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LUIS SEPÚLVEDA

HISTÓRIA DE UMA
BALEIA BRANCA
LUIS SEPÚLVEDA

HISTÓRIA DE UMA
BALEIA BRANCA

Ilustrações de Paulo Galindro

Tradução de Helena Pitta


História de uma baleia branca
Luis Sepúlveda

Publicado em Portugal por


Porto Editora Literária – Lisboa
E-mail: dellisboa@portoeditora.pt

Título original:
Historia de una ballena blanca
© 2018, Luis Sepúlveda
by arrangement with Literarische Agentur Mertin Inh. Nicole Witt e
K.,
Frankfurt am Main, Germany

Ilustrações e paginação: Paulo Galindro


© 1997, Fischer Taschenbuch Verlag GmbH, Frankfurt am Main

1.ª edição: maio de 2019

Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser


reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer
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DEP.LEGAL 453874/19
ISBN 978-972-0-03147-1

A cópia ilegal viola os direitos dos autores.


Os prejudicados somos todos nós.
Aos meus filhos, João e Miguel… o meu mundo seria tristemente
monocromático sem eles.

Paulo Galindro
«E as baleias foram
espreitar Deus entre
as estrias dançantes das águas.
E Deus foi visto pelo olho de uma baleia.»

Homero Aridjis, El ojo de la ballena

«O olho da baleia regista de longe o que vê nos homens. Guarda


segredos que não podemos conhecer.»

