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HUDOLF ALLEHS

l) SICOLOGIA
DO CARA1�ER

Tradução de
N. L. RODIUGUES

Ouaria Edição

Disponibilizado em:

RIO DE JANEIRO
Copyright de
NIDAS S. A. ( A G I n )
.,.,_ GRÁFICAS JNDúSTRIAS REU
.... �r... �

Título do origi11nl alemão:


"·D),. S WERDEN DER SITTLICHEN PERSON"

L·vraria AGIR 0dt'fórcJ


_..... '.!:,; .::-.-;..�: G��- ! 25 Rti3 ..\�éxi,o. ClS-B Av. Afonso Prna. 91''
;,: : ..-:.-: ::;: E��-1. J.1::r:.J Caixa Postal 3 291 Ciixa Postal 73 J
� .:L� :=-:-::-:&: ��1.;Q TtL: 4:i.-Z327 Td.: 2-3038
-:-·�,.. - ; � - �) Ç· �t Rio ór Ja'neira Bdo Horizon1c
t. :·: r":-� .:-- ?. .\linas Gerais
u,:r;:2:tço �co "AGIRSA"

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PREFÁCIO

1116.o fc11ho o hábito de escrever prefácios. Esta ap1·esentação


e rcco111c11dação de 11-m auto1·, como a costumam fazer al.Q1tr1B
(o prefácio de mn nome mais ou. menos conhecido é considerado,
por muitos autores, o vM.tico mais seguro vara seus livros, quando
êstes iniciam, sua viagem pelo mundo), parece-me uma das coisas
mais inúteis e antipáticas que possam existir. Inútil - porque
os entendidos são capazes, por si mesmos, de achar o livro, que
pode ser íitil para o fim particular que desejam; êles vodem,
muito bem, descobrir, na imensidade de obras impressas, o autor
que se tonm-rá seu amigo, cujos pensamentos são afins dos seus
e com quem se podem pôr de acôrdo. Antipática - porque tenho
a impressão de que mn tal prefácio quer dizer, mais ou menos, o
seguinte: ",,1eu caro leitor: não és bastante inteligente e culto
para pode1· escolher, por ti mesmo, o que te convém. Por isso
aqui estou, para te dar a orientação neeessária".
Por essas razões, recuso-me, sistemàticamente, a· escrever
prefácios. Acontece, mesmo, que, por tal motivo, tenho-me indis­
posto, pelo menos temporàriamente, com alguns amigos. Agora,
porém, ocorreu o que me pa,·ecia inteiramente incrível: ter, eu
próprio, o desejo de escrever um prefácio! O Dr. RUDOLF ALLERS,
de Viena, de quem admiro o tal.ento e os trabalhos científicos,
pediu lic"ença para dedicar-me a nova edição de seu livro. Não só
aceitei, satisfeito, esta dedicatória, como a.creditei ver, nela, uma
ce1·ta significação. Por isso, solicitei ao autor que me f ôsse permi­
tido, num prefácio, explicar os motivos de tal dedicatória. Era,
por eerto, uma renúncia a meus antigos hábitos. Movia.-me, po,·ém,
a sal-vação das almas - e só isso f êz pender a balança.
Como se sabe, aquela psicologia chamada comumente expe?·i­
mental (designação aliás inadequada,: se a quisermos distinmlir,
por meio de um qualificativo, da exposição filosófica das questões
psicológicas, devemos chamá-la empírica) apresentou, nos últimos
anos, o fato interessantíssimo de terem s1trgido, dentm dela, inú­
meras direções inteiramente diferentes. À velha psicologia, que
se dedicava, quase exclusivamente, aos problemas de psicofisiolo­
gia - isto é: às modificações apresentadas pelo organismo sol>

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6 RUDOLF ALLERS

a influência da vida psíquica, ou inversamente, às influências do


fisiológico sôb1·e a vida psíquica - opuseram-se tantas outras
psicologias, quantos vontos de vista e métodos de tratamento exis­
tem. Estas novas direções se tonia1·am tão nwmerosas e divergen­
tes, que nuâtos (como BüHLER) se perguntam, se não estamos
diante de mna crise ,ia psicologia. Um americano (MURCHISON)
tentou, ao contrário, resolver a q1wstão, convocando para um sym­
posium - gra,;as a uma soma disJ)onívcl de dólares - todos os
representantes da.s diversas correntes, a fim de que cada um desse
su� opinião e expusesse suas concepções . Métodos diversos, pontos
de vista diversos, sistemas inteiramente diferentes - todos, porém,
apresentando-se eomo de validez absoluta! E êles se estendem,
desde as concepções, em razão das quais a psicoloqi,a pode ser, por
certo, considerada uma disciplina filosófica, 01t meihor; uma das
"ciências do espírito" (DILTHEY, SPRANGER), até o extremo oposto
da.� puras concepções mate1·ialistas, q1w levaram MAC DOUGALL
a afirmar que nos achamos diante de uma renascença do materia­
lisnw. Tal é, por exemplo, a essência do "behaviourismo". Entre
êsses dois extremos, há tôda uma escala de tonalidades diversas:
a psicologia da "Gestalt", a do pensamento, a personalistica, a
analítica, a do reflexo condicionado, etc..
Estas orientações e concepções só puderam avarecer, porque
a velha psicologia era, no- fundo, o produto de um processo de
abstração: separavam-se, do conjmito da vida psíquica, determi-
1wdas funções e pesquisavam-se suas leis. Isso foi mn bem para
o desenvolvimento da vsicologia. Mas, po1· êsse processo, escapava
ao pesquisador o essencial.: o estudo da vida vsíqu-ica em seu.
conjunto, na vfaão de uma unidade que é, verdadeira-mente, uma
unidade dirigida para iun fiin. Por isso, surgfra·m as tentativas
de compreendei· e explicar a atividade psíquica por meio de mna
síntese . Os empreendimentos da "Gestalttheorie" e elo "l>ehai•iou­
rismo" são exemplos típicos dessa tendênoia. Sua fmportâ11cia
está, menos nas afirmaçõe.� de sc·us representantes, q1te na reação,
por êles rea/-izada e expressa. Mais incontestável ainda é o mérito,
que deve .�er atrilmfdo a SIGMUND FREUD, de ter toma,do em co11si­
dcração o problema da unidade da vida ps-íq11ica e de ter te11tado
exvlicar o conteúdo das 1iersonalidades normal e mó1·bida.. Quer
se aceite, ou. mio, ,ma teoria, deve-se reconhecer qne êle reali.:011,
de modo decfaivo, o que 1la11iam tentado antes, a-inda. no domfnío
71ntolrír,ico, CIIJ\llCOT e P. ,JANET: delinear uma JJ.�ico/ogia, que
co1witlernssc o homem, mio mctis de modo abstrato, na reimiiio de
.�ucw fnnç,iell 1),qf�111.icas, ma.1 110. 1n-,ípria. wddadc de sua vida.
A p«rUr de l•'trnun, ·im'.cimi-sc ·um. !]rcwdc movimento, julgado e
apreciado de modo.� 11ivcr1ms, que terminou. pela fm1dação da Carac­
teroloyill, r111e começa n toma1·, cncla vez mnis, em. nossos dias,
o aspecto de 1tma ciência índe7,endente. Nesta disciplina, não só

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 7
se dá import.,Jncin (e gmndc im11ortâ.11cia) an 1Jastn domínio de
fatos que comp1·cc1Hic ª-" rclaçiics entre "· 1icrs01w/·idadc lwmana
e a constituição orgá11ic!a. (oll cnt,rc ll, at.ioic/adc 1míqufra e as glân­
dulas de sccrcrcio ·i11tcr11a.), c1111w t.a111/1ém., ma:is <Linda, a éssc
problema cssc11cial111c11fc psicoltí!1fro: clnr a. c;1:7)lica,Çün dlL origem,
do caráter hu:11w1111, da- 11crso11aliclade, e esclarecer sua cvol11ção
e tra11sjor111açõcs. Assim. se tra.-11sformo11, cada ?JCZ mais, em ensi­
no sistemático, êsse movimento que lia.via começado como aplica­
ção de um. método. Pode-se mesmo dizm· que estava de tal modo
ao a-lcancc do jundador da psicanáHsc transformá-la 11111n sistema,
que ela já tomou a forma de uma filosofia. De fato: as duas últi­
mas obras qe FREUD (Die Zukunft einer Illusion e Das Unbehagen
in der Kultur) são, sem dúvida alguma, de conteúdo filosófico.
Considere-se, po1·ém, o fato de se terem afastado da psicanáli.se
propriamente dita, pesquisadores que, por sua vez, erigiram seus
próprios sistemas - como, por exemvlo, ADLER, que tomou como
ponto de partida o que FREUD negava. (Sabe-se que, segundo
FREUD, apena.s ao passado devia se,· atribuída uma significação
decisiva na formação do caráter, enquanto que, para ADLER, o
futnro torna-se decisivo, por intermédio das finalidades determi­
nantes impostas ao caráter). Pode-se, então, concluir, com funda­
mento num estudo dessas concepções - que,· em seus criadores,
quer 11a grande multidão dos que as em.pregaram, e desenvol-ueram
de vários modos - que o essencial não é tanto o sistem.a. como
o esfôrço para a.tingir a significação da origem do caráter e dos
fatôres importantes que a êle se ligam.
Cabe a ALLERS o mérito de se ter orientado. desde cedo. nessa.
direção e de ter contribuído, nesse sentido, com pesquisas p1·6prias.
Ainda que tais pesquisas não o tivessem colocado num lupar proe­
minente, elas atestavam, contudo, a ma,qnitude de seus trabalhos
p1·epat·atórios. 1 O vresente livro, porém, é uma ob1·a original e
forte, que vode ser considerada como 'Uma contrilntição pessoal de
singula.1· valor.
Para ter uma idéia da natureza e imporMncia. dessa contri­
buição, devemos lembrar-nos de que todos aqu.êles q1te se opunham
a uma concevção materialística da vida, não podiam dar .�ua apro­
vação aos primeit·os trabalhos de FREUD, e, muito menos, aos
últimos. Imperava neles uma concepção fatalfstica do desenvol­
'Vimento do caráter humano, que, na verdade, parecia muito afas­
tada dos momentos físico-químicos e morfológicos, mas que, no
entanto, deixava ver suficientemente SllUS fundamentos de grassei-
1 . Ver • Psychologie des Gcschlcchtslebms" ( 1 9 2 Z) ; O ber Psycboanaltjst
(1920); Cbarakter ais Ausáruch, in: Jabrb. der Churakterol. Bd. I (1925);
Begriff und Methodih der D,utung, in: SCHWARZ, Psychogenese un1 Psychctl!t".
korperl. Symtome () 925); Medizin. Charahterol. in: Handb. der Biol. der Person
(I 927).

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8 RUDOLF ALLERS

ro materialismo. Isso apareceu, depois, mais claramente - quer


em antigos trabalhos de FREUD, onde se pretendia descrever a
origem dos costumes e religiões, com apoio em conhecimentos
etnográficos i1isuficientes (Totem und Tabu), quer em trabalhos
mais recentes, e?ti que, seguindo a mesma ordem de idéÚL.s, se
pretende revelar a origem das mais elevadas produções culturais
do Homem.
Os ensinamentos de FREUD não puderam também sati.sfazer
aos investigadores que não quiseram aceitar o estreito monoteÍ3-
mo de sua teoria, em relação ao desenvolvimento do caráter e à
significação das múltiplas formas da vida. (Apesar de ser 1·eco­
nhecido que a designação "libido" - tá() cara ao fundador da
psicanálise - significa outras coisas maw, ou, pelo menos, não
se limita à esfera sexual) . Alguns dos que aderiram à psicanálfae
(especialmente fora da Áustria) fizeram declarações claras a êsse
respeito. Basta recordar os nomes de JUNG e RIVERS.
Mais que todos, porém, recusaram as teorias de FREUD aquê­
les que acreditavam numa religião revelada, como o Cristianismo.
É fácil compreende1· que não podia ser de outro modo. Sem dúi-i­
da, devem ser excetuados alguns pastores protestantes, que aderi­
ram com especial e peculiar entusiasmo, à psicanálise. 1 Isso é,
aliás, compreensível, já que o protestantismo está cada vez mais
inclinado a levar a religião a representações naturais. Da parte
dos católicos, porém, a oposição foi geral. 2 Esta oposição não se
apoiou sempre, na verdade, em bases racionais, desconhecendo,
muitas vêzes, em suas críticas, o fundo de verdade que pode ser
encontrado em qualquer teoria, mesmo errônea. },J as ela se úu
mais justificada pelas conseqüências paradoxais a que chegou
a psicanálise, no tocante às questões religiosas. 3

). Ver, especialmente, PFISTER: Die p,ycho/og. Entriitse/ung der religiõsm


Glosso/alie ( 1925) : ·Die psychoanal'}t, Methode ( 19 24) : Analytisclu S,et,or�,
( I 9 27) ; Religiositiit und }/ ysterie ( 1928).
2. Os motivos dêste ponto ,de vista do Cltolicismo foram expostos. na ltllil,
num livrinho sóbrio e bastante completo do P, GA!lTANI, S. J. (La Psico"-na/i,i,
I 927). Njo deixam de cxjs[ir, porém, nos rndos católicos, d1"c!Jr,1çõ�s simpjti­
cas ou favoráveis à psican.ílise. J\lé-111 de ALLER5, ocup.lt.1"1--� d� psic.1n.ilisi:, ou
de psicologia individual, enttc- os -c:ttõlicos: P. HARnFr. S. J.. �rh,• N,•1,1 Psy,·!Jr..1fo�IJ
(l9Z5). L. IIOPP, Mod,•m,• P,yc/wamt/y.,• urid lwrholiscl,e lkichi.- (192i):
L1EltTI.. Se,·frnauhc/1/Í••s.,;w,y ( 1927). 1/,rrmonif'n und Dr'sh,umom·t'l1 lfrs ml·nd1t1·,1,t•n
Tri<·l,-unJ G,ir.r,.1/1"/m1s ( 192/i).
Deve r�er oh5ervado <]Ué ,\ A.i;soci.u;.i ....1 d� ,\c,H.12micos ("'_uóli i.: os dJ t\krnJnhJ
r.c <>cupou é)(IIH'S!l,lll1t'UIL' dos prnhkm�u 111,li:i lmpon.1nh.·s qu� sl" .1pr�1ent.1m, cm
rclaç:io .\ rl'li1�1.- .(), 11,l p,it:olov,i,. i11clívid11.1l l' ll,l p.,ic.111.mSl', v ..•j.1m-sl! as cinco in-­
ll.'n-:,t.:rnll'li rrnhlic:,Lç;ic::'i de l\l;iu;MANN (Udi,1ior1 um! S,.·,·f,•ofri,14',1) cm que se :;i,cham
cxpoi;(;\; a� Ínío11u.u;i'w:1 t' 1h•.:l.11,ic.;,il·t• d1· dnco u·uní,1,·s pdvJda: :'i'.,
, 3. Corn,nltL· -:.e, t'm p.11 ticul,H·, .tl{-m ti.is ohr.is d.h�icJs de FREUD e Ua polê-­
m1ca provuc;1tfa pt•lo M'U livro IJi1• Zu/umlr €'in,·r ll!tufon� o livro de E. JONES:
Zur P�vclrncmalt1:.1.· tfrr ,·hriM!iclH·n H,ti�ion ( 1 928).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 9

ALLERS, que se a.ssc11Jwro111, cmn. prudância. o dfacriçáo, das


concepções de ADI,Elt, ·nw.�f.ra. 1ws/,c: /h1ro - crmw já o fúrnrrL em
trabalhos a11tcriorcs - a. 11/ilizaç,io q11c 1wd11m fnzrn- 011 crllrílico8
de tõdas css11s 11esq11isas. Tais c1111ccpçiies /,ivcrmn oriyem, real­
mente, 11a o/1.�cr1mriío dos doc11tc,�, mas }Jroc1u-arnm 11c1·, ?Ul neuro­
se, 111c110s ·11111 vroduto do passado, do que mn modo de rea(Jir rlo
iudfríd110 diante das coudiç,ics a.mfiicntcs, e.�71ecfol-mcnt11 quando
s111·gc111, cm scn cami11ho, obstác11los à rca/izar;iío de um ideal.
O m1111do católico interessou-se pelo rcsu/1,ado dessa.� investi­
gações, principalmente por se tratar de fatos da experiência cot,i­
dia11a. Todos os complexos e múltiplos fenómenos, a, que se dá a
dcsig11açã.o - em parte imprecisa e cm parte incient.ífica ou
illadequada - de "fenômenos de obsessão", como: lt psica.stenia,
os esctiípulos, a psiconeurose, etc., possuem, muitas vêzes, esta
característica especial: a de que seu conteúdo 11rincipal é farmado
vor um pensamento ou um ponto de vista religioso, ou por uma
atividade prática e religiosa. Isto é compreensível, 11ois que o
conteúdo dos pensamentos obsessivos é, habitualmente, formado
pelos momentos a que está ligado um interêsse pa1·ticular. É po1·
isso, precisamente, que a religião empresta à neurose um caráter
específico, já que, numa multidão católica, o ponto de vista reli­
gioso predomina sôbre todos os outros interêsses. Daí a importân­
cia dessas investigações para os católicos, principalmente para
aquêles a quem está confiado o cuidado das almas.
Mas há ainda itm outro aspecto do p1·oblema que deve desver­
tar, no mais alto grau, nosso interêsse. Ninguém dá tão grande
importância à questão da educação, como o católico. É natural.
Para os católicos a educação só pode ser sobrenatural e, portanto,
um assunto da igreja. Esta educa, mesmo quando transfere aos
pais (ou, por intermédio dêles, ao Estado) aquela sua tare/a.
É por isso que o problema da educação constitui o núcleo central
da vida católica. Todos conhecem, porém, os obstácitlos que nós,
educadores, encont?-amos, a cada passo, em nossa ,iornada de esfor­
ços educativos. Se um homem que1· realizar um ideal, deve desen­
volver em si mesmo itma personalidade e formá-la segundo êsse
ideal; se essa formação deve ser sobrenatural, os obstáculos do
mundo em que vivemos e aquêles - ainda mais difíceis de avaliar
- da vida de nossas paixões, de nossos sentimentos e de nossas
inclinações, se oporão à realização dêsse ideal. O mimdo cxterio1·
age no sentido de uma dispersão e uma divisão da unidade inte•
rior, pela influência das coisas apenas temporais e de finalidade
limitada, que encobrem ao olhar os ideais eternos e mais elevados.
Paixões, inclinações, sentimentos são também• obstáculos àquilo
que é, ao mesmo tempo, a expressão e o mais belo fruto d13 nosso
caráter - a Vontade. É um domínio extremamente obscuro, aquêle
em que empregamos - sem distinção precisa e, muitas vêzes, de

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10 RUDOLF ALLERS

modo errado - palavras tais como: paixão, instinto, tendência,


emoção, sentimento, etc- Aquéle que deve resolver questões educa­
tivas e conhece tôda a dificuldade do problema da educação sabe
que êste é um domínio de investigação difícil e experiência dolo­
rosa. Por isso, devemos saudar, com alegria, a tentativa de quem
empreende lançar um olhar sôbre êsse domínio e esclarecer nossas
idéias sôb1·e tal assunto.
Há ainda um terceiro motivo para que nos interessemos, como
católicos, pela caracterologia. Se se comparam os modernos ma­
nuais de Teologia moral com os dos antigos mestres, observa-se
uma tendência, qite não deixa de ser perigosa. É que se encontra,
hoje em dia, uma inclinação para esquematizar, para abstrair,
para subsumir as ações humanas sob a etiqueta de uma categoria
qualquer É uma conseqüência comprensível da destinação prática
de tais manuais de Teologia moral, já que devem servir ao. ensino
dos estudantes de teologia e à sua preparação para o difícil encar­
go de pastores de almas. Mas os velhos mestres, coni a sua velha
casuística - contra a qiwl parece fácil, seni dúvida, levantar tôda
a sorte de objeções injustas - tinham-se, por certo, mostrado
sensatos, ao verificar que há, 11a r1eneralização, um grande peri­
go, tanto na vida como na direcão das almas e que, p01· isso, seria
talvez mafa conveniente indiviclimlizar . Constantemente, nos acha­
mos diante da (}Uestão da resJ)onsabilidade moral, que só pode
se1· respondida com apoio num estado cuidadoso (lo indivíduo e de
seu comportamento.
Bastam estas considerações, para se avaliar a importância que
deve ter, para os cat6licos, um livro como êste. Nele, so-nws
levados por mão segura através dê.�se domínio com71licado e eriça­
do de dificuldade.� e podemos arl(Juirir iona idéia ele como o caráte1·
.se farma e de como é a expressão, tanl:o do.s fntôres inatos, como
das r11açr,es no mundo exterior em (JUC vi'1Je o homem. Os senti­
mentos católicos do autor ve1'miliram-lhe 8e7mra,· o que é utilizá-
1;el, e !lceitável, na imensa mullid'1o de ensinamentos incontestá­
vefa da psicanálise, dn psicolnr1frl individual e da caracterologia.
Não estamos, pois, apenas diante ele wn livro, mas de um siste­
ma, de uma doutrinfL. E posso afirmar, sem receio, que ela é de
grande valor para nossa instrução.
Fica, assim, explicado porque senti a obrir1açrío de re.�ponder,
e'.�crevendo um prefâci<i, ao pedido do Dr. ALLERS de me dedicar
o livro.
A Divin(J, Providiincia (Jitis, em .�ua .�a/Jerloria, que en empre­
go,11.�e minha ulividarle científico, no domínio rlfL 11sicolor1ia. Pm·
rmtro ladf/, rri:inhn vidn ,Ze :;ncerclolf! 7Jr;rmife-mr: ajuizar, do ponto
dr, 1;fatn <la exrJcriência com as nlmas, a importância dn valiosa
crmtrilm:ir;ão 11iw re7iresrm.w o li?;ro de ALLERS, 71arn o conhcci­
'menfo do caráter. Acrcd·ito-mc, portanto, duvlamente ju.�tificado,

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11
pSICOLOGIA DO CAR.ATEit

·ecomendar êste lii:ro aos educadores católicos e, acima de tudo


iio
0 mados a essa tarefa vor uma miss sourcnat ,ui/
�0; que são chaes.
isto é: os padr
[)30.
Milão, agõsto de 1
Fr. AGOSTINO GE�iELLl, 0. F. �l.

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INTRODUÇÃO

Admite-se, em geral, que é importante, por dois motivos,


fazer elo caráter do homem, sua essência e suas condições de
desenvolvimento, o objeto de urna investigação penetrante. P.:i­
meiro, porque todos estfw convencidos de que o fim da educação
não é apenas a transmissão ele conhecimentos teóricos e práticos.
nem mesmo a ele modos de vicia, costumes e tradições, mas deve
compreender também a formação do caráter. M_as, se êsse proble­
ma da formação do caráter deve ser resolvido de modo satisfató­
rio, se deve ser exigido, como preliminar essencial do que se dedi-­
ca a tal trabalho, o conhecimento dos métodos, é preciso que se
tornem claras a essência do caráter, as influências que o formam
e a bases, a partir das quais se desenvolve. Em segundo lugar, as
necessidades da vida prática cotidiana exigem que se conheça o
caráter de um homem. Em muitos - e mesmo na maioria - dos
casos em que se confia a um homem um encargo qualquer, sua
aptidão profissional, em sentido estrito, não é determinada apenas
por sua preparação ou cultura e pela posse de qualidades que o
habilitam ao exercício desta ou doutra atividade mas também, de
modo essencial, pelo seu caráter. Isso é tão claro, que não preci­
samos dar qualquer exemplo. O conhecimento do caráter ( ou,
como se costuma dizer: o conhecimento do homem) é, portanto.
uma exigência de ordem científica e social. Aqui também, pressu­
põe-se· um fundamento, que torne ensinável o "conhecimento do
bomem", uma técnica que permita desenvolvê-lo. O interêsse num
conhecimento aprofundado de tudo o que se refere ao caráter.
ultrapassa, porém, aquêles dois motivos, por mais importantes que
sejam. A formação do caráter está intimamente ligada à criacão
da vida moral, e, em sentido amplo, da vida religiosa. É impossí­
vel a direção das almas, sem conhecimento do caráter do dirigido,
e, sem êle, a conversação é também inimaginável. Finalmente:
todo homem zeloso deseja poder justificar suas ações, primeiro
para consigo' mesmo e, depois, para com Deus. Ora, também para
isso, uma ciência e uma arte do caráter são, se não indispensáveis,
pelo menos de considerável proveito.
Tais motivos se acham de tal modo entrelaçados, que nunca
foi possível separá-los completamente. É estranho, porém, que as

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14 RUDOLF ALLERS

primeii-as tentativas de uma exposição mais ou menos sistemática


dessas questões tenha sido sempre feita de modo disperso. Na
maioria das vêzes, as questões de formação do caráter foram
tratadas nos escritos pedagógicos ou ascéticos; as de natureza e
fundamentos do caráter, quando consideradas, foram estudadas
em apêndices às psicologias. Sem falar nos "Caracteres" do velho
'TEOFRASTO e nos de seu sucessor, LA ERUYÉRE, nem nos livrinhos
de SMILES, apenas um discípulo de SCHOPENHAUER, BAHNSEN,
editou, por volta de 1870, uma exposição completa da Caractero­
logia. Só há uns vinte anos atrás, é que o interêsse por êstes
problemas se tornou mais vivo. É, sem dúvida, um mérito de
L. KLAGES, o de se ter voltado novamente, com afinco, para o
estudo da Carncterologia. A crescente atividade nesses assuntos
não pode, contudo, por certo, ser atribuída a um efeito dos pensa­
mentos de KLAGES, mas constitui um aspecto parcial dessa tendên­
cia espiritual que caracteriza nossa época. Não posso explicar
aqui, em pormenor, tôdas essas coisas. Devo, portanto, limitar-me
a indicar, que o interêsse reavivado em relação à Caracterologia
corre paralelamente às novas orientacões em Biologia, Psicologia
e Medicina, e, mais ainda, às que êomeçam a predominar em
todos os domínios do espírito e até na mais remota problemática
filosófica. Uma prova do interêsse, tomado pelo mundo científico
em relação às questões que aqui nos interessam, são as obras de
FOERSTER, KERSCHENSTEINER, HOFFMANN, HAEBERLIN, UTITZ,
F. KRAUS, KUNKEL, e os inúmeros trabalhos especiais das diver­
sas escolas psicológicas e dos círculos psicanaliticos e de psicolo­
gia individual, como o Anuário de Caracterologia - de que já
apareceram cinco volumes - e muitas outras obras . 1
· Não está na intenção destas poucas linhas dar uma vista de
conjunto histórica, ou crítica, sôbre a literatura da caracterologia.
Assinale-se apenas que, hoje em dia, volta-se a falar insistente­
mente nesse assunto e que a ciência e a prática se tornaram
vivamente conscientes da importância elas questões ligadas a êle.
Não poderemos também tratar dos métodos de investigação carac­
terológica e de seu material de fatos, nem tampouco de todos os
problemas ligados à exposição dos conhecimentos caracterológicos.

1, CitJremos aqui algumas obras que expõem, na maioria dos casos, apen.ls
os -ensinamentos dos ;:.utore:s mais notáveis., dando uma simples vista de conjunto
das restantes idéias. Sé,mente HOFFMANN (Der Aufbau des Charakreres. Berlim.
19 26) d.í uma boa .síntcs� das carJcterologias mais importantes. Outras obr�s 5,âo :
P. 1 IAEBERLIN,
- Der Chara/irer (Basiléia, 19 2-1) ; L. KLAGES, Grundlagen der
Charahlerkunde (Leip1eig, 1926) • Persõnlichkeit (Das \Vc!tbild- vol: II, Potsdam,
1928): A. UTITZ, Charahrerologie (Charlottenburg. 1925). Do ponto de vista
da psíonálisc o melhor livro é o de H. HARTMA.'..N, Die Grund/ag en der Psy•
choanr.lyse (Münd,cn 1926) e, sôbrc psicologia individual. o de E. WEXllERG.
lndividualpsychologie (Leipzig. 1928) ou, numa ,•ersão mais pessoal, o de F. KüN­
KEJ.., Charakterhunde (Leipzig, 1929),

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 15
Tudo isso pertence mais à caractel·ologia teórica, ou, mesmo, a
uma teoria da caracterologia do que a explicações essencialmente
orientadas para a prática e a ela destinadas. Sei;n dúvida, não
podem ser deixadas de lado, inteiramente, as considerações teóri­
cas. Um certo esclarecimento dos conceitos com que elevemos
trabalhar, uma visão geral dos objetos das reflexões que se impõem
não podem ser dispensados, mesmo por um ensino que se dedica
à prática, principalmente quando tal ensino se refere ao caráter.
Por conseguinte, devemos tentar, primeiramente, uma defi­
nição adequada do têrmo "caráter", ou, pelo menos, uma represen­
tação de sua essência. Só quando obtivermos tal representação,
poderemos investigar razoàvelmente as condições que contribuem
para a formação do caráter - quer em sua expressão definitiva,
quer em sua evolução.

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J. A NATUREZA DO CARÁTER E OS M1:.TODOS
DA CARACTEROLOGIA

1. Significação da palavra "caráter"

E' sempre útil começar pela significação e o emprego das pala­


vras da linguagem comum. Por mais "incientíficos" que sejam
os conceitos da linguagem usual, não é, por certo, sem algum
motivo profundo que uma palavra, uma modalidade da expressão
usualmente utilizada, adquire, ou adquiriu, um determinado sen­
tido. Embora isso não seja sempre verdade, acontece que, muitas
vêzes, a história de uma palavra é também a história de um
conceito.
A palavra "caráter" vem do grego. Ela se acha ligada a um
substantivo zá!_m;, que significa: "a estaca" e a um verbo,
za(Ja:i:;€tv, que significa cortar, chanfrar, etc. Xo.gmi,ÍJQ pare­
ce ter designado, originàriamente, a chanfradura de uma estaca
divisória. Aquêle sinal geral, conhecido no interior de uma comu­
n_idade, com que se assinalavam os limites entre as lavouras de
Kleon e Timon, tornou-se finalmente o sinal com que se separou
das terras adjacentes o domínio da comunidade. A palavra desig­
na, portanto, um sinal universalmente conhecido. Ainda que não
se conheçam os estádios intermediários, é, contudo, visível que
se seguiu uma extensão do significado, no sentido de: sinal conhe­
cido de alguma coisa. Deve ser observado que, de início, a coisa
assinalada não era algo geral, mas uma coisa particular: a lavou­
ra dêste Kleon, o domínio desta -irÓ/,tç. Depois encontramos a
palavra designando a máscara do ator, que, como se sabe, era,
no teatro grego, imóvel e destinada a determinado papel. Dize­
mos, ainda hoje: máscara rígida, trágica, etc. As figuras do
teatro grego eram sem dúvida mais ou menos típicas. E não foi
só no teatro grego: na "comédia d'arte" italiana, de que ainda
hoje se conservam resíduos, as figuras e seu destino desenvol­
vem-se num quadro para sempre fixo. E, mesmo numa época em
que a apresentação individualizante começou a tomar conta do
palco, a velha tradição não foi absolutamente afastada. Consti-

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RUDOLl•' ALL'EltS

tuem uma pron1 nisso o nome (!e 1 farpag-on ( i:íto �: o a\'an�nl11)


<lado ao ''..\vare" de �\-[ouf:RE e o discurso por !lamld m).-i aton.:;;,
Ainda mesmo em tempo mais recen_te, perm;rnccem taL.; ti-adi1;,1t•.�.
como, por exemplo, qnallílo lBsE:-; mtroduz as figuras a\.'0 ...::;úri:,;,;
<lo "senhor gordo" e do "senhot· mag-ro".
Quando, porém, pela época de SIL\KES!'EARE l' sob a forte
influência déste, as figuras típkas do llrama a1lquiriL·a111 traços
cada yez mais in<li,·iduais, a significa�:lo da palavra '\·arúll!r"
sofreu uma transformação no mesmo :;entitlo. Se os "caracteres"
de TE0FíUST0 e LA B!n;Yf:rlE tinham .:-ido tlescriçõl•s de tipos
(corno, ainda hoje, se diz, em c:e;tilo oficial: "Ser-lhe-ão outorga­
dos o título e o carúter de conselheiro de Estado" ... ) o car:iter
tornava-se, ele agora em diante, algo que perh•rn.:ia esricdfica­
mente a um único homem e que era ''caraderistico" dele.
Uma idGntica mudança de :-:íg11ifiL·:H::io :-;ofi'e11 a pala\'l':l "pes­
soa". Ta1111Jém ela de.-;i;.rnava ele início a m:·Lscara do ator, atravé:,;
da qual :,;oa\"a a \·oz (11,•r.-ionan·) 1 e, mai:-1 tarde, al111i!le c1ue se
fazia ouvir atra\'Ús da m:·1:,;cara.
,Jú que e;.;tamus falando t!m pala\Tas, :1.crescenlcmos uma,
com a llll:tl :-e \'cri1ico11 um g-r:1\'e :dn1su, de que não c:,;caparam,
Rern dúvida, os mai"rc:,; l1ll':,trd rll' nos,;u idioma. "Pcr:,;onaliclade"
(pc1·so1rn/ifas) ntw ptJdt·, \1L'la própria forma da palavra, �igni�
ficar outra·coisa, se11:iu: u �'-'r pe:,;:;11al ele 11m ente e a sua proprie­
dade, se a:,sim nos podemu.-; ... :�primir, de "ser uma pessoa" . ..\:;sim
como ''honorabilidade" exprime a qualidade de ''ser honrado",
"personalidade" exprime a qualidade de '' ..;er pessoa". É absurdo,
poi;;, igualar "personalidade" e ·'pessoa'' { ou carúter) e, mai:.
ainda, querer considerar a per:,onalidadc como parte da pe.s:,;oa
total, como por Yêzes acontece.
�a liuguagem modenw, empregamos "c,1níter" para desig�
nar algo de unu, únicu, simples e incontestá\'cl, que pertence espe­
ciiicamente a uma pessoa. Também o qualificativo "caracterís­
tko" designa uma qualidade, ligada especificamente a uma figura
qu:dt1uer. Dizer que a forma de 11m monte é característica, signi�
fica 11uc ta I forma pertence a êslc monte e n nenhum outro.
E quando, :qiarentemente, se atribui uma propriedade caracterís�
tica a uma multiplicidade, is;-;o se dú apenas porque tal multiplici­
dade é considerada como unidade. Por isso, sentimos que é tão
correto. 1.:-ramaticalmente, dizer que uma propriedade qualquer é
característica do ujicia/ ( ou da profissão <lo oficial), como dizer:
característica dus of ida is. Assim, há qualidades características
rir! muntanha, da g1·amle cidade, da revolução, etc.

J - Ot°'!.r-r�:cr.io� que ""prr5on:nc'" �ignifica: .. so.1r atr.1-..·•!s.. - qu�r J� r:�o:io


·.:cr•l. quer "JtrJ•,•;� de u,n c�pJço" (cc,mo no CJSO d o �Exult�t" ond� i? diz:
;u! ..: ;1,r:�u.:r �:..lururi.s,).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 19
A linguagem usual nos fo1·nece ainda outro conhecimento.
Podemos dizer: "Êste homem tem um caráter (tal ou qual)", como
podemos dizer: "f;ste homem é ( ou não é) um caráter". A êsse
duplo modo de exprimir-se, corresponde um sentido duplo. Dizl!r
que alguém é um "caráter" é um julgamento de valor, no qual
se empresta à palavra "caráter" sentido especial. Dizet· que
"alguém tem um caráter" é inteligível por si mesmo, mas a expr-=s­
são "homens sem caráter" pertence à categoria dos julgamentos
Yalorati\'os. Vê-se, portanto, que possui!· um caráter de qualidade
qualquer é algo que pertence necessàriamente as qualidades essen­
ciais de um homem. Verifica-se, contudo, também que, aparente­
mente,- o homem e seu caráter não são urna e mesma coisa. Não
se pode dizer: "Um homem tem pessoa"; êle é pessoa e tem. tal
ou qual personalidade, no sentido que atrás indicamos. Na pala­
vra "pessoa", o homem é evidentemente compreendido em todo
seu ser. O "caráter" ao contrário (se é que devemos confiar nas
lições da linguagem) deve ser alguma coisa do homem, ou da
pessoa. Que coisa é essa, set·á investigado depois, já que o "cará­
ter" pode ser uma propriedade da pessoa, ou uma parte ( ou, pelo
menos, um aspecto) dela ou, então, uma determinada maneira,
segundo a qual a pessoa é vista, percebida e julgada.

2. A questão da natiu·eza do caráter

Defrontaremos agora uma questão que é decisiva e funda­


mental para tôdas as nossas ulteriores reflexões - a da natureza
do caráter. Seria inútil querer, contràriamente ao nosso propósito,
consultar as opiniões diversas dos autores. Elas são tão contradi­
tórias entre si, que teríamos sido colocados novamente diante da
decisão de escolher e obrigados a justificá-Ia. Parece melhor,
portanto, fazer uma tentativa independente, a fim de determinar
a natureza do caráter. Eis o caminho que parece ser o mais viável:
Quando se quer conhecer o caráter de um homem, olha-se,
em primeiro lugar, para o que êle faz. Na verdade, todos pressu­
_pomos, mais ou menos, que as declarações de um homem a respei­
to de suas concepções, intenções e sentimentos devem concordar
também com as suas ações. Entretanto, a experiência nos mostra
que muitas pessoas, conscientemente (ou como veremos, muitas
vêzes, de modo aparentemente inconsciente), não se comportam de
confol'midade com os princípios que apresentam em suas palavras.
Que "as belas palavras" possam encobrir feias intenções, é um
fato constantemente verificado. De fato, porém, as más intenções
sempre aparecem alguma vez, em qualquer tempo ou ocasião.
Por isso, sempre se soube e se ensinou, que a conduta do homem
esclarece plenamente seus sentimentos, Sl' · verdadeira opinião e,

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20 RUDOLF ALLERS

também, aquilo que se chama geralmente o seu '-'caráter". Não


se deve, porém, tomar em sentido estrito êste conceito de conduta
ou ação. Não só devem ser examinados os fatos que recebem,
especificamente, aquelas denominações, como também todos os
movimentos, gestos, expressões, fisionomias, atitudes corporais ou
traços do rosto 1, além da maneira pela qual a pessoa se porta
em diversas situações. Numa palavra: tôdas as particularidades
compreendidas no conceito amplo de "comportamento" fornecem
urna base para julgar o caráter.
Todo comportamento, porém, é, por sua própria natureza,
ação e realização. Na realidade, há modos involuntários de "com­
portar-se": o susto diante de uma viva impressão repentina, o
gesto involuntário que trai uma comoção sentimental, a vermelhi­
dão da cólera ou a palidez do medo são exemplos disso. Mas tais
fênômenos podem também, num certo sentido, ser colocados sob
o conceito da ação. Iríamos muito longe, se nos quiséssemos esten­
der, aqui, sôbre o assunto. 2 De momento, nos contentaremos com
ter estabelecido, que as ações são uma fonte real de conhecimento,
permitindo julgar o caráter e, em segundo lugar, com admitir
(como de fato se faz) que todo comportamento humano deve ser
considerado como se fôsse constituído de ações verdadeiras.
Há, na verdade, motivos bastante fortes, que nos obrigam a
c;·er que, em cada instante do comportamento e da ação, participa
o homem inteiro e que, portanto, a rigor, uma única ação, uma
única observação ele um homem deveriam bastar para que o
conhecêssemos. A possibilidade desta afirmação não pode ser aqui
discutida. Sem dúvida, há, por um lado, certos modos de proce­
der que revelam imediatamente a natureza de uma pessoa e, por
outro, observadores bem dotados,- ou experientes, que, após uma
curta observação, são capazes rle formar uma idéia completa das
pessoas. "Após ouvir falar um homem durante um quarto de hora
- disse, uma vez, GOETHE a EcKERMANN - posso deixá-lo falar
durante duas horas". Com isso, êle quei-ia dizer, evidentemente,
que, em tão curto lapso de tempo, a natureza de seu interlocutor
se lhe tornara tão conhecida, que podia prever, com certeza, sua
atitude em tôdas as situações possíveis e diante de tôdas as
questões possíveis. Porque, segundo GOETHE, há no caráter, "uma
certa coerência", ele modo que, a determinados traços primários,
·;;eguem-se, nec.;essàriamente, determinados traços secundários. Se
portanto somos obrigados, em geral, para compreender um homem,

· l. P;ira um conhecimento do caráter baseado -em tais motivos, apareceram


recentemente observações. ínteress>ntcs. no livrinho de J. VANCE, A MirNr of
Perwnalitv (London. 1929),
2. Ver as minhas explic;ições sôbre .l natureza C' método da inrcrpretação,
em O. SCHWARZ, Avrhogenese und Psychotherapie kõrpcrlich,r Symprome (Viena,
19251

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 21
ou seu .caráter, a observá-lo durante longo tempo - ou, mesmo,
para que nosso conhecimento seja realmente suficiente, a vida
inteira - isso se dá, provàvelmente, por causa de nossa inabili­
dade, ou de nossa incapaciclade de apreender, por único ato, o cará­
ter, ou o "característico".
Como estamos convencidos de antemão, e de um modo geral,
que é necessária, para o conhecimento do caráter, a observação de
múltiplas ações e modos de proceder individuais de uma pessoa,
segue-se, evidentemente, que o caráter deve ser alguma coisa que
está, por assim dizer, contido em cada ação isolada e é, de qual­
quer modo, alguma coisa de comum, que vocle ser atribuída a tôdas
as ações em ziarticular.
Antes de tentar a determinação mais precisa do que seja est!l
coisa comum a tôdas as ações, é oportuno fazer uma observação.
Há, por certo, traços de caráter (no sentido usual desta expres­
são) que não necessitam, para ser conhecidos, uma longa obser­
vação, pois que, por assim dizer, saltam aos olhos de todos. Há
características, como a severidade ou a doçura, a firmeza ou a
fraqueza, que se podem, muitas vêzes, "ler na fisionomia". Sem
dúvida podemos, não raro, enganar-nos, pois que os traços da
fisionomia podem, como as ações individuais, ter significações
múltiplas. i.\foitos atos podem aparecer como efusão de bondade
e sei· um produto de cálculo: muitos podem ter a forma de dure­
za, e mesmo da crueldade, apesar de ditados pelo amor. Uma
atitude de indiferença e renúncia pode servir de máscara para
a susceptibilidade e a fraqueza: "um lobo na pele de um carneiro"
exibirá gestos cheios de bondade. A longa prática, a agudeza da
obserrnção e a atenção aos pormenores aparentemente desprezí­
veis, podem, sem dúvida, preservar suficientemente dêsses erros.
Contudo, êles se repetirão sempre. A questão é, porém, a seguin­
te: Conheceremos realmente o caráter, ao apreender tais traços
de "caráter" por um conhecimento fisionômico, ou em virtude da
inequivocidade aparente de certos modos de agir? Conheceremos
realmente êste caráter individual, esta determinada pessoa? Ou,
pelo contrário, conhecemos apenas que tal indivíduo pertence a
um tipo de caráter e possui, em relação ao caráter, algo que apare-
ce também noutras pessoas, o que nos habilia a declarar que tal
ou qual pertence a determinado grupo? É o que se passa, na reali­
dade. Um caráter individual, pertencente unicamente e especifi­
camente a alguém, mal pode ser encontrado, de ordinário, pelo
caminho da interpretação fisionômica. Por outro lado, uma tal
multiplicidade de "traços" singulares não se deixaria compor em
um conjunto de caráter. �ste não consiste, como se verá depois,
de traços isolados, ou elementos de qualquer espécie, nem se deixa
compor como um mosaico. Ao contrário: o caráter, é uma unidade
e um todo e não pode ser algo corno uma soma. �le não é, para

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22 RUDOLF ALLERS

usar uma expressão da psicologia moderna, 1 construído "somati­


vamente" (und-summenhaft).

8. A mutabilidade do caráter

Se, agora, convencidos de que um conhecimento bastante com­


pleto do caráter deve ter por base um conhecimento de variadas
ações e atitudes, voltamos à questão da natureza do caráter,
cabe-nos a obrigação de indagar qual o motivo que pode ser atri­
buído, em comum, a tôdas as ações e modos de comportamento
de uma pessoa. Nessa tentativa, porém, encontramos imediata­
mente uma g1·ande dificuldade. Até agora admitimos tàcitamente
que o caráter de determinada pessoa se conservava essencialmen­
te o mesmo e único - pelo menos em seus fundamentos - ati·avés
de tôda a vida. Esta suposição parece evidente e, até mesmo,
natural. i\Ias, embora ela seja, muitas vêzes, aceitável, não deve­
mos na realidade aceitá-la simplesmente e sem maior crítica.
A imutabilidade essencial do caráter não ficaria provada, ainda
que nunca tivesse sido observada uma mutação repentina ou paula­
tina do caráter. Pois o que se teria provado, com isso, seria a
· permanência de fato do caráter, mas não se teria contestado, em
essência, a mutabilidade possível elo caráter. Basta, ao contrário,
um único exemplo de fato da mutabilidade do caráter, para contes­
tar definitivamente a hipótese de sua imutabilidade. Esta passa­
ria, então, a ser uma simples regra, exprimindo a maioria das
manifestações do caráter, mas perderia sua importância como
princípio. Ora, a experiência nos oferece mais de wn exemplo de
mutação ele cm·áter. Dentro em pouco, apresentaremos as diver­
sas espécies de mutação. Primeiramente, porém, devemos exami­
nar nossa afirmação anterior, de certo modo ligada a êsses fatos,
de que o caráter só podia ser compreendido através do conheci­
mento elas ações e modos de comportamento isolados, que se veri­
ficaram durante longo tempo e, muitas vêzes, durante uma vida
inteira.
Esta análise de tôda a conduta de um homem, durante sua
Yicfa inteira, pode, pois, em muitos casos, proporcionar-nos o
conhecimento ele que, no decorrer dos anos, o caráter se tornou
outro. Esta afirmação pode significar duas coisas. Pode aconte­
cer, primeiramente, que na realidade haja, num homem, dois,
e talvez, mais caracteres, que são sucessivamente descobertos.
1\Ias também pode acontecer que um único caráter experimente
uma progressiva modificação, de modo que ;1 comparação com
uma fase bem anterior de sua vida dê a impressão de dois caracte-
1. A frase é de \VERTHVIMER, psicólogo da "Geslalt".

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 23
res inteiramente diferentes (uma impressão que só pocle ser atE'­
nuada, de certo modo, pelo exame dos estádios intermediários 1la
transformação) . Preliminarmente, há uma dúvida: Podem os
dois casos mencionados ser considerados intr1nsecamente diferen­
tes? De fato: poder-se-ia bem imaginar que a mutação aparente­
mente brusca do caráter representa, no fundo, um processo idên­
tico ao da evolução paulatina, com a única diferença da rapidez
nn sucessão e duração das fases intermediúrias. Haveria, pois,
entre os dois extremos, tôdas as formas intermediárias imaginá-•
Yeis. De tudo isto se conclui que não podemos afastar a necessi­
dade de contemplar uma vida inteira - se é que isso está na
medida de nossas possibilidades - sempre que queremos conhe­
cer o caráter de uma pessoa. Muitas vêzes, o conhecimento do
caráter "novo", do caráter que apareceu posteriormente por uma
transformação qualquer do primitivo, precede o conhecimento
dês te. É o que se dá, por exemplo, quando o "novo" caráter se
afirma, pelo menos em certo sentido, por uma negação do "antigo".
"Courbc ta tête, fier Sicambre, adore ce que f.u a.s britlé, et
/Jnile ce que tu as adoré". Nestas palavras, dirigidas ao duque
franco pelo bispo que o batizava, temos o primeiro exemplo de
modificação essencial do caráter. Vamos, agora, ocupar-nos dessa
modificação.
Uma das mais impressionantes provas da possibilidade de
uma mudança substancial e radical do caráter é a que nos fornece
o fenômeno da conversão. Nem tôda conversão significa uma
mudança de caráter, embora tôda mudança de sentido seja uma
11Etàv<11a. Há, também, muitas conversões que mais parecem
uma mudança de sentido: onde se acredita perceber, na realida­
de, um caráter completamente novo, são conservados, na nova
vida, traços especiais do antigo. Há duas explicações para isso.
Ou êsses traços são a expressão de peculiaridades profundamente
arraigadas na natureza da pessoa (que, como já vimos, e será
melhor esclarecido depois, não deve ser identificada com o cará­
ter) a ponto de se revelar em cada modo de vida e cada configu­
ração de caráter, ou êles se adaptam, tanto ao novo como ao antigo
caráter, não podendo, portanto, ser abandonados.
Daremos dois exemplos. Quando, tocado pela graça de Deus,
o filho de Bernadone, rico negociante de Assis, foi levado a mudar
sua Yida, um homem inteiramente novo substituiu-se, sob muitos
aspectos, ao jovem patrício. Antes disso, já era êle um homem
bondoso. Naturalmente continuou a sê-lo, mas de modó mais
amplo e profundo do que outros teriam julgado possível. Mas
11ão é isso o que mais surpreende nesta transformação do caráter.
Mesmo depois de se ter tornado o "Poverello di Dia", mesmo na
solidão do Monte Verna, mesmo como um mendigo das ruas da,
Itália, mesmo como um penitente, que, como ninguém, reconhe-

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24 RUDOLF ALLERS

ceu a insuficiência da natureza humana - quer diante das exigên­


cias que se lhe impõem, quer diante da Graça que lhe é outorgada
- mesmo assim, dizíamos, êle continuou a ser o trovador, o menes­
trel de Deus ("U giuUare di Dio"), aquêle que soube, um dia, de
maneira inaudita, compor em canções sua vida de penitente e
servo de Deus, aquêle que soube cantar a grandeza de Deus e, o
que é mais maravilhoso, o esplendor de Sua criação - desde nosso
irmão, o sol, até nossa irmã, "la morte corporale". O canto, as
trovas e a poesia estavam tão arraigados na natureza de São
Francisco, que êle não poderia exprimir o que lhe era caro ao
coração e o que havia de importante em sua vida, a não ser
cantando suas trovas.
Apresentemos, agora, um outro homem, que passou de mun­
dano a santo e, como São Francisco, não procurou realizar, no
claustro, sua vocação, mas do mesmo modo que aquêle manteve
contacto com o mundo; vendo, neste, o seu campo de ação, -
Santo Inácio de Loiola. Também êste sofreu uma transformação
revolucionária em sua vida, sua conduta e seu modo de sentir.
l\Ias também conservou, na nova vida, algo de notável que perten­
cera à antiga e que era talvez "característico" dela. Santo Inácio
fôra chefe militar, cavaleiro e nobre espanhol. A ordem que
fundou se chama Companhia de Jesus e se tem constantemente
observado - para bem, ou para mal - a organização, por assim
dizer, militar da ordem. Quando tomamos o livro de exercícios
do santo, podemos sentir qualquer coisa dêsse espírito de soldado
e, talvez também, de nobre espanhol do tempo. Todos recordamos,
por certo, a """lfeditatio de duobus vexillis". Aqui, porém, se tem
uma sensação inteiramente diversa da que nos oferece o caso do
Poverello di Dio: a impressão de que Santo Inácio utilizou-se <las
condições e experiências militares, porque lhe poderiam servir ao
fim que tínha em vista e à tarefa que se havia propostíJ. Tudo
isso era estranho à sua natureza íntima, não estava fixado no
núcleo profundo de seu ser e poderia ter sido suprimido. É as:;im
que há, na vida de Santo Inácio, múltiplas manifestações, atiturJe3
e episódios, em que nada pode ser observado dêsse militarh,mo.
ltles não contradizem, de modo algum, a conduta anterior do sant0,
mas esta não pode ser considerada como causando-os "necessària­
mente" - para usar a expressão já citada de GoETHE.
Na vida de São Francisco de Assis, ao contrário, não existe
um único episódio, uma única lenda, em que não se sinta o cantor
e o poeta. Illesmo deixando de lado seus cânticos, quem nãrJ veria,
nas historietas de Fioretti, que a alma do homem que falava, c1,m
o mesmo amor, ao irmão lobo, em Arobbio, e às irmãH andorính:i.:i,
na praça pública, em uma alma cheia de ritmo, palavras wmora:J
s cânticos melodiosos?

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D1q1talozadocomCa1nScanncr
I' S I C O 1, O G J A I> O C A lt Á T E It 25
O fato, visível 1te8HC8 dois cx(:lllJ>l<m, ela tram-1po11içiio para a
nova vida, ele ccrtoR t1'n','Oli da a11ti1�a. cow1til.ui um problema
cspcci:11. Imporia olnwr\'ar nqui, 11ri11dpalmcnle, a completa
invc1·::;flo e t.ran:-iforma�:iw do cm·úl.1•r, oca:-1io11ada 1icla conversão
rcliR"iosa. Nfío é a11cnm1 a "co11v1:rsio", em He11Litlo rn1f:reito, mas
também aqu1•la l'.Ott\'l'rHiio Hcmclhant:c que /lc poclc operar na estru­
tura p1:i!'11lógi1•n, a fim de produzir a moe li ficaçfw <lo caráter.
,1:'1 foi observado que oi; homens também podem converter-se ao
m;d, se ni,;sim poclcmm-1 nos exprimir.
Na estrutura psicoló1.dca da conversiio, a modificação da vida
e <lo comportamento humano é extremamente semelhante à que
pode i,;er realizada cm conseqüência de um tratamento psicotc­
rúpico eficaz. A semelhança é tão grande, que KLEMPF pôde afir­
mar: "Thc pri11ciplc of 7>t,ychothcra1m is conversion" . 1 Também
aqui, vemos, em certas circunstâncias, uma transformação radical.
Vemos um homem (por vêzes em tempo extremamente curto, ainda
que tal caso seja raro) lançar fora o leme de sua vida e tomar
uma direçüo inteiramente nova. De qualquer maneira, há, tam­
bém aqui, uma mutação do caráter que contradiz absolutamente
a hipótese da imutabilidade, geralmente aceita. A crença espa­
lhada - e, quase se pode dizer, universal - na imutabilidade do
caráter, ou, pelo menos, admitidas as variações, em sua continui­
dade sucessiva através de uma evolução, traz como conseqüência
que a maioria dos homens veja com certa desconfiança as mudan­
ças bruscas, como no caso da conversão. Não é apenas porque
não confiem nessa transformação do seu próximo por motivos
racionais, julgando-a um embuste, ou, na melhor hipótese, uma
auto-ilusão - uma tentativa de transformação que não é séria
nem duradoura. Algo neles, embora sem atingir a clareza de
uma formulação intelectual, opõe-se à admissão de que o caráter
de urna pessoa possa modificar-se de modo tão amplo e tão repen­
tino. Será porque, com tal admissão, pareça abalada a segurança
de suas próprias vidas e porque tenham que admitir também que,
de seus próprios caracteres, não se pode afirmar com plena certeza
a continui<lade e a imutabilidade? Não queremos, no momento,
examinar mais amplamente esta questão. Um pormenor merece,
contudo, ser notado, recomendando-se a uma meditação mais pro­
funda. É o fato de que o homem acredita mais depressa numa
transformação para a pior, do que numa conversão no sentido
estrito da palavra. Todavia, o fato de aparecerem, fora da vida
religiosa, acontecimentos classificáveis no tipo da conversão, ou
pelo menos aproximados dêle, está fora de qualquer dúvida e pode

1. E, J. KEMPF - The autonomic functions and the Personality (Ncw.


York, 1921).
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26 RUDOLF ALLERS

ser comprovado por qualquer conhecedor experimentado da alma


humana, especialmente pelo psicoterapeuta.
A êstes dois tipos de transformação do caráter, acrescenta-se
um terceiro grupo de fenômenos, que prova, de modo mais cabal,
que um homem pode, no decorrer de sua vida, exibir muitos
caracteres. l\Ias a fôrça dessa prova é talvez <limin11ída, já que
ela se apoia em observações feitas no domínio das enfermidades.
Não se deve, sem dúvida, menosprezar a importância do patoló­
gico no conhecimento do normal. Mas, por outro lado, não se
deve esquecer que essa importância só pode ser assegurada, quan­
do os conhecimentos obtidos com os enfermos são confirmados nas
pessoas sãs. 1 Os fenômenos da vida humana - quer corporais,
quer espirituais - são de natureza demasiado complexa, para que
se possa fazer uma simples transposição das observações sôbre
os doentes para o homem normal. Inúmeras condições se apresen­
tam, nos aspectos com que a viela se revela a nós, e muita coisa,
que nos parece simples é, na realidade, o resultado de motivos
diferentes, agindo em concordância ou. em oposição. Esta obser­
vação também se aplica a muitas ouh'as afirmações atuais, refe­
rentes ao caráter, sua origem e sua formação. Ela tem uma
importância fundamental. Teremos de recordá-la constantemen­
te, tôda vez que tratarmos do valor, para o nosso tema, das expe­
riéncias da patologia. Devemos também acentuar, mais uma vez,
a necessidade de não ser esquecido que a doença, afinal de contas,
só é reconhecida e julgada em relação à saúde e que esta fornece
o critério daquela, de modo a se poder dizer que o noi-mal repre­
senta também a norma.
Fcita,i c;;tw; reservas, passaremos ao exame dos casos notá­
veis, descritos cm literatura como: personalidade múltipla, divisão
da pen,r,nalidade, "6lait ser:ond", etc. Para falar com justeza, êles
deveriam - como Rerá esclarecido depois - ser designados como
caH<,s rfo multirJl icidadc de caráter. De fato: o emprêgo do têrmo
"p11rH/Jnalidadc/' com tal significação é, como já se observou, ina­
dcq11ado, 8C atcntarmo8 para a clareza dos conceitos e a pureza
da linguau<1m. É impossível, por certo, admitir uma pluralidade
de flí!881Ja:ci, mim únic<J e mesmo indivíduo. Pelo menos, tratan­
do-se rle pc:isr,as rfo essência humana: já que os fenômenos de
ri<,sHe rlr;rnr,níaca ficam fora desta discussão. Observe-se, contudo,
q11c 'l'. K. fJr-:STJ·:JtrtErr:n acredita na pos1,ibilidade de uma ruptura
"rtH!l.idÍ8íea" do eu e na concomitf.mcia real de muitos eus num
únicl, individur,? St:ria conveniente examinar, primeiramente, com

1. f�·.ti: r4{:n�.1rn,:nt,, Í<;Í ;içt'ntuado, com ?,r:tnde aiude-za, por M. SCHELER,


n.<> .·,'.: f,pr,r :, 1 r;1n•,r,,,�.i�;ir), para a p·i icolozía do norrn:il. dos dados obtidos com
o·. :irir,rrn,ii·: ( 'I irlc- V/1-r.i-n und Fr,rmen f]er Cqmputhie, Bonn, l 923).
í.. l,rJ·, ,,,,,/,lm, d1•r l:inJ,,it r.md der Sµu/1,mg de, lch (Stuttgart. 1928).

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PSICOLOGIA DO CAR.<\TER 27

cuidado, até que ponto êsses eus podem ser chamados pessoas, além
da necessidade de uma justificação geral dessa suposição.
'
Sem querer repetir, aqui, as interessantes observações sôbre
a ruptura e multiplicidade elo eu, diremos apenas que, por vêzes,
permanecem diferenças bem evidentes de caráter e que pode apa­
recer, num estado ulterior, um caráter oposto ao primiti,·o. Não
se pode dizer, com segurança, o motivo por que aparecem tão
caprichosas formações mórbidas. Elas pertencem, sem dth·ida, ao
grupo das perturbações psicógenas que não são determinadas por
alterações orgânicas do sistema nervoso. Tocla,·ia, é muito difícil
penetrar, pormenorizadamente, a natureza de sua origem. 1
Tais observnções ensinam que um e mesmo }1omem pode, não
só passai· de urna a outra constituição ele caráter ( como no caso
da conversão e processos assemelhados), como também exibir,
alternativamente, os mais diferentes caracteres.
De todos êsses fatos, resultam as mais significativas conclu­
sões. Primeiramente, fica confirmada, fora de qualquer clúYida,
a mutabiiidade fundamental do caráter. Em segundo lugar, que
não se poderá absolutamente falar, de modo inequívoco, na asso­
ciação, a uma pessoa indi\"idual, de um caráter, essencialmente
constante, variando apenas dentro dos limites estreitos. Assim,
opõe-se à tese elo caráter inato um argumento que eia nfw pode
vencer, ele modo algum, teoricamente. Diante das obse1·yações
sôbre a personalidade "múltipla" - isto é: sôbre a multiplicidade
do caráter, - os partidários ele um carúter inato, portanto imutá­
vel e necessàriamente atribuível a determinada pessoa, só podem
opor uma única objeção: a ele que se trata apenas de fenômenos
mórbidos, cujo valor, para conduta normal, exige uma séria refle­
xão. Devemos examinar a fôrça dessa ohj eção, antes de tirar uma
conclusão sôbre a natureza do carúter e determinar o seu conceito,
em face do que foi exposto até aqui.
Vemos, também, noutras circunstâncias, modificações profun•
das do caráter, a ponto de "mudar completamente" o homem. São
os casos de doença mental orgânica. Denominam-se enfermidades
orgânicas as perturbações mentais em que o exame (microscópico)
anatômico do cérebro, ou a diagnose clínica, fornecem uma prova
da existência de processos perturbatórios no sistema nen·oso cen­
tral. A paralisia p1·ogressiva (;-u]garmente chamada amolecimen­
to cerebral), as perturbações mentais devidas à arteriosclerose do
cérebro, o idiotismo senil, a epilepsia verdadeira com os fenôme­
nos mentais mórbidos que se lhe seguem e, também, as cfü·ersas
psicoses de várias formas, compreendidas na designação de esqui-

1. Uma visão de conjunto das antigas obsernções é dada por T. K. ÔES­


Tl'RREECII, em Dit l'biinomcnolo,;ie drs hb (Leipzig, 1 91 O).

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uunor,i,• ALLEltS

�•wf1·t•nin e d<'111c11fi'a. prc11.·,•0;1: - tnis são os exemplos de cnfermi­


dndt•ti org:inicn:-:. 1
,lá q11t1 ét1b11nos tratando <l1}tisé a:::1stmto, mencionaremos aqui
nm foto qllll {, da mai:. ali.a im11odü11cia para a funtlament:tção
!1•()rk11 d1• 110:-:smi 1'0lll'.1•pçiit•:L grn1mmto que, na mnioria dos casos,
n parnli:-i.a pn1gn•t1si\':t apn1:1c11ta - como mo::;tra o seu nome -
um p1·11gT1•ss11 1•1111st:rnl:11 do pro1'.1•sso m6rbillo, m-1 enfermidades em
qllt' h:i 1·nsos t\•hris inh•rmit.l'nks podem (conforme hú muito
tt-1111H1 s1' obs1•n·ou) 1·1•n!i:r.al' uma parnda 110 progresso da deca­
d11ndn, ou at1' 11111:i n111pla melhora, qm� chega, até mesmo, a um
rl't n1ú•ss11 d11s ft•11l'inw11os 1110rhidos, semelhante ao da cura com­
plda. l l\H· ,·1'z1•:- tais inh�1T11pçüt1s no processo das enfermidades
1' ta is nwllwr:is impnrlantt•s podem aparecer sem uma. causa visi­
Yt•l) . l� rn,ns :w fraha lho de longos anos do psiquiatra vienense
.f111.w� \\'Al1N1•:1: \'ON JAUlmGG, obtivemos, com utilização prudente
dn i11fl'('','.Ú1) �wl:i nmlúria, um meio de renlizar uma cura eficaz em
�T:1111k mi1t1('1'ú de efüms, l'Sl}l\1..·ialmente, como é natural, naqueles
1•m qlk' :\ lhh•m:a se ndrnva nas fases iniciais. Em tais casos de
p:1r:1lisia pn,�Tl'Ssivn, cuja c11rn se fêz espontâneamente ou em
l',111st'l!Ül�ni:i:1 tia mnlarillfrrapi:1, observa-se claramente o fato que
d:i nwt i \'l) a t ('id:1s l'st:is obsl'rvações.
Rt•:1lnwnk: p1llhmws Yt)l', cm tais casos, que o doente se apre­
Sl'tÜ:i, h1g-o lk iníeil,, infriramente mudado em relação à sua época
normal. Nü1, l' só porque sua conduta se tornou inteiramente
outra, a pl111!t1 1k s1•r dito iwlos circunstantes que "ele estú irre-
1.·1111l1L•t·ín•l" t'. "t1ll"llllll-Sl' outro homem". É, mais, ainda, porque
a nll1diíil":11;:'tl1 p1hk ir t:fo \ong·e, que Sü pode, com propdedade,
fal:t \' 1111111:1 d1•1·:1dt•1wi:1. �:w ser:'1 lll'l'Css[\rio clescrever aqui, com
mímil'ias. a l'lH1dula dn ,hwnll'. Uma tkscrição de seu estado é
l'nn111tr:1d:1 l'IH qualqUl'l" obrn lli1l:'dil"a de Psiquiatria. O oue se
dl'\'l' :1ssin:llar <- o .\':\to tk que o dül'nte, na recuperação Ôu na
t·u1·:1, Y11lta a St'I' t'>::ibinwnh� (tiu, pelo menos, pode voltar a ser)
nqnik1 qttt' l'r:I :1nh•s thi :1par,•,•inwnlo da l'nformidnde. Desa1)are­
Ct'm t11dns M siiüomns dt• tlt't':llh'nl'Ía, todos os traços desagradá­
Yt'is tln rn r:ik1· n111tli fk:Hlt) 1wla d1wnça. Se. cnqtÚnto durava o
pn11•1•ss11 múrbidt,, n:-lll ma is St' podia dt•scolwir a pessoa prõpria­
m1•nh• tli!:i, 1•sta n11ln n apat't',·,�r. n intacta. logo após a cura.
l•:st:1 rt'1° 11p1•r:1,:lll ptitk, nos t'llSt'S mais fl'\izt>s, ser tão completa,
qth' 11t'111 111t•sn10 n ,·uhl:idosa a11úlist1 dínfra - empregando todos
llS lk1lic:llh1s pn1l'1'ssos dt• \h'Sqni:-a HPl'rft.•içoados pela psicologia.
t' psiqu,:1h'ia 1•x1wr,111t•nlnis - l'11t1�W�\lt' apontar urna t'rnica dife­
t't•ni,:n. l)('\"\'-St' :1d111itir. iwrt:rnlo, qtw a própria pessoa - êsse
nl1�n.:•m pt,�sni,hir d1' um �·nt·úkr qne s,' mant0m oculto sob suas
\. S..,"-- t,h• l��t..· .,s�nnt,, ,. q,n·:--1�,,·s �, "�k li�.hl.,s, t•:. tun�1 l'Xposiçlo tna.)s n1i--
nu,:in�., ,·n, �,,..!;:i!:t.,�·h.· l .. t�.:f�:/:tt·: � 1 r\,�:i,· l""n, fl ..11:db. d.,r Hi0l. unJ P:uh. 1.ftr
}\·r$\'1�"- \\\·din, \'i,·n.t, 11.>_,t,),

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 29

.::ições e atitudes - não pode ser atacada, 11cm mesmo pela cnfcr­
-midadc cerebral mais destrutfra. Podemos supor, então, que n
enfermidade cerebral impede apenas, ao núcleo propriamente
es;:;endal do homem - a pessoa -, o exprimir-se e desenYolver-se
linemente; mas não pode modificá-lo on destruí-lo em coisa algu­
ma. Entre a paralisia progressi\•a e as oub·as enfermidades orgâ­
nicas do cérebro há, por certo, diferenças em relação à maneira
pela qual se processa a doença. Estas diferenças não são, porém,
fundamentais, se considerarmos a posição relativa dêsses proces­
�os no quadro genérico de tais enfermidades. Podemos concluir,
portanto. com razão, que, para a pessoa vi,·a, tudo se passa,
110s outros processos org:inicos, de maneira essencialmente idênti­
ca à da paralisia progressiva e que apenas a nossa incapacidade
e a insuficiência de nossos métodos e conhecimentos é respons:í­
Yel pelo foto de não podermos tratar n epilepsia, a esquizofrenia
e as outras enfermidades orgânicas do cérebro, com o mesmo
êxito obtido no tratamento da paralisia. Das obgervações acima
expo;:.t::ti', resulta que a profunda modificação do c:i"ráter, nas
enfermidades orgânicas do cérebro, nada tem a Yer com a per;:;ona­
lidade do homem e que esta 11er111a,11ecc inmtá11<'1 e ·idê11fica, mcs-
1no cm tais circ111wtâ11cias. Tiramos também, daí, umn nm·a proya
de que a distinção fundamental entre "pessoa", e "caráter" é intei­
rnmede justificada e absolutamente exigida. Acredito, realmente,
que n�rias obscuridades, em psicopatologia, caracterologia e, mes­
mo, em pedagogia e psicoterapia, podem ser atribuídas no fato de
não ser obsenada esta distinção e ao com;eqüente obscurecimento
dos conceitos .
Nesse ponto, portanto, as experiências rla clínica e a obser­
vaç5.o dos doentes conduzem à mesma conclusão que a análise dos
fenômenos da viela normal. Se isso se vedficn nos processo,; mór­
bidos importantes que produzem tão profundas rnoctificações no
organismo e suas funções, devemos concluir que as observações
<los fenômenos anormais, que não interessam em geral ao orga­
nismo inteiro ( compreendida como forma corpórea e unidncte de
funçõe;:: corpóreas), poderão ser tomadas, com mais forte raião,
e m apoio de nossa afirmação sõbre a mutabilidade intrínseca e
funcfamentos do caráter. Porque aquêles casos not.heis de perso­
nalirlncle (carúter) múltipla ficam perfeitamente determinadm;,
quei- se tomem como base os processos das doenças orgfi.nic:ui,
ou o !-1rocesso ela conversão, ou a modificação do c11ráter obtida
pela J);::icoternpia. A tentativa de rejeitar, corno J1i10-clemonstrati­
va!'>. estas importante!'\ experiências contra a tese do carúter inato,
J)elo ;:imples foto de que foram verificadas em doentes, eleve ser
coni,;idcrnda incficnz.
Aliás, a seqüência de nossa exposição mo:,trar:'í, de modo cnrla
ve�. mais claro, qui"t0 vouco justificada pelos fotos é a nfirmaçiw

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30 RUDOLF ALLERS

da existência de um caráter inato. Bastar-nos-á, porém, po1·


enquanto, ter mostrado que o caráter representa algo de comum,
nas ações e conduta de um. homem, algo que não pode ser consi­
derado inato, inequívoco e imutável em relação a uma pessoa, mas
que, pelo contrário, deve ser julgado essencialmente mutável.
A pessoa - o núcleo propriamente essencial do homem -
permanece, como vimos, sem modificação e é apenas limitado em
suas possibilidades de manifestação e represeniação, mesmo nas
enfermidades cerebrais. Mas, se a pessoa é imutável - o que,
seja dito de passagem, somos obrigados a reconhecer, não só com
apoio em fatos empíricos, mas também em conseqüência de prin­
cípios metafísicos gerais - se a pessoa permanece sempre uma
e mesma, o caráter, ao contrário, mostra-se fudamentalmente
mutável. Po1· conseguinte, o caráter, não só não pode sei· iguala­
do à pessoa como algo que lhe é idêntico, como também não se
pode representar como sendo uma parte da pessoa. O caráter não
é uma parte essencial e real da pessoa, nem mesmo uma proprie­
dade desta.
Sendo assim, o conceito de caráter só pode ser obtido através
de uma análise da conduta, na qual êle é visível e reconhecível.
Querer determiná-lo por meio de idéias mais ou menos especula­
tivas sôbre a natureza do homem, ou sôbre sua posição metafísica
na hierarquia geral do Ser, é uma tarefa provàvelmente absurda
e certamente improdutiva.

4. A farmação da conduta

Em virtude do que foi exposto, é preciso, para obter a noção


de caráter, adquirir uma visão clara sôbre a formação da conduta.
Isto é tão importante para a fundamentação de tôdas as demais
discussões relativas ao assunto, mesmo as que se referem à prática
imediata (por exemplo: a educação e a orientação espiritual),
que, apesar de tais explicações parecerem afastadas do objeto
específico de nossa pesquisa, torna-se inevitável uma certa minu­
ciosidade, tanto mais por tratarmos, aqui, em parte, de coisas
realmente difíceis e que não podem ser facilmente expressas com
a desejada clareza.
Em tôda conduta tem lugar um movimento, ou, pelo menos,
urna tomada de posição do eu na direção do não-eu. Tôda verda­
deira conduta é um penetrai- no conjunto elo universo, no não-cu,
para lhe dar uma forma. Até mesmo o ato mais vulgar - tirar
ou pôr no bôlso uma caixa de fósforos, por exemplo - modifica
a fisionomia <lo universo; êste é alterado, embora passaµ;ciramen­
te, mesmo por um simples gesto ou uma modificação fisionômica.
Quando se examina o foto da recordaçãu e da concatenaçüo elas

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 31

experiências individuais, compreende-se que ó gesto é tnmbém,


talvez, num sentido estrilo, uma modificação do universo. A toma­
da de posição interior, a clecisão, a intenção e a opinião não pare­
cem, evidentemente, modificar o mundo. Contudo, mesmo elas,
quando conscientes, voluntúrias, e interiormente afirmadas, podem
ser incluídas, provàvelmcnte, no conceito de conduta e atitude.
Deve-se leYar em conta, porém: 1) que mesmo êsses fatos inte­
riores não deixam de ter efeitos exteriores, já que si'io estúdios
preliminares da ação, fundamentos da posição tomada diante do
não-eu; 2) que o conceito de não-eu deve ser entendido de modo
mais amplo do que a simples noção do mundo visível de coisas
e homens. O mundo das idéias, verdades e valores é também um
mundo que faz parte do não-eu e que é "modificado" a cada
julgamento, tomada de posição, sentimento, ou orientação da von­
tade. Usamos o têrmo "modificado", não no sentido de que essa
região ideal fôsse passível, em si mesma, de modificações em
geral, mas para expi-imir que as Idéias são, em virtude da atitude
do homem, transportadas para o domínio da realidade espaço­
�temporal.
Tôda cond11ta, no sentido amplo que indicamos, é, portante
uma relaçcw, um estabelecimento de uma ligação entre o eu e o
não-eu, e, como tal, determinada por ambos os membros interli­
gados (os dois correlatos: terminus a q110 e tei-rninus ad quem) .
Considerada simplesmente como relação, 1¼ conduta se apresenta,
por assim dizer, como o inverso da percepção. Nesta, o movi­
mento vai do não-eu, como percebido (por exemplo: as coisas
vistas no mundo exterior, também estão neste caso as essências ou
valores apreendidos), para o eu, como percebedor ( ou, no segun­
do caso, apreendedor). Geralmente, a posição do homem no con­
junto do Ser pode ser determinada, entre outros, do seguinte
modo: um circuito se estabelece ati-avés do homem, partindo do
mundo e voltando para o mundo, ou não-eu. Entanto que perce­
bido ou apreendido de um modo qualquer, o mundo penetra no
eu e êste impulso de movimento - que, evidentemente, só pode
ser entendido de modo alegórico - retorna, sob a forma de com­
portamento, para o mundo. Como, porém, em tôc1a conduta, o
mundo (o não-eu) é, de certo modo, informado e modificado, cada
ação dá motivo a uma nova percepção, de maneira que o circuito
acima mencionado não se poderá nunca interromper, enquanto
durar a vida do homem.
Vimos, anteriormente, a impossibilidade de ser o caráter uma
parte essencial e real da pessoa. Mas, se êle não é isso, só pode
conter em si a natureza de um momento formal. Para determi­
ná-lo, é pois necessário pesquisar a característica formal, comum
a tôdas as ações de um homem. Ora, a forma universal do com­
portamento é ser uma relação. Uma característica formal, comum

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32 RUDOLF ALLERS

a tôdas as ações de um homem, deverá, por conseguinte, ser desco­


berta, antes de tudo, na natureza relacional do comportamento.
Ela aparecerá como urna determinação, que assinala o cunho espe­
clficamente individual da relação: "comportamento dêste homem".
A fim de descobrir êste momento formal, devemos procurar escla­
recer, ainda mais, a estrutura do comportamento.
Quando dizemos, portanto, que tôda conduta se apresenta,
objetivamente, como uma relação entre o eu e o não-eu, a pessoa
e o mundo, o sujeito e o objeto, estamos indicando, apenas, sua
característica formal mais geral. Observado mais atentamente,
o comportamento apresenta um aspecto multiforme, cuja análise
pormenorizada exige algumas ligeiras considerações.
Se cada ação, ou atitude, produz, de modo geral, uma altera-
. ção do mundo e penetra no conjunto do universo, ela se torna,
por· isso mesmo, urna causa primeira, cheia de cor.seqüências e
efeitos. A êsse aspecto da conduta está ligada uma parte da res­
ponsabilidade inerente a cada ação e atitude. A essa parte da
responsabilidade podemos denominar exterior, uma vez que está
ligada à modificação do não-eu promovida pela ação do homem.
A outra parte da responsabilidade, que se pode chamar inte­
rior, está ligada às circunstâncias, que, no comportamento ativo
ao homem, apresentam, ou realizam, em cada modalidade deter­
minada do seu tipo de ação, a posição que êle ocupa no conjunto
de sêres a que pertence. De fato: como figura corpórea e como
organismo, êle faz parte dos sêres naturais, quer animados, quer
inanimados; como pessoa humana, êle pertence ao domínio das
pessoas, à sociedade, que, na realidade, se pode classificar em
círculos mais ou menos largos - família, profissão, Estado, povo,
etc. - embora, em tôdas essas formas continue a ser, sempre,
sociedade; como ser racional, êle toma parte no domínio do espí­
rito ( embora êste deva ser apreciado de um ponto de vista onto­
lógico que não será estudado aqui), o qual não compreende apenas
o espírito simplesmente valorativo e ideal a rea1izar, mas também
o objetivo, já realizado na totalidade da cultura; enfim, como
alma imortal e predeterminada a ressurgir, como membro (atual
ou possível) do "Corpus Christi m,ysticum" e como alvo da Graça
Divina, ela está colocada num ponto qualquer do reino sobrena­
tural. A posição que o homem deve obter, para si, no conjunto
dos sêres, deve pois ser determinada pela forma de sua conduta.
Nela e por ela, se determina a incorporacão do homem a êste 011
àquele reino do Ser. Que o homem tenha á possibilidade de adqui­
rir numa posição determinada, naquele reino do Ser a que perten­
ce necessàriamente de acôrdo com a sua natureza última e que
esteja em situação de negar, ou afirmar, sua subordinação essen­
cial a êste reino - se bem que nunca a possa suprimir, como
objetivo - eis o que torna possível, antes de tudo, o substratwn

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 33
misterioso da liberdade e da responsabilidade. Pode-se denomi­
nar, a êsse aspecto duplo e objetivo da conduta humana: a mani­
festação da pessoa nos domínios do ser que a constituem.
Quando, pois, pela conduta, o homero, em seu aspecto de res­
ponsabilidade (deixaremos de lado, aqui, os casos de irresponsabi­
lidade ou de diminuição de responsabilidade) se inclui num domí­
nio objetivo do Ser, realizando portanto a manifestação de si
mesmo em uma esfera objetiva, há, ao mesmo tempo, uma como
que reflexão dêsse fato objetivo no espelho do subjetivo, já que
o homem toma conhecimento de si mesmo ao realizar uma ação
e, especialmente, ao terminá-la. Porque, se s6 podemos reconhe­
cer, ou entender, o nosso próximo, baseando-nos em suas ações
e atitudes, só podemos, também, conhecer algo de decisivo sôbre
nós mesmos, quando nos basearmos em nossa conduta real. Se
àquele aspecto da conduta, a que denominamos "manifestação da
pessoa no objetivo", se aplica a frase: "V6s a reconhecereis pelos
seus frutos", ao aspecto ora mencionado pode ser aplicado o verso
de SCHILLER: "Trazia um semblante antes do acontecimento e
outro depois de consumado o fato". A êste terceiro aspecto da
conduta se associa a responsabilidade subjetiva, cujos represen­
tantes, na experiência da vida, são: auto-satisfação ou auto­
-reprovação, sentimento do dever cumprido ou sentimento de culpa,
paz da consciência ou dor do remorso.
Se os dois primeiros aspectos da conduta permaneciam num
domínio estritamente objetivo, e se o terceiro significava a obje­
tivação do eu no interior da subjetividade, os dois últimos se
apresentam como puramente subjetivos. Na verdade, o quarto
aspecto - em que conduta aparece como expressão - pode ser
colocado entre a objetividade e a subjetividade, já que a expres­
·são se dirige e se estende para o exterior, para o não-eu. Pois
todo comportamento contém, ao lado de seu conteúdo material,
também urna expressão, e se caracteriza por ser uma emanação
de uma pessoa única e originar-se de suas condições psíquicas e
subjetivas por ocasião da ação. :P::sse aspecto pode, portanto, ser
chamado, com razão, o "aspecto fisionômico". Deve ser observa­
do, porém, que êsse aspecto não pertence apenas ao ato, como
fenômeno psiquico, mas pode ser atribuido também ao que perdu­
ra após o ato, como seu efeito permanente - a obra. No fundo,
pode ser atribuída a tôda obra humana uma significação fisionô­
mica. Por certo, a expressão não esgota tôda a essência da obra
(uma suposição que constitui o êrro naturalístico-psicológico de
vários autores contemporâneos) já que ela é determinada pelas
normas das "Idéias'_' realizadas nesse trabalho e também pelas da
matéria em que estas se realizam. Estas observações, que podem
parecer algo afastadas do assunto, não deixarão de ter importân­
cia, mais tarde, no julgamento do caráter. Como, especialmente

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34 RUDOLF ALLERS

em certo sentido, tôda conduta se realiza numa determinada ma­


téria - seja ela a do próprio corpo - e obedece a uma determi­
nada Idéia - seja ela a· pura necessidade vital - a reflexão
que fizemos sôbre a obra vale também, de certo modo, para a
própria conduta. De um ponto de vista subjetivo, as fronteiras
entre o "puro" comportamento e a obra em geral, não podem,
provàvelmente, ser determinadas com precisão. Isso significa,
porém, que, em tais coisas, não existe, em geral, uma fronteira
e que não se pode realmente encontrar um critério de base subje­
tiva, para distinguir entre a obra e o comportamento passageiro.
Por conseguinte, há responsabilidade não só na ação que deixa
no mundo traços visíveis e traz, pois, em si, a marca reconhecida
da obra, como também em tôda e qualquer conduta. O conceito
de responsabilidade se apresenta, assim, como um conceito de
grande importância para a reflexão caracterológica. Estamos,
porém, afirmando aquilo que deveria ser provado neste capítulo
intTodutól'io, isto é: a impossibilidade de um estudo simplesmente
positivo e descritivo do caráter, uma espécie de história natural
do caráter. É provável que, sem a introdução do conceito de
"valol'" e sem tomal' como base êste conceito, um tal estudo fique
sempre fragmentário e não possa justificar sua própria tarefa.
Finalmente, o quinto aspecto, que é absolutamente ligado ao
subjetivo; só sendo visível por isso à contemplação psicológica -
é a decisão. Tôda conduta não realiza apenas objetivamente o
circuito já mencionado: do mundo para o sujeito e, dêste, de novo,
para o mundo. Ela forma também, na própria vivência do sujeito,
uma espécie de conclusão. Somos obrigados a falar apenas numa
espécie de conclusão, e não na conclusão em geral, porque
de fato, não há uma conclusão na vivência, mas, ao contrário, cada
momento desta se combina com um outro e cada "elemento de
vivência" (se nos permitem, provisoriamente, tão incorreta ex­
pressão) sempre ultrapassa a si mesmo e se dirige para um outro.
Mas cada percepção contém o germe e o comêço de uma ação,
cada vivência é impelida para a exteriorização, cada afeto requer
sua satisfação adequada, cada pensamento visa sua formulação
em linguagem, etc. Nenhum impulso - venha êle da percepção,
do sentimento, ou da fantasia - pode cessar, se não lhe é dada
uma decisão através da ação ou do comportamento. Muitas vêzes,
esta espécie de tensão está contida e é sentida de modo imediato
na própria vivência. Não é necessário dar exemplos. Está nn
natureza da vivência, mesmo quando não atinge uma apreensão
consciente, que se dirija para a expressão, a exteriorização e a
atividade.
Afirmamos acima que tôda conduta é, poL· sua natureza,
relação ou ligação, e que tôda ligação contém dois membros.
Dêsses dois membros (o eu e o não-eu) se separam os cinco

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 35

aspectos do comportamento já mencionados, pertencendo, cada par


dêles, a cada um dos membros, enquanto o último está ligado a
ambos os membros. Para designar, de modo abreviado, êsses cinco
aspectos, chama-los-emos: Efeito (sôbre, ou no não-eu), Posição
(do homem nos diversos domínios do ser que nele concorrem),
Representação ( do eu, em si por si), Expressão e Decisão ( nos
sentidos já mencionados) . A subdivisão dos dois membros cor­
relatos pode ser apresentada esquemàticamente do seguinte modo:

EU NÃO-EU
;------"-----
Decisão - Expressão Representação Posição - Efeito

Deve-se acentuar que êsses cinco aspectos não são outra


coisa senão aspectos; não se deve pensar que existam indepen­
dentemente uns dos outros, de modo que uma dada ação ou atitude
contivesse apenas um ou outr9s dêles tles são, ao contrário, abso­
lutamente essenciais a um comportamento qualquer do homem.
Deve-se supor, por conseguinte, de ora em diante, que o caráter
aparece como um momento formal, comum a tôdas as ações e
modalidades de comportamento do homem e apresentando aquêles
cinco aspectos da ação, embora não esteja decidido se êste mo­
mento formal atinge uma expressão idêntica em todos os casos.
Que esta última expectativa não se realiza, é o que será mostrado
num exemplo. Já vimos que a obra, sendo, por assim dizer, do
ponto de vista da expressão, uma ação solidificada numa forma
mais ou menos duradoura, pode ser considemda, como dissemos,
"fisionômicamente". Mas a "expressividade" (entendida em sua
primitiva significação) das diversas obras é muito diferente.
Numa ferramenta, que cai das mãos de um trabalhador, podem
ser divisados vários traços ou características, todos expressivos:
descuido no trabalho, ou amor da minúcia. Numa peça trabalha­
da a máquina, ainda que esta seja dirigida pela mão do homem,
a "nota pessoal" diminui, até se tornar irreconhecível. Já ouvi­
mos falar, muitas vêzes, no caráter impessoal dos artigos feitos
a máquina, quando comparados a artigos idênticos executados
num trabalho manual. Também numa dis�ertação científica sôbre
uma questão matemática se reconhecerá pouca coisa do tipo pes­
soal de seu autor (se bem que haja, também aqui, uma nota.
pessoal, como indicam, por exemplo, as observações de H. POIN­
CARÉ sôbre os tipos de pensamento matemático) . Já em certas
circunstâncias, porém, um trabalho sôbre problemas de química,
pode deixar ver alguma coisa sôbre o autor. Uma exposição
histórica e biográfica, contém, em medida mais elevada, a marca
da personalidade individual do autor. Quanto à filosofia, se aplica

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86 RUDOLF _ALLERS

com justeza a conhecida frase de FICHTE: "A filosofia de uma


pessoa depende do tipo de homem que ela é". Vê-se, assim, que
a possibilidade de avaliar, sob o aspecto fisionômico, uma obra
(ou uma ação), não pode ser aceita sem mais nem menos.
Assim, pode acontecer que um aspecto da ação deixe ver,
melhor que outro, aquêle momento formal procurado por nós, a
que se deve dar o nome de "caráter". Segue-se que, para o olhar
de um observador externo, desejoso de conhecer o caráter de um
homem, os cinco aspectos da ação não se apresentam com igual
evidência. Corno o desenvolvimento destas idéias nos levaria a
uma discussão das fontes de conhecimento da ,caracterologia,
limitamo-nos, aqui, a uma rápida menção. Como se deve supor,
o momento formal procurado atinge sua mais clara expressão
naquele aspecto que chamamos "representação", porque nele se
dá o equilíbrio entre as conexões da ação, quer com o sujeito quer
com o objeto. Nesse aspecto, os dois membros correlativos apare­
cem, por assim dizer, com o mesmo valor.

5, Ação e Valor
Se quisermos utilizar essa conjectura como um fio condutor
de nossas idéias, verificaremos que há necessidade de examinar
também, sob êsse ponto de vista, que é mais psicológico, a forma­
ção da conduta, já que estamos tratando da representação do eu
por si mesmo. Sem dúvida, não deve ser esquecido que a psicolo­
gia não pode, sozinha, analisar completamente a ação. É preciso
considerar sempre que a relação com o não-eu deve encontrar,
também no psicológico, um reflexo ou um representante, e que
o fenômeno de que se trata, por isso mesmo que é o represen­
tante de um não-psíquico, nunca pode ser determinado de modo
suficiente pela psicologia. A ação voluntária, que é, para nós, a
ação ou atividade propriamente dita, pressupõe, em todos os ca30s,
o conhecimento de uma situação como real, e de outra como
possível. Não pode haver uma ação que não seja, pelo menos
em potência, precedida de tal conhecimento. Tôda ação é uma ten­
tativa de alterar uma dada situação por meio de uma intervenção
nossa. É preciso, portanto, que se reconheça de um modo qual­
quer, mesmo obscuro, que vale a pena fazer uma alteração. l\1esmo
quando êste desejo de modificar é abafado, êle se exterioriza, na
situação momentânea, por um sentimento de insatisfação. Existe,
pois, no fundo, em última análise, um conhecimento. 1!:ste conhe­
cimento se apresenta, na situação atual, como um- conhecimento
de relação, já que contém uma comparação (que se torna imedia­
tamente clara nos casos de ponderação racional) entre o futuro
possível e o realmente dado. É um conhecimento de relação, que
acha muitas vêzes sua expressão num julgamento de relação da

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PSICOLOGIA DO CARÁTER

forma: Seria melhor se. . . Por isso, a cada açéio precede uma,
comparaçéio, que é, como se vê na locução acima citada, uma com­
paração de valor. A velha sentença: "Omne ens appetit �onum"
(Todo ser aspira um bem) se justifica também em sentido psico­
lógico. :É compreensível, sem dúvida, que êste "bonum", êste
valor, seja inicialmente apenas uma atitude subjetiva de valor
e não uma valorização objetiva incondicional. Mas é claro, tam­
bém, que uma análise da atividade, sem a introdução do conceito
de "valor", deve ser absolutamente impossível. Numa outra con­
sideração ainda - e esta de ordem mais formal - se mostra
como é indispensável a introdução de tal conceito. Já vimos que,
considerada da parte do sujeito, tôda ação contém a característica
da decisão além de ser também o resultado de uma cadeia de
a�ontecimentos internos e externos. Em tôda ação, um _todo par­
cial qualquer � completa no todo geral da conexão vivida .!L.
experimentada (Dilthey), ou no da história da vida interior
(Binswanger). Um todo qualquer tem, porém, um valor mais
alto que a parte; tudo que é fragmentário é insatisfatório e exige
a terminação num todo. Dêsse modo, qualquer ação já traz· em
si, neste traço formal mais geral e atribuível a tôda a atividade,
uma referência de valor.
A situação possível, que é reconhecida como a de maior valor
e que deve ser estabelecida por meio da ação, aparece na vivência
como um fim proposto. Mas é errado supor que a ação possa ser
descrita simplesmente pelas fases sucessivas : conhecimento de
uma situação insatisfatória atual, de uma situação satisfatória
possível no futuro, posição desta como fim e execução.
A formação do fenômeno "conduta" é muito mais complexa.
Realmente, no puro conhecimento de que uma situação, tal como
é dada, é insatisfat6ria e de que é desejável, e talvez possível,
modificá-la, não existe; de modo algum, a exigência de uma ação,
nem há nada que nos obrigue a intervir. Tôda a vivência perma­
nece inicialmente na atmosfera de um "deve ser", num conheci­
ment,o teórico do melhor. Como conhecimento teórico, porém, êste
reconhecimento de uma tensão de valores entre o real e o possível,
o dado e o proposto, é mais ou menos impessoal. Só um desen­
volvimento ulterior do impulso para a iniciativa pessoal - sem·
dúvida já existente no núcleQ do dever teoricamente reconhecido
- ou, pelo menos, para a tomada de posição pessoal, leva a. uma
transposição desta fase mais impessoal. O homem pode obser­
vá-lo em si mesmo, nos casos em que a impossibilidade objetiva
de uma ação pessoal aparece claramente, como quando, por exem­
plo, aquêle que não participa ativamente da., política faz uma
crítica da situação política. Muitas vêzes, pode-se mesmo obser­
var claramente, em tais casos, como o impulso para a ação indi­
vidual se descarrega por meio de uma ação derivativa, intervindo

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38 RUDOLF ALLERS

na própria situação encontrada, já que a impossibilidade objetiva


lhe impede uma ação adequada. Considere-se por exemplo a con­
duta �J..:ai:rnnada do "político de mesa de café".
Apenas numa segunda fase, em que urna conexão especial se
estabelece entre minha própria pessoa e a necessidade reconhe­
cida de modificação, posso transpor o plano do puro conheci­
mento teórico. Esta segunda fase, que atravessa também múltiplos
estádios (que não iremos descrever aqui em pormenor) culmina
na atitude interior do "Tua res agitur". A linguagem popular se
exprime de modo invariàvelmente profundo na locução: "Isso é
contigo[" Na realidade a significação desta frase é que alguma
coisa ocorre a alguém, alguma coisa toca a esfera de sua perso­
nalidade.

6. O conceito de caráter

Quando, para continuar com a metáfora acima, alguma coisa,


não só toca a esfera de nossa pessoa, mas também a penetra, apre­
sentam-se duas atitudes possíveis. Podemos recusar a exigência
de ação que nos é imposta do exterior (como, por exemplo, quando
dizemos: "Que me importa?") ou podemos "tomar a coisa a peito",
Para esta última atitude, encontrou W. GRUEHN, em seu
estudo psicológico-experimental da vivência do valor,1 a feliz desig­
nação: "Aneingnungsakt" (ato de apropriação) . Somente êste
ato de afirmação interior, esta espécie de incorporação da situação
a realizar ( ou melhor: do valor incluído nela, �té então, sob a
fornrn de possível) é a origem propriamente dita da ação. Quem
não consegue, de modo inequívoco e decisivo, fazer a escolha e
dizer "Sim!", não chega à ação, ou, na melhor das hipóteses, só
a realiza pela metade. Ocupar-nos-emos minuciosamente destas
coisas, quando tratarmos da capacidade de decidir, da indecisão
e de outros fenômenos dêste tipo.
Não é necessário também, por enquanto, prosseguir mais
longe na análise da conduta. Para o nosso propósito de obter
uma determinação do conceito de caráter, basta saber que ela se
origina dêsse ato de apropriação.
No domínio dos valores objetivamente válidos há, e deve
haver, determinadas leis de preferência e menosprezo. É da essên­
cia do valor que êle tenha, sempre, uma posição definida na hierar­
quia dos valores. A possibilidade de reconhecermos a ordem obje­
tivamente válida dos valores e o ponto a que podemos atingir em
tal conhecimento, são questões de axiologia teórica, que deixare­
mos ele lado aqui. Mas a existência de algo como a ordem hierár-

1. Leipzig, 1925

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 39

quica de valores que, sendo objetiva, fôsse absolutamente necessá­


ria para todos os homens - eis o que deve!ia se! COJl_lpreensí:7el
para o sentimento comum, ainda que tal aflrmaçao seJa recebida
com grande desconfiança por vários filósofos, ou mesmo radical­
mente negada. (Sem dúvida, as tentativas de esclarecer êste pon­
to e ele fundar uma axiomática dos valores são ainda pouco nume­
rosas. Talvez os próximos anos, ou os próximos decênios nos
tragam, a êsse respeito, muitu surpresas. De qualquer modo, des­
d-i! a monumental erítica de ::5CHELLEit à formalistica ética do dever
de KANT,' têm surgido, no pensamento filosófico, muitas indica­
ções ele um interê:;se novo e diferente pela problemática dos valo­
re;;) . Mas a própria circunstância de que, em todos os tempos
e lugares e em tôdas as culturas, existia o par conceitua!: Bem -
Mal, indica a fé da humanidade na existência de uma lei universal
de valores. Pelo menos, 11inguém duvidará de que tôda a conduta
humana seja orientada para a lei e prefira conservar os valores
mais elevados (subjetivamente), ao invés dos interiores. Aqnela
lei de preferência dos valons, apoiado na qual mn ind-ividuo huma­
no ol'ieuta sua conduta, w"io é outra coisa senão o que chamamos
caráter. O caráter de um homem é 71ortanto mna forma de legali­
dade de sua conduta, qualquer coisa como iona 1·egra, ou uma
norma. Na medida em que essa regra contém a forma geral de
prei'erência e menosprezo dos valores, por parte de uma pessoa,
pode o caráter ser chamado, para nos apoiarmos na conhecida
expressão de KANT: "o imperativo categórico individual"." Não
se pode afirmar, de maneira nenhuma (o que seria, aliás, absurdo),
que seja possível exprimir em palavras, ou em cada caso parti­
cuiar, essas múximas ou regras, essa lei individual de preferência
valorativa. Existem, na verdade, caracteres - ou, pelo menos,
tipos de caráter - de estrntura relativamente simples, para os
quais é possível uma tal formulação; pense-se, por exemplo, no
"homem econômico" de SPRANGER" - um tipo no qual tôdas as
ações se orientam para o valor central da Utilidade. De modo
geral, porém, e quando se trata de pessoas singulares, uma tal
formulação é quase impossível. Não é que não possamos pôr o
caráter de um homem numa fórmula simples. Não podemos, po­
rém, dar uma determinação essencial do caráter. Com a nossa
definição exprimiremos, então, apenas, que o caráter não é uma

1. Drr Formali,mus in Der Ethih und die matuiale Wertethih (Halle, 1914),
Ver também: KOLNAI, Der ethísche Wert und die Wirhlichkeit (Friburgo. 1927).
Z. Já expus J)guma coisa sõbre hte assunto, especialmente em relação ao
emprêgo em psicoterapia. nos· relatórios: "Die Bezichung von Psychologie und
Psychoterapie', "Psychotherapie und Heilpada�ogik, "Wille und Erkentniss ín der
Gestaltung des Charakters" (aparecidos nos três volumes de B,richrc der iirztlich,n
Kongre.<se für Psycllalcropie, Halle. 19 26: Leipzig, 1927 e 19 29).
3. Lcbemformen - Leipzig, I 927.

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40 RUDOLF ALLERS

parte real, ou uma característica da pessoa (o que já vimos antel!


ser impossível), mas pertence, justamente, à modalidade do julga­
mento, do princípio, da regra e da norma.
Do mesmo modo que cada julgamento tem a forma: Sé P (um
predicado, P, sendo subordinado (gramaticalmente) a um sujei­
to, S), cada norma de preferência de valor, que forma o caráter,
estabelece uma relacão entre dois membros, a saber: o sujeito ( que
está tomado, agora: tanto gramaticalmente como realmente) e o
objeto, não-eu, ou mundo. Encerra-se, assim, o círculo de nossas.
reflexões.
O não-eu, com que o eu - o sujeito agente - estabelece,
ao agir, uma relação objetiva, age sôbre êsse mesmo sujeito, à
medida que - e no modo pelo qual - êle se torna conhecido
dêste. Dessa maneira, êle aparece como dado e pode ser consi­
derado como um propósito. Observamos antes que o conceito de
"mundo", ou de "não-eu", não deve ser, de modo algum, restrin­
gido àquilo que comumente se chama "o mundo exterior". Vimos,
ao contrário, que todos os conjuntos de verdades e de valores, quer
pertençam ao não-eu, existam como fatos, ou estejam incluídas,
como valores, em qualquer outro ser ou acontecimento, constituem
também um mundo, ainda que nada se possa dizer de sua locali­
zação na hierarquia do Ser.

7. Caráter, ambiente, herança

A vista do exposto, há, para a fundamentação da lei de prefe­


rência de valores do indivíduo - ou seja: para a fundamentação·
de seu caráter - dois mementos de importância capital: primeiro,
a formação da pessoa e, segundo, o modo pelo qual esta represen­
ta o mundo, ou, melhor dito, o conjunto de mundos a que ela,
como os outros homens, pertence. Com êste segundo momento,
porém, se exprime a importância (que nunca deve ser despreza­
da) do ambiente de uma pemioa, na formação de seu caráter.
Mas isso não se deve entender no sentido de uma teoria natu­
ralista do meio, como, por exemplo, a que H. TAINE e seus suces­
sores repreHentam. Para éstes, deve-se entender a formação indi­
vidual e, poif.1, a do cariíter, como a resultante de diversas fôrças
atuando sôbre o homem: a clim{Ltica, a nacional, a social, a polí­
tica, a econfimica, de.. O homem tteria, assim, comparável a um
bloco de cera, que recehcttse, como um meio inteiramente passivo,.
sua forma eHpacial e aa configurnçõeH de seus planos de contôrno,
da açiio dos vúrio11 mol<lcH fJUc niihre êle atuam. Uma teoria desta.
espl:ci•! dcnpreza inteiramente o primeiro membro da relação Eu
- Nilo-Eu e caqucce que 11 própriu reação de um homem aos
c11tlmulo11 1:xtcririrca f 11cmprc r,,-actiu e, portanto, essencialmente.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 41

actio. No mesmo êrro cai também aquela outra tese, que s6 acre­
dita terem importância decisiva os fatôres constitu!ivos, os here­
ditários e, em geral, os da atividade corpórea, alrados aos que
são designados (de modo obscuro, aliás) pelo nome de "dons" e
"disposições naturais". Nesta concepção, a existência do segundo
membro da relação é inteiramente desprezada.
Compreende.se que o caráter, tendo justamente como base
uma relação objetiva entre o eu e o não-eu, deva ser determinado
pelas condições da pessoa. Elas terão também considerável in­
fluência sôbre o modo e a qualidade da representação que tem
um homem do conjunto dos mundos e serão também decisivas
para as orientações possíveis de um homem em sua evolução
e para a distância que é capaz de percorrer, de modo geral, em
tal direção. J!': porém um êrro acreditar que estas condições de
formação do caráter, de certo modo dependentes da constituição
individual, possam ser reconhecidas desde Jogo.
Acreditou.se, com base em pesquisas biogenéticas, em análi­
ses de formação da família, e em minuciosas comparações entre
a constituição pessoal de antepassados e parentes e a elos descen­
dentes, poder tirar conclusões sôbre os elementos do caráter condi­
cionados pelas disposições naturais. Esqueceu.se, porém, que
havia, em tôdas essas tentativas, uma ;icfitio principii, já que
tais análises só têm, de modo geral, um sentido, quando se esta­
beleceu, de início, que há uma hereditariedade de determinados
c·aracteres ou traços de caráter. Isso, porém, é o que deveria
primeiramente ser provado e não simplesmente pressuposto.
Muitas vêzes, realmente, podemos convencer.nos de que muita
coisa, que aparece à primeira vista como conseqüência evidente
da herança, não é, como depois se vê, hereditário, mas apenas um
produto da experiência. Que pais tímidos tenham filhos tímidos,
parece mostrar, a uma primeira impressão, que a qualidade "timi­
dez" seja herdada. Examine•se, porém, o modo pelo qual os pais
tímidos educam seus filhos e logo se verá que, com um tal trata­
mento e sob a impressão de tais atitudes e palavras dos pais, um
menino não se poderá tornar outra coisa senão tímido. Que a
hereditariedade 1111-da tem a ver com o caso, é o que mostra
a observação de órfãos, que ficaram alguns meses sob os cuidados
de pais de criação extremamente timidos, sem qualquer parentesco
com a criança.
O que é realmente constitucional e condicionado pela herança
não pode, nunca, ser detcrminaào désse modo, mas, tão somente,
por um processo de exclusão. :J!': simplesmente falso, do ponto de
vista do método, iniciar uma pesquisa sôbre a importância da
constituiçiw e da hereditariedade, sem ter fixado, preliminarmen­
te, o que, no caráter examinado, é reativo e pode aparecer como
reliposta it. experiência. Podemos compreender e podemos tornar

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42 RUDOLF ALLERS

conhecidas, por uma penetração no conjunto da vida, as condutas


e atitudes que são co.ndicionadas pela experiência, pelo acaso e
pela maneira segundo a qual um homem representa seu ambiente
e o mundo. Mas quanto às conexões naturais e aos efeitos dos
dons hereditários e dos fatôres de constituição, só podem ser
descobertos, descritos e verificados com exatidão aproximada.
Não pode haver aqui, como no domínio das ciências naturais, um
conhecimento vivo. "Não há, no interior da natureza, um espírito
criador" - estas palavras de A. V. HALLERS adquiriram uma
significação nova e mais profunda, desde que, nas últimas déca­
das, o pensamento filosófico se tornou novamente vivo e, especial­
mente, desde que a preocupação com os problemas da vida e do
homem se tornaram, numa intensidade até então desconhecida,
objeto da filosofia. Uma necessidade profundamente arraigada na
natureza humana leva-nos a querer compreender o universo segun­
do o esquema em que se apoia nossa compreensão do homem e dos
produtos de sua espiritualidade. Estamos certos de que nos é dado
conhecer fundamentalmente o homem e que nada há mais acessí­
vel ao nosso pensamento do que o próprio homem. Nosso conheci­
mento dêle só pode 8er limitado pela contingência empÍl'ica, mas
nunca em princípio e em essência. Há, sem dúvida, uma outra
limitação fundamental a essa compreensão. O núcleo essencial
mais profundo da pessoa humana, êste algo que lhe serve de base,
êste absolutamente simples, só o podemos conhecer em sua exis­
tência, mas, não, compreendê-lo adequadamente em seu modo de
ser. E tal limitação não se verifica apenas em nosso conhecimento
de outrem, mas, também, no conhecimento de nós mesmos. Ka
medida em que pudermos conhecer e compreendei· a nós mesmos,
poderemos atingir também (em princípio) um conhecimento do
próximo. (Não indagaremos, por enquanto, quais os obstáculos
e limitações de tal conhecimento) . Já as obras do espfrito humano
€ tudo o que se denomina cultura ou espírito objetivo nos são
conhecidos em menor grau que a alma humana, o espírito subje­
tivo . 1 Consideradas essas obras do ponto de vista fisionômico e,
por assim dizer, como documentos biográficos, nosso conhecimen­
to tem maior alcance. Contudo também se encontram aqui algu­
mas formas, cuja significação fisionômica nos é inteiramente im­
penetrável. Duvido que, mesmo o melhor conhecedor da arte
egípcia antiga, possa descobrir, através das esculturas que se

1. Quando se fala, aqui. cm espírito, "objetivo", não se quer designar, na·


turalmente, a infeliz tricotomia: corpo - alma - espírito, que. vinda dos Gnós­
ticos, rcpr�senta tão g1andc papel cm todos os ensinamentos filosóficos ,; pseudo­
filosóficos de hoje. O espírito objetivo é, par3 nós, apenas a multidão de \�a!or�s.
que se rc-aJízaram no univ�rso espaço-temporal. sem que se pc.cssuponha uma der
terminada metafísica do mundo dos ,·alores. Ver: H. FREYER, Theorie des objehtiven
Ceêtcs (Leipzig, 192 7) .

