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A Ilha Da Queimada Grande

O Sol intenso iluminava com clareza a diminuta Ilha do Farol feita de pedra clara que reluzia à
luminosidade diurna. Da praia, podia-se ver as linhas brancas das ondas se chocando contra a
ilhota vez ou outra sem violência em demasia, pois o mar estava calmo naquela manhã.
Barquinhos de pesca se preparavam para ir ao mar, estacionados na areia úmida daquela parte
do litoral de Itanhaém. Era incrível a quantidade de gaivotas e pombas que cercavam os barcos
à espera de algum petisco marinho, rodeando as embarcações ou empoleirando-se nelas.
Alguns cachorros faziam o trabalho de guarda, espantando os pássaros de vez em quando em
tentativas de capturar algum deles. O mormaço ainda não queimava a pele, mas tudo indicava
que o dia seria extremamente quente e cheio do tal mormaço – afinal, um sol tão forte como
aquele às 7h não poderia indicar outra coisa.

Liliana escondia os olhos escuros atrás de um Ray Ban modelo aviador – seus preferidos –,
adorando a sensação do vento nos cabelos escuros e longos. Fitava a ilha com muito interesse,
não a do Farol, mas a outra: a Ilha da Queimada Grande, um borrão longínquo sempre envolto
em ares densos e enevoados. Ela sabia que teria problemas feios se levasse adiante a ideia de
pisar naquela ilha infestada de cobras peçonhentas da pior espécie, mas precisava tentar.
Precisava saber, ver, o que tinha lá. Liliana apertava a sua bolsa lateral tentando sentir o
volume nela, o livro de sobrevivência em alto mar que lhe era tão precioso. Senti-lo com ela a
aliviava da tensão.

Muitos anos antes, aquele livro fora entregue à ela por um grupo de pescadores que
resgataram alguns restos do barco de seu irmão, cuja embarcação naufragara próximo à Ilha
Queimada. Nunca acharam o corpo e Liliana sabia que seu irmão serviu de alimento para os
animais marinhos, provavelmente. Não ligava para isso, sentia ser egoísmo querer de volta seu
irmão morto apenas para enterrá-lo em uma cova apertada, privando que ele se tornasse
parte de tantas vidas que nasceriam e continuariam vivendo por causa de seu corpo. Seu
irmão não era mais aquele corpo, aquela casca perdida no mar.

Entretanto, o que a fez voltar lá não fora uma sensação de que poderia encontra-lo vivo
naquela ilha, o que não aconteceria, obviamente, mas o que Liliana viu no livro envolto em um
saco plástico zip lock junto de um pedaço de carvão. Rodrigo rabiscou o livro inteiro,
escrevendo e desenhando por cima das imagens e textos usando o carvão. Um desenho
tremido da Ilha vista de baixo, do nível do mar, estampava a página de índice, de margem a
margem. Instruções de caminhos a seguir ilha adentro e mapas improvisados tomavam as
páginas seguintes até metade do livro, quando as coisas começavam a ficar esquisitas o
suficiente para Liliana suspeitar da sanidade do irmão. Poços profundos cheios de serpentes –
isso Liliana sabia que era totalmente plausível na Ilha da Queimada Grande, afinal esse era o
maior problema do lugar: cobras por toda a parte –, cavernas de teto alto, muitos vultos ou
pessoas vestidas com mantos, ela não sabia dizer.

A realidade dos desenhos e das informações ali descritas era o bastante para que Liliana cresse
no que Rodrigo gravou no livro fino, até que chegasse ao último desenho; uma fenda larga o
suficiente para se jogar alguns caminhões dentro, lado a lado, de onde uma densa fumaça saía,
espiralando caverna acima. Algo estava no meio da fumaça, mas Liliana não conseguia ver, o
desenho fora feito de modo que escondesse o que havia ali na fenda. Ela sentia a malignidade
do que quer que fosse aquele ser enegrecido e gigantesco que cheirava a sangue seco e fossa,
como Rodrigo descrevera no rodapé da página.
Qualquer um diria que eram loucuras de um náufrago sofrendo com o sol e a fome ou
envenenado por alguma cobra, mas Liliana acreditava em Rodrigo. Ela o conhecia melhor do
que ninguém, era seu irmão. Fora dificílimo achar quem a levasse até lá, afinal era proibido,
mas Liliana conseguiu: um pequeno barco de pesca a levaria até lá e voltaria três dias depois.
Ela havia juntado dinheiro o suficiente para pagar com fartura aos pescadores, pois sem algum
estímulo nenhum deles arredaria pé da praia. Sobrevoou a ilha um par de vezes, mas nada
pôde ver além de neblina e mar enegrecido ao redor.

