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© James Rajotte

Irene Vallejo (Saragoça, 1979) é apaixonada pelas lendas gregas e romanas


desde a infância. Estudou Filologia Clássica e doutorou-se nas Universidades de
Saragoça e Florença. Empenhada em dar a conhecer os autores clássicos ao
grande público, a autora dá palestras e visita escolas, universidades e bibliotecas,
divulgando a importância e a atualidade do legado do mundo antigo.
Colabora com meios de comunicação, como o jornal El País, em Espanha, e
Milenio, no México, e é, sobretudo, autora de uma já ampla obra que inclui títulos
de ficção, coletâneas dos seus artigos jornalísticos e livros ilustrados. Alcançou o
reconhecimento internacional com o seu livro O Infinito num Junco (Bertrand
Editora, 2020).
Além da sua atividade como escritora, trabalha ainda em projetos sociais como o
«Believe in Art», levando a arte e a literatura a hospitais infantis.
Título: O Silvo do Arqueiro
Título original: El Silbido del Arquero
1.ª edição em papel: abril de 2022
Autora: Irene Vallejo
Tradução: Rita Custódio e Àlex Tarradellas
Revisão: Cátia Teixeira
Design da capa: Ana Monteiro
Ilustração da capa: © Elisa Arguilé, 2015, 2022

© Irene Vallejo, 2016


All Rights Reserved.
Publicado originalmente em 2015 (Saragoça).
Esta edição foi publicada por acordo com Casanovas & Lynch Literary Agency S. L.
[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil,
reservados por Bertrand Editora, Lda.]

Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
editora@bertrand.pt
Tel. 217 626 000

ISBN: 978-972-25-4368-2
Ao meu pai, que zarpou.

Algumas vitórias não são gloriosas nem lembradas;


mas algumas derrotas podem chegar a ser lendas,
e de lendas podem passar a vitórias.

Ana María Matute, Olvidado rei Gudú


I. NAUFRÁGIO

Eneias

E esta noite posso dizer, mais uma vez, que estive prestes a
morrer. Ouvi o meu barco ranger. O céu esmagava-nos sobre o mar,
o mar lançava-nos para o céu. Depois achei que o mar e o céu se
partiam aos bocados e se confundiam. Achei que caíamos pelas
fendas dos relâmpagos ou pelos precipícios das ondas.
Nem sequer entendo como é que os meus homens conseguiram
arribar a esta costa com o nosso barco ferido de morte. Esta costa
que, na noite do mar, era apenas um bloco de escuridão mais
profunda, mais cerrada. Surgindo da chuva negra, um porto natural
abriu-se para nós, uma enseada de águas tão calmas que nem
sequer precisámos de amarras para ancorar a nau.
O mar ainda ruge nos meus ouvidos, mas é um eco. A
tempestade está a amainar, as estrelas espreitam abrindo ténues
brechas nas nuvens. Sei que é urgente a tarefa de proteger as
nossas frágeis vidas neste país desconhecido e sei que devo ser o
primeiro a erguer-me da areia onde me deixei cair. Nós, os
sobreviventes, permanecemos aqui, caídos. Sinto uns dedos
húmidos na minha perna às apalpadelas; tocam no meu corpo,
imagino, à procura da segurança de que pelo menos nós
continuemos vivos, a segurança de que esta praia não é a margem
onde os mortos esperam a chegada do barqueiro que os conduzirá
ao outro mundo.
— Eneias… — diz uma voz, que parece de imediato um soluço do
vento. Basta-me isso para me levantar.
— Ouçam-me todos! Ouçam-me todos! — repito, erguendo a voz
por cima do vento que ainda ensurdece. — Sobrevivemos à guerra,
que é a loucura dos homens, e à tempestade, que é a loucura do
mar. Os deuses continuam connosco. Agora não é tempo de
ficarmos prostrados e tremer pelo perigo que já ultrapassámos.
Quero erguer aqui um acampamento, acender um lume que nos
aqueça os ossos e elevar uma oração pelos nossos companheiros
perdidos na tempestade.
Voltamos a ser um exército. A areia esmaga-se sob os nossos
passos. Distribuo tarefas, separo os feridos, mando trazer cereais,
ferramentas e armas do barco. Os meus homens grunhem, insultam-
me entredentes, mas sei reconhecer a nota feroz e alegre com a
qual juram. Chamam-me «cão» e «escória», mas na verdade estão a
perdoar-me. Embora a única coisa que tenhamos feito tenha sido
navegar à procura do lugar onde se concretizará a obscura profecia
e quase não tenham podido desfrutar do descanso dos portos nem
de ter uma mulher entre os seus braços, apesar de tudo isso
continuam fiéis ao seu rei. Uma palavra minha lança-os ao ataque.
Agora, que a morte igualadora recuou, obedecem-me de novo.
Sim, os meus homens estão contentes porque vivemos. O mar
não arrastou até aqui nenhum cadáver, de momento não choramos
ninguém. E um náufrago é sempre um homem alegre, pelo menos
até que se detém para pensar.
O nosso homem do leme partiu o braço, talvez em várias partes.
Golpeado pelas rajadas de mar, o barco balançou para cima e para
baixo e lançou-o contra a borda. Rolou uma e outra vez pelo convés
até ficar ferido. Quando me aproximo dele, agarra-se à minha mão.
— Pai Eneias! — sussurra. É assim que os mais jovens da
tripulação me chamam.
— Salvaste-te — digo-lhe. — Salvámo-nos.
Mas antes de largar a sua mão sou invadido pelo temor de não
voltar a ver o meu único filho. «Pai Eneias…»
O Acates, o meu fiel amigo, conseguiu fazer saltar uma faísca do
pedernal para a lenha e as folhas molhadas. Observo a fogueira que
nasce, observo o Acates com o corpo em tensão, avivando e
protegendo a chama, observo o lume enrolar-se e desenrolar-se no
ar quando por fim é ateado. A partir dessa primeira fogueira
acendem-se outras, em círculo, criando um anel de calor. O fogo é a
nossa primeira vitória sobre o medo e sobre a costa solitária.
O calor desperta a lembrança da fome. Transportamos um cesto
de trigo húmido que se salvou da tempestade. Mãos hábeis ocupam-
se de torrá-lo no lume e moê-lo. Ainda temos água doce e também
odres de vinho trazidos do barco danificado. A noite é invadida pelos
nossos cheiros a povoação: comida, lenha, corpos que suam. O
fumo branco voa até ao céu como um pássaro que estende as asas
e se perde na altitude. E isso preocupa-me: as aves de fumo
denunciam a nossa presença aqui.
Não vou permitir que o bem-estar ao pé das fogueiras nos cegue
diante do perigo que ainda existe. Estamos perante o desconhecido.
Navegámos sem ver o céu nem a terra durante todo o tempo que
durou a tempestade. As nuvens apagaram uma a uma as estrelas e
só nos deixaram a luz da espuma do mar. O vento arrebatou-nos o
governo da nau. É impossível adivinhar a que terra chegámos, entre
que gente estamos, se é uma costa conhecida pelos navegantes ou
está mais além, fazendo parte do mundo inexplorado. Quem sabe
se, ao adormecer, não seremos acordados por umas mãos que nos
imobilizam e prendem, por uma faca na garganta.
Toda a noite haverá sentinelas com os olhos cravados na
escuridão, sem pestanejar. Decido os turnos, distribuo as armas,
marco os postos de guarda com um desenho do meu pé na areia.
Depois afasto-me sozinho para fazer o reconhecimento do
terreno. Quando deixo o acampamento para trás, o vento arrefece a
roupa húmida contra a minha pele. Em mim, veem-se rastos do sal
do mar, como cicatrizes do naufrágio. Movo-me furtivamente entre a
escuridão. Quero chegar até aos escolhos que se embrenham no
mar, delimitando a enseada. Quero procurar na curva do horizonte
as naus da minha frota perdida na tempestade. Será que as outras
tripulações sobreviveram? E o meu filho?
As árvores que cravam as suas raízes na encosta lançam a sua
sombra ao mar. Escuridão a dobrar. Os ramos arranham-me a cara.
Trepo, ando às apalpadelas, mantenho o equilíbrio. Por fim abre-se a
perspetiva. Na débil luz, um céu vazio e um mar que o duplica. Nem
rasto de uma proa ou de um mastro.
Desde que empreendemos a nossa navegação, aconselhados
pelos mais sábios entre os meus homens, eu e o meu filho viajámos
em naus diferentes. «São os últimos da casa real de Troia»,
disseram. «Se naufragarem, teremos mais possibilidades de que pelo
menos um sobreviva», disseram.
Espero não ter vivido para também o perder a ele.
Entorpecido, volto ao acampamento que erguemos no meio do
nada, onde os meus homens me esperam. Agora sei que, mesmo
que encontre o meu caminho através destas costas, vou continuar
perdido. Como é que me posso orientar? Todo o mundo conhecido já
só existe nas nossas recordações.

Ana

Diziam que a minha mãe era uma bruxa. Chamavam-me Ana, a


filha da feiticeira. Ana, a filha bastarda do rei de Tiro. Nenhum
desses nomes era bom. Por isso quero zarpar e navegar para tão,
tão longe que a água lave todos os nomes. Levo nas minhas veias o
apelo da viagem e dos países que sonho ver quando for grande.
Os meus passos dirigem-se sempre ao mar. Se seguirem as
minhas pegadas, chegarão sempre à beira-mar.
Também hoje, quando vi chegar as nuvens a desfilarem, corri
para procurar um lugar entre as rochas. Eram nuvens sinistras, com
a barriga de cor verde-azeitona, barrigas carregadas de tempestade.
Sem dúvida, pesavam mais do que o mar, mas algum deus deve tê-
las segurado para evitar que se afundassem na água.
Conheço os melhores lugares para ver passar as nuvens e
também os melhores lugares para observar as pessoas. Nem as
nuvens nem as pessoas sabem que estou ali, com a cabeça de lado,
a observar. Sou silenciosa e ágil. Conto à Elisa o que vejo e ouço, e
ela chama-me sua pequena coruja porque observo tudo. Quando me
escondo, sacudo a areia da planta dos meus pés, porque, se me
esqueço, chia ao pisar e sou apanhada. Vou de um lugar para o
outro com os olhos muito abertos. Faço-o porque sempre gostei de
conhecer o que está escondido. E também porque o tempo é muito
longo e cada dia que nasce está muito longe da sua noite. Talvez o
deus que conduz o Sol através do céu também sacuda a areia das
plantas dos pés, e essa areia são as estrelas que vemos daqui de
baixo.
O tempo é longo enquanto espero a viagem que me levará para
uma costa melhor, onde viverão homens melhores, menos
mentirosos, homens nos quais confiar. Um dia vou navegar para
muito longe para encontrar um país sem palácios, onde as pessoas
não saibam o que é a traição.
Estou sentada nas rochas com a perna sob o joelho, quando a
primeira onda rebenta contra os escolhos em muitos pedaços
brilhantes. O mar levanta ondas com a cor dourada da areia que se
revolve no fundo.
Quando ainda vivia na cidade onde nasci, em Tiro, em tardes
como esta a minha mãe costumava dizer-me: «Pensa naqueles que
estão no mar.» Penso, penso neles. O vento assobia nas minhas
orelhas. E, de repente, como que saídos do nada, vejo barcos, vários
barcos a dar guinadas na tempestade.
As proas afundam-se, inclinam-se. Parece que os mastros, tão
pequenos ao longe, começaram a tiritar. Está frio. Tenho os
tornozelos molhados. Talvez deva voltar, mas não porque tenha
medo. Este mar inchado não me assusta, nem a luz estranha. Não
me assusto facilmente.
Agora os barcos sobem e descem por causa das ondas. Às vezes
ficam suspensos lá em cima. Acho que nunca tinha visto as linhas de
espuma branca chegarem tão alto. O mar parece esfomeado. Eu
também tenho fome e, se voltar ao palácio, dar-me-ão um pão que
poderei partir com as mãos e estará fumegante.
Talvez deva voltar, mas não me parece bem deixar os barcos
sozinhos quando caem em cima deles ondas como montanhas.
Posso continuar aqui um pouco mais, a resistir aos empurrões do
vento e à tristeza da tarde, com os barcos que mergulham nas
ondas e a minha mãe que está morta e nunca voltará a ter
compaixão pela gente do mar.
Que homens serão esses que estão a lutar contra a tempestade,
enquanto o mar rebenta sobre as suas cabeças? Serão exilados
como nós?
O Sol, cansado, desapareceu totalmente. O temporal uiva e está
cada vez mais escuro.
E se os homens dessa frota vêm desde Tiro, porque o meu meio-
irmão os enviou para matarem a Elisa, para nos matarem às duas?
Quando é que uma pessoa sabe que fugiu para suficientemente
longe?
Levanto-me e corro para o palácio.

Elisa

O vento da tempestade enfia-se no meu palácio e verga as


chamas. Uma lufada de ar frio chega à minha nuca. A tempestade
deixa-nos inquietos, os cães esconderam-se há horas para tremerem
longe dos nossos olhos. Ouço. Os muros retumbam como um recife
ao qual a maré, fervilhante, banha. Mas os meus ouvidos,
habituados à voz do mar desde a infância, apercebem-se de pausas
na fúria do temporal. A calma não vai demorar a chegar.
As minhas escravas fiam e tecem sentadas em banquinhos. O
fogo arranca da sua pele negra reflexos dourados e verdes.
Um guarda aparece na soleira da porta. É um homem que
conhece bem as cerimónias do respeito. À distância, com os olhos
cravados no chão, diz:
— Minha rainha, trago notícias. Os navios da frota estrangeira
que foi avistada de manhã atracaram nas nossas costas,
surpreendidos pela tempestade. O mar cuspiu corpos de náufragos,
alguns vivos e outros mortos. Homens e barcos estão em muito mau
estado, mas podem ser perigosos. Esperamos ordens.
— Convoca o Conselho.
Os quatro melhores guerreiros da minha cidade são membros do
Conselho. Alegrei a sua vaidade com títulos sonoros: o Escudo da
rainha, o Punhal da rainha, o Arco da rainha e o Dardo da rainha.
Escolhi-os entre os mais ferozes e mais fiéis soldados do meu pai.
Serviram-me lealmente durante anos, desde que colocámos as
primeiras pedras da nossa muralha, mas o tempo engrandeceu as
suas ambições. Não me engano, sei que estão consumidos pelo
desejo de me possuírem e de ocuparem o trono. Sempre que os
reúno, apercebo-me da pressão quase dolorosa do seu olhar sobre
os meus olhos e sobre o meu corpo. Por agora não se atrevem a ir
mais longe. Para não desafiarem os outros, nenhum deles pretende
abertamente a minha mão e o meu leito de rainha viúva. De
momento, permaneço no equilíbrio desta rivalidade contrabalançada.
Espero por eles. Nesse instante, os meus enviados devem estar a
bater à porta das suas casas onde, imagino, cada um se terá deitado
ao lado de uma serva e usufruirá dela à sua maneira brusca, com
uma aspereza rotineira. Mas, quando chegarem ao palácio,
inventarão um rol de mentiras. Os meus homens escondem-se de
mim sem necessidade, por hábito. Talvez não saibam falar comigo
como falariam a um rei, como falavam ao meu pai em Tiro. Talvez
não conheçam outra linguagem a não ser a da camaradagem e, em
alternativa, o fingimento. Nem os meus conselheiros nem os meus
soldados nomeiam à minha frente as verdadeiras paixões que os
movem: a ambição, o medo, o amor aos corpos, os sonhos de
grandeza.
O meu marido costumava repetir-me que o bom governante deve
conhecer aquilo que o coração das pessoas encerra. Tentou
transmitir-me essa capacidade. Mas, será que ele conseguiu
assomar-se ao coração dos seus assassinos?
Deixo os meus aposentos e, atravessando o pátio, vou ter à Sala
do Conselho. Duas sentinelas com machados de combate escoltam-
me, empurram as portas dobráveis da divisão e abrem-me
passagem. Os meus homens já ali estão, a falarem num tom mal-
humorado ou talvez só preguiçoso. Intuem uma missão que os
obrigará a velar a intempérie na noite atravessada pelos ventos.
— Meus fiéis capitães — digo.
— Rainha, estivemos a servir-te ao pé das muralhas.
De todos os meus conselheiros, Malco, o Escudo, é aquele que
mente melhor. Respondo ao seu sorriso.
— Não posso pedir maior dedicação.
No silêncio da sala sente-se a respiração de homens fortes, o
fôlego e a tensão do seu ânimo. Os seus corpos, que emanam cheiro
de sexo acre e velhos suores, repugnam-me.
— Devem estar a perguntar-se pelo motivo da minha convocação
nesta noite desagradável — continuo. — Mais uma vez, recorro à
força do vosso braço. Uma frota de homens desconhecidos
desembarcou nas nossas praias. Ajudem-me a interpretar os sinais e
a decidir com sabedoria.
— Minha rainha — responde Safat, o Punhal —, os estrangeiros
podem ser mercadores pacíficos ou piratas desalmados. É cedo para
sabê-lo.
Mercadores pacíficos ou piratas desalmados… Os meus soldados
falam com palavras inflexíveis. Mas nós nascemos numa civilização
de comerciantes, somos filhos do mar e sabemos que qualquer
mercador audacioso se converterá em pirata se a ocasião o permitir.
Sim, ninguém ignora tudo isso. Não há mercadoria mais apetecível
do que os escravos, e se, a navegar perto da costa, uma tripulação
de mercadores avistar uma cidade jovem como a nossa, de muralhas
incompletas, lançar-se-á tal como uma águia para tentar capturar os
nossos jovens e as nossas mulheres, para embarcá-los à força e
vendê-los nos mercados de uma grande capital. Se há algo que
desejo com todas as minhas forças, é defender o meu povo desse
doloroso destino.
— É cedo para sabê-lo, tens razão — respondo. — Mas o meu
coração de mulher está inquieto pela minha gente.
— Organizemos uma expedição contra os intrusos — propõe
Ahiram, o Dardo, a palpitar perante a invocação da luta. Uma cicatriz
deforma o contorno dos seus lábios e dir-se-ia que alarga os cantos
da boca: a sombra de um perturbador sorriso aberto para sempre
por uma faca.
— Se se afastarem das muralhas na vossa expedição, será que a
cidade não perderá as vossas espadas invencíveis? O que é que
aconteceria se fôssemos atacados enquanto vocês estão fora? —
pergunto.
— Rainha, a minha opinião é que devemos reforçar a guarda nas
muralhas e defender a nossa cidade como um tesouro vigiado por
um avarento — diz Elibaal, o Arco.
— Que assim seja — respondo —, confio em vocês, que lutaram
ao lado do meu pai e agora me protegem com o mesmo amor do
que ele. Que se reforce a guarda nas muralhas. Que ninguém
cavalgue à procura dos intrusos, mas, se eles se aproximarem com
uma intenção hostil, prendam-nos. Se resistirem, acabem com eles.
Que todos os nossos inimigos sejam testemunhas da força da jovem
cidade de Cartago.

Eneias

O sono não me visitou, beijando-me os olhos, esta noite. Hora


após hora, ouço o retumbar do mar, os passos dos vigias, o crepitar
das fogueiras. Quando começa a clarear, com o suave cinzento da
alvorada, levanto-me. As minhas roupas ainda estão húmidas, sinto
os músculos endurecidos pelo esforço de ontem, dói-me o corpo.
Olho à minha volta. No céu cor de açafrão delineia-se uma linha
anil de umas montanhas longínquas. No fundo da baía distingo uma
cidade que se eleva até ao cimo de um promontório e a faixa
amarela das suas muralhas. Os pássaros voam rente ao chão, as
suas sombras azuis deslizam pela areia.
Ajoelhado ao pé da fogueira, falo com os deuses. Ergo as mãos
com as palmas para cima: «Deuses, se alguma vez vos alegrámos
com os nossos sacrifícios, se se preocupam com os nossos
sofrimentos, por favor, cuidem do meu filho Iulo e façam com que
me reúna com ele. Se concretizarem este meu desejo, prometo
edificar um grande templo em vossa honra quando chegar ao lugar
da profecia.» Derramo vinho e observo como a areia o bebe,
enquanto imploro aos poderes da Terra e do Submundo pela
salvação do Iulo.
O acampamento acorda depois da noite inquieta e as sentinelas
sentem-se libertadas da sua solidão. Tem início a azáfama de um
novo dia. O ténue sol mal afugenta o frio e é preciso avivar as
fogueiras. Aquecemos os restos das nossas provisões e comemos
em silêncio, esfregando as articulações. Ao terminar, ordeno que
amarrem e escondam o barco, protegido das rochas. Depois procuro
o Acates.
— Com a luz do novo dia vou explorar a costa para descobrir
onde estamos e para onde é que os ventos empurraram os nossos
companheiros — digo.
— Vou contigo — responde, aceitando partilhar o perigo.
Cubro-me com uma capa de pele de lobo. Eu e o Acates
armamo-nos com espadas de dois gumes e lanças que nos servirão
de apoio ao caminhar entre as dunas. O vento forma à nossa volta
uma nuvem de terra avermelhada, sinto o ardor dos remoinhos de
pó nos olhos e o chiar da areia entre os dentes. Lá em cima, as
gaivotas que descansam o seu peso sobre as rajadas de vento
gritam surpreendidas e alvoraçadas pelos empurrões da brisa.
Explico ao Acates que quero aproximar-me da cidade e procurar
algum promontório que domine a vista sobre as praias de poente.
Acates olha com atenção para o terreno: a neblina de areia, as
dunas, as escassas manchas de arbustos. Caminhar por um espaço
aberto e desconhecido significa arriscar a vida.
— Adiante — responde.
Avançamos em fila, depressa, com os olhos e os ouvidos atentos.
A areia engole os nossos passos. Admiro os movimentos do Acates,
rápidos e precisos. Dez anos de guerra endureceram o seu corpo,
tornaram-no forte para enfrentar os ventos do mundo.
Sim, no meu caso também, no de todos. Nós, os combatentes de
Troia, curtimo-nos todos durante estes dez amargos anos de guerra.
E o Iulo? O Iulo é um menino que não conheceu a paz. Nasceu
numa cidade sitiada. O seu alvoroço infantil ficava apagado pelo
barulho das armas. Se chegar a ser um homem, o que é que
recordará desta infância cercada? E será que recordará algo dos
segredos dos seus pais? O que aconteceu entre mim e a sua mãe
desaparecerá para sempre, ou criará raízes na sua memória?
Se estiver vivo. Se conseguir encontrá-lo.
Quando é que começou esta lenta ruína?
O Acates aproxima-se de um arbusto de tamarisco para se
proteger. Põe-se de cócoras. Agachamo-nos os dois e descansamos
do ritmo rápido da nossa caminhada. Combinamos rodear a cidade.
Já só nos separa dela a distância que uma junta de bois poderia arar
numa jornada.
Levantamo-nos lentamente. O vento remexe as ervas daninhas
que crescem entre a areia à altura do tornozelo. Os meus sentidos
estão alerta. Já chegou a manhã. Contra o céu azul profundo
recortam-se as muralhas, que umas vezes são de pedra e outras de
adobe ou simples parapeitos de madeira. É uma cidade jovem e
fronteiriça, provavelmente uma cidade que teme os estranhos
chegados do mar. Será que os meus homens terão encontrado aqui
hospitalidade e auxílio?
Rasgando o ar, uma lança sobrevoa a minha testa e crava-se no
chão. Afundo a cabeça entre os ombros, recuo. Abrem-se as portas
da cidade e sai um grupo de soldados a galopar nos seus cavalos.
Rodeiam-nos a gritar numa língua estranha. Dois deles desmontam
e, sem responderem nem entenderem os nossos protestos, atam-
nos as mãos, obrigam-nos a andar até ao seu quartel e atiram-nos
para uma cela. Quando fecham o portão com um golpe seco,
afundam-nos na escuridão.

Elisa

Um soldado traz notícias dos piratas presos. Quero vê-los com os


meus próprios olhos, quero decidir o seu castigo e que ouçam dos
meus lábios a sua pena. Ordeno à guarda que me escolte até à
prisão e encaminho-me para os estábulos.
Desde criança que sempre senti um estranho prazer ao entrar
nas cavalariças. Hoje volto a respirar com gosto o ar carregado,
quente, quase doce que envolve os animais. Ouço o som do trigo
mastigado devagar, em paciente salivação. Uma fila de cabeças vira-
se para mim, descobre a minha chegada e celebra-a. Ouve-se bufar
e relinchar, vejo-me refletida em todos esses olhos brilhantes.
Eu própria coloco os arreios ao meu cavalo branco siciliano, a
mão posta no seu focinho com um gesto acariciador. Enquanto
aperto as correntes da sela, falo docemente com ele. Detenho-me
um instante no amor que o seu olhar púrpura me dedica.
Os escravos do estábulo, que conhecem os meus hábitos,
deixam-me à vontade sem tentarem antecipar os meus desejos.
Escolho um a um os palafreneiros que se ocupam de domar e cuidar
dos meus melhores cavalos. Sei que alguns servos descarregam a
sua cólera às escondidas contra os animais do amo e tremo perante
a mera ideia dessas crueldades silenciosas.
No pátio rodeado pela paliçada branca, em frente ao celeiro
destinado à forragem, monto. Aperto os flancos do cavalo com os
joelhos e ele aceita o peso do meu corpo e a pressão das minhas
pernas. Enquanto deixamos para trás as dependências do palácio
embrenhando-nos nas ruas, um dos homens da minha guarda cede-
me a sua espada. Quero que todos os meus súbditos me vejam
assim, armada e em cima de um cavalo branco, o cabelo solto e a
segurança do ginete experiente, como imaginam que são as
mulheres guerreiras das lendas que se transmitem de avós para
netos.
Vou dar uma lição aos nossos inimigos. Vou fazer justiça com os
piratas estrangeiros. É justo que, pelo menos por uma vez, homens
como eles, que enriqueceram através do roubo, da pilhagem e do
comércio de mulheres, estejam à mercê de uma mulher.
De repente sinto-me alegre. Alegre porque defendi a cidade, pela
barafunda das ruas que atravesso, pelos lagares, adegas, armazéns
e padarias que se erguem para que a abundância floresça, pelas
açoteias brancas banhadas pela luz e, atrás de mim, o palácio e o
templo já quase terminados. À minha volta, tudo cresce e tudo
prospera. Cheira a pinheiros, a rebanhos, a fogueiras. O Sol, um
limão no céu suavemente azul, aquece-me as costas e as coxas. O
meu cavalo arqueia o pescoço e mexe-se com a graciosidade de um
bailarino, sabendo-se observado e sabendo-se belo.
Um pequeno cortejo de curiosos seguiu-me pelas ruas e agora
agrupa-se na praça ao pé dos muros da prisão. Faço sinais aos
soldados que estão de sentinela.
— Tragam os prisioneiros à minha presença — digo.
Cresce a multidão, o rumor de vozes, a impaciência, os
empurrões para ocuparem a primeira fila. Os soldados
desembainham as suas espadas e, brandindo-as, gritam à turba que
avança para o centro da praça. Os meus guardas adiantam-se e
marcham à minha volta formando uma barreira infranqueável,
impedindo a passagem dos mais atrevidos e contendo a multidão
que se aglomera perante o engodo dos piratas.
O som das fechaduras faz com que todos se calem. Duas
sentinelas abrem uma após outra as portas das celas no meio de um
silêncio vibrante, como a corda pulsada de um instrumento musical
que se nega a emudecer.
Aos empurrões, as sentinelas tiram os piratas da prisão e
conduzem-nos até onde eu consigo vê-los de frente e falar com eles.
São uma dúzia de homens sujos e atordoados. Acabam de sair da
escuridão das suas celas e os olhos negam-lhes a visão.
Olho para o meu povo reunido e expectante. Um homem cerra os
punhos tal como um lutador. As mulheres recuam o máximo
possível. Contemplo as suas bocas abertas, a desenharem uma
expressão de surpresa e de voracidade. Não gosto da sede de
sangue do meu povo, mas hoje vou demonstrar que o meu poder
não vacila perante ninguém.
— Prisioneiros! — digo. — Chegou o momento de pagarem pelas
vossas culpas. Conseguem dizer alguma coisa em vossa defesa?
Os prisioneiros não entendem as minhas palavras nem se sentem
interpelados por elas. Quando os seus olhos se habituam à luz e o
véu da cegueira cai, reconhecem-se uns aos outros. Confinados nas
suas respetivas celas, não sabiam qual tinha sido o destino dos
outros. Descobrem com surpresa e inesperada alegria que estão
juntos e vivos.
Deixo que o tempo da sua defesa expire. Se não podem ou não
querem responder à minha pergunta, ditarei a sentença. Que
morram e que os seus corpos sejam expostos pendurados, virados
para o mar, fora das nossas muralhas, até que os abutres os
devorem. Que o espetáculo sirva de aviso para futuros saqueadores.
E que os deuses queiram que a notícia viaje terra adentro, onde os
belicosos povos nativos, à passagem das nossas caravanas,
começam a cobiçar as nossas riquezas.
Os meus soldados batem nos braços dos prisioneiros atados às
costas, para que fiquem em silêncio e ouçam as minhas palavras.
Com um orgulho mudo, indiferente ao castigo das varas, um
prisioneiro coberto pela pele de um lobo levanta o seu olhar para
mim.
— Rainha — diz. Fala na antiga língua dos acádios, a língua dos
palácios e das embaixadas. — Rainha, chegámos às tuas costas sem
uma intenção hostil.
Nos seus olhos há um fulgor estranho e antigo.
Faço um gesto com a cabeça. O gesto quer dizer: «Sim, percebo
as tuas palavras, pertenço ao mundo em que se fala essa língua.
Continua.»
— Não sei se chegou até aqui algum eco das desgraças de Troia
— diz. — Troia resistiu a um cerco de dez anos, até ser derrotada
por causa de uma traição.
Acaricio a espessa crina do cavalo, afundo os dedos nela, medito.
Por fim digo:
— Ouvi que os exércitos gregos destruíram Troia, mataram os
homens e, de acordo com o cruel hábito da guerra, tornaram todas
as mulheres escravas. Mas explica-te, quem és tu?
— O meu nome é Eneias. A minha mulher, Creusa, era filha do rei
de Troia. Por ela e pelo nosso filho defendi a cidade até ao meu
último fôlego e, quando já era tudo ruína e destruição, salvei as
imagens dos nossos deuses com a ajuda de um grupo de corajosos
homens. Para trás ficou a minha mulher e uma ferida mais dolorosa
do que a própria morte. Desde então naveguei com os meus fiéis
companheiros pelos caminhos do mar. O nosso destino era a terra a
que uns chamam Hespéria e outros Itália.
— O que é que procuram ali? — pergunto-lhe. Os seus olhos
continuam a faiscar.
— Uma antiga profecia diz que fundaremos uma nova Troia e que
essa cidade será o berço de um império maior do que os nossos
sonhos e mais duradouro do que as nossas derrotas.
Um cão ladra. As pessoas irritam-se e praguejam. Vieram até à
praça do presídio para ver o castigo que aguarda os piratas, para
aclamar a sua sentença de morte. Agora não entendem esta
estranha conversa em língua estrangeira, este raro preâmbulo que
antecede o castigo. Lançam gritos, tentam recordar-me do meu
dever com exclamações de ódio e gestos de raiva.
— Estão longe da vossa rota. O que é que vos trouxe a estas
terras? — pergunto.
— A tempestade arrastou-nos, afastando-nos da nossa rota,
rainha. Somos náufragos e os náufragos não podem escolher o lugar
onde encontram a salvação.
A fúria e a gritaria descontrolam-se, abafando o interrogatório. O
estrangeiro conseguiu separar-me do meu povo com as barreiras de
um idioma que só nós compreendemos.
E sim, reconhecermo-nos numa língua que se fala na casa dos
reis, reconhecermo-nos como fugitivos de um mesmo mundo, não é
motivo suficiente para lhes dar guarida? Não oferecerei a
hospitalidade do meu palácio e da minha mesa a um viajante que
viu a sua cidade arder e que ainda leva o incêndio nos seus olhos?
Mas será que o meu povo suportará que eu perdoe estes
estrangeiros para os quais já afiávamos as espadas?

Ana

Tenho medo. Quero sair daqui. Não quero ser esta menina feia
de braços ossudos.
Durante as últimas luas cresci muito. Estico-me, trepo para cima
como as parreiras. Tenho as pernas demasiado compridas, sou a
irmã desses pássaros de asas vermelhas que dão cor ao lago, irmã
dos flamingos. Se a brisa brinca com o meu corpo e me levanta a
túnica, verão as minhas pernas magras e os meus joelhos enormes.
E os meus ossos continuam em frente, afastando-se do chão,
puxando a carne, tornando-me mais comprida tal como a tarde que
torna mais comprida a minha sombra.
A Elisa disse-me que dentro de pouco tempo chegará o primeiro
sangue e que não me devo assustar. Mas não percebo bem. Como é
que se abre no meio das pernas essa ferida que não tem cura?
Saberei que já sou adulta quando me manchar com o meu próprio
sangue?
Mas não é preciso ter medo dos estrangeiros chegados do mar.
Escondida entre a multidão, observo e ouço o homem vestido de
lobo. Fala na língua dos reis sobre traições e fugas. Vejo as suas
costas, as mãos inchadas e roxas dentro dos nós de corda, as
barrigas das pernas fortes, as cicatrizes nas suas pernas.
— A tempestade arrastou-nos, rainha — diz o prisioneiro. — Os
náufragos não podem escolher o lugar onde encontram a salvação.
A Elisa, montada no seu cavalo, olha de cima para baixo. Gosta
de falar com os homens desde a altura do ginete. Não quer que
ninguém se esqueça de que é poderosa.
— Valente Eneias — diz, com um sorriso que se vai entristecendo
e uns olhos que vão escurecendo —, eu também perdi a minha
pátria, onde nasci. Eu também fui traída. Conheço essa dor e
também os caminhos do mar e o desejo de construir uma cidade
nova. O teu destino e o meu são parecidos.
Fitam-se.
Uma pedra silva no vento e golpeia a têmpora de um dos
prisioneiros. Recebe o impacto fulminante, agita as mãos atadas que
não pode colocar na ferida, cerra os punhos. O sangue cai, ramifica-
se, atrai as moscas.
Os gritos da turba crescem com ferocidade.
A Elisa levanta a mão para calá-los e depois fala na nossa língua.
— Não magoem os estrangeiros. Não são piratas. São
sobreviventes da Guerra de Troia em busca de uma terra que
possam chamar sua. Lembrem-se de que muitos de nós conhecemos
o destino dos perseguidos. Por isso, desejo oferecer aos troianos o
meu acolhimento e conceder-lhes tempo e ajuda para repararem as
suas naus. Enquanto permanecerem entre nós, as suas espadas
poderão unir-se às nossas se formos atacados na noite.
Olhos frios, rostos hostis, corpos tensos recebem as palavras da
Elisa. Ninguém se mexe, ninguém diz nada. Se alguém dá o primeiro
passo, o do desafio, a multidão criará um motim. Espancarão e
enforcarão os estrangeiros, darão pontapés às carroças, roubarão
ânforas de vinho e cairão adormecidos pela bebedeira debaixo dos
pés dos enforcados balançando-se suavemente no vento.
Eu sei. Vi estes homens fazerem coisas horríveis. Já me gelaram
o sangue outras vezes.
Sustenho a respiração, que treme encerrada no meu peito.
Será que uma menina feia e ossuda poderia detê-los?
Avanço. As pessoas afastam-se. Caminho com passos silenciosos
até ao grupo de troianos.
Quando vivia em Tiro, chamavam-me a filha da feiticeira. Aqui, a
Elisa disse-me: «Tu serás a sacerdotisa-menina de Eshmun, a
adivinha.» Mas será que acreditarão em mim se eu falar em nome
dos deuses? Ou farão troça e lançar-me-ão pedras?
Estou no meio da praça. Estico os braços.
— A hospitalidade é sagrada — digo —, e os deuses amam-na.
Estes homens estão protegidos pelos deuses.
Ponho uma mão no braço do prisioneiro ferido. Depois viro-me
para que todos contemplem a minha figura magra e, sobretudo, a
mancha negra de nascimento na minha cara. A minha cara marcada
desde que saí da barriga da minha mãe.
Diziam que a minha mãe fazia feitiços em frente do lume, que
rasgava animais vivos e que falava com estranhos gemidos aos
mortos. Se acreditaram em tudo isso, agora recearão os poderes
ocultos em mim.
Olhamo-nos, medo contra medo. O seu desejo de matar assusta-
me, a flor negra da minha face assusta-os.
Volto a tocar na ferida do prisioneiro, o seu cabelo colado à
cabeça pelo sangue. Afrouxo a corda que ata as suas mãos
azuladas. Alguns homens viram-se, desatam as mulas e vão-se
embora. Outros seguem-nos. O tempo da violência já passou.
A Elisa desmonta. Com a sua espada corta as cordas que atam os
prisioneiros.
— Sigam-me até ao palácio. As minhas escravas vão preparar-vos
um banho e trazer-vos túnicas novas — diz, porque os troianos estão
sujos e cheiram mal.
O Eneias traduz para os seus homens. Enquanto falam, esfregam
os pulsos e dobram os dedos com dor. As moscas percorrem a sua
pele.
A praça esvaziou-se entre murmúrios de palavras ásperas a meia-
voz. As sentinelas voltaram aos seus lugares. A Elisa aproxima-se e
pega na minha mão. Os seus dedos entrelaçam-se com os meus.
Muitas vezes gostava de abraçá-la tal como abraçava a minha mãe,
escondendo a cabeça entre as macias montanhas dos seus peitos.
Mas sou demasiado grande e por isso ela só me oferece a mão, o
prémio da sua palma morna e dos nossos dedos entrançados uns
com os outros como os vimes de uma cesta.
Fui corajosa. Está orgulhosa de mim.
O Eneias agradece-nos, mas eu distraio-me. As frases longas da
linguagem dos palácios, que dizem uma e outra vez as mesmas
coisas, aborrecem-me. Porém, ouço uma palavra da qual tinha
sentido a falta em segredo desde que fugimos de Tiro, a palavra
mágica e alada. Falam de um menino!
— Rainha Elisa — está a dizer o Eneias —, tenho um filho
chamado Iulo, um menino sem mais família do que eu nem mais
proteção do que a minha. Preciso de saber se sobreviveu à
tempestade. Peço a tua autorização para ir procurá-lo entre os
despojos da minha frota.
A Elisa desfaz a cesta construída pelas nossas mãos e aponta
para o palácio.
— Vem comigo — diz. — Ofereço-te um cavalo e a escolta dos
meus soldados, que conhecem o terreno.
Não os acompanho ao palácio. Deixo a praça a balançar os
braços.
Um menino! Sou invadida pelo riso de pura alegria devido ao som
da palavra.
Atravesso o bairro de pescadores, onde as redes se estendem de
casa em casa como céus rendilhados. Há cheiros de especiarias,
cheiros de cozinha, cheiros de mar. Confundo-me entre os escravos
e os aguadeiros que enchem as ruas.
Conheço um lugar secreto para onde a maré lança os restos dos
naufrágios. Talvez ali encontre os companheiros do Eneias, o
troiano. Tenho de saber se o menino está vivo. Odeio esta cidade
sem crianças, esta cidade onde não encontraremos nenhum idoso de
boca encovada e pescoço magro que cante uma canção de embalar
antiga, esta cidade onde não há cegos, nem aleijados, nem gente
compassiva. Odeio esta cidade de colonos fortes que embarcaram
com a Elisa a fugir de um rei louco. Aqui ninguém brinca, ninguém
conta lendas à volta da fogueira.
Enveredo pelo caminho da ribeira. As palmeiras dançam no ar,
nesse vento morno que levanta e encaracola pequenos remoinhos
de pó.
Aqui as mulheres não têm filhos, vivem escondidas num silêncio
vingativo. Lembro-me de quando os nossos homens as raptaram
para terem companheiras de leito, do pavor daquela noite no Chipre,
das casas em chamas, dos pais e maridos esfaqueados. Agora elas
tecem redes, fazem sandálias, cozem peixe, deitam-se nas camas
dos guerreiros e amaldiçoam-nos em segredo. Na escuridão da
noite, ninguém protege ninguém com o calor do seu corpo.
Acaricio o meu colar de amuletos. Deuses, façam com que o
menino troiano esteja vivo.
Corro com as minhas pernas compridas, a minha túnica esvoaça.
Ao longe, os rebanhos balem. Deixo para trás a cidade, as pedreiras
e as colinas avermelhadas. Não tenho mais forças para correr,
caminho. Estou quase a dar-me por vencida quando distingo luzes
de fogueiras por baixo do negrume dos abetos na falésia. Chega até
mim um limpo cheiro a pinheiros, e a brisa fresca, e a fumo de
lenha. O mar palpita e brilha. Ao atravessar entre as matas
espinhosas, o ar traz ecos de vozes e de ondas a rebentar. Encontrei
o lugar secreto, sei que são eles.
Trepo pelo tronco de uma azinheira que cresce na encosta da
falésia branca. Escondida entre os ramos, vigio e espero. O céu é um
remoinho de cor lavanda e laranja, depois de um amarelo frio. As
gaivotas com as suas asas de foice giram sobre a minha cabeça. Os
estrangeiros entram e saem das suas tendas de peles, acendem
fogueiras, sentam-se a comer em pequenas rodas. Saltam faíscas do
lume. O vento move as sombras dos barcos escorados com os seus
mastros partidos e as velas rasgadas.
Ali está, o menino Iulo.
A brisa levanta camadas de pó dourado. Os últimos raios que
ficaram para trás tornam a areia loura. O menino salta, do alto de
uma duna, e cai sobre os calcanhares. Depois perde o equilíbrio, os
braços à procura de asas impossíveis no ar.
Pela primeira vez desde que cheguei a estas terras, tremem-me
na barriga vagas de riso.
Eneias