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 43

conservam - especialmente as de estilo hierático - alguma coisa


sôbre a personalidade do artista que as criou. Na mesma situação
nos encontramos, provàvelmentc, diante das obras das culturas
primitivas e estranhas - a escultura negra, por exemplo, vu as
obras mexicanas do período Maia. Mas quando, ao deixarmos de
lado as considerações de "fisionomia", tentamos compreemlee a
obra em si mesma, em sua peculiaridaclc, nosso entendimento
é logo detido em fronteiras que não pode ultrapassar. Em relação
.aos fenômenos da natureza, ficamos sempre, aqui, desde o comêço,
diante dessas fronteiras intransponíveis. Nosso conhecimento per­
manece infinitamente afastado da compreensão viva dos fenôme­
nos da cultura e do homem. Somos obrigados a conlcntar-nos com
simples constatações e descrições. De fato, a ciência natural n�o
pode, com suas afirmações LleRcritivas, justificar a multiplicidade
dos fenômenos, porque, limitando-se necessàriamcnte ao aspecto
quantitativo, é obl'igada a excluir de seu domínio tôcla qualidade.
Dêsse modo o conhecimento naturalístico, apesar de ter mo"trado,
pràtícamente, o maior êxito, fica, de certo modo, à superfície elo
mundo natural. Éle representa, na expressiva designação ele
TH. HAERING, um "estádio de resignação" do conhecimento
humano. 1
Diante de um objeto de conhecimento que, por Rua própi-ia
natureza, só permite um conhecimento colocado neste "e:-tádio de
resignação", parece absolutamente desacertado atribuir, a êste
conhecimento insuficiente e resignado, um primado sôbre o enten­
dimento vivo. Já fomos compelidos à resignação durante muito
tempo e se não nos quisermos resignar de:vemos levar nosso
conhecimento tão longe quanto é possível. Só quando não puder­
mos mais progredir no cmninho da verdadeira compreensão, é que
temos o direito de contentar-nos com o método, p1!ramente descri­
tivo e de simples constatação, da ciência natural.
Tal observação tem emprêgo justamente no estudo <lo caráter:
é inadmissível que se ponha, desde logo, uma condicionalidade
natural, enquanto não foram realizadas tôdas as tentativas de
uma compreensão viva. Só o que se parece subtrair, em última
instância, ao nosso entendimento, deve ser objeto das considera­
ções naturalísticas, da biologia genética e do estudo da consti­
tuição.
Chamo, a êste princípio metódico, o princípio de maior exten­
são possível do momento reativo. A desatenção a êste princípio
constitui um êrro fatal de muitas exposições caracterológicas e
pedagógicas. Diga-se, de passagem, que a renúncia a êle nos enca-
- minhará para um pessimismo pedagógico e psícoterápico e, até

1. Phílosophie der Nat,mvissenchdt (Munich. 19 23).

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44 RUDOLJ,' ALLEltS

mesmo, p11rn um nihilismo. Se, po_rém, o reconhecermos, nos·diri­


giromos pnrn muu posição otimista cm relação ao homem e suas
possibilidmles, u quul será justificudn também peln prática (como,
aliás, todo otimismo). Pois ó claro que, quanto muis cedo abando­
narmos nossos esforços de educação e regeneração, maior valor
atribuiremos nos fatures heredo-constitutivos·.
É 1ligno de ntençiío o foto de que, n1>esar de todos os discursos
sôhre disposições imutávei8, condutas individuais determinadas
por hemnças, e outrns tantns coisas do mesmo tipo, cadn educador
procede, no fundo, como se estivesse convencido do contrário.
Pois, não ficni-iamos de hrnços cruzados, à espera de que os fatôres
inntoH cxerccfü1cm sua nçiw, se 11iío acreditássemos que o homem
pode ser modificado e melhorado 110 fundo do seu ser? Na reali­
dacle, tfüla exortaçüo, lôdn 1·eprcensão, tôdn crítica e todo castigo
rcpre:-1e11t11m, no intimo, uma prova de nossa confiança na "natu­
reza melhor" do homem. Que damos expansão a essa confiança,
é o que exprimem 110:-18118 relações educativas com as crianças, os
joven:-1 e 0:-1 próprios :ulultos, O próprio ed'ucando deve ter conhe­
cimento cle:-isa confiança nele depositada.
O peirnimismo terapêutico e pedagógico, que, não raro, se
npom-m do educador ou do médico ditmte de certos casos indivi­
duais ou dcpoh-1 de um longo trnhalho inteiramente infrutífero em
tal dorninio - é, muita11 vêzes, não tanto o resultudo de uma luta
c:-1téril coutrn diíiculdadcs invenciveis e inerentes ao próprio traba­
lhn, como a con:-icqiiência de unm impotência pessoal, um conhe­
cimento imrnficicnte das leis que ai opernm e dos processos a
ernprcv,nr. O que ocm-re, realmente, na maioria dos casos, não é
umn tenlal:iva de ating-Íl' 11111 objetivo inadequado, mas uma tenta­
tiva por mctoii lnadequndos .
•Já llll mcneiomula confiança - l:i'ío natural e ingênua (no
melhor mmtido) para o homem - 11ns possibilidades da natureza
humana (111w, rnío e:-ique<.;amo:-1, foi "mirnculosamente instituída e
1·cco11:-1líl11ida" por l leus), c:-1(.h contida uma segunda e importante
111'in11açilo, que pode :wr dc1l11:r.i1ln de no::ism; considerações teóricas
llt1hrn n cimência 1l0 cnrúti•r, e, a meu ver, fornece um novo apoio
n c11l.11:1. Quarnlo 11mn 011i11ifio l:c6rica concorda, em suas conse­
«till'ncin:1, cmn n:-1 co11C('Pi:.fü•:-1 in1ri\11uas e naturais, isso constitui,
prov1\vülnw11l.1•, 11111 cri(.(•1·io 1h1 :-iun exatidão.
:-;o iu:n:dil.1111m11 11110 nii exorb1çõc:i, aii indicações de en-os come­
Udo:i, o 1•in1i1111111c11ln llti )lrinclpio::1 correi.os de vida podem. ser
1H1•in i\ forn111çiio, 110 ho111PtJ1, de um descjndo car{1tel', se acredi­
l.11111011, l'III v,1•rnl, 111rn o homem pnd1, :1prcmh.1l' com :1 experiência,
1·111l111io11 1•xpri111itulo, com i:i:io, n 1·.1111vicçflo de que o conhecimento
n•pn•11N1l.n um p:qml pro1•111i1u:11t11 nn form:u;ão do caráter. Nou�
l.rc111 l11 n11011: 11fin1111111011, com i::1:10, o primndo do Logos.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 45

8. Caráter e atitude valorativa individual


Se o caráter é, em determinada pessoa, seu princíp�o de
preferência valorativa individual, sua norma geral das açoes e
sua finalidade, então, o tipo de atitude valorativa d�ssa pessoa
eleve ser decisivo para seu caráter. A atitude valorativa pressu­
IJÕe, porém, que os valores e sua hierarquiá tenham sido compreen­
didos e, portanto, que tenha havido; preliminarmente, um conhe­
cimento dos valores. Não cabe aqui indagar corno deve ser deter­
minada esta apreensão dos valores, ou a classe de fenômenos
psíqukos a que pertence. Mencionemos apenas que, no ato de
ap1·censão dos valores, há algo (o próprio valor) que é apreendido
como objeto dêsse mesmo ato. Tal ato pode, portanto, ser consi­
derado como de "consciência de um objeto". Por isso, a apreensão
dos valores não pode ser, de modo algum, relegada ao domínio
das emoções pràpriamente ditas, já que não se trata, aqui, de
sentimentos. Contentar-nos-emos, agora, com a afirmação de que
hú, na apreensão de valores, um tipo especial de ato, cuja descri­
ção minuciosa é deixada para a psicologia. Mas, entanto que, em
tal ato, nm valor se torna visível para o homem - como predo­
minante ou incluído numa coisa ou acontecimento - a apreensão
do \'alor não pode deixar de ser considerada como uma forma
particular de conhecimento. 1':inguérn duvidará de que o ato de
divisar alguma coisa seja um conhecimento, quando, por meio
dCle, consideramos uma situação possível como a melhor, em face
de dada situação real. :J,;ste julgamento sôbre a relação entre
ambas as situações - a real e a possível - se baseia numa
conceP,ção geral do valor, ou constitui essa mesma concepção.
Em relação à opinião, muitas vêzes apresentada, de que todos
os valores seriam (psicologicamente e não ontolàgicamente) redu­
tíveis, em última análise, ao prazer, deve-se dizer que, em tal
opinião, a natureza real da questão é inteiramente invertida.
Porque o caráter valorativo de um valor não deriva da circuns­
tância de estar ligado ao prazer. O fim de 1ima ação é a realiza­
ção ele um valor e não o prazer. :tste só pode ser o fim de uma
ação, quando representa, êle mesmo, um valor de certa espécie e
de determinada posição na hierarquia dos valores. O prazer que
experimentamos ao fazer o que é justo não é o fim da conduta,
como podemos verificar por uma introspecção feita em tais casos.
O fim é, ao contrário, realizar o que é justo. O prazer que se
lhe segue (que, aliás, nem sempre aparece) é um acessório no
complexo integral de conhecimento, finalidade e execução. Tal
prazer é um prêmio. 1
1. Seí que tal interpretação é oposta a muitas teses hoje cm m�da, «p••
ciJlmcntc à de KLA.GES e também. cn[n outras. :l de HAEBERLIN. Não 1,nho1
porém, a intenção dr fazer aqui urna exposição cridc� das opiniões alheias.

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46 RUDOLF ALLERS

O que seja valor ou desvalor e como os valores se colocam


em ordem hierárquica, tal é o objetivo dos julgamentos de valor.
Os julgamentos estão porém submetidos ao critério do verdadeiro
e do falso. Os próprios julgamentos de valor podem ser verdadei­
ros ou falsos. E, dêsse modo, as ações poderão ser justas ou
injustas.
Conhecemos a frase: "Conhecereis a verdade e a verdade
vos fará livres". "Livres de que?" -;--- pergunta Santo AGOSTINHO,
em seus sermões sôbre o Evangelho de S. João. E responde:
"Livres do pecado". Livres também, acrescentaremos, de fazer
a injustiça, de realizai· o desvalor.

9. Liberdade

Vem à tona ainda uma questão, antes que encerremos estas


considerações introdutórias. Na- verdade, não se trata de urna
questão propriamente relativa ao estudo do caráter. Mas ela
merece uma breve explicação, antes que se rejeitem as falazes
obj eçces levantadas contra as idéias aqui expostas. As objeções
a que nos referimos se originam, mais ou menos, da preocupação
ele que existe uma contradição entre a tese do primado do conhe­
cimento e a da liberdade da vontade. Se a conduta do homem é
ditada pelo conhecimento - dirão os críticos - a liberdade
é suprimida, pois que um exato conhecimento tio valor acarretaria,
por assim dizer, automàticamente, a conduta ·justa. A responsa­
bilidade da livre decisão da vontade seria assim tirada ao homem
e a opinião socrática, de que a virtude é ensinável e .se associa
de certo modo ao conhecimento, estaria novamente de pé. Então,
não haveria mais culpas, mas apenas insciência, não haveria mais
pecado, mas apenas êrro.
Até mesmo os mais ardorosos defensores do livre-arbítrio
admitem que, muitas vêzes, o ên-o e o desconhecimento são mais
responsáveis por uma atitude visivelmente viciosa, do que a má
vontade ou a renúncia consciente a um bem conhecido. O fato de
admitirmos uma noção da consciência falha e uma distinção entre
os pecados material e formal, prova, à saciedade, que se deve levar
em conta a possibilidade do êrro e da ignorância. Também se
verifica, inúmeras vêzes, na prática, que muitas ações más deri­
vam de urna falta de conhecimento e que o reconhecimento da
verdade basta, muitas vêzes, para libertar o homem de suas faltas.
Pot· outro lado, deve ser considerado que um conhecimento
e uma visão do Bem, se realmente possuídos pelo homem, deve­
riam suprimir a liberdade das ações. Na visio beatifica, a liber­
dade desaparece. Pode-se concluir, então, que a determinação pelo
conhecimento é própria da natureza completa e, por assim, dizer,

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 47

pura do homem e que a resistência ao conhecimento "videa


111eliora provoque, deteriora scquor" - deriva daquela insuficiên­
cia, que aprendemos a conhecer corno atributo da natureza huma-.
na decaída e como expressão do pecado original. Não se trata,
porém, de uma espécie de privação da pura natureza humana, que
ficasse limitada a uma função parcial ou um aspecto parcial dessa
natureza. Seria contudo errôneo supor que apenas a vontade, ou
especialmente a "vontade", fôsse atingida. Pelo contrário: 3.
transformação operada pelo pecado original deve ter atingi(1c,
tôda a natureza humana, tanto em seu aspecto de conhecimento
como no de vontade. Noutras palavras: o conhecimento da ordem
objetiva dos valores nunca será inteiramente suficiente e, em
segundo lugar, a passagem do conhecimento adquirido à aç-ão
nunca será completa. A expressão "liberdade da vontade" c<,ntém
uma certa unilateralidade. Não é a vontade, como função psic:o­
lógica, que é livre. A liberdade pertence, ao contrário, à pes�oa
humana inteira. Também a decisão não aparece na fase em que
a vontade surge como uma função psicológica determinada, mas
quando se dá a afirmação interior, o "ato de apropriação". Se
continuarmos, porém, a chamar liberdade da vontade à liberdade
de afirmar ou negar, devemos compreender claramente que a
palavi-a "vontade" deve ser entendida em sentido diverso do que
tem em psicologia.
Tais coisas são de difícil penetração e esclarecimento, devido
à imprecisão da expressão verbal, cuja multiplicidade de sentidos
para têrmos usuais favorece tôda a sorte de variantes conceituais.
Devemos ser prudentes no uso das palavras, quando tratamos de
questões sutis. Não explicou E. HussERL que, à palavra "repre­
sentação", podem ser atribuídos nada menos que quatro sentidos?
O mesmo se dá com as palavras: "compreensão", "conhecimento"
e "vontade".
Há, sem dúvi.da, duas espécies de compreensão, pelo menos.
Poderíamos dividi-las em: compreensão teórica e compreensão
vivida - uma distinção que se mostrou, por várias vêzes, útil na
prática. Encontramo-nos muitas vêzes na situação de compreen­
der alguma coisa, entender uma conexão e reconhecer um valor,
sem que tais conhecimentos tenham qualquer importância para
nossa ação. Quantas vêzes homenageamos um ato heróico, um
sacrifício e uma renúncia de si mesmo, feitos por outreni, reco­
nhecendo-os como exemplares para a conduta humana em geral,
e, em teoria, também para a nossa, sem que nos lembremos, nem
por um momento, de fazer o mesmo, ou coisa semelhante. Mas
também acontece, não raro, que um homem, que há muito tempo
observou e reconheceu tais coisas, descobre, repentinamente, nesse
conhecimento, algo mais que uma visão teórica e faz, dêle, um
motivo para sua própria conduta. Tal processo pode ser de difícil

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48 RUDOLF ALLERS

descrição psicológica e é talvez de difícil compreensão. Contudo,


há, noutros domínios, fenômenos análogos. Tal analogia é encon­
trada, por exemplo, no puro dominio intelectual, quando se trata
de compreender uma demonstração ou de resolver um problema.
Uma demonstração qualquer nos pode ter sido à.presentada muitas
vêzes, sem que a tenhamos "entendido". De repente, porém, senti­
mos um clarão: - "Sim, deve ser isso!" - e, então, ela se torna
clara. Podemos ter feito esforços repetidos para resolver um
problema (uma construção geométrica, p,or exemplo), sem ter
obtido êxito; de repente, porém, o caminho se abre diante de nós.
Mesmo nas funções elementares, deparamos com situações idênti­
cas. Pode-se ter uma viva experiência de tal situação, no dominio
da visão das formas, no jôgo de composição denominada puzzle.
Nossos olhos podem ter passado muitas vêzes, indiferentemente,
i.ôbre um pedacinho de madeira de forma esquisita; de repente,
vemos que êle se encaixa naquele lugar que há muito procuráva­
mos completar. (Tôdas essas coisits caem, de certo modo, no
grupo de vivências, descrito por K. BüHLER como: vivências
do "ah!").
Assim como um pensamento se insere numa conexão de pensa­
mentos, completando-a ou terminando-a, assim como a pedrinha
se encaixa no vazio do puzzle, assim também um conhecimento se
insere no conjunto de motivações de nossa vivência e nossa condu­
ta, sob a ação de um iluminamento qualquer, cuja natureza íntima
é, sem dúvida, inteiramente misteriosa. E, assim como a pedrinha
de puzzle, vista muitas vêzes, pode parecer, embora sua forma
não se tenha alterado naturalmente nem um pouco, inteiramente
nova, no momento em que é reconhecida como pertencendo ao
lugar vazio, assim também o conteúdo do conhecimento teórico­
-abstrato não se altera absolutamente, embora êle se tenha reves­
tido do novo caráter de vivo e pessoal. Ao denominar, porém,
"conhecimento" a ambos êstes conhecimentos: o teórico e o vivo
(ou de vivência), corremos o perigo de desprezar a distinc,ão
essencial de ambos . 1
Fato idêntico encontramos com a palavra "vontade". Poucas
palavras terão sido tão mal empregadas. Tanto quanto posso
distinguir, empregamos a palavra "vontade" com os significados
seguintes:
1. A vontade em sentido próprio e expressivo é aquela fun­
ção psicológica ou aquêle fenômeno psíquico que dá início a uma
ação e acompanha-a em todo o seu decurso. A vontade de agar­
rar uma coisa só existe, propriamente, quando estendo a mão

1. De certo modo aparentadas às reflexões aqui exposus, embou sem visar


inteiramente o mesrno fim, são as explic.>ç&-s de H. NEWMAN. cm A Grammar
oi A=nt.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 49

para o objeto a agarrar. Enquanto não executo êste movimento,


nâo se pode falar, em sentido específico, em querer.
2. A vontade designa também a nossa intenção, ou a nossa
pura expectativa, de realizar alguma coisa no futuro. "Quero via­
jar para a Itítlia" significa: "Num momento qualquer do futuro,
será provúYel - ou, segundo m,pero, real - que viaje para a
Itúlia". l\ este sentido é instrutivo observar que, em inglês, "will"
não significa, freqüentemente, outra coisa senão a possibilidade
futur:i. de ser ou de fazer.
3. Um sentido aproximado dêstc é o de "vontade'' signifi­
cando "desejar" ou "querer''. l\Iuitas vêzes ocorrem diálogos como
êste: - "Que quer fazer o Sr.?" - "Se deseja saber o que
realmente quero, direi que tanto quero isto como aquilo". * Uma
criança pode dizer: "Quero que amanhã o dia esteja bonito", embo­
ra saiba que a realização dêsse desejo não está ao alcance de sua
vontade. Do mesmo modo, não posso, em sentido estrito, "querer"
que outra pessoa execute uma ordem que lhe dei, mas, apenas
"desejar" que isso aconteça, contando, com maior ou menor certe­
za, que meu desejo se realize. O equívoco entre esta segunda signi­
ficação e a que foi dada primeiramente, é muitas vêzes fafal, por­
que muitas pessoas iludem-se com o que "querem", porque acredi­
tam que é bastante desejar alguma coisa. Na "Meditatio de tribus
classibus s: binal'iis hominum", do livro de Exercícios de Santo
Inácio, trata-se dêste tipo de vontade.
4. A palavra se emprega ainda no sentido de decisão ou
intenção: A frase: "De boas intenções está cheio o inferno"
mostra como êste segundo sentido está longe do verdadeiro querer.
A decisão e a intenção são apenas esquemas de querer possível,
mas nunca êste próprio querer.
Se esta equivocidade do têrmo "querer" (que pode ter, talvez,
maior número de sentidos que os já mencionados) nos adverte
contra o uso precipitado dessa palavra como um simples equiva­
lente de "função da vontade", para todo e qualquer caso, resulta­
rão, desta análise, importantes conseqüências para nossas refle­
xões posteriores. Porque, se as declarações de um homem, a res­
peito do que quer e do objetivo de sua vontade, devem ser rece-­
bidas com reservas, devido às ambigüidades de expressão - onde
acharemos, então, um critério e um meio, para reconhecer qual
a orientação e a finalidade do querer, num homem. concreto?

• Em altmio, o verbo "qutn:r" é expresso nas duas formas: "wollrn" t


"'mõgen", que correspondem às duas formas ingl��zs: .. wilr' e "sha.11". A se•
gunda forma tem um st:ntido menos imperativo que a primeira. Assim. n.1 fr2se
acima, o primeiro "qutro" (wolleri) significa am qutrtr real; o segundo índíta
· apenas um ducjar: .. tanto quero isto como aquilo'' equivale a: ·unto - m, dá
isto como aquilo". (N. do T.)

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50 RUDOLF ALLERS

Esta indagação tem, naturalmente, uma �mportância funda­


mental em tõ<las as afirmações sôbre o caráter. Se o carátet· é um
princípio de preferência valorativa individual e se os valores mais
elevados; que se acham no interior de um homem, são, ao mesmo
tempo, os fins a que êle aspira, então, o conhecimento dêstes fins
é o único caminho que pode levar a um conhecimento, a uma
compreensilo do caráter.

10. Conhecimento do wráter

O caráter é a norma da conduta. A ação é uma relação entre


o eu e o mundo, indo do eu para o mundo. Ela termina por uma
informação qualquer, ainda que passageira, do mundo. Em que
outro lugar, portanto, poderia estar o sentido da conduta e a fina­
lidade eficaz nela contida, pela qual se revela o valor visado
( o mais altamente valorizado pelo indivíduo em sua preferência
individual), senão na transformação do mundo produzida pol' sua
ação? Não é o que um homem nos comunica de seus pcnsnmentos,
nem o que nos conta de seus sentimentos, nem o que afirma querer
- mesmo que tndo isso fôsse subjetivamente exato - o que nos
pode ensinar definitivamente qual a orientação produtiva e real­
mente viva de sua vontade. Sôbre êsse ponto, só é conclusivo o
resultado real, o produto de suas ações e atitudes.
Tal conhecimento está contido, implicitamente, ,rnma passa­
gem de um livro famoso: "Mais facilmente obedece o corpo ú
menor volição da alma e move os membros ao seu comando, do
que a alma obedece a si mesma para querer apenas a sua vontade
mais poderosa. Por quê e para quê êste absurdo?... O espírito
com<1nrla o corpo e êste logo obedece; o espírito comanda a si
mesmo e encontra resistência. O espírito ordena que a mão se
mova e isto se realiza com tal rapidez, que é quase impossÍ\•el
dizer onde acaba a ordem e onde começa a execução; entretanto,
ry espírito é espírito e a mão é corpo. O espírito ordena ao espíri­
to, que lhe é idêntico, que queira e, no entanto, êle não o faz.
Por que e para que êste absurdo? Êle ordena a si mesmo que queira
e não poderia ordenar se não quisesse; no entanto, êle não faz o
que ordenou. f:le não queria de modo pleno e integral e por isso
nãr, ordenou de modo pleno e integral. Pois que êle só ordena,
entanto que quer, e o que êle ordenou só deixa de ser realizado, en•
tanto que ele não quer. Porque a vontade ordena que haja uma
w,ntad,�: não outra, mas ela mesma. 1\Ias ela não ordenou intei­
n,rnente; por isso não se cumpriu o seu comando. Pois que, se a
·;ryntade tivesse sido inteira, ela não precisaria ordenar primeirn­
rnenté:: ela Reria, porque já era. Querer parcialmente e não-querer
r,;,.rr;i;,.lmente, não são, portanto, um absurdo. São apenns uma

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 51
enfermidade do espírito, que não é capaz de se elevar plenamente,
porque, se a verdade o eleva, o hábito o atrai para baixo. Há,
pois, duas vontades e nenhuma delas é completa, uma vez que uma
possui o que falta à outra ... Eu não queria inteiramente, nem
deixava de querer inteiramente. Por isso lutava comigo mesmo e
estava dividido em mim mesmo. Essa própria divergência ocorria
contra a minha vontade, sem que contudo indicasse a presença, em
mim, de um outro espírito... É uma e mesma alma que quer uma
coisa a meia-vontade e, outra coisa, a meia-vontade".
São estas as palavras de Santo Agostinho no Livro Oitavo de
suas Confis'sões. Teremos que refletir, ainda muitas vêzes, sôbre
êste fato psicológico da "segunda vontade". Devemos por� obser­
var que Santo Agostinho usava o têrmo "vontade" em um sentido
amplo, quase com a mesma significação de inclinação, tendên­
cia, etc. Isso não prejudica, porém, de modo algum, a justeza e a
profundidade de suas dissertações.
Traduzidas para a linguagem menos eloqüente da caractero­
logia, as palavras de Santo Agostinho exprimem o seguinte:
primeiro, que as ações e a atitude de um homem são um produto
de sua vontade e, segundo, que esta vontade, que se oculta sob a'
atitude real, é desconhecida de seu portador. Por isso, essa passa­
gem das Confissões é também a primeira em que aparece o concei­
to de "inconsciente" (embora não expressamente) e é também
aquela em que aparece, pela primeira vez, a concepção, a que
hoje denominamos "finalística", da conduta humana. Ela é repre.
sentada, em primeira linha, na literatura científica moderna -
especialmente a que se ocupa de educação, regeneração e preven­
ção de desenvolvimentos psíquicos anormais - pela psicologia
individual, fundada por ALFRED ADLER, cujás concepções ser-nos-ão
ainda de utilidade noutras ocasiões. De fato: se bem que modifi- •
cadas e expostas de modo diferente do que são ensinadas hoje,
elas servem ainda, em sua essência, como fundamento de uma boa
parte das opiniões que apresentamos.1
De momento, só nos interessa o princípio metódico de que os
motivos específicos de um homem, podem ser tirados apenas de
suas ações e dos resultados reais destas. Para isso é preciso expli­
car o que sejam os "resultados reais". Não se deve entender por
isso apenas o que é visível como efeito imediato, ou conseqüência
de uma ação, nem também o que parece representar o sentido

1. Obras de A. ADI.ER: Der nori.>ose Charakter (Munich. 1929): Theorie


une/ Prnxis der lndividualpsycho(ogie (Munich, 1926), Menschenkenntnis (Lrípzig,
J 927). Ver ainda o livro de WEXBERG citado na nota da pág. 16 e o Handbuch
rlrr /mlividua/psycho/r,gie (Munich, 1926), do mrsmo. Para estudo ulterior e
cri rica: A. KRO�FELD. Psychot,rapie (Berlim. 19 26): R. ALLERS, Churahrer ais
A u •úrucl< cm, "Jahrbuch lii Charal<rerologie". 1 925, Band I e •• obras citada,
por ni,s na nota 2 da página 20 e na nota l da página 28.

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52 RUDOLF ALLERS

imediato de uma ação. Só podemos, em geral, compreender as


ações humanas, quando elas são vistas em uma conexão maior ou
menor. Se nos quisermos limitar, no julgamento de uma ação, ao
resultado imediato, aparecerão paralogismos inteiramente grotes­
cos e seremos obrigados, em muitos casos, a confessar nossa com­
pleta impotência de compreender qualquer coisa. Quando, em
tempo de guerra, um soldado atira, propositadamente, em sua
mão ou pé, infligindo-se, assim, voluntàriamente, um ferimento
doloroso e difícil de curar, que, provàvelmente, diminui de modo
considerável sua capacidade de trabalho futuro, êste seu ato pare­
cerá altamente incompreensível, quando considerado em si mes­
mo, sem que atentemos para outros efeitos seus (no caso, a inca�
pacidade para o front) . Se atentarmos, porém, para tais efeitos,
1 torna-se compreensível que um homem assuma a responsabilidade
· das conseqüências já mencionadas, a fim de evitar as fadigas e
perigos do serviço no /ront, a probabilidade de um ferimento grave ·
e a morte. Podemos tirar, dêste caso, outras conclusões. A primei-
ra é que, sem dúvida, a automutilação, juntamente com a dor
física que se lhe segue e as conseqüências sociais e morais que
deve acarretar, não parece ter, para êste homem, qualquer impor­
tância, em face dos perigos próximos que o ameaçam, ainda que
êstes não sejam absolutamente certos, mas apenas altamente pro­
váveis. Devemos, pois, reconhecer a automutilação como um exces­
so de defesa própria, de segurança contra o perigo. O motivo
dessa fuga do perigo não pode ser verificado com certeza pela
simples inspeção dêsse modo de proceder. Seria precipitado falar
simplesmente em covardia, pois existem outras possibilidades de
interpretação. Mesmo noutros casos menos crassos, é também
errôneo aceitar, sem mais análise, uma interpretação que se apre­
senta imediatamente e parece natural, pois há, quase sempre, para
uma e mesma ação, uma multiplicidade de interpretações possí­
veis, enquanto não for considerada no conjunto q1,1e a envolve.
Para reconhecer o sentido da ação humana é, pois, necessário
ver claramente seu desenvolvimento durante um longo período de
tempo, para que não se considere apenas o resultado imediato,
mas também as conseqüências futuras. Ver-se-á também, que
a pergunta sôbre o sentido de uma ação ou comportamento, em
dadas circunstâncias, pode ser formulada, com propriedade, do
seguinte modo: Que aconteceria, se a pessoa em questão não
agisse do JllOdo por que o fêz? O indivíduo que se mutilou a si
mesmo, por exemplo, iria para o front, se deixasse de praticar
tal ato. Êste é um caso simples. Tem acontecido, porém, muitas
vêzes - para continuar com a comparação da situação de guerra
- que certos homens, inesperadamente e ao contrário das conjec­
turas de seus conhecidos, se _apresentam voluntàriamente para o
front.' Sem dúvida, isso poderia ser interpretado, em muitos casos,

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 53
l'llmo: despertar da consciência patriótica, vergonha de ficar atrás
dos outro;i no ;icntimcnto do dever, etc. Noutros, pode ser um
desejo de nfw pnreccr �1esquinho, ou covarde, aos olhos de tôdas
as pessoat-i que o rodeiam, ou talvez de alguma delas (uma noiva,
por exemplo) . Mas há também casos, em que a ação heróica foi,
1m verdade, um gesto que se revela, a uma análise minuciosa do
conjunto, como uma 'deserção no front". Devido a conflitos de
família, dificuldades no trabalho, ameaças de renúncia a uma
carreira ou probabilidades de insucesso num grande empreendi­
mento em perspectiva, há homens, e não JJoucos, que seguem volun­
ti'lriamente para o front e obtêm, com êste procedimento, um duplo
ganho: libertar-se das dificuldades, apa�·entemente insuperáveis,
de sua situação presente e adquirir o reconhecimento e, mesmo,
11 admira��fto do próximo. Eles passaram, por assim dizer, de
covardes, numa situação, a heróis, em outra. Conheci não poucos
que se comportaram brilhantemente na guerra, como soldados ou
oficiais, obtendo reconhecimento, distinção e fama, para depois, de
volta à p:ítria,. renunciar lamentàvelmente, nas situações mais
vulgares, às mais triviais tarefas da vida. Que um homem seja
herói na guerra, ou consiga praticar as mais temerárias ações de
alpinismo, não prova que êle tenha realmente coragem. As gran­
des questões e situaç.ões decidem-se, muitas vêzes, mais ou menos
por si mesmas. E o homem é antes arrastado por elas a uma
decisão e a uma conduta, do que decide por si mesmo. Não é pois
aqui, porém nas pequenas situações da vida ordinária, que se mos­
tra, antes de tudo, o caráter, se quisermos empregar esta palavra
em sua verdadeira significação.
Um segundo complemento ao princípio de que a conduta deve
ser julgada pelos seus resultados reais consiste nisto: que muitas
.das atitudes do homem não lhe são ditadas diretamente pela situa­
<;ão do momento em que se encontra, mas, ao contr:í.rio, por uma
analogia entre esta e outras situações, decisivas para êle. Isso se
tornará mais claro com um exemplo.
Comecemos por um fato, certamente pouco comum, mas ilus­
trativo. Um homem tem motivos - ou julga tê-los - para temer
:1 ameaça de nm inimigo pessoal; teme, por exemplo, que êste
posHa atirar, casuulmente, nele, durante uma cac:ada. Êle evitará,
1iortanto, fazer uma caçada com seu inimigo. !\Ias pode também,
1mra. não l'e\·elar seu temo1· dêsse homem, deixar absolutamente de·
c:u;ar. O mo(lo pelo qual justificar:í. sua decisão de não ir a ce.rt.a
caçada, ou não mnis caçar, é secundúrio: O importante é que,
temendo, na verdade, apenas, uma determinada situaç.ão (a de
c11çar com seu inimigo), ôlc renuncia, contudo, n tôda caçada. Do
mesmo modo, n lebre só dev1>ria temer o cão que agita o arbusto
pr6xirno: mm1, a fim de poder fugir com segurança e no momento
devido ( quundo o ciío ugitii o arbusto), ela de\'e também fugir

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54 RUDOLF ALLERS

quando as fôlhas são agitadas pelo vento, ou por uma gralha.


Outro exemplo é o do homem que, receando, por qualquer motivo,
determinado trabalho, justifica-se com a expressão de que é pre­
guiçoso "por natureza", a fim de subtrair-se aos esforços necessá­
rios àquele trabalho. Como, porém, não existe uma preguiça para
determinado trabalho, mas, apenas, preguiça em geral e para tôdas
as situações, êsse homem deixará de realizar um outro trabalho,
que lhe seja indiferente e mais fácil, apenas "por ser preguiçoso".
Quando está no interêsse e propósito de um homem dizer a outro
coisas desagradáveis (a verdade, por exemplo), é provável que êle
estabeleça, para si, como princípio, portar-se do mesmo modo
diante de todos os homens, a fim de que possa passar desperce­
bido o que faz com aquêle outro, ou com alguns outros.
Em terceiro lugar, deve ser observado, ao julgar uma ação ou
seus resultados reais, que muitas vêzes - e, talvez, em regra geral
- êles não se apresentam sàmente naquele domínio para o qual
a ação parece imediatamente dirigida. Assim, sabemos, por exem­
:plo, que alguém pode auxiliar o próximo, a fim de, por meio disso,
fazer alguma coisa contra um terceiro. Posso atingir um adver­
sário auxiliando um seu adversário. À primeira vista, tem-se a
impressão de que a finalidade de tal conduta é auxiliar o próximo.
Na verdade, porém, trata-se de prejudicar a um outrn. Quantos
atos de amabilidade não foram feitos, não por amor ao próximo,
ou por um sentimento de dever social, mas, apenas, para magoar
e irritar a outros'/ É, pois, da maior importância, para a com­
preensão de uma ação humana, estabelecer, em cada caso, o que,
ao lado dos resultados imediatos e visíveis, aparece também "na
ocasião" (segundo uma expressão muito usada por ALFRED
ADLER) . Não precisarei apresentar, aqui, outros exemplos. porque
voltaremos ao assunto num desenvolvimento posterior de nossa
e):posição.
Ao julgar tais ca'.:os, devemos, porém, evitar cuidadosamente
- como aliás em tóda reflexão caracterológica - que as ouserva­
ções e interpretações puramente descritivas sejam falseadas por
julgamentos <lc valor. Está por certo muito ligado à natureza
humana e corresponde a um de seus traços, colocar-se ante o pró­
ximo numa atitude valorativa. :--:a vida tal procedimento é inevi­
tável. Mas é:!e se dr;vcria apenai, estender ao que há ele real nas·
ações e julgá-las apenas por sua condição material (usando uma
cxpressãr, da t<!<il<Jgia moral) e não por sua condição formal. As
hoas e más açfies devem ser reconhecidas e designadas como tais.
Não se p<Jdc aplicar aqui a sentença: "Não julgueis, para não
serde!-! julgadr,:-1". Mas não é talvez possível (por mim, creio ser
impmrnível) dccirlir Hc: um homem é, cm sua essência íntima, bom
ou mau. MaH a knlar;ii.o de fazer julgamentos dessa espécie é
grande. Niío n<,s car,,, ar1ui indagar se a moral, ou a orientação

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 55

prática da vida, estão na dependência desta questão. O estudo do


caráter como ciência e como fundamento de um conhecimento prá­
tico da formação do caráter deve, porém, ser libertado de tais
julgamentos de valor. Éles devem ser também postos de lado,
quando as reflexões sôbre nosso objeto sejam levadas, por uma
necessidade interior, a incursões no domínio da moral, especial­
mente na explicação da responsabilidade, que é relativa, por exem­
plo, às ações isoladas.
Contudo, o julgamento valorativo pode ter ainda uma impor­
tância teórica, mesmo para a compreensão dos modos de agir men­
cionados há pouco. Os resultados materiais de uma ação qualquer
não se apresentam apenas numa única direção. Quando certos
modos de agir - dignos e bons em si mesmos - são empregados
para fins, que não correspondem, em absoluto, a seu sentido pró­
prio, nem por isso se anula sua essência boa ou justa, nem se
pode dizer também que devem ter tido sempre, para o indivíduo
em causa, uma significação hipócrita, perversa, etc .. Para exem­
plificar: o amor à verdade pode ser mal empregado, se tem um
sentido de agressividade. É claro que, na prática, "dizer a verdade
a alguém" se tornará, assim, quase que exclusivamente, "dizer
coisas desagradáveis a alguém". Para certos homens, a expressão:
"Nunca deixarei de dizer a verdade", contém sempre uma tonali­
dade visível de crítica; sua "verdade" não é nunca o reconheci­
mento, o louvor, a admiração. Com isto, porém, não fica alterada,
de modo algum, a essência do amor à verdade e o valor que contém,
em si e por si, tal atitude. Não se deve, porém, concluir, que um
tal homem se excite no amor à verdade "apenas" para poder ser
desagradável ao próximo e rebaixá-lo por uma crítica que se dis­
farça sob o manto do zêlo moralizador, ou por uma revelação
impiedosa de defeitos, sob a aparência de bem intencionada fran­
queza. Outras vias se apresentam a essa atitude inamistosa, desa­
gradável e invejosa e podem torná-la eficaz. Por que um homem
"escolhe", justamente o suposto amor à verdade? Em tais casos,
tudo o que importa é saber como se tem comportado, noutras
ocasiões, o indivíduo em apreço. Primeiramente, devemos pergun­
tar, como êle se desobrigou, em outros casos, de seu amor à ver­
dade. A coisa se torna clara, quando se verifica que só se torna
"amigo da verdade", quando pode disfarçar sua crítica sob uma
aparência de franqueza. Se fôr também "amigo da verdade" em
circunstâncias outras, duas possibilidades se apresentam: ou seu
amor à verdade é puro e só ocasionalmente se desfigura em seus
efeitos, quando pôsto a serviço de outras tendências (a de rebai­
xar o próximo, por exemplo), ou visa apenas, em sua própria
significação final (a que está no interior da individualidade), a
realização dessas agressões a humilhações disfarçadas e só é em­
pregado, em todos os casos, porque o homem quer justificar sua

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56 RUDOLF ALLERS

atitude, tanto para outrem como para si mesmo, com o fato de


"dizer sempre a. vcrd:idc". Vê-se imediatamente que, a êsses dois
casos - que 11/io são ab::ltra<;õe:i, mas casos reais, apresentando-se
diante do c;;tudioso da formação do comportamento humano -
rnrrespondern chms e;itruturas essencialmente diversas. Numa,
está dianlé de nós um homem, para c1uem a verdade possui um
,•:i!or em si mc:srna e que prncura atingir êsse valor; como que
olJceeado por êssc valor, o homem supõe procurú-lo, mesmo quan­
do outro fim Si! substituiu inopinadamente a êle. No outro caso,
JiorC>m, a verdade não possui valor independente, mas tem, apenas,
sentido insh'nmental: ela é somente um meio; a finalidade original
e predominante é lutar por uma supremacia sôbre os outros. Em
ta! ('ll.',o, se apresenta, porém, imperativa, a pergunta: Por que
o amor à verdade foi, justamente, o meio "escolhido" para essa
luta'! Às vêze:;, isso se explica pelas influências do ambiente, pelos
princíuios que foram transmitidos à criança. Muitas vêzes, porém,
é maito difícil obter uma real compreensão do c'lnjunto de moti­
,·aç,jcs interiores. Fica sempre, contudo, um prob1ema a resolver.
Se tal homem, uma vez tomado como norma o falar a verdade,
o foz também onde não há qualquer motivo para a agressão e em
circunstâncias em que tal atitude lhe possa prejudicar, não é êst
seu amor à verdade um valor positivo, mesmo quando, devido às
circunstâncias, sua realização só se torna possível em situações de
luta? Nesse ponto, a tentativa de compreensão caracterológica se
transforma necessàriamente em considerações éticas. Na verda­
de, acredito que uma atitude, que se apresenta como poi;itiva -
mesmo que só algumas vêzes - em suas realizações, não poderia
provir nunca de motivos exclusivamente negativos. Não ouso,
porém, tomar uma decisão sôbre êste assunto difícil, que se apre­
senta, aliás, como problemático, a uma análise mais profunda.
Parece, porém, necessário acentuar, que um estudo realmente
completo do caráter será sempre fragmentário, se não fôr referi­
do a um ponto de vista ético, embora a imperiosa limitação a ques­
tões imediatas, ou a incompetência do autor, nem sempre permi•
tam tais considerações.
Mas, ainda para o fim de um estudo prático do caráter, veri­
fica-se que a própria regra metódica, aparentemente t:1o simples,
de que uma conduta deve ser compreendida pelos seus resultados
efetivo!l, não é, de modo algum, tão simples, quando se trata de
aplicá-la. Pelo contrário, convém acentuar expt·essamente que
nunca .w deve tomar uma n.çcio isolada, on mn comportamento
ísolado, como ba.w de um fril!lamento caracterológico. Na vida
humana não há. nada h1ülado: há apenas a conexão de todos os
acontecimentos dessa vicia única como modos de apresentação, ou
representação, de uma e única pessoa. ·

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p s I e o L o G I"A Do e ARÁTER 57

Re3ta-nos ainda uma questão, antes de encerrarmos estas


explic�ções preliminares. Trata-se de uma questão de importân­
cia primordial, a saber: a da possibilidade de reconhecer, na pró­
pria pessoa, o portador e a fonte de tôdas as atitudes e ações.
Quando falamos, atrás, das duas conversões - a de S. Francisco
de Assis e a de Santo Inácio de Loiola - dissemos que se devia.
supor talvez que a "característica de trovador" do primeiro não
pertencia apenas à sua norma de conduta, ou ao seu caráter, mas
ao próprio âmago de sua pessoa. Tratava-se, mais, de uma con­
jetura, uma interrogação que lançávamos, do que de uma afir­
mação. Podemos, porém, conhecer realmente a pessoa? E, em
caso afirmativo, até que ponto podemos conhecê-la?
Não há dúvida que a podemos entrever de certo modo e que
homens de tôdas as condições e todos os tempos alimentaram essa
convicção. Como já observamos, todo esfôrço educativo, tôda
tentativa de melhorar ou curar um homem, ou ensinar-lhe um
modo de vida mais racional têm por base esta pressuposição. Há,
além disso, experiências muito impressionantes, em que se torna
de certo modo visível a pessoa, a natureza íntima de um homem.
:Muitos tiveram tais experiências. O psicoterapeuta, que se ocupa,
por profissão, com caracteres desviados, com homens de certo
modo em conflito com a vida e incapazes de atender suas exigên­
cias, realiza, quase diàriamente, tais experiências. Encontramos
homens limitados, reduzidos a si mesmos, aprisionados dentro de
si mesmos, renunciando diante das mais triviais dificuldades da
vida, aparentemente incapazes de resolver sem queixumes a mais
simples das situações, considerando-se absolutamente inadapta­
dos à luta pela vida e considerados, pelos outros, como incapazes,
inferiores, semiloucos ou estúpidos. Contudo, a um contato mais
íntimo com êles, vem-nos a impressão irresistível de que tudo isso
não é senão uma aparência e que, em verdade, êsses homens são,
talvez, mais capazes, mais valentes, melhores, mais ricos, mais
ativos, mais acessíveis e mais vivos, do que mostra sua atitude
imediata. De onde nos vem o direito de dar tal opinião? Qual
o ponto de vista que lhe serve de fundamento? Que vemos, pois,
agora, nesses homens, além de suas ações imediatas?
É difícil responder a estas perguntas. Sem dúvida, devemos,
logo de início, supor que a pessoa, a natureza íntima de um ho­
mem, nos é dada de certo modo. De fato: se o caráter se apre­
senta como a norma da ação e, pois, como a relação entre um eu
e o correspondente não-eu, e se, por outro lado, somos capazes
de conhecer o caráter, então deveríamos também poder conhecer,
de certo modo, os dois membros dessa relação. Em que funções
psicológicas isso se baseia e quais os fundamentos ontológicos de
tal conhecimento - eis um problema que não pode ser aqui resol*
vido. Direi apenas que me parece justa a oposição de SCHELER,

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58 RUDOLF ALLERS

segundo a qual a pessoa é dada imediatamente à nossa contem­


plação, sem o intermediário da simpatia, das conclusões análogas,
ou coisas semelhantes. 1 Devemos, portanto, satisfazer-nos -
embora não possamos analisar mais minuciosamente êste nosso
resultado - com o fato de uma tal percepção imediata do outro,
uma visão do "eu-estranho", em sua existência e, em certa medi­
da, em seu modo de ser. Ela é simplesmente dada e, no fundo,
não é mais, nem menos, misteriosa do que qualquer outro objeto
de conhecimento.
Se supomos, então, que nos é realmente possível reconhecer,
de certo modo, a pessoa de um outro, para além das representa.
ções e aparências com que se nos apresenta no conjunto de sua
conduta e atitude, ou seja: nesta norma dominante - o caráter -,
podemos perguntar ainda: Que reconhecemos, propriaménte, nesta
pessoa? Reconhecemos - já o dizíamos antes - que ela poderia
ser mais rica, mais viva, etc., e que a norma de sua conduta
atual não satisfaz inteiramente, por assim dizer, num dos mem­
bros da relação - o eu. Reconhecemos, pois, na pessoa, possibili­
dades de auto-representação. Tôda aúto-repi-esentação tem lugar
na ação (tomada no sentido amplo que já mencionamos) e tôda
ação visa a realização de valores. Devemos, pois, reconhecer, na
pessoa, possibilidades de valor.
A expressão "possibilidades de valor" possui, no sentido que
se lhe dá aqui, uma significação dupla. Seria melhor, talvez, dizer
que sua significação se desdobra em duas direções. Em primeiro
lugar, existem, na pessoa, possibilidades de realizar determinados
valores por meio de ações. Por certo, isso se poderia também
exprimir, dizendo que os valores efetivos, mas subordinados a
uma hierarquia ideal, são trazidos, pelas realizações do homem,
para a esfera dos acontecimentos mundanos e espaço-temporais
e do ser. Só dessa maneira êles preenchem, de modo geral, sua
função no conjunto do existente. Na medida em que a forma
geral, segundo a qual o homem executa essa realizacão dos valo­
res, equivale ao que chamamos "caráter", passa, também êste, a
pertencer à região da realização dos valores e a ser um elemento
daquele conjunto, a que denominamos espírito objetivo e cultura.
Isso, porém, não deixa de ser, no fundo, senão uma outra variante,
um outro aspecto do pensamento, que não podemos abandonar:
que o caráter não é determinado apenas pelo eu, mas também
pelo não-eu. Enfim, apresenta-se, aqui, um mistério de assustado­
ra profundidade: o não-eu que se põe diante de uma pessoa, vem
a ser, de certo modo, dependente dessa mesma pessoa, e ela pode,
pois, abrir ou fechar, para si, êsse reino do "mundo" que se lhe

1. Vide: Wesen und Formen der Sympatie. P. SC!IILDER. defende o mesmo


ponto de vista em Medizinische Ps�chologie, Berlim, 1925,

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 59
oferece. Assim, o caráter de um homem é um duplo sentido, uma
"obra" sua, porque surge: primeiro - quando êste homem entra
em relação, segundo seu conhecimento, com aquêle reino do não-eu,
pôsto diante dêle e de existência independente da sua; depoi:!,
quando - por uma decisão última, ocorrida, a despeito de tudo,
nas profundezas de seu próprio .,.:r - êle determina, de certo
modo, os limites dêsse domínio qu� lhe é dado.
As possibilidades significam,. em segundo lugar, valores a
realizar, já que êstes adquirem forma, aparência e duração nos
atos e obras concretos. E, ao mesmo tempo, são possibilidades de
toi·nar "reais", na própria pessoa, os valores. Há, aqui, nos têr­
mos: "real" e "possível" uma indeterminação furta-cor, que não
poderíamos, aqui, dissipar e tornar mais clara. Porque a pessoa
é, como tal, "real" e, do mesmo modo, tudo o que nela pode estar
contido como possibilidade. No entanto, estas só adquirem "reali­
dade", quando se tornam a expressão - na conduta concreta e na
execução real - da incorporação espontânea do homem no reino
do ser, a que êle já pertencia, de antemão, por sua natureza.
Aquêle: "Torna-te o que és" restaura, de novo, realmente, êsse
�stado de coisas, o que parece um paradoxo para o pensamento
racional.
Não devemos prosseguir nas considerações que se ligam a
esta primeira dissertação preliminar. Mas o fato de que cada
tentativa de reflexão sôbre o caráter humano, nos deva conduzir
a tais questões últimas, pode indicar-nos que a Caracterologia não
deve ser considerada uma disciplina fechada, mas um estudo que
exige para seu acabamento e, até mesmo, para sua fundamentação
e justificação, domínios inteiramente outros de pensamento.
A caracterologia teórica, quando quer fundamentar corretamente
seu objeto, de1,e estabelecer tais fimdamentos pela teoria dos valo­
res e, pois, finalmente, pela ontologia e a metafísica. O estudo
prático do caráter necessita, pois, também, constantemente, do
apoio em uma ética, como ciência da realização dos valores. Assim,
se a caracteorolog-ia pode, na verdade, abster-se de valorização,
ela não pode existir, de modo geral, sem uma referência aos valo­
res. Como, porém, tôda Yaloração deve, para nós, culminar em um
summum bonmn a ser dêle derivada, isso significa que tôda a pro­
blernâtica de uma caracterologia deve permanecer projimclamente
ligada à pro1i1emática religiosa. Uma caracterologia naturalística
é impossível em si mesma.
Com estas últimas observações, acreditamos ter indicado os
limites de tôda caracterologia e também seus pressupostos últi­
mos. Foi preciso, sem dúvida, limitar-nos a indicações. Há aqui
uma prodigiosa tarefa para a reflexão filosófica, um assunto ines­
gotável. O mistério das questões subjacentes a todo estudo do ca­
ráter não será nunca, talvez, plenamente revelado à luz clara do

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60 RUDOLF ALLERS

conhecimento científico. Mesmo no ernprêgo prático restam ne­


cessàriarnente, inúmeros problemas não esclarecidos,' ou pelo' me­
nos, inatingíveis a um último esclarecimento. Isso nãd nos deve
impedir, porém, de empregar aquilo que podemos adquirir sob a
forma de conhecimento P. aquilo que podemos utilizar sob a forma
de experiência prática, a fim de compreender a natureza de nosso
próximo e a nossa própria e a fim de podermos justificar, tanto
quanto nos é possível, a tarefa, que nos é imposta, de formar essa
natureza. Ao educador, ou ao guia de qualquer tipo, cabe o dever
de examinar cuidadosamente os conhecimentos que julga ter adqui­
rido em matéria de psicologia ou caracterologia, a fim de utili­
zá-los em sua tarefa, quando confirmados. É inadmissível que
nos afastemos dos novos conhecimentos, sem tê-los ponderado seria­
mente, sem ter respondido à pergunta sôbre o que há nêles de.
válido e verdadeiro. Muitas verdades aparecem, da primeira vez,
como brincadeiras, ou misturadas a tôda espécie de erros. Mas é
secundário, em relação ao ouro, saber a mina de onde veio; êle
é ouro, mesmo um monte de cascalho.
Deve-se, portanto, tentar extrair, da multiplicidade de con­
cepções, que as novas pesquisas sôbre coisas do caráter acreditam
ter revelado - em parte díretamente e, em parte, estudando os
domínios afins, úteis ao conhecimento e formação do caráter -
aquilo que pode parecer útil e indispnsável ao nosso conhecimento
atual. Mas devemos estar sempre conscientes da insuficiência de
nossos conhecimentos, não duvidando de que, talvez cm pouco tem­
po, muita coisa se apresentará de modo diversr, do que nos aparece
hoje.

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II. AS CONDIÇÕES EM QUE SE ORIGINA
O CARÁTER

1. _Nata preliminar

Por mais que se deva afirmar que, a cada pessoa humana,


deve ser atribuída a unidade e a unicidade e que, portanto, em
sentido estrito, o caráter de ·cada um só pode aparecer como único,
deve-se admitir, por outro lado, que devem existir certas carac­
terísticas da pessoa humana, por meio das quais ela possa ser
reconhecida como uma pessoa prõpriamente dita. Em tôda a
diversidade dos homens, certos traços e estruturas devem per­
manecer comuns, mesmo porque o indivíduo não pode ser con­
siderado como absolutamente independente. Êle é, como já expli­
camos, um membro no conjunto de seres, ou nas regiões do Ser
correspondentes à natureza animada e inanimada, à sociedade, ao
espírito, ao sobrenatural. Também o mundo _:_ em que vive e
se move a pessoa, a cujos efeitos está exposta e a que responde
com seu comportamento - apresenta igualmente, ou em grau
maior, estruturas e situações sempre repetidas. Por isso, os
modos de comportamento do homem mostrarão enormes seme­
lhanças, quando uma situação do mundo, que se repete sempre na
vida, provocar a resposta de uma natureza humana absolutamente
. específica e, portanto, determinada em seus traços principais.
Abre-se, portanto, diante de nós, um caminho para penetrar no
conhecimento dêsses traços principais, se pudermos pesquisar as
reações,idênticas ocorridas em condições ambientes idênticas. Tal
conhecimento é da maior importância para compreender justa­
mente o que há de individual e único no modo de comportar-se
do homem. Para compreender a êste, devemos poder, então,
separar, por assim dizer, primeiramente, o geral-humano, para
poder determinar também, em relação à parte restante (figurada­
mente falando) ou às "nuances" da ação, as reações gerais que
são específicas dêsse mesmo indivíduo.
· Não se deve, portanto, condenar a esquematização e a padro­
nização de uma caracterologia que se esforça, em primeiro lugar,
por compreender os diversos modos de comportamento ele um
homem, baseando-se em alguns traços principais que lhe podem

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62 RUDOLF ALLERS

ser atribuídos em geral. Determinar primeiramente o geral é o


único caminho viável, que pode conduzir ao conhecimento do
indivíduo.

2. A tendência primitiva à auto-afirmação

Pode-se afirmar a priori que, em todo homem, deve estar em


ação, pelo menos aquela tendênci& fundamental que existe em
todo ser vivo e, talvez, em todo ser criado em geral. Em Biologia,
essa tendência é denominada "instinto de conservação", ou coisa
semelhante. Uma tendência a perseverar no modo existente de
ser ou de parecer não poderia ser, porém, considerada, sem razão,
como um. traço essencial de todos os seres, qualquer que fôsse
sua espécie, como o faz, por exemplo, SPINOZA ao afirmar: "Omne
e·11s in suo esse perseverari conatur". Uma tendência a perma­
necer em seu ser existente, um impulso para a autoconservação,
só podem, de fato, se tornar visíveis, de modo geral, quando uma
fôrça qualquer pode modificar o ser existente ou ameaçar a con­
tinuação do ser vivo. O instinto de conservação é a tendência a
conservar o existente, diante de quaisquer ações que o ameacem.
Essas ações só podem, naturalmente, ser eficazes, naquelas regiões
do Ser a que pertence a natureza em questão. Como já repetimos
há pouco, o homem pertence a quatro conjuntos diversos de seres.
A tendência à autopreservação d€ve manifestar-se, portanto, de
diversas maneiras. Contudo, as manifestações da tendência de
auto-afirmação não têm, tôdas, em relação à formação do caráter,
o mesmo valor. Porque, para o desenvolvimento do homem e a
forma de sua conduta, não importa apenas o Ser, as conexões
reais e existenciais a que se acha constantemente ligado, mas
também a consciência; não importam apenas as condicões de sua
vida, mas também - e mui especialmente - as de su-a vivência.
Uma elas conexões do Ser tem, porém, aqui, em relação às outras,
uma preponderância natural : a conexão à sociedade e na socie­
dade. O mundo ambiente do homem é, antes de tudo, o mundo
.da sociedade, o dos outros homens. Por isso, a tendência à auto­
-afirmação adquire, na forma orientada para a sociedade, uma
,importância dominante. Como se verá, o predomínio da relação
de sociedade - positiva ou negativa - é tão considerável, que
sua formação correta serve de base para as relações igualmente
corretas com as outras regiões do Ser. Não é necessário dizer
que uma viva participação nos fatos culturais, no reino do espírito
objetivo, não pode ter lugar sem uma relação correspondente com
a sociedade ambiente. Mas, a própria união do homem com o
espírito ideal, com o reino das verdades e valores efetivos, é abso­
lutamente inconcebível, sem o intermediário de outrem. Verifica-

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ner
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PSICOLOGIA DO CARÁTER 63
-se também que a relação com o sobrenatural nunca se pode
formar de modo adequado, quando não lhe serve de base uma
relação anterior com a sociedade. Esta conexão, que deverá ser
explicada, mais tarde, de modo minucioso, acha sua expressão no
dito: o segundo domínio (o do próximo) é "idêntico ao primeiro"
- ou melhor: a conexão já indicada, entre a ordem na sociedade
e a conformidade com a ordem sobrenatural é o reflexo analógico
da relação estabelecida entre os dois domínios pelo ensinamento
divino.
Considerada em si e por si, tôda tendência à auto-afirmação
deveria, em sua fase final, conduzir a uma posição absoluta do
ser que se afirma a si mesmo. Tal não é possível objetivamente.
Primeiro, porque o indivíduo humano não está só, nem poderia
(em essência) estar só e, segundo, porque se opõem, a esta ten­
dência, inúmeras limitações. Mas, subjetivamente e segundo a
vivência, a direção da auto-afirmação se orienta, sem dúvida, para
esta meta de uma posição absoluta. No interior do mundo humano
ambiente, esta tendência à auto-afirmação e à autoconservação
toma, pois, uma forma bem específica, que pode ser designada,
de modo mui expressivo, pela denominação, que a "Psicologia
individual" de ADLER tirou de NIETZSCHE: vontade de poder.
Podemos ver nela, sem dúvida, um traço fundamental da natureza
humana, cuja existência e cujos efeitos podemos encontrar cons­
tantemente, tanto na vida dos indivíduos, como na dos grupos
e dos povos e, portanto, na história. Na verda?�• ela aparece
muitas vêzes sob roupagens estranhas, apenas v1s1vel aos olhos
de um observador atento. Tanto quanto nos fôr permitido pene­
trar no assunto, aprenderemos mais tarde, no decorrer de nossa
exposição, a conhecer de modo satisfatório as ti:ansform�ções e
os disfarces da vontade de poder. Baste-nos, aqm, conhece-la em
sua simples caracterização geral.
Considerada em si mesma, sem as limitações que lhe são
impostas pelo plano de organização humana e pela estrutura da
vida comum e da vida coletiva do homem, esta vontade de poder
tende para o infinito. Ela é, precisamente, o que o pensamento
grego denominava ii�Qtç e seu destino final está ilustrado na lenda
de Prometeu. Os obstáculos que se opõem ao livre desenvolvi­
mento da vontade de poder não servem, de início, para detê-Ia,
mas, antes, para levá-la a uma manifestação ainda mais poderosa.
Enquanto tal manifestação permaneceu nos quadros impostos pela
natureza e pela moralidade, a vontade de poder, por certo __...
e ainda o é - a maior fôrça de impulsão que conduziu o homem
para fora da condição de primitiva incultura e que o tornou capaz
de l:xecutar tôdas as obras de cultura, técnica e ciência, que
admiramos como produto da história. O modo primitivo pelo qual
a vontade de poder entra em relação, de qualquer maneira que
nner
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64 RUDOLF ALLEitS

seja, com a matéria que lhe está diante, é o domínio. Se refle­


tirmos sóbre a multiplicidade de significações em que podem ser
empregadas as palavras: "apossar-se" e "subjugar", compreen­
deremos fàcilmente a onipresença dessa tendência primeira do
homem, em todos os seus modos de comportamento. Apossamo­
-nos de uma coisa, ou do poder; dominamos um problema teórico,
uma dificuldade técnica, ou' uma penha escarp:J,da. Tais exemplos
poderiam multiplicar-se à vontade.

3. Súbrc o conceito de irnpu/so

Antes de prosseguirmos no estudo das condições para o de­


senvolvimento ou a limitação da vontade ele poder, cabe uma
observação sôbre o comeito de impulso e sua importância no
estudo do caráter, ou na psicologia em geral. Até agora, falamos
propositadamente de uma "tendência" para a auto-afirmação, uma
"vontade" de poder e evitarmos, cuidadosamente, a expi-essão
"impulso", embora tenhamos mencionado o conceito de instinto
de conservação, usual em Liologia. Devemos, porém, agoi-a, inda­
J:m· (e a resposta a tal indagação será decisiva para nossa con­
cep,;ão do problema caracterológico) - qual a importância dêsses
c<;nceitos e até que ponto, tendo na Biologia seu sentido correto,
éleH pl/dem ser empregados para a natureza humana. Esta per­
gunta não tem apena8 um interêsse teórico e uma importância
para a fundamentação de nossas concepções; ela deve ser respon­
dida, para que se possa tomar uma posição crítica diante de outras
dnutrinas que se l.iaseiam, essencialmente, no conceito de impulso
e, ou fazem déle a pedra fundamental de seu sistema, ou, pelo
menos, lhe dão um papel proeminente. Na verdade, vamos con­
tentar-no:1 com a indicação dos preliminares para uma tal crítica,
:icm entrar propriamente nela.
Em primeiro lugar, deve ser dito que um impulso, como tal,
nunca pode ser objeto de observação. Existem apenas modos de
crimportamento separados de um ser vivo, que são notados por
nrís e (Jue, por suas semelhanças mútuas, atribuímos a um único
impulHo. O imvulso é um conceito hipotético, introduzido com
finalidade explicativa. Segundo sua ordem lógica, êste conceito
c!:d:á no mnsrno nível do conceito de fôrça física. Se há um im­
pulso, r,u impulsão - eis uma pergunta que nunca pôde ser res-
1,,,ndida cr,m t:ertcza absoluta. Há apenas fenômenos, modos de
cornpr,r1.amento que, para fins de explicação, atribuímos a um
irnpuiH<J. Nüo é preciso dizer que esta hipótese é válida em si
11ir:;m1a e rpw lhe pode ser atribuído um valor explicativo incon-
1.c.,:;t:·lvel. Se ela pode explicar, e até que ponto, todos os fatos,
I: ,, qw, :ierá o!Jjet<, de ulterior investigação. Não há reparos a

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 65

fazer, quanto à hipótese do impulso, entanto que hipótese. Mas


ela se complica de tal modo que, iludidos por um longo .uso e um
emprêgo múltiplo do conceito, nos acostumamos a considerá-lo,
não como uma hipótese - ou, no .melhor dos casos, como uma
teoria - mas como um fato. Imagina-se que o impulso esteja
sempre no organismo, num estado de prontidão para exteriori­
zar-se e que, portanto, existe, mesmo quando não se notam suas
manifestações; julga-se que êle está sempre à espreita e possui·
uma fôrça expansiva intrínseca. Se êle não se manifesta em fenô­
menos, isso se explica de dois modos: ou porque obstáculos de
qualquer espécie se opõem a êle (obstáculos que, na maioria das
vêzes, são também considerados impulsivos), ou porque êle se
acha, momentâneamente, "satisfeito". A analogia com o acumu­
lador é também empregada muitas vêzes. Como êste pode ser
"descarregado" e deve ser novamente carregado, para fornecer,
outra vez, uma diferença de potencial, assim também o impulso
se descarrega em suas manifestações e precisa, depois, de um certo
período de tempo, para que sua tensão se restabeleça. Como disse­
mos, trata-se de uma hipótese permitida e, mesmo, plausível, porém ·
nada mais que isso . 1
A suposição de que o impulso continua a existir quando não
são observadas suas manifestações e seus fenômenos, traz consigo
um perigo,. de que muitas das teorias sôbre a conduta humana
não se libertaram. É que o impulso acaba por ser considerado, de
certo modo, existente por si mesmo e não mais como algo de ligado
à totalidade do organismo - ou da pessoa - e que só pode ser
pensado nesse todo. Dêsse modo, a própria (déia de totalidade
é perdida e deve-se voltar a uma concepção em que o organismo,
ou a pessoa, aparecem corno a soma de partes relativamente inde­
pendentes. Mas, dêsse modo, se favorece uma construção fisicis•
ta, que não é absolutamente adequada à especificidade do ser vivo
e da pessoa, e que prepara o caminho, em suas conseqüências pos­
teriores, a tôda e qualquer teoria naturalística. Para mostrar que
a hipótese de um impulso, que continua a existir independente•
mente de suas manifestações no ser vivo, não é necessriamente
indispensável, basta observar um grupo de fatos muito análogos aos
fenômenos instintivos, para os quais o pensamento biológico não
teve necessidade de admitir uma teoria semelhante. É bem fami­
liar para nós, tudo aquilo que é descrito, na fisiologia do sistema
nen•oso, como "reflexo". Entende-se por reflexo uma típica res•
posta de estímulo, que está obrigatoriamente subordinada a exci­
tação de determinada região sensível do corpo (campo receptor)

l. U!"a ccítica notávd do conceito de impulso é encontrada em A. C. GAR­


_
NETT, Instmct and Personaluy (Loll(dres, 1928) ; o A. põe também •m dúvida
a existência. de um instinto independent�mente de suas maniftstaçõe5 temporais.

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66 RUDOLF ALLERS

e que se processa sem I!- colaboração da consciência ( ou da parte


"sup�rior" do sistema nervoso central, do córtex cerebral, por
exemplo) . Tais reflexos se propagam segundo "vias" determina­
das: através de urna ou muitas fibras nervosas condutoras, que
partem da região excitada para os centros nervosos (a medula
espinal, por exemplo), a excitação atinge o centro, é levada dali
a aparelhos de comutação, por vêzes muito complicados, e percorre
por fim um caminho que sai do centro para o órgão de reposta
(um músculo, por exemplo), que, então, se contrai. Vamos dar
alguns exemplos. A repentina distensão do extensor do joelho,
provocada por um golpe sôbre o tendão dêsse músculo, gera uma
excitação que atinge a medula espinal e, voltando por um outro
nervo, vai provocar um ligeiro estremecimento naquele mesmo
músculo - o reflexo do tendão do joelho, ou reflexo de Patella,
tantas vêzes procurado na clínica de doenças nervosas. Um ilumi­
namento da retina faz chegar a um certo complexo de células do
mesocéfalo uma excitação, que, partindo daí e seguindo o caminho
do terceiro nervo do cérebro, vai ao feixe de músculos colocado
na íris e provoca uma retração da pupila. Os corpos estranhos
que atingem a conjuntiva do globo ocular, provocam ali uma exci­
tação, que dirigida e transformada de maneira semelhante ocasio­
na um aumento da secreção lacrimal.
Todos êsses fenômenos, ocasionados pela ação reflexa, pres•
supõem que o aparelho, o chamado arco reflexo, se mantenha
intacto e pronto para a ação, isto é, que responda, de maneira
normal, à excitação. Para explicar as manifestações do reflexo,
não é preciso, de modo algum, supor impulsos especiais; logo que
as condições adequadas de excitação aparecem, o respectivo apare­
lho reflexo é pôsto em atividade; se, porém, faltam as condições
de excitação, o aparelho não demonstra qualquer "desejo" de ativi­
dade, embora continue a existir.
Torna-se, agora, clara, a analogia com o impulso. Se prescin­
dirmos da consideração de que o impulso é, de certo modo, "vivi­
do" (a importância dêste fato será depois explicada) a questão se
torna, no fundo, a mesma, para ambos os casos: uma situação
determinada provoca uma reação determinada e que lhe corres­
ponde. Há, contudo, uma diferença evidente, no fato de que as
situações que provocam o impulso, ou suas manifestações, podem
não vir de modo algum do exterior. As reações impulsivas apare­
cem também por motivo de alterações internas das condições do
organismo. O impulso de nutrição entra em atividade, logo que
se reduzem os meios de subsistência; uma tendência ao descanso
aparece, quando as modificações ocasionadas nos músculos pelo
trabalho atingiram certo grau; o impulso sexual depende parcial­
mente, em suas manifestações, das condições das glândulas semi­
nais, etc. Na verdade, porém, isso não constitui uma caracterís-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 67
tica distintiva em relaçfio aoH reflexos, porque há muitos <lêstes,
também, que são provornrlos por modificações inteiramente inter­
nas do organismo. l� a:-.sim qne se dú a alwrtura do mtíi;culo colo­
cado entre' o est,,mng·o e o inteslino, o pilorn, ou a aceleração e
retardamenll1 da at h·idade do coração, ou, ri 11almentc, a Hepara­
ção na circu\a<:ãü do sangue dos produtoH aí lançadcm pclaH
suprn-renais
.-\ uma pura descrição, os impulsos não parecem <liHlinguir-se
dos rl'flexos. São apenas reações mais complexas, compostas de
muitos reflexos que se seguem uns aos outros e se determinam
uns aos outros, segundo uma certa lei. Quanto mais completo é um
aparelhamento, tanto mais se especificam as situações em que êle
entra em atividade. Por isso, não constitui uma distinção entre
impulso e reflexo o fato de que aquêle só possa ser provocado em·
situações bem deiinidas, ao passo que êste se origina de sirnpies
excitações. Enquanto se usa o conceito de impulso para a descri­
ção do comportamento de organismos animais, não é _necessário
supor que sua estrutura difere, em essência, da do reflexo. O i m­
pulso não significa outra coisa, nesse caso, senão uma ação 1·eflexa
mais complexa e, por conseguinte, provocada sob condições mais
ou menos específicas. As fronteiras entre a ação reflexa e a im­
pulsirn não são também explícitas: quem pode dizer se os movi­
mentos de fuga da rã decapitada são um reflexo ou a expressão
de um impulso de fuga e auto-conservação?
É certo, porém, que o conceito de "impulso" não se aplica
apenas à mera descrição e observação da conduta animal (como
no ponto de vista, muito comum nos Estados Unidos, do "beha­
viourismo") mas se transporta, ela explicação elas reações animais,
para a vivência do homem. Nesse ponto, entflo, se re\'cla urna
distinção mais profunda entre os mecanismos reflexos e as açiies
impulsivas, já que aquêleH parecem, na maiol"in das ,•êzes pelo
menos, passar despercebidos, enquanto que estas se orientam, de
certo modo, pelo caminho da consciência. Asi;im, o impulso apare­
ce como colocado, de algum modo, entre o mecanismo re>flexo -
situado no interior do organismo e <lo fíHirn e permanentemente
ligado à fiUa lei de formaçfrn - e a vontade própriamente <lita.
Procurou-se também compreender eHR:\ nntúvel posição interme­
diária, considerando o imJlltlso corno uma forma primitiva 011 uma
fase preliminar da vontade. A lpms cheJ.{aram até a concepção
de que a própria vontade era apmiatt um impulso e, na realidade,
um impulso inibitório. Nestas diversas concepções da relação
entre o impulso e a vontade reina, a nosso ver, muita obscuridade.
f:, contudo, indispensável, para n fundamentação de uma caracte­
rologia, que se esclareça o fator "impulso". Por isso, devemos nos
ocupar, ainda mais um pouco, com essa questão.

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68 RUDOLF ALLERS

O motivo de serem aproximados, tantas vêzes, o. impulso e a


vontade resulta de uma expressão usualmente empregada em psico­
logia, psiquiatria, pedagogia e criminologia - comportamento
impulsivo. Quer-se exprimir, com isso, uma atitude ativa tlo
homem que, em sua forma exterior, se assemelha à conduta deri­
vada do querer consciente (no momento da ação, ou - quando
parece tratar-se de um ato mais ou meno!I "automático" e habi­
tual - de um querer dado na primeira vez, ou existente em
princípio), embora, em sua formação interna, vários momentos,
atribuíveis a conduta voluntária propriamente dita, possam faltar
ou ser substituídos por outros. Um exame dêsse conceito será
também necessário para a compreensão da relação entre a vonta­
de e o impulso e do papel dêste no conjunto do comportamento
humano.
Deve ser observado também que, muitas vêzes, a conduta
impulsiva deve ser distinguida, tanto do ato livre da vontade como
do ato puramente instintivo. Sem dúvida, deve ser evitado falar
de um procedimento que deriva do instinto ou se baseia neste.
E mais correto utilizar-se exclusivamente da expressão: "reação
instintiva". (Ao conceito de instinto está ligado, aliás, o mesmo
caráter hipotético e, portanto, as mesmas reservas, que observa­
mos, atrás, em relação ao impulso). Costuma-se entender como
"ação impulsiva" uma ação em cuja motivação o impulso tem um
papel preponderante. Mas, qual é êste papel?
A opinião de que todo impulso visa, em última análise, a
"satisfação" e o prazer a ela ligado, tem muitos representantes.
Segundo esta concepção, o impulso se acalmaria, logo que tivesse
alcançado seu fim e, com isso, o prazer da satisfação. Isso é certo,
talvez, para os impulsos de nutrição e os sexuais. Há, contudo,
ainda outras formas de prazer, que podem ser consideradas de
fundo impulsivo. K. BÜHLER acentuou, com tôda razão, que pode
ser atribuída ao prazer de satisfação uma outi-a significação de
grande importância, que êle designou, com muita felicidade, como
"p i-azer de função". 1 BüHLER atribui, também, com razão, a uma
terceira forma - o prazer de criação - independência em relação
às outras. Sua natureza consiste em que a ação impulsiva não é
acalmada pelo prazer gerado por ela própria, mas, pelo contrário,
tira sempre dêste novos impulsos para a realização. O exemplo
mais elucidativo de tal forma de impulso e do prazer de função
que lhe está associado, é o impulso lúdico. Deve ser, porém, obser­
vado, que existem ainda outras funções, que podem ser contadas,
de modo geral, na classe dos impulsos. É o que se dá, antes ele
tudo, com o mpulso de conservação própria. Subtrair-se ao peri- ·

1. K. BÜHLER - Die Krhe der Psycholoyie (lena, 1928).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 69

go, pode tornar-se, em verdade, uma fonte de prazer. Mas êste


prazer, nem contém, em si mesmo, a essência da "satisfação do
impulso", nem provoca a cessação do impulso (como, por exemplo,
no caso ela satisfação pela comida), nem se .;issocia também, ime­
diatamente, à situação final (como nos casos do prazer de satis­
fação). Não é correto afirmar, portanto, que todo impulso fica
abolido com o prazer. No fundo dessa opinião não estão uma
convicção ou uma teoria biológicas, mas uma determinada con­
cepção do universo, ou, pelo menos, uma determinada construção
a respeito da formação do comportamento ético. Considerada em
seus fundamentos, esta teoria da natureza do impulso, suposta
biológica, não é mais que uma projeção da ética hedonística sôbre
o plano da biologia. É característico do hedonismo, reconhecer no
prazer o único fim possível da conduta. Já mostramos· que' tal
suposição não encontra qualquer apoio na fenomenologia do com­
portamento humano. Seria necessário fazer uma transformação,
mais ou menos complicada, do sentido apresentado, para poder
justificar, em cada caso, a tese de que o prazer é sempre o fim
procurado. Como já dissemos, não acreditamos que uma situação
possível seja a meta de uma conduta, só porque promete, incondi­
cionalmente, um prazer. Ao contrário, o prazer partilha, com os
outros fins possíveis da ação, um traço comum: sua vivência signi­
fica também a realização de um determinado valor, de um valor
que pertence à hierarquia dos valores vitais.
Tudo que se pode designar, em sentido estrito, como impulso
é atividade e, como tal, dirigido para uma situação futura e a
realizar. O fenômeno ou a atitude impulsivos têm, em comum com
a verdadeira ação, essa estrutura. Se, no julgamento da ação
verdadeira, adotamos como norma que se deveria partir dos
resultados efetivos, o mesmo princípio deve ser aqui utilizado.
O resultado efetivo - isto é: a situação realizada por uma ação
- é sempre, entanto que fim alcançado da ação, o valor realizado.
Seu conhecimento e o reconhecimento da validez do esfôrço prece­
dem a todo o complexo da conduta. Devemos, portanto, indagar
qual o valor visado na chamada conduta impulsiva.
É fácil responder a essa pergunta. Na conduta impulsiva são
realizados apenas valores vitais. Qualquer que seja o resultado de
tais reações, êle nunca ultrapassa a esfera da vida individual e
orgânica. Ninguém negará que o impulso sexual esteja neste caso,
já que êle "serve à conservação da espécie". A associação da
sexualidade à procriação é, naturalmente, incontestável. Mas, na
vivência dêsse impulso a referência ou subordinação à geração dos
descendentes não representa o menor papel. Quando êsse mo­
mento penetra na vivência sexual, êle vem de uma esfera estranha
a esta, de um conhecimento que, como motivo da conduta, fica
igualmente em regiões absolutamente exteriores à impulsiva.

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70 lt U J) O L 1'' A T, l, l� lt 8

Oi, moclcm cfo aparecer, ou aB manifcxtaçõeH, dofl impulHOll


nudrL mafa .�ão 11w1 a mu:neira pela r1ual ,1r; avren,mta, ,1 vfoência,
a série de vu,lorr;.� vitni.�. A afirmação muita!I vêzell feita da irre­
HiHtlhilidade elo impulso, ou, pelo ·mcnoH, de /leu dominio impera­
tivo e de difícil opo:-iiçii.o, deve ser, poh1, explicada pela pm1ição que
ocupam, na conduta irrefletida, os valores vitais.
JJoiH m0mento1, podem Her m.lHinalados nessa posição. Em pri­
meiro lugar, a região de realidade, no interior da qual se verifica
a concretizaçi"w duc1uelcH valorcH vitahi, postos como alvo da pro­
pensão impulsiva, é a corporeidade ela própria pessoa agente. Por
isso, não pode, o agente de uma pura ação impulsiva, ser impedido
de ultrapassar sua esfera individual. Acredito que, quando ações
aparentemente impulllivall atingem uma realidade colocada além
do. corpóreo, aparece, imediatamente, uma complicação com o não-
-impul1,ivo.
Em 1,egundo lugar, está ligada aos valores vitais, o que se
po<leria chamar uma "fôrça <le convicção" de tipo especial, que
não corresponde à sua posição objetiva na hierarquia dos valores.
Por que é assim? Por que parece "natural" colocar êsses valores,
subjetivamente mais expressivos, à frente dos valores objetiva­
mente mais elevados'/ Eis questões que não pertencem mais à
caracterologia; mas, talvez, a uma antropologia filosófica, que
estudasse a natureza humana em geral. ( Como já foi indicado,
tal questão est{1 lntimarnente ligada ao problema da· natureza
decaída, ao pecado original) . É importante, porém, para uma
{"aracterologia, constatar que, em lugar de uma doutrina que via,
na existência de impulsos duradouros no homem, organizações cle
certo modo dinâmicas e de relativa independência, pode surgir,
com pleno direito, uma outra concepção, que vê sempre, nos fenô­
menos impulsivos, a manifestação de valores determinados - os
valores vitais.
Foi necessário fazer esta dis1:1ertação, talvez um pou�o longa,
sôbre o conceito ile impulso, devido a dois motivos. Primeiro,
porque parecia indispensável esclarecê-lo, tendo em vista a questão
que deve ser esclarecida futurámente, do papel da constituição n�
formação do carãter e, segundo, porque êsse conceito é de impor­
tância para a teoria do fenômeno, que constitui o ponto de partida
de tôda essa digressão: a vontade de poder. Na realidade, não
Be poderia perguntar por que chamá-la "vontade" de poder, se
ela é, como admitimos, tão absolutamente constitutiva da natu­
reza humana e está associada a esta como uma característica geral
e fundamental. De fato, é-se inclinado, reahnente, a pensar que
todos os traços gerais e constituivos estão arraigados de modo
imediato na organização psicofísica e a aproximá-los, assim, do
qu_e Be costuma representar como propensão ou "impulso".

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PSICOLOGIA DO CARÁTf�R 71

Deveríamos, sem dúvida, tomar primeiramente as dívenm�


formas de impulso descritas na literatura científica e verificar 8ll
nelas se mantinha a significação determinada, a fim de defender
a nossa limitação do conceito de impulso contra lôdas as oujeçõe,i
-possfreis. Mas, para isso, seria preciso transpor os limites aqui
traçados. Uma explicação pormenorizada deve, por cuw;cguinte,
ficar para ulterior exposição.
Se é, porém, exato, que tudo o que chamamos impulso isto é:
fenômenos e manifestações clêste, não é mais elo que a maneira
pela qual se apresentam à vivência os valores vitais e se é também
exato que a esfera de realidade, em que ésses valores vitais podem
tomar aparência concreta, ficará sempre limitada i1 corporeidade
individual, então o poder, sendo um valor que pressupõe incondi­
cionalmente a esfera cio "não-eu", entanto que realidade, nunca
poderá ser o fim do puro impulso. Então, não pode ter i-;cnl ido
falar em um "impulso" de poder e essa "vonta,le de pocler" eleve
significar algo mais que uma modificação particular da "cons<!rva­
ção de si mesmo" ou do "impulso de auto-afirmaçf1011 •
O motivo pelo qual a vontade de poder é algo mais rio que
uma manifestação modificada do impulso (ou algo de diferente
dela) é observado no fato cl'e que o homem nfw faz parte cios
diversos domínios de ser a que perlence como um ser dividido,
mas como um ser indiviso. Assim, êle não é um membro da
natureza bruta ou viva em virtude de sua corporeidade, ou um
membro da natureza espiritual em virtude de sua espiritualidade,
etc., etc., porém pertence sempre a cada um elos quatro reinos
corno um todo indiviso e uma unidade. Por certo, é evidente que
sua subordinação ao reino da Natureza se torna essencialmente
visível em virtude de sua corporeidade. Mas, mesmo aqui, êle não
é apenas uma construção natural. Isso se torna claro, entre outras
coisas, pelo fato de que as mudanças de posição, foitas sob outros
pontos de vista, não deixam de ter influência nas próprias condi­
ções e funções de seu órgão corporal. No fundo, não pode haver,
portanto, na forma geral do "homem", qualquer impulsividade
pura, porque tal coisa está ligada apenas ao natural e pressupõe
uma organização estranha aos reinos da Personalidade, do Espí­
rito e da Graça.
Tais considerações serão válidas, logicamente, para tôda con­
duta do homem e também para aquela que se está inclinado, ou
habituado, a considerar "puramente" impulsiva. Fica, pois, ex­
presso, sôbre êste ponto (mesmo quando não seja indicado por
uma análise minuciosa) que é impossível admitir o comporta­
mento impulsivo corno um degrau, em relação a outras formas
mais elevadas de conduta . Na verdade, o orgânico, e, portanto,
qualquer aspecto de seu funcionamento que designemos pelo nome
de "impulso", serve de "fundamento" às produções mais "eleva-

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72 RUDOLF ALLERS

das", entanto que estas pressupõem aquêle, dada a' própria natu­
reza. corpóreo-espiritual do homem, como um todo indivisível e
uno. Mas elas não são "geradas" por uma transformação daquele
orgânico (o que ninguém pode compreender, aliâs, se bem que
seja muitas vêzes afirmado). Não poderemos também desenvol­
ver êste ponto, pois teríamos necessidade de nos ocupar minucio­
samente com tôdas as concepções caracterológicas que fazem do
impulso o elemento, ou material primitivo, de tôda a conduta
humana.
Cabe aqui uma observação. O fato de que em tôdas as formas
de comportamento humanas - seja as que se passam no plano
do orgânico, como as funções fisiológicas ou as enfermidades, seja
as que se elevam às mais altas produções do espírito e, até mesmo,
a união com o sqbrenatural - o homem age ou funciona sempre
como um todo único e inteiro, em tôdas as suas possibilidades
e aspectos do Ser, faz com que não seja supérflua uma classifica­
ção das diversas ações e reações segundo tais aspectos. Quando
a pessoa se apresenta, de modo mais ou menos claro, em cada
um dêstes aspectos, temos o direito de falar numa atitude orgâ­
nica (corpórea), social, cultural ou religiosa, desde que não esque­
çamos que, num sentido estrito, não existe uma atitude "pura"
em cada um dêsses tipos. Do mesmo modo que o mais sublime
pensamento não se pode subtrair à associação com o corpóreo,
já que se funda numa representação intuitiva e procura, por sua
natureza, uma expressão na palavra, que é uma função corpórea
- por mais que pertença, em sua essência, à esfera espiritual -
tampouco se pode libertar da relação com o plano social, já que
a expressão significa expressão para outrem. Por outro lado, ao.
conter a verdade e o valor, êle não pode ser independente da
Verdade existente e do Summum Bonum. Nenhuma outra forma
de comportamento pode também - segundo nossa tese - ser
dissociada dessa unidade da multiplicidade (unitas quadruplex)
que assinala e determina, em essência, a própria natureza do
homem e sua posição na hierarquia do Ser.
\
4. Vontade de poder

Dissemos que o ambiente que determina, inicial e decisivamen­


te, a conduta do homem, é o dos seus semelhantes. É para êles
que se dirige, principalmente, aquela atitude ou tendência funda­
mental, que havíamos designado justamente pela expressão:
"vontade de poqer". A História nos mostra que o domínio sôbre
os semelhantes, ou a sujeição dêstes (que precedeu aquêlc) já se
tinha realizado, muito antes de se ter atingido o domínio da natu­
reza ou a posse das coisas espirituais.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 73

Tornam-se, agora, claras as hip6tcsc11 que permitiram as con�


siderações sôbre a vontade de 11odcr, suas modalidades e as condi­
ções de seu desenvolvimento.
Dissemos que a vontade de poder era uma tendência primeira
do ser humano, que, abamlonada a si mesma e sem poder que a
contenha, eleve desenvolver-se ao infinito. Contudo, essa vontade
encontra uma dupla limitação. Primeiramente, opõem-se-lhe obs­
táculos provindos do ambiente; depois há, no próprio homem,
condições - também de um duplo tipo - que impedem o desen­
volvimento ilimitado da vontade de poder. Em primeiro lugar,
encontra-se no homem uma segunda tendência, igualmente primi­
tiva e pertencente à sua natureza profunda, que age em sentido
contrârio daquela. Veremos, depois, ao estudá-la pormenorizada­
mente, que ela pode ser denominada : "vontade de associação".
Em segundo lugar, determinadas características ligadas ao homem
tornaram, desde logo, impossível o livre desenvolvimento da vonta­
de de poder.
Sôbre as limitações à vontade de poder postas do exterior,
não precisamos dizer muita coisa. Elas são dadas pela concorrên­
cia da vontade de poder dos outros homens, pela resistência da
natureza inanimada - que a técnica consegue iludir, mas não
pode utilizar definitivamente - e pelas leis contidas nos costumes
e tradições, no direito e na economia. Também não falaremos dos
limites impostos à vontade de poder pela incontestável ligação do
homem aos mandamentos e leis de origem sobrenatural, pelo
conhecimento, arraigado na alma, da finitude e limitação da cria­
tura e também pela voz da consciência moral. De fato, tais man­
damentos e leis se acham, por sua própria natureza, fora do ho­
mem, embora êle os viva em seu interior como reais e possa,
portanto, lhes dar um sentido. Assim, poderemos falar das pró­
prias muralhas existentes na vida interior, de encontro às quais se
choca em vão a vontade de poder.
Se esta vontade de poder é efetivamente uma tendência origi­
nal e, como tal, pertencente ao âmago da natureza humana e cons­
titutiva desta, deve-se esperar que se manifeste na própria infân­
cia. Poderíamos mesmo supor que suas manifestações na infân­
cia, especialmente nos primeiros anos, deveriam ser muito mais
compreensíveis, já que várias influências destinadas a abafá-la,
ou fazê-la tomar vários disfarces, ainda não se haviam feito valer.

5. Sôbre a vida espiritual da c1-iancinha

Essa expectativa é confirmada pela experiência, com uma


amplitude que não se poderia, talvez, supor inicialmente. Um
estudo minucioso da conduta infantil e dos motivos que nela agem

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74 RUDOLF ALLERS

mostra-se extraordinàriamente elucidativo para a compreensão da


estrutura fundamental do caráter e dos momentos de que depen­
de a formação dêste. Mas tôda conduta humana, sendo uma re­
lação entre o eu e o não-eu, a pessoa e o ambiente, depende também
essencialmente do segundo membro dessa relação. Deve, pois, pes­
quisar-se, antes de tudo,· a questão das · condições específicas do
ambiente da criança.
A opinião várias vêzes apresentada - e ainda recentemente
defendida por E. SPRANGER 1 - de que a alma da criança
absolutamente incompreensível para o adulto, ou, como se costu­
ma dizer, "insimpatizável" para o adulto, só pode ser aceita, a
meu ver, quando não se tentam esclarecer de modo suficiente as
peculiaridades do ambiente, tal como se apresentam à vivência
infantil. De acôrdo com a tão elucidativa psicologia da criança,
de K. BÜHLER, 2 posso afirmar que uma tal separação entre a
vivência do adulto e a da criança, não existe de modo aJgum.
Também as novas pesquisas sôbre a sociologia e o comportamento
da criancinha, feitas sob a direção de CHARLOTTE BÜHLER,3 justi­
ficam completamente essa tese, mesmo que não mencionemos as
experiências de psicologia individual, adquiridas, nos trabalhos de
criação e na escola, por médicos e professôras que se manifesta­
ram favoràvelmente àquela opinião.
Que momentos distinguem, então, o ambiente da criança?
Tanto quanto posso ver, quatro dêles se apresentam como funda­
mentais. São os seguintes:
1. A pequenez da criança, que a obriga, incessantemente, a
olhar para cima com o que, sem dúvida, aparece uma vivência de
inferiorização. (Sem dúvida, como a maioria das vivências dêsses
anos,° esta vivência não atinge a uma apresentação clara ou racio­
nal) . Falando em inferiorização, trazemos à luz uma relação, que
se tornará ainda mais clara, quando compreendermos que tôda
dominação se serviu, em tôdas as épocas, do símbolo de uma ele­
vação sôbre os outros. Não é necessário dar exemplos.
2. A fraqueza corpoml da criança e, por conseguinte, a opo­
sição do mundo a todos os esforços, feitos pelos pequeninos para
impor sua vontade ou realizar os seus desejos, são incomparàvel­
mente maiores que no caso do adulto. Do mesmo modo que tantas
eoisas são inatingíveis aos ávidos bracinhos estendidos, assim tam­
bém inúmeras idéias são irrealizáveis, devido à dificuldade de seus
objetos.
Ambas essas coisas, a pequenez e a fraqueza, se tornam ainda
mais conscientes para a criança, em conseqüência da atitude dos
adultos que a rodeiam, os quais costumam acentuar êsse fato (mais
1. Psycho/ogi, des Jug,r,dalrers (Leipzig, 1926),
2. Dic geisrige Entwick/ur,9 des Kindcs (lena, 1925).
3. Reunidas cm Kir,dheir une/ Jugend (Leipzig, J 9 28).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 75

do que é necessário ou útil) por meio de suas palavras. Veremos,


depois, que erros são cometidos dêsse modo e que conseqüências
desagradáveis podem, com o tempo, surgir daí.
3. A incerteza do conhecimento da criança. Desde cedo, ten­
ta a criança adquirir leis gerais e construir conceitos universais,
seguindo assim uma predisposição geral do homem. Ela o faz,
como o adulto, baseando-se principalmente em analogias. Mas
estas se prendem necessàriamente, na maioria dos casos, ao que é
acidental e, por isso, Jogo se mostram enganadoras. Assim, uma
criança pode formar, por exemplo, a opinião de que um metal
amarelado e brilhante se chama ouro e se alegrar com êsse conhe­
cimento (porque o aumento de conhecimento é, em geral, muito
agradável para a criança). Mas, alguns dias mais tarde, aprende
que existe também o latão. Tais surpresas abalam, muitas vêzes
terrivelmente, a confiança da criança na certeza de seu conhe­
cimento. Pro".ém daí a equivocidade das palavras, imediàtamente
visível em várias crianças e a diversidade de seu emprêgo sin­
tático.
4. A incerteza em relação às leis e generalidades descober­
tas pela criança, associa-se intimamente o fato de que o mundo
lhe dl;Í, uma impressão de imprevisibilidade. Sua "confiança na
regularidade dos acontecimentos" é pequena. Daí estar muito
ligada ao pensamento infantil a crença no maravilhoso (que, por
exemplo, os exercícios mal-escritos se transformam, a caminho
da escola, numa obra perfeita) e a incerteza absoluta em relacão
aos acontecimentos mais próximos. As regularidades, que nos
parecem naturais e invioláveis, não têm, de modo algum, êsse
caráter, para a criança. Ela é tanto menos inclinada à crença,
quanto descobre, logo, que muitas destas leis admitem exceções,
que, embora para nós pouco visíveis, representam para a criança
uma quebra real da regra que parecia imutável. Assim, por exem­
plo, quando um copo cai ao chão sem quebrar, embora a criança
tenha ouvido dizer sempre que, nestas quedas, os copog se que­
bram. O próprio tempo, a sucessão dos dias da semana, contém
alguma incerteza, para o pensamento infantil. Um menino de
cinco anos disse uma vez a seu pai, numa segunda-feira, 22 de
dezembro: "Não saias! A quarta-feira (véspera do Natal) pode
chegar de repente ... ".
Esta descrença no firme valor das leis do universo é ainda
mais fortalecida pelas atitudes dos adultos. "Nunca se pode saber
- disse-me, em .confidência, urna garota de oito a nove anos -
o que farão as pessoas crescidas". Infelizmente, não era apenas
em seu ponto de vista que essa criança tinha razão: a falta de
lógica na conduta de um educador é um malefício fundamental,
que pode ter influência muito desfavorável na formação do ca­
ráter.
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76 RUDOLF ALLERS

Na verdade, muitas ações dos adultos podem parecer incom­


preensíveis e incalculáveis para as crianças. Mas há muitas coi­
sas, feitas realmente pelos adultos que, mesmo objetivamente con­
sideradas, parecem de uma inconseqüência incompreensível.
Quantas vêz;es não sucede que uma pessoa, em visita ocasional
aos pais, repreende, na criança, coisas que até então passaram
despercebidas. A criança não pode, evidentemente, ver nisso qual­
quer lógica. Confesso que também não vejo. Um procedimento
que parece bom aos pais não devem também parecê-lo às pessoas
estranhas?
Se nos perguntarem qual é, em nossa opinião, o efeito geral
do que aqui indicamos sôbre os traços essenciais da vivência
infantil - por exemplo, sôbre o ambiente que lhe é dado - não
teremos dúvida em responder: é uma incerteza, que penetra tôda
a vida da criança. (Naturalmente esta· incerte:,:a nem sempre é
consciente e só parece em raros momentos, com exceção de alguns
casos especiais a .mencionar, que se afastam da direção correta
do desenvolvimento). À afh·mação de que a incerteza é um traço
fundamental da vida infantil, serão logo opostas, provàvelmente,
várias opiniões, falando sôbre a "segurança" em que vive a crian­
ça (''Oh, se eu soubesse o caminho de casa. . . Ai! Por que pro­
curei o prazer e larguei a mão de :Mamãe?"). Todavia, só sente
e experimenta segurança aquêle que se julga, de certo modo,
incerto. A segurança não é senão a luta contra tôda espécie de
agravos e dificuldades, associada ao fato de que a responsabili­
dade pela nossa conduta não ·recai sôbre nós, ou apenas sôbre nós,
mas é suportada e defendida por outros. A segurança é correlati­
va da incerteza e a pressupõe.
Nesta incerteza, baseada nas condições qa ambiência infan­
til - a única ambiência que a criança pode cbnhecer em virtude
de suas condições próprias -, na fraqueza corporal e na falta de
conhecimentos estão poderosos obstáculos, opondo-se à primeira
vontade de poder. Dados ao mesmo tempo que esta, êles lhe são,
contudo, opostos. Poder-se-ia dizer que a vontade de poder é expe­
rimentada, logo de início, como algo condenado ao insucesso. Há
aqui uma tragédia: porque a vontade de poder, de auto-afirma­
ção e de auto-desenvolvimento da pessoa, não pode, de maneira
alguma, ser avaliada negativamente. Dirigida para um fim justo,
ela é, por certo, a grande fôrça impulsiva, que permite o desen­
volvimento pessoal, histórico e cultural. Há, pois, em cada caso,
o perigo de que a vivência da limitação do desenvolvimento do
poder não só impeça a exuberância daquela vontade (que se mani­
festa em formas novas de evolução moral e cultural) como também
abale os fundamentos de tôda a produção positiva e de todo o
progresso, no sentido de um desenvolvimento ético e pessoal.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 77
É, portanto, um dos lemas mais errados - como veremos,
mais tarde, em pormc,1or -- aquêle tJne declara "dever ser quebra­
da a vontade da criança". Pois que, mesmo para lutar pelo Bem,
ou resistir ao l\Ial, precisa-se da vontade. Como esperar, então,
que um homem possa pôr em ação essa vontade, se a quebraram
em sua inffmciu?
Não queremos, porém, tratar aqui das conseqüências práti­
cas e pedagógicas, que resultam da exposição feita até aqui.
Vamos inda�ar, pelo contrário, das circunstâncias e condições, que
parecem mais apropriadas a tornar mais considerável e expressi­
,·a a limitação, jú oposta interiormente à vontade de poder pelos
motivos da condição e da vivência humanas. Já dissemos oue
todos êstes têrmos: vivência, impressão, experiência, quando e·m­
pregados em relação à situação espiritual da infância, não devem
ser compreendidos no sentido de um objeto claro, consciente e
racional. Deve-se compreender claramente que aquela "segunda
,·ontacle", de que fala Santo Agostinho na passagem atrás citada,
é uma ,·ontade de que o homem nada sabe, na maioria das vêzes.
Para compreendê-la e à sua finalidade, êle precisa descobri-Ia
primeiramente por uma introspecção penosa (que raramente tem
êxito, se prescindirmos da iluminação sobrenatural) . Esta segun­
da vontade é alimentada pelas impressões que penetram em nossa
alma, sem que as tivéssemos considerado ou sem que nos tornásse­
mos, de modo geral, conscientes delas. Não é necessário, para os
fins aqui propostos, que nos ocupemos do conceito de "inconscien­
te". Não precisamos ter a preocupação de pensar o que êle seja.
Basta-nos supor que há alguma coisa dêsse tipo. Ê, pois, inteira­
mente falso acreditar, que processos percebidos pela criança, pala­
vras que ela om•e e ações que ela obser\'a não deixem qualquer
traço em sua alma pelo fato de que, como se diz, "ela não com­
preende'', ou "ainda nfw pode entender". Para que as impressões
sejam eficazes, não precisam ser entendidas: basta que simples•
mente existam.
Assim, circunstâncias de tôda espécie - julgadas, pelos adul­
tos, sem importância para a criança e seu desenvolYimento -
podem ter uma significação decisiva, porque acabam criando obs•
táculcs intransponíveis para aquela vontade de poder. Esta é,
;porém, a expressii.o da afirmação do próprio eu. Depende portan­
to dela e de que ela não seja inteiramente anulada, aquêlc momen­
to de consciência de si mesmo, que penetra tôda nossa vi\•ência
e é indispensável à nossa conservação e nosso progresso na vida.
O fato de que o homem não é apenas um existente, mas também
algo aue vale - o portador de um valor - con�titui um momento
absolutamente necessário. Esta vivência do próprio valor não
necessita, por exemplo, da vivência da saúde corporal (que é,
aliás, análoga, em muitos pontos, à do próprio valor) para !iiC

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78 RUDOLF ALLERS

tornar, de certo modo, matéria de uma vivência consciente. Mas


:ma ausência, ou deficiência, produz infalivelmente um efeito (do
mesmo modo que as enfermidades do corpo), mesmo quando não
é reconhecida como tal, desde que perturbe esta ou aquela função.
Uma pessoa sente-se muitas vêzes doente sem que saiba qual é
sua doenca.
É p/óprio do homem medir constantemente sua situação par­
ticular - exterior ou interior - por• uma norma qualquer e com­
paral' snas condições e produções com um ideal qualquer. Ésse
ideal se origina de fontes primitivas diversas. Primeiramente,
existe em todo homem certo conhecimento obscuro (mas nem por
isso. menos eficiente) do que "êle podia e devia ser". De uma for­
ma verdadeiramente misteriosa, conhecemos nossas possibilidade;,
últimas, as possibilidades de valores que estão em nós e devem ser
realízadas por nós. Como possibilidades, elas nos mostram o que
:podemos ser; como valores, nos indicam o que devemos ser.
Em segundo lugar, baseando-nos na experiência, construímos
para nós um ideal: primeiro, em relação a outras pessoas e, depois,
em relação à nossa própria conduta. Os pormenores dessa criação
do ideal e seu papel na formaç_ão do caráter serão expostos mais
tarde. O que importa aqui principalmente é saber que uma tendên­
cia para isso já está em ação, naturalmente, no período da infân­
cia. As crianças são, pois, inclinadas e levadas a pôr, diante de
si mesmas e de sua posição no mum.lo, aquela imagem que cons­
truiram para os outros e a posição dos outros.
Seria, pois, da máxima importância, conhecer minuciosamen­
te a maneira pela qual as crianças, sobretudo as pequeninas, vêem
os adultos e os da mesma idade, uem como as outras crianças mais
velhas e mais novas. Para falar com sinceridade, parece que se
conhece pouco sôbre isso. Talvez não se tenha compreendido bem
claramente a importância dessa questão e, por isso, não se tenha
procurado fazer pesquisas mais sérias. Deve-se reconhecer, con­
tudo, que não seria muito fácil dar explicações sôbre tais coisas.
Todavia, certas coisas puderam ser esclarecidas: em parte, graças
ao trabalho do pesquisador de psicologia individual e, em parte,
porque certas conclusões seguras puderam ser tiradas das condi­
ções em que a criança.vive seu ambiente.
Como dissemos, a criança se sente - mesmo quando criada
em condições as mai'i favoráveis - necessàriamente incerta. Mas
ela encontra ou acredita encontrar a certeza nos adultos, junto a
quem se refugia em busca da segurança. Ela tem muitos motivos
para tal fé, já que os adultos se revelam, em inúmeros casos, cola­
boradores, solucionadores de dificuldades e protetores. Sua incer­
teza faz com que a criança procure segurança e sua vontade de
poder faz com quE: sinta, nesta necessidade, uma prova de inferio­
ridade e insuficiência.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 79

6. A vivência de depreciação baseada na condição corporal

Tudo aquilo que é capaz de aumentar a insegurança da crian­


ça opera, portanto, no sentido de prejudicar a vivência do próprio
valor, agravando, assim, o "sentimento" de insuficiência. É o que
a psicologia individual denomina "vivência de depreciação", uma
expressão que já se tornou bastante familiar: Deve-se observar,
além disso, que o emprêgo da palavra "sentimento" é neste senti­
do um tanto arriscado. A palavra é das mais equívocas e devemos
nos acostumar a empregá-la, na descrição científica, em um senti­
do bem delimitado e definido. A depreciação, como matéria de
vivência, pressupõe que seja percebida uma relação para um valor,
na medida do qual nos avaliemos como de menor valor. Há, pois,
como fundamento dessa vivência, um conhecimento de relação.
Embora êle seja indeterminado e esteja muitp longe de ser formu­
lado como julgamento, êle se dirige, contudo, para êste. É duvi­
doso, porém, que se possa empregar a expressão "sentimento" em
relação a um tal tipo de vivência. Em todo caso, parece mais
prudente falar num conhecimento indeterminado, ou numa vivên­
cia da própria insuficiêncià ou depreciação, do que num sentimen­
to. O têrmo "depreciação" é, pelo contrário, uma escolha muito
feliz, porque dá conta, ao mesmo tempo, do fato de'insuficiência
vivida, e de seu fundamento numa comparação e numa avaliação
de si mesmo, em relação aos outros e a um ideal.
Por outro lado, qualquer impressão. que é capaz de anrofnn­
par a vivência d_g_çepreciacão. reforça a inseg11rança em que a
}!ornem se encontra. Gera-se, assim, um círculo fatal que, em casos
demasiado numerosos conduz a profundas distorções de caráter,
que só podem ser anuladas mais tarde com esfôrço e nem sempre
com certeza.
Os motivos que podem tornar-se pretexto para um aumento
<la incerteza e, portanto, para que se aguce a vivência de depre­
ciação dependem da condição pessoal da criança, ou da atitude do
ambiente em relação a ela. (Na realidade, ambos os fatôres, ainda
que conceitualmente distintos, são encontrados numa multiplici­
dade de conexões mútuas) . Vamos considerar, agora, os mais
importantes dêstes fatôres e o modo como agem, sem pretender,
contudo, fazer sua enumeração completa. Com isso, teremos tam­
bém oportunidade de observar muitas coisas positivas, ou duvi­
dosas, em relação ao estudo do caráter.
A condição geral do corpo se denomina, habitualmente, cons­
tituição, embora, em sentido preciso,· a constituição só deva com­
preender, em si, as características inatas e invariáveis, mas não
as adquiridas, as que resultam de doenças, etc. A questão cientí­
fica da origem desta condição não tem importância aqui, de modo
que poderemos falar de constituição no sentido usual. Com isso,

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80 RUDOLF ALLERS

designaremos, tanto os tipos de constituição que se costumam sim.


plesmente denominar naturezas fracas ou fortes, como os que se
desviam do "tipo normal" em determinada direção, produzindo
uma ruptura no equilíbrio harmônico das funções dos órgãos ou
nas proporções de sua atividade.
A importância da constituição, ou condição do corpo,. para o
desenvolvimento e configuração do caráter, pode ser entendida de
vários modos. A opinião mais espalhada. é a de que deve ser atri­
buída à constituição uma importância primordial,/é-se levado a
crer em uma associação unívoca e necessária entre as duas formas,
de tal modo que uma determinada constituição traz consigo,
necessàriamente, determinada forma de caráter. Na realidade,
KRETSCHMER, que deu nestes últimos anos o mais forte impulso
à pesquisa desta relação, fala em seu livro Kõrpe?·bau und Charak­
ter, 1 apenas numa "afinidade" entre os tipos ·de constituição cor­
pórea e as formas de caráter. Mas, no essencial êle considera tam­
bém a constituição uma das causas da formação do caráter.
Não nos podemos associar a esta coni;epção. 2 Se ela fôsse
exata, a mutabilidade fundamental do caráter seria inimaginável,
já que a constituição do homem é um dado imutável, ou, pelo
menos, variável em limites estreitos. Diante das provas de muta­
bilidade apresentadas na primeira parte dêste livro, parece-nos
inadmissível uma tal dependência necessária, no tipo da causali­
dade natural. Conhecemos casos de profunda rnodificacão de cará­
ter, mesmo numa constituição francamente anormal; á psicotera­
pia pode, sem dúvida, atuar sôbre aquêle, embora não tenha in­
fluência sôbre esta. Além disso, acontece que encontramos, para
uma única e mesma modificação determinada de constituição,
caracteres muito diferentes; o cretinismo endêmico denende da
mesma enfermidade da tireóide, para todos os doentes; há, contu­
do, entre os cretinos os mais diversos caracteres.
Devemos, portanto, procui-ar outra explicação. Naturalmen•
te, é exato dizer que o corpo deve exercer considerável influência
sôbre a forma do caráter. Há, também, por certo, algumas re­
lações que são muito próximas das causais. Mas esta interpreta­
ção das condições corpóreas como causas e das condições psíqui­
cas, inclusive as do caráter, como efeitos, depende de uma deter­
minada pressuposição sôbre a natureza da conexão corpo-alma. Ela
só se torna possível quando se baseia na chamada hipótese da ação
recíproca, que considera o corpo e a alma como naturezas inde­
pendentes e só casualmente associadas. Não poderemos mostrar,

1. 7.ª e 8.3 edições (Berlim, 1929), Ver também M,d;zinische Psycho/ogie


do mesmo (Ldpzig, 1924).
2. Para mais pormenores, wr em meu manual, Medizinísche Ch"roktcrologie
e também P&ychologie und Psychíatrie (Beihefc der \Vimer Klin. Wochcnschrift,
1927).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 81
aqui, que a hipótese da ação recíproca não é também capaz de
justificar os fatos e satisfazer as exigências de uma teoria filosó­
fica do problema corpo-alma, tal como se verifica cada vez mais,
na teoria do paralelismo psico-físico. 1 Uma cuidadosa ponderação
de todos os fatos reconhecidos conduz necessàriamente, a meu ver,
a uma teoria que afirma, não uma conexão corpo-alma, mas uma
unidade do corpo e da alma na natureza indivisível do.p.omem.
Uma tal tese, que poderia, creio eu, ser provada por uma crítica
das opiniões dominantes e um exame de todos os fatos - com tôda
a firmeza de que são capazes tais demonstrações - concordaria
essencialmente com os pontos de vista apresentados, já há muito
tempo e com boas razões, pela filosofia escolástica. Numa tal con­
cepção, a dependência recíproca das condições, ou funções, do cor­
po e da alma nunca seria contestada, como é natural. S6 a questão
de causa e efeito apresentaria outro aspecto.
O problema de como o corpo, ou uma modificação de suas
condições, podia ser "causa" de ocorrências psíquicas, foi, provà­
velmente, um dos que conduziram ao estabelecimento da tese do
paralelismo psico-físico. Nesta se evita, na realidade, tôda intro­
dução da causalidade. Pode-se, porém, evitar, neste assunto, o
inconveniente da noção causal, se se compreender que existe uma
outra conexão, além da de causa e efeito. Deve-se distinguir entre
causa e ocasião/As experiências que realizamos e as impressões
que recebemos são ocasiões das ações. Se pudéssemos, portanto. _.: .s 1
compreender a condição corpórea de um homem como um elemen- .J-;;odt ,ft()
to de sua experiência, ela não seria mais considerada uma causa,
mas uma ocasião de suas ações ou atitudes/ Mas, então, pode-se
pensar também que as ações de um homem, ou a norma que lhes
serve de fundamento - o caráter -, podem ser sujeitas a alte-
rações, apesar da invariabilidade de sua constituição, pois que a
condição dada não pode, como tal, ser considerada isolada. A ati-
tude, a apreciação e a valorização, que pertencem ao conjunto da
experiência ou são por êle indicadas, terão grande influência na
determinação das ações.
Tal concepção é bem plausível. Não há nenhuma temeridade
em afirmar que o homem tem, de certo modo. mna experiência
_de sua condição corporal. Sabemos que as condições gerais do
corpo, ainda que estejam dentro dos limites do fisiológico (como
o cansaço) ou fora dêles (como os processos mórbidos), são capa­
zes de alterar nosso comportamento. Muitas vêzes não as perce­
bemos e ch�gamos a nos admirar de nos "têrmos tornado outros".

