levava no mínimo um minuto. Até mais ou
menos 1650 era apoiada em uma forquilha para disparar. Não se confunde
com o moderno mosquetão.
Orçar – Voltar a frente do navio para o lado do vento com auxílio do leme.
Patarrás – Suporte do brandal. Às vezes, é usado como sinônimo de
brandal.
Polé – Mecanismo parecido com uma roldana.
Polvorinho – Utensílio usado para carregar pólvora, mechas, etc., para
armas de fogo de carregar pela boca. Algumas vezes, era feito de um chifre
ou de uma guampa.
Popa – A parte traseira de um navio.
Prancha – Tábua grossa e larga que é afixada horizontalmente ao costado
do navio em uma abertura da amurada e serve para dar passagem para a
terra ou de uma embarcação para outra; nos navios piratas, era afixada com
uma das pontas diretamente sobre o mar, e o condenado era forçado a
“caminhar pela prancha”, caindo no mar.
Preamar – Maré alta.
Proa – A parte dianteira de um navio.
Quartel-mestre – Contramestre. Em navios de guerra ou naus piratas,
assume o papel de subcomandante durante o combate.
Querena – Parte do casco do navio que fica submersa. Por extensão, o
espaço contido pela querena, que corresponde mais ou menos ao porão; e
onde, algumas vezes, se acumula água do mar, ou salsugem.
Querenar – Virar um navio de borco, com a quilha para cima, a fim de
fazer a limpeza do casco.
Quilha – Peça comprida de madeira que passa por baixo e ao longo de todo
o fundo do veleiro e na qual se apoiam todas as outras peças. “Passar pela
quilha” significava amarrar a pessoa a ser castigada a duas cordas, depois
empurrando pela amurada do barco, puxá-la por uma das cordas apenas,
sustentando-a pela outra.
Rodízio – Haste de madeira grossa e cônica.
Salsugem – Água que se acumula no porão ou em outras partes do navio.
Serviola – Porção do convés junto às paredes do castelo da proa ou do
castelo da popa; a própria parede interna destas edificações, que dá para o
convés.
Socador – Varilha com uma esponja afixada à ponta, que era introduzida na
boca de um canhão e utilizada para apertar bem a pólvora, com golpes
curtos e rápidos.
Sotavento – Direção oposta àquela em que sopra o vento; bordo do navio
voltado para esse lado.
Talabarte – Faixa de couro ou fazenda que se usa a tiracolo para sustentar
arma ou bandeira.
Timoneiro – O marinheiro (ou outra pessoa) que pilota o navio por meio do
timão ou roda do leme. Nos antigos veleiros, o timoneiro era um marinheiro
graduado logo abaixo do contramestre.
Tombadilho – A cobertura de madeira da parte mais elevada de um veleiro,
que vai do mastro da mezena até a popa; pode ser usado como sinônimo de
convés.
Tornel – Argola ou botão preso a uma haste de metal ou madeira sobre a
qual gira como um eixo.
Traquete – Vela grande içada no mastro da proa.
Tricórnio – Antigo chapéu de três pontas.
Trincanizes – Tábuas grossas cujos cantos assentam na amurada,
chanfradas na parte de dentro e que se abrem nos embornais.
Verga – Barra de madeira grossa, atravessada transversalmente em um
mastro e a que se prende uma vela do navio; também a trave superior de um
patíbulo, de onde pendem as cordas ou correntes que sustentam os
enforcados. O mesmo que contramastro.
ROBERT LOUIS STEVENSON
(1850-1894)