A menina da mancha escura na face agarra na cabeça da vítima,


ergue-a lentamente e afunda a faca na sua garganta. Os gritos do
boi ferem o ar. Aparecem vários escravos que seguram o animal e
lhe cravam mais vezes a faca até degolá-lo e conseguir o seu
silêncio. É percorrido por longos tremores, baixa a testa e morre
estremecendo-se. O altar fica encharcado com o sangue, salpicos
vermelhos borrifam o rosto e a túnica da menina.
É um sacrifício para celebrar a nossa chegada a estas terras.
A menina eleva uma súplica na sua língua. Levanta os braços
esticados e o seu corpo parece um túnel para o céu, ou uma taça
onde os deuses se vertem.
Os escravos esfolam o animal. Depois, desmancham as coxas.
Acendem uma fogueira de lenha para assar as vísceras. A cerimónia
continua com um segundo boi. As sensações de outros tempos
despertam: a cor da carne, o cheiro do sangue no ar. A fome
humedece-me a boca, agita-se e grunhe na minha barriga. Tenho
quase sempre fome, poucas vezes se acalma totalmente.
A Elisa vai celebrar um grande banquete esta noite. Porão a
carne do sacrifício em grandes espetos e fá-la-ão girar vertendo
vinho, lambida pelo fogo.
Tento esquecer a fome. Também eu peço ajuda interiormente
enquanto continua, à minha volta, este ritual do qual sinto, ao
mesmo tempo, que sou excluído e que faço parte. Desde o altar, a
estátua de uma deusa que ergue os peitos nus com as mãos vigia a
minha presença estrangeira. Tem grandes olhos e o olhar fixo de
uma serpente.
Será que os deuses estarão assim entre nós, a observarem-nos
desde o invisível com essa tenacidade?
A única mãe que conheci foi a deusa a quem fazíamos oferendas
no altar. Quando eu era pequenino, o meu pai, o meu querido pai
Anquises, contou-me a estranha história do meu nascimento:
Fala-me da minha mãe.
Terás de prometer-me que não vais contar o segredo. Nunca.
Eu prometo.
Uni-me em amor com a deusa da Vida.
E não tiveste medo?
Quando aconteceu, eu não sabia. Ela tinha forma mortal.
Então como é que sabes que era uma deusa?
Mais tarde ela revelou-me quem era e anunciou-me que me daria
um filho.
Eu?
Sim, Eneias, tu. Um dia regressou contigo ao colo. Foi a última
vez que a vi.
Disse-te alguma coisa que queria que eu soubesse?
Disse que ninguém devia saber a verdade. Avisou-me de que, se
falasse demais, sofreria as consequências. Uma vez fi-lo. Dei com a
língua nos dentes durante uma festa, na arrogância de uma
bebedeira. Nessa mesma noite, de regresso, um raio deixou-me coxo
para o resto da minha vida. Só os membros da nossa estirpe
poderão sabê-lo. Os teus filhos. Os filhos dos teus filhos.
Isso foi tudo. Se o meu pai voltava em silêncio aos prodígios da
sua memória, não sei. As suas palavras sempre foram simples,
contidas, sem qualquer marca de assombro.
Mas, será verdade? O que é que sentiria o meu pai ao semear a
sua semente numa deusa? O disfarce de carne dela poderia chegar
mais além, até ao seu corpo luminoso de deusa? É possível que o
meu pai, morto como um fugitivo na velhice, e eu, náufrago
esfomeado sem uma cidade à qual voltar, é possível que sejamos
uns eleitos?
Rezo à deusa da minha infância para que me devolva o Iulo. A
cada dia que passa, a esperança de encontrá-lo torna-se mais
duvidosa. Os homens da Elisa que ontem me guiaram na busca
rodeiam-me. Terminado o sacrifício, partiremos de novo, explorando
mais além do istmo.
Rezo: «Mãe, prazer de deuses e homens, estrela da tarde, por ti
nascem os animais, de ti fogem os ventos, a terra dá flores suaves
para ti, o mar ri contigo, a luz brilha no claro céu. Deusa do sorriso
eterno, ajuda-me a encontrar o Iulo.»
Tenho os olhos a arder. O meu corpo reclama descanso, mas
ontem à noite não consegui dormir após o fracasso na busca do
Iulo. E, para além disso, no palácio foi tão grande a estranheza de
dormir numa verdadeira cama…
O ritual termina. O ar ondula e brilha sobre a fogueira, a brisa
enreda-se nas chamas. A menina aperta os nós dos dedos contra os
seus olhos, está a acordar de um transe. Fita-me. Desce os degraus
do altar e dirige-se a mim. O seu cabelo está manchado de sangue.
— Eneias, não sofras — diz. — O teu filho está vivo. Eu vi-o.
Sem esperar resposta, dirige-se na sua língua aos homens da
Elisa. O seu dedo aponta várias vezes na mesma direção, para o
mar.
Será que posso acreditar nas visões desta menina que fala com
os deuses, que nos salvou ontem da violência dos seus homens?
Montamos a cavalo e avançamos na direção indicada pelo dedo
da menina adivinha. Seguem-nos dois burros carregados de
mantimentos com o lombo afundado sob o peso dos fardos. Nenhum
dos homens que formam o grupo de busca entende as minhas
palavras, por isso parto isolado deles, para longe da sua hostilidade.
O chefe da expedição é um homem violento com uma cicatriz que
lhe prolonga a boca. Desde o início olhámo-nos com desprezo, ele,
porque sabe que está diante de um guerreiro vencido, e eu, porque
estou farto das fanfarronadas dos guerreiros em tempos de paz.
Enterro os calcanhares nos flancos do cavalo e sigo os homens
que se embrenham em fila pelas ruas semeadas de desperdícios e
tijolos de adobe a secarem ao sol. Nas praças, nos ângulos das
fachadas e no cimo das muralhas aparecem imagens de deuses
rechonchudos, com barrigas avultadas e dentes de fera, deuses que
me gelam o sangue.
O guerreiro da cicatriz fixa os seus olhos nos meus e diz alguma
coisa que faz com que os outros desatem a rir. Um colar de placas
douradas enreda-se no pelo do seu peito. Irrito-me, mas não
respondo às suas provocações. Encerrado na carapaça do meu
silêncio, finjo não entender. E quem sabe se entendi? Só falo línguas
exiladas.
Cruzámos uma porta de azinheira forrada com chapas de bronze,
saímos para um terreno aberto. Por trás da penumbra azul vejo a
planície do mar e as ondas onde faísca mil vezes o fogo do sol.
Desde as pedreiras chega o martelar dos escravos enterrando
cunhas de madeira na pedra calcária, como um eco do meu coração
que palpita ansioso no peito. Será que encontrarei o Iulo nestas
costas onde arrisco as minhas últimas esperanças?
Preciso de salvar o Iulo.
Enquanto cavalgamos, regressam antigos fantasmas para me
relembrarem que em vida não soube protegê-los. Tantos
companheiros de combate, os meus irmãos na guerra. A minha
mulher. O meu pai, a quem tirei de Troia aos ombros porque a
velhice cansava os seus pés. Nem sequer lhe pude dar um leito
tranquilo onde morrer e agora o seu túmulo é um lugar sem nome,
um lugar esquecido.
Preciso de salvar o Iulo e os homens que me restam.
Perdi muito. Paguei pelos meus erros. Se os deuses me
permitirem salvá-los, saberei que me perdoam e me purificam. Caso
contrário, saberei que cai sobre mim o seu castigo.
Será que a deusa da Vida, à qual chamo «mãe», poderá
purificar-me ou, recordando o que fiz naquela manhã diante dos
olhos da minha mulher e do meu filho, virará a cabeça enojada?
Talvez os deuses compreendam que a guerra já durava há
demasiados anos e que em nós — também em mim — sopravam
ventos de fúria e de vingança. Talvez compreendam e estendam a
sua mão salvadora.
No início eu também desejava a guerra, a gritaria, as esquadras
apertadas, a couraça à volta do peito e o escudo alto. Não há nada
que se compare ao prazer de estar vivo no instante do combate. A
grandeza da luta seduz-nos. O corpo e as armas não pesam, uma
pessoa sente a segurança dos seus próprios movimentos. Via muita
gente morrer, mas achava-me invulnerável e as mortes de outros
não afetavam a minha crença. Sabia que os deuses estavam entre
nós, a cortarem os fios que sustêm a vida dos homens, mas o medo
ficava adiado até ao fim da batalha, quando relembrava o perigo.
No início não compreendemos que a guerra nos está a arrebatar
a esperança. Não nos apercebemos porque queremos a guerra. Mas
o tempo passa e são demasiados os jovens mortos, esmagados
como uvas, os cadáveres esquartejados pelas carroças. Cansei-me
de lutar. Alguns de nós sobreviviam e outros não. Quem é que
sobrevivia? Nem os melhores nem os piores. Também não importava
se seríamos chorados por muitos ou por nenhum. Eu próprio já não
era amado, mas vivi.
Um dia o Polidoro, o irmão mais novo da minha mulher, o irmão
mais novo a quem tanto amei, morreu. O seu pai não lhe permitiu
participar na luta, mas ele corria entre as linhas de soldados porque
era muito rápido na corrida e precisava da nossa admiração. As
crianças que crescem em anos de guerra não suportam que a idade
as proteja. Quantas vezes matam a sua inocência para entrarem na
batalha e que pouco tempo sobrevivem à sua infância. Uma lança
cravou-se no umbigo do Polidoro. Com um lamento, desfaleceu. Vi-o
encurvar-se para o chão com as entranhas na mão. Uma nuvem
vermelha escureceu os seus olhos enquanto morria.
Desde então, senti-me subjugado pelo cansaço da guerra.
Cavalgo a trote para seguir o passo dos outros. Aproxima-se o
meio-dia. Somos banhados por uma bela luz cor de cerveja. Sopra a
brisa atravessada pelas setas dos pássaros. Lutei tantas vezes em
dias assim, à beira de Troia…
Um dos homens assobia e aponta ao longe. Os outros fazem o
mesmo, a olharem para mim. Os seus dedos erguem-se com
insistência. Inicialmente, não me apercebo de nada. Vejo a
escuridão dos pinheiros e a brancura da falésia. Vejo à distância uma
praia sob o assalto sem fim das ondas. Então avisto, perto do mar,
vários mastros inclinados como espigas vergadas pelo vento. São os
meus barcos. Sou invadido pela fé na profecia da menina. Os cascos
dos cavalos pisam um tapete de caruma que range e desprende
aroma, a sua frescura penetra no meu nariz sob o calor do sol. Estou
confiante.
Galopamos pela areia. Os cascos dos cavalos levantam uma
poeirada que parece fumo e que se desvanece no vapor do mar. Já
avisto os vigias do acampamento ao pé dos barcos. Grito os seus
nomes e agito os braços para que não receiem um ataque. Enterro
os calcanhares nos flancos do cavalo e empreendo uma corrida na
qual adianto todo o grupo até deixá-lo atrás de mim. Sinto que ao
gritar me liberto do medo, expulsando-o de mim.
Vou encontrar o Iulo. Os deuses continuam comigo.
Encurto as rédeas e detenho o cavalo. Desmonto.
— Sou eu! Sou o Eneias!
As sentinelas observam-me com cautela. Dou uns passos. Por fim
reconhecem-me e baixam o escudo.
— O Iulo está vivo? Está convosco? — pergunto-lhes ao longe.
Assentem com a cabeça.
Abraço-os, chamando-os pelo seu nome. Digo:
— Finalmente encontro-vos! Estão todos? Morreu alguém na
tempestade?
Apontam-me para cinco cadáveres alinhados sobre a areia. Há
mais um que emerge semiafundado na água, embalado pelas ondas.
Penso no meu pai, que como eles descansa sem uma camada de
terra natal sobre os seus ossos.
Os vigias lançaram-se sobre os fardos de comida. Comem aos
punhados pedaços de pão e peixe fumado. À volta dos burros forma-
se uma roda de homens sedentos, em luta pelos odres de vinho.
Percorro o acampamento. Vejo a ossada dos barcos, os meus
companheiros arrancaram a madeira do casco para alimentarem as
fogueiras e fazerem talas para os feridos. Vejo as velas esfarrapadas.
Vejo os madeiros flutuantes e uma sandália abandonada na
margem. As faíscas de uma fogueira solitária morrem na brisa.
Assomo a cabeça ao interior das tendas. Há corpos estendidos
que gemem, com ligaduras feitas de farrapos das velas. Levantam o
rosto quando me veem, a fome e a febre refletidas nos seus olhos.
Sinto um cheiro acre, o cheiro da gangrena.
Encontro o Iulo encolhido no fundo escuro de uma tenda,
sozinho.
— Iulo! Estás bem?
Afasta-se de mim. Grita:
— Onde é que estavas?
— À tua procura. Não deixava de pensar em ti.
Sai a correr da tenda. Sigo-o. Escapa-se. Se eu me detiver, ele
também, mas não me permite encurtar a distância.
Deixo de persegui-lo, caminho lentamente em direção ao mar e
paro à beira da água. Falo com o Iulo sem olhar para ele, sei que me
ouve.
— Vou agradecer aos deuses por estares vivo. Rezarei à deusa da
Vida. Não te terás esquecido de que és o neto da estrela do
crepúsculo, a deusa do sorriso eterno, a deusa pela qual tudo nasce
e cresce e olha para o sol, pois não?
Elevo o tom da minha prece. Há uma faixa brilhante na água e,
sobre ela, um pássaro mede as suas forças com o vento. À minha
volta, a desolação do naufrágio. Uma mudança na direção do vento
traz o cheiro nauseabundo dos cadáveres que ninguém queimou
numa pira. Movo-me para virar as costas aos mortos.
O Iulo deixa que me aproxime dele. Quando chego, dá-me um
murro com o punho fechado. Lambe as lágrimas que lhe correm ao
pé da boca. Beijo o seu cabelo, beijo a sujidade seca do seu cabelo.
Apalpo o seu corpo tentando descobrir se há feridas ou dor.
— Iulo, o que é que te aconteceu nestes dias? — murmuro.
Continua a chorar. Baixo-me à altura dos seus olhos.
— E agora, Iulo, vou levar-te a um palácio como os que havia em
Troia.
— Troia — repete ele. Tapa o meu nariz tal como me viu fazer
quando o vento trazia fedor de morte. O seu gesto é brusco, em
parte outro golpe e em parte um jogo novo com o qual talvez
comece a perdoar-me.

Eros

Invisível, sem fazer barulho, sem deixar rasto, atravesso o palácio


de Elisa.
Cheguei às costas africanas a cortar o vento, à procura da cidade
de Cartago, sem mais companhia do que a do silêncio amigo da Lua.
Venho de onde não há tempo e, talvez por inexperiência, chego
atrasado ao banquete que Elisa celebra para dar as boas-vindas aos
troianos. A festa já começou, devia ter viajado mais depressa, mas
atravessar de um lado para o outro não é uma operação fácil, nem
sequer para mim, que estou tão habituado a isso. É necessário fazer
um corte muito preciso na membrana do tempo e, com um salto,
penetrar no instante assim entreaberto, entrando de cabeça no
mundo dos vivos. Felizmente, todo eu sou leveza e adapto-me
depressa e mexo-me rápido.
No salão do banquete, está tudo pronto para que use os meus
poderes. O lume arde na lareira e nas tochas, dourando a pele dos
convidados. A gordura da carne ainda goteja das suas bocas. Os
escravos enchem os copos de vinho que, nesta noite fria do deserto,
se dispersa pelas artérias como uma língua de calor líquido. São
condições propícias para mim. Sei que na música, no calor e na
saciedade, as minhas vitórias são mais simples. Fico contente por ter
encontrado um cenário favorável porque, nos primeiros passos de
cada amor, os meus avanços são muito cansativos, para além de
incertos. Nós, deuses, exercemos uma soberania muito mais frágil
do que os humanos julgam.
— Hóspede — diz Elisa, embalada pelo meu suave murmúrio no
seu ouvido —, sabemos que vens da Guerra de Troia, navegando
pelos abismos do mar. Conta-nos as tuas lutas com os gregos e as
tuas viagens.
Eneias responde:
— É doloroso recordar Troia, rainha, mas tentarei contar a infeliz
história que queres ouvir sem ficar abalado.
Que ninguém pergunte porque é que os humanos nos fascinam
tanto. Como não? Nós, deuses, não conhecemos a aventura. Nunca
nos acontece nada, somos eternamente jovens, não mudamos, não
corremos nenhum risco, existimos num asfixiante equilíbrio, como
seres pálidos, desprovidos de um amanhã e satisfeitos com nós
próprios. Pelo contrário, os homens tecem sem parar histórias
apaixonantes, é a sua forma comovente de coexistir com o caos. É
por isso que nós, deuses, não podemos tirar os olhos deles.
— A grega Helena, a mulher mais bela de todas, de pele tão
suave e branca que todos lhe chamavam «a filha do cisne»,
abandonou o seu palácio em Esparta, o seu marido e a sua filha
pequena pelo amor de um troiano. Essa foi a origem da guerra. Para
se vingarem, os gregos reuniram uma grande frota e cercaram Troia.
Para minha surpresa, Eneias oculta que Troia era uma cidade
estratégica às portas de um estreito, enriquecida graças à portagem
que impunha aos barcos mercantes. Não fala das rotas comerciais,
dos metais e das trocas que foram a verdadeira causa do ataque e
dos dez anos de cerco grego. Comprovei que, quando se trata de
justificarem as suas guerras, os humanos preferem fazer parte de
uma história de amor do que de comércio. Isso lisonjeia-me.
— Ao acordar numa manhã do décimo ano, verificámos que o
inimigo tinha desaparecido. As praias onde tanto lutámos estavam
solitárias; as margens onde se erguia o seu acampamento, desertas;
as planícies por onde as suas esquadras marchavam, vazias. Nós,
tão ingénuos, acreditámos que tinham renunciado à interminável
guerra. Contra o céu recortava-se a silhueta solitária de um grande
cavalo construído com vigas de abeto, um misterioso obséquio.
Achámos que era uma oferenda dos gregos aos seus deuses,
rogando por uma navegação sem tempestades até à pátria. Para
que o cavalo não pudesse proteger o seu regresso, arrastámo-lo
para o interior da cidade, puxando-o com cordas, até ao nosso
templo. Não suspeitámos que na barriga vazia do cavalo se escondia
uma horda de guerreiros. Nós próprios abrimos as portas de Troia
aos nossos assassinos.
Elisa ouve com grande seriedade, mas dentro de si imagina a
beleza fabulosa de Helena. Nessa noite, ao pentear os seus cabelos
e ao vestir-se para o banquete com a túnica de linho branco bordada
com um fio de ouro, Elisa estava satisfeita consigo própria, mas
agora pergunta-se se os olhos do estrangeiro a comparam com
Helena.
Há nos humanos uma surpreendente sede de beleza. Elisa não
está na flor da idade, sabe que começa a mostrar leves sinais de
desgaste. Quanto não daria por perguntar a Eneias detalhes sobre a
deslumbrante Helena, mas é orgulhosa e não o faz. E, ao não o
fazer, converte Helena numa incómoda presença que paira à sua
volta.
Tendo cuidado para não tropeçar com este fantasma de Helena
imaginado por Elisa, aproximo-me da rainha e inspiro-lhe o desejo
de agradar ao seu jovem hóspede, embora por agora se trate
apenas de uma morna corrente de vaidade. Os ocultamentos aos
quais os humanos tanto brincam são muito úteis para os meus
propósitos. Porque, para Eneias, a bela Helena é mais uma ficção da
sua comovente história sobre Troia, e pouco tem que ver com o
original feminino existente na realidade.
— Ao cair a noite, na doce hora do primeiro sono, os soldados
gregos abriram um alçapão de madeira e saíram do seu esconderijo
nas entranhas do cavalo. A violência caiu sobre nós, adormecidos e
indefesos. Troia começou a arder, começou a matança. Muitos
morreram sem acordar. Eu lutei no meio do incêndio, da dor e da
confusão, banhado em sangue e em cinzas. Os edifícios ruíam entre
chamas, as emboscadas estavam à espreita em cada rua, os homens
degolavam-se uns aos outros com raiva cega, pelo ar escuro voavam
as setas como pássaros da morte. Combati invadido pela fúria, até
que vi arder o palácio do rei e senti pavor por ter abandonado o meu
lar sem proteção.
Os humanos demonstram uma surpreendente falta de aptidão no
momento de se entenderem em todas as línguas, como nós, deuses,
fazemos facilmente. Mas essa limitação humana também joga a meu
favor esta noite. Eneias fala só para Elisa e Ana, as únicas que
compreendem as suas palavras estrangeiras. As confidências são,
portanto, possíveis. Coloco-me atrás de Eneias e salpico-o com o
jugo da eloquência, para que comova o coração de Elisa.
— Corri para a luz dos incêndios, guiado, sem dúvida, por um
deus, e cheguei a casa, onde ainda reinava a calma. Quis salvar os
meus, mas o meu pai, aleijado, insistia em morrer no seu próprio lar.
Não podia partir sem ele. Tentei vencer a sua desesperança, mas
não consegui convencê-lo. Então tornou-se visível um presságio:
uma estrela fugaz atravessou o céu, indicando o caminho da fuga
com um comprido sulco de luz. Todos decidimos seguir a estrela.
Carreguei o meu pai às costas, peguei nas estátuas dos nossos
deuses, o Iulo agarrou-se à minha mão e a minha mulher Creusa
veio no fim. Avançámos juntos pelas ruas escuras. Só ao chegar às
portas da cidade, quando julguei que já nos tínhamos salvado, é que
reparei que ela não estava connosco, que a tinha perdido. Corri de
volta para casa, mas era tarde: os gregos tinham-na invadido e ardia
como uma fogueira incontrolável. Lancei-me pelas ruas a gritar o
seu nome, esmagado pelo horror do que via. E então, por fim,
encontrei-a, mas já era só uma sombra, mais alta e triste do que em
vida. Disse-me que tinha morrido.
Nem o próprio Argos, com os seus cem pares de olhos, viu nada
parecido. Que mentiras tão divertidas! A nós, deuses, faz-nos rir e,
ao mesmo tempo, fascina-nos ouvir como os mortais relatam as
suas próprias vidas. Quase sem querer, a fantasia começa a
preencher as brechas que os remorsos e o esquecimento abrem. E,
assim, as lembranças dos humanos podem ser totalmente
imaginárias, mas nunca totalmente verdadeiras.
— Disse-me que tinha morrido e pediu-me para proteger o Iulo.
Falou sobre o longo desterro e os largos mares que me esperam
antes de chegar à minha nova pátria. Depois a sua imagem desfez-
se tal como se desfazem os sonhos. Quis abraçá-la, mas era abraçar
o vento.
O sono pesa nos olhos do pequeno Iulo. Por ordem minha, Elisa
aproxima-se e puxa a sua túnica. Ela coloca o menino no berço do
seu colo. Pouco a pouco, ele adormece com a cabeça apoiada no
ombro de Elisa, deixando cair finos fiozinhos de saliva pelo extremo
da sua boca. No seu casamento, Elisa não foi mãe. Sempre sofreu
pelas dúvidas sobre a sua fertilidade. E agora, quantas vezes o
pensa, talvez o seu tempo tenha fugido irremediavelmente.
— Regressei com o meu pai, o meu filho e os meus deuses, reuni
os sobreviventes da matança nas colinas onde se tinha perdido a
estrela fugaz e, quando o amanhecer raiava, zarpei para o
desconhecido.
Pelo olhar de Górgona! Não foi uma grande ideia pôr a criança
nos braços da mulher ansiosa pela maternidade para assim começar
a empurrá-la para as minhas redes?
Os humanos chamaram-me deus do Amor, mas gosto mais de
dizer que sou aquele que tenta encher os corações desabitados. O
amor não é só coisa minha, porque há nos vivos vales interiores que
fogem ao meu alcance. Eu movo os cordelinhos, eu crio a ocasião,
favorecendo os encontros e os reencontros, construo os acasos, eu
insuflo a impaciência do desejo. Não é pouco: os homens não sabem
quanto os seus amores dependem das oportunidades. Na verdade,
não há amor sem acasos. Mas não é suficiente… Subsiste o mistério
da sua liberdade, que guardam em algum lugar inacessível para
mim, nas suas entranhas.
Há mais: sou testemunha, mas nunca me aconteceu a mim. Toco
na nuca dos vivos e sinto como ficam com pele de galinha. Ouço-os
falar dos seus prazeres, das suas alegrias e das suas nostalgias, mas
nunca as vou experimentar. A nós, deuses, estão-nos negados dois
acontecimentos: o amor e a morte. Não é preciso dizer que a nossa
curiosidade por ambos é desmesurada.

Ana

As vozes falam, tramam novas violências. Não me ligam


nenhuma, ignoram-me totalmente, mas eu ouço. Aqui, tal como em
Tiro, aguço o ouvido para saber. O pior é que saber dá medo.
As vozes estiveram a grunhir entredentes desde o início do
banquete, desde que se misturou o vinho e se escançou nos copos.
Agora já comemos a carne assada em lume brando, que tem um
sabor doce e mata a fome. Os cães chupam e despedaçam os ossos,
mostrando os caninos. «Apanha-o!», grito, e os lebréus saltam com
as quatro patas.
O Eneias começa a contar a sua história. Há um coro de
murmúrios. As vozes rebelam-se contra o forasteiro, negam-se a
dar-lhe as boas-vindas.
— O que é que diz o estrangeiro, Ana? — pergunta o Punhal. —
Não percebo nem uma maldita palavra.
Enquanto os olhos dos homens estão sobre mim, tenho de
parecer pequena, inocente, simples. Eu sei, foi a minha mãe que mo
ensinou.
— Fala sobre a guerra. A última batalha, a destruição de Troia.
O Punhal mastiga um resto de comida e cospe para um lado.
— Porque é que não ficou para morrer como um homem? Disse
porquê?
Abano com a cabeça.
O Punhal lambe os dentes, olhando com ironia para os outros.
— Que alguém me explique porque é que temos de encher a
barriga a um cobarde.
— Aqui os troianos são tratados como reis — diz o Arco. — Esta
tarde trouxeram ao palácio todos os feridos do naufrágio. Vão ficar
ao cuidado das escravas da Elisa.
O Punhal já não fala em sussurros como os outros, sobe o tom
de voz, ruge como esses animais ferozes que vagueiam na noite e
nos querem assustar.
— São um bando de mendigos — grita.
O Dardo cerra o punho dentro da sua mão. Começa a bater na
sua própria palma.
— E temos de acreditar que o Eneias é um guerreiro? Vejam bem
que mole parece. Eu arrancar-lhe-ei os dentes das mandíbulas,
como aos porcos que devoram as searas.
Riem-se. O seu hálito que cheira a comida de hienas chega até
mim.
— Que partam todos para a sua condenada cidade. Quem é que
os convidou?
— Seria melhor transportar os forasteiros para os mercados de
escravos da Sicília, onde nos dariam um bom preço por eles.
— Bah! Um bom preço por estes mendigos escanzelados?
— Enquanto continuarem a encher o bandulho nas nossas mesas
não vão querer sair daqui. Os deuses enviaram-nos uma maldição.
O Escudo dá um estalido com um lado da boca.
— Eles vão-se embora. Digo-te eu. Ocupar-nos-emos de que se
vão embora.
Ficam calados. Nos intervalos do relato do Eneias, bufam, sorvem
ruidosamente ou soltam risos abafados.
A noite avança com lentidão. Quando é que me poderei levantar?
O fogo da lareira contorce-se com impaciência. Vejo o bocejo das
taças e das crateras. O reflexo da fogueira palpita nos rostos do
Eneias e da Elisa, do outro lado da mesa.
E se agora, aproveitando que ninguém está a reparar em mim,
eu fugir com o menino Iulo? Sair às escondidas, de mão dada, e
depois correr pelos corredores do palácio, atravessar os pátios
vazios… Eles procurarão debaixo da mesa, olharão à sua volta,
chamar-nos-ão, mas já teremos partido.
Acaricio com o dedo a cesta do pão, pela borda. Penso nos
tesouros que tenho no meu quarto. O meu recanto secreto. Quando
encontro alguma coisa estranha, apanho-a, trago-a para casa e
guardo-a na arca grande da roupa. Conchas, insetos, pedaços de
coisas. Quero mostrar ao Iulo o mais bonito de tudo, um búzio muito
grande de cor malva. É muito bom passar os dedos pelo interior
nacarado.
— Olhar de cão! — lança o Dardo, insultando o Eneias. Os seus
olhos cruzaram-se num instante veloz.
O Punhal arrota, a maçã-de-adão move-se no seu pescoço.
Quero ir-me embora. Olho para o Eneias, tensa na minha cadeira,
o cotovelo cuidadosamente afastado do cotovelo do Punhal. Não
gosto dos homens da Elisa. Nunca gostei. Odeio-os.
Porque é que a Elisa teve de chamá-los para o seu lado quando
escapámos de Tiro? Não podíamos fugir sozinhas, ela e eu, como
duas irmãs que só querem salvar a vida e encontrar um pouco de
paz?
Mas a Elisa queria ser rainha. Rainha! Em vez disso, somos
prisioneiras destes homens. As armas mandam, e são deles. Dentro
de pouco tempo, antes de passarem muitas luas, dirão que devemos
casar e aceitaremos um deles na cama. Sei o que é isso. Eu via
quando o rei, meu pai, vinha como um intruso para o leito da minha
mãe, sim, observava, um ventre a deslizar sobre outro. Preferia mil
vezes ter o corpo coberto de minhocas do que casar.
Tudo o que acontece é tão lento e tão triste… Sinto de novo um
nó no peito. Tenho de zarpar para longe daqui, mas não sei para
onde. A Elisa pôde salvar-me e não o fez. Sobre a mesa, sigo com a
ponta dos dedos os veios da madeira. Parecem chamas presas na
tábua, silhuetas de fogo que se tornaram sólidas. Eu e a Elisa
tínhamos a oportunidade de procurar um lugar calmo onde viver de
maneira simples e boa, sem magoar ninguém e sem que nos
magoassem. Uma humidade repentina e abrasadora coloca-se atrás
dos meus olhos.
Há tempo que o Iulo pestaneja com sono. Incha bolhas de saliva
entre os lábios. Agora levanta-se e caminha até à Elisa. Puxa a sua
túnica. A Elisa, a sorrir, afasta-lhe o cabelo da testa. Pega nele com
os seus braços. Sentado ao seu colo, o Iulo aconchega-se a ela com
confiança.
O Dardo cerrou os dentes com ferocidade.
— E agora abraça o filho do charlatão. Se isto continuar,
arrastarei o Eneias para o pátio e cortar-lhe-ei o nariz e as orelhas.
Juro por tudo.
A violência da ameaça alarma-me. Pego no meu copo pelas duas
asas e olho para o mesmo, assim, desorelhado.
O Eneias está a terminar o seu relato.
— Rainha, a noite avança e no céu as lentas estrelas convidam-
nos ao sono. Não te quero cansar mais. Se me permites, farei a
última libação aos deuses.
O vinho que o Eneias derrama adquire uma intensa cor de
sangue na luz dourada.
O Punhal levanta-se com um impulso que faz a mesa tremer.
— Ana, repete as minhas palavras na língua do estrangeiro.
Afundo a cabeça entre os ombros. O Punhal parece agora uma
fera selvagem, as narinas a palpitar, tenho medo. Não quero que os
seus venenos saiam da minha boca.
— Felicita o forasteiro pelo seu filho. Preferiu fugir com ele
cobardemente em vez de dar a vida a defender a sua pátria. Espero
que a nossa rainha o ajude a recordar o herdeiro de que Cartago
precisa e do qual ainda estamos à espera. Se para isso procurar um
homem corajoso e fiel à cidade até à morte, nesta sala, entre os
seus, encontrará mais de um.
Um rugido de aprovação percorre a mesa. O olhar do Punhal
ameaça-me, mas a minha voz fugiu como um animal assustado.
— Eu traduzo — diz a Elisa, com um tremor à beira dos lábios.
Depois fala para o Eneias. — Hóspede, o vinho tornou imprudente a
língua dos meus homens. Ao ver-me com o teu filho Iulo nos braços,
censuram-me por o trono de Cartago não ter herdeiro. Eu sou viúva
como tu, Eneias. O meu marido também foi assassinado à traição.
Contudo, eu não lhe dei um filho para perpetuar o nosso sangue.
Nisso tu tens mais sorte.
Com um movimento desajeitado, a Elisa deixa o Iulo no chão e
abandona lentamente a sala. Os olhos do Eneias chocam um
momento com os do Punhal, mas os dois afastam o olhar.

Eneias
Há horas que espreito entre os canaviais. O frio da noite
desperta-me. De vez em quando, ouço os movimentos dos meus
homens entre os juncos e as espadanas. Eles trouxeram-me até este
veio de água no território ressequido, vêm aqui todos os dias encher
os cântaros e regressam com eles às costas, a caminho do
acampamento.
As estrelas flutuam sobre a minha cabeça e também no rio. Aqui
em baixo, a brisa baloiça-as e às vezes quebra-as com um sopro
mais forte. Lá em cima, tremeluzem com calma.
Tenho entre as mãos o arco pronto, a seta acomodada na
encurvadura, a aljava bem carregada de dardos. Quero que os meus
homens provem outra vez o sabor da carne assada na fogueira. Os
mantimentos que carregámos desde Cartago parecem abundantes
quando o despenseiro mos entrega proferindo imprecações, mas são
escassos ao chegar ao acampamento. É preciso racionar as
provisões. Sei como é que os meus homens se sentem. Têm fome.
Sonham o dia todo com comida. Depois de comerem, ainda têm
mais fome; chegaram a vias de facto por um punhado de tâmaras.
Receio que os soldados enviados pela Elisa para me escoltarem
acabem por nos lançar o pão como se fôssemos animais.
Não devemos permitir que os cartagineses nos humilhem.
Apalpo a corda do arco que ecoa como um chilrear de andorinha.
Começa a amanhecer; a noite afunda-se pouco a pouco no oceano.
Vou mandar construir umas latrinas de madeira e abrir um fosso
num lugar afastado. Não quero que os meus homens sujem a praia.
Que ao chegar os encontremos a defecar na margem ou a catarem
os piolhos uns aos outros. Que a reparação dos barcos comece
assim que possível.
A Terra inclina-se para o Sol e em troca recebe um banho de luz.
O vento traz fluxos de frescura e fluxos mais quentes. O meu ouvido
atento capta o som de uns cascos, os juncos esfregam-se uns contra
os outros com suavidade, um animal avança para o rio. O instinto
move os meus braços levantando o arco, retesa os meus músculos,
aguça-me o olhar. O meu corpo responde sem pensar, reproduz as
antigas sensações do combate.
Chega o veado. A sua pele, sob a luz vermelha, tem uma cor de
cobre. Baixa a cabeça e lambe a água. Aponto para o seu pescoço.
Durante um instante nada se move exceto as minhas recordações, o
remoinho de imagens. Vejo-me em Troia. Disparo uma seta, acerto
no pescoço de um grego, a ponta da flecha emerge do outro lado do
queixo. Desfalece. Um grosso jorro de sangue brota do seu nariz. O
seu corpo retumba no chão, ecoam as armas, resplandecentes,
reluzentes. Sofre espasmos enquanto a morte púrpura se espalha
pelos seus membros.
O veado bebe. Estou a suar, sinto como me humedeço. No meu
arco a morte incha. Diante de mim, de frente, o animal, que só com
um gesto meu rodará aos meus pés esvaindo-se em sangue,
permanece quieto. A seta aponta. Expulso o ar lentamente. Se soltar
o projétil, atravessará a garganta do veado.
O veado alarma-se. Levanta a cabeça, fareja o ar, intensifica a
sua quietude. O meu suor impregna o vento, está a cheirar-me.
Parece-me voltar a ver as poças de sangue na terra de Troia,
durante a luta. Não resta mais do que o sopro de um instante para
disparar. Agora ou nunca. Baixo os braços. O veado empreende uma
corrida alada, saltando com a armação alta. A sua figura veloz
parece prolongar-se no percurso do meu olhar. Perdi a minha presa.
A uma certa distância, as setas silvam. Os meus homens
dispararam. Viro as costas à caça, no azul aquoso da manhã. Apoio-
me no tronco de um amieiro. Um rio acre sobe-me pela garganta,
salta por cima da minha boca, mete-se entre as minhas narinas,
volta a baixar ao meu peito.
Chamam-me. Os meus companheiros de caça abateram três
presas, levam-nas penduradas do ombro. Caminhamos até ao lugar
onde prendi o cavalo que a Elisa me confiou. Carregamos os animais
ainda quentes sobre o seu lombo. Contentes, os outros gracejam e
felicitam-se.
— Não nos esquecemos de como disparar.
— E pensar que ainda estava escuro…
Ao sair do matagal, um vento salgado incha-nos a roupa. Soam
trovões de ondas. O mar embate contra os lados da terra sem
descanso. O sol, escondido atrás das nuvens, deslumbra
dolorosamente. Um aroma fresco de oliveiras invade o meu nariz.
Afasto-me para cavalgar a sós, em silêncio, longe dos meus
companheiros, enquanto regressamos ao acampamento. Baixei o
arco e deixei que outros matassem em meu lugar. Só me resta ficar
calado. O mesmo vento que puxa o mar empurra-me a mim.
Durante um momento desfruto deixando o meu corpo nas suas asas,
os meus olhos protegidos da areia dentro do cotovelo.
Quando começamos a descer até ao mar, explode de repente um
grito furioso, depois outro e mais outro, uma estranha canção uivada
por vozes de mulher. O canto vem de uma povoação de cabanas
onde vivem, fora das fortificações, em refúgios de canas, algas e
lama, nativos de pele escura.
Elisa tinha-me falado deles.
— Estavam aqui antes da nossa chegada, pescavam na enseada
onde construímos o nosso porto — disse a Elisa. — São inofensivos.
Expulsos pela força das armas, como nós, vagabundeiam sem
rumo à procura de angras onde alimentar-se de moluscos. As suas
barcas já não podem sair para pescar no mar cartaginês.
Um grupo de mulheres jovens corre para nós, açoitando as suas
bocas com o chicote da língua, chamando-nos, oferecendo os seus
peitos nus com as mãos num gesto idêntico às estátuas
cartaginesas, tal como deusas caídas na miséria. Viram o
carregamento de carne sobre o nosso cavalo. A fome leva-as a isso.
Aproximam-se de nós para mendigar e oferecer os seus corpos. Os
meus homens protegem as suas peças de caça apontando com o
arco às mulheres.
— Fora, fora. Longe. Não.
Elas recuam. A mais jovem fita-me, a fome refletida nos seus
olhos, e agita o seu corpo magro como aprendeu a fazer, ondulante.
— Lábios doces — diz outra, na nossa língua. Ela, se não todas,
já se deitou com algum dos meus homens em troca de um prato de
sopa aguada ou de uma tira de peixe seco.
Os meus ouvidos demoram-se no arquejo do mar. Enquanto as
deixamos para trás, pergunto-me há quanto tempo os meus dedos
não acariciam o corpo de uma mulher. Pergunto-me quantas
troianas, agora escravas dos vencedores, terão de receber os seus
donos sobre o ventre e entre os seus peitos nus porque já não
passam de pilhagem de guerra.
Quando chegamos ao acampamento, os meus companheiros
esfolam os veados. Dentro de pouco tempo as peles estão
penduradas a gotejar de um poste. Esquartejam e cortam a carne
aos pedaços. As coxas e a gordura brilhante atraem todos os
olhares. Para quebrar o sortilégio de tantos olhos cravados na
iguaria de caça, dou ordens e atribuo tarefas a cada um.
Os meus dedos desenham no ar os perfis de um barracão e de
uma paliçada. Planeio ao detalhe as melhorias do acampamento.
Mando um grupo de lenhadores sair. Inspeciono as ferramentas que
se salvaram do naufrágio. Por último, abro os baús à procura de algo
valioso para oferecer à Elisa em troca dos favores que ainda lhe
pedirei. Encontro um véu com uma orla de acanto dourado que
pertenceu à minha mulher. Calculo o risco de despertar certas
recordações dentro de mim, mas decido-me. Não me resta mais
nada que seja digno dela.
Estou a guardar o tecido nas albardas da minha sela quando
ouço um estrépito de cascos.
— Olhem! — grita um vigia apontando para o caminho que
conduz a Cartago.
Um cavalo sem ginete corre para a cidade, desbocado, com todo
o desespero do terror. Leva um estranho pacote atado à sela.
Monto e saio no seu encalço. Está gravemente ferido. O que
tinha tomado por uns arreios decorados com franjas são enxertos da
sua própria carne. Encurto a distância. Seguro-me na sela. Com uma
mão consigo agarrar nas rédeas e travar o cavalo de carnes
rasgadas. Tropeça, as suas patas da frente dobram-se e é vencido,
fica estendido no chão, palpitante.
Acaricio a sua garupa, evitando as terríveis feridas. Desato o
pacote. Algo redondo, pesado e húmido aparece perante os meus
olhos, envolvido em folhas de figueira. O pressentimento de mais
crueldades detém-me por um instante, mas não posso evitar olhar.
Afasto as folhas ensanguentadas, uma a uma. O meu coração
palpita. É uma cabeça humana, torturada e cortada pelo pescoço.
No ricto da boca reconheço o homem que me insultou durante o
banquete, no palácio. Observo os lábios mortos que me cobriram de
injúrias há apenas dois dias.