1. Uma profunda refutação da hipótes• do paralelismo se encontra em H,


DRIESCH. Das Leib-Seele-Problem (Leipzig, 1924). Ver também H. BERGSON,
L'Énergie spiritutlte (trad·. alemã, lena, 1928) t A. KRONFELD, Die Psychologie
ír, der Mcdi:tin (Berlim, 1927).

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82 RUDOLF ALLERS

Se descobrirmos, porém, o motivo dêste nosso "ser outro", enlará


em nosso arbítrio continuarmos nele, ou dêle nos lihcrtnr·mof!.
E, do mesmo modo que, por vêzes, nos sentimos cansados, íncar,a­
zes de produzir, fracos para resistir, etc., também nos scmlirnof!,
de modo geral, como bem ou mal aparelhados para a luta pel:i
vida e experimentamos limitações nos encargos que não po<lcmoa
executar. Não é absolutamente de admirar, nem é mais admiráv1il
que todo o resto da organização da natureza humana, o fato do
que sejamos capazes de conhecer as limitações de nossa capaci­
dade de produção. Na realidade, sabemos sempre isto: que um
encargo a realizar nos parece muito difícil, porque se assemelha
a um outro que não estamos em condição de executar e não por
ser maior que outro encargo desconhecido para nós. A grandeza
das impressões, como a das realizações, é julgada por nós em
relação a um máximo, que, na realidade, não precisamos experi­
mentar efetivamente, para que possamos empregá-lo como funcla­
mento de uma apreciação. itste fato, de grande impol'l:frncia para
a psicologia de percepção sensível e para outras queslõp3, mos­
tra-nos (embora não possa ser, aqui, minuciosamente explicado)
que tal conhecimento da ljmjtar,;ão, ou de um m;íxjmo da capach
dade de rea]jzar, é provriedade essencial de nossa vivrncio .Eur_
..ÍfiliQ. não só não é absurdo como é mesmo clarfl.....lL.(!J.ucitl:.üiw_
acJ.rriitir a existência de tal conhecimento na e�.ri-�ndu_dc_noss:L
_próp1:i_a corporeidade..
A nosso ver, o homem se conhece, portanto, desde o inicio,
como um organismo mais ou menos bem aparelhado, capm: ele
resistência, bem ou mal ajustado. Correlativamente forma-se uma
atitude em relação à vida e a êle próprio. O corpo (>, por assim
dizer, o instrumento de que se serve a pessoa, em sn.a..Ju.tu...Il.Cla..
auto-afirmação. Do mesmo modo que nos sentimos im1eguroH,
quando, numa excursão a montanhas íngremes, o varapau cm
que nos apoiamos começa a vergar, assim também perdemos a
segurança, quando o instrumento corpóreo deixa de corresponder
- total ou parcialmente - às nossas exigências, em conseqiiên­
cia de cansaço, doença, ou fraqueza constitucional.
Ao conhecimento da condição e da capacidade de produção
do próprio corpo, chamaremos: consciência vital. Ela dá colorido
a tôda a nossa vivência; em todos os atos e mom;ntos deHta, pene­
tra a consciência vital, impregnando-a com suas tonalidade11.
* Por essas considerações, compreende-se fàcilmentc que tild:rn
as fraquezas e desarmonias das condições corporais, tôrlas as
anormalidades de constituição devem diminuir, no homem, a
segurança na vida e devem tornar mais profundo o conhecimento
de sua pouca fôrça de resistência diante da vida e, portanto, seu
conhecimento da depreciação. Mas o correspondente subjetivo de
tal conhecimento e incerteza apresenta-se como uma falla rle cora-

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l'HJCOLOGIA DO CARÁTER 83
J�cm, ou melhor, como um desalento - uma vez que certa elastici­
dade lia cora}�<im ,iá é própria do homem e dada com sua natureza.
Por com,eguinfo, tôda deformidade. constitucional prejudica
o desenvolvimento normal do caráter. As crianças possuidoras de.
tais deformações apresentam, pcrtanto, sob o ponto de vista da
cducaçiw, cxigêncim1 csveciais. A desatenção a l;as exigências
tem sido, muitas vêzes, o motivo de erros pedar �os e desenvol­
vimento:- desfovorúveis do caráter.
l>cve-sc exigir, portauto, que, cm tôdas as dificuldades de
edtlcaçi"lo, seja ouvido, an tes de tudo e incondicionalmente, um.
médico competente, isto é: um médico que esteja familiarizado,
tanto com os desvios de formação do caráter e suas condições, como
com as anormalidades elo corpo. 1
1
Seria sedutor pesquisar minuciosamente a conexão · entre
determinadas perturbações corporais e orgânicas e determinadas
formações caracterológicas. Poder-se-ia assim mostrar como
muitos desvios do caráter, que parecem causados naturalmentê
por alterações determinadas dos órgãos ou por deformações cons­
titucionais, seriam explicáveis como modos inteligíveis de compor­
tamento, reações compreensíveis a uma determinada expel'iência
da própria corporeidade. Tal pesquisa, contudo, pertence mais ao
quadro de uma caracterologia médica, ou de uma patologia do
caráter. Assim, não lhe podemos dar lugar aqui.

7. O conceito de compensação

Ao invés disso, iremos expor outro· pensamento� cuja apre­


bentação constitui um dos maiores méritos de ALFRED ADLER:
é o que se refere à eficácia da compensação e da supercomvensa­
ção .1 Êle constitui, de fato, o ponto de partida ·propriamente dito
· e a pedra angular do edifício da psicologia individual: Em resu­
mo, seu enunciado é o seguinte : quando um órgão é de fraca
produção e de certo modo "depreciado", cria-se no organismo uma
tendência a atrair ou levar êsse mesmo órgão a uma produção
maíor e, correlativamente, a fortalecer, em seu aperfeiçoamento
e· capacidade de produção, uma outra parte do sistema orgânico
a que pertence aquêle órgão depreciado, de modo que a produção
geral atinja o "valor normal" (compensação), ou até mesmo
o ultrapasse (supercompensação). Note-se que esta tese se baseia
em observações biológicas e patológicas absolutamente corretas·,
embora não possamos apresentar, aqui, em pormenor, o material
de fatos. Estas coisas já eram conhecidas, de modo geral, antes\

· 1. 'fissc pensamento foi exposto, em suas linhas fundamentais. ·;�! 'St�die


über di< Mindewerrigkeit von Organen (Berlim-Viena, 1927; Munich, 1927).

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84 RUDOLF ALLERS

de ADLER, embora não tivessem tido uma exposição sistemática.


A importância da concepção de ADLER está no fato de ter posto,
no domínio das funções orgânicas, o ponto de vista "finalista"
(isto é: o. papel decisivo da finalidade ou do tema) e, também,
de ter levado com grande penetração e sucesso, para o campo de
conduta humana em geral, êste princípio fundamental de com­
pensação.
Essa transposição pode ser assim exposta: quando aquela
tonalidade de bom aparelhamento orgânico, que penetra tôda a
vivência, se transforma no sentido de uma diminuição, a conse­
qüência será, enquanto ela é contida em certos limites, um imedia­
to fortalecimento da tendência à auto-afirmação e, portanto, da
vontade de poder.
Êste princípio fornece um comentário teórico de vários fenô­
menos, muitas vêzes observados, de formações normais e anormais
de caráter, que sem êle eram dificilmente explicáveis. Voltaremos
depois a êsse ponto. Indicaremos aqui, apenas, que, nesta formu­
lação, volta a aparecer um pensamento já mencionado: as limita­
ções à vontade de poder não constituem, de início, motivo de
paralisação, ou resignação, mas dão lugar, pelo contrário, a um
aumento de excitação dessa vontade. Na concepção psicológico­
-individual surge, pois, uma possibilidade de fundamentar os fenô­
menos orgânicos e ps[quicos (e, portanto, os caracterológicos) em
um princípio íinico. Dé fato: o significado dessa tese que não se
cansa de proclamar a unidade da natureza humana, não pode ser
entendido, evidentemente, no sentido de que a conduta humana
(e, em particular, a racional)- possa ser "explicada" pelas leis do
puro orgânico, ou considerada como "deduzida" e "originada" dêle.
Deve-se ver, ao contrário, com razão, no pensamento fundamental
da lei de compensação, uma expressão particular daquela vasta
tese filosófica e, mesmo, metafísico, que foi expressa pela Esco­
lástica como o princípio de "analogia entis" (analogia do Ser) .1
Empregado em relação ao problema que nos ocupa imediata­
mente - o da importância da insuficiência constitucional e da
experiência que ela provoca '(isto é: de uma conscíência vital algo
deprimida) - êsse pensamento exprime que uma situação interior

1. Deve confessar-se, na verdade, que a escola de psicologia individual não


costuma cst,mder seu pensamento aos postulados filosóficos, •ou is conseqüências
passive-is de sua tese e, muitas vêzcs. considera :;is cois�s de maneira, a meu ver�
inteiramente errônea·. A "metafisica da pessoa .. , que solicitei nos meus trabalhos
mencionados no final da nota à pág. 51, náo é julgada, por ess, escola, uma base
metodicamente necessária do sistema. Isso não invalida, porém, o fato de que a
psicologia individual seja grandemente apreciada - como se vê dos textos -
em conseqüência de suas idéias metàdiéamentc puras e de sua contribuição essencial.
Por isso, a polêmica recentemente surgida (algo deslocada e construída sôbre hipó­
teses inteiramente invetifidveis). da autoria de KUNZ (Zeitschr. für die ge,. N,urol.
- Vol. 116. 1928). não atinge absoluumente o imago da questão.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 85
leva inicialmente, numa primeira fase por assim dizer, a um forta­
lecimento da vontade de poder, a um impulso multiplicado e a uma
tentativa de valorizar-se, elevar-se e impor-se.
Há outros motivos corporais em ação, além da fraqueza cons­
titucional do conjunto do organismo, ou da perturbação de sua
harmonia e, pois, de sua capacidade de produção, devidas à depre­
ciação de órgãos isolados ou sistema de órgãos. Assim, por exem­
plo, a pequenez do corpo. Pode ser que, por um conhecimento
desta, o homem, que se vê assim diminuído diante dos outros, seja
incitado a atos especiais de compensação. Não são poucos os
homens pequenos que se exibem uma destreza muscular especial,
tornando-se, por exemplo, notáveis alpinistas. Entre os famosos
generais, encontram-se alguns bem pequenos ( como Eugênio de
Savóia e Napoleão) e outros, raquíticos (como Narses).
De modo geral, pode-se considerar como regra, que os esfor­
ços de compensação se dão, principalmente, no domínio particular
em que é sentida a insuficiência. Como exemplo clássico, pode ser
apresentado o maior orador da Grécia, Demóstenes, que, como se
sabe, tinha um defeito de locução e não se satisfez com a obtenção
de uma faculdade de falar igual à dos outros, mas alcançou êxito
e triunfo naquele mesmo domínio em que parecia condenado, para
sempre, à inferioridade. Naturalmente não se deve compreender
esta tese de um modo superficial, como se não restasse outra alter­
nativa para o portador dêsses motivos primitivos e ligados, como
tal, à pessoa. Possuir um defeito de locução não significa, eviden­
temente, uma perspectiva de eminência oratória. Mas o processo
de compensação tem, por certo, grande importância, principal­
mente por ser previsível. Os dados primitivos só se podem, porém,
obter, como já explicamos, pelo processo da exclusão.
Se a compensação não pode ter êxito no próprio domínio em
que se dá a depreciação, ela será tentada em outro. Um dos exem­
plos mais simples é dado pelo fato de que homens pequenos (natu­
ralmente nem todos, mas seria incômodo fazer, aqui, uma classi­
ficação) falam visivelmente alto. como se quisessem dizer: "Alto!
Aqui estou eu também! Prestem atenção a mim!", ou então: "Se
não me virem, pelo· menos terão que me ouvir!" . É talvez um
motivo idêntico que explica o hábito inato das crianças (que é, por
certo, na maioria das vêzes, um puro prazer de função) de falar
mais alto do que é necessário, ou de gritar. Aliás, o fato trivial,
de que todos acreditam dar uma ênfase maior a suas palavras ou
ordens quando gritam, mostra uma relação semelhante. Pelo ponto
de vista da compensação, em dominios diversos daquele em que se
deu primeiramente a depreciação, podem ser explicados muitos
.fatos, pelo menos em parte. É, por exemplo, o caso, muitas vêzes
observado, da intelectualidade dos corcundas (Moses Mendels­
sohn), ou de sua maldade e inclinação para a intriga (Thersitas).

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86 RUDOLF ALLERS

Outro maravilhoso exemplo disso é o "Ricardo III", de SHAKf..


SPEARE.
. Não é necessá1;io e�umerar cada uma das dtpreciações orgá,.
nicas. Podem porem nrar-se, de nossa explicação, imprJrtant<-...s
conseqüências educacionais, que, na verdade, deviam ser ccmhE:Ci-
. das de todos, mas que têm, infelizmente, merecido pouca atenção.
Nunca, por exemplo, deve a criança ser menosprezada por uma
falta de que não tem culpa; nunca também deve ouvir exprE:3SÕ<':3
compassivas e cheias de dúvida sóbre seu futuro, longevidade ou
capacidade de trabalho. De contrário, perderá completamente a
confiança em tódas as tentativas de estímulo em suas próprias
possibilidades . Num escrito da católica americana EVELYN Ln;H 1
( diretora da "The Teacher Mother National League") encQntra-se
a observação notável e digna de consideração de que deve r:nsi­
nar-se a tóda criança, e especialmente às que têm qualquer imper­
feição física ou espiritual (para julgar a estas, porém, é preciso
muita prudência), o seguinte: "Eu sou um só, mas sou uma pessoa.
}:ão posso fazer tudo, mas posso fazer alguma coisa. Se não po.%0
fazer tudo, isso não é motivo para que não faça aquilo que posso".
:Meditar e seguir êste lema seria útil, mesmo para muitos adultos.
Sua finalidade última contém um ensinamento, que já poderia ter
sido extraído, há muito tempo, da parábola do Senhor a respeito
dos talentos (l\Iateus, 25, 14) .
Com essa indicação sôbre a transformação dos meios naturais
da vontade de poder nesses disfarces específicos a que se chamou,
com justeza, "os meios da fraqueza", suspenderemos, agora, provi­
soriamente, o assunto. Sua exposição será retomada depois que
tivermos estudado um outro: as condições que reforçam a insegu­
rança da criança.

8. Vivências de dr.preciação situativamente condicionada.s

O aumento da incerteza que assenta em falhas constitucionais


e orgânicas apre:,enta vm aspecto, que se pode dP.nominar "situa­
th-o", uma vez que não se baseia nas condições internas, ou pes--
. soais, do homem, mas em sua posição em relação aos outros, em
seu ambiente. Queremos observar, preliminarmente, que, à impor­
tância absolutamente inalienii.vel d&sse m1,mento situativo, se asso­
cia uma extraordinii.ria responsabilidade para aquêles a quem é
confiado o desenvolvimento e a ori1mtação de uma criança e cons­
tituem, portanto, o ambiente desta. Deve acentuar-se, com tô<la
a ênfase e todo o zôlo, que a concepção aljui apreflentacla sôbre a
origem do caráter (a chamada penionalidade moral) acarreta.
1. Training lhe Chi/d ui !fome (N,-u "{or k. 1922).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 87

para os educadores e tôdas as outraH pessoas que cercam a criança,


uma responsabilidade que é, como dissemo11, cxtraordin6ria. Vemo11
que a culva de muitas form.açih!s de carúf,c1· cxlraordinàriamente
deficientes ou vc1·vcrUdas ·repousa, predominantemente, sôlJre
aquêlcs que educam a criançii. Não é que a pessoa cm questão deva
carregar sôbre os ombros tôda a rcsponsabiliclaclc de seus erros,
muitas vêzes cometielos inconscientemente.
Até que ponto êsses erros lhe pertencem, é o que depende das
jurisdições espiritual e temporal. Mas, no estado atual de nossos
conhecimentos, a opinião, tantas vêzes expressa, de que a criança
é mal dotada, ou insuficientemente dotada neste ou naquele senti­
do, deixou de ser justificada em inúmeros casos. Em um número
extraordinário de casos de mau desenvolvimento, temos tôda a
razão de dizer, como pais e educadores. "Nostra maxima culpa!".
As situações, que parecem fortalecer a incerteza natural do
homem, dividem-se: 1) .nas em que tal influência pertence a elas
próprias (como no caso da fraqueza constitucional, etc.) e, 2) nas
que tiram sua importância exclusivamente das pessoas ambientes.
Quando se pode atribuir uma destas situações a uma influência
que é desfavorável em si e por si, não se quer dizer, com isso, que
ela seja inevitável. Pelo contrário, ela pode, quase sempre, ser
compensada por uma orientação educativa correspondente, deixan­
do assim de desenvolver seus efeitos maléficos.
Em escala ainda maior do que no caso das deficiências consti­
tucionais, tem a educação a possibilidade de fazer intervenções
corretivas, o que torna maior, ao mesm.:i tempo, a responsabilidade
que já lhe atribuímos.
Um primeiro grupo de tais situações é representado pela
posição da criança na série dos irmãos, pela existência ou inexis­
tência déstes e pelo sexo. Se tôda conduta do homem e, por conse­
guinte, a norma dessa conduta - o caráter - são determinados
pelo não-eu, é fácil ver que as circunstâncias terão a maior impor­
tância. Eis algumas destas: uma criança já encontra um irmão
ou irmãos mais velhos; ela tem, ou não, irmãos; ela está colocada
no início, no meio, ou no fim da série de irmãos; é homem ou
mulher; está colocada entre irmãos de mesmo sexo, ou vice-versa.
A surpresa tantas vêzes expressa por muitos pais: - "Criamos
a todos do mesmo modo e são tão diferentes!" ou: "Só êste saiu
diferente!" - é, na maioria das vêzes, inteiramente absurda.
A qualidade de que se queixam não tem fundamento, na maioria
dos casos, na especificidade do "ambiente", mas na variedade de
circunstânci�s da vida da criança (se ela é, por exemplo, mais
velha ou mais nova) . Esta variedade tem uma "fôrça de forma­
çã?" maio: que a igualdade dos princípios educativos. Como as
.
crianças nao vivem em condições iguais não poderão ser educadas
segundo um esquema único.

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88 RUDOLF ALLli:RS

Co!11o pretendemos descrever, noutro lugar, a11 11ltunçõc11 iipl.


.
cas mais importantes para a prática educativa e a form11çf10 do
,
carater, bastar-nos-á apresentar, aqui, algumas indicaçõeH.
Situ3:çõ es particul:1rmente notáveis são dadas pclaa condições
,
de filho _
�mco, ou mais velho, ou caçula. Isso se exprime, entro
outras co1Sas, pelo fato de que entre as crianças levadas à con8ulta
pedagógica e entre os homens com que se ocupa o psicoterap<mtu
- isto é: os neuróticos e os nervosos - aparece uma percentagem
surpreendente de tais casos. Outro fato de valor é que, apc11ar da
considerável quantidade de homens que sofrem de tôdns as formaH
de neurose - imagens obsessivas, neurose de angústia, histe­
ria, etc. - é ainda maior o número de mulherci;, que sofrem
dessas perturbações. Já que, como veremos, as neuroscH poclem
ser, tôdas elas, consideradas como uma intensificação de <ll!HvioM
caracterológicos ( pelo que merecem uma certa consideração), aH
·· relações aqui observadas podem ter importância para a caractero­
logia em geral.
O segundo grupo de situações determinantes da formação cio
· caráter recebe sua característica especial, não de uma peculiari­
dade qualquer de fato ( como era o caso da posição na sérfo doH
filhos), mas, tão somente do modo de proceder doH drcum1tantc11
e, em primeiro lugar, como é natural, daH peBsoai1 cncarrc1,urlt111
da educação da criança. Os fatôres a considerar serão, neste caso:
tratamento desigual dos filhos (isto é: preferência ou cfoHfavor
visíveis para com um ou alguns em relação aoK outroH), Hcvcridn­
de excessiva ou grande condescendência (mimoH); iru:onHe(Jilín1-
cia na atitude educativa, variando da severidade para a clcH11tc11-
ção. t:ste último caso pode resultar ele uma certeza pcdnv:6v:ic11,
ou do fato de ser o próprio educador sujeito a variaçiíeH 1le humor
e disposição. A atitude inadequada elo educador é de lmport.ftnci11
capital, uma vez que, tomada com<, exemplo, tem extraordltd1rl11
influência. Também o h/í.bito, muilllll vêzc11 pernicioao, du confiar
aos irmãos mais velhos a educação dos outnm, ou, r,clo rrieuoa, do
fazê-los participar da autoridade paterna, deve: 1wr uqul mmu:lo­
nado.
A preterição ele um filho üm relar;ilo arm oul:rn11 - ou 1mu
contrário, a preferência unilater:.d - trazem co11:11:11llíincirui prnJu•
diciais, tanto para os r,rcferidoll como pam 011 prnt.r:ridon. '1'1d
aituação, especialmente no cit:w da r,r,:forí;ncia ,li! um 1í11ico, 11ito
deve ser baBeada, de modo al)(1u11, nurna av,m1iío ,,111un11:lld uw1
outros (o que, por certo, aconlr;r:e muilaa ví;z,::!, como 1w ,mhd.
Ela surge, muita:-i vhe:i, r,or rrwLivoa 1:<m1pr,;1:rwfv,:l 11 ( i,1111 J om n
atitude não seja, co_ntudo, <:<m1r,n,1:n'.1í vr:I), quiuuh, H•: trai.a, por
exemplo, de u� criança. ljlJ<.l m;cr::m1ta dr: cuirJ,ult,11, n,chi mr,11,lo,
por 11ua enferm1dadr:, o dr,av,,J,, 1, a ali:rn;iít, dou 11iil 11 . A punl,;ifo

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ll1g1tal1zadocomCamScanner
PSICOLOGIA DO CARÁTER 89
de tal criança se assemelha, sob muitos aspectos, à de um filho
mais moço.
Naturalmente, têm uma influência análoga tôdas aquelas
situações sociais em que a criança está numa posição pior. Tal
é o caso dos órfãos que, como tal, se sentem numa posição dife­
rente e prejudicados em relação aos outros, ou dos enteados (mes­
mo quando a madrasta, ou o padrasto, lhes dedicam todo o afeto;
porque as conversas imprudentes de outras pessoas, as observa­
ções de seus colegas e as leituras fazem-nos compreender sua posi­
ção especial) . Em tais crianças, a aflitiva miséria de sua situa­
ção se torna particularmente mais clara pela comparação com os
colegas mais afortunados.
As anormalidades de caráter, relativamente tão comuns nos
filhos bastardos, não têm - do mesmo modo que os chamados
vícios da criança (por exemplo, a micção noturna) - nada a ver
com disposições hereditárias. Elas resultam, pelo contrário, muitas
vêzes, de condições situativas durante o crescimento, de uma cria­
ção imperfeita e, antes de tudo, do fato de tais crianças aprende­
rem, muito cedo ainda, quão desagradável é, para sua mãe, a pre- ·
sença delas. Mesmo as crianças nascidas antes do matrimônio
ficam, muitas vêzes, apesar dos esforços conscientes em contrário,
feitos pelos pais, em situação pior que os nascidos do matrimônio.
O mesmo se dá com uma criança que deve sua existência a um
adultério da mãe - um motivo já tratado, em demasia, em tôda
a sorte de romances e narrativas.
Os filhos de pais divorciados também correm risco. Na maio­
ria dos casos, quando o divórcio se dá por comum acôrdo - ou
por culpa comum - de ambos os cônjuges, determina-se que a
criança passe certo tempo com um dos pais e outro período com
o outro. Como seria uma raridade que pais divorciados seguissem,
em suas tentativas de influenciar o filho, a mesma direção, as.
crianças são, neste caso, arrastadas, para lá e para cá, entre duas.
condutas antagónicas. Sua insegurança aumenta. É fácil desen­
volver-se nelas, seja um oportunismo vulgar, seja a faculdade de
usar máscara diante do pai, que lhe agrada menos, seja um senti­
mento de forte prejuízo, com tôdas as suas conseqüências.
Deve atribuir-se importância muito especial à questão da
severidade ou suavidade na educação. É necessário tratá-la com
maior minúcia, mesmo porque tem importância prática imediata.

9. Sôbre a severidade, a autoridade, o castigo e o mimo

O emprêgo de severas medidas educativas e de castigos cor­


respondentes se baseia, na maioria dos casos, nas seguintes idéias:
a criança deve ser ensinada desde logo; deve incutir-se nela o

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D1gotal1zadocomCamSi;dnMr
90 RUDOLF ALLERS

respeito à autoridade em geral e, em primeiro lugar, aos pais;


suas más inclinações ou disposições devem ser reprimidas com
tôda a energia. Em tudo isso a verdade se acha associada a muitos
erros, principalmente quando essas idéias são entendidas à manei­
ra vulgar. Muitas vêzes, os partidários da severidade e da educa.
ção por meio de fortes castigos se reportam às palavras du Sagra­
da Escritura. De fato, tais palavras se encontram ali, especial­
mente nos livros do Velho Testamento. Ao basear suas medidas
pedagógicas em tais passagens, êles não se deveriam, porém, esque­
cer dê duas outras, do apóstolo São Paulo: "Os membros da Igreja
- e cada criança é, como os adultos, um membro do corpo místico
de Cristo - devem estar submetidos uns aos outros". (Aos Efé­
sios, 5, 21), e: - "Oh! pais! Não sejais duros com vossos filhos,
para que não se façam de ânimo apoucado" (Aos Colossenses,
3, 21). Na primeira destas frases do. apóstolo, é-n9s ensinado,
claramente, que não devemos esquecer a atenção devida à criança
e à sua pessoa. Na segunda, somos avisados de que o perigo de
fazer perder o ânimo a uma criança é um limite imposto à severi­
dade. Não é pois contrário ao espírito da educação ético-religiosa,
inclusive a católica (sendo, até mesmo, conforme a seu espírito),
que sejam indicados os grandes perigos e conseqüências prejudi­
ciais de uma educação demasiado severa. Quem vê, todos os dias,
como a·severidade e a irracionalidade da educação podem arruinar
permanentemente as condições de vida de uma pessoa e como o
homem sai espiritualmente aleijado das mãos de tais educadores,
poderá compreender, a tal ponto, a importância dessas coisas, que
nenhuma palavra lhe parecerá bastante forte, nenhuma intimação
demasiado enérgica, quando se trata de extirpar tais erros.
Antes de tudo, mencionemos uma objeção que é sempre repe-
. tida, tôda vez que uma voz se ousa levantar contra o princípio da
severidade educativa. Costuma-se fazer referência a êste ou
àquele homem importante e de grande elevação moral (de prefe­
rência escolhem-se exemplos de .outros séculos) que se tornaram
o que foram justamente por uma educação muito severa. Ouve-se
também, não raras vêzes, um educador vangloriar-se de ter conse­
guido eliminar urna "inclinação má" de um discípulo, por meio
da extrema severidade. Há muita coisa que dizer sôbre êste
assunto. Em primeiro lugar, nada prova o fato de que um discí­
pulo pareça corresponder ao ideal educativo, quando chega a oca­
sião de livrar-se da severidade educacional para entrar na vida.
O que é decisivo é como se comportará nos anos futuros, em sua
vida ativa, sua profissão e seu matrimônio. Disto, porém, nada
sab:m'. na maioria das vêzes, os educadores - em parte, porque
o d1s �pulo desaparece. de suas vistas e, em parte, porque não
poderao tomar conhecimento da catástrofe, que surge relativa­
mente tarde. Em segundo lugar, é, muitas vêzes, bem discutível,

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 91
que a atitude do discípulo - visada e finalmente obtida por tal
educação - seja verdadeira. Muitas vêzes é apenas um disfarce
devido ao oportunismo, ao medo, à fraqueza, etc., uma aparência
em que, talvez, o jovem creia, mas que, cedo ou _tarde, lhe será
tirada pela realidade da vida. Em terceiro lugar, o exemplo de
casos individuais não tem qualquer valor probante - aqui, como
em tudo o mais -, porque nada justifica a conclusão de que tal
pessoa seja assim por causa de tal educação, uma vez que é
possível que tivesse tido uma boa formação apesar disso. Para
responder a tais questões seria preciso ter um conhecimento mais
profundo das conexões da vida· individual em questão, do que o
que temos geralmente. Em quarto lugar, é também falho o argu­
mento que apresenta os princípios educacionais de épocas passa­
das e seus resultados favoráveis. Porque não se deve esquecer
que, se, por um lado, os fins últimos de tôda educação - confor­
mar as atitudes de valor subjetivas aos valores objetivos - se
mantiveram inalteràvelmente os mesmos em todos os tempos, as
formas e meios segundo os quais se realizaram estão na dependên­
cia do conjunto cultural. Isso é fácil de ver nos exemplos de
vidas santas, que sempre tíveram o mesmo fim ideal: compa­
rem-se, por exemplo, as formas de viver de um Simeão Estilita,
um S. Benedito, um S. Francisco de Assis, um Santo Inácio de
Loiola e um S. Clemente Maria Hofbauer. Ou, se se quiser algo
mais demonstrativo, comparem-se duas santas sujeitas à mesma
regra: Santa Teresa de Jesus e Santa Teresinha do Menino Jesus.
Deve.se considerar, aqui, que não se trata - ou apenas se trata
em grau mínimo - de distinções individual-caracterológicas, já
que todos êstes santos são, de certo modo, tipos representativos
de·sua época e sua cultura.
Quando falamos dos inconvenientes da excessiva severidade,
não temos em vista apenas aquêles casos excessivos em que a
punição é feita com uma brutalidade impiedosa. Há também urna
severidade reprovável, que, contudo, não se utiliza de castigos
corporais, pelo menos dos maiores. O princípio fundamental da
severida,de repousa, de ordinário, em duas coisas: na am11liação
da dist:illncia, já naturalmente existente, entre os filhos e os pais
(ou educadores) e na falta de atençã<• às características ·individuais
da criança. Tal atitude do educador se dá, a meu ver, de boa fé,
por uma concepção errônea da natureza e da noção de autoridade.
Tal noção deveria, antes de tudo, ser compreendida em seu próprio
conteúdo, independentemente de seus traços acidentais de ordem
histórica.
Autoridade vem de "auctor" e esta palavra vem de "augere"
(aumentar, multiplicar). Auctor rei publúe - o aumentador da
nação - foi, em todos os tempos, um titulo de glória dos governos,
Na essência da autoridade, está o fato de que ela existe. para

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92 RUDOLF ALLERS

a9-uêles .sôbre os q�ais se exerce e �ão para si mesma. Sua concep.


,
çao mais pura esta no titulo que e dado, desde Inocêncio III, aos
sucessores de S. Pedro - "Servus servorum Dei" - um servidor
dos servidores de Deus. Logo que a autoridade se põe como abso­
luta e em virtude de si mesma, degenera em tirania e se arruína
na culpa e no destino trágicos, que, como mostra a História, estão
ligados a tôda a tirania. A posição da autoridade é, em si mesma,
contraditória, ou, se se quiser, paradoxal: dominar os outros e,
ao mesmo tempo, servi-los, parecem duas coisas contraditórias.
Tais contradições só se podem conciliar num plano superior àquele
em que se manifestam. O paradoxo da autoridade só é resolvido
quando o consideramos de um ponto de vista mais alto. Para
esclarecê-lo é proveitoso fazer uma analogia com o conceito do
"opus operatum". Como se sabe, êste conceito afirma que a eficá­
cia de um sacramento não depende da pessoa que o ministra -
noutras palavras: não é um "opus opcrantis" - mas está apenas
na natureza da ação sacramental praticada, na qualidade de um
"opus opertum". É assim que deve entender-se, analogicamente,
o papel da autoridade. A autoridade não está na pessoa que dela
participa, mas nos encargos que lhe são atribuídos. A continência
não se dirige ao Sr. General Fulano, mas à sua posição hierár­
quica; a reverência não é dirigida ao governante, mas ao trono
ou à coroa, e assim por diante. Impõe-se, naturalmente, a exigên­
cia fundamental da ordem ética - que seria criminoso desprezar
- de que a pessoa seja digna e capaz para tal cargo. De qualquer
modo, porém, a dignidade do cargo não está associada à de seu
ocupante. Uma posição, a que está associada, por natureza, a
autoridade, acarreta, portanto, para aquêle que a ocupa, uma série
de penosos deveres. O mais importante dêles é que o ocupante
não acredite que todos os direitos e meios de ação dependentes
de sua posição pertencem à sua pessoa. Não é menos importante,
que tenha sempre em vista a possibilidade e o perigo de não poder
executar devidamente os encargos de sua posição, ou de desvir­
tuar, para fins puramente pessoais, os direitos e poderes que lhe
foram concedidos. Não se deverão também perder de vista os
limites impostos, por sua própria natureza, a tôda e qualquer
autoridade possuída. Êstes limites são de várias espécies: em
parte, derivam de determinados direitos dos súditos e, em parte,
de outras condições, de que a mais importante é o tempo. A auto­
ridade pode, com razão, pretender decidir sôbre certos assuntos
relativos a seus subordinados, mas, apenas, quando ainda não
_
existe a faculdade de decidir dêsses subordinados . 1 Só nos casos
em que a emancipação não chegou de fato a realizar.se, é que a

1. Os filhos devem ficar :ao cuiclado dos pais, ante!: de ter ;:dquiddo o
uso do livre-arbítrio. (S. TOMÁS - Suma Teo/. 2.2, q. 1 O •• J 2).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 93
autoridade não sofre qualquer limitação no tempo. Por isso, um
homem nunca se pode emancipar da autoridade da Igreja, que
exprime, como o Cristo vivo, tôdas as verdades e leis, que o
homem, como tal e por si só, nunca poderia reconhecer. Há tam­
bém uma autoridade, que deixa de existir quando se restaura uma
determinada situação. O cônsul romano e ditador, Lúcio Cornélio
Scilla, abandonou sua posição de poder quase absoluto, quando
'.'iu que a constituição e a paz tinham sido restauradas em Roma.
Poucos, na História, fizeram o mesmo e ainda menos numerosos
são os que o fazem no pequeno círculo de sua esfera de poder.
Todos, porém, recebem a paga dêsse ultrapassar de seus direitos,
resultante de uma consciência pessoal do poder ou de um gôsto
inato pelo mesmo.• Mas esta paga é uma expiação e tanto mais
grave quanto não se limita à própria pessoa, mas envolve também
os outros.
Que deve existir a autoridade, é uma concepção de certo modo
nrrnigada no íntimo da natureza humana, já que as formas "anár­
quicas" da vida em comum não se podem realizar, ou não podem
ser pensadas sem contradição. Mas tal conhecimento é tão pouco
explícito e vivo, de comêço, em qualquer homem, como qualquer
outra coisa. :il:le deve sér desenvolvido, desdobrado e tornado vivo,
antes que o reconhecimento da autoridade (e, em última análise,
o da existência de uma ordem hierárquica do Ser em geral), possa
tornar-se verdadeiro e absolutamente preciso, de modo a poder
suportar, sem oposições, as provas impostas pela realidade da
existência humana. Uma irrupção brutal de autoridade no àutodo­
mínio ingênuo de uma vida ainda liberta do sentimento de culpa
pessoal e de qualquer idéia de responsabilidade não é um meio
adequado de obter o reconhecimento da autoridade em geral, nem
do educador em particular. A autoridade deve ser construída na
própria alma infantil e nunca outorgada do exterior. Mas o único
meio de construí-la é o amor. Só a autoridade que deriva do amor
é uma autoridade propriamente dita; só ela pode reclamar, como
fundamento, o amor de Deus. A autoridade que se impõe· por si
mesma e que serve à glorificação (palavra bem elucidativa quando
a entendemos ao pé da letra) da própria pessoa, do próprio por­
tador da autoridade é, em sua raiz última, uma obra do Diabo.
Não foi êle quem pronunciou o sinistro: "Non serviam" e fêz a
nossos primeiros país a cínica promessa: "Eritis sicut Dii"?
Quase sempre, a severidade excessiva vem de uma. falsa idéia
da autoridade. Mesnio quando os homens acreditam honestamente
exercer esta severidade em benefício de suas vítimas, verifica-se,

1. "De onde vêm as más condições de teu mosteiro - escrevia S. Gregório


a um abade - senio de qu, gosta, excessivamenie de teu poder?" (Cita.d,:, por

CL. AQUAVIVA, S. J. Indusrriae ad curàndos animae morbos, · _Roma, 1615). •

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94 RUDOLF ALLERS

indo ao fundo das coisas, que a raiz dessa conduta é a exaltação


do próprio eu, o que produz, aqui como em tôda parte resulta-
dos fatais.
Não passou também despercebido, aos grandes educadores,
que a severidade não é o melhor, nem o mais adequado método de
educação. Já se teve, de fato, muitas vêzes, a impressão de que
a severidade é apenas um meio, a que se sentem obrigados a
recorrer os que sofrem de uma incapacidade pedagógica. Tôda
exaltação da autoridade provém de uma fraqueza. Aquêle que
está verdadeiramente seguro de sua posição de chefe não pre­
cisa documentá-la com medidas de fôrça. "Fazer o forte" é
um processo dos fracos , Opiniões que condenam a severidade
na educação acham-se em todos os autores, de Dom Bosco a Santa
MARIA MADALENA BARAT. Eis uma instrução, dada por uma emi­
nente educadora às irmãs e professôras da càsa que dirigia: "Não
se deve ter, diante das crianças, um ar dominador. . . nunca se "'
lhes deve falar rudemente. Elas devem ser tratadas, o menos
possível, com severidade. Se somos obrigadas a corrigi-las, deve­
mos fazê-lo com amor e amabilidade, porque Nosso Senhor não
nos trata também com dureza. Seguindo o exemplo do nosso santo
fundador, deveis esforçar-vos em conseguir tudo com humildade
e brandura ... Quando, como servas do Senhor, executamos nossa
tarefa, que nos seja concedida a luz e a graça de falar_ e agir com
justiça, no interêsse das crianças que Deus nos confiou" (Pala­
vras da bem-aventurada MARIE DE SALES .CHAPUIS, de uma ordem
de visitadoras, que, no início do século XIX, serviu salutarmente
em muitos claustros e estabelecimentos de educação).
A exaltação injustificada da autoridade, que se baseia numa
concepção errônea desta, gera, como dissemos, pela severidade
desmedida ou mal empregada, um aumento da insegurança da
criança, não só por tornar maior a distância entre ela e o adulto,
como pela lesão provocada em seu sentimento de valor próprio.
A criança percebe um prodigioso afastamento entre ela e os "gran­
des" e entrevê, ao mesmo tempo, de certo modo, que· o estado
adulto também a espera em seu futuro, pois ouve dizer, muitas
vêzes, que "um dia será crescida". "Espera, até ficares grande!"
- é uma frase que pode ser usada, ao mesmo tempo, como promes­
�a ou ameaça. Como promessa, porque lhe dá a perspectiva de
conhecimentos, realizações e prazeres; como ameaça, porque os
prejuízos de sua conduta presente deverão figurar em sua vida
futura. Os adultos e os pais parecem, à criança, revestidos de
uma auréola de onipotência e onisciência. Por isso já se sente
inclinada, por si mesma, a duvidar da possibilidade de atingir,
jamais, tal elevação. Far-se-ia talvez bem, em esclarecer, desde
cedo, à criança, que ela não se acha tão longe destas qualidades
de onipotência, etc., e, antes de tudo, em destruir sua crença ingê-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 95

nua de que a obediência e a restrição da vontade pessoal sejam


coisas apenas para crianças. As crianças têm tendência a ideali­
zar. Quando, porém, descobrem que a realidade dos pais está
muito longe dêsse ideal, acontece facilmente que, tanto êste como
aquêles, percam sua importância aos olhos da criança.
Não é, aliás, inteiramente exato dizer que a severidade seja
apenas a causa do aumento da distância e da influência depri­
mente sôbre o valor próprio: ela é também conseqüência de tal
posição. Aqui, como em tôda parte, forma-se um círculo vicioso,
de conseqüências fatais. Quem se coloca muito alto em relação à
criança, julgada um homem "incompleto", ou gosta de opor sua
"experiência" à "inexperiência" da criança, ou é inclinado, por
uma exaltação de sua própria grandeza, importância e dignidade
(uma exaltação devida muitas vêzes à insegurança) a desprezar
os outros e em especial a criança, e, portanto, a desprezar seu
r..� direito a ser reconhecida como pessoa e sua dignidade - êste
será levado, necessàriamente, a tomar, na educação, uma atitude
severa, uma vez que êle próprio se distancia do discípulo e a seve­
ridade é o único meio que lhe resta para "agir a distância".
A severidade pode expressar-se de modos diversos. É posi­
tiva, como castigo e como atitude desaprovadora em geral; é ne­
gativa, como omissão de qualquer louvor e como falta de meiguice.
Êstes quatro modos de expressão exigem um ligeiro esclareci-
m��-
1. O castigo - A conexão essencial entre o ato mau e o
castigo é conhecida imediatamente pelo homem e pela própria
criança. Nada seria mais errôneo do que querer excluir da educa­
ção o castigo em geral. Porque o recebimento do castigo está
intimamente ligado aos processos do remorso,· do reconhecimento
da culpa e da decisão de evitar o castigo. Não houve época ou
cultura' que não tenha tido o conceito de pecado. Não podemos
penetrar aqui na estrutura psicológica da consciência, do remorso,
do pecado e da vivência da culpa expiada pelo castigo. Mesmo
mais tarde, quando dissermos algumas palavras sôbre a consciên­
cia, teremos de renunciar a minúcias. Contudo, para que o castigo
possa preencher sua função natural e adequada a tôda a organi­
zação da consciência moral, isto é; para que seja um momento do
progresso ético (a dialética da culpa e remorso elimina, no ato de
expiação, a insuportável tensão que traz em si), é preciso que não
faltem certas condições determinadas. Estas parecem tão natu­
rais, que sua explanação é, muitas vêzes, ouvida com certa impa­
ciência. Apesar disso, os pecados contra essas condições, cometi­
dos pelo educador, são em número infinito. Não será pois ocioso
falar sôbre elas.
O castigo deve ser justo e adequado. Todos o sabem. Contu­
do se esquecem de que a justiça e a adequação devem ser entendi�

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96 RUDOLF ALLERS

das no ponto de vista da criança e não do adulto. Pormenori.


zemos:
Antes de tudo, deve existir a consciência da culpa subjetiva.
O castigo não deve, na educação, ser concebido segundo o esque­
ma de uma lei-penal, ou de um regulamento. Ali se diz: a igno.
1 -ância da lei não é justificativa. Aqui, porém, deve servir de
exemplo a concepção teológica de culpa. Do mesmo modo que só
o "pecado formal" - o ato cometido com conhecimento de culpabi-
!idade - .mas não o "pecado puramente material" - o ato resul­
tante de uma consciência sujeita a êrro - pode ser imputado ao
homem como uma ofensa a Deus, assim também, em nossa atitude
para com a criança, êsse deve ser o único conceito de culpa.
A nossa relação com a criança é, aliás, análoga à relação entre
Deus e nós ("tle deu o poder de torná-los filhos de Deus").
É, pois, um dever absoluto do educador certificar-se, de início, de
que existe o momento da culpa subjetiva. Quando, por exemplo,
uma criança cometeu uma diabrura qualquer pela primeira vez,
é inteiramente absurdo e muitas vêzes fatal castigá-la simples­
mente pelo fato de ser o ato materialmente mau. É preciso, preli­
minarmente, certificar-se de que a criança tinha consciência de
fazer o mal. Se não é êste o caso, cabe, então, . ensinar e, não,
punir.
Também aquela idéia, tirada do direito penal, de que o casti­
go deve ser proporcional ao dano, é aqui inteiramente absurda.
É sem dúvida uma reação natural castigar mais severamente uma
criança, quando quebra um lindo prato de porcelana, do que quan�
do quebra um prato comum e já danificado. Como, porém, pode
a criança distinguir os dois casos ou reconhecer o valor das duas
coisas? O mesmo se passa, também, em modos de agir que não
podem ser fàcilmente comparados. O que a criança não com­
preende, principalmente, é que uma e mesma conduta seja "ruim",
quando cometida com estranhos, e seja tolerada, quando feita no
seio da família. Que as normas do justo e do injusto se tornem
outras pela presença de uma visita, ou que o permitido em casa
seja proibido na rua, ou no meio de estranhos - todos os hábitos,
enfim, que, no fundo, são verdadeiras mentiras sociais - eis o
que o pensamento natural e reto da criança não pode, de modo
algum, compreender.
O castigo deve também estar de acôrdo com a altura e -
o que ainda é mais importante - com a duração da experiência
infantil. A psicologia da infância, como têm notado todos os
observadores que se ocupam com as crianças, mostrou sempre que
a criança vive predominantemente no presente. Sua maneira de
compreender o tempo é também inteiramente diferente da nossa,
provàvelmente· em conseqüência de não se ter ainda desenvolvido,
ou de ter sido muitas vêzes enganosa sua "confiança na regulari-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 97

dade do mundo". De modo geral, pode ser dito que a vivencia


infantil corresponde à seguinte concepção: a esta má 11cção em
particular, corresponde êste castigo em particular. Que uma deter­
minada ação em particular seja punida com um castigo que se
prolonga por dias e semanas, é o que não pode compreender a
criança.
É, porém, de grande importância que a criança compreenda
o castigo, não só de modo geral como em cada caso particular.
Se tal não se der, podem aparecer três graves conseqüências que,
infelizmente, podem ser observadas com freqüência. A criança
perde, quase que completamente, a noção do castigo e da sua neces­
sidade, que, como vimos antes, já possuía; perde também a con­
fiança na justiça do educador, sendo levada, então, a uma atitude
de encobrimento (quase tôda mentira consciente é, de início, uma
mentira devida ao medo do castigo e, portanto, o resultado de
uma educação inábil) ; perde, finalmente, a confiança em todo e
qualquer educador, o que faz aumentar, de modo funesto, a distân­
cia entre ela e o adulto, provocando inúmeras dificuldades de
educação, especialmente nos anos críticos da puberdade e fazendo
experimentar, à segurança da vida do homem em formação, um
abalo que talvez não possa mais ser equilibrado.
O castigo deve, além do mais, ser reconhecido como uma
prova de confiança. Isto parece paradoxal, mas é um truísmo
muitas vêzes esquecido. Já ponderamos antes que nenhum homem
deveria castigar ou admoestar, se não acredita na capacidade de
apel'feiçoamento do culpado. Tal pensamento não exprime, porém,
outra coisa, senão a convicção de que a pessoa em causa é melhor,
em seu interior e em sua verdadeira essência, do que aparece em
seus atos.
Eu me coloquei conscientemente em oposição às concepções
usuais, quando concluí, pelas observações acima feitas, que deve
ser rejeitado todo o castigo humilhante. É provável que, num ou
noutro caso, êle provoque um "terror benéfico". Em muitos casos,
porém, aparecerá, ao lado do efeito visado, um outro inteiramente
prejudicial, a saber: o recalcamento e, por fim, a anulação do
sentimento de valor próprio. 11:sse ponto nos leva, necessàriamente,
a considerar o segundo aspecto da atitude de severidade.
2. - A atitude desaprovadora em geral se dirige, de certo
modo, no sentido de impedir o desenvolvimento de um sadio senti­
mento de valor próprio, capaz de servir de base à aptidão para
a vida. Quando, em lugar da confiança propriamente natural e
pois, irrefletida, esperada pela criança, surge uma permanent�
desconf_íança, a pequenina alma, que perdeu tôda a segurança no
redemomho de .seu mundo, não pode atingir qualquer sentimento
de. valor próprio, de vocação, ou de aptidão produtiva. Que os
pais ou educadores valham alguma coisa e que creiam nela e em

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98 RUDOLF ALLERS

seu valor - eis uma necessidade vital para as crianças tanto


pequenas como mais velhas • Elas devem ter a certeza de q�e, por
.
trâs das censuras e dos castigos, se acha o inalterável e inaliená­
vel amor dos pais.
A desconfiança, que tantas vêzes provoca a confusão na
cabeça dos educadores, é propriamente um resultado daquela
crença, tão pouco católica, na "maldade radical" do homem - um
corpo estranho dentro das concepções católicas do mundo e da vida,
um rebento de uma concepção que ignora a "maravilhosa restau­
ração da dignidade da natureza humana" e não quer conhecer a
fôrça transformadora da Graça. Tal concepção é, numa palavra,
um enjeitado de origem herética. Quem acredita, seguindo a
concepção católica, que a graça do batismo e a qualidade de
"filhos de Deus", dada por êste, não só "apaga" o pecado original
como também, pela obra salvadora do Cristo, elimina-o inteira­
mente, não pode e não deve tolerar esta concepção da "maldade
radical" do homem. Onde, pois, encontraremos essa natureza
humana milagrosamente restaurada, onde poderemos achar sua
dignidade, senão nas criancinhas, que a obtiveram pela graça do
batismo e ainda não tiveram a oportunidade de perdê-la por um
pecado grave?
Confiar nas crianças como confiamos em outros homens, é o
que corresponde talvez melhor a um verdadeiro conhecimento
das condições natu rais e sobrenaturais da natureza e da vida
humanas .
Essa confiança nas crianças possibilita também ao educador
reconhecer quando foi injusto - o que não é raro. Mas a vaidade,
a crença em sua superioridade e infalibilidade, a opinião (já pro­
duzida por aquela desconfiança) de "não deixar que lhe faltem ao
respeito" e a inclinação a justificar sua própria atitude pela mal­
dade intrínseca da criança - tudo isso produz, por sua vez, do
lado da criança (que já sabe, muito bem, quando está ou não com
a razão), desconfianças, prevenção contra o educador, reserva,
rebeldia e mentiras.
3. Na pessoa ·do educador, esta atitude de essencial repro•
vação corresponde a uma omissão de qualquer louvor. l\fas para
o discípulo, a criança, a simples reprovação tem importância
muito menor do que a falta de um reconhecimento ocasional.
Não basta, para que seja conservado o sentimento de valor
próprio da criança ou do adulto, eliminar as censuras constantes
ou a atitude fundamentalmente reprovativa, que ainda é mais
grave. E' preciso também que, na situação da infância em geral
e em suas numerosas e múltiplas variantes o sentimento de va•
lor própri?, que se acha constantemente am�açado, seja cultivado
e fortalecido pelo louvor, toda vez em que este possa ser justi­
ficado.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 99

Contra essa exigência de louvor e reconhecimento a serem


dados à criança, costuma-se habitualmente levantar a objeção de
que, com isso, se promoverá a presunção, a arrogância, a Yaidade,
etc. Mas o perigo dessas desagradáveis conseqüências, no caso
de reconhecimento razoável, isto é: bem justificado, não é tão
grande como se pensa comumente. Por outro lado, os perigos re­
sultantes da atitude contrária são ainda maiores. E' verdade que
há, nas crianças e jovens, uma tendência à autovalorização ex­
cessiva. Mas, numa evolução normal, ela é equilibrada JJelo con­
tacto com a realidade da vida. (Veremos depois as condições
dessa evolução normal; até agora, só tivemos em vista os mo­
mentos que exercem uma influência negativa e não os que con­
tribuem positivamente para a evolução). "Uma produção exces­
siva de mosto, não traz como resultado a inexistência do vinho".
Por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista, a desme­
dida autovalorização e a vaidade, com todas as suas tonalidades,
são mais fàcilmente produzidas pela ausência de reconhecimento
do que por seu excesso . Dentro em pouco, nos ocuparemos ela co­
nexão íntima dessas coisas.
4. A questão da importância da meiguice merece alguma
atenção. Devemos distinguir, aqui, a amabilidade demonstrada
para com a criança,, da que ela demonstra para conosco. Ambas
são importantes e a segunda talvez mais que a primeira. A crian­
ça espera meiguice, porque esta lhe fornece o conhecimento de
ser amada e apreciada e serve, portanto, para preservar seu va­
lor próprio, uma vez que a conservação desse valor - sempre
posto em dúvida interiormente - não pode ser indicada pelas
obras exteriores.
E' por isso que o louvor tem tão grande importância. Por­
que por meio dele se desperta a certeza de poder realizar uma
obra, ainda que dentro de um círculo limitado. A amabilidade
que a criança recebe é, pois, também, para ela, um sinal e um
penhor da segurança de que necessita para enfrentar a dificul­
dade de suas condições de vida.
E' errado ver na doçura dada à criança, sobretudo às pe�
queninas, o perigo de que seja despertado nelas um aparecimen­
to precoce da sexualidade. Se alguma coisa pode dar este resul­
tado, é justamente a atitude contrária, porque entre o medo e a
excitação sexual existem relações e, em particular, relações de
base fisiológica. A experiência diária e as pesquisas científicas
nos ensinam que o sentimento de medo dá lugar a um estt-eita­
mento dos vasos sanguíneos das partes exteriores do corpo (pele
e músculos) e uma dilatação dos vasos interiores, principalmente
dos órgãos da cavidade abdominal. Ora, como o fundamento da
excitação sexual é uma forte irrigação sanguínea do órgão res­
pectivo e como este pertence à região de vasos do abdômen e da

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100 RUDOLF ALLERS

bacia, torna-se compreensível, fisiologicamente, a ligação entre


o medo e a excitação sexual. De fato, tem sido observado, vezes
mumeras, que as primeiras excitações sexuais aparecem em si­
tuações angustiosas ( expectativa de castigo, provações, perigos,
etc.). Se existe, entre a afecção sexual propriamente dita e a do
medo, uma relação interior (psicológica) é o que não poderemos
indagar aqui com minúcia. Observaremos apenas, que a primi­
tiva concepção da psicanálise, de que o medo era, de certo modo,
um produto de transformação sexual ( um produto de origem li­
bidinosa) foi pos� de lado, como insustentável, há pouco tempo,
pelo próprio fundador daquela ciência.
Ainda mais importante é, como dissemos, a recusa dada à de­
monstração de meiguice, a qual representa uma necessidade na­
tural, sentida pela criança, de aproximar-se do adulto. Não é ape­
nas porque seja um mal reprimir a expressão natural de uma
tendência que tem, em si mesma, um valor positivo (pois o que
enche o coração, transborda pela boca). E' também porque se
trata de uma considerável injustiça feita à criança, o que, não
raro, ocasiona um dano perdurável. Porque, como já vimos, a
criancinha não tem realizações a apresentar, nem dispõe de qual­
quer coisa de seu. A única coisa que pode dar é seu amor ingênuo
e confiante e ela o dá com sua meiguice. Se se recusa, porém, esta
dádava "ex plenitudine cordis" - irrefletida por certo, mas, por
isso mesmo, mais digna de amor - é como se se dissesse ao pe­
quenino ser que ele nada tem a dar, nada absolutamente, e que é
inteiramente pobre, no pior sentido da palavra. Para a sensibili­
dade da criança, que, diante do insucesso desta sua primeira ten­
tativa de dar, de dar-se a si mesma, se recolhe, abalada, para
dentro de si, nada mais resta senão a opinião (il"refletida como
tudo o mais, mas, nem por isso, de melhores resultados) de que
ela nada é e nada vale, pois nada tem a dar senão sua pessoa e
seu amor e estes, certamente, nada valem.
Pode-se talvez retificar, mais tarde, em muitos ca$OS, as más
conseqüências de erros dessa espécie, que aparecem em nossas re­
lações com as crianças. 1\:Ias o que nunca pode ser retificado é
a perda irreparável que sofre o homem em conseqüência de uma
infância mal dirigida. A ninguém pode ser devolvido o passado,
embora se lhe possa ensinar a vê-lo com outros olhos e a reconhe­
cer nele uma outra posição e uma outra significação no conjunto
geral da vida.
Além do mais, deve ser observado que a maioria dos educa­
dores é culpada desses erros, não porque tenha uma determinada
concepção - a qual, mesmo errada, poderia ser ainda conside­
raria de valor positivo, de um ponto de vista subjetivo - mas,
tão si,mente, cm con:,ecJüência de uma concepção não muito pro­
funda da tarefa da educação e de uma observação insuficiente da

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p s I e o L o G I A 1) o e A Jt Á T E R 101

criança. Inúmeras Yezes é 11111 mau temp1!rarncnto e, m11il:as ou­


tras vezes ainda, t', pro,•il,·clmente, a opinifw 1hi 11ue iie tem c<Jifla
mais importante a fazer, do que 'Jcupar-se, ncfllc momcnl.o, com a
criança. Por vezes, tal p1msamcnto pude ser cerlo. MaK, na v;ran­
de maioria dessas easos, as coisas pelaH quais os pai11 se juliram
obrigados a recusar a meiguice do fiilw, ou sua necessidade de
recebê-la deles, são sem importftncia e l1e,11 pocleriam ser deixa­
das para alg-uns minutos depois. As "boas donas de casa", em es­
pecial, esquecem facilmente, com a preocupaçfto tia casa, suas
obrigações e de\'cres principais cm relação aos filhos.
Sem dúvida, é preciso fazer uma limitaçfto expressa. Muitas
crianças (o tipo a que pertencem sc1·á estudado mais tarde) ser­
vem-se da meiguice - tanto da que desejam como da que de­
monstram - para tiranizar os que as cercam, especialmente os
pais. Elas exprimem então os seus desejos quando vêem que sua
mãe tem outra coisa a fazer, como se quisessem, de certo modo,
dizer: "Estás à minha disposição. Só deves tratar de teu trabalho
quando eu permitir". Que os filhos únicos, especialmente aqueles
que não conhecem outro círculo senão o dos pais, adquiram tal
atitude, é compreensível. i\1as ela aparece também em outros ca­
sos. Este assunto pertence, porém, ao quadro dos casos de mimo,
de que trataremos depois.
E' preciso fazer uma observação preliminar. Se é certo que
o mimo torna o jovem incapaz de uma vida real e conscientemente
responsável, se é certo, também, que ele pode produzir, em certas
circunstàncias, amplas e graves distorsões de caráter, não é me­
nos verdade que, em geral, estes resultados são menos sérios e
mais fáceis de corrigir do que os ocasionados pela excessiva se­
veridade ou a educação sem ternura. Isso pode ser verificado,
mesmo a priori, sem a constatação, aliás facilmente rea1izável,
da experiência. Porque a. severidade quebra, no homem, o ammo
para a vida, roubando-o de seu sentimento de valor próprio. O
mimo, por seu lado, não o acostuma às dificuldades tia realidade
e deixa-o na crença de um êxito fúcil. Mas é mais difícil restau­
rar o sentimento de valor próprio que foi rebaixado ou anulado,
do que recuperar a capacidade para a viua, se tiver sido deixada
de lado por um treinamento imperfeito na infância.
Se há, não raro, por tletráH da atitude enérgica do educador,
uma consciência da responsabilidade, ou um temor à responsabi­
lidade, errôneamente exagerados, que nada perdoam, e uma des­
medida opinião de sua própria importância e perfeição, por vezes
11.mpliada até o grotesco, a qual não pode compreender qualquer
desenvolvimento correto a não ser segundo o modêlo de seu pró­
prio eu precioso, temos, por outro lado, como raízes da atitude
oposta, uma falta do sentimento de responsabilidade e um como­
dismo que, a maneira de certas amas, prefere ceder a ser -impor-

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102 RUDOLF ALLERS

tunado por lágrimas e pedidos. Há uma moleza sentimental que


se mascara de bondade e compaixão e uma vaidade que não pode
. acreditar na possibilidade de erros de seus filhos.
Para desculpar muitos casos de energia .ou fraqueza absur­
das, pode ser declarado - como para outras falhas de educação
- que existem em ação duas poderosas forças, a que está sujeito
o homem: a primeira, quase sem possibilidade de ajuda, é a estu­
pidez; a segunda são as tradições da família, o status quo e tôda
a cultura; contra esta, há, por certo, meios; mas aqueles que os
empregam são ainda poucos e sua influência é mínima. Não ape­
nas "a lei e o direito se propagam como uma eterna doença", mas
também os erros cometidos na educação dos pais vingam-se na
dos filhos, Por isso mesmo, é ainda maior a responsabilidade do
educador..

10. A vontade de associação

Antes de passar à descrição dos efeitos produzidos, em rela­


ção ao desenvolvimento posterior do caráter, pelos erros e desa­
certos de educação já mencionados, é necessário considerar aquilo
que se opõe, na organização da natureza humana, ao desmedido
da vontade de poder, quer como obstáculo, quer como corretivo.
Chamamos, a esta segunda tendência fundamental, vontade de
associação. Quanto a essa expressão, devemos dizer que a psico­
logia individual de ADLER emprega a variante: "sentimento de
associação". Não consideramos feliz este termo, já que se trata
aqui de uma orientação da vida, uma posição orientada para um
fim e, pois, no fundo, um comportamento ativo, que, como tal,
deve ser concebido de modo análogo à atitude ativa consciente e,
portanto, à vontade. "Vontade de poder" e "sentimento de poder"
são coisas diversas; o "sentimento de associação" é pois também,
em sentido estrito, algo de diferente do que deve ser lógicamente
designado como: a tendência fundamental da vontade para a as­
sociação. No sentimento de poder o homem percebe, de certo mo­
do, a obtenção do fim visado pela vontade de poder. Do mesmo
modo o sentimento de associação não pode significar outra coisa
senão uma vivência, na qual se torna perceptível ao homem a asso­
ciação obtida e realizada, que era o fim visado pela vontade de as­
sociação. Este "sentimento" pode ser descrito de modo mais pre­
ciso, como um "pertencer", "ser um membro" ou "estar" entre
semi semelhantes. Ele é negativo, como ausência de diferenciação
e de diAtância, como eliminação de um espaço vazio ou de uma
parede de vidro, que separasse o· homem de.-seus semelhantes.
Pondo de parte a imprecisão terminológica - que também con­
tém, sem dúvida, o perigo de urna certa obscuridade conceituai
- a insistente indicação da importância fundamental da associa-

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PSICOLOGIA DO CAJtÁ'l'F.Jt 103
hilid ade e do desenvolvimento 1le nma vontade corre11pondente,
constitui um mérito, que mmca 11crf1 demm1iadamcnte louvado,
d as teorias de Au·mm AnL1�1t. 1
Sem dúvida, 11:10 teria Hido 1wccHHÍlrio tornar a deAcohrir êAte
fato fundamental e tornar II acentuar irna influência t.odo-pode-
1·osa na formnçfio elo caralcr, HC a hiHtúria eHpiritual dm1 últimos
anos, ou mesmo dos últimos Héculo!l, não nm! l.ivcHm! afaHtado in­
teiramente das antigas conccpçõeH que, cm último análise, se ba­
seiam na Revelação. Ao ver :rnrgir no penHamento filoH6fico e es­
peculativo de nossoH dias, um número cada vez maior de motivos,
que estiveram em ação no npogeu da filosofia católica, escolástica
e medieval, mas que foram quase soterrados pela Renascença e o
Iluminismo, começa-se a dar também uma vida nova a velhas
idéias e conhecimentos, nas ciências empíricas e práticas, tais
como: pedagogia, sociologia, psicologia e concepções da natureza
burnana em geral. Isso não significa, de modo algum, uma dimi­
nuição do espírito inventivo daqueles que nos voltam a apresen­
tar essas teorias. Apenas nos ensina a compreender as novas
teorias, como um aspecto parcial de um movimento histórico-espi­
ritual mais amplo, dando-nos, assim, elementos para separar
aquilo que tem valor maior, do que vale menos. Não poderemos
nos deter aqui na tentativa de recompor os traços essenciais deste
movimento histórico-espiritual, que J()EL designou, engenhosa­
mente, como uma quíntupla Renascença. 2 Basta dizer que muita
coisa que hoje parece, a muitos, nova e revolucionária repousa
nas bases firmes que lhe foram assegurados pelo diligente traba­
lho de pensamento de épocas passadas.
Passemos agora à questão da vontade de associação, Disse­
mos que era, como a vontade de poder, uma tendência fundamen­
tal do ser humano. Mas, ao contrário desta, não aparece, aqui,
uma analogia biológica, universalmente espalhada pelo reino dos
seres vivos, como é, por exemplo, em relação à vontade de poder,
a tendência à conservação própria. Há, sem dúvida, sociedade en-

· 1. A importância dessa rtfcrência. sempre repetida à indispensabilidade es­


sencial de uma ligação ,15socíativa, vivida e Sl'ntida, para a evolução menu! e
espiritual do indivíduo e para sua saúde mental, excede os limites dessa conex�o
imediata. Porque, pelo reconhecimento de tai· situação, torna-se inteir�mente im­
possível a posição absoluta do indíviduo e tambrm a puu fundam"cnuçfo, cm si
mesma, da natureza humana. É naturalmente por um profundo reconhecimento
da importánda dessa idéia, que a escola de psicologia individual, 011 \"árias dos
seus representante. acredita de seu dever estender-se cm orientações pragmáticas, cm
lugar de considerar que poderia atingir uma ontnlr,gia dos universos a que o homem
pertence e que contribuem para sua formação. Observuemos adiante, como as ex­
pressfüs empregadas por ADLER, tais como "lógica imanente da convivência hu­
mana' e "verdade absoluta" contradizem justamente o pragmatismo de algumas de
.suas deduções ulteriores.
2, Kan/sluáien ( 1928),

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104 RUDOLF ALLERS

tre animais (insetos que formam comunidades, animais que vi­


vem em rebanhos), Mas tal fenômeno é, em nosso caso, mais es­
pecífico. Quis-se, é verdade, demonstrar a formação de uma "so­
ciedade celular", a partir do fato da multiplicação das células.
Trata-se, porém, a meu ver, de uma audácia impermissível e de
uma coisa fora de propósito. Ainda assim, contudo, ficaria de pé
a circunstância de existirem também seres vivos unicelulares,
mostrando todos eles, a tendência de autoconservação. Portanto,
segundo as aparências, a sociabilidade e a tendência que lhe cor­
responde parecem ser, não só um traço essencial da natureza hu­
mana, como algo de específico em relação a ela. Pela vontade de
associação, o homem é, não só determinado em sua natureza como
também colocado em situação privilegiada. ARISTÓTELES acredi­
tou que não o poderia designar melhor do que como Zwov 7rtlÀ1nxóv,
um termo que a Escolástica incorporou ao tesouro de seus con­
ceitos como: "ens sociale", ou melhor ainda, "sociabile" (capaz
de sociabilidade, submetido à sociabilidade) .1
Pode-se mostrar, de fato, que qualquer dano, deformação
ou obstrução no desenvolvimento dessa tendência primeira do
homem, limitará a exteriorização de seus traços essenciais mais
específicos, tornar-lhe-á mais difícil - ou mesmo impossível -
a participação em suas condições de vida naturais e sobrenatu­
rais e tirar-lhe-á a possibilidade de executar suas obras neste ou
noutro mundo. "Não é bom que o homem esteja só" - eis como
a criação da mulher foi, ao mesmo tempo, a fundação da socie­
dade, de que a família é a forma primitiva e pura.
Se o fim da vontade de poder bem orientada é a afirmação
de si mesmo, o desenvolvimento do valor próprio e a plenitude
da pessoa, o da vontade de associação é o amor - o do próximo,
como todos os outros amores - porque, sem ela, não podem exis­
tir, de modo algum, o amor, a dedicação e a comunicabilidade. E'
evidente o entrosamento íntimo e recíproco destas duas tendên­
cias fundamentais e originais da natureza humana. Nenhuma se
pode desenvolver corretamente sem a outra. Um homem que se
dissolvesse inteiramente na sociedade, perder-se-ia e perderia seu
valor próprio e sua individualidade. Nem mesmo se poderia per­
der na sociedade, pois que ele próprio não mais existiria. Per­
dido seu valor próprio, não poderia mais amar o próximo, por­
que foi dito: "Amarás teu próximo como a ti mesmo". Por outro
lado, se os fins morais e culturais não podem ser atingidos sem a

1. Poderíamos mostrar, se as exigências de espaço e seguimento das idéias


o permitissem, que o próprio fato da capacidade de expressão pela linguagem e a
importância fundamcnlaJ que dJÍ se deriva pau todo o intcrcurso espiritual pro�
vam uma incontestável subordinação aos semelhantes. (Vide, P. HÕNIGSWALD,
Grund/egen der Denltp,ychologie, Ldp·,ig, 1925). A isso corresponde a segunda
determinação conceituai do homem, na filosofia antiga - Zcõou Â'l'YOU E;(OU•

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PSICOLOGIA DO CARÁTI-:Jt JfJ5

presença da vontade de poder, não pode também nf;r r,,rdizada


uma obra cheia de valor, quando a vontade de aBHtJCia,;ãrJ ná,, w;
acha realizada na pessoa humana. E' o que irem<JS dcrnrmstrar.
Deve ser anexada, agora, uma observação ele orrlem w,ral. A
conexão e o entrosamento íntimos (que não r)()rfornm,,H m,guir
aqui em todas as minúcias) destas duaH tendéncia,i funrlame;ntais
e o fato de serem dirigidas uma para a outra, fazr;m-nm, reco◄
nhecer como seria falsa uma teoria que fizesse d,J homc:m uma
"reunião" destas duas (ou de outras) tcndéncim; ou "impu],ios".
A essência íntima e final do homem não consiste c:m quaii;quer
"partes" e apenas se manifesta cm planos e aspectos diferentes.
Toda a divisão e toda a reunião sornativa aparentes nos são im­
postas apenas pelas limitaçõeH do pensamento discursivo e pelaB
exigências de seqüência ela exposição, mas não pela natureza elo
objetivo considerado - a pessoa humana, ou o que i;c refere a
ela. Por que esta é essencialmente um conjunto de opostos e, por ◄

tanto, solicitada por tensões, por todos os lados. O que é, no


"ipsum esse" de Deus, uma unidade sem tensão, aparece analo­
gicamente na criatura como unidade de tensões. O homem vive
nelas e por elas. GUARDINI disse que a vida desaparece, quando
assume, unilateralmente, a forma de um dos contraditórios que
a caracterizam. 1
A "Unidade de tensões', para usar uma expressão de P. E.
PRZYWARAS,2 é efetivamente a estrutura essencial da existência
da pessoa humana, tanto em sua ligação ao terreno-natural, como
em sua união à vida sobrenatural.
Não se deve, pois, interpretar falsamente nossa opinião, como
se acreditássemos que o homem em geral, ou um indivíduo qual­
quer em particular, pudesse ser "explicado" por u m forte desen­
volvimento da vontade de poder ou da vontade de associação. O
que afirmamos, apenas, é a importância fundamental dessas duas
tendências primeiras e seu equilíbrio, mais ou menos pronuncia­
do, na formação do caráter e, em segundo lugar, a importância
da compreensão dessas coisas, para o conhecimento e a orienta◄
ção, em tôdas as formações de atitudes morais, de suas normas
e do próprio caráter.
L. FEUERBACH disse: "Um homem completamente isolado se
dissolveria, sem diferenciação, no caos da Natureza". Este pensa­
dor, de que nos afastamos em outras concepções, disse, naquela
frase, algo de absolutamente verdadeiro e suas observações sôbre
o problema do "tu" e do "nós" são, ainda hoje, dignas de leitura.
Só em sua relação com o "tu" é que o "eu" se realiza, ou, pelo

1. Der Gtgtnsarz. Eine Philosophie des Lebendig-Konhreten (Maiença, 1926).


Z. Ver, p. ex.: "Rcligionsphilosophíe katholischer Theologíc" no Handbuch
der Philoiophit (Munich, 1927).

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106 RUDOLF ALLERS

menos, toma consciência de si mesmo ( compare-se com FICHTE) •


E' uma observação exata, pelo menos no que se refere às condi­
ções em que a natureza humana se encontra· hoje (isto é, após o
pecado original). O que ela seria "in statu innocentiae", não te­
mos que indagar agora. E' de crer, porém, em conseqüência da
passagem já citada ("Não é bom que o homem esteja só") que,
mesmo nesse caso, haveria uma necessidade essencial do "tu".
Não é necessário uma longa ponderação, para que se torne
claro, que tôda a existência física do homem está ligada à pre­
sença dos semelhantes. Quando se considera qualquer espécie de
cultura, mesmo de forma primitiva ( e não se conhece um estado
da humanidade que não esteja neste caso), verifica-se a exatidão
daquela afirmativa. Isso é tanto mais visível quando se trata de
altas culturas. Mesmo um Róbinson, lançado, nu, à praia de sua
ilha, não seria capaz de manter-se, se não trouxesse consigo todo
o conhecimento adquirido com seus semelhantes.
E', pois, igualmente claro, que o desenvolvimento das possi­
bilidades intelectuais e sua valorização pela aquisição do conhe­
cimento e da ciência só podem ser realizados em virtude da pre­
sença e da influência de outros homens. "O que descobrimos como
princípios válidos, está ligado a tôda a transformação do mundo'',
diz o "Coro dos Mortos" de C. F. MEYER.
Mas o próprio desenvolvimento da "personalidade moral" se
dá apenas por intermédio e com o auxílio do contacto vivo com
o "tu", com o "ser" e o "ser assim" dos outros homens. Não é em
si, mas da boca dos outros, que o homem ouve os mandamentos.
Ele possui apenas a capacidade de compreendê-los e reconhecê­
-los . (Vejamos, ao continuar estas considerações, que é necessá­
rio crer numa primeira comunicação da Lei ao homem; mesmo
prescindindo da Revelação, tiram-se, da natureza do ser humano,
as seguint es conseqüências: que Deus, como fonte primeira de
tôda a moral, deveria ter falado ao homem pela primeira vez,
ter-se revelado a ele, ou então, que.nosso conhecimento não tem
sua origem no espírito humano mas naquilo "qui locutos est per
prophetas").
Só a vontade de associação torna possível, ao homem em ge­
ral, entrar em contacto com seus iguais e compreender a existên­
cia de um "tu'" e de suas modalidades. E esta vontade de asso­
ciação, esta subordinação de um homem aos outros é, de tal modo,
um elemento básico de sua natureza, que se pode dizer com razão
que o homem vê e compreende o seu próximo, mas do que conhece
seu próprio "eu". "A percepção de si mesmo é uma atitude se­
cundária em relação à percepção do estranho" (isto é: do eu es­
tranho), disse SCHELER.1 Quais as primeiras manifestações de

1. M. SCHELER - "Wcson und Formen", V. nota I da pág. 28.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 107

vida espiritual, que podemos perceber no rosto de uma crianci­


nha? - Um brilhar de olhos em resposta ao olhar carinhoso de
mãe, um sorriso em resposta ao amor que se demonstra a esse
pequenino ser. Não compreende, a criancinha, a excitação de <Ju­
tros homens, sua voz e seus afetos, muito antes de ter co�heci­
mento de seus próprios reflexos? Quando se observa mau; de
perto, se nota que a criança pode mesmo ter com uma certeza in­
tuitiva, um conhecimento dos modos e disposições dos homens,
adivinhar, de certo modo, quem é bom e trata-a bem, ou vice­
-versa, ainda que niio possamos conhecer, de modo absoluto, pen­
samentos e conclusões tão obscuras, como as que se passam nessa
época e em relação a essas coisas.
Quanto mais se desenvolve a vontade de associação, ou se
realiza, no sentido dessa vontade, o desenvolvimento da vida in­
dividuai, quanto mais o homem se sente membro de uma socie­
dade que o cerca e compreende, em si, todos os indivíduos, tanto
menos sentirá as limitações da vontade de poder em sua perso­
nalidade e tanto menos será levado a compreender a incapaci­
dade essencial dessa vontade como uma expressão de incapaci­
dade pessoal ou desvalor pessoal. Compreendendo, em virtude de
sua inclusão na sociedade e da viva aproximação ao próximo que
daí resulta, que uma tal limitação do esforço pessoal para o poder
e o valor não é um destino índividual seu, mas um destino uni­
versal humano, forma-se no homem uma base psicológica para
essa atitude interior, que, como virtude, tem o nome de humil­
dade. Por certo, tôda virtude é também de certo modo, como tudo
o que é positivo, um dom e uma graça, Mas a "Graça pressupõe a
Natureza" e "a Graça não suprime a Natureza, mas a completa
{termina)".
E quando o homem compreende, numa tal posição, quão in­
cessantemente se acha ligado, sob todos os aspectos, a seu pró­
ximo e obrigado para com ele - pois que, em virtude, todos os
homens formam, juntos, uma unidade - está preparado o ter­
reno para desenvolver-se aquela virtude, que é para nós um de­
ver: o amor ao próximo.
Veremos, ainda, corno e porque a ruína ou as falhas de for­
mação da vontade de associação tornam impossível, não só a hu­
mildade e o amor ao próximo, mas tôda uma série ele outras ati­
tudes, de importância fundamental para a moralidade. De mo­
mento, nos contentaremos com indicar que, já no que foi dito
atrás, torna-se visível a importância dessa concepção para o de­
senvolvimento de uma atitude religiosa na vida. E' preciso, agora,
fazer duas observações de ordem crítica sôbre certas concepções
espalhadas nos círculos de psicologia individual. Em primeiro lu­
gar, muitos representantes desta tese se inclinam a equiparar ao
"útil" a atitude de associabilidade e os fins que ela põe diante do

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108 RUDOLF ALLERS

homem . Se se compreender bem êste conceito de útil, se objetará


antes de tudo, contra tal concepção, que o expressão é imprópria'.
Porque o útil é, no sentido próprio da palavra, apenas uma de­
terminada forma do valor e dificilmente pode ser considerado
como um conceito superpost_o a todos os valores. Naturalmente,
em sentido lato, tôda a realização de valores verdadeiros é "útil"
mas parece haver, neste caso, um prolongamento menos lícito d�
extensão do conceito. Em segundo lugar, a associação aparece,
nas explicações dos pesquisadores de psicologia individual, como
alguma coisa de último, sem necessidade de qualquer outro fun­
damento. Todo homem que não tem uma cegueira para os proble­
mas metafísicos e ontológicos e possui, portanto, espírito aberto
para as questões últimas e supremas que ocupam o pensamento
humano, não pode satisfazer-se com esta "posição absoluta" da
associação. (Digamos, aliás, de passagem, que uma cegueira para
os problemas não pode suprimir a existência destes, do mesmo
modo que a cegueira para as cores não pode eliminar do universo
a existência do vermelho, do verde e do azul). O homem a que nos
referimos quererá sempre indagar o fundamento da associação.
Não quererá ele antes de tudo, compreender em seu sentido últi­
mo esta solidariedade humana para o bem e para o mal, que de­
riva, de certo modo, do pensamento de subordinação necessária
do indivíduo à sociedade e de seus deveres para com ela - uma
solidariedade que implica em ter, com outro, uma parte em todo
o seu bem e uma culpa em todo o seu mal? Enfim, ele estará
diante de uma questão decisiva: por que, então, o homem, mesmo
sendo "pela natureza" destinado à associação, não poderia agir
contra essa "disposição", como contra outras, sem ser, por isso,
prejudicado? O que poderia obrigá-lo a cumprir o seu dever para
com a sociedade? De fato, para que essa tendência primeira da
vontade de associação - que, como _vimos e iremos ver ainda,
constitui o pressuposto natural da moralidade -, para que essa
posição fundamental, seja reconhecida como fornecendo uma ori­
entação em geral, devem, a associação e a moralidade, ser basea­
das noutra coisa além da idéia ele um serviço à sociedade natural.
Se tal não for possível, tôda a argumentação girará em torno de
um círculo vicioso. Daí as inúmeras contradições e obscuridades
internas daqueles adeptos dessa tese, que julgam poder evitar e
dispersar sua fundamentação por meio de uma metafísica capaz
e não naturalística (da pessoa, do ethos e suas fontes jurídicas,
etc.}. Não se deve, porém, de modo algum, confundir o conteúdo
material elos ensinamentos da psicologia individual com os pres­
supostos ou conclusões do tipo "concepção do universo-.., que mui­
tos de seus adeptos apresentam. Essas chamadas "conclusões"
não são conclusão alguma, mas apenas reproduzem o ponto de
vista da concepção do universo subjetivamente pressuposto. Par-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 109
lindo dele," o homem de ciência assume uma atitude pré-cientí­
fica, ao iniciar suas experiências. Querer desenvolver uma con­
cepção do universo a partir de um único àomínio de fatos (ainda
por cima encarado de um ií.nico ponto de vista) é, por mais amplo
que seja êsse domínio, o mesmo que fazer a ingênua tentativa de
apoiar uma pirâmide em seu vértice. Uma concepção do universo
pressupõe um conhecimento do universo o não apenas o de deter­
minadas faces do caráter humano, ou de sua evolução normal e
anormal. E' tão absurdo chamar à própria psicologia individual
uma concepção do universo, como acreditar que tal concepção
possa ser feita, a partir dela. Um exame crítico de tais empre­
endimentos mostra sempre que inúmeras pressuposições, de ori­
gem estranha, estavam ocultas ou inexpressas no autor estudado
e foram introduzidas na construção integral de seu pensamento.1
Para compreender, agora, o papel da vontade de associação
no desenvolvimento normal do caráter - isto é: num desenvolvi­
mento que não deixa produzir-se um conflito insolúvel com a rea­
lidade e permite um modo de vida compatível com as normas dos
valores objetivos - temos que voltar aos conceitos, já expostos,
de compensação e supercompensação (ver pág. 86).
A criancinha se acha, como explicamos, numa situação obje­
tiva de subordinação natural, que é percebida, subjetivamente,
como depreciação. Uma compensação imediatamente realizável
no mundo ambiente só será possível, portanto, de modo mui res­
trito. Tal tentativa aparece na forma de todos os modos de com­
portamento que visam colocar a criança numa posição central.
Inofensiva em certos limites e natural em tôda a criança, entanto
que tolerada e reconhecida, essa tentativa deve ser, porém, con­
siderada corno um sinal ameaçador de desvio na evolução do ca­
ráter, logo que atinge certo grau e, em particular, quando a
conduta anterior da criança faz reconhecer a escolha de urna ori­
entação que se afasta da vida, da realidade e da sociedade. Vol­
taremos depois a este assunto.
Como, porém, o mundo ambiente real não dá muita margem
a essas tentativas ·de compensação, a criança é levada, na exte­
riorização de seu impulso para compensar a vivência da deprecia­
ção, a escolher um outro caminho. Êsse caminho é o da fantasia.

11. Da fantasia e das exigências de compensação

Já no brinquedo está ligada uma significação de compensa­


ção imaginária. Sem prejuízo da circunstância de que o brincar
1. Vide minha, observações: "Zur Fragc nach einrr Psycbopathologic der
'Veltanschauungrn". em Zeirschr. lür die g,s. N�uco/. und Psychol. Volume l 00
(1926).

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110 RUDOLF ALLERS

da criança vale como uma afirmação das tendências orientadas


para o "prazer de função" e tem grande importância como prepa­
ração progressiva para trabalhos mais sérios, não se deve desco­
nhecer que a maioria dos brinquedos representam, além disso, um
equivalente fantástico das situações infantis. Porque o conteúdo
de quase todos os brinquedos é o estado adulto. Quando a menina
"brinca de mamãe" com a boneca, quando o menino brinca de mo­
torista, ou quando as crianças brincam de negociante, professor,
índio ou salteador - seu brinq11edo representa sempre o adulto.
E o papel de aluno, por exemplo, quando muitas crianças "brin­
cam de escola", só é aceito por uma delas, porque, devido à situa­
ção (aliás muito democrática) de todos em relação a todos, cada
um pode vir a figurar como professor.
Esta característica se torna ainda mais distinta, nas fanta­
sias e sonhos da crianças. Muitas vezes pode-lhes ser atribuída
a significação, assim descrita por uma menina de doze anos aos
que a cercavam: "O que tem importância é que eu seja home­
nageada".
Devemos perguntar qual é o sentido da fantasia em geral
(pondo de lado que seja uma preparação para agir sôbre a rea­
lidade, do que não trataremos aqui). E' claro e é muitas vezes
afirmado, que a fantasia põe integralmente diante do fantasia­
dor um mundo de aparência, em que todos os momentos que o
prejudicavam na realidade aparecem apagados ou invertidos: ele
triunfa, onde era derrotado; o pobre se torna rico e o prisioneiro,
livre; o oprimido se transforma em s.enhor e o mal-sucedido tor­
na-se invejado, etc. Além disso, a f:,..ntasia, ou o sonl;iar de olhos
abertos, tem outra propriedade digna de nota. Como êsse mundo
ele aparência apenas existe por um dom do fantasiador, desenro­
lando-se seus acontecimentos segundo os desejos dêste, passa, as­
sim, o fantasiador a ser o criador, o conservador e o legislador
dêsse mundo. O desamparo e a impotência do homem se ti-ansfor­
mam numa posição de onipotência ilimitada; as limitações do po­
der condicionado se transformam num poderio real - pelo menos
no mundo das aparências.
O reino da fantasia, que constitui, para todos os homens, o
único domínio em que podem encontrar a satisfação, embora fic­
tícia, de seus desejos de poder, valor e grandeza, representa o
mesmo papel para as crianças e jovens. Oprimidos pela inferiori­
dade que existe - ou acreditam existir - nelas, as crianças se
refugiam na fantasia que, além do papel de corrigir a atual reali­
dade insatisfatória e substituí-la por um mundo melhor, assum e
o encargo de pôr, em lugar de um presente sentido como falho,
um futuro favorável. Aliás, para a criança, a fantasia e a reali­
dade não se separam. Elas tentam transportar para o real muitas
idéias e projetos "fantásticos". Só à medida em que se tornaJ"l,

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 111

cada vez mais, conscientes da incapacidade de dar a seus desejos


e sonhos uma forma no ambiente, é que transferem sua realiza­
ção para o futuro. -f:stc oferece, pois, a plena compensação de tô­
das as insuficiências do presente. Tôdas as fantasias de futuro
estão condensaclas na frase: "Espera até que chegue o meu dia;
então verás ... " Tal atitude explica muitos dos desvários e ex­
cessos, que são muitas vezes peculiares à conduta dos jovens.
Está, porém, na natureza do homem, que ele não se satisfaça
comumente com uma simples correção das circunstâncias que o
afligem e oprimem na vida, mas deseje uma supercompensação.
Só na ideologia e, por assim dizer, no programa, é que existe uma
pura compensação. Mas nos desej(Js comuns do homem, revela­
dos em ação, aparece outra aspiração. Se um movimento social
escrevesse em sua bandeira: "Igualdade de direitos para todos os
oprimidos", ou então: "Justiça", c,s fatos mostrariam que seus
desejos eram desejos de vingança. Foi assim na rebelião dos es­
cravos da Roma antiga, foi assim ua grande revolução de 1789 e
em muitos outros movimentos revúlucionários. E' assim, também,
na vida dos indivíduos e das crianças. O tema de suas fantasias
não é apenas o "ser adulto", mas ser, como adulto, um persona­
gem importante. Veremos, depois, que, neste processo, o fim fu­
turo é posto tanto mais alto, quanto mais baixo se sente o ho­
mem em sua opressão. E êste m€.canismo de supercompensação
no irreal é de decisiva importância para a evolução do caráter
anormál.
Se, portanto, é próprio da vivência infantil que a. situação
apresentada seja sentida como uma situação de prejuízo, apres­
são e depreciação, segue-se que, naquele processo de supercom­
pensação, a meta futura (de qne as crianças e jovens nunca fa­
lam, pelo menos com os adultos) pode ser colocada a uma altura
considerável. A fórmula é a seguinte: Tanto mais alto estarei,
"quando meu dia chegar", quanto mais baixo estiver hoje.
"Os pensamentos podem fàcilmente coabitar, mas, no espaço,
as coisas se chocam". As leis da realidade são mais fortes que os
desejos do homem. Se a meta que se impôs é atingível, e se seus
planos são realizáveis - eis o que será decidido pela realidade.
Ela prescreve o compasso em que o homem marchará, ela traça
os limites até onde lhe é permitido ir.· As maçãs de ouro não caem
do céu em nossas mãos inertes: precisamos lutar, para obter o
que a vida parece nos dar. "O que a vida nos promete, precisa­
mos arrancar da vida".
Não que nos seja proibido desejar e lutar pelos nossos dese­
jos. O que não nos é permitido e pode levar a conflitos - e até
a catástrofes -:- é a exigência. A exigência se distingue do desejo
por se tornar uma condição da realização. Ela toma a forma se-

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112 RUDOLF ALLERS

guinte: "Se isso não me acontecer, não farei aquilo que me é or­
denado, ou farei aquilo que me é proibido". Mas o que se espera
do homem é que faça, por livre decisão, o Bom e o Justo, por se­
rem bons e justos incondicionalmente - quer sejam ou não, rea­
lizados, por seu intermédio, nossos desejos.
Como tudo, esta atitude deve ser também_ conquistada. Ela
existe talvez no homem como possibilidade, mas necessita atuali­
zar-se. A atitude puramente natural do homem, que lhe fica, por
assim dizer, na superfície, é a de considerar os próprios desejos
corretos, mesmo em relação aos acontecimentos do mundo que se­
jam inteiramente independentes de sua própria pessoa. A ver­
dade disso é mostrada numa forma de reação, muito comum, em­
bora se exprima nas formas mais diversas - a desilusão. Porque
a desilusão não significa senão a admiração, o prazer e a revolta
pelo fato de que o mundo das coisas e do homem se atreva a ser
diferente e portar-se de modo diferente, do que pensava o indiví­
duo. Sob a desilusão, está propriamente uma exigência, que pode
parecer louca quando a expressamos, mas que provém de tendên­
cias secretas e, em primeiro lugar, de uma vontade de poder que
não foi devidamente corrigida. Esta exigência se traduz assim:
"Se as coisas corressem bem, o mundo teria de obedecer às mi­
nhas idéias e desejos". Mas, em seu extremo, ela diz simples­
mente: "Se fosse onipotente ... " As enganadoras palavras de
tentação da serpente continuam a soar.
Para que o homem aceite e se eleve a esta posição de submis­
são às leis da realidade, quer na vida natural quer na sobrenatu­
ral, é necessário que se inclua na sociedade e que possua a von­
tade de associação. Só na união viva com os outros, encontra au­
xílio contra seu isolamento e solidão, no meio deste mundo enor­
me e terrível. Só pela consciência de ser um entre muitos conse­
gue libertar-se <la impressão de incapacidade pessoal, penosa­
mente produzida por sua vontade de auto-afirmação, e é capaz de
uma submissão voluntária ao que, simplesmente, existe e vale. In­
tegrado na vida da comunidade e, por meio dela, consegue, então,
o homem tornar adcquada8 à realidade as fantasias de futuro e
os planos c1ue trouxe <la infância. Pois só quando reconhece que
aquela situação, que despertou nele a impressão de uma deprecia­
ção própria, não é uma condição pessoal sua, nem provém de culpa
sua, jú que pertence à natureza humana, não mais precisará, para
salvar a consciência de seu valor, da 'esperança de imagens enga­
nadoras, formadas na névoa longínqua" nem precisará mais que­
rer tornar-se igual a Deus, para "brincar com as nuvens e os ven­
toa". Porque, então, f!e limitará ao que está compreendido nas
"íronteiraH da humanidade". Sem dúvida, são exatas as palavras
de Gm,THJ�.

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P S I C O L O G I A D O C A ll Á ·r E ll 113
"Se ele se apoiar, com i;eus 0,9SOS firmcfl e cheios de tutano,
sôbre a terra firme e dururlouru, não chegará a comparar-se com
o carvalho ou a videira".
Deve ser novamente dito que, de tudo o que foi explicado,
pode ser concluída a imporlância de uma adequada rclução com a
sociedade, mesmo pam o desenvolvimento do sobrenatural que há
no homem. Pois que, se a atitude interior de humildade é necessá­
ria como condição preliminar da afirmação du vontade de socie­
dade, é claro que uma posição correta em relação ao sobrenatural
deve também depender <léssc pressuposto.
Se quisermos dedicar, naH páginas a Heguir, alguma atenção
às formas especiais de desenvolvimento do caráter, devemos es­
clarecer ainda uma questão: como a vontade de associação da cri­
ança pode ser - não despertada, pois que é uma tendência fun­
damental - mas cuidada e desenvolvida, e quais os momentos,
interiores à criança ou pertencentes às atitudes dos circunstan­
tes, que podem perturbá-Ia ou impedí-la.
A sociedade, uma vez que fato dado, não pode ser posta de
lado em qualquer vida humana. Nenhum homem se pode colocar,
de fato, fora da sociedade, já que pertence, essencialmente, a ela.
Mesmo o "associai" está prêso à sociedade. Só um homem intei­
ramente indiferente à sociedade poderia ser considerado livre
desta ligação. Não existe, porém, tal homem. Ao negar a alguma
coisa os direitos sôbre sua própria pessoa e ao negar, em pala­
vras ou atos, suas obrigações para com essa coisa, o homem está
afirmando sua ligação a ela. O que ele combate com paixão, é re­
conhecido em sua própria natureza. O ódio é uma ligação, tal
como o amor. Só a indiferença suprime qualquer ligação. O ódio
ainda se pode transformar em amor, mas é raro que este nasça
de uma pura indiferença. "Tivesses sido quente, ou tivesses sido
frio ... mas foste morno e eu te cuspi com a minha boca". Não
é tarefa da educação incluir o homem na sociedade, porque êle
já é, por sua natureza, um membro dela. Sua tarefa é fazer com
que experimente esta dependência e facilitar a afirmação subje­
tiva desta situação objetiva.
Para que seja possível, ao homem em desenvolvimento, a in­
clusão e a participação ativa na sociedade, esta deve ser, de certo
modo, aproximada dele. Ele precisa experimentá-la, aprender a
conhecê-la, não como se pode conhecer um objeto de ciência, mas
como é aproximada e confiada à criança tôda a realidade - ou
seja: pouco a pouco e por um contacto vivo. Se é verdade que a
vontade de associação é, de certo modo, periférica e secundária,
em relação à vontade de poder e à tendência de auto-afirmação,
porque estas são imediatamente ligadas à própria pessoa, então,
a vontade de sociedade necessitará de um cultivo especial e po..

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114 RUDOLF ALLERS

sitivo, enquanto que, com a vontade de poder, é bastante conter


seus desmandos e, por outro lado, não aniquilá-la.
A forma originária histórica e, ao mesmo tempo, essencial
da sociedade é a família. nenhum outro ambiente educativo, por
mais hábil que seja sua estruturação, pode ser comparado, em
eficácia, a uma educação de família orientada por princípios cor­
retos. E' pena que faltem, tantas vezes, êsses princípios corretos!
Por isso tem-se, em muitos casos, o desejo de libertar as crianças
dessa educação. Mas tôda educação instit11cional é, em �i e por
si, um simples expediente.

12. Educação para a sociedade

Fica subentendido que se falará sempre aqui, principalmente


das crianças pequenas. Deve ser acentuado expressamente, que os
primeiros anos de vida - o período pré-escolar - são os mais de­
cisivos para o desenvolvimento posterior do homem, sua conduta
na vida e a formação de seu caráter. 1 A êsse respeito, as expe­
riências de psicologia normal e o estudo dos caracteres anormais,
obtidos em crianças e adultos, não deixam a menor dúvida. As
pessoas a quem foi confiada a educação da criança em seus seis
primeiros &nos, cabe a maior, ou provàvelmente a inteira res­
ponsabilidade pelo seu futuro desenvolvimento mental e moral.
I\Iuita coisa pode ser melhorada pela escola, ou mais tarde, pelos
esforços do pastor de almas e o médico. Mas essa estrutura a me­
lhorar é recebida das mãos daqueles que agiram sôbre as crianças
até sua idade escolar. Nos anos posteriores, muita coisa poderá
ser ainda corrompida, e por isso a responsabilidade dos mestres
não é pequena. Mas as bases de tôda a evolução favorável ou des­
favorável se acham nos primeiros anos da infância, passados em
geral na casa dos pais.
Aí, pois, no seio da família, deve a criancinha ter a experiên­
cia da sociedade. Mas o laço de união com a sociedade é o amor.
Só onde predomina o amor pode existir a sociedade e só nele pode
a criança ter a vivência da associação.
A sociedade é a ligação viva com o "tu" dos outros. Esse
"tu" se apresenta ao homem de uma forma quádrupla. As quatro
variantes dessa relação são: pais-filhos; homem-mulher; indiví­
duo-semelhantes e eu-Deus. Em tôdas essas quatro dimensões,
deve, a vida de sociedade no interior da família, ser subordinada
aos princípios objetivos, se a criança deve atingir um bom desen­
volvimento de sua vontade natural de associação.
1. O fato ele ter acentuado a importância disso, é um dos méritos ímpere­
dveís de S. FREUD, embora a interpretação que dá a suas observaç0'< possa ser
considerada. em grande parte, como falha.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 115

. Já vimos que a exigência especial, ligada à relação de pais e


filhos, é a confiança. Ela é prejudicada pela presunção de infali­
bilidade do adulto e por sua vaidade, sua tendência ao domlnio e
sua autovalorização. E' certo que a paternidade confere ao ho­
mem uma certa dignidade; mas esta dignidade deve mostrar-se
válida. A relação entre o homem e a mulher toma a forma espe­
cial de uma dedicação mútua. Ela é dirigida pela idéia díl fasci­
nação, por um desejo incondicional de supecvalorizar (de uma
ou de outra parte) pela exigência ciumenta de um para outro,
pela repetida expectativa de cada um de que o outro exista "para
ele", ao invés de considerar essa união como algo que pode ser
dissolvido. A exaltação do próprio afastamento, o isolamento, a
tímida conservação da esfera pessoal, a falta de conhecimento
da igualdade última e essencial de todos os homens como criatu­
ras - um plano acima do qual ninguém deve ousar elevar-se -
são fatores ·que solapam a relação com o semelhante, da qual o
amor ao próximo é a forma mais ampla. "Não podendo dar, ao
homem que nunca viste, o mesmo bem que concedes a ti mesmo,
ficarás inteiramente pervertido", disse Mestre ECKEHARDT.
Mas a forma da relação com Deus chama-se humildade. Ela
é a origem e a base de tôdas às outras. O orgulho é a sua supres­
são e o orgulho é a fonte de tôdas as perturbações das outras re­
lações da vida, mesmo, talvez, das que aparecem no puro plano
vital. "O orgulho é a fonte de tôdas as enfermidades, pois que é a
fonte de todos os pecados" (SANTO AGOSTINHO). Do mesmo modo
que foi o pecado original, o orgulho é também a causa primeira
de todos os pecados, que o homem cometeu ou cometerá. E é tam­
bém - mesmo quando oculto e desconhecido do homem - a causa
de muitos (ou talvez de todos) desvios e distorções do caráter.
Diremos depois do motivo pelo qual o orgulho, essa herança de
Adão "em quem tódos pecamos", êsse ·atributo fatal da natureza
decaída, exerce, em certos casos, uma ação mais perturbadora do
que noutros. Agora porém, nosso objetivo principal é a vontade
de associação.
Quando se apresentam, à vivência ingênua e ainda inculta,
os objetos adequados à natureza fundamental do homem, ela se
apossa deles e os recebe. O homem não os vive, apenás: ele vive
neles. O amor é natural para aquele que vive a experiência da
associação. Aquele que a experimentou, em qualquer de suas fo1·­
mas, terá uma idéia dela. O homem será, então, capaz de socie­
dade e desenvolverá sua vontade de associação, se o seu mundo
ambiente satisfizer as quatro condições já mencionadas.
Há, porém, uma série de momentos que dificultam essa in­
c!usão ativa n.a sociedade, essa profunda afirmação da dependên­
cia. E' importante conhecê-los, embora seja dificil, muitas vezes,
. suprimi-los.

