Partida de Trieste Viagem pelo Mar Mediterrâneo até Gibraltar
A 10 de abril, às duas horas da madrugada, foram levantadas âncoras na escuridão e
sossego da noite. Estava tranqüilo o mar e navegamos com moderado noroeste quatro até cinco milhas marítimas italianas por hora. Quando os companheiros de viagem, ao nascer o sol, se encontraram no convés, já apareciam as montanhas de Friul no azul nublado. Durante o dia inteiro, ficou a maior parte dos viajantes, que jamais haviam embarcado, reunida no convés e todos, com um misto de alegria e saudade, fitavam os olhares na pátria que se sumia à distância, até que, ao cair da noite, tomando-se mais forte o jogo do mar e refrescando o vento que soprava na escuridão, a maioria tratou de se recolher aos camarotes. Passou sossegada a noite, mas de manhã foram todos acordados com o violento balanço do navio. Aquele a quem o enjôo do mar não havia tirado a presença de espírito, compreendia, - pelo jogo violento, pelos estalidos e oscilação -, que o navio lutava com o mar encapelado e, - pelo gemer dos mastros, o estrondar do vento, as correrias alvoroçadas dos marujos de um lado para outro ao silvar o apito das ordens do mestre -, que tínhamos temporal. O Bóreas, vento nordeste, frio e muito forte, que, sobretudo na primavera, sopra com freqüência das montanhas da Istria e na parte norte do Mar Adriático, havia caído de repente sobre ambos os navios. Apenas o aparecimento de uma nuvem negra muito baixa avisara o oficial de quarto de nossa fragata, de modo que, antes de desabar o terrível furacão, houve tempo somente para ferrar as velas. Ao cabo de alguns minutos, desapareceu de nossas vistas a Augusta, que até então navegava muito próxima da Áustria. Espesso nevoeiro cercava o nosso navio; chuva fria com granizo, que um vento de tempestade tocava furioso sobre nós, encheu o convés de pedras do tamanho de um punho e fez logo entorpecer de frio a tripulação. O navio era violentamente lançado de um lado para outro, vergas e cordame eram arrancados e partidos; as ondas arremessavam-se impetuosas pelas vigias do castelo de proa, enchendo parcialmente de água o porão e finalmente, no auge do furacão, partiu-se o gurupés quase pela base. Até perto do meio-dia, bramiu o tufão com a mais extrema violência; quando, depois, o mar sossegou um pouco, e o cortante nor-nordeste se alternou com o vento de leste mais manso, lançou-se ferro em pleno mar, umas três milhas distante de Rovigno. Nessa situação ficou-se à espera de amanhecer o dia, e, entretanto, se ativava o conserto das amuradas e do cordame que, ao partir-se o gurupés, ao qual é em grande parte amarrado, tinha afrouxado. A bela biblioteca do Barão de Neveu havia sido completamente inundada pelas ondas que tinham quebrado as vigias do camarote principal, e igualmente quase todos os viajantes haviam mais ou menos sofrido prejuízos, por causa da violência do temporal; em todo caso, salvos todos, consolou-se cada qual facilmente de sua própria desventura mais do que da incerteza sobre a sorte do navio nosso companheiro. Pouco a pouco se foram reunindo os viajantes, que haviam duramente sofrido essa primeira prova, no convés, onde o aspecto dos súbitos estragos e do estado cansado e quase entanguido da equipagem completou a noção do grande perigo, de que havíamos felizmente escapado. Pouco antes das doze horas, o céu escuro clareou um pouco, e o navio pôs-se devagar em movimento para sueste. Ao meio-dia, avistamos as costas áridas da Ístria, onde o sol, justamente saindo das nuvens, deitava luz muito viva. Passamos junto de pequenas ilhas plantadas de oliveiras e filiréias, à entrada do Porto de Pola. Nessa mesma noite, a nossa companhia de viajantes desembarcou para repousar, contemplando as belas ruínas de arte romana. O oficial de marinha, que entrementes havia sido mandado de Pola para Veneza a fim de dali trazer um novo gurupés e notícias da