Elisa

Ouço um alvoroço de passos a aproximarem-se pelas salas do


palácio. São os homens do Conselho — Malco, o Escudo, Elibaal, o
Arco, e Ahiram, o Dardo —, flanqueados pelos meus guardas que,
ao avançar, batem no chão com a estaca das suas lanças. Na liturgia
da corte, é o som que abre caminho a quem cumpre ordens da
rainha.
Empurram com violência os portões da sala onde espero. Com
eles entra um sopro de vento, as chamas das tochas esvoaçam. O
aroma a incenso da divisão é invadido pelo fedor de fumo, morte e
suor que emana dos seus corpos.
— É possível que tenham matado Safat, o Punhal? — digo. —
Como é que aconteceu?
— Rainha, Safat, o Punhal, partiu com a última caravana, para
escoltar os mercadores terra adentro. Quando nos mostraram a
cabeça cortada, organizámos uma expedição pela mesma rota. Era
preciso agir depressa. Não foi difícil encontrar o lugar da emboscada.
— Atacaram-nos. Mataram todos cobardemente, sem sequer lhes
darem tempo para se defenderem.
— O assalto aconteceu à noite. Encontrámos as sentinelas com
uma corda de juncos à volta do pescoço, a cara azulada, os olhos
abertos, a língua entre os dentes. Provavelmente, deixaram a vida
em silêncio e assim todo o acampamento ficou à mercê da quadrilha
de assassinos. Havia mercadores mortos dentro das tendas, as
cabeças decepadas à traição enquanto dormiam. Ninguém
sobreviveu. Tivemos de afugentar as hienas que mordiam os
cadáveres, alguns já despedaçados.
— Descobrimos o corpo decapitado do Safat, o Punhal, rainha.
Uma seta acertou-lhe no cinto e enterrou-se através da couraça.
Jazia entre o seu próprio sangue escuro.
— Acendemos piras no deserto para todos os mortos. Trouxemos
os seus ossos em urnas para que repousem na nossa terra, onde
ninguém voltará a perturbar o seu sono.
— Quem foi? Quem planeou esta matança? — pergunto.
— Roubaram as mercadorias e tudo o que tinha algum valor.
Suspeito de que se trata de uma tribo nómada. Os seus pequenos
rebanhos mal lhes dão um pobre sustento e decidiram dedicar-se à
pilhagem — diz o Elibaal.
— Concordam?
— Os nómadas só são atraídos pelo saque. Porquê envolver em
folhas de figueira a cabeça do Safat, o Punhal, e atá-la ao cavalo?
Há algo aqui que me inquieta.
— Fala, Malco, o Escudo, partilha connosco os teus pensamentos.
— Acho que os povos do interior tramaram este assalto.
— Mas as suas cidades já não podem viver sem as mercadorias
que as nossas caravanas oferecem: o sal, as especiarias, os cavalos,
os tecidos tingidos, os copos trabalhados. A sua gente celebra a
chegada dos nossos mercadores. Eles próprios enriquecem
vendendo-nos marfim dos seus elefantes. Porque é que desejariam
fazer-nos mal? — digo.
— Todos os reizetes líbios te querem como mulher, e em especial
o Iarbas, o mais ambicioso. Invejam e desejam a nossa riqueza,
rainha.
— Cães cobiçosos! Trouxemos-lhes prosperidade. Antes de
chegarmos não passavam de uns míseros comedores de piolhos em
perpétua luta uns contra os outros — respondo.
— Acho que estão decididos a que escolhas um deles e celebres
o teu casamento. Penso que a cabeça do Safat, o Punhal, é apenas
um aviso daquilo que nos espera.
— Achas mesmo que me propõem matrimónio de uma forma tão
sangrenta?
— Acho, rainha. Embora seja arrepiante, não devemos descartar
uma aliança de todos os povos nativos contra nós.
— Se a tua suspeita estiver certa, Malco, o Escudo, declararam-
nos a guerra.
Detenho-me a pensar nas minhas próprias palavras. Declaração
de guerra.
— Depois de uma provocação assim, as represálias devem ser
terríveis — diz o Ahiram. O ódio contrai o seu rosto.
— As palavras do Ahiram, o Dardo, são sábias — continua o
Malco —, precisamos de nos vingar dos nómadas. Uma vingança
forte e gloriosa que chegue aos ouvidos do rei Iarbas e que o faça
tremer.
— Se os castigarmos a sério, esta será a sua última afronta — diz
o Elibaal. — Safat, o Punhal, não descansará até mancharmos as
nossas lanças com o sangue desses traidores. Até caírem de bruços
no pó e morderem a terra com os seus dentes.
O Elibaal cospe.
Os rostos dos meus homens palpitam pelo reflexo do lume.
Ficamos durante algum tempo em silêncio enquanto nos
observamos.
— Têm razão. Que provem o sabor dos remorsos. A nossa
pesada mão cairá sobre eles — digo. A repugnância apodera-se de
mim. Cheira a podridão, a sangue pardo, a hienas. Tento conter a
respiração.
— É a ocasião para que os troianos demonstrem a sua lealdade a
Cartago — diz o Malco.
— O que é que estás a insinuar? Os troianos ofereceram-se para
lutar ao nosso lado, são hóspedes leais.
— Eu sei, rainha, mas o povo não percebe que ofereçamos
alimentos, proteção e todo o tipo de favores a uns estrangeiros
ociosos. Se chegou o momento de afiar as lanças, que lutem por nós
demonstrando a sua gratidão. Assim calarão todas as vozes de
protesto.
Sinto que o ar da sala está viciado. Era necessário trazer até aqui
o seu cheiro a homem e a acéquia suja? Preciso de ordenar um
banho, preciso de me afundar na água para afugentar esta náusea.
— Que vozes de protesto? — digo, sustendo o olhar do Malco.
— Há rumores. Diz-se que os troianos não lamentaram a morte
do Safat, o Punhal, o homem que chamou cobarde ao seu rei.
Instala-se um novo silêncio. Ouço um sussurro: é o vento que
agita as palmeiras. Aqui dentro envolvem-me odores de podridão.
— Tudo bem. Atribuirei aos troianos a missão punitiva na região
de poente. Ahiram, o Dardo, Malco, o Escudo, vocês vão sair para
assolar os arredores do lago. Elibaal, o Arco, tu permanecerás em
Cartago e dirigirás a guarda. Que ninguém saia do recinto
amuralhado sem armas. Situem as sentinelas nas atalaias. As portas
da cidade ficarão trancadas desde que escureça até ao amanhecer e
ninguém, por motivo algum, poderá entrar ou sair durante as horas
da noite. Agora podem ir.
Viro a cara. Digo:
— E que seja a última vez que algum de vocês insulta os meus
hóspedes debaixo do meu teto. Se o vinho vos turva assim a lucidez,
nunca mais voltarão à mesa dos reis.

Eros

Eu, que conheço bem a magia dos lugares, preparei o cenário.


Conduzidos pela minha mão até à açoteia do palácio, Elisa e Eneias
saboreiam a intimidade do silêncio. Eleva-se sobre eles a curvatura
do céu com as suas estrelas douradas. A cidade escura, inacabada,
estende-se aos seus pés. A minha longa experiência em amores
tardios diz-me que, à luz ténue da noite, Elisa se sente mais segura
da sua beleza.
Ninguém invadirá este refúgio a céu aberto, eu tratarei de deter
na própria soleira da porta qualquer um que se atreva a irromper no
meu cenário, disposto com tão grande talento e subtil elegância.
Aproximo-me da nuca de Eneias e aspiro de um sorvo os seus
pensamentos. Está cansado de fugir e de se perder no caminho,
sente-se esgotado por carregar o peso do grande império que ainda
deve fundar, segundo a profecia. Faço com que deseje amparo,
relaxo os seus músculos, debilito os seus planos.
— Tens sorte, Elisa. Estás a ver crescer as muralhas da tua
cidade — diz.
Nesse preciso momento ponho em prática um dos meus truques.
Tapo a Lua com a mão ou, para ser mais exato, com uma nuvem em
forma de mão, e retenho-a nesse punho de vapor, escurecendo de
repente a açoteia. Verifiquei que os humanos, quando as referências
espaciais se esfumam, se julgam mais livres, como se tudo
acontecesse sem consequências, tal como num sonho. Por isso
encontro mais facilidades nos lugares desconhecidos, com os
viajantes e na noite.
Envolvidos pelas sombras da açoteia, perto um do outro, à beira
do parapeito, os dois apercebem-se da minha presença, intuem que
o desejo anda à espreita, captam o meu esvoaçar erótico a vibrar às
escuras no ar. Aguço a intensidade, depois abro a mão e a luz
derrama-se de novo.
— Elisa — diz Eneias —, sabes que sou um náufrago que perdeu
tudo. Porém, há algo que pude salvar da destruição de Troia e da
tempestade. Aceita este humilde presente. Nunca vou esquecer o
acolhimento e a proteção que me proporcionaste.
Eneias estende um véu bordado com folhas de acanto para que
Elisa pegue nele com as suas mãos. Ela observa-o, acaricia-o e
cobre-se com ele.
— Obrigada, Eneias. Salvaste este véu de grandes calamidades, é
um presente valioso — diz Elisa. O seu olhar faísca.
Há muito tempo que Eneias não recordava Creusa, a sua mulher
troiana, antes de que tudo entre eles se arruinasse, quando os seus
olhos ainda brilhavam. Agora a recordação atravessa-o. Era assim
sentir-se amado.
Elisa continua a conversa interrompida.
— Eneias, achas que tenho sorte porque a minha cidade floresce,
mas ela ainda não é um lugar seguro.
— Estás preocupada com a morte do Safat, o Punhal?
— Estou inquieta. Corremos perigo.
— Que perigo?
— Deixa-me contar-te a história de Cartago e vais perceber tudo.
Cheguei às costas de África a fugir do meu irmão, o rei louco, que
tinha mandado matar o meu marido e me perseguia. Desembarquei
aqui com os meus homens, na mesma enseada onde tu naufragaste.
Cansada de fugir, na esperança de que os assassinos enviados pelo
meu irmão tivessem partido, decidi ficar a viver nessas baías. Recorri
aos indígenas para que me vendessem um pequeno território,
apenas aquele que se pudesse abranger com uma pele de touro.
Riram-se de mim, mas aceitaram. Depois de fecharmos o negócio,
cortei a pele em tiras muito finas e, atando umas às outras, criei um
cordel muito comprido diante dos seus olhos atónitos. Assim
delimitei o terreno que hoje ocupa a cidade. Os indígenas nunca
perdoaram essa astúcia, acusam-nos de os roubarmos e de os
enganarmos. São povos inquietos e turbulentos. O ataque que
acabou com a vida do Safat, o Punhal, é uma ameaça.
A pele de touro cortada em tiras. A astúcia da rainha. O mito das
origens. Diverte-me muito ver como os humanos inventam lendas e
o quanto precisam delas. Coleciono mitos de todas as regiões do
mundo e, quando escalo as encostas do céu para ir ao banquete dos
deuses, faço muito sucesso a repetir estas histórias que ouvi de
lábios mortais. A nós, deuses, surpreendem-nos e de certa forma
enternecem-nos os seus esforços para tornarem o mundo
compreensível. Infelizmente, nós não temos nada parecido. Está
claro que a arte de contar histórias é algo que não ensinámos aos
humanos, aprenderam-na sozinhos, e a sua capacidade de invenção
é deslumbrante.
— Como responderás ao ataque? — pergunta Eneias.
— Desejaria evitar a violência, mas devemos mostrar o nosso
poder se queremos pacificar o território. Os meus guerreiros
capturarão prisioneiros nas aldeias de nómadas. Alguns serão
entregues ao suplício para lhes arrancarem uma confissão.
Venderemos os restantes como escravos nos mercados de oriente
pelo valor das mercadorias roubadas. Desta forma, os nossos
inimigos saberão que somos fortes e a calma regressará.
«Pacificar o território», disse Elisa com total seriedade. Sorrio
perante a superioridade que os filhos das grandes civilizações
atribuem a si próprios.
— Já vivi isto, sei que agora se sentem furiosos e querem
resolver o conflito a ferro e fogo, empunhando as espadas. Mas
ainda estão a tempo de enviar uma embaixada aos vossos vizinhos
para reclamar que vos entreguem os culpados pelo assalto à
caravana. Elisa, combati dia após dia durante dez longos anos e vi as
mil caras da morte. Se queres que te dê um conselho, tentem evitar
a guerra.
Elisa acha que as palavras de Eneias são absurdas, mas essas
absurdas palavras desencadeiam nela uma estranha atração. Pensa:
«Que diferente dos homens que conheci, que suave é a sua
juventude.»
— Eneias, obrigada pelo teu conselho, mas temos de golpear em
resposta ao golpe. Vivemos tempos difíceis, o risco é grande, não
nos podemos permitir fraquezas.
Eneias embrenha-se em antigas recordações de guerra, enquanto
Elisa o contempla com intensidade. No silêncio sustido, os seus
olhares encontram-se de surpresa. Perderam o fio das suas ideias. É
bom sinal, é sinal de que avanço.
Para dizê-lo em termos humanos, as minhas armas já cintilam.
Refiro-me, claro, às lendas dos homens sobre mim. Nas suas
fantasias costumam imaginar-me como um menino arqueiro que os
fere com a precisão imprópria da sua idade, ou seja, da minha
idade, idade que evidentemente não tenho, eu que entro e saio
através das crateras e das fendas do tempo. Apesar da incoerência,
acho sugestiva e poderosa a figura do arqueiro infalível. Gosto tanto
que às vezes desejo expressar-me tal como os humanos e dizer que,
por exemplo agora, nos olhos de Elisa, as minhas vibrantes setas
reluzem de excitação.
— Tempos difíceis — repete Eneias. — Nos tempos difíceis, gosto
de recordar aos meus homens que evitámos juntos mil acasos e
riscos, e que os deuses nos reservam uma mansão de paz.
«Guardem-se para os anos felizes que vos esperam», digo-lhes. Tu
também deves ter confiança, Elisa. Um dia, depois de vencidos os
perigos, desfrutaremos ao relembrar tudo isto, com o prazer das
dores passadas.
Elisa sente uma vaga quente dentro de si, sorri. E, precisamente
quando julgo que está presa nas minhas redes, escapa de repente,
como se fosse Proteu, o Velho do Mar, quando se transformou
sucessivamente em leão, serpente, pantera, água e árvore para fugir
do rei Menelau. Assim, nas palavras de Elisa volta a soar o estrépito
da guerra, apagando outros sussurros mais doces.
— Eneias, agora sou eu quem suplica a tua ajuda. Quero enviar o
meu exército contra os nómadas, mas a cidade não pode ficar
desprotegida. Um esquadrão de guerreiros sairá amanhã para o
lago, na região de oriente. Será que podes partir com os teus
homens para poente, em busca de prisioneiros? Se o fizerem, na
cidade todos vos tratarão como irmãos e a desconfiança
desaparecerá.
A mandíbula de Eneias contrai-se.
— Os nossos braços estão ao teu serviço, rainha.
Há um silêncio.
— Se tiver de preparar uma expedição, vou precisar de cavalos
para os homens que me acompanharem, e de armas. Em troca da
nossa colaboração peço-te também madeira, carroças e ferramentas
com as quais reparar as nossas naus.
— Obrigada, Eneias. Prometo que nada vos faltará.
A conversa continua, falam sobre a missão, sobre a geografia do
terreno, sobre a forma de lutar dos nómadas. Deixo de prestar
atenção. Não é assunto meu. O meu âmbito é o segredo, a sedução,
a iniciação. Interessa-me o que fica por dizer, o que ainda não dizem
a si próprios. Quase não se apercebem disso. Elisa nem sequer
repara que talvez esteja a mandar para a morte o homem por quem
se começa a apaixonar.
II. AS INSUBSTANCIAIS SOMBRAS

Vergílio

Acha que o seguem, que puseram alguém atrás dos seus passos.
Tem a claríssima sensação de que é vigiado.
Mergulhado no rio de cidadãos, escravos e estrangeiros que
fervilha nos becos, tenta confundir-se com a multidão. O barulho
ensurdecedor que começa com a alvorada, quando soam as
marteladas dos caldeireiros e a gritaria dos alunos da escola, parece
capaz de silenciar o seu medo. Por outro lado, sabe que é inútil
tentar esconder-se. A sua grande estatura, os movimentos
desajeitados, o aspeto camponês, permitem reconhecê-lo à distância
e, portanto, vigiá-lo à vontade.
Se existe a mínima possibilidade de o estarem a espiar, devia
renunciar aos seus planos. Devia, mas não o fará. Está cansado.
Viver aqui exige demasiadas precauções ou, para dizê-lo com a
crueldade das verdades dolorosas, demasiado servilismo. Gostava de
voltar aos campos de Nápoles, onde uma vez esteve a sua
verdadeira casa. Pelo contrário, Roma sempre lhe pareceu uma
cidade sinistra, um poço de corrupção cheio de homens
escandalosamente ricos e desgraçados desesperadamente pobres.
Tentando abstrair-se, caminha entre as pessoas obcecado por
Eneias e os seus segredos, quando uma conversa casual entre dois
desconhecidos o arranca dos seus pensamentos.
— Lúcio! Onde é que vais a correr e cheio de pressa como um
rato preso num penico? Cumprimentar o patrão?
— Deixa-me passar, que não quero ser o último a chegar. Já
cumpriste, Quinto? Sim, claro, tu não ficas colado aos lençóis se se
pode encher a bolsa. Espero que continues a enriquecer, mas sem
ficar anafado.
O espetáculo das manhãs, quando os homens saem para cumprir
as suas obrigações de respeito, entristece-o. Toda a gente em Roma
tem um protetor e deve apresentar-lhe os seus cumprimentos
chamando-lhe «amo» todos os dias, antes de começar a sua jornada
laboral, se é que tem a sorte de trabalhar. Entre todos formam o
tecido de uma grande rede de amos e aduladores, por isso a cidade
inteira fervilha num remoinho de visitas. Nesta dança de cortesias
dançada ao amanhecer, o poder de cada homem mede-se pela
quantidade de clientes que vão ter com ele e esperam durante horas
na antessala da sua casa para serem recebidos. Ele, que participa no
vaivém de cortesias tal como o resto, sente dor perante essa
servidão, uma dor que não sabe apaziguar. Quem é que pode passar
sem o donativo diário que o amo paga em troca de uma visita? Para
os advogados sem causas, os professores sem alunos ou os artesãos
sem encomendas, esta gorjeta é a única forma de vida. Os restantes
somam esse dinheiro ao seu salário e sobrevivem. Por isso, se o
amo pede alguma coisa, tem garantida a obediência. É tão simples
como isto, tão inapelável como isto.
Ele serve diretamente o imperador. Um serviço delicado, até
perigoso.
Sente um repentino desassossego na barriga. Sofre do ventre
quase todo o tempo, as suas digestões são pesadas e acres, por
baixo da túnica sente com muita frequência a pele tensa como um
tambor. E, para além disso, há as urgências, como esta que agora o
leva a procurar as latrinas públicas mais próximas. Atravessa com
pressa uma salgalhada de ruas. Tropeça nas pessoas que circulam,
recebe várias cotoveladas, alguém lhe dá um golpe com uma
vasilha, a sandália tachonada de um centurião crava-se no seu pé.
Ofegante, chega aos pórticos, paga um asse ao responsável pelas
retretes e corre para um assento de mármore enquadrado por
relevos em forma de golfinho.
O seu alívio é imenso. Ali sentado, embalado pelo murmúrio da
água que corre pelos regueiros desde o repuxo, sente algo muito
parecido ao prazer. Fecha os olhos. Chegam-lhe fragmentos de
frases; nas latrinas, as pessoas marcam encontros, conversam e
aparecem para tentar a sorte, esperando que alguém as convide
para almoçar.
— Vou apostar pela equipa azul, são os melhores… Vou ao fórum
pedir dinheiro, tenho crédito… gladiadores de meia-tigela… graças
aos deuses, isso acabou, agora há paz… durante os anos de guerra
tornaram-se ricos com as expropriações… o pão está caro, os
vereadores puseram-se de acordo com os padeiros… um homem
bondoso, amigo dos seus amigos, podia cortar as garras a um
pássaro em pleno voo… prefere um asse na sua arca à vida de todos
nós, construiu sobre vigas magras como flautas…
Pensa na paz que voltou. Viveu toda a sua juventude entre
guerras e por isso é que a guerra lhe parecia a própria imagem do
mal do mundo. No meio do horror da luta, escreveu: «Aqui o bem e
o mal confundem-se, tantas guerras no mundo, tantas facetas da
maldade.» Foi o primeiro a cumprimentar a paz, embora a paz
chegasse graças à devastadora vitória de um senhor da guerra que
tinha eliminado todos os seus adversários, um a um. Desde então,
esse senhor da guerra, Octávio, chamado Augusto, proporciona ao
seu povo segurança e esplendor, sem dúvida. Ele acha que os
romanos compraram a paz ao preço da obediência. Não se absolve a
si próprio, quis o fim da violência a qualquer preço, naquela altura,
quando se combatia perto da sua casa. Mas agora nasceu dentro de
si um poço de tristeza ao descobrir, porque também existe, a miséria
da paz, o rosto pacífico do domínio.
Dá voltas de novo no círculo de pensamentos que o obcecam.
Será que terá coragem de se rebelar ou é demasiado tarde para ele,
que já se vendeu ao encanto dos poderosos? O que é que fará
finalmente Eneias em Cartago?
Um homem de dentes pretos senta-se na retrete contígua e
começa a conversar.
— Andas por aqui há muito tempo, amigo. A barriga não
obedece?
— Sofro do estômago — responde ele.
— A mim fez-me muito bem a pele da romã e a resina dissolvida
em vinagre — diz o desconhecido, e liberta os seus gases. — Mas,
claro, como vês o meu estômago soa como um touro selvagem.
Mas, enfim, Públio, nenhum de nós nasceu sem rabo. Não há
tormento maior do que aguentar a vontade…
— Chamaste-me Públio. Como é que sabes quem sou? —
pergunta ele com desconfiança, esticando a mão para uma das
esponjas atadas ao extremo de um pau.
— Toda a Roma sabe quem és.
Depois de se limpar, ele lava as mãos, enxuga a testa e afasta-se.
Atravessa de novo as ruas, cada dia mais estreitas porque os
proprietários constroem habitações em sacadas sobre o rés-do-chão
dos edifícios e alugam-nas a preços exorbitantes. Os inquilinos
desses cubículos têm de usar um escadote para subir. Se não
pagarem o aluguer, apressam-nos retirando a escada, e eles ficam
prisioneiros lá em cima, sem comer, até saldarem a sua dívida. A
vida na cidade é dura. Ele fica indignado quando passeia pelo
labirinto urbano, onde as casas se ampliam com essas construções
frágeis para acrescentarem divisões, até que os moradores de um e
de outro lado conseguem dar a mão desde a janela. Pensou muitas
vezes que, ao urbanizar o ar em todas as direções, Roma vai caindo
pouco a pouco nas sombras, longe da superfície e da luz, como um
lento naufrágio.
Ao evitar uma cadeira portátil que balança nas mãos de uns
escravos, volta a ver de esguelha o homem barbudo de quem
suspeita. Alguém está a segui-lo, não há dúvida, mas não renuncia a
visitar a casa proibida. Apesar de encaixar mal com o seu carácter,
habitualmente tão doce que sofre entre os seus conhecidos troças e
alcunhas no feminino, hoje sente o apetite de uma desobediência.
Talvez o perigo não seja mais do que o preço que deve pagar para
recuperar um pouco de respeito por si próprio.
Aproxima-se de uma velha que vende legumes frescos e diz-lhe:
— Por favor, avó, sabe qual é a casa do Cornélio Galo?
— É forasteiro na cidade? O Cornélio Galo está morto há meses.
Tirou a sua própria vida.
— Eu sei. Disseram-me que agora a mãe dele vive aqui perto.
A idosa começa a andar à frente dele. Guia-o até uma casa e
bate à anteporta.
— É aqui.
Ele paga uma gorjeta. Quando o porteiro espreita, faz-se
anunciar. Depois espera algum tempo porque demoram a pedir-lhe
para entrar.
— Públio, a tua visita surpreende-me — diz a mãe de Cornélio. —
Os amigos do meu filho deixaram de aparecer.
— Fico contente por te ver, Gala. Estás com bom aspeto.
— Fazes troça de mim? Estes meses debilitaram-me muito.
Depois do que aconteceu com o Cornélio, já só me resta esperar —
diz Gala, dobrando os seus dedos enrugados. Ele capta a intenção:
mais um dia é menos um dia, uma conta atrás para a morte. Pensa
que será doloroso ver os olhos dela encherem-se de lágrimas e
também que, com a sua habitual falta de jeito, não conseguirá lidar
com a situação.
— Gostava de saber o que é que realmente aconteceu.
— O Cornélio sabia que Augusto o promoveu e que lhe devia a
sua nomeação como perfeito do Egito. Nesta família não somos
ingratos nem esquecidos, Públio. Alguma vez te escondemos que o
meu marido é um liberto? Não, nunca escondemos as nossas
origens. E, apesar disso, noutros tempos, as pessoas importantes
como tu não nos evitavam.
Ele apercebe-se da sua amargura e aceita-a. Quase inveja essa
dor justa, purificadora.
— Não te evitei, Gala. Há algum tempo que desejava ir visitar-te,
mas estive muito ocupado. Continua, por favor. Contaram-se tantas
coisas incríveis sobre o Cornélio…
— Conhecia-lo melhor do que ninguém, foste seu amigo de
juventude. Nunca se considerou um simples servo de Augusto,
discutiam sobre assuntos de governo. Começaram rapidamente a
circular rumores de que tinha criticado o imperador e o falatório foi
crescendo. Depois disse-se que o Cornélio mandava erguer grandes
obeliscos para celebrar as suas vitórias no Egito, que se sentia um
novo faraó… Foi acusado de alta traição e obrigaram-no a suicidar-
se.
— Lamento, Gala. Desejo que descanse e que a terra não pese
sobre os seus restos — afirma ele.
— A inimizade de Augusto não termina no túmulo. Dizem que
mandou apagar o seu nome até dos teus versos. É verdade que será
publicada uma nova edição dos teus poemas sem o louvor que
escreveste sobre o meu filho?
Sente-se incapaz de responder. Obrigaram-no a trair em público o
seu amigo caído em desgraça, a suprimi-lo da sua obra para evitar
que Cornélio Galo seja recordado através das carinhosas palavras de
alguém que o amou.
— Gala, pouco posso dizer em minha defesa. Fi-lo a contragosto.
Os outros marcam o meu caminho.
— O que é que estás a fazer, Públio? Sempre foste um homem
bondoso. Vais mesmo converter-te no propagandista de Augusto?
As rugas em redor dos seus olhos envelhecidos retêm as lágrimas
antes de as deixarem rolar. Uma luz turva penetra pelas janelas
protegidas com peles.
Ele interroga-se. Seria justo dizer que sim, que sempre quis agir
bem, ou pelo menos escolher o menor dos males, e que os tempos
não o deixaram fazê-lo? Ou era preciso mais coragem, mais energia,
mais integridade do que aquela que ele alguma vez teve?
— Até à próxima, Gala. Espero que tenhas saúde — diz, e sai.
Não tem vontade de voltar à sua casa no Esquilino, a mansão
que lhe ofereceram pelos seus serviços ao imperador. Gala acertou
dolorosamente com a expressão: o propagandista de Augusto. O sol
de outono cai obliquamente, deixando passar esses raios de cor ouro
escuro de que tanto gosta. Deambula sem qualquer fim concreto,
absorto nos seus pensamentos, algo que lhe acontece com muita
frequência nos últimos tempos.
«Todos lutamos pela grandeza de Roma», a frase ecoa na sua
cabeça, mas não sabe se a ouviu nos lábios de Augusto ou se foi o
seu amigo Galo quem a pronunciou ao consagrar-se à luta política e
deixar a poesia só para os tempos de lazer. Foi precisamente Galo
quem lhe apresentou Augusto e o seu círculo. Quando as armas se
calam e a palavra desdobra a sua força, o poder precisa de se
rodear de homens que saibam contar histórias. Augusto
compreendeu-o depressa, rapidamente começou a pedir aos seus
protegidos para escreverem um canto épico para o Império Romano.
Por alguma razão, ele sofreu mais pressões do que os outros. Pouco
a pouco, sem saber como, ficou claro que a temível encomenda
seria para ele.
Detém-se ao pé de um mendigo mutilado que pede esmola num
beco. Ouve a história das suas desgraças e, terminado o relato,
incapaz de resistir a um bom narrador, dá-lhe várias moedas. Afinal
de contas, o pedinte e ele têm apenas as suas implorantes palavras
para seduzir o mundo.
Segue em frente, sem rumo, a sonhar com o passado. Lembra-se
do dia em que Augusto lhe disse:
— Escreve, Vergílio, um poema sobre a guerra, a coragem dos
homens e o destino de Roma. Garanto-te de que nada te faltará
enquanto trabalhares. Mas não me dececiones. Sê leal comigo e
comprovarás o quão generoso posso ser.
Duvida se a conversa foi realmente assim. Acha que pelo menos
a última frase — Sê leal comigo e comprovarás o quão generoso
posso ser — pertence a outro momento, ao dia em que Augusto o
mandou eliminar do seu poema o elogio a Galo. Quando o imperador
fita alguém, gosta que essa pessoa baixe os olhos, como se
estivesse diante do Sol.
Todos esperam uma grande obra, tão grande como a Ilíada, tão
memorável nos séculos futuros. Para que possa criá-la, libertaram-
no de preocupações materiais, ofereceram-lhe uma casa cheia de
luxos, puseram à sua disposição uma tropa de escravos e
amanuenses. A encomenda está paga de antemão, muito bem paga.
Augusto conhece o preço das palavras e está decidido a pô-las ao
seu serviço: «O poderio de Roma fortalece-se graças às suas
tradições e aos seus heróis.»
Apesar do tempo que passou, foi incapaz de escrever uma única
linha à altura da encomenda. Sente-se paralisado. Esta exigência,
este louco e descomunal trabalho é demasiado para ele. Cada vez
que pensa nisso, o seu estômago contorce-se. À noite acorda a suar.
E Augusto começa a ficar impaciente. Desde a Hispânia, onde
está a combater contra os cântabros, o imperador escreve-lhe cartas
a pedir com insistência «o primeiro rascunho do poema ou uma
passagem qualquer». No início era cortês e suplicava, agora utiliza
um tom ameaçador. Reunindo toda a coragem de que é capaz,
respondeu: «Quanto ao meu Eneias, juro-te que, se já tivesse algo
digno dos teus ouvidos, to enviaria com prazer, mas esta tarefa é tão
enorme que quase me parece ter embarcado em algo tão grande
por alienação mental.»
Sabe que não poderá pôr à prova a paciência do imperador
durante muito mais tempo. A campanha cântabra já está decidida.
Augusto fundou as cidades onde se instalarão os seus veteranos.
Uma Emérita Augusta, uma César Augusta e, preenchido o seu afã
de ficar na História através da toponímia, dentro de pouco tempo
regressará a Roma.
Se deu ordens para o seguirem e vigiarem, ao seu regresso da
Hispânia encontrará um relatório detalhado sobre a sua vadiagem
pela cidade e sobre as suas companhias inapropriadas. Assim saberá
que na grande casa do Esquilino os copistas estão inativos, que o
poema permanece estagnado, que a grandeza de Roma não tem
cantor.
Então, o que é que se sucederá à sua pergunta? Treme só de
pensar nisso. Haverá duras represálias contra ele, que talvez
também alcancem a sua família, os seus pais e os seus irmãos.
Será que poderia fazer com que Augusto compreendesse que ele
nunca será capaz de escrever grandes versos sobre as guerras
épicas de Eneias em Itália? Pelo contrário, o poema ganha vida
quando pensa nos remos e nos ventos, à beira de Cartago, batida
pelas ondas, nas constelações que tomam banho no mar, nas feridas
silenciosas, nos vaivéns do destino, no tempo breve e sem retorno,
na branca Lua a iluminar os caminhos, nas espumas da grisalha
ondulação, nos sonhos forjados por aqueles que amam, nas mãos
de Elisa.
III. SANGUE

Eneias

Já é demasiado tarde para voltar atrás, demasiado tarde, embora


tudo isto pudesse ser um erro. Olho para os meus homens. Na íris
dos seus olhos vejo espelhadas as fogueiras do acampamento
nómada que se perfila à distância.
— Alto — digo.
Tenho a boca seca, os dedos suados. Começam esses momentos,
mesmo antes da luta, nos quais é difícil dominar-se.
— Ouçam-me — continuo em voz baixa, porque aparentemente
não fomos avistados e a paz da noite embala os nossos adversários.
— Dividir-nos-emos em dois destacamentos e atacaremos pelos dois
lados ao mesmo tempo. Não se esqueçam de que viemos para levar
prisioneiros vivos, não atirem para matar se não for necessário. Não
quero feridos entre as crianças e as mulheres.
Eu e o Acates deliberamos entre sussurros. Depois dividimos os
homens em dois grupos. Antes de entrar em ação, ponho o meu
braço no ombro de cada um, agradecendo a sua lealdade com a
pressão da minha mão. Todos eles me seguiram sem protestar nesta
marcha através do deserto vermelho, onde a areia absorve os
passos e o pó queima o olhar, procurando durante horas, sem guia
nem orientação, o lugar de acampamento dos nómadas.
— Vamos cair sobre eles de surpresa — digo aos guerreiros do
meu destacamento. — Avançaremos em silêncio até àquelas árvores
e, dali, quando vos der o sinal, lançar-nos-emos a galope.
Sigilosamente, caminhamos até às estranhas árvores recortadas
num céu noturno de cor violeta. O sopro do vento deixou ao
descoberto as suas raízes como se se tratasse de estranhos
membros. Enquanto nos aproximamos, dir-se-ia que as árvores se
movem com lentidão sobre escuras patas de aranha.
A vertigem e a repulsão apoderam-se outra vez da minha cabeça.
O meu corpo rebela-se perante a ideia de semear o terror na
tranquila aldeia que descansa entre a nudez das dunas. Sinto o
impulso de dar meia-volta, um anseio de tranquilidade longe da
batalha. Penso nas mãos da Elisa; desejaria afundar a cara nelas,
esconder o rosto, descansar ali todas as fadigas, descansar de ser o
Eneias, embalar-me na calma dos seus braços.
Chegámos. Esperamos onde as sombras azuladas das árvores se
fundem umas com as outras.
— Agora! — grito, e lançamo-nos a galope entre nuvens de pó.
O estrépito das nossas vozes mistura-se com um som de
tambores na aldeia. Ao pé de uma das cabanas de palha, um
nómada empunha uma lança. O Lisandro, ao meu lado, atravessa-
lhe o pé com uma seta e deixa-o cravado no chão, a contorcer-se de
dor.
Avançamos como um clarão de luz entre as ruas de choupanas.
As mulheres pegam nas crianças e procuram refúgio. Várias grávidas
correm a abraçar a barriga de forma desajeitada. Chegamos ao
centro do acampamento, onde arde uma fogueira, quase sem
encontrar resistência.
Sou invadido de novo pela forte sensação de irrealidade que se
apodera sempre de mim no estrondo do combate. Meto o meu
destino nas mãos dos deuses.
Galopamos em círculos à volta da fogueira, a brandir as espadas
e as lanças. Por todo o lado se eleva a negra seara das armas.
Desde os cavalos, derrubamos os indígenas que nos enfrentam, o
metal atravessa a carne e destroça ossos, erguem-se gritos atrozes.
Um nómada segura a lança à altura da sua orelha. O projétil sai
disparado e fere o meu bom Ásio nas têmporas, cravando-se no
cérebro. Vejo-o cair palpitante, com os braços esticados para os seus
companheiros, enquanto a morte gela os seus olhos. Respirando
fúria, o Ilioneu desmonta, corre para o assassino do Ásio, atravessa-
lhe as costelas com a espada e volta a cravá-la uma e outra vez até
lhe desfazer o peito.
— Mantenham a calma! — grito.
Nesse momento, o Acates e os seus desembocam desde o
extremo oposto da povoação e confluem connosco. A nossa
superioridade é evidente: somos mais numerosos e dispomos de
melhor armamento. Como consequência, vários nómadas jovens
escapulam-se na escuridão.
— Não os persigam — ordeno. — Já temos cativos suficientes.
Vamos regressar.
De repente, uma seta surge das sombras e com um rangido
crava-se no pescoço do Ânfio. Antes de morrer, vira-se para mim e
vomita um rio de sangue quente que me salpica. Depois desfalece.
Os seus flancos pulsam como num longo soluço. O Cloanto acode
para ajudá-lo. Outra seta, e mais outra, passam velozes sem acertar
em ninguém. A última sulca o ar perto de mim. O seu silvo é a
canção da morte em combate, o mortal canto que, depois de ouvido,
nunca se esquece.
Não conseguimos ver o arqueiro nómada que dispara as setas.
Levantamos os escudos e protegemo-nos com eles. De repente, e
apesar da couraça, o Ilioneu cai, ferido em plena barriga. Um
segundo projétil atinge-o enquanto tenta levantar-se. O seu pescoço
cai sobre os ombros, o elmo roda.
O arqueiro Anteu posiciona-se protegido pelo meu escudo.
Consigo ouvi-lo tremer ao pé de mim. A gritar com todas as suas
forças, o Acates desmonta, agarra num ramo que arde na fogueira e
pega fogo ao teto de palha de uma choupana. As chamas crepitam.
Volta a soar o barulho agudo de uma seta, que não acerta no
Acates, mas que se crava no peito do seu cavalo. Eu desloco o
escudo com o qual protejo o Anteu, ele aponta, dispara para a
escuridão de onde vêm as setas e depois volta a refugiar-se. Pega
noutro projétil, coloca-o e estica a corda ao longo do ombro. Mesmo
naquele momento retiro de novo o escudo para lhe permitir disparar.
Repetimos estes movimentos até esvaziar a sua aljava. Entretanto, o
Acates pega fogo às choupanas uma a uma. O incêndio cresce
rugindo no ar. Dentro de uma choupana, um recém-nascido desata a
chorar.
Finalmente, o atirador oculto sai a correr como um gamo. O
Cloanto coloca-se à sua frente e derruba-o com a lança. O cabo
crava-se no coração, que faz vibrar a hasta com as suas últimas
palpitações. Enquanto o arqueiro nómada agoniza, os meus homens
lançam aclamações de triunfo.
Grandes nuvens de fumo elevam-se sobre a aldeia. As choupanas
consomem-se convertidas em cinzas que flutuam como penas
cinzentas. O pranto da criança esgota-se. A areia está ensopada em
sangue negro.
Um calafrio momentâneo percorre o meu corpo. Dou ordens para
recolherem os nossos mortos e os carregarem ao lombo dos cavalos.
— Há feridos graves? — pergunto.
— A morte roubou-nos o Ásio, o Ilioneu e o Ânfio, mas o resto só
sofreu arranhões — responde o Cloanto. — Capturámos cinco
prisioneiros. Os restantes nómadas fugiram, estão a agonizar ou
mortos.
Enquanto se organiza a partida, ouço um murmúrio apagado.
Embrenho-me entre as ruínas da povoação, alerta, tenso, com a
arma na mão, a guiar-me pelo ouvido. Ao pé do esqueleto de uma
choupana, encontro uma jovem mãe ajoelhada no chão, a abraçar o
cadáver de um bebé de colo. Embora o seu filho seja apenas um
despojo enegrecido, ela sorri e canta uma canção de embalar com
voz doce. Embainho a espada e regresso para ir ter com os meus
homens. O ténue fio de som não se quebra nem sequer quando me
afasto.
Quando terminamos os preparativos, empreendemos o caminho
em silêncio. Os prisioneiros, quatro homens e uma mulher, seguem-
nos a andar pelo seu próprio pé, atados em fila. Viramos as costas
ao acampamento devastado pelo fogo, à areia ensanguentada, aos
cadáveres que semeámos, à canção de embalar.
Gostava de pensar que esta noite cumpri um difícil dever. É bom
ensinar estes povos nómadas, sem cidades nem leis, a respeitarem a
justiça. Quero acreditar que a causa da Elisa é a minha, que
estamos unidos pela mesma nostalgia, pelos mesmos planos. Ela
falou-me do seu desejo de fundar, neste deserto, um oásis humano,
como Tiro, como Troia, com os seus deuses, os seus templos, as
suas praças, onde os trabalhos dos homens e as suas melhores
capacidades possam prosperar. Gostava de pensar que uma era de
tranquilidade porá fim à era do perigo. Que as armas se calarão, que
serão substituídas pela calma das caravanas, pelos ofícios da paz.
Que este louco afã de matar acabará.
Quero acreditar que hoje cumpri o meu difícil dever.
Nada se move exceto a areia, deixando-se modelar pelo vento, e
nós, que regressamos soturnos, na noite silenciosa, através das
sombras.