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116 RUDOLF ALLERS

1- Toda diminuição da vivência do próprio valor dificulta


a inclusão na sociedade. Estamos aqui diante de uma ellpécie de
círculo vicioso. S6 pela inclusão na sociedade pode ser· vencida a
vivência de depreciação, que surge de um isolamento de fato, de
uma solidão metafísica e de circunstâncias ela vida infantil. Só
assim poderá ser mantida a vivência do próprio valor. Mas, por
outro lado, a inclusão na sociedade pressupõe a vivência• do pró­
prio valor. Êste círculo não nos deve, porém, parecer estranho.
Porque só no pensamento abstrato se separam, em traços ou mo-
1 mentos distintos e discretos, as tendências originárias e a essên­
cia humana em geral;. Na realidade viva, tudo é simultâneo por
mais contraditório que pareça.
Portanto, tôdas as ·condiçQes que · mencionamos como desfa­
voráveis à vivência do valor próprio dificultam, por outro lado,
a inclusão na sociedade e enfraquecem a vontade de associação.
As inúmeras incompreensões e falhas da educação têm, portanto,
sob um duplo aspecto, conseqüência fatais; que, por sua vez, ainda
mais as fortalecem. Ergo, caveant consules!
2 - O desenvolvimento da vontade de associação é dificulta­
do, quando a .forma de associação que se oferece à criança lhe é
apresentada a uma luz desfavorável. Onde reina a desconfiança,
onde o ódio e a inimizade provocam males, onde a tirania e a
opressão se fazem valer, a formação de uma verdadeira vontade
de associação não se pode realizar.
3 - O mesmo se passa, quando a reduzida comunidade (a
da família e a de algumas outras poucas pessoas, como: parentes,
amigos, etc.), embora cumprindo corretamente as exigência es­
peciais que lhe são impostas, deixa de cumprir as que se referem
à sociedade em sentido amplo. Essa falta de relaçõea sociais am­
plas, pode tomar a forma de uma representação de ódio, preven­
ção e afastamento, para com tôdas as pessoas que se acham fora
daquele pequeno círculo. Não se pode esperar que uma criança
se encaminhe para um verdadeiro sentimento de associação,
quando ouvir que os homens são maus ( excetuando, natural­
mente, o que fala), que não são dignos de muita confiança, e que
se deve estar sempre de alcatéia com eles. Tais afirmações aba­
lam também a coragem natural da criança, que verá, na sua vida
entre os homens, uma seqüência permanente de perigos, aos quais
nem sempre terá esperança de vencer.
Em resumo, tôda a exclusividade excessiva é um obstáculo
para a formação de um perfeito sentimento de associação. Acima
de tudo, porém, a exteriorização do ódio contra pessoas, profissões,
classes, nações e raças, age como um veneno sôbre o sentimento de
associação. A abominação do mal e o ódio aos homens são, contu­
do, coisas distintas. O santo abomina o mal, mas ama o pecador.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 117

O verdadeiro sentimento de associação vê, porém, em todo


homem, sem exceção, um irmão, um membro real ou virtual, visí­
vel ou invisível, do "corpus Christ·i mysticum". O verdadeiro sen­
timento de associação é, pois, em geral, idêntico ao amor do
próximo, como o entendeu o apóstolo: "Se alguém acredita que
anda na luz e não ama seu irmão, êste estará nas trevas desde
hoje" (São João, I, 2, 9).
4 - Todos os motivos que levam o homem a acreditar que
não é "capaz de sociedade" ou "digno de sociedade", impedem-no
de trilhar seu càminho para a sociedade, ou, de modo geral, de
encontrá-lo. Há, porém, em essência, dois grupos dêsses motivos.
O primeiro é formado por tôdas as condições a que já nos referi­
mos, de modo indeterminado, como "vivência do valor próprio".
Entre elas, devem ser incluídas, especialmente, tôtlas as condições
que realizam um recuo real da pessoa em questão - seja por um
dano corporal ou espiritual, seja por uma privação de amor, seja
por uma preferência dada a seus iguais ( outros irmãos, por exem­
plo), ou seja, enfim, por embaraços sociais.
O segundo grupo de motivos é dado pela falta de preparação,
ou de·treinamento para a vida social. Porque a inclusão na socie­
dade e a vida em so·ciedade e com a sociedade, devem ser aprendi­
das. Aqui, como para tôdas as funções vitais importantes (por
exemplo o andar e o falar) o treinamento deve começar cedo. Por
isso, todo isolamento artificial é desfavorável. Os receios excessi­
vos dos pais que, por exemplo, impedem o contacto de seus filhos
com os outros ( os filhos únicos se acham nesse caso, em situação
especialmente precária), ou por temerem infecções ou por quere­
rem por uma espécie de ciúme, conservar os filhos juntos de si,
prejudicam de modo grave o próprio objeto de sua afeição cari­
nhosa, mas irracional. Todo isolamento, por mais justificado que
seja, é um mal .
Acentua-se, muitas vêzes, que a criança deve agir entre seus
iguais a fim de atingir, desde· cedo, a uma sociedade com seus
semelhantes. Não se pode negar que há, em tal exigência, um
fundo de razão, De fato, essa convivência com os da mesma idade
e condição é um bom exercício para a vida futura, sendo especial­
mente indicada no caso de filhos únicos, que não tem experiência
da vida em comum com outros irmãos. Contudo, não creio que
tal exigência seja indispensável. Parece-me que, sob muitos aspec­
tos,-ela foi bem exagerada, e, na verdade, não por motivos -ineren­
tes à questão, mas, em grande parte, por motivos derivados de
uma concepção do universo - aquêles mesmos que levaram a uma
luta contra a família em geral e à idéia absurda e utópica de que
a crlança deve, desde cedo, ser subtraída à família. Tal opinião
não seria possível"r;-;e, de fato, a educação de família não fôsse, em
casos infelizmente tão numerosos, miseràvelmente falha. Mas a
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118 RUDOLF ALLERS

experiência mostra que, mesmo no caso de filhos únicos, a própria


família pode ser uma boa preparação para a sociedade. Não se
darão, neste caso, os fatos que ocorrem comumente em casos seme­
lhantes, por exemplo, por· ocasião do ingresso na escola, quando a
convivência com outras crianças dá lugar a "reações catastrófi­
cas" (K Goldstein) e ocasiona o aparecimento de tôda a sorte
de deficiências e desvios infantis, ou, o que é pior, graves pertur­
bações "nervosas". Êste caso pressupõe, na verdade, que tenha
sido tornado possível, à. criança, viver em uma verdadeira socie­
dade com seus pais, que não se tenha tornado prodigiosa a distân­
cia entre pais e filhos, que se tenha assegurado à criança a atenção
essencialmente devida à sua pessoa e que não se tenha ela sentido
um mero objeto de educação, ou um súdito e escravo do adulto.
É errado dar sempre ordens à criança. Pode-se justificar o
que delas se exige e o motivo da exigência. Mais ainda: pode-se
e deve-se também pedir (quando se trata de gentilezas e prestação
de serviços) e agradecer.
A união à sociedade não termina com a associação em geral,
ou com a instauração da desejada relação com o próximo - o amor
· ao próximo - mas ·exige também características especiais. Os
trabalhos que devem ser realizados para fundar uma associação no
verdadeiro sentido, não têm a mesma forma para todos os homens.
Estas diferem, primeiramente, em relação ao sexo. Por outro lado,
elas se afastam ainda mais da imediata relação de sociedade, por
conte1·em, em si mesmas, a posição em relação ao trabalho.
Sôbre o primeiro ponto, as passagens dedicadas à caractero­
logia do sexo trarão maior esclarecimento. Quanto ao segundo,
acrnscentaremos aqui algumas observações.
H:í. quatro grandes círculos de tarefas, no interior dos quais
o homem achará, mais cedo ou mais tarde, seu lugai· e em que
deverá trabalhar. Seus nomes são: o próximo, a família, a profis­
são e a fé. O;; três primeiros, embora baseados em sua natureza
última no sobrenatural, constituem o domínio das tarefas naturais
do homem. Dois dêles exigem uma solução positiva em qualquer
circunstância: o próximo e a atividade são tarefas exigidas de
todos. O terceiro ítem, em que se incluem: o amor conjugal, a
sociedade matrimonial e a fundação da família, deve ser também
solucionado por todos. Esta solução pode ser, porém, positiva ou
negativa. l\fas esta última não é, de modo algum, equivalente a
uma negação do matrimônio e da família, no sentido de um menos­
prezo. A vida virginal ou monástica, o celibato dos padres e mes­
mo a renúncia à família por parte de uma pessoa que resolveu
dedicar-se inteiramente a uma idéia ou tarefa, perderiam todo
seu valor e significação intrínsecas, se fôsse considerado sem valor
aquilo que deve ser sacrificado. Não é por ser o casamento cheio
de contratempos, que devemos renunciar a êle; de outro modo, tal

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o,g,tahzadocomCamScann
er
PSICOLOGIA DO CARÁTER 119
atitude não teria um valor ético e significaria, simplesmente, covar­
dia e fuga. Não é também por ser o mundo cruel e insatisfatório,
que se deve "fugir" dêle e dedicar-se à vida monástica. Pois, então,
onde estaria o sacrifício? Só existe sacrifício, quando aquilo a que
se renuncia tem um valor. Só quem considera o mundo belo e
cheio de valor, pode renunciar a êle, por ver diante de si algo
ainda mais belo e mais digno. Assim, a solução negativa do proble­
ma do matrimônio conterá, se tiver algum valor, acima de tudo,
uma plena e integral afirmação do matrimônio e da família. Como
seria errôneo - e até mesmo ilógico - querer negar a existência
de um valor, quando o valor e a dignidade foram confirmadas
pela instituição de um sacramento, feita pelo próprio Deus.
Mas o semelhante e o companheiro de trabalho não são uma
mesma coisa. Por certo, o conceito de trabalho não deve ser com­
preendido unilateralmente e em sentido estrito. Ser um compa­
nheiro de trabalho significa, apenas, ocupar um lugar na linha de
frente em que a humanidade luta pelo progresso da cultura -
seja no domínio do espírito, no da economia, no da ordem social,
ou em qualquer outro. Tal lugar será ocupado também por aquêle
que apenas se dedica a orações e meditações. Não será talvez
supérfluo insistir nesta observação. Porque, em virtude daquela
solidariedade humana para o bem e para o mal, que, como disse­
mos, não é dada apenas pela Revelação, mas pode ser concluída
pelo pensamento especulativo, tal vida não é apenas proveitosa
para o indivíduo que a pratica, mas para todos os homens. Aliás,
não pode existir uma vida inteiramente contemplativa, O próprio
contemplativo é obrigado a executar determinados trabalhos, mes­
mo os puramente ísicos.
Mas o trabalho significa sempre uma colaboração. O traba­
lho pode ser definido como uma criação de valores que possuem
uma existência para além do tempo de atividade. Todo o trabalho
é uma realização visível e concreta de valores; todo êle está pois
subordinado à lei moral e a pressupõe. Nesta dupla ligação -
por um lado, à lei moral, e, pois a seu prolongamento último, o
sobrenatural, e, por outro lado, como colaboração, à sociedade -
se funda o valor educativo e ético do trabalho. Ninguém, que se
decide a trabalhar, pode subtrair-se à afirmação final da socie­
dade. (Donde a significação e o alcance do emprêgo da chamada
"trabalhoterapia") .
Embora possa produzir alegria e satisfação, o trabalho é, em
última análise, um esfôrço, e, de certo modo, como nos diz a
Sagrada Escritura, um castigo, ou, pelo menos, uma conseqüência
da queda (1, Moisés, 3, 17-19) . Se, porém, em sua essência, a
punição terrena imposta ao homem é, ao mesmo tempo, o meio
, ·e o comêço de um triunfo sôbre a ação condenável e uma prova
de confiança na natureza íntima do homem, julgada melhor do

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120 RUDOLF ALLERS

que demonstraram seus atos exteriores, então, isso será ainda


mais verdadeiro na· punição divina, na qual acham sua expressão,
não só a lei última, como também o amor supremo, como se vê
nos versos imortais daquela inscrição que Dante colocou no pórtico
do Inferno. A morte aparece também, no mundo, como um castigo
e, na verdade, ela é um caminho e mesmo uma possibilidade de
pagar as culpas, como se vê na morte redentora de Cristo e tam­
bém, porque, ao ato de morrer, se associa uma consciência da
responsabilidade. O trabalho tem também uma dupla natureza:
é uma carga opressiva e um prazer elevado. Considerá-lo apenas
como uma carga, ou degradá-lo à condição de diversão ou desporto,
é falsear sua natureza. Tôda tentativa (aliás utópica) ·de criar
uma ordem social em que o trabalho perdesse sua qualidade de
carga deixaria de ter qualquer sentido. i.Was, por outro 1ado, o
trabalho não deve ser apenas considerado como uma carga. Grave
acusação tem sido levantada, em nossos dias, contra a concepção
do trabalho e sua organização, como, por exemplo, aquela constran­
gedora declaração de que uma parte considerável de nossos traba­
lhadores vê em seu trabalho apenas um encargo penoso e um
tormento injusto.
Apresenta-se aqui, para a educ ação, uma tarefa e um dever
que ultrapassam a simples formação do indivíduo. A nova forma­
ção de um sentimento moral do trabalho, de que necessitamos
urgentemente, só pode vir de uma construção de baixo para cima,
isto é, do indivíduo e só pode ser feita, portanto, através da forma­
ção do caráter e dos sentimentos do indivíduo.
Que, para tanto, deve o educador ter um conhecimento adequa­
do da significação profunda do trabalho em geral é o que parece
evidente. Não queremos insistir nesse ponto. l\fas, ainda que sr
dêem tais disposições, sua passagem para a alma do discípulo e sua
implantação nela devem estar sujeitas a condições e evitar certos
erros.
Em primeiro lugar, o trabalho não deve ser apresentado à
criança como uma maldição. Os anos em que deve estudar e traba­
lhar não devem ser considerados como um período de que está
excluída a presença da felicidade. É compreensível que os pais se
regozijem com a despreocupação e ausência de obrigações dos
pequeninos (embora estas sejam apenas relativas) e lamentem que
êstes sêres ingênuos e brincalhões sejam postos em contacto com
opressões e constrangimentos. ivlas, embora sintam isso, devem
ocultá-lo da criança. Devem mostrar a esta, pelo contrário, que
a aquisição de conhecimentos, o enriquecimento de sua personali­
dade, os trabalhos e os êxitos são coisas dignas de apreço. tles
devem, antes de tudo, já nos primeiros anos, familiarizar a criança
com a natureza do trabalho, mostrando que cada pessoa deve

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PSICOLOGIA no CARÁTF.R 121

ocupar, na vida, um lugar ativo. AR criançaR compreenderão isso


muito bem. De modo geral, elas compreemlcm muito mais, do que
comumente se pcnHa. A1Tumar OH :mus brinquedos, concertar a
desorrlem qnc fêi, são coism1 que a criancinha pode também fazer.
Ela comprccndcrú, HC lhes cm;inarmos a :-iigniricação correta dêsscs
atos, que essaH pcquenaH tnrcl'as são um equivalente do trabalho.
Ao mesmo tempo, con/lC!{llir-sc-á, 1lêssc mo1io, diminuir aquela
disti\ncia entre a criança e o adulto, qnc jú mostramos ser uma
ameaça em relnção ao fmimo para a vida. A criança deixará de
sentir-se um inútil, um parasito (infeli'l.mente é um caso muito
comum na educação irracional) ; ela se considerará um colabora­
dor e penetrará assim num determinado círculo de trabalho.
A cooperaçilo no trabalho leva à conce11ção do próximo, embo­
ra, por outro lado, a prc:,,mponha. Vemos, mais uma vez, a cor­
relação íntima e recíproca de tôclas as faces e aspectos da existên­
cia humana. Como o próprio trabalho cria valores perduráveis, êle
implica incondicionalmente as esferas do eu e do não-eu e, portan­
to, em primeiro lugar, a da sociedade. O homem, a quem falta
essa orientação interior para a sociedade, diflcilmcnte procurará
trabalhar. Percebemos aqui a possibilidade (mais tarde voltare­
mos a falar nela) de compreender a aversiw ao trabalho, não como
um defeito constitucional ou uma culpa, mas como uma forma
secundária de uma vontade de associação imperfeitamente desen­
volvida. Ao acreditar que é de seu dever a criação de valores, deve
também o homem acreditar em sua capacidade de executar esta
tarefa. O valor não pode vir do sem-valor, nem ser gerado por
êste - é o que mostra, imediatamente, o próprio senso comum.
Assim, para que o homem execute wrrctamente o seu trabalho
- como trabalhador ou cooperador - e preencha seu lugar na
vida, é indispensável a conservação de sua consciência do próprio
valor.
Assim, uma coisa se liga a outra. Os erros e falhas atribuíveis
à educação não se limitam nunca, em seus cfeitol'!, a determinada
face da natureza e da vida humana. Porque, do meRmo modo que
o homem age sempre como uma unidade indivisa cm cada uma de
suas manifestações, assim também, como pnciente, êle renge, como
um todo indivisível. O efeito futuro de nm êrro ou de uma falha
depende das situações momentânens, ela história anterior do indi­
víduo, de suas posRibilidades internas últimas e, finalmente, de
influências posteriores sôbre sua vida. Há sempre a possibilidade
de que tal efeito seja de extraordinária importância e até mesmo
fatal. Não podemos, contudo, evitar inteiramente os erros, como
não podemos livrar-nos dos pecados, "sem o privilégio especial da
Graça Divina". Mas, quanto melhor conhecermos os perigos, quan­
to mais distintamente nos representamos suas conseqüências possí-
. veis, tanto mais fàcilmente poderemos evitar as faltas.

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122 RUDOLF ALLERS

Não era nossa intenção, neste capitulo, dar um método de


educação do caráter, no sentido de um ensino sistemático. Tôdas
estas nossas explicações servem, ao contrário, apenas como ilus­
tração de nossa afirmativa a respeito da enorme importância das
influências do ambiente. Antes de tratar de certas questões parti­
culares, devemos tratar, mais uma vez, nos pontos de vista aqui
apresentados, da tese conhecida pelo nome desagradável de "Teo­
ria, do meio", ou de uma variante dela. Essa teoria, que é, em sua
origem última, uma espécie de positivismo ou naturalismo, afirma,
mais ou menos, que, na formação de uma pessoa, só tem impor­
tância o ambiente. De tal construção, no fundo altamente primi­
tiva, estamos mui afastados. Já nos acautelamos contra isso por
uma distinção precisa entre pessoa e caráter e por uma definição
dêste. Pois que, quando vimos, neste, a máxima da conduta, quise­
mos exprimir com isso que nele - como uma relação entre o eu
e o não-eu estava incluída a condição final determinativa da pes�
soa, bem como do ambiente. Mas a condição final da pessoa é
simplesmente dada, ao passo que o ambiente é construção nossa.
Aquela será sempre desconhecida para nós em sua natureza ínti­
ma, entanto que conhecimento racional e analítico; êste, podemos
decompor, de certo modo, em elementos, e observar em seus efei­
tos. Todos os esforços devem ser empregados, no sentido de obter
um bom desenvolvimento do caráter, a partir do ambiente, porque
de influir por êsse meio. Elas vão, certamente, mais longe do que
imaginamos comumente.
A caracterologia teórica, como ciência pura, pode satisfazer-se
com a descrição dos tipos e as ponderaçõ�s sôbre as condições gené­
ticas. A caracterologia prática deve porém agir e agir onde pode.
Quanto menos ela se entregar a uma resignação prematura (e, a
meu ver, precipitada) e quanto mais estender sua esperança, tanto
maiores serão os seus sucessos.
Há, naturalmente, para cada pessoa, apenas determinadas
direções de desenvolvimento e, em cada uma destas, uma trajetó­
ria determinada, metaforicamente falando. Por certo, uma é pl'efc­
rível à outra e mais preferível, por certo, é aquela que con duz ii.
formação mais digna de valor. Até que ponto uma pessoa pode
ir e em que direção - é o que não se pode prever, mas apenas
experimentar. Tristes de nós, se 11ão tentarmos tudo, para lcv:u·,
na direção da mais alta perfeição, cada uma elas pessoas que nos
são confiadas.
Como se pode apresentar, cm particular, êsse caminho e quais
os traços essenciais dos <liversos caracteres "cotTctos" e "desvia­
dos" - eis o que conslit:ui1·ú, juntamente com outra8 particulari­
d�des, o �ssunto elo riróximo capítulo. Poderemos trntm·, então,
amda mais claramente, sob vúrios aspectos, tanto de nossa funda­
mentação teórica, como de nossos procmisos prúticos.

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111. SOHllF. OS C1\ll!\C'l}'.HE.S INFANTIS E AS
DIFICUI .DJ\DES DE EDUCAÇÃO

l. A ori11c·m rnrlil'II, dos l:nr,ços de caráf;cr

Como 11i::1:-11•11w:-1, <' t•xt.rnordin:'irianicnt.c difícil decidir, se um


trnço qu:ilq1wr, qll<' 111l::1 ap:u·cre na n:1t11rcza de um homem, ou
q11nlq11t!I' pl'c111inl'id:1de distintiva de sua 1tonna de conduta ou
c11r{l1Pr, dt�\'C c·onsitkrnr-:-1,1 co1110 uma formaçfto reativa, uma res­
post:n ns int'h1t'\nda::1 do amhie11t1�, 011 como pertencente à essência
Ílltim11 do homem,:\ ::111a 1wópria pessoa. Mesmo quando não conse-
1{nimo::1, do modo ali:um, 11wst!'ar a origem reativa e deduzir, do
(lest.iuo 011 d:1s expnriênci:111 de um homem, determinada caracte­
ríi:11.ica da cnmlnta, p1•rsistc 11emp1·c a dúvida c1e que tal incapaci­
dad<.! niio 111·ovl'llha d1� no;:;sa po111·a visão, de um conhecimento
in:,mfici1ml:e da história prcm·1•;;:,m CHI de uma falta de penetração
1111s leis gernis da influência. Tt>111-se a impn�ss[io de que não há
uma 1n·oprie1lade, ou m11 tl·aço de rarútcr, que nüo pudesse, em
última anúli:-ie, te1• 1mm orh�cm reativa. Sabemos, por exemplo,
qiw uma certa (ll"(\gniça, uma knlew e limitação intelectuais e um
se111.imc11t.o embotado :;urgrnn cm conseqüência de um funciona-
1n<mto, abaixo do llOrmat", ela tircóide e podem ser suprimidos
quando se remove essa rausa. 11.:lcs são, portanto, características
que :rnsimilam determinado rnitado do organismo e como êste é,
a11eiias, nnm :face da 11at111·cza integral corpóreo-espiritual do
homem, êlcs 11odem ser também considerados como sinais de um
estudo dessa naturezn nesses casos. Porque sabemos, por outro
la1lo, qne traços, ou, pelo menos, aparências idênticas, que para
nós sirn indiscerníveis das dcvidm, à insuficiência da tireóide,
po1lem iqm1·ercr como formaçiíes rentivas. A preguiça, entre outros
defeitos, não tum qualquer coüm de cRpecial em si, de modo a que
se possa, apet1aH por suas características, fazer um diagnóstico
daqncki mecm1iRmo ele formação. Hú 1,empre outroR dados, espe­
cinlmcntc ele ordem corpórea, que auxiliam o nosso diagnóstico,
c1u11111ln a l)l'l'scnça daqueles outros dcApcrta a suspeita de tratar-se
de uma Jle1·t111"haçi10 da fnnçiio tire6idea. Apenas em reduzido
númorn tlo c111-1os 1iodcmo11 conhecer tão bem a conexão entre as
comli1,õe1, corpóreas t1 m:1 tonalidades da atitude, que podemos falar,

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124 RUDOLF ALLERS

com razão, de uma determinação direta do orgânico. Conjetu­


ra-se muita coisa que não pode ser provada. Ainda menos pode­
mos afirmar que determinadas características repousam, de fato,
nas peculiaridades espirituais da pessoa, quando sua natureza pró­
pria nos é oculta e as pesquisas, quer experimentais quer de obser­
vação clínica, permanecem insuficientes.
Poder-se-ia supor, que o estudo do comportamento infantil
forneceria as melhores conclusões sôbre a condição originária da
pessoa, isto é: uma condição não originada pelas formações reati­
vas. Porque a produção de tais formações depende da experiência
e dos efeitos a que é exposta a pessoa e, na primeira infância, o
número de experiências e a duração dos efeitos são íntimos.
Mas esta esperança é também enganadora. Em primeiro ·
lugar, porque o estado corpóreo com que um homem nasce não
pode, como dissemos, considerar-se causa ou expressão de deter­
minadas formações da pessoa, já que é também o conteúdo de
uma experiência - a experiência primeira que, desde o primeiro
sôpro de vida (ou mesmo antes), acompanha, ainda que sob forma
rude, tôda vivência. Ainda que se considere inconsciente esta
vivência, é indubitável a sua presença, e ela deve ter deixado
traços e implantado raízes, que servirão de base ao desenvolvi­
mento futu1.·o. Mas a capacidade e a forma dos alicerces determi­
narão a altura e a configuração do edifício a erigir. Em segundo
lugar, sabemos muito pouco sôbre o fato de começarem as impres­
sões do ambiente a exercer efeito imediato sôbre êsses pequenos
sêres humanos. É mais que provável que tal efeito se faça valer
tlesde o primeiro instante. A crença popular de que a disposição,
o modo de vida e o ambiente da mãe grávida influirão no estado
do nascituro, não é, talvez, tão absurda. O organismo da mãe já
é um ambiente em que se desenvolve o germe do futuro homem.
Na verdade, a declaração dos pais de que uma criança mostrou
certa peculiaridade "desde o início" é muitas vêzes inexata e se
funda em ilusões fundadas noutros motivos. Mas, ainda que deri­
vasse de observações corretas, ainda que certos momentos do cará­
ter fôssem confirmados pelos mais rigorosos assentamentos sôbre
a conduta, nunca se poderia afirmar, com certeza, que 1·esultassem
de uma forma absolutamente espontânea, original e ligada à pes•
soa e não tivessem origem reativa.
Acentue-se, mais uma vez: não duvidamos absolutamente de
que devam existir e existam traços essenciais primários e depen­
dentes do estado último e mais profundo da pessoa; duvidamos
muito, porém, de que, pelo menos no estado atual de nosso conhe­
cimento, sejam capazes de reconhecer êsses traços essenciais como
tais e clistinguí-los dos de formação reativa. Deve sempre repe­
tir-se que só nos deveríamos contentar com a hipótese de traços
essenciais constitucionais e firmados na estrutura pessoal, quando

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PSICOLOGIA DO CARÁTER. 125
uma indicação ela reação ( influências ambientais, destino) não
pode ser obtida. Esta posição metódica eleve ser considerada
indispensável em tôdas as considerações e trabalhos caracteroló­
gicos. Um dos méritos da psicologia individual é a grande impor­
tância dada a essa posiçfw. Sem dúvida, há, de outro lado, um
justificável encarecimento da tese, fundada· também cm princí­
pios metódicos, que afirma a absoluta igualdaclc de tôdas as pes­
soas e atribui tôdas as diferenciações apenas às influências do
.ambiente. Esta opinião, desfigurada por vêr,cs até o grotesco, tem,
a meu ver, duas origens: uma é devida a uma concepção do mundo,
de que não trataremos aqui; a outra resulta ela técnica terapêu­
tica. De fato, acredita-se que a injustificabilidade ela vivêneia de
def)l"eciação só pode ser demonstrada quando se afirma a igual­
dade de todos os homens. Diremos, porém, que isso é errôneo,
embora não o possamos explicar aqui minuciosamente. Sua base
é uma insuficiente fundamentação ontológica-metafísica do sis­
tema.
Contra a concepção, aqui apresentada, da impossibilidade de
poder supor traços de caráter finais, imutáveis e espontâneos
(isto é: de origem não-reativa), objetar-se-á, talvez, que muitos
homens submetidos às "mesmas" influências podem apresentar
traços de caráter mui diversos. Sôbre isto, diremos o seguinte:
Conhecemos certos traços, que podem ser atribuídos, em comum,
aos homens mais diferentes, quando êstes foram criados, e se
acham ainda, em condições idênticas de vida. São, por exemplo,
todos aquêles tipos que se intitulam caracteres 'profissionais e de
estado: o oficial, o funcionário, o camponês, o professor, o agente,
o médico, etc. Muitos atos são tão "característicos" de determi­
nada profissão, que até mesmo o mais inculto pode reconhecer
fàcilmente um membro dessa profissão. Sem dúvida devemos pes­
<J.Uisar quais dessas marcas "características" pertencem realmente
ao caráter e quais delas são apenas "exteriorir.ações", em que o
momento propriamente caracterológico consiste apenas numa
apropriação de tais exteriorizações. Há, contudo, verdadeiros tra­
ços de caráter, que ultrapassam as exteriorizações e são condicio­
nados pela profissão e o estado. Vendo, então, que, na realidade,
condições de vida "idênticas" - como as de determinada profis­
são e especialmente as que dão, também, aos que lhe pertencem,
uma certa situação (por exemplo: o oficial, o padre, o camponês)
- ocasionam sempre, em todos os seus representantes, os mesmos
traços, chega-se à conclusão de que, onde não aparecer em condi­
ções "idênticas" tal uniformidade, existe uma "igualdade" aparen­
te, mas não real. 11: difícil, de fato, encontrar dois homens que
tenham tido, na realidade, as "mesmas" condições de vida. Ternos,
pois, que ficar em um non liquet, que nos vemos obrigados a expri­
mir ao modo seguinte: uma convicção definitiva de que determi-

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126 RUDOLF ALLERS

nado traço de caráter pertence essencialmente a uma pessoa e deva


ser atribuído a êste homem e nenhum outro mais, em conseqüên­
cia de uma "lei individual" intrínseca, não poderá nunca ser obtida
no estado atual das coisas.
Só conjeturas se nos permitem. Em que direção elas poderão
orientar-se é o que será estudado noutro capítulo. Agora, volta­
remos às particularidades do caráter segundo as idades da vida,
sem esquecer, porém, as limitações já expressas. Naturalmente,
como temos de·nos haver, de preferência, com questões práticas,
interessar-nos-emos em primeiro lugar pelas peculiaridades dos
períodos de vida anteriores à idade adulta. O caráter é realmente
e fundamentalmente mutável em tôdas as fases da vida humana,
conforme já foi explicado no comêço desta obra. Mas a possibili­
dade de realizar, com êxito, uma verdadeira transformação de
. caráter e sentimentos em idade tardia é, evidentemente, menor.
Ela pertence mais, por sua natureza, ao domínio da salvação espi­
ritual, cuja descrição não cabe nestas páginas. Tais coisas deve­
rão ser tratadas, em apêndice, num capítulo especial.
Já falamos bastante sôbre as generalidades da caracterologia
da infância. Precisamos apenas completar, aqui e ali, nossas expli­
cações. Parece, contudo, útil, indicar com mais precisão certos
tipos bem distintos de caráter e conduta infantis e em particular,
examinar alguns traços notáveis, que aparecem, mais ou menos
freqüentemente, nas crianças. Se aqui, como em explicações ante­
riores, se dá atenção especial aos fenômenos "anormais" (no senti­
do de desagradáveis para a educação, mas, não· no de patológicos)
é pelo motivo que vamos expor. É muito mais fácil descrever um
desenvolvimento falho e mostrar os desvios a que o homem chega,
ou para os quais se dirige, do que indicar o caminho do desenvol­
vimento correto. É também mais fácil dizer o que falta, do que
o que deve ser positivamente feito. Esta observação não tem
cabimento apenas em relação ao nosso tema. Também a higiene,
por exemplo, trata muito mais dos perigos a evitar e dos meios
de afastá-los, do que de fornecer preceitos positivos. Finalmente,
os mandamentos da fé e da moral revestem, na maioria das vêzes,
forma negativa.
Deve-se, porém, talvez, separar a necessidade, existente na
natureza do assunto, de apresentar os ensinamentos sob uma
forma muitas vêzes negativa - como proibições, por exemplo -
e a conduta prática, diante do homem a quem devem ser apresen­
tados êsses mandamentos. É êrro muito comum apresentar às
crianças (e mesmo aos adultos), mais o negativo do que o posi­
tivo. Por certo, ninguém deve ignorar os perigos da vida natural
e moral. Mas mostrar a alguém, principalmente uma criança,
apenas e sobretudo os perigos, sem despertar-lhe a consciência
para o fato de que �sses perigos podem ser evitados e anulados,

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scanner
PSICOLOGIA DO CARÁTER 127
é, mais uma vez, enfraquecer sua coragem de viver. Seria bom
que se colocasse, após o eterno "niio deves, niio tens permissão
e não podes", o "podes, devcl:I e tens pcrmii:1são". Tenho a impres­
são de que tõdn a nossa cduc11çiio deixa de lado, demasiadamente,
os momentos positivos da capacidade natural e do auxílio sobre­
natural. Daí resulta uma forte acentuação dos perigos, que não é
equilibrada pela das possibilidades correspondentes de oposição
existentes na pessoa moral e natural. A conseqüência será, natu­
ralmente, que o homem não se sinta preparado para a vida e tenho
medo.

2. O medo da criança .

Chegamos, agora, a um dos momentos mais importantes, para


tôda a caracteroJOgia e formação do caráter - o do medo. 1
O medo, como tal, é uma afecção; como traço de caráter, designa­
mos a inclinação a ter medo, em tôdas as. situações possíveis da
vida, pelo nome de timidez. Ela não é, porém, o que nos importa.
Mais importante é o fato de que tal homem esteja numa posição
em que diversos acontecimentos, situações de vida e ocorrências
apareçam como "perigos". Estaríamos tentados a dizer que, por
trás de tudo isso, há uma ilusão fundamental, um êrro, uma defi­
ciência de conhecimento. Pois, que outro nome, senão o de êrro
de julgamento, se pode dar, quando um homem julga ver perigos,
onde outros não o percebem 7 Deixemos, por enquanto, de lado a
questão de saber em que aspectos da vivência devem ser procura­
das as raízes últimas de tal conduta e ocupemo-nos com a descri­
ção e a definição de sua formação.
Digamos, agora, por que colocamos em primeiro lugar a dis­
cussão do medo. Não há caso algum de desvio de caráter, em
crianças ou adultos, não há caso de conflito interior, como os
revelados na neurose, não há caso de dificuldade de educação ou
falha infantil, nos quais, de forma evidente ou oculto sob másca­
ras diversas, não apareça, como causa das perturbações, o medo.
O medo é um sintoma infalível de tôda inadequação às condições
de vida que se apresentam. Mas êle é, apenas em parte, uma conse­
qüência dessa inadequação: na maioria das vêzes, é sua própria
causa primeira. Aqui também encontramos um círculo fatal, de
que só nos podemos libertar, ou a outrem, quando penetramos em
sua essência.

1. O problema altamente interessante do mêdo nio pode ser estudado aqui


em sua significação geral e mttafísica. (e; de importincía fundamental a noYa obra
de M. HEIDEGGER, Sein und Zeit (Halle, 1927); I: tamb<'m digno de nora o
pequeno estudo de H. LIE!:IECK, influenciado por HElllEGGER, Das Unbekarmte
und die Angst (Leipzig, 1928).

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128 RUDOLF ALLERS

Não é exagero dizer que o medo constitui o fundamento de


todos os modos insatisfat6rios de comportamento: casos inúmeros
de dificuldades de educação mais ou menos expressos, orgulho,
reserva, insinceridade e "criminalidade" infantil 1 (se é permitido
empregar de modo geral esta palavra, para designar tôdas as más
ações das crianças), perturbações na vida escolar e negligências.
Vimos que a incerteza é um traço fundamental da existência
infantil. O correaltivo da incerteza é o medo. Êle aparece, quando
a situação geral da pessoa é, real e objetivamente, considerada
incerta, e ameaça sua existência (física ou moral) . Ou, então,
quando a pessoa assim o julga. Quanto mais altamente colocada
estiver, sem que esteja preparada, legal e pessoalmente, para isso,
tanto mais a pessoa sentirá medo. O tirano rodeado de guardas,
que não dorme duas noites seguidas no mesmo leito, é um exemplo.
Não é preciso que haja uma .autoridade de fato, visível exterior­
mente, para criar o medo : basta a elevação interior do valor e da
importfmcia próprias. O medo - disse, com razão, S. JOÃO CL!­
MACO, em sua Scala Paradisi - é a marca de uma alma orgulhosa.
Só quem se eleva, e se eleva muito alto, precisa temer a queda;
aquêle que está sentado no chão não pode cair.
Já explicamos de modo suficiente, porque a criança deve infa­
livelmente ser levada à insegurança em conseqüência de sua posi­
ção, isto é: pelo conflito desta e suas limitaçõe� com a tendência
primitiva de auto-afirmação. A tarefa da educação deve ser a de
dar à criança, apesar dessas circunstâncias, a consciência da segu­
rança e a confiança em si e no mundo.
Preliminarmente, a criança tem, portanto, razão, quando se
amedronta. Repreendê-la ou gracejar sôbre êste seu medo é, pois,
inteiramente errado. Mas é ainda mais errado, fortalecer êsse
temor natural, contando inúteis histórias de fantasmas, ou -
o que é pior - fazendo inúmeras "brincadeiras" estúpidas e de
mau gôsto, que só servem para aumentar o medo. Enfim, é uma
tolice pensar que se "endurece" ou "encoraja" uma criança, fazen­
do-lhe medo. Quando uma criança teme, é porque não se sente
ainda preparada para o mundo. Não se lhe dará a convicção de
que ela é tão capaz para a vidá como qualquer outra, chamando-a
covarde, maricas, ou (como fazia o pai de um meu pacientezinho)
"mulher velha". Nem também, quando, por uma excessiva descri­
çfw de perigos, se aumenta sua insegurança natura!. Conheci uma
moça de vinte e sete anos, sofrendo de uma neurose de ansiedade,
<JUe não ia para a escola, quando criança, sem que o pai lhe fizesse
o aviso: "Presta atenção na rua; à direita e à esquerda está a
1. Vu, sôbrc o assunto o as explicações que •• s.,guem, o trabalho de
H. ALLERS e E. r:REUNDS "Obcr cinigc F;il[e von Schwemziebborkdt und kind·
Jici,., Kriminalitü" - Zcétscl,r, für dic ges. Neuro/. und Ps',lchiarrie, Vol. 103
(1926).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 129
Morte". Não é de admirar que ela não se libertasse do medo para
o resto da vida. Por certo, o próprio pai sofria de medo. Mas a
filha não havia herdado, mas apenas aprendido êsse temor. Eis
uma interessante contribuição para a questão da hereditariedade
das qualidades psíquicas.
Todos os momentos, que já mostramos capazes de aumentar
a insegurança, prejudicar o desenvolvimento da consciência do
valor próprio e impedir o aparecimento da vontade de associação
têm possibilidade de criar o medo. De modo que se pode afirmar
com muita probabilidade que o medo das crianças, desde que não
se baseie numa fraqueza vital, é um produto da educação. No
primeiro caso - o da fraqueza vital - é necessário, evidente­
mente, adotar de início uma orientação cuidadosa e cheia de tato,
a fim de levar a criança a triunfar do medo - noutras palavras:
é preciso saber fazer surgir uma atitude interior, pela qual o
medo perca sua justificativa.
Falaremos mais tarde sôbre o medo na vida dos adultos.
Queremos mostrar agora que, no futuro da maioria das dificulda­
des de educação, o medo age como uma fôrça impulsora. Para que
se compreenda isso, é preciso esclarecer que o medo originário de
ser incapaz e de se mostrar sem valor não pode ser experimentado
de modo claro em sua pura forma. Porque, para representar-se
êsse medo, é preciso ter já a possibilidade de compreender a depre­
ciação e a falta de um valor pessoal e próprio. Mas é intolerável
pensar nisso, mesmo como possibilidade. Possuir um valor pró­
prio e estar seguro de si, são, para a vivência, uma e mesma coisa.
Duvidar, nesse caso, já não é ter. Dêsse modo, o medo originário
encontra sua expressão em formas múltiplas: em parte, apoiando­
se em outros objetos que se apresentam como pretexto para o
temor e, em parte, ocultando-se por trás de tôda a sorte de
disfarces.
São fáceis de observar aquelas formas de medo, que apare­
cem em tôdas as situações, em que a preservação do julgamento
se faz por intermédio de outra pessoa. O acanhamento, o emba­
raço e o medo aos estranhos e às situações novas estão entre estas
formas. Rir ou zombar de uma criança tímida por essa sua atitude,
ou castigá-la, é mostrar uma completa ignorância do assunto.
Pode acontecer, num ou noutro caso, que uma criança, obrigada
por tais medidas, se veja constrangida a "vencer" sua timidez,
porque o medo dos efeitos da educação se torna nela ainda maior
que o sentido diante de estranhos. Mas o medo primitivo não é
Posto de lado por isso e pode-se esperar, com grande probabili­
dade, que aparecerá de forma ainda mais perturbadora, na própria
infância ou mais tarde, sob o aspecto de neuroses mais ou menos
graves. A criança tímida ou medrosa precisa de estímulo e não
de castigo.

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130 RUDOLF ALLERS

O medo oculto, que pode encobrir a exteriorização de uma.


integral desvalorização do eu profundo, torna o homem mudo.
A intratabilidade e o acanhamento nem sempre são sinais de des­
prezo por outrem, naquele que não levou em conta o valor elo eu.
Êles podem ser sinais, tanto na criança como no jovem, de uma
dúvida pungente e cada vez maior, que não permite a mínima
ocasião de ser renovado um ataque à vivência de valor próprio,
que se acha ameaçada. Aquêle que, como a criança, não pode
ainda contar com qualquer prova ou realização próprias, terá tanto
maior facilidade em cair nesta situação, quanto maiores forem o
desprezo, a zombaria e a incompreensão que receber em suas mani­
festações. Como fazem sofrer às crianças, indefesas ante o tumul­
to do mundo, aquêles educadores que, em sua incompreensão e
falta completa de caridade, fazem das declarações das crianças
um objeto de sua tola diversão. Elas são muitas vêzes absurdas
e simplesmente ridículas, na verdade, mas foram feitas com a
mais profunda sinceridade.
Quão rica é a vivência da criança, quão profundos podem ser
seus pensamentos, mesmo imperfeitamente expressos, eis o que só
pode saber aquêle que está resolvido a investigar, com amor e
paciência, suas conexões e significações, não poupando esforços
para perguntar e pedir (mas não exigir) explicações sôbre o que
não compreende. De certo modo, as crianças estão mais próxi­
mas do fundo último do Ser, do que as almas dos adultos, cujo
impulso vital é prejudicado pela cultura, o saber e a perspicácia
mundana. Não se aprofundou bastante, a meu ver, aquela frase
do Senhor: "Se não fôrdes como as crianças ... " Assim, nestes
tempos - a que nos atrevemos a dar o nome pomposo de "século
da criança" - não nos chegamos ainda a aproximar, de modo
razoável, do interior dessa criança. Cuidou-se dela, e muita coisa
foi realmente feita: a mortalidade infantil declinou, aprendeu-se
muita coisa a respeito de educação física. Não precisamos enume­
rar tôdas as conquistas realizadas. Somente num ponto estamos
como antes, o que não nos deve, aliás, causar admiração. Que uma
época, tão digna de veneração em todos· os pontos, mereça reparos
justamente no que toca à criança - eis o que é extraordinário.
Alguma coisa, porém, se tornou realidade. É por certo uma afir­
mação dos dons imperecíveis da natureza humana, que um brilho
de veneração ilumine ainda o rosto de um homem, quando verifica
que pode, de certo modo, compreender o sofrimento da criança,
chegar-se a ela e satisfazer os seus pedidos.
Acontece, porém, muitas vêzes, que o medo está ligado a con­
cliç?es, cuja significação na vivência da criança não pode ser escla­
recida sem esfôrço. Naturalmente, tôdas aquelas formas de temor
que surgem em situações trazendo a marca do incomum, do extraor-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 131

dinário, etc., devem aumentar a insegurança já existente. Se bem


que. o adulto normal não s�nta temor num quarto escuro, surgirão
mmtos pensamentos e sentimentos de medo, quando estiver à noite
na rua deserta de um bairro estrnnho, ou numa floresta. A criança
teme um quarto escuro, quando sozinha. Também teme os auto­
móveis, os cães e os homens. Nada disso deve dar motivo para
a severidade ou a zombaria: com castig·os e risos não se torna
uma criança mais corajosa, mas, pelo contrál'io, inda mais c!esen­
corajada.
1\foitas vêzes, porém, o temor das crianças não se revela
como tal. Surge um mecanismo especial, que ainda encontraremos
muitas vêzes. A criança procura proteção e se quer sempre certi­
ficar que o auxílio protetor dos pais está sempre pronto. O fato
de não querer ficar só, ou de não entrar só no quarto escuro, não
é apenas uma simples expressão de temor, mas constitui jú uma
tentativa de remediar êsse temor pelo pedido da presença e acom­
panhamento de outrn pessoa e isso se pode transformar em exigên­
ciaquando ás reações de medo são bastante fortes. Não devemos
esquecer que, na base de tôdà essa conduta medrosa, se acha o
verdarleiro medo: o de que se possa desvendar o absoluto desvalor
da própria pessoa - quer diante de outros, quer diante do próprio
eu ameaçado em seu valor próprio.. A depreciação será medida,
como já vimos, principalmente pela distância ao adulto. Que po­
deria, portanto, acentuar ·melhor essa consciência da depreciação
e reforçar êsse temor secreto de nada valer, do que uma atitude,
que, sem trazer em si a necessidade de proteção, apresenta, contu­
do, a certeza da autoridade? Já é contudo uma demonstração de
fôrça, o fato de que a criança ( ou o neurótico adulto em situação
idêntica) obrigue seus semelhantes a serv.i-la, por meio de mani­
festações de fraqueza e desamparo.
Essa transformação da reação de medo em um instrumento
de poder se torna ainda mais clara em outros disfarces do medo.
Pertencem a essa categoria, por exemplo, tôdas as cenas de modo
que se passílm sem a colaboração consciente da criança, como os
sonhos de pavor e os choros noturnos (pavo1· nocturm1s). Perten­
ce também a êste quadro grande número (embora não todos) de
casos de um defeito infantil mui desagradável, a enuresis noc­
turna,. Ambas as atitudes obrigam o educador a dar também
atenção à criança durante a noite. Passemos agora a examinar,
ainda mais de perto, a questão seguinte·: De que circunstâncias
ou condições especiais depende o aparecimento desta ou daquela
forma de manifestação do temor infantil? Vejamos êsses sinto­
mas e mostremos sua origem.
Em conexão íntima com os já mencionados estão a insinceri­
dade, o capricho e o orgulho.

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182 RUDOLF ALLh&S

3. Mentira, capricho, orgulho

Em primeiro lugar, deve ficar estabelecido com precisão, que,


por "mentira" 1, entendemos aqui a inverdade dita com intenção
de enganar a outrem, por motivos que interessam exclusivamente
à própria pessoa. Não será mentira, evidentemente, nem a inver­
dade repetida bona fide, nem a ilusão de memória. (Não se pode
duvidar de que esta última está ligada, muitas vêzes, a uma certa
insinceridade como se verá mais tarde) . Na primeira infância,
é evidente que a diferença entre as recordações de percep­
_ções e as recordações de representações, fantasias e sonhos
é pouco pronunciada, do ponto de vista da vivência. Há um
motivo fisiológico, ou, se se quiser, psicológico-sensorial, para
êsse fato. E. R. JAENSCH 2 mostrou que a chamada "disposição
eidética" - a capacidade de vivência de imagens subjetivas
(espontâneas ou devidas a percepções) de um caráter perceptivo
menos forte - se acha muito desenvolvida nas crianças. Daí vem
a inexperiência do mundo, em conseqüência de faltar, à criança,
o critério da coordenação que separa, para nós, o sonho da reali­
dade. Em resumo, há uma fase normal do desenvolvimento, em
que a criancinha considera como reais, coisas provenientes de sua
fantasia. Acoimar tais declarações de mentiras e tratar dura­
mente a criança, ou castigá-la por isso, é um êrro grosseiro, que
só pode ocasionar grave abalo de confiança na justiça do adulto.
Numa idade algo posterior há uma "mentira de brincadeira",
muito fácil de ser observada. Esta tem, aliás, origens diversas.
Urna é o prazer ingênuo na fabulação, na capacidade, já então
consciente, de criar alguma coisa com as palavras, excitada provà­
velmente pelas histórias lidas ou ouvidas. Quantas vêzes não se
ouve perguntar se a história é verdadeira? Não é, pois, natural
que a criança também invente histórias "inverídicas", que serão
evidentemente de urna inverdade bastante primitiva? Um segun­
do motivo é que a criança começa, por êsse processo, a pôr em
prova a onisci'ência e a infalibilidade do educador. Se triunfa
nessa ilusão - no que já há um sentimento ingênuo de triunfo
muito esclarecedor de tôda sua situação - o seu esfôrço pelo poder
e pela grandeza encontra considerável satisfação. Embora esta
tendência já contenha algo de reprovável, não se necessita empre­
gar o castigo, mas apenas esclarecer a sem-razão de tal conduta
e mostrar sua incorreção.
l. Ver, por exemplo, FR. BAUMGARTNER, "Die Lüge bei Kindern und
Jugmdlichcn (Leipzig, l 9 26).
2. "Der Aufbau der Wahrnehmungswelt (Leipzig, J 927). Sem duvida, o
valor das afírmJções sõbr_! a dispo.sição ci<l-ética é contestado em vários pontos. Vide
o trabalho recente de BONTE-LIEFMEINN-ROESSLER, no caderno 4 3 da Zeitschr.
für. angew. Psycha/. (Leipzig, 1928).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 133
A primeira mentira real nasce do medo e é, quase sem exce­
ção, uma mentira culposa. Mas a criança só recorre a êsse expe­
diente, quando já perdeu sua posição natural diante da culpa e
isso significa, quase sempre, que foi tratada com medidas inade­
quadas. Uma falsidade inata ou uma disposição para a falsidade
são coisas inexistentes, ou então, todos os homens, sem exceção,
as possuem. Se a criança recorrerá, ou não, a êsse expediente,
depende inteiramente da maneira como é tratada. Conheci muitas
crianças mentirosas, mas em nenhuma deixaram de ser vistos os
piores erros de educação.
Na mentira propriamente dita, aparece, mais uma vez, distin­
tamente, aquêle motivo de poderio. Pois que, nesse caso, a criança
não faz apenas a tentativa de mostrar a si mesma, por meio do
êxito em iludir, que pode ultrapassar de certo modo o adulto temi­
do e invejado; há mais ainda: a mentira lhe serve também para
encobrir a própria vontade diante da dos outros. Quando a menti­
ra é mentira delituosa, sua finalidade é encobrir a ação proibida.
A criança faz o proibido, em primeiro lugar acidentalmente, por
assim dizer - porque, com sua pouca capacidade de concentração,
esquece simplesmente do que foi proibido, na excitação do brin­
quedo - e, em segundo lugar, por causa de ser proibido.
Ora, a atração do proibido não é uma especialidade da crian­
ça, mas do homem em geral. Crianças, jovens e adultos acham
muitas vêzes prazer em atos que não seriam, em si mesmos, agra­
dáveis, se não estivessem sob proibição. Os escolares fazem tudo
o que podem, apenas por ser proibido. Muitos, por exemplo,
fumam, embora o cigarro lhes pareça desagradável, apenas porque
J proibido fumar. Muitos adultos andam por lugares proibidos,
como as valas de estrada de ferro, apenas por ser proibido.
Que nos atrai a fazer o proibido? Não há necessidade de
uma anâlise profunda, para chegar ao fundo da coisa. Lembre­
mo-nos da lenda: "Podes abrir tôdas as portas, menos aquela que
tem a chavezinh_a de ouro". 1!:sse é um motivo, que se repete mui­
tas vêzes nas lendas alemãs ou árabes. Tôdas essas histórias
mostram que a chavezinha dourada exerce urna atração misteriosa
e que a porta fatal acaba sendo aberta. Por que, então? A respos­
tà está na forma da proibição: "Podes abrir tôdas, menos aquela",
o portador das chaves (quase sempre uma mulher, o que aproxi­
ma evidentemente dêsse caso a narração do pecado original)
pensa: "Por que não pode ser justamente esta porta? Por que não
devo abri-la? Por que devo consentir numa tal limitação de meu
poder?"
Na verdade, tôda proibição significa uma.,Jimitação do poder
daquele a quem é imposta. No livro II das "Confissões", conta
S. Agostinho, numa passagem que deve sempre ser meditada,
como roubou, sendo menino, as peras de um jardim alheio - não

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134 RUDOLF ALLERS

pelas frutas, que não eram boas e foram lançadas fora, mas pelo
rôubo em si mesmo. E o que atrai no roubo, como em qualquer
outra infração de um mandamento ou proibição, é, como observa
êsse santo, com tôda a razão, o fato de que, no momento de trans­
gredi-los, podemos nos julgar mais poderosos e maiores do que
quem nos deu a ordem.
Se quisermos uma confirmação dessa interpretação tão clara,
é fácil encontrá-la no fato de que basta, muitas vêzes, proibir-se
alguma coisa, para que ela seja feita, ou suspender uma proibição,
para que a coisa perca inteiramente o atrativo. Lembro-me de
uma menina que tinha pensamentos e tendências de compulsão
a roubo; acreditava sentir uma inclinação invencível pelos doces
e costumava surripiá-los às escondidas, dos criados. Alguém teve
então a idéia de deixar, à sua disposição, açúcar, chocolate, etc.
A partir dessa ocasião "êles não lhe deram mais prazer, como ela
própria dizia". A uma senhora, que se queixava de que o filho,
de oito anos, se metia em tôdas as poças de lama, apesar de suas
proibições, aconselhei a deixar de falar nisso. Êsse jovem deixou
também de ter prazer, logo que sua ação deixou de ser proibida
e passou a ser permitida e, até mesmo, favorecida.
Fazer o proibido representa sempre, portanto, um triunfo
secreto ( embora fictício), uma vitória sõbre o proibidor, uma pro•
va (le fôrça e grandeza próprias. Também todo o pecado, como
diz S. Agostinho, é sempre uma tentativa do homem, para elevar-se
acima ele Deus. "Eritis sicut Dii" - a velha expressão é defor­
mada e parece mesmo que o homem, não contente de ser seme­
lhante a Deus, quer ainda ser mais que Êle.
A mentira aparece, então, a serviço de uma vontade de poder
fransviada. Ela deve proteger a esta e suas :ições. Se tal incli­
nação pode ·estar profundamente arrnigada na natureza humana,
como sinal e efeito de sua natureza decaída, a compreensão e o
conhecimento podem, contudo, libertar a esta ou colocá-la acima
daquela inclinação. A verdade nos liberta1·á do pecado, disse
S. Agostinho na passagem já citada. Que verdade devemos reco­
nhecer? Por certo a da reprovação do pecado, da sublimidade elo
mandamento, da majestade de Deus, a que injuriamos, e de seu
Amor, que desprezamos. Mas há mais: a incrível loucura da
intenção de igualm·-se a Deus, a completa desesperança de um
empreendimento de engan:í-io ou superá-lo. Podet·-se-ia alguém
arriscar ao temor da consciência, ao medo de ser descoberto e
1mniclo e a tôdas as mús conseqüências e circunstfincins do nto
proibido, se tivesse clara consciência da absoluta desesperança de
atingir o seu fim? Importa, pois, que o homem obtenha um conhe­
cimento rle seu própl"Ío fim e reconhec:a que não se ti-ata ele roubar
pet·as, ou mesmo de roubar simplesmente (embora tal ato possa

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U1g1tahzadocornCarnScannGr
PSICOLOGIA DO CARÁTER 135
ser revestido do brilho enganador do heroísmo), mas de imitar a
grandeza de Deus e, mesmo, de querer ultrapassar essa grandeza.
Não fica suprimida ou diminuída a responsabilidade, pelo
fato de que o homem não conhece, ou conhece mal, na maioria
das vêzes, esta sua finalidade. Mas é importante para a psicolo­
gia da desobediência e da ação criminosa, e também para a técni­
ca da educação e direção das almas, que essa falha seja suprimida,
provàvelmente logo de início, se se quiser que o agente tenha
consciência desta sua posição última e interior. Tôda criança sadia,
tôda aquela em que a consciência de si mesma não foi profunda­
mente afetada, tôda aquela que não é levada, para conservar ou
defender sua consciência, a empregar tôda a sorte de ardis, é
capaz de compreender que o motivo, agindo por trás da ação proi­
bida, é urna luta pela grandeza e o poder e que tal motivo carece
de sentido e é improdutivo. A má ação merece castigo ( e a crian­
ça, como dissemos, compreende isso) . Não se deve, pois, substi­
tuir simplesmente o castigo pelo ensinamento e a explicação. Mas
também não nos devemos contentar apenas com o castigo. Deve-se,
de preferência, em períodos de calma, quando nenhuma travessura
foi feita, conversar amável, mas seriamente, com a criança e
deixá-la responder, à maneira do diálogo socrático, para que ela
obtenha por si mesma o conhecimento. Ê mais cômodo, sem dúvi­
da, castigar simplesmente, sem se preocupar com os motivos que
levaram a criança a tais ações. Mais cômodo, sem dúvida, mas
também mais perigoso e, na maioria das vêzes, menos eficaz.
Na execução oculta do proibido e no encobrimento pela men­
tira, que se lhe segue, mostra-se imediatamente que o indivíduo
não tem a coragem de uma revolta aberta. Nesse ponto é justa
a declaração, que o educador indignado dirige, após a descoberta
do ato, ao que o praticou: que seria ''mais bonito" fazer as coisas
às claras; e que "o mais revoltante nisso é o embuste". Quem
assim fala, desconhece, porém, que, entre. os motivos da ação e
as razões que condicionam sua forma, a falta de coragem ocupa
um lugar importante. Ao covarde, que já sofre com sua covardia,
a declaração de que não devia ser covarde, faz o mesmo efeito que
dizer que seus olhos deviam ser azuis, já que o fato de ser covarde
constitui, para êle, uma certeza e um sofrimento. Assim, as
admoestações indicadas acima, têm, por certo, razão, mas não são
pedagógicas, nem eficientes. Elas têm tanta razão de ser, como
aquela espalhada opinião de que o neurótico deve1·-se-ia compor­
tar ele modo diferente do que faz, dever-se-ia dominar, ou não
entregar-se, etc. Do ponto de vista objetivo, isto é, exato: que a
ação exigida está dentro das possibilidades da pessca, é o que de­
monstra, em vários casos, a cura. J\,Ias, do ponto de vista do
neurótico, essas declarações não são apenas falsas, mas sem senti­
do e, portanto, extremamente prejudiciais. Se a criança, que foi

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136 RUDOLF ALLEllS

repreendida da maneira jã vista, pudesse exprimir com clareza


seus sentimentos e pudesse ter a coragem de exprimi-los, sua
resposta seria a seguinte: "Isso eu já sei e o fato de não me poder
revoltar abertamente é a minha infelicidade e a minha tristeza,
pois que, com isso, eu mostro minha incapacidade, minha falta de
valor e minha nulidade".
Mas, para que um homem procure conservar a sua pessoa e
afirmar seu valor próprio por meio de valores negativos -
a revolta, a insociabilidade, etc. - é preciso já ter perdido a
confiança de atingir êsse fim pelo caminho dos valores positivos,
ou das realizações. Por isso, tôdas as frases com que os educado­
res tentam incitar as crianças, negando-lhes o futuro ("se conti­
nuares assim, nunca serás nada") são absolutamente prejudiciais
e reprováveis.
Quando o desânimo e a revolta que lhe é aparentada se mis­
turam a alguma coragem, gera-se um certo orgulho. Ele não é
outra coisa senão uma resistência passiva às ordens. �le mostra
uma certa coragem, pois que se revela claramente e se dirige con­
tra a autoridade. As crianças orgulhosas são, na maioria das
vêzes, muito infelizes. E isso não ocorre apenas nos períodos da
própria reação orgulhosa, de que não podem sair, por lhes impe­
dir a consciência do valo/ próprio ameaçada. (Fazer isso seria.
submeter-se e, portanto, confessar, aos outros e a si mesma, sua
depreciação). Um tratamento carinhoso, que penetra inteligente•
mente nos conflitos da alma da criança, pode, via de regra, domi•
nar o orgulho. É sabido que muitas crianças acusadas de orgu.
lhosas são tratadas com grande facilidade noutro ambiente. Uma
menina de doze anos, que se mostrava, em casa, muito intratável
e orgulhosa e, ainda por cima, inquietava os seus, tôdas as noites,
com cenas de choros e sustos, mostrou uma atitude inteiramente
oposta, quando um acaso feliz fêz com que saísse de casa dos
pais para uma escola de freiras de uma cidade distante. Logo que
a primeira irmã de caridade, a quem foi confiada a menina,
falou-lhe amàvelmente e demonstrou compreendê-Ia, o orgulho
desapareceu. Tenho lido diários de crianças dêsse tipo. Estão
cheios de queixas relativas à solidão, desejos de carinhos não
realizados, idéias de fuga e de morte. Num dêles aparece sempre
a exclamação: "É muito tarde ! Eu não posso. . . e êles não me
ajudam!" "Éles" são os adultos. "É muito tarde" - a pobre
criança não pode mais sair dessa situação.
Vemos muito bem os desagrados e aflições que a criança nos
dá, mas muito mal os que lhe causamos. Dizemos a ela: "Como
podes fazer isso a mim"? e não vemos em seus olhos a resposta:
"E tu, como podes fazê-lo a mim, tu que és grande e devias saber
muito bem"?

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PSÍCOLOGIA DO CARÁTER 137

Na verdade, não se trata, neste "século da criança", como


escreveu o padre LIPPERT, S. J., apenas de "tomar, em segrêdo,
o partido da criança", mas de defendê-la, clara e publicamente.
Os homens que não estão ajustados à vida e falharam nela, os que
estão ameaçados de sucumbir na luta e, por isso, procuram o auxí­
lio do médico, e todos aquêles que conheci no consultório, agrade­
cem noventa por cento de seu destino às impressões recebidas na
infância, sendo a maior parte delas devidas aos erros e incompre­
ensões da educação.
O fato de estar também em ação, no capricho, uma vontade
desviada de sua verdadeira finalidade, não necessita, após o que
dissemos, de maior explicação.
Como se trata, conforme já ex,l)licamos várias vêzes, de diri­
gir e não de eliminar o capricho e a tendência à auto-afirmação
do homem (o que seria aliás impossível e só poderia ter, corno
conseqüência, perversões dessa tendência fundamental) e como
essa tendência é além disso uma das mais essenciais à natureza
humana, é preciso dar-lhe uma certa consideração, nos anos em
que o conhecimento e a experiência são ainda pequenos e em que,
por isso, há maior vulnerabilidade. Isso, porém, significa que não
devemos ir muito longe nas proibições. Quem proíbe muito, nada
consegue. Porque as crianças têm urna sensibilidade muito deli­
cada, para o que é sensato, ou absurdo, nas ordens dos adultos.
Muita coisa, que elas aceitam sem maior exame, pode tornar-se
compreensível para elas, se nos dermos ao trabalho de justifi­
cá-Ia. Mas em muitos casos elas têm razão em sua crítica muda.
Fazer proibições, apenas para que a criança aprenda a acomo­
dar-se, é inteiramente inútil: muitas ocasiões se apresentarão,
necessàriamente, em que isso pode ser aprendido. A educação da
criança não é uma domesticação, em que se leva um cachorro, à
custa de pancadas, a ficar sentado, imóvel, com um pedaço de
açúcar no focinho, sem abocanhá-lo.
Aquêles que devem opinar, como observadores, sôbre os casos
de dificuldades de educação já descritos (como o médico, o peda­
gogo, etc.) devem ter em vista que pode haver uma revolta justi­
ficada (pelo menos no ponto de vista da criança, que só ela, pode
conhecer as razões dessa apreciação) . Muitas vêzes, o conselheiro
de educação é obrigado a insistir, com tôda energia e ênfase, para
que sejam suavizadas as proibições que restringem em demasia
a liberdade da criança, ameaçam sua segurança e solapam sua
coragem.
Cabe-nos também aqui falar de várias condições, que podem
ser consideradas como preparatórias de uma vida independente.
Já dissemos que tôda a faculdade existente no homem precisa de
exercício para chegar a desenvolver-se, precisa de um treinamen­
to, no qual sua afirmação se vai, pouco a po1:1co, realizando. Se não

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138 RUDOLF ALLERS

dermos, às crianças, a oportunidade de exercitar-se de modo ade­


quado à sua idade, nas situações e modos de proceder necessá­
rios à vida, elas se sentirão impotentes, quando adultas, diante
das tarefas da realidade e se afastarão e se desinteressarão dessa
realidade à medida em que virem falhar os esforços que, apesar
de sua falta de preparaç.1to, fizeram.

4. Crianças ameaçadas
Como o ensaio constitui uma preparação para um ato sério
e o brinquedo da criança uma preparação para o trabalho e domí­
nio das tarefas, assim também o brinquedo em comum e a convi­
vência com outras crianças é, como já se disse, uma preparação
e um treinamento da vontade de associação, indispensável para
a vida real.
Por isso é que vemos crianças, cuja posição na sociedade é
obscura ou aparece sob uma falsa luz, naufragar, mais cedo ou
mais tarde, nos problemas da realidade. E' por êsse motivo que
aparecem os chamados "pontos perigosos" do desenvolvimento;
são tôdas aquelas épocas, em que a criança entra numa nova situa­
cão. Se não está suficientemente preparada, ela desenvolverá cer­
tos traços desagradáveis, de acôrdo com o grau de insegurança
que sente, antes da realização dessa situação ou por ocasião dela.
Ou então, se tiver alguma coragem, só recuará quando tiver feito
a vã tentativa de se tornar senhora da situação. Êsses pontos
perigosos são, por exemplo, a vinda de um novo irmãozinho, o
ingresso na escola, a mudança de escola e a entrada numa escola
superior; por vêzes, a simples mudança de ambiente (por exem­
plo, pela transferência para uma cidade estranha ou devida à época
da puberdade) produz os mesmos efeitos, A estas duas últimas
dedicaremos, porém, nma exposição especial.
Se uma criança se mostra tímida ao entrar para a escola.
podemos ver aí um sinal inconfundível de preparação imperfeita
para a sociedade. E!.'.I teme as outras crianças, teme não poder
alcançar qualquer posição entre elas, perder-se na massa, não me­
recer qualquer atenção e, portanto, ver confirmada sua tímida
crença secreta na p1·ópria falta de valor.
A pessoa expedente descobrirá em tais crianças, mesmo an­
tes da situação de preservação da vontade de sociedade demons­
trada ao ingressar na escola, muitos traços que deixam advinhar
sua natureza. Criarn;as que se agarram à mãe, se escondem atrás
dela, se ocultam dos estranhos, procuram cobrir :1s costas - de
preferência encostnndo-se i1s paredes ou mó,·eis quando elevem
dar uma respostn - meter-se afrús de cadeiras, desviar os olhos,
etc., são suspcitns de urna Yo1itade deficiente de associacão. A
criança bem preparada para a sociedade fica desembai·açada

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 139

diante das pessoas, com a cabeça erguida, numa atitude que, por
certo, não agradará a muitos pedagogos inclinados à severidade
e à acentuação da própria autoridade, mas que, em sua natural
e ingênua certeza de si, é tão bela, do ponto de vista estético, como
agradável, do ponto de vista humano.
A exposição minuciosa de todas essas atitudes e modos de
comportamento, que se verificam nas dificuldades de educação,
nas chamadas falhas de caráter infantis, nas manifestações ner­
vosas e, até mesmo, na chamada criminalidade infantil, ficará
para um capítulo ulterior. Vamos nos voltar, agorn que .i á foram
debatidos alguns traços especiais importantes, para a descrição
de determinados tipos infantis.
Para isso, precisamos ter diante dos olhos o que se segue. Os
traço3, que serão apontados agora, são necessàriamente algo exa­
gerados, ou seja: representam a configuração dos casos extre­
mos, em que as manifestações a observar se reúnem com um
cunho bem nítido no tipo em estudo. Esses casos extremos não
são abstrações: há, na realidade, muitos deles. l\fos há também,
naturalmente, inúmeras crianças do mesmo tipo e em situação
idêntica, a que eles só se aplicam aproximadamente. Na verdade,
11enhum representante de um dado tipo deixa de ter os traços in­
dicados. Mas, 11a maioria das vezes, eles não aparecem tão forte­
mente, -nem têm, todos, a mesma intensidade. Não se deve, por­
tanto, criticar determinada descrição - a do filho único, por
exemplo - pelo fato de se conhecei· um caso em que estes traços
parecem ausentes, em grande parte ou na totalidade. Porque em
primeiro lugar é preciso, para descobri-los, um olho exercitado e
atento a esses característicos e, em segundo, porque o tipo pode
não ser sempre bem •expresso. Nem todo pedaço de quartzo cris.
talizado é uma bela pirâmide hexagonal, embora pertença à na­
tureza do quartzo cristalizar em tal forma. Uma outra observa­
ção preliminar: mesmo que os sinais, que caracterizam uma de­
terminada situação da infância, possam ser encontrados em cer­
tas crianças, isso não signific.1, df;! modo algum, que todas se de­
vam desenvolver em determinada direção. Nem o estado corpÓ•
reo, nem a estrutura do ambiente constituem fatalidades imutá­
veis. Não há motivo algum para um pessimismo p·edagógico, quan­
do se mostra, por exemplo, que o filho único corre perigo sob cer­
tos aspectos. Porque todos esses perigos são essencialmente eYi•
távei�, e tanto mais, quanto mais os conhecemos.
Vamos, agora, considerar a série de situações típicas, deter­
minar seus momentos específicos e que podem agir na formação
do caráter e denunciar as atitudes e modos de reação da criança.
1. O /ilho único - O isolamento constitui a essência de sua
Fítuação: em primeiro lugar, todos os cuidados, cai·inhos e medi.
<las educativas se concentram sobre ele, e, em segundo lugar, ele

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140 RUDOLF ALLERS

não tem companheiros e concorrentes. São os dois aspectos de sua


posição, que podem ser considerados quer do exterior - na dire­
ção do efeito do ambiente sobre a criança -, quer no interior -
na direção da reação desta sôbre o ambiente.
Como o filho único é o·único objeto de preocupação paterna,
tôdas as conseqüências dêsse fato serão visiveis, no mais forte
grau. A excessiva severidade, ou a excessiva brandura, na educa­
ção dessas crianças produzirão, especialmente neste caso, os efei­
tos já descritos anteriormente. Devido à falta de companheiros a
tendência de auto-afirmação dos pais se põe diante da criança,
impondo-lhe limites. Também sua necessidade e seu direito a um
apelo à vontade de associação da criança, não conseguem desen­
volver, nela, esta vontade.
Também o momento mais exterior da satisfação fácil dos de­
sejos e, de modo geral, da melhor situação material representa
aqui um papel. Pois que, naturalmente, os pais com um único fi­
lho, podem dar, a êste, mais prazeres e agrados, do que os dados
às crianças de uma família numerosa de mesma posição social.
O cuidado maior que, em tal estrutura de família se dá, natu­
ralmente, à criança, leva, fàcilmente, a fazê-la tímida e pouco in­
dependente. O temor dos pais, a aflitiva observação do estado de
saúde e das circunstâncias que provàvelmente a ameaçam, a ten­
dência a evitar aborrecimentos à criança e a possibilidade, cada
vez maior, de ajudá-la em todos os trabalhos, ou poupá-la a
êles, produzem, todos, aquelas conseqüências. Com as expres­
sões: "Tem cuidado! Vais te machucar; Deixa que eu faça isso,
tu ainda não podes fazê-lo", se impedirá a criança de realizar
sua tentativa natural de treinamento e se fará com que ela se en­
tregue, cada vez mais, à proteção do adulto. Criam-se, assim, pes­
soas sem expediente e sem independência, que não se podem li­
bertar da mãe na época própria, que precisam sempre dela e que,
ou obrigam um dos pais a fazer o papel de mãe (um papel que
pode ser representado pelo homem ou a mulher) ou reclamam,
com insistência, sua mãe querida. Na vida de pessoas assim, a
morte da mãe, mesmo depois de se terem casado há muito tempo,
produz uma catástrofe. Aliás, outra pessoa pode adquirir essa
importância, se foi a constante protetora e a fonte sempre pronta
de auxílio e consolação, nos anos de infância do invidíduo. Lem­
bro-me, por exemplo, de uma moça, que, abandonada pela mãe na
infância, ficou inteiramente aos cuidados de uma velha gover­
nante. A morte desta, quando a moça tinha dezessete anos, pro­
duziu terrível choque: a vida parecia-lhe inteiramente vazia e sua
situação, de inteiro desamparo,
Os filhos únicos como já foi muitas vêzes observado e como
foi expresso em opiniões populares, histórias e lendas, são, na
maioria das vezes, egoístas, exigentes, pouco inclinados a empre-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 141

endimentos difíceis e fáceis de enganar. Jl:les desanimam, logo


que iniciam qualquer coisa, por estarem acostumados ao auxílio,
ao reconhecimento e à admiração fáceis, à orientação, ao encora­
jamento e à proteção constantes - o que a realidade da vida não
lhes oferece. Tornam-se, constantemente, homens que, sem consi­
derar o calor do convívio humano, exigem :i;nuitas vezes um aco­
lhimento e uma compreensão por parte dos outros que passa os
limites do normal e exequível, não. sendo capazes, contudo, de
uma verdadeira relação com o próximo, porque aprenderam a ver
sempre, neste, um meio e não um fim. Aquele tipo - não muito
difícil de encontrar, para um observador profundo - que exige
constantemente afeto, mas não dá nenhum (ou o dá condicional­
mente: 'primeiro, os outros devem fazer isto ou aquilo, para que
eu ... "), é muito comum nos filhos únicos e sua formação pode
ser facilmente compreendida, a partir daquela situação infantil.
Como o cuidado excessivo e o mimo dados ao filho único tam­
bém a educação severa produz, no mesmo caso, um. efeito muito
pior, do que produziria em uma criança cercada de irmãos. Por­
que lhe falta aquele poderoso antídoto da ameaça à consciência
do valor próprio - a experiência da sociedade e do destino em
comum.
Além dos motivos indicados, há ainda outra coisa, que, em­
bora não apareça tão regularmente, é de grande importância para
a evolução do caráter do filho único. São exigências que os pais
fazem, nesse caso, às crianças, fora das exigências de finalidade
propriamente educativa. Esta questão seria digna de atenção por
outros títulos, mas, como tem ligações com o presente assunto,
pode ser aqui tratada.
O amor dos pajs pelos filhos não é inteiramente desinteres­
sado. Só em casos raros, se pode dizer que "eles não procuram seu
proveito". Desde a concepção altamente desagradável e, a meü.
ver, quase impermissível, de que a criança deve ser considerada
um capital posto a juros, até outras formas atenuadas, há várias
gradações do egoísmo paterno. Essa expressão, "capital posto a
juros" não deve, aliás, ser entendida em sentido estrito, de que os
pais esperam e exigem uma compensação dos bens materiais, di­
nheiro e trabalho empregados. Muitas pessoas desejariam tam­
bém capitalizar o amor, os cuidados e até o cumprimento do de­
ver, para, depois, obter um rendimento deles. E' muito comum
dizer-se a uma criança crescida, que ela foi tratada e cuidada,
dêsse ou daquele modo, quando estava doente, aos cinco anos. Isso
parece a êsses pais e também a outras pessoas, uma coisa compre­
�msivel e "natural". Será talvez natural, mas, nem por isso, mais
justificável.
Cita-se o quarto mandamento. Mas êste mandamento insti­
tui, tal como se apresenta, um dever dos filhos, mas não um di-

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142 RUDOLF ALLERS

reito dos pais. Há muitos casos de deveres unilaterais, que são


impostos a uma pessoa, sem que os outros tenham um direito de
exigir, ou de contar, com o seu cumprimento. Há um dever de
gratidão, mas não há um direito a ela. Se o quarto mandamento
é apresentado à criança com o fim de levá-la a cumpri-lo, tudo
está muito bem. Se, porém, os pais se querem apoiar nesse man­
damento, para exigir da criança (que as' deveria fazer mas não
as faz) certas obras, êles cometem, á meu ver, um êrro. A criança
crescida tem que se haver com a sua consciência e responsabili­
zar-se a si mesma, caso não cumpra esse mandamento. Os pais
podem, quando isso é possível, interrogá-la a respeito de suas
ações, perante Deus e ela própria. Mas não devem reclamar um
direito, afüts contestável.
O êrro aqui apontado se dá, aliás, muito mais geralmente, <lo
que no simples caso do quarto mandamento e das relações entre
os pais e os filhos crescidos. A posição central, em tudo isso, é
a que se poderia chamar a do "ponto de vista do balanço na vida".
Elas se caracterizam pelo' fato de que tôdas as obras - quer se
enquadrem no domínio da pura obrigação, quer a ultrapassem -
são, por aquele que as execµta, levadas a um balanço, em que, a
todos os "depósitos", deve corresponder um "rendimento" equi­
valente, para que tais obras sejam corretas. A tantas amabilida�
des, benefícios, boas obras e ações justas de minha parte devem
corresponder tantos benefícios, etc., feitos a mim, ou pelo menos,
uma determinada recompensa na outra vida. Se esta última con­
cepção é ainda perdoável, aquela que calcula e exige tal balanço
na própria vida é tão errônea como prejudicial. l\Iesmo esta ati­
tude, porém, não é primordial: ela deriva de uma outra mais pro­
funda e fundamental, que se manifesta como uma ausência de ge­
nerosidade. Falta-lhe a verdadeira "liberdade do cristão", a ati­
tude de dar livremente. Nossas idéias e sentimentos são deforma­
dos e corroídos, nesse ponto, pela "mania de avaliação" de nossa
época.
Parece muito estranho, que os homens esperem e exijam re­
compensa e retribuição, simplesmente para cumprir com seu de­
ver. E', pois, um dever natural dos pais, a que não podem fugir
sem culpa, o de cuidar do filho quando está doente e fazer o me­
lhor, para educá-lo e cuidá-lo. Por isso, exigir além da consciên­
cia do cumprimento natural e moral de um dever, uma certa re­
tribuição, parece-me inteiramente errado e ina<lmissível.
Deve-se compreender claramente que a educação exige um
desprendimento de si e que a verdadeira tarefa do educador dcVC!
ser a de "deixar que a criança se crie", para utilizar a cxprcHHiio
de um homem eminente. A educação significa educar parn a in­
dependência e a auto-responsabilidade.' Mas a obtenção rlcs�•?il re­
sultados é dificultada, no caso dos filhos únicos.

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PSICOLOGTA DO CARÁTER 143
Numa família numerosa, não é tão sentido o fato de que o
mais velho se desprenda dos laços dos seus e procure seu próprio
caminho, casando ou seguindo uma carreira. Ficarão os outros
: mais velhos e, depois, ainda os outros, até o caçula. Mas com o
filho único, que enchia a casa ele risos e gritos quando pequeno,
cujo desenvolvimento foi acompanhado com alegria e preocupa­
çáo, que constitui a própria vida dos pais, a quem se deram todas
as possibilidades de uma perfeição profissional, moral e humana
e cuja emancipação foi vista com temor - êste filho único, quan­
do abandona o lar, deixa apenas o frio e o vácuo, quase como na
morte. Os pais passam, entfto, a viver mais das recordações que
do presente ( "Lembras-te quando ... ") Isso provém de que êles
não compreendem bem as necessidades do filho adulto e esperam
ainda dele, o mesmo comportamento da infância. Pensam então:
"como era antigamente uma criança amável! E agora? Raramen­
te nos vem visitar. Tornou-se inteiramente outro". Sim, ele deve
ter-se tornado outro, pois vive noutro tempo e deve ter-se liber­
tado, porque precisa viver sua própria vida. Não se deve desco­
nhecer que há sempre, na vida dos pais, um elemento trágico e
que êste é aumentado no caso do filho único. Por mais que se
queira, aqui, "tomar o partido da criança", uma vez que ela é o
homem futuro e o membro futuro da Igreja, deve-se também pro­
curar compreender um pouco os pais e seu ponto de vista. E' inú­
til, por outro lado, tornar compreensível e aproximar psicologi­
camente da criança - mesmo da pequenina - os pontos de vista
e modos de pensar dos pais. Já observei muitos casos de sucesso,
nesse ponto. Por esse meio, uma relação perturbada entre os pais
e o filho é, não raro reajustada, como, por exemplo, quando aque­
les insistem em seu direito e querem impor ao filho certa atitude.
Pelos motivos expostos, são especialmente críticas, para o fi­
lho único, tôdas essas situações de proteção em que aparece a
auto-afirmação nas situações difíceis e, acima de tudo, a subordi­
nação à sociedade e a afirmação desta. Pode-se dizer, por exem­
plo, que o ingresso na escola é um bom teste para verificar se a
criança, apesar de filho único, está preparada para a sociedade.
Esse momento da vida não decorrerá, por certo, tão fàcilmente,
nas crianças dêsse tipo, como nas outras. Será preciso sempre,
para adaptação à sociedade da classe e ao regulamento escolar,
um tempo maior que o médio. Quando, porém, não surgem situa­
ções catastróficas, nem temor ou desgosto visível em relação à es­
cola e quando o progresso nos estudos não fica abaixo da média,
pode-se dizer que os perigos resultantes da situação singular
foram evitados e que não se devem mais temer conseqüências
graves.
2. O filho mais velho se encontra, antes do nascimento de
!'leus irmãos, na situação do filho único. Se ele ficar vários anos

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144 RUDOLF ALLERS

nessa posi_ção especial ( tr�s, quatro ou cinco), o aparecimento do


segundo filho representara, para ele, um destronamento. Se a di­
ferença de idades for maior, a situação se torna favorãvel por.
que, então, a precedência do mais velho é tão grande, que eÍe não
tem mais necessidade de preocupar-se com a ameaça à sua posi­
ção. Quando, também, a diferença de idades é pequena (um ou
dois anos), a posição de ambos se assemelha muito, de modo que
o prejuízo do mais velho não é tão visível para êste. Deve ser
observado, contudo, que, em conseqüência de uma atitude inábil
dos pais, pode haver, para uma diferença de idades de um e meio
a dois anos, os mesmos perigos de uma diferença de sete anos.
A experiência dá provas bastantes de ambos os casos. Uma me­
nina, que fora, durante sete anos, o objeto único de preocupação
dos pais, foi afastada dessa posição pelo nascimento de um ir­
mãozinho, para quem se transferiram, então, todos os cuidados.
A menina sentiu-se, desde então, afàstada e depreciada; passou
a duvidar da possibilidade de poder obter novamente sua posição
e também o carinho e atenção dos pais, terminando por descrer
inteiramente dessa possibilidade. Uma passagem de seu diário,
quando já tinha 17 ou 18 anos, é bem elucidativa: "Se Fritz de­
caísse ... " Com isso, ela queria dizer apenas que esperava obter
de novo alguma importância, caso o irmão se depreciasse; não
acreditava, porém, poder realizar, por suas próprias forças, êsse
desejo. Por outro lado, vi uma criança de dois anos e meio a qual
não admitia que a mãe pusesse a irmãzinha no peito, sem que, ao
me!!m0 tempo, a mantivesse no colo.
Desde que os filhos mais velhos vêem, nos irmãos, concor­
rentcH maiH ou menos perigosofl cm relação ao amor e cuidados
dos pais, aprc.�entam formaçõc!l de reação as mais diversas. Uma
delw, é ar1ucla a que OH paiH dão muitas vezes o pretexto - com­
partilhando, por assim dir.er, com a criança, sua autoridade, tra­
zendo-a para seu partido e rcvcHlindo-a ele importfmcia diante
dof! irmãos menorcH - como He vê nas frases e expressões do
tipo: "E'H o maiH velho e jú deves ter juízo". Pode-se observar,
muitas vcr.cs, que o filho mais velho mostra uma tendência ao
conHervanth1mo e i'i pres<!rvaçfw <la traclição, ao passo que os ca­
çulaH tte inclinam para uma atitude inovadora e revolucionária.
OH cac;ulari são Hcmpre companhc:irn8 incertos. Lcmbrcrno-11os dos
"CadntH de GaHco�ne" do 011rmw de Ito:c;TANO, ou do fato de que,
nnH Húculrm pammdo11, eram d<mli11adm1 à vida Haccrclotal - o que
não era, por c1!rl;o, apenfül dntermin:ulo pela� concliçõcs das finnn­
c;aH ou d,m b,!nB d!! }u:ratu;a ela familia. l�xplica-se :issirn, melhor
do que pr,r t<:ori:w liiol(wicm,, o rato de ter o tipo de caráter dos
mai11 vclboa, urna 11emdh:rn�:11 maiH pronunciada com o dos pais,
eapecialrm!nl.<: n:ui q1111lidad1:r1 de direçii11, ao pusso que os mais
m1J1;,,11 e <m ca,;ula11 "dl!f�enerarn" rnuitnH vêzcs.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 145
Uma certa compensação pelo "destronamento" é dada, então,
�o mais velho, quando há certa diferença de idade, não só pela
identificação com os pais, como também pela posição de autori­
dade que lhe é dada, como fiscal dos outros, colaborador em sua
educação, etc. Tal disposição pode ser benéfica para o mais ve­
lho, mas é, na maioria dos casos, fatal para os mais moços. Em
inúmeros casos, vemos situações de desafio, desobediência, re­
volta e, até mesmo, de criminalidade e desleixo incipientes, desa­
parecer imediatamente, logo que se retira a autoridade do irmão
mais velho sôbre os menores e se coloca, a êstes, exclusivamente
sob a jurisdição paterna.
Não nos devemos esquecer de que, em muitos e muitos casos,
os irmãos maiores têm desempenhado, com êxito real, perante os
menores, o papel de pai ou de mãe. Isso se dá, ou quando desapa­
receram os pais, ou quando estes abondonam si.a missão educa­
tiva, ou finalmente, quando os filhos não encontram mais carinho
de sua parte. Mas, então, a situação se torna inteiramente dife­
rente. O exercício da autoridade educativa exige também, da par­
te dos mais velhos, muito tato e carinho. Os mais novos sabem
muito bem, que, pela hierarquia natural, não estão submetidos ao
mais velho, mas são iguais a ele. Portanto, para que essa autori­
dade, de certo modo usurpada, possa ser tolerada pela sensibili­
dade ingênu_a dos pequenos, é preciso que seja exercida com gran­
de habilidade (nascida, não de saber ou de princípios, mas do
.amor e da verdadeira compreensão da obra moral da autoridade).
E' o que não ocorre na maioria dos casos. Não que se trate, pro­
priamente, de uma culpa. Ao contrário: está na natureza das coi­
sas e nas condições psicológicas, que esse irmão mais velho, in­
vestido de uma autoridade que, de antemão, não lhe pertence, se
incline a acentuar sua posição e suas medidas (de cujo direito e
meios não se sente inteiramente .seguro) e, por seus excessos,
produza represálias ainda mais sérias. O resultado será deplorá­
vel para ambas as partes, na maioria das vezes. Se puder ser evi
tada essa abdicação da autoridade paterna em favor do primogê­
nito, mesmo parcial, deveremos evitá-la.
Quando os mais novos têm, por exemplo, grande vivacidade,
os mais velhos são sossegados; quando aqueles são desordenados,
eates têm uma inclinação para o pedantismo.
Em especial, quando os mais velhos, ou o mais velho, são
apontados aos outros como um exemplo (o que é muito desagra­
dável para estes e tem efeito contraproducente) pode acontecer
que os primeiros, fortalecidos em sua consciência de si mesmos,
se comportem de acôrdo com o desejo do educador. Mas há tam­
bém um certo perigo nisso, porque a vida real costuma ser muito
parca em tais reconhecimentos e, em muitas situações, a antigui­
dade não dá direito. Isso nos dá, aliás, uma perspectiva da psic0--

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146 RUDOLF ALLERS

Jogill; da e�colha da profissão. Seria interessante, por exemplo,


um inquérito c:;tat!stico para saber se os filhos mais velhos se
orientam para o funcionalismo, onde, precisamente a antiguidade
tem um papel importante. Não penso que t al questão tenha sido
tratada por alguém.
Por outro lado, não se deve desconhecer que a posição do
mais velho traz consigo tôda a sorte de dificuldades, mesmo
quando não se dá um "destronamento". Em certos casos, é uma
carga peHada para a alma da criança a de tornar-se já desde cedo
confidente e colaboradora dos pais . Creio que êsse encargo, espe­
cialmente no caso de meninas, pode produzir urna gravidade pre­
coce, uma inclinação a levar tudo a sério, um certo pessimismo e
uma desconfiança de sua própria sorte e "felicidade''. Há certos
casos, cm que é inevitável essa carga posta sôbre a criança; cer­
tas situações trágicas conduzem a isso. Não é menos verdadeiro,
contudo, nem menos cheio de conseqüências sérias, o fato de que
taiH crianças ficam logradas, mais ou menos, em sua infância.
Para o desenvolvimento do mais velho e seu tipo de caráter,
a constelação especial da família é altamente importante. Não é
inrliforente o sexo a que pertence o mais velho, nem também o
fato de serem, ou não, do mesmo sexo, o que lhe segue e os outros
irmãos. Contudo, para evitar repetições, deixaremos a explicação
dessas coisa:-i para a ocasião em que tentarmos uma exposição
siHtemútica da caracterologia do sexo.
P-. O co,çula encontra-se numa situação contraditória. Sob
muih>B aHpectoH, ele se acha em desvantagem em relação aos mais
velhos; mas, cm muitoH outros, está numa posição vantajosa.
Pode menrm que os outros, mas tem menos obrigações. Isso não
teria irnporlJrncia, He a conHciência do próprio valor não fosse
amcar;ada com iHHO. A criança sabe, por certo, que está colocada
no mesmo plano de Hem1 irmãos e c1ue todos eles não devem, espe•
cialmentc arm olhos dos paiH, ocupar posições diferentes. Que,
JJ()rtanto, HCIJ/1 irmãcJH (que não têm, a seu ver, de modo algum,
dirr:it,, a maior conHidenu;ão) tenham precedência real em rela•
1;üo a <:la - rds o que corn,titui um cHpinho na pequena alma da
criarn;a. ()11 res11ll:udofl não difercntcH conforme a constelação ge­
ral da família.. Ou a preaem;a dcm maiH velhos é um forte incen­
tiv,, ;i ri:albmi;ií,:a 1h: l.í,da a <:Hpécfo - na escola, nos brinquedos
e na pr6pria vida dr, lar, - ou então csHa concorrência é sentida
C1J1�1,, im:fica,: e loiio almrnlonada, He a criança não possui os
111<:'.1,:i :ulr:quado:i 11ara lutar. Ctuando o caçula vê ciue os irmãos
rna111 v1:lh,,11 proc11r:11r1 o n:conhr:cirncnto doH pais para seus tra­
halli,m, H1:rn que 1:1<: t,:11ha qualq11er n:ali-:açilo equivalente para
1'.�•,at.rar, 11<:rf1 l,alv,:,: 1.,:nt.:ulo a atrair OH pais por outros meios, a
!1111 d1: o/,1.,:r 1111a at.1:ru;iir,. IJm procem10 não muito grave é aquele,
1:rn rp11: 1:1111:1 111l,a r,!!lo rr:co11!11:c1rnento dos pais utiliza como meios

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 147

a doc ilidade e o carinho. Todavia, a primeira é, de certo modo,


"inatural" e se acompanha de uma forte tendência a renunciar à
independência e responsabilidade próprias, lançando-as sôbre os
pais. Um mau sinal desta tendência se apresenta, quando a crian­
ça começa a aproveitar-se da inclinação dos pais e acariciar e mi­
mar os caçulas, exagerando sua fraqueza, tornando-se medroiia,
não querendo largar a mãe, pretextando tôda a sorte de peque­
nas doenças ou mesmo, em último caso, abrigando-se sob a peri­
gosa proteção das manifestações "nervosas" - a fim de tentar
fortalecer sua posição de criança cuidada e de objeto principal,
senão único, da atenção paterna.
Mesmo essa posição, porém, - embora rebaixe, na criança,
a capacidade para a vida, impeça uma boa preparação para a rea­
lidade e faça notar seus distúrbios no interior da sociedade -
não é ainda muito ruim. Êsses processos só se tornam realmente
maus, quando a criança, não se contentando com lutar ativamen­
te por seus privilégios por processos quaisquer, mesmo incorre­
tos, procura assegurar sua posição desvalorizando os outros.
O que dizemos aqui da criança se aplica, do mesmo modo, ao
homem em geral. Por isso, torna-se necessário tratar mais am­
plamente dêsse ponto.
Dois caminhos se apresentam ao homem que deseja atingir,
em relação aos outros, uma posição de superioridade (pelo menos
subjetiva e, como tal, vivida). Mas, se essa posição de superiori­
dade lhes parece tão importante é porque, em sua falta de cons­
ciência do valor próprio, necessitam constantemente de uma con­
firmação de que são, significam e representam alguma coisa.
tsses dois caminhos são, naturalmente, a elevação sôbre os outros
e a diminuição ou desvalorização destes. A desvalorização do pró­
ximo é, aliás, um caso particular da tendência geral de desvalo­
rização, de que vamos tratar.

5. Desvalorização

A forma mais simples e menos agressiva da desvalorização é


a crítica depreciativa, pelo menos a atitude crítica exercida inte­
riormente. Que está em ação, numa tal crítica, urna forte tendên­
cia de desvalorização, é o que se vê fàcilmente. Perguntei uma
vez a um jovem de quinze anos, a quem tratava de gagueira, qual
o motivo de sua tendência a criticar todos os homens. Depois de
pensar um pouco, ele me respondeu, com um sorriso cheio de ma­
lícia: "Quando ponho os outros para baixo, melhoro minha po­
sição". Essa crítiva depreciativa pode, porém, aparecer sob for­
mas muito encobertas. Muitos homens dizem ou fazem coisas, em
que se expressa claramente a desvalorização dos outros, sem que

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148 RUDOLF ALLERS

o saibam. Um estado mórbido já desenvolvido é o que nos mos­


tra, por exemplo, o caso de uma funcionária que disse: "Vi que
a alma de minha colega de escritório tinha entrado em mim e logo
me senti em estado de pecado mortal". (Tratava-se, por certo, de
um modo refinado de exprimir sua opinião sôbre a depravação
moral de sua colega) . Estão nesse caso, também, os que não es­
tendem a mão aos outros, ou, pelo menos, sentem necessidade de
lavá-las, logo após um aperto de mão (todos são impuros, todos
são porcos). São também assim os que não compreendem, nunca,
como outros possam ter feito isto ou aquilo. A êsse típo perten­
1l cem, antes· de tudo, os vários fariseus, que dizem, hoje como on-
1 tem: "Senhor, agradeço-Te, por não ser como aquele homem".
As atitudes já mencionadas, como a de evitar o contacto de
outras pessoas, etc., ultrapassam a pura crítica. Assim também o
procedimento dos que não sabem "como aproximar-se", ou "o que
devem falar" cofn os outros.
Do mesmo modo, passam, de muito, a simples crític�, tôdas
as declarações que, em sua forma extrema, podem ser designadas
como "difamação". Por certo, só merece esta designação, um mo­
do de proceder em que está contido o desejo de espalhar conscien­
temente uma característica deprimente de outrem, com a inten­
ção de prejudicá-lo. Há, porém, vários degraus, no caminho para
êsse caso extremo . ·se se compreender, de início, que o sentido da
difamação é desvalorizar os outros ( exceto em certos casos com­
plexos, em que a difamação é utilizada como meio para outros
fins, como: vingança, luta política ou econômica, etc., aliás, não
menos reprováveis), tornam-se claras muitas formas de conduta,
que pari,cem, muitas vezes, incompreensíveis. Citemos as cartas
anônimas, os boatos, etc., que podem perturbar a paz de uma ci­
dade inteira e ocasionar a morte de vários homens. A vontade de
poder secreta (do tipo da dos intrigantes) e a tendência à desva­
lorização, associada a ela, podem ser vistas, aqui, claramente
em ação.
No mesmo plano, se acham aqueles modos de proceder que
encobrem, sob um manto amável, opiniões desfavoráveis sôhre cJ
próximo, ·ou aparam as arestas da mordacidade com determina­
das limitações verbais. ("Não é por falar, mas... "; "Não quero
falar mal dêle, mas devo avisar-te, em teu interêsse... "; "Nunca
se sabe por que uma pessoa faz uma coisa. . . eu, porém, nunca
raria ·isso" - Quem não conhece ésRes modos de falar'! Quem
pode afirmar que eles jamais ,miram de sua boca'!)
Voltando à criança: quando ela se sente ameaçada em :-iua
posição, e, por isso, ataca os outros com a arma da deiwalorir.a­
ção, raramente se satisfaz com a crítica interior. Elas se vÍ!C)ffi
obrigadas, nessa luta, a tornar pública, por a:-1Him dizer, e:�sa rle11-
valorização, ou então, já que lheH faltam poderea para tanto, a

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 149
fazê-la executar pelos que têm poder e autoridade. Os métodos
d� que se podem utilizar para êsse intento são: a delação, a trai­
çao e a calúnia.
Utilizei.me, com plena consciência, da enérgica designação
de '.'t:aição". Ela é considerada do ponto de vista da criança. Há
tra1çao e quebra de confiança, para esta, quando alguém, que é
seu cúmplice numa ação má (mesmo não sendo perversa) dá co­
nhecimento disto aos pais, educadores, inspetores, etc., Conside­
rado do ponto de vista da ordem legal objetiva, tal procedimento
pode ter um valor positivo. Estamos aqui diante de uma questão
bastante equívoca. Deve.se considerar, porém, que sentimos to­
dos um certo desagrado, quando ouvimos, por exemplo, que o
membro de uma quadrilha traiu a esta e a seu chefe. Por certo,
a prisão da quadrilha e a eliminação de crimes ulteriores é dese­
jada por todos e nos felicitamos a nós e à sociedade, quando isso
é conseguido. Não nos sentimos, porém, inclinados a louvar o
"traidor". Isso não é devido a uma possível influência do "ban­
dido romântico", mas a uma arraigada apreciação do valor da fi­
delidade. Além disso, a traição não é motivada por um conheci­
•mento das exigências da legalidade objetiva ou da sociedade, mas
por considerações egoísticas. O mesmo se pode dizer do "traidor"
infantil. As crianças, para quem as noções de ordem legal obje­
tiva e de um corpo social a proteger não existem, ou são muito
obscuras, e que consideram sua vida como diversa da dos "gran­
des", vêem, no delator, um traidor. Para elas, as crianças devem
ser solidárias com as crianças e o compactuar de uma delas com
a autoridade é traição. Contudo, dirá alguém, as crianças devem
ser educadas no reconhecimento de uma ordem; ora, isto é difí­
cil senão impossível, se o educador também condena, por seu
lado como traição, aqueles modos de proceder; seria talvez me­
lhor: ensinar à criança, que as normas objetivas da Moral e do
Direito estão acima de seu companheirismo. Que devemos fazer
então?
Eu responderia que esta situação inquietadora e difícil será
tanto mais rara, quanto menos artigos de regulamento forem
apresentados às. crianças. Há também aqui, uma razão para a exi­
gência, já apresentada por nós, de que não se multiplique inutil­
mente o número de proibições.
Dever-se-ia, além disso, mostrar à ériança a importância das
normas de direito e logo, de início, demonstrar como são justas
suas próprias regras não-escritas de sociedade infantil. Mas, nem
por isso, se deve dar abrigo ou elogiar a· delação. Correr-se-ia o
perigo, assim procedendo, de abalar sensivelmente a vivência de
solidariedade da criança, que é, por certo, o fundamento da vi­
vência de solidariedade do adulto. Em particular, dever-se-ia es­
clarecer às crianças, que, para fiscalizar e julgar suas ações, é

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150 RUDOLF ALLERS

que o educador está ali - quer se trate de uma comunidade de


irmãos, quer de uma turma escolar. Quando, por exemplo, numa
aula um menino se levanta para dizer: "Com licença, Sr. Profes­
sor! Fulano está lendo um livro debaixo da carteira", o professor
será naturalmente obrigado a proceder de acôrdo com a comuni­
cação, repreendendo o aluno desatento, mas deve também fazer
ver, ao fiscalizador intrometido, que a fiscalização do procedi,
mento dos alunos compete ao professor e não aos seus colegas.
Um exame cuidadoso mostra que, na maioria dos casos, o motivo
da denúncia não é uma certa "bravura" da criança, nem um res­
peito às leis, mas que se trata apenas de fins e interêsses pessoais
- chamar a atenção do professor para sua pessoa (êsses delato­
res são, na maioria das vezes péssimos alunos) ou satisfazer um
rancor pessoal. O aluno que lia às escondidas é talvez o que chega
em primeiro lugar na corrida de volta a casa, o que cospe mais
longe, o melhor arremessador de pedras ou o que tem qualquer
outra posição eminente.
Já chamamos a atenção, anteriormente, para o fato de que,
quando a fiscalização, ou mesmo a faculdade de punir, é confiada
aos mais velhos, produz-se, na alma does mais moços - submeti­
dos a uma hierarquia que vai de encontro a seu sentimento natu-
1·al de justiça - tôda a sorte de malcfícioii. O mesmo se aplica
aos companheiros de uma mesma turma escolar. Confiar a crian­
ças um certo poder policial sô!Jre seus :,crnclhantes, pat·ece-me pe­
rigoso. Por certo, é indiferente <1uc tal poder seja, ou 11:w, confe­
rido solenemente pelo pai ou profeirnor. Quem é ed11cadot·, deve
estar aparelhado para lidar com traveHHurm; e maus elementos,
sem precisar formar um estado-maior de <letetivl!;;. t,;c oplal' por
esta solução, dará uma prova de !-ma incapacidade.
O risco é, aliás, duplo: o <lelatór :-ie tornarú um l'al'Ífü:ll e 03
outros, desiludidos com tais cxcm1,los, pcrdcr:io a cou l'i:u1�a na
sociedade e, também, no educador.
Tendem a usar clfüme JiroceH:-10 U,clas a:-1 c1·iança,1 q1w vêem
nos outros (nos irmãoH mai:-1 velhos, por exemplo) conc:orninüis
invencíveis, que, segundo JninHain, 1:111.iio, l1w:ula,1 a 1·1:111ovi:-lo!!
dessa cobiçada posiçiio e, para tant.o, rnto1T1:r?'to, cm c:crl.as cir­
cunstâncias, fts armaH !la verdadeira clif':1111a1;:u,.
Vemos, aqui, aparecer 11rn novo motivo 1Ja f'acul 1 lacl t! d1• 11w11-
tir, que já estudamos. A mcnl,ira apan:c1:, ai�ora, a !1,:rvic'.o ela co11•
solid�ção _<lo pr<Íp.rio poder ou eia 111l.a para ,!:,!.,: -·- f:ant.o' pt:la dc8-
valor1zaçao mentirosa doii com:m·1·cnl.1::1, ,:ou10 p1•lo f'orl.aJ,.1·in11,11Lo
inverídico de HUa pré,pria irnporl.it11cia. J•::1l.a i'1 11.iu1a for1r1a da
�entira �ond11z, por 11m suave ch:i:liv1:, h f:u1fa1·1·o,ii,:i:, i1 1,m:Mia,
a narraçao de Iiro1:;,;af!.
Acredito _que ,HI indir:w;ií_<:i: a!/: av,ora dada: 1, ,:0111 a 11rol'un­
deza e extemiao com que Jl(Jll foi JHJ11:1ivd aprc:11:111.f,-la:i, dnvc:m :11:r

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 151

suficientes para mostrar a importância da constelação familiar


na formação do caráter infantil e, portanto, do futuro, bem como
para fazer conhecer os perigos a evitar e os caminhos necessá­
rios à obtenção de um resultado educativo satisfatório. Uma ou
outra indicação complementar será apresentada no decorrer de
exposições posteriores, especialmente as relativas à importância
do sexo no tipo de caráter e os fatôres aí associados. Também
sôbre as questões de criminalidade infantil, menores abandona­
dos, doenças nervosas e erros das crianças, se dirá alguma coisa
nessa ocasião,
Antes, porém, de continuar nossa exposição sôbre as condi­
ções de desenvolvimento do caráter, é necessá'rio abrir um parên­
tese para outras considerações.