fragata nossa companheira, a Augusta, da qual nada tínhamos podido saber nas costas solitárias da Ístria, voltou dentro de alguns dias, com a notícia de que aquela embarcação, tendo perdido todos os mastros, velas e botes, se havia recolhido à Ilha de Chioggia, e dali deveria seguir para Veneza, a fim de restaurar no seu arsenal as consideráveis perdas, avaliadas em vinte mil francos. O novo gurupés foi em breve colocado e no sétimo dia estava a Áustria pronta para se fazer à vela. A embaixada resolveu, portanto, continuar só até Gibraltar, e ali esperar, além da fragata Augusta, a real esquadra portuguesa, assim como instruções imediatas da corte imperial de Viena. Na manhã de 21 de abril, às 6 horas, levantamos âncora e zarpamos do Porto de Pola. Um vento contrário, que nos fez demorar em Malta, mudou na noite de 30 de abril para um fraco sudeste, e a fragata apressou-se logo a zarpar do porto. A 3 de maio, apareceu-nos, a pouca distância da costa da Sardenha, o Toro, rocha nua que surge do mar, e logo em seguida São Pedro, a ponta mais ocidental daquela ilha. Muitos botos folgavam em torno do nosso navio, e deram aviso, segundo a experiência da maruja, de que o vento ia ceder, o que de fato logo sucedeu. Sobrevindo diversos fenômenos, compreendemos que nos avizinhávamos do grande Oceano; entre outros, sobretudo, a forte fosforescência do mar. Na viagem de Trieste até ali, haviam-se verificado apenas pequenos pontos luminosos no mar; agora, porém, durante a noite, parecia que o navio navegava em fogo líquido aos cachões, e o convés, no abaixar e oscilar ao encontro das vagas, ficava todo cercado de claridade. A contemplação desta mágica visão noturna arrebata o espectador, especialmente quando ele não teve antes oportunidade de singrar o elemento salso em tal esplendor. O mar fervia com globozinhos resplandecentes, e cada baque do navio de encontro às vagas fazia chispar faíscas, como as do ferro em brasa quando o ferreiro o malha, e que tudo iluminavam em volta. Além desses milhares de minúsculas esferas de fogo, também se viam maiores bolhas luminosas, e justamente em maior profusão junto do navio; entretanto, igualmente se notavam à distância, nos lugares em que as ondas se quebravam espumantes. Quanto mais escura a noite, tanto maior a magnificência desse fenômeno; também, por esse motivo, nas noites de luar era menos visível, e somente do lado da sombra do navio. Em muitas descrições de viagens marítimas, este belo espetáculo tem dado assunto para investigações. Forster opina que ele se produz em parte graças à eletricidade causada pelo forte atrito do navio, e, em parte, graças à fosforescência proveniente de matérias animais em putrefação ou a bichinhos luminosos. Adanson, e com ele os mais modernos pesquisadores da natureza, como Humboldt e Péron, atribuem esse fenômeno exclusivamente aos moluscos, zoófitos e outros animais marinhos. Também nós não perdemos a ocasião de examinar este importante assunto, com o máximo zelo. Fizemos encher de noite algumas vasilhas com a água luminosa do mar. A mão e tudo que se molhava com essa água reluzia, e na vasilha, logo que era agitada, a água cintilava com pontos de fogo. No dia seguinte, examinando-a com o auxílio de um excelente microscópio de Utzschneider e Fraunhofer, essa água deixou patente uma infinidade de corpúsculos-bolhas, ora arredondados ora alongados, do tamanho de uma semente de papoula. Cada um deles tinha numa extremidade ou vértice um pequenino furo guarnecido com seis até nove fios delicados, que agora flutuavam no interior da bolha, e com os quais parece que o animálculo se agarra aos corpos estranhos, e ingere o seu alimento. No interior dessas bolhazinhas viam-se às vezes pequeníssimos pontos escuros aglomerados a um lado, e aqui e acolá alguns maiores, talvez restos interceptados de animálculos semelhantes, ou geração de entezinhos novos, para serem expulsos. Esses