Robert Louis Balfour Stevenson (1850-1894) nasceu em Edimburgo, filho


de um próspero engenheiro civil, Thomas Stevenson, e de Margaret Isabella
Balfour, de família aristocrática, ambos presbiterianos. Seu pai tinha planos
de que ele seguisse sua profissão, mas a saúde debilitada e o pouco
interesse na área fizeram com que decidisse pelo Direito, ingressando na
Universidade de Edimburgo. Sua revolta contra a “respeitabilidade
presbiteriana” de seus pais levou-o a frequentes conflitos com a família,
optando por uma vida boêmia e dedicada à escrita.
Na tentativa de aliviar os sintomas da doença respiratória que o
acompanharia durante toda a vida, viajou durante muitos anos em busca de
um clima mais ameno. Numa dessas viagens, enquanto morava na França,
conheceu sua futura esposa, Fanny Osbourne, uma mulher dez anos mais
velha que ele. Seguiu-a até a Califórnia em uma penosa viagem de navio,
casando-se em 1880, depois que o divórcio dela foi concluído. As primeiras
obras publicadas de Stevenson, An Inland Voyage (1878) e Travels with a
Donkey in the Cévennes (1879), baseadas em suas próprias viagens, foram
seguidas por diversos artigos e ensaios. Em 1883, sua primeira obra de
ficção veio a público, o clássico de aventura A ilha do tesouro. Uma fase de
grave doença seguida por um período de descanso em Bournemouth
colocou Stevenson em contato com Henry James e os dois tornaram-se
grandes amigos. O reconhecimento que Stevenson recebera por A ilha do
tesouro cresceu ainda mais com a publicação de O médico e o monstro (The
Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde) e Raptado (Kidnapped), em 1886.
Em 1888, levou sua família para os mares do sul, mais uma vez em busca
de um clima mais condizente com sua condição de saúde, estabelecendo-se
em Samoa, onde escreveu As aventuras de David Balfour. Stevenson
morreu de hemorragia cerebral enquanto escrevia sua obra-prima
inacabada, Weir of Hermiston, em 1894.
Texto de acordo com a nova ortografia.
Título original: Treasure Island
Tradução: William Lagos
Preparação do original: Jó Saldanha
Revisão: Renato Deitos

S848i
Stevenson, Robert Louis Balfour, 1850-1894
A ilha do tesouro / Robert Louis Stevenson; tradução de William Lagos. – Porto Alegre: L&PM,
2013.
(Coleção L&PM POCKET; v.244)
ISBN 978.85.254.2871-4
1. Ficção escocesa-Aventuras. I. Título. II. Série.
CDD 891.6387
CDU 891.63-311.3

Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329.


Este livro foi publicado originalmente em 1883.
© da tradução, L&PM Editores, 2001
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PEDIDOS & DEPTO. COMERCIAL: vendas@lpm.com.br
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Table of Contents
Parte I: O velho bucaneiro
Capítulo 1 - O velho lobo-do-mar no "Almirante Benbow"
Capítulo 2 - O Cão Negro aparece e desaparece
Capítulo 3 - O sinal negro
Capítulo 4 - O baú do marinheiro
Capítulo 5 - O último aparecimento do cego
Capítulo 6 - Os papéis do capitão
Parte II: O cozinheiro de bordo
Capítulo 7 - Eu vou a Bristol
Capítulo 8 - Na tabuleta da "Luneta Marítima"
Capítulo 9 - Pólvora e armas
Capítulo 10 - A viagem
Capítulo 11 - O que eu escutei dentro do barril de maçãs
Capítulo 12 - Conselho de guerra
Parte III: Minha aventura na praia
Capítulo 13 - Como eu comecei minha aventura na praia
Capítulo 14 - O primeiro golpe
Capítulo 15 - O homem da ilha
Parte IV: A paliçada
Capítulo 16 - Narrativa continuada pelo doutor: como o barco foi
abandonado
Capítulo 17 - Narrativa continuada pelo doutor: a última viagem do
bote de carga
Capítulo 18 - Narrativa continuada pelo doutor: o fim do combate no
primeiro dia
Capítulo 19 - Narrativa continuada por Jim Hawkins: a guarnição da
paliçada
Capítulo 20 - A embaixada de Silver
Capítulo 21 - O ataque
Parte V: Minha aventura no mar
Capítulo 22 - Como eu comecei minha aventura no mar
Capítulo 23 - A maré baixa
Capítulo 24 - O cruzeiro da corácula
Capítulo 25 - A bandeira dos piradas (o "Jolly Roger")
Capítulo 26 - Israel Hands
Capítulo 27 - "Peças de oito"
Parte VI: O capitão Silver
Capítulo 28 - No acampamento do inimigo
Capítulo 29 - O sinal negro de novo
Capítulo 30 - Liberdade condicional
Capítulo 31 - A caça ao tesouro: o ponteiro de Flint
Capítulo 32 - A caça ao tesouro: a voz entre as árvores
Capítulo 33 - A queda de um líder
Capítulo 34 - E finalmente
Glossário de termos náuticos

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