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IV. O IDEAL DE CARATER E O EFEITO

DO EXEMPLO

1. Nota preliminar

Como se vê pela associação dos dois conceitos dados no título


acima, trataremos aqui dos ideais visados e não de um "caráter
ideal", no sentido em que a palavra é empregada para significar
que um homem é um padre, um oficial, um médico "ideal", ou
que é "o ideal" da bondade, da amabilidade, da harmonia. Não
falaremos aqui de tipos ideais, mas de ideais individuais - das
imagens que o homem forma sôbre o modo como deve ser e agir.
Não se trata também do modo, pelo qual urna pessoa se representa
sua natureza real. Seria mais correto falar, primeiramente, sôbre
a questão do autoconhecimento e da autovaforização, já que o
ideal, sendo um fim orientador, é de certo modo; vivido por meio
da diferença experimentada entre ele e a realidade da pessoa.
Devido à seqüência metódica, deixaremos, porém, por enquanto,
êste problema e estudaremos primeiramente as condições e os
modos de formação desses ideais.
Qualquer que seja o modo como é formado êsse ideal, hã
duas atitudes diante dele. Uma, vê nele, senão um fim atingível,
pelo menos um fim para onde é possível dirigir-se. Aquele que a
adota se lamenta da lentidão do progresso, dos retrocessos oca­
sionais e também da impossibilidade de se atingir plena realiza­
ção do ideal; tem, contudo a consciência de estar se movendo da­
quela direção, não num movimento contínuo, mas, ao contrário,
num movimento intermitente; todavia, sabe que está sempre se
movendo para aquela meta. A outra atitude vê, porém, o ideal
que se lhe apresenta, como inteiramente inatingível e tão fora
das possibilidades de aproximação, que mesmo os primeiros pas­
sos nesta direção parecem inúteis e, até mesmo, impossíveis. Es­
ses ideais julgados inatingíveis e impossíveis de realizar, mesmo
numa aproximação grosseira, são de tipo duplo. Um é vivido se­
gundo a fórmula: "Assim eu poderia é deveria ser, de acôrdo
com meus valores internos e próprios, mas não posso seguir êste
caminho, porque ... "; seguem-se, então, as diversas razões: sou
:traco, sou mau, é muito tarde, os outros tornaram isso impossí-

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154 RUDOLF ALLERS

vel, fui mal educado, esta ou aquela condição deveria ter sido rea­
lizada, etc: A segunda f6rmula diz: "Dever-se-ia (os outros) ser
assim ou poder ser assim, mas não o sou". Desse tipo é, por exem­
plo, o ideal daquele homem que, sendo franzino e baixo, diz, con­
tudo: "Na verdade, o homem deve ser forte e alto", ou da mulher
que diz: "Na verdade, ela {outra) deveria ser um homem".

2. Fontes dos ideais

Êsses ideais, que no decorrer de uma vida podem sofrer


transformacões substanciais, derivam, a meu ver, de várias fon­
tes princip�is. Em primeiro lugar se originam do seguimento e
imitacão. !sses dois conceitos não representam bem a mesma
coisa; não há, porém, entre eles, fronteiras nítidas, ou, melhor
dito, bem determinadas. Do mesmo modo, os dois modos de pro­
ceder, que correspondem àqueles conceitos, também se misturam.
O verdadeiro seguimento, que pressupõe a afirmação interior da
pessoa tomada como exemplar, produz fàcilmente a imitação. Re­
ciprocamente, a pura imitaçã9 pode passar a seguimento, ou ser­
vir de base a êste. :Vlas a parte negativa destas atitudes pode ser­
\'ir também ele base para um ideal de caráter. E' fácil de ver que
o desprezo radical por uma pessoa é tão determinante, para uma
pessoa, de sua escolha "do que um homem deve ser", como a
admiração sem restrições.
A importância do ideal ele caráter para a vida individual e
para a formação do caráter realmente acabado - que é a norma
fundamental da conduta - é variável, segundo o tipo de ideal e
sua formação originária. Outra fonte de diversidade é devida ao
fato de que, ao lado de homens, para quem o ideal {no sentido já
indicadoJ é importante e pode determinar a atitude e a vivên­
cia, há também outros, para quem o ideal não tem propriamente
inf!uÉ:ncia sóhre sua conduta de fato. Aparece, pois, uma nova
subdivisão de tipos. Tanto no tipo que, julgando embora ina­
tingível o idEoa!, acha possível que nos dirijamos para ele, como
naquele outro, que pensa ser impossível êsse movimento, apresen­
tam-se duas variantes - ,iegundo êsse julgamento sôbre o ideal
e sua relação com a pessoa concreta, representa, ou não, um pa­
pel atbr, m1. vivéncia.
Sé tal distinção convém à posição do ideal ele caráter no in­
teri,:,r da vbí,ncia do próprio eu, os ideais devem, por outro lado,
Eer cr,n;;ideradr,s 8E:gundo sew1 conteúdos. Entre estes e a função
que �r,n•1i:m, na viví,ncia, ao ideal de caráter, há, naturalmente,
eatratag rr:,laçr:ie.,. E' claro que, a todos os ideais cujo conteúdo é
irr<:;a]izl\:;f;], ni::nhuma influí,ncia prática pode ser atribuída e,

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 155
quaisquer que sejam, darão apenas motivo a uma vivencia fan­
tástica do ideal, ou à consciência de sua absoluta inatingibilidade.
Em relação ao modo de geração, ou às fontes do ideal de ca­
ráter, deve ser acrescentado que há duas forças em ação. Pri­
meiro, o conhecimento das leis de valores efetivas e da hierarquia
de valores, e, segundo, o do processo já anteriormente apreciado,
de compensação e supercompensação. Não se pode, naturalmente,
querer atribuir tôdas as formas de ideal, apenas e unicamente
aos efeitos de compreensão. Quem o fizer, desconhecerá a dupla
determinação de tôda a conduta e vivência humanas, que vêm, ao
mesmo tempo, do eu e do não-eu. A tentativa de fazer, da com­
pensação ou supercompensação, a fonte exclusiva da formação de
ideais, só pode ser considerada como resultado de uma extrema
concepção naturalístico-psicológica e deve ser, portaIJto, rejei­
tada. Por outro lado, é de extrema necessidade uma observação
cuidadosa deste fator subjetivo. Porque ele está, de fato, estrei­
tamente associado à geração do ideal e seu desprezo prejudicará,
muitas vezes, os esforços feitos pelo educador, para aproximar o
discípulo de determinadas exigências do ideal.

3. Significação do ideal

Uma descrição minuciosa das formas singulares do ideal de


caráter e de sua vivência não está dentro dos limites de nosso tra­
balho. Vamos limitar-nos a alguns pontos práticos de maior im­
portância. Entre estes, é particularmente importante o ideal de
caráter que é vivido como inatingível, ou em si mesmo ou para o
indivíduo.
O que é inatingível em essência não pode ser desejado nem
procurado. Diante dêsses alvos (que, na realidade não podem
ter êsse nome) só se pode agir como se aspirássemos a êles. O
desenvolvimento de tais ideais de caráter ocasiona, portanto, um
extravio de forças e uma atitude geral que pode ser caracterizada
pela qualificação de "falsa". (Trataremos mais minuciosamente
da falsidade em capítulo posterior).
Já foi visto que o motivo de tôdas as construções de fantasia,
relativas à compensação e supercompensação, e, portanto, à edifi­
cação de certos ideais de caráter elevados, se faz por intermédio
da vivência, real ou súposta, da depreciação. Observamos aqui,
porém, a grande significação prática dessa vivência de deprecia­
ção - a necessidade, em que nos achamos, de evitá-Ia o mais pos­
sível. Ninguém, que tenha tido contacto com homens em cujas
vidas a formação de ideais elevados tem' papel prejudicial, pode
fechar os olhos a este fato: que essas atitudes, tâo maléficas para
a vida interior corno para a exterior, se originam da infância e,

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156 RUDOLF ALLERS

em particular, estão associadas à vivência da depreciação. Na


formação do que é pessoal e dos ideais de caráter, a figura dos
pais tem importância decisiva. A criança sabe, de certo modo, que
está destinada a crescer e assumir a posição dos "grandes". Qual
é esta posição e como comportar-se, uma vez de posse dela - é
o que a criança aprende e experimenta pela observação dos pais.
Pois isso, as idéias relativas ao estado, aos trabalhos, aos direitos
e aos deveres da "situação de adulto", despertadas na criança pe­
los pais, dão orientação para sua atitude.
Há a possibilidade de um desvio, em várias direções, do de­
senvolvimento correto. Para isso, são de importância as relações
com os dois sexos .
O primeiro perigo vem• da predominância unilateral de um.
dos pais. Como as crianças vêm que o outro pai (que, em geral,
tem ainda um certo poder sôbre êles) não se atreve a afirmar-se
diante do que possui o verdadeiro poder, e, como por uma dispo­
sição natural do homem, aspiram ao poder e vêem na sua posse o
triunfo e a supressão final da consciência de sua depreciação e
sua inferioridade, acontecerá, fatalmente, que a posição de adul­
to, para tais crianças, parecerá transportada a uma distância
inatingível. Não acreditam poder chegar, jamais, ao poder e à
importância que vêem no pai poderoso. Como, além disso, a gran­
deza, em qualquer de suas formas - fama, posição de autorida­
de no mundo, etc. - representa também uma expressão do poder,
haverá sempre um perigo, que se torna ainda maior quando se
baseia numa hegemonia unilateral da família. Que se veja, por
exemplo, a situação trágica - bem conhecida na História e em
inúmeros casos da vida comum - dos "filhos de grandes ho­
mens".
O efeito de tais imp1·essões sôbre a evolução do caráter in­
fantil é, muitas vezes, que- a criança não pode abandonar suas ati­
tudes de criança e suprimir sua situação infantil. Na consciência
(embora ilusória e não-confessada) ele não poder realizar a si­
tuação de adulto - que paira diante deles a uma altura prodi­
giosa - estes homens procuram .conservar para sempre a ati­
tude da criança . Muitas vêzes trata-se de crianças que "não que­
riam ser grandes e noutras vêzes, de uma situação da primeira
infância, que se conservou, mais ou menos, até os anos da puber­
dade. Partem daí, naturalmente, uma série de conflitos; confli­
tos interiores, porque a atitude conservada não convém mais ao
estudo adulto e conflitos exteriores, porque o mundo dos adultos
não pode e não quer permitir os privilégios da inf:incia.
E' oportuno observar que, numa an:Uise mais minuciosa,
muitos casos do chamado "infantilismo psíquico" se revelam
como condicionados reativamente, não se podendo, pois, falar,
em uma "inibição de �esenvolvirnento" de fundo orgânico. Tôda.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 157

tentativa de influir sôbre esta deve, pois, parecer mais ou menos


infrutífera. Deve ser, porém, acentuado que esses diagnósticos
pessimistas só podem ser feitos por um processo de exclusão e
depois de uma pesquisa minuciosa de tôda a formação e história
da vida ·de uma pessoa. .
A conservação da posição infantil é apenas um dos meios,
com que o homem, que desesperou de atingir um alvo - julgado
muito alto e inatingível -, procura fugir a essas exigênciai:;.
· Grande número de desenvolvimentos ele tôda a sorte, provàvel­
mente mórbidos em suas formas extremas, podem ser associados
a tai;; impressões ele infância. Mais tarde iremos estudá-Ias, no
capítulo relativo aos caracteres nervosos.
Todavia, a presença de uma estrutura predominante, no mn­
biente da criancinha, favorece o desencorajamento. Se o pai é a
sede da grandeza e do poder, esta estrutura será, em geral, mais
prejudicial para as meninas que pará os meninos, especialmente
quando a posição da mãe, na família, é desfavoi·ável. A menina
crescerá, então, sob a impressão de que a imporbncia, a gran­
deza e o poder pertencem somente ao homem, e a mulher, embora
ocupando uma posição elevada em relação à criança (como é o
caso da mãe), deve, por assim dizer, desaparecer diante do ho­
mem e- representar sempre um papel inferior e secundário. Se a
criança observar, além disso, que o pai tem uma atitude ele des­
prezo para com a mãe, rebaixa-a diante dos próprios filhos, etc.
(o que, infelizmente, se verifica em muitas situações da família),
a idéia que a criancinha fará do papel da mulher será a pior pos­
sível. As conseqüências podem ser: ou a revolta (se houve cora­
gem para tanto) ou uma profunda insatisfação com o próprio
sexo. Da revolta provêm muitas vezes formações de partidos, o
que perturba, ainda mais, a vida da família, quando, por exem­
plo, mãe e filha se juntam contra o pai. Como, porém, o partido
da oposição é geralmente o mais fraco, ele recorrerá, na luta, aos
meios dos fracos: a astúcia, a mentira, o logro - o que, por certo,
constitui uma atmosfera muito imprópria para a formação do
caráter moral.
A presença de uma figura feminina impm·tante, age do mes­
mo modo sôbre os meninos, embora mais raramente e com menos
fôrça do que no caso das meninas. Se a mãe for a dona incontes­
tável do poder, o pai sendo apenas um manequim, os filhos pode­
rão sentir uma repulsão, maior ou menor, e um medo às mulhe­
res. Posteriormente, isso pode dar lugar a tôda a sorte de desvios,
o mais importante dos quais é a homossexualidade. A posição
equívoca - em que o homem se quer afirmar e tem, ao mesmo
tempo, um horror secreto às mulheres - mostra-se bem distin­
tamente nesses homens que, por um lado, aspiram a uma forma

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158 RUDOLF ALLERS

de vida, expressamente e até exageradamente, máscula, sem con­


tudo querer levar em conta, na parte erótica, essa tendência,
Não prosseguiremos no estudo de outras questões ligadas a
êste assunto . Que o tipo pessoal dos pais ( e sua educação ante- ,
rior) deve ser de importância fundamental, pelo fato de que a
formação do ideal da criança está asosciada a ele, é o que se com­
preende fàcilmente. A ênfase deve ser posta no termo "tipo",
porque, repitarrtos, não são as palavras, os ensinamentos e as ad­
vertências que mostram à criança a natureza, a posição e a ta­
refa dos adultos, mas o próprio estado, ações e atitudes dos pais.
Ao explicar a questão dos ideais de caráter, deve-se tornar
claro, aliás, que, também aqui não pode ser tomado, sem mais in­
dagações, o depoimento de um ·homem sôbre seu p1·óprio ideal.
Também aqui cabe a observação de que a finalidade realmente
efetiva numa vida sàmente pode ser conhecida pela ação e a ati­
tuda geral do indivíduo. Não nos queremos referir apenas à opo­
sição "Ideal-Realidade", mas à que aparece também entre dois
ideais - um, adequado ao estado íntimo do indivíduo em estudo,
ou; pelo menos, provindo de suas experiências vivas; o outro ou­
torgado, sugerido ou transplantado de fora.
Êsses ideais, estranhos e muitas vêzes opostos à natureza da
pessoa, originam-se, em geral, de que o educador apresenta, à,
criança, como mn exemplo, mna determinada figura - histórica
ou atual - dizendo-lhe que imitá-la, ou igualar-se a ela, é reco­
mendável, fundamental e até mesmo, indispensável.
Estas bem-intencionadas tentativas de pôr diante de urna
criança, como um ideal a atingir, uma determinada figura e sua
vida, são, às vezes, discutíveis. Dever-se-ia observar que a impo­
sição desse ideal é feita por uma pessoa revestida de autoridade
e que ele é, em geral, apresentado com insistência e ênfase. Por
isso, a criança, carecendo de espírito crítico e de autocrítica,
• aceita a sugestão, muito embora lhe falte, interiormente, uma
verdadeira afinidade com essa figura ideal. A criança pode, as­
sim, ser levada a orientar seus esforços e aspirações numa dire­
ção que de modo algum lhe convém. Se, ainda por cima, essas fi.
guras ideais são destituídas de tôdas as características humanas
e transformadas, pelo entusiasmo de :seu pintor, em abstrações
vazias, deixando de ser a corporificação de certas virtudes num
homem que já possui outros ti-aços humanos - então, será im­
possível realizar e estas figuras, pois que se acham além de tôda
realidade. Desse modo, se tei·á criado, artificialmente, aquela si­
tuação prejudicial, em que um homem leva consigo um ideal es­
sencialmente inatingível e que lhe é impossível imitar - uma si­
tuação que pode dar lugar a conflitos nocivos.
Por esses motivos, é absolutamente errôneo entre outras
coisas, apresentar à criança, como exemplos, figm'.as ideais, cuja

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PSICOLOGIA DO CARÁTER Jf,9

forma de vida é inteiramente diversa da flua. Um aprendiz do


serralheiro não deve escolher como exemplo .Júlio Ccsar · um fun­
cionário fiscal não pode querer ser Napoleão. Santa ca'tarina de
Siena não pode servir de exemplo para as moças modernas e a
existência de um eremita não pode ser o ideal para homem1 que
agem no dinamismo social e econômico de nossos dias. Resulta
daí que as descrições de vidas da maioria ·aos santos, taill como
nos são apresentadas, devem ficar .infinitamente longe da reali­
dade (tanto da nossa, como da dêles). Comparem-se as novas bir,­
grafias, histõricamente fiéis, de S. Luís Gonzaga, com as antigas.
Em particular perigoso, é dar como exemplo o ideal de vida mo­
nástica aos que devem exercer profissões mundanas e viver em
condições de vida ativa.

4. Ambição

Agora, que falamos de fins e ideais, parece a propósito in­


cluir a explicação de um conceito, que já se achava no fundo de
nossas reflexões, mas que não tínhamos tido ainda ocasião de
designar - a ambição.
Muitas vêzes, pais e professôres se queixam de que determi­
nada criança não tenha ambição e declaram expressamente que
há necessidade de tê-la e demonstrá-la. Por isso, procuram ins­
tigá-la na criança. Isso se faz, por exemplo, mostrando à criança
um colega ou irmão, que devem ser imitados; ou então, o pai de­
clara que, em sua infância, ele não era assim; finalmente, pode-se
declarar, à criança desambiciosa, que, a menos que se modifique,
não terá probabilidade alguma de realizar qualquer coisa. Já vi­
mos que esta última forma é, pelo menos, inábil e pode produzir
o desânimo. Mas, que deve ser entendido por ambição?
Antes de tudo, deve ser acentuado que esta palavra tem sig­
nificação dupla. Primeiramente, ela exprime um desejo de honra­
rias exteriores de reconhecimento e de apreciação e, portanto,
daqueles fins que vimos pertencer, na origem, à vontade de poder
ingênua. Mas a palavra pode ser usada noutros sentidos. A sig­
nificação de um esfôrço, para um fim elevado qualquer, é comum
a ambos os sentidos. fües se confundem, embora sejam distintos,
em virtude de uma troca muito comum de dois outros conceitos.
De fato, é muito ràro encontrarmos uma pessoa que distingua
claramente "obras" e "êxitos", ou pelo menos, que proceda como
se conhecesse, na prática, essa distinção. Teõricamente, na ver­
dade, qualquer um reconhece que nem tôda obra tem êxito, ou
que muitas grandes produções do espírito só são apreciadas nos
séculos futuros ou que, em geral, muitas realizações ficam des­
percebidas. Aliás, todos reconhecem que a recompensa de uma

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160 RUDOLF ALLEitS

obra está principalmente na consciência do autor e que basta-lhe


dizer a si mesmo: "Fiz isso, o melhor que pude". Tais reconheci­
mentos, porém, permanecem no plano da teoria e do puro conhe­
cimentos, porém, permanecem no plano da teoria e do poro co..
nhecimento racional: raramente se tornam plena propriedade do
indivíduo e não se transformam, portanto, num verdadeiro co­
nhecimento "vivido". A incerteza interior; que existe em todo
homem, impede a confiança em si :r_nesmo e exige a confirmação
exterioe do valor próprio (sempre posto em dúvida) por meio do
julgamento dos outros. Não se pode dizer que tal desejo seja,
em si e por si, reprovável. !lle pertence, evidentemente, à essên­
cia ela natureza humana (não só a natureza decaída, talvez, mas
a própria natureza em geral). E, de certo modo, decorre daquela
tendência primeira da vontade de sociedade o fato de desejar al­
guém o reconhecimento de sua pessoa e de seus atos. Basta a
muitos, que alguns poucos - um único, talvez - louvem a ele
e sua obra. Ninguém exige que todos, ou qualquer um, o admi­
rem. Mas aquílo que se passa em todas as posições e direções da
vida humana, em que se revela uma contradição interna, ocorre
também aqui. O desejo de reconhecimento não deriva apenas da
vontade de sociedade, mas também da vontade de poder. Querer
ser apreciado pelos outros e obter seu reconhecimento, significa.
já que se trata de uma pura manifestação da vontade de socieda­
de, o seguinte: desejar sentir-se entre os outros, em igualdade de
direitos; ver que se é agradável, e, não, incômodo para os outros;
saber que a união à sociedade, exigida pelas leis ob.ietivas do Ser,
se faz sem atritos . Êsse mesmo desejo significa, porém, entanto
que revelação da vontade de poder: querer valer mais que os ou­
tros; cobiçar uma posição de superioridade em relação a eles, de
modo a obrigá�los a olhar para cima. A proporçf10 em que pre­
pondera, 11a atitude geral do indivíduo, êsse segundo aspecto, a
orientação para a produção se ti·ansforma cada ve7. mais em ori­
entação para o êxito, o puro êxito, o êxito custe o que custar, en­
fim: o êxito aparente.
Essa atitude viciosa, e, cm sua expressão mais acentuada,
fatal, é favorecida e, até mesmo, necessàriamente causada por
um fato incontestável. Trata-se da c rença em qne, de moclo g-cral,
às grandes obras correspondem �ra1,dei, êxitmi. Fi11almcnl'e, mcs-
'mo os que foram desconheci(los cloi, contcmporf1nco11 e sú admira­
dos pela posteridade, tiveram, quase sem cxcec_'.ão, em trna vida,
um pequeno círculo de adeptos e admiradores. Ni"to se polle imbcr,
na verdade, quantas p roduçõe;i da humanidade íoram impcdh1ag,
porque as circunstâncias desfavorávei11 ou a falta de reconheci­
mento de algum1 poucos, ou mesmo de um 1ínico, cios cont.cmporft­
neos prejudicou sua realiznçf10. Mas, considcranclo bem a� cohm�,
todas as verdadeirns produções pal.'ecem ter obtido um certo su-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER lGl

cesso. Por isso, é tão comum o fato de verem, os homens, no êxito,


um critério para a obra e duvidarem daqueles em que ele não
aparece. Depende, porém, essencialmente, da opinião daquele que
obteve êxito, o quanto desse êxito pode satisfazê-lo. Realizar gran­
des feitos é dado a poucos. E só os grandes feitos dão direito ao
grande êxito. Assim, os homens que desejam grande êxito (e
tanto mais desejarão, quanto menos seguros estiverem de seu
próprio valor, segundo a lei da supercompensação) e nilo iião
capazes de produzir grandes obras (o que depende, por um lado,
de sua constituição pessoal íntima e, por outro lado, de sua cons­
ciência do valor próprio e, pois, de sua coragem), os que dese­
jam um êxito extraordinário depois de uma única· produção, es­
ses homens decairão numa ambição perniciosa e falsa, numa am­
bição que não pode levar às verdadefras obras e que deve ser con­
siderada um êrro para os que se sentem atraídos por ela.
A grande dificuldade está nisto: a vida prática é feita de
tal modo (pelo menos teoricamente) que o êxito e a realização
objetiva correm, de certo modo, paralelamente. Podemos objetar:
pelo menos teoricamente, não se pode ocultar que o êxito exte­
rior favorece, não poucas vezes, aqueles que nada produziram, ou
realizaram obras medíocres; eles agradecem seu sucesso, em cen­
tenas de casos, a motivos inteh·amente diversos de suas obras.
Isso, porém, não invalida o fato de que existe um paralelismo en­
tl'C a realização e o sucesso. Não é qualquer um, contudo, que é
destinado a realizar obras objetivamente grandes. Seja porque
as circunstânciae: da, vida não permitem a realização de todas as
possibilidades de produção· de um homem, seja pol'que o círculo
dessas possibilidades não é bastante grande, a verdade é que nem
todos podem ter a pretensão de realizar algo de grandioso.
Quando, porém, este homem é educado com a idéia de con­
corrência aos outros, quando lhes ensinam a considerar impor­
tantes as obras dos outros e esforçar-se por atingí-las - embora
não o possa fazer por motivos interiores ou exteriores - isso
constitui grave ameaça à confiança em si e à sua consciência do
valor próprio. Há, então, uma probabilidade de que não só não
possa atingir a altura de produção que lhe é indicada e para a
qual não está objetivamente destinado, como também de que suas
próprias realizações fiquem aquém daquilo de que era capaz.
Já dissemos que a altura de um produção deveria ser jul­
gada, em sentido preciso, de acordo com as possibilidades indivi­
duais e não pela própria grandeza objetiva da obra. Quando uma
criancinha, empregando tôdas as suas energias, carrega uma pe­
quena bôlsa de criança, isso equivale ao fato de um de nós carre­
gar, usando as fôrças, um saco dez vêzes mais pesado .
Mas, na agitação do mundo e, principalmente, dos negócios,
a pl'odução objetivamente maior é a que tem, também, importân-

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162 RUDOLF ALLERS

eia maior. Seja como for, no domínio moral, o fundamento do


valor está no esforço subjetivo e não no resultado objetivo. Lem­
bro, mais uma vez, a parábola dos talentos (S. Mateus, 25, 14).
O servo que recebeu apenas dois talentos e devolveu quatro foi
recebido com as mesmas palavras e teve o mesmo louvor, dados
ao que recebeu cinco e devolveu dez. Isso mostra que não é a gran­
deza exterior das obras o que importa, mas tão sõmente o em­
prêgo, que o homem dá às suas próprias possibilidades, por oca­
sião de realizá-las, Por certo, o terceiro servo, a quem tinha sido
confiado um talento, teria merecido o mesmo louvor, se apare­
cesse diante de seu amo com dois talentos; e, quem sabe se ele
não poderia trazer dois e meio?
Portanto, não importa a grandeza exterior da produção,
nem a quantidade absoluta de talentos, mas apenas, o que se po­
deria chamar a porcentagem de possibilidades realibadas. Se o
terceiro servo tivesse dobrado um talento, ganhando assim cem
por cento, ter-lhe-ia sido dada a mesma recompensa.
A dificuldade está em separar o valor moral do valor con­
creto.1 Não podemos indagar aqui, como remediar tal dificuldade,
quando ela surge em diversos problemas de economia e política
de salários. Nem sabemos se tal remédio é possível. Em educa­
ção, só se pode levar em conta o mundo que é dado.
Mas o reconhecimento, de que só as produções corresponden­
tes às possibilidades de determinada pessoa devem constituir a
base de uma apreciação, contém também perigos . Um dêles é que
o homem, especialmente o desanimado, pode contentar-se com
suas produções objetivamente inferiores, consolando-se com a
idéia de que não está destinado a fazer mais, nem é capaz de coi­
Bas maiores. Assim, um conhecimento que é, em si mesmo, tão
jmito como qualquer outro, pode ser posto a serviço de uma ati­
tude de covardia e de abandono da vida.
O 1-1c1�u111Jo perigo é ainda maior e mais importante. Ele está
na inclinação do homem a medir a grandeza de sua obra pelos
rnrJrnentos do csffll'f;o irnbjctivo e do domínio de si mesmo. Tais
honu:n1-1 - cujo número é prodigioso - acreditam que uma pro­
dur;iio qualqw:I', ol>jetivamcn1:c mesquinha e mesmo nula, torna-
11c v.r:�rnl1: ,: r:hoia de valor, por ter sido realizada por meio de
urn triunfo Hobre aH 0110Hições interiores. Esse ponto merece con-
11irlr:nv;ftr1.
1 ir,aH coí1-1aH dcv1:m ::ier ditas. Primeiro, que não é justo que
o domi11ir1 d,: r1i pos:-m ,lar uma medida do valor moral de uma
1v;il1,, r,u 11111: aoja, p,:lo 111l:no11, a única e a mais excelente base de

1, T.11 dl!indd.uh· ,lp,u,·..:,· t.u11hCm cm outro� ,lSp�ctos, como n.a questão do


1·111p,f.r,rí1110 •· 11(11111,11 M'111rlh.1n11·11, V1·r .1s not.ts. qul! fiz .1 êste rcspé'Íto, n'J Jrtigo:.
"Atbril, J:1111j\du11v., HuJar" no Almwul cl1• lli9i1•m• Social (Berlim. 1927).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 163

medida. O que é decisivo para o valor de uma ação é, primeira­


mente e acima de tudo, o valor atualizado nela e por ela. A opi­
nião que aqui contestamos se baseia numa superestimativa unila­
teral do sujeito (compreendendo-se a ação como uma relação en­
tre sujeito e objeto, eu e não-eu). Do mesmo modo que um homi­
cídio não nos parece melhor, nem menos reprovável e enojante,
ao sabermos que o homicida teve que se dominar, assim também
uma ação positivamente digna de valor, não deve ser valorizada
pelo domínio de si mesmo. Vemos que os grandes santos, cujas
ações nos aparecem de uma bondade inatingível e um valor ines­
timável, não precisaram, de modo algum, dominar-se e que seus
atos, que não podemos nos representar como feitos por nós, pa­
recem, neles, fáceis, compreensíveis, "naturais". Não que se du­
vide da necessidade do domínio de si e se deva desprezá-lo na edu­
cação. Mas o domínio de si, considerado em si mesmo, não é ne­
nhum valor e só se torna um valor relativamente à finalidade
para que é feito. Por trás da idéia de que o domínio de si, como
tal, é algo de valioso, está um errôneo ideal de heroísmo e, por
fim, um subjetivismo e um individualismo que põem todo o yalor
de uma ação nela própria, em vez de considerar a união do ho­
mem com todo o universo do Ser a que pertence.
Esta última ponderação nos leva ao segundo ponto de que
íamos tratar. Deve ser esclarecido, que é coisa fácil para o ho­
mem expulsar os obstáculos e oposições internas, que, uma vez
dominados, servirão para que êle se crie a ilusão de uma atitude
cheia de valor moral, baseando-se naquela concepção errônea e
subjetiva de domínio de si. Na verdade porém, apenas satisfez
sua vaidade e fugiu às atitudes difíceis, mas positivas, que eram
exigidas dele, Veremos adiante que as chamadas manifestações
mórbidas "nervosas" se originam, na maioria das vezes, de tais
esforços. Elas servem para a elevação subjetiva da produção.
Quando um enfermo, impedido de sair à rua por uma agorafobia,
narra, triunfante (e repetirá durante semanas a narração) que
foi até uma loja, a· cem passos de sua casa, quer exprimir, com
isso, que esta ação, de valor desprezível para qualquer outro, foi
para ele um ato de heroísmo. Por certo, é mais difícil subir uma
montanha de 2.000 metros, com botas ferradas de excursionista.
E' preciso não esquecer, porém, que 2.000 metros são o décuplo
de 200.
Quando os homens aspiram ao sucesso exterior e não o con­
seguem obter por suas obras, e quando não lhes satisfaz a sim­
ples consciência de ter feito o melhor que podiam (a duplicação
dos talentos da parábola), caem em artifícios, por certo incons­
cientes, de valorização subjetiva da obra realizada. Assim se ori­
gina a neurose devida à ambição falhada, embora ela possa pro-

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164 RUDOLF ALLERS

vir, também, de outras fontes. Posteriormente diremos mais al­


guma coisa sobre o assunto.
Ao lado da troca dos conceitos de produção e êxito, que aca­
bamos de mostrar, aparece uma outra: a de insucesso e derrota.
Não é todo insucesso que significa. derrota, ou desonra. Quantas
vezes o insucesso provém da inexeqüibilidade do empreendimen­
to! Quantas vezes, também, ele resulta da falta de experiência!
Quanto mais ambicioso é o homem, tanto mais deseja o êxito;
quanto maior é a importância que atribui ao êxito - para con­
firmação de seu valor próprio e eliminação da dúvida pungente
que resulta da consciência de sua incapacidade - tanto mais ne­
cessita - de um sucesso rápido, tanto mais depressa se inclina a
considerar o i!Ísucesso como derrota e desonra, tanto mais evi­
tará as situações positivas, por ver oculta, em tôdas elas, a pos­
sibilidade da derrota.
Por isso, não parece aconselhável despertar nas crianças e
jovens a ambição que tem por fim um êxito, especialmente quan­
do se usa a apresentação repetida de uma figura exemplar. Pode­
-se saber se a figura escolhida é adequada à natureza da pessoa
em questão? E' muito melhor mostrar ao homem, logo ele início,
que ninguém pode fazer mais do que é capaz, nem se poderia exi­
gir m::;.is que isso.
Bem sei que, na prática, aparecerão muitas dificuldades. A
circunstância inevitúvel ele que a avaliação pela grandeza obje­
tiva de produção já apareça, sob a forma de notas, na escola, é
uma dessas dificuldades. E' natural que não se deixe passar de
ano um aluno que não atingiu os resultados escolares, ainda que
se esteja convencido de que ele fez o melhor que pôde. Não é pre­
ciso que nos detenhamos mais neste assunto, mc3mo porque te­
remos oportunidade, noutras ocasiões, de falar novamente dêlc.

5. Ideais verdadeiros e falsos

Deixemos, agora, a digressão a que fomos obrigados e volte­


mos ao próprio objeto elo presente capítulo - os ideais de car.í­
ter. Do exposto se conclui que a forma mais geral do "verdadei­
ro" ideal de c::n·áter deveria ser: plena realização de torlas as
possihiliclades positivas existentes na própria pessoa. Antes, po­
rém, ele falar nas formas especiais do ideal de carúte1·, sua for­
mação e seu modo de agir, devemos dizel' ainda alguma coisa sô­
bre as possibilidades colocadas na pessoa e sua atualização.
Quais e quantas são essas possibilidades, não se pode dizer
de antemão. Só a tentativa de realizar esta ou aquela, pode escla­
recer sua presença. l\Iesmo assim, o insucesso de tal tentaliYa po­
cle lernr-nos a erros: raramente, quando o insucesso é positi\'o,

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D1gl1alozadocornC�rnScanner
PSICOLOGIA DO CARÁTER 1G5
mas comumente, no caso de um resultado negativo . Porque êste
último resultado pode ser devido, tanto à atualização de obstá­
culos interiores (principalmente o desânimo) como à ausência
das faculdades previstas. Também aqui é necessário um estudo
pormenorizado. A única conclusão que podemos tirar, por en­
quanto, destas experiências é que um julgamento sôbre a presen­
ça e, mais ainda, sobre a ausência ele detcrminaclas possibilida­
des é extraordináriamente difícil e que, portanto, muitos ele tais
julgamento& são errôneos, quando feitos precipitadamente. Acres­
centemos que isso é verdadeiro, tanto para as possibilidades po­
sitivas como para as negativas, sendo que, nestas últimas, as coi­
sas se acham invertidas, porque, em geral, se é inclinado a acei­
tar mais depressa a presença de "más disposições".
Esta afi1·mação de que as possíbilidades subjacentes são di­
fíceis de conhecer é válicla, não só para o observador e o educa­
dor, como, em maior grau, para a própria pessoa, ao julgar-se a
si mesma. Já mostramos, antes, a dificuldade fundamental, acen­
tuando, com SCHELER, seus caracteres secundários em relacão a
um observador estranho.
Na verdade, a experiência já nos mostrou, centenas de ve­
zes, que há, no homem, possibilidades insuspeitadas que se mani­
festam a nós, inesperadamente, em detel'minadas condições. Que
transformações não foram operadas no homem por um amor ver­
dadeiro, que obras não foram realizadas por um homem vulgar
sob o efeito do entusiasmo e quantas vezes não fomos surpreen­
didos por uma ação "em que não acreditaríamos"?
Havia em nosso hospital de campanha, um convocado polo­
nês, que era considerado um inútil e nunca tinha mostrado incli­
nações ou desejos de sacrifício e altruísmo. Mas, quando irrom­
't)eu um incêndio na aldeia, ele foi o único a precipitar-se numa
casa incendiada, para salvar das chamas uma criancinha.
Muitos homens acreditam que já "esgotaram", por assim di­
zer, tudo o que tinham em si e "não podem ir além" (no sentido
moral, principalmente). Acreditam não poder ser melhores e
mais amáveis, ou, de modo geral, não poder ser outros. São o que
são. Assim pensam e assim pensam deles os outros, porque vêem
que este homem, já há muitos anos, não se modifica e é sempre
o mesmo. Sim, é um bom homem, não faz mal à ninguém, cumpre
corretamente suas obrigações, mas nada tem de especial - nada
mais espera de si e de seus semelhantes. Quão espalhada é esta
opinião! Como parece quase evidente! Entretanto, é uma opinião
inteiramente falsa. E' tão falsa, que é contraditada quase diària­
mente. Contudo, os homens perseveram nela. Por que se aferram
tanto a esta concepção falsa, não é fácil saber. Um dos motivos
é que a crença na constância e na imutabilidade do próximo (e do
pr6prio eu) parecem dar lugar a uma determinada segurança.

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lGG RUDOLF ALLERS

Como a confiança nas leis naturais e, de modo geral, na regula­


ridade do mundo, é necessária para que distribuamos nossa vida
e possamos fazer planos, precisamos ter confiança na constância
e na possibilidade de ser avaliado o nosso próximo (ou, pelo me­
nos, acreditamos precisar dessa confiança). A vida nos parece­
ria difícil se a considerássemos uma aventura, uma série de acon­
tecimentos ínteiramente imprevisíveis, se tivéssemos que reco­
nhecer que a cada instante deveríamos estar na expectativa do
que viesse, sem saber o que aconteceria. (Na verdade, porém, a
vida é uma aventura e, como tal, deve ser vivida e suportada -
"estar alerta é tudo"!) Outro motivo de tal atitude deve ser pro­
curado no fato de que os homens acreditam, por uma espécie de
bazófia, conhecer alguma coisa sôbre a realidade e as leis do uni­
verso. Do mesmo modo que, na desilusão se oculta uma revolta
secreta contra o fato de que os homens e coisas se atrevam a com­
portar-se de modo diverso do que pensávamos ("Se as coisas ti­
vessem corrido direito, eu teria acertado!"), assim também, na
opinião acima mencionada, há, no fundo, uma exigência: que as
regras, reconhecidas por nós nos fenômenos, sejam invioláveis.
Isso se origina, de certo modo, daquele êrro fundamental, de que
já falamos - o esfôl'ÇO para igualar-se a Deus .
De qllalquer modo, os homens têm sempre esta fé e nela per­
manecem, por mais que ela seja contraditada. Ainda mais: não é
apenas a experiência que nos mostra, constantemente, a preca­
riedade dessa opinião: podemos provar também sua falsidade in­
trínseca.
As possibilidades de uma pessoa, os valores ainda não reali­
zados, que se acham nela, não elevem ser imaginados como "cama­
das superficiais" ele seu ser, mas devem ser procurados no fundo
da pessoa, em seu núcleo essencial específico e último. Dali, da­
quela região profunda, inacessível à reflexão e à auto-observaciio
e apenus pressentida por um observaclor exterior é que os valo;·es
vêm à realidade, atualizando-se. Que conheçamos menos, sôbre
isso, do que os que nos observam é o que nos mostra uma experiên­
cia comurnente feita. Nm,sa própria conduta snpreende-nos, muitas
vêzes, mais que aos outros. Mui.tas vêzes, alguém nos consegue con­
vencer de que podemos fazer um acoisa que não julgávamos a
nosso alcance. E essa pessoa acerta! A exortação, que os ec!uca­
dores \�teligentes dirigem, muitas vêzes, à criança - "Tenta! Tu
porler:í.R fazê-lo! Eu sei que podes" - dá, em gernl, bom resultado.
(Quando o eclncador merece a confiança rln crianca e esta o com­
preende, reconhecendo, m;sim, suns possibilidades· realmente exis­
tentes, m:cla é mais apropriado para encorajar a criança do que
uma exortação).
Como disse, a opini:w, de que aH po.<ssibilidades de um homem,
cu as no,;:�as próprias se esgotaram, é essencialmente falsa. Para

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 167
tanto, não é preciso mostrar o fato de que, sob a ação da Graça,
pede surgir, num homem, o inesperado. É provável, em verdade,
que a Graça complete apenas o já existente ("gratia non tollit na­
turam, sed perficit"). Mas, é também possível que seja criada urna
coisa inteiramente nova. Portanto, o argumento não tem uma de­
cisiva fôrça probante. Entretanto, a vida individual, como a da
humanidade através ela História (começando esta, bem entendido,
com o pecado original) não é outra coisa, em ge:ral, senão uma
realização sucessiva de todos os valores colocados conw possibili­
da,cles. A passagem da potência ao ato - para usar os conceitos
da Escolástica - é a essência e o sentido da vida humana. Estou
convencido de que a tensão entre o já realizado e o a realizar, sob
a forma de possibilidade de valores que permanecem no núcleo da
pessoa, esta "queda de valor" como a denominarei, constitui o ver­
dadeiro motor, a verdadeira fôrça propulsara, por meio da qual é
mantido o movimento da vida. Quando um homem realizou, até
o fim, as possibilidades de valor que trazia dentro de si,_ pode
cessar sua vida, pode morrer. É por isso, a meu ver, que tantos
rnntos morrem moços. Consideremos, por exemplo, a vida de
São Luís Gonzaga, São João Berchman, Santa Teresinha do
Menino Jesus ou suas irmãs de Ordem - santas não canonizadas,
como Maria da Santíssima Trindade, Angélica de Jesus e tantas
outras. Não teremos a impressão inevitàvel de que tôdas estas
pessoas nada mais tinham a fazer sôbre a terra e que realiza­
ram tôdas as suas possibilidades? Se tantos dêsses jovens
santos morreram no meio de terríveis sofrimentos, não é porque
esta permanência na dor e na enfermidade era a última de suas
realizações! Devemos admirar-nos, mais uma vez, da finura e
profundeza de uma expressão da linguagem. De fato: dizemos
dêsses homens, que "tiveram uma realização precoce (früh
Vollendete) . mes realizaram o que nêles havia pan·. realizar . São .
portanto, completos porque tôdas as possibilidades do valor, que
havia nêles, se tornaram \'.alares reais. Sem dúvida, a recíproca
não é verdadeira; a vida de um homem não termina, quando êle
realizou tôdas as suas possibilidades de valores. A maioria das
vidas humanas entra em declínio, sem realizar t.ais possibilida­
des. Enquanto um homem vive, há, nêle, valores a realizar.
Portanto, enquanto viver um honiem, êle não poderá ·dizer de si
(nem os outros dêle), que nenhuma coisa nova e inaudita possa
surgir dêle . Não são apenas as comoções extraordinárias, como
o entusiasmo, o perigo e o verdadeiro amor, que podem fazer
surgir, num homem, algo inesperado. Acontecimentos bastante
triviais têm o mesmo efeito. A doença, palavras fugazes ditas
por alguém, uma experiência que nada tem de extraordinário
podem produzir uma agitação, sem que se saiba por quê.

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D,grtalizadocornCamScanner
168 R.UDOLF ALLERS

Como, porém, ninguém pode dizer realmente, nem determinar


com exatidão, tudo o que existe no interior de uma pessoa, é ex­
traordinàriamente difícil propor-se um ideal adequado a tal pes­
soa e às condições mais profundas de seu eu. A dificuldade não
seria tão grande, se se esperasse que o homem formasse êsse ideal
segundo sua própria evolução e experiência de si. Isso, porém, se
dá raramente, ou nunca. Os homens aderem às suas imagens
ideais, inconsciente, e o fazem tanto mais quanto as raízes últi­
mas destas se estendem até à infância e, mesmo, à primeira in-­
fância e foram ancoradas em sua vida, numa ocasião em que a
crítica não operava e em que a receptividade era máxima. Os ho­
mens se mantêm também em seus ideais e nas imagens ideais de
si mesmos, porque mudá-los seria uma tarefa gigantesca, equiva­
lentes, muitas vêzes, a uma mudança radical de orientação. Dêsse
modo teriam de ser vencidos, não só a inércia anterior, a ten­
dência à conservação e os hábitos, como também diversos obs­
táculos exteriores.
Portanto, é, pelo menos, imprudente, pôr ante os olhos de uma
criança, já muito cedo, uma figura ideal bem determinada e de
contornos bem nítidos, a que ela se deva igualar ou esforçar-se
por atingir. Corre-se fàcilmente o perigo de levar uma vida a uma
direção para a qual não foi feita. Os valores relativos a essa forma
ideal não serão realizados, já que as possibilidades da pessoa não
estavam naquela direção. Por outro lado, também, outros valo­
res são sufocados.
Poder-se-ia pensar que não é muito difícil achar uma saída
para tais dificuldades, indicando uma idéia, que, mais nos últimos
decênios do que hoje, foi muito defendida e posta, por assim dizer,
como o fim bem-aventurado de tõda educação. Já que não se
sabia nem se podia saber, quais seriam as possibilidades de um
homem, nada mais restava - pensavam os representantes de tal
idéia - senão educar o homem de modo a que tivesse, como única
finalidade, o "desenvolvimento de sua própria personalidade".
Se não fôssem postos obstáculos a êsse desenvolvimento, mas, ao
contrário, favorecido qualquer desenvolvimento que parecesse sur­
gir, a formação de um ideal de caráter, apropriado à pessoa e
sua natureza, se faria, por assim dizer, automàticamente.
Por mais plausível que possa parecer, tal idéia é errônea.
E na verdade, ela contém outros erros.
De modo geral, o ponto de vista ora exposto pode ser co11si­
derado um produto do idealismo, que, desde a Renascença (e já
nos fins da Idade Média), se vem propagando cada vez mais e
tem ocasionado uma série ele desagradáveis fenômenos parciais
e secundários. Como ninguém é tão louco, a ponto ele não se im­
portar com o hem da coletividade, mesmo porque seu própl'io
hem-estar não poderia subsistir sem o bem comum, aquela opi-

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D1g1talizddo<-ornCarnsc,inn
cr
PSICOLOGIA DO CARÁTER 169
nião só pode ser mantida, se se acreditar que o melhor desen­
volvimento possível de cada indivíduo assegurará também o
bem-estar da coletividade. Assim, julga-se que, de certo modo, os
interêsses egoísticos ele cada um se contrabalançam e equilibram,
de modo que, por uma espécie de resultante mecânica de fôrças
pode originar-se um estado favorável do conjunto da coletividade.
Não poderemos fazer, aqui, uma crítica dessa concepção. Baste­
-nos dizer que essa orientação pedagógica se baseia numa deter­
minada concepção do universo e também numa correspondente
posição político-econômica.
Já vimos que, em todo homem, age, desde o início, a vontade
de poder, de tal modo que, sem a correção correspondente da
vontade de sociedade, aquela vontade se desenvolveria até o in­
finito. Portanto, se fôssem removidos, no desenvolvimento de um
homem, todos os obstáculos prejudiciais ao "livre desenvolvimento
da personalidade", a tendência primitiva da vontade de poder
tomaria a dianteira. Não se pode, pois, falar num verdadeiro
desenvolvimento de tôdas as possibilidades subjacentes no ho­
mem, pois que uma delas não achará obstáculo algum, e tôdas
as outras serão esmagadas. A idéia de uma ediwaçiio livre e sern
resfrições, para um desenvolvimento completo da personalidade,
mostra-se, portanto, contraditória em si mesma: o resultado é
inatingível em virtude dos próprios meios empregados. Teremos
ainda ocasião de explicar, como êsse ideal de autarquia, de domí­
nio do próprio eu - quer seja pôsto pelo educador ou pelo pró­
prio indivíduo - é pouco apropriado para resolver satisfato­
riamente os problemas da vida e fornecer uma existência sem
atritos. O que a experiência mostra, pelo contrário, é que a im­
posição de uma finalidade, no sentido de tal ideal, trará, cedo ou
tarde, um conflito com as fôrças e leis da realidade e, finalmente,
tornará o indivíduo ainda menos capaz para a vida.
Por outro lado, é sem dúvida exato, que o desenvolvimento
das possibilidades existentes numa pessoa (as positivas, natu­
ralmente) constituir uma tarefa da educação e, mais, uma tarefa
moral da própria pessoa. Sem dúvida, não será a primeira ou a
maior das tarefas, porque, nem para a reflexão natural, nem
para a que se funda na religião, o indivíduo pode ser considerado
o fim mais elevado. Uma autonomia moral dêsse tipo é errônea,
traz péssimas conseqüências na vida e não pode ser justificada
filosoficamente. As inúmeras dificuldades daqueles que vêem no
aperfeiçoamento próprio, o fim mais importante da vida reli­
giosa, provam que tal atitude é incapaz de fornecer um desen­
volvimento calmo e bem sucedido e, ao contrário, serve justa­
mente para perturbá-lo. O padre BICHLMAIER, S. J. mostrou uma
vez, com razão, que o aperfeiçoamento próprio nunca pode ser o
fim primordial da vida religiosa e que êste deve estar, pelo con-

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D1g1talizddOcomCamScanner
170 RUDOLF ALLERS

trário, exclusivamente em Deus e no cumprimento de seus man­


damentos. Porque o homem não pode ser, de modo algum, colo­
cado como um absoluto, ou considerado um fim em si mesmo,
como já nos ensina o texto do "Fundamentum", no livro de exer­
cícios de Santo Inácio.
Deixemos, portanto, de lado, aquêle ideal de "personalidade"
autárquica e autônoma e pesquisemos os outros ideais de caráter,
sua justificação, seu efeito na vida do indivíduo e sua origem.

6. Grandeza e heroísmo

Encontramos, em primeiro lugar, um grupo de formas de


ideal, que mostram um parentesco próximo com a que tínhamos
estudado e, pode, mesmo, conduzir a ela por graus insensíveis.
Referimo-nos a todos aquêles ideais que estão compreendidos, de
certo modo, sob os títulos: grandeza, fôrça, heroísmo. Também
dêles, pode ser dito que não são apropriados, de modo algum, a
formar uma vida subjetivamente agradável e objetivamente útil.
Mas, para que nenhum malentendido se introduza neste ponto, a
meu ver importante, parece necessário que êle seja explicado
mais minuciosamente.
Aqui se verifica, novamente, a triste imprecisão das palavras
usadas na linguagem comum, ou de sua significação. Aquelas que
teremos de utilizar agora, são, como tantas outras, tão gastas e
usadas e tiveram seu sentido próprio tão alterado e desfigurado,·
que o fato de empregá-las constitui certo perigo. Outra pessoa
poderia entendê-las de modo diverso. E, embora os diversos sen­
tidos difiram, de início, muito pouco, as conclusões, obtidas com
tais palavras, podem apresentar divergências enormes. Observe­
mos aqui que é errado, por êsse motivo, querer eliminar todos os
estrnngeirismos, principalmente em linguagem científica. De fato:
o estrangeirismo, sendo menos usado do que as palavras da pró­
ppria língua, conserva melhor seu sentido original. A história da
cultura mostra-nos claramente que palavras novas, formadas e
introduzidas na língua alemã, perdem ràpidamente (como em
qualquer outra língua) sua univocidade, depois de terem caído na
linguagem comum. Além do polimento, que sofrem, na lingua­
gem cotidiana, os contornos conceituais, contribui também para
a modificação <lo sentido primitivo, a circunstância ele que muitas
r,abvrns são usadas, de início, em sentido metafórico. Tais me­
táfonu; são, enlfto, associadas naturalmente a um terceiro sen­
tido comum, enb·e o sentido próprio ela palavra e o designado
pela metúfora. Êsse ti-aço de união, que se apresenta claramente
a<J espírito da primeira vez, não é, porém, visto do mesmo modo,
11cm com a mesma precisão (e, talvez, nem mesmo seja visto)

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 171

por todos aquêles que empregarão depois a mesma expressão.


Acontece, então, que a metáfora não será mais, em geral, enten­
dida no sentido inicial e, por conseguinte, que o que se quer de­
signar pela expressãj metafórica será visto, também, de outro
modo. As conclusões ulteriores, tiradas a partir dêsse sentido
modificado, devem, pois, necessàriamente orientar-se numa dire­
ção inteiramente diversa, não convindo mais, em geral, ao que é
designado. Nisso está o perigo de tôdas as metáforas e compara­
ções. Contudo, não podemos evitá-las, porque há muita coisa,
principalmente no domínio espiritual, para a qual não dispomos
de uma designação direta. Por isso, deve-se ter em vista o perigo
das expressões metafóricas e, de vez em quando, fazer uma revi­
são de tais expressões.
Parece, pois, absolutamente necessário fazer, para. os con­
ceitos de grandeza e fôrça - que serão empregados para designar
propriedades caracterológicas - uma revisão ou retôrno ao sen­
tido primitivo, uma espécie de reatualização de seu conteúdo.
É claro que a fôrça é, de início, um atributo corporal. Por uma
transposição, a palavra designa, depois, também as coisas que
opõem ao emprêgo dà fôrça física, os obstáculos que, para serem
vencidos ou anulados, exigem o emprêgo daquela mesma fôrça.
É assim que falamos de uma madeira "forte". Em expressões
como: "um vento forte" e outras, há, por outro lado, uma perso­
nificação do vento, ou a representação de uma fôrça natural.
Ambas as fontes de metáfora interpretam-se aliás, nas expressões:
"uma forte corrente", "uma forte queda d'água", etc., como se
pode ver claramente. Podemos ter uma idéia do grau de afasta­
mento do sentido inicial, quando vemos a identificação das pala­
vras "forte" e "gordo", como quando se diz: "Agora estás mais
forte". Empregada em relação ao caráter, ou às propriedades de
uma pessoa, a fôrça tem significação dupla. Ela designa, tanto a
capacidade de vencer a soposições que se apresentam ao indiví­
duo, como a de poder resistir, permanentemente e com êxito, às
fôrças que agem sôbre êle do exterior.
Depois de nossas explicações no primeiro capítulo, é claro que
a oposição a vencer é, principalmente, a do próximo. O homem
aparece então sob a forma do "homem forte", tão utilizado quan­
do se quer pôr ordem em qualquer engrenagem humana, desde
uma fábric aaté uma nação. Por isso, a fôrça designa, inicial­
mente, uma atitude ou um ideal de caráter, que se ajusta perfei­
tamente ao tipo do "homem poderoso". Já vimos, porém, que êsse
ideal deve ser considerado falso, porque se baseia unicamente
numa das tendências fundamentais do homem, sendo, por isso,
contraditório consigo mesmo, levando a conflitos com a realidade
e contraditando, desde logo, o mandamento do amor, já que, em·
tal atitude, nosso semelhante é rebaixado à co·nctição de um sim-

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172 RUDOLF ALLERS

ples meio de nossa finalidade egocêntrica. Como, porém, o se­


gundo sentido de fôrça - capacidade de se opor às fôrças exte­
riores - está associado com o primeiro e é sempre exigido no
caso de um ideal que possa ser considerado bom, acontece que a
significação de "fôrça'' no primeiro sentido (que é, como vimos,
condenável) adquire um brilho de valor moral em conseqüência
da aludida associação. E isso se dá, ainda mais, nas épocas em
que prevalece, de modo geral, a atitude individualista, quando o
ideal de desenvolvimento próprio, acima mencionado, representa
papel importante.
Há, porém, mesmo no segundo significado, quando conside­
rado e msi mesmo, um certo perigo. Porque aqui, como em casos
análogos, pode acontecer fàcilmente que o puro motivo formal da
oposição receba o acento predominante, ao invés de se considerar
que o valor da oposição só pode ser dado em relação àquilo a
que se refere. É claro que a resistência à sedução e à tentação
constitui uma atitude de grande valor moral. Mas resistir, apenas
por resisti1-, como quando um homem se opõe às tentativas exte­
riores de modificar sua orientação na vida, embora essas alte­
rações o levem a um caminho orientado para valores mais eleva­
dos, como êle próprio reconhece muitas vêzes - eis o que signi­
fica justamente o contrário de um mérito moral.
É o efeito do êrro fundamental do subjetivismo, fatal em
tantos casos, que desconhece a existência de valores colocados
acima do valor próprio da pessoa. Deve-se mencionar também,
a êste respeito, o conceito de "fidelidade para consigo mesmo".
Esta fidelidade só é um valor, quando se refere a valores positi­
vos. Em si e por si, sem que seja levado em conta o valor que visa
atingir ou preservar, ela não é fidelidade. Se o observarmos de
perto, êsse ideal de fidelidade para consigo mesmo, revela-se,
quase sempre, um disfarce da aversão à mudança, da desconfiança
em sua própria capacidade de satisfazer exigências mais eleva­
das, da timidez, diante delas, enfim, do desânimo. Êle é, pois, a
expressã ode uma insufiicente consciência do valor próprio.
A fôrça e a fidelidade para consigo mesmo não são, portanto,
tomadas em si mesmas, ideais de caráter. Só adquirem significa­
ção e valor quando referidas a outros valores. Não é pois correto,
para a educação, tentar desenvolver a fôrça num homem, ou pôr,
diante de um jovem, como exemplo a imitar, um representante
qualquer dêsse tipo. Poder-se-ia dizer: com um conhecimento
razoàvelmente profundo da hierarquia objetiva dos valores que
estão vivos num homem, que dêles se apossa realmente, a "fôrça"
- no sentido de um esfôrço para realização dêsse valores e
também de urna repulsa às influência contrárias - terá menos
oportunidade para apresentar-se.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 173
Considerações idênticas podem ser feitas sôbre o ideal de
grandeza. Ela é ainda mais perig-osa que a fôrça. O momento
da fôrça pode ser vivido e está associado a uma revelaçfw ativa <lr,
homem; há nêle um imperativo de ação, um convite ii. coraifcm
pessoal e uma necessidade de que a própria pessoa tome urna
posição. A consciência da fôrça é, por outro lado, inteiramente
independente do puro êxito exterior, uma vez que é meclicla pelo
grau de oposições a vencer. Mas a grandeza está, pelo contrário,
dificilmente ligada à própria vivência: ela depende muito mais ela
opinião dos outros. O atributo de grandeza não é, cm geral, uma
coisa de que nos possamos revestir; êle nos é dado pelos contem­
porâneos, ou pela posteridade. Porque devemos compreender bem
claramente que a grandeza, como ideal de caráter, nunca significa,
por certo, a grandeza da produção, mas apenas a grandeza do êxilo
junto aos outros. Neste sentido, a grandeza e a fama são conceitos
equivalentes.
Portanto, a grandeza é alguma coisa que não pode ser visada,
imediata e inicialme11te, como fim proposto. Ocorre aqui o mesmo
que com outras coisas. A satisfação, a felicidade e a perfeição
também não se podem visar imediatamente: elas são dadas, como
prêmio, ao homem que cumpriu satisfatoriamente determinadas
condições objetivas da vida.
Na verdade, alguém pode, com razão, julgar-se "um grande
homem", mesmo quando não é reconhecido como tal pela maioria.
Conhecemos, pela História, expressões de homens emh1entes, que
não tiveram êxito quando vivos, mas previram com segurança, a
admiração da posteridade. Tufas êsses homens não se preocupam
de ser grandes, mas de produzir alguma coisa, de servir à hunm­
nidade com suas obras. No fundo, eram servidores e cumpridores
de uma missão e não aspirantes ao Panteão. Nüo entrará 110 círculo
dos imortais aquêle que pensa igualar-se a êles, mas, apenas,
aquêle que serve a uma obra e a uma tarefa.
Se apresentarmos, às crianças e jovens, as grandes figuras
históricas, como foram na verdade - isto .é: como servidores,
humildes realizadores de um trabalho que a elas se impunha e
assim foi realmente a maioria delas - então, nada haverá a
opor a tal ensino de ideais. Quando, porém, se coloca num 11ri­
meiro plano o motivo da "Grandeza", faz-se nascer uma falsa
ambição, que, não sendo satisfeita na maioria dos casos, produ­
zirá resultados estranhos. Sem dúvida, Heróslratos conseguiu o
que desejava: ainda hoje, depois de tantos séculos, conhecemos
o nome do homem que incendiou o templo de Diana, cm Éfeso.
lVIas conhecemô-lo, como um exemplo horrível.
O mesmo se dá com o ideal de heroísmo. A atitude heróica só
tem um valor imanente, pela idéia em vista da qual se executa.
Ao julgar os heróis trazemos conosco, a meu ver, restos de admi-

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174 RUDOLF ALLERS

ração de épocas culturais já passadas, sem compreender que,


hoje em dia, ela perdeu sua significacão. Não se deve esquecer,
que os próprios ideais são parcialmentê condicionados pelo tempo,
ou, pelo menos, pelas formas de vida em que o homem pi.·ocura
realizá-los·. O conceito de "cavalheirismo", tal como o emprega­
mos, parecerá, em muitos pontos, enfraquecido e diminuído, se
fôr comparado ao que representava, nos século XI e XII. Poder­
-se-ia dizer, talvez, que êsse ideal se tornou cada vez mais pnro,
que seu conteúdo moral e sua significação indicam hoje, clara­
mente, uma atitude inte1·ior e que êle perdeu muitos traços secun­
dários, que não lhe pertenciam essencialmente.
Em nosso conceito de heroísmo estão nin<la viv:rn as imngem1
dos Antigos. Contribui, talvez, para isso, tanto a nossa just� ad­
miração pelos períodos gloriosas e as obras-primas do classicisrr.v
grego-romano - de que está impregnada nossa cultura I'! que se
revela, mesmo naqueles que não tiveram uma educaçi"to huma­
nística - como a representação dos antigos heróis na arte elos
anos posteriores. E' possível também que aquêle ideal ele heroís­
mo d::i.s culturag passadas corresponda a certos traços primitiYos e
naturais do homem. Contudo, sentimos, ainda hoje, certa impro­
priedade no ernprêgo elo conceito de heroísmo, quando om·imos
certas expressões tornadas usuais, como: "heroísmo passivo", "he­
róis da ciência", "heróis da fé", etc.
Em sua própria essência, o herói mostra claramente, que res­
ponde por seu ideal com sua própria pessôa, mesmo que ,:eja ne­
cessário aniquilá-la. E só êsse ideal justifica, como já vimos. o he­
roísmo. Quando, pois, em certas circunstâncias, consideramos o
criminoso como um herói, é porque consideramos seu procedimento
de modo apenas formal, emprestando-lhe, por assim dizer, uma
crença justa. Provam-no as inúmeras figuriu; de "nobras bandi­
dos", que aparecem na boa literatura (mais ainda, porém, na má)
e a inclinação da lenda popular a atribuir, às figuras do mundo
do crime, tôda a sorte de valiosos traços morais. ( Há também ou­
tro motivo, sem dúvida; contudo, o acima mencionado tem um
papel importante).
Mas, ser herói é um ideal bastante impróprio para o desen­
volvimento de urna pessôa, pois não está só em seu poder o afir­
mar-se como herói. Outras condições ambientes, além do estado
pessoal, são também necessárias. Poder-se-ia dizer, em linguagem
comum: o heroísmo não é uma carreira; não se pode "estudar para
herói". Quando, há alguns anos, incendiou-se o maior teatro de
:Madrid e centenas de pessoas foram vítimas dessa catást1·ofe,
houve um porteiro que, por várias vezes, conduziu inúmeras pes­
soas através de uma escada lateral, levando-as para a rua; final­
mente, numa dessas viagens, ele pereceu. Foi um herói, por certo:
contudo, não acredito que êste homem simples tivesse, alguma

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 175

vez, sonhado com o heroísmo. ll:le fêz o que julgava seu dever; e
como a idéia de Dever foi mesmo em tal situação, o fio condutor
de seu comportamento, êle tornou-se um herói. Pode-se mesmo
afirmar, que um homem qualquer pode tornar-se, automàtica­
mente, um herói, desde que as circunstâncias o exijam e desde que
coloque o ideal acima de sua própria pessôa, a realização acima do
sucesso e o dever acima de seu próprio instinto de conservação.
A guerra tem mostrado que alguns homens, em cujos pensamen­
tos e sentimentos o heroísmo nunca representou papel algum, po­
dem tornar-se heróis. Em muitos deles, o heroísmo resultou de
pensamentos de dedicação e exaltação especiais, menos 'heróicos",
relativamente, que os dos outros.
O ideal heróico traz, para a formação da vida do homem, tôda
a sorte de perigos. f:le penetra e se encrava bem no fundo da
alma, porque concorda com a tendência primitiva do homem para
a vontade de poder. :itle pode tornar-se uma exigência do homem
e de seu destino, estendendo-se por tôda a vida. :ttle se transforma
numa atitude permanente de tal modo que só através da atitude
heróica pode o homem compreender o sentido integral da vida e
a conservação do próprio valor. A realidade não proporciona, con­
tudo, muitas oportunidades de conservar sua atitude heróica. Por­
que o heroísmo cotidiano da paciência e do amor não tem muita
importância aos olhos dessas pessoas. Levados pela necessidade de
mostrar seu heroísmo, mesmo quando o destino invejoso se opõe
a isso, estes homens se refugiam na fantasia, ou recorrem a tôda
sorte de artifícios e manobras, a fim de aparentar um heroísmo
simplesmente fictício. Conheceremos, mais tarde, um desses tipos
- o do homem levado ao martirio por essa necessidade de heroís­
mo (um martírio aliás supérfluo, pois que não se baseia em exi­
gências objetivas). O martírio é, como nos mostram os contos in­
dianos, o heroísmo dos fracos; o herói indiano que, a mercê do
inimigo, não pode mais mostrar seu heroísmo pelo triunfo, mos­
tra-o no poste do suplício. Também aqui predomina a influência
da posição de extremo subjetivismo, já citada a propósito do ideal
de fôrça: a posição dos mártires parecerá digna, em si e por si,
ao invés de ser levado em conta, como base de uma apreciação, o
valor pelo qual êles sofrem. Outro resultado da necessidade de he­
roísmo a qualquer prêço pode ser visto naqueles homens que acei­
tam sempre uma "causa perdida". Admira-se em geral os homens
que "defendem uma posição perdida". Isso se deve, em parte, a
meu vêr, à ilusão de uma metáfora tirada das situações da guerra,
onde tal atitude tem um bom sentido. Esquece-se que a posição
perdida é a única em que a derrota pode trazer uma fama igual
ou maior que a da vitória. Por isso, homens que não confiam na
vitória, embora desejem o papel de heróis, sentem-se atraídos por
tais posições, especialmente quando a derrota ( como se dá nos ca-

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176 RUDOLF ALLERS

sos da metáfora) só pode ocasionar certo sacrifício, na maioria


das vezes fictício, não chegando, em caso algum, a um sacrifício
da vida. Muitos homens, também, se dão uma forma de vida que,
de certo modo, "ultrapassa suas proporções". Não me refiro, na­
turalmente, às proporções de suas possibilidades, mas às ele suas
fôrças reais. Assim se explicam muitos excessos esportivos.
Como, segundo o que foi dito, o valor moral do heroísmo só
em parte se baseia no próprio heroísmo, e depende mais ainda do
valôr, em vista do qual é realizada a ação heróica, não devemos,
na educação, apresentá-lo como ideal incondicionalmente digno,
nem clar-lhe valôr excessivo. Não é o modo pelo qual o herói morre,
mas aquilo por que morre, que deve chamar a atenção do jovem.
Correu mais sangue nobre nas areias do Coliseu romano, do que
em tôdas as aventuras da Távola Redonda. Sucumbiram mais he­
róis nas lutas religiosas do México, do que na exploração do Polo
Norte.
O que importa não é, pois, a fôrça, mas a vontade de atingi1·
urn valor mais alto; não é a grandeza, mas seu objetivo; não é o
heroísnw, mas o desprnzo ela própria pessôa. Fama, importância
e reconhecimento não têm, em si mesmos, qualquer valor. Não se
devem, porém, desejar a atenção para si mesmos.

7. Sôb1·e a humildade

Em relação ao que acima dissemos, não é que seja propria­


mente falso, ou proibido, desejar obter reconhecimento por parte
dos outros. Tal atitude é justa, quando o reconhecimento é pro­
curado como prova, ou confirmação, de nossa solidarieclnde com
todos os homens e como o sinal de uma comunidade viva. Só a pou­
cos é cl:Hlo lutar, sinceramente, pdo desprezo e a humilhação. Mas
êsse ideal, que parece exigido em tantos escritos ascéticos - aliás,
muitas vezes, mal interpretados - contém também perigos con­
sideráveis.
No já citado "Fundamentum" dos "Exercícios" de SANTO
INÁCIO, exige-se que o homem se torne indiferente ("indifferenter
se faciat") à felicidade e à infelicidade: tanto desejando a riqueza
como a pobreza, a honra como a desonra, a saúde como a doença.
Não se trata, porém, propriamente, de desejar a pobreza, a de­
sonra e a doença. A opinirio do gi·ande santo é que não se deve de­
sejar nada, absolutamente nada. Acredito que Santo Inácio exigiu
esta "indiferença", porque conhecia os perigos imanentes à colo­
cação dos mencionados fins. Se eu pudesse vencel' iriteiramente
meu orgulho - observava BENJAMIN FRANKLIN em seu diário -
tornar-me-ia, talvez, novamente orgulhoso de minha humildade.
Num livrinho anônimo, aparecido há alguns anos, "Formation
à l'humilité", o autor explica que uma certa dose de amor próprio

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 171
�. não só permitida, mas até necessária e que o desejo de reconhe­
eirnento devia ser considerado natural e admissível. De modo ge­
ral, pensar que não se é nada, não é verdadeiro. O que importa é
achar um justo meio, entre a necessidade de atenção a si mesmo
e o amor-próprio excessivo, entre o desejo permitido de reconhe­
cimento e a vaidade errônea. Mas não é fácil perceber êsse meio
termo, o que só se consegue por uma luta constante; é mais cô­
moda, sem dúvida, renunciar a essa luta e fazer-se um nulo. Na
verdade, tinha razão o perspicaz condutor de almas: tal atitude
de desprezo de si e autocondenação não é, muitas vezes, outra coisa
senão uma forma de fuga - não apenas uma fuga àquela luta,
mas a tôdas as outras tarefas da vida. Os homens que mantêm
tal atitude querem, aparentemente, exprimir o seguinte: "Como se
pode exigir ou esperar de mim que produza ou realize alguma
coisa, se sou uma criatura tão mesquinha e sem valor'!" E sua
conduta exprime, por outro lado: "Vós, meus companheiros, át:­
veis ser indulgentes para comigo, aceitar a intenção pelo ato e ser
bondosos para mim, porque, sou um zero!".Quando SóCRATES, na
praça principal de Atenas, viu aproximar-se, com um manto es­
farrapado, um daqueles filósofos que desprezavam o mundo, de­
clarou-lhe: "ó Cleanto l A vaidade está à espreita, através dos bu­
racos de teu manto!"
Quando um tal homem, que pensa nada, valer e afirma nada
cobiçar, caminha de ânimo levantado pelo mundo, cumpre com
exatidão as tarefas da vida, produz mais e trabalha melhor que
os outros, então sua atitude é verdadeira e cheia de valor. Porque
êle encontrou, realmente, aquêle "isolamento" de si mesmo e das
coisas, de que falavam tão bem a mística e a ascética da Idade­
-Média alemã. Mas, quantos dêstes homens existem? A maioria dos
que fazem tais declarações, ou afetam usar comportamento, que a
elas equivale, não é desanimada, estreita, acanhada? Não são, para
os semelhantes, mais uma carga e, mesmo,, um desgôsto, do que
uma alegria? Vi uma série deles que não estavam, de modo al­
gum, bem adaptados às condições ele sua vida, nã.o possuiam
aquela "liberdade dos filhos de Deus" e, acima de tudo, careciam,
em alto gráu, do verdadeiro amor. Pelo contrário tais homens são,
muitas vezes, de sentimentos farisaicos, duros ao julgar os outros
e, numa palavra: sem amor. Afetam uma atitude - diz o anôni­
mo eclesiástico já citado - que é forçada, e· faz que sua piedade
pareça, aos circunstantes, antes repulsiva do que agradável.
Tal ideal, por mais justo que seja em si, mesmo, pode levar
a uma orientação falsa da pessôa, conduzindo-a a um caminho
que não corresponde a seu estado interior, nem às leis do conjunto
do Ser a que pertence. Desse modo, surgem motivos para diversas
e, muitas vezes, importantes distorções do· caráter. O perigo não
está tanto na natureza do próprio ideal é visto e aceito pelo ho-

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178 RUDOLF ALLERS

mem e introduzido no conjunto da vida. Que a materialidade, a


submissão aos valores objetivos pode também determinar a con­
duta pessoal e a posição interior da pessôa - é uma idéia que não
parece acessível ao pensamento infantil nem também de muitos
adultos. Mas que o trabalho para os outros - como serviço à so­
ciedade, como uma espécie de retribuição do que fizeram por nós,
como forma de vida em comum dos homens - se impõe ao indi­
víduo como uma exigência precisa e inevitável, tal idéia, dizíamos,
é acessível à própria criança. E' necessário, porém, uma reflexão
mais longa, para poder compreender a mesma coisa, em relação à
atitude ético-religiosa. Mas, se se apresenta insistentemente às cri-
1).nças, mesmo às maiores, um ideal de renúncia de si, de humilha­
ção, etc., elas o entenderão, em geral, sob o ponto de vista de uma
proeminência pessoal a atingir e portanto, como um objetivo de
sua ambição. A atração por essa interpretação falsa é muito
grande . Ela é favorecida pelo fato de que as crianças vêem nesses
homens que aceitaram a humilhação, o desprêzo de si e tôdas as
atitudes equivalente, por verem nelas virtudes verdadeiras e reais,
os santos agora venerados e apontados como exemplos. Deve-se
compreender que o paradoxo da eleição (já que o homem não se
elege a si mesmo) e da elevação, num homem que es rebaixa a
si mesmo, não é fàcilmente inteligível. Uma menina de dez anos,
a quem eu dava, como exemplo, a humildade da Virgem Maria
- ecce ancilla Domini - respondeu-me: "Sim l Mas ela é a Rai­
nha do Céu".
Tôdas essas coisas só se transformam numa atitude verda­
deira quando, como no caso das relações com os ideais do tipo de
grandeza, são compreendidas como uma atitude, de certo modo,
impessoal. O que tem importância não é o fato de ser eu humilde,
mas o fato de ter sido realizada a humildade. Do mesmo modo,
não importa que eu tenha realizado esta ou aquela obra, mas que
a obra tenha sido realizada. Quase se poderia dizer, que é aciden­
tal o fato de que o indivíduo realize êste ou aquêle trabalho que
lhe foi dado.
Está longe de mim, naturalmente, querer contestar o alcance
moral da formação de tais ideais, ou negar a necessidade de trans­
miti-los às crianças. Só desejei mostrar, com as críticas feitas
atrás, que o importante, antes de tudo, é a maneira como se faz
essa transmissão.

8. Uma objeção

Parece que se levanta, aqui, contra as reflexões apresentadas,


uma objeção fnndamental, que não deve ser deixada de lado, se
quisermos evitar outras más interpretações. E' a seguinte: é claro
que a ação moralmente digna de valor só pode provir de uma dis-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 179
posição de natureza idêntica; mas a disposição é, de certo modo,
um estado da pessôa, ou, pelo menos, um hábito; se, portanto, a
ação segue a disposição (opera,ri sequitur esse) e a disposição está
lígada a pessôa, a formação da pessôa deverá ser o fim mais ele­
vado do homem e, por conseguinte, da educação. Ora, aqui se apre­
senta um dilema: ou a atenção do homem, ao contrário do que dis­
semos, deve ser dirigida para sua própria pessôa, seu modo; ou,
então sendo justas as nossas ob;,ervações anteriores, a educação
não pode atingir seu fim próprio, dada a pressuposição de que a
formação da conduta deve basear-se na da pessôa. Dêsse modo, se
a educação não se dirige para a pessôa, ela perde de vista o seu
fim, mas, se se dirige para a pessôa tornará impossível a própria
Essa dificuldade, à primeira vista considerável, pode ser re­
solvida do seguinte modo. A pessôa como tal não se dá a si mesma
como objeto. Ou, como ensinava a filosofia aristotélica: o sujeite,
nunca pode ser objeto par-a si mesmo. Poderíamos, aqui, apoiar­
-nos em observações anteriores, que afirmavam ser a auto-observa­
ção uma forma posterior, enquanto que a observação de outrem
é uma atitude original e primeira. Mas, será possível a auto­
observação? Apreendemos, nela, fenômenos de consciência, os mo­
dos e maneiras pelas quais se apresentam os objetos - coisas do
mundo exterior, estados das coisas, verdades, valores. Mas a pró­
pria apreensão, o voltar-se do eu para seus objetos, não pode ser
apreendida. Sabemos alguma coisa sôbre isto, vivemos até esta
orientação da percepção, mas, como objeto de reflexão, ela nos
aparece apenas como retomada, como uma apresentação renovada
pela memória - não em sua plenitude viva, mas desbotada, rí­
gida e sem a mobilidade anterior. Se isso é verdadeiro para a con­
duta, que é a atualização do eu, é ainda mais verdadeiro para êste,
que é o centro de onde irradiam tôdas as ações. Nunca o eu se po­
derá tornar objeto para êle mesmo. (Quanto à pessôa, êle será.
talvez algo mais do que aquilo que aparece como nosso eu em tôda
vivência, embora de modo vago). Se o eu olha para si mesmo (ou
acredita olhar), seus olhos encontrarão apenas uma imagem des­
figurada do que foi e não seu ser atual e presente. Porque o eu está
sempre no lugar de onde se olha e não no lugar para onde se olha.
Veremos, depois, que o fato fundamental da vivência de si mesmo
torna impossível um completo conhecimento de si mesmo. Daí a
necessidade da orientação espiritual. Não desejamos, porém, insis­
tir mais sôbre êste ponto. Para rebater a objeção anteriormente
formulada, torna-se necessária a afirmação de que o eu, ou a pes�
sôa, nunca poderá, de modo geral, dirigir sua atenção para si mes­
mo e que, portanto, o aper-feiçoamento da própria pessôa não se
pode fazer, no sentido em que se entende comumente, isto é: como
um fim que se visa ou se procura atingir. Porque é claro que, para
pôr como um fim na modificação de alguma coisa, deveríamos ter

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180 RUDOLF ALLERS

esta coisa como um dado. Itsse não é, porém, o caso, quando se


trata da pessôa.
Ou, por outras palavras: é impossível visar diretamente a
própria pessôa e sua condição. Assim, acham-se em êrro os que
acreditam poder fazê-lo consigo mesmos, ou levar os outros a fazê­
-lo. E' um dêsses erros que provêm, em parte, de certos preconcei­
tos e de certo dogmatismo em assuntos de psicologia e pedagogia
e, em parte, da preferência pelo aspecto genético das questões, com
desprêso do fenomenológico. A obscuridade, que reina nos pontos
aqui tratados, provém, a meu vêr, do seguinte: nos domínios da
psicologia pedagógica, ou do estudo do caráter, acham-se duas for­
mas diferentes de pensamento, que mal se podem reconciliar, pois
nos falta, até agora, um traço de união entre ambas. Essas duas
direções de pensamento são : por um lado, uma concepção tradi­
cional da natureza do homem, vinda, em parte, da psicologia das
faculdades; por outro lado, uma concepção biológica influenciada
pelos métodos das ciências naturais, que considera resolvido um
problema quando o levou à forma da conexão causal, ao "do que?"
e ao "como?". Do que se precisa, porém, é de uma simples descri­
ção, uma reflexão sôbre o que é simplesmente dado, sem que se
queira quebrar a cabeça com "origens" ou aparelhar-se com prin­
cípios metódicos já formados. Não seria uma conclusão necessá­
ria, se se quisesse dizer: como o aperfeiçoamento moral da pessôa
é um fim - não um fim último, por certo, mas um fim da conduta
humana - tôda educação, que vise formar a conduta, deveria fa­
zer com que todos os esforços se concentrassem imediatamente
nesta pessôa. Essa consequência é, porém, falsa e não é mesmo
possível, porque a pessôa nunca pode ser um dado.
O dilema acima citado se origina, pois, ele uma falsa pressu­
posição e de uma posição errada do problema. Não nos precisare­
mos ocupar mais dêle. Mas em seu lugar aparece outro problema,
que deve merecer algumas observações nossas. E' o seguinte: se
a pessôa não é e não pode ser dada, parece então impossível que
ela trabalhe para seu aperfeiçoamento e reconheça quando e como
um ideal, que se põe diante dela, é adequado à sua condição pró­
pria. Não se tem realmente a impress:io de que, em sua exti·ema
conseqüência lóidca, o princípio da incognoscibilidade essencial da
pessôa exclúi tôda a educação, ou, pelo menos, a auto-educação.
Suspenderemos provisoriamente a resposta a esta questão,
porque há necessidade de introduzir, primeiramente, um conceito
até agora não mencionado, mas que é de grande importància para
o estudo e a educação do caráter - o conceito de consciência.
9. Dig1·essão sôb1·e a cu11sciência
Não nos cabe, aqui, pesquisar todos os aspectos <lêsse difícil
conceito. Não estudaremos, nem sua significação teológico-meta-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 181

física, nem a série de questões psicológicas associadas a es,m sig­


nificação.
Só consideraremos aquêle aspecto rlêssc grancle prolilcma, que
tem uma relação imediata com as qucsUíe.� c11ract.erolúgicas. Para
esclarecer, de certo modo, esim relar;ão, não podemos deixar de
fazer uma rápida incursão pela exi1-1tência efetiva e as manifostu­
ções dos fenômenos grupaclos sob o título de "conscié:ncia".
Fala-se de bôa e má consciência. Quer-se dedgnar, prnvilvcl­
mente, na maioria dos casos, que há, na vivência do homem, a per­
cepção de que urna ação - visada, iniciada e realizada - está ou
não de acôrdo com seu conhecimento moral. Na verdade, essa ca­
racterística, ainda que bastante indeterminada, é:, cm g-cral, con­
veniente. Certos casos, porém, nos mostram que tal formulação
não representa bem exatamente a natureza ela coisa. Pode, por
exemplo, acontecer, que um homem declare ter feito isto ou aquilo,
embora sabendo que tal ação não era permitida ou contrariava
um mandamento, sem que julgue deixar de ter uma boa consciên­
cia. E êle não quer dizer que reconhece, hoje, a contradição entre
a ação e o direito, não reconhecido na época dessa ação, e que, por
isso, sua consciência é bôa. Não: êle quer dizer que agiu conscien­
temente contra um dever e, contudo, sua consciência está calma.
À primeira vista, isso parece incompreensível. Sentimo-nos incli­
nados: ou a duvidar da sinceridade dessa pessôa, ou a considerá­
-la estranhamente leviana, ou a pensar que ela não sabe realmente
o que fêz. Tudo isso parece natural, mas creio que se cometeria
uma injustiça se se quisesse pôr em dúvida a verdade e a certeza
subjetivas daquelas declarações, ou considerá-las como resultado
da leviandade. A determinação da consciência, acima indicada, pa­
rece-me errada num ponto. Porque não se trata, em geral, da con­
cordância ou discordância, entre a ação e o dever, reconhecidos ou
sentidos. O que, a meu vêr, parece fundamental, no fenômeno ela
consciência, é, ao contrário, a concordânc-ia (ou a oposíçâo) entre
a ação atwil e o esta.do da pessôa. Se quisermos incluir, na deter­
minação conceituai de consciência, o aspecto da relação entre o co­
nhecimento moral e a ação, só devemos entender, então, por "co­
nhecimento" aquilo a que chamamos anteriormente "conhecimento
vivido", em oposição ao puramente "teórico". Só êsse conhecimento
pode aparecer corno "a voz da consciência", tôdas as vêzes em que
a ação o contradiz. Tal conhecimento, como qualquer outro, pene­
tra também no interior do homem pela porta do conhecimento ra­
cional, mas não ficou parado, por assim dizer, diante daquela
porta, mas mergulhou até as camadas mais profundas da pessôa.
Só quando as estruturas da ação e da pessôa podem ser postas a
nú é que se faz ouvir a voz da consciência.
Deve-se chamar a atenção para o fato de que esta exposição
�ôbre a voz da consciência só pode ser entendida no sentido de que

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182 RUDOLF ALLERS

ela constitúi uma advertência ou uma repreensão. A voz exorta


para o bem. Por intermédio dela fala "o melhor de nosso eu" (mas
somente quando não está participando na ação). A "boa" consciên­
cia só é determinada, de início, pela ausência da "má". E' o que
se passa com as nossas sensações corporais, que não são percebi­
das enquanto nossos órgãos funcionam normalmente, mas apenas
se manifestam por ocasião de uma perturbação. Assim, a ausên­
cia de oposição não nos fornece qualquer vivência especial; só a
oposição se torna perceptível.
Assim, a oposição se manifesta entre um dever e urna ação,
e num dever que é adequado ao estado da pessôa. A pessóa em
si mesma é, como vimos, necessàriarnente incognoscível. Como
pode ela, então, perceber o dever correspondente a seu estado? De
fato, parece que tal percepção implica um reconhecimento cla­
quêle estado, e, portanto, do ser da pessôa, bem como a compara­
ção entre o dever - apropriado, correspondente ou possível, em
relação a êsse ser - e a realização atual da ação. O julgamento
moral da própria conduta, expresso pela voz da consciência, não
parece então conter outra coisa, senão uma relação entre o dever
adequado à pessôa e o princípio da ação, ou o princípio dedutível
da ação; é, portanto, um julgamento de relação. Como, porém,
uma l'elação se e,;tende entre dois membros dessa relação, poder­
-se-ir, julgar que, sem a presença dêsses dois membros, a relação
não poderia ser percebida. Deveria assi� ser necessário, se a <:ons­
ciência em geral deve ser possível, dar-se como objeto, a essa cons­
ciência, o próprio estado da pessôa - o que, evidentemente, não
acontece nem pode acontecer. Mas as coisas são ainda mais com­
plexas: a relação de conhecimento contida na voz da consciência
(ainda que, nem sempre, sob a forma de um julgamenb) institúi,
por certo, urna comparação, ou estabelece, pelo meno,:. uma rela­
ção entre o "dever adequado à pessôa" e o princípio ela ação. Na
expressão "adequado à pessôa", pressupõe-se, porérr, outro co­
nhecimento de relação: o ele que um certo dever não existe in
abstmcto, mas tem relação com a pessôa, convém de certo modo a
ela, etc. E êste conhecimento de relação parece exigir, desde Jogo,
que a pessôa se apresente, a si mesma, como objeto .
Não se pode evitar a dificuldade ora apresentada, dizendo
que a pessôa pode ser dada de modo indeterminado, como uma
"impressão total" ou um "sentimento". Existe, por certo, tal pre­
sença indistinta. Nós a encontramos nos casos (aliás não raros),
em que se apresentam julgamentos do tipo: "há algo de incorreto",
sem que se possa dizer o que é; noutros têrmos: sem que se possa
tornar objetivamente claro - de momento, ou em geral - ''o que
é incorreto". Mas, para nossa questão anterior, não interessa que
a pessôa se conheça de modo claro e distinto, mas que ela, em geral,
não se possa dar objetivamente.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 183

Para esclarecer tôda essa questão, que não é aliás simples, é


indispensável uma divagação mais pormenorizada. Teremos de ba­
sear-nos em certos fatos da psicologia experimental. Muitas expe­
Tiências nos mostram, que pode haver a percepção de uma relação
mesmo quando um dos têrmos desta não é atualmente dado. As­
sim, por exemplo, podemos, pela comparação de dois sons sucessi­
vos, com alturas e intensidades diferentes, reconhecer que o se­
gundo é mais ou menos intenso, ou mais ou menos grave, sem que
necessitemos, para isso, de conservar a lembrança do primeiro.
Temos um simples conhecimento vivo de "um passo além, ou um
passo aquém" (para usar os têrmos de W. KõHLER 1), mesmo sem
ter presente o ponto de partida dêsse passo. 11:sse fato será, sem
dúvida, num plano diferente do problema de que tratamos. Por­
que, se trata, aqui, de uma relação em que um dos membros não
está presente, mas poderia, por sua natureza, ser atualizado e
objetivado. No caso anterior, porém, há um membro da relação -
a pessôa - que não pode, por sua natureza, ser, jamais, objeti­
vado. Pode-se, contudo, observar uma certa analogia. Dando mais
um passo, encontramos o caso da procura de um nome, uma frase
ou uma melodia esquecida. Procuramos essa coisa esquecida; algo
nos ocorre, que é logo reconhecido como falso; é parecido com o
que procuramos, mas não é a mesma coisa. Num tal reconheci­
mento da identidade ou dissemelhança, há por certo a posição de
uma relacão. Há, na verdade, uma relação entre a presente recor­
dacão fal�a e a frase esquecida, a que não se apresenta e é, por
issÓ mesmo, procurada. Mas, ainda nesses casos, cabe a distinção
já feita em relação ao nosso problema. í!sses exemplos mostram­
nos apenas ser possível o reconhecimento da relação, mesmo que
um dos dois membros não seja dado atualmente. Nestes casos,
porém, êle já havia sido dado anteriormente. Existe, contudo, uma
situação ainda mais notável, em que se pode perceber uma relação
entre uma coisa atualmente dada a uma outra que nunca foi dada.
E' o caso que aparece, no que N. HARTMANN denominou: "cons­
ciência do problema". 2 Designa-se assim um acontecimento, que
é, no fundo, bem extraordinário e consiste no seguinte : estamos
diante de um fato, ou de um princípio, e sabemos que há ainda al­
guma coisa para além dêle; noutras palavras: "vemos", num pro­
blema que ainda não resolvemos, que sua solução conduzirá a ou­
tros novos problemas; vemos que uma solução não pode ser com­
pleta, muito embora não saibamos, ainda, em que direção deve ser
completada. Dêsse modo conseguimos, em geral, divisar para além
do conhecido, o que ainda é desconhecido. Quando não o consegui­
mos, não pode haver, de �odo algum, um progresso ou um au-
1. "Zur Theorie des sukzessiven Vergleiches", cm Psvch. For.schunq, Vo­
lume 4 (1923).
2. Metaphysih der Erhentniss (Leipzig, 1925).

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184 RUDOLF ALLERS

mento de nosso conhecimento. Porque, se a nossa vista não atin­


gir o interi0r do próprio domínio do desconhecido, mesmo sem
poder conhecer a êste ( pois que, então, êle não seria mais o des­
conhecido), seremos obrigados, necessàriamente, ou a permanecer
num conhecimento primário e primitivo, ou a não ter conheci­
mento algum. Em prosseguimento, chegaremos ao conhecimento
surpreendente, porém não menos claro e certo, ele que podemos
compreender, de certo modo, não só o ainda desconhecido, como
até o próprio incognoscível. O fato de que, na história da reflexão
humana, sempre tenha aparecido a questão dos "limites do conhe­
cimento", só foi possível porque - misterfosamente embora - o
- incognoscível, que marca Justamente os limites do conhecido, foi
apreendido de certo modo por nós, porque pudemos, de algum
modo, alcançá-lo e apreendê-lo, embora sem compreendê-lo.
Considere-se também que o julgamento da "intensidade das
sensações" resulta de um máximo inteiramente inapreciável que,
não sendo embora do tipo dos valores, não é também um dado. E'
fácil ver, porém, que também aqui se repete o mesmo princípio.
Aparece assim o fato, ele que, para nós, pessôas, algo pode·
ser apreendido como um dado, embora não possa ser prõpriamente
um objéto de percepção. Êle não é apreendido como uma singula­
ridade isolada, mas como um caso que se repete muitas. vêzes no
domínio do conhecimento, sempre que chegamos às suas frontei­
ras. Que emprego pode ter essa apreensão do desconhecido - quer
de modo geral, quer no caso especial da apreensão da pessôa - é o
que não podemos continuar a pesquisar agora. Este problema,
como tantos outros já encontrados, não é mais um assunto de in­
dagações caracterológicas, mas pertence à antropologia filosófica
e à metafísica da pessôa.
O fato da consciência do problema tem analogia com o da
consciência, por mais paardoxal que isso pareça à primeira vista:
êle representa, no domínio intelectual, uma situação semelhante
à da consciência no domínio moral. De fato: tôda situação inte­
lectual atualmente dada, em que a "consciência do problema" nos
faz perceber para além do simples dado, a existêcia de um pro­
blema, contém em si apenas o início de direções problemáticas per­
feitamente determinadas. Essas direções serão, naturalmente, de­
terminadas por ambos os têrmos de uma relação, pois que são
uma relação entre o conhecido e o desconhecido (o mesmo se po­
deria dizer do incognoscível) . Na "consciência do problema" se
poderá, portanto, sentir a adaptabilidade ela questão, no que se
refere ao desconhecido. Penso que, dêsse modo, ficará clara a ana­
logia· indicada.
Em relação ao nosso fim, resulta que a incognoscibilidade
fundamental da pessôa não constitúi obstáculo para o conheci-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 185
mento de sua adaptabilidade, ou inadaptabilidade, a um dever re­
conhecido.

10. Resposta à objeção

Que nos ensina, pois, êsse conhecimento (que obtivemos à


custa de tiio importantes divagações) em relação às dificuldades
especiais que encontramos na questão da educação do caráter?
Recordemos que o motivo de tôda essa dissertação foi a evidente
contradição entre a necessidade de educar a pessôa (que, como
suporte da ação, devia ser determinada pela intenção da conduta)
e a afirmação de que essa pessôa nunca poderá ser colocada corno
um objeto de percepção . Para que nossa explicação não dê a im­
pressão de uma especulação abstrata, queremos lembrar uma
frase, que assinala muito bem nossa posição em relação à pessôa,
na presente exposição. "Só quem perdeu sua alma pode ganhá-la".
Em virtude da universal analogia do Ser (um pensamento, em
que vemos o que a filosofia já soube dizer de mais profundo) de­
vemos esperar que essa sentença, relativa à vida sobrenatural)
conserve seu valor no plano da Natureza.
A solução do dilema anterior pode assim ser formulada, em
relação a estas palavras da Sagrada Escritura: há uma orientação
para a pessôa, cu.ia característica essencial é de não ser imediata­
mente dirigida para a pessóa. Já mostramos antes, que muitos
fins, inclusive o aperfeiçoamento, não podem ser atingidos quando
0 homem os visa diretamente. O aperfeiçoamento não é dado ao
que procura (ou o procura em si mesmo), mas ao que procura a
perfeição. "0 que me ama é o que observa meus mandamentos".
O conteúdo especial em que se baseiam estas reflexões, pode ser,
de certo modo, determinado por nós com mais precisão. (Não,
por certo, com aquela precisão peculiar ao conhecimento cientí­
fico, porque no movemos, aqui, nas fronteiras do mistério e, por
assim dizer, no meio de suas sombras).
Explicamos, no pr_imeiro capítulo, que o homem pertencia a
vários conjuntos do Ser e que as leis dêsses conjuntos penetravam,
por assim dizer, o homem, determinando e formando sua natureza.
A importância de tais considerações teóricas, mesmo para as ques­
tões imediatamente derivadas da prática, pode ser vista agora.
Também observamos, em nossa análise da conduta, que um de
seus aspectos era a exposição ou a inclusão afirmativa e ativa,
do homem nos conjuntos de ser que o condicionavam. Vimos que
há uma circunstância paradoxal, mas, nem por isso, menos verda­
deira: a de que está no arbítrio do homem participar, ou não, ati­
vamente, afirmar ou negar os conjuntos de ser a que pertence.
Pode-se agora, finalmente, resolver o dilema que nos ocupou por
tanto tempo.

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186 RUDOLF ALLERS

Quando o homem se opõe às leis do ser a que está submetido


êle se opõe também à sua pr6pria essência, que é determinad�
pela convergência, nêle, das quatro regiões do ser. (Deixaremos
de lado a questão de saber se essa convergência dá uma determi­
nação completa do homemá é provável que não, pois não se trata
aqui, de uma sucessão de elementos isolados, mas de uma inter:
conexão formando uma nova unidade). Quando o homem se sub­
mete às leis do Ser, êle se põe de acôrdo com seu próprio ser. E'
preciso considerar que êle não poderia trazer para a realidade
(atualidade) as possibilidades existentes em seu ser (potências)
se tomasse uma posição em contradição com as leis dêsse mesmo
ser. Portanto, o homem só pode promover o desenvolvimento de
sua personalidade e pôr a luz as possibilidades de valôres nêle
existentes, quando adere ativamente às leis do ser e satisfaz às exi­
gências impostas pelos universos, de que é e deve ser um membro.
Quanto mais se afasta do próprio eu e se dirige para o não-eu,
quanto mais se dissolve nêste (de acôrdo, naturalmente, com os
valôres mais elevados que êsse não-eu lhe apresenta), quanto mais
profunda fôr a sua intenção de oferecer-se a êsse não-eu, tanto
mais rápido será o recúo do eu - "êsse sombrio déspota(' - e
tanto mais "ganhará sua alma", precisamente porque a "perdeu".
O princípio, aparentemente contraditório, que acabamos de formu­
lar, relativamente à orientação da pessôa para fóra de si mesma
não é tanto uma contradição, como a própria expressão da vida
humana em geral, em tôda sua profundidade em e sua estrutura
essencialmente contraditória.
Mais uma observação, antes que voltemos ao tema dos ideais
de caráter, deixados de lado por tanto tempo. Poder-se-ia indagar,
diante elas concepções, aqui ligeiramente esboçadas (para desen­
volvê-las integralmente, seria necessário um livro inteiro), como
é possível, ao homem, opôr-se às leis do ser que lhe marcam e de­
terminam a natureza, ou revoltar-se contra ·elas? Na verdade, po­
der-se-ia fàcilmente cair num "regresso ao infinito" se se dissesse
que a atitude de rejeição, tomada diante de tais leis, era um pro­
duto da própria natureza da pessôa e, portanto, baseada nessas
leis e fundamentada por elas. Estamos, aqui, colocados imediata­
mente diante do prodígio da liberdade, o qual permanece um mis­
tério - quer como inclinação efetiva para a salvação obtida pela
graça de Deus, quer corno livre rejeição dessa salvação.

11. O ideal de caráter

Verifica-se, pois, ao retomar o problema do ideal de caráter,


que em cada forma ideal existente, de certo modo, no fundo da
própria pessôa e emprestando-lhe uma forte marca - pode estar

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PSICOLOGIA DO CARÁ'l'J,It 187

oculto um perigo bem considerável. Por hmo deve-11c ter 11frio cui­
dado em implantar fortemente esses ideais na crian1;a. No fundo,
existe apenas um ideal: o da objetividade, da dedicação, do 11crvÍ•·
ço. Há, também, no fundo, uma única virtude - a vontade hu­
milde de conformar-se com a vontade de Dem1 - e um único JlC·
cado - a revolta contra a vontade divina. "Il princípio de] cadcr
fu il maledetto superbir".
Em múltiplas formas, difíceis de ver, moHtra o org-ulho 11ua
natureza; êle se disfarça por trás de inúmeras máscaras. Do mes­
mo modo que o demônio aparece, por ver.es, como um an.io da lur.,
assim também o orgulho se encobre sob as vc1:1tcs ela humildade.
Não é nos modos pelos quais se apresenta, que se pode, na maioria
das vezes, conhecê-lo. Só nos efeitos dessa atitude interior, muitas
vezes profundamente oculta no homem, é que êle se revela. Sua es­
sência consiste numa posição absoluta rla própria pcsHôa, numa
recusa de tôda ligação. Daí as conseqüências postcrioreH: um Üm•
lamento, ou, pelo menos, uma fuga da realidarlc - na sociedade,
no trabalho, no amor, ou, finalmente, na relação com o divino .
A educação tem, aqui, uma difícil tarefa: nchar mn meio
têrmo, entre as medidas que podem abafcir a vivência do vrtlór
próprio e as que conduzem a uma posição absol1iia da pesslia. EHsa
via média é difícil de descobrir e de seguir, pois não se trata de
obter um compromisso entre os dois extremos perigosos, mas de
realizar uma verdadeira síntese. Assim, para usar um aimagem,
0 meio têrmo não se acha apenas no meio, mas também acima dos
dois polos. Êle não é, pois, a média de um "ora aqui, ora ali", como
um pêndulo entre dois extremos; o que deve é ser um "tanto um
como outro", um equilíbrio no meio de tensões opostas. O homem
deveria compreender, que só toma consciência do próprio valor e
da absoluta unidade de sua pessôa, justamente pelo conhecimento
de que só pode ter êsse valôr próprio, enquanto se sabe e se sente
um elemento de uma totalidade superior.
Estes paradoxos e contradições (que, não são, aliás, maiores
que as outras antinomias da vida humana) acham sua expressão
- ou melhor, seu símbolo - na sobrevivência de Cristo na Igreja,
considerada uma comunidade santificada. Mas a Igreja pode tam­
bém estar viva no indivíduo, quando êste afirma: "Não sou eu
quem vive, mas Cristo que vive em mim".
Em conclusão: o único ideal de caráter que pode ser plena•
mente justificado pelas condições essenciais da existência e da
natureza humana, por mais variáveis que sejam essas condições
- individuais, culturais, nacionais, etc. - representa uma tensão,
dentro dos limites de uma forma de vida que é uma unidade de
:polos contraditórios: indivíduo e sociedade, valor :próprio da pes•
sôa e valor da totalidade, finitude da criatura e vocação para par•
ticipar da vida divina. Não é necessário explicar que essas exigên•

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188 RUDOLF ALLERS

cias são satisfeitas em uma vida católica profundamente vivida e


bem compreendida. Do mesmo modo que ;mi:' ÕÀou se estende a to­
dos os povos, culturas e tempos e a tôda multiplicidade qualitativa
da pessôa humana individual, também a vida católica, a vida se­
gundo o princípio católico justifica as contradições de nosso sêr
e torna-as uma unidade de tensões opostas. Não só a Igreja, mas
cada um dos seus membros pode viver -tm:' oÀou em sua totalidade.
Mas descrever esta forma de vida do "homem católico" e delinear
o ideal positivo de tôda educação do caráter é tarefa para uma
pena mais qualificada que a minha. 1lsse ideal já foi, aliás, des­
crito muitas vêzes num estilo insuperável. Por isso, vamos ocupar­
nos, aqui, apenas de outras questões menores e de ordem prática,
ainda que também importantes.