-Moça, o barco tá pronto. -Avisou-a um dos pescadores que a levaria até a ilha. -Tem certeza
mesmo de que quer ir lá?

-Mas é claro, não se preocupe. Nada dará errado.

-Ah, é eu os outros pescadores estão com medo. É muita cobra, mar revoltado praqueles
lados...

-Não tem problema. Vocês não precisam descer do barco se não quiserem. -Liliana sorriu para
o pescador, encorajando-o.

-É perigoso brincar com aquela ilha. -O pescador respondeu em um tom mais tenebroso do
que o normal, totalmente oposto ao clima e lugar onde estavam.

-Meu irmão sabe disso. -Liliana respondeu em mesmo tom.

Naquele instante, a conversa beirando a hostilidade fora interrompida; o bote que os levaria
até o barco estava pronto. Liliana subiu no bote – mais canoa do que bote em si – e se
acomodou em um banquinho no meio, apertando a bolsa de encontro ao peito. Passar pela
zona das ondas fora complicado e, após isso, Liliana sentia a água salgada em seu rosto e
braços, respingada das ondas que batiam no bote. Alguns minutos depois, estava sã e salva do
bote dentro do barco que, para sua surpresa, não era tão pequeno quanto achava, talvez cinco
metros de uma ponta à outra... Liliana não sabia dizer com precisão. O barco oscilava com a
movimentação do mar, causando mal-estar instantâneo. Engoliu um dramin e esperou que o
bendito medicamento fizesse efeito, olhando fixo para a Ilha do Farol enquanto o barco ainda
não tomava o rumo da Queimada Grande.

-A moça sabe por que a ilha em esse nome?

Liliana se assustou com um segundo pescador indagando-a sobre a ilha. Olhou para o homem
queimado de sol, escondido atrás de uma barba de quase um palmo de comprimento. O boné
metido na cabeça escondia a parte superior do rosto do homem magricela ao seu lado.

-Não tenho certeza, senhor...?

-Júlio. É meu nome, prazer. -Ele sorriu, mostrando os dentes meio tortos, estendendo a mão
para ela.

-O prazer é meu, sou Liliana. -Ela pegou a mão do pescador, agitando em um cumprimento.

-Como eu dizia, a ilha tem esse nome porque uns pescadores meio tantan da cabeça botaram
fogo na costa da ilha pra fazer correr as cobras pra longe. Ao redor da ilha até que é bonito,
mas quando chega bem pertinho, parece que entra em outro mundo.

-Por que? -Liliana interessava-se pela conversa, querendo ouvir mais.


-O mar fica bravo e escuro em coisa de segundos, tem muita pedra ali e é fácil afundar o barco.
Aliás, você sabe que a gente pode ir preso se pisar na ilha, não sabe?

-Ah, a proibição não deve ser tão rígida assim...

-Vai por mim, melhor não pagar pra ver se é ou não é. Mas o que ta te levando lá?

-O barco...?

Júlio riu da ironia de Liliana, fazendo-a sorrir também. O enjoo passava e o barco já tomava o
rumo da Ilha, deslizando pela superfície clara do mar.

-O motivo. Qual é o motivo pra ir lá?

-Quero ver o lugar onde meu irmão passou os últimos dias, antes do barco dele se despedaçar
em alguma coisa e vagar em pedaços pelo mar.

-Sinto muito. Acontece bastante isso por ali.

-É mesmo?

-Infelizmente, é mesmo. Dizem que na ilha tem mais do que cobra, se é que me entende. Coisa
pior.

“Estamos chegando à algum lugar, finalmente” Liliana pensou.

-E pode me contar o que dizem?