Ana

Iulo, és um menino calado e, quando falas, dizes na tua língua


troiana palavras desconhecidas, tão estranhas que parecem trava-
línguas. Bar bar sira nisa nonsa tran, é assim que soam. Mas eu vou
ensinar-te a minha maneira de nomear as coisas. Ouve bem. Mar.
Ondas. Céu sem nuvens. Altas, altas gaivotas. E isto é um
escaravelho a abrir o seu pequeno caminho na areia. Não tenhas
medo dos escaravelhos, por mais negros que os vejas. Pelo
contrário, cuidado com os escorpiões que se escondem debaixo das
pedras, os escorpiões magoam.
Lembras-te há dois dias, no bairro dos tintureiros? Viste os
homens com os braços vermelhos, porque os afundam nos
alguidares de tinta púrpura e ficam coloridos. Assustaste-te muito e
desataste a chorar! Também no palácio, desde que dormes no meu
quarto, todas as noites, logo depois de eu apagar a vela, tu desces
da tua cama e, devagar, para não incomodar os espectros da noite,
sem que os duendes que roubam o sono das crianças se apercebam,
vens deitar-te comigo. No primeiro dia, viraste o bacio, e quem é
que teve de limpar de manhã?
Eu sei, eu sei, tens medo porque viste coisas más na Guerra de
Troia. Tens saudades de te sentares aos pés do teu avô para que te
conte histórias de cavalos com asas e velhos pássaros sábios?
Lembras-te da tua mãe, que até há pouco tempo te enchia a boca
com o seu leite e cheirava bem e te embalava na escuridão? Sim,
tens medo por tudo o que perdeste.
Eu percebo-te, Iulo. Quando era pequena como tu, sofria porque
me chamavam a pequena bastarda do rei. O meu pai não me
amava. Vinha à nossa casa às vezes, mas não se ocupava de mim.
Só gostava que a minha mãe levantasse a túnica e lhe mostrasse a
barriguinha. Então eu retirava-me para um canto, esperando até ele
partir. A minha mãe era boa, mas morreu, tal como a tua. Quem
cuidou de mim foi a minha meia-irmã, a Elisa, tal como eu cuido de
ti agora.
Porque nós também somos como irmãos. Não me digas que te
esqueceste do nosso pacto de cicatrizes? Aqui mesmo, nesta praia,
estávamos a brincar no outro dia e tu tocaste na minha mancha roxa
da cara. Percorreste-a com o dedo, pelo bordo, lenta, ternamente. E
depois mostraste-me uma cicatriz que tens na perna. Passei o dedo
por cima dela, disse-te o quão bonita é, e assim ficámos como
irmãos.
Anda, anda, vamos apanhar as conchas que brilham entre a
areia, vais ver que bom é quando as ondas te lambem os
calcanhares. Olha, aquela ali, traz-ma, espero-te sentada na água,
enquanto a areia escapa entre os meus dedos e adquire a forma das
minhas pernas.
Estas conchas servirão para decorar a nossa casa de areia. Mete-
as na saia da minha túnica, assim. Dá-me a mão. Repara, pela areia
acanalada do fundo, perto dos nossos pés pálidos, caminha um
caranguejo de patas couraçadas.
Gostas dos pássaros aquáticos? Esse pássaro de cauda bailarina
é uma lavandeira. Se correres vais assustá-la e ela desatará a voar.
Vês? Eu avisei-te. Deita-te na areia comigo e contar-te-ei um
segredo. Se seguires os pássaros com o olhar, já não são eles que
sobem, mas sim nós que caímos, não é assim?
Ali as palmeiras batem com as suas cabeças contra o céu. Gosto
desta luz inclinada do outono e deste vento que se debate entre os
tamariscos tal como um animal preso numa rede.
Estou cansada, corremos até esse lado da baía com o ar entre as
pernas como um cavalo invisível ao qual açoitávamos, saltámos de
rocha em rocha apertando os cotovelos contra as ancas, fizemos um
palácio amuralhado com teto de algas, apanhámos pedras e
atirámo-las à água. Enquanto tu fazes um buraco para me enterrar
os pés, deixa-me ficar deitada. Está-se bem assim, recostada sobre
o flanco, com a mão debaixo da orelha. Tenho vontade de
adormecer.
Porém, com o ouvido no chão, ouço um barulho, um eco muito
longínquo, parecido ao batimento do meu coração. O som cresce,
dirige-se a nós. O que será? Fecho os olhos, abro-os. Calor na cara.
O céu quieto, o mar em movimento. Volto a fechar os olhos e então,
de repente, compreendo.
Iulo, anda, levanta-te, agarra-te ao meu pescoço, despacha-te,
são cascos de cavalo e estão a aproximar-se. Temos de voltar à
água, esconder-nos ao pé das rochas, antes de eles chegarem.
São as hordas nómadas, Iulo, que não nos apanhem.
Corro com todas as minhas forças, não te soltes, abraça-me.
Entro no mar levantando salpicos, a água fica turva de areia e lama.
Viro-lhes as costas, mas tu consegues vê-los, as suas figuras
fantasmagóricas a cavalo, cavalgam com estrondo, chegam. Iulo,
não olhes, respira fundo e esconde a cabeça no meu peito, a água
está fria, as ondas molham-nos o nariz, cobrem-nos, eles mal nos
veem. Não nos perseguem, galopam para a cidade. Adivinho o que
farão, lançarão uma chuva de setas por cima da muralha. São setas
envenenadas, Iulo, mas, se aguentares escondido no frio da água,
não nos poderão acertar. O meu corpo rodeia-te e é o teu escudo.
Olha para os reflexos do entardecer dourado no mar, a água está a
converter-se em mel, depois vamos comê-la, já viste quanto mel?
Nunca tinhas visto tanto mel junto.
Os cascos afastam-se. Respiro, respiro. O teu hálito quente
acaricia a minha orelha. O perigo passou, mas ainda vamos ficar
quietos durante um bocadinho. Agora que já estamos a salvo, gosto
de estar apertada contra ti e de ter um bocadinho de medo ainda.

Eneias

Por fim descanso ao calor do lume, após um dia de marcha a


atravessar o deserto, inseguro do rumo, com o ar a apagar o perfil
das dunas.
— Amanhã, antes do meio-dia, chegaremos a Cartago — digo.
— Espero que possamos zarpar dentro de pouco tempo e deixar
estas costas. Os homens estão inquietos — responde o Acates.
Olho para a fogueira. O vento faz fumegar e agita as chamas. O
Acates continua a comer da escudela. Quando termina, lambe os
dedos.
— De quanto tempo é que ainda vamos precisar para reparar os
barcos? — pergunto.
— Os trabalhos avançam devagar. Para além disso, temos de nos
proteger. Agora os nómadas veem-nos como inimigos. Devíamos
construir uma paliçada e um fosso à volta das naus. Passarão várias
luas antes de podermos partir.
Eu também deixo a escudela no chão.
— Vou dormir. A noite já caiu e convém obedecer-lhe. Pôr-nos-
emos em marcha à alvorada.
Levanto-me, mas não me dirijo à tenda. Os prisioneiros cavaram
com as unhas fossos na areia para dormirem. Aproximo-me deles e
sacudo o ombro da mulher jovem. Retiro a areia que cobre o seu
corpo e desato-a. Faço-lhe um sinal para que me siga. Ela obedece,
a esfregar os pulsos.
Já dentro da minha tenda, acendo uma lamparina e penduro-a da
haste, onde a minha couraça se ilumina, bem como as minhas
grevas ajustadas com tornozeleiras, a minha espada de tachas de
prata e o meu alto escudo.
— Anda — sussurro à mulher.
Ela não entende as minhas palavras e hesita. Aproximo-me.
Durante todo o dia observei-a; no seu braço supura uma ferida
aberta de faca e, embora dos seus lábios não brote a mínima
queixa, a dor turva os seus olhos. Pegando na sua mão, lavo-lhe a
ferida cuidadosamente, como fiz tantas vezes com os meus homens
depois da batalha.
— Vai doer-te, mas será apenas um momento — digo-lhe, para
sedá-la com a minha voz tranquilizadora. Quando verto o vinho,
arde-lhe e brota sangue fresco.
Na verdade, o que é que estou a fazer? Ataquei a aldeia desta
mulher e fi-la prisioneira. Levo-a para Cartago, onde a torturarão
tentando averiguar quem assaltou a caravana. Queimarão e ferirão a
sua carne até perder os sentidos, e então deixá-la-ão para
retomarem mais tarde o suplício. Qual é o sentido de curá-la se
amanhã a entregarei ao carrasco para que maltrate o seu corpo?
— Olha, já está limpa.
Ela evita o meu olhar, mas a sua mão agarra-se ao meu braço
enquanto trato da ferida, e por vezes contrai-se. Tem as unhas sujas
por causa do trabalho. É pequena e morena.
— Agora vou ligar o teu braço.
No ataque à povoação, os seus familiares fugiram deixando para
trás a rapariga, e agora é nossa prisioneira. Pergunto-me o que
pensará sobre eles, pergunto-me se os amaldiçoará interiormente.
— Já acabámos. A ferida vai cicatrizar dentro de pouco tempo.
A mulher levanta-se. Com movimentos ágeis, tira as peles que
cobrem o seu corpo e deita-se nua no meu leito. Foi assim que ela
interpretou a minha atenção, o cuidado do amo para com a sua nova
propriedade antes de tomar posse. Aceita a lei da guerra, embora
agora ela seja a sua vítima.
Inclino-me ao seu lado e acaricio-a. Toco levemente com os meus
dedos no calor do seu pescoço, no seu ombro, no braço onde uma
serpente tatuada enrosca os seus anéis, nos peitos de grandes
auréolas, na barriga, na concha do sexo.
Vejo marcas de uma maternidade recente. Onde está o seu filho?
Ela mantém os braços inertes ao longo do corpo e à medida que
sente o meu contacto franze o rosto, afastando os lábios e os olhos
de mim.
Tenuemente, como algo que ressuscita depois de estar morto há
muito tempo, regressa a mim a lembrança dessa manhã em Troia.
Uma missão perigosa tinha-me mantido ausente durante três luas.
Enquanto voltava a casa, o corpo da minha jovem mulher
desenhava-se na minha mente, um corpo claro e do qual tinha
saudades. As criadas abriram-me as portas. Vi o medo e a confusão
nos seus rostos.
Creusa! Creusa! Onde é que está a minha mulher?
Deve estar a tecer no tear, amo.
Porque é que não me vem dar as boas-vindas?
Deixei as servas para trás e a despenseira para trás a contorcer
as suas mãos. Corri através do pátio. O quarto da Creusa estava
fechado. Entrei no meu, abri a porta intermédia e irrompi na sua
alcova. Havia um homem na divisão da minha mulher. Reconheci-o
de imediato. Um guerreiro a quem as feridas tinham afastado da
frente. Ainda possuído pela fúria do combate, lancei-me sobre ele
antes de poder resistir e cravei-lhe a espada no flanco. Feri-o duas
vezes e com dois gemidos dobrou os joelhos. A cabeça chocou
contra o chão. As gotas negras do seu sangue salpicaram-me.
Acaricio a parte de dentro das coxas da mulher, as minhas mãos
percorrem as suas pernas e fecham-se à volta dos seus pés como
dois peixinhos. Depois levanto-me e tapo-a com uma manta.
— Dorme — digo-lhe. — Peço aos deuses a sua bênção para o
teu sono.
Ela vira a cabeça e fita-me pela primeira vez. Parece perguntar-se
o que é que pode esperar de mim, quem sou eu, o homem bom e
mau ao mesmo tempo.
Saio da tenda. Uma sentinela caminha em passos regulares à
volta do acampamento, sem perder de vista o deserto de perigos em
nosso redor. Sento-me ao pé do lume e estico as mãos.
Vejo de novo a minha mulher a segurar no Iulo sobre a anca, a
tapar a boca com horror. Alojada em mim como uma faca, resta a
visão da sua cara ao ver o cadáver, ao ver o sangue a brotar com
ímpeto. Acho que avancei para ela com a espada ensanguentada,
com a mente nublada. As imagens permanecem claras, mas a
lembrança torna-se confusa.
Afasta-te. Afasta-te. Estás louco?
Ela levava um punhal na mão, devia tê-lo tirado do cinto que o
seu amante retirou ao despir-se. Enquanto me ia aproximando, ela
erguia-o. Não consigo esquecer os nós dos seus dedos brancos a
agarrarem o punho.
Não!
A Creusa recuou até esbarrar contra a parede. O seu peito subia
e descia com ansiedade.
Não!
Então o Iulo desatou a chorar. Chorou e chorou até sufocar,
gritando à beira da asfixia, com autêntico terror de criança. Eu e a
sua mãe, os dois com a arma na mão, acusados pelo pranto,
olhámos para o pequeno. A Creusa baixou o punhal e deu estalidos
com a língua para acalmá-lo.
Ah, ah, meu menino.
Dei meia-volta e saí de casa.
Para que é que serviu matar? Não apaguei a traição. Não senti
alívio na vingança. Não sei se demonstrei alguma coisa. A ira surgiu
esmagadora e depois esvaziou-se. Acabei com um homem
desarmado que suplicava pela sua vida, isso é tudo. Os anos tinham-
me habituado ao combate, onde os homens se lançam uns sobre os
outros como lobos. Foram tempos de fúria, a guerra tinha penetrado
até ao mais profundo dos nossos sentimentos. No meio da luta, a
vida era uma maré minguante.
Enviei um homem, mais um homem, para o exército dos mortos,
ali, no quarto da minha mulher, onde cheirava a essência de limão.
Desde esse dia, ela teve medo de mim e eu odiei-a. Nunca mais
voltámos a falar sobre aquilo. As palavras não lavam o sangue.
Ouço a respiração da mulher nómada a dormir na minha cama.
Talvez eu tenha matado o homem que se deitava ao seu lado na
aldeia. Será que estou à procura do perdão dessa rapariga a quem
os seus abandonaram quando fugiam?
Fora do círculo do lume, voltam os passos da sentinela. A sua
figura recorta-se à luz da Lua que espreita por trás das nuvens
pardas. Admiro por um momento a sua forma de encarar, na
intempérie da solidão, calmo e em silêncio, os perigos do mundo.
Suplico aos deuses que nos permitam encontrar um pequeno
território onde começar uma vida limpa de injustiças e profanações,
uma costa tranquila com água e ar livre para todos.
A mulher continua a dormir na minha tenda. Vou passar a noite
ao pé dos borralhos do lume.

Eros

Saio para ir procurar Elisa no jardim do seu palácio.


Que lugar…
Habituados à eternidade, e um pouco cansados dela, nós,
deuses, achamos irresistíveis as paisagens efémeras que os
humanos habitam. Sim, sim, sabemos que aqui em baixo os mortais
sonham edificar cidades e impérios para sempre, imperecíveis, mas
aquilo de que nós gostamos são precisamente dos cenários mutáveis
do seu mundo. Por exemplo, este palácio, que há uns anos nem
sequer existia na imaginação de ninguém, a colina da cidadela, as
avenidas de árvores que se abrem para o mar, e estes cedros, estes
limoeiros, os reflexos quebrados na água, os insetos e as cores
violentas, a variedade e a abundância da passagem do tempo que
nós, deuses, desconhecemos ali, no nosso cume do Olimpo.
Mas, pelos doze trabalhos de Hércules, não estou aqui para
desfrutar, a obrigação chama-me.
Encontro Elisa ao pé do lago, por baixo de uma figueira. Acaricia
a superfície da água, movendo as escamas de sol. Indago à sua
volta para perceber melhor a situação. Ela sabe que Eneias, de
regresso do deserto, foi avistado esta manhã pelos vigias. Já devia
estar no palácio, pensa com inquietação. Quando julga vê-lo na
figura de algum servidor, que anda de um lado para o outro
atarefado, uma súbita maré de emoção deixa-a sem fôlego.
Entretanto, enquanto espera, observa, a uma certa distância,
recortado sobre a barreira de bambu, o perfil de Ana que descansa
no chão com as pernas cruzadas. Ao seu lado, e de cócoras, Iulo
rodeia com o braço um dos cães do palácio. Os dois observam o
jardineiro enquanto talha com uma faca uma figura de madeira que
será para eles. Vai nascendo um cavalo do ramo de pinheiro. Aparas
amarelas e encaracoladas caem, as crianças põem as mãos em
forma de tigela para apanhá-las em pleno voo. O vento fresco,
salino, revolve-lhes o cabelo.
Elisa tem um pressentimento: de um momento para o outro,
nesta imagem enquadrada pela figueira e pelas parreiras que
trepam, já preparada para ser lembrança, Eneias, o ausente,
aparecerá.
Este é o cenário. Começo a trabalhar.
Em que é que estará a pensar Elisa? Acaricio-lhe o cabelo e
apalpo a agitação das suas ideias a fervilharem por baixo. Tenta
calcular com que idade é que Eneias foi pai. Pergunta-se: «Será
muito mais jovem do que eu? Cinco invernos? Dez?» E aqui detém-
se assustada.
Ideias como estas acobardam Elisa, preciso de lhes dar uma
reviravolta. Felizmente, os pensamentos dos humanos admitem todo
o tipo de inflexões, brilham e escurecem muito facilmente e de
forma repentina.
Sussurro ao seu ouvido. Lembra-te de quando lá, em Tiro,
contemplavas com inveja as mulheres grávidas, enquanto o teu
útero dormia frio e ermo. Lembra-te do vulto das suas barrigas,
sobre o qual apoiavam as suas mãos. Lembra-te dos seus peitos a
amamentar, que te pareciam enormes, com a sua rede de veias
azuis, perante os teus, frágeis. Lembra-te de que, no início, quiseste
um herdeiro para preencher as tuas ambições de chegar ao trono,
mas depois começaste a desejar um filho porque o pedia a voz do
teu sangue e a tua carne. Lembra-te de tudo o que fizeste para
conseguir gerar um filho: os sacrifícios aos deuses, os feitiços, a
poção de mandrágora.
Passo para a sua outra orelha. Continuo. Pensa que talvez não
tenhas culpa. Pensa que pôde ter sido a semente estéril de Siqueu,
teu tio, com quem te casaram quando tu eras muito pequena e que
era tão velho como o teu pai, o rei. Pensa que a maternidade ainda
seria possível com Eneias, o teu escolhido, um homem em todo o
seu vigor que já gerou um filho. Pensa que uma oportunidade como
esta não voltará a aparecer: se não for agora, o teu tempo passará
para sempre.
Afasto-me e deixo que Elisa construa a sua ficção emprestando-
lhe as suas próprias palavras. Essa ficção de quem começa a amar e
diz: «É precisamente aquilo de que eu precisava. Quantos acasos,
quantos acidentes se encadearam para que encontre alguém com as
medidas exatas do meu desejo?»
E ela, que sempre viveu num mundo de reis, movido pela ânsia
de poder, sente que é arrastada pela primeira vez pelo desejo de
descansar em outro, o outro recém-encontrado. É a alegria de se
projetar numa nova vida, algo que parece simples, mas exalta os
mortais quando acreditam que está ao alcance da mão. Eu chamo-
lhe o relâmpago interior.
Já voltei a fazer o encantamento e lamento de novo que o mago
fique sempre de fora, expulso do prodígio, privado, pelo seu próprio
poder sobre as ilusões, da capacidade de se maravilhar.
Distraído por estas meditações sobre o ofício, deixo passar um
arauto que só devia entrar em cena depois da chegada de Eneias.
Que erro.
— Rainha — diz o arauto —, as duas expedições que enviaste
contra os nómadas estão de regresso. O troiano e os seus homens
acabam de entrar na cidade. As tropas que partiram às ordens do
Malco, o Escudo, aguardam nas portas da muralha. Pedem a tua
autorização para desfilarem até à prisão, onde acorrentarão os
prisioneiros.
— Diz-lhes que os espero ali para os honrar e lhes dar as boas-
vindas.
Soa um grito de excitação. O cavalo de madeira das crianças está
acabado, Iulo fá-lo trotar sobre o lombo do cão e pela paliçada de
bambu. Ana desata os nós de um lenço cheio de tâmaras. Iulo pega
numa entre os seus dedos e aproxima-a da boca do seu brinquedo
antes de ele a provar.
Elisa lança um olhar para a beira da água, onde um instante
antes se distraia a elaborar sonhos diurnos. Afasta-se do lugar com
um sorriso fugitivo, involuntário.

Elisa

O vento enfia-se entre as dobras do manto enquanto contemplo,


quieta em cima do meu cavalo branco, o regresso dos meus
homens. Estou ao pé da prisão, no mesmo lugar onde, há menos de
uma lua, vi o Eneias pela primeira vez.
Elibaal, o Arco, detém o seu cavalo ao pé do meu.
— Já sabes o que aconteceu?
— Soube-o há apenas um instante. As más notícias não
encontram facilmente mensageiro — digo.
— Não posso acreditar… Parece que somos perseguidos por uma
maldição.
— É doloroso — respondo-lhe. — Mas a morte chega quando as
deusas fiadeiras decidem cortar o fio da vida. Isso acontece a todos.
Falo sem tirar os olhos dos prisioneiros capturados na expedição.
Caminham em fila atados pelo pescoço, formando uma corrente
escura. Têm os olhos avermelhados por causa do pó, arrastam os
pés, trazem o cansaço e o horror espelhados no rosto.
— Rainha, qualquer um de nós morreria feliz por ti e pela cidade.
É uma honra cair no campo de batalha — diz o Elibaal, com um
alvoroço estranho.
O meu cavalo bufa bruscamente fazendo estalar os beiços.
Inclino o corpo e dou-lhe umas palmadas no pescoço. Deixo as
palavras do Elibaal sem resposta. Contudo, sei que alguma coisa
cala dentro de si e não descansará até mo dizer. Conheço-o.
Entre as fileiras de guerreiros armados, avança um longo
regueiro de prisioneiros: homens, mulheres, crianças com os pés
inchados. Reparo nas marcas de chicote que lhes sulcam as costas,
as pernas manchadas pela diarreia. Todos, até os mais jovens,
parecem velhos. O pó do caminho gretou-se na sua pele e afundou-
lhes as rugas. A derrota está a lavrar os seus rostos, a abrir novos
sulcos.
— São uma excelente mercadoria — observa o Elibaal. — Vamos
conseguir um bom preço por eles nos mercados de escravos.
— Não há dúvida. Uma grande pilhagem — respondo.
À nossa frente atravessa uma carroça que arrasta uma jaula de
madeira. Entre os barrotes espreitam braços magoados. Os cavalos
puxam a pesada carroça com o peito para a frente.
— Alguns não passam de pele e osso, outros estão gravemente
feridos — diz o Elibaal, apontando para um menino com o peito
marcado pelas costelas. — Rainha, acho que o melhor será
alimentá-los até engordarem para os vendermos melhor.
— Está bem. Trata de tudo. Quando estiverem prontos, navega
com eles até aos mercados da costa e traz, em troca, as naus
carregadas de trigo. Temos de abastecer os celeiros para o inverno
— digo.
No céu pairam umas nuvens azul-barro, a brisa é húmida e a luz,
estranha, de uma luminosidade cinzenta que fere o olhar.
— O troiano trouxe um pequeno número de prisioneiros, quatro
homens e uma mulher — diz o Elibaal. — Dei ordens para os
meterem numa cela. Basta uma autorização tua, rainha, para os
destinarmos ao tormento. Veem de uma povoação próxima do lugar
do assalto à nossa caravana. Através deles poderemos saber quem o
fez.
— O Eneias não participa no desfile? — pergunto.
— Não, rainha. Entregou os prisioneiros e foi para o palácio em
silêncio. Não quis fazer parte da festa da nossa cidade.
Uma ave marinha branca, deslumbrante contra a barriga cinzenta
das nuvens, lança-se a pique, a guinchar. Sou envolvida por um bafo
húmido vindo do mar.
As pessoas juntam-se em redor do desfile. Os homens gritam à
passagem dos escravos, alguns até açulam os cães contra eles. Os
prisioneiros apertam os lábios secos e avançam a arrastar os pés.
Esta cerimónia, à qual sou obrigada a assistir, cansa-me. A multidão
e o barulho fazem-me sofrer. Porquê tanto ódio, porquê tanta
fanfarronice? Porque é que a turba se agita assim? Porque é que os
guerreiros se pavoneiam? Há muito mais dignidade na silenciosa
ausência do Eneias.
Eu e o Eneias sentimo-nos unidos desde o início. Temos em
comum algo muito importante. Os dois somos exilados, fugitivos da
nossa terra natal, viúvos. Na nossa fuga, os dois perdemos tudo e só
conseguimos salvar uma criança — o Iulo, a Ana. Fomos navegantes
sem rumo, agora devemos edificar o futuro com as nossas próprias
mãos. E para além disso estamos condenados a ser fortes porque
somos os dois reis.
Tantas parecenças não podem ser um mero acaso. Algum deus
trouxe o Eneias até às minhas costas. Sim, Cartago é o seu porto de
chegada, embora ele não o saiba. Ainda há uma ferida que vive
silenciosa no seu peito, ainda ressoa forte a chamada do passado —
a voz que lhe fala dos mortos. Mas melhores dias virão, voltaremos a
sentir alegria nos nossos corações, desabituados.
Uma carroça range no caminho. Lá dentro há vários cestos
cheios de cabeças cortadas. Bocas abertas, olhos fixos, cabelo
ensanguentado.
— Amanhã — exclama o Elibaal — colocaremos à volta da
muralha uma fileira de estacas espetadas de cabeças. Os nómadas
vão perceber a advertência. Demonstrámos-lhes o poder das nossas
armas.
A multidão redobra os gritos. Aclama o nome do Malco, o Escudo,
que desfila com a sua armadura de gala. Aplaudem, cumprimentam,
gritam: «O nosso protetor!»
— Malco, o Escudo, conquistou a admiração de toda a cidade —
diz o Elibaal, invejoso.
— A aclamação do povo é um vinho forte que tu saboreaste
muitas vezes, Elibaal, o Arco — digo para apaziguar o seu
ressentimento.
Agora desfila a carroça onde jazem os nossos guerreiros mortos.
Soam ovações. Atrás, um cortejo de homens carrega o cadáver do
Ahiram, depositado num andor. Exibem o seu corpo coberto até ao
queixo com um manto branco e um fino tecido tenuemente
ensanguentados.
— Ahiram, o Dardo, sofreu uma ferida leve em combate —
explica-me o Elibaal. — Não parecia grave, mas piorou de repente,
durante a noite. A febre levou-o de manhã. É estranho…
— O que é que estás a tentar dizer-me?
— Rainha, há uma maldição que nos está a dizimar a nós, os
homens do Conselho. Primeiro, Safat, o Punhal; pouco tempo
depois, Ahiram, o Dardo. Já só restamos dois.
— Não há nada tão difícil para um rei como o regresso dos
cadáveres enviados para a morte sob o seu comando. A minha
tristeza e a minha dor são tão profundas como as tuas, Elibaal, o
Arco, ou até ainda maiores.
Há apenas uma lua teria ficado angustiada ao pensar naquilo que
as insinuações do Elibaal contêm. Mas hoje abandono alegremente
essa preocupação, os escrúpulos, as solitárias tarefas do governo, o
medo da rebeldia dos meus homens. Hoje faço um esforço para
afastar o pensamento do Eneias, mas a minha atenção volta uma e
outra vez a pousar nele. Tudo o que me rodeia perdeu valor, parece-
me repetitivo e gasto, aborrece-me.
Chega até mim um cheiro no qual se misturam a chuva, a resina
e o fumo. Olho para o horizonte e avisto uma tempestade. O tecido
do céu desfia-se em linhas de chuva, ao longe.

Eros

Sim, reconheço-o, arruinei tentativas anteriores, mas agora,


depois de ímprobos esforços, volto a reunir Elisa e Eneias no palácio.
Elisa mandou os guardas irem à procura de Eneias e trazerem-no
à sua presença. Enquanto espera, treme, embora não seja de frio.
Obedecendo à ordem muda, um escravo apressa-se a acender a
lareira. Coloca os troncos com habilidade, traz uma pequena chama
protegida pela sua mão encurvada e fá-la saltar para as farpas.
Algum tempo depois de um suave crepitar, a fogueira converte-se de
repente num estrondo abrasador que dá cor à sala com a sua luz.
Enquanto espero, contemplando a bela combustão dançante,
perco-me numa das minhas habituais digressões sobre os humanos
e as extravagantes imagens com as quais se referem a mim. Quando
me chamam fogo, não estão a dizer que eu, o deus, me dedico a
fazer isto mesmo, transformá-los em belas lareiras vivas que ardem,
ardem, ardem?
Eneias aparece acompanhado por Iulo.
— Aqui estou, rainha. Cumpri as tuas ordens — diz.
— Foi por isso que te chamei, Eneias, para te agradecer.
Iulo solta a mão do pai e aproxima-se das escravas que cardam
lã e tecem num canto da sala. Toca nos novelos pegajosos,
contempla o ir e vir da lançadeira com a boca aberta.
Permito a presença deste grupo de intrusos no meu cenário
porque nenhum entende a língua franca que Elisa e Eneias usam.
Assim, os dois criam um espaço próprio graças à linguagem. As
línguas podem ser lugares íntimos de encontro, apercebi-me disso.
— Porém, não participaste no desfile — acrescenta Elisa.
— Não quero ofender-te, mas o meu lugar não estava nas
celebrações de triunfo.
Hoje devo dedicar-me a Eneias e conseguir que se desfaça da
seca carapaça que protege os seus pensamentos e não me deixa
invadi-lo tumultuosamente. Nem sequer Pólux e Helena, de quem se
conta que nasceram de um ovo, foram tão inacessíveis dentro da
sua casca, tenho a certeza disso. E o que é que encontro ao
atravessar com esforço a camada de quitina deste seleto crustáceo
humano? Encontro a necessidade de salvar os seus homens e o seu
filho, encontro o afã de emendar erros e encontro dúvidas. Nada
disso facilita o meu trabalho.
Elisa diz:
— Eu também me senti distante ao ver passar à minha frente os
prisioneiros, os guerreiros e os cadáveres dos mortos em combate.
Eneias, lembrei-me dos vossos sofrimentos em Troia e perguntei-
me: que loucura se apoderou de nós?
As faúlhas da lareira avivam-se e crepitam. Eneias fita
diretamente Elisa.
— Rainha, se pensas assim, não deixes que os teus guerreiros
levem o ódio mais longe. Tal como tu me pediste que capturasse
prisioneiros nómadas, eu peço-te agora que trates humanamente os
vencidos.
— Tentarei fazê-lo, embora não seja simples. O meu povo está
impaciente, odeia, clama pelas armas, deseja a guerra. Contudo, eu
só desejo uma trégua e um descanso para continuar a construir a
cidade.
Que belas palavras, Elisa! Eneias suaviza-se perante a tua forma
apaixonada de o ouvires, perante o inesperado eco das suas ideias
nas tuas palavras. E agora começa o despertar da vossa curiosidade
um pelo outro, o espanto, a procura de coincidências que se
descobrem com a alegria de uma confirmação.
— Eu também procuro trégua e descanso — diz Eneias. —
Gostava de viver num lugar onde se possam fechar as portas da
guerra com sólidos ferrolhos.
O pente, a ranger, atravessa os fios do tear. O padrão do tecido
multicolor começa a tornar-se visível.
— Se fosse possível… — diz Elisa. — Se eu soubesse como
garantir a paz com os povos vizinhos, se soubesse como evitar as
intrigas e os feitiços que se tramam nas minhas costas…
Os dois ficam em silêncio, com o corpo e os braços na mesma
postura, espelhos um do outro.
Aproximo-me deles e então acontece algo estranho, quase
inexplicável. Elisa pressente que estou ao seu lado, levanta o olhar
para mim e tenta focar-me com os seus olhos. Acho que não chega
a distinguir quase nada e, em todo o caso, disperso de imediato as
partículas invisíveis e luminosas que me compõem. Mas não há
dúvida, os nossos mundos fundiram-se e juntaram-se como dois
metais, uma fronteira sólida que se tornou porosa durante um
momento, houve um instante partilhado. Vou ter de ser cauteloso, o
amor torna Elisa mais recetiva, aguça os seus sentidos. Pergunto-
me: será que é assim que os mortais se sentem quando se tocam
levemente? Tive um vislumbre do sobressalto erótico? Os humanos
contam lendas sobre uniões entre mortais e deuses. Eles fantasiam
sobre esse tipo de encontros sexuais. Nós não, não temos
imaginação.
Às vezes suspeito que há uma profunda ligação entre as duas
habilidades que mais admiramos nos humanos: a sua destreza para
imaginar histórias e a sua capacidade de amar. Nos jantares que
nós, deuses, celebramos lá em cima nos nossos olímpicos cumes,
defendi em várias ocasiões que o amor não é mais do que outro
nome para o impulso criativo.
Reúno de novo as minhas partículas translúcidas e retomo a
minha tarefa. Está tudo no seu lugar dentro da cena. Um galgo
entra na sala e deita-se perto do lume com o focinho afundado na
cauda enroscada. Iulo senta-se ao seu lado, agarra na sua orelha e
desliza para dentro dela as suas palavras infantis. O vento ulula no
vão da lareira. A criança aponta com o dedo para a dança das
chamas no teto da divisão.
— Eneias, como é que tu afastarias as ameaças? Os meus
homens cresceram na guerra e no deserto, pertencem a uma raça
dura.
— Não dizemos que os submetidos, os suplicantes e os
estrangeiros são sagrados aos olhos de deus? Pela mesma razão, os
deuses devem amparar os mais fracos, os vencidos e também os
presos de guerra. Avisa os teus homens de que, se forem cruéis
como o lobo no curral, podem ofender os deuses que cuidam de nós
e que vigiam o nosso destino.
Uma corrente de ar enfia-se pela lareira. É um vento que vem do
deserto e espalha pela sala um sussurro de areia.
— Ajuda-me a governar assim, Eneias. Aprendi a reinar entre
homens muito diferentes de ti, mas em Cartago desejo reparar os
erros e acalmar as lágrimas. Ensina-me.
Elisa acaba de fazer uma descoberta, o amor entendido como
prazer da sublevação. Cartago não é um mundo novo? Seria possível
aqui uma vida que não reprima os seus sentimentos naturais, que
não a submeta à tirania dos hábitos?
— Elisa, podes contar com a minha ajuda — diz Eneias,
embriagado pela fé que lhe é depositada, mas ainda convencido de
que estão a falar de política. — O nosso mundo, com os seus crimes,
as suas injustiças e as suas desgraças, é um lugar cruel. Não desejo
legar esta herança sangrenta aos nossos netos.
Elisa ouve risonha. Nas palavras «os nossos netos» julgou captar
a alusão a uma possibilidade. Para aqueles que amam nada é
inocente, tudo é sinal. Quando Eneias a fita, o seu sorriso desce dos
olhos para os lábios.
— Nunca ninguém me falou assim — diz ela.
Iulo brinca ao pé da lareira com o seu cavalinho de madeira de
pinheiro, murmurando em voz baixa imaginários trotes e relinchos.
Nesta cena de ideais e ternas utopias, preciso dele para o último ato
da minha função. Faço com que se levante e corra para o seu pai.
Então faço-lhe uma rasteira. A que artimanhas tão questionáveis
tenho de descer…
Iulo cai e desata a chorar. Quando Elisa se aproxima e o levanta,
beijando-o, ele mergulha a cara no quente pescoço. Suavemente, o
pranto termina. O menino colocou o nariz no espaço vazio da
clavícula de Elisa, esse espaço que gostava de cheirar e respirar
quando a mãe o sentava ao seu colo. Eneias, tal como eu pretendia,
reconhece esse gesto do seu filho, agora consolado.
Sorrio, satisfeito.