Plínio, o Antigo, História Natural


I
A antiga linguagem do mar
Numa manhã do verão austral de 2014, muito perto de Puerto
Montt, no Chile, uma baleia encalhou na costa de seixos. Era um
cachalote de quinze metros de comprimento e o seu corpo, de uma
estranha cor cinzenta, não se movia.
Alguns pescadores acharam que talvez se tratasse de um
cetáceo desorientado; outros sugeriram que, provavelmente, tinha
ficado intoxicado com todo o lixo que se atira para o mar. E um
silêncio carregado de tristeza foi a homenagem de todos os que
rodeávamos o grande animal marinho sob o céu cinzento do Sul do
Mundo.
O cachalote ficou ali umas duas horas, embalado suavemente
pelas ondinhas da baixa-mar, até que uma embarcação se
aproximou, fundeou a pouca distância e alguns homens se atiraram
à água, munidos de cordas grossas que amarraram à barbatana
caudal, ou cauda do animal, e depois, muito lentamente, a
embarcação deu a proa a sul, arrastando o corpo sem vida do
gigante marinho.
– O que farão com a baleia? – perguntei a um pescador que,
com o seu gorro de lã nas mãos, via afastar-se a embarcação.
– Respeitá-la. Quando chegarem ao mar alto, passada a saída
sul do golfo, abrem-lhe o corpo, esvaziando-o para que não flutue, e
deixam-na afundar-se na escuridão fria do oceano – respondeu em
voz baixa o pescador.
Depressa a embarcação e a baleia desapareceram entre o perfil
incerto das ilhas, e as pessoas afastaram-se da costa. Mas ficou um
menino, a olhar fixamente para o mar.
Aproximei-me dele. Os seus olhos de pupilas escuras
perscrutavam o horizonte e duas lágrimas desciam-lhe pelo rosto.
– Eu também estou triste. És daqui? – perguntei, em jeito de
cumprimento.
O menino sentou-se na praia de seixos antes de responder, e eu
fiz o mesmo.
– Claro. Sou lafkenche. Sabes o que significa? – perguntou.
– «Gente do mar» – respondi.
– E tu, porque estás triste? – quis saber o menino.
– Por causa da baleia. Que lhe terá acontecido?
– Para ti é uma baleia morta, mas para mim é muito mais do
que isso. A tua tristeza e a minha não são iguais.
Permanecemos em silêncio durante um tempo medido pelas
ondas que iam e vinham, até que ele me ofereceu um objeto maior
do que a sua mão.
Era uma concha de loco, um caracol marinho muito apreciado,
com uma concha exterior rugosa, pétrea, e o interior branco como
uma pérola.
– Encosta-a ao teu ouvido e a baleia falará contigo – disse o
pequeno lafkenche, afastando-se com grandes passadas pela praia
escura de calhaus.
Foi o que fiz. E, sob o céu cinzento do Sul do Mundo, uma voz
falou comigo na velha língua do mar.
II
A memória da baleia fala do homem
O homem sempre teve medo do meu tamanho e pena de não
poder possuir-me. Para que serviria um animal tão grande?,
interrogou-se o homem desde o início dos tempos, e eu observei-o
desde que se aproximou do mar pela primeira vez e descobriu que o
seu corpo não estava preparado para conhecer as profundezas da
água, mas que podia servir-se de qualquer coisa que flutuasse para
desafiar o ímpeto das ondas.
Então vi o homem deslocar-se na superfície da água em cima de
quatro tábuas frágeis, entreolhámo-nos, mantendo uma distância
prudente, o homem com receio, eu com curiosidade e assombro
pelo seu esforço. Admirei a sua coragem e a perseverança de
enfrentar a ondulação, navegando em embarcações que não
aguentavam o embate contra os recifes, nem o roçar dos corais
afiados quando entrava em águas pouco profundas.
Acabará por aprender, dizia para comigo ao vê-lo obstinado e
tenaz, embora navegando sempre com costa à vista, receoso do
desafio do horizonte.
O homem depressa aprendeu a deslocar-se no mar e, tal como
eu – a baleia da cor da lua que recebeu de outra baleia, e esta de
outra, o segredo das marés e das correntes –, partilhou o que
aprendeu e multiplicou-se no mar. As embarcações tornaram-se
maiores, dominaram a arte de capturar o vento em superfícies leves
a que chamaram velas, e não tardaram a descobrir o céu e as
estrelas que lhes indicaram o rumo. Então atreveram-se a navegar
na escuridão e deixaram de temer o horizonte.
Às vezes encontrávamo-nos na vasta solidão oceânica e eu, a
baleia da cor da lua, vinha à superfície respirar, via-os debruçados
sobre a amurada dos seus navios e não sentia ameaça, mas
assombro, nesses navegantes que apontavam para mim,
exclamando: «Ali está a baleia branca!»
Nunca me aproximei muito das suas embarcações. Respeitava a
coragem deles e considerei-os também habitantes do mar.
Assim decorreram as eras, o tempo circular marcado pelo frio
ou pelo calor trazidos pelos ventos e pelas correntes. Os homens
dedicados ao seu destino incerto, e as baleias sulcando o lar salobro
do início ao fim da sua vida.
III
A baleia fala do seu mundo
Eu, a baleia da cor da lua, moro no mar limitado pela terra,
onde começa a claridade do dia, e pelo horizonte, onde o sol
mergulha para dar lugar às estrelas. A água é fria, sulcada por
correntes gélidas que chegam dos confins longínquos onde tudo é
branco e o mar se torna uma imensa rocha cor de sal, que cresce
quando as noites são muito longas e decresce quando os dias
parecem não ter fim.
Na terra firme que limita o mar onde vivo há poucos homens e
os bosques erguem-se até quase tocarem as margens da costa.
Costumo descer até aos abismos submarinos, inatingíveis a outras
espécies, e os meus grandes pulmões permitem-me ficar longos
períodos sem subir para respirar, até emergir das profundezas e,
pelo orifício do meu dorso, expirar o ar que respirei e voltar a encher
os pulmões para, mais uma vez, mergulhar.
Desloco-me na escuridão submarina, da minha cabeça volumosa
lanço um estalido que avança e que me indica a presença de
obstáculos quando o recebo de volta. É um estalido estridente que
também serve para atordoar a minha presa favorita, a lula. Quando
me movo quase à superfície, um dos meus olhos observa a costa e
os seus pormenores e o outro enche-se de horizonte.
Quanto mais perto me encontro das águas mais frias, mais a
terra firme se parte em ilhas, com canais de escuridão profunda
entre elas, e mais a costa se abre em fiordes de altos rebordos
escarpados. As suas águas tranquilas são o lugar indicado para
cortejar as fêmeas e para o acasalamento.
Eu, a baleia da cor da lua, sou um macho da espécie dos
cachalotes, da estirpe dos fiordes e das ilhas. Num dia já impreciso
no segredo do tempo, outros cachalotes machos da cor da lua
emergiram das profundezas, em saltos que os deixaram suspensos
no ar, caíram sobre os dorsos provocando explosões de espuma,
antes de mergulharem bateram na água com as suas barbatanas
caudais, desceram quase a tocar o profundo leito marinho e
surgiram novamente em saltos velozes que revelaram o vigor dos
seus corpos suspensos no céu. A destreza do grupo de machos
impressionou a fêmea que acasalou com todos e que mais tarde me
pariu – porque eu, o cachalote da cor da lua, nasci nas águas frias
que rodeiam uma ilha a que os homens chamam Mocha, e sou o
herdeiro da força e do vigor de todos os machos do meu grupo.
Sorvi o leite espesso da minha mãe, protegido por ela e por todos os
machos, até atingir o tamanho que me tornou a maior criatura do
oceano e aquela que vive em completa solidão.
O meu mundo é o silêncio. Nenhum ser geme, grita, grunhe ou
guincha sob a superfície da água e só nós, os seres maiores,
interrompemos por vezes o silêncio. Eu, que sou da espécie dos
cachalotes, faço ouvir o meu estalido; as baleias-azuis e as baleias-
piloto orientam-se e mostram o caminho com uma série de cantos
melodiosos que alegram a solidão noturna, e os golfinhos velozes
reúnem-se para as suas longas viagens com assobios que mantêm o
grupo unido. Nada mais se ouve nas profundezas marinhas. À
superfície, no entanto, é incessante a voz do vento, o bater das
ondas, o grasnido das gaivotas e dos corvos-marinhos e, às vezes, a