-Conheci um pescador véio que passava ao redor da ilha todo dia, lançava as redes perto dela
porque ali tinha mais peixe. Ele sempre dizia ver coisas estranhas na ilha, mas não sabia
explicar o quê exatamente via. Todo mundo achava que era demência da idade, sabe, mas ele
era tão convicto no que falava, que até eu acreditava às vezes. Um dia ele achou que era bom
o suficiente pra ir contra o mar e ficou lá de noite, tentando encher mais ainda o barco. Teve
uma tempestade cruel e o barco dele foi jogado de uma onda à outra até que bateu nas pedras
e estilhaçou inteiro. Ele foi parar numa das duas ilhas que tem aqui, tava crente de que tinha
boiado até o Farol, mas deu a sorte do cão de ir parar na Queimada Grande.

-Coitado...

-Coitado mesmo, enlouqueceu mais do que já era louco. Quando achamos o homem, ele tava
boiando em um pedaço de tronco velho, falando sozinho e tudo o mais.

-O que ele falava? -Liliana precisava saber cada gota de informação que Júlio poderia dar.

-Ficava repetindo “ele tá na fumaça” até passar o choque. Contou que ficou perdido na ilha por
quase um mês, acha ele. Nas andanças pela ilha e, vou te contar, o santo daquele ali é forte
porque não foi picado uma vez que fosse, ele achou umas cavernas meio estranhas, umas
coisas...

-Que coisas?

-Olha, não dá pra acreditar muito nisso tudo. Ele era velho, tava caducando já e passar uma
coisa dessas sozinho deve ter piorado a cabeça do homem. Ele não conseguia explicar o que
viu na ilha, falava que o próprio Cão morava nela. Tava doido, doido. Às vezes a gente ainda o
vê andando na praia de manhãzinha, encurvado e falando com ele mesmo. Moça, lá perto tem
dois navios naufragados, coisa de mais de um século atrás. Quando a água ainda tá clara, dá
até pra ver. Agora imagina o que aquele lugar não faria com um barquinho desse? Entende o
perigo?

-Não vim aqui sem saber nada de nada, Júlio. -Liliana respondeu um pouco desagradada.

-Se o barco não afundar e alguém ver a gente, vai todo mundo preso.

Liliana ainda duvidava de que seria presa se a pegassem visitando a ilha, mas não deixaria de
tentar. Passaram pela Ilha do Farol, reluzindo com o sol matutino batendo nas pedras e, enfim,
entraram no ponto de neblina densa que cobria a Ilha da Queimada Grande naquele dia. O ar
rançoso parecia estagnado por séculos feito o de um mausoléu trancado por muito tempo. O
sol brilhava em algum ponto acima deles, reluzindo na neblina, mas impossibilitado de
atravessá-la. Navegaram em tais condições até que um solavanco violento jogou o barco para
um lado, fazendo a madeira ranger. Liliana fora arremessada para fora da amurada, sendo
segurada pela camiseta por Júlio para que não fosse ao mar. Ao invés de se segurar, Liliana
segurou a bolsa de modo bem firme, o que a fazia perder quase todo o equilíbrio, deixando o
trabalho de sua sobrevivência para Júlio. Quando o barco voltou para o lugar, Liliana se soltou
de Júlio e saiu da amurada, assustada. O barco ganhara velocidade e novamente se chocou
contra as pedras das quais Júlio a advertira mais cedo. Liliana se sentia culpada por expor os
homens daquele barco à uma situação de naufrágio, mas era tarde para lamentar. A superfície
do mar subia rapidamente, engolindo a embarcação com vontade. Os gritos dos homens foram
engolidos pela neblina e, minutos depois, pelo mar.

Liliana não soube dizer quando exatamente a água gelada e escura a engoliu, mas viu-se
perdida em um mundaréu de água, sozinha. Ela mantinha a cabeça acima da água, ainda
agarrada à bolsa, tentando se situar. A água não mais agitava-se, parecendo uma piscina cálida
de água salgada. Havia um quê a mais no sabor daquela parte do mar, mas Liliana não soube
distinguir com exatidão. Vez ou outra ela ouvia algum dos pescadores gritando ao longe,
chamando uns pelos outros, e gritou também, chamando por Júlio. A voz do homem parecia
vir da sua direita e foi para esse lado que Liliana nadou com força, apavorada por ficar no mar
sozinha.