Ana

Não pares aqui, Iulo. Atrás desta paliçada está o pátio traseiro da
prisão. Anda, anda, despacha-te. Viste que no céu já brilha o
barquinho da Lua?
Viras-me as costas? Agarras-te aos postes para trepar pelo muro?
Do outro lado estão os prisioneiros nómadas. Um deles podia esticar
a mão e agarrar-te… assim! Vamos embora antes que ele te apanhe.
Agora sentas-te no chão, de cócoras, e negas-te a mover-te por
mais que eu puxe por ti. O que é que tens? Este não é um bom
lugar para uma criança, sobretudo de noite. Se me deres a mão
agora, ofereço-te o meu amuleto. Ou, melhor, o meu búzio lilás. Se
lhe tocares por fora é áspero, mas lá dentro tem a suavidade da
madrepérola.
Porque é que te portas assim hoje? Mal quiseste comer, só
lambeste o teu leite como um gato. Zangas-te de repente e olhas
para mim como se eu fosse uma inimiga. Para além do mais, o que é
que esperas ver ao ficar aqui com o nariz enfiado no espaço entre
dois postes? Os escravos estão dentro das suas jaulas de madeira.
Há dois guardas a avivarem uma fogueira. O que é que estão a
fazer? Têm umas barras de metal incandescentes. Também têm uns
ganchos. Não gosto disto. Vou-me embora. Se não quiseres vir
comigo, vais ter de dormir aqui sozinho. Não me percebes, Iulo?
Vou-me embora. Vou-me embora a sério…
Continuas de costas, teimoso. Agora observas no chão a sombra
dos postes, que vira rapidamente. Alguém move uma tocha do outro
lado do muro, isso é tudo. Sim, os guardas estão a entrar numa
cela, carregados com as suas barras e os seus ganchos. Já não há
nada para ver, vamos embora, pode ser?
Julgava que eras um bom menino, mas hoje estás a portar-te
muito mal. Se soubesse que te ias portar assim, não te tinha levado
aos lavadouros. Fizemos esses barcos com casca de noz e um palito
lá dentro a fazer de mastro e uma folha para a vela com tanto
entusiasmo… As mulheres que estavam a pisar a roupa suja nas
pilhas disseram-te coisas com uma voz alegre. Estava tudo tão
bonito… As túnicas, os cintos e os mantos estendidos à beira-mar,
onde a água devolve os seixos mais limpos à terra, secavam com o
último resplendor do sol. As nuvens eram peixes avermelhados que
passavam pelo céu, a nadarem devagar com o vento. E tu?
Começaste a chorar. Deitaste-te de costas e esperneaste. Gritaste
com essa voz aguda que fazes de propósito. E não quiseste brincar.
Sabes uma coisa? Nunca mais te levo. Pensava coser uma bola de
tecido, mas acabou. Se não quiseres olhar para mim nem dar-me a
mão, não haverá bola nem lavadouros.
E esse grito de mulher? Vem da prisão, da cela na qual os
guardas entraram. Outro grito. Mais outro. E agora esse guincho
longo, longo. Sei o que se passa lá dentro, uma prisioneira está a
dar à luz, Iulo. A minha mãe era parteira e chamavam-na sempre
nos partos difíceis. Eu acompanhava-a para ajudá-la e aprender o
ofício, embora naquela altura fosse muito pequena. Quando as
mulheres deitam uma criança cá para fora, gritam muitíssimo.
Contorcem-se e esticam-se de dor. Uivam.
A minha mãe sabia como arrancar-lhes a criança das entranhas
mesmo se o seu corpo se fechasse. Essa mulher da cela teria sorte
se a minha mãe entrasse para ajudá-la, como fazia em Tiro, até que
ela própria teve as dores e o meu irmãozinho morreu na sua barriga
e a levou.
A minha mãe era suave. Acalmava a parturiente com murmúrios
e conselhos, punha o seu corpo na posição adequada, dizia-lhe
como respirar e incentivava-a a empurrar. Eu conhecia os feitiços
para invocar a deusa lunar, eu recitava as palavras e rezava. A minha
mãe nunca usava ferros nem ganchos como os guardas da prisão.
Sim, isto que ouves, Iulo, são os gritos de uma mãe. A tua mãe
também gritou assim, Iulo, enquanto cerrava os dentes e empurrava
e tu vinhas ao mundo rasgando-a por dentro com acessos de dor.
Queres que rezemos pedindo aos deuses pela mulher que grita
na cela? Para que a morte não apague os seus olhos no parto, como
aconteceu com a minha mãe? Sim, reza.
Eu disse-te que o meu irmãozinho que morreu sem nascer teria a
mesma idade do que tu? Perdi-o, mas agora tenho-te a ti.
A minha mãe sabia muitas coisas. Fazia mistelas de ervas, de
mel, de gordura, de peixe, e untava-as nas barrigas das mulheres
grávidas. Eram receitas muito antigas para afugentar os maus
espíritos. Também preparava pomadas para aliviar e dar proteção
mágica. E filtros de amor. E era a única que sabia a fórmula da
poção de mandrágora contra os demónios que tornam estéreis as
mulheres jovens. A Elisa vinha buscar essa poção à casa da minha
mãe, porque a sua barriga se negava a curvar-se. A minha mãe
fazia-lhe massagens, enquanto murmurava ensalmos. Um dia a Elisa
trouxe uma boneca de trapos e ofereceu-ma. Outro dia veio com uns
astrágalos pintados, cada um de uma cor, e brincou comigo,
ensinando-me a lançá-los tal como dados e a saber o valor que tem
cada lado do astrágalo. Também trouxe um guizo em forma de
porquinho para o menino que a minha mãe levava dentro de si.
Notava-se que gostavam de estar juntas. A Elisa aproximava a mão
da barriga da minha mãe e sorria com espanto sempre que sentia os
golpes através da camada de carne.
Quando a minha mãe morreu, a Elisa levou-me para a sua casa
para viver com ela e com o marido. Naquele dia chamou-me irmã e
chorou comigo. Já nunca mais nos separámos, sabias? Desde então,
eu amei-a. Temos o mesmo pai, mas amei-a pelas lágrimas que
chorou pela minha mãe.
A cela retumba, esse grito foi o último. Que silêncio nos rodeia
agora! É estranho, não se ouve o pranto do recém-nascido. É muito
estranho.
Eu disse-te que sei dar banho a um recém-nascido, esfregá-lo
com sal e envolvê-lo numa venda de linho? É o que se deve fazer,
porque todos os meninos veem ao mundo ensanguentados e sujos.
Mas aqui ninguém chora, só há silêncio.
Iulo, acabou tudo, vamos embora. Fico triste ao recordar a minha
mãe com a língua ferida das dentadas, sem forças para me sorrir, as
vagas de dor a passarem pela sua cara, o vulto disforme e
sanguinolento que saiu da sua barriga depois de dois dias de fadiga,
gemidos e gritos.
Acabou tudo, vamos embora. Aqui cheira a morte.
Espera um momento, abre-se uma porta na cerca. Agora foges a
correr? Queres bisbilhotar tudo. Anda cá! Não incomodes esses
guardas que saem a carregar uma padiola. Levam um corpo tapado
com um lençol, não te aproximes. O braço está pendurado de fora.
Vejo uma dessas tatuagens que os nómadas pintam com sumo de
ervas. Uma serpente a enroscar os seus anéis. E, para além disso,
há regueiros de sangue sobre a pele escura desse braço. Deixa-os
passar, vão enterrar o corpo. Agora assustas-te e choras? Não te
tinha dito que este sítio não é para crianças?

Elisa

Há dias que não vou vigiar as obras do porto, da muralha e da


fortaleza. Começo e abandono mil tarefas com um impulso febril.
Percorro o palácio à sua procura e censurando a mim própria essa
procura, ao mesmo tempo impaciente e esgotada.
Durante uma das minhas peregrinações, através da porta
entreaberta, vejo a Ana sozinha no seu quarto. Cose sentada sobre
o leito. Entro e sento-me ao seu lado.
— Elisa! — diz numa alegre receção.
Observo o seu perfil. A mancha de nascimento que marca a sua
cara fica oculta ao meu olhar. Esta face tem a cor de um pêssego,
com a mesma penugem loura escura da fruta. Observo as pontas
dos seus dedos a manejarem a agulha, observo as suas unhas
ovaladas e um pouco sujas. Entre os seus lábios espreita a ponta da
língua, que se move acompanhando a mão quando dá pontos. E,
então, não posso evitá-lo, dou-lhe um beijo impulsivo. Desfruto do
toque leve da sua pele, gosto de sentir no meu rosto o esvoaçar das
suas pestanas.
A Ana sorri sem surpresa.
— Estou a coser uma bola para o Iulo — diz.
— Quando eu era pequena, tinha uma bola púrpura como esta. E
a que é que brincam mais?
— Brincamos aos cavalos, aos palácios de areia, às escondidas,
subimos às árvores, procuramos ninhos e conchas e tartarugas, às
figurinhas de barro, damos de comer aos cães…
A Ana cresceu sozinha. Lá, em Tiro, as crianças rejeitavam-na,
assustadas com a mancha escura da sua face e porque nas suas
casas as proibiam de se aproximarem da filha da feiticeira. Contou-
mo a mãe da Ana, a maga, com uma tristeza profunda. É estranho,
encontrei uma grande amiga nessa mulher entristecida, que, para
além disso, era, como descobri mais tarde, a amante do meu pai e a
rival da minha própria mãe. Que curiosas combinações tecem os fios
da vida…
Agora apercebo-me de que a Ana, desde a chegada do Iulo, se
tornou mais infantil, mais inocente, mais ameninada até na sua
maneira de falar.
— Estás a ensinar ao Iulo palavras da nossa língua? — pergunto,
colocando-lhe uma madeixa rebelde de cabelo atrás da orelha. —
Ontem deu-me o seu brinquedo e disse-me: «Cavalo!»
— O Iulo aprende muito depressa, fala cada vez mais, embora
misture e confunda tudo. Sabes uma coisa? — acrescenta. — Acho
que está a tentar contar-me algo importante sobre o Eneias. Repete:
«pai», e depois: «segredo». Faz isso muitas vezes. De seguida, diz
mais, mas não percebo nada. Será um segredo a sério?
— Se o averiguares, conta-mo. Já sabes que nós, reis,
precisamos de conhecer todos os segredos para tomarmos decisões
sábias — digo, ocultando a minha impaciência por saber, a minha
ávida curiosidade sobre o Eneias.
— O Iulo tem pesadelos todas as noites. Grita, remexe-se e dá
pontapés. Para além disso, faz chichi na cama — diz a Ana,
franzindo o nariz.
— Dentro de pouco tempo, os vossos jogos afugentarão os
terrores noturnos.
— Às vezes, eu também tenho medo. Assusta-me que o teu
irmão, o rei de Tiro, mande os seus assassinos para nos cortarem a
garganta enquanto dormimos — diz.
— Ana, não tenhas medo, estamos a salvo. Não nos vão
encontrar. E, se desembarcarem no nosso território, apanhá-los-
emos e fechá-los-emos num calabouço carregados de correntes.
— Não gosto da prisão. Não gosto deste lugar. Porque é que não
nos vamos embora daqui?
— Não nos podemos ir embora. Quem é que governará a cidade?
Para além do mais, dentro de pouco tempo celebraremos a grande
caçada, como todos os anos. Já te esqueceste? Iremos ao pequeno
bosque ao pé do rio onde vivem os veados. Assim teremos carne
salgada nos nossos armazéns para o inverno.
— E se esperarmos pela caçada e depois nos formos embora?
— É perigoso navegar quando o vento de levante sopra e o mar
fustiga a costa. É preciso esperar pela chegada da primavera e pela
acalmia dos ventos, aplanando as ondas.
A Ana parece aceitar os meus motivos e continua a coser.
— Mas promete-me que vamos embora com os troianos quando
zarparem na primavera. Assim o Iulo brincará comigo e terá de novo
uma mãe. Não gostavas de ser a mãe do Iulo?
Vejo a inocência no seu olhar de súplica, uma graciosa inocência
de criança. Ela, que começa a viver, não conhece nem pode imaginar
o meu desassossego, os sobressaltos do coração, o abismo que se
abre na parte de baixo do meu peito, os silêncios, a repentina
timidez e esta forma de a língua espessar na presença do Eneias,
perante quem não me sinto atraente.
Inspiro pela boca. Tento parecer leve, como que a brincar. Digo:
— E tu achas que o Eneias vai querer levar-me? Ainda vês a tua
irmã jovem e bela?
Ela não se apercebe, mas o meu sorriso treme enquanto espero
a sua resposta. Abraça-me.
— A mais bela do mundo! — exclama.
Precisamente nesse momento aparece a silhueta de um guarda
na porta.
— Rainha, os homens do Conselho esperam-te. Os
interrogatórios aos nómadas deram os seus frutos. Reclamam a tua
presença.
Outra vez os prisioneiros, o combate e a morte. Se pudesse
escolher, ficaria ao pé da minha irmã e apagaria a guerra, fazendo-a
desaparecer como um gatafunho desenhado na areia.
Liberto-me do abraço da Ana, levanto-me e saio.
Ana

A Elisa levanta-se e sai. Tirou o colar do meu abraço por cima da


cabeça, esqueceu-se de mim assim que o guarda entrou.
Como lhe tremiam os cantos dos lábios quando me perguntava
se o Eneias a ama! Era assim que tremiam as mulheres que vinham
buscar poções e feitiços de amor à casa da minha mãe, em Tiro. E a
minha mãe preparava-lhes uma mezinha de salamandra pisada,
invocando a Lua com os seus cantos.
A bola púrpura já está pronta, ficou mesmo bem! Saio para o
corredor. Lanço a bola ao ar e apanho-a. Corro de um lado para o
outro. Chego às portas fechadas da sala onde está a Elisa com os
guerreiros. Gosto de saber o que é que os adultos fazem quando
trancam os ferrolhos.
A bola cai no chão. Baixo-me e ouço aproximando a orelha, a
tremer de curiosidade e de medo ao mesmo tempo. Aguço o ouvido.
Lá dentro, as vozes ameaçadoras dos homens repetem a mesma
palavra uma e outra vez e outra vez. Uma palavra que me assusta,
que me deixa com pele de galinha, que me seca a garganta.
Recupero a bola e afasto-me das portas de correr. O sangue palpita
nos meus ouvidos. Mordo o lábio. Abraço a bola contra o peito.
A palavra que todos dizem é o novo nome do perigo. Iarbas.
Iarbas, o arrogante chefe das tribos do interior que propôs
casamento à Elisa. É o Iarbas, agora nosso inimigo, quem ataca as
nossas caravanas. Vou convencer o Eneias a levar-nos para longe
daqui, para um lar seguro. Não quero ter mais medo.
Eneias

Fomos caçar à hora em que as estrelas empalidecem. Na floresta


ainda mergulhada na noite, somos recebidos por gratas sensações
quando os cascos dos cavalos pisam o tapete de caruma rangente e
aromática. Começam os preparativos, que contemplo a uma certa
distância, pois sou incapaz de entender as mais simples instruções e
preciso da Elisa como intérprete. Sucedem-se diante dos meus
olhos, em silenciosa ordem, os gestos aprendidos. Os homens
estendem as redes de linho, rodeando o arvoredo. Depois, libertam
os cães das suas correntes para que possam farejar o rasto.
O amanhecer é uma esteira de claridade que cresce no horizonte
enquanto as sombras se encurtam sigilosamente. Banhado pela
alvorada, respiro o cheiro a terra. Os cães dão o sinal de partida com
os seus latidos e nós galopamos atrás deles. Os caçadores
cartagineses seguram, inclinados para a frente, os dardos que
vibram no ar. Eu também me preparo, colocando uma seta no arco.
Ao meu lado ela cavalga.
Os cães fazem com que um veado saia do seu esconderijo,
correndo como um clarão de luz, saltando e fintando-os para evitar
o impulso dos seus perseguidores. Os cães ladram, furiosos, porque
o animal não escapa em linha reta e, quando julgam alcançá-lo, dão
mordidelas no ar. O vento bate contra a nossa cara, os ramos dos
arbustos arranham-nos.
Ela incentiva os seus cães preferidos.
— Vá, Tigre, Escarchado, Canela, Lobo, vamos em frente!
Olho para ela. A sua capa esvoaça contra as garupas do cavalo.
Monta erguida, com brio, e cada vez que prepara um disparo dobra
o braço para trás para curvar o arco, com os lábios abertos, o
pescoço tenso. Reparo então na curva do seu pescoço, com os
tendões esticados como a corda da arma. Aponta com firmeza, as
sobrancelhas arqueadas e juntas.
Sigo a trajetória da seta que silva no ar. O veado queixa-se, a
terra tinge-se suavemente de sangue. Os cães afundam os seus
focinhos no corpo da presa abatida, ferem-na no lombo, mordem as
patas. O animal dobra os joelhos e cai no pó quente, trémulo.
— Hoje vamos fazer uma grande caçaria — diz-me ela.
Um escravo amarra o veado morto na garupa de um cavalo.
Entretanto, os cães, excitados pela perseguição, farejam de novo em
busca do rasto quente, do cheiro da caça. Cavalgamos entrançando
círculos à volta da extensão que cercámos com redes e armadilhas,
recebendo os primeiros raios brancos de sol. De vez em quando
surpreendemos uma manada de veados e a matilha persegue-a
tentando conduzir os animais apavorados para as redes, até que os
caçadores derrubam alguns deles. Golpeamos a floresta na nossa
corrida, o vento ecoa com os latidos. Depois de abater várias peças,
por acidente, um dardo mata um cão, atravessando-o e cravando-o
no chão. A Elisa desce do cavalo e acaricia o animal moribundo.
— Cãozinho bom! Cãozinho bom!
Observo-a. Arranca com destreza o ferro e depois, sem qualquer
gesto de repugnância face à ferida, extrai a lança quente pelo
sangue. Sem dúvida, ela é forte e tem coragem. Sendo mulher,
realizou tudo o que eu ainda devo conseguir: guiar os exilados,
construir uma cidade para eles, proporcionar-lhes um novo começo.
Os cartagineses decidem que já há caça suficiente. Permitem que
os cavalos descansem e pastem entre os arbustos enquanto eles
tiram do cinto grandes facas para esfolar e esquartejar os veados.
Abrem-nos de cima para baixo e puxam com força pelas entranhas.
Lançam as vísceras para um lado: o estômago azulado, os
intestinos, o fígado, os rins e o coração. Tiram com puxadelas
enérgicas os indeléveis corpos em carne viva do interior das suas
túnicas de pelo que depois penduram nas árvores com farrapos e
gotas vermelhas ainda a pingar das mesmas. Com a faca na mão,
cortam de forma limpa e rápida a carne aos pedaços. À medida que
trabalham, cresce o monte de coxas, quartos e costeletas, prontos
para carregar. E quando o cheiro a sangue invade o ar, de repente,
insinua-se o perigo.
O que é que nos alerta? A luz tornou-se estranha. Uma nuvem
azul nascida do mar avança, enegrecendo o céu plano, cinzento e
luminoso onde o sol escurece. O pressentimento de uma ameaça
invade tudo. Os cavalos erguem a cabeça, a farejar; os cães
levantam as orelhas e apontam com elas para o exterior da floresta
como que apercebendo-se da presença de estranhos. Ficamos em
silêncio. No espaço entre as árvores apaga-se a luz da manhã.
— Eneias, quero saber o que é que assustou os animais —
exclama a Elisa, quebrando a quietude do medo. Monta e dá ordens.
Seguimo-la indo ao encontro do perigo que está à espreita fora da
floresta enquanto a nuvem cresce e se estende sobre nós. Paramos
no limite do arvoredo, dominando a vista da grande planície. O pó
gira, elevam-se remoinhos, as palmeiras encurvam-se. O céu está a
desaparecer por trás do muro nublado. Ouço as nossas respirações.
— Eneias… — sussurra a Elisa.
E, de repente, saídos do pó da planície, avistamos os guerreiros
nómadas que formam numa grande linha reta. Detêm-se
lentamente, conscientes da sua superioridade numérica.
Contemplam-nos.
Sinto um golpe molhado no rosto. No início, penso que me
alcançou, na prodigiosa distância, a cuspidela de um guerreiro
nómada, mas é só a chuva, gotas grossas que começam a cair,
formando crateras no pó. Pouco a pouco, o temporal aumenta e sob
a sua força ofuscante a terra torna-se mais escura, a paisagem
enche-se de borrões. O vento sacode as árvores atrás de nós.
Sem saber como, precipita-se tudo na confusão de um combate.
Ecoam gritos de guerra. Um dos caçadores cartagineses cai com
uma seta afundada no sítio onde o pescoço dá lugar aos ombros.
Outro, com o peito atravessado, vomita coágulos de sangue pela
ferida e pela boca.
Quase não há tempo para pensar. O terror propaga-se. Os
participantes da caçada desfazem-se em debandada, cada um
escapa com a surpresa da presa perseguida pelos cães. Embraço o
velho escudo de todas as minhas batalhas e aproximo-me da Elisa
para protegê-la. Setas, pedras e dardos caem ao pé de nós e voam à
nossa volta. Dou um golpe na garupa do seu cavalo e embrenho-me
com ela na floresta. Enquanto cavalgamos, os ramos das árvores
açoitam-nos e lançam folhas mortas para o céu.
— Segue-me. Não te separes de mim — grito à Elisa no arranque
da nossa cavalgada. E sinto alegria. Respiro a chuva azulada, evito
as árvores, apercebo-me da força do meu corpo palpitante, devoro o
ar húmido e, sobretudo, vejo a Elisa ao meu lado, o cabelo colado
nas faces pelo vento e a água, firme sobre o pescoço do cavalo, sem
fôlego, estranhamente feliz, como eu.
Não sei quanto tempo dura a nossa corrida na fúria da
tempestade. Não sei qual dos dois avista primeiro a gruta.
Compreendemo-nos com um olhar: é um bom lugar para nos
protegermos. Depois de desmontar, digo-lhe:
— Refugia-te e espera. Vou atar os cavalos a uma árvore, onde
não sejam visíveis.
Enquanto a Elisa procura um abrigo na entrada da gruta, agarro
nas rédeas e puxo-os. Caminhamos entre diminutos riachos e poças,
golpeados por fortes rajadas de vento, com os ouvidos cheios de
estrépito.
Depois de muito tempo de derrotas, sinto de novo o calor do
triunfo. Porque salvei a Elisa quando a morte nas setas e lanças que
apontavam para ela nos perseguia. Porque a guiei entre os perigos
sem sofrer um arranhão, como se um deus nos protegesse na palma
das suas mãos.
Deixo os cavalos atados. Dou-lhes uma palmadinha carinhosa
antes de regressar.
Quando galopávamos, brilharam clarões de admiração nos olhos
da Elisa, fazendo-me esquecer a guerra perdida, esquecer a
humilhação que a minha esposa me provocou, esquecer as cinzas e
as sombras geladas às quais ficou reduzido tudo aquilo pelo qual um
dia lutei.
Entro na gruta. Aproximo-me da Elisa, que está ao fundo, a
abraçar a sua própria cintura. Tapo-a com o meu manto e, no
impulso, desato a fita que segura o seu cabelo. Nesse instante, ao
aperceber-me do seu tremor, sei que posso abraçá-la com força e
abrir caminho pelo seu corpo acolhedor. Sinto o desejo de ouvi-la
gemer, de ver a água dos seus olhos vibrar e apagar da minha
recordação a rejeição da minha mulher, o rancor.
Ela está quase nos meus braços e o seu hálito aquece a minha
pele. Pego nela e faço com que se recoste, segurando o seu pescoço
com as minhas mãos. Pressiono o seu corpo suave. Quando apalpo
os seus peitos, parece-me que a carne entre os meus dedos
endurece.
Gosto de como se agita. Gosto de como dobra a cabeça para
trás, espalhando os cabelos. Afundo-me nela. Sinto as suas costas
arquearem-se. A sua respiração entra no meu ouvido como um
vento ensurdecedor. Somos percorridos pelo mesmo tremor. Depois,
a calma. O adormecimento. Jazer enlaçados, imóveis, como atletas
sem fôlego.
Por fim, na maré-cheia deste prazer, tudo enfraquece e cede. Por
fim, sinto-me libertado da minha terrível obrigação, do dever que
pesa no meu coração. Por fim, descanso da profecia.

Elisa

Ouço os cavalos relinchar. Os passos do Eneias misturam-se com


a tempestade. Sigo-o com o olhar enquanto se afasta. Mas a minha
roupa está molhada e decido ir procurar abrigo na gruta.
Nunca tinha estado neste lugar, uma fenda na rocha viva com
paredes que sobem até às trevas e um teto que se perde na
sombra. O chão da caverna está coberto por ramos e vime. Com as
folhas mortas do bosque que o vento traz, preparo um pequeno leito
vegetal, fofo e rangente, onde me sento à espera de Eneias
enquanto contemplo o aguaceiro.
A chuva cai em ondulações brancas batidas pelo vento. Quando a
floresta se agita submetida ao seu ímpeto, consigo ver como os
ramos dos freixos e das azinheiras chocam entre si e se arrancam,
dando estalidos ao partir-se. Esse ribombo do vento e da água de
outono enchem-me de alegria. Tudo revela que a estação avança,
que passou o tempo da navegação e que o Eneias não vai poder
zarpar. Agora mesmo consigo imaginar a tempestade a morrer no
estrondo da ondulação, a chuva violenta a precipitar-se sobre a água
como um tecido ondulante, e os relâmpagos que lançam as suas
redes ao mar. Já nenhuma nau procuraria o seu caminho entre as
ondas verde-escuras e encrespadas.
Eneias vai ficar em Cartago.
Começo a vislumbrar todo um inverno ao pé dele quando, de
repente, me invade a sensação de não estar sozinha na gruta.
Sinto… — como explicá-lo? — algo mais forte do que um
pressentimento, mas mais vago do que uma presença. Vislumbro
uma sombra a rondar à beira do meu olhar, que desaparece se a
procuro, mas regressa se tento ignorá-la. É uma impressão que já
tive antes, durante a última lua, e inquieta-me.
Este toque ligeiro do desconhecido, este leve sobressalto
transformam-se num forte anseio. Quando é que o Eneias regressa?
Tenho frio, acho que estou a tremer por debaixo da minha roupa
molhada, mas dentro de mim sopra um fôlego quente.
Não sei bem o que é que me está a acontecer, embrenho-me em
território desconhecido. Pressinto a magnitude da mudança ao
recordar o Siqueu, o único homem que a intimidade do meu corpo
conheceu. Cheguei a amá-lo vencendo um certo desagrado, um
desagrado que me tinham ensinado a acreditar que era natural.
Habituei-me a considerar a minha beleza, e até o meu próprio
ventre, como meios para garantir a sobrevivência e a grandeza da
minha estirpe. E, no entanto, o desejo arrasta-me para o Eneias.
Agora o desejo sacode-me como um vento que cai sobre as árvores.
Levanto-me, apoio as costas na parede rochosa e rodeio-me a
mim própria num abraço. E então, com uma mistura de receio e
alívio, vejo o Eneias chegar. Enquanto se aproxima, compreendo o
que vou fazer e sei que já ninguém, a não ser ele, pode impedi-lo.
— Tens frio — diz o Eneias. — Estás a tremer…
Pego-lhe na mão e faço-o encostar-se no leito fofo de folhas.
Tenta tirar-me a túnica, mas retenho as suas mãos para lho impedir
porque tenho medo da sua juventude e das imperfeições do meu
corpo. Agito-me, entrelaço-me com ele, afundo-me e, no entanto, ao
mesmo tempo, uma parte de mim está obcecada a pensar que o
Eneias, como ele próprio me contou, esteve casado com uma mulher
menina. Será que se lembra dela, será que sente a sua falta
enquanto está entre os meus braços? Ao mover-me, tento evitar que
olhe diretamente para mim e descubra que o meu corpo já não é tão
fresco, nem a pele tão firme e lisa como noutro tempo, os peitos já
não estão tão erguidos, as coxas já não são tão juvenis. Por isso
aperto-o num abraço e balanço-me, rodeando-o. Acaricio a sua
orelha com os meus lábios, sussurro palavras que nunca tinha
pronunciado antes.
De repente, a sua respiração agita-se e há uma nota mais
urgente nos seus arquejos. Uns longos estremecimentos percorrem
o seu corpo, depois acalma-se. Descanso imóvel, num plácido
desfalecimento, enquanto os nossos ecos se apagam. Tudo ressoa
no interior da gruta como se fosse uma concha vazia.
A sua cabeça descansa sobre o meu peito, os meus dedos estão
enlaçados com os seus dedos adormecidos. Respiro fundo sob o
peso do seu corpo. Afasto o cabelo da sua cara. Ele caiu
confiadamente no sono, enquanto eu me debato com a confusão
dos meus receios.
O que é que fiz? Arrisquei tudo, entreguei-me. Eu sei, irritarei o
Iarbas, indignarei os meus homens ao preferir este náufrago a quem
as ondas lançaram para as nossas costas, sem fortuna nem terra
nem rumo certo.
Não importa, obrigá-los-ei a aceitá-lo. Escolhi. Escolher é um
privilégio dos homens, mas aqui eu sou mais poderosa do que
qualquer homem. Tudo depende da minha decisão e da minha
vontade. Vou procurar a satisfação, a tranquilidade e a alegria de
acordo com as minhas próprias regras. Para além do mais, agora já
não estou sozinha. Eu e o Eneias unimos os nossos destinos. E, se
for preciso iniciar uma batalha, contarei com a sua força e com as
armas dos troianos.
Toco levemente na sua testa com os dedos, acaricio-lhe a pele.
Lá fora, a chuva golpeia a floresta. Ouve-se com clareza o vento
bramir entre os pinheiros, o farfalhar das folhas, o som delicado da
água a pingar na lama. As pedras brilham. Com os olhos fixos na
tempestade, sou invadida por uma estranha ideia. Os relâmpagos
que rasgam o céu resplandecem para nós, evocando, nesta gruta
escondida onde nos unimos, o resplendor das tochas durante o ritual
nupcial.
IV. UMA PÁTRIA
DEBAIXO DE OUTRO SOL

Vergílio

Durante horas, esboçou um itinerário caótico que o conduz pelo


bairro de Argileto, entre ruas ladeadas de lojas, tabernas e portais,
para depois se desviar, de repente e sem nenhum propósito claro,
através de becos estreitos e pouco transitados, onde só se
encontram portas de serviço fechadas.
Tenta escapar do seu perseguidor.
O homem de barba branca segue-o, está convencido disso, mas
já não acha que seja um esbirro de Augusto. Porque é que o
imperador escolheria para esta missão alguém velho e desajeitado,
que se revela a cada passo? Augusto é retorcido, sim, mas
sobretudo eficaz, e sabe rodear-se de servidores que cumprem o seu
objetivo de forma impecável. Por esta altura, de certeza que Augusto
já espalhou à sua volta uma rede de espiões perfeitos que ele julga
serem fiéis criados ou amigos leais. Mas o velho barbudo não tem ar
de pertencer ao silencioso exército de informadores do imperador.
Talvez se trate de alguém que vem do passado com contas
pendentes. Em Roma, o passado abre sempre as suas asas sobre o
presente. No fundo, o único perseguidor é sempre o passado.
O mais razoável seria voltar a casa de uma vez por todas, mas
está a fugir da obrigação de escrever e do pânico que o pedido do
imperador lhe provoca. Na divisão de trabalho, rodeado de tabuinhas
e cálamos ainda por usar, asfixia-se de forma tão angustiante que
chega a sentir-se doente; aliás, chega a desejar que uma doença
grave o liberte do seu dever. Falta-lhe coragem para regressar e
enfrentar esse sofrimento.
Decide atravessar a rua e, ao descer do passeio, pisa uma
hedionda mistura de esterco animal, legumes em decomposição e
excrementos humanos cobertos de moscas. Roma é uma cidade suja
e fedorenta. Desde que chegou pela primeira vez, não conseguiu
ultrapassar o nojo provocado pela sujidade, pelo cheiro pestilento e
pela pobreza que convive com as fachadas de mármore. Por todo o
lado vagueiam cães sem dono que escarafuncham no lixo, muitos
dos inquilinos das pequenas divisões sem retrete nem água lançam
o conteúdo do bacio pela janela e outros defecam mesmo na rua.
Nas fachadas das casas ricas, os donos mandam pintar avisos de
advertência: «Cagão! Aguenta a vontade até teres saído daqui!»
Fecha os olhos por um momento para regressar aos cheiros da
sua aldeia natal, Andes, onde costumava deitar-se na relva mole sob
uma faia para desfrutar da frescura do rio. Desde que se lembra,
recorda-se de seguir o pai nos seus trabalhos pelo campo,
perguntando-lhe o nome de cada planta, de cada flor e de cada
ferramenta. Com o bom tempo saíam juntos de mão dada, ele a
perguntar, o pai a responder. Não esqueceu os ensinamentos que o
pai, apaixonado colmeeiro, lhe transmitiu sobre as abelhas.
— Públio, se olhares com cuidado, vais ver que as abelhas têm,
como nós, os seus afãs, os seus empenhos e os seus combates.
Como nós, também receiam o frio. Deves colocar o colmeal num
lugar protegido dos ventos. Ao tecer as colmeias entrelaçando
vimes, devemos espalhar lama bem lisa pelas frestas e deixar o
alvado estreito para conservar o calor. Será muito belo ver sair as
abelhas quando o sol as chama para os campos. E haverá
fragrâncias de tomilho no mel.
Ele ficava entusiasmado ao ver o enxame romper o limpo céu de
verão como uma nuvem escura que o vento embala, e voltar mais
tarde para inchar os alvéolos de néctar.
É estranho, tem a cabeça cheia de imagens, mas sente-se
incapaz de escrever, aflito, vazio. As suas ideias, que voam com
liberdade na sua mente, ficam bloqueadas quando tenta reconduzi-
las para o poema reclamado.
Numa dessas viragens tão habituais em Roma, ao sair de um
labirinto de becos estreitos e sombrios, vai dar a um grande
monumento. Aqui o mais esplêndido eleva-se ao lado do mais
miserável, a riqueza não tem pudor. Indignado, detém-se a observar
o templo em construção que Agripa, o grande general de Augusto,
está a mandar erguer em honra de todos os deuses romanos.
Embora só sejam visíveis os primeiros traçados, corre o rumor de
que o Panteão será um monumento grandioso, admirado no decurso
dos séculos vindouros. Ele sente aversão pela futura magnificência
do edifício, mas sobretudo sente-se cansado com a sua mensagem
política. E essa mensagem, instrução da nova ordem, diz: «Nós,
Augusto e Agripa, trouxemos-vos a paz.»
Baixa a cabeça e continua o seu caminho sem rumo. Pensa na
geração de homens que foi ceifada nas guerras civis. O abanão foi
tão forte que chegou até às aldeias em redor de Mântua, até à sua
querida Andes, perturbando a sua infância. Aflui à sua mente o dia
em que sentiu a sua vida em perigo pela primeira vez. Naquela
altura, ele passava muito tempo na companhia de uma menina celta
que vivia numa alcaria próxima. Faziam de conta que eram cavalos,
brincavam às escondidas, subiam às árvores, iam procurar ninhos,
davam de comer aos animais. Falavam pouco, mal conheciam uma
ou outra palavra da língua do outro. Ele era apenas uma criança,
mas nela já despontavam uns peitos pequenos e pontiagudos por
baixo da túnica. Nessa tarde, tinham-se deitado numa pradaria à
beira do Míncio. Com a orelha no chão ouviram um barulho, um eco
muito longínquo, parecido com o batimento do seu coração. A
menina celta levantou-se de repente, pegou nele ao colo e correu
até ao rio, ao qual se lançou entre altos salpicos, tapando-o com o
seu corpo. Nesse momento, ele viu aproximar-se um grupo de
legionários a cavalo, uma horda armada que se dirigia à aldeia para
semear o terror entre os seus habitantes por alguma obscura
rivalidade bélica. Lembra-se das suas figuras fantasmagóricas a
cavalgarem com estrondo. A menina fê-lo esconder a cabeça no seu
peito, a água fria tapou-o até à boca e ele fechou os olhos no abrigo
morno desse abraço. Por fim, os cascos afastaram-se, o perigo
passou.
Nessa tarde houve uma matança na aldeia.
Como se a cidade refletisse o curso das suas lembranças, depara-
se agora com uma escola onde o professor vigia o trabalho de várias
crianças que apoiam as tabuinhas sobre o colo e leem de forma
entrecortada, sílaba a sílaba. As escolas são idênticas em todas as
cidades da Itália, escolas de rua que se instalam em qualquer canto
que ofereça espaço e sombra, sob um pórtico ou num terreiro ou
protegidas por um simples beiral. Abertas da alvorada até ao meio-
dia, invadidas pelo barulho da rua, mobiladas com uma cadeira para
o professor e banquinhos para os alunos, com um quadro e um
ábaco, essas aulas vagabundas ainda lhe causam tristeza. Os
castigos corporais continuam a ser habituais. Ele viu em Roma
rapazes a levantarem a túnica para receberem a sua dose de
chicotadas, um hábito que, tanto agora como nos seus tempos de
estudante, lhe parece de uma crueldade repulsiva.
Algo mais aflora, a lembrança dos seus anos escolares
carregados de monotonia e desenraizamento, longe da aldeia. Foi
assim que perdeu as brincadeiras com a menina celta, a lareira da
sua cozinha tisnada com fuligem perpétua, o canto dos podadores,
as vacas de úberes cambaleantes, promessa de doce leite, a
companhia do pastor enquanto as cabras pastavam o amargo sabor
dos salgueiros e a alegria do pai quando as abelhas se dirigiam ao
tomilho.
Nunca mais voltaria a viver em Andes. Cada vez se afastou mais
dos amados vales do Pó e do Míncio. Cremona, Milão, Roma,
Nápoles… Os anos de ausência fizeram dele um homem de cidade,
que só sabe evocar a doçura do campo porque o abandonou sem
conhecer a sua aspereza. Se se aproximasse de um verdadeiro
lavrador, ambos se sentiriam tensos e estranhos. Os versos que ele
escreveu não são lidos pelos camponeses nem pelos pastores, mas
sim pelas pessoas educadas de Roma que jamais tolerariam voltar a
viver da terra e, por isso mesmo, sentem uma saudade poética do
campo.
Os seus versos… Sabe que devia voltar à tarefa abandonada, que
devia obrigar-se a escrever sobre as guerras de Eneias em Itália,
mas já é meio-dia, por volta da hora sétima, e, embora não tenha
apetite, adia de novo o regresso com o pretexto de almoçar numa
taberna. Não lhe custa encontrar aquilo que procura, depois de virar
numa esquina com um falo rudemente esculpido como proteção
contra o mau-olhado. A taberna é um cubículo com um balcão
orientado para a entrada. No interior, as prateleiras onde se colocam
os pratos e copos estão pintadas a imitarem os veios do mármore.
— Por favor, sirva-me um pastel de carne e vinho adoçado com
mel — pede ao dono.
Senta-se numa mesa e observa a clientela à sua volta. Para além
da porta, uma figura atrai o seu olhar. É o seu perseguidor, que, sem
qualquer esforço para se esconder, se acomodou no poial de uma
casa, à sombra do beiral de madeira, e lhe lança olhares demorados
através da rua. Ele sustém o desafio dos seus olhos sabendo que o
momento de enfrentar o estranho e de averiguar os seus motivos
está próximo.
Será que o desconhecido barbudo poderia ser a última desgraça
que brota da carta maldita? Se assim for, se o homem que crava os
olhos nele está à procura de vingança, então poder-se-ia dizer que a
carta marcou há vinte anos o primeiro dia da sua morte.
Enquanto ele se debruça sobre estas reflexões, a tranquilidade da
taberna desvanece-se. Um dos clientes reconheceu-o e tenta chamar
a sua atenção. Como não consegue, aproxima-se da sua mesa,
escarafunchando os dentes com um palito. Primeiro tenta entabular
com ele uma conversa de camaradagem, mas esbarra contra o seu
silêncio. Então diz:
— Tu, que sabes falar, não falas. Não és feito da mesma massa
que nós e por isso é que fazes troça dos pobres.
Ao acabar a sua frase, cospe para junto dos seus pés e vira-lhe
as costas. Ele fica imóvel. Entristece-o pensar que as pessoas
humildes, tanto nos seus aplausos como no seu rancor, o equiparam
aos poderosos. Sim, aos olhos dos outros é evidente a que bando
pertence, ao bando dos privilegiados. Sorri amargamente perante o
testemunho dessa inveja mal direcionada. Os outros não fazem a
mínima ideia de qual é a sua verdadeira situação! Atormentado,
incapaz de escrever, convertido na casca vazia do poeta que foi e,
contudo, a tremer perante a ideia de defraudar aqueles que o
admiram, não é um homem invejável. Durante quanto mais tempo
poderá continuar a disfarçar? Durante quanto mais tempo é que as
suas desculpas e evasivas se sustentarão? O que é que vai acontecer
quando se descobrir que é um farsante, um impostor, uma ilusão,
alguém que uma vez pareceu promissor, mas que esgotou
demasiado cedo o seu escasso talento?
Não consegue evitar voltar ao dia, vinte anos antes, no qual
recebeu a carta. O mensageiro entregou-lhe a missiva e ele,
invadido por um obscuro pressentimento, rasgou o selo com dedos
trémulos. Lá dentro aguardava-o um desesperado pedido de socorro
que o pai, já cego, tinha mandado alguém escrever, ditando-lhe.
Augusto ordenava confiscar as terras dos camponeses a norte do Pó
para estabelecer cem mil veteranos dos seus exércitos depois da
Batalha de Filipos. A guerra civil irrompia nas suas vidas mais uma
vez, trazendo o despejo e a ruína à sua família.
Lembra-se, palavra por palavra, de uma frase do pai: «Obrigam-
nos a abandonar os nossos campos, lavrados com o suor de tantos
anos, nas mãos dos soldados. Consegues acreditar nisto? Homens
manchados de sangue serão donos das nossas searas.»
O amor profundo pelas terras de cultivo renasceu nele junto da
torrente de carinho pelos seus desamparados pais. Recorreu ao seu
amigo Galo e graças a ele conseguiu aceder pessoalmente a
Augusto. Depois de um esgotante desdobramento de reverências e
súplicas, conseguiu salvar as terras familiares, mas a um preço
altíssimo. Toda a família passou a ser o alvo dos ressentimentos dos
seus vizinhos, por serem os únicos a quem não confiscaram as suas
propriedades. E ele teve de devolver o favor com os seus versos,
convertendo-se a partir de então no propagandista de Augusto.
Será que o seu perseguidor de agora poderia ser algum dos seus
vizinhos sem posses? Ou será que se tratava do veterano que
reclamava as terras que lhe correspondiam e nunca tinha chegado a
possuir? A mera ideia o arrepia, pois, se se trata de um inimigo
capaz de destilar a sua vingança durante mais de vinte anos, só
pode ter reservado para ele um castigo atroz.
Respira fundo, assustado. De repente é invadido por uma
estranha fantasia nascida do seu medo. Imagina que muda a lenda
antiga, que Eneias não desembarca em Itália porque fica com Elisa
para sempre, que o Império Romano não chega a existir, que as
Guerras Púnicas e as guerras civis nunca acontecem, que Augusto
não passa de um obscuro sucessor africano de Eneias ao qual ele,
lavrador e colmeeiro em Andes, nunca chega a conhecer e, portanto,
pode escrever os seus versos livremente e ninguém o espera à saída
de uma taberna para se vingar com crueldade.
V. AMOR