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V. SôBRE A CARACTEROLOGIA DO SEXO

1. Observações rnetódicas preliminares

Em correspondência com o fio de nossa exposição e a inten­


ção expressa no tPrceiro �apítulo. surgem al!'ora, ao voltarmos ài::
questões caracterológicas, os problemas relativos à idade madura
e à puberdade. E' preciso assinalar. porém, que existem aqui, en­
tre os dois sexos, diferenças consideráveis. E' preciso, pois, aue
tentemos esclarecer. de início, essas diferenças, nos indivíduos ple­
namente desenvolvidos, porque tôdas as questões caracterológicas
se apoiam em experiências realizáveis com adultos. Geralmente,
é um êrro acreditar que o "ponto de vista genético" tem uma
proeminência como método . Porque as questões que procuramos
resolver com auxílio dêsse método, retrocedendo às atitudes dos
estádios anteriores da evolução, se baseiam, na maioria das vezes,
em uma análise ( em muitos casos insuficiente e pré-científica)
dos estádios de pleno desenvolvimento. Isso é exato, não só para a
Caracterologia, como também para as psicologias evolutivas e
comparativa, e mesmo, para a História. Há aqui o perigo, muitas
vezes observado, de que levemos para as fases passadas alguns
tracos de desenvolvimento que não lhes são próprios, mas que jul•
ga�os vêr alí, por uma transposição dos estados já desenvolvidos
e atuais. Devemos também estar em guarda contra êsse perigo,
nas explicações costumeiras. Não devemos, em particular, perder
de vista o princípio metódico, já acentuado por nós muitas vezes,
isto é: que se deve, diante de qualquer particularidade, pesquisar,
primeiramente e antes de tudo o mais, o modo de formação reati­
va. De contrário, poderia acontecer que considerássemos certos
traços distintivos de um indivíduo adulto, de um ou de outro sexo,
como traços essenciais e, com essa opinião, fôssemos levados a crêr
que êsses traços já aparecem "simbõlicamente", ou sob a forma de
"estádios iniciais", nos primeiros anos.
Já se escreveu bastante sôbre a distinção entre o homem e a
mulher. Seria bom que recebessemos com algum ceticismo essas
descrições e análises. A maioria delas é tão exagerada quanto uni­
lateral, tanto no sentido de urna supervalorização do sexo mas-

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190 RUDOLF ALLERS

culino, como na reação a essa tese. A evolução histórica fêz que


o homem se tornasse, em primeiro lugar, um objéto de pesquisas
psicológicas e caracterológicas. Por isso parece-nos, ao mesmo tem­
po, ingênuo e esclarecedor, vermos, por exemplo, um autor decía­
rar que a sensibilidade à excitação táctil está na mulher "abaixo
do normal", só porque encontrou, nas pessôas do sexo feminino, va­
lores médios menores que nas do sexo oposto . Uma desctição im­
parcial do fato teria declarado, naturalmente, que êsses valores
são, nas mulheres, inferiores aos encontrados nos homens. Mas,
por que "abaixo do normal"? Em que se baseia esta convicção ele
que as relações são nos homens perfeitamente "normais" e que
tudo aquilo, que se passa de modo diferente, deve ser considerado
"abaixo" ou "acima" do normal? Tais convicções têm suas raízes
em um julgamento de valor antecipado sôbre os dois sexos, o que
não pode ter cabimento em ciências de pura descrição, como de­
vem ser a psicologia e a caracterologia. Ainda mesma que se ti­
vesse o direito de considerar, sob muitos aspectos, que o "homem é
o anormal", não se segue absolutamente daí, que as qualidades
achadas no homem devam, erri tôdas as circunstâncias e em todos
os domínios, ser chamadas normais.
Demorei-me um pouco nêsse assunto, em sua clareza, êle ilus­
tra, muito bem, a maneira pela qual são consideradas as questões
de psicologia do sexo . Devemos, ao procurar as bases teóricas
indispensáveis aos problemas da prática, esforçar-nos seriamente
por !ibertar-nos dêsses preconceitos . Não devemos, pois, aceitar
sem maior exame qualquer das opiniões usuais, qualquer dos prin­
cípios, supostos "certos", em relação à distinção psíquica dos dois
sexos, nem qualquer dos julgamentos deduzidos de pressupostos
aparentemente bem estabelecidos. Pelo contrário, devemos tentar,
pela descrição simples, organizar um material de fatos, que nos ha­
bilite a formar uma concepção, de certo modo, exata.
Mas, está na natureza da distinção, que um dos membros a
distinguir seja, necessàriamente, tomado como ponto de partida.
Quando se descreve simplesmente, um grupo é considerado de
um modo e outro, ele outro. Mas logo que se começa a comparar,
um deles deve ser considerado como base, ou ponto e partida, e o
outro, como meta, ou ponto final. Acontece, então, fâcilmente, que
se considerà o ponto de partida, talvez meramente casual, como
sendo também uma norma.
No caso já mencionado �a comparação de dois sexos, essa
atração é ainda maior. Contribuem, para tanto, em parte, motivos
históricos e culturais e em parte a inclinação, talvez muito natural,
do homem, a considerar sempre o seu ponto de vista como o mais
importante. E' de reconhecer, também, que a ciência tem sido, até
agora, impulsionada predominantemente pelos homens; foram êles
que, por assim dizer, desenvolveram o estilo das reflexões cientí-

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o,g,tal,zadocomCamScanne,
PSICOLOGIA DO CARÁTER HJl

. ficas. As mulheres que se ocupam com esRaH quesliír!B arlol.:-lram


êsse estilo, não só porque já estava feito, como por imr o único jrJ!­
gado válido. Ora, isso não trás qualquer perigo, eru1 uant,, o f'atri d•i
pertencer a um ou outro sexo niw trouxer urna alteração ci1@incial.
do ponto de vista. Os principias matemáticos ou físico!!, a drmcri­
ção das plantas ou das doenças, a construção rlc tuboH eletrí,11ic<,:l
e as fórmulas estatísticas são, como tantas outraH coiHaH, indifo­
rentes ao sexo do estudioso. Já, porém, no julg-amcnto das obr:1ii
de arte e, mais ainda, nas pesquisas históricas, expoHiçiíeH biográ­
ficas e estudos sociológicos e caracterológicos, o ponto rJc viHta dr,
observador - segundo é masculino ou feminino - repreHenta fa­
tôr importante no modo de conceber. De algum modo, cada TJCfl•
sôa, entanto que homem ou mulher, toma um partido; veremmi
também que o fator "prestígio" representa aqui um grande papel,
que se torna ainda maior, pelo fato de que o homem nilo iem, na
maioria das vezes, consciência dêle. Pode parecer contestável a p0H•
sibilidade de um julgamento objetivo da distinção psíquica, ou ca­
racterológica dos dois sexos, já que ninguém pode libertar-se da
posição que lhe é dada pelo sexo.
Poder-se-ia acreditar, que poderíamos evitar esta dificuldade
por meio do princípio metódico que sempre seguimos: dar atenção,
antes aos resultados do que às vivências; indagar como o homem
exerce sua ação sôbre o ambiente, ao invés de inquirir sôbre a ma­
neira pela qual êle vê sua própria posição, a vida e os problemas
da vida. Poderíamos, então, chamar "normal", a pessôa que pode
preencher seu lugar no mundo ambiente com um mínimo de con­
flitos interiores e exteriores. Supõe-se, porém, aqui, que o am­
biente, em que se acha a pessôa, seja de tal qualidade e que uma
inclusão possa ocorrer, relativamente sem conflitos. E' conhecida
a fábula da raposa e da cegonha, utilizada aliás por GoETHE. A ra­
posa e a cegonha convidaram-se mutuamente para jantar; a ra­
posa serviu à cegonha em um prato raso, para que esta não pu­
desse, com seu bico longo e pontudo, tomar os alimentos; a cego­
nha, por sua vez, serviu à raposa num frasco cumprido e de gar­
galo estreito, em que se focinho não podia entrar.
A raposa e a cegonha poderiam, pois, adaptar-se bem e não
ter conflitos, ficando cada uma em seu ambiente, mas não no am­
biente de outra.
Em relação à nossa questão, isso significa o seguinte: se se
comprovar, por exemplo, que as mulhet·es falham, em geral num ou
noutro ponto, não se deve concluir, sem maior exame, que lhes
falta uma propriedade qualquer, ou que sejam, no fundo, "infe­
riores". Porque poderia acontecer também que o ambiente, onde
são obrigadas a viver, não seja adequado à sua natureza. Além
disso, deve-se considerar, que a inadequação do homem ao am-

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192 RUDOLF ALLERS

biente pode provir também de sua preparação insuficiente em re­


lação às exigências e condições de vida do mundo.
Urna falha ou diminuição de produção acidentais podem ter
também três causas: insuficiência essencial da pessôa (ou do
grupo a que pertence), situação inadequada do ambiente e pre­
paração insuficiente. De acôrdo com o que temos acentuado e nos
parece ser o único processo seguro, devemos pôr, de início, a ques­
tão de saber se a menor produção da mulher (em relação ao ho­
mem) não poderia ser derivada dos dois últimos motivos já men­
cio11ados. Porque tais motivos podem ser descobertos por nós e so­
mos capazes de compreendê-los em seus efeitos, ao passo que uma
qualidade essencial só pode ser determinada pela via da exclusão,
(tal como no caso do condicionamento constitucional dos traços de
caráter), isto é: após um estudo cuidadoso da importância dos ou­
tros dois fatores.
Após essas observações preliminares - que nos mostraram
algumas das dificuldades ligadas ao nosso problema e nos preve­
niram contra certas possibilidades de erros - podemos tentar es­
boçar as linhas principais de uma caracterologia diferencial dos
sexos. Faremos bem, aqui, em limitar-nos a um material que cor­
responde, do melhor modo possível, às exigências de pura descri­
ção, sendo, pois, o mais liberto possível de julgame11tos de valor
subjetivos, ela parte do autor. Possuímos, felizmente, um mate­
rial dêsse tipo, nos resultados de uma coleção de casos feita por
HEYMANS. 1 Não temos motivo para entrar em pormenores, pois es­
tamos apenas preocupados em dar uma vista ele conjunto.
Aliás, parece-me mais eficiente, que entremos por outro cami­
nho, ao invés ele nos determos na emuneração desses fatos. Se con­
seguirmos, pela análise das condições atuais de viela da menina
e da mulher, descobrir determinados motivos, a que possam ser
atribuídos, com grande probabilidade, certos efeitos para a forma­
ção do caráter e se verificarmos, depois, que os traços ele ca­
ráter, supostos correspondentes a êsses efeitos, aparecem real­
mente, em média na mulher, poderá, então, adquirir um pêso
decisivo, a afirmação que queríamos defender, isto é: que muitos
dos traços, supostos pertencer à natureza feminina, são ele origem
reativa, surgindo como produtos de influências ambientais, de me­
didas de educação e da especial posição da mulher na sociedade.
Seremos então obrigados a distinguir dois grupos de peculiarida­
des caracterológicas: as que estão necessàriamente associadas à
natureza da mulher e as que são mais acidentais, pois que ocasio-
1. Die Psyclw/ogie drr Frau (HciddbcrR, 191-1). Ampla coleção de ma­
teriais ap.artcc t:imbJm cm O. LJPPMANN, P�ychische Grsch/echtsuntcrshiede (Leipzig.
1925). W. I.IEPMANN, P,yc/10/n!/Íe ,J,r Frau (Bcdim-Vicna, 1920) é muito dcfi­
cíente. O,upei�mc das concepções domin.1ntes, fazendo uma crítica p.ucial. cm
M,Jiúni,chen Churuh1erologic.

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PSJCOLOGIA DO CARÁTER 193

nadas pelas condições existentes e efetivas da vida. Deve ser acres­


centado, ainda, que o mesmo se dá, necessàriamente, com o homem.
Há, também nêlc, traços masculinos essenciais, que devem ser dis­
tinguidos dos que se desenvolveram sob a influência da situação
cultural e social, atualmente existente em relação ao sexo mas­
culino.
Os traços típicos de caráter, que aparecem, hoje em dia, no
homem e na mulher, são, pois, de várias origens. Há, em primeiro
lugar, os que aparecem como tais, num ou noutro sexo, em conse­
quência do próprio sexo, ou, pelo menos, em concomitância com
êste. Em segundo lugar, há as modificações de traços, não dife­
renciados sexualmente em si e por si mesmos, que poderiam, sob
a influências de condições culturais e sociais, desenvolver-se numa
ou noutra direção, a partir de um comportamento neutro e comum
a tôda a humanidade. Finalmente, aparece uma analogia interes­
sante com certas teorias biológicas relativas aos caracteres sexuais
secundários, quando se admite que características sexualmente in­
diferentes possam ser desenvolvidas, tanto no homem como na mu­
lher, pelo efeito das glândulas sexuais. Se a concepção que esbo­
çamos é verdadeira, segue-se que pode haver um domínio relativa­
mente grande de características hmnanas essenciais, que podem
ser atribuídas, em si e por si, tanto ao sexo masculino como ao fe­
minino, apenas com algumas modificações secundárias. Há, então,
além do domínio de cada sexo, um domínio especial, a que podem
ser atribuídas características especiais.
Conclui-se também, da opinião que acabamos de expôr, uma
outra coisa, que permite, justamente, sua confirmação, sempre que
se verificar uma concordância entre as conseqüências teóricas
obtidas e as observações dos fatos. Se uma boa parte dos traços,
que parecem hoje característicos da sexualidade feminina e mas­
culina, são de orígem reativa, ou resultados de um efeito mútuo
entre as condições gerais humanas e o ambiente específico em que
vivem os dois sexos, uma cultura, que tivesse um ambiente de for­
mação essencialmente diferente deveria produzir traços caracte­
rísticos essencialmente diferentes, para os sexos. Se acharmos, en­
tão, um estado de cultura, em que os papéis dos sexos estejam in­
vertidos em relação ao nosso (uma inversão completa é natural­
mente impossivel, devido a razões biológicas), a mulher deverá
apresentar, nessa situação, traços essenciais que costumamos con­
siderar masculinos e vice-versa. E', pois, digno de atenção o fato
de que VAERTING 1 tenha defendido, justificando-a com rico mate­
rial etnológico e histórico, a seguinte tese: existem e existiram
culturas, em que a mulher tinha um papel muito próximo do que
é atribuído, há milênios, ao homem, pela grande maioria dos po-
1. Die {WJcho/ogische Artung der Frau im Miinnr:rs1aa1e wid dts Mannes
im Fraurnsroate (Karlsruhe. 1921).

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194 RUDOLF ALLERS

vos. Nos povos em que a forma da sociedade pode ser, mais ou me­
nos, classificada com um matriarcado, as mulheres exercem a caça
e a pesca e os homens cuidam dos rebanhos e teares; em conse­
qüência, os homens adquirem traços "femininos" e as mulheres,
traços "masculinos". Não eston em condições de julgar essas pro­
vas, sob o ponto de vista de sua validade etnográfica e histórica.
Contento-me, portanto, com registrá-las. Mas a exigência metódica
apresentada por VAERTING é, sem dúvida, justa; se quisermos reco­
nhecer as propriedades da psiquê e do caráter dos sexos, fundadas
na natureza última da sexualidade, não <levemos comparar a mu­
lher com o homem numa "cultura predominantemente masculina",
na qual êste possui hegemonia; o que se deve fazer é traçar um pa­
ralelo entre o homem dominante e a mulher dominante, ou entre
os dois sexos respectivamente subordinados, em cada uma das or­
ganizações sociais correspondentes.
Não podemos utilizar êste processo, porque não temos à nossa
disposição o respectivo material de fatos. Não o poderíamos,
talvez, mesmo que os dados de VAERTING fôssem de absoluta con­
fiança. Parece possível, contudo, avançar na solução do problema,
com métodos puramente caracterológicos.
A questão dos limites do domínio comum a ambos os sexos e
dos círculos essencialmente específicos de cada sexo é de grande
importância para a solução dos dois problemas. Em primeiro
lugar, é provável que os dois sexos se pudessem entender com
facilidade, se suas atitudes se apresentassem como modificações
reativamente condicionadas de uma região humana comum a
ambos os sexos. Seria necessário, além disso, um esfôrço, baseado
nessa reflexão compreensiva, de que nos temos utilizado cons­
tantemente em nossas explicações. Em segundo lugar, poderia ser
esclarecida a questão incontestável da "igualdade de direitos"
baseada na igualdade afirmada e a da necessária diversidade de
posição social e de trabalho, que é uma conseqüência da afirma­
ção da desigualdade.

2. A situação anibientul da mulher

Partiremos do fato incontestável, de que a posição social da


mulher na cultura moderna é, ele qualquer modo, diferente da do
homem. Que ela era, ainda há pouco tempo, inteiramente dife­
rente da do homem, é o que não necessita de provas. Basta que
nos lembremos de tôdas as "agitações do feminismo" nos últimos
decênios. Contudo, eu desejaria mostrar que se costuma, a meu
ver, cometei· um grande êrro na apreciação dessas coisas. Supõe­
-se que a mulher se achava, desde tempos imemoriais (ou, pelo
menos, desde a Antigüidade), em uma situação de "submissão" e

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 195
que, só há pouco tempo, começou n "emancipar-se". É certo que
a "emancipação" é coisa nova. Mas, por que foi assim? A res­
posta de que as mulheres careciam de cultura, estavam encerradas
em casa, etc., omite a questão. Porque a falta de cultura das
mulheres não era uma causa, mas um efeito de sua ausência de
impulsos de emancipação . Penso que o movimento de emancipação
só apareceu tão tarde, porque também só muito tarde, chegou a
mulher a uma situação expressamente desfavorável. Esta situa­
ção desfavorável não existiu sempre, mas foi apenas uma com;e­
qüência da técnica e da industrialização ele nossa vida. Enquanto
a mulher era o centro econômico da família, enquanto o bem­
-estar físico de todos os membros da família dependia de seu tra­
balho, ela não precisava da emancipação, porque, tendo embora
uma situação diferente da do homem, não tinha uma posição me­
nos importante. Que se leia um dêsses livros destinados, ainda no
comêço do século XIX, a instruir as donas ele casa e as mães sôbre
suas atividades e deveres. Depois que a mulher tinha cuidado de
tudo - roupas, velas, sabão -, muitas outras coisas tinham de
ser dispostas na casa. Quanto mais necessidades da vida fossem
satisfeitas pela dona de casa; tanto mais importante era o seu
papel. Deve-se reconhecer, naturalmente, que êsse processo ele
jndustrialização, por meio do qual foram retirados, cada vez mais,
os vârios encargos da mulher, vinha sendo preparado há muito
tempo, do mesmo modo que a máquina não surgiu repentinamente,
mas teve uma longa e lenta história anterior. Mas, do mesmo
modo que o século XIX viu um desenvodvimento revolucionário
do maquinismo, êle viu, também, uma rápida queda de funções
e de importância da mulher. Se não houve, nos séculos anterio­
res, qualquer "questão feminina", nfü) foi porque as mulheres
fôssem estúpidas, covardes ou incultas, ou (como declara, por
vêzes, um racionalismo, que chega, em sua trivialidade, aos limi­
tes da tolice), porque eram mantidas, à fôrça, pelo homem, nessa
situação, mas simplesmente porque sua situação nada tinha de
discutível. Isso se deu apenas, quando uma transformação tão re­
volucionária se operou nela, em virtude dos motivos econômicos
e sociais já indicados. Parece que as mulheres de hoje não podem
mais imaginar-se, em um papel, que era representado por suas
colegas de sexo há algumas gerações atrás. Mesmo que o pudes­
sem imaginar, elas desprezariam essa forma de vida dos séculos
passados. Nfw havia, outrora, uma "questão feminina", porque
não havia uma concorrência rlos dois sexos, num mesmo plano:
suas vidas decorriam em regiões diferentes e, dentro de cada uma
destas, o valor próprio do homem, ou da mulher, podia atingir­
um acabamento e uma expressão completa. Pelo fato de que as
�ulheres não estão, hoje em dia, satisfeitas corri sua situação,
nao se deve concluir que sempre tivessem pensado assim, embora

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196 RUDOLF ALLERS

sem se animar a lutar por uma melhoria de situação, ou que


aceitassem numa resignação muda, seu destino imutável, consi­
derando-o uma necessidade fatal. Quando se pensa assim, cai-se
na falácia, já mencionada, de transportar para o passado as
condições do presente. Do mesmo modo que não se pode dar valor
a uma coisa pelo fato "de ter sido válida outrora", não se deve
também concluir que foram válidas, ontem, condições hoje válidas.
Na mesma espécie de falácia, encontramos outra opinião
falsa, quando vemos que certas vozes se elevam, em queixas e
reclamações, a respeito do que dizer ser uma decadência da na­
tureza feminina, uma degeneração da mulher, etc. É absurdo que­
rermos lutar para que a mulher volte à forma de vida que teve
há duzentos ou trezentos anos. O que devemos é construir, para
a mulher, uma forma de vida adequada às condições de hoje, ou
- quando estas não permitem aquela forma de vida - esforçar-
-nos por modificar a ordem de nossa sociedade, de modo a torná-
-la possível. O que não adianta são lamentações sôbre a deca-
dência feminina, exprobrações às mulheres por terem esquecido
sua natureza, etc.
Se quisermos deter a indubitável decadência da família de
boje e todos seus resultados, a fim de reconstruir a família (uma
tarefa que parece absolutamente necessária), não devemos con­
tentar-nos com simples exortações, ou lamentos sôbre a imorali­
dade moderna. O "laudator temporis acti" nunca foi um refor­
mador e aquêle que olha para trás nunca pode caminhar para a
frente. Do que se necessita é, em primeiro lugar, de um estudo
.compreensivo das causas, que se ramificam por tôda a estrutura
de nossa existência atual - pela sociedade e pela economia, pela
vida material e pela espiritual - e, em segundo lugar, de uma
decidida resolução de melhorar, associada ao conhecimento de
que surgiram novos tempos, para os quais são necessárias novas
formas. Acima de todos os tempos e mutações, existe, sem dúvida,
a Verdade intemporal, o Eterno Bem - de que não podemos des­
prezar o mínimo aspecto. Mas cabe também aqui a observação,
que já fizemos em relação às formas de educação: sem prejuízo
dos ideais, eternamente imutáveis em si mesmos, mudam as
formas de sua realização na vida finita. Portanto, a solução da
"questão feminina" não pode ser procurada numa restauração de
estádios passados da evolução histórica da humanidade, não mais
realizáveis hoje em dia, mas na criação de novas formas. Não se
derrama vinho novo em odres velhos, ou melhor, invertendo a
comparação: deve-se derramar o vinho velho em odres novos,
quando os odres que o continham tornaram-se gastos. Por isso,
não queremos que a mulher se mantenha na situação, em que se
achava em séculos anteriores, mas apenas que se lhe mostre o
que ela deve - e pode - ser hoje. Noutra época de crise do

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 197

passado, um grande santo e exímio pregador não teve receio de


dizer, sôbre o casamento e a família, coisas que, para os hábitos
de então, podiam parecer absolutamente estranhas. Cêrca de
1420, quando terminava a Idade-Média, SÃO BERNARDINO DE
SIE,NA pregou, não só em sua cidade, como nos púlpitos de F-lo­
rença, Pádua, Bolonha e tôda a Itália Setentrional, coisas que
pareciam, aos ouvidos de muitas pessoas voltadas para o passado,
novas e extraordinárias. Êste santo era, contudo, um humilde
servo da Igreja e um discípulo fiel de São Francisco. Mas era
também um homem cujos olhos viam claramente a natureza dos
novos tempos e cuja alma estava aberta às exigências da época. 1
A prática segue sempre o conhecimento. Não pode ser de
outro modo, porque é o conhecimento que põe· uma finalidade à
ação e lhe dá a norma. Quando porém, a oposição entre a ação
e o conhecimento se torna muito grande e aquela recua diante
déste, produzem-se perturbações, tanto na vida individual como
na das sociedades. É o que se dá, muitas vêzes, na questão da
educação, especialmente das moças, e na atitude comum, em re­
lação às mulheres em geral. E a maior infelicidade é que as pró­
prias mulheres, em que o conhecimento deveria ser mais vivo
(porque se trata delas mesmas) e mais efetivo - ainda que,
muitas vêzes, de modo encoberto - são levadas, pela concepções
da prática educacional a que são submetidas, a deixar de se orien­
tar por êsse conhecimento, adequado à sua verdadeira natureza,
para seguir os princípios da experiência concreta que farão no
decorrer de seu desenvolvimento. Com isso, aparecerá, na aima
das mulheres, uma discórdia prejudicial que abrirá, talvez, mui­
tas vêzes, a porta para a irrupção da imoralidade, o afastamento
da família, a repulsa à maternidade e tantas outras coisas.
Se olharmos para a posição da menina no interior da família,
não podemos ocultar que tal posição é, ainda muito freqüente­
mente, inferior à do menino. Todos já presenciaram, por certo,
cenas como esta: encontra-se um homem casado de pouco; ou­
viu-se que tinha tido um filho; à pergunta se é menino ou me­
nina, recebe-se a resposta: é "apenas" uma menina! Porque
"apenas"'? Há, para isso, naturalmente, inúmeras razões de ori­
gem histórica e social: hábitos, já há muito fora de uso, do di­
reito de sucessão; a idéia de um "nome" a transmitir; a opinião
de que o filho deve continuar a carreira do pai; a idéia de que é
mais fácil, para o homem, oi;>ter um meio de vida e consideração
social; a estranha crença de que os pais ''não precisam ter tanto
cuidado" com os meninos e inúmeras outras mais. No fundo,
porém, todos sabem que o "apenas", acima mencionado, é intei­
ramente injusto. Mas, tal atitude existe e ela não dá lugar ape-
l. Vide MARIA ST!CCO, // pensiero di S. Bernardino di Siena. (Milão. 192S).

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198 RUDOLF ALLERS

nas ao fato de que a menina não seja, ao nascer, tão bem rece­
bida como o menino; o desgraçado "apenas" acompanha a menina
tôda sua ,·ida e não abandona a própria mulher adulta; ela não
se pode libertar dêle: êle persegue-a até o fim.
Assim cresce a menina, desde o princípio, numa atmosfera
de inferioridade. O efeito dessa experiência é ainda mais refor­
çado, na maioria dos casos, pelo fato de que ela descobre, logo,
que tal desvalor não se dirige apenas à sua própria pessoa, mas
a todo seu sexo. Esta descoberta se faz, porém, pela posição que
a mãe assume na casa. Se o desvalor fôsse de sua própria pessoa,
a criança poderia, supondo que circunstâncias ou influências
favoráveis viessem em seu auxílio, ser levada à convicção de que
tal julgamento dos que a cercavam era erradçi e que poderia,
logo, conseguir provar o contrário, lutando para realizar alguma
coisa e preservar um lugar na vida. Mas se o desvalor é neces­
sàriamente do sexo feminino - ao qual pertence e sempre per­
tencerá a criança - e se esta verificar que tal desvalor é atri­
buído à sua própria mãe, que lhe parece tão superior e inaces­
sível, então, não há como escapar, e a fatalidade da depreciação
torna-se inevitável. Acontece, porém, que - sem qualquer ela­
boração mental - se estabelece, na menina, uma consciência da
depreciação, que não se associa à sua própria pessoa, mas ao seu
sexo, e, por i;,so, tem raízes ainda mais profundas.
Os motivos que contribuem para a formação dessa vivência
de depreciação, necessàriamente ligada ao fato da própria con­
dição feminina, são de várias espécies. Explicá-los, em tôdas as
suas minúcias, nos levaria longe. A importância do assunto e o
grande alcance dos efeitos de tal vivência, justificam, porém,
mais algumas palavras a seu respeito.
Já mostramos a desvalorização encontrada geralmente pela
menina. Ela se torna particularmente evidente, quando há, numa
família, um menino entre várias meninas, ou uma menina entre
vá.rios menino;;. O caso de uma posição especial, tanto para o me­
nirw como para a menina, é sempre perigoso. Quando várias me­
ninas :;;e acham diante de um irmão, a fato de que elas formem
um2. comunidade equilibra, de certo modo, a formação da vivên­
cia de depreciação especificamente feminina e, embora sem anu­
lá-la c0mpletamf::nte, pode impedir suas conseqüências mais gra­
YE::õ. O mais ameaçado, nessa situaçã(J, é, antes, o menino, que,
sem crJntribuir para isso, e apenas pela sua própria existência,
!'ê':: acl-:a r,urna situação E:xcepcional, que pode produzir o mimo.
;_ pr;:::iç;;.r; f::sr;E:dal de uma menina entre vários meninos, nas
c:rc Jr,st�r.r;:as aqui consideradas, pode produzir, ao contrário,
1

i.;rrz -,,i·;a. C',n.sci�ncia da df::preciação. Se ela fôr a primog-ênita


r;•J a r:...ç'..ila, a. r,rf::ce<lf:ncia ligada à primeira e as vantagens asso­
c:a,.:a::; i �<::gunda, prJdf::m muitas vézes servir ele compensação.

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l'SICOLOGIA no CAllÁ'l'l-:lt 19!)

Pode ser tibsl'rvndo, qnc muit.n:-. mt•11i11rn1 HC orim1l.am, logo


de m1c10, mima din'çiio 1k dmH•nvolvi11w11to m:wc11li110, mc:mrn
quando o nwt.in1 niio provém do mwmplo 1hm ir111:w:-i. 'l'aiK me­
ninas niio g·ostam d:rn hrinl·addrnH de nwni11m1, compor1!11n-Hc
ctinw mt'ni1ws (t' ntt'! de um modo 1wlv:igm11) e pl'ocurnm, mui­
tas n'zcs, sohrq111jnr st•us cmnpanlwiros nuu,:cnlino:-i pela au<l(l­
da dos c111prt)t'Htli1ncntos, 1wla per:-1evci-ançu, ele. g con:-ic­
.!!lll'm-no. t'lll v:írias ocasiôt>s. 'l'ais menittaH n•cehmn muilm-1 cc11-
sm·as e n'prt•cnsõcs 11or sim condnt.a Jwuco fominiiw e tah1 cen­
suras se rcn'sh'm, niio raro, de cxprci.;i.;Õt!H em que 11:w aparece
a inten"iio de censurar ( "gshl devia ser um f!arolo !") TaiH ex­
prcssõcs h1m, muitas vêzcs, um grnrnle efeito, porque fortalecem
�, inclina,ão, manifci,:;t.adn pela menina, rlc prole8tar contra o pa­
pel feminino qnc lhe foi impàsto. Isso se dá, cm geral, porque os
l)ais. desiludidos pelo fato de lhes ter vindo "apenas" uma meni­
na quando esperavam um herdeiro do nome, cclucmn a pequena
como se f0sse um menino (dando-lhe muitas vêzes um nome mas­
culino: .Joiio em \'07. de ,Joana, ,Túlio cm ve;r, de Júlia), dando-lhe
também a entender, que l'la é apena.s uma sul>sliluta do menino
que Yirl1. Veremos, mais tarde, as mús conseqüências prnduzidas •
por um processo tão errôneo.
A concepr;ão de um desvalor da mulher, dm,pertada desde
cedo. na menina pela atitude que tomam para com ela, é ainda
aprofundada e fortalecida pelá observação de que, na realiclaclc, a
mulher ocupa. sempre, um papel secundário. Tal observaçiio po­
derú ser foitn pela criança, tôda vez que, como se disse, a posição
dn müe na família fflr desfavorável, ou quando receba um trnt.a­
mento injusto por parte do pai - que a diminui perante os filhos,
ou faz oh:-enaçõe::-. críticas sôbre ns mulheres em geral. Pode tam­
bém acontecer que a mãe, mesmo nos caRos em que mia personali­
dade nf10 é diminuída, se queixe de seu papel de mulher e ele mflC
e pre\'ina as filhas (:\:; vêzcs bem cedo) contra o cmmmcnlo e n
maternidade, mostr ando-lhes a rniscraliilidallc clL'Ssa situação e
acon�elharnlo-as n prc:>ferir a condi�.ão de solteira. R quando, mais
tarde, üs filhas jú moças, o papel específico da mnlher é apresen­
tado como uma diminuiçfw de i-;uu pessoa, como algo a que Re
devem rc8ignar e aceitar como �mcrifíeio, e não como realização
positiva, quando :rn tarefm-1 da procriac;-.ão e da educnc;-fw silo des­
crita� apenas como uma cari{a e 11iio como fontes dt� alegria e lle
clev,1ção, nf10 ú ele admiJ·ar que :rn mulhcrc:;, cu.ia juventude decor­
reu no meio <lc tais cnsi11amcnt.m,, Hinlani 11nm. i11cli11n1,'.f10 - ex­
pressa, ou mnilas vêieH inexprcHfm - a repudiar seu eHlado e
s11:1 sorte como mulher e a i-evoltar-se co11tl'a fies. f.:sse cl'cito é
tanto mais notúvcl, quanto aH declar:u;út1s, do tipo elas que vimos
acima, são apresentadas a moçm,, que, 11iio sú as comprcenclem,
como também as podem experimentar cm si mesmas.

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200 RUDOLF ALLERS

Deve ser admitido que tais expressões são bem justificadas


pelas circunstfmcias da vida de muitas mulheres. Pode-se falar,
com razão, numa prepotência do homem; numa prepotência que
não tem fundamento na ordem natural ou sobrenatural, como
aquela de que trata S. PAULO na conhecida passagem da Carta
aos Efésios; numa prepotência, que se tornou falsa e injusta,
porque não é - com suas perversões e excessos, que se asseme­
lham aos que indicamos no perigo ela autoridade - exercida
com a finalidade de um valor mais elevado e de deveres morais
que a êste se associam, mas reivindicada para a própria pessoa
do homem. Parece que aquêles que citam as palavras de
S. PAULO, leram apenas algumas linhas e não olmervaram o que
a elas precede e segue. Na verdade se diz ali (Efésios, 5, 22)
que as mulheres devem ser "sujeitas a seus maridos", porque
"o marido é a cabeça da mulher, assim corno Cristo é a cabeça da
Igreja" (Idem, 5, 23). Mas também está ali que os maridos ele­
vem amar suas mulheres, comO' Cristo amou a Igreja "e, por ela,
entregou-se a si mesmo" (Idem, 5, 25). E, antes daquela pri­
meira passagem, se dizia que os membros da Igreja estào "sub­
metidos uns aos outros no temos de Cristo" (Idem, 5, 21). Não
há motivo alguns nestas palavras, ou em quaisquer outras da Sa­
grada Escritura, para que se justifique o orgulho arrogante do
marido, sua desmedida pretensão e sua ridícula vaidade ele não
ser mulher e, sim, homem. Dos ensinamentos de Cristo, dos
Apóstolos ou dos Padres da Igreja, não pode ser tirado o menor
título de direito para uma conduta, que faz, tantas vêzes, da vida
conjugal, um tormento para a espôsa, torna o sacramento do ma­
trimônio uma comédia indigna e leva a família a um estado ele
temor e sofrimento - a ponto de respirarem, aliviados mulher e
filhos, quando o marido e pai se afasta da casa e tremerem,
quando se aproxima o momento de seu retôrno. Que há, nisso, dt•
grandioso para um homem? Não será, muitas vêze::1, sua contri­
buição econômica para o lar, de que tanto ::ie cnvnidccc, bem
inferior à da dona de casa? Sem mencionar qne, medida objeti­
vamente, a energia empregada em trabalhos de casa é mnitns
vêzes superior (como o mostram, com p1:ecisão, os métodos exatos
de medicina experimental) à utilizada pelo homem em sem, tra­
balhos de escritório, ao despachar seus papéis ou ntlicion:tr colu­
nas de algarismos.
Considerando a conduta de certos mal"i<los cm rcla(iio :\s L':i­
pôsas, não é de admirar que o ideal do matrimônio pareça tãn
deficiente para tais mulheres. Se o homem deve ser "a cnh,•,:n dn
mulher", êle deverá se comportar de acôrdo, poi::1 que: !.ai .S n
cabeça, tais são os memb1·0s. Do mesmo modo que 11111 corpo m1o
pode funcionar impecàvelmente, nem um homem atingir :ma 11er­
feição natural, "quando a cabeça não funciona bem", m-i�im lnm-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 201
bém se dá com a familia. É, na verdade, muito simples atribuir
à mulher tôda a decadência da família, tal como a vemos hoje em
dia, ou falar da corrupção feminina, ou queixar-se da moda. Mas
diante de seus defeitos, o homem logo recua. A palavra de Jesus
sôbre o argueiro e a trave no ôlho, nunca teve uma confirmação
tão grotesca, como nas críticas dirigidas à mu'!her pelo homem.
Tenho, de um modo geral, a impressão de que sempre houve
um número maior de boas espôsas do que de bons maridos, por
maiores que sejam as dificuldades das espôsas. Julgo também,
que o amor feminino se aproxima muito mais daquele ideal de
amor de que nos fala o apóstolo S. PAULO.
Ao indagarmos quais os efeitos das experiências, aqui des­
critas em relação à própria posição da família e da mulher em
geral, sôbre o desenvolvimento posterior da menina, não deve­
mos esquecer que existe ainda uma série de outros motivos, que
podem reforçar a crença num papel inferior da mulher e, que,
portanto, o êrro de tal opinião não será, quase nunca corrigido,
mas sempre mais fortemente arraigado. A circunstância de que,
na maioria das vêzes, nos preocupamos mais com a vida futura
do menino e procuramos sondar melhor os desejos vocacionais
dêste do que os da menina, é a causa de que, para trabalhos
iguais, a recompensa da mulher seja, em geral, inferior à do
homem, e de muitas outras coisas mais. Uma série de outros
motivos, como a desigualdade nos domínios da política e do di­
reito de sucessão, influi sôbre a possibilidade de aquisição de
uma profissão, como se verifica em vários casos. Não nos inte­
ressa indagar, se a supressão destas distinções seria boa em
tôdas as circunstâncias. Mas que elas não podem mais ser man­
tidas, nas presentes relações sociais e econômicas, é o que não
será necessário provar.
Há, por tudo isso, bastante razão para que a mulher sinta,
embora não claramente, que sua posição é .insatisfatória e secun­
dária. A nota dominante de seu sentimento de vida será, quase
necessàriamente, a de que o sucesso, a importância, a grandeza e
o poder são atributos do homem e que só êste, portanto, é uma
pessoa, ao passo que a mulher deve sempre ficar atrás dêle.
Aquêle sentimento específico de justiça que faz, sempre, com que
a pessoa conclua, da posição exterior, o valor interno - o que,
na verdade, é muitas vêzes objetivamente falso, mas, que, em
seu sentido último, como hierarquia ideal do mundo, é, certa­
mente, verdadeiro - leva as mulheres a concluir que sua má
posição e suas fracas perspectivas resultam, em última análise,
do valor inferior de sua própria natureza. E como, desde cedo,
devem reconhecer que esta má posição não é devida à sua pessoa,
mas ao seu sexo, elas verão a depreciação, não em suas pessoas,
mas em sua condição feminina. Por isso, tôdas as outras conse-

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202 RUDOLF ALLERS
/
quencins da v1vencin ele cleprecinção - s11rgicln, em parte, ime­
diatamente e, em pnrte, pela vin da compensação e da supercom­
pensação - se fü,Rociam n êssc rato ela condiçfto feminina.
A psirolop-ia inrli\'irlual criou, pnra os efeitos ele uma vivência
<la deprcciaçiio lnrncada na feminilidade, a exprc!-lsão, pouco feliz,
de "protesto masc11lino". Q11r.r-se dizer, com isso, que a mulhe1·
se re\·olta contra sua situação, ou, mais: contra sua própria na­
tureza. renC'g-ando-a e protestando contra ela. Em conseqüência,
ela dese_i:wá ser o oposto do que é, isto é: um homem. Como,
porém. a meu ver, esta fórmula é uma construção errônea ria
lingua�em, não queremos utilizá-la. Ao abandonar, porém, esta
expres�ão não de,·emos esquecer, de codo algum, que a psicolo­
gia individual foi a primeira a mostrar claramente tôdas essas
coisas.
Veremos, ainda que essa injustificada exaltação da impor­
tância e do papel do homem no interior da ordem social. tem,
também, para êle, conseqüências críticas. Em primeiro lugar,
por�m. devemos analisar a questão de saber se os traços de
caráter, comumente observados nas mulheres, podem ser dedu­
zidos das experiências já descritas e da vivência de depreciação
que delas resulta, com todos os seus efeitos próximos e remotos.

3. A farmação da. mulher

Já afirmamos várias vêzes que a vivência da clepreciac;ão


deve produzir uma diminuição da consciência do próprio valor,
uma limitação da confiança em si mesmo. Quem se sente depre­
ciado, julga-se, ao mesmo tempo, um fraco (pois que a vontade
de poder é uma tendência originária no homem). É por isso que
as mulheres são chamadas "o sexo fraco". Deve-se indagar, pois,
inicialmente, se esta opinião, que coloca a mulher abaixo do ho­
mem e a considera inferior e fraca em relação a êle (uma opinião
partilhada por ambos os sexos), não se baseia em fatos objetfros.
À primeira vista, isso parece plausível. Seria difícil supor que
uma opinião tão espalhada, tão antiga e tão "compreensível" se
apoiasse num êno. Contudo, tal indagação tem algum pêso, pois
que a univen;alidaclc e a antigüidade de uma oninifio 11:in nro­
vam sua vcrdacle. Já veremos que, nesta concepção, o verclacleii·o
e o falso se misturam dr. modo singular: o que é vcnl:1dciro, é
tido como secundário e desprezível e o que é falso, é consider:ido
primordial.
As razões comumente ap1·eHeniada!1 para justificai· a designa­
ção das mulheres corno sexo fraco são tfio conhecidas que não
precisaremos enumerá-las. Contentar-nos-emos com a apresenta­
ção de uma série de fatos, que contradizem justamente aqnclv.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 203
de$ignação, a ponto de tornar extremamente duvidosa sua justi­
iicação. A freqüência de doenças nas mulheres, mesmo nos casos
de igual gra,·idade, é, em geral, menor que nos homens. A mor­
talidade feminina, apesar das passagens importantes do parto e
do re!'guardo, é inferior à do homem. A vida média é tamhém
maior nas mulheres. Que tais fatos não têm relacão com as con­
dições exteriores, é o que prova a circunstância cÍe, já na morta­
lidade dos recém-nascidos, haver uma percentagem maior para
os meninos do que para as meninas. Nascem mais meninos que
meninas, mas, já no primeiro ano de vida, o número destas é
maior. O excesso inicial de meninos e sua transformacão num
excesso de meninas, torna-se ainda mais expressiYo, q�ando se
incluem na contagem os natimortos e os mortos prematuros. 1
É indubitável que o sexo feminino tem uma vitalidade maior.
Poderíamos dizer que, em relação à resistência oposta às in­
fluências nocivas à vida, as mulheres deveriam ser consideradas,
antes o sexo forte do que o sexo fraco.
A resistência aos grandes sofrimentos é maior na mulher
que no homem. Não é só porque ela sofre as fadigas e dores da
gravidez e do parto, que nunca serão exigidas de um homem.
Poder-se-ia objetar que as mulheres são destinadas, por natu­
reza, a êsses trabalhos, se bem que, com isso, não se pudesse
desmentir o fato de sua capacidade de suportar os sofrimentos
e os esforços. Contudo, podemos observar que, também nas diver­
sas enfermidades, as mulheres demonstram paciência maior.
É certo que a mulher exibe grande resistência diante do sofri­
mento. Não importa averiguar se isto se dá por motivos bioló­
gicos ou morais. O que importa é a existência de tal fato.
l\Ias não é só em suportar os sofrimentos impostos - corno
os das enfermidades - que as mulheres se revelam, em média,
superiores ao homem. Isso ocorre também no caso das fadigas
voluntàriamente aceitas. Se bem que, entre os homens, alguns
sejam capazes de grandes sacrifícios, principalmente quando se
trata ele uma idéia, a capacidade de sacrifício das mulheres pode
ser, em geral, ainda maior. Que se pense em tudo o que elas
podem fazer, ao cuidar, não só de seus próprios filhos, como dos
doentes em geral.
Costuma-se falar na fraqueza física •das mulheres. Por certo
são raras, entre elas, as que se empregam como carregadores ou
ferreiros. Encontram-se, porém, especialmente entre as popula­
ções elos campos e, mais ainda, entre os povos primitivos, mulhe-
1·es extraordinàriamente fortes. Deve-se considerar também, que
certos trabalhos físicos, como, por exemplo, o cuidado prolongado
de um doente, são aceitos pela mulher sem qualquer queixa.
1. C. BUCCURA , Die Geschlrchrs.,ntmchiede (Leipzig, 1913).

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204 RUDOLl' Al,LEltS

Tal trabalho não é pequeno e só pode ser clistingui!lo do "tral,a­


lho pesado" de um homem por sua manciru <le rcali:r.nr-sc, matt
não quanto à intensidade das energias emprcffutlm1. Mas, ant.eH
de tudo, deveríamos indagar se essa relativa fraque1,a física ela
mulher está ligada a sua própria natureza, ou é, ao co11lrário,
um produto da educação e da situação social. ,Já é cligno rle nota
o fato de que, com o crescente desenvolvimento elo ci-:poric nr,11
círculos femininos, a capacidade de produção física da mulher
parece decisivamente aumentada. Elas conseguem, por exemplo,
realizar as mais difíceis escaladas ele montanhas. Lembremos
também que, em épocas antigas, corno, por exemplo, nos mos­
tram as narrativas históricas e mitológicas -da Antigliiclade Gre­
ga, existiram mulheres que, não raro, sobrepujavam os homens
na luta. As figuras das Valquírias são, talvez, uma reprodução
dessas mulheres. Se acrescentarmos a êsses fatos os depoimentos
já encontrados no livro de VAERTING, pelos quais se verifica que
nas cultura sde organização mais ou menos matriarca], as mu­
lheres são também superiores fisicamente aos homens ( por exem­
plo: superiores em estatura), adquire grande probabilidade a
tese de que a fraqueza corporal da mulher não provém de sua
própria natureza, mas é apenas devida, pelo menos em grande
parte, às condições culturais em que ela se encontra. Merece
também atenção o fato de que, nos lugares onde a atividade da
mulher é mais impedida, como no Oriente, sua capacidade de
produção é, também visivelmente menor. É o que se dava tam­
bém em nossa civilização, há pouco tempo ainda.
Outro argumento, que os homens costumam muitas vêzes
apresentar, é o que se refere à inferioridade intelectual das mu­
lheres. Jl'.:ste ponto não é também tão claro, corno se costuma
acreditar. Aliás -não me parece igualmente exato, o que afirmam
os defensores da "emancipação feminina". Para êstes, a dife­
rença de produção no domínio científico, realmente existente
entre o homem e a mulher, pode ser explicada pela exclusão se­
cular da mulher, em relação à instrução superior. Assim, se­
gundo afirmam, as faculdades femininas foram impedidas de
tomar essa direção, do mesmo modo que certos animais domés­
ticos perdem, pela domesticação, determinadas propriedades do
estado selvagem. Ora, todos sabemos que os animais domésticos,
pelo menos a maioria dêles, readquirem ràpidamente as formas
de vida das raças selvagens. Há, contudo, três outros motivos,
que merecem consideração. O primeiro é que o número de mu­
lheres que trabalham seriamente nesses assuntos, é ainda tão
pequeno, em relação ao dos homens, que a probabilidade de rea­
lizarem obras notáveis é diminuta. Aliás, mesmo entre os homens,
é pequena tal probabilidade. Quem se der ao trabalho de obser­
var estatisticamente, sob êsse ponto de vista, os trabalhos sur-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 205

gidos em qualquer domínio científico, no decorrer de um ano


qualquer, pode se convencer fücilmente da just�za d est� obser­
_ _ _ 1ca ao
_
vação. O segundo motivo é que a produçao c1entif _ � e apen!s
o resultado da capacidade intelectual e da aphcaçao (que nao
faltam 11 maioria das mulheres), mas supõe também, em alto
grau, a confiança em si mesmo e a confiança do meio. A con­
fiança em sua capacidade intelectual falta, porém, às mulheres,
pois que lhes disseram sempre que não têm tal capacidade, ou a
têm em menor grau. Se, portanto, alguém começa um trabalho
qualquer com a íntima convicção de não poder realizá-lo, é muito
provável que se justifique essa sua descrença. Como, porém, os
homens, que devem iniciar a jovem no domínio da ciência, têm
também pouca confiança nas possibilidades das mulheres - mes­
mo quando não se justifica tal desconfiança - a convicção da in­
capacidade se firmará no cérebro das mulheres que exercem tra­
balhos intelectuais. Merece consideração o fato de ter nestes úl­
·timos anos - quando a opinião primitiva sôbre o pouco valor
intelectual da mulher perdeu sua importância - surgido uma
série de autoras de primeira classe, nos domínios da pura abs­
tração intelectual e da filosofia. Seja mencionada, a propósito,
urna pesquisa rica em conclusões, que foi feita em relação aos
bacharelandos de uma grande cidade. Uma comparação entre os
trabalhos de bacharelandos de ambos os sexos (trabalhos de inte­
ligência e não apenas de estudo) mostrou que há, de modo geral,
uma proeminência dos homens. Aparecem, contudo, certos tra­
balhos femininos de grande valor intelectual. Mostrou-se que tais
mulheres vêm, sem exceção, de famílias em que a espôsa tem
uma situação de igualdade em relação ao marido, como sócia ou
colaboradora num empreendimento qualquer. Dêsse modo, as
meninas não conheceram a posição de subordinação da mulher
e não formaram a opinião de que a mulher está condenada a um
papel secundário. Por isso, não perderam a confiança em sua
própria capacidade de realização, mesmo nos domínios aparen­
temente destinados ao homem; conservando sua coragem, se lan­
çam, com tôdas as suas capacidades, à solução das tarefas que
lhes são impostas. Há, por fim, um terceiro motivo, que deve
ser mencionado: nunca poderemos saber quantos pensamentos
grandiosos e de alcance universal tiveram seu comêço na cabeça
das mulheres. Sei, por várias experiência, qual pode ser a in­
fluência da mulher, da espôsa, da irmã, e da amiga, na vida
intelectual de um homem. Não se desconhece que muitos grandes
homens discutiram suas idéias e seus planos com as próprias
mulheres. O que as mulheres disseram a êsse respeito fica, porém,
desconhecido, na maioria dos casos, porque a vaidade do homem
não permite que isso se torne público.

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206 RUDOLF .ALLERS

O fator de desencorajamento e perda de confiança, cuja im­


portância nunca será demasiadamente acentuada, pode Rer tam­
bém o culpado de que a mulher produza pouco, mesmo nos domí­
nios que lhe são destinados livremente. Já se disse, que é uma
prova da pouca capacidade de realização - ou, como se cliz, da
inferioridade elos dons femininos - o fato ele que as mulheres
não consigam apresentar obras notáveis, mesmo naquilo de que
sempre puderam se ocupar. Mesmo nos domínios da mús:ca e da
pintura, por exemplo, elas não fÍzeram mais que diletantismo.
:'ifas, se o desencorajamento tem, como estamos convencido::;, uma
tal importância, até mesmo êsse fato não nos eleve surpreender.
Pode-se mostrar, também aqui, que, em épocas anteriores, houve
grande número de importantes produções femininas nesses do­
mínios. (Todavia, há um fato incontestável, que merece estudo
mais r,rofundo: a aparente inaptidão da mulher para a composi­
ção musical. :'ilas tôda a questão da natureza da criação artfatica,
especialmente à musical, está tão pouco esclarecida, que não se
podem tirar conclusões dêsse fato).
Ao motivo do desencorajamento associa-se outro, que exige
exame mais minucioso: pode-se observar, muitas vêzes, que as
mulhere:,; "não se interessam" por assuntos que poderiam domi­
nar e aprofundar intelectualmente. HEYMANS afirma que o mo­
tiw, da produtividade inferior da mulher não está numa inferio­
ridade intelectual, mas no fato de que "a frieza exangue da abs­
tração é interiormente desagradável às mulheres, porque não dá
qualquer satisfação às suas necessidades emotivas". Com tais
palawas, se exprime a concepção, muito comum, de que a emo­
tividade ec;pecial, a exigência mais fácil dos sentimentos e, tal­
vez, a mair,r profundidade déstes, é uma caracteristica especial
da mulhr,r e um traço que distingue sua natureza da natureza
ma;;culina. HEY:.u:-;:; é também de opinião, que a maior emotivi­
rJade é própria da natureza feminina. Veremos que há, nisso,
al,rr; de verdadeiro. ?.fas essa tese não pode, também, ser adotada
Hem maior exame.
Em primeiro lugar há um fato, que parece lançar alguma dú­
vida sôbre tal opinião. Conhecem-se homens, dos quais se pode
dir.,,r, <focir;ivamente, que apresentam uma "natureza feminina".
Sãri sãrJ, de mrido algum, homens qu� se afastam, quanto ao fí­
riicri, d<J tiprJ médio masculino: mesmo aquéles que, quanto à apa­
r<:ncia, Hão tipicamente masculinos, podem apresentar uma con­
duta "feminina". O que nos importa não é descrição minuciosa
d,::H,a cr,ndut.a mas, a<i contrário, a explicação de seu apareci­
men!zl. Devemos indagar se tal comportamento pode ser dedu-
zi d,,, de modo racional, de outras características de tah; homens /
,,, antm; de tud<J, rle sua históría primitiva, de suas experiências
1: írnrirem,õr.;,;. Além de ipúmeros traços exteriores, aparece, ge-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 207
ralmente, nesses homens, uma repugnância, mais ou menos pro­
nunciada, para as atividades especialmente "masculinas". N a
maioria elos casos, êles se preocupam bastante com sua saúde
dando-lhe uma atenção que chegam à hipocondria. Vários dêle�
renunciam, quase inteiramente, a qualquer esfera da vida: mui­
tas vêzes é a da profissão, já que não se sentem "homens para
êste trabalho", muitas vêzes, também, é o domínio erótico e,
muitas vêzcs, o da pura sociabilidade. Quanto a essa última,
muitos clêles procuram e conseguem realizar relações sociais ;
niio, porém, nos círculos e camadas a que pertencem, por sua
origem, educação e profissão. Êles se unem a tipos expresimmente
ma�culinos, de que se tornam, por assim dizer, seguidores (por
vêzes com uma nota mais ou menos distinta de homossexualidade,
que não existe, contudo, na maioria dos casos) ou convivem,
quase que exclusivamente com mulheres, representando, então,
um papel hemafrodita especial, que não é propriamente masculi­
no, ou pertencem a um círculo estético e exclusivo de indivíduos
semelhantes, ou, finalmente, procuram a convivência de pessoas
ele camada social inferior. Êstes traços são mais importantes,
para julgar essa modalidade de conduta, do que a "feminilidade"
que nela aparece insistentemente. Seria melhor, ao invés ele qua,
lificar êsses homens como "femininos", denominá-los "não-mas­
culínos". Mas a linguagem não tem um têrmo que exprima a ne­
gação da masculinidade. Por isso consideramos "mulher" a um
homem que não é homem. O que há, porém, de essencial, nesses
homens, é a sua atitude negativa em relação ao papel impôsto
pelo seu sexo. Êles têm uma analogia com aquelas mulheres, que
estão descontentes com os trabalho e a situação de seu sexo e com
o próprio sexo a que pertencem. É evidente que elas não poderão
renegar sua natureza: podem, apenas, proceder como se a rene­
gassem. O mesmo se dá com o homem que nega sua masculinidade.
Ambos - a mulher que quer ser homem e o homem feminino -
são pessoas que fogem, ou desejariam fugir, por qualquer mo­
tivo das tarefas que lhes são impostas. O que nos interessa é o
fat� de que êste homem feminino tem, como qualquer mulher,
uma tendência à emotividade intensa, ao passo que as mulheres
representando um papel masculino (das quais há várias tonali­
dades), demonstram emotividade relativamente inferior.
Poder-se-ia dizer, portanto, que a maior ou menor emotivi­
dade são a característica dos papéis dos dois sexos, respectiva­
mente. Essa circunstância não contraria a afirmação de que um
vivo sentimento da vida é a característica fundamental da mu­
lher. Deve-se porém acrescentar que, em caso de necessidade, é
natural que alguém apresente uma emotividade superior, ou a
conduta correspondente a tal emotividade. Mas é inteiramente
incompreensível, que uma pessoa, a cuja essência última corres-

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208 RUDOLF ALLERS

ponde uma viva exigência de afetividade (como no caso das mu­


lheres) possa representar um papel que não reclame a emotivi­
dade. Tal atitude pressupõe um grau de domínio de si e triunfo
sôbre si mesmo, que não podem ser atribuídos às mulheres por
aquêles que têm tal concepção.
Resulta daí que a idéia de explicar a maior emotividade das
mulheres (que, de fato, se encontra, em média, em todo o sexo
feminino), pelo menos em parte, como um resultado de situações
reativas, como uma resposta a impressões e como um produto de
determinadas experiências, tem, sem dúvida uma grande pro­
babilidade.

4. O desencorajamento feminino e seus efeitos

Entre as atitudes emocionais, que se julgam mais fortemente


impressas na mulher do que no homem, deve-se mencionar, com
pleno direito, o grupo das que se reúnem em tôrno do conceito
central da ansiedade, tais como: o susto, a covardia, etc. HEYMANS
considera típica, na mulher, a característica essencial do desen­
corajamento e vê, neste, uma conseqüência da emotividade que é,
para êle, a propriedade primordial. Cabe, porém, uma indaga­
ção: Não será justamente o contrário? Não será a emotividade
aumentada um efeito <le um desencorajamento profundamente
arraigado na mulher? De qualquer maneira, tal desencoraja­
mento seria diverso daquele que HEYMANS tem em vista. Já vimos
que a falta ele coragem é correlativa de uma insuficiente cons­
ciência do próprio valor e que o homem se esforça e deve esfor­
çar-se, sempre, em ocultar e encobrir, à sua própria consciência,
esta preocupação de não ter valor próprio, porque a confissão de
seu desvalor nfw pode. ser suportada por êle. Como efeito se­
cundário dessa primitiva vivência ele depreciação, aparece, então,
como medida de proteção e segurança, urna covardia de segunda
ordem, por assim dizer. Sua característica é excluir, de antemão,
tôdas as situações em que possa ser posta em dúvida a preser­
vaçflO dêsse valor e em que haja, po1· conseguinte, um perigo de
descobrir-se o clesvalor último. Referimo-nos, aqui, ao desenco­
rajamento primário, original e imediato, que deriva da consciên­
cia da depreciação própria. Para sermos exatos, deveríamos de­
sig-ná-lo, ante8, como dcsi\nimo. Porque não acreditamos que se
trate ele uma falta de corag-em inata, que pertencesse necessària­
mcnte à natm·eza .feminina como traço egsencinl. Essa falta de
coragem parece-nos, ao contrário, ct mod1'.ficação de ·zuna atit·ude
qua não era, ?Ht origem, '11-ma atitude sem coragem,, em virtude
de influências da experiência. É digno de observação o fato de
que, em muitas mulheres, a falta de corngem só aparece no deem·-
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ps Ieo L oGIA D o e A Jt Á T •: lt 20!!

rer da vida e, na maiori; da11 vêzc11, nem ano!l p<111tcriorcH da


infância. A puberdade, ou o aparecimento de ddcnninadrn1 pro­
priedades espec1fícamente fcminina11, tem apen:rn papel !lecunM1rio
e auxiliar, já que êsse deiiencorajamcnlo coHl;um11 apan!ccr, em
geral, muito antes do despertar da :icxualidade, ou :ieja, por volta
dos 6 ou 8 anos. Não estamos, pois, diante de uma falta r1riginal
de coragem, mas diante de uma perda de coragem, que é Hecun­
dária e aparece posteriormente. Urge, poiH, indagar, 11c He pode
descobrir uma relação visível entre a vivência 1la depreciaçiio e
a emotividade. Se isso se verifica e se se pode mostrar, também,
que os homens a que denominamos "femininos" em virtude de
sua forte emotividade. Se isso se verifica e se se pode mostrar,
também, que os homens, a que denominamos "femininos" em vir­
tude de sua forte emotividade, padecem também de uma vivência
de depreciação, e, mais ainda, que tal vivência é a base da inten­
sificação das reações de sentimentos, então não poderá ser jul­
gada boa a afirmação de que a emotividade é uma característica
fundamental ela natureza feminina e tal afirmação não poderá
ser mantida, pelo menos com a extensão habitual.
Torna-se claro, na verdade, o que já afirmamos muitas vêzes:
·que é um empreendimento inteiramente impossível e falso querer
explicar completamente uma pessoa, ou um tipo humano, a partir
de um princípio único. Contudo, sempre que um fator qualquer
importante está em ação no homem, há grande probabilidade de
que se revê, de certo modo, em tôdas as suas ações. Nossa tese
não é a de que todos os traços específicos da mulher sejam con­
dicionados pelo desânimo e a primitiva vivência da depreciação,
nem de que as modalidades de vivência e comportamento femini­
nos "se originem da consciência da depreciação". Nosso ponto
de vista é, ao contrário, que tal "química da alma", que afirma a
transformação de certa espécie de fenômenos psíquicos em ou­
tros de outra espécie, provém de urna concepção fundamental
inteiramente falsa. Negamos, de modo categórico, essa concep­
ção ingênua. O que afirmamos - de acôrdo com a regra metó­
dica fundamental tantas vêzes mencionada - é, tão somente, ser
impossível falar de propriedades primárias da natureza feminina,
antes de ter pesquisado as condições reativas e a forte ligação
existente entre a emotividade e o desencorajamento femininos.
É fàcilmente compreensível que há uma associação entre a
timidez e o desânimo, e que aquela é uma conseqüência dêste.
Porque a timidez, já do ponto de vista biológico é uma medida
de proteção dos fracos. Seu aparecimento é uma advertência,
em tôdas as situações em que o indivíduo está ameaçado, ou para
as quais não está preparado. Já vimos, anteriormente, a necessi­
dade dessa medida. A faculdade de assustar-se, está, pois, ligada
ao desencorajamento. Mas os efeitos do desânimo e do medo por

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210 RUDOLF ALLERS

êle ocasionados, vão ainda mais longe. Assim comr, desvaloriza­


mos as coisas, que, por motivos exteriores, não podemoH obter
(a fábula da rapoHa e das uvas) também desvalorizamos aque­
las em que niio podemos confiar. Quem tem medo das montanhas,
ou fugirá delas para morar nas planícies, ou dirá que as mon­
tanhas são feias e é uma tolice escalá-las, ou afirmará, ,;im­
plesmente, que as montanhas absolutamente não o "ínleresimm".
E, se explicássemos a falta de interêsse elas mulheres pelas
coisas abstratas e as outras mencionadas por HEYMANS, pelo
fato de que elas temem não estar preparadas para tais coi11as '!
É bem interessante que HEYMANS, com tôcla a razão, reconheça a
capacidade intelectual das mulheres para tais coisas, embora ex­
plique sua pouca produção nesses assuntos por uma falta de in­
terêsse. Parece-me razoável a interpretação aqui apresentada:
as mulheres têm um entendimento satisfatório; falta-lhes, porém,
a. confia.nça.
Não queremos seguir, em tôdas as minúcias, as ponderações
ligadas a êste assunto, ma sapenas mostrar seus resultados gerais.
Porque estamos tratando, menos de uma caracterologia descritiva
e genética do que de um ponto de vista destinado às medidas
práticas da educação. Somos, pois, de opinião, que uma série de
modos de comportamento emocionais, mais ou menos típicos da
mulher, podem ser também considerados como uma conseqüên­
cia, ou uma expressão, do desencorajamento genérico. Isso se dá
principalmente (ou talvez, exclusivamente} com as reações de­
terminadas pelos sentimentos, que costumam ser, de certo modo,
negativamente valorizadas. Sem pretender uma enumeração com­
pleta, assinalaremos:. a volubilidade, a excitabilidade, a sensibili­
dade, a minuciosidade e a falta de objetividade - tôclas apare­
cendo em diversas variantes. Muitas dessas qualidades podem,
contudo, ter um emprêgo positivo. Nesse caso, elas deixam, na­
turalmente, de ser as mesmas. Todos podem ver que há uma
diferença entre dizer: "As mulheres não são objetivas" e dizer:
"As mulheres olham mais para os motivos pessoais, <lo que para
os motivos objetivos". Imagine-se, por exemplo, a atitude tomada
diante de um crime: o homem se faz, de preferência, o represen­
tante do pensamento jurídico abstrato, ao passo que a mulher 11:10
vê a infração de um parágrafo legal, mm,, ao contrário, um fato
pessoal. A sentença "Smnmum jus, munma injurin" podet•ia sei·
atribuída a uma mulher. MüNsn,RBERG já disse, uma ve-i,t que
as mulheres eram pouco indicadas para o ofício de juiz ou de ju­
riHlo, porque se deixam influenciar muito pela primeira impres.
são e pouco pelos fatos da prova. Há nisso alguma verdade.
Aliás, saber se essa primeira impressão deve ser necessàriarncnte,
I. Psychot,chmh (Leipzig, 1914).

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 211

ilusória, constitui já outra questão. Mas pode ser, também, que


a atitude diferente das mulheres, em relação a tais casos, resulte
de sua inclinação a considerar o individual às expensas do geral.
Somos de opinião que tais peculiaridades da mulher, se bem
que devam ser expressamente consideradas como de valor nega­
tivo, podem ter uma estreita conexão com o desencorajamento.
O volúvel, por exemplo, é aquêle que duvida elo êxito de um
esfôrço permanente. Também as crianças são, muitas vêzes, vo­
lúveis em suas ações, ou porque os resultados destas não surgem
imediatamente, ou porque elas têm a consciência das limitações
de seu poder. A excitabilidade, a impaciência, etc., são, por um
lado, meios de operação da vontade de poder dos fracos e, por
outro lado, uma conduta que não vê a terminação de uma situa­
ção nas próprias condições que ela contém, mas num rompimento
e numa fuga. Do mesmo modo, quem não acredita na possibili­
dade de um sucesso nas grandes coisas, apega-se ao seu direito
nas pequenas e quer triunfar nelas. Outros exemplos poderiam
ser dados.
Deixaremos de lado, como já foi dito, uma exposição porme­
'norizada. Parece-nos mais importante indicar, que, nessa associa­
ção da vivência da depreciação com a alta emotividade, ainda não
foi dito tudo o que se poderia dizer. De fato: podemos, com tôda
a razão, colocar-nos no. ponto de vista de que, em relação' aos dotes
intelectuais do homem e da mulher, não existe uma diferença es­
sencial, nem mesmo, uma diferença de gráu. (0 que se disse sô­
bre a diferença de volume do cérebro feminino já foi reconhecido,
há muito tempo, como falso). Podemos, pois, também, com todo o
direito, estar convencidos de que muitas das peculiaridades que
parecem especificamente femininas, são fenômenos secundários,
nascidos de uma vivência de depreciação que poderia ser evitada_
Contudo nos afastaremos também dêsse falso extremismo, que su­
prime tôda distinção entre o homem e a mulher e atribui tôdas as
diferenças unicamente às influências do ambiente. A concepção da
pessôa humana e sua unidade corpóreo-espiritual, já desenvolvida
por nós (se bem que se deva confessar que muita coisa deveria
ser ainda estudada, e mais minuciosamente, se quiséssemos ex­
plicar em todos os seus aspectos êste difícil assunto), limita, sem
dúvida, a importância casual da condição corpórea, no sentido de
uma casualidade natural necessária. Mas ela considera necessá­
rias as diferenças biológicas existentes, não como causas, na ver­
dade, mas como sinais de diferenças pessoais profundru;. O cará-
- ter do homem se apresenta, então, a nós como a norma de suas
ações, mas a sua conduta aparece como uma relação entre a pes­
sôa e o mundo. E' claro, pois, que, à diferença essencial entre o
homem e a mulher já expressa na diferenciação biológica e, por­
tanto, à diversidade de um dos membros da relação' deve corres-
'"

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D1qlldl1zadoçomCamScann�r
212 RUDOLF ALLERS

ponder urna diferença na relação, e, pois, também, no momento


formal de tôdas as ações de uma pessôa, isto é: no caráter.
Se estivemos pouco inclinados a postular uma igualdade últi­
ma das condições pessoais mais profundas do homem e da mulher
(porque tal afirmação será sempre, para os que a fazem, um pos-
1 tulado), devemos ter ainda maior precaução ao passar às conse-

1 qüências práticas de tal hipótese. Não se pode, realmente, con­


. cluir, da natureza do homem e da mulher, tal como foi descrita e
será ainda estudada, que certas formas de vida, ou certos traba-
, lhos, estejam, desde logo, excluídos para a mulher, ou que uma
atividade feminina em tais setores deva ter um resultado necessà­
riamente insatisfatório. Os caractéres são, por certo, mui diversos,
mesmo em pessôas do mesmo sexo, e podemos encontrar caracté­
res muito diferentes nos homens, que no mesmo domínio, reali­
zam p'roduções aproximadamente equivalentes. Apesar disso, há,
como já mencionamos, uma espécie de "caráter profissional" -
em parte, porque homens de certo tipo de caráter tenham para
· determinadas profissões, e, em parte, porque as condições especí­
ficas e as exigências do ambiente da profissão contribuem para
formar o caráter. Não se pode, porém, duvidar de que, mesmo
entre os que pertencem a uma profissão, encontram-se os mais di­
versos caractéres. Não há, pois, razão em dizer, por exemplo, que
a mulher é essencialmente inapta para determinada profissão, sob
a alegação de que as mulheres são diferentes dos homens, ou de
que tal profissão foi, até hoje, exclusivamente masculina. Ques­
tão inteiramente diversa é, naturalmente, a de saber se vale a
pena - do ponto de vista de uma perfeita realização prática da
sociedade e das melhores condições de obtenção dos fins indivi­
duais - que a mulher siga tal profissão. Porque, se olharmos as
coisas em conjunto, a aptidão não é, por si só, urna razão sufi­
ciente para a atividade real. Um indivíduo poderia ter grande
aptidão para roubar, sem que, por isso, alguém exigisse dêle uma
educação e uma realização de tais aptidões.
Não poderemos estudar agora, pormenorizadamente, as qua­
lidades específicas de ambos os sexos, porque tal análise exigiria
largo espaço e amplas pesquisas preliminares, especialmente de
natureza crítico-metódica. Por isso, contentar-nos-emos com apre­
sentar, sob a forma de aforismos dogmáticos, um ou outro fato
.que nos pareça significativo.

5. Maternidade

A observação mais importante a fazer e que constitúi o fenô­


meno central é a subordinação da mulher à tarefa da maternidade.
Quando, pondo de lado tôdas as suas peculiaridades, tentamos de-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 213

terminá-la em SUii generalidade, ela se apresenta como a associa­


ção íntima de duas pessôas. Nem mesmo o maior dos amores en­
tre o homem e a mulher se pode aproximar dela. A relação entre
a mãe e o filho se exprime no plano biológico (embora não se
possa dizer que nêle se baseie) pela gravidez - uma forma de
associação vital, que nenhuma outra sobrepuja. Tal relação é
aprofundada pela vivência e ainda mais acentuada, em sua na­
tureza, pelo fato do· parto. Em todos os sentidos, o filho é, para
a mulher, uma criatura sua. Daí a expressão: "meu filho", que,
nos lábios da mãe, tem um tom e urna significação diferentes dos
de seu emprêgo pelo pai. A peculiaridade da relação entre a mãe
e o filho mostra-se também no fato, observado, com razão, por
ScHELER, de que a expressão "amor materno" é usual na lingua­
gem, ao passo que a expressão "amor paterno" parece pouco -fa­
miliar e estranha.
Ao fato inco�testável de que a mulher, por sua natureza, é
destinada a ser mãe e subordinada à maternidade (não impor­
tando que tal poss_ibilidade seja, ou não, atualizada), se liga, se­
gundo creio, à circunstância já mencionada, de que as mulheres
se interessam mais pelas pessôas que pelas coisas e preferem os
fatos individuais concretos às sínteses abstratas e gerais. Quando
se descreve a natureza feminina como 'terrena", indistinta, me­
nos espiritual, ligada às "fôrças telúricas", etc., tais denominações
não são tão inexatas. Mas não indicam, a meu vêr, um valor menor
da mulher, mas apenas um modo de ser diferente, que, na ver­
dade, deveria ocasionar, antes uma valorização maior da mulher
do que uma atitude contrária. Porque a relação entre a mãe e o
filho é a forma primeira da relação com os semelhantes e, ao mes­
mo tempo, sua mais completa expressão.
Os dois mandamentos - o do amôr a Deus e do amôr ao
próximo - são, na verdade, equivalentes. Eles são válidos para
todos os homenus sem distinção e, portanto, para os dois sexos.
Supõe-se, porém, que êsses dois mandamentos - não em seu
cumprimento, mas, por assim dizer, em sua corporificação - de­
vem ser divididos entre os dois sexos. Porque a destinação do ho­
mem ao sacerdócio habilita-o, especificamente, ao "servfço de
Deus", ao passo que a destinação da mulher à maternidade faz
dela, em especial, a coluna mestra do amor ao próximo. Assim,
como tôdas as mulheres se destinam à maternidade e como apenas
alguns homens são escolhidos para o sacerdócio, poder-se-ia supor
que a mulher preencheria, em geral, melhor que o homem, sua po­
sição no plano da Criação e na ordem da Salvação.
E' tempo de voltarmos às conseqüências práticas, que podem
ser tiradas de nossa exposição, sôbre o modo de formar o caráter
dos meninos e meninas. Já apresentamos uma série de falhas edu-
_
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214 RUDOLF ALLERS

cacionais que podem ter efeito sinistro, especialmente no ctc.s,:, do


desenvolvimento das meninas. Acrescentaremos agora outra obser­
vação. O fato de existir, incondicionalmente, uma àiferença ess12r;­
cial entre o homem e a mulher, não justifica, de modo algum. e
inconveniente já mencionado. Quando as qualidades diferente.;, da
mulher se apresentam conscientemente como menor q,lor, :::ó !-10-
dem surgir prejuízos. Se a nossa sociedade não atingir in.t:grrcl
reconhecimento da peculiaridade da mulher, todos os e;;:forços parc.
levá-la, de novo, ao lar, à familia e aos filho;; serão improfícuo;;.
O fato de que a luta feminina já não se dirige. desde algun:
tempo, para a liberdade, os direitos e o reconhecimento da posi­
ção da mulher, mas para uma igualdade de prfrilégios em rela­
ção ao homem e uma incorporação da posição dê:::te, mostra que
o movimento de emancipação, ou feminismo, teYe sua origem 110
ressentimento. E' por isso que muitos dêsses movimentos não atin­
gem o alvo ou, em certos casos, não se orientàm em direções ra­
zoáveis e se utilizam de métodos desagradáveis. �ão deYemos es­
quecer que as condições sociais e econômicas de nossa época obri­
gam um grande número de mulheres a procurai- profissõe:;: ;'ma:<­
culinas". E' inútil pregar que as mulheres só se deviam dedicar às
profissões femininas, quando não há lugar, nestas, para tôdas as
pretendentes. Por certo, as profissões de governante, enfermeira,
etc., são profissões eminentemente adequadas à mulher. 2\Ias, quan­
tas mulheres podem achar emprêgo como governante? Aqui, como
em tudo mais, um movimento de reforma só poderia ter por base
um conhecimento anteriores de tôda a situação e, não, começar
pelas mulheres, que, na maioria das vêzes, são apenas Yítimas
das condições da vida, sem ter culpa delas.

6. A educação de meninos e meninas

A tarefa de formacão do caráter é, nas meninas, mais difícil


que nos meninos, embo;,.a se pareça acreditar, em geral, no con­
trário. Do modo que as ceisas se acham hoje, a menina deve estar
preparada para duas eventualidades: a maternidade, com tudo
que a ela se refere, e a vida profissional independente. Se já há,
nisso, motivo para que se considere inexeqüível uma educaçãô pa­
ralela de meninos e meninas, também as pesquisas exatas de CH.
BÜHLER. 1 mostram-nos que as condições temporais do desenvolvi­
mento são tão diferentes, em ambos os sexos, que não se poderia
r�alizar um� c�educação, exceto no período escolar e, mesmo as­
sim, nos primeiros anos. Mesmo deixando de lado todos os moti­
vos de um perigo ocasional para a moral, a idéia de uma aoedu-
1. Ver a nota 3 da pág. 74.

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I' :-; 1 G O r. O (l IA D O CARÁTER 215
t'rl('IÍO ,:0111,11/1:tn, tl1n-011tl: lfillo o período da fuventude, seria er­
r,i11ta..
M:rn a 1wparaçiio completa dos sexos não é também aconse­
lhf1vel. Como preparaçfio à realiclacle da vida, são necessárias a
co11viv,111cía, a cnopcraçã<, no trabalho e a vida em comum, com
memhroH 1le ouf.ro sexo. Aqueles que são criados em completa se­
paraçiío ele JJeHHÍ1:w do outrn sexo, apren<lem dificilmente a tratar
com e:ü:rn qnnndo a vicia o exige. Daí provêm muitas dificuldades
no m:1lrimílllin e, lambém, na profissfw. Muitas profissões tornam
ncceHHúrio um entenrlimento entre ambos os sexos. O magistério,
a medicina e o cuidado dai; almas, por exemplo, são profissões
parn ambm; os :-wxm;, Elas elevem i;er conhecidas por ambos, não
:qwnaH atravéi; do estudo doi; livros, mas, com aquela compreen­
Hiio viva e real, emhorn irrefletida, que só a realidade pode for-
1iecc1·.
Jt:m relaçfio à formação do caráter dos sexos, ao auxílio e à
ccluca��iio preservadora do desenvolvimento das possibilidades, é
mais l'itcil, ele mo1fo geral, dar conselhos negativos do que conse­
lhos positivos. Talvez que a natureza humana - quando não lhe
,;üo opostos ohstúculos, quando é apoiada nessa base essencial que
é a vontade de podei· e quando o educador evitou todos os desvios
ocasio1rndos por mcclidas irracionais e conduta errônea - possa,
por si mesma, dirigir-se num caminho certo. Certamente, para
que :t menina se torne mulher e o menino se torne homem é pre­
eüm sentirem que os papéis, relativos a seu sexo e sua qualidade
de membros da comunidade, são adequados a êles e não podem
depreciá-los. Ainda mais: é preciso que tenham confiança em sua
possibilidade de resolver as tarefas que lhes são impostas. Tam­
bém nêsse ponto, a preservação da coragem, ou o afastamento do
c.lcsftnimo, constituem condição indispensável.
Ninguém contestará que estamos, hoje em dia, muito longe de
uma cornlição satisfatória da sociedade. Ninguém será tão cego,
a ponto de afirmar que as mulheres estão, atualmente, em bôa si­
tuaçflo (de modo geral; há, felizmente, um grande ni'.1mero delas,
cuja sorte é agradável e cuja situação, na vida, é adequada). Sem
dúvida, o fato de que, entre os "net·vosos" de todos os matizes, o
maior contingente seja fornecido pelas mulheres (embora não
seja pequeno o número de homens), constitúi prova de que as
mulheres se acham em piores situações de conflito do que a gene­
ralidade dos homens. (Note-se, porém: êsse fato não prova uma
disposição ou constituição especial da mulher para as doenças
nervosas). Devemos exigir com insistência - tanto no interêsse
da normalidade individual como no da sociedade e, acima de tudo,
no da conservação de um apreciável nível ético-religioso - que
:it! comece pelo problema que foi aqui indicado. :esse é um dos pon­
tos cm que a educação da criança e a reeducação do adulto se

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21fj 1t 1J J> o 1, 1" A 1, 1, Y. Jt B

acham, muitaH vé,,;r:11, di1111tr:11 rfo muralh:t11 iritnmaprmívcin. Se ti­


vcrm0f1 qun r1!ntmcinr a lll1t111<m 1:11forr;r111 11í,brc Í!/111c prmu,, iHHü rc-
1mltará, pel<J menrm, cliw limíl.ar;11rn1 rr:11i11 <: rmt11raiH de tôda obra
humana, m:rn uiío por f!ll1.armon dinnfA': d1; inrlivfdurm ininflucnciá­
vefo, cujaH faculdade11, com1Utuiçiio ou o quer que m,ja, tornem im­
posHível a correção. J,;ncontrurernon ,,lmUtculrm irrcmovívds nas
rclaçõeH :iociaÍH, econômic1111 e politic1tll exi11t.1mkH na realidade e,
em últimn :rnálifir., nu fato de que a m1t1111a l1umana carece <lo sen­
timento de uma verdadeira frait:rnidiule, por Ll:r o homem per­
dido, em grnndr. rmrl.1:, HWt verdaddra ntitude para com a huma­
nirlnde. Não {: nece1111ário fJXplicar 11m: o hom1!m perde Heu senti­
mento de humanidade, rm medida 1:m 11uc 11e afunta de Deus.
O chanceler auHl.ríacn, Monncnhor S1-:11 1EL, emprerçou, uma
ve7,, a exprmrnão "1mnenmento ditH ulmilH". EHHa cxpresHão per­
deu-He noH dias de hoje, como tunbtll outriu1 expresHões importan­
tcH. Seria neceimário, JJOrém, que o homem tornaHHC a refletir sô­
bre o r>rofundo conteúdo e a exi11,énci11 que He acham nessa frase.
Porque OH problemaH d,i mlucução, profiH11iío e situação familiar e
social da mulher e também 011 do dc11tino de nmwm filhos, nosso
povo e nosHa Igreja, que tão ng1.11lamcnte He põem nos dim1 de hoje,
só podem ser reHolvidos por uma reforma geral e profunda. Não
os poderemo11 resolver peln tentativa me11quinha de retroceder a.
situações anlerioreH (o que provoca, Hcmpre, atritos), nem por
críticas e melhorias fcituH aqui e nlí, mas apenm1 por uma pro­
funda e verdadeira "mctanoiit" de tôcla u noHHa cultura. Só quan­
do nos tornnrmoH inteiramente outroH, poderemofl tornar-nos me­
lhores. MaH, onde está nquêle que vai Hurgir, para preparar-nos
o caminho para o Senhor? Ouvimos muitos pregadores no deserto,
mas nenhuma voz tem n fê>rça e a penetração da voz <le um S. JOÃO
BATISTA. Contudo, j{t é tempo de que alguém desperte os homens,
chamando: µHaumdte l "(Mudai V0l!Sos corações!).

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VI. OS ANOS POSTERIORES DA INFÂNCIA: A ES­
COLA, A PUBERDADE, O PROBLEMA SLXUAL

1. O jovem. e o ambiente social

Não foi por acaso que demos um tom especial às explicações


das páginas precedentes. Porque, se as coisas de que aí tratamos
justificavam o otimismo - enquanto considerávamos apenas a
formação do caráter da criança no seio da família, excluídos cer­
tos erros de educação evitáveis em tôdas as circunstâncias -, não
poderá conduzir ao otimismo a reflexão sôbre certas relações de
fato existentes na sociedade. E' possível, por certo, e ocorre mui­
tas vêzes, que, apesar de todos os obstáculos, se formem caracté­
res perfeitos e se criem homens capazes de afirmar sua persona­
lidade e sua existência, no meio de tôdas as imperfeições; que não
significam, para êles, o que há de verídico e essencial na vida .
Mas, para a maioria, são necessários uma tensão e um espírito de
sacrifício heróicos, quando querem manter intacta e integra sua
vida. O "integer vitae scelerisque pu.rus" tornou-se bem difícil para
o homem de hoje e os "scelera" não são, na maior parte, fruto de
urna culpa pessoal.
Não é difícil preparar uma criança par·a as fadigas da vida,
ou os trabalhos que a esperam, e ensinar-lhe que o sucesso não é
tudo e a grandeza é desprezível. l\ias é difícil prep:mí-In para vi­
ver em comum com aquêles que só adoram o sucesso e só vêem no
próximo um meio para atingir seus filhos, aquêles cujo caminho
é obscuro e sinuoso e não compreendem a franqueza e a bondade,
porque vêem, em tôda atitude, apenas urna máscara e, em tôdo se­
melhante, não um colaborador, mas um inimigo. Colocados em tal
posição, êsses homens não querem e não podem reconhecer qual­
quer valor superindividual, porque tudo lhes parece relativo e alea­
tório. Por isso, não sabem visar senão a exaltação do próprio eu,
por mais efêmera que seja, mesmo quando consiste, apenas, na
consciência de extrair de um momento tôdas as possibilidades de
prazer nêle contidas. Estudaremos depois êsse tipo, que se ngarra,
cada vez mais, a si mesmo, apesar de tôdas as oposições. Ver-se-á,

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RUDOLF ALLERS

e�Uio, que o !etrato acima esboçado não é, e modo algum, exage­


d
nulo, como poderia parecer à primeira vista.
f:sse tipo é, antes e tudo, o de um homem que perdeu a segu­
rança. Por que uma grande parte dos homens de hoje não conse­
gue mais encontrar a segurança e se sente tão profundamente in­
certa? - Não nos cabe indagar aqui. O que nos deve interessar
é o fato de que há um estádio, no provesso evolutivo do indivíduo,
que representa aquêle tipo. De fato: a época da puberdade produz
um estado e uma atitude semelhantes. Poder-se-ia dizer, com ra­
zão, que nosso tempo sofre do excesso de certo ".íuvenilismo", de
uma permanência na fase da puberdade. Faltam-nos homens que
tenham atingido a plena maturidade. Por certo tal afirmação des­
pertará objeções. Que há, porém, bôas razões para justificá-la,
eis o que será mostrado no capítulo sôbre a neurose.
Pairam, sôbre a época da puberdade, as sombras que as for.
mas sociais insatisfatórias de nossa realidade estendem sôbre a
vida dos adultos. 1 Porque a puberdade é a época em que o homem
deve passar da vida da infitncia para a vida adulta. Não deixam
de ter razão os homens que, consciente ou inconscientemente, te-
. roem entrar na vida adulta e se esforçam em retardar os momen­
tos e os anos da vida adulta. Se considerarmos apenas a realidade
do momento, não podemos deixar de lhes dar razão. Mas quando
atentamos para o fundamento e a finalidade última das leis essen­
ciais da vida humana, sua atitude não nos parece justificável.

2. A essência da puberdade

Na maioria das considerações sôbre a época da puberdade e


as mutações de caráter e espírito então realizadas, costuma-se dei­
xar em segundo plano o momento da maturidade sexual. E' ver­
dade que a vivência do sexual constitúi, para o próprio jovem,
um momento impressionante; também são importantes, para o
observador exterior, os fenômenos corporais evidentemente liga­
dos aos órgãos sexuais, que costumam ser percebidos nessa oca­
sião, Mas isto é apenas uma das· faces do processo completo da
puberdade e pode parecer discutível que tais coisas sejam, na rea­
lidade, um momento primeiro, ou tenham um papel predominante
na transformação da puberdade. Para justificar essa opinião, de
certo modo duvidosa, aponta-se o fato de que o aparecimento dos
chamados caractéres sexuais secundários, deixa de realizar-se, fí.
sica ou espiritualmente, enquanto não ocorre a madureza sexual
somática.
1. �•tas afirmaçõ,s são em parte completadas pelo que foi dito em meu livro
P,y_cho/og,; des Geschlec/,rs/ebens (Munich, 1929) e em Medizinische Charalturo•
/ogie.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 210
Egsa observação tem cabimento, na verdade. Foi confirmaria
tantas vêzes, que não se 110cle clu:7irlar dela. E' discutível, porém,
que se devam reconhecer, sem maior exame, as com1cqiiimcías uni­
versalmente tiradas rle tal observaç:to. Se comprecndermrn-1 que a
pess0n corpóreo-espiritual forma uma unidade inrliHHOlúvel r: que
uma modificação tle qualquer espécie deve sempre atigir trido o
conjunto, será ainda mais provável que as coisaR riossam ser en­
carnd:rn ele outra maneira. E' certo que a ablação das glfrndulas
sextlllis (castração) torna impossível certos processos evolutivos,
ma:s ela não ocasiona a simples parada da evolução. O castrado
adulto é certamente um adulto, embora seja formado ele morlo rli­
ferente, em comparação com um indivíduo cujo desenvolvimento
não foi perturbado. E' como se a retiraria das glándulas sexuais
subtraísse à evolução um domínio em que esta exerce normal­
mente sua atividade, corno o faz noutras regiões do organismo.
nla:, os processos evolutivos, entanto que tais, não podem ser eli­
minados, porque, em suas bases e origens, não são determinados
pela presença ou as condições de determinados órgãos, emhnra
exista tal determinação em relação às conseqüências de tais pro­
cessos. A razão de ser do aparecimento de processos evolutivos
estú, porém, nos fundamentos últimos da unidade orgânica, a cuja
natureza pertence a possibilidade de evoluir. A puberdade normal
é ai:sinalada, via de regra, por uma aceleração especial do desen­
volvimento. Não conheço qualquer prova de ter sido retardada a
velocidade dessa evolução em conseqüência de supressão das glfm­
dulas sexuais (feita antes da maturidade sexual, evidentemente),
ou mesmo de que se tenha anulado, o que não seria impossível.
O que vemos na evolução sexual da puberdade é apenas uma
face do processo de transformação que se passa, por essa época,
na pessôa inteira. O domínio da patologia nos fornece ainda vá­
rios casos notáveis, em que, em virtude de modificações patológi­
cas na primeira infância (aos dois anos e meio por exemplo)
podem observar-se sintomas corpóreos cle maturidade sexual e ele­
vação considerável da estatura, embora não haja qualquer modifi­
cação correspondente no domínio espiritual. Isso prova que o pa­
pel causal da maturidade sexual corpórea é certamente muito exa­
gerado, em geral. Os fenômenos de tipo sexual são, de certo modo,
os mais impressionantes, mas não os mais importantes no pro­
cesso de conjunto. Do mesmo modo que, na epilepsia, o ataque
epilético atraiu, por muito tempo, a atenção dos estudiosos, por
ser o sintôma mais dramático e evidente, até ser reconhecido
como um simples fenômeno parcial e não corno o que havia de
essencial no conjunto dêste processo mórbido, assim também, no
presente caso, nossa atenção se dirige para o que é mais evidente
e tem certa importância, embora seja apenas uma face do fenô­
meno.

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220 RUDOLF ALLERS

A natureza da transformação da puberdade não se revela


quando pomos em primeiro plano o momento da maturidade se­
xual, o aparecimento e a vivência da excitação sexual. Pondo de
parte o fato de que as manifestações psicológicas e caracteroló­
gicas, distintivas dêsse período da vida, podem também aparecer
sem a vivência consciente da sexualidade, especialmente no caso
das meninas, vê-se que a problemática vivida dêsses anos não pode
ser concentrada - nem sempre, nem exclusivamente - em tôrno
da "questão sexual" e que ela encobre, uma análise de outros
traços, evidentemente mais profundos. Vamos, primeiramente,
ocupar-nos dêles. Depois, falaremos do papel do momento sexual.
Não se pode acreditar que a infància seja uma evolução per­
manente e uniforme, cujo calmo desenvolvimento é rompido brus­
camente, pelo "período tumultuoso" da juventude. Há, na pró­
pria infância, períodos de transformações bruscas e progressos
lentos. Do mesmo modo que as considerações de pêso e estatura
são mais importantes (de modo absoluto ou relativo) nos primei­
ros anos, é também natural que a primeira fase do desenvolvi­
mento do espírito apresente um progresso mais rápido. Quando
se compara a totalidade de conhecimentos adquiridos pela crian­
cinha (andar, falar, utilizar as coisas, etc.) com sua aquisição de
conhecimentos posteriores; esta parece bem inferior àquela. Mas
os conhecimentos e faculdades já têm, em grande parte, uma exis­
tência, antes da afirmação de certos traços pessoais determinados
e do caráter. Certos traços específicos aparecem, na verdade,
muito cêdo e a criancinha já deixa adivinhar a estrutura dos seis
ou sete anos . Mas tais expectativas podem levar a sérios enganos.
Novas peculiaridades inesperadas podem aparecer; outras, que
pareciam bem marcantes, podem desaparecer; finalmente, a de­
terminação geral da conduta pode experimentar uma transforma­
ção, que, na maioria das vêzes, parece, ao observador, inteiramente
injustificável.
Só pelos seis ou sete anos (às vêzes um pouco antes e, às vê­
zes, um pouco depois), a criança dá a impressão de ser alguma
coisa de completo em sua espécie, de ser uma criança acabada.
Os anos que se seguem não trazem alterações essenciais. Por vê­
zes, certos traços típicos da primeira infância, que haviam sido
ainda conservados, podem ser bruscamente apagados, mas não
ocorre qualquer transformação profunda, ou qualquer incorpora­
ção de elementos essencialmente novos. Só na puberdade, ou nos
dois anos que a precedem, começa a surgir algo de novo.
A mencionada consolidação, que se dá por volta do período
de iniciação escolar, está, evidentemente, em conexão estreita com
o fato de que a criança possúi, acidentalmente, nessa época urna
imagem bem reduzida do mundo. Se fôr inteligente e viva (o que
acontece quando o livre desenvolvimento de suas faculdades não

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 221

foi prejudicado pelo desencorajamento, a intimidação e o cons­


tante: "não entendes isto") poderá ter então uma idéia clara sô­
bre os traços gerais das leis que dominam seu mundo. Natural­
mente, isso não se dará, na maioria das vêzes, por um processo de
pensamento racional, mas por meio de processos que lhe são, no
fundo, semelhantes. Por certo, a criança ignora muitas coisas e
tem consciência desta ignorância; por isso interroga, constante­
mente, a respeito de um número infinito de particularidades; tais
perguntas, porém, se referem às particularidades e coisas concre­
tas que se acham ordenadas num esquema já organizado (muitas
vêzes à fôrça). Muitas crianças constróem, por essa época, con­
cepções complicadas do mundo, do mais amplo tipo. Como disse­
mos, porém, o caráter deve ser considerado como uma estrutura,
ligada à relação entre o eu e o não-eu. Êle depende, pois, do não-eu,
isto é: do mundo, ou da imagem do mundo realizada pelo. sujeito.
Como, porém, essa imagem se torna, nesses anos, relativamente
estável, a natureza e a conduta da criança adquirem também, por
êsse tempo, a consolidação já mencionada.
Essa imagem do mundo e a atitude dela resultante são, em
todos os casos, o material em que se exercem as fôrças de forma­
ção posteriores e em que se desenrolam os processos de transfor­
mações. Mas as faculdades psicológicas e caracterológicas coloca­
das no homem necessitam de um "tempo de manifestação" espe­
cial, como fazer vêr, de modo claro, os fenômenos corpóreos da
puberdade. Se, portanto, o que passára, até então, despercebido
aparece como "quase novo", a influência dessa novidade eventual
só se fará valer sôbre o já existente.
.Aqui se verifica, novamente, a decisiva importância dos pri­
meiros anos de vida e, por conseguinte - segundo o que já disse­
mos - das influências ambientais a que o homem está sujeito
nêsse período. A experiência dos seis primeiros anos (a idade pré­
escolar) é fundamental paar todo o desenvolvimento posterior do
caráter. Portanto, qualquer pessôa, a quem é confiada a crianci­
nha, tem a maior responsabilidade na futura formação caractero­
lógica dessa criança.

3. Influências escolares

Na verdade, não se pode contestar que os efeitos dos anos se­


guintes contribuam também para as formações e transformações
- particularmente os anos de escola. Em primeiro lugar, a escola
pode ser a causa de inúmeros danos. E' duvidoso que ela possa,
com exceção de raros casos, obter algum sucesso corretivo, quando
as coisas já se acham muito complicadas. Quando uma mudança
favorável aparece no período escolar, isso não é realizado pela es-

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222 RUDOLF ALLERS

cola mesma, mas resulta, ou dn sociednde dos colee"as e dn conse­


qüente snpressflo de um foolarncnto qnnlqner, ou cto co1wfrio hu­
mano com fü;te ou aqnêle mestre.
Deve sempre ser acentundri, com tõda n ênfase, que a corre­
ção posterior, surgicla cm conscqiiêncin de um esfôrço consciente
ou ele um acaso feliz, acha sempre diante de si, como que um ma­
terial já formado, cm que o estado, a medida e o resultado de
tôcla melhoria já se encontravam es,;cncialmente determinados.
Por isso, a educação da casa pntcma, que se inicia nos primeiros
anos ele vida (e, mesmo, de certo modo, antes clêstes), é importan­
tíssima para a formação do caráter.
Devemos dizer agora algumas palav1·as sôbre a internação.
Acontece muitas vêzes, que as nccessirbdes sociais de nossa época
obriguem muitos pais a fazer com que os filhos ainda pequenos
fiquem, pelo menos durante todo o dia, num instituto. ,Já rlisse­
mos que tal sepa_ração poderia ser indicada, no caso em que a edu­
cacão do lar não se pode contrapôr aos perigos ela situacào rle fi­
fh; Ílnico, nem impedir o desenvolvimento da formação defeituosa
do caráter que l'esufta deRsa situação. Quando fazemos abstração
rle coações exteriores que agem sôbre os pais, tais razões são as
únicas justificáveis para afastar a criança dos pais. (Natural­
rnente, falamos apenas ele C!'ianças "normais"; o caso das crimi­
nosas ou das que são, de qualquer modo, anormais, será estudado
depois). Não se deve esquecer que há, na educação em internato,
três desvantagens importantes, mesmo pondo de lado o fato de
que o cuidado individual, a compreensão viva e a íntima convh·ên­
cia pessoal, tais como devem existir entre pais e filhos. nunca
poderiam ser substituídos pela educação em internato, por melhor
que fôsse. A primeira das três desvantagens é a seguinte: a cri­
ança vive, num internato, no seio de uma sociedade artificial, que
não é de modo algum uma reprodução ela realidade, isto é: não
reproduz a sociedade em que vivem os adultos. Por isso, o inter­
nato não constitui, de modo geral, uma bôa preparação para a rea­
lidade da vida. O artificialismo de sua sociedade é dado pelo fato
de que a vida em comum é, aí, apenas com criaturas cio mesmo
sexo e de idades aproximadas e que os adultos rlessa socicclacle são
professôres, inspetores, instrutores, etc. - o que produz um au­
mento ela distância, porque aquilo que poderia diminuí-la, ou ni­
velá-la ( o amor natural e pessoal), não pode ser encontrado aqui .
A segunda desvantagem está no fato de que a vida em internato
é absolutamente regulada, com relação à divisão do tempo. Aulas,
estudos, recreios, etc., são coisas pré-estabelecidas. A crianca não
aprende aquilo de que necessitará mais tarde (na escoln superior,
e, mais ainda, na profissão), a saber: dividir, ela própria, o seu
tempo; calcular a duração de determinado trabalho; enfim, deci�
dir, com sentimento de responsabilidade própria, sôbre seu traba-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 223

lho e seu descanso. A terceira desvantagem é que os fins apresen­


tados à criança no internato não correspondem, em geral, às reali­
dades da vida. Um experimentado pastor de almas, bom conhece­
dor da vida ele internato e dos homens que, saindo dessas institui­
ções, entravam na vida prática, disse uma vez: "Uma faixa azul
e um elogio do reitor não são fins na vida". Esta frase foi, por
certo, algo mordaz, mas exprime bem a essência das coisas. Não
podemos deixar de reconhecer que a educa.ção em internato pode
ser inevitável, em certos casos. Para muitos pais não se oferece
outra possibilidade de dar aos filhos a instrução desejada; mas
ainda: há muitos casos em que a vida do internato é preferível à
do lar (sem que se queira insinuar, com isso, qualquer culpa dos
pais) ; há também o caso dos órfãos e muitos outros. O que esta­
mos criticando é, tão somente, a preferência incondicional da edu­
cação num instituto à educação de família e, sobretudo, aquêlcs
pais (infelizmente não muito raros) que, apenas por sua como­
didade, criam os filhos fóra de casa, mesmo quanto tal decisão é
motivada pela bôa experiência que tiveram dos internatos, pela
tradição usual da família, por um sentimento de incapacidade
para dirigir a educação dos filhos, ou por uma peculiaridade qual-
quer da criança.
Antes de voltar à questão dos fatos da puberdade, queremos
dizer alguma coisa mais sôbre o assunto da escola e sua influên­
cia na formação do caráter. Já dissemos que a escola pode causar
muitos danos. Naturalmente, êsse perigo será tanto menor quanto
mais fortemente essa influência é contrabalançada pela dos pais.
Em face das influências desfavoráveis - da escola, de compa­
nheiros mais velhos, etc. - só existe, de modo geral, um corretivo:
a influência dos pais. Mas, para que essa influência se possa de­
senvolver, mesmo depois dos primeiros anos da infância, diversas
condições devem ser preenchidas. A mais importante é a preser­
vação da confiança mútua. A exigência, que já indicamos ante­
riomente, de ser evitada qualquer perturbação dessa confiança e
de que ela seja edificada com o maior cuidado, é, pois, da maior
importância.
As influências desagradáveis, que podem resultar da escola,
são qe vários tipos. Elas se baseiam, de um lado, em aspectos di­
ficilmente evitáveis e, até mesmo, inseparáveis da própria ativi­
dade escolar e, de outro, em erros perfeitamente evitáveis . E' na­
tural que, em turmas escolares numerosas, seja inexeqüível um
tratamento fortemente individual de cada criança. Não é possí­
vel esperar, também, que os prefossôres possam levar em conta.
as peculiaridades de determinada criança por ocasião de uma per­
turbação qualquer de sua condub\. E', porém, de grande imporL
tância, que o professôr conheça intimamente os fundamentos ge­
rais da psicologia da criança e a natureza da formação do caráter.

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224 RUDOLF ALLERS

Não pode também desprezar os motivos que, baseando-se em parte


nas relações familiares e em parte nas relações com os colegas,
condicionam o comportamento desta ou daquela criança. O profes­
sor deve saber que uma conduta desfavorável não resulta sempre
da maldade, da incapacidade, de uma disposição viciosa, etc. De�
verá esforçar-se por conhecer a causa dessa conduta, sem julgá-la
precipitadamente.
O professor representa, e deve representar, a autoridade,
diante de seus alunos. mesmo com a maior liberdade nas ativida­
des educativas, pode haver um mínimo de ordem e não se pode
prescindir de urna autoridade que a mantenha. Não se pode haver
uma ducação escolar inteiramente destituída de autoridade. Mes­
mo na "comunidade escolar", de cuja organização FERRIERE nos
dá notícia minuciosa,1 onde existe "autonomia" mais ou menos am­
pla existe a autoridade, embora ela seja exercida, em tais casos,
por um "tribunal"· escolhido. Mas a ·própria estrutura dessas co­
munidades de jovens e crianças mostra que êles mesmos estão
convencidos de que não se pode prescindir de uma forma qualquer
de autoridade.
Mas a autoridade do professôr está associada a duas séries
de condições: uma compreende tudo aquilo que se refere à pre­
paração da criança para a escola, a outra se baseia na própria
maneira de ser e de comportar-se do professôr.
A criança estará convenientemente preparada para a escola :
primeiro - quando sua vontade de associação recebeu atenção e
cultivo e quando sua vontade de poder foi dirigida para vias ade­
quadas; segundo - quando a autoridade não se tornou, para a
criança, urna fonte de horror e quando a subordinação não lhe
parece uma diminuição (ao contrário, a criança deve considerar
a subordinação como um meio para atingir a ordem, ou, pelo me­
nos, ter sido educada de tal modo que essa consideração lhe seja
acessível). Tôdas as estruturas sociais, particularmente as de rela­
ção com os adultos ou os professôres, são entendidas, pela criança,
por intermédio de esquemas, organizados por ela na base de sua
própria experiência (ou, se considerarmos insuficiente o papel
ativo do pensamento infantil, por intermédio de esquemas que se
impuseram, ou foram impostos, a ela). Se a interpretação teórica,
que os ensinamentos psicanalíticos 2 pensam ter achado para êsse
fato, não me parece exata, acredito, contudo, que o conceito de
"imago do pai" é notàvelmente exato. De fato: a criança vê, em
tôdas as pessôas que lhe aparecem como investidas de autoridade,
uma "imago", uma reprodução do próprio pai, ou pais, e orienta

1. L"Autonomie scolaire (Genebra, 1922).


2. Ver, adiante, mais alguns esclare-cirncntos sôbre êstc assullto.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 225
sua conduta para com elas de acôrdo com as experíências obtidas
em sua relação com o pai.
Se bem que não se possa duvidar de que muitos erros são co­
metidos na escola, deve ser salientado, por outro lado, que certos
J)ais, que se queixam das más relações entre alunos e professôres,
atribuindo ao professor tôdas _as culpas, criaram, por si mesmos,
através de seus próprios erros de educação, as bases de tais con­
flitos. O mesmo se dá, aliás, quando os pais atribuem tôda a culpa
à criança e tomam, incondicionalmente, o partido do professor,
JJÍOrando, dêsse modo, ainda mais, a situação desfavorável exis­
tente na escola. Êles deveriam ponderar que a alternativa "culpa
do mestre - culpa do aluno" não esgota, de modo algum a ques­
tão e que existe um terceiro fator que, muito provàvelmente, deve
ser considerado o principal, a saber: seus próprios erros.
Da parte dos professôres podem também ser cometidos tan­
tos erros e tomadas tantas medidas perniciosas, como as que indi­
camos como fatais para o desenvolvimento posterior da criança
nas relações de pais e filhos. Não precisaremos entrar em minú­
cias sôbre êste ponto. Desejamos, apenas, fazer algumas observa­
ções de ordem geral.
Quando aprofundamos as coisas, vemos que a posição do pro­
fessor não é perigosa para êle mesmo, nem para a formação de
sua própria pessôa. Quem lida, a maior parte de seu tempo, com
pessôas que não lhe podem ser superiores, nem devem sentir-se
tais no próprio interêsse dessa tarefa (como é o caso de um adulto
diante das crianças, ou de um conhecedor diante de ignorantes),
é levado a uma supervaloração do próprio eu e a uma espécie de
infalibilidade subjetiva. E' sabido como os professôres são leva­
dos, fàcilmente, a tomar, perante outras pessôas, a mesma ati­
tude que assumem diante das crianças, como se tornam doutriná­
rios com sua família, como aparentam sempre, diante de seus se­
melhantes, um conhecimento superior e como se revelam intole­
rantes diante de tôda objeção. Em parte, êstes desvios caractero­
lógicos só aparecem, na profissão de professor, de fórma derivada,
pôsto que já se achavam, talvez, no tipo de caráter que precedeu e
determinou a escôlha dessa profissão. No capítulo sôbre os carac­
téres neuróticos e anormais, voltaremos a falar dêsse ponto. No
caso das crianças que, em conseqüência das influências desfavorá­
veis do lar paterno, de sua posição como filhos únicos, etc., não se
acham preparadas para a conveniência escolar, a atitude acima
descrita do professôr acarreta, em particular, graves dificuldades.
A adaptação à escola e sua ordem, em vez de ser facilitada, torna­
se, muitas vêzes, inteiramente impossivel.
Quando as impressões trazidas do lar jA haviam feito surgir
uma tendência a revoltar-se contra a ordem, ou mesmo (o que é
mais raro) quando tal tendência não tinha, ainda, sido sentida

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226
RUDOLF ALLERS

pela �riança, a atitude irracional do professor, a severidade pela


severidade (uma atitude que é sentida como injusta pela criança,
apesar de seu desejo de perfeita justiça, porque não corresponde,
de modo algum a essa idéia de justiça), o aumento da distância
e a inacessibilidade e infalibilidade do professor estabelecem as
bases de uma atitude permanente de revolta, que, não só impede a
criança, ou o jovem, de aceitar a ordem social, como também faz
que o adulto se ponha à margem da vida social, considerada, por
êle, como um constrangimento. São bem conhecidas as pessôas em
que o ódio à escola é bem vivo e que concentram sua atenção em
tudo o que lembra a escola e sua organização, mesmo de modo
acidental.
Por outro lado, a escola pode corrigir muitas coisas em que a
educação paterna falhou. Em primeiro lugar, agem, como profes­
sôres e educadores, os próprios companheiros de escola. Sem dú­
vida, para que sua influência tenha valôr deve existir, na criança,
certa dose de capacidade de associação. Os indivíduos excessiva­
mente tímidos - isto é: os que estão minados pela vivência de
depreciação e o temor associado a ela - não podem encontrar o
contacto necessário. Eles não oferecem, às influências da socie­
dade escolar (que nunca é conscientemente conhecida pelo indiví­
duo, mas apenas exercida naturalmente por êle), qualquer super­
fície de contacto. Por isso, são logo postos de lado pelos colegas,
após algumas tentativas baldadas de aproximação, e são deixados
de lado como orgulhosos, estúpidos, ou aborrecidos. Urna obser­
vação atenta da parte do professor, não permitirá que surja, em
determinadas crianças, a inclinação ao isolamento. Muitas opor­
tunidades se oferecem para tal auxílio: às vêzes, durante as aulas,
quando há oportunidade de encorajar a criança, porém, ainda
mais, por meios didáticos e digressões durante o recreio, etc. Que,
em certas circunstâncias, uma atitude compreensiva, de parte do
professor, pode ter efeito benéfico é o que verifiquei muitas vêzes.
Um menino de 12 ou 13 anos era, sabidamente, mau aluno.
Suas notas, bastante fracas. De vez em quando êle parecia ani­
mar-se e, por meio de esforços, conseguiu elevar-se. Depois de
cada uma dessas elevações, o professor esperava uma melhora
duradoura. Esta se mostrava, porém, ilusória, porque o menino
descia, logo depois, ao nível anterior. Preocupado com o rapazi­
nho, que também começava a dar mostras de um desenvolvimento
desagradável do caráter - tornando-se agressivo para com os co­
legas e incorrendo muitas vêzes em mentiras - perguntou-me, o
professor, o que devia fazer. Verificou-se que êsse professor, com
a melhor das intenções, dizia, satisfeito com a melhora do aluno,
cada vez que lhe devolvia um trabalho bem feito: "Ora muito
bem! Espero, agora, que não volte atrás". E' claro que o aluno
concluía, destas palavras, que haveria novamente uma "volta

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 227

atrás" e isso significava para êle (que, como tantos maus alunos,·
admirava secretamente o professor) o mesmo que a certeza de não
poder conservar sua posição m elhorada. Aconselhei o professor a
substituir a perigosa exortação por uma outra frase, dizendo, por
exemplo, que era de esperar, de agora em diante, que aumentas­
sem, cada vez mais, os progressos do aluno, já que êle tinha su­
bido bastante e o caminho posterior era menos difícil. tste pro­
cesso deu resultado, pois o que faltava ao aluno nãio era a cora­
gem de fazer a subida, mas a de perseverar em seu caminho. De­
pois disso, êle pôde repetir sempre a façanha de que, agora, se sa­
bia capaz. Cumpre ser observado que um fim, que não é objetiva­
mente muito alto, pode se apresentar como de imensa altitude para
aquêle que veio de muito baixo. Ou, como se costuma dizer:- quan­
do o mercúrio sobe, no termômetro, de O a 16 há uma elevação
maior, do que quando sobe de 12 a 16 - contudo, apesar de tão
grande elevação, a temperatura é a mesma. 1
O caso citado não parece muito importante, do ponto de vista
caracterológico, por se tratar de um resultado didático, que se re­
fere mais ao campo da inteligência. Encontramos, porém, atitudes
perfeitamente idênticas, nos casos em que predominam desvios
caracterológicos. Notemos, porém, aqui, que - como se verá,
ainda melhor, ao tratarmos de caracteres anormais - a estreita
associação, muitas vêzes observada entre os maus resultados es­
colares e os desvios do caráter, não é sempre do tipo que comu­
mente se pensa. A opinião comum é de que o menino aprende mal
por ter mau caráter, por ser vadio e negligente, por ter a cabeça
cheia de outras coisas, ou por cair no desleixo. Mas, em muitos
casos, as coisas são exatamente o contrário: a criança se torna
desleixada, pouco estudiosa e promove distúrbios, por causa de
aprender mal e por não acreditar em suas possibilidades de êxito
nos trabalhos escolares. Tal atitude é, em geral, ainda mais forta­
lecida pela reação (aliás compreensível) dos professôres. Uma sé­
rie de observações ensinou-se, porém, que, muitas vêzes, os auxí­
lios no estudo, levand_o a criança a mostrar sua produção, podem
melhorar o caráter encoberto, mesmo nos casos em que outros
estão convencidos de ·que se trata de uma criania "degenerada",
"mal dotada", ou com "vícios hereditários". Aí\tes de exprimir
um julgamento moral definitivo, deveríamos conhecer um pouco
mais, a respeito das crianças e da alma humana, do que a maioria
dos que fazem tais julgamentos. E deveríamos, em primeiro lu­
gar, conhecer o caso individual, melhor do que o faz a maioria dos
que o julgam.