Chegou à costa da Queimada Grande e agarrou uma das rochas, apavorada. Não ligava se suas
roupas e pele se rasgavam com os mariscos presos na pedra, queria salvar-se apenas. Ficou
atracada à pedra por um tempo considerável, tentando normalizar a respiração enquanto as
ondulações do mar a mexiam para cima e para baixo até que Júlio apareceu, encharcado e
exausto. Ele a puxou para cima e a ajudou até que estivessem salvos longe da costa.

-D-desculpe, Júlio. -Liliana murmurou.

Júlio nada disse, permanecendo calado ao lado e Liliana. Seguiram o som de vozes, andando
pela margem alta da ilha, até que chegaram à um grupo pequeno – menor do que quando
saíram da praia – encolhidos em um canto onde uma rocha alta e curva fazia as vezes de
abrigo. Um deles, cujo olhar desvairado pousou em Liliana com o ódio de mil sóis, se levantou
e andou rápido até ela, desferindo um tapa em seu rosto lívido de medo. Júlio o empurrou
para longe, gritando com o homem e tentando se pôr entre os dois. O pescador exaltado
desistiu da ideia de batê-la após uma sucessão de xingamentos e se afastou, voltando para o
abrigo de rocha. Liliana permanecia onde estava, ainda agarrada à bolsa encharcada,
tremendo de frio.
-A moça não é culpada do que aconteceu, chega dessa cara feia pra ela vocês tudo aí. -Júlio
rosnou.

-É culpada sim, nem vem falar isso não. -Outro respondeu.

-Quem aceitou vir pra cá foi a gente. Ela não obrigou ninguém, vocês que são gananciosos e
quiseram o dinheiro da moça.

Júlio pareceu encerrar a discussão com o que dissera e todos desviaram o olhar de Liliana, que
Júlio trouxe para perto de todos. Temiam ficar ali e temiam mais ainda o fato de que não viram
serpente alguma até aquele momento; não ver era pior do que estar cara a cara com uma.
Após algum tempo, decidiram andar pelo lugar à procura de um abrigo melhor, embora
abrigos naturais ali significassem “antro de jararaca-ilhoa”. Enquanto estivessem na Ilha da
Queimada Grande, nada de bom os aconteceria; ninguém os buscaria ali e, se buscassem,
sairiam envoltos em sacos para cadáver.

Acharam um ponto descampado e decidiram ficar por ali, onde poderia ver se alguma serpente
se aproximasse e, quem sabe, serem notados por algum helicóptero ou avião pequenino
desses que levam faixas de propaganda pela praia. O descampado parecia uma área que fora
incendiada algum tempo antes; não tinha nada além de pedras chamuscadas e restos de
vegetação transformada em carvão vegetal. O mar batendo na costa da ilha fazia o som
retumbar ao redor, vibrando vivo.

Cansada, Liliana recostou em Júlio e, antes que desse conta do sono, adormeceu.

Liliana tinha a vaga impressão de estar sendo carregada por sobre o ombro de alguém. Tinha
sono pesado e era difícil acordá-la. Tentou abrir os olhos, mas nada via e percebeu estar
vendada. Ouvia sons de passos pisando em vegetação e sibilares de cobras – maldição – por
todo lado. A boca amordaçada doía e Liliana, quando se deu conta do que poderia estar
acontecendo, desesperou-se. Tentou chutar quem a carregava, mas a pessoa era demasiado
forte, agarrou as pernas de Liliana e as segurou firme. Suas mãos e pés também se
encontravam amarrados até prender a circulação de sangue e Liliana se deixou resignar e ver
onde aquilo terminaria. Tinha mais chances de fugir quando pudesse ver por onde andavam
com ela.

Quando pensou que jamais parariam, Liliana foi jogada no chão. A pedra não estava fria como
na parte de fora da ilha, estava quente – beirando o fervente – e queimava a pele. A venda foi
arrancada de seus olhos e ela se colocou de joelhos, evitando encostar na pedra os pontos de
pele nua. Seu coração explodiria a qualquer momento com o medo e o susto de estar onde
estava.

Tudo aquilo não fora loucura de um náufrago.