Eneias

Desde as extensões azuis e douradas do céu, um sol de bronze


aquece a minha pele. O ar morno acaricia-me. Sinto-me embalado
no esplendor do outono e, pela primeira vez em muito tempo, a
densa tristeza das lembranças é benévola para comigo. De onde
vem a plenitude do momento? Estou simplesmente sentado, a
descansar, na açoteia do palácio. É uma tarde de nuvens viajantes.
O vento traz um rumorejar de ondas a rebentar. Sobre a minha
cabeça, dois pássaros mudam de repente a direção do voo e o sol
clareia-lhes o peito.
Regressa a mim a imagem do cabelo escuro da Elisa, a deslizar
sobre o seu ombro. Fecho os olhos e julgo sentir os seus braços que
me envolvem, que me atraem para um regaço de descanso. Sinto
um formigueiro na carne.
Abro os olhos. O Iulo está de cócoras, com o queixo apoiado nos
joelhos, absorto nas suas brincadeiras, o sobrolho franzido devido à
concentração.
— Iulo! Estás a brincar a quê?
— Será que não vês? — diz, abrangendo com a mão umas nozes
e uns caroços de ameixa que distribuiu pelo chão de acordo com
uma ordem misteriosa. — Não adivinhas? Estou a brincar à Guerra
de Troia.
Não pergunto mais, mas o Iulo, sem tirar os olhos dos seus
brinquedos, explica-me tudo com uma voz infantil.
— Aqui está o tio Heitor — aponta para uma noz. — Aqui o tio
Páris. Aqui o tio Deífobo. Aqui está o guerreiro mais forte: tu. Aqui
— acrescenta, colocando uma última noz no degrau do terraço que
me serve de assento —, aqui o avô Príamo a olhar para a guerra
desde a muralha.
Baixa a cabeça, deixando à mostra a sua magra nuca. Agora
aponta para os caroços de ameixa, pequenos ao lado das nozes.
— É o Aquiles. E este é o Ulisses. E aqui o Agamémnon. Não,
espera, o Ájax. E aqui o Pátroclo. Olha, por aqui vai o deus-rio
Escamandro e está zangado porque há muitos cadáveres e muito
sangue e fica vermelho com o sangue e isso deixa-o muito zangado.
E então quer afogar o Aquiles. Olha, o Aquiles está a lutar contra o
deus-rio e vai afogar-se.
Talvez os meus homens lhe tenham contado estas histórias
durante a travessia.
O Iulo continua a brincar em voz alta, mas a sua narração
converte-se num murmurinho incompreensível porque atropela as
palavras. Olho para os seus pequenos ombros. À luz dourada
parecem-me menos frágeis, menos pontiagudos do que quando
viajávamos.
— Iulo, essa túnica é nova?
— Foi a Elisa que me deu. A Elisa oferece-me coisas.
— Agradeces-lhe quando te oferece presentes?
O Iulo diz que sim com a cabeça. Volta a ser um menino
contente, distraído das suas desgraças pelos presentes e as
brincadeiras. Será que ainda vai a tempo de esquecer? Peço aos
deuses que esqueça as nossas guerras, os meus crimes, o terror da
sua mãe que ele bebia no leite.
Afasto-lhe o cabelo da testa. Ele levanta para mim os seus olhos
perdidos nos espaços imaginários e fita-me com seriedade,
pensando. No fim diz:
— Onde é que está o avô? Vem ter connosco?
— Iulo, o avô Anquises morreu na Sicília, não te lembras?
Entre as lembranças que regressam, está a do meu pai
encolhido, a pôr um dedo nas gengivas desdentadas, fraco,
agonizante, a pronunciar a muito custo palavras que não
conseguíamos entender.
— Dizes-me onde está o avô? — insiste o Iulo.
— Está com os mortos. Todos os mortos estão juntos —
respondo.
— E o que é que fazem quando estão mortos?
— Atravessam os desertos do mundo subterrâneo até chegarem
às margens do rio Aqueronte e ali esperam pelo velho barqueiro de
barba cinzenta que conduz o negro esquife com um gancho. O seu
aspeto causa pavor: usa uma capa andrajosa com um nó ao
pescoço, está sujo e dos seus olhos brotam chamas. O seu nome é
Caronte. À sua chegada, as sombras sobem para a barca e
atravessam o rio que separa o país dos vivos e a velha mansão dos
mortos. Esse rio, Iulo, só se atravessa uma vez.
— Conta-me mais.
— O velho Caronte nega-se a transportar os mortos que não
foram enterrados. Por isso é que as honras fúnebres são tão
importantes. Para além disso, é preciso colocar na boca do cadáver
uma moeda para pagar ao barqueiro das sombras.
— E mais?
— Os mortos bebem as águas do olvido e já não se lembram da
sua vida nem sofrem por ela.
— Esquecem-se de tudo?
Através da sua boca entreaberta podem ver-se os dois dentes da
frente, maiores do que os outros. Tenta compreender as minhas
estranhas palavras e ao mesmo tempo rejeita com todas as suas
forças as imagens que lhe proporciono. Por um momento parece que
fica com lágrimas nos olhos.
Então penso que, se tivesse podido ver o futuro com
antecedência, quando tudo começou, ter-me-iam faltado as forças
para avançar e adentrar-me nele.
— O avô disse-me que a tua mãe era uma deusa. A deusa do
Amor e da Vida. É verdade? — pergunta Iulo de repente.
— O avô nunca mentia.
Digo para mim que o filho da deusa do Amor só conheceu
humilhações. Porém, recordando o quente corpo que ontem se
arqueou entre os meus braços, a mulher de ventre acolhedor, sinto
que talvez tudo possa mudar, que talvez ela seja um dom da minha
mãe.
— Mas não te esqueças de que é um segredo — aviso-o. — Não
contes a ninguém. Só eu, tu e o avô é que sabemos.
Por um instante, o Iulo mete o polegar na boca. Quando o tira, é
para perguntar:
— Então, vamos ficar aqui?
— Não queres ir a Itália?
— Quero ficar aqui para sempre. O que há em Itália?
— Conta-se que é uma terra generosa e fértil, um lugar onde até
as feras são benévolas. A profecia fala de dois meninos como tu que
serão amamentados por uma loba, salvando-os da morte.
— Uma loba? Gosto mais de estar aqui com a Ana. A Ana salvou-
me.
— De que é que a Ana te salvou?
— Era de tarde, na praia. Vinham muitos homens a cavalo e
tinham arcos e setas, mas a Ana tapou-me com o seu corpo. Havia
setas — afirma, esticando uma corda imaginária. — A Ana é minha
amiga!
Imagino a cena com um calafrio, vejo o meu filho trémulo, o
corpo da Ana a protegê-lo, os cascos dos cavalos a levantarem a
areia, as setas nas aljavas.
— Não vamos embora, pois não? — insiste o Iulo, inchando uma
bolha de saliva entre os lábios.
— A partir de agora vai correr tudo bem, vais ver — respondo.
Aponto para uma noz para lhe recordar as suas brincadeiras e ele
arrebata-ma da mão, com um olhar mal-humorado.
— É melhor não pensares em ires embora… — murmura
baixinho, ameaçador, antes de regressar à sua pequena guerra.
Pouco tempo depois, já me está a chamar:
— Olha para mim, pai!
Enquanto o observo, pergunto-me se os deuses falam comigo
através da criança. Devo ficar?
Desde a açoteia pode ver-se uma paisagem de terraços,
palmeiras e ruas delimitados pelas muralhas. As cisternas de água
brilham como lâminas de prata. Reina um bulício de escravos que
caminham com cestos na cabeça e mulheres com cântaros. Ouvem-
se as bigornas dos guerreiros e o relinchar dos cavalos, as carroças
chiam nas encostas, os cães ladram, os galos cantam. Há tijolos de
adobe a secar ao sol onde se erguerão novas casas, há torres,
cavalariças, praças, cruzamentos e mercados. O fumo sobe em
compridos penachos desde os fornos de argila. E, no porto, as velas
brancas palpitam. Consigo ver hortas cercadas de altas canas.
Cartago já é uma cidade. Quanto é que se demora a erguer tudo
isto com as mãos?
E se já cheguei? E se Cartago for o lugar da profecia? Os
oráculos anunciaram que o destino me conduziria a um território que
uns chamam Itália e outros Hespéria. Hespéria significa «lugar ao
oeste». Naveguei até oeste e os ventos trouxeram-me aqui sem eu
pretendê-lo. Talvez tenha desembarcado em Cartago para que o
meu filho encontre uma mãe e os meus homens uma terra de
acolhimento, para ajudarem a Elisa a evitar esta guerra para a qual
se vê arrastada pela ambição dos seus homens. A inaugurar uma
época de paz. A descansar.
Os mastros agitam-se com o vento. Os olivais, no sopro do ar,
passam de prata a verde. O azul do mar faísca. Ao pé de mim, o Iulo
brinca.

Elisa

— Muitas vozes no palácio falam do teu amor pelo estrangeiro.


Que planos tens? — diz o Malco. Parece calmo, mas cerra os dentes.
Os meus dois conselheiros pediram que os receba a sós. Estou
rígida como a lâmina de uma faca. Conheço-os bem e sei que são
perigosos. Desde a minha infância em Tiro, toda a minha vida
decorreu sob o signo da conspiração, entre as intermináveis
maquinações da corte. Sempre estive rodeada de inimigos, sempre
tive de esconder os meus verdadeiros sentimentos. Olhando para
trás, compreendo que o medo viajava sempre comigo. Mas agora
sinto em mim uma força que ninguém pode deter.
— Entre todos os meus pretendentes, quero escolhê-lo a ele —
respondo.
— Estávamos confiantes em que nos ias consultar antes de
tomares uma decisão parecida — responde o Elibaal com veemência.
— Conheço muito bem a vossa opinião. Quantas vezes me
disseram que o povo me reclama um herdeiro, que nada fortaleceria
tanto o meu reinado como casar e dar à luz um filho para continuar
a linhagem do meu pai? Não eram essas as vossas palavras, será
que esses conselhos não brotavam todos os dias das vossas bocas,
atravessando o cerco dos dentes?
— Rainha, este é um casamento com um estrangeiro que não te
oferece riqueza nem alianças, o que nos parece imprudente —
responde o Malco.
— Pelas veias de Eneias corre sangue de reis. A tradição ensina
às mulheres da minha estirpe que devem casar com alguém da
realeza.
— O que é que sabemos? — vocifera o Elibaal. — O troiano diz
ser o Eneias, mas talvez seja um impostor que se apoderou do seu
nome. Um farsante. Um desertor.
Viro o olhar para ele e enfrento os seus olhos, decidida,
desafiante.
— Não é assim tão fácil enganar-me. Sei julgar os homens —
respondo.
— Rainha, já pensaste que a tua decisão ofenderá os chefes das
tribos líbias e em particular o Iarbas? Parecer-lhes-á um ultraje que,
depois de recusares as suas propostas uma atrás da outra, te lances
nos braços de um náufrago que chegou às tuas costas com as mãos
vazias — grita o Malco.
— Se o Iarbas quer dar ordens em Cartago, terá primeiro de me
arrebatar o trono. As suas ameaças não me assustam.
Mantenho-me muito erguida, de cabeça levantada. Não me deixo
amedrontar e eles apercebem-se disso. Estão desconcertados diante
da minha repentina firmeza. Há algum tempo que lhes devia ter
mostrado o meu verdadeiro temperamento.
— Vou tentar viver em paz com os meus vizinhos,
comercializando com eles e fazendo o território prosperar —
continuo —, mas, se nos atacarem, seremos mais fortes agora que
os guerreiros troianos combatem do nosso lado. As minhas decisões
são guiadas pelo bem do meu povo.
— Claro que sim, esse bando de cobardes que não soube salvar a
sua cidade será um colossal reforço para as tuas tropas — responde
o Malco, sarcástico, a cuspir as palavras.
— Que conselhos recebeste do troiano desde que a tempestade o
trouxe para aqui? — acrescenta o Elibaal. — Evitar a guerra, não
responder a provocações, não vingar as ofensas. E esse homem é o
corajoso guerreiro que escolheste para conduzir o teu povo? Não,
acredita em mim, quem fugiu uma vez da sua casa em chamas,
deixando para trás a sua mulher, voltará a demonstrar a sua
cobardia.
Já está feito. Os meus homens ladraram tentando encurralar-me,
como em tantas outras vezes, mas hoje as suas mordidelas não me
vergam. Acho que até agora não tinha conhecido a minha própria
força. Hoje sinto-me capaz de derrubar não só os meus
conselheiros, mas também todos os exércitos que o Iarbas possa
reunir, com um mero sopro do meu hálito. O que é que eles sabem
sobre a coragem que nasceu dentro de mim graças ao Eneias? Eu,
que estava prestes a murchar, volto a viver agora com o vigor de
uma seiva jovem. Sinto-me como o caminhante sedento que
encontra um regato a brotar de uma nascente, como o navegador
que avista terra contra qualquer esperança, como o doente que
expulsa o mal do seu corpo e sente a saúde regressar aos
borbotões, a borbulhar, com a urgência da vida renovada.
— Já chega! Estão a tentar acobardar-me — digo —, mas o meu
coração intrépido não hesita. Não me importo se querem elogiar-me
ou censurar-me. Vou impor o meu comando e vocês servir-me-ão,
cumprindo as minhas ordens, tal como obedeciam ao meu pai.
Acham que por ser mulher sou mais fraca? Estão enganados e vão
comprová-lo com os vossos próprios olhos.
Os olhares fervilham. O Malco aproxima-se da lareira, para ao pé
de um toro em chamas que o lume mandou para fora e com um
golpe brusco empurra-o de novo para o centro da fogueira.
Não pestanejo.
Reparo nos pelos pretos que brotam das suas orelhas. Tenho
nojo.
Enquanto o Elibaal crava os seus olhos furiosamente em mim, a
garganta inchada como uma serpente prestes a cuspir o seu veneno.
Ténue e longínquo, ouve-se o tumulto do mar.
— A rainha tem sempre razão — murmura finalmente o Malco,
ainda diante da lareira. — E nós estamos ao serviço da rainha.
— Podem sair — digo com os lábios trémulos.
Quando se vão embora, caminho até me apoiar na parede e a
minha respiração ofegante faz-me estremecer.

Ana

Olho para o Sol, que agora mesmo é um bago de uva púrpura na


concavidade do céu. A túnica que tenho também é púrpura. Assim,
quando o sangue me pulverizar, mal se notará.
Vou pedir aos deuses para não crescer mais. Se continuar a
crescer tão depressa, tornar-me-ei mulher e não quero, porque
então não me vão deixar correr com o Iulo pela praia e trepar às
árvores. Dirão então para ficar em casa a suavizar a lã, esticando-a.
E algum guerreiro pedirá a minha mão em casamento e levar-me-á
para o seu lar e mandar-me-á obedecer-lhe em silêncio e serei como
um cavalo ao qual conduzem puxando as rédeas. E ao chegar a
noite ele deitar-se-á em cima de mim e esmagar-me-á com o peso
do seu corpo e, quando terminar de agitar a sua barriga, dará meia-
volta e ressonará com bufos horríveis.
Não vou crescer. Agora que, pela primeira vez tenho um amigo,
quero que sejamos crianças.
Mas não me devo preocupar. Na próxima primavera os barcos
troianos far-se-ão ao mar e nós partiremos com eles. Iremos para
longe, cada vez mais e mais longe, navegando de porto em porto,
conhecendo terras longínquas que as ondas banham. Esses são os
meus dois desejos: não crescer e que chegue a primavera. Que
chegue rápido a primavera… O outono está a avançar, a cor das
azeitonas já está a mudar de roxo para preto brilhante e há uma luz
azul que anuncia o inverno.
A Elisa avisa-me de que o ritual deve começar. Num cesto
espera-me a faca de lâmina reta. Pego nela com as minhas mãos,
está bem temperada. Sim, é um gume capaz de afundar-se na carne
tal como se fosse manteiga. Isso acalma-me, nunca gostei das
agonias longas, do corpo de um animal a palpitar, a contorcer-se, da
morte que é cruel e demora.
A Elisa está muito bonita esta tarde. O cabelo apanhado, duas
tranças a contornar o seu rosto, uma em cada lado. Cobre-se com o
véu que o Eneias lhe ofereceu. Vejo o reflexo do fogo na íris dos
seus olhos.
Calma, calma, coração, para empunhar uma faca é preciso ter
pulso firme. Dirijo o olhar para as montanhas longínquas tingidas de
violeta e para as nuvens que agora estão alaranjadas. Dentro de
pouco tempo, muito pouco, será o momento de matar. Não
defraudarei a Elisa.
A cidade inteira reuniu-se na grande praça e observa-nos. Trazem
os animais ao altar, uma ovelha e uma vaca branca, e amarram as
suas patas. A Elisa ergue um copo e verte o licor entre os cornos da
vaca. Dá voltas em redor da fogueira, a sua oração ecoa.
— Que jamais a guerra destrua este povo. Que as doenças não
pousem sobre as nossas cabeças num terrível enxame. Que a mão
dos deuses proteja as mulheres nos partos. Que a terra dê colheitas
em qualquer estação e que o gado que pasta nos campos seja
fecundo. Derramem as vossas bênçãos sobre os guerreiros chegados
de Troia e o seu rei Eneias, corajosos defensores da nossa cidade.
Estala um rugido de muitas gargantas tal como uma onda
quando rebenta nas rochas. Não querem aqui os náufragos troianos,
acham que lhes trouxeram a desgraça. Os gritos cessam, cessam,
mas posso ouvir um eco de rancor. Embora o meu coração me diga
que Cartago perdeu há tempo a graça dos deuses, cumpro o meu
dever. Ergo a faca, corto um punhado de cabelo das vítimas e com a
mão direita lanço-o ao fogo purificador. As chamas tremem e
começa o martelar do meu coração. A vaca fita-me com olhos
calmos e belos que me fazem ter medo.
Chegou o momento. Solto o meu broche, retiro o manto dos
meus ombros, respiro, aproximo-me da ovelha e com um só gesto
corto os tendões do pescoço. Se pudesse cavar um buraco no chão e
esconder-me lá dentro para não ouvir aqueles gemidos… Os gritos
atravessam-me, que se calem, que a morte traga o silêncio. O
animal treme, o seu sangue corre com um escuro vapor; um servo
aproxima-se e, agarrando na ovelha por uma pata, esquarteja-a
segundo o ritual.
Empunho novamente a faca para degolar a vaca, mas desta vez o
animal defende-se. Muge com terror e luta para evitar a morte.
Desfiro punhaladas nervosas que fazem o sangue brotar aos
borbotões, uma enchente vermelha. Esfaqueio, esfaqueio,
assustada. Vem em meu auxílio um escravo que fere o seu lombo
com uma machadada e por fim derruba a vítima.
Olho para a Elisa enquanto recolhemos na tigela o sangue negro
que ainda emana. Nunca é bom que o sacrifício não seja consentido.
Quero saber em que é que ela pensa, mas o ar à volta da fogueira
vibra esbatendo os seus traços. Vejo-a inclinar-se ansiosa sobre o
peito entreaberto das vítimas, consultando a última palpitação das
suas entranhas para extrair presságios. A minha mãe sabia ler o
futuro nas vísceras dos animais, e via augúrios de morte nas teias de
aranha, e ouvia advertências no grito dos pássaros. Eu aprendi com
ela, e por isso sei o que revelam as entranhas da vaca que não
queria morrer. O lóbulo que falta no intestino e o recetáculo da bílis
pressagiam infelicidades.
A figura da Elisa, ao caminhar diante do fogo, escurece a luz das
chamas por um momento. São os últimos resplendores do dia, já
esvoaçam os primeiros morcegos. A minha tarefa terminou. Deposito
de novo a faca no cesto e afasto-me do altar. O Eneias sorri-me à
distância. Ele não se apercebe, mas os olhos da multidão vigiam-no.
Correm rumores, todos querem saber o que é que aconteceu
quando ele e a Elisa se afastaram a cavalgar durante a tempestade.
Há muitas coisas que eu sei, mas guardo o segredo em silêncio tal
como se um boi me estivesse a pisar a língua.
O Eneias não percebe o nosso idioma, ignora que os homens do
Conselho e os guerreiros falam dele e da Elisa nas suas costas. Mas
eu ouço.
— A rainha deu abrigo a uns invasores.
— Muito pior. Vai entregar a sua mão, a sua herança e o seu
reino a um estrangeiro.
— Mas vamos deixar que um cão troiano nos governe?
O Eneias contempla o ritual com uma luz que lhe brilha nos
olhos, os insultos não o atingem. Quando chego ao pé dele, diz-me
na língua dos palácios:
— Ana, obrigado por cuidares do Iulo e protegê-lo. Que os
deuses te sorriam.
E acaricia-me a face marcada, passando a mão sobre a mancha
sem repugnância. É mais do que o meu pai alguma vez fez. O meu
pai metia medo, escurecia o limiar da porta com a sua estatura.
Diante dele sentia-me como um rato cinzento e como um rato
cinzento escapulia-me sempre que ele chegava para se deitar em
cima da minha mãe.
Que diferente seria tudo se eu fosse irmã do Iulo, filha do
Eneias… Fico com lágrimas nos olhos. É curioso, quando era
pequena pressionava os dentes e aguentava, agora tenho com
frequência vontade de chorar e é como se uma pena estranha
gotejasse do meu coração. Mas tenho de esperar até à chegada da
primavera, com os seus dias limpos e brilhantes, para zarpar e
nunca mais voltar a ouvir falatórios nem insultos, apenas palavras
lavadas pelo vento.
Vou esperar, sem crescer nem um bocadinho.
A Elisa esteve a vigiar os servos que cortam, espetam e assam a
carne destinada ao banquete. Também consagrou a porção do deus,
que se queima no altar, regada com o nosso melhor vinho. Agora
lança um olhar ao Eneias e eu vejo que há algo novo que os une,
que dão forças um ao outro.
Segurando na mão do Iulo, a Elisa situa-se ao pé do altar e fala
para que todos a ouçam.
— Cartagineses, quero que saibam que chegaram ao porto as
nossas três naus, carregadas de cereais, depois de vender nos
mercados da costa os cativos nómadas. De acordo com as minhas
ordens, esse carregamento será distribuído em partes iguais entre
vocês, pois quero que em todos os lares haja abundância e alegria
para celebrar a irmandade entre cartagineses e troianos, agora um
só povo. Que a notícia se espalhe por toda a cidade.
Elevam-se gritos de protesto e algumas, tímidas, aclamações à
rainha. O Iulo assusta-se com os olhares que se cravam nele e recua
um passo, abraçando-se à saia da Elisa. Ela, de cabeça erguida,
desafia o seu povo. O Eneias pega na minha mão salpicada de
sangue. Somos unidos pela ondulação de muda fúria que rebenta
contra nós. Nós, os quatro órfãos, os quatro náufragos, os aliados a
quem ninguém separará.

Eros

Os efémeros mortais nem imaginam o trabalho tão delicado e


desconcertante que implica favorecer os seus amores. É que, nas
questões humanas, tudo desliza tão fácil, tão impercetivelmente
para o conflito…
Encontro Eneias vestido como um guerreiro cartaginês. Leva uma
espada à cintura, a melhor que se forjou na cidade, com um punho
de ouro trabalhado. Estou a ver, Elisa começou a tratar Eneias com
extrema generosidade, e a envolvê-lo com a sua riqueza. Bom sinal,
dirá alguém, e, porém, eu, que conheço as obscuras artimanhas
onde os idílios fracassam, fico inquieto. Oferecer presentes um ao
outro é um belo impulso dos apaixonados, mas também oculta
afiadas arestas e conduz a zonas de sombra.
— Cuidado! — sussurro ao ouvido de Elisa. — Não te esqueças
de que, no coração humano, o agradecimento mantém um duelo
com o orgulho, e a mão que dá presentes também pode um dia
aprisionar.
Mas ela, eu sei, não presta atenção à minha advertência. A tarde
é bela, um horizonte verde delineia-se entre o mar e o céu, há
luminosidade na bruma e nada predispõe à dúvida ou à cautela.
Elisa e Eneias caminham pelos becos do bairro de pescadores,
lançando olhares às casas de forma cúbica, aos muros cobertos de
flores, enegrecidos pela sujidade e, mais além, as torres com ameias
onde se erguem os despojos de cabeças nómadas bicadas pelas
aves.
A cidade parece-lhes um território novo que pela primeira vez se
apresenta diante dos seus olhos como a cidade de ambos,
transbordante de futuro. Eu não deixo que reparem nos olhares
receosos das pessoas ao passar. Para eles, começa um tempo
próprio e tem a doçura de todos os começos.
Aproximo-me de Eneias e sopro-lhe na nuca. Então ele sente
mais nitidamente a presença de Elisa junto a ele, a proximidade
desse corpo quente como a terra. Deseja tê-la de novo entre os seus
braços, beijar a sua testa, beijar os seus lábios, curvar as mãos
sobre os seus peitos, mergulhar nela e saber-se a salvo.
— Se a tempestade não se tivesse desencadeado nesse dia,
nunca terias ancorado as tuas naus aqui e continuaríamos a ser
desconhecidos — diz Elisa.
— Os deuses quiseram trazer-me até ti — responde Eneias.
— Quando apareceram no horizonte, sacudidos pelas ondas que
rebentavam contra as vossas naus, a Ana estava a vigiar-vos desde
o promontório de rochas. Depois correu para o palácio para me
contar tudo. Ela julgava que eram assassinos enviados pelo meu
irmão, o rei de Tiro, para me matar.
— Porque é que teu irmão te odeia?
— Sempre suspeitou que eu conspirava contra ele, para lhe
arrebatar o trono — diz Elisa.
Como é óbvio, não refere que as suspeitas eram justas, que o
seu marido Siqueu e ela ambicionavam o poder e que tramaram
durante anos uma conjura para destronar o rei. Mas já sabemos que
a verdade gosta de se esconder e que os apaixonados, desejosos de
agradar, vagueiam de esconderijo em esconderijo.
— A Ana disse-me que os esbirros do rei não descansarão até
vos encontrarem.
— A Ana ainda tem medo. Estava em casa quando os homens do
meu irmão irromperam violentamente, mataram o Siqueu e
vasculharam divisão por divisão, à minha procura. Corremos as duas
um grande perigo. Para salvar a vida, fugimos de Tiro e navegámos
até aqui, mas a Ana não esquece o terror daqueles dias. Está
obcecada com a ideia de que os assassinos nos encontrarão um dia
e de que não conseguiremos fugir uma segunda vez.
Elisa observa que os olhos cinzentos cor de prata de Eneias se
turvam sob as suas pestanas escuras e então, deixem-me conter o
sorriso, imagina que consegue ler os seus pensamentos. Supõe que,
com a história do assassinato de Siqueu, fê-lo reviver a lancinante
dor pela perda da sua mulher. Mas, como tantas vezes em que os
humanos acreditam compreender-se sem palavras, Elisa engana-se
no essencial. Não, o que fere Eneias é a imagem de Ana obrigada a
testemunhar a brutalidade dos assassinos, vendo como eles
matavam. Daí, a memória conduziu-o até aos recantos da sua
própria culpa, da sua culpa terrível pelo crime que cometeu diante
do pequeno Iulo.
Sempre me surpreendeu que os seres efémeros tenham tantos
esconderijos, até ao ponto de se tornarem quase insondáveis uns
para os outros. Em comparação, nós, deuses, somos seres muito
simples, tão claros como água.
Falando de claridade, dentro das casas começam a brilhar as
luzes das lareiras, prevendo o rápido crepúsculo africano. Elisa e
Eneias continuam a caminhar em silêncio. Deixam para trás a praça
dos sacrifícios e chegam a um terreno baldio ao pé da muralha,
onde crescem matagais branqueados pela areia.
— Eneias — diz Elisa —, pensei ceder estes terrenos aos teus
homens. Acho que estarão mais seguros se se instalarem aqui,
dentro do recinto fortificado, a salvo dos ataques dos nómadas, e
assim podem começar a viver com os cartagineses como um só
povo.
Eneias contempla o lugar, aspirando o perfume dos arbustos de
lentisco e terebinto, misturado com o cheiro a urina de todos os
descampados do mundo.
— Obrigado, Elisa. És generosa com os meus homens.
— Suponho que ficarão contentes por encontrarem um refúgio
onde recuperar as forças depois do naufrágio e de tantos
infortúnios. Aqui poderão erguer as suas casas, construir uma nova
vida e prosperar.
— Sabes uma coisa? — responde Eneias. — Uma vez julgámos
ter encontrado o lugar que o destino nos reserva. O meu pai, depois
de meditar sobre a profecia, convenceu-se de que a nossa nova
pátria, onde nos devíamos estabelecer, era Creta. Na ilha
começámos a construir a nova Troia, a cidade sonhada.
Amuralhámos o território, semeámos os campos, ditei leis e atribuí a
cada um o seu quinhão de terras e o lote para a sua futura casa.
— O que é que aconteceu? Porque é que partiram?
— Sofremos uma epidemia. Fez estragos horríveis. Os deuses
não nos queriam ali.
— A profecia que guia os teus passos é estranha.
— Os oráculos são sempre ambíguos, não é fácil interpretar
corretamente os seus augúrios. Cada homem deve colaborar, usando
a sua inteligência, para realizar o futuro anunciado pelos fados —
responde Eneias.
— Cartago é o teu destino?
— A profecia fixa o meu destino nas terras do ocidente, como
estas. E sei que foram os deuses a guiar-me até às tuas costas,
onde cheguei sem pretendê-lo.
— Sempre acreditei que somos nós próprios que forjamos o
destino — diz Elisa —, e que podemos mudá-lo. Caso contrário, não
passaríamos de um punhado de cinza ou de um monte de penas que
o vento leva na direção do seu sopro.
Eneias sente outra rajada de desejo por ela. A força e a vitalidade
que irradia surpreendem-no. Sabe por experiência que, ao abraçar o
corpo de Elisa, a tensão que entorpece os seus membros relaxa e
ele se liberta. Aliás, espera secretamente que ela o ensine a viver
sem o fardo das suas indecisões, sem a incerteza em cada um dos
seus atos, sem ter de fingir a esperança.
Agora seria a ocasião de tentar alguma das minhas artimanhas
enquanto a intensidade do momento ainda palpita. Mas, admito,
estou confuso. Não sei que caminho tomar, agora que os dois
cederam à minha influência por motivos contraditórios. Como posso
uni-los, quando Elisa reclama atrevimento, entusiasmo e coração
transbordante, enquanto Eneias procura paz, memória vazia e
coração calmo?
Por algum motivo, os humanos nunca facilitam.
E o que fazer quando eles próprios constroem sobre os alicerces
fendidos de um mal-entendido, e fingem não se aperceber disso?
Elisa chama juramento à sua união na gruta, embora não tenha sido
pronunciado nenhum juramento. Porquê? Porque precisa de pensar
que os atos de Eneias equivalem a uma promessa, a promessa de
permanecer ao seu lado para sempre. Juramento… As palavras dos
efémeros mortais são no fundo feitiços para que os seus desejos se
concretizem. Por isso, com frequência, chamam as coisas por um
nome que não lhes corresponde, mas o nome falso e o desejo
verdadeiro constroem uma realidade nova na qual eles acreditam.
Assombrosos seres.
Poderei concretizar o meu objetivo e ajudá-los a amarem-se por
cima das omissões e dos equívocos com os quais tecem as suas
esperanças?

Elisa

Ninguém me tinha avisado, ninguém me tinha preparado para


isto. Quando já não estava à espera, de surpresa, brota a chamada
da carne, tão rouca, doce e obscura.
Estou deitada ao seu lado, com os olhos fechados, acordada. Ele,
pelo contrário, dorme, chega até mim o calor do seu sono através do
aroma que emana do seu corpo. Porque é que o cheiro do seu
cabelo e da sua pele têm esse efeito sobre mim? Sozinha na alcova,
aproximo as minhas fossas nasais da sua roupa, uma túnica ou um
manto abandonado descuidadamente sobre a cama, e sinto a sua
presença de forma viva. Eu sei, procuro o seu rasto como fazem os
animais. Sou um animal que fareja devagar aquele que escolheu e
que afunda o focinho no seu pescoço, na zona vazia que fica por
baixo do seu ombro, nas dobras onde se refugia o calor e onde se
condensam todas as suas fragrâncias secretas.
Como é que ia imaginar que o desejo me morderia com essa
ferocidade para me tirar de uma letargia de anos? Morde-me, fechou
os dentes sobre a presa e não deixa escapatória.
Ele repousa ao pé de mim, adormecido na mais suave quietude.
O Sol já nasceu, e, abandonando o seu leito no oceano, cavalga pelo
céu. Dentro da nossa alcova, protegida por grossos guarda-ventos,
penetram os primeiros raios, espadas de luz que se afundam na
escuridão e, ao caírem sobre o seu rosto, iluminam-no suavemente.
Afasto o cabelo despenteado da sua cara e enrosco uma madeixa
solta à volta do meu dedo. A sua pele está viva, palpita ao compasso
da respiração. Desejo tocar-lhe levemente com os lábios, mas a ideia
de acordá-lo detém-me. Prefiro continuar a observá-lo em segredo,
sem me inquietar por saber se quer ou rejeita ou lhe cansa o meu
fascínio. Está de lado, virado para mim, os braços num indício de
abraço.
Aproximo-me mais dele e monto uma perna sobre as suas, uma
ponte sobre o rio dos seus sonhos impossíveis de descobrir. Nascem
perguntas na minha cabeça. Na verdade, quem é? Os meus
conselheiros semearam uma dúvida maligna ao dizerem que não
sabemos nada a não ser o que ele contou. Será que a sua voz,
sonora e bem timbrada, diz a verdade? O que é que cala, o que é
que propõe? O que é que deseja? O que é que pensa secretamente
sobre mim? Neste momento, contemplado à beira da minha vigília
angustiada, parece-me um desconhecido. Sinto vertigens. Ao mesmo
tempo, a minha garganta parece ter um nó e isso deve-se
novamente ao desejo.
A juventude do seu corpo comove-me, um corpo que continuará
a ser jovem quando o meu já não for. Invejo as serpentes, que se
despojam dos anos deixando a velha pele como uma casca
abandonada, e as suas escamas voltam a brilhar, novas. Contudo,
para mim, a beleza tem um limite. Não haverá adiamento, nunca há
quando o outono se apodera de nós.
Não quero pensar nisso. Vou fazer um esforço para acabar com
este paleio absurdo que me acorda na solidão da madrugada.
Regressa à minha memória um antigo provérbio que tantas vezes
ouvia da minha ama de leite tíria: «Aproveita enquanto podes, pois a
tua barca navega em água que flui.»
Navego em águas que fluem, que fogem, que já não podem
regressar à nascente. Por isso, qual é o problema em arriscar tudo?
Em contradizer os avisos, em fazer aquilo a que os outros chamam
loucura e erro? Sou capaz de desafiar todos por ele. Sim, vejo tudo
com clareza, não quero voltar à calma anterior, a esse vazio. O que é
que eu era antes? Uma armação humana, uma urdidura de ossos e
carne atada ao esqueleto pelos ligamentos, a casca vazia de um
corpo. Devido a esse vazio não me nascia um filho, era por isso que
as minhas entranhas eram áridas.
Já não estou vazia. Palpito, balanço-me agitada, entrelaço as
minhas pernas nas suas, misturo a sua saliva com o meu hálito,
flutuo em hesitantes vaivéns, fecho os olhos, ouço as águas do
mundo ondularem nos meus ouvidos e banho-me na sua semente.
Não posso afastar essas imagens da minha mente. As fantasias
invadem-me a meio das minhas tarefas quotidianas, enquanto
recebo os meus súbditos e enquanto julgo os seus litígios e
enquanto percorro a cidade e enquanto delibero com os homens do
Conselho. Será que esta sou mesmo eu?
Qual é a verdade? A verdade é que espero com impaciência o
momento de me deitar com ele à luz da candeia. A verdade é que
estou orgulhosa do prazer que sou capaz de lhe provocar. A verdade
é que se, a meio da noite, o seu corpo se aproxima do meu, na
penumbra do sono desejo que me procure de novo. Mas só os seus
pesadelos é que o acordam de repente a meio da noite. Quantas
vezes, a dormir no seu abraço, sinto o seu punho fechar-se sob a
minha mão, crispado. De seguida desata a falar e grita na sua
língua, desconhecida para mim. Ou treme com a expressão de um
homem cercado por perigos mortais. Ou endireita-se e olha à sua
volta, desorientado, tomado pela angústia, pestanejando sem
perceber nada. Então eu apaziguo-o sem palavras, faço-o encostar a
cabeça ao meu peito, e ele procura abrigo na concavidade da minha
clavícula, tal como o Iulo quando se abandona ao consolo.
Nunca me conta nada, fica em silêncio, não sei que recordações
o atormentam.
A manhã fica mais clara, dentro de pouco tempo vou-me
levantar. O Eneias dorme com calma, nada se agita nele, repousa.
Levanto o dedo para seguir na sua pele as linhas das cicatrizes.
Viajo, quase sem lhe tocar, pelos caminhos que as armas abriram no
seu corpo, caminhos de um passado doloroso e prévio a mim. Ali
está a marca do seu mistério. Só posso explorar, eu sei, o rasto
exterior dos seus enigmas. O interior é um mar vedado.