voz do ser menos capaz de viver no mar. O homem.
IV
A baleia fala do que aprendeu com o homem
No mar alto, a muita distância da costa, vi como navegava um
grande navio dos homens. Era uma bela embarcação de três
mastros que, apontados para o céu, sustinham as velas enfunadas
pelo vento. Navegava com graciosidade, lidava bem as ondas e, no
convés, os tripulantes dedicavam-se à tarefa de manter o rumo.
Mergulhei, avancei e emergi até ficar perto do navio, também a
sotavento, para os acompanhar na travessia. Viram-me e ouvi os
seus gritos de assombro, «Uma baleia branca!», mas um apito
estridente afastou-os da amurada e fê-los regressar às suas tarefas.
Não era a primeira vez que me aproximava de uma embarcação
dos homens e sempre me alegrei com os seus gritos de admiração
e de assombro. Por mais de uma vez desejei saudá-los, saltando e
batendo com a barbatana caudal antes de mergulhar. Surpreendeu-
me a atitude de quem ia no navio, interrogando-me se já não
estariam habituados à presença das baleias. Não era raro ver
navegar as suas embarcações em direção a águas quentes ou frias,
pois, onde termina a terra firme, este mar onde vivo junta-se a outro
a que nunca fui nem irei, porque a fúria da marulhada é superior a
qualquer força e o risco de acabar despedaçado contra os recifes é
muito grande. Cabo Hornos, chamam os homens a esse lugar que
une os mares e, ao dizê-lo, estremecem.
Apesar da indiferença dos navegantes, decidi acompanhar o
navio durante um trecho e, então, ao emergir pela quarta vez, vi
outra embarcação a navegar na mesma direção.
Tratava-se também de um navio soberbo e as suas velas
inchadas faziam-no navegar mais rapidamente do que o primeiro,
que depressa alcançou. Perguntei a mim mesmo como seria aquele
encontro entre homens no mar. Quando nós, baleias, chamamos
umas pelas outras, para o acasalamento ou para cuidar das fêmeas
que estão a parir e das crias que nascem, movemo-nos em círculos,
saltamos, deixamo-nos cair de costas e deslocamo-nos quase à
superfície com o movimento das barbatanas caudais. A alegria do
encontro manifesta-se nos bufos, ao expelirmos o ar dos pulmões,
nas rotações sobre os nossos próprios corpos, nos cantos, assobios
e estalidos. O que fariam os homens para manifestar a alegria do
encontro?
Quando o navio mais veloz alcançou o primeiro, um ruído tão
forte como a zanga das nuvens escuras durante as tempestades, tão
aterrador como o raio que rasga o ar e embate contra as rochas ou
contra as ondas, foi a saudação isenta de qualquer alegria feita
pelos homens.
Nos costados de ambas as embarcações espreitaram negras
bocas que cuspiam fogo e repetiam incessantemente aquele ruído
pavoroso. Rapidamente o primeiro navio começou a arder, lançando
estilhaços em chamas que caíam ao mar, os mastros que seguravam
as velas cederam e tombaram entre os gritos de ódio, medo e
desespero dos homens que saltavam borda fora.
A primeira embarcação, meio destruída, não tardou a afundar-
se, e o segundo navio afastou-se por entre a gritaria alvoroçada
daqueles que celebravam a vitória. Os corpos de muitos vencidos
jaziam na água; alguns tentaram manter-se à tona, mas acabaram
por sucumbir ao cansaço e tornaram-se também manchas imóveis à
mercê do vai-vém das ondas.
Achei muito estranho o comportamento dos homens no seu
encontro marinho. A pequena sardinha não ataca outra sardinha, a
tartaruga lenta não ataca outra tartaruga, o tubarão voraz não ataca
outro tubarão. Parece que os homens são a única espécie que ataca
os seus semelhantes e não me agradou o que com eles aprendi.
V
A baleia fala do encontro com outra baleia
Num dia de céu aberto e mar calmo, nadei até águas mais frias
em busca de bancos de lulas. Num olho tinha a costa longínqua e,
no outro, o mar unido ao céu num horizonte livre de nuvens.
Num dos mergulhos, chegou-me o canto familiar de uma baleia-
piloto; mas não era o canto que chamava o grupo para águas de
abundância, nem o canto triste do luto.
Quando morre a cria de uma baleia-piloto, a mãe ou a mãe da
mãe, ou uma das baleias mais velhas que já não podem parir, agarra
na pequena baleia com a boca e desloca-se com ela durante dias,
até que o corpo da cria perde firmeza e se vai desprendendo. Só o
solta quando sabe que o corpo não ficará a flutuar à mercê da
vontade das correntes e que se unirá ao silêncio das águas mais
profundas. Outras baleias-piloto acompanham-na, repetindo o canto
do luto que mantém a coesão do grupo e que também serve de
ameaça contra os predadores que queiram atacar a baleia que
transporta a cria morta, enfraquecida pelos dias sem comer.
O canto desta baleia-piloto não era, portanto, nem de chamada
nem de luto. Era um canto de dor. Mergulhei, lancei o meu estalido
que, sem forma nem peso, avançou pelas profundezas e assim, ao
recebê-lo de volta, me orientou na sua direção.
Encontrei-a com meio corpo à superfície. No dorso via-se uma
vara com um pedaço de corda ligado a uma anilha.
Movendo-me lentamente, coloquei-me ao seu lado e procurei
um dos seus olhos para que se refletisse no meu. As baleias de
todas as espécies têm olhos pequenos para a dimensão dos seus
corpos e comunicam com cantos, estalidos, mas, sobretudo, com os
olhos. Neles se reflete o que vemos e também o que vimos.
No olho da baleia-piloto vi que a vara cravada no dorso se
chamava arpão e era uma invenção dos homens.
No olho da baleia-piloto vi que o arpão lhe tinha perfurado os
pulmões e que ela mal conseguia respirar.
No olho da baleia-piloto vi um aviso: os homens começavam a
caçar-nos, muitas embarcações sulcavam o mar com a intenção de
nos matar e os seus tripulantes chamavam-se baleeiros.
Nada mais vi no olho da baleia-piloto porque o silêncio das
profundezas reivindicou o silêncio do ar dos seus pulmões feridos.
Depressa ouvi o canto do luto, repetido por outras baleias da sua
espécie, que se aproximaram, mergulharam e reapareceram à
superfície, num movimento de tristeza circular que duraria todo o
tempo que o mar exige para se apropriar definitivamente daquele
corpo.
VI
A baleia fala dos motivos dos homens
Depois do meu encontro com a baleia-piloto, voltei para o meu
grupo nas águas próximas da ilha Mocha. Dois machos e várias
fêmeas moviam-se compassadamente, protegendo uma fêmea que
amamentava a sua cria, nascida durante a minha ausência.
Aproximei-me do macho maior, aquele que interrompera a sua
solidão com inúmeras chamadas para o acasalamento ou para o
cuidado das crias. A sua idade era marcada pelas centenas de
parasitas que lhe cobriam o corpo, pelos minúsculos caranguejos
planos e perceves, hóspedes que se colam a nós sem nos
incomodarem, porque se alimentam das algas que também aderem
à nossa pele e, quando permanecemos à superfície, servem de
alimento às aves marinhas.
Respeitosamente, pus-me junto dele e procurei o seu olho, para
que ele visse o que eu vira e me desse uma resposta urgente que
me fizesse compreender.
Nada do que eu vira era novidade para ele. Tal como eu, ele,
um cachalote da cor da lua, e muitos dos que integravam a longa
corrente da nossa existência como espécie, tinham visto os homens
atrever-se a desafiar o mar, primeiro em pequenas embarcações,
mais tarde noutras maiores, até deixarem de recear o horizonte e
sulcarem as águas cada vez com maior frequência.
O olho do velho cachalote falou-me de uma viagem na
companhia de uma baleia-azul, a primeira a avisá-lo do perigo dos
baleeiros. O velho cachalote quis saber mais e a baleia-azul exortou-
o a deslocar-se até águas mais quentes, para se aproximar da
morada dos homens.
Avançaram muito perto da superfície do mar. Emergiam para
respirar e voltavam a mergulhar, assim, muitas vezes, até chegarem
diante de uma costa que o velho cachalote achou estranha, mas
bela, porque parecia que as estrelas tinham decidido ser a