1. Vide na nota 1. pág. 1 28. o trabalho citado • também: ALLERS, ScheinF,ar


unbtgabte Kind,r, �m: "Jug<nd und Beruf" - Vol. [ (1925).

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228
RUDOLF ALLERS

Não nos queremos deter, por mais tempo, no tema das influ­
encias escolares, por mais int.cremmntc que seja, aprescntrmdo aqui
A •

outros pormenores. Contudo, um nprofundumento psicológico da


natureza da vida escolar seria bem necessário. Todavia, o que foi
dito basta para explicar que ns experiêncins da escola contribuem
também para preparar a formação caracterológica dos jovens -
na puberdade e depois dela - quer num sentido favorável, quer
num sentido desfavorável.

4. A. formação de uma nova imagem do mundo na época ela


puberdade

Voltemos, agora, à discussão interrompida sôbre a idade da


juventude e a transformação da puberdade. Tínhamos visto que
essa transformação era algo mais que um fenômeno subsidiário,
ou um corolário da maturidade sexual corpórea e das vivências
imediatamente ligadas a esta (isto é: das vivências mais ou me­
nos expressamente sexuais, ou, pelo menos, relacionadas - numa
formação normal - com o outr_� sexo). Já foi indicado que a
época da puberdade deve ser compreendida, de modo geral, como
uma época de transformação. Não se deve pensar que, a um ma­
terial anterior de experiências e às possibilidades de reação aí for­
madas, se acrescenta, como um novo elemento, o sexual, e que, só
por êsse meio, se torna possível modificar a situação de conjunto
e a atitude geral. Ao contrário: a maturidade sexual, compreen­
dida em seu sentido específico, é apenas uma manifestação parcial
e paralela, ao lado de outras mais. Por certo, isso não é ignorado.
A êsse respeito, são bem ilustrativos, antes de tudo, os casos, não
muito raros, em que apesar de uma maturidade sexual corpórea
inteiramente normal em sua evolução e do aparecimento das vi­
vências sexuais correspondentes, as tranformações da puberdade
só aparecem muitos anos depois. Trata-se de uma separação tem­
poral entre a puberdade física e a psíquica. Já falamos de uma
situação que poderia ser descrita como urna manutenção da situa­
ção infantil. Não discutiremos se se trata de urna verdadeira "ma­
nutenção" (isto é: de uma atitude da pessôa), ou de uma ação de
certos obstáculos ao desenvolvimento, agindo mais na perífera. O
que é incontestável, é o fato de haver um afastamento temporal e,
posteriormente, uma recuperação das transformações psicocarac­
terológicas, que são, normalmente, simultâneas das c·orpóreas. Isto
mostra, porém, que uma interpretação dos fenômenos da puber­
da?e, como conseqüência evclusiva de reações aos processos corpo­
rais e às vivênciais sexuais, não pode, de modo algum, ser consi­
derada completa.
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PSICOLOGIA DO CARÁTER 229
O núcleo essencial da transformação da puberdade parece ser
a ruptura e a modificação da imagem do mundo, que, como dis­
semos, tinha até então, uma certa fixidez. Em conseqüência, modi­
fica-se também a atitude estável diante do mundo, que correspon­
dia àquela imagem.
11:ste conceito de "imagem do mundo" necessita, porém, de
determinação mais precisa, antes que continuemos. A imagem
do mundo ou a concepção do mundo do homem adulto não é, como
se poderia julgar, uma imagem "do mundo diante de mim", mas
uma imagem "do mundo em que me acho contido como parte es­
sencial". Não se trata, pois, de uma relação entre dois membros
de igual ordem ontológica - "eu e o mundo" -, relacionados ape­
nas acidentalmente um com o outro e inteiramente independentes
quanto à sua natureza. O que se quer exprimir é uma relação da
forma: "eu-no-mundo e o mundo", de tal modo que o eu aparece
necessàriamente como um membro integrante do próprio mundo
que se acha nêle e diante dêle. A constituição de uma concepção
do mundo ( compreendida em sentido geral e não como uma sim­
ples orientação determinada de ordem metafísica, religiosà, etc.)
:pressupõe, uma certa medida, uma objetivação do próprio eu. E'
,verdade que dissemos - e com bôas razões - que o sujeito nunca
'pode ser um objéto para si mesmo e nunca se pode tornar pre­
sente a si mesmo. Isso, porém, se refere à pessôa, que se acha
presente em cada instante da realização viva de seus atos. Sem
dúvida,. ela não poderá, por sua própria natureza, constituir um
objéto para 11i mesma. Contudo, pode ter u.ma espécie de imagem
de si mesma, especialmente como membro de uma relação em que
se acha incluída. Ela não é entendida por. um ato intencional, do
mesmo modo que não pode ser compreendido êsse mesmo ato. Con­
tudo, pode apossar-se dêsse ato e, portanto, de certo modo, de si
mesma. SCHILDER utilizou-se para ilustrar êsse fato, da seguinte
· comparação, bastante· esclarecedora : 1 do mesmo modo que, diante
: do cadáver de um morto recente, temos a impressão de que é ainda
·. a pessôa conhecida e amada e de que paira sôbre êle, o brilho da
vida desaparecida, não podendo nós, portanto, considerar êste cor­
po como a simples coisa que realmente é, assim também existe,
em tôrno de um ato rememorado, um halo de vida, embora não
mais possúa uma realidade atual.
Nào queremos penetrar mais adiante nos aspectos fenomeno­
lógicos e ontológicos dêste problema extraordinàriamente difícil.
Só queremos acentuar que não existe qualquer contradição entre
as duas .afirmativas: a da impossibilidade de ser a pessôa um
:>bjeto e a da existência de uma objetivação da pessôa .

I. Numa conferência que não foi publicada.

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RUDOLF ALLERS

l't,l"la11Lo, 11 imagem do mundo do adulto "contém" o eu, como


·t. 11 1. t,x pi-e,:so nn .formulnção acima tentada. Também a imagem do
�11111ulo da criança contém necessàriamente seu próprio eu; mas
tiiite "cont 6m" é, aqui, diferente. Porque, para a criancinha, o
llllltHlo, ,11111s partes esi;enciais e sua legalidade permanente são
prohlm11{d.icos, enquanto que seu próprio eu não o é. Por certo,
l,•11d1�11ciu11 para u problemática do eu podem ser observadas, mes­
mo IIHH c1·im1cinlrns: cm parte, a quesão, sempre renovada, sôbre
o "d1111<le" (Donclc vim'!) se liga certamente àquelas importantes
, q1w,;lii1is. l\fos, -de modo gerul, trata-se de simples tendências e,
cHlirn mc�1110, 11ó perceptíveis nos anos posteriores. O eu como pro­
hlernn ::;{1 "e nweln, pela primeira vez, na época da puberdade, em­
hora t.111 preclsi(o em relação ao tempo não possa ser tomada, na­
t.urnh11c11le, no pé dn letra. Devido a circunstâncias individuais, ou
soh II i11flnê11ci11 de constelações ambientais particulares (como,
por l'Xt>n1plo, as leituras) a questão em aprêço pode apresentar­
-sti 11111.es dos anos da puberdade .
Nessn época, tem lugar um processo que se poderia chamar
de "descoberta do eu". De acôrdo com o que explicamos, é claro·
q11t\ sob tal designação, não deve ser entendido um primeiro apa­
rt>dmento elo eu (o que seria absurdo!), mas uma tomada espe­
cinl de posição do eu em relação a si mesmo. Antes de ter sido
nmliznda essa tomadn de posição (enquanto - para usar uma me­
t1Horn - o eu é procurado, ou se procura, mas não foi ainda en­
contrado) a situação geral só pode ser altamente problemática.
Ela será, d.e novo, necessàriamente, uma situação de insegurança,
porque se 'trata novamente, como nos primeiros anos de infância,
ele nting-ir uma posição que ainda não está claramente definida,
nem se acha distintamente delineada aos olhos do indivíduo. E
todos os caminhos paar fins ainda incertos são caminhos de perigo
e aventura.
As manifestações corpóreas dos anos de puberdade contri­
buem, assim, s\.B:nificativamente, para a insegurança da juventu­
de. Repitamos: rião consideramos a evolução no domínio da sexua­
lirlade, ou, pelo menos, não damos um primado a êste domínio. E'
imbido que os jovens, principaimente na primeira fase da trans­
formação da puber,dade, apresentam um comportamento extrema­
mente desajeitado: a graça natural dos movimentos infantis desa­
parece; a forma adulta ainda não se fixou, não tendo ainda podido
realizar-se, porque o rápido desenvolvimento dos membros não lhe
vermite movimentos bem precisos. Em relação ao corpóreo, ou me­
lhor, em relação à vivência dêste, podemos dizer, numa metáfora,
que o jovem desconhece o pleno dia, pois que se acha, ainda, na
, mnnhã em que despertou. Não admira que seja desajeitado, já que
ns proporções de seu corpo se modificam da noite pau o dia. As
modificações corporais não se limitam, porém, como se sabe, às

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 231

-proporções dos membros e seus movimentos. Elas atingem tamhém


outros órgãos, ou talvez todos êles, embora, nêste caso, as altera­
ções não sejam, em geral visíveis. Basta lembrar apenas a altera­
ção da voz, que é mais acentuada nos meninos, embora posRa tam­
bém ser observada nas meninas púberas. Chega-se, assim, neces­
sàriarnente a uma alteração muito profunda da consciência vital,
donde resulta, como sempre, um aumento da insegurança.
Como em muitas situações semelhantes, aparece, também
aqui, um círculo vicioso. A incerteza resultante das alterações
da consciência vital aumenta a inadaptabilidade dos jovens, seu
desajeitamento e seu abespinhamento. Mas os efeitos dessa atitu­
de e a consciência delas fazem, novamente, aumentar a incerteza.
Vemos imediatamente que vários traços do caráter dêsses anos
devem ser considerados corolários naturais da situação de con­
junto em que o jovem se encontra e que nada nos obriga a con­
tentar-nos simplesmente com a constatação de uma dependência
dos processos naturais. Do mesmo modo que fizemos, ao julgar do
papel dos momentos constitutivos da formação do caráter, deve­
mos, também aqui, indagar primeiramente sôbre as "ocasiões",
antes de ter renunciado a uma compreensão mais ampla por inter­
médio das "causas".

5. Dificuldades na puberdade

Em conseqüência da insegurança própria dos anos críticos da


11uberdade, repetem-se nêles tôdas as dificuldades e problemas que
já encontramos na primeira infância. Naturalmente, não se trata
de uma simples repetição à maneira de uma cópia, porque o ho­
mem que se acha novamente inseguro é outro, sendo também outro
seu ambiente. Mas, como adulto jã se apropriou de uma soma de
experiências e já sofreu a ação de uma série de influências, sua
plasticidade é muito inferior à da criancinha. Pode-se ver, nisso,
uma certa proteção, pois se torna menor o perigo de que as influ­
ências desfavoráveis deixem traços. Mas, por outro lado, o perigo
é maior: paar traçar um sulco numa massa de cera, basta um pe­
queno risco, ao passo que, para tornar novamente lisa uma super­
fície polida de metal, é preciso poli-la autra vez. O poder impres­
sivo das fôrças positivas de formação tornou-se também menor.
Não porque todos os modos de comportamento já se tornaram
conscientes e já está preparada a constituição do eu que se co­
nhece a si mesmo. Dêsse modo, a resistência oposta a tôda forma­
ção vinda do exterior por parte de tôda natureza humana indivi­
dual é fortalecida pela racionalização, pela colaboração do conhe­
cimento. A educação, nêsses anos, exige, portanto, um carinho, um
tato e um altruísmo por parte do educado,·, maiores, do que nos

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I
232 RUDOLF ALLERS
/

estádios anteriores. A palavra "altruiamo" deve rier compr,;endid;;.


em seu sentido primitivo isto é: ao influenciar o jovem, <J c,du,;:,...
dor deve considerar, an�s de tudo, a pessôa e as exigf::ncias d.o
"outro" e não as suas próprias.
Por vêzes, tem-se a impressão de que, para a época dá pu­
berdade, todo o trabalho educativo anterior, com todos os r,c,u,�
sucessos visiveis, será inteiramente inútil. E' como se fói,F,e n,,,..,,,&­
sário trilhar, de novo, todo o caminho. Tal impressão é, em c,,rt,,
sentido, exata. Sem dúvida, não são perdidos todos os efeito:, dQ:,;
anos de infância; muitl\ coisa, porém, será repelida para um ;,,r,­
gundo plano . Não se deve esquecer que, nesse process o de d(:;:;;c:n­
berta do eu, existe, não só uma ocasião para a insegurança e a pro­
blemática atormentadora, como também um motivo, que pode
fortalecer consideràvelmente o sentimento de dignidade prt5pria.
Quando o jovem encontra pela primeira vez a si mesmo, por esF..a
época, experimenta, na maioria dos casos (salvo os em que ji,.
existe um profundo desencorajamento) a impressão de ser, em si
mesmo, um valor permanente. �sse fortalecimento do sentimento
de dignidade pessoal leva a exigir uma prova para tudo o que fôra,
antes, simplesmente aceito e a nada mais reconhecer pela fé e a
confiança, mas fazer depender todos os valores da própria afir­
mação pessoal. Tudo isso, porém, deriva de uma segunda fontr.:
a própria insegurança que reina em tôdas as disposições dessa
época, embora muitas vêzes oculta. Já conhecemos satisfatõria­
mente o mecanismo da compensação e da supercompensação, que
tornamos agora a encontrar. Por isso, omitiremos uma explicação
mais ampla.
Pelas explicações dadas, compreende-se que precisamente o
conceito de autoridade - e principalmente êle - deve ser proble­
mático para os jovens. Acentue-se, mais uma vez, que a autoridade
outorgada não pode levar a nada de bom, nem produzir um resul­
tado duradouro. São necessários um amor, uma paciência e uma
dedicação especiais, para que a necessária relação para com a au­
toridade possa ser reinstaurada na juventude. O mesmo se pode
dizer da relação para a sociedade. Sabe-se que uma tendência ao
isolamento, a dirigir-se a si mesmo, etc., não é rara entre êsses
jovens. Quando cultivam a sociedade, preferem a de seus iguais,
mal querendo saber de qualquer outra. Aqui também, a última
palavra é dada pela nova consciência do valor próprio, surgida,
imediata ou mediatamente, da compensação. De fato, o homem
descobre agora o eu e o descobre (como não poderia deixar de ser)
como um possível portador de valores. Existe, então, uma possibi­
lidade de se formar uma consciência do valor própria, mesmo nas
pessôas que não a tinham ainda formado. Mas há também o gran­
de perigo de lhes ser barrado por vários anos - ou talvez, por
tôda a vida - o caminho de tal vivência.

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 233

. . Mas, s.e o processo e o problema de "deRcoberta do eu", coni,­


tituem a nosso ver, o momento central da puberdade, não se deve
acre!litar que possam ser amlim determinadOf! todoR os materiais
que· representam um papel na vida dos jovenR. Para um emprêgo
por assim dizer teórico, o eu se torna, pois, como tal, um proble­
ma. f:le é principalmente um problema em suas relaçõeB com os
domínios do ser a que pertence o homem, e os campos de atividade
que se lhe apresentam. Daí se tornarem vivências profundas: a
problemática da sociabilidade e da incorporação à sociedade, a da
inclusão do indivíduo em tôdas as formas de trabalho oferecidas
aos homens {e, portanto, a problemática da escolha da profissão)
e, por fim, tôdas as questões grupadas em tôrno do fenômeno fun­
damental do amor sexual . Sôbre isto se constrói a problemática re­
ligiosa, que, segundo investigações recentes, nunca está ausente
das vivências dêsses anos.
A juventude tem tendência a teorizar: constroem-se sistemas
do mundo, que são, logo depois, derrubados; arrolam-se e dis­
cutem-se problemas, que são, logo depois, postos de lado. Uma
certa insco11Btância foi sempre considerada como característica
dêsses anos de evolução. Essa inconstância e a atitude expressa­
mente teórica em relação a muitas questões, aliada à tendência de
obter uma explicação, especialmente sôbre questões últimas, estão
em conexão intima com a insegurança. O fato de considerar
teoricamente um problema, que é, no fundo, meramente pessoal,
· pode significar uma medida de proteção e de fuga, uma vez que,
por êsse processo, são aparadas as arestas de uma questão pes­
soal causticante. Tomar os problemas e depois abandoná-los, ado­
tar soluções que serão depois negadas - eis indícios de uma ati­
tude resultante do mesmo motivo, pois o que se deseja é eliminar
um definitivo obrigatório, ou fugir às conseqüências que se im­
põem. Porque, com a descoberta integral e a constituição do eu,
surge também no homem a consciência de seu isolamento essen­
cial e de sua final "dependência de •si" e, por conseguinte, de sua
absoluta responsabilidade própria. A sensação de estar protegido,
própria da meninice, desapareceu para sempre. O jovem o sente,
sem que consiga apoiar-se e firmar-se em si, de modo a contar
realmente consigo mesmo. Não se deve, contudo, opôr o isola­
mento de que falamos à necessidade incontestável, que sempre
acentuamos, de uma incorporação à sociedade e à vontade que con­
duz a esta incorporação. O isolamento essencial está, por assim di­
zer, num plano mais profundo, num ponto mais oculto, do que
aquela solidão de que muitos se queixam. :tle é a conseqüência
necessária da unidade absoluta da pessôa humana e, como tal, está
ligado à sua essência metafísica, só podendo ser superado, de certo
modo, quando se dissolve na vida sobrenatural.

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234 .1
RUDOLF ALLERS

, . Já
ficll
dissemos que a tarefa de educar era particularmente di­
na época da puberdade, exigindo um emprêgo ainda maior dE
compreensão, tato e dedicação, do que no caso das crianças meno.
res. A educação é, naturalmente, uma relação entre o educador e
o educando. E, como em tôdas as relações, a formação desta de­
pende também de ambos os membros e, portanto, do educando.
Mas, exigir dêle um determinado comportamento, para que possa
ser educado, é evidentemente uma tarefa impossível. Porque a
primeira tarefa da educação já é a de fazer com que êle se torne
acessível às influências positivas. Podemos, porém, preparar o ho­
mem em formação, isto é: dirigí-lo desde cedo, para que, apesar
dos obstáculos inerentes à puberdade, não se feche às influências
da educação.
Para que isso se dê, é. necessário, como já observamos, que
seja satisfeita urna condição: o jovem não deve ter perdido a con•
fiança natural, depositada pela criança no professor. Já acentua­
mos, muitas vêzes, a importância da confiança. Verifica-se, agora,
que essa importância vai além do período da infância. Uma bôa
parte das dificuldades de educação na época da puberdade poderia
ter sido evitada, se a educação não tivesse impedido o acesso à vi­
vência íntima do jovem. Se existir uma verdadeira relação de con­
fiança entre pais e filhos, se êstes tiverem, em tôdas as circuns­
tâncias, a consciência de que acharão naqueles uma compreensão
carinhosa e não uma repulsa e uma condenação, se, enfim, o filho
já estiver habituado a fazer dos pais seus conselheiros nos confli­
tos interiores, então não será difícil conservar essa afinidade, mes­
mo depois da infância propriamente dita, e levã-la, viva, àté a
maturidade. Se assim se passassem as coisas o afastamento entre
pais e filhos não seria, tantas vêzes, lamentado por ambas as
partes.
Não queremos repetir aqui, mais uma vez, o que jâ dissemos,
com bastante minúcia, sôbre êste ponto, Baste-nos acentuar ex­
pressamente a importância extraordinária dêsse motivo - a con­
fiança - para tôda a educação e tôda a relação entre pais e
filhos.

6. Modificações do caráter

Se perguntarmos, agora, que espécie de mudanças experi­


menta o carãter por ocasião da puberdade e quais os motivos,
nesta existentes, que contribuem para a formação do caráter, te­
remos de reportar-nos à idéia, já muitas vêzes enunciada, de que
tôda a modificação se faz sôbre um material já formado e que,
por conseguinte, êste é também codeterminativo do caráter, que
se constitui por ocasião da puberdade e permanece depois desta.
Por certo, um indivíduo excessivamente tímido não se pode ter�

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 235

nar mais audaz ao entrar na puberdade, devido à vivência da in­


segurança, que é peculiar à época da maturidade. tle será, por­
tanto, dificilmente influenciável, mesmo pelos métodos mais ra­
cionais e prudentes.
As fôrças formadoras do caráter são de três espécies, não só
nessa épica, como em todo tempo. Se não as tínhamos mencionado
até agora, é porque um dêstes grupos de fôrças não parece ter
importância essencial nos anos anteriores à puberdade. Os três
grupos são: 1) os motivos imediatamente conhecidos da ação; 2)
as exigências vindas do mundo exterior (que são mais ou meno�
sentidas como �brigatórias, mas não podem ser, sempre, inteira­
mente conhecidas em seu fundamento) ; 3) os motivos vividos -
irrefletidos e desconhecidos - que, na maioria das vêzes, mas não
sempre, estão ligados aos valores vitais (por isso êles são, muita�
vêzes, considerados "impulsivos"; nem todos, porém, devem ter
esta designação, mesmo tomando o conceito de "impulso" no sen­
tido usual). O segundo dêstes grupos de fôrças é aquêle, de que
dissemos não ter importância especial antes da puberdade. Tal
afirmação parece, à primeira vista, bastante estranha, porque,
como se sabe, é justamente a criancinha que age, evidentemente,
por motivos que lhe são desconhecidos (quando, por exemplo, se
lhe ordena fazer alguma coisa). Dêsse modo sua ação se baseia
principalmente nas exigências não compreendidas que lhe são
apresentadas. Um motivo conhecido é um motivo a que a pessôa
diz "Sim!" (no sentido do "assentimento i:.eal" de NEWMAN). En­
tendemos, aqui, por "conhecimento", aquilo que se denominou "co­
nhecimento vivido" e que se julga dever distinguir do conheci­
mento puramente "teórico" ou intelectual. Não se trata, portanto,
de um conhecimento, no sentido da possibiildade de urna dedução
lógica de cada exigência ou cada fato que se apresenta, a partir
de certos princípios já conhecidos. Que possa haver urna atitude
"cognoscitiva", que não é, de modo algum, uma atitude "compre­
ensiva", é o que demonstra, írrefutàvelrnente, a atitude designada
como "conformidade" à vontade de Deus", porque na verdade, não
se pode falar absolutamente, nêsse caso, de urna compreensão ra­
cional, encaminhada no sentido de urna dedução lógica. Ao con­
trário: esta posição se baseia numa afirmação que tem urna pro­
funda razão de ser, uma afirmação que não se pode compreender,
nem mesmo tentar compreender. De modo análogo, esta é tam­
bém uma característica da posição da criança. E' próprio desta
(pelo menos num desenvolvimento normal médio), aceitar exi•
gências irrefletidamente, como simples conseqüência de sua posi­
ção em relação aos pais ou de sua participação na comunidade fa­
miliar, sem tentar justificá-las racionalmente, ou contentando-se
com umas poucas perguntas a que são dadas respostas insatisfa­
tórias.

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236 RUDOLF ALLERS

Só na puberdade se inicía uma análise consciente das exigên­


cias surgidas no mundo do não-eu; só então, é bem distintamente
sentido seu caráter de exigência, de algo que exige, para ser cum­
prido, um certo esfôrço da parte do homem. Por isso, êle se acha
cheio: por um lado, de uma dúvida que atinge as raias do ceticis­
mo e, por outro, de uma necessidade imperiosa de apôio, de um
vivo desejo de clareza e de um esfôrço para apossar-se dessa ne­
cessidade do real, que sente como inevitável embora compreen­
sível.

7. Sexualidade

Como não nos podemos alongar neste assunto e como já fa­


lamos talvez o bastante para esclarecer a posição pedagógica que
lhe corresponde, vamos voltar ao terceiro grupo de motivos de
formação do caráter e, com êle, ao problema da sexualidade. Como
introdução a esta dissertação, parece útil fazer, primeiramente,
uma breve observação geral sôbre a posição da sexualidade no
interior do conjunto da pessôa.
Na maioria das exposições sôbre questões de psicologia ou
pedagogia sexual e também nas que se ocupam da patologia do
assunto, as coisas não são encaradas, a meu ver, de modo correto,
uma vez que o ponto de vista metódico da "consideração de con- :
junto" não merece bastante atenção. Há uma tendência a conside-
rar o sexual como uma parte relativamente independente do ho­
mem, quase como se o conteúdo de tais vivências não se pudesse,
de modo geral, fundir num todo único com o resto da personali­
dade. Tem-se a impressão de que a sexualidade é uma espécie de
poder "estranho à pessôa", que, tendo embora morada no homem,
é alguma coisa que não lhe pertence . Como se pôde desenvolver tal
concepção-e quais os motivos de sua plausibilidade e aceitação, não
nos é possível indagar aqui. Vamos nos contentar em opor a esta
concepção uma outra, só apresentável também sob a forma de uma
afirmação dogmática e sem justificação pormenorizada. Aliás, po­
derei falar detidamente sôbre êste assunto em outro lugar.
Minha afirmação é a seguinte: apesar da especificidade da
vivência das motivos sexuais e de sua conexão com o orgânico,
continua a ser válido aquêle ponto de vista, já reconhecido por
nós como fundamental ao considerar a conduta humana em geral.
Porque, em primeiro lugar, o que é importante, em relação à
educação, não é o fato da vivência sexual, mas o do comporta­
mento ou da atitude sexual, embora êstes sejam condicionados por
aquela. Vamos ver, porém, que a relação recíproca também
ocorre: .a vivência é amplamente condicionada pelo comportamento
(isto é: pela finalidade que êste se põe) e poder-se-ia mesmo;

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 237
dizer muitas vêzes, que o comportamento é causa da vivência.
Convém recordar que, de acôrdo com os nossos princípios metó­
dicos, um modo de agir ou de portar-se só poderia ser compreen­
dido pelas suas conseqüências reais e que a pura consideração da
vivência subjetiva, não nos poderia esclarecer sôbre a posição de
determinado ato no conjunto geral de uma vida. Na verdade, en­
carado apenas como vivência subjetiva, o sexual parece derivar
da procura do prazer específico. Se, porém, a ação sexual é com­
preendida num conjunto mais amplo, perceberemos a existência,
nela, de outros momentos que podem ser determinantes. Se nos
libertarmos da errônea consideração da independência da sexua­
lidade, acima apontada, e encararmos uma conduta nesse domí­
nio como o fazemos com qualquer outra, isto é: sob o prisma dos
cinco aspectos mencionados no Capítulo Primeiro (tendo pois em
vista a função de expressão de tôda conduta) tornar-secá claro,
antes de tudo, que o comportamento sexual não deve também ser
caracterizado apenas pelo "impulso sexual", mas pelo conjunto
inteiro da personalidade. A sexualidade de um homem é, como
qualquer comportamento seu em qualquer outro domínio da vida,
uma "expressão" de sua pessoa e seu caráter, ou, como já dis­
semos, um "retrato" da pessoa e do caráter.
Talvez, sejam necessários mais alguns esclarecimentos.
t compreensível que a sexualidade, em sua formação individual,
dependa - como função ou como vivência - das condições
corpóreas do homem. Ê o que mostram os casos em que, devido
a doença ou perturbação do desenvolvimento, há uma diminuição,
demorada ou permanente, da sexualidade. Os casos de aumento
da sexualidade em conseqüência de processos mórbidos são menos
probantes. As perturbações mencionadas em primeiro lugar rela­
cionam-se com uma falha ou perturbação dos órgãos ligados aos
fenômenos da· vida sexual. Pode-se conceber que um subdesen­
volvimento dêstes órgãos terá como conseqüência um enfraqueci­
mento dos processos sexuais. A recíproca não é, porém, válida:
um enfraquecimento dos processos não indica um enfraquecimento
das funções dos órgãos respectivos. Naturalmente, devemos
ponderar sempre tais possibilidades e procurar provas. Mas não
devemos aceitá-las sem maior exame, pois podem existir outras.
Deveria ser exata uma concepção que representasse tôdas as
funções do organismo como colocadas numa gradação hierárquica,
de tal modo que as produções periféricas justificassem a função
geral e tivessem uma certa independência, embora normalmente
influenciadas e dirigidas, em seu transcurso, pelas posições mais
centrais. A supressão de tais influências, sua interrupção, ou a
predominât�cia de um impulso antagônico podem, então, fazer
surgir manifestações idênticas às devidas à falta de função peri­
férica. Porque o fato incontestável da orientação pelas posições

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238 JtUDOI.F AL!.ERS

"superiores" exige que cm impnlHOH, (avorávüis ou prejudiciais


sejam lançados m1H po11i�:õc11 periféricaH ou "inferiores". Por con:
seguinte, há sempre a pomdbilidade de proclu:dr-sü um rcfôrco da
função, devido à c!cimlmtru�:iio, iHl.o é: i'l 11upre11sf10 drm imp u]HOH
0

obstrutivos. De fato: co11hcccrno11 concliçõe11 que indicam um re­


fôrço da funçiio absolutamente condicionado pela periferia, e,
portanto, bascnclo numa alteraçfto do modo de atividade e do
esl-ldo de um órgão. Sabemos, por exemplo, que a multiplicação
dos tecidos ela glfmclula tireóicle e o aumento ela descarga de seus
produtos no sangue provocam manifestações mórbidas, como a
chamada doença de Ilasedow. Há urna série de fatos semelhantes.
É certo que não se pode supor uma perturbação análoga ela parle
das glândulas sexuais, pois é difícil demonstrar a existência de
uma "hipersexualização". Nunca encontramos, nas pessoas a quem
se atribui uma sexualidade intensa, ou naquelas cuja conduta
parece permitir tal conclusão, características indicadoras de um
acréscimo positivo da função do aparelho sexual. Do mesmo
modo, os sexualmente desviados não mostram, como já dissemos,
estigmas corpóreos especiais, por onde se pudesse concluir um
motivo constitucional ou de origem corpórea para explicar sua
conduta anormal. Por isso, deve-se concluir, que as causas da
sexualidade aumentada, ou da "pervertida", não estão nos pró­
prios órgãos sexuais, (nem também nas condições corpóreas, mas
na situação de conjunto do homem, a revelar-se nesse domínio,
de modo que lhe é possível. A. ADLER forjou uma expressão
exata - "dialeto do órgão" - para designar o fato de que as
manifestações anormais não se baseiam nas condições de um
órgão, mas surgem nêle por efeito de ações centrais e, em última
análise, psíquicas, que só se podem exprimir, como é natural,
através do domínio funcional dêsse órgão. Falando em linguagem
familiar: só no coração podemos sentir batidas do coração e só
no estômago podemos sentir um "pêso no estômago". Se tais
perturbações do estômago não têm uma origem local, mas psí­
quica, os resultados serão, contudo, sintomas no estômago,
Se, no domínio da vida sexual, o homem ass�1me uma posição
inadequada, os resultados serão sintomas sexuais (excesso, per­
versão, ou em certos casos, esgotamento). A incorporação de
cada função (e portanto da sexual) num sistema hieràrquica­
rnente construído e, por fim, na unidade da pessoa corpóreo­
-espiritual, tem como resultado, que tôdas as manifestações cor­
porais possam ser consideradas uma expressão da posição de
conjunto. da própria pessoa. As diversas funções são, em grau
maior ou menor, apropriadas a essa expressão. Elas são tanto
mais apropriadas a exprimir atitudes psíquicas, quanto maior
fôr sua vivência (a atividade do fígado tem um conteúdo de vi­
vência inferior ao da atividade do coração ou do estômago e

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 239
ainda menor que o h. atividade sexual), quanto mais possam ser
influenciadas, direta ou indiretamente, pela vivência e, final­
mente, quanto mais adequadas sejam, normalmente, à expressão
da vida afetiva (batidas de coração devidas à excitação, vô­
mitos de enjôo, etc.).
Estas três condições aparecem também no caso do aparelho
sexual. Suas alterações dão lugar a vivências; elas são influenciá­
veis, pelo menos indiretamente (por meio da fantasia) ; elas cons­
tituem, enfim, fenômenos concomitantes da parte afetiva do
amor sexual e estão, quase sempre, em sintonia com esta esfera.
A afirmação de que o comportamento sexual de um homem e
sua vivência sexual - até então explicados por "fôrças do im­
pulso", evidentemente orgânicas - podem depender, em grande
parte, da posição de conjunto da pessoa, é uma afirmação que
pode ser também justificada biolõgicamente, ou, se se quiser, an­
tropológicamente. Se se compreende a posição de conjunto de
uma pessoa, ou a norma fundamental de sua orientação na vida,
de modo análogo a um plano conscientemente elaborado, poder­
-se-á dizer (embora de modo rígido e unilateral) que: cada ho­
mem tem a sexualidade correspondente a seu plano. Com isso
afirmamos também que o comportamento sexual de urna pessoa
néio é, absolutamente, uma coisa estática e imutável, mas pode
mudar, com a mudança de sua posição de conjunto. As "fôrças do
impulso" não são, também, coisas imutáveis, mas variam com a
atitude do homem diante dos problemas e exigência da vida.
Se tal opinião parece, de certo modo, extraordinária, ela pode,
contudo, reivindicar muitas verificações na prática . Mas quem
quiser verificá-la não deve, por certo, utilizar-se dos meios habi­
tuais de constatação, mas pesquisar, com um trabalho cuidadoso
e uma imensa paciência, as raízes últimas da situação de con­
junto da pessoa. Se puder descobrir tal situação e exercer in­
fluência sôbre ela, poderá conhecer também a mutabilidade da
conduta e da vivência sexuais.
É claro que nos colocamos, neste ponto, em completa oposi­
ção aos autores que vêem, ·na "constituição impulsiva" e outras,
um dado inevitável e, na conduta sexual do homem, uma coisa
originária - quer como disposição, quer como estado anterior.
Opomo-nos, assim, tanto à escola psicanalítica ( de que nos afas­
tamos também por outros motivos e cuja tese julgamos absoluta­
mente inconciliável com a concepção católica do universo) como
àqueles que consideram inevitáveis os conflitos sexuais (isto é
os que surgem entre a sexualidade e a moral) e os tomam como
sofrimentos, trabalhos e provações. Nossa opinião é, pelo con­
trário, que a educação (da criança ou do adulto) pode conseguir
colocar a própria sexualidade (em sua expressão normal ou
"pervertida") dentrq de fronteiras razoáveis. Mas, raramente se

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240 RUDOLF ALLERS

poderia obter tal resultado por um simples combate à vivência


sexual. Pesquisar a situação fundamental da pessoa que tem sua
imagem ou expressão nesta sexualidade, e procurar modificá-la,
parece um meio mais viável.
A concepção do problema da sexualidade, indicada ·nas pas­
sagens precedentes e sua posição na situação da pessoa em geral
servirão para esclarecer também as questões lig:adas ao aspecto
educacional. Deve-se também recomendar, aqui, que se tome, como
ponto de partida, o negativo, o desfavorável e o evitável, a fim de
obter, por meio dêles, a direção para o positivo. Não se deve dar
a êste método um valor absoluto. :f: evidente que enfêrmo, por
· sua própria condição, não pode nos fornecer um conhecimento do
homem são. Mas pode facilitar-nos a posição de questões com
que penetremos no conhecimento da saúde. Poderemos então
confirmar ou retificar, neste domínio, os conhecimentos adquiri­
dos naquele. Tal foi, em inúmeros casos, a marcha das pesquisas
médicas. No domínio moral, porém, as coisas não são tão simples.
Porque há aqui, por assim dizer, um mínimo de saúde moral, que
todo homem deve e pode atingir. Para isso há muitos caminhos
- um número infinito, talvez - diferentes para cada pessoa, que
levam na dir-eção do aperfeiçoamento. Aquêle mínimo é, porém,
idêntico para todos os homens. Na concepção católica êle se de­
nomina "estado de graça", a qualidade de "filho de Deus", para
cuja realização e preservação basta uma condição simplesmente
negativa - a de evitar o pecado mortal. Segue-se, pois, que, no
terreno moral, pode-se fazer uma exigência positiva por meio de
obras que visem evitar a falta e que representam portanto, uma
condição negativa. Assim também, na educação do caráter - o
que equivale a dizer: na educação moral - uma orientação par­
tindo do anormal é uma fonte menor de erros, já que a anorma­
lidade não significa o mesmo que o mórbido da linguagem mé­
dica. Contudo, se fôr permitido dar aos defeitos morais a desig­
nação, muitas vêzes usada, de "doenças", aquêle que se esforça
por combatê-las poderá ser denominado- "médico de almas".
Não tivemos de nos ocupar aqui da psicologia da vida sexual
em geral, nem também de tôdas as questões da pedagogia sexual.
Consideramos estas coisas apenas no ponto de vista da formação
do caráter. Isso significa, porém, que devemos estudar as mani­
festações da vida sexual: por um lado, pelo seu papel de momen­
tos formativos do caráter e, por outro, por sua importância como
expressão da posição de conjunto da pessoa.
Começaremos pelo segundo ponto e, em particular, por
aquela conduta que se torna - tanto para quem a sente como
para quem a executa, seja jovem ou adulto � um problema ines­
crutável e uma dificuldade intransponível. Queremos referir-nos
ao fato de que uma pessoa repita sempre uma ação sexual que

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 241
eln própria considera reprovável e cuja realização lhe traz sem­
pre desgôsto e remorso. Aplica-se aqui a descrição das Confissões
de SANTO AGOSTINHO, anteriormente reproduzida, e aquela frase
de SÃO PAULO de que não fazemos o bem que desejamos, mal 0
. mal que não queremos. "De onde vem êste incrível estado de
coisas, e por quê?"
É fácil ver, que só tratamos aqui de um caso especial de
conduta, que se apresenta, sob múltiplas metamorfoses, em todos
os domínios imagináveis da vida. É um caso de "fazer o proibido",
de que já encontramos, em SANTO AGOSTINHO, uma explicação.
Não há, pois, aqui, em essência, nenhum problema. í:ste só apa­
rece: 1.0, porque tais ações constituem casos excepcionais em
cada pessoa e todos se admiram de que esta não tivesse conse­
guido manter, nesse caso, a fidelidade aos princípios, como
sempre fizera, e, 2.0, porque esta manifestação é bastante
espalhada.
Antes de entrarmos mais detidamente neste assunto, deve­
n10s fazer, ainda, uma observação. Aqui, como em tudo o mais,
é melhor prevenir que remediar. Mas as medidas preventivas só
podem ser, nesses casos, de ordem geral. Não convém mostrar cla­
ramente o perigo a um jovem que desconhece tais conflitos, por­
que o conhecimento de tais assuntos, sem a experiência própria,
só serve para despertar a curiosidade e dar origem ao que se
queria evitar. A profilaxia, deve, pois, consistir em preparar o
homem para os conflitos e dificuldades em geral, fazê-lo capaz de
sobrepujá-las e dar-lhe uma atitude correta em relação aos va­
lores e aos mandamentos. Dessa maneira, muito se poderá evitar.
Apesar de tudo, muitos acontecimentos desagradáveis não po­
derão, muitas vêzes, ser suprimidos. Mas sua primeira aparição
não deve ser tomada em sentido trágico. Não porque ela seja
insignificante (estamos longe de afirmar tal coisa!) mas porque,
de início, ela não é, muito provàvelmente, feita com pleno conhe­
cimento. Se, por oca1!ião dessa aparição, ainda existe uma per­
feita confiança entre pais e filhos, a remoção dessas dificulda­
des, que não são, então, ocultadas, é uma tarefa fácil. Se tais
modo de agir já existem há muito tempo (desde o comêço da
maturidade por exemplo) a questão principal não é a de saber
como apareceram, mas como se conservam, apesar da repulsa.
Não se deve interpretar nossa opinião, como se considerás­
semos afastada a chamada explicação sexual. Pelo contrário : co­
locamo-nos no ponto de vista de que um conhecimento das coisas
da sexualidade é necessário e que êste conhecimento deve ser
transmitido à criança, antes que esta o obtenha de fontes incom­
pentes e de uma maneira inadequada. A explicação compete aoB
p(l,ÍS e não d escola, Quando os pais não o podem fazer, ou quando
não possuem a confiança da criança, devem dar essa incumbên-

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242 RUDOLF ALLERS

eia a outras pessoas. Mas a explicação deve ser transmitida indi­


vidualmente e nunca· sob a forma de uma lição a uma turma de
alunos. Deve ser preparada, tanto quanto possível, por meio de
instruções sôbre questões biológicas afins. Ela pode e deve ser
feita por degraus. A ocasião em que se torna necessária é indi­
cada pelas perguntas da criança sôbre o assunto (sempre na su­
posição de existir uma indispensável relação de confiança). Como
tôdas as perguntas da criança, estas devem ser também respon­
didas. Neste assunto, mais que em qualquer outro, é inteiramente
descabida a expressão: "Não podes entender". Iríamos longe, se
quiséssemos expor todos os pormenores. Aliás, acreditamos ter
indicado o essencialmente necessário.
Devemos indagar: Como é possível que a pessoa se torne
culpada de erros sexuais, se se esforça, com zêlo e sucesso, para
agir corretamente? Lembremos que tôda falta e todo pecado
contém, em si, a marca da rebelião e do abandono do Criador.
Assim, nossa pergunta tomará a forma: Por que êsse abandono
{qu:3 como vimos, é uma conseqüência imediata da natureza per­
vertida pelo pecado original) se apresenta justamente no domí­
nio sexual e se dirige sempre contra o sexto mandamento?
Se considerarmos as faltas sexuais sob o aspecto de uma re­
belião contra um mandamento, descobriremos que não há outro
mandamento, a não ser o sexto, contra o qual a rebelião do ho­
mem se faça tão fàcilmente. De fato: tal mandamento é quase
o único, cuja transgressão não parece trazer quaisquer conseqüên­
cias exteriores. O sexto é - pode-se dizer - o mandamento con­
tra o qual se podem revoltar os covardes. Isso provém de que,
em tais ações, não é preciso ultrapassar a esfera da própria pes­
soa, não é necessário dar um passo, mesmo pequeno, no mundo
do não-eu - o que enche sempre de horror ao tímido, para quem
um tal passo significa, de certo modo uma "violência" para com
o mundo. Mas, declarar de que os erros sexuais são, em sua es­
sência íntima, formas de revolta e rebelião e que a sexualidade
é, por assim dizer, um simples material acessório em que se ex­
prime tal atitude, é uma afirmação que parece bem estranha.
Contudo, ela é confirmada pela experiência, desde que se tenha
oportunidade de conhecer a estrutura dêsses modos de compor­
tamento (o que se dá, inúmeras vêzes, na prática psicoterapêu­
tica e na pedagogia terapêutica). É particularmente instrutivo,
a êste respeito, um estudo aprofundado das vivências de fanta­
sia que acompanham essas ações, em que os papéis centrais do
esfôrço para sobressair, da vontade de poder e da revolta são,
por vêzes, imediatamente visíveis e, por vêzes, fil.cilmente reco­
nhecíveis sob diversas máscaras. À resistência, secreta e bastante
arraigada, a dar um passo além da estreita esfera da vida e pe­
netrar na realidade do mundo se liga um segundo motivo para

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 243
essa conduta, cuja significação, vista sob tal aspecto, pode ser
assim formulada: Mesmo quando os impulsos e disposições natu­
rais me obrigarem, expressamente, a ultrapassar a mim mesmo
e dirigir-me aos outros homens, desprezarei essa exigência de
abandonar minha própria esfera e ficarei encerrado em mim
mesmo - senhor de mim, autárquico, auto-suficiente. Tal é a
negação extrema da sociedade, mas apenas realizada num do­
mínio da vida em que não é verdadeiramente necessária. Se um
homem não ousa renunciar à ligação social nos domínios social
e profissional, poderá exprimir esta sua atitude negativa no
domínio do erotismo. Tem sido observado que muitas pessoais,
que caem em faltas sexuais, haviam também chamado a atenção
com sua conduta anterior. Isso não se dá sempre, mas acontece
algumas vêzes. A interpretação usual de que o acanhamento, a
reserva, a disposição depressiva, a capacidade de produção dimi­
nuída e outras manifestações semelhantes são conseqüências de
erros sexuais eminentemente prejudiciais, que produzem tôda a
sorte de efeitos no corpo e na alma, é, por certo, uma interpre­
tação inexata. Aquelas conseqüências não resultam, de modo al­
gum, do comportamento sexual em si mesmo, mas : ou são re­
sultados do conflito em que se acha o agente (coin sua auto-re­
preensão e autocondenação), ou não são, em geral, .conseqüências
propriamente ditas, mas simples sinais de determinada· atitude
fundamental de tôda a pessoa, associados ou paralelos à conduta
sexual. A posição da pessoa se acha, então, tão deformada (num
sentido amplo, tal posição se aproxima das que iremos estudar,
depois, como neuróticas) que se originam desvios, tanto nas ati­
tudes sociais como nas sexuais.
Daí se conclui que um combate isolado às. faltas sexuais é, na
maioria dos casos, qRspropositado e ineficaz. Levar um homem a
lutar contra alguma coisa que lhe parece sobrepujá-lo, significa,
tão somente, submetê-lo a uma série de derrotas, que aumentarão
seu desencorajamento e tornarão mais profunda sua convicção de
estar condenado a estas ações (o que atribuirá à sua vontade fraca,
à sua perversidade, ao seu temperamento, às suas taras, etc).
Como, porém, a educação e a reeducação não devem atacar a peri­
feria, mas o centro, será preciso, também aqui, realizar inicial­
mente uma mudança da posição interior do homem, isto é: dar-lhe
nova coragem, nova confiança em si e nova vivência do pró­
prio valor.
Quem examinar, com cuidado, a natureza de tais pessoas
(jovens ou adultas) descobrirá que não se acham deprimidas e
desencorajadas porque cometem faltas sexuais, mas, ao c�ntrá­
rio, que cometem tais faltas por se sentirem . desencorll:J,adas.
Aparece então aqui, naturalmente, o· círculo fatal a que Ja nos

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er
244 RUDOL'F ALLERS

referimos - do desencorajamento para a derrota e da derrota


para o desencorajamento.
Por isso, tôdas as tentativas de reação pedagógica que ajam
por meio de ameaças e profecias sinistras, devem ser absoluta­
mente rejeitadas. Elas só podem produzir os maiores danos.
Se assegurarmos a um homem, que prejudicará sua saúde pela
prática de determinado hábito sexual, acrescentaremos, aos con­
flitos morais já existentes nêle, ainda outros, que só poderão
prejudicar, ainda mais, o infeliz, que se preparava para vencer
as dificuldades anteriores. Aumentamos assim seu desencoraja­
mento e damos novo impulso às fôrças secretas que pensávamos
combater. Sem falar, que a afirmação de um prejuízo à saúde é,
em tais casos, reconhecidamente falsa. Ela pertence a um pe_r!odo
antiquado da ciência médica, tendo sua origem em observações
insuficientes, ou insuficientemente interpretadas, e numa série de
preconceitos que não resistem a uma prova. Seria bastante opor­
tuno fazer desaparecer da literatura pedagógica· êsses ensinamen­
tos errôneos e, mais oportuno ainda, acabar com os diversos es­
critos "populares" sôbre o assunto. A opinião, às vêzes defendida,
de que estas ameaças infundem "um terror salutar" é inteira­
mente errada do ponto de vista psicológico. Conhecida a inexa­
tidão da tese; devemos também considerar moralmente reprová­
vel a opinião acima, porque a inverdade não é, nunca, um meio
permitido e nada pode produzir de útil, com a continuação
do tempo.
Aqui, também, é mais importante e mais eficaz acentuar o
positivo, do que o negativo.
As ações, que, embora reprovadas pelo agente, são sempre
repetidas por êle, adquirem, quando as consideramos, não em si
mesmas, mas no conjunto de uma vida e em particular em rela­
ção à conduta futura, uma terceira significação. Em tôdas as
formas possíveis de comportamento prejudicial, deve-se sempre
perguntar o que aconteceria, no caso de serem suprimidas.
Reconhece-se que, em inúmeros casos, tais ações representam
medidas especiais de proteção do indivíduo. Isso não se verifica
apenas no domínió sexual: o roubo, por exemplo, pode desem­
penhar papel idêntico. A conduta do indivíduo, nesse caso, obe­
decerá à seguinte fórmula: "Enquanto eu cair, sempre e sem­
pre, em falta stão graves, não poderei esperar de mim - nem
os outros o esperarão - que faça qualquer progresso moral".
É evidente que as faltas podem exercer, assim, uma função pro­
tetora, quando o indivíduo não se julga capaz de um progresso
moral, ou, pelo menos, quando, nutrindo uma excessiva ambição
sôbre a grandeza e a rapidez dêsse progresso, não se satisfaz
com o que lhe daria a simples preservação de seu valor íntimo.
Muitos homens o exprimem de modo imediato: "Primeiro devo

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 245

libertar-me· dêsses vícios e depois poderei trabalhar em meu aper­


feiçoamento moral, pensar em ser alguma coisa perante meus
concidadãos, produzir alguma coisa em minha profissão, etc.".
Logo, porém, um éco responde: "Mas não sou capaz de liber­
tar-me e, por isso, não me devo preocupar com essas exigên­
cias". Ou: "Se eu me pudesse libertar, veríeis como tomaria de
assalto, num instante, o- cume da perfeição". Todos sabem, po­
rém, que não se pode atingir depressa um alto cume, que só len­
tamente se pode subir até lá e que nunca se pode estar certo,
depois de ter atingido um dêsses cumes, de que não se apresen­
tará ainda um outro mais elevado.
Conversando com uma mocinha de cêrca de 18 anos, que tinha
procurado conselho médicas por vários motivos, entre os quais
certas faltas sexuais que sempre se repetiam, mencionei, por acaso,
o nome de Santa Teresa. A moça respondeu-me que, ainda hoje,
se podia ser uma santa. Mas ser uma santa significava, para ela,
ser uma grande santa. Quando lhe perguntei: "Se a Srta dei­
xasse, amanhã de cometer essas faltas, ter-se-ia tornado uma
grande santa?", ela baixou a cabeça, corando, e disse: "Sim!"
·A pessoa que colocou muito alto sua ambição espiritual, que
prefere ter, desde já, em tôrno de sua cabeça, um halo de santi­
dade e espera ver instalada dentro em breve uma imagem de sua
pessoa no altar lateral da paróquia, acredita de boa política colo­
car, em seu caminho, ilusórios obstáculos intransponíveis. Sem
isso, poderia desiludir-se bem depressa.
A êsse respeito, devemos ainda indicar, que, para o próprio
indivíduo, as ações mais feitas (sexuais ou de outra espécie)
podem ter também o sentido de lhe pôr sempre, diante dos olhos,
sua "fraqueza de vontade". Com isso, a p�ssoa mostra a si mesma
e, muitas vêzes, aos outros (seu diretor espiritual, por exemplo),
que não pode, de modo algum, "dominar seus impulsos". Isso se
torna especialmente significativo,. quando se torna claro que a
atração nada tem, em si mesma, de especialmente forte. Porque
parece razoável, que se necessite de um forte emprêgo da von­
tade para poder triunfar de uma atração ou excitação intensas,
enquanto é, pelo contrário, um sinal evidente de "vontade fraca",
ou de "perversão" que o homem sucumba a tentações mínimas.
Ora, em muitos casos, a expressão de uma genuína vontade fraca
seria, no fundo, a seguinte : "Eu séria capaz de tôda a sorte de
feitos e obras se não me faltasse a vontade; corno podem esperar
que eu lute contra as oposições da vida, se já estou, constante­
mente, em luta comigo mesmo?" O que há de primário em tal
conduta não é, porém, a "fôrça" do impulso, ou a "fraqueza" da
vontade, mas o medo de ser pôsto à prova pela realidad! e a falta
de consciência de si mesmo, em que êsse medo se baseia.

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246 RUDOLF ALLERS

Resulta daí, que, com a eterna luta contra tôdas as tenta­


ções, com o desespêro e o remorso, se desperdiça muito tempo e
se é obrigado a empregar a atenção e o pensamento, de modo
que não se pode ter o espírito livre para outras questões. Deve-se
também considerar que, embora sob a máscara de uma Juta mo­
ral e de um combate contra o pecado, tal pes::ma não se ocupa,
em última análise, senão consigo mesma.
Raramente nas crianças e jovens e muito freqüentemente
nos adultos, as faltas sexuais são motivadas subjetivamente, de ·
modo que o indivíduo declara que a vida não lhe oferece qual­
quer prazer e que o prazer sexual lhe é indispensável, como subs­
titutivo e consolação para tudo o mais. Mas é interessante, que
não poucas destas pessoas confessem que a obtenção dêsse prazer
não é tão importante. Um estudo mais profundo revela que o
principal não é o prazer sexual como tal, nem mesmo a remoção
da excitação sexual, mas o conteúdo das fantasias que acompa­
nham, ou dirigem, as ações sexuais. Estas são naturalmente, na
maioria, de natureza sexual. Mas exprimem, no "dialeto do
sexual", o que comove interiormente o homem, aquilo por que
êle luta, e o que lhe parece inacessível - por motivos existen­
tes no fundo da realidade ou por sua própria falta de ânimo.
Os partidários da escola psicanalítica consideram as fanta­
sias de conteúdo não-sexual, que acompanham os atos sexuais,
como um simbolismo para a apresentação dos impulsos sexuais.
Sinto-me inclinado, pelo contrário, a considerar as fantasias se­
xuais como um simbolismo de outras tendências e fiz muitas vêzes
a experiência de que a descoberta destas e a correção das finalida­
des podem fazer desaparecer conflitos sexuais supostcs insolúveis.
Por isso, não sou também de opinião, de que uma "constitui­
ção sexual" possa produzir uma determinação essencial do ca­
ráter. Não importa como é constituída a sexualidade de uma pes­
soa, mas, sim o modo pelo qual ela a considera em sua vivência,
sua atitude em i:elação a ela e a posição em que coloca essas coisas
no conjunto sistemático de sua vida, anteriormente à reflexão
sôbre o fundamento de suas posições finais. Por conseguinte, o
problema ela, pedagogia, sexual culmina no da educação ol'ientada
para um justo reconhecimento dos valores.
Só são capazes de viver com moralidade, no domínio sexual,
os que mantêm uma atitude correta para com os mandamentos, o
superindividual, o dever, a sociedade e as exigências desta. Para
isso, porém, é preciso que o homem se liberte, tanto quanto lhe
permite sua fraqueza humana, da supervalorização de sua pró­
pria pessoa. Ao considerar as ações auto-eróticas como expressão
de uma espécie de namôro de si mesmo, enunciou-se provàvel-

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D1g1tal1zadocomCamScann�r
PSICOLOGIA DO CARÁTER 247

mente, urna verdade. Mas é falso considerar êsse namôro como


primordialmente erótico, porque êle é, eminentemente, o modo de
representação de uma posição absoluta da pr6pria pessoa, que
pode se ocultar sob diversas roupagens, forçado por uma impos­
sibilidade interna. Já notamos, há pouco, que aquêles que se vêem
envolvidos em tais problemas e conflitos, têm-se, quase que ex­
clusivamente, a si mesmos, como objeto de seus pensamentos e
esforços. Êste aspecto de sua posição fundamental se exprime em
sua atitude sexual. Pelo menos sob o ponto de vista da análise
psicológica, é, no fundo, indiferente, o motivo pelo qual um ho­
mem se torna o objeto e o material completo de sua vivência;
quer pela admiração que sente por si mesmo, quer pelo ódio a
si mesmo, quer por um cuidado hipocondríaco por sua pessoa,
quer por se ocupar sempre consigo mesmo. Quando nos referimos
a certas manifestações - por exemplo, o escrúpulo - teremos
ocasião de voltar a êsse ponto.
Entre os jovens cuja atitude sexual provoca as maiores difi­
culdades, tanto para a educação como para o próprio indivíduo,
pude observar dois grupos principais: os educados com severi­
dade e que não têm amigos, e os mimados e excessivamente exi­
gentes. Ambos são, no fundo, indivíduos inteiramente desenco­
rajados; ambos podem ser auxiliados por um encorajamento.
i\fas o encorajamento só se pode dar numa atmosfera de onde
foi eliminado o isolamento do indivíduo, isto é: na sociedade. Mas
o desencorajado é como já explicamos suficientemente, extraor­
dinàriamente incapaz de sociabilidade. O educador, o guia, o mé­
dico e o pastor de almas devem, inicialmente, romper êste círculo.
Isso só pode ser feito por intermédio da confiança, do desejo ca­
rinhoso de compreender os outros, da participação em seus pro­
blemas e, por fim, da adesão ao próprio paciente. Não podemos
triunfar dessas dificuldades, se nos limitarmos a combatê-las ou
criticá-las. Não estamos, nunca, diante de um fenômeno isolado,
mas (embora as aparências possam, à pdmeira vista, mostrar o
contrário) de perturbações, divergências e situações falsas, que
envolvem tôda a vida espiritual. Urna prova disso são as nume­
rosas observações de que os vícios ou dificuldades de caráter
sexual podem desaparecer, embora não haja a menor referência
a êles nos colóquios entre o médico e o paciente ( com exceção,
evidentemente, dos que visam um tratamento psicoterapêutico).
tles representam apenas um dos modos de expressão de uma
situação fundamentalmente errada de tôda á pessoa.
O capítulo seguinte trarã ainda alguns aditamentos ao que
acab�mos de expor. Devemos declarar que não quisemos fazer
aqui uma psicologia co1:11.pleta do período juvenil e de todos os pro-

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IJ1g1tal1>adocornCdrnScann
er
248 RUDOLF ALLERS

blemas associados a êle - o que exigiria urna obra inteira -


mas apenas indicar· alguns momentos que nos· pareceram essen­
ciais e alguns outros, que, segundo acreditamos, têm alta im­
portância para a prãtica da educação e da orientação, por for­
necerem diretrizes úteis.

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Vil. CARACTERES NEURóTICOS E CARACTERES
NORMAIS

1. Princípios gerais

Já tínhamos várias vêzes apontado, nos capítulos anteriores,


formações anormais de caráter ou traços especiais destas. Sua
importância era devida, em parte, a serem o resultado de medidas
inoportunas de educação e, noutra parte, a servirem como ilustra­
ção de certos fenômenos normais, que, por meio delas, se torna­
vam mais fortes e claros e, portanto, mais inteligíveis. Estas
conexões e a importância prática e pedagógica de tais caracte­
res justificam, por certo, uma exposição daquelas formas de
desenvolvimento que encontramos nos dificilmente educáveis,
nos nervosos, nos perversos, nos associais, nos criminosos, etc.
Pode parecer estranho, à primeira vista, que modos de com­
portamento tão diversos, como os designados por êsses nomes,
possam ser incluídos num titulo único e ainda mais estranho, que
se possa afirmar, dêles, que possuem, entre si, muita coisa em ·
comum, por mais perturbadores ou inesperados que sejam.
De fato; êles formam um grupo essencialmente coordenado de
fenômenos. Como prova da justeza de tal concepção unificadora,
seja dito, inicialmente, que as várias formas de conduta anormal
se apresentam unidas por múltiplas ligações e que também, num
único e mesmo indivíduo, podemos encontras condições diversas,
segundo as diversas fases de sua vida. Um exame minucioso da
formação de uma pessoa mostra, mais comumente do que se
pensa, alternativas ou sucessões de tipos muito diversos de con­
duta anormal. Muitas vêzes, em tais casos, podemos convencer­
-nos de que a mudança de um modo de comportamento para
outro é situativamente condicionada e está em conexão racional
com as condições anteriores de vida, as obras e as experiências
do individuo observado.
Já condenamos expressamente, no primeiro capitulo, a afir­
mação de que poderia haver um "caráter inato", no sentido de que
um homem estaria destinado, de antemão, a trilhar uma única
direção de desenvolvimento, de que não poderia escapar, mesmo

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250 RUDOLF ALLERS

quando ela o conduzisse a desvios. De tudo o que até agora ex­


pusemos, pode-se concluir, que as razões determinadas do caráter
(provindas do ambiente e não do estado pessoal) têm uma in­
fluência bastante grande, para que não se possa atribuir todo o
desenvolvimento apenas ao estado inato da pessoa. Pelo contrá­
rio: a única distinção primitiva, nas condições simplesmente
dadas com a pessoa, é a de uma resistência maior ou menor a
determinadas influências. Assim, a possibilidade de uma forma.
ção e uma conduta anormais se apresenta para todos os homens.
Ela depende, evidentemente, da intensidade do esfôrço exigido
do indivíduo, especialmente nas épocas da vida, em que não pode
haver uma firmeza de atitudes. Devido à mutabilidade funda­
mental do caráter, inicialmente pressuposta, é também válida,
em relação às formações desviadas do caráter, a afirmação de
que a "normalidade" aparente não exclui a aparição posterior
de perturbações, nem a continuação da normalidade para o
futuro. Vemos, na vida de homens eminentes - que merecem
nossa recordação, não só por suas produções intelectuais e artís­
ticas, como pela sua natureza moral - que não poucos entre
êles, atravessaram períodos de anormalidade mais ou menos ex­
pressa. Tais períodos são encontrados principalmente na vida dos
santo se sua significação será dentro em breve examinada
detidamente.
Cabe, aqui, uma observação fundamental: os sintomas e epi­
sódios neuróticos não depõem contra a "normalidade" do indi­
víduo, porque todo homem pode cair em manifestações de reação
neuróticas. Um único sintoma não prova absolutamente nada.
só o conjunto geral de uma vida é decisivo, como acentuou, há
muito tempo, n clínica psiquiátrica. Seja expressamente acen­
tuado, que os têrmos "neurótico", "nervoso" e "histérico" não
rcprc1:1cntam julgamentos de valor. A pessoa pode, apesar de
uma neurose temporária, abrigar em seu interior possibilidades
mais altas ele valores, do que suspeitam os indivíduos vis que a
eondcnam. Por isHo, tôdas as ridículas tentativas de declarar
impwrnívcis as rcalir.açõcs de qualquer espécie, tanto na vida
arlfotica como na ético-religiosa, devido à existência de "neuro­
HCH", devem Her co1rnidcradas inteil·amente caducas. Creio, po­
rém, que a ncuroHe e n vcl'Cladcira santidade sejam inconciliáveis.
Uma cxposiçi\o HÔOre a educação do car:itet· não pode deixar
de lado 011 cnract.crcH anormais de tôda a espécie, por serem êles,
j 1mlarncntu ncc111-Jivd::1 à::1 influências educativas. De fato, uma edu­
ca1;iio bem 1il1111ujndn ( 011 mclhot·: uma reeducação, pois que se
truta du con-i1d1· oH rc::111ltaclo::1 de umn educnçiio mal feita) é
cnpa�.• 1wHHUH caHol:l, ilu obter 01:1 nmiores êxitos.
Uma puHc111i::1n mi11ucioH11 farú (foscobrir, n:1 pré-história de
cncln i11tlivhluo c11jo11 modos de comportnmento são mais ou menos

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l' s I eoLoGIA D o e A lt A 'J' ]•] lt 2ríl

anormais (excetuamos aqui, naiuralmentu, nfl pcrturhaçficfl ele


origem orgânica, como por exemplo, afl dounça1:1 do c(:reliro), que
as raízes dessa formação devem t-icr bmicnclaii na iníància e,
mesmo, na primeira infflncin. Mns niio 1:1c pocle concluir dai (como
se faz comumente) o "inatismo" cless:u1 pcriurhaçõcH ou, pelo
menos, da disposição para elas. Como já acentuamos vúrim1
vêzes, só seria possível uma tal hipútc!lc, quando não He p11<lm1im
absolutamente demonstrar a exfalência ou a probabiliclaclc de
uma formação reativa. Mas aquêlcs que, birneados na }>ré-exis­
tência de quaisquer anormalidades na inffrncia, acreditam poder
admitir uma "disposição mórbida", nunca se deram ao trabalho,
na maioria das vêzes, de pesquisar os modos ele formaçfw reativa
ocasionais, por estarem fascinados ( ou, por assim dizer, possui­
dos) pelo dogma da condicionalidade somático-constítucional do
caráter e da onipotência da herança.
Um dos maiores serviços prestados pela psicanálise de FREUD
foi o de ter mostrado pela primeira vez, lJâscanclo-se em numero-­
sas pesquisas individuais, a importfmcia das vivências infantis
para o desenvolvimento futuro do caráter. Éste valor não pode
ser negado ao trabalho de pesquisa de FREUD, nem mesmo por
seus adversários, embora se possa ter outros pontos de vista
sôbre sua concepção teórica e sua interpretação rlo conjunto.
Ficará sempre como uma glória da psicanálise o fato de ter visto,
como nunca se vira antes, a conexfw entre o caráter e o destino.
especialmente nos anos da infância, e ter feito disso um problema.
Aliás, tal conexão não deve ser compreendida apenas no sentido
de que o caráter seja marcado pelo destino, mas também de que
o destino é determinado pelo caráter. Deve ser observado, na ver­
dade, que a influência do ca1·áter sôbre o desf-ino é, para uma
orientação de pensamento estritamente psico-analítica, ainda bas­
tante problemática. Mesmo os ensinamentos rla psicologia indivi­
dual, que têm, em relação a êsse ponto, um alcance maior, não
podem ser considerados definitivos, porque uma concepção natu­
ralística ou. sim11lesmente não-metafísica, só pode chegar às posi­
ções mais primárias e snperficiais. Apenas uma metafísica da
pessoa poderá fornecer os pressupostos indispensáveis pnra o es­
clarecimento desta problemática difícil, que leva às últimas con­
seqüências. Se aprendemos com -a psicanálise, que a formação do
caráter, especialmente o anormal, é baseada na infância, devemos
agradecer à psicologia individual o conhecimento de que não exis­
te uma diferença essencial entre as formas de comportamento
anormal do adulto (neuroses, perversões, criminalidade, etc.) e
dos caractéres designados como "anormais" e "deformados" já
aparecem em certas crianças, consideradas, por motivos mais ex­
teriores, "difíceis de educar". Esta designação não é, aliás, muito
feliz, não só porque não se baseia numa característica essencial

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252 RUDOLF ALLERS

dêsses casos, mas apenas uma caracter[stica que se poderia cha­


mar acidental, coom também por compreender um domfnío muito
mais vasto do que o visado. De fato: a "dificuldade de educar"
pode também aparecer em casos onde não existem quaisquer anor­
malidades caracterológicas, mas apenas enfermidades de fundo or­
gânico. Já mostramos que as alterações puramente mórbidas po­
dem também acarretar alterações do comportamento, que se podem
apresentar, depois, como anormalidades da formação do caráter.
Isso se dá, tanto com as enfermidades ou atrasos de desenvolvi­
mento do cérebro, como com as perturbações do sistema de glân­
dulas. As diversas formas de imbecilidade e as falhas de desenvol­
vimento devidas às causas endócrinas são conseqüências disso.
Querer debelar tais casos por processos educacionais é tão errado.
quanto inútil. A correção, áe é possível, deve orientar-se, antes de
tudo, para a perturbação corpórea. A imbecilidade, cuja forma
atenuada depende das alterações mórbidas do cérebro, não é um
objeto da educação propriamente dita, mas de uma pedagogia te­
rapêutica que escapa ao círculo de nossas reflexões. Como, porém,
segundo dissemos, uma formação anormal do caráter pode resul­
tar, muitas vêzes de um fundo de deficiências ou doenças orgâ­
nicas, o exame e o diagnóstico médico dos ca,sos de educação difícil
é sempre indicado e, talvez até, indispensável. tle é absolutamente
oportuno nos casos em que pode ser excluida, com tôda a certeza,
a hipótese de perturbações do cérebro ou das glândula11, como, por
exemplo, quando nenhum defeito de inteligência é notado. Porque
outros sintomas corporais, menos evidentes talvez, podem motivar
uma diminuição de segurança. Os defeitos de viRão, OR polipos na­
zais, a tendência para tonteiras causada pelos ouvidos e muitas
outras manifestações, podem, pois, ser de grande importância para
a vivência e a situação da criança, embora não sejam percebidos
por uma inspeção, mesmo atenta, dos que a cercam. E' imperioso,
portanto, que o auxílio educacionais e a pedagogia terapêutica tla11
chamadas "crianças psicopáticas" nunca sejam realizados sem a
consulta a um médico competente.
O auxílio educacional para os "díflcciH de educar", que puzcr
os pais nas mãos de leigos em medicina, será um mau comêço, que
equivale, muitas vêzes, por suas conscqüênciai;, ao pior dofl char­
]atanismos.1
2. Educação difícil
Entenderemos aqui por "dificeh1 d1; educar", apennH as crian­
ças (e jovem1) em que aparecem manifmitaçiieH dcHagradftveis e
1. Essa condrnJçiio se aplica, natur,,lm•ntc. ain,J• m•Í•, l ··•n.llí., 1,·i v.•" ou
u
Hpsi,otcr:lpiJ JcigJ. , tão elogiada, 1an10 pelos ;adtptoa da ncol� p1ic.1n.1lhica. como
pelos da de psicologia individual.

o,q,tahzadocomCamScanner
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PSICOLOGIA DO CARÁTER 253
·opostas às influências e finalidades educacionais, sem que possa
descobrir uma causa mórbida no corpo e que devem, portanto, ser
atribuídas a uma pura anormalidade caracterológica. Essa deter­
minação conceituai contém entretanto em si (e o pressupõe) um
fundamento valorativo, que não pode ser aceito sem maior exame.
Por que "ser desagradável" ou ser "difícil" não são, em educação,
fenômenos objetivamente mensuráveis. Êles são expressos apenas
como julgamentos de valor por parte do educador. Por isso, de­
pende muito da opinião dêste, saber como e quando se pode falar
de uma educação difícil. Há pais, que consideram um filho como
difícil de educar, só porque êle possuí uma vivaci1lade própria e
absolutamente normal. Outros, têm da diRciplina uma concepção
de primeiro sargento, exigindo uma espécie de obediência e con­
duta regulamentares, que não poderão servir nunca para uma cri­
ança sadia e só serão adequadas no máximo, a urna criança tímida.
Costuma-se julgar, que as descrições elogiosa;;, que os pais cari­
nhosos fazem a �eus filhos, elevem ser, em grande parte, diminuí­
das, por serem exagêros naturais. Mas é ainda mais necessário,
nas declarações desfavoráveis dos pais em relação às crianças, to­
mar apenas urna fração como verdadeira. 1[uitas Yêzes, temos
visto pais que nos apresentam um filho corno "totalmente desti­
tuído de dons", embora qualquer pessoa pouco experiente possa
ver claramente que a criança é bem dotada e possúi \'ivaciclade
intelectual. Ou, então, temos ouvido a indagaçiio: "Será esta crian­
ça um imbecil ou um doente mental?", sem que, para tal hipó­
tese, haja qualquer motivo. E - o que é pior - essas declarações
são feitas, na maioria das vêzes, diante da criança! Por i�so, só se
pode afirmar a dificuldade de educação, quando as exigências cio
educador se movem dentro de fronteiras razoáveis. Determinar,
com precisão, essas fronteiras, é impossível. Por conseguinte, deve­
se sempre fazer um juízo aproximado, ou uma avaliação elas difi­
culdades e da situação educacional, que existem em cada caso indi­
vidual, sem fazer regras gerais. Naturalmente há muitos casos,
que, por sua conduta, merecem a designação "difícil de educar"
e são tão insociais, que nenhuma dúvida pode existir sôbre um
afastamento do normal, mesmo sem grande exame.
Na tentativa de determinar a natureza comum de todos os ca­
sos de educação difícil, devemos, preliminarmente, retomar uma·
observação anteriormente indicada: em tôdas essas crianças, apa­
rece, visível ou oculto, o temor. Mesmo nos casos, em que a des­
crição dos pais, ou dos educadores, não faz pensar de início em
timidez e se apresentam, ao contrário, como ousadia, espírito em­
preendedor, atrevimento, teimosia ou pura indiferença, é fácil des­
cobrir o temor, se pesquisarmos certas peculiaridades do compor­
tamento infnntil, para além do círculo de observações e descrições
dos pais. Eis aqui um garoto, dado a tôdas as travessura�, capaz

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254 RUDOLF ALLERS

de ações temerárias, que rouba maçãs no mercado, senta-se com


os pés para fora, numa janela do terceiro andar, atravessa � rua
na frente de um automóvel a tôda velocidade, fica horas fora de
casa a vagar pelos becos. E um tal audacioso, admirado como he­
rói pelos camaradas, se atemoriza na escuridão ou diante de um
animal qualquer, ou então, se mostra estranhamente incapaz para
o aprendizado da natação. A atitude em relação a esta última ta­
refa revela, muitas vêzes, a insegurança da criança. Aqui, como
se trata de uma situação completamente nova e incomum, a crian­
ça não é capaz, em geral, de fazer surgir aquela energia de com­
pensação, que, em trabalhos mais familiares, o ajuda a ocultar,
diante de si e de outros, por meio de gestos exagerados de cora­
gem, sua própria insegurança interior. Contudo, urna outra face
qualquer da vida revela, de repente, o temor.
Como já vimos, o temor está intimamente ligado à vontade de
poder, impulso para o valor, esfôrço para elevar-se, desejo de ven­
cer, ou que outro nome tenha essa tendência à elevação. Só quem
julga que deve triunfar e considera, ao mesmo tempo, que a derro­
ta é provável, pode sentir mêdo. A renúncia à vitória ou a exclu­
são da derrota não são compatíveis com o mêdo. A recíproca é
também verdadeira: onde há temor, o homem se coloca numa po­
sição de combate - à vida ou à realidade - e luta pela valorização
da sua própria pessoa. Como, porém, o temor em relação à valo­
rização e ao valor próprio, não pode, nem deve ser vivido como
tal (porque importaria em confessar uma dúvida sôbre seu pró­
prio vaior, que equivaleria à negação dêste) êle se mascára ou se
transfere, de seu objeto específico e primitivo, para um outro, cujo
papel de "suporte do temor" será então determinado, de modo me­
nos acidental, através das vivências particulares e das diversas in­
fluências. Quando nos contam, por exemplo, que uma criança di- ·
fiei! de educar tem mêdo excessivo de cães, porque um cachorrão
a ameaçou uma vez, ou teme o fogo dêsde que assistiu a um incên­
dio, ou se assusta com ladrões por ter sabido de um assalto na
casa vizinha, etc., devemos supor que tais experiências forneceram
apenas o material das repreesntações de mêdo, que provêm, contu­
do, de camadas mais profundas da pessôa. E', pois, absolutamente
insensato, querer "acostumar" a criança tímida com o objeto de
seu temor - porque a verdadeira 01·ígem do mêdo não é combati­
da. Sem falar que êsse modo de encorajar falha quase sempre,
quando não está associado a um encorajamento anterior. E' pre­
ciso, pois, que por um motivo qualquer, o encorajamento já se te­
nha dado e a confiança em si e a consciência do valor próprio já
tenham sido fortalecidos na criança, para que o temor perca seu
sentido pi·óprio e sua função no conjunto da vida dêsse indivíduo,
sendo, assim, fàcilmente eliminado (já que era simplesmente um
hábito).
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PSICOLOGIA DO CARÁTER 255

A partir ela idéia fia nfirmnçiio ele si mesmo, por um lado, e


da se�urança e protL•çiío, por outro l:1110, podem ser concluídos e
compreendidos muitos do:1 muclmi ele comportamento que levam à
educaç:10 diJídl, ou :;iio can:;as dc:1ta, Da concxüo estreita entre OH
fcnúmc1wg dt� 1'th1ca\0Üo difícil e a insegurança universal das crian­
�ns ( 111�:;s('s ca:;os consider:1vclmente reforçada) resulta que mui­
tas - e takt'Z tôclas - dessas manifestações podem mostrar tra­
�os, mesmo 11:is crianças normais, isto é: nas que nfw apresentam
{lificuhlatks de educação.
N:io é ele nossa tarefa dar aqui uma descriçüo, ou uma como
exposição clínica, ou uma sintomatologia da educação difícil. Tra­
ta-se, !fio sômcnte, de indicar, em certas formas típicas, a natureza
comum dêsscs desenvolvimentos falhos e a tendência fundamental
dn posir,:ào educacional a ser tomada diante dêles.
Se lançarmos um olhar sôbre as queixas, feitas na prática da
educação de auxílio pelos pais e e ducadores, e em relação às crian­
ças difíceis, elas versarão, na maioria, sôbre o seguinte: mentira,
desobediência, vadiação, teimosia, mau-humor, intratabilidade,
brutalidade em palavras e atos, tendência a ações loucas e roubo -
nos que se refere a comportamentos imorais ou associais - e: dis­
tração, desordem, falta de concentração ou de inteligência, temor,
timidez, acanhamento, incapacidade afetiva, choros noturnos, enu­
rese noturna, assustabilidadc, sensibilidade, hipocondria, reserva
- quando há, em primeiro plano, sintomas mais neuróticos. A
uma inspeçáo atenta descobrir-se-á sempre que, junto aos traços de
caráter associais, se acham, na mesma criança, certos sintomas
nervosos. Muitas vêzes, os diversos traços parecem ser inconciliá­
veis e até contraditórios. Como êsses casos são muito úteis para
o entendimento de tôda a queslfio, deve-se procurar uma fórmu!a
comum, que compreenda ambos os grupos de motivos caracteroló­
gicos. Isso se consegue, sempre que não se isola a conduta em
estudo e se a considera apenas em si mesma, mas, ao contrário, se
tem ante o::; olhos sua função em todo o conjunto da vida e tôdas
as suas condições e se indaga por que tal traço aparece numa si­
tuação e tal outro em outra.
A mãe de dois meninos procurou o consultor educati,•o por
causa do mais velho. Ésle menino linha cinco anos e o outro, dois
anos e nove mêseH. Enquanto o mais moço mostrava grande inde­
pendência e já começava a vestir-se sozinho, o mais velho revela­
va-se extremamente dei;ajeilado e não era capaz de pôr Rtm roupa
ou seus sapatos ( isso se dava comumentc; às vêzes, JJorém, êle
acertava e podia fazer muito bem tais ações). Ele preciimva da
mãe para lavar-se e arrumar-se; era arrogante, ugl'essivo parn
com o menor, desobediente e medroso, não querendo, de modo al­
gum, ficar no escuro. Mas, em contradição evidente com sua timi­
dez e falta de independência, fugiu de casa uma ou duas vêzes e

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256 RUDOLF ALLERS

ficou, horas a fio, sozinho, a errar pelas ruas. Também foi expulso
de um jardim de infância, porque induzia as outras crianças às
piores travessuras. Enfim, para determinadas ações, demonstrava
esperteza, espírito empreendedor e .coragem. Procurava conseguir
a maior quantidade possível de açúcar e leite durante as refeições,
mostrando especial avidez pelo leite - especialmente o que se des­
tinava ao irmão.menor. Seu pai era um operário de fábrica de ara­
mes e a família vivia numa casinha bem primitiva, na parte de
fora da cidade; não tinham guarda-comidas, de maneira que à
mãe, para proteger o leite da cobiça do mais velho, colocava a gar­
rafa num móvel alto; mas o menino punha uma cadeira sôbre a
mesa e, subindo por essa armação oscilante, procurava atingir· a
garrafa; tal ação exigia, por certo, urna coragem bem maior do
que fazia supôr sua timidez em outros casos. �!e fôra, em peque­
nino, uma criança muito alegre e fácil de dirigir. Só ao terminar
seu terceii:o ano de vida, começou a demonstrar dificuldades. Nes­
sa ocasião, importantes alterações realizaram-se em sua vida. O
irrnãozinho havia nascido, os pais tinham de/xado a casa da avó
materna, onde moravam com esta e uma irmã solteira. Essa casa
era uma grande habitação de arebalde, em que, por certo, havia
muito mais coisas a ver e sentir, do que na pequena casa em que
agora moravam. O mais velho conquistára o coração da avó (o
que é muito comum) e o menorzinho não lhe pôde arrebatar essa
posição de preferência. Mas, com a mãe· êle fôra afastado para um
segundo plano pelo pequeno concorrente. Verificou que o carinho
materno se voltava tanto mais para o bebê, quanto mais fraco
êste parecia ser, especialmente em seus primeiros mêses de vida.
Veio depois a mudança de habitação e êle se viu afastado da avó
e da tia, afastado da grande casa onde era apreciado e estimado
pelos do seu partido, ficando num isolamento em que não mais pos­
suía o amparo das duas senhoras, só, com o irmãozinho que lhe
roubara o carinho e os cuidados da mãe. Sua conduta foi dominacla
pelos seguintes motivos: punição do concorrente, fazendo sentir à
êste que êle, o mais velho, também existia e tinha direito aos cui­
dados da mão (cenas de vestir-se e calçar-se mal) ; apropriação
do que lhe era negado em proveito do pequeno, mesmo ao preço de
um risco e até de um perigo; tomada do papel de chefe, onde as
vantagens do rival favorecido pela mãe não se pudessem contra­
pôr; demonstração ocasional de sua importância aos olhos da pró­
pria mãe, tornando-se o centro de interêsse desta, pelo mêdo e os
cuidados que inspiravam suas fugas de casa e mesmo por más
ações, porque os "maus meninos" são objeto de atenção, mesmo
que recebam castigos. Considerada do ponto de vista do primogê­
nito "destronado", não é uma tal conduta inteiraIJ1ente conseqüênte
e inteligível e não se assemelha, quanto à origem e execução, a um
plano bem refletido e elaborado cuidadosamente em vista de um

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I' 1:-l I C O 1, O(: 1 A ll O <: A lt Á 'r' 1,: lt 2!í7

fim visado? J�rnrn liio clarn:1 fül coi111u1, 1pu! 11fü, foram 11ece:111ária8
maiorcg pcsq11iHa11, para que n 1uifo, com111·01!11d1rn1lo H:1:1a:1 t:enrlén­
cias através de nlRllllUlH de no1111m1 111!rm111l.:111, ncri!uccmt:rnH<! c:Hpon­
tfmeamcnte ao caso, com 1rrar1elu .'l:tJ:nc;id1ulc, urna 116ric! de outrmi
pcculiarldaclc.
Que fmr.cr nêssc caHo"! Naturnlment.u 11iio Hc: 11oderia rlar no­
vamente :i criança a po:,dçiio prcrc\rn11cial q110 cleHcjava, porqm! :;cu
desejo estava ngora em almolut.o dt:imci\rdo com a realichule. Poclcr­
-se-i:t-porém, tentar tl'arrnmitir ao menino o conhecimento <le que
aquela situaçiio 11iio é dcHe.iíw1:l, nem ú a (mica IJUe pode :-iutíafa­
zer seu desejo de rcconhccimc11l,o e aprcciaçiio. Também se pode­
ria, no mesmo tempo, tentar HeJ�uir outra rota, que satisfizesse,
tanto as necessidades subjetivas como aH exi1rências objetivas da
criança - aconselhando-lhe a :mlisfaçfto por intermédio das rea­
lizações. Acon_selhamos à mãe, cm primeiro lugar, a não mais apre­
sentar o filho menor como um exemplo, o que ela fizera, como é
natural, muitas vêzes (Que vergonha! O pequenino já sabe fazer
e tu, que és o maior, ainda és tão desajeitado!) e, em segundo lu­
gar, a desenvolver no menino a consciência de seu valor, dando­
-lhe certas tai'efas e elogiando-o por executá-las. Ela deveria, por
exemplo, ao invés de esconder o leite em cima do armário, confiar
ao menino a guarda da garrafa, dizendo-lhe, por exemplo, que o
guardasse do cachorro. !1:sses conselhos e muitos outros orientados
no mesmo sentido - fortalecer a consciência do valôr próprio por
meio de realizações e do reconhecimento destas - mostraram-se
razoáveis, a ponto de se ter o menino "tornado outro" (segundo
as próprias declarações da mãe ao voltar, algumas semanas depois,
·ã consulta). Sem dúvida, estávamos tratando com uma mulher ex­
cepcionalmente inteligente, que estava resolvida, de antemão, a ou­
vir nossos conselhos e tinha, pelo filho, um amor verdadeiro, em­
bora não egoístico.
. Êste caso é bastante simples e claro. Mas deve-se admitir que '
uma pessoa qualquer, que se tivesse de haver com êle, não o teria i
compreendido e tratado da mesma maneira. Os novos pontos de
vista, especialmente os da psicologia individual, nos ensinaram a
vêr as coisas de modo diverso do habitual, a pôr a atenção em pe­
culiaridades que não se procuraram anteriormente, a tirar conclu­
sões, ·outrora consideradas secundárias, mas cuja importância é
. confirmada pelos sucessos práticos. Sempre conseguimos, por meio
de tais considerações e modos de tratamento, tornar compreensí­
veis muitos casos, que, outrora, pareciam inteiramente obscuros e
de tratamento problemático. Algumas vêzes em curto tempo, ou­
tras vêzes através de uma longa transformação de educação, con­
seguimos reconduzí-los, de um desenvolvimento já orientado para
a insociabilidade, para um desenvolvimento normal. Mas o pressu­
posto de todo sucesso, nêsses casos, é, antes de tudo, a assimila-

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258 RUDOLF ALLER.S

ção das intenções do conselheiro ou do médico, por parte do edu­


cador. Contra a vontade do educador, nada se pode realizar. Com
as crianças maiores, pode-se, às vêzes, conseguir, que lutem por
uma relativa independência; com as menores, porém, isso é impos­
sível, evidentemente. Mas, mesmo assim, o resultado acima indi­
cado não é absolutamente satisfatório. E' difícil preservar tais cri­
anças da neurose e da insociabilidade, sem, ao mesmo tempo, afas­
tá-las espiritualmente dos pais, embora mantendo as formas exte­
riores das relações entre ambos. Entretanto, devemos confessar,
que a incompreensão, embora sem culpabilidade, deve tomar sôbre
si mesma o custo de seus erros, e que é mais importante defender
uma pessoa de um sofrimento permanente e de uma intra_tabili­
dade duradoura (e, pois, também, da incapacidade, tantas vêzes
associada a isso, de uma religiosidade pessoal), do que poupar a
sensibilidade do educador que se quer manter obstinadamente em
seus pontos de vista sem dar valôr aos da criança.
As experiências colhidas com um número mais ou menos gran­
de de crianças, trazidas à nossa consulta em conseqüência de inú­
meros roubo(l, podem lançar alguma luz sôbre o modo de fonmi­
ção, não só dêsse importante desvio, mas também de outros erros
e pecados infantís. Podemos determinar, para o roubo infaltil, cs
motivos seguintes:
Necessidade de representar um papel, ligada, ao mesmo tem­
po, a uma descrença real e profundamente arraigada em su:is pos­
sibilidades interiores de desempenhar êsse papel pela via das rea­
lizações positivas. O papel só pode ser representado através do he­
roísmo: o roubo cometido diante dos camaradas, ou o roubo aue
êsses poderão contar depois e que é feito para atrair sua admfrr.­
ção. Outras vêzes o roubo não é realizado por causa de si mesmo,
mas para obter dinheiro ou objétos, que são dados 'depois como
presente, a fim de que o autor consiga adeptos. Se, por exemplo,
mas para obter dinheiro ou objetos, que são dados depois como
estudante, nem por sua fôrça nas brigas, nem como chefe de cer­
tos empreendimentos que exigem astúcia, pensará (se não fõr tí­
mido) em obter uma tal posição. Se o puder fazer por meior le­
gais, dando de presente aquilo que lhe pertence realmente (pão
de merenda, selos, etc.), êle o fará. Se não o pudei:, porém, (por
ser muito pobre, ou estar sob severa fiscalização dos pais), cairá
nos meios ilegais.
Um segundo motivo, que parece bem estranho, é o prazer da
própria perversidade. Já encontramos aliás êsse traço na explica­
ção das faltas sexuais e tornaremos a encontrá-lo, em breve, ao
tratar dos caractét·cs neuróticos. O motivo aparece sub múltiplas
variantes. Primeiramente, a criança que rouba constantemente
fornece a sim mesma, por meio destas ações, a prova de que é in­
capaz de um progresso moral e de que não pode tentar iniciá-lo

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I'SICOLOGIA J)O CARÁTER 259

(l'omo ouve dizer muitas vêzes). Ne1,tes casos, a situaçflo está,


muitas. ,·t>zes, nas fronteiras da neurose de compulsiío e a criança
sPnh• mnilns vêzcs nm impulso, mnis ou menos irreprimível, ele
apossar-se dl' coisas ou dinheiro, mesmo quando snbe que não tc-
1·írn ntilizaçiío imediata. Em segundo lugar, o roubo (e o bem ad­
quirido por meio dêle) servem para a obtençiio de um prazer mo­
mcn!Hneo. quando a criança não tem esperança de olitcr outros
pra:.:eres. Desse mocto, obterá um prazer, pelo menos passageiro,
embora preveja a descoberta e o castigo. Isso resulta, muitas vê­
Zt"s, ele uma educaçr10 excessivamente severa, que pune com duros
castigos falt.1s mínimas e desobediências ligeiras, de modo que se
torna indiferente, para a criança, cometer faltas leves ou µ-ravcs,
jú que, rlc qualquer maneira, sofrerá um pesado castigo. Além dis­
so, o motivo cm qneslüo pode associar-se, de tal modo, a um dos
citados primeiramente; que tais ações sirvam para demonstrar a
"grandeza" ela própria perversidade, segundo o esquema que, em
relação a outro assunto, foi assim expresso por uma manina: "Ou
anjo, ou diabo". Isso significa: se não puder atingir uma posição
proeminente pelo caminho do Bem, tentar-se-á o caminho do Mal.
Deve ser observaria, que a falta de reconhecimento e de louvor. as­
sim como as preferências entre irmãos, dão pretexto a tais ati­
tudes.
Os motivos do segundo grupo estão também lntimamente liga­
dos aos do terceiro. Êsse terceiro grupo pode ser denominado o
dos atos ele vingança. Vejamos uma anedota. Um menino brinca
com as mãos num monte de neve; um homem que passa revolta­
-se com isso e lhe diz: "Vais congelar tuas mãos"; o menino res­
ponde: "Se meu pai procedesse direito, êle compraria luvas quen­
tes para mim, para que não congelasse minhas mãos!" Eis uma
bela ilustração de tal atitude e suas motivações, em muitas crian­
ças e mesmo em adultos. Muitas crianças que roubam acreditam
exercer, com êsse procedimento, uma vingança sôbre os pais. Não
raro, o roubo parece s·er aquilo a que tem maior aversão o pai da
criança, que será, por isso, ferido em seu ponto mais sensível. Evi•
dentemente, a criança sabe que, com seu rito, será lançada uma
certa mancha sôbre tôda sua família e sôlire seus pais. Por vêzes,
o motivo da vingança é imediatamente revelado, como por exem­
plo, quando uma c1·iança tira, da própria casa, coisas que não pode
utilizar e as esconde, �ó por saber que os pais as apreciam, O roubo
(e isso se aplica, naturalmente, a tôdas as outras ações más) pode
ser também um simples meio ele trazer aborrecimentos aos pais.
1 E' então, a expressão de uma revolta interior, que a própria crian­
ça desconhece na maioria das vêzes. Também nêstes casos a ques­
tão de saber se se pode falar em neurose de compulsão é, muitas
vêzes, difícil de responder. Tínhamos indicado, intencionalmente,
as analogias entre a atitude da criança (ou jovem) ladra e a da

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260 RUDOLF ALLERS

sexualmente pervertida, ao falar, páginas atrás, nas faltas sexuais.


Já foi observado, há muito tempo, que ambos os modos de com­
portamento se combinam muitas vêzes, especialmente no tipo em
que as ações de roubo aparecem com a excitação sexual, ou são
01·ientados por esta, e quando a execução do roubo produz, ao mes­
mo tempo, uma satisfação sexual. Quis-se concluir, dai, que tahi
roubos, especialmente os compulsivos {cleptomania), vinham de
um fundo de perturbações sexuais, sendo, em sua essência última,
de natureza sexual. A escola psicanalítica, em particular, tem ilsse
ponto de vista. Sem querer contestar os fatos conffrmados por mi­
nha própria experiência, não posso, contudo, convencer-me de que
tal conclusão seja necessária. A própria analogia entre o roubo
e a ação sexual e entre os motivos de ambos, mostra ser plausível
a suposição de serem, essas duas formas de comportamento - iso­
ladas, ou em conjunto-, a expressão de uma mesma posição fun­
damental do indivíduo. A própria observação ele que, em muitos
casos, as ações masturbatórias parecem substituir o roubo (quan­
do a criança conseguiu, por meio de certas medidas, dominai· a
êste) não pode, a meu vêr, ser considerada um suporte para a men­
cionada concepção psicanalítica. Tal fenômeno equivale, sob todos
os pontos de vista, a uma atitude muito encontrada entre os neu­
róticos: a supressão de um sintoma que ameaça envolvel' o doente
em grandes diifculdades e sua substituição por um outro. Não
vejo nisso - como o faz a psicanálise - uma "transformaçiw" de
um acontecimento em outro, ou a tnmsferência, de um pura outro
fim, de determinada "energia impulsiva", mas apenas uma troca
de métodos ou meios, sendo, porém, conservado o mesmo fim.
O motivo da vingança representa também um gTande papel,
nos casos trágicos de siiicídios de crianças e jovens. T:ih:1 casos cos­
tumam excitar, com razão, a opinião pública, pois que lodos per­
guntam: "Que poderia levar um jovem a tirar sua própria vida"!"
Geralmente, uma verificação superficial do fato não permite re­
conhecer os motivos específicos da açào. 1�m ce1·tm:1 casos, a situa­
ção geral da ação faz reconhecei· que nào se trata de atemorizar 0
educador, nem, portanto, de causar impressão; pode-se mesmo
pensar numa tentativa de extorsão: põem-se, ante os olhem tio pro­
fessol', ou educador, seve1·0 ou injusto {do ponto de vista da crinn­
ça), as terríveis conseqüências de sua atituclc. O mesmo se 1rndc
dizer de inúmeras tentativas ele suicídio por parte de ndultos. O
que nesses casos é mais superficial, leviano e teatral (e também
mais ou menos conhecido como intenção), pode ser, em outros -
desconhecidos do próprio agente - um motivo co11Htra11gedot· para
empreendimentos muito graves, que, infcliimenl:e, lerminnm v.e­
ralmente de modo trágico. Pode parecer uma frivolida1l<i, utilizar
a anedota do garôto e elas luvas, dada acima, cm relac;fio a aconte­
cimentos tão temíveis. Contudo, ela exprime bem u l'1111clo dn tJUCH·

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 261
tão. Se conseguirmos conquistar a confiança das crianças depri­
midas, melancólicas e sem alegria infantil, poderemos ouvir mui­
tas fantasias e sonhos. A descrição, feita por essas crianças, é maís
ou menos, a seguinte: os pais chorando junto ao esquife de seu
filho; a impressão que fará o cortejo fúnebre; o professor que o
reprovou, ou iria reprová-lo, lá está, desesperado, fazendo as mais
amargas acusações a si mesmo ("Eis o que eu diria a êle se eu ... ",
disse um menino de onze anos a um colega, referindo-se ao inspe­
tor, de sua turma) ; todo o mundo o lamentaria, considerando-o
uma vítima dos homens e condenaria as atitudes dêstes. E' fácil
vêr que há, por um lado, a idéia de ser, pelo menos na morte, um
centro de interêsse e, por outro, a necessidade da vingança.
Têm, pois, certa razão, os que lançam a culpa de tais aconte­
, cimentos sôbre os adultos a quem está confiada a criança. Deve ser
'observado, aliás, que tal culpa não é acompanhada de responsabili-
1 dade, porque o educador em questão não tem a menor idéia das
1 dificuldades em que se acha envolvida a criança e não pode com­
preender seu modo de representar o mundo. Por certo, poderiam
ser evitadas muitas tragédias, se alguém se dispusesse a compreen­
der a criança e sua situação interior e tentasse conduzí-la ao cami­
nho correto - supondo que seja possível convencer, às pessôas que
têm um papel predominante na imagem do mundo da criança, da
necessidade de se portarem de modo diferente do anterior.
Pode-se imaginar que prodigioso caminho deve percorrer, in­
teriormente, uma criança, dêsde a alegria ingênua e natural da
vida, própria de sua idade, desde a coragem de viver e a conse­
qüente esperança na vida, até o ponto em que considera sua vida
,como nada e deseja abandonã-la. Só as experiências que a crianca
realiza nos poucos anos de sua vida podem levá-la a afastar-se de
tôda atitude normal. Mas está nas mãos do educador, nas mãos das
pessoas adultas que cercam a criança, dar uma forma a essas expe­
riências. Na verdade, todo o suicídio, ou tentativa de suicídio de
uma criança, é uma terrível acusação contra os que a cercam e de­
veriam orientá-la, conduzí-la e fornecer-lhe uma correta imagem
do mundo.
Levaríamos muito tempo, se quiséssemos tratar, com maior
amplitude, de tôdas estas coisas. Bastarão talvez as observações
até agora feitas, para esclarecer, em linhas gerais, a natureza da
educação difícil e das medidas que se devem tomar· em relação a
ela. Quando tratamos da neurose, acrescentaremos mais alguns es­
clarecimentos.
3. Neurose
Não trataremos, evidentemente, de discorrer, aqui, sôbre a
'clínica das várias formas da neurose, ou a imensa teoria relativa a

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262 RUDOLF ALLERS

elas. Não faz parte de nossa tarefa a descrição minuciosa dos fe­
nônemos anormais que se apresentam no domínio do caráter hu­
mano. Nosso fim principal é a descrição de alguns princípios fun­
damentais, que, a nosso ver, têm grande importância na formação
do homem normal. Também as formas anormais de comportamen­
to servirão apenas como ilustração das desagradáveis conseqüên­
cias de um procedimento incorreto. Também por êsse motivo, só
poderemos fazer algumas observações sôbre o que há de geral e
esl;]encial nos caractéres neuróticos e noutras formações de caráter
encontradas nos neuróticos.
Ao renunciar a uma exposição das teorias sôbre a natureza e
a origem das neuroses, excluiremos também de nossas considera­
ções tôda divergência crítica em relação a certos ensinamentos.
Observaremos apenas, em resumo, que julgamos inaceitável a teo­
ria - aceita pela maior parte dos pesquisadores dêsse domínio -
que considera a neurose como dependente de certas alterações or­
gânicas do córpo. A afirmação, de que um "sistema nervoso fraco"
é a base de tôdas as manifestacões neuróticas, é inteiramente falsa.
Ela provém, por sua vez, de �ma concepção essencialmente mate­
rialista, que não pode nem quer ver outra coisa, senão as pertur­
bações da natureza e da conduta humanas condicionadas pelas al­
terações orgânicas. Ela é sustentada, hoje, apenas pelos autores
que não se podem libertar daquêle ponto de vista (já hoje essen­
cialmente superado), ou não tentam alcançar uma real clareza na
formação dos conceitos - em especial os de causa e ocasião -
dando, por isso, uma interpretação grosseiramente falsa aos en­
sinamentos da psicologia individual relativos à importância da de­
preciação orgânica na formação elas neuroses. Mas por outro lado,
não nos podemos contentar com a concepção psicanalítica, contra
a qual podemos levantar uma série de objeções, a nosso ver ponde­
ráveis. Reconhecendo, embora, no domínio dos fatos, o grande nú­
mero de descobertas que foram promovidas pela pesquisa psicana­
lítica (principalmente e quase que exclusivamente por FREUD),
devemos afirmar que a teoria é, em si mesma, de construção muito
deficiente e não pode, em conseqüência de sua intrínseca faltn de
lógica, suportar, de modo alg·um, mesmo uma crítica imanente. Já
lembramos atrás, que as hipóteses fundamentais de que se origi­
nou a psicanálise se mostram inaceitáveis em si mesmas e sobre­
tudo do ponto de vista de uma metafísica positiva e de unia con­
cepção inteiramente católica do mundo. Parece-nos inteiramente
impossível que a filosofia católica e as verdades fundamentais da
fé nela contidas possam jamais ser postas em harmonia com os
p1:essupostos teóricos da psicanálise. Quem acreditar nisso não ob­
servou bem os fundamentos axiomáticos da tese psicanalítica ou
a significação última da filosofia católica.

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ps I eoLo GI A D o e A It Á 'f E R 263

Devemos finalmente indicar que, meHmo do ponto de vista da


psicologia teórica e prática, podem ser aprcsentadaH críticas con-
. sideráveis contra determinadas partes do ensinamento psicanalí­
tico, essenciais ao sistema. Devendo, como já dissemos, deixar de
lado no presente trabalho, uma profunda apreciação crítica, va­
mos contentar-nos com a indicação das exposições sólJrc a questão
que j{1 foram citmlas por nós anteriormente, noutro lugar <lêste
livro.1 Julgamos, todavia, que poderíamos justificar nossa rejei­
ção cta psicanálise e o fato de não nos determos em suas teses, por
uma acentuação de nossa própria concepção, feita no decorrer <les.
ia obra.
Mas, por outro lado, não temos a intenção de aceitar simples­
mente a teoria da psicologia individual, da maneira pela qual e1a
é propagada pela maior parte de seus adeptos, embora julguemos
que, com ela, nos aproximamos mais da verdade, do que com o
auxílio da construção psicanalítica. 2 Não se deve deixar de obser­
var que os fatos, tomados puramente como tais, são muitas vêzes
os mesmos em tôda parte e que as divergências na formulação teó­
rica estão apenas, algumas vêzes, na escôlha do modo de expres­
são. A explicação psicanalítica tem, porém, esta particularidade:
suas concepções teóricas penetram no que parece ser uma sim.

l. Na nota l da pág. 5 l. Acrescentaremos àquela bibliografia as seguintes


obras: Ober Psychoanalyse (Berlim, 1920); Psr;cho/ogie des Geschlectslebem (Mu­
nich, 1922); G/iich [lnd Ende der Psychoanalyse, em: Schweizer Rundschau, 1928,
Cadernos 1 e 2. Como os p ressupos1os últimos da psicanálise são puramente natu­
-ralísticos e seu abandono podeda derrubar todo o sistema, tôda tentativa de acei­
tação parcial do modo de pensar psicanalítico, no interior da concepção c2tólica do
mundo, é. de antemão, falsa e ineficaz. A atitude expressamente anti-religiosa da
maioria dos adeptos da psicanálise (o próprio FREUD, RE!K, etc.) é uma conse­
qüência de sua posíção básica. Êste fato não pode ser alterado pdos esforços de
PFISTER, teólogo evangeli.�ta e psicanalista (Hy sterie r.md Re1igiosirat, P,;ychoanclyse
und \Ve/tanscnauung, Viena. 1928). Uma concepç5o espirituafüta, ou pelo menos
não-materialista, tomaria inteiramente ins,ustcntávd o próprio sistema. Por isso.
é-me impossível elogiar, mesmo as ;implas explicações de R. LIERTZ (recentemente
aparecidas em Die Psychoneurosen, Munich, 1928). Dcve•se confessar, sem dúvida,
que a psicanálise observou corretamente muitos fatos. Mas a explicação supõe, quaS"
sem exceção, tôda a teoria. Por isso é preciso, primeiramente, dcmolír tôda a arma­
ção conceitua!. para poder pôr à vista os puros fatos. Entre a teoria psicanalítica e
a concepção católica da natureza do homem há, a meu ver, uma intransponível
contradição.
2. Só po:le crr.r que a psicologia individual é uma espécie de pskanálise, ou
que, partindo das mesmas hipóteses, trata apenas de uma parte do domínio de
· fatos daquela, aquêle que não compreendeu bem daramentc a estrutura funda­
mental de uma, ou as teses gerais e metódicas da outra. Aliás, a maior parte dos
que fazem tal afirmação é formada de adeptos da psicanálísi que pressupõem a
valiaez de sua tese em tôda e qualquer anáfüe, mesmo quando julgam fazer afir.
mações simplesmente objetivas. f:Jes não são c.1pazcs. em particular, de abandonar
sua "posição" e ater-se ao dado. Tal observ?ção se aplica também, provhelmrnte,
.a ScHULTZ-HENI<E (Terceiro Congresso de Psicoterapia), a LIERTZ e a KUNZ
(Ver nota à pág. 84).