animais esféricos, que têm todos os característicos das medusas, citados por Perón e Lechenault com o nome de Orethusa pelagica, por Savigny com o de Noctiluca miliaris, nadam na água do mar colhida à noite, em maior ou menor quantidade e parecem, a olhos nus, examinando-os à luz do sol, pequenas gotas de gordura. Desde que a água não seja renovada ou que dure muito tempo o exame, não se conservam mais em cima da água, e caem mortos no fundo. Interessante é o fato desses animálculos se atraírem espontaneamente formando grupos quando se aproximam. Igual fenômeno vimos, em grande escala, de dia, tanto aqui, como no oceano, isto é, sobrenadam no mar em compridas filas amarelo-pardacentas estes corpúsculos e dão a idéia de água semeada com serragem. Essas ocorrências sempre se davam, contudo, quando o céu estava encoberto por nuvens, escurecendo o mar. Parecia que estes infusórios do mar receavam a luz do sol, durante o dia, descendo às profundidades, e, com o crepúsculo, voltando à superfície; pelo menos nunca eram encontrados na água colhida de dia, e sempre na água retirada à noite. No Porto de Gibraltar eram em tão grande quantidade que, ao tocarmos com a mão na água, logo se formava um rasto de luz, e a mão retirada luzia com inúmeras cintilações. Todos estes fatos parecem demonstrar que são animais que dão de preferência motivo à fosforescência do mar. As grandes bolhas luminosas, às vezes com o tamanho de um pé, que sobem isoladamente à superfície ou vogam a esmo, presume-se que sejam moluscos maiores ou medusas, ou borbulhas de água iluminadas pela fosforescência desses animálculos. Além dessas fosforescências isoladas ou borbulhosas, nota-se, porém, mais outra, que até aqui parece não ter sido bastante discernida, segundo os seus característicos físicos, isto é, a certa distância do navio, por toda parte, onde duas vagas se quebram de encontro ou se arremessam uma sobre a outra, vê-se pairar uma orla de luz azulada, igual ao reflexo dos coriscos na água. Esta luz difere da dos animais esféricos, pelo fato de não ser chispa isolada ou borbulhão de luz amarelo-clara, porém, é igualmente espalhada e parecida com a luz fraca, que dá a chama de álcool. Sobre a natureza desta luminosidade não nos atrevemos imediatamente a determiná-la com precisão. Poder-se-ia considerá-la reflexo de centelhas produzidas pelos animais- esféricos, ou processo de compensação da tensão elétrica entre as próprias vagas ou entre o mar e a atmosfera, pois só se dá na superfície das vagas, quando estas se quebram de encontro uma à outra. Quase poderíamos opinar por este último alvitre, lembrando, sobretudo, a percentagem de sal que aumenta a tensão-elétrica contida nas camadas de água do mar e as matérias pútridas da mesma, ficando a água por assim dizer, mais orgânica e animalizada. De qualquer modo, não resta dúvida de que na fosforescência de toda espécie a oxidação e redução são fatores essenciais. Supondo-se um processo de putrefação no mar, também isso é ato orgânico, no qual a podridão, como matéria orgânica, entra em relação com a atmosfera. Excluindo-se os fatores estranhos, o mar tem sempre a mesma relação com a atmosfera, e a sua água e o sal dissolvido nela, com o movimento, mais se oxidam. Pode-se, pois, considerar químico, físico ou orgânico esse fenômeno. Esse gênero de luminosidade parece sempre efeito da eletricidade e do processo contínuo de oxidação no mar, efeito que aumenta e se torna visível pelo choque das ondas. Examinem outros viajantes os fenômenos dos diferentes gêneros de fosforescência e retifiquem as causas por nós sugeridas. Ventos fracos alternados ajudaram-nos pouco a pouco a progredir, até que a 11 de maio, chegamos à vista da extensa Serra de Morabela, e, finalmente, impelidos por vento um pouco mais vivo, entramos a 12 de maio ao meio-dia, com felicidade, no Porto de Gibraltar, onde, ao troar dos canhões, deitamos âncora. Estava assim concluída a primeira parte da viagem de mar, e achamo-nos nas Colunas de Hércules, que se costuma considerar como o ponto extremo das mais audazes expedições da antiguidade. Muitos membros do grupo de viajantes dirigiram-se ainda nesse mesmo dia à terra, que a tantos respeitos prendia a nossa atenção. Os rochedos de Gibraltar, Mons Calpe, formam o núcleo de uma pequena língua de terra que avança para o mar, de norte a sul, e somente se prende por um areal baixo ao continente. Eleva-se na ponta voltada para o sul, Europa Point, 105 pés acima do nível do mar; dos lados norte e leste, escarpadas muralhas o tornam absolutamente inacessível. O ponto mais alto, o Sugar- Loaf, eleva-se a 1.439 pés ingleses de altitude. Está a cidade situada na parte oeste, mais plana e habitável da ponta de terra. O General Donn, governador da praça, nos havia dado licença para percorrer todos os lugares da rocha, mesmo as fortificações, e estava em geral empenhado em proporcionar à embaixada todos os divertimentos que a isolada cidade marÍtima pode oferecer. Num baile, assistimos ao delicado fandango e ao bolero dos andaluzes, alternados com danças do norte, e as arcadas do palácio, festivamente iluminadas, ressoavam em breve, ora com as suaves elegias do madrigal espanhol, ora com o melancólico canto de bardos do norte. Esse contraste entre o norte e o sul era a constante surpresa dos viajantes por toda a parte. Na mistura de residentes espanhóis e ingleses, notam-se também muitos genoveses e calabreses, que especialmente se dedicaram à pesca ou à navegação. O número de judeus, que na maioria falam o espanhol, é considerável. Ainda não podia a posse inglesa suplantar a língua e costumes espanhóis; pelo contrário, o grande tráfego comercial e a presença de muitos estrangeiros dão a este ponto, grande e universal significação para o comércio do Mediterrâneo. O que completa, porém, o variado quadro que apresentam os habitantes de Gibraltar, é a presença de asiáticos e norte-africanos. Entre estes últimos acham-se muitos marroquinos, que vendem, nas ruas, frutas do sul e belos artigos de couro lavrado. O louro nortista assim como o moreno sul-europeu, distinguem-se singularmente, por diferentes traços do semblante e por seu físico, desses estrangeiros de origem oriental. A fisionomia dos marroquinos e outros africanos, que aparecem aqui, exprime firmeza: e inteligência. Entre as doenças mais perigosas que grassam nesta enseada do Mediterrâneo, muito quente por sua situação e exposta sobretudo ao vento do sul, está a febre amarela. Pouco antes de aqui chegarmos, grande número de pessoas foram vitimadas por essa doença. Como em Cuba, no Golfo do México, assim aqui, em Cádiz, Barcelona e outras cidades marítimas não expostas à livre ventilação, acontece aparecer esta devastadora doença favorecida pela ação do calor e pelas exalações pútridas e deletérias da água salgada. Em Algesiras, recebeu o embaixador ordem da corte de Viena, em virtude da qual a fragata Áustria devia seguir viagem sozinha, para o Rio de Janeiro. Como já, neste momento, havia chegado a Gibraltar a notícia de movimentos revolucionários em Pernambuco, felicitamo-nos por nos ser poupado maior atraso, que poderia ser aumentado pela continuada demora da esquadra portuguesa. Apenas esperamos mais um dia, quando, de improviso, começando a soprar o vento leste, uma salva de canhão da Áustria e o sinal da bandeira, hasteada a bordo, nos chamaram. Ao meio-dia, veio um bote com a notícia de que, dentro de uma hora, a fragata ia fazer-se à vela e levou-nos de volta. Estava tudo pronto para a partida, e somente o nosso colega, Sr. Mikan, que se havia afastado longe demais numa excursão botânica, ainda não havia chegado a bordo; já começava a afligir-nos a sua demora, quando, precisamente ao se levantarem os ferros e se desfraldarem as velas, ele chegou e pôde embarcar felizmente.