companhia incandescente dos homens.
Então a baleia-azul explicou-lhe que não eram estrelas o que
brilhava, mas algo a que os homens chamavam lâmpadas, e que
nelas ardia uma parte de nós.
Que não nos caçavam para se alimentarem da nossa carne, mas
pelo óleo dos nossos intestinos que, ao arder, iluminava as suas
casas. Que não nos matavam por medo da nossa espécie, e sim por
recearem a escuridão e as baleias possuírem a luz que os libertava
das trevas.
Os homens, inimigos implacáveis apesar de tão pequenos,
pensei. Mas no olho do velho cachalote vi que no litoral, para lá da
ilha Mocha, havia outros homens, diferentes, chamados lafkenche ou
Gente do Mar.
Eles tiram da beira-mar aquilo de que necessitam para o seu
sustento e, com um ritual antigo, agradecem a generosidade do mar.
Depois de recolherem os alimentos, alguns deles dirigem-se ao
bosque próximo, a que chamam lemu, e pedem-lhe licença para
apanhar troncos e ramos que depois levam para a praia, onde
acendem fogueiras que engalanam com cintilações a água
irrequieta. Então, os golfinhos, e nós, as baleias, aproximamo-nos e
saudamos a Gente do Mar com saltos que eles recebem com gritos
alegres.
Mas nem todos os homens são como a Gente do Mar.
Nós e os golfinhos ouvimos as suas vozes preocupadas com a
presença cada vez maior de outros homens vindos de lugares
distantes, de estranhos que tiram do bosque, da terra e do mar tudo
o que querem sem pedir primeiro e sem nenhuma demonstração
posterior de gratidão. Os baleeiros pertencem a essa espécie de
homens chegados do mundo da ingratidão e da cobiça.
«De modo que chegou o momento de abandonarmos estas
águas e desaparecermos na imensidão do oceano», disse o olho do
velho cachalote. «Assim que a cria deixar de mamar iremos para
longe, para muito longe, esperar.»
Do meu olho alarmado perguntei-lhe por que esperaríamos.
«Por ti», disse o olho do velho cachalote, e a sua pálpebra
fechada deu a entender que não haveria mais respostas.
VII
A baleia fala de um grande segredo
Sucederam-se as estações do ano, os dias foram-se tornando
mais curtos e avaros de luz, o voo das aves que migravam para
zonas mais quentes e as chuvas intensas que desvaneciam os
contornos da costa coincidiram com o desmame da cria.
Com um tamanho que atingia dois terços de um cachalote
adulto, estava pronta para empreender a grande viagem em direção
ao mar infinito.
Eu também me sentia forte e desejoso de águas profundas,
disposto à grande solidão que só iria interromper-se quando, de
qualquer distância, me chegasse o estalido do velho cachalote, ao
qual acorreria, apressado, porque o grupo convocado me esperava,
embora eu não soubesse porquê nem para quê.
As fêmeas, os machos e a cria já crescida avançaram
separadamente até desaparecerem no vasto oceano. Só eu e o velho
cachalote permanecemos nas águas do nosso lar.
Desta vez foi ele que se aproximou, fixando um dos seus olhos
num dos meus.
«Queres saber porque te esperaremos», começou a dizer o olho
do velho cachalote, «e eu vou revelar-te um segredo, o maior
segredo do mar; mas antes tenho de te contar algumas coisas que
aprendi com outra baleia tão velha como eu, e esta, de outra tão
velha como ela.
»Tu não empreenderás a grande travessia ou, pelo menos, a tua
viagem não será ainda tão longa. Como sabes, nessa ilha a que os
homens chamam Mocha, só vivem aves e pequenos animais do
bosque. Como também sabes, nenhuma baleia ou golfinho mora nas
águas que separam a ilha da costa, e não é por as suas águas serem
baixas ou sulcadas por correntes que podem arrastar-nos até aos
rochedos.
»Os homens que habitam a terra firme, os lafkenche, a Gente
do Mar, por alguma razão que escapa a tudo o que conhecemos e
compreendemos, estavam avisados da vinda dos estranhos,
daqueles que tudo tiram mesmo sem necessitarem, dos baleeiros
que nos matam para se apropriarem dessa luz apagada nos nossos
corpos que eles sabem acender.
»Os lafkenche, a Gente do Mar, sabem que virão mais, que a
sua cobiça será maior e que não haverá força ou poder que se lhes
oponha. Por isso se preparam, também, para uma longa viagem que
os levará para lá do horizonte, até onde nunca chegou nenhuma
baleia, por mais forte que fosse, até a morada do sol, até onde os
estranhos, não conseguirão chegar, por mais velozes e grandes que
sejam as suas embarcações. Mas apesar da sua determinação, os
lafkenche também são homens: não conseguem nadar muito tempo
sem ficarem extenuados, não conseguem mergulhar para adquirir
velocidade, não sabem orientar-se nas profundezas nem são capazes
de emitir os estalidos que nos alertam para os obstáculos por entre
a escuridão. Mas todos eles nascem sabendo qual o rumo preciso
para chegar a esse lugar para lá do horizonte, esse lugar onde os
estranhos, os invasores, os baleeiros não conseguirão chegar.
»Nas águas entre a ilha Mocha e a costa moram quatro baleias
fêmeas, muito velhas, que ali estão desde o início dos tempos. São
as primeiras, as únicas e as últimas baleias trempulkawe. Só as
podemos ver à noite porque durante o dia são quatro velhas
lafkenche. Mas assim que o sol mergulha na sua longínqua morada,
elas aproximam-se da beira-mar, entram na água, mergulham e,
passado algum tempo, emergem transformadas em quatro baleias
cujo destino é preparar tudo para a longa viagem.
«Tudo isto é confuso para ti?», prosseguiu o olho do velho
cachalote. «Tens de saber que entre as baleias e os lafkenche existe
um pacto que remonta à antiguidade do mar. Nós, baleias, somos
grandes e fortes, eles são pequenos e frágeis; nós podemos
percorrer grandes distâncias, mas só eles conhecem o rumo para
chegar a esse lugar onde ficarão a salvo.
»Quando uma baleia morre, sentimos tristeza e acompanhamos
o seu corpo até que este se afunda. Quando um lafkenche morre,
também eles sentem angústia, tristeza, e esperam pela noite para o
levarem até à beira-mar, porque sabem que uma das quatro velhas
baleias, uma das trempulkawe, o levará até à ilha. Aí, como o
caranguejo quando muda de casca, o morto despoja-se do seu
corpo, torna-se leve como o ar e espera com os da sua estirpe que o
precederam na morte.
»Também chamam a essa ilha ngill chenmaywe, lugar de
reunião antes do início da grande viagem.
»Um dia o último lafkenche há de morrer e, como estará só, fá-
lo-á no local exato em que a onda mais pequena toca na praia. Será
à noite, para facilitar a última viagem das quatro velhas baleias, das
trempulkawe que o levarão até à ilha. Ter-se-ão reunido, finalmente,
todos os da sua estirpe que, leves como a brisa, subirão para o
dorso das quatro velhas baleias e darão início à travessia. Todas as
baleias e todos os golfinhos as acompanharão, afastando qualquer
ameaça e fornecendo-lhes a mais poderosa escolta.
»A tua missão, jovem cachalote da cor da lua, será viver nas
águas entre a ilha Mocha e a terra firme, cuidando das quatro velhas
baleias. Nós esperar-vos-emos na vastidão do oceano para a viagem
final.»
Assim determinou o velho cachalote, mergulhando
imediatamente e batendo na água com a barbatana caudal.
Eu, o cachalote da cor da lua, enchi os meus pulmões de ar e
dirigi-me para a ilha.
VIII
A baleia fala dos seus dias entre a ilha Mocha e
a costa
O tempo que passei vogando pelo largo canal que separa a ilha
Mocha da costa decorreu com a lentidão das marés nos dias de
calmaria. Não me faltou alimento, pois as correntes transportavam
bancos de lulas e polvos que saíam dos seus esconderijos no fundo
marinho. Emergia com a claridade do dia e, deslocando-me com
metade do corpo fora da água, observava com um olho os lafkenche
da margem. Com a baixa-mar, eles apanhavam mexilhões, amêijoas,
arrancavam lapas das rochas ou iam até aos pequenos muros de
pedra que construíam perto do mar, erguendo com alvoroço os
peixes que ficavam presos com a descida da maré.

O outro olho mirava a ilha de vegetação espessa e árvores altas.


Cobria-a um grande silêncio, denso como a névoa, só interrompido
pelo grasnido das aves marinhas. Às vezes, os lobos-marinhos
descansavam numa praia de calhaus e brincavam, seguros da
ausência do homem.
À noite procurava a presença das quatro velhas baleias e, não
as vendo, cheguei a pensar que talvez o velho cachalote se tivesse
enganado e não houvesse motivos para que eu continuasse ali. Mas
numa noite de lua cheia e preia-mar ouvi os lamentos, a tristeza dos
lafkenche, e pude ver que alguns deles transportavam o corpo de
um morto até à beira-mar.
Pousaram-no com a cara virada para o céu, de braços abertos,
segurando em cada uma das mãos cinco pedras que refletiam o
brilho da lua e das estrelas.
«Trempulkawe!», gritaram na direção do bosque vizinho,
retirando-se. Quando o último desapareceu no interior da sua casa,
as quatro velhas mulheres surgiram entre a espessura do bosque e,
com o andar cansado da sua idade incerta, dirigiram-se para a praia.
Nuas, com os longos cabelos brancos a arrastar, chegaram junto do
corpo e, numa algazarra, retiraram as pedras brilhantes das mãos do
morto. Uma delas entrou impetuosamente na água, mergulhou, e
pouco depois emergiu uma baleia pequena, semelhante a uma
baleia-piloto de pele escura, que se aproximou da margem, onde as
outras três lhe colocaram o corpo do morto sobre o dorso.
Depois as três baleias mergulharam e, assim, todas avançaram
rente à água até à ilha, batendo na superfície com as barbatanas
caudais e quebrando o reflexo da lua no mar.
Os corpos delas tinham a idade de todos os tempos. Neles não
se via nenhum espaço livre de parasitas, de lapas, de caranguejos,
de estrelas-do-mar, de perceves, de moluscos de todos os tamanhos
e cores e de centenas das mesmas pedras brilhantes com que o
lafkenche morto tinha pago a sua viagem até à ilha.
Cumprida a sua missão, as quatro velhas baleias empreenderam
o regresso à terra firme; encolheram assim que chegaram à
margem; os seus dorsos diminuíram de tamanho e transformaram-
se em costas fatigadas; a forte barbatana caudal, em pernas magras
e fracas; arrastando os longos cabelos brancos, encaminharam-se
com passos lentos até à escuridão do bosque e desapareceram.
Muitas vezes observei a viagem das velhas baleias, levando os
corpos da costa à ilha. Mas também vi que os lafkenche eram
numerosos, que tinham crias que cresciam com lentidão e alegria, e
isso revelou-me que me esperava uma longa tarefa de vigilância até
que o último sobrevivente da Gente do Mar estivesse preparado para
a grande viagem.
IX
A baleia fala da sua espera
As estações do ano sucediam-se umas às outras, como os dias
de tempestade aos dias de calma. Às primeiras sombras da noite,
nadava pelo estreito entre a costa e a ilha, de um extremo ao outro,
alerta na minha solidão, ou acompanhava as viagens funerárias das
quatro velhas baleias, que saudavam a minha presença com bufos
de gratidão, quando emergiam para expelir o ar dos pulmões.
Com a alvorada, quando o único habitante do céu é o astro
chamado estrela de alva, nadava para longe do canal e entrava no
mar alto. Aí, extenuado pela noite de vigília, enchia os pulmões de
ar, distendia o corpo sem fazer qualquer movimento até ficar na
vertical, com a minha grande cabeça quase à superfície, a pouca
profundidade, e adormecia.
E sonhava.
Sonhava com esse lugar para onde iriam todas as baleias,
guiadas pelos lafkenche. Na morada do sol, o mar era sempre
transparente e calmo, os bancos de lulas, inesgotáveis, o
acasalamento não seria dificultado pela ondulação forte e, livres de
ameaças, a grande baleia-comum, o cachalote, a baleia-franca-
austral mostrariam a imponência dos seus corpos, a par da baleia-
de-minke, a mais pequena de todas nós. O mar seria generoso em
seres minúsculos, para gáudio da baleia-azul, da baleia-corcunda e
de todas as baleias de barbas, que abririam as suas bocas para
deixarem entrar a água salgada, expulsando-a através das barbas e
mantendo o saboroso krill nas gargantas. Os golfinhos de dorso
prateado e o narval de longo canino disputariam sem conflitos os
peixes planos que se cobrem de areia no fundo.
Às vezes, no torpor do sono, sentia a presença próxima de
embarcações, mas na vertical, só com uma pequena parte da cabeça
à superfície, como uma rocha, os homens não me viam e eu podia
ouvir as suas vozes.
Ouvindo-os da quietude e do silêncio, soube então que eram
muitas as embarcações que navegavam para nos matarem,
perseguindo não só o nosso óleo para as suas lâmpadas, mas
também a gordura que protegia os nossos corpos, e algo muito
valioso a que chamavam âmbar-cinzento, utilizado para fixar na
água doce o aroma das flores e das ervas. Impregnavam os corpos
com essa água aromática para esconderem os seus verdadeiros
odores.
Quando o sol, de regresso a casa, tingia o horizonte de
vermelho, eu voltava ao canal entre a ilha e a costa para cumprir a
minha missão de vigilante, de protetor das quatro velhas baleias, e
esperar.
X
A baleia fala do seu primeiro encontro com os
baleeiros
Numa noite de tempestade, os lafkenche cumpriam o ritual de
deixar um morto à beira-mar, fustigada pela chuva e por ondas
fortes. Deixaram-no, como sempre, com os braços abertos e, em
cada mão, as cinco pedras que refletiam a luz intensa dos raios que
caíam sobre a ilha.
Sob o aguaceiro gritaram: «Trempulkawe!» E, mais uma vez, as
quatro velhas mulheres de longos cabelos brancos repetiram a
cerimónia de uma delas se atirar à água, emergindo transformada
em baleia, e de as outras três, pousando o morto no seu dorso, se
lançarem também ao mar embravecido.
Eu escoltava o trajeto das quatro velhas baleias com a sua
carga. Com um olho vi-as sulcar as grandes ondas e, com o outro, vi
o navio iluminado pela tempestade a entrar no canal.
Primeiro pensei que se tratava de uma embarcação à procura de
um refúgio na ilha, para evitar a tempestade, mas o grito de um
homem impôs-se ao ruído do mar e do vento.
«Baleias à proa!», gritou o homem, e na embarcação içaram
outras velas, para apanhar mais vento, e caíram-nos em cima.
Eu e as quatro velhas baleias estávamos a meio do estreito
entre a costa e a ilha. Com um olho vi-as avançar, lentas e
ignorantes do perigo. Com o outro olho vi aproximar-se a
embarcação dos baleeiros.
Nunca os enfrentara e não sabia muito bem o que fazer. A
minha primeira tentação foi investir, mas a distancia entre mim e o
barco não me permitia mergulhar o suficiente para tomar impulso,
velocidade e força e, nessa altura, recordei o que ouvira aos
lafkenche.
Eles garantiam que os estranhos, na sua cobiça, queriam
sempre mais, e eu, o cachalote da cor da lua, pelo meu tamanho,
era maior do que as quatro baleias velhas.
Mergulhei, avancei em direção ao navio e um raio iluminou o
céu quando emergi de um salto que me permitiu ver os homens no
convés da embarcação, debruçados imediatamente sobre a
amurada.
«Baleia a estibordo, uma muito grande!», avisou um deles.
Bati três vezes na água com a barbatana caudal, para os
desafiar, e consegui que desviassem o rumo e orientassem a proa na
minha direção.
Permiti que se aproximassem antes de mergulhar novamente,
reaparecendo com outro salto que deixou todo o meu corpo fora da
água, para que me vissem bem na escuridão da noite e da
tempestade. Assim, aparecendo e desaparecendo, ficando às vezes
imóvel na superfície, consegui que a embarcação me seguisse até
sair do canal e entrar em mar aberto.
Com a alvorada a tempestade amainou, mas a perseguição dos
homens continuava. A embarcação era grande e, por isso, lenta nos
seus movimentos, não conseguindo competir com a minha
habilidade para mudar de rumo debaixo de água e para os
surpreender, aparecendo ora num, ora noutro costado do navio.
Depois de mergulhar e de emergir várias vezes a pouca distância
deles, decidi que tinha de saber como agiam para nos matarem, de
conhecer as suas manobras, a sua força e fraqueza. Para isso,
depois de emergir pela última vez, permaneci imóvel à superfície.
De um costado, e com a ajuda de cordas, eles lançaram à água
um barco mais pequeno, para onde tinham subido cinco homens.
Foram-se aproximando, impelidos por quatro varas terminadas em
arremedos de barbatanas. Um dos homens ia de pé e segurava ao
alto a vara que eu tinha visto cravada no dorso da baleia-piloto. O
arpão.
Percebi como atacavam. Aqueles navios pequenos permitiam-
lhes deslocar-se com rapidez e mudar de rumo com facilidade.
Para os conhecer melhor, comecei a nadar em círculos em volta
da pequena embarcação. Inspirava e mergulhava, sem os perder de
vista. No fundo, rodava o corpo e emergia por onde não esperavam.
Eles manobravam furiosos e o homem que levava o arpão exigia-
lhes mais rapidez.
Já sabia bastante sobre os baleeiros. Ao apelar à sua cobiça,
consegui que se afastassem das quatro velhas baleias e que
preferissem um troféu maior, eu, o cachalote da cor da lua; e só me
faltava conhecer o seu medo.
Enchi os pulmões, desci até à escuridão das profundezas,
ganhei velocidade, emergi quase ao lado da pequena embarcação,
com o corpo todo no ar, e ao cair provoquei uma onda, uma torrente
de espuma que a virou.
Vi-os nadar, desesperados, e subir para o bote virado. Então, ao
afastar-me, ouvi o nome que os baleeiros me deram.
«Voltaremos, Mocha Dick!», gritou o homem do arpão.
E a sua voz cheia de ódio foi o prenúncio do que viria.
XI
A baleia fala da perseguição dos baleeiros
Mocha Dick, assim me chamaram os baleeiros, talvez porque me
encontraram pela primeira vez nas águas próximas da ilha Mocha.
Continuei a minha missão de proteger as quatro velhas baleias
durante a noite, e, de dia, ia para o mar alto.
Soube pelos golfinhos velozes que, pelo estreito que une os dois
grandes mares, vinham mais e mais embarcações para nos
matarem.
«Falam de ti», diziam os golfinhos. «Chamam-te Mocha Dick ou
a grande baleia branca, e até oferecem uma recompensa à
tripulação que te matar.»
Sem que o pretendesse, atraíra o ódio dos baleeiros. Não sei se
foi um erro ter perdoado a vida dos homens cuja pequena
embarcação virei ou se foi um erro ainda maior não ter investido
contra o grande navio. Permiti que continuassem com vida, eles
falaram de mim aos outros baleeiros e, o que é pior, contaram-lhes
que no estreito entre a costa e a ilha havia mais baleias.
Mudei os meus hábitos. Com a luz do dia nadava até ao mar
alto, a uma distância que tornava a Mocha uma mancha verde
perfilada antes da costa. Com um olho olhava para a lonjura que
levava às águas frias e, com o outro, para a longínqua região das
águas quentes. Não dormia.
As baleias podem adormecer de duas maneiras: descontraindo o
corpo até flutuarem na vertical, com a cabeça rente à água, ou na
horizontal, a pouca profundidade, com o dorso à superfície e o resto
do corpo submerso. Mas dormir desta maneira não permite o sono
profundo, o repouso que restabelece a força; e assim me deixava
ficar, na escuridão do canal entre a ilha e a costa, num leve dormitar,
atento ao chamamento dos lafkenche e ao aparecimento das quatro
velhas baleias para cumprirem a sua missão.
Várias vezes vi embarcações a aproximar-se e fui ao encontro
delas, provocando os baleeiros ao emergir perto dos navios para os
obrigar a uma perseguição mar adentro. Como já conhecia a sua
forma de atuar, mantinha a distância, evitando assim que fizessem
descer os barquinhos mais leves e manobráveis. Ao conseguir que
me seguissem até a costa se perder de vista, mergulhava na mais
densa escuridão do mar e, nadando velozmente, regressava às
proximidades da costa e da ilha.
O tempo passava sem que nada me levasse a interromper a
minha missão, até que, mais uma vez, chegou a estação de menor
luz e maior escuridão. Num amanhecer de céu cinzento e brisa
ligeira, ouvi o canto de uma baleia-corcunda, um pedido de ajuda
muito diferente do canto que usam para manter a unidade do grupo
quando se deslocam, fartas de alimento, com os corpos providos de
gordura suficiente, das águas mais frias para as águas quentes, para
parirem, amamentarem e ensinarem às crias os segredos do mar.
Fui ao encontro dela e, assim que a vi, percebi as razões do seu
canto. A baleia-corcunda tinha acabado de parir e por isso se
atrasara. O pequeno baleote encostava-se a ela, às suas fendas que
jorravam um leite espesso, quase sólido, que o baleote sorvia com
avidez e prazer.
Fatigada pelo parto e com o baleote ainda incapaz de se afastar
dela, a baleia-corcunda permanecia imóvel. Calculei que o seu
grupo, que migrava para águas quentes, não estaria muito longe e
mergulhei para lançar o meu estalido e saber onde se encontravam.
Permaneci longo tempo submerso, lancei o estalido várias vezes
e recebi-o de volta sem qualquer sinal de outras baleias no mar.
Ao emergir para respirar junto da baleia-corcunda e do baleote
descobri que me distraíra e que era tarde de mais para afugentar os
baleeiros. Tínhamo-los sobre nós.
Senti uma dor terrível num dos lados do dorso.
O arpão ficou cravado e a única coisa que me ocorreu foi voltar
a mergulhar. Desci até águas profundas, agitando o corpo para me
livrar da vara que me feria a carne, mas eram tentativas inúteis
porque os baleeiros puxavam pela corda presa à anilha do arpão,
para agravarem a ferida e me cansarem.
Emergi, esvaziei os pulmões, voltei a enchê-los de ar e vi que os
baleeiros também tinham ferido a baleia-corcunda. Com a ajuda de
cordas, içaram-na para bordo da embarcação maior, juntamente com
o baleote que sofrera a mesma sorte. Ainda se moviam quando
começaram a esquartejá-los. O sangue da baleia-corcunda e do
baleote caía pela borda como uma torrente e tingia de vermelho a
superfície da água.
Os baleeiros que me arpoaram aproximaram-se. Nesse
momento soube que já não me restava nada que aprender com eles.
Chamavam botes às pequenas embarcações, remos às varas usadas
para as moverem e manobrarem, arpoeiro ao responsável por lançar
os arpões afiados como este que me feria o lado; e movia-os o ódio
aos grandes seres do mar.
O arpoeiro brandia a sua arma de ponta afiada e preparava-se
para o golpe definitivo. Eu tinha de agir rapidamente e foi o que fiz.
Mergulhei muito perto do bote e desci velozmente na vertical
até percorrer cerca de vinte vezes o meu próprio tamanho. Nessa
altura rodei e, ao emergir, procurei a quilha da embarcação.
A pancada da minha cabeça partiu o bote em dois, os homens
caíram à água entre gritos de pavor e eu esmaguei-os com golpes
furiosos da minha cauda. As minhas barbatanas dorsais caíram
repetidamente sobre aqueles que tentavam nadar até à embarcação
maior, que vi afastar-se apanhando o vento com urgência para se
pôr a salvo da minha fúria vingadora, sem se preocupar em saber se
algum dos cinco homens do bote ainda estaria vivo.
Eu também me afastei, sem saber se a dor do que vira era mais
forte do que a dor do arpão que me feria. Nadei até ao estreito,
arrastando atrás de mim um pedaço de corda preso à anilha do
arpão e os restos do bote ao qual estava amarrada a outra ponta da
corda.
Um rasto de sangue caía-me do dorso e desaparecia no mar.
XII
A baleia fala com as quatro velhas baleias
Com a escuridão, desencadeou-se uma forte tempestade. O
vento levantava ondas muito altas, a escuridão e a chuva que caía
em torrentes quase impediam a vista da costa, mas, apesar do
perigo de encalhar na praia, arrastada pela ondulação, fui-me
aproximando em busca de auxílio.
Dei vários saltos em frente das casas dos lafkenche e lancei dois
estalidos por sobre o ruído da tempestade. Não conseguiria precisar
quantos saltos dei na água, até um grupo de lafkenche acorrer à
beira-mar e, ao ver-me, lançar o grito que eu esperava ouvir:
«Trempulkawe!»
As quatro velhas saíram do bosque. A chuva envolvia-as e os
longos cabelos colavam-se-lhes aos corpos encurvados. As quatro
atiraram-se ao mar ao mesmo tempo e depressa chegaram ao pé de
mim.
Uma das velhas baleias colocou-se junto de um dos meus olhos
e as outras três dedicaram-se a segurar com a boca a corda que
arrastava, para que esse lastro não repuxasse, aumentando a ferida
e a dor causadas pelo arpão cravado de lado.
Felizmente, as quatro baleias eram dentadas como eu e
conseguiram partir a corda.
«Tens a nossa gratidão, grande cachalote da cor da lua.
Sabemos que és o nosso protetor», disse o olho da velha baleia.
«Não sei se fiz bem ao responder ao apelo da baleia-corcunda.
Ao colocar-me em perigo arrisquei também a vossa vida», respondi
com o meu olho, fixo no olho da velha baleia.
«Ninguém pode julgar-te: nem os lafkenche, nem nós.
Ninguém. Descansa, recupera a tua força e cumpre a tua
incumbência», disse a velha baleia; e as quatro regressaram à costa.
Livre do lastro que arrastava, a minha dor atenuou-se. O sal do
mar fechou a ferida e o arpão passou a ser mais uma parte do meu
corpo.
Nessa noite dormi profundamente no canal entre a costa e a
ilha, ao abrigo da tempestade violenta.
XIII
A baleia fala pela última vez
Vi uma e outra vez as quatro velhas baleias transportarem
corpos para a ilha e, uma e outra vez, no mar aberto, enfrentei os
baleeiros para os afastar do estreito. Feriram-me outros arpões,
mas, felizmente, nenhum me causou outros males além da dor, que
aprendi a suportar e que aceitei como sendo o preço a pagar por
levar até ao mar aberto os baleeiros obstinados em matar-me.
Surpreendia-me a insistência e a teimosia dos homens; queria
saber de onde vinham, em que lugar do oceano ou da terra firme
havia tantos e se alguma vez veriam saciada a sua ambição.
Num dia de mar calmo, quase sem ondas, e, por mandado do
céu, só com uma leve brisa que encrespava a superfície, um
albatroz, a grande ave marinha, grasnou sobre mim e desceu, com a
delicadeza das suas enormes asas abertas, pousando ao meu lado.
Baloiçou-se na água com as asas fechadas diante de um dos
meus olhos, para que eu visse os seus.
«Saúdo-te, grande cachalote da cor da lua a que os homens
chamam Mocha Dick», começou o albatroz. «Tens de saber que os
homens te odeiam e temem. Vejo no teu olho que tens muitas
perguntas e a elas responderei.
»Os homens vêm de muito longe e nada detém a sua ambição,
nem sequer a morte. Eles vêm de regiões que nunca vimos nem
veremos, pois atravessam um oceano tão grande como este para
chegarem ao estreito a que chamam cabo Hornos. As suas costas
estão cheias de restos de embarcações, de vestígios silenciosos de
naufrágios que são testemunho da sua ousadia; e, no entanto, os
homens insistem.
»Nas embarcações, que não deixarão de vir, falam de ti: da
grande baleia branca, de Mocha Dick; e, para aumentarem a cobiça
e espalharem o temor entre as tripulações inexperientes,
descrevem-te maior do que realmente és, mais forte e cruel.
»Virão atrás de ti porque sabem que estas águas são de
passagem, que são a rota das baleias que migram das águas frias
para as águas quentes, próximas da ilha a que chamam Galápagos,
para parirem as crias e depois, esfomeadas, regressarem às águas
frias ricas em krill, em lulas e em polvos.
»Virão, inexoravelmente. Nas suas viagens marítimas matam
baleias, golfinhos, lobos-do-mar, focas, morsas, pinguins, gaivotas.
Tudo o que vive no mar acaba nas suas caldeiras, transformado em
gordura ou em óleo.
»Foste escolhido para uma grande missão, grande cachalote da
cor da lua: porque, quando o último lafkenche for transportado para
a ilha Mocha e a grande viagem para lá do horizonte começar, todos
os seres do oceano te seguirão até ao mar mais puro, o mar sem
baleeiros.»
O albatroz, a grande ave marinha, nada mais disse. Com um
salto empoleirou-se no meu dorso, correu um pouco com as asas
abertas e levantou voo.
Tudo o que me disse, longe de me deixar orgulhoso pela
importância da minha tarefa, encheu-me de uma angústia tão
dolorosa como a primeira ferida provocada por um arpão, e eu já
tinha vários arpões cravados no corpo.
Passei a dormir cada vez menos, cansava-me ao entrar no mar
alto e ao desafiar os baleeiros para os afastar do estreito, e, à noite,
quando dormitava, desejava que o último lafkenche morresse
depressa.
Os acontecimentos precipitaram-se. Numa noite de baixa-mar,
lua cheia e céu sem nuvens, acordei do meu sono ligeiro ao ouvir o
chamamento: «Trempulkawe!»; e, ao mesmo tempo que via as
quatro velhas baleias começarem a nadar até à ilha levando um
corpo, os meus olhos viram também as duas embarcações, uma à
entrada e outra à saída do canal.
Lancei-me para a embarcação que estava à entrada, porque as
correntes lhe imprimiam maior velocidade. Alcancei-a quando os
baleeiros já tinham descido três botes, cada um deles tripulado por
quatro remadores e um arpoeiro. A lua cheia iluminava o dorso das
quatro velhas baleias.
Mergulhei e vim à superfície entre os botes. Um arpão atingiu-
me perto de um olho, outro cravou-se-me no dorso e eu senti o
cheiro do meu próprio sangue. Com pancadas da cauda, destruí dois
dos botes e esmaguei os seus tripulantes. Voltei a mergulhar e, ao
emergir para despedaçar a terceira embarcação, enchi-me de pavor
e de fúria.
Do navio que bloqueava a saída do canal também tinham
descido vários botes e um deles arrastava uma das velhas baleias
até à embarcação maior. O arpão assassino atingira-a no meio da
cabeça. Duas das outras, velhas e pequenas, contorciam-se de dor
com arpões cravados no dorso. A última das quatro velhas baleias,
também ferida, obstinava-se em chegar à ilha para cumprir o seu
encargo.
Compreendi o meu erro. Tinha faltado aos da minha estirpe, aos
lafkenche, às velhas baleias, a todos os seres do mar. Nunca
faríamos a grande viagem, condenados a fugir da cobiça dos
homens, a migrarmos de um extremo ao outro dos oceanos para
ficarmos a salvo.
MERGULHEI NUM MAR DESCONHECIDO, O MAR DO ÓDIO.
Das suas profundezas lancei da abóbada da minha cabeça o
meu mais forte estalido, que estremeceu as águas, atordoou os
peixes, moluscos e caranguejos, todos aqueles que viviam na água,
e investi contra os baleeiros.
Não me importei com a dor dos vários arpões que me atingiram
assim que cheguei à superfície e despedacei os botes, um por um.
Os tripulantes gritavam, agarrados aos restos das embarcações, mas
não tive piedade: não permiti que nenhum baleeiro se mantivesse à
tona, surdo aos seus lamentos, aos seus pedidos de ajuda e de
piedade. Esmaguei alguns deles com a minha cauda, prendi outros
entre as mandíbulas até lhes sentir os ossos estalar debaixo de água
e, enchendo os pulmões de ar e de fúria, voltei a mergulhar para
investir imediatamente contra o navio maior.
Na primeira investida, a minha cabeça acertou em cheio no
casco, provocando um grande rombo. Ao segundo embate, sob a
linha de flutuação, causei uma brecha ainda maior. O navio adernou
para um dos bordos, vários homens caíram ao mar e, pelo outro
costado, lançaram à água o último bote que lhes restava.
Ao terceiro embate, os mastros inclinaram-se e as velas tocaram
na água. O navio começou a afundar. Mergulhei e, sob a superfície,
nadei até à outra embarcação. Emergi de um salto, com todo o
corpo no ar e a lua cheia a fazer brilhar os arpões que tinha
cravados; e, ao cair num dos bordos do navio, vi os homens no
convés.
Agarravam-se uns as outros, apavorados com o que viam. No
convés não havia nenhuma baleia – apenas os corpos de quatro
velhas mulheres nuas, ensanguentadas e cobertas por longos
cabelos brancos.
Regressei aos restos da embarcação prestes a ser engolida pelo
mar. Esmaguei os sobreviventes, ainda agarrados ao navio que se
afundava, e vi-os desaparecer por entre a ondulação.
O bote que tinham descido afastava-se, com os homens a
remarem desesperados, e eu deixei-os ir. A outra embarcação fugia,
com rumo contrário, apanhando o vento com todas as velas
desfraldadas. Percorri, pela última vez, o estreito entre a costa e a
ilha Mocha. Os lafkenche, reunidos à beira-mar, olharam-me em
silêncio. Nunca mais gritariam: «Trempulkawe!», para que as velhas
baleias levassem os corpos dos seus mortos até à ilha, até ao ngill
chenmaywe, o local de encontro antes da grande viagem, que já não
faríamos.
Com nove arpões cravados no dorso fiz-me a mar alto, em
busca de outros barcos baleeiros; porque eu, o grande cachalote da
cor da lua a que os homens, trémulos de medo, chamam Mocha
Dick, ia atrás deles.
Eu, a maldição que havia de os perseguir sem tréguas.
Eu, a força daqueles que já não têm nada a perder.
Eu, a justiça implacável do mar.
XIV
A fala do mar
Contam-se muitas histórias no Sul do Mundo.
Conta-se que nas águas do Oceano Pacífico, na costa do Chile,
em frente da ilha Mocha, a 20 de novembro de 1820, um grande
cachalote branco atacou e afundou o navio baleeiro Essex, que tinha
zarpado do porto de Nantucket, no Atlântico Norte, quinze meses
antes do naufrágio.
Conta-se que o enorme cachalote branco atacou o Essex porque
os arpoeiros mataram uma baleia fêmea e a sua cria.
Conta-se que foram necessários vários barcos para, finalmente,
caçarem o grande cachalote branco a que chamavam Mocha Dick,
que media vinte e seis metros de comprimento, e que, na altura da
sua morte, vinte anos depois do naufrágio do Essex, tinha mais de
cem arpões cravados no corpo.
Conta-se que nas noites de lua cheia, da costa oeste da
desabitada ilha Mocha, se vê emergir das profundezas um enorme
cachalote branco da própria cor da lua.
Sim. Contam-se muitas histórias no Sul do Mundo.

Astúrias, frente ao mar Cantábrico, agosto de 2018


Índice
Capa
Contracapa
Ficha catalográfica
Agradecimentos
Poemas
I A antiga linguagem do mar
II A memória da baleia fala do homem
III A baleia fala do seu mundo
IV A baleia fala do que aprendeu com o homem
V A baleia fala do encontro com outra baleia
VI A baleia fala dos motivos dos homens
VII A baleia fala de um grande segredo
VIII A baleia fala dos seus dias entre a ilha Mocha e a costa
IX A baleia fala da sua espera
X A baleia fala do seu primeiro encontro com os baleeiros
XI A baleia fala da perseguição dos baleeiros
XII A baleia fala com as quatro velhas baleias
XIII A baleia fala pela última vez
XIV A fala do mar

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