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264 RUDOLF ALLERS

ples descrição dos fatos, de modo que o que é apresentado como


fato e prova da teoria, contém e pressupõe, em sua forma verbal,
tôda a teoria. As afirmações objetivas da psicologia individual são,
por assim dizer, mais ingênuas, mais próximas da vida e menos
carregadas de pressuposições teóricas ou metafísicas. E' verdade
que, num ou noutro autor, se acrescenta, à formulação dos fato s,
tôda a espécie de motivos de concepção do mundo. Entanto que tais
elementos de pensamento - que não estão contidos inicialmente
nos fatos dados - adquirem importância na literatura da psicolo­
gia individual, êles serão naturalmente aceitos por nós sem exame
e sem comprovação, tal como os do caso anterior. Por isso, a curta
descrição da natureza das perturbações neuróticas, que será dada
a seguir, se orientará, de modo geral, segundo a linha de pensa­
mento da psicologia individual, sem que procuremos encobrir a li­
gação com tais ensinamentos. Contudo, não poderemos aceitar sem
maior exame e subscrever tôda e qualquer tese dêsses ensina­
mentos.
Se quisermos determinar com precisão a natureza da neurose,
devemos indagar primeiramente se podemos falar, com razão, de
neurose, uma vez que o estado assim denominado pode aparecer
sob uma multiplicidade de formas, fazendo-nos duvidar de que
exista um conceito unitário. De fato, numa pura descrição, a his­
teria, a fobia, a neurose de compulsão, a hipocondria, a neuraste­
nia, a gagueira, as neuroses do cora ão e do estôma o etc. dã -·
-nos a 1mpressao e que se trata, em cada caso, de uma situação
inteiramente diferente. Mas, em primeiro lugar, temos a expe­
riência de que, numa única e mesma pessoa, tais estados se reve­
sam e podem mesmo· alternar-se. Por conseguinte, não podemos su­
por uma disposição:de fundo constitucional para uma qualquer das
formas de neurose. Pelo contrário, o que se verifica é que a modifi­
cação da forma é condicionada situativamente pelas condições de
vida e as experiências específicas de cada indivíduo em estudo. De­
ve-se então supor, de início, com grande probabilidade, que a for­
ma da enfermidade depende essencialmente, em geral, dos moti­
vos ambientais. A doença será, pois, no fundo, uma só e apenas
variará com as condições de manifestação ou outras condições
"acidentais" (isto é: não-essenciais). Em segundo lugar, a análise
psicológica descobre, nesses estados, certos traços gerais comuns a
todos. tsses traços são, em essência, os mesmos que já encontra­
mos nas crianças difíceis de educar. Se conseguirmos, naquêle caso,
explicar o modo de comportamento, como uma reação compreen­
sível, diante de determinadas experiências da criança colocada em
determinada posiçfLO, é provável que concepçiío idêntica possa ser
adequada ao estado de neurose.
Se nos devemos contentar aqui com a afirmação da unidade
essencial das várias formas de neurose (pois que não podemos tra-

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PSICOLOGIA DO CA?..-Í.7:ER

tar, ne.,:ia obra, àe 5Ua clinica) n.ão poden:o;; àeb.:ar de re-:cmhecer


que há umá série ce quesrõ;;s a exigir esclarecimento e que noss,,
conhecimento dos mon:entos da ,ivência, pelos quais a neurose to­
ma sua expre.,:são particular, exige, em e;;pecial, um :;profunda,
rnento ainda maior. �fas como acreditamos poder julgar bem cor­
retamente ni:,ses asrnnto3, serfa. t.ah-ez necessário fazer akumas
restrições ao valor de nossos conhecimentos, no que se r,;fere à
educação do caráter.
Considerada geneticamente. a neurose se origina da exaltarão
da tensão que existe, em todo homem, rntrc a rontadr de pode,· e
a pc,ssibilida.de do poder. !\outras pala nas: ela é um re�ultmlo
Jmediato da situacão, essencialmente humana. que se baseia na na.
tureza decaída. Pode-se também dizer aue ela é a C'o11scaiif11cfr1 da
revalia da criatura contra s:ua finitude e impoth1cia naturais,
transformada em doenca e anormalidade.
Corno tôdas as situações que conduzem à vivência da impo­
tência geral, logo de início, o mêdo e como por isso mesmo, o te­
mor se encontra, de certo modo, no fundo de tôda vivência infan•
til - adquirindo importância tanto maior, quanto mais desfa,•orá­
vel fôr o desenvolvimento (corno vimos nos difíceis de educar) -
êsse temor será 1�m jenómeno fwuiamental em todos os estados
neuróticos. O mêdo é um corolário da luta. contra poderes superio­
res. t::le só pode surgir, quando de qualquer modo se luta por uma.
vitória e se considera provável a derrota. Quando desaparece a
perspectiva de vitória, o mêdo é substituído por outras atitudes.
Os que são levados ao tribunal, diz S. TOMÁS DE AQUINO, não têm
rnêdo algum, porque não têm esperança de fugir. SPINOSA observa
também, que o mêdo só pode existir onde há esperança; se esta de­
saparecer, não há mais mêdo, mais desespêro. Poder-se-ia acres­
centar que, segundo a maneira pela qual o homem aceita a perda
de esperança, pode aparecer, não só o desespêro como a resigna­
ção. Se, porém, o destino es confirma, pode surgir a capitulação.
Se, pois, o mêdo é o elemento essencial da neurose ( o que é
indubitável diante de repetidas experiências) pode-se concluir que
o neurótico não é capaz de submeter-se à superioridade do não-eu
sôbre a vontade de poder do eu. Em correspondêncja com o mêdo,
aparece, como segunda característica da neurose, a rebelião.
Mas esta rebelíão se dirige contra os fatos irrevogáveis do ser
e da legalidade do mundo, contra a inalienável condição da cria,
tura, contra o predomínio da natureza e dos outros homens, contra
o direito válido e as formas da vida e da cultura, enfim, contra a
onipresente grandeza de Deus, do "Deus incomprehensibilis et abs­
ct:mdítus". Mas o entrosamento nessas regiões do Ser e em suas
leia, constitui, como já explicamos várias vêzes, o próprio ser do
homem e a peculiaridade de sua posição no conjunto da ordem ge­
ral do Ser. tle constitui pois, de certo modo, sua natureza última,

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266 RUDOLF ALLERS

ou, pelo menos, está ligado indissoluvelmente a esta. Por isso, a


revolta do homem contra o não-eu - entretanto que se dirige
contra o que é essencialmente irrevogável, corno, por exemplo, a
condição de criatura - é sempre, ao mesmo tempo, uma rebelião
contra si mesmo e contra a própria Pessoa e sua natureza.
Se tal revolta pudesse ser conscientemente vivida, ela condu­
ziria logicamente a uma negação do homem. Mas, contra isso, a
pessoa se defende com tôdas as suas fôrças. Assim, como vimos, o
esfôrço fundamental da pessoa procura conservar, pelo menos a
aparência do valor próprio, mesmo quando se duvida ou se nega
profundamente tal valor. Que um ser possa procurar seu não-ser
é algo de contraditório, pois que o ser já é pressuposto nesse es­
fôrço. Nesta atitude, os paradoxos e antinomias da natureza hu­
mana revelam-se em sua terrível tensão.

4. A falsidade como traço fundamental da neurose

Quando a atitude - o modo de se conduzir do homem - en­


tra em Juta com sua própria posição essencial, aparece um terceiro
traço essencial que designamos como a característica de falsidade.
A falsidade pode significar, duas (ou talvez três) coisas, que
se deveriam provàvelmente separai:, mas que - tanto quanto sei
- não foram até agora bem distinguidas. Há, em primeiro lugar,
uma falsidade da vivência, ou dos momentos particulares da vi­
vência, que se revela à observação psicológica ou à auto-observa­
ção. Essa falsidade aparece, quando o homem vive, ao mesmo tem­
po, em duas (ou mais) direções ou camadas diferentes e mais ou
menos contraditórias. Uma falsidade dêsse tipo é a "pose", mas
é também aquêle "não poder ficar inteiramente numa única vivên­
cia''. Estamos, por exemplo, numa verdadeira atitude, em face de
uma obra de arte, quando nos entregamos inteiramente a ela, nos
sentimos cheios dela, tôdas as nossas outras vivências parecendo
desaparecidas. Agimos de modo verdadeiro, quando nos colocamos
puramente e integralmente diante do fim de nossa ação, sem pen­
samentos secundários, como, por exemplo, o de saber qual a im­
pressão produzida nos outros pela nossa atitude. Esta forma de
falsidade poderia ser denominada "imanente à vivência", já que
existe, aqui, um conflito entre as duas orientações (ou camadas)
da vivência, que não podem, na realidade, ser dadas com a mesma
clareza, embora sejam capazes, em essência, de ter o mesmo gráu
de clareza. Na segunda espécie de falsiclacle, há porém uma discre­
pância entre o ser e a conduta da pessoa e também em rehição à
representação que tem de si mesma. Isso não significa que a pes­
soa tenha sempre, de si mesma, "uma opinião muito bôa" e se com­
porte de um modo, ou se dê uma nparência, que não concorda com

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P S 1 (J O l, O G I A IJ O C A l( Á ·r E rt 267

sua venladcira natureza. O caso recíproco aparece também mui­


tas vêzes, quando o ormervador exterior tem a impressão de que
um indivíduo é "realmente" (ou poderia ser) mais adiantado, mais
fértil, mais profunrlo, mais agitado, mais amplo e melhor, do que
deixa transparecer em sua conduta real. Do mesmo modo que sen­
timos uma certa sensação de mal-estar, quando percebemos a fal­
sidade "imanente à vivfncia" - tendo urna irnpressãr, de "tlesa­
côrdo" e de insincerirlarle, sem poder dizer qual o motivo de tal
impressão - assim também nfto podemos determinar o ponto de
apoio que nos fornece o conhecimento da segunda forma da falsi­
dade (que poderíamos denominar "transcendente à vivência").
Mas não se pode contestar, que ambas as experiências se apresen­
tam realmente: a da desmedida amplíação ou a da diminuição da
aparência de uma pessoa, em relação à sua verdadeira natureza.
Mas hã, talvez, ainda uma terceira forma de falsidade, que
é bem mais difícil de determinar. Como já observamos, a peculia­
ridade do homem consiste em que lhe é dado, não somente o sim­
ples existir, mas o poder tomar, diante dessa existência, uma ati­
tude: negando-a ou afirmando-a. E' claro que a afirmação e a ne­
gação nada podem alterar da posição real e existencial da pessoa,
ou de sua condição, porque estas são simplesmente dadas e intei­
ramente independentes das afirmativas e negativas do homem.
Mas a conduta e a atitude humanas não são apenas determinadas,
em si e por si, pelo ser ela pessoa, mas também, pela atitude dá
pessoa para com seu próprio ser. A negação, não podendo produzir
qualquer alteração no ser, não é uma revolta contra êste ser, mas
um repúdio clêle. Se se pudesse empregar a linguagem d1, psicolo­
gia - para designar esta coisa que se passa nas profundezas da
pessoa, muito abaixo das camadas dos acontecimentos psíquicos
conscientes e que é, por sua própria natureza, inteiramente se­
creta e repousa, na verdacle, no mistério - poder-se-ia dizer que
ela não é nunca uma verdadeira negação, mas sempre um "agir
como se". Pocler-se-ia talvez dizer, com exatidão, que há menos
uma negação, do que uma recusa ao assen,timento. Daí se origina
uma outra falsidade que se baseia no conflito entre o ser atual da
pessoa e o que é, por assim dizer, exigido dela. Neste sentido só é
verdadeiro o homem que disse "Sim!" à sua finitude natural e hu­
mana, em geral e é sua insuficiência e impotência em particular
- fazendo-o sem restrições, numa atitude livre, no mais profundo
núcleo de seu ser, e, portanto, alegremente, (Todos êstes têrmos
psicológicos são simples designações analógicas e resultam do efei­
to, sôbre 'a vida e a vivência da pessoa, desta sua atitude básica).
Tôdas essas formas de falsidade, das quais a terceira deve ser
considerada especial, acham-se em tôdas as pessoas a que chama­
mos neuróticas. A meu ver, a falsidade (principalmente, no se­
gundo e terceiro sentidos) constitui o traço fundamental da neu-

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er
268 RUDOLF ALLERS

rose. Tôdas as outras caracter ísticas são apenas conseqüências


dessa natureza básica.
Tais falsidades não são, porém, se bem as consideramos, al­
gunrn coisa de estranho à natureza humana e que só pudesse provir
de uma perveri-fio. EI:rn rc1mltum, ao contrário, deirna mesma na­
tureza, cm sua condição funrlarnental de natureza decaída. Por
coni-cguintc, é também exato dizer, que a neurose no8 mostra, exa­
gerados e deformados, 08 traços comuns do homem. Dê11se modo
se justifica novamente, o transporte, para a prática educativa
com adultos, elos ensinamentos obtidos com as neuroses (fazen­
do-os sofrer evidentemente a correção corre11pondente a suas de­
formações). Reconhecemos que, entre as pessoas "normais" e as
"neuróticas", não se pode traçar, em princípio, nenhuma linha
divisória e que, no fundo, lodo hnmem é, por n.�.�im di.zr.-r. "r,apaz
,de 11e1tro:-e". Nãn !'xi:ite uma ziredis-posicãn cspecl[irn zmrn a neu­
.1:Q!i.Q.. Expressões tais como "nervos fracos" e outras pertencem
- conforme já acentuamos � ao domínio da linguagem vulgar
e são, em parte, um remanescente e um precipitado das conceP­
ções científicas de éras passadas. Ou, então, podem aparecer,
quando há ainda, na literatura científica, umu confusão relativa
a tais representações, um desconhecimento fundamental do as­
sunto e uma incapacidade de deduzir as conseqüência últimag
dessas coisas.
Existem certamente "ocasiões" para as neuroses. São tôdas
as que vimos sob nomes de "falhas de "educação" e "dificuldades
de educação" ( depreciação da estrutura orgânica, da situação
social, etc.) Mas é necessário repetir que não há, em absoluto,
um destino, que condene irremessivelrnente o homem para a neu­
rose. Em principio, a evolução para a neurose pode ser evitada
em cada caso e quando esta se realizou poderemos fazê-b retro­
ceder. Há, naturalmente, casos em que isso é mais difícil, em si e
por si, do que noutros. Há alguns, principalmente, em que ns
diversas circunst:1ncias acessórias tornam impossível a corn'.;;·w
supletiva ou fazem-na parecer irrealizável. Não podt'mos t'X:1mi­
nar, aqui, êstes casos; fizemos mern;ão dêles, apenas para evitar
malentendidos acidentais.
lJa circullsti\ncia de que a _falsida1li• Cllnstitui_, l'lll t<11hl s,•n­
tido, _uma_ Jll�I rc:1_ l'SSt'lteiltl_ do . ('OII\JH_ll"l:lllll!lll<.2.__]l\!llrúti..:,,. ::k'!\"lll\•Se
q1w 11 ho1111!111 i11ft-in1111n1/1• li111·,· du 111·1u-as,· .�â 110,I,· s,T u,;111:/c
cujn vidn rfr1:orn: 111111111 1•,·rduddnr d,·dinrçtio eis p/}ra.s 1hi 1•ida
(11aturrii11 1111 :mhr1•11at11rab1) ,, q11,·, porlantn. afirmnu �om dt•ci­
Hão, e co11ti11t1a a afir111a1·, :Ht:1 ;,i!uaç:-111 d,• cria!m·a e ns rnndições
particu)al'l!H dúm11: :w11 ,·:d.:1tlo. Nuut1·m1 palavra.�: sâ o santo pode
eslar 111:i11111- dr,. ·1w111-,,N,·. Curu i:1:-;11 :ll' faeili(a t-ambém a compreen­
i-ião dm; episódioH 1w111·,,ticu,1, qu,� :-;e apresentam tüo comumente
na vida dou santos, ou, pelo menus, do,; cstiitlios que se asseme-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 269

lham muito a êsses episódios. Não devemos por isso ser levados
à conclusão - comumente apresentada numa exposição ininteli­
gente e pretensamente científica - de que a vida santa seja, em
si mesma, uma atitude neurótica, ou derive de tal atitude. Os
episódios neuróticos são, como se pode afirmar após observação
atenta dessas vidas, simples episódios, e representam, na reali­
dade, determinadas passagens da vida, estádios intermediários
em que se realiza a luta contra o "eu, êsse déspota sombrio", que
deve ser dominado para que o homem possa atingir um nível de
vida mais alto. Ê claro, também, que tais episódios se podem re­
petir, porque, correspondendo aos vários degraus de elevação do
homem, êles constituem, na expressão de TAULER, uma perfeita
"superformação" de sua pessoa; que o conduz a Deus. Por outro
lado, não se deve desconhecer, que a psicologia, ·com suas tenta­
tivas de interpretação, só com cuidado se deve aproximar da
alta vida religiosa, porque há aqui, em ação, fôrças e motivos
que não podem ser compreendidos pela mais fina das análises
puramente psicológicas, nem determinados pelas categorias da­
quela ciJncia. Parece-nos bem incorreto querer interpretar certos
fenômenos, como o da "noite dos sentidos", simplesmente como
neuróticos ou, de modo geral, como puramente naturais.
Se nos colocarmos (como ternos boas razões para fazer) no
ponto de vista de que a dominação final da falsidade·- essencial
e característica para a neurose - só pode ter um êxito completo
na vida santa, concluiremos que a saúde mental só pode medrar
no solo de uma vida santa, ou, pelo menos, de uma vida dirigida
para a santidade.
Um outro caminho nos levará também a êsse reconhecimento:
o da observação dos fatos. Nunca vi um caso de neurose, que não
contivesse, como problema e conflito ftltimos, o que se poderia, de­
nominar uma questão metafísica não sol7tcionada: a da posição cio
homem em geral. Isso se dava em todos os casos, quer se tratasse
de pessoas religiosas ou irreligiosas, católicas ou não. A isso se
liga, talvez, o interêse filosófico, tantas vêzes observado nas pes­
soas neuróticas. É falso ver ( como se faz muitas vêzes), nessa
problemática "metafísica", uma máscara para outras questões, ou
uma expressão de determinadas atitudes. Não há, por trás dela,
nem motivos impulsivos, nem vontade de poder. Trata-se apenas
da questão final e mais importante que pode inquietar o homem
e que êle julga não poder responder, nem mesmo colocar com
precisão. Compreendemos assim, que uma orientação espiritual
compreensiva, carinhosa, indulgente, paciente e puramente reli­
giosa pode trazer, em muitos casos, com a correção da atitude
religiosa, também uma correção da neurose, porque uma tal in­
fluência atinge, na realidade, o problema mais central. Sem dú­
vida, nem todos êstes homens podem reconhecer êste problema

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270 RUDOLF ALLERS

ou compreender que êle é, para êles, um problema. Em tais casos,


é preciso um longo trabalho de esclarecimento e educação para
tornar o homem capaz de analisar o problema. E preciso, justa­
mente, uma psicoterapia sistemática.

5. O eqocentrismo da neurose

Colocado numa atitude de medo - porque a luta contra o


não-eu é necessàriamente sem esperança - e numa atitude de
falsidade, que não lhe permite uma afirmação da posição essen­
cialmente dada do homem, o neurótico está sempre numa posição
perdida. Sua insegurança, que resulta da impossibilidade de suas
atitudes finais, obriga-o - em parte, a evitar as conseqüências de
sua situação, a fugir à realidade e a precaver-se contra ela e, em
parte, a perseguir êxitos fictícios, que o distrafam do desespêro e
da insinceridade de sua posição e, sobretudo, da incessante ne­
cessidade de refletir sôbre seu próprio eu constantemente amea­
çado. Por isso, é claro que um egocentrismo, mais ou menos dis­
farçado, é um dos traços fundamentais de todo caráter neurótico.
Do mesmo modo que, olhando pura um espelhinho que reproduz
seus traços, deixa uma pessoa ele ver o mundo em redor, assim
também o nellrótico não tem possibilidade de ver senão a si
próprio. Podemos dizer que êle é necessàriamente cego para o
mundo e as exigência e valores dêste.
A exatidão da afirmativa de que todo neurótico só vê a si
próprio é francamente admitida no caso elos histéricos - em que
predomina o amor próprio e dos hipocondríacos - em que pre­
domina o cuidado consigo mesmo. Mas tal admissão torna-se mais
difícil, nos casos em que os doentes têm uma atitude mais ou me­
nos nobre, parecem humildes, ou ocultam seus sofrimentos sem
lhes dar importância capital. Isso parece ainda mais estranho,
quando se é levado a supor, que tais neuróticos sirvam a fins bem
determinados, por meio de seus sofrimentos e sintomas - já que
não parecem querer outra coisa senão libertar-se de sua::-; ,
e, ainda por cima, estão sempre a afirmar sua impotência diante
dessas manifestações mórbidas. Como admitir então - pergun­
tar-se-á - que um homem seja impotente diante de certos pro­
cessos que se passam com êle ou nêle, se, por oub;o lado, pode
servir-se dêles como um meio para atingir um fim e, portanto,
desejá-los de certo modo?
Voltemos, mais uma vez, à passagem muitas vêzes citada
das Confissões de SANTO AGOSTINHO, que fala elas duas vontades
no homem. Para compreender a neurose devemos admitir que um
homem assim feito desconhece aquela "segunda vontade, que con-

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rSICOLOGIA DO CARÁTER 271
t�m o qnc foltn à primeira" e degconhece também os fins dessa
nmla1\c. on nflo os compreende. Se obseryai·mos quantas vêzes
uma t:11 pe:,;::0oa no:,; oculta coisas de si mesma, "fecha os olhos"
- con::;cil'ntc ou scmiconscicntcmente - :1s dificuldades internas
l' cxkrnas e ni\o quer aceitar aquilo que reconhece como bom (não
qucn'1Hin, por exemplo, reconhecer seus defeitos), poderemos
c1>mpremler, cr0io eu, que se pode passar dessa atitude para a
ai ilude própriamente 11em·ólica por uma série de estádios su­
ccssi\'os imperceptíveis.
Aquele::; aspectos da natureza neurótica, que se pensa poder
opor ü concepi;i\o aqni apresentada, tornar-se-i\o, sem ela, difíceis
de co1111n·cc1Hler.
ili l'l1\ \ll'Ínwiro lng:H', os sufl'imrnlos do 11c11rôtico: dores de
tôda sorte, sintomas de órgãos (a diminuiçáo das batidas do co­
raçiío, por exemplo, ou as perturbações ela digestão), padecimen­
tos psíquicos (como as r epresentações obses;:.ivas e o medo) e
muitas outras coisas cuja enumeraçi"lo pertence à dissertação clí­
nica. Podemos compreender fàcilmente que, em muitos casos,
essas enfermidades podem ser utilizadas como urna desculpa con­
vincenle para o afastamento, a renúncia às produções reclamadas
e, correspondentemente para uma exaltação da consciência da pro­
dução subjetiva. O neurótico procede como a criança que, desejando
faltai· à escoln, alega dores de estômago, eml>orn tenha de renun­
ciar�, seus pratos p1·ediletos e manter dieta. Dêsse modo, ela deYe
pagar, de certo modo, a custas de sua dispensa do trabalho.
A analotria com os automutilados da guerra é ainda mais escla­
rccc<lom. Jú dissemos anteriormente, que obras de pouco valor,
realizactas em meio de obstúcnlos, podem parecer subjetivamente
maiores do que as de maior importúncia objetiva, mus que não
exigiram um autodomínio da própria pessoa.
Merece consideração um dos :tspectos dêsse sofrimento.
(Nunca se deve esquecer que, embora sejam fictícias as causas,
trnta-se de um sofrimento real e não, como alguns dizem leviana­
mente, de um sofrimento "fingido"). Aquêle que deve suportar
constantemente um sofrimento e só consegue realizar algum tra­
halho dcpoh, de dominar-se a si próprio, leva urna vida de martírio.
O martírio é, porém, o hernísmo dos fracos. Jú dissemos que êle
pode facilmente ser tomado como nm ideal de caráter (embora
não claramente consciente, por causa de suas contradições inter­
nas) por todo aquêle para quem o heroísmo é considerado digno
ele esforços, embora acredite dever renunciar u êle em conse­
<JUência 1lc sel1 destino. Aqui nfio há mais distinção entre a dor
física e o sofrimento moral, entre suportar os penosos sintomas
orgânicos e pcrm:rnccer num mundo, que é considerado, pessi­
ml11Licmncut:c, como um vale de liigrimas.

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zn RUDOLF ALLERS

6. Fins neuróticos e traços de caráter neurótico


A tensão, vivida pela pessoa, entre suas exigências ideais e
sua consciência de produção, é decisiva. A insegurança que nela
reina - nascida da vivência de depreciação, que, por sua vez, leva
a um grau tanto maior as exigências da compensação, quanto
mais a pessoa teme tal depreciação - vai-se elevando desmedi­
damente através dêsse afastamento, sempre crescente, entre as
exigência e as possibilidades da pessoa. Se o homem se conten­
tasse com seu desvalor e sua pequena possibilidade de produção,
se se contentasse "com possuir um talento", não precisaria do
artificialismo e da ilusão da neurose e poderia realizar uma es­
pantosa experiência: verificar que suas possibilidades, embora
não atinjam o que reclama, podem ir bem além do que costumava
julgar impossível. "Eu possuía uma tôrre", disse-me uma vez, um
neurótico compulsivo. "Não era muito boa, pois chovia lá dentro.
Agora, porém, só possuo um monte de tijolos. O Sr. destruiu
minha tôrre". Respondi-lhe que, com êsses tijolos, êle poderia
construir uma modesta casa de família. Êle pareceu ter seguido
meu conselho, porque, dois anos depois, casou-se, de modo ines­
perado. Mas, para muitos homens, há uma satisfação maior em
ver elevar-se urna tôrre imperfeita, do que em ter uma casinha
bem abrigada.
Enumeraremos ràpidamente algumas propriedades, encon­
tradas em quase todos os casos de neurose, cuja presença em grau
imperceptível, mesmo em pessoas sem manifestos sintomas neu­
róticos, faz suspeitar um desequilíbrio da vida interior na dire­
ção da neurose e põe a questão de uma lição entre tais caracte­
ríticas e a natureza fundamental da neurose. Ao mesmo tempo,
poderão ser discutidas algumas particularidades de importância
prática.
Dissemos que os neuróticos eram, em alto grau, ambiciosos,
ávidos de sobressair-se e elevar-se, desejosos de poder e de domí­
nio e orgulhosos. Admitimos também que êstes traços essenciais,
insuficientemente representados pelos têrmos acima, pudessem ser
reconhecidos sob as mais diversas roupagens. Se perguntarmos,
a um dêsses hom!'?ns, se é. ambicioso, teremos, como resposta, al­
gumas vêzes um "sim", outras vêzes um "não" e, em certos casos,
uma hesitação. Se o interrogado contesta ser ambicioso e lhe per­
guntamos, a seguir, se não será talvez sensível, fácil de magoar e
de ferir, receberemos sem dificuldade, uma resposta afirmativa.
. Ora, a sensibilidade é, sem dúvida alguma, um dos disfarces
do orgulho/Porque o homem sensível impõe constantemente aos
seus semelhantes determinadas exi ência em la -o
pelo qual devem tratá-lo E' como se o homem sensível levasse, em
tôrno de si, uma etiqueta de côrte, não escrita e não promu)gada,

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)' S I G O I, O O I A l> O C A lt Á 'l' E lt 273
<�11,im, i11frH�·1i1•11 dcvc1111t•m :-mr 1mnidm1 H<m1 picclade. Como falta,
11onl111, no indiví1hl(I, o pmler de b1111i1· <lc mm "côrte" aquêle que
('onwku tni11 infraçiirni, afnBln-Be dêlc, fica ma1rnado, encolhe-se
ú•ritlo pnra d1•ulro de 11i nw1nno, torna-1.;e in:tcc11:iívcl e esquivo.
J� n i111·1•1•s:io da conhecida fra:ie: ".Tá que a montanha não se
nproximn de l\fanmé, Maomé l:lc HJH"oximará ela montanha". Mas
a 1wn�ihilidndc, dirÍl, aiml:t mai::1: "Se aR pequeninas oposições
,!iúrius po1!1•111 frrir tanto uma }1e3soa, como deverá sofrer ela
com t'(lllflito11 mai11 :,érios!" Dê:111c modo, a sensibilidade se torna
unrn 1•spécic de sinal de arlvertência, colocado no caminho do
hcnnem que duvida de .geu valor próprio', para avisá-lo, em tôdas
ns sitnn,õcs cm que pode ser chamado a preservar êste valor.
l\luilos homens, especialmente entre os neuróticos, experi­
mentam comitantcmcnte amargas desilusões. O significado dessa
Yivêncin iwrh, talvez, mais claramente expresso, na seguinte frase
de uma senhora muito viajada, que foi minha paciente: "Tôdas
as vêze;;, em que chego a uma cidade estranha, eu· me desiludo.
Eln mio se parece nunca com o que eu imaginara!" Há, de fato,
cm tôrla desilusfio, um motivo de assombro revoltado, uma admi­
ração de que o mundo e os homens se atrevam a ser diferentes
daquilo que o indivíduo esperava. Não se trata apenas de que o
homem, nessa atitude, queira exprimir que, se tudo corresse bem,
o mundo deveria orientar-se pela sua cabeça; mais ainda: isso
lhe preocupa tanto, que não pode compreender o paradoxo dessa
exig-ência, que terminaria na onipotência. Já que foram tantas
vêzes desiludidas (pensam essas pessoas) será melhor evitar os
homens, nada mais esperar e nada mais empreender. Mas tal de­
silusfio não é senão o resultado da exigência excessiva de uma
vontade de poder insuperável, de um orgulho levado ao máximo,
que se quer tornar o legislador do universo.
A essa atitude interior, se associa um aspecto supersticioso,
enconti-ado muitas vêzes nos neuróticos. Muitos dêles têm predile­
ção por práticas "mágicas", que devem afastar o azar ou trazer a
sorte, ou revelam tais pensamentos em suas imagens obsessivas,
como um de meus clientes que acreditava ter mau-olhado e, por
isso, evitava as pessoas (em consideração ao próximo e por gene­
rosidade, segundo sua versão; por covardia, segundo a minha}.
tste doente estava convencido de que podia, em tôdas as circuns­
tâncias, "esconjurar" essa influência malévola, quando concen­
trava sua atenção muito tempo sôbre ela. No fundo, tais pessoas
se atribuem poderes mais ou menos sobrenaturais. lntimamente
ligados a isso são os vários "pressentimentos" de que são capazes
essas pessoas, os presságios que têm, aliás fáceis de explicar.
Quem não está certo do sucesso, mas não pode prescindir dêle,
agirá com precaução maior do que aquêlé que confia em sua es­
trêla ou aceita a derrota. É, pois, própria do neurótico a atitude,

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nn�,
274 lt lJ IJ O J, 1•' A J. 1, li 1t !-l

<jJJe a rmicolo1,ia i11rlividual de:d1:11011, com pr,:l:i:iiin, como "atitude


hesitante". Ela ap:irece 110h vúri:11-1 for1111111.
A i11crr71udd<t1fo d,: d<:r:id·ir, ou, pl!io 11w11011, a gr:111do dificul­
dade em tr,mar d1:ci11ií1!H, ú uma rle :rnaH l'oru1:111 hahit.11aiH. l ,011ga:-;
•Jscilações, balanço de li)doH 011 argum1\11L11:-;, pd, 1111 con1.m, 1111m
cmprecnrlimenlo que é muitas ví:z1:11, de ridícula í11l.iliclad1J (o que
se rcvc:,lc, várias vézes da aparímcia d1: razfü:H JJrnf'111ulai;, como a
d,; "sempre querer fawr o direito") e t.ôdall :rn atitwleH assnm<:lha­
das, levmn, finalmente, a doiH reimlt.:ulm1 JH'Íncipai:-;, No primeiro,
despreza-se cm geral, o momento de agir: 11111:i dona de ca11a, pol'
exemplo, não conseg-uc, cm virtude de suas 1lúvida:-;, dcscolirit· a
r,reço razoável aquilo· de que neces:-;ita, por ocm,ião de sw1s com­
pras; pas�ada a ocasíão, ela se sente infeliz; rnwi, "quem poclc
dizer se ela faria, ou não, uma boa com11ra '!" Parece melhor, a
tais pessrJas, nada comprar, <lo que comprar mal. No segundo caso,
a ação deve ser realizada, apesar dos obstáculos exteriore::;; mas
sua execução é adiada por muito tempo, uté que a pessoa - 11em­
pre com a ilusão de se ter decidido precipitadamente - rcHolve
realiá-la. A pessoa dirá sempre a si mesma: "Se eu tivesse 110-
dido refletir por mais tempo, o resultado teria sido melhor".
Aliás, muitos homens que costumam agir apressadamente, fazem,
no fundo, a mesma coisa, e costumam se referir, depois, a i:;eu
tr;mperamento.
Um dos expedientes é pedir conselhos aos outrns. Se ohser­
varmos com atenção as razões por que um homem pede conselhos
a outro, descobriremos que muito dificilmente deixará de ouvi1·
alguma verdade que já não conhecesse. Na maioria das vêze::;, ou­
virá dizer que sua opinião está certa. (Se a opinião do conse­
lheiro f6r diferente, a pessoa julgará que "êle não entende nada
disso"). O que se dá, porém, na maioria dos casos, é que o
"pedido de conselhos" não significa outra coisa senfLo a passagem
da responsabilidade para um terceiro. Se a pessoa que busca
conselhos fôr nobre, não lançará culpa alguma sôbre seu conse­
lheiro, no caso de receber um mau conselho. Não o deveria tam­
bém fazer se executasse o que lhe foi aconselhado. Um estudante
não podia decidir coisa alguma, nem mesmo a compra de uns
sapatos. - "Nada entendo de couros", dizia êle. - "Como com­
pra então seus sapatos?" - "Levo comigo meu amigo Carlos".
- "Que é éle?" - "Arquiteto". - "E êle entende de couros?"
- "Oh não! Mas êle me diz que sapatos devo comprar".
Já dissemos que a dúvida sôbre o que será direito, pode, pelo
menos, retardar a execução de um ato, quando não o impede.
Como, nas ponderações que precedem uma resolução não apa­
rece, depois de cinco ou dez minutos de refle�o, nenhum pensa­
mento novo, mas, ao contrário, as mesmas idéias 'giram em circulo,
nada pode resultar de uma dúvida, qualquer que seja sua natureza,

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PSICOLOGIA DO CARÁTEP. 275
senão coisa algnma. "Um indivíduo que especula é como um ani­
mal num prado sêco. - Um mau espírito o faz girar em círculo,
enquanto, em volta dêle, há uma campina bela e verdejante".
Não se deve crer que a dúvida, a elocubração, a reflexão
muitas vêzes compulsiva, sejam feitas, em todos os casos, por
amor ao problema que constitui seu conteúdo visível. Muitas vê­
zes, um tal problema serve apenas para tornar possível a dúvida
e a e!ocubração e, dêsse modo, afastar as outras questões real­
mente importantes, ou deixar correr o tempo numa aparência de
atividade, que visa, justamente, nada fazer. ANZENGRUBER con­
ta-nos, que um empregado de fazenda, apelidado "o l\íeditatívo" ,
gostava de "meditar", durante a ceifa, sôbre as razões pelas quàis
o gafanhoto pulava e voava e qual dessas duas coisas periferia.
É fácil observar, porém, que, enquanto se pensa no problema do
gafanhoto, não se é obrigado a ceifar o trigo. Se um dêsses pro­
blemas tem um aspecto importante - referindo-se à salvação da
alma, ao valor da confissão, à dignidade dos sacramentos, etc. -
o indivíduo se julgará plenamente justificado, ao deixar de lado
muitas outras coisas, pois que, antes de tudo, precisa ver claro
aquêles problêmas. Uma variante especial dessas infrutíferas
reflexões e meditações é a preocupação com o passado. Há, por
certo, uma forma útil de preocupação com o passado - ou por
tratar-se de uma reconstrução dos fatos, ou porque se busca uma
analogia com uma situação presente, ou porque se deseja corrigir,
nas impressões das novas experiências, alguns erros já cometi­
dos e submeter a uma revisão as opiniões desfavoráveis sôbre a
conduta de terceira pessoa, etc. Há, contudo, pessoas, cujos pen­
samentos giram sem cessar em tôrno de certas vivências do pas­
sado: faltas que cometeram, inabilidades de que foram culpados,
injustiças que (pelo menos em sua opinião) lhes foram feitas.
Aquêle que pára e fica torcendo as mãos, por ter cometido um
êrro, perde seu tempo. Nisso são excelentes tais pessoas. Ilias
esta atitude tem outros aspectos. Em primeiro lugar, essas recor­
dações, conservadas vivas, servem para desculpar de muitas fa­
lhas, que o indivíduo não aceita, não suporta e de que não quei·
ter culpa ("Se aquêle maldito professor não me tivesse repro­
vado em grego, fazendo-me perder um ano, hoje eu estaria, só
Deus sabe onde!"). Em segundo lugar, essas pessoas afirmam,
que todos os que foram tão terrivelmente golpeados como êles
(êsses "golpes terríveis" são, por vêzes, coisas ridiculamente
banais) não _são mais capazes de viver; ninguém pode esperar,
de sua parte, realizações, energia, perserverança (a culpa disso
recai, naturalmente, sôbre os outros homens ou sôbre "o destino").
Em terceiro lugar, '.'há coisas tão horríveis, que o homem é obri­
gado a pensar sempre nelas, embora não possa dizê-las aos ou­
tros" - com isto, o indivíduo se certifica, primeiramente, da

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276 RUDOLF ALLERS

ul>soluta singularidade de seu destino trágico (uma i,ingulnridadc


ele sentido diferente, por certo, da que é realmente rehitirn a
cada vida) e, em segundo lugar, adquire também uma rnziio p:1r:1
Heu isolamento, sua reserva e sua impenetrabilidade, já que não
HC poderia abrir com os outros, sem correr o perigo de trair seu
scgrêdo. Nem no consorte, nem no confessor, poderiam confiar.
E, quando tais coisas são consideradas, de certo modo, como pe­
cados, o problema adquire tremenda importância, porque, então,
tôdas as confissões e comunhões perderam o valor.
Chegamos aqui - como já antes ao falar da dú\"ida - àquele
grande domínio de manifestações, que, sob a forma de cscrfrp11/o,
envolve, tantas vêzes - quer os que aí caíram, quer os orienta­
dores espiirtuais. Êste complexo de sintomas, que representa uma
pura e verdadeira neurose, apresenta, por sua vez, aspectos dife­
rentes. Primeiramente o escrúpulo é um meio de reclaamr cons­
tantemente os serviços do guia espiritual (por vêzes, outras pes­
soas conseguem obter a confiança do escrupuloso, ficando, por
assim dizer, "no dever''. de ouvi-lo e consolá-lo). Num segundo as­
pecto, o escrupuloso se julga mais inteligente que seu orientador
espiritual. Por mais que êste lhe assegure da inexistência de seus
pecados e lhe afirme que tais manifestações são mórbidas, o es­
crupuloso aceita estas declarações apenas durante a confissão, ou
alguns minutos após, e ]ovo volta à atitude anterior. O confessor
11ão o entendeu· (uma paciente confessava-se várias vêzes ao dia
em diversas igrejas, sem ser compreendida) ou êle não soube ex­
pressar-se. No fundo, sua atitude é a seguinte: "Diga o confessor
o que quiser, mas eu é que estou com a razão". Uma mocinha
tinha imagens obsessivas de conteúdo sexual; o confessor e o
médico afirmaram que se tratava de uma doença; mas ela dizia
que era um pecado. Por que? Porque as imagens se multiplica­
vam quando estava no trabalho, ou no meio de homens, ou quan­
do saía de casa. Ao ficar em casa, as imagens se mantinham num
limite razoável. A mocinha estabelecia uma relação entre "ficar
em casa" e "lutar contra as tentações". Essa luta a ocupava tão
inteiramente, que não podia fazer outra coisa. Dever-se-ia espe­
rar, que uma católica se satisfizess� com as declarações do mé­
dico e do padre, que afirmavam tratar-se de uma doença (e doen­
ça curável); embora se tratasse de um padecimento, não havia,
contudo, um pecado. Mas não! Para ela, tinha de ser um pecado,
porque só assim a "luta" seria necessária e tôda outra atividade,
impossí,·el. Além disso, o escrupuloso está inteiramente conven­
cido (embora nem sempre claramente) de que possui uma alma
da mais delicada constituição, uma alma que se sente maculada
pelo menor desvio do camirho do direito. Já GERSON dizia, que o
escrúpulo é uma máscara do orgulho. Há também orgulho na
opiniiio de que não se é compreendido, mesmo quando ela aparece

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 277
em homens que, por profissão, deveriam conhecer a humanidade.
1!::sse orgulho exagera desmedidamente a singularidade realmente
existente do indivíduo. Finalmente, deve ser citado, como um dos
aspectos de grande importância, que o escrupuloso, um "hipocôn­
drico espiritual" do maior quilate, está sempre e exclusivamente
ocupado com seu próprio eu, em virtude de seu escrúpulo (a que
deve atender, pois se trata da salvação eterna de sua alma).
Nunca vi um escrupuloso e nunca ouvi de nenhum, que tivesse
escrúpulos em relação ao amor ao próximo. O sexto mandamento,
o jejum, a difamação, a desatenção à missa, etc., podem ter algum
papel, mas não o amor ao próximo. É como se tais homens não
pudessem imaginar a existência do próximo: seu dever principal
é achar pretexto para escrúpulos ou dar ouvidos a êsses escrúpu­
los. Aliás, a maioria dos escrupulosos que pude conhecer, eram,
ao mesmo tempo, excessivamente sensíveis (mais urna prova da
"delicada constituição de suas almas"), e mostravam bem clara­
mente, aos olhos de um observador experiente, quanto seu pró­
prio eu lhes enchia a vida e os pensamentos. São pessoas a quem
se pode aplicar, principalmente, a comparação já utilizada antes:
todos apertam convulsivamente, em suas mãos, um espelho, em
que só vêem a si mesmo e que lhes oculta totalmente o resto do
mundo. Tal pessoa é capaz de deixar de presentear seu velho pai,
se o aniversário dêste cair num domingo, só porque deve carregar
o embrulhinho do presente e isso lhe parece um "trabalho para
criados"; é capaz de sentir o mais absurdo dos temores por causa
de uma infração do jejum e fazer um terrível escândalo porque
deram, a urna colega de classe inferior, que se achava doente, o
melhor aposento da escola; é capaz de sentir-se com direito a ator­
mentar sua mãe enfêrrna, porque esta não pôde rezar à noite o seu
terço, "cometendo, assim, um pecado mortal". A um exame pro­
fundo, ou mesmo a uma observação superficial, muitos dêsses es­
crupulosos se revelam - como os neuróticos de compulsão já es­
tudados - inteiramente egocêntricos, duros e frios para· com o
próximo. Quando realizam uma "obra de amor" não o fazem pelo
amor, mas pelo "mérito", ou para que "não sejam repreendidos".
O eu é sempre o fim específico e último da ação e do pensamento;
o próximo é apenas um meio para um fim. Mas, para o que é de­
gradado à condição de meio, não pode haver uma atitude de amor.
Embora não nos possamos ocupar detidamente do assunto,
queremos indicar que reaparece aqui, embora noutro plano, uma
atitude já encontrada por nós em certas anomalias sexuais. Tam­
bém êstes homens amam apenas a si mesmos e são incapazes de
transpor a esféra de sua própria pessoa. E quando o fazem - na
fantasia ou na ,;ealidade - seus semelhantes servem, em geral,
apenas corno um meio para um fim. 11:ste fim, que é, aparentemente,

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278 RUDOLF ALLERS

a simples obtenção do prazer sexual, representa, na verdade, a ele­


vação da própria pessoa e o rebaixamento dos outros.
Não estudaremos o tratamento das perturbações neuróticas e
a correção dos caractéres desviados dos adultos. As análises ele ca­
ráter aqui apontadas servem para mostrar as motivações, que apa­
recem, em média, tanto em normais como em anormais. Também
não n_os parece necessário dizer mais alguma coisa sôbre o assunto.
Falaremos apenas de um tipo, se é que se pode reunir num só tipo
a multiplicidade de suas manifestações - o crirninos�. Bastará
talvez, aqui, para mostrar o aparecimento de atitudes inteiramente
idênticas, pelo menos em muitos dêsses homens, citar uma passa­
gem célebre: o Ricardo III de SHAKESPEARE, em seu primeiro mo­
nólogo, que inicia o drama. Depois de ter descrito como, ao ter­
minar a guerra, não teve esperança alguma de conseguir qualquer
espécie de êxito - porque era "um deformado, que respirara, an­
tes do tempo, o ar nêste mundo" - e não fôra feito para as artes
da paz e para "pavonear-se diante das ninfas de vestimentas le­
ves" - êle diz: "por isso resolvi tornar-me um celerado". O poeta
revela aqui o que está encoberto por véus em inúmeros casos -
talvez na maioria dêles - e constitúi a essência última dà. crimi­
nalidade. Já havia sido, naturalmente, observada a psicologia da
formação do crime, dada nesse monólogo. Mas parece ser menos
evidente a importante variação psicológica, que se processa na lon­
ga eYolução de Ricardo. O mesmo homem, que, de início, expõe
cruamente os motivos de sua conduta, é capaz, antes de tomar a
decisão final, de invocar os céus, para que a proteção de Deus seja
dada a êle, o defensor das coisas justas.
Aqui terminamos nossas observações, naturalmente esquemá­
ticas, sôbre o problema da neurose e questões afins. Nos dois ca�
pítulos seguintes, voltaremos a tocar novamente, aqui, ali, nest1as
questões.

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VIII. NOTAS SôBRE O CRESCIMENTO DE SI
MESMO E A AUTO-EDUCAÇÃO

1. Possibilidade do conhecimento de si mesmo

A problemática designada no título acima não parece ter lu­


gar adequado numa exposição sôbre a educação do caráter, já que,
ao folar em educação, costumamos pensar primeiramente na edu­
cação dos outros e, em especial, dos não-adultos. Mas, ao apresen­
tar algumas notas sôbre o tema da auto-ecl ucação, não nos intt;:-es­
sa apenas a associação com a palavra "educação", mas também a
idéia ele que as questões de educar-se a si mesmo e conhecer-se a si
mesmo (que é um pressuposto da primeira) podem parecer impor­
tantes a várias pessoas, devendo, portanto, ser encontradas numa -
exposição sôbre o objeto da educação do caráter em geral.
A auto-educação pressupõe, como é natural, um conhecimento
de si mesmo. Que a pessoa possa ser objeto para si mesma e tor­
nar-se objetiva é, como vimos antes, essencialmente impossível. O
conhecimento de si mesmo não pode ser, nunca, portanto, um co­
nhecimento intuitivo de sua natureza última, mas sempre um co­
nhecimento baseado em certos dados, que, por sua vez, permitirão
uma conclusão a posteriori sôbre o mais profundo. Nestas condi­
ções, o autoconhecimento não precisa utilizar outros processos, se­
não os que servem de base para o conhecimento de outrem. Mas,
para êste último, temos, em primeiro lugar, o princípio de que o
conhecimento da conduta e da atitude humanas só é possível por
intermédio do resultado destas. Se, portanto, na tentativa de com­
preender os outros, não nos devemos guiar pelas declarações que
fazem a respeito de seus pensamentos, sentimentos, vontades e es­
forços, mas apenas pela contemplação dos efeitos reaias e das al­
terações, que êles e suas ações introduzem na realidade, assim tam­
bém, para julgar nossa própria pessoa, devemos tomar idêntica
atitude fundamental.
2. Atitude para com o próccimo
Como na teoria da conduta humana e do caráter, aparece,
também agora, em primeiro plano, aquela face da realidade que,

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280 RUDOLF ALLERS

flc inicio, no domínio do natural, pode ser considerada o que há de


r.11pcclJ'icamente humano: a sociedade, o próximo. Como, porém, o
comportamelllo do homem, em geral, e seu comportamento para
co,11 a scoicdacle, cm particular, recebem grande parte de sua for­
ma da oposição ou equilíbrio das duas tendências fundamentais -
a vontade de poder e a vontade de associação - e como a vontade
de 1wdel' só pode sei· obtida pelo combate e pela submissão dos ou­
trns, ll m,lior ou menor harmonia em que vivemos com os outros
e a maior ou menor correi,pondência entre nós e êles servirão como
um sinal importante para o reconhecimento ele nossa atitude bási­
ca. l\fodos de comportamento que diminuam a concórdia servirão,
cm geral, para lançar uma dúvida sôbre a pureza e a elevação mo­
mi de nossos motivos. A recíproca tlêste princípio pode sofrer cer­
tns limitações.
Não se deve supôr, por exemplo, que uma conduta, que não
traz perigo para a harmonia, esteja, por isso, livre de tôda crítica.
Porque pode existir urna harmonia viciosa. A dificuldade está na
ambigüidatle da palavra. A harmonia que proclama: "Entre os lô­
bos, devemos uivar" não pode, corno se vê fàcilmente, ser aceita de
modo absoluto. Neste caso, a desarmonia constitui o dever mais
alto. Esta, porém, não justifica uma atitude agressiva, com exce­
ção de alguns casos em que isto se ache na essência da coisa. Mes­
mo, porém, neste caso, que se poderia chamar de agressividade pro­
fissional (como, por exemplo, a do guia espiritual que é obrigado,
ele um ponto de vista moral, a criticar e condenar atitudes reprová­
veis) não deve nunca aparecer o momento da hostilidade. Porque
tal agressão é ditada pelo amor e dêle recebe sua formulação; ela
é feita para outrem e não para si mesma, nem, muito menos, para
a pessoa do que a executa. Isso a distingue essencialmente da hos­
tilidade e também da desarmonia produzida pela vontade de podêr
- porque o amor nada procura para si. Se a hostilidade apareces­
se sempre sem máscara, sob as formas de: ódio, vingança, maus
desejos, etc., o homem que se esforçasse por combater e extirpar,
em si mesmo tal tendência, logo a perceberia e, mesmo que não pu­
desse dominar êsses impulsos, lhes negaria a possibilidade de exte­
riorizar-se. O que há de perigoso são, sobretudo, as máscaras da
vontade de podêr e do egoísmo e a inclinação a iludir-se e a en­
ganar-se.
E' claro que a exigência última e mais elevada do homem, con­
siderado corno pessoa moral, é, não só a de agir como se os impul­
sos hostis e egoístícos (equivalentes, no fundo) lhe fôssem estra­
nhos, mas também a de fazer com que, na realidade, não existam
nêle. Lutar por isso não é apenas uma exigência moral. De fato:
como o cumprimento dessa exigência, essencialmente moral, tem
um efeito acentuado sôbre a vida e se realiza na realidade exte­
rior, torna-se visível, que tõda a conduta humana está ligada, em

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 281
seus fundamentos e conseqüências, ao moral e, portanto, em últi1
ma análise, ao religioso. Porque um homem, por mais que se es­
force, não poderá reprimir a exteriorização da hostilidade em qual­
quer de seus aspectos, enquanto tiver muito de hostil em seus sen­
timentos, já que isso será, de certo modo, sentido por seus seme­
lhantes, acarretando reações correspondentes. Mesmo a maior
amabilidade não encobre, para as crianças, a frieza e a recusa in­
teriores, do mesmo modo que a aparência de frieza não as impede
de agir como se estivessem diante de uma quente afeição, quando
há, sob tal aparência, o opôsto do que representa. A queixa de mui­
tos homens - que alegam fazer todos os esforços para tratar amà­
velmente os outros, sem encontrar qualquer retribuição, pois êstes
se mantêm afastados dêles - é, na maioria das vêzes, uma queixa
incorretamente formulada. Uma pequena variante deveria ser fei­
ta nessa formulação: êles não fazem o menor esfôrço para ser
amáveis, mas apenas para fazer amabilidades. Há uma grande di­
ferença de atitude interior, entre a renúncia à posição de uma exi1
gência e a renúncia à sua realização. Nem a mais completa arte de
disfarce e autodomínio pode eliminar essa diferença. Quantos ho­
mens não dão, embora pudessem receber? Quantos não dão, apenas
para receber? São homens que tomam, ao dar alguma coisa, uma
atitude superior a sua dádiva traz sempre, em si mesma, um gesto
"de cima para baixo", lembrando, embora de modo imperceptível,
uma demonstração de favôr. Muitas vêzes, a análise mais perspi­
caz não pode descobrir estas "nuances", quer no próprio ato de
dar, quer na atitude mental que o acompanha. Mas elas se reve­
lam, se não olharmos para o indivíduo apenas quando êle dá, 1nas
também quando recebe. Se verificarmos que alguém dá com satis­
fação e facilidade, mostra-se alegre e pronto ao obsequiar, mas
sente desagrado ao receber amabilidades e presentes em geral, tal
verificação representa um aviso, ou uma advertência, de que de­
·vem ser submetidos a uma revisão a atitude e os motivos finais
dessa pessoa. Um homem muito sábio disse, uma vez, que havia
uma sordidez em dar e outra em receber. E' uma verdade. Não
poder receber deriva de um orgulho falso, nascido, em última aná­
lise, de uma falta de consciência do valôr próprio, do mesmo modo
que a avareza é exclusivamente uma forma da vontade de poder
de um covarde, que se contenta com os meios do poder sem ter a
coragem de exercê-los. Portanto, uma pergunta importante, que
um homem desejoso de conhecer a si mesmo poderia fazer-se com
proveito, seria: "Podes pedir? Podes receber?".
A questão da possibilidade de receber deve, por um lado, so­
frêr uma generalização e, por outro, uma limitação. Esta última
consiste em que é também naturalmente generoso o homem que é
capaz de pedir e mesmo de exigir, sem ter acanhamento nem sen­
tir-se rebaixado, mas, ao contrário, pensando exercer um direito.

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2S2 RUDOLF ALLERS

_ numa pal:wra: o que é "sem-vergonha". Aqui, como em tudo, a


passagem -ao extremo significa, ao mesmo tempo, uma transforma­
ção 110 oposto. A unidacle das tensões deve ser conservada. O "sem­
Yergonha '' pode ser caracterizado, em geral, pelo fato de conside­
rar seus pedidos e exigências como um direito, antes mesmo de sua
realização. Por isso, quando êles não se realizam, êsse fato é rece­
bido com certa revolta. Vê-se que há, aqui, uma estreita relação
com o fenômeno da sensibilidade, cuja estrutura tentamos indicar
anteriormente. As diferenças são, antes de gráu e de coragem, do
que de natureza. De fato: o sensível exige, mas não exprime, em
geral. suas exigências, ao passo que o sem-vergonha - talvez por
possuir uma coragem maior - exprime o que exige.
Geralmente um homem que procura conhecer e educar a si
mesmo não possúi a propriedade do descaramento, nem a de fazer
abertamente exigências descabidas. Mas pode ser, muitas vêzes,
um sensíYel e isso pode sempre dar lugar a certos perigos, em vir­
tude da conexão das duas qualidades acima indicada.
A generalização de tôclas as questões sôbre a possibilidade de
receber porleria talvez, considerada de modo amplo, ter a seguinte
forma: "Que lugar ocupa, em tôda a minha vida e minha vivên­
cia, meu próprio eu e que lugar ocupam os outros?" Não há, h1l­
Yez, um critério melhor e mais seguro. "Aquêle que julgar andar
na luz e não ama seu irmão - está, clêsde agora, nas trevas".

3. O guia

Sob muitos aspectos, como mostram essas poucas inclicaçõe�.


o problema do conhecimento de si mesmo não difere, em posicão
e solução, do problema do conhecimento de outrem. Mas é difícil
vêr "a ttave em seu próprio olho". O esfôrço mais nobre pode, al­
gumas vêzes, deixar ele descobrir as falhas, de certo modo srnipei­
tadas, na construção de sua própria vida. Acontece então fàcil­
mente que o homem, acabrunhado pelas pesquisas e esforços infru­
tíferos, abandone, desencorajado, Slli"l luta - ou por se consirlel'ar
incapaz, vicioso e abjeto, ou por atribuir a culpa às suas folhas de
constituição, às enfermidades irremovíveis, aos erros irreparáveis
de educação, aos golpes inevitáveis da sorte, etc. Por isso, ê im­
portante para o homem (e até, em muitos casso, indispensável) en­
contrar um outro, que lhe apresente o espelho em que se deve re­
conhecer. Não é sem importância o fato de que todos os grandes
sistemas religiosos ou éticos tenham acentuado a necessidade de
um guia e o tenham declarado indispensável no caso em que o ho­
mem deseja progredir, e principalmente, atingir ao conhecimento
do que é e do que pode. Os livros sagrados de tôdas as escolas da
fndia, a sabedoria da vida da China e do Islã, tanto como os cultos

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 283

de mistérios da Antiguidade, sempre mostraram a necessidade de


um guia. Não é só para o conhecimento das coisas intelectuais, mas
também para o desenvolvimento moral, pessoal e religioso, que é
válida a sentença: "Colocar-se diante do sábio é, em todos os casos,
o mais seguro". O ensinamento, o exemplo, a orientação, a influên­
cia mágica e as preces do conhecedor foram sempre consideradas
indispensá\·eís para o progresso. Por isso, encontramos ainda hoje,
nas "doutrinas secretas" que tantos apreciam, indicações sôbre o
papel do guia. Numa concepção mais clara e profunda, êsse pensa­
mento se apresenta novamente no Cristianismo. Não só está nêle a
frase: "Ide e ensinai a todos os povos!" corno também foi ensinado
pelo S:)nhor: "Aprendei comigo: sou humilde e dócil de coração".
A "cl,:>$cendência de Cristo" rejeitou, em todos os tempos, as idéias
ascéticas fundamentais. Ainda um grande número de outras pas­
sap-ens ela Sagrada Escritura poderia ser citado, em que o Senhor
nos é dado corno um guia que orienta seus alunos, apóstolos e di�­
cípulos.
Considerações puramente naturais, levam, como já vimos, a
conclusão iclêntica: o homem necessita de um guia, para que possa
conhecer a si mesmo. Mas o papel do guia não é apenas o de es­
clarecer e dar indicacões. Entre o orientador e o orientado estabe­
lece-se, muitas vêzes,' uma associação, urna ligação de homem para
homem, que não se baseia no interêsse, nos laços de família, na
vida comum acidental ou no acasalamento erótico, mas nas cama­
das mais profundas da natureza da pessoa e no seu núcleo essen­
cial, ou nas proximidades dêste. Ela faz desabrochar as fôrças mo­
rais essenciais da natureza humana e nos mostra, ao mesmo tempo,
as correntes opostas nela existentes.
Nossa opinião não é, por certo, de que o homem necessite per­
manentemente de um guia. Pelo contrário, exige-se, também aqui,
que a pessôa seja educada e orientada no sentido da independência
e da responsabilidade própria. Não é tarefa do guia retirar a res­
ponsabilidade dos ombros da pessoa. Quem, numa atitude aparente
de sacrifício, renuncía a uma decisão própria e se submete, em to­
dos os casos, à de seu guia, pode estar iludindo a êste e a si mesmo,
se, na verdade, nêle, estiveram em ação, não os motivos de sacrifí­
cio e renúncia, mas os de covardia e fuga.
Não era também nossa intenção dizer, por exemplo, que a pes­
sôa, entregue confiantemente ao seu guia, abandone simplesmente
seu próprio trabalho e seu esfôrço para progredir em conhecimen­
tos e ações. Será provàvelmente muito mais proveitosa a orienta­
ção, que permite ao orientado a maior soma possível de realizações
próprias e, por meio de leves estímulos e indicações, o deixa lutar
çar-se na pesquisa de seus motivos últimos. Issó é verdadeiro, pelo
po1· si mesmo na aquisição dos conhecimentos necessários e esfor­
menos para os "sãos". Os enfêrmos embaraçados por tôda a sorte

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Jt U li O l, l•' A l, L E 1t 8

de iltrnõe:-i, os neur61.ico:-i, preci:-iarão, muilaH vêr.cs, de uma instru­


çüo cspccinl. Se, de modo s�crnl, a idéia melódica que dirige todo o
autoconhecimm1lo nfw difere da que mostramos ser essencial no
caso do conhccimc1Jto de outrem, serú talvez <lc algum proveito in­
dagarmos quahi as fronlcirm; ou ol.J:;t{teulos ao conhecimento e ao
npcrfciçoameuto de Hi mesmo.

-1. Obstáculos ao <tpcrfciçoumenlo vróprio

Quem sobe uma montanha deve saber que vai para o cume,
mas nfio precisa olhar para o cume. Deve <liirigr sua vista para o
caminho onde dará sem; próximos passos. Se olhar constantemente
para o cume, tropeçará nas pedras do caminho. Se fixar o olhar
no alto, o cume pat'ecerá sempre inatinglvelmente longínquo e não
perceberá o caminho que percorreu. Quando alguém se julga ca­
paz de subir a tôda a pressa pelas encostas, logo lhe faltará o fô­
lego. Ou, então, imaginará, de antemão, que um tal trabalho não
pode ser realizado e, como não se satisfaz senão com realizar o má­
ximo, desistirá da ascenção. Ao invés, porém, de confessor nobre­
mente, que a vitória completa tão desejada, não lhe acenou, êle
lança mão de tôda espécie de subterfúgios para justificar-se - err,
primeiro lugar consigo mesmo e depois com os outros - não só
por não ter feito a ascenção, como também por não a ter iniciado.
Deve-se compreender claramente, que muitas das dificuldades
da vida da pessoa não têm sua origem num infeliz estado inato,
nem na conduta da próximo, nem num destino especial, mas estão
firmemente ligadas às finalidades elevadas a que o homem adere
com tôdas as suas fôrças anteriores, sem que possa ou eleva con­
fessá-las a si mesmo. Não o deve - porque a consciência do pró­
prio valôr está ligada a êsses fins e, pelo menos para êle, serve de
consôlo na vida, dando-lhe a crença secreta numa vocação para o
mais elevado e o mais digno, que se antepõe à sua ausência de rea­
lizações. Não o pode - porque a superioridade dêsses fins se tor­
naria evidente a uma reflexão racional, que mostraria, assim, sua
impossibilidade e faria desmoronar a posição finalista do indivíduo
e, portanto, a construção baseada na consciência do valôr próprio.
Em numerosos casos, é, pois, necessário, que não se empre­
gue o ''trabalho sobre si mesmo" numa luta diréta contra as difi­
culdades de tôda a espécie, mas apenas numa luta contra seus mo­
tivos geradores, que devem ser descobertos de início. Êste é, po­
rém, um trabalho que, corno dissemos, não pode, em geral, ser rea­
lizado pelo indivíduo isolado. Como êle desconhece o seu "ponto de
vista", êste acompanhará, sem que êle o note, tôdas as suas tenta­
tivas de autoconhecimento, sem nunca revelar-se a êle. Mesmo
quando se conhecem profundamente os atalhos utilizados pelo es-

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 285

pírito humano para fugír à luz e se está habituado a descobrí-los,


em si mesmo e nos outros, verifica-se nfto ser possível, ainda as­
sim, descobrir os motivos últimos. Então, o homem que se acha
Jiante elo incompreensível e acredita na imutabilidade, percebe
com espanto quando se lhe põe diante um espelho e se lhe descobre
sua alituclc duvidosa, trabalharem ainda em seu interior fôrças que
tinha julgado dominar.
Apesar de haver sempre a possibiildade inegável de serem fi­
nalmente eliminados êsses alçapões do espírito, restam ainda al­
guns pontos, cuja observação pode ser considerada útil para as
exigências do conhecimento de si mesmo e da auto-educação.

5. Relação com a sociedade

De acôrdo com a concepção apresentada nesta obra, podemos


descobrir um ponto de partida essencial, mesmo para a aprecia­
ção de si mesmo : a relação com a sociedade. Temos em vista, aqui,
não só a atiturle interior ( em que pode haver ilusões perniciosas),
mas principalmente, a realização efetiva. Um homem pode sub­
trair-se à sociedade das mais diversas maneiras. Mas, ·no fundo,
tôdas podem ser levadas ao motivo fundamental elo mêdo ao pró­
ximo. E' o mêdo de não se poder afirmar entre êles ou diante dê­
Ies, ou o de não poder, de qualquer modo, dominá-los. Sem falar
nos modos de comportamento que já foram mencionados e, em
parte, discutidos, como: a sensibilidade exaltada, o acanhamento,
a idéia de não .ser compreendido, etc., têm também um grande pa­
pel representações do tipo daquela em que o indivíduo nada pode
dar, nada significa, age com tédio, etc., julgando-se, por isso, na
obrigação de "poupar aos semelhantes sua companhia". Estas re­
presentações não devem ser confundidas com a que designamos,
nos domínios da psicologia individual, pelo nome de vivência de
depreciação, pois as atitudes agora descritas jú pertencem a urna
transformação reativa ulterior. Elas são, por assim dizer, secun­
dàriamente racionalibadas; são medidas de segurança que devem
ser dadas ao homem diante de cada situação, em que, cleviclo it
consciência de seu pouco valôr próprio, inicialmente rlada, êle teme
o aniquilamento de seu próprio eu. Essa fuga ao contacto com ou­
tros homens tem, muitas vêzes, a mesma orientação daquela atitu­
de, que faz com que o homem recuse qualquer espécie de trabalho,
por acreditur que não pode realizá-lo, Nêste caso sua razão deve­
ria dizer-lhe: "Se só podes realizar pouca coisa, mais um motivo
para que realizes êsse pouco, a fim de que tua existência se torne,
de certo modo, útil, ou, pelo menos, positiva". Pelo mesmo motivo,
não se deveria desprezar, no problema do próximo, qualquer possi-

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28G lt U Jl O L J,' A 1, 1, E lt S

bílidacle, mesmo pequena, de fazer ali�mna coh-:a pelos outros. Tam­


bém a atihulc de evitar o cont:1cl.o humano, porque nos pode tor­
nar maus, ou fazcr-1101-1 cair cm l.cntaçõcs ou de1-1viar-11os dn preo­
cupaçf10 com o nosso aJ)crl'ei,.oament.o próprio (a única coü,n jul­
gada importante), deve sempre 1lcsvcrt.ar a !'1tHlpcita de uma fai'sa
natureza. Deve-se veril'icar, :se um indivíduo continúa a manter tal
atitude, mesmo quarnlo lhe é absolutamente :1ssegurado e garanti­
do um triunfo brilhante (ou mc;;mo modesto) junto aos outros.
A fuga do p1·óximo ]Iode se ocultar sob uma máscara pura­
mente 1·clig-iosa. E', por certo, inteiramente exato, que o verda­
deiro amor ao próximo se enc:1minha em última análise, através
de Dem,, e que :mrnmos, no semclh:mtc, a imagem de Deus. a cria­
tura feita po1· Deus, o membro - atnal ou possível -:- do "Cor7ms
Clwisti rnusticum". E' discutível, porém, q1.1e, para a humanidade
média, seja possível realizar realmente êste amor com o amor, e
que não se trate talvez, aqui, de uma fundamentação e possibili­
dade dêsse amor, que, embora conhecido, pode não ser vivido com
tôda sinceridade. Amar a Deus nos homens e aos homens em Deus,
parece, pois, uma atitude que leva a um mais alto aperfeiçoamento
e pertence a uma vida mais dirigida para o sobrenatural ("super­
formada" em Deus, por assim dizer) do que seria possível ousar
realizar no caso de uma atitude a tomar ou de uma norma absolu­
tamente válida de conduta. Por isso, algumas pessoas, que julgam
ter tomado essa atitude, podem ser suspeitas, não sem razão, de
procurar criar, antes uma distância entre elas e seus semelhantes,
do que, uma interiorização de Sl_\a relação com o próximo (que se­
ria o resultado do amor "sobrenatural" já citado). Também a ver­
dadeira atitude cria uma distância. Ela difere, porém, da que
achamos nos casos agora mencionados. Nestes, ela é como uma re­
doma de vidro envolvendo a pessoa e nenhum calor pode atravessá­
-Ia; naqueles, porém, o calor do amor atravessa a distância infinita
que deveria separar da pessôa os homens ligados inteiramente à
Natureza e se propaga através de tôda essa distância.
Mas a fuga aos homens não é necessàriamente idêntica a uma
separação dêles. Como existe um isolamento justificável e compre­
ensível (pelo menos quando temporário e ocasional) há o perigo de
se confundir esta atitude com a que deriva de motivos injustificá­
veis e puramente egoísticos, explicando a segunda por motivos que
só convêm à primeira. No isolamento justificado, a "distração" (no
sentido da palavra) é compensada pela "reflexão". l'.tle não pode
ser identificado, sem maior exame, com uma introversão, mas, pelo
contrário, pode (e talvez, de certo modo, deve) conter um "volver
para o exterior". Mas tôda a posição, em que a pessoa, ou seu pró­
prio ser, se torna essencialmente e finalmente um fim, é mais ou
menos perigosa. A pessoa deve, sempre considerar-se subordinada
a uma legalidade e uma realidade mais elevadas e impessoais (ou

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 287

superpessoais) e ser, ela própria, apenas um ponto de passagem


ou um ponto de vista em relação a uma esféra absoluta, que é, em
última análise, Deus. Finalmente, é uma necessidade fundada na
própria existência, que o homem, quando não se diviniza e não se·
põe corno um absoluto, deva encontrar Deus por um volver reflexo
sôbre seu próprio eu. "Même moi dans le pli�s profoncl de moi­
même, et fe Te trouverais!" A vida dos grandes místicos é uma ex­
celente prova de que esta volta completa ao próprio eu e, daí, a
Deus, realizada por um isolamento temporário, que não é, em es­
sência, um afastamento do próximo, só pode ser temporário naquê­
les em que a visão contínua ele Deus não é ainda uma atitude ha­
bitual. Ela só está ligada a tôdas as atitudes da vir.la, naquéles que
não necessitnm de um tal isolamento para manter sempre presente
essa visão. Também SANTA MATILTJE DE MAGDEBURGO, ao falar nas
"sete perfeições", citava, entre outras: Estar satisfeita com o iso­
lamento e estar satisfeita no meio das outras criaturas. A marca
distintiva entre o isolamento justificado e o falso isolamento, pode
ser melhor vista, talvez, no modo pelo qual uma pessoa recebe a in­
terrupção de seu isolamento (não se tratanto aqui, evidentemente,
de um isolamento simplesmente espacial). Quem se "sente satis­
feito no meio das criaturas" não sentirá, também, desagrado ao
ser chamado para a solidão. Em certas circunstâncias, pode ser
mais ou menos doloroos seguir êsse chamado. Mas não haverá qual­
quer resistência interior a êle. Deve também ser observado, não
ser de modo algum indiferente, para o desenvolvimento e o aper­
feiçoamento interior do homem, a posição que êle toma para com
a comunidade de seus semelhantes. Em primeiro lugar, como diz
SÃO TOMÁS: "o amor ao próximo tem a precedência, no que se re­
fere à execução'',1 embora, segundo a ordem ele preferência e a hie­
rarquia, o amor a Deus ocupe o primeiro lugar. Portanto, um de­
senvolvimento conveniente do amor ao próximo é a condição preli­
minar (na natureza humana) de uma justa fundamentação do
amôr a Deus. Em segundo lugar, de acôrdo com o que sabemos das
formas de atividade da vida psíquica do homem, pode-se supôr que,
também por isso, o caminho do amor ao próximo (primeiro, do
imediatamente próximo e, depois, de todos os homens em geral)
levará, em seu prolongamento, ao amor a Deus. Não devemos su­
pôr que uma condição preliminar signifique, nêste caso, uma ante­
cedência temporal num processo, etc., devendo, portanto, indicar,
incondicionalmente uma sucessão temporal de conseqüências, em­
bora tais casos se possam _dar muitas vêzes in concreto. Pode-se,
contudo, assegurar que um aperfeiçoamento, sob o ponto de vista
religioso, é inteiramente impensável sem o amor ao próximo.

1. SÃO TOMAS - 2, 2. Q. 68, a. 8. 2.

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288 RUDOLF ALLERS

6. A mor ao próximo

O verdadeiro amor ao próximo significa: "amar ao próximo


por êle mesmo". Sem dúvida, nêste "êle mesmo", está contida a
imagem ou a criatura de Deus, o postulante ou o membro efetivo
da sociedade dos "filhos de Deus". Isso, porém, não precisa ser
dado atualmente, ao realizar-se o amor. Mas aquêle amor ao pró­
ximo que só se realiza porque o cumprimento do mandamento é
um dever para mim e, provàvelmente, me auxiliará a ter um "mé­
rito", aquêle amor ao próximo cujo não-cumprimento ameaçará
minha salvação, não pode ser chamado - por mais imperativo e
meritório que seja - um verdadeiro amor, um "amor que não pro­
cura seu proveito", um amor no verdadeiro sentido. Há mesmo,
nessa atitude, o perigo de que o próximo seja rebaixado a um sim­
ples meio (embora tal expressão possa parecer exagerada), um
meio que me permita "adquirir méritos". Tal concepção pode ser
adequada para o budismo, por exemplo, mas não para o sentimento
católico. Porque as ações de amor não são obrigações, que devamos
cumprir para que não seja infringido um mandamento: "E' o amor,
o que nos é mandado. Dir-se-á, com certa razão, que o amor, sendo
uma afeição e um sentimento, não pode ser mandado e distinguir­
-se-á o amor efetivo do amor afetivo, já que o primeiro executa ape­
nas os atos de amôr, sem ter por base, ou por causa, uma afeição
amorosa e sentimental, uma vez que resulta, mais ou menos, de um
frio conhecimento. E' preciso, contudo, observar duas coisas. Pri­
meiro, que mesmo êsse amor frio e efetivo é, em sua natureza, um
amor, se sua intenção fôr dirigida para o próximo, de modo a se­
rem colocados, na perspectiva de nossa posição, os sofrimentos e
alegrias de outrem e não nosso dever ou nosso mérito. Em segundo
lugar, que onde não está presente o amor cálido e transbordante,
não será possível chegar ao amor afetivo, senão pelo caminho dos
atos efetuados. Urna pessoa, de que nos aproximamos a princípio
com certa reserva interior, acaba por tornar-se querida. Já o disso
o Baghavadita: "Quem honra os deuses, encontra-os".
Poderíamos crêr, que não uma questão mais importante, para
quem procura seu aperfeiçoamento interior ou seu prÓgresso reli­
gioso, do que a de sua atitude para com o próximo. A importância
dessa questão não resulta de que posição em relação à sociedade
seja a tarefa mais importante do homem. Se a questão é decisiva,
é porque tal posição é.ª pedra de toque mais sensível para a ati­
tude interior do homem em geral, e, portanto, para sua atitude em
relação a Deus.
Uma prova significativa de nossa relação com o próximo· é
dada pela nossa atitude para com êle no caso da verdadeira infe­
licidade. Observam-se então dois extremos. Uns, exigem do próxi­
mo uma participação, um consôlo, uma distração e uma diversão

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PSICOLOGIA DO CARÁTER 289

incessantes e utilizam-se por assim dizer, de sua infelicidade, como


legitimação de sua exploração do próximo. Outros, lançam sôbre o
próximo a culpa da desgraça que lhes. ac�mteceu. Pare�em adqui­
rir, com esta situação, um titulo de direito para dar hberdade a
tôdas as agressões contra os outros. Tal reação se encontra, muitas
vêzes, 110 ·indivíduo que tem a culpa da própria infelicidade, ou mo•
tivos para repreender-se. Só age com uma boa disposição para a so­
ciedade e um verdadeiro amor ao próximo aquêle cuja conduta
para com o semelhante não demonstra qualquer modificação, ou
apenas modificações de sentido positivo.

7. O médico e o guia espiritual

Não poderia constituir a tarefa destas páginas finais uma


abordagem ampla do problema da educação moral e religiosa. Sob
muitos pontos, será necessário empregar, nêsse problema, o que já
foi parcialmente indicado e explicado em passagens anteriores.
Muitas outras coisas, que deveriam ser ditas, não podem ser trata­
das adequadamente neste lugar, por constituírem o objeto de uma
"psicologia pastoral" sistemática, fora dos quadros da presente
exposição. A finalidade de nossas notas sôbre o conhecimento de si
mesmo e a auto-educação foi, principalmente, a de mostrar as pos­
sibilidades de educação dos caracteres "normais" e, de certo modo,
as de correção dos traços essenciais, já desviados, tais corno pode­
mos encontrá-las na própria vida. Sem dúvida, devemos acentuar,
mais uma vez, que grandes dificuldades, de caráter fundamental,
existem, nêsse ponto, e que há, para todo individuo, por melhor que
domine os processos de pensamento e os métodos, uma necessidade
constante de "colocar-se diante daquêle que sabe", de abrir-se com
seu guia e nêle confiar.
Se já se torna claro, por motivos psicológicos, que não se pode
prescindir de uma orientação para a pessoa, no desenvolvimento
de seu eu e na marcha para seu aperfeiçoamento e seus fins últi­
mos, ainda mais claro se tornará, que tal orientação '1W que se re­
fm·e à atitude e ao conhecimento religiosos, deve caber ao guia es­
piritual; embora existam situações, possíveis ou reais, em que tal
tarefa pode ser confiada a outras pessoas (os pais e educadores,
para a criança; um amigo, para seu amigo; um médico, para os
doentes que necessitam seu auxílio). Todos êstes, porém, devem ter
consciência dos limites de sua autoridade. Em particular, o médico
(mesmo q1..q,ndo se intitula, ô.e direito, um "médico de almas")
nunca deve esquecer que, sendo a primeira ponte reconstruída en­
tre o isolamento dos neuróticos e a comunidade humana, deve ser,
também, um membro de ligação com o sobrenatural. Ser o pre!)a-

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290 RUDOLF ALLERS

rador do caminho da Graça é, nêstes casos, seu mérito maior e sua


obra mais notável.
São, pois, tôlas, as declarações de que o médico e o psicotera­
peuta, estão chamandos, hoje em dia, a tomar o lugar do padre.
Não só falta ao médico a autoridade para falar decisivamente sô­
bre questões religiosas, como também não dispõe dos meios sobre­
naturais de que se utiliza o sacerdote. Já o mostrou, com razão; re­
centemente, o padre BICHLMAIER, S. J., 1 que o "Ego te absolvo",
o poder sacramental, não poderia ser substituído por urna técnica
médica de orientação espiritual, por mais desenvolvida que fôsse.
Mas o emprêgo dos novos conhecimentos sôbre educação pode
evitar muitas dificuldades ao sacerdote encarregado de uma orien­
tação espiritual. E o trabalho em conjunto com médicos inteligen­
tes pode ser útil em muitos casos, levando a um resultado mais rá­
pido do que os simples conselhos, advertências e exortações, feitos
sem uma pesquisa dos motivos ocultos da pessoa.
Que nos sejam permitidas ainda algumas palavras, em relação
à psicologia da vida religiosa. Também para isso, os novos conhe­
cimentos parecem fornecer uma contribuição. Parece-nos fóra de
dúvida que as dificuldades da fé, os vários ataques e críticas inte­
lectuais às verdades religiosas, a incapacidade de submeter-se à
autoridade da Igreja e todos os obstáculos à vida da fé estão, em
última análise, ligados à atitude que designamos como: revolta da
criatura contra a condição de criatura e contra a finitude de seu
poder e de seu ser. Acreditamos poder ter a certeza, de que, tam­
bém nas dificuldades religiosas, as raízes devem ser procuradas,
na maioria das vêzes, nas influências de infância. Já observamos
antes, a importância que tinha, mesmo para uma evolução para
Deus, a posição para com a sociedade. Não será preciso, portanto,
entrar em pormenores sôbre a linha de pensamento já indicada.
Mas a vida humana é uma unidade e uma totalidade. E' errado
dizer que alguma coisa é razão de outra, pois tudo está ligado a
tudo. Se, como já vimos, o conflito último, de que sofre o neurótico,
é sua própria incapacidade de afirmar sua posição existencial como
criatura, torna-se evidente estarmos diante de um mistério final,
que não é e nunca será possível desvendar racionalmente, ou to­
mar inteiramente claro pelo método. Se as dificuldades religiosas
decorrem de uma atitude inocente ou culpada do homem, também
decorrem daí as falsas orientações religiosas. De novo, giram as
coisas num círculo. Que consigamos compreender, submeter-nos,
melhorar, é, em última análise, um mistério. Mas não devemos,
por não poder compreender a base profunda de nossos triunfos
acidentais, ou os princípios últimos da justiça de nossa conduta,

l. Der See/sorger (1929).

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PSICOLOGIA DO CÂRÁTER 291
subtrair-nos ao devêr de tornar úteis, para a obra da. educação, o
que julgamos ter adquirido na ciência, aprendido na técnica e
observado nas concepções em cho11ue. Sim, devemos empregá-los
na educação: das crianças que nos foram confiadas, se somos pais
ou professôres; dos enfêrmos, se somos médicos; dos homens em
geral, se somos mestres dos homens e se temos, ao nosso cuidado
e administração, sua salvação eterna.

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CONCLUSÃO

AcrP.ditamos não ter deixado, nas páginas precedentes, qual­


quer dúvida sôbre o fato, de que não era nossa intenção re9olver
tôdas as questões sôbre a educação do caráter por meio claf! pes­
quisas mais recentes sôbre o espírito, as quais, na verdade, são, em
parte, uma renovação metódica cl,:, antigos conhecimentos. Nem
pretendfamos também que fôsse supérflua a fundamentação, por
meios sobrenaturais, de tais questões. Julgamos, ao. contrário, que
a nossa exposição mostrou justamente as fronteiras dos meios na­
turais. Acreditamos ainda, que o mais perfeito domínio de todos
os ·conhecimentos e modos de agir daí resultantes seria impotente,
em última análise, se não se baseasse no conjunto mais amplo e
fundamental do conhecimento religioso. A nosso ver, a funda­
mentação teórica do carater em geral é inteiramente impossí­
vel, sem uma referência às verdades religiosas e um apôio nelas.
Vimos como nossa posição das questões, gerada pela necessidade
prática imediata, conduzia, em tôda parte, a problemas que só ti­
nham solução no domínio da metafísica e, em seguida, no da fé
baseada na revelação. Não tentamos, porém, embrenhar-nos nessa
problemática. Uma tal emprêsa, mesmo que pudesse conter alguma
esperança de êxito, deveria ficar reservada para tentativas ulte­
riores. Mas, mesmo no círculo de uma tarefa de pura prática, so­
mos obrigados a começar sempre por aquêles pressupostos últimos.
O sentido da exigência de sociedade e o que nela, há, talvez, de im­
perativo não pode ser baseado e tornado compreensível senão na
religião. A sociedade pela sociedade, ou a sociedade pela nação,
pelo povo, pela cultura ou pela humanidade, nunca possuirá aquê!e
poder de convicção e de conquista para trazer à sua bandeira os
homens de tôdas as condições - da criança que ainda desconhece
seu caminho para a sociedade, ao adulto que se afastou dêsse ca­
minho. E, corno vimos, êsse poder de convicção não é apetias de in­
terêsse universal, mas é também indispensável para o desenvolvi­
mento do indivíduo. Uma sociedade que fôsse apenas uma coliga­
ção contra as· fôrças da natureza, ou o resultado de fôrças impul­
sivas de uma natureza humana qualquer, não possuiria, de modo
algum, a propriedade de se apresentar, ao indivíduo, como um im­
perativo e um necessário. Diante de tai exigência, poderia alguém
fazer esta pergunta, que continúa irrespondível: "Por que me de-

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2!14 ltlTllOl.l•' Al,1,1•:ltH

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vnlídndc niio Jlotlu 1-1m· J>Ofll.n 1•tn d(1víd11, Juu·n c111rn11 rdldir 1-1f,lirn a
poHiçiio ahf1ol11l.11 do flllll 11rúpri11 JWH:mn. Nfio é nc:cm1H{u·ia nma 1:x­
plicnçíw mi1111cimm, 1111rn :-m co11hccc1· qllll cBl.n tmciedmfo 1111c•mHla
no tr1H1llccndm1te, 11xi1�ida, com piem, clirdt.n e 1-1em exct•1;fü1, d<: to­
dos os hommrn, 11110 6 n nfio 1,o<le tmr outra 1-1c11fio a ')u10n1.m'Í1, a "m1rt
1wnd<1 cn/./wlir:n R1:d1:.�fo", q1111 Hll m1i.rn1d<i 11111· lodo:; OH fo111poH, to­
dos os povos e tôcla a m11lt.iplici1l11<le q11111it.at.iva doii horrw11H, cultu,
ras e situ::wõcs.
Dêsse 1110110, jnl1tnmog q110 a conccpçiw <lo conceito dafl nor­
mas de uma edncaçiio <ln carúlcr, por 11ó1-1 dcH<mvolvi<la, niio ci-LA
em oposiçfw com O!l cnsinamc11l.0H e o p<mHamenlo caU,licoH, maH
exige tais princípios como brnic rn!ceHHúria ü <lf!les preciHa para Hna
complcmenlaçiio. Por isso, acreclil:amoH também (e eHpct·amos ter
demonslratlo) que mnil.n cohm do 11ne enHinou a nova pHico\offia, jú
foi conhecido há muito tempo, tendo Hiclo, apen:lH, Ji:trcialmPnte
esquecido.
Estamos plenamente conscientes <lc :;6 ter contribuído frag­
mentàriamente para o grande tema qnc noH havlamos riropollt.o.
Nossa cxposiçi10 é um f1:agmcnto, já qnc, cm muito:.; ptmtos, apre­
sentou simples incHcnções e ni10 pôde, ele modo geral, al.lordar vú­
rios outros, que tornariam nossa obra muito extensa. Ainda soh
outro aspecto podemos considerar fragmentúria nos:-m cxposiçfw:
em muitos pontos, hú ain<ln olmeuriclaclcs e as que.�1:ócf! foram, Hn­
tes apresentadas que resolvidal'!. Aliús, cm muitos J)tmtos, as ol>s­
curidades nüo poderiam ser esclarecidas, pois não elevemos ei::que­
cer que, em última anúlise, as questões de edncaçíio, princi1ialmente
sob o aspecto moral, levam sempre aos mah-1 profunchrn problemas
e conduzem, em seu pi'olm1gamento, até o mistério.
Por conseguinte, 11f10 somos absolutamente de opii"iião rlc que
as considerações aqui feitas possam fazer compreender inteira­
mente a natureza elo homem e o problema da sua formação. Esta­
mos, ao contrúrio, absolutamente convencidos, <le que só uma face
bem determinada dessa natureza pode ser vista sob tal concepção
e influenciada por tais métodos. Nossa tese não é que não exista
uma especificidade da ·pessoa. Já havíamos pressuposto tal especi­
ficidade. Apenas julgamos que ela não pode ser bem concebida, ou
é inteiramente inconcebível, ao passo que outros fatôres determi­
nativos do desenvolvimento do caráter, em especial o ambiente,
são, não só observáveis como modificáveis. Se quisermos compre­
ender a pessoa em sua presença original, isso só poderá ser reali­
zado pelo esclarecimento de toqos os seus momentos ambientais.
Nêste ponto, afastamo-nos inteiramente do ensinamento co­
mumente apresentado pela psicologia individual. Na verdade, acre-
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PSICOLOGIA DO CARÁTER 295
ditamos ser fiéis à sua idéia e, mesmo, mais fiéis que a maioria
de seus adeptos incondicionais. Mas há, entre sua concepção e
a nossa, principalmente nêste ponto ( e noutros também) uma
oposição.
Um dêstes pontos é a circunstância de que não podemos acei­
tar a idéia de que o homem pode ser absolutamente determinado
pela tensão entre os polos Poder e Amor. Vemos aí apenas uma
dimensão, entre as muitas em que se desdobra e desenvolve a vida
humana, Aliás, tal dimensão tem prodigiosa importância, já que
determina essencialmente tôdas as ações e atitudes da pessoa. Mas,
ao agir, a pessôa forma de novo o ambiente, e êste, por sua vez,
reage sôbre ela. Ora, o ambiente a ser primordialmente conside­
rado é, como já vimos, o do próximo. A maneira pela qual o homem
se põe diante dêle depende do desenvolvimento de sua vontade de
poder ou de sua vontade de associação. Por isso, as tendências fun­
damentais mais evidentes dessa concepção são importantíssimas
para o desenvolvimento moral do indivíduo, para a formação da
vida em comum dos homens e, enfim, - segundo as observações do
nosso último capítulo - para a atitude religiosa.
Se as páginas precedentes puderam mostrar que não existe
oposição entre as concepções das novas pesquisas positivas nos do­
mínios da ciência da alma e do caráter e as verdades da fé, nem
entre os princípios educativos de ambos, mas que há, pelo con•
trário, uma convergência entre aquelas concepções e os ideais da
filosofia cristão e católica - se, por outro lado, pudemos adquirir
a impressão de que a educação, a vida e a convivência (no sentido
católico) podiam tirar grande proveito daquêles conhecimentos -
então podemos considerar realizada· nossa tarefa, com as observa­
ções, embora curtas e incompletas, que fizemos sôbre tal ciência.
Todos necessitamos de uma verdadeira orientação, porque
quase não possuímos, em nós, aquêle amor que, não buscando seu
proveito, "está mais no que é amado, do que no que o sente" e care­
cemos, portanto, daquela certeza cega do verdadeiro amor. Assim,
temos· que caminhar com as muletas do conhecimento, quando. o
amor não nos empresta suas asas. Por certo, o amor não pode ser
substituído pelo conhecimento. Mas o amôr incompleto deve ser
completado pelo conhecimento. O que quisemos foi, apenas, indicar
a possibilidade desta comple�ntação.

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fNDICE ANAUTICO
Prefácio •.• , •..• , •• •, • • • • •• • • • • • • • • · • • • • ••, •.................... 6
l11trod11ção •••• , •.• • ••• • • , ••• • • • • • • • •• • • , . , , • • •.••• , • • • • • . • • . •• • . 13

1. A NATUREZA DO CARÁTER E OS MÉTODOS DA CARACTEROLOGIA

1. Significação da palavra "caráter" ..-........ . .••...•..••.•.. 17


2. A qu;;stão da natureza do caráter •..••.........•...• . ...... 19
3, A mutabiliJade do caráter ••••.•••.••..• • • ••..........•.•.. 22
4. A formação da- conduta ..••• ..••......... ........•• .. . .. •. 30
5. Ação e valor •••.. • .•••...••• . •••....... • •••..•.•.........• 36
6. O conceito de caráter ..•....•....•.... ....... . .. • ...... . .... 38
7. Caráter, ambiente, herança • ...•........•••. .........•....... 40
8. Caráter e atitude valorativa individual ......• . ..•. . ......•. . 45
9. L1berdacle ..• • .. . • .... . .... . ....•............ ....•. . ... . ... 46
10. Conhecimento do caráter •.•••••....•.•••...•..•. , .•••...•.. 50

II. As CONDIÇÕES EM QUE SE ORIGINA O CARÁTER

1. Nota preliminar ••...•••••.•••.•.. , , , • , •.............•••.•. 61


2. A tendência primitiva à auto-afirmação •.••.......•.......... 62
3. Sôbre o conceito de impulso .••...••••••••••••• , ...•.......• 64
4. Vontade de poder .•......••.••••••.•• , •••••......•.......•• 72
6. Sôbre a vida espiritual da criancinha •......•••..••..•••..•. 73
6. � yjvência � depreçia�o baseada.n.l\ condição corporal �-. 79
7. O conceito de compensação •••••••...•.....................• 83
8. Vivências � depreciação sjtuatiyamente condjcjonadas ...••..• 86
9. Sôbre a severidade, a autoridade, o castigo e o mimo ...•..... 89
10. A vontade de associação •••••.•..•••••••••........_ •..••..•• 102
11. Da fantasia e das exigências de compensação ...•.... •......•• 109
12. Educação para a sociedade .•.••••.••.••...•......••.•...•.•• 114

III. SôBRE OS CARACTERES INFANTIS E AS DIFICULDADES DE EDUCAÇÃO

1. A origem reativa dos traços de caráter .••.••••.....••.. , .••••• 123


2. O mêdo da criança ....•..••••.....••....•.....•.••....••• , 127
3. :Mentira, capricho, orgulho .• , • , .•••••• . .•.•.. ••...••..••.••• 132
4. Crianças ameaçadas ..•.•...•• .•. ..••• •.••••......••••...•• • 138
5. Desvalorfaação ••••••.. , •. , ••••. . ..•.••.••••.•.. . .••••• •... 147

IV, 0 IDEAL DE CARÃTE!? E O EFEITO DO EXEMPLO


1. Nota preliminar •.• , ..•• , •••••••• , , •••..• • • .•• . •• • ...••. . . • 153
2. Fontes dos ideais ..•....•.••• , . ....••• •.. • . .•••.... •.•• • • . • • 154

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298 RUDOLF ALLERS

3. Signjf�cação ido ideal ........ ..... ..•...... ...... ..... . .... 1:,:,
4. :
Amb1çao ..•...•.••.•.•.•.•.•••....••..••... •• ..•,, • .•..•.,. ir,:,
5. Ideais verdadeiros e falsos ••..•......•..•••••... • ••....• . ... . lf,1
6. Grandeza e herofsmo •..•••• • . .•••• •...•••.....•..•... • . ..•. 170
7. Sôbre a humildade ••.••..•.•....•..•.•........ , .. . •. . .. . ... l 71',
8, u!11ª o�jeç�o O•••• o • •:A•",• o o 00 O•• o •"• . . O• O" O•••"• o" 00" 178
9. D1gressao sobre a consc1enc1a • •.•. • .•.. • .. . ..••. .... . . ..... .. lRO
10. Resposta à objeção ..•.•....••..•.....•••....•.•..•..•.. , .. . 1 Sl!i
11. O ideal do caráter ..••.• • •••....••....• • ......••.. . . ....... U�6

V. SôBRF1 A CARACTEROLOGIA DO SEXO

1. Observações metódicas preliminares .......•........... , • • • • • • 18G


2. A situação ambiental da mulher ••..••...•.....•.•.•..., •• • • 194
3. A formação da mulher .•..••• , •.•..••...•............... • , , 202
4. O desencorajamento feminino e seus efeitos ..............••• 208
5. Maternidade .....................•......•••.•... , , ........ , 212
6. A educação de meninos e meninas •• ...... .. •.... . . . .. .• • . .. . 214

VI. ÜS ÂNOS POSTERIORES DA INFÂNCIA: A ESCOLA,


A PUBERDADE, O PROBLEMA SEXUAL
1. O jovem e o ambiente social •••••• • ••.•...••..•.• . . .. . ... ... . 217
2, A essência da puberdade . . ..••. • •...... ..•........ .• • . .• •• • • 218
3. Influências escolares • •••• •..•...•.......•.... . ......... . .•. 201
4. A formação de uma nova imagem do mundo na época da puber-
dade .......•...••••••...•.••••.•...... , ••........•, ..••• , • 228
5. Dificuldades na puberdade •....•.••.•...•.......... , .... ... . 231
6. Modificações do caráter • ••.•• ..•.••.• ....• .•..•. ... ... . • •• . . 234
7. Sexualidade . .•. .. ..••• • . ••• . . .••.....•. . .•...•....• .. •...• . 236

VII. .CARACTERES NEURÓTICOS E CARACTERES NORMAIS

1. Princípios gerais •....••••••.•••• . .... .. .••.... .• •...... .• .. 249


2. Educação difícil .••..•..•.•.....•.•..._...................... 252
3. Neurose ••..•......••.... , •.• ...• •• .. •. •..• • .• . . .••• ..... •. 261
4. A falsidade como traço fundamental da neurose • .... .•• •.. .•.. 26G
5. O egocentrismo da neurose ••....•....••.•••••.•...•..... , ... 270
6. Fins neuróticos e traços de caráter neurótico ...•...•..•... , . .. 272

VIII. NOTAS SôBRE O CONHECIMENTO DE Sr MESMO E A


AUTO-EDUCAÇÃO

1. Possibilidade do conhecimento de si mesmo • .•. •. •.•.•• •..• . • • 279


2. -'Atitude para com o próximo •..... • ..•• . . •.... . ....• .. ..•.. • 279
3. O guia .•.••...••..• . •••...•••.• • ••••.•• . •••.• •.. • .• •. •• ••• 282
4. Obstáculos ao aperfeiçoamento próprio •.•••••..•••••..•.. , •..• 284
6. Rela1:ão com !1- �ociedade ••..•.••.••.•..•••••.•••.....• , •.•••• 285
6. Amor ao prox1mo • . • .•. •.••..•••. ••. •. •.• . •• •.•••.• . •.•• •• • 288
7, O médico e o guia espiritual •• . . . • • ••.•••••. •.• ••• •• •• .• ..•• 289
CONCLUSÃO , •••••••• , • , ••, • , ••••••••• •• ••••••• , ••••••• , •• , •• 293

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{NDICE DE NOMES

Adler, 51, 54, 63, 83, 102, 238. Garnett, G5.


Agostinho (Santo), 46, 51, 77, 115, Gerson, 276.
134, 241. Goethe, 20, 24, 112, 191.
Angélica de Jesus, 167. Goldstein, 118.
Anzengruber, 275. Gregório (São), 93.
Aristóteles, 103. Gruehn, 38.
Aquaviva, 93. Guardini, 105.
. Bahnsen, 14. Haeberlin (P.), 14, 45.
Barat (IIIaria), 94. Haering, 43.
Baumgarten, 132. Hartmann (H.), 14.
Benedito (São), 91. Hartmann (N.), 183.
Berchman (S ão João), 167. Heidegger, 127.
Bergson, 81. Heymans, 192, 206, 208, 210.
Bernardino de Siena (São), 197, Hofbauer (São Clemente :Maria), 91.
Bichlmaier, 169, 290, - Hoffmann, 14.
Binswanger, 37. Hõnigswald, 104.
Bonte, 132. Husserl, 47.
Basco (Dom), 94.
Bruyere (La), 14, 18. Inácio de Loyola (Santo), 24, 49, 57,
Buccura, 203. 91, 170, 176.
Bühler (Ch.), 74, 214.
Bühler (K.), 48, 68, 74. Jaensch ( E. R.), 132.
Joel, 103.
Catarina de Siena (Santa), 159.
César, 159. Kant, 39.
Chapuis (M. de Sales), 94. Kempf, 25.
Clímaeo (São João), 128. Kerschensteiner, 1 4.
Klages, 14, 45.
Dante, 120. Kêihler (W.), 182.
Demóstenes, 85. Kolnai, 39.
Dilthey, 37. Kraus, 14.
Driesch, 81. Kretschmer, 80.
Kronfeld, 51, 81.
Eckennann, 20. Künkel, 14.
Eugênio de Savóia, 85. Kunz, 84, 263.
Ferriere, 224. Liebeck, 127.
Feuerbach (L.), 105. Lieímann, 132.
Fichte, 35, 106. Liepmann, 192.
Fõrster, 14. Liertz, 263.
Francisco (São), 23, 24, 57 91 197. Lippert, 137.
Franklin (Benjamin), 176.' ' Lippmann (0.), 192.
Freud, 114, 251, 262, 263. Luis (São), 159, 167.
Freyer, 42. Lynch. (Evelyn), 86.

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800 RUD0LF ALLERS

Maria da Santíssima Trindade, 167. Schultz-Henke, 263.


llfatilde de Magdeb urgo (Santa), 287. Schwartz (O.), 20.
Meyer (C. F.), 106. Seipel, 216. ,,,,--...
Jl.loliere, 18. Shakespeare, ,!J,,!lJ_§J
Münsterberg, 210. Simeão Estilita (São), 91.
Smiles, 14.
Napoleão, 85, 159. Sócrates, 177.
Narses, 85. Spinosa, 62, 265.
Newman, 48, 235. Spranger, 39, 74.
Nietzsche, 63. Sticco (Maria), 197.

Oesterreich (T. K.), 26, 27. Taine, 40.


Teofrasto, 14, 18.
Paulo (São), 90, 200, 201, 241. Teresa de Jesus (Santa), 91.
Pfister, 263. Teresinha do Menino Jesus (Santa"),
Poincaré, 35. 91.
Przywara, 105. Tomás de Aquino (São), 92,265,287.

Reik, 263. Utitz, 14.


Roessler, 132.
Vaerting, 194, 204.
Rostand, 144.
Vance, 20.
Von Hallers (A.), 42.
Scheler, 26, 57, 106, 165.
Schilder, 68, 229. Wagner von Jnuregg, 28.
Schiller, 33. Wertheimer, 22.
Schopenhauer, 14. Wexberg, 14, 51.

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fNDICE DE ASSUNTOS

Acanhamanto, 129. Criminalidade infantil, 128; 139.


Ação heróica, 53. Criminoso, 27
Ação impulsiva, 67, 68. Crítica, 147,
Amabilidade, 99, Culpa, 87, 96.
Ambição, 159, 177, 245.
Ambiente, 41. Decisão, 35.
Amor ao próximo, 104, 107, 115, 286, Delaçã�, 149.
287. Depreciação (ou desvaler), 79, 83,
Amor à verdade, 56. 198, 201, 211.
Analogia do Ser, 84, Desaprovação, 98.
Aperfeiçoamento, 169. Desconfiança, 98.
Atitude valorativa, 44. Desencorajamento, 83, 131, 136, 157,
Ato de apropriação, 38. 206, 208, 210, 242.
Auto-afirmação, 62, Desilusão, 112, 165, 273.
Automutilação, 52. Desvalorização, 147.
Autoridade, 90, 92, 225, 232. Dialeto do órgão, 238.
Difamação, 148.
Caçula, 146. Domínio de si, 163.
Capricho, 137. Dúvida, 275.
Caráter, 17 a 22, 87.
Caráter (Ideal de), 153, 186. Educação difícil, 128, 138, 139, 249,
Caráter (Mutabilidade do), 22, 27. 263.
Casamento, 119, 200. Egocentrismo, 270.
Castigo, 90, 95. EÍdética (disposição), 132.
Co-educação, 214. Elucubração, 275.
Compensação, 83, 109, 155, 201. Enfermidade cerebral, 29.
Comportamento (ou Conduta), 20, Escola, l 38, 217, 222.
30, 45, 62, 56. Escrúpulo, 276.
Compreensão, 42. Exclusividade, 116.
Compre�nsão (Formas de), 47, 235. Exemplo, 158.
Consciência, 181. '.exito, 161.
Consciência do problema, 17 4. Explicação sexual, 242.
C<lnsciência vital, 82, 85. Expressão, 35.
Confiança, 98, 116, 234. Eu (DeEcoberta do), 230, 231.
Conhecimento de si mesmo, 33, 279,
Constituição, 41, 79. Fatalidade, 156, 266.
Conversão, 23. Famílía, 114, 116.
Corpo-alma (Problema), 80. Fantasia, 109.
Criança, 73, 87. Fidelidade para consigo mesmo, 172,
Criança (posição entre os irmãos), Filhos bastardos, 89.
87. Filho único, 139.
Criança (vícios da), 89, 131, Fôrça, 170.

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302 RUDOLF ALLERS

Grnndezn, 170, 172. . Prnzcr,· 45, ü8.


Guia, 2.17, 2S2, 289. Prefc1·ência, 38, 50.
Prepotência (do homem), 200.
Herança, 40, 120. Primogênito, 143.
Heroísmo (ideul de), 163, 173 a 176. Profissão ( ou trabalho), 118, 121.
Humild:ide, 107, 113, 115, 174, Proiliido (Fazer o), 241.
Protesto masculino, 201,
Infantilismo psíquico, 157. Psicanálise, 225, 239, 246, 251, 252,
Imperntivo categórico, 3!J. 262, 2G3..
Impulso, 64. Psicologia individual, 51, G3, 84, 102,
Incapal'ida<le de decidir, 274. 108, 125, 201, 253, 258, 2G2, 295.
Inconsciente, 77. Psicologia pastoral, 289.
Insegur,rnça (ou incerteza), 75, 86, Puberdade, 139, 217, 218, 227, 231.
89, 230, 233.
Insuct!S'<O e derrota, 164. Reconhecimento (desejo ele), 160.
Isolamento, 177. Reflexo, 66.
Roubo infantil, 257, 259.
LiberJade, 4G.
Louvor, 98. Sensibilidade, 209, 273.
Segurança, 76, 84.
Martírio, 175, 271. Severidade, 90, 94.
l\fotei-nidade, 212. Sexo, 87, 189.
:Mêdo, 5:l, 127 a 132, 255, 265. Sexualidade, 100, 219, 236.
Menina (Educação da), 214. Sociedade, 64, 71, 112, 114, 116, 117,
Menina (Posições da), 198. 280, 285.
Mentira, 132, 150, Submissão, 179.
l\Iimo, 90, 101. Suicídio, 259.
l\Iulher, 189, 195, 203, 208. Supercompensação, 83, 109, 201.
Mulher (Emancipação da), 204. Superstição, 273.
l\Iulher (Emotividade da), 206, 207.
Timidez, 129.
Neurose, 8 8, 249, 261, 265, 268. Traição, 149.
ódio, 118. Vaidade, 177.
Orgulho, 136. Valor, 34, 36, 37, 44, 50, 55, 58, 59,
166, 172, 246.
Paralisia progressiva, 28. Valor próprio, 116, 129, 136, 172, 187.
Pecado, 134, 242. Valor vital, 69.
Personalidade, 18, 169. Vontade, 49, 51.
Personalidade múltipla, 26, Vontade de associação, 72, 102, 103,
Pessoa, 18, 29, 56 a 60, 123, 124, 153, 138.
177, 182, 184, 211, 237, 266. Vontade de poder, 63, 71, 72, 103,
Posição absoluta, 63, 108, 247. 160, 265.

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