Ana

Esta tarde doem-me os meus pequenos peitos pontiagudos, e


sinto vergonha. Quando os outros olham para mim, gostava de tapar
a cara com as duas mãos. O Iulo é o meu único amigo, o único que
não se ri dos meus peitos pequenos e doridos.
Já não vou com o Iulo para as praias solitárias. Agora brincamos
nos areais ao pé da muralha, para nos podermos refugiar se formos
novamente ameaçados pelas hordas de guerreiros nómadas.
Permanecemos sempre à vista dos guardas que vigiam as portas da
cidade. Em dias como hoje magoam-me os olhares dos soldados,
mas não me atrevo a afastar-me. Estou sentada, a abraçar os
joelhos para ocultar os meus seios, com as costas apoiadas no
tronco desnudo de uma figueira. Gosto de acariciar a trança
estranha das suas raízes, que o vento desenterra ao levar a areia. O
chão está semeado de brinquedos do Iulo: um pau, várias pedras
lisas, uma concha e um búzio, o seu cavalinho de madeira.
Contemplo as nuvens, lá em cima: também têm forma de cavalos
erguidos no céu. Sinto-me muito sozinha ao observar a praia
cinzenta, os véus de fumo que sobem da cidade, a tristeza da tarde.
— O que é que queres, Iulo? — pergunto.
— Boca. A boca — repete.
Meto o dedo na sua boca morna e suave para me assegurar de
que está vazia. Desde que lhe ensinei o jogo de espreitar pela janela
e cuspir caroços de ameixa contra as pessoas que passam, anda de
um lado para outro com o bolso da sua túnica carregado de projéteis
que chupa às escondidas. Isso obriga-me a vigiá-lo o tempo todo.
— Não engoliste nada, pois não? Mas, o que é que temos aqui?
Há um dente a abanar — digo. Com as cabeças juntas, estamos tão
perto que a sua cara toca levemente na minha.
— Está a abanar. Aqui.
Toco no dente trémulo.
— Sabes uma coisa, Iulo? — digo-lhe, baixando a voz para
chamar a sua atenção. — Os dentes das pessoas desta cidade
apodrecem e caem. Aqui têm todos a boca oca ou esburacada.
Nunca reparaste? E eu sei porquê. É um segredo, mas se calhar não
to conto para não teres medo.
— Por favor…
O vento agita-lhe o cabelo sobre a testa. Tem areia entre as
sobrancelhas. Deixo que me suplique: por favor, por favor. Viro a
cara para o mar dos mil sussurros, onde as ondas rebentam na
margem levantando uma espuma fervilhante branca.
— Não te vais assustar? E não vais contar a ninguém?
— Não. Juro.
— A cidade está amaldiçoada. Cartago é uma cidade amaldiçoada
— digo, saboreando as terríveis palavras. — É por isso que os que
vivem aqui perdem os dentes. É por isso que as árvores secam e
deixam de dar frutos, como esta figueira, da qual já nunca mais
nascerão figos doces. Para além do mais, uma vez por ano há
horríveis pragas de escorpiões que saem de todo o lado e que
invadem as casas, as ruas, os campos. É por isso que eu e tu somos
as únicas crianças. As mulheres desta cidade são estéreis, aqui não
nascem bebés.
O Iulo fita-me com os olhos muito abertos. Ainda não percebe
bem tudo o que lhe digo. Abre a boca para perguntar, mas muda de
ideias e começa a colocar pedras e ervas num monte de terra para
erguer uma montanha.
— Iulo, eu contei-te o meu segredo sobre a cidade, só to contei a
ti. Em troca, contas-me o teu segredo?
— Segredo. O segredo do meu pai.
— Sim, Iulo. Diz-me mais. O teu pai…?
— O meu pai. Filho.
— Pai, filho… Tu também fazes parte do segredo, Iulo?
A sua língua entorpece, na sua cara reflete-se a luta com as
palavras. Embora aprenda rápido, ainda não é capaz de revelar o
mistério do Eneias.
— Mãe — diz, levantando os olhos. Eu também olho para cima.
As andorinhas e os andorinhões esvoaçam e passam quase a tocar
levemente na parede da muralha, com algazarra e viragens e
piruetas.
— Não te percebo, Iulo.
Murmura na sua língua. Depois repete «Mãe», gritando como se
se tratasse de se fazer ouvir. No fim, desiste, batendo no chão com o
pé. Da sua boca escapa um suspiro.
— Outro dia logo me contas — tranquilizo-o.
A irritação desaparece de repente do seu rosto. Dá palmadas à
montanha de areia e enterra um pãozinho na parte mais alta.
Observa-o satisfeito, limpando as mãos na barriga.
O mistério que o Eneias oculta continua a andar à volta da minha
cabeça quando vejo aparecer, na distância amarela, um ginete a
galope. O pó eleva-se atrás dele em nuvens inchadas.
Desassossegada, a pressentir o perigo, pego na mão do Iulo e,
juntos, procuramos refúgio perto da guarda.
À medida que se aproxima, o ginete endireita-se na sela. Corre
tanto que, se se lançasse ao mar, cavalgaria sem se molhar, e se
atravessasse um campo poderia voar por cima da seara sem dobrar
as espigas à sua passagem. O ginete é um dos nossos. Quando
chega ao pé das portas, puxa as rédeas e desmonta. O cavalo,
cansado, baixa a cabeça. As crinas escuras encaracolam-se devido
ao suor, tem espuma nos lábios.
— Cavalguei toda a noite e todo o dia — diz o ginete, respirando
com cansaço. — Achei que o cavalo ia cair para o lado.
Os guardas conhecem-no, respondem com familiaridade.
— Podes descansar no quartel — diz uma sentinela.
— Tenho de falar com o conselheiro Malco, o Escudo, sem
demora — responde o ginete.
— O conselheiro Malco, o Escudo, está no porto, a dirigir o
desembarque das mercadorias que acabam de chegar. Se quiseres,
vai dormir. Eu posso levar-lhe a tua mensagem.
— Só falarei com o conselheiro. E a sós. Digam-lhe que trago
notícias, notícias que não podem esperar. Ele vai perceber.
A sentinela sai em busca do Escudo. O ginete permanece de pé,
inquieto, a guardar o vestígio de outro segredo que eu quero saber.
— Vá, meninos, vamos para casa — diz um soldado afastando-
nos dos assuntos dos homens. — Já não é hora de andar às voltas
pela rua. Vou convosco até ao palácio.
Sinto de novo o olhar do soldado sobre o meu peito. Afasto-me
para que a sua mão não toque levemente no meu corpo, mas ele
pega no braço do Iulo e não temos mais remédio do que segui-lo.
Um novo mistério fica a flutuar no ar a par do ténue fumo do
primeiro.

Eneias

O meu pai teria sabido convencê-los e apaziguar o seu


descontentamento. Nunca teria permitido essas provocações
infames. Mas o meu pai morreu há nove luas e deixou nas minhas
mãos, totalmente nas minhas mãos, a sorte da expedição e a busca
do nosso destino. Ainda agora, tantas vezes, me parece que posso
recorrer a ele para lhe pedir conselhos. O hábito de ser filho perdura
para lá da morte que ceifa os laços. A partir de agora, todos os
vendavais, todas as tempestades, me encontrarão órfão.
Subo a encosta empinada que conduz ao palácio. A beleza da
cidade volta a impressionar-me: as açoteias, os miradouros isolados,
os jardins, os ciprestes em redor do templo como vigias a formarem
uma fila, o azul das montanhas atrás da barreira de bruma. É um
lugar muito bonito para construir uma vida, tão bonito como foi
Troia.
Os guardas que vigiam a entrada do palácio abrem-me caminho,
e um soldado que evita fitar-me conduz-me ao salão do trono. A
Elisa manda as escravas que tecem nos altos teares saírem. Quando
ficamos a sós, aproxima-se e repousa a sua mão no meu braço. Eu
desejo apertar o rosto contra os seus peitos para descarregar a
minha raiva.
Uma imagem atravessa a minha mente em toda a sua crueldade:
empurrá-la contra a parede, levantar-lhe a túnica e possuí-la ao pé
do trono, furiosamente. Será que é isso que os meus homens
reclamam? Que me lance sobre ela para demonstrar o meu poder?
Aspiro lentamente uma baforada de ar através da qual gostaria de
me esvaziar da dor e da cólera.
— Como é que receberam a nossa proposta? — pergunta ela,
observando-me com as suas pupilas de carvão.
— Já começaram a desmontar o acampamento para se mudarem
para o interior das muralhas.
— Disseste-lhes que lhes darei terras e honras em pé de
igualdade com os meus súbditos vindos de Tiro? Que os
acolheremos na cidade como irmãos?
— Sim.
— Eneias, o que é que se passa? Não se querem juntar a nós?
Desconfiam da nossa mão estendida?
— São homens rudes, forjados na bigorna da guerra. Não
esperes que agradeçam a tua generosidade com palavras corteses,
mas posso garantir-te que têm um coração leal — digo com uma voz
cansada.
A conversa é bruscamente interrompida. Um soldado abre a
porta, cruza o limiar e dirige-se à Elisa com gestos exaltados. Por
detrás das palavras que não compreendo, sinto um compasso de
alarme.
— Eneias — explica a Elisa —, o meu conselheiro, Malco, o
Escudo, insiste em falar comigo sem demora. Traz notícias que não
podem esperar. Espera-me aqui, por favor, não demorarei.
Enquanto ela abandona a divisão, olho para as suas costas da cor
torrada da argila, para os seus morenos ombros, uma obra de olaria.
De seguida, perco-a de vista. Os seus passos afastam-se.
Permaneço no silêncio da sala onde o lume arde com um leve
crepitar.
Regressa a mim a lembrança dos meus homens, há apenas umas
horas, a contemplarem-me com caras petrificadas, com rostos
amuralhados, cada fibra do seu corpo tensa devido à rejeição,
devido à recusa de deixarem o acampamento para se instalarem na
cidade.
Hoje o vento agitava o cordame das naus e nas velas palpitava a
chamada da partida. Eles querem fazer-se ao mar nos barcos já
reparados e querenados. Porque é que rejeitam a hospitalidade
destas terras? Amaldiçoaram tantas vezes as ondas, o cansaço que
os invade, o tédio do mar… Embebedaram-se tantas vezes contando
os verões decorridos desde que Troia caiu e que começou o nosso
vagabundear pelas terras, baixios e sendas marítimas, sempre
debaixo de duros céus, em busca de uma Itália que foge…
Porquê esta resistência tenaz e pétrea quando lhes proponho
procurarem casa aqui? Já está na hora. A Elisa acolhe-nos, os
deuses incentivam-nos. Será que não querem pôr um ponto final nas
misérias do desterro? Porque é que se negam a experimentar fazer
fortuna em Cartago, como antes aconteceu em Creta? Se não for o
lugar do nosso destino, os deuses enviarão um sinal inconfundível.
A expressão do Acates, o amigo que sempre lutou lado a lado
comigo, atravessou-me como uma lança. Sem dizer nada, a sua
acusação apontava o dedo para a minha magnífica espada no flanco
e o manto vermelho que pende do meu ombro. Será que a minha
vestimenta cartaginesa o ofende por ser um presente da Elisa?
— Não nos peças que vivamos na terra de outros — disse o
Acates. — Queremos novos muros que levem o nome de Troia.
Queremos definir nós próprios o fosso que vai delimitar a cidade.
— Uma cidade são os seus homens e não as suas muralhas —
respondi. — Troia somos nós. Troia renascerá onde vivamos e onde
os nossos filhos cresçam em paz. Cartago pode ser esse lugar.
— Porque é que te preocupas tanto em obedecer aos desejos da
Elisa? — perguntou o Acates, com estranheza.
A fúria volta a fervilhar dentro de mim ao recordar as insinuações
do Acates, a sua forma de sugerir que obedeço servilmente à Elisa.
Será que os meus homens acham que estou submetido a ela? Fazem
troça de mim quando bebem em redor das fogueiras e arrotam o
seu desprezo por um rei que se deixa humilhar, arrastando-se diante
de uma mulher?
O que é que lhes posso explicar a eles, jovens ferozes? Só
conheceram os corpos das mulheres que violam em combate,
enquanto o fogo dos incêndios ainda ruge, ou a submissão das
putas pelas quais pagam nas tabernas dos portos. Falei-lhes na
linguagem que melhor compreendem, dei-lhes ordens para
atracarem os barcos no porto de Cartago e habitarem na cidade.
Uma ordem firme, seca, indiferente às suas ofensas.
De repente sinto frio. As palavras fogem em debandada da minha
cabeça, deixando-me silenciosamente ferido. Aproximo-me da lareira
e deixo passar o tempo de espera contemplando como as
arquiteturas de lenha se desmoronam no fogo.
Quando a Elisa regressa, o seu semblante está pálido.
— Más notícias, Eneias. Um soldado do Malco, o Escudo, enviado
para as montanhas, descobriu que todos os povos líbios se aliaram e
estão a armar um grande exército para nos aniquilarem. Ao
comando das tropas está o Iarbas, o mais sanguinário dos chefes
nativos — diz.
Um último desabamento na fogueira eleva um enxame de faíscas
vermelhas e incandescentes.

Eros

O palácio é um edifício infestado de sussurros, de sombras que


se escondem, de vigilância, onde os recantos ocultam olhares
encobertos e ouvidos à espreita. Por isso, sugiro a Elisa com um
sussurro que procure a solidão das ruas de Cartago para se refugiar
num silêncio que seja uma verdadeira quietude e não sigilo de
conspiradores. Demonstrando uma velocidade e uma eficácia
inconcebíveis para os humanos, sopro para temperar a brisa, afasto
as nuvens, abro o céu de par em par com as suas estrelas acesas
perfeitas e, para dizê-lo brevemente, preparo tudo para uma noite
serena, suave e luminosa, ao serviço dos amantes.
Elisa guia Eneias através da cidade, para uma torre onde um
vigia armado abre a porta de uma passagem para eles. Sobem por
uma escada estreita que vai dar ao ar livre, ao corredor da muralha.
Eneias espreita pelas ameias e diante dos seus olhos abre-se o
território de dunas escuras como o lombo de um grande animal.
Eu coloco-me ao seu lado e deixo-me levar por um
arrebatamento contemplativo. Para a minha vista, habituada à
monotonia do eterno, não há nada tão comovente como estas
paisagens albergadas no seio do tempo, onde tudo flui, palpita e se
desintegra, renascendo graças às mais variadas metamorfoses.
Quando centro a minha atenção de novo em Elisa, capto a sua
impaciência. Trouxe Eneias até à muralha para lhe mostrar os
avanços na fortificação da praça, a sua solidez perante a ameaça de
Iarbas. Espera com ânsia ouvir dos seus lábios palavras de
admiração sobre a cidade e os baluartes que a protegem, mas ele
não quebra o silêncio.
— Eneias — diz ela, incapaz de controlar a sua agitação —,
chegarás a amar esta cidade. A terra é fértil em cereais e abundante
em pastos. Possuímos o melhor porto de uma costa onde os
ancoradouros são escassos. Os muros já protegem os habitantes e
dentro de pouco tempo estender-se-ão por todo o istmo, tornando-
nos quase invulneráveis aos ataques do inimigo. As tarefas mais
difíceis já foram concretizadas, não temas aquilo que o futuro nos
reserva.
Devo deter de imediato este discurso triunfante. Que situação
paradoxal! Elisa sente-se orgulhosa das suas próprias conquistas e
proclama-as, enquanto Eneias se acusa a si próprio de uma
sucessão de fracassos e naufrágios, embora os dois, na verdade,
tenham demonstrado coragem e esperança em doses parecidas e
em situações muito semelhantes. Verifiquei que entre os efémeros
mortais só o sucesso destaca os méritos.
Faço Elisa calar-se, colocando-lhe o dedo nesse sulco que une o
nariz e o lábio de todos os humanos e que, tendo em conta a
precipitação e a falta de jeito com que tantas vezes começam a falar,
sempre me pareceu a marca de alguma tentativa divina falhada de
lhes fechar a boca de uma vez por todas.
O silêncio envolve-nos de novo. Elisa aproxima-se de Eneias e
acaricia-lhe suavemente o cabelo. Ele fecha os olhos. Para averiguar
em que é que está a pensar, coloco a mão sobre a sua testa, mas
retiro-a de seguida, sobressaltado. A sua mente não está invadida,
como esperava, pelo prazer ou o desejo ou a ternura. Está ocupada
por uma terrorífica lembrança de guerra. Eneias vê-se a si próprio a
dirigir a defesa de uma paliçada. À medida que os assaltantes
trepam, os soldados de Eneias cortam as suas mãos com machados.
— Olhos cinzentos — diz Elisa —, o que é que te preocupa?
— Desculpa, esta muralha traz-me lembranças do cerco de Troia.
— Eneias, aqui não se vai repetir todo aquele sofrimento.
— Nenhum exército travaria um combate sem a ilusão de uma
vitória certa. Nós também a tínhamos.
— Eu sei, Eneias, e por isso é que estou a conter os meus
belicosos conselheiros, que tentam convencer-me a atacar o Iarbas
tomando a iniciativa em vez de me limitar a preparar as defesas. Os
meus homens acham que sou lenta a fazer a guerra, fraca e
compassiva; afinal de contas, mulher. São esses os rumores que
circulam entre as minhas tropas.
— Elisa, não te deixes arrastar por essa fanfarronice absurda.
Ouve as minhas palavras, envia embaixadores ao palácio do Iarbas e
bajula a sua vaidade com presentes e uma proposta de aliança
vantajosa para ele. Em Troia aprendi que a salvaguarda de um reino
não são os exércitos nem os tesouros, mas sim os aliados. Não há
força mais inexpugnável do que uma sólida aliança com os povos
vizinhos.
Uma sentinela que percorre o adarve a marchar em passos
regulares interrompe a conversa. Quando a sua silhueta desaparece,
Elisa procura de novo a proximidade do corpo de Eneias, encosta-se
suavemente a ele e, ao sentir o seu calor, fecha os olhos. No
entanto, Eneias parece-lhe indiferente ao seu contacto, frio,
afastado, cansado. E este pequeno ser arrogante, como todos os
humanos, sofre ao verificar que a sua mera presença ao pé do outro
não consegue reanimar o mundo. Conheço estas ideias amorosas
dos humanos que, no apogeu dos seus sentimentos, acham que
todo o bem e todo o mal das suas vidas têm origem no amado, e
que o resto só os pode afetar de forma amortecida, como um vago
eco. Poucas atividades despertam nos efémeros mortais expectativas
tão grandes como o amor. Devido a essas fulgurantes fantasias, eu,
apesar de todo o meu zelo, deixo atrás de mim muito mais legiões
de desiludidos do que qualquer outro deus.
Enquanto me perco nestas divagações, Eneias vislumbra ao longe
um fio de claridade, uma pequena luz, o minúsculo resplendor de
um fogo.
— Elisa, acho que há fogueiras acesas no deserto.
— Onde? Espera… Tens razão.
— O que é que poderia ser? Pastores nómadas?
— Não, os nómadas nunca se deixam ver fora das povoações.
Não é fácil perceber a sua presença. Estão sempre à espreita de
cócoras escondidos entre os arbustos. Cobrem o corpo com terra e
tinta para se confundirem com a cor da folhagem. Não, não se trata
de nómadas. Receio que o Iarbas tenha enviado um destacamento
avançado para nos espiar.
— Elisa, atravessarei as dunas até ao lugar de onde vêm os
misteriosos clarões. Levarei o Acates comigo. Tenho de averiguar se,
realmente, nos apontam armas inimigas por trás dessas fogueiras,
ou se é o medo que nos faz ver inimigos ilusórios onde só há
sombras evanescentes.
E assim, devido ao meu descuido de um instante, o passeio
noturno através da cidade adormecida termina numa expedição de
guerra. Por Aquiles, que só soube que amava a amazona Pentesileia
um instante depois de matá-la em combate, os humanos nunca
deixarão de me surpreender!

Eneias

A negra noite rodeia-nos com a sua envolvente sombra. Juntos


diante dos perigos, eu e o Acates recuperamos a antiga
camaradagem. Nenhum rancor, nenhuma acusação silenciada se
mete entre nós. Hoje, de novo, não hesitei em arriscar a vida
quando recorri a ele. Ao observá-lo, compreendo que a sua presença
me dá forças para avançar através deste mundo repleto de
emboscadas.
Uma vaga claridade antecede a saída da Lua. Caminhamos com
movimentos prudentes, em silêncio. Os nossos pés pousam no chão
como as patas de um felino; apoiamos suavemente o calcanhar e
depois a ponta, lentos, cautelosos. Não esqueço a advertência da
Elisa: é possível que existam nómadas a observarem escondidos
entre os ramos dos zambujeiros ou das murtas.
De repente, um barulho sobressalta-me e os meus dedos
fecham-se à volta do punho da espada. Enquanto a desembainho,
um pássaro noturno pousa perto de nós como uma seta que perde
altitude. Ouço o Acates suspirar enquanto seca a testa. Diante dos
nossos olhos perfila-se uma encosta de oliveiras que oscilam ao
sopro do vento e parecem arder delicadamente em labaredas de
prata. Metemo-nos entre as árvores e baixamo-nos. Tudo está
dominado por uma lúgubre calma; o mar revolve-se no seu leito, o
lombo da terra imensa estende-se ao longe. Nada perturba a
quietude até que, de repente, o resplendor das fogueiras que
vigiamos começa a mexer-se de forma misteriosa. Olho fixamente
para as manchas de luz. Está a acontecer alguma coisa na
penumbra azul, mas a distância e a escuridão protegem o segredo.
— Viste? — sussurra o Acates.
— Há quatro pequenos clarões em movimento.
— São homens a levar archotes.
— Pararam à beira-mar.
Ficamos em silêncio, com os corpos tensos, a respiração contida.
O suor corre pelas minhas costas. Um novo resplendor, mais intenso,
flutua sobre a água. Então, finalmente, a Lua ergue-se, ilumina a
planície azul e as ondas são sulcadas por uma coluna reluzente. A
sua luz derrama-se sobre a silhueta de um barco em chamas que
avança impulsionado pela brisa.
E, com o coração a bater de forma acelerada, percebo tudo.
Estão a atacar-nos.
— Pegaram fogo a uma velha nau cheia de sarmentos e de
ramos secos e lançaram-na contra o porto da cidade. O vento sopra
a seu favor. Se o incêndio se propagar, destruirá a frota cartaginesa.
— Os nossos barcos também estão ancorados no porto e correm
perigo — diz o Acates. — Cães traiçoeiros!
— Temos de regressar e avisar toda a gente antes de que o fogo
devore as naus.
— Será que chegamos a tempo?
— Segue-me o mais depressa que conseguires!
Começo a correr pelo ondulante caminho de areia cor de osso,
levantando uma pequena nuvem de pó. Sinto o fôlego do Acates
atrás de mim e as grossas gotas de suor que escorrem pela minha
cara. Viro a cabeça sem parar e consigo ver o barco incendiário
enquanto desliza com calma, com a beleza de uma estrela maligna,
deixando no mar um rasto lívido que cicatriza lentamente.
Os nossos pés afundam-se na areia. Por um instante, parece-me
que esta corrida está a acontecer num sonho, um desses sonhos nos
quais não se pode prender quem foge e em que o fugitivo também
não consegue escapar, e a perseguição prolonga-se, sem resultado
nem razão de ser, pura doação e angústia para aquele que dorme.
Assustados com os nossos passos, os répteis escapam velozes
entre as pedras e as aves levantam voo com repentinos golpes de
asas. Estou ofegante. Os meus joelhos estão pesados. Aproximamo-
nos da muralha. Nos meus ouvidos soa um zumbido frenético.
As portas.
As portas da muralha.
Detemo-nos com um gemido de libertação.
Os vigias reconhecem-nos e deixam-nos passar. Com a voz
alterada pelo esforço, tento explicar-me. Em vão. Não compreendem
os nossos avisos. Para além disso, o muro esconde dos olhos o
pedaço de mar onde a nau em chamas navega.
— Não há tempo a perder — digo ao Acates. — Temos de tentar
salvar a frota por nós próprios.
— E como é que queres fazê-lo?
— Rebocaremos a nau a arder para fora do porto. Para consegui-
lo vou precisar dos nossos melhores remadores. Vai buscá-los,
arranca-os da cama e vem ter com eles ao cais. Espero-vos a bordo
do Leoa, a nossa embarcação mais leve e ágil, a desfraldar as velas.
Despacha-te!
O Acates parte em direção às dependências do antigo celeiro
onde os meus homens dormem desde que se instalaram em
Cartago. Eu dirijo os meus passos velozes ao porto. O
pressentimento de um desastre oprime o meu peito com o seu cerco
de terror. Respiro com dificuldade. As ruas estão vazias, mas nos
meus ouvidos aguçados pelo medo reverberam ecos de sussurros e
murmúrios furtivos. Por cima da escuridão das açoteias espreita uma
grande Lua vermelha que banha tudo com uma luz sinistra.
Nas portas das casas, compridos estores de bambu estalam ao
vento. Estou enganado ou há uns dedos que abrem uma frincha
para observar? Ao passar diante de uma janela com os postigos
entreabertos, vislumbro uma candeia que projeta no chão sombras
movediças. A contragosto, assusto-me.
Vou dar à grande praça dos sacrifícios onde a Lua derrama a sua
claridade violeta. Chega aos meus ouvidos o retumbar de uns passos
a arrastar-se. Instantes depois, apercebo-me com estranheza de
que, entre as sombras, não muito longe do altar, há um homem
deitado de barriga para baixo. Da sua garganta brota uma fraca
chamada, um gorgolejo de voz. Aproximo-me dele, toco-lhe no
ombro; como resposta, o desconhecido geme. Empurro-o com mais
força, fazendo com que o seu corpo se vire.
E então sou golpeado pelo horror.
Vejo o seu peito destroçado por ferozes feridas de espada. A
respiração assobia numa enorme brecha através da qual escapam o
fôlego e a vida. Sacode os pés, os seus calcanhares convulsos
açoitam o chão. Tento estancar a hemorragia, mas é impossível
deter o sangue que corre sem parar. Apesar dos meus esforços,
exala logo o seu último fôlego de ar, uma névoa espalha-se pelos
seus olhos e o frio da morte invade-o. Fecho as suas pálpebras.
Conheço-o, sofri a sua inimizade: trata-se do conselheiro Elibaal, o
Arco.
Estou na cena morna de um crime.
Endireito-me, olho à direita e à esquerda. Já nenhum passo,
nenhuma voz quebra o silêncio. Adivinho olhos ocultos atrás das
janelas. O coração golpeia-me contra as costelas, as ideias fogem
apavoradas da minha mente. Ignoro quanto tempo passa até que
recupero a serenidade. Peço aos deuses que deem hospitalidade ao
espírito do Elibaal na vasta mansão dos mortos. Depois corro para o
porto.
— Eneias, sobe. O incêndio ainda não deflagrou — grita o Acates
fazendo-me sinais desde o convés do Leoa. Lança-me uma escada
pela qual trepo a bordo. Os homens aguardam sentados em filas
sobre os bancos de remos. Içamos a âncora, os remos afundam-se
na água negra e, após um brusco empurrão, o barco começa a
deslizar.
— Vamos prender a nau em chamas com ganchos e cordas e
afastá-la daqui. Arrastá-la-emos até uma enseada desabitada —
grito.
Os remos mergulham e elevam-se com um ritmo perfeito. O
nosso timoneiro orienta o barco rumo ao perigo que vem ter
connosco como uma grinalda de fogo.
— Lancem os ganchos! — ordeno.
O vento traz uma chuva de faíscas.
— Lancem mais uma vez!
A nau fica presa. Manobramos para abandonar o porto com o
nosso perigoso séquito de chamas. O Acates pousa sobre mim um
olhar inquieto, com a luz do incêndio refletida nos seus olhos e na
sua barba.
Enquanto os meus homens remam, apanho água do mar para
sufocar as chamas caso o fogo deflagre na nossa embarcação. As
rajadas de ar abrasador asfixiam-me. O cais afasta-se. A proa do
Leoa corta a espuma ao embrenhar-se na noite. O incêndio vomita
um fumo lento. Então vejo que as maromas de crina e cânhamo que
nos servem para puxar a nau começam a arder. Lanço um balde de
água para as pétalas de fogo que florescem nas cordas.
— Remem! Remem! — grito.
O nosso barco avança, impulsionado pela força dos polidos
remos.
— Rumo à enseada!
Os remos do leme viram com as suas pás largas. Abre-se à nossa
frente uma praia arenosa onde o incêndio se extinguirá sem perigo.
Cortamos as maromas e saboreamos a nossa vitória. O Acates,
ainda exausto pelo esforço, aproxima-se de mim com o semblante
carregado.
— Eneias, estás ferido?
Então apercebo-me de que a minha túnica e os meus braços
estão manchados de sangue espesso. Regressa à minha memória a
imagem do homem assassinado, os lábios abertos da sua ferida e o
sibilar que brotava dele como se a morte se estivesse a rir ali.

Ana

— Água! — pede o Iulo, dando estalidos com a língua e abrindo


a boca para me mostrar a sua garganta seca.
Ficou parado no meio da rua. O vento agita-lhe o cabelo
encaracolado sobre a testa. Segura-se aos flancos com as mãozinhas
gordas. Agora não presta atenção ao cão vagabundo que fareja com
o seu focinho todo húmido entre a imundice derramada pelo chão,
nem à galinha coxa que vagueia a bicar no pó, nem ao oleiro que faz
o torno girar e com as suas mãos modela o ventre ondulante de um
cântaro, nem ao homem que dobra as costas sob um feixe de lenha,
nem ao escravo que come os restos do prato dos seus amos e chupa
os dedos. Não, o Iulo deu ordens e, se eu não cumprir, brotarão dos
seus olhos faíscas furiosas com as quais me fulminará, ou pelo
menos me chamuscará o cabelo e as sobrancelhas.
Aproximo-me de umas mulheres que conversam sentadas no
poial do saguão, ao pé dos portões de uma casa.
— Irmãs — digo-lhes —, podem oferecer-me um pouco de água
para aliviar a sede do menino?
As mulheres fitam-nos carrancudas. Vejo uma sombra escura nos
seus gestos.
— Se precisas de água, vai tu própria tirá-la do poço. Eu não
transporto os meus pesados cântaros para dar de beber ao filho de
um assassino — responde.
— Estás errada, mulher. O Eneias não matou Elibaal, o Arco. Tem
cuidado com a injúria que essas palavras contêm — digo.
— Muitos olhos o viram nessa noite com a túnica manchada de
sangue. Todos sabemos que é culpado. Como é que podes ser
adivinha estando tão cega?
— Afasta-te dos estrangeiros, menina — acrescenta a outra
mulher. — Só trouxeram desgraça e morte a estas terras. São
odiosos para todos nós, que vivemos nesta cidade.
O Iulo, que já entende algumas palavras, exala um gemido de
dor e lamento, solta a minha mão e foge a correr.
— Que os deuses castiguem a vossa afiada língua! — grito às
mulheres e desato a correr levantando a ponta da saia com a mão.
Persigo o Iulo através do dédalo de ruas, atravesso a porta da
muralha depois dele e alcanço-o por fim na beira espumosa do mar.
Abraço-o de joelhos sobre a areia. As suas faces redondas e mornas
molham-me o ombro.
— Iulo, Iulo, não chores… Viste essas mulheres? Têm os dentes
podres e por isso brotam das suas bocas palavras malcheirosas e
que são mentira — digo.
O Iulo chora deitado no meu regaço, espasmodicamente.
Enquanto lhe acaricio o cabelo, decido que não voltaremos a sair
para as ruas até que o verdadeiro assassino seja descoberto e isso
silencie o clamor contra o Eneias. Entretanto, brincaremos dentro do
palácio e nos jardins.
O mar, no seu movimento de avanço e recuo, molha-nos as
pernas com a sua língua fria. Estamos deitados onde as ondas
depositam uma orla de espuma amarela. Afundo os dedos na areia
suave e traço várias linhas gémeas. O Iulo começa a sossegar.
Passa-me pela cabeça uma ideia para distrair a sua mente das ideias
penosas.
— Iulo, sabes desenhar palavras?
Levanta o seu olhar húmido e crava em mim os seus olhos
repletos de brilho. Nega com a cabeça.
— A minha mãe ensinou-me e ela, por sua vez, aprendeu com o
pai, que era um mercador e navegava sulcando a grande planície do
mar. Na minha terra fenícia, as pessoas sábias traçam desenhos que
falam.
— Como é que falam os desenhos? — pergunta o Iulo.
— É magia. Com estas letras posso dizer o que quiser sem abrir a
boca. Que palavra queres que desenhe?
— Pai.
— Pai desenha-se assim — digo, traçando as letras com a ponta
do dedo na areia compacta.
— Filho.
— Aqui diz filho. E este é o teu nome. E o meu.
— Pai. Filho. Iulo. Ana.
— Gostavas de aprender, Iulo? Posso ensinar-te. Terás de
recordar a forma das letras e quando estiverem bem gravadas na
cabeça poderás desenhar todas as palavras do mundo.
— A sério?
— Sim. Esta letra toda redonda é uma roda. E esta letra
quebrada é a serpente. Esta é uma mão. E esta, a cabeça de um
boi. Esta letra ondulada representa a água e esta outra, um peixe. E
aqui, um anzol, uma janela, uma porta, a bossa de um camelo… São
bonitas, não são?
O Iulo olha fixamente para as letras. O sol fá-lo pestanejar.
Boquiaberto, começa a coçar a crosta vermelha de uma ferida
mesmo por baixo do cotovelo. De repente, levanta-se e corre para ir
buscar um ramo que boia na água.
— Como é que desenhas Eneias? — pergunta, empunhando o
ramo com algas penduradas. Guio a sua mão com suavidade e os
traços desenham-se na areia húmida.
— Deusa? — diz o Iulo com os olhos muito abertos. O meu braço
conduz de novo os sulcos da sua escrita.
Excitado, o Iulo vira o olhar para as minhas incisões e,
desajeitadamente, desenha com a sua própria mão os traços de uma
palavra: filho.
— Eneias. Filho. Deusa — leio.
— O segredo do meu pai.
O meu coração palpita com um ritmo acelerado no meu peito.
— O teu pai nasceu da barriga de uma deusa? — pergunto.
O Iulo aperta os lábios e aponta para os desenhos.
— É um grande segredo, eu não posso pronunciá-lo.
— Guardarei o segredo — digo, colocando os meus dedos na
boca. — Os meus lábios estão selados.
Levanto a cabeça para o céu, por onde se movem caravanas de
nuvens. Em pleno dia, consigo ver o disco brumoso da Lua. De
repente, as nuvens separam-se e um bonito resplendor acaricia a
praia ao deslocar-se sobre a areia. Tudo é prodigioso durante o
brilho de um instante. O filho de uma deusa… Agora tenho a certeza
disso, o Eneias vai tirar-nos daqui e levar-nos de viagem por todos
os horizontes do mundo. Tento imaginar as aventuras que o Iulo, a
Elisa, o Eneias e eu viveremos, protegidos pela deusa do sorriso
eterno. E os meus pensamentos deslizam como um sonho,
esvoaçando mar adentro.
O Iulo chama-me. Entusiasmado perante a dimensão da sua
façanha, repete uma e outra vez os traços na areia com o seu pau
coberto de algas.
— Ana! Olha os meus desenhos.
Deciframo-los juntos e rimo-nos pela pura alegria de saber falar
sem voz.
— Por hoje é tudo. Amanhã mostrar-te-ei novos desenhos — digo
quando o Sol começa a rodar costa abaixo até ao horizonte. —
Voltemos ao palácio. Ali dar-te-ei água num frasco de barro cozido.
Anda, vamos lá para cima.
Puxo-o para levantá-lo. Quando nos afastamos, lanço um olhar
para trás. O mar parece arquear as costas como um animal. As
ondas começaram a banhar as pegadas que ficam na areia,
apagando-as com um sussurro. As letras desvanecem-se sem deixar
rasto.
A minha mãe costumava dizer que, um dia, muitos aprenderão a
desenhar os seus pensamentos, e a magia de guardar as palavras
espalhar-se-á e será um grande feitiço contra o esquecimento.

Elisa

Ele tornou-me mais sensível a todas as carícias, também à carícia


da água. Entro na tina onde as escravas prepararam o meu banho.
Quando me baixo e estico as pernas, a água sussurrante abre
caminho até aos esconderijos mais remotos — entre as nádegas,
nas dobras do sexo —, levantando ondas, mergulhando o meu peito,
derramando-se.
Visto uma túnica do mais fino tecido de linho que, ao sentar-me
no banho, fica ensopada de água e se incha à volta da faixa como
um nenúfar na minha cintura. Nunca me despojo da camada interior
das minhas vestes, tenho medo de contemplar a minha própria
nudez sem uma última veladura, sem uma neblina de suave linho
que esconda os vestígios do tempo. Também diante dele, sobretudo
diante dele, apareço no momento do amor coberta com véus,
reduzida a uma ténue silhueta entre as suas finas dobras.
Estremeço. O que é que ele sentiria se pousasse o seu olhar, sem
disfarces nem rodeios, numa carne que começa a perder o vigor?
Deixo a cabeça descansar, os meus braços repousam sobre o
bordo da tina. Sob o linho transparecem os meus mamilos gémeos,
a negrura da minha penugem secreta. Enquanto as escravas untam
a minha pele com sabão de cinza de faia e gordura de cabra, pouso
o olhar numa arqueta de madeira, apoiada sobre um escabelo. Ali
aguardam as luxuosas mercadorias que mandei comprar no Egito:
óleo aromático para a pele, mirra para polvilhar o cabelo, perfumes e
pinturas de olhos. Esperei com impaciência a chegada do barco que
me trazia este carregamento de unguentos e essências. Cobicei
durante semanas este elixir da juventude, eu, que nunca antes me
decorei.
Na grande divisão dos banhos já flutua um vapor quente. As
folhas entreabertas das pequenas janelas filtram os raios de luz, e
nas banheiras dançam pequenos sóis mil vezes multiplicados pela
água.
Olho para o Iulo. Desfruta do seu banho numa tina pequena
colocada ao pé da minha. Chapinha, bate palmas, sopra para inchar
pequenas bolas de sabão. À volta das ilhotas dos seus joelhos
dobrados balança uma frota de barquinhos de casca de noz com
pequenos arremedos de mastros e velas. Quando se apercebe da
atenção que presto às suas brincadeiras, traça uns sinais estranhos
na água. Sem entender o enigma que os seus gestos contêm, finjo
admirar os gatafunhos de água. Enquanto desenha, o Iulo pronuncia
estranhas palavras que emaranham a sua língua e a nossa.
Mergulho os braços e a água percorre-os com ondulações luminosas.
Mais uma vez, o desejo crava em mim as suas esporas. Penso de
repente nos sussurros das horas escuras, nas meias-palavras do
prazer noturno. Regressam à minha memória os momentos de
abandono nos quais ele comprimiu o seu rosto contra os meus
peitos. Quero voltar a sentir na boca o sal do seu suor, o sabor
ténue e fugaz como a água que deixa na minha língua.
Daria tudo para saber o motivo dos seus repentinos
distanciamentos, desse ar de afastamento, esse apagar-se e ficar
mergulhado no silêncio. Ele nunca dá uma explicação e eu receio
perguntar. Às vezes julgo ter coragem, as palavras despontam no
extremo da minha boca, mas no último momento voltam ao fundo
do peito numa reviravolta.
O meu coração agita-se como este raio de sol que cai sobre a
água da banheira e, daí, lança os seus reflexos em rápido torvelinho
para as paredes da sala.
Será que o Eneias esqueceria a sua tristeza se usufruísse de mais
poder em Cartago? Consolidarei a sua posição na corte. Oferecer-
lhe-ei um posto a ele e ao seu companheiro Acates no Conselho. No
início, não serão bem recebidos, porque a estranha morte do Elibaal
inflamou o ódio contra os troianos. Mas a vontade dos homens pode
modelar-se com promessas de ouro e cargos, como o metal na
bigorna. Pouco a pouco, com astúcia, escolherei para os postos de
comando guerreiros cartagineses que tomem o partido do Eneias.
Agora que a guerra com o Iarbas parece inevitável, devo fortalecer a
minha autoridade e enfraquecer a influência do Malco, cada vez mais
embebido de arrogância.
Amaldiçoo a estrela sinistra que brilhava na noite em que o
Eneias foi visto, salpicado de sangue, junto ao cadáver do Elibaal.
Porque é que a nossa calma teve de ser perturbada pela ameaça do
Iarbas, por sombras de conjura, por mortes misteriosas? Nuvens
escuras parecem pairar sobre o nosso céu, tal como este vapor que
se acumula na divisão dos banhos. Abano as mãos para dissipar a
opressão.
Duas escravas estão a ensaboar o Iulo. Os seus braços molhados
e reluzentes esfregam vigorosamente o corpo do menino. Todas as
minhas servas são mulheres de pele escura e lábios grossos,
nenhuma delas mais jovem nem mais bela do que eu. Dormem na
antessala da minha câmara e estão proibidas de partilhar o seu leito
com homens. Talvez por isso acariciem de forma furtiva o diminuto
sexo do Iulo, batendo palmas e desatando a rir.
— Já chega — digo-lhes. — Tragam-me mais água quente.
As escravas pegam numa bacia que está a aquecer na lareira,
sobre um tripé de metal, aparecem com ela e apressam-se a
derramar o seu conteúdo na tina onde tomo banho. Depois secam o
corpo do Iulo entre caretas e risos abafados.
O Iulo corre para a minha beira. Cheira a água com sabão, a lã, a
pão e a leite coalhado. Acaricia o meu cabelo. Eu sorrio-lhe e
desfaço as minhas tranças para ele. Entre rumores alegres, afunda a
cara no meu cabelo, puxa-o, remexe-o, embaraça-o.
O meu coração inunda-se de uma suave tristeza. Gostava de ter
carregado o Iulo na minha própria barriga, gostaria de ter conhecido
as fadigas do parto, de o ter amamentado com o meu seio, de o ter
embalado secreta, docemente, de ter limpado a sua sujidade, a sua
urina, o seu vómito. Então chamar-me-ia mãe. Então o Eneias olhar-
me-ia com a ternura que os homens reservam para a mulher que
deu à luz os seus filhos.