A caverna que Rodrigo desenhara estava ali, erguendo-se ao redor de Liliana feito o estômago
de um monstro. Alguns pontos de fogo iluminavam-na, mostrando à garota o monte de
pessoas que esperavam alguma coisa, olhando-a com olhos mortiços e faces encovadas.
Pessoas magras em um nível de subnutrição, maltrapilhas e sujas, algumas tinham jararacas-
ilhoa em mãos ou ombros, outras empurravam corpos com esforço pela beira da fenda
colossal à frente, de onde saía uma fumaça maléfica e extremamente malcheirosa. O cheiro
era bem pior do que o descrito por seu irmão. Liliana sentiu o estômago se revirar,
desesperando-a, pois caso vomitasse, engasgaria com isso por conta da mordaça. Respirando
entrecortado para que o efeito do cheiro não a fizesse vomitar, Liliana cravou os olhos na
borda da fenda iluminada por um fogo longínquo em seu interior. Atrás da fenda, acima de
todos, um homem metido em um manto escuro de tecido muito velho se ergueu do chão onde
antes estava sentado, e começou a falar.

-A Serpente tem fome, disso todos sabemos. -A voz dele ecoava na caverna diante dos sons de
concordância dos demais. -Se não a queremos comendo nossos peixes ou invadindo nossas
praias, devemos saciá-la!

O homem empurrou um cadáver, que Liliana reconheceu como sendo o pescador que a
esbofeteou, para dentro da fenda. Quando o corpo caiu e o homem se ergueu, ela viu o rosto
de Júlio aparecer por baixo do capuz velho. Por um segundo, os olhos dele encontraram os
dela, cujo olhar estava repleto de traição e incredulidade. Um sibilar profundo encheu a
caverna e todos se calaram, colando-se às paredes da caverna. O som estava cada vez mais
perto e Liliana começava a sentir a vibração dele no chão onde estava ajoelhada, em seu peito
oco do sentimento aterrador e em suas mãos atadas. Ondas de calor assavam suas vias aéreas
e Liliana pensou que morreria com o calor antes de ver o que subia à superfície da fenda.

Primeiro, viu a língua bifurcada e preta testar o ar acima da fenda, parando alguns segundos na
direção de Liliana. Depois, um focinho amarelo de escamas gigantes apareceu, seguido de
olhos de supercílios baixos que a davam uma expressão de pura maldade. A cabeça da
serpente gigante era do tamanho da embarcação que levou Liliana até ali, os olhos de pupilas
em fendas tinham um belo tom de verde, mas a fitavam com um Quê bem diferente de
“beleza”; queriam arrancar dela a vida, a carne, os ossos.

O corpo longo e tão grosso quanto a largura da fenda foi erguendo-se devagar, deslizando pela
borda dela, engolindo um ou outro expectador. O calor que vinha daquela serpente era tanto
que a primeira camada de pele do rosto de Liliana começava a descamar e abrir feito plástico
derretido. Ela gritava e se sacudia, tentando se arrastar para longe, mas a pedra fervente a
torturava toda vez que Liliana se movia em cima dela. O som das escamas raspando no chão
vibrava os tímpanos e, quando se cansou de comer devotos, a Serpente voltou-se à Liliana,
abrindo a mandíbula devagar para expor as presas do tamanho de uma pessoa, de onde uma
ou outra gota venenosa pingava no chão e chiava com o calor.

-É toda para você, Serpente! -Júlio gritou extasiado.

E o bote certeiro veio.

Da praia, Analice observava a ilha, ansiosa por documentar tudo o que veria lá; aquilo seria
como ouro para seu trabalho de conclusão da faculdade de Biologia. Sua mochila pesava com
os itens de filmagem e alimentação e, vez ou outra, uma mecha de cabelo tingido de verde se
enrolava nas alças. A garota baixinha facilmente era confundida com uma criança, até que se
chegasse perto dela.

-Sabe por que a ilha tem esse nome? -Indagou o pescador que a levaria até lá.

-Ilha da Queimada Grande? -Analice indagou, sorrindo com a ansiedade.

-Isso. Uns doidos botaram fogo lá pra afugentar as cobras pra eles poderem atracar na ilha.
-Ah, que horror, coitadas. Aliás, eu sou Analice. -Ela estendeu a mão para ele,
cumprimentando-o.

-Sou o Júlio, prazer, moça!

Mich Graf

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