Eneias

Deitado de costas, deixo que a agitação do corpo amaine e que o


coração comece a acalmar. Fecho os olhos. Os pensamentos
transformam-se em fios de fumo que se desvanecem. Dentro de
mim pousa, com a delicadeza de um pássaro, uma suave calma.
Viro o olhar para ela. A expressão do seu rosto enche-me de um
súbito orgulho. Tem os lábios entreabertos e os olhos fixos,
vencidos. Ouço o seu fôlego, que escapa ao compasso do meu. As
chamas dos candeeiros ficam para trás com o suave tremor na sua
pele. Sinto-a perto, a respirar comigo. Ela vira a cabeça, sorri e
estica a mão para tocar levemente no meu cabelo.
— Diz-me, que preocupações te perseguem? Há dias que a
inquietação escurece os teus olhos — murmura.
Toco ao de leve nos seus lábios com os meus dedos para silenciá-
la. Descansamos nos braços um do outro. A silhueta do seu corpo
desenha-se sob uma fina túnica de linho. Oxalá um dia se despoje
desta peça de roupa, abandonando os truques de dissimulação, as
estratégias, as máscaras. Contudo, para ela não é fácil livrar-se do
manto régio.
— Uma nuvem ensombrece a tua testa — insiste, colocando um
dedo na minha têmpora. — O que é que posso fazer?
— Elisa, acolhes-me no teu leito, mas o teu povo fecha-me as
portas. Se me quiseres ajudar, procura o assassino do Elibaal, o
Arco. Esse crime por resolver desencadeou uma onda de ódio contra
mim.
— É difícil esclarecer o mistério — diz. — Mas há outra forma de
lavar o teu nome. Aceitarás fazer parte do Conselho? Desejo
nomear-te a ti e ao teu braço-direito, o Acates. A partir desse cargo
poderás defender a tua inocência e juntos converteremos Cartago
no grande império que os fados profetizam para ti.
— Os teus homens nunca o tolerariam — respondo. — Com essas
nomeações levantarás uma tempestade de ciúmes, rumores e
conspirações.
Ficamos algum tempo em silêncio. A minha memória revive a
Guerra de Troia, que esmagou a minha juventude com o seu
torvelinho de calamidades e destruição. A ideia de viver outro cerco
gela-me os ossos. Será que estou a tempo de evitar a catástrofe
unindo-me ao Conselho? Aqui até o ar ecoa com fragor de armas e
presságios de novas matanças.
Os pés da Elisa acariciam-me. Geme, respira fundo e rende-se ao
sono. Ela pode deixar-se embalar pelo descanso. Já realizou a sua
ambição, edificou nestas costas uma réplica da sua amada Tiro. Eu,
no entanto, não posso encontrar repouso em Cartago. Não quero
viver encalhado no dique do passado, preciso de desatar amarras
com a loucura da guerra e com a fome maldita de ouro. Oxalá
soubesse como explicar-lhe que a missão que empreendi com os
meus homens não é ressuscitar Troia, embora nos estorve a
nostalgia. Fundar uma cidade significa construir os alicerces do
futuro, as suas ruas não podem estar povoadas de fantasmas. Desde
que iniciámos esta viagem, desejei abrir novos portos, lavrar outros
campos, dourar as terras ermas com mansa espiga, ditar leis nunca
escritas e ver girar a roda dos séculos. Não quero devolver a vida a
um mundo pretérito e derrotado.
Quebrando a quietude dos meus pensamentos, ouço uns
estranhos ruídos que procedem da noite exterior. Endireito-me
sobressaltado. A Elisa dorme. Aguço o ouvido: os muros retumbam
com a violência de uns golpes fortes. Será que tentam abrir caminho
até à alcova e atacar-nos? Sentado no leito, procuro o cinto do qual
o meu punhal pende.
Aproximo-me silenciosamente dos grossos guarda-ventos para
enfrentar o perigo. Apoio as palmas das mãos nos batentes e
empurro-os com força. Um forte cheiro a urina de cavalo impregna o
ar. O meu coração acelera no peito enquanto os meus olhos se
habituam gradualmente à escuridão. A janela dá para o pátio das
cavalariças vazio; de repente, com um grande estrépito, o cavalo
branco da Elisa deita abaixo o portão do estábulo e começa a
galopar em círculos, sem freios nem rédeas, invadido por uma
furiosa ansiedade, a sonhar com a fuga. Contemplo o animal
encabritado, como uma pálida tocha na penumbra. Dos seus lábios
quentes brota um debrum de espuma e os seus olhos de cor
púrpura observam extraviados. Pergunto-me que terror o esporeia
nesta enlouquecida corrida.
Quando regresso ao leito, a Elisa ainda não saiu do sono. À luz
da lamparina a óleo que ainda arde com uma chama limpa e quieta,
a pele da sua garganta palpita suavemente. Sinto o desejo de
aproximar os meus lábios, detém-me o receio de perturbar o seu
descanso. Sou inundado pela ternura para com esse corpo morno e
acolhedor. A emoção espalha-se e ramifica-se. Em silêncio, evoco o
tempo vivido ao lado dela, a sua generosidade, o sotaque
estrangeiro da sua voz, a sua forma de se mexer, os seus pés
esbeltos, a sua coragem, o arquear da sua cintura quando se ri.
Será que o meu destino é permanecer ao lado dela e capitanear
a guerra contra o Iarbas? As incansáveis dúvidas apoderam-se de
mim. Sinto-me arrastado por ventos contrários, à mercê de
correntes poderosas que me sacodem. Sou um penhasco que tenta
resistir ao mar, rodeado pelo rugido das ondas, enquanto à volta
tremem, espumosas, rochas mais fortes.
Dirijo uma prece angustiada aos deuses. Por favor, enviem-me
um sinal. Preciso de saber qual é o meu verdadeiro caminho.
No pátio mergulhado nas trevas o cavalo branco relincha, ainda a
galope.

Ana

Não há em todo o palácio um lugar melhor para se esconder do


que este: a grande vasilha rachada da despensa. Só um corpo ágil e
magro como o meu consegue deslizar através da boca e encolher-se
lá dentro. Sei que aqui, na minha guarida de barro, o Iulo vai
demorar a encontrar-me.
Lembro-me de que o pranto me ardia nos olhos quando as
pessoas de Tiro me atormentavam com alcunhas humilhantes: a
filha bastarda do rei, a pequena feiticeira. Quero salvar o Iulo dos
insultos que agora brotam de todas as bocas, chamando-lhe o filho
do assassino. Por isso jogamos às escondidas no palácio, sem sair
para as ruas, para nos escapulirmos do ódio dos idosos, para
escaparmos das espessas cuspidelas amarelas que as mulheres
lançam contra o Iulo. Inventei regras para o proteger até no interior
do palácio. Tem de me procurar em silêncio, sem que mais ninguém
o veja. Se um soldado ou uma escrava atravessam a divisão onde
ele segue o meu rasto, tem de encontrar um esconderijo antes de o
surpreenderem. Vivemos assim há dias, invisíveis para os outros,
como animais que fogem velozes para as suas tocas.
Uma greta que parece um raio desenha o seu ziguezague na
vasilha e alarga-se mesmo à altura dos meus olhos. Vigio a cave,
banhada em luz ténue, através desse pequeno olho mágico. Baixo-
me para observar as vigas escuras das quais pendem ganchos com
reses a esvair-se em sangue. Pelos corpos abertos de cima para
baixo resvalam gotas escuras, e caem, e à volta dançam as moscas,
pretas e gulosas, com um monótono zumbido.
Ouço uns passos. Deixo as costas deslizarem pela parede
arredondada da vasilha e abraço as minhas pernas. A fresta permite-
me ver os pés de um homem e a orla de uma elegante túnica. O
desconhecido, impaciente, caminha de um lado para o outro da
despensa. Uns dedos peludos espreitam entre as tiras das sandálias.
Não consigo tirar os olhos deles, fascinada pelo nojo, estremecendo
devido a um mau augúrio. Imagino que uma fera, erguida sobre as
suas patas traseiras, anda a rondar farejando o meu esconderijo.
Sentindo-me ameaçada, contenho a respiração. De repente,
precedido por um golpear apagado, chega outro par de pés calçados
com botas de guerreiro.
— Querias ver-me? — diz o recém-chegado.
— Sim. Preciso de falar contigo — responde a fera, com uma voz
familiar que não consigo reconhecer.
— Estranho lugar para uma conversa. A que é que se deve tanto
secretismo? — pergunta o dono das botas.
— És um homem corajoso e respeitado entre os guerreiros da
cidade. Sempre te tive em grande consideração. Agora quero
confiar-te uma missão perigosa.
— Porque é que não recorres a um dos teus sequazes?
— Se o fizesse, e o meu homem fracassasse, brilharia como a luz
do dia o facto de eu ter dado a ordem. A minha inocência deve ficar
a salvo.
As botas do guerreiro recuam.
— Trata-se de cometer um crime? — murmura.
— Um crime? Não, meu amigo. O que é que se pode censurar ao
homem que mata um cão raivoso pelo bem de todos? — diz a fera.
— Fala-me sem enigmas.
— Quero que acabes com o Eneias, o troiano. A Elisa planeia
convertê-lo em rei de Cartago. Se permitirmos que suba ao trono, o
sangue vai ser derramado. Ao eliminar essa ameaça, salvarás vidas e
livrarás a cidade de males terríveis.
Durante um instante reina o silêncio. E então, com uma labareda
de pânico, vejo o Iulo entrar na despensa, com os passos leves e os
olhos muito abertos, vivaz como um cão de caça. Desconfiando da
presença de estranhos, obedece às regras pactuadas e esconde-se
atrás de uma fila de talhas seladas que contêm vinho de uva, de
romã e de tâmaras.
A conversa continua. Mordo os lábios fazendo um esforço para
reprimir o tremor que percorre as minhas pernas.
— Como é que queres que o estrangeiro morra?
— Trama tu mesmo o plano. Se eu não conhecer os pormenores,
dificilmente me incriminarei. Mas atua com celeridade. Que a terra
se tinja com o sangue do troiano.
O Iulo abandona silenciosamente a proteção das grandes talhas.
Procurando-me entre os vultos de mantimentos, ignorando o perigo,
aproxima-se de um grande boi esfolado que está pendurado num
gancho, escurecido pelo esvoaçar de uma nuvem de moscas. Várias
gotas de sangue tremem nas entranhas do boi, antes de salpicarem
a cara do Iulo, que sorri e levanta as mãozinhas no ar por baixo do
suave chuvisco vermelho. Do interior da minha vasilha, faço-lhe
agónicos e inúteis sinais de silêncio. Grandes lágrimas de suor
escorrem pela minha cara.
— O que é que eu vou ganhar com isso? — pergunta o guerreiro.
— Vou pagar-te, com generosidade e por adiantado, em ouro e
opulentas peças de marfim. E vais ganhar a minha gratidão. Está na
minha mão ascender-te a cargos de comando nos exércitos.
Observo com terror que o Iulo continua absorto na sua
brincadeira. Levanta a cabeça por um instante. Enche as bochechas
de ar e volta a procurar-me entre as cestas de nozes, de romãs, de
figos secos, de ovos de avestruz, de coentros e cominho preto para
temperar. Com passos silenciosos espreita para os recantos de
escuridão entre os recipientes de ervilhas secas e lentilhas. Os
toques ténues e leves da sua túnica ecoam com estrépito de trovões
no fundo do meu estômago.
— Se percebi bem, não tenho escolha — murmura o guerreiro.
— Mandei assassinar homens muito mais poderosos do que tu.
Não duvidaria em esmagar-te como a um verme — gaba-se a fera.
— A morte do Elibaal, o Arco, foi obra tua?
— Não vou descansar até ocupar o trono de Cartago. Tirei do
meu caminho todos aqueles que se interpunham.
O Iulo afunda a mão numa ânfora cheia de mel e começa a
saboreá-lo com suaves lambidelas. Sinto que o meu corpo me pesa
como uma esponja ensopada em água, tenho o peito oprimido pelo
medo. Desesperada pela temerária inocência do Iulo, adivinho com
terror que a fera que nos ameaça se trata do Escudo. Agora
compreendo a colheita de estranhas mortes, a seara de homens
ceifados nas nossas terras durante as últimas luas.
— Que quantidade de ouro e marfim vou receber? — pergunta o
guerreiro.
— Sabia que podia confiar em ti, és um corajoso de pura cepa.
Não te preocupes, vamos chegar a um acordo. Sou generoso para
com os meus servidores.
De repente, os meus piores receios tornam-se realidade. O Iulo
tropeça e faz cair um cesto a transbordar de búzios armazenados
para fabricar tinta púrpura e índigo. Os moluscos espalham-se
ruidosamente pelo chão. O som morre num súbito silêncio, como
aquele que se segue ao brusco cessar de uma tempestade.
— O que foi isto? — grita o Escudo, e os seus pés povoados de
pelo viram-se na direção do Iulo.
Os dois conspiradores lançam-se sobre ele. O Escudo agarra-o
pelo braço. Consigo ver como as suas escuras unhas penetram na
pele delicada. O Iulo contorce-se.
— É o menino troiano. O que é que fazemos com ele?
O meu coração palpita desenfreado. Tenho de sair do meu
esconderijo para ajudar o Iulo. Contudo, não vejo qualquer
possibilidade de escapar dos punhos enormes dos dois homens. Os
meus dentes tremem. Quando me endireito, sinto a urina quente a
correr pelas minhas pernas e a encharcar o fundo da vasilha. Os
meus pés escorregam e caio, ensopando-me no meu próprio chichi.
Choro de medo e humilhação.
— Não passa de uma criança. Nem sequer percebe a nossa
língua — diz o guerreiro baixando-se sobre ele. O Iulo geme como
um cabritinho assustado. — Está a sangrar? — pergunta ao ver os
regueiros vermelhos que atravessam a sua cara.
— Merece uma lição — diz o Escudo.
Inesperadamente, os soluços do Iulo ficam abafados por um
prolongado relincho, um grito de pânico quase humano. Um clarão
branco cruza-se em frente da claraboia.
— O cavalo da rainha voltou a fugir. Nestes dias parece estar
enlouquecido por alguma febre estranha. Tenho de apanhá-lo e levá-
lo de volta aos estábulos — diz o guerreiro, empurrando o Iulo para
um canto, enquanto se dirige para a saída.
O Escudo mete-se no seu caminho.
— O nosso acordo fica selado?
— Fica selado. Não te vou defraudar.
Um momento depois, os dois abandonam a despensa. Os seus
passos afastam-se de nós. Molhada, fedorenta e exausta, ouço o
ressoar dos cascos do cavalo que corre apavorado, como se
estivesse a galopar sobre as cinzas do nosso mundo.
O Iulo desata a chorar. Pouco a pouco, as suas lágrimas tingem-
se de sangue.
VI. SE ALGUM PODER TÊM OS MEUS VERSOS

Vergílio

Os copos de vinho misturado com resina que bebeu não o


transportaram para os territórios do olvido, só lhe provocaram ardor
de estômago. Paga a sua conta metendo-se entre dois homens com
aspeto de especuladores que murmuram de cotovelos no balcão.
Quando abandona a taberna, o velho de barba branca levanta-se,
sacode a sua túnica e fita-o. É evidente que irá atrás dele sem
perder o seu rasto, como um lebréu de caça.
Deambula por ruelas sinuosas, vazio de pensamentos, atordoado
pelo mal-estar no seu estômago. O seu olhar detém-se
sucessivamente num cão vagabundo que fareja entre a imundice
derramada no regato, na galinha coxa que vagueia a bicar no pó, no
oleiro que faz girar o torno e com as suas mãos molda o ventre
ondulante de um cântaro, no escravo que se alimenta dos restos do
prato dos seus amos a chupar um peixe meio comido e um molho
frio, na mulher que varre a calçada em frente da sua porta como
ditam os regulamentos de limpeza. Ao passar em frente de uma
lavandaria de lãs, urina numa talha lascada. Os tintureiros colocam à
porta das suas lojas grandes vasilhas para que os transeuntes as
encham da urina com a qual se branqueia a roupa e, por isso, o
cheiro acre e nauseabundo dos urinóis de rua espalhou-se por toda
a cidade.
A tarde avança e os habitantes de Roma encaminham-se para as
termas. O mais razoável seria regressar à segurança da sua casa no
Esquilino e tentar ditar alguns versos antes de o dia declinar, mas
mais uma vez desiste, deixando-se levar pela multidão que se dirige
aos banhos. Sente-se suado, sujo, precisa que a água apague o
fedor do seu corpo. Para além disso, durante o trajeto pela sala de
vapor e os banhos quentes, mornos e frios, entre a multidão e os
mergulhos, talvez consiga enganar o seu perseguidor. Dirige os seus
passos para o Campo de Marte adiando, mais uma vez, o momento
de escrever.
Vira a cabeça. O idoso da barba segue-o a uma certa distância.
Por um instante, parece-lhe que esta perseguição está a acontecer
num sonho, um desses sonhos nos quais não é possível apanhar
quem foge e o fugitivo também não consegue escapar, e tudo se
prolonga, sem resultado nem razão de ser, pura duração e angústia
para aquele que dorme.
À medida que se aproxima do edifício das termas, é rodeado por
enxames de mendigos, curandeiros e adivinhos. Os vendedores
ambulantes apregoam as suas mercadorias aos gritos enquanto os
quiromantes tentam agarrar nas suas mãos para lhe ler a sina. A
escassos passos das portas, detém-se para procurar na sua bolsa o
quarto de asse que pagará para entrar e algumas moedas para
entregar ao escravo que vigia os pertences colocados nos
balneários. Desde o exterior chega aos seus ouvidos o alvoroço das
pessoas que fazem exercício, os gritos diante do roubo de roupas, as
palmadas dos massagistas e a algazarra dos vendedores de enchidos
e doces.
Ao levantar a cabeça, repara num jovem aspirante a escritor que
recita os seus versos diante do ajuntamento reunido à volta dos
banhos. Sente-se invadido por uma compaixão ao ver a expressão
grandiloquente do jovem enquanto declama o seu poema perante a
indiferença que o rodeia. Em Roma, são cada vez mais abundantes
estes aprendizes que, ao não terem dinheiro para alugar uma sala e
organizar uma leitura pública, tentam atrair a curiosidade dos
passeantes na via pública, mendigando um instante de atenção.
De repente, o jovem apercebe-se da sua presença e exclama em
voz alta:
— O que é que os meus olhos veem? É o grande Públio Vergílio
Marão, mestre de poetas e apogeu das nossas letras.
Uma multidão de rostos vira-se para ele, expectantes. Numerosos
dedos apontam na sua direção, ouve murmúrios nos quais julga
reconhecer o seu nome, um idoso desata a aplaudir
intempestivamente. Aflito, renuncia ao banho e decide fugir. Na sua
timidez, sempre pensou que é dececionante para os seus
admiradores. Tem um aspeto demasiado desajeitado e deselegante.
Veste-se desalinhadamente, as suas mãos são grandes como as de
um camponês e, em vez de ser eloquente, balbucia sempre que tem
de falar em público. Da sua boca nunca sai uma dessas frases
comuns que os leitores almejam. Perante os seus seguidores, sente-
se embaraçado como uma criança pequena a quem os pais vigiam,
como alguém que está prestes a ser acusado de um erro e começa a
preparar as suas justificações.
O jovem poeta aproxima-se, a correr atrás dele.
— Os meus cumprimentos, Públio. É uma honra conversar
contigo. O meu nome é Tílio. Como deves ter podido ver, sou
homem de letras.
— Difícil ofício. Desejo-te sorte — murmura ele. Tenta apartar-se
do seu lado acelerando o passo ou detendo-se, mas todas as suas
artimanhas são inúteis. É evidente que Tílio não o deixará partir
facilmente.
Enquanto caminham pela via Sacra, o jovem aspirante fala sem
parar, louvando os bairros de Roma, os seus templos, teatros e
estátuas com elogios intercalados de versos medíocres. Ele cansa-se
com tanta tagarelice e quase não responde. O cheiro repulsivo do
seu próprio corpo parece-lhe agora ainda mais penetrante. Tenta
livrar-se do jovem inoportuno:
— Não quero que te desvies, Tílio. Vou visitar um amigo que está
de cama em Trastevere, longe, ao pé dos jardins de César.
— Vou contigo. Não tenho obrigações urgentes nem me dá
preguiça.
Como resultado da sua mentira, têm à sua frente uma longa
caminhada até ao outro lado do Tibre. Tílio respira fundo e diz:
— Públio, não gostavas de me apresentar ao Mecenas? Ninguém
escreve versos mais rápido do que eu, e até os oradores do Fórum
invejam a minha forma de declamar.
— Se confias nos teus poemas envia-os tu ao Mecenas. Só o
talento te pode abrir as portas do seu círculo.
— Públio, não me negues esse favor. Sei que tu lhe apresentaste
o poeta Horácio quando ainda era um desconhecido, e agora são os
dois amigos da alma. Sem a tua ajuda não vou poder chegar até ele.
Não tenho dinheiro para subornar os escravos da sua casa e dessa
forma conseguir um encontro.
Ele não fica surpreendido por saber que há quem recorra ao
suborno para conseguir uma entrevista com o Mecenas. Na cidade
ninguém ignora que é um dos mais poderosos conselheiros de
Augusto e o responsável pelo recrutamento dos escritores do círculo
imperial.
— A amizade do Mecenas é um privilégio, sei que seleciona com
grande cuidado os seus protegidos — afirma Tílio.
Sente-se incapaz de falar ao jovem sobre a estranha amálgama
de amizade e severas imposições, presentes e diretrizes, dívidas e
espúrios favores que preside o círculo literário.
— Dás-nos excessiva importância. Somos apenas um grupo de
poetas que se reúne para conversar sobre ninharias.
— Se eu me pudesse permitir uma grande casa com uma bonita
divisão destinada a leituras públicas, convidaria as pessoas
importantes para me ouvirem e depois seria convidado para as suas
recitações. Então, tenho a certeza, colheria aplausos.
Ele poderia explicar-lhe que o ronronar das leituras públicas está
longe de ser um prazer, que são longas sessões durante as quais se
leem fragmentos intermináveis de obras sem publicar, aplaudidas
por um auditório de amigos desejosos de agradar e de colegas à
espera de reciprocidade. Mas Tílio faz-lhe lembrar muito esses
autores que, quando chega a ocasião, alisam o cabelo, vestem uma
toga nova, enchem os dedos de anéis e sobem para o estrado
ansiosos por seduzirem com as modulações de voz, os gestos das
mãos e o fogo dos seus olhares, enquanto vigiam pelo canto do olho
a distribuição dos programas, os corpos das escravas e os bocejos
disfarçados dos assistentes.
— Vou fazer o possível para te conseguir um convite para a
próxima leitura que se celebrar — promete.
— Muito obrigado, Públio, és generoso.
Para lá do Templo de Vesta, parece-lhe reconhecer Horácio ao
longe e faz-lhe sinais com a esperança de se livrar por fim de Tílio.
— Saúde, amigo Horácio. Onde é que vais?
— Já sabes que gosto de desfrutar dos prazeres do passeante
indolente.
— Já agora, Horácio, soube que querias falar comigo em privado
— diz, piscando-lhe o olho e fazendo-lhe sinais com a cabeça.
Horácio sorri, jovial. Adivinha a súplica, mas o atoleiro em que o
seu tímido companheiro caiu parece diverti-lo.
— Sim, é verdade, há tempo que desejo falar contigo. Mas
teremos de esperar por uma ocasião melhor, hoje é o trigésimo
sábado do ano.
— A ocasião não podia ser melhor. Não sou supersticioso.
— Mas eu sim. Somos fracos. Para além disso, estou a ver que
estás terrivelmente ocupado com um discípulo mais do que
promissor. Longe de mim interromper as Musas que vos iluminam —
diz, esboçando um dos seus irresistíveis sorrisos.
Abandonado à sua sorte, vê-o partir. Brincalhão e sedutor,
Horácio tem exatamente os talentos que lhe faltam a ele. Desejou
tantas vezes possuir algum clarão do seu humor, da sua capacidade
para agradar, da sua mestria para as ambiguidades e as evasivas tão
úteis na relação com os poderosos.
— Um homem como há poucos — diz o jovem.
— Tílio, deixa-me fazer-te uma pergunta. Porque é que insistes
tanto em dedicar-te às letras?
— É um trabalho admirado por todos. Já ouviste falar do ancião
de Gades, na Hispânia?
— Não.
— Vais gostar da história. O idoso de que te falo veio a pé desde
a sua cidade natal até Roma, viajando durante meses de estalagem
em estalagem pelo pó dos caminhos, porque sonhava ver o escritor
Tito Lívio, do qual conhecia toda a obra de cor. Atravessou mesetas,
florestas e cordilheiras, sofreu ataques de bandoleiros e
estalajadeiros sem escrúpulos, curtiu-se com as noites e os ventos.
Enquanto caminhava, recitava as passagens do seu admirado
historiador. Chegou finalmente a Roma, viu-o, cumprimentou-o e,
sem sequer dar um passo para contemplar o esplendor da Urbe,
voltou para casa. Pouco tempo mais tarde, morreu.
Surpreendido com o episódio, pergunta-se se o idoso de barba
branca que segue os seus passos poderia ser afinal de contas um
inofensivo admirador chegado da província para vê-lo e tocar nele,
como fez um viajante de Cádis por Lívio. Olhando rapidamente para
trás de si, verifica que o seu perseguidor se mantém à espreita sem
descanso.
— Desejas admiração? — pergunta a Tílio.
— Não vou negá-lo, gostava de desfrutar da doçura da fama.
É invadido por uma tristeza profunda. Porque é que homens
como Tílio não podem servir os fins de Augusto? Tílio não hesitaria
em aceitar pedidos de natureza adulatória e realizá-los com
entusiasmo. Porque é que teve de recair nele, que sofre tanto, que
se tortura por se ter vendido, que se sente angustiado pela enorme
responsabilidade?
— Gostava de chegar a ser um grande poeta como tu — continua
o jovem. — Diz-se que estás a compor um poema que será maior do
que a Ilíada.
Cansado de tanto palavreado e elogios interesseiros, ele
responde de forma desagradável:
— Mas o que é que tu pensas, rapaz? O ofício de escrever arrasta
pesadas correntes. Eu sou apenas um criado bem alimentado, um
escravo ao serviço de Augusto para decorar a sua linhagem e ligá-la
às façanhas de heróis antigos. Foram-me concedidas certas
comodidades enquanto cumpro o meu dever, mas não disponho de
liberdade e a vergonha e o medo carcomem-me.
Brusco, como são às vezes os homens tímidos, afasta-se de Tílio
sem hesitar. Enquanto a tarde cai nas águas do rio Tibre, ele
desejaria com todas as suas forças abandonar Roma, navegar
através dos mares e dos séculos até às costas africanas, e, uma vez
aí, dar um nó à volta de Elisa e de Eneias com um fio que nem o
mais afiado dos aços poderia cortar.
VII. CERCO

Ana

Ao amanhecer, disse-lhe, dirige-te à morada de Eshmun, no


templo que domina a cidade do cimo da colina. Aguarda-nos uma
revelação. É plenilúnio, o momento propício para os oráculos. Não te
demores. A notícia é importante e o atraso tem um preço.
Quando a alvorada ainda não nasceu, quando a noite envolve
tudo com a negrura das suas asas, chego à colina sagrada.
Abandonei silenciosamente o palácio, corri pelas escuras ruas o mais
rápido que as minhas pernas magras permitem, segui o trilho que
conduz ao templo entre ciprestes altivos tal como mastros de uma
frota prestes a partir, subi com passadas largas a escadaria,
atravessei o pórtico e, com o coração a bater desenfreadamente,
entrei na grande sala.
Os servidores do templo, ainda a dormirem nos catres, mantêm
alguns archotes acesos, nunca deve haver trevas na casa do deus.
Apodero-me de uma tocha, tirando-a da argola de metal que a
segura ao muro. A chama lança violentas sombras entre as colunas
roxas, entre as romãs e videiras que as decoram.
Trouxe comigo, oculto na cinta da minha túnica, um filtro
preparado com ervas mágicas. A minha mãe ensinou-me a distinguir
os caules de cânhamo, as flores do meimendro, as raízes de
mandrágora, os rebentos silvestres de erva-moura, os arbustos de
beladona, as sementes de papoila-dormideira. Com as suas folhas
sei preparar unguentos, beberagens e incensos, depois de ter lavado
as mãos sete vezes e ter invocado sete vezes a deusa cujo nome
não se pronuncia, a Senhora da Noite Tenebrosa. Conheço bem os
efeitos de cada uma dessas drogas e o seu poder para acalmar a
dor, afastar os pensamentos tristes e desencadear o transe profético.
Sim, a minha mãe sussurrou-me ao ouvido todos os segredos
mágicos que não se podem dizer em voz alta. Hoje vou utilizar uma
droga suave, que adormece o medo, enfraquece as inquietações
como laços que afrouxam e ajuda a receber sonhos. Ao aspirá-la,
encontrarei as palavras precisas e ele abrir-se-á à revelação.
Pego nos copos de aromas do templo e faço arder lá dentro os
meus incensos mágicos. A sala inunda-se de perfumes, brilhos e
suaves colunas de fumo. Coloco em cima da mesa do altar uma
lamparina que arde no espaço vazio de uma concha e junto a ela
espero de pé, seguindo com os olhos as espirais azuladas nascidas
dos meus feitiços.
O medo agita-se dentro de mim como o pião que uma criança faz
girar sem descanso. Neste oráculo dos deuses, do qual eu serei
mensageira, mora toda a minha esperança. É a nossa ocasião de
navegar para longe da guerra e da sua colheita de cadáveres, a
oportunidade de marchar juntos para nunca mais nos voltarmos a
separar. O meu coração quase para quando ouço um barulho
apressado, talvez o vento, ou uns passos.
É ele. Veio. Tem tempo de nos salvar. Aspiro o vento perfumado
até ao mais profundo do peito.
— Aqui estou, Ana, como me pediste — diz.
— Ouve as palavras que se vão pronunciar. Grava-as no teu
coração — respondo.
Depois calo-me, cravando o olhar nas luzes remotas. Quero
deixar tempo para que ele inale os anéis de fumo que o envolvem.
— O que é que tens, pequena? Estás bem?
— Eneias, os guerreiros da cidade estão a tramar a tua morte.
Malco, o Escudo, que deseja reinar, prometeu uma recompensa de
ouro e marfim a um soldado se ele te enviar para a noite do túmulo.
O ataque mortal pode aparecer em qualquer momento, em qualquer
lugar.
Um relâmpago gelado atravessa-se entre os nossos olhares.
— O que dizes é verdade? — pergunta.
— Tens de partir de imediato. Cartago é um lugar maldito.
Lembra-te do teu reino futuro…
Os músculos da sua mandíbula ficam tensos.
— A ambição dos nossos homens e a crueldade do Iarbas
aniquilarão Cartago. Os fados da guerra chamam ao derramamento
de novas lágrimas. Nos fornos da cidade já não se coze pão, só se
forjam armas. As forças inimigas aproximam-se, estão às portas. O
céu cobrir-se-á de setas tão numerosas como flocos de neve. Aqui o
futuro está em perigo. Vai-te embora, Eneias.
Os seus olhos engrandecem, o seu olhar ensombrece. É sacudido
por um tremor.
Começa a apoderar-se de mim um agradável aturdimento. Talvez
tenha feito arder uma dose excessiva das minhas drogas. Como
falar-lhe agora das minhas ânsias de partir com ele nas suas naus
côncavas, como pedir-lhe que persuada a Elisa para zarpar à procura
de terras novas sob outro Sol? O pudor inunda-me e tenho vergonha
de lhe contar os meus desejos. A minha cabeça é uma vertigem, um
torvelinho, as ideias agitam-se dentro de mim. Há uma forma, o seu
segredo…
— Eneias, tu és o filho da deusa do Amor e da Vida, não te
esqueças disso. Não se deve abandonar uma mulher, sozinha à sua
sorte, quando o louco afã de matar sacode os homens. O
arrependimento é terrível.
A luz pisca, assustada, no seu rosto pálido. Os seus traços
dissolvem-se na escuridão, só vejo claramente o brilho dos seus
olhos febris. Já não penso com clareza.
— Estás em dívida… — continuo. Quero acrescentar que a Elisa
lhe salvou a vida após o naufrágio e que eu lha estou a salvar agora.
As palavras saltam da minha boca, desejosa de falar, mas não
avançam mais na minha voz.
— É verdade, é verdade — murmura.
— Afasta o Iulo da loucura do combate. Nenhuma criança devia
crescer no lugar onde a guerra semeia a destruição — digo.
Diante dos meus olhos, o seu corpo desvanece-se, mergulhado
na sombra, e volta a surgir. Vejo redes de fogo a fazerem remoinhos
à minha volta, fios brilhantes penetram na minha pele. Faço um
último esforço, antes de a minha língua se tornar espessa, para
expressar o meu pedido de zarparmos juntos, juntos:
— Leva contigo através das ondas aqueles que confiam em ti,
aqueles que esperam de ti salvação.
A última coisa que vejo com clareza são as suas mãos, colocadas
sobre o altar.
— Reconheço a mensagem dos deuses — sussurra.
De repente, os vapores brancos que sobem até ao teto ganham
uma forma humana e rodeiam-me. Brotam rostos do fumo, pairam
ameaçadores. São espectros que me perseguem, tentando abraçar-
se a mim. Corro apavorada até à câmara secreta do deus, fora do
olhar do Eneias. Ali, na divisão sagrada no fim das escadas de
bronze, atrás da porta de marfim, deixarei de aspirar a droga e as
horríveis visões abandonar-me-ão. Entro e desfaleço. Respiro
estendida no chão. Os meus olhos, quentes e pesados, fecham-se.
Caio suavemente nos abismos do sono.

Eneias

Estão a tramar a minha morte.


Entre as colunas do templo vazio retumbam os ecos das palavras
terríveis, borbotões de som que se expandem como um rio que
inunda gradualmente o vale que o alberga.
Querem que a terra beba o meu sangue.
A Ana fita-me imóvel, a menina parece ter saído de si própria
para que o seu corpo seja ocupado por outro. Às vezes fica tensa e
sacode a cabeça, mas é dominada por uma força misteriosa. O deus
está aqui e fala pela sua boca.
— Eneias, tu és o filho da deusa do Amor e da Vida, não te
esqueças disso — diz a voz retumbante. Tenho a sensação de que se
dirige a mim desde muito longe, saindo da escuridão.
Nas minhas orações, pedi aos deuses um sinal, e o sinal chegou.
Nenhum mortal conhece o mistério do meu nascimento. Fico
petrificado. Sou percorrido por um arrepio. O meu pai estava a dizer
a verdade. Uma deusa deu-me à luz e agora os imortais vigiam-me,
protegem-me.
— Não se deve abandonar uma mulher, sozinha à sua sorte,
quando o louco afã de matar domina os homens. O arrependimento
é terrível.
Um frio assombroso gela-me o coração. Lembro-me da Creusa
durante a noite da pilhagem de Troia. Fecho os olhos perante essa
visão. Como pude perdê-la? Morreu sem que uma mão piedosa
estendesse um sudário sobre os seus restos. Imagino-a a flutuar nas
negras águas da morte, a cara dolorida, magoada, as unhas
partidas, a roupa a apodrecer sobre o seu corpo, arrastada por uma
gelada corrente até às extensões infinitas do além.
— Estás em dívida… — a voz do deus soa como o assobio do
vento.
— É verdade, é verdade — sussurro.
Os remorsos com os seus dentes afiados, rangentes, corroem-
me. Continuo em dívida para com os sobreviventes de Troia. Prometi
salvá-los do abismo das nossas desgraças, prometi fundar uma nova
cidade para eles. Os meus homens nunca desejaram permanecer em
Cartago. Tenho de me fazer ao mar e rumar para onde a profecia
nos chama, seguindo os vaivéns do meu destino, para terminar a
tarefa que os deuses me atribuem. Cartago foi um acaso, um desvio,
um perigoso refúgio.
— Afasta o Iulo da loucura do combate. Nenhuma criança devia
crescer no lugar onde a guerra semeia a destruição.
Quero que o Iulo cresça numa cidade onde as portas da guerra
permaneçam fechadas com sólidos ferrolhos. Continuaremos a
navegação pelo desconhecido até arribar a um lugar em que a nova
vida seja possível. Ali o combate não voltará a semear a sua
semente de terror. Ali protegeremos a paz com a sabedoria das leis.
Da velha Troia só restam cinzas e escombros que não voltarão a
erguer-se. O passado é um boi dócil que dá voltas à pedra do
moinho, triturando os cereais das nossas esperanças. O futuro só
germinará como uma colheita em terra nova.
— Leva contigo através das ondas aqueles que confiam em ti,
aqueles que esperam de ti a salvação.
— Reconheço a mensagem dos deuses — respondo.
Aproximo-me do altar e coloco as minhas mãos sobre ele. Dos
copos de incenso brotam baforadas que me deixam atordoado. Rezo
envolvido nos resplandecentes vapores. Quando termino as minhas
orações, apercebo-me de que a Ana desapareceu misteriosamente e
dou por mim, de repente, sozinho no templo. A pequena luz que
ardia sobre uma concha extinguiu-se.
Invadido pela emoção, caminho até às portas. Quanto tempo
passou desde a minha chegada? Então estava tudo mergulhado na
noite sob a lua cheia que marca o tempo dos augúrios, e agora, pelo
contrário, a luz cor de açafrão da aurora, que nos devolve aos
nossos trabalhos e fadigas, inunda o céu. Com os olhos
semicerrados pelo resplendor, contemplo desde o limiar da porta de
marfim o planalto da colina.
Onde é que está o Iulo? Acompanhou-me nas horas negras da
madrugada e devia esperar por mim aqui, sentado entre as colunas
do pórtico.
— Iulo! Iulo! — grito. Só me responde um latido de cães que se
extingue.
Num estranho círculo de tempo, invade a minha memória a
angustiante busca após o naufrágio. Enquanto percorro o labirinto
de colunas e escadarias, cresce em mim a certeza de que Cartago é
território hostil para nós. Com que esperança acreditei que
poderíamos viver entre inimigos?
Os ciprestes da colina assobiam, esbeltos, negros. Embrenho-me
entre as sombras do arvoredo, a pisar a caruma que range. Outra
vez, o medo.
— Iulo, estás aí?
O frio do amanhecer faz-me tremer. Será que há alguém capaz
de roubar uma criança dentro do recinto sagrado? O deus foi
certeiro nas suas palavras: sobre este lugar pesa uma maldição.
— Iulo!
— Pai? — responde-me por fim o guizo da sua voz.
Encontro-o sentado ao pé de um pinheiro, a brincar com
pequenos pedaços de madeira.
— Olha o que construí! — diz, mostrando um pedaço de casca
onde cravou uns raminhos, como um barco prestes a estender as
suas velas e partir.
O sinal confirma-se.
Baixo-me para acariciar o seu cabelo e falar-lhe ao ouvido, quase
num sussurro.
— Iulo, agora eu e tu vamos procurar os homens e, depois, ao
porto. É preciso preparar os aparelhos e ter a frota pronta. Se te
portares bem, quando zarparmos podes sentar-te no banco com o
Palinuro, o piloto, e ajudá-lo a conduzir o leme.
— A Ana também vai poder pilotar comigo? Posso ensinar-lhe —
pergunta.
— A Ana não vai querer partir connosco. Esta é a sua casa. Não
podemos separá-la dos seus.
O Iulo fita-me com uma expressão de irritação, esticando o lábio
inferior para fora. Tenho de lhe puxar o manto para que se levante e
de levá-lo pela mão. Avança pelo trilho de seixos azuis tropeçando,
segurando a sua nau de brincar.
— Ana. Ana. Este barquinho era para ela — repete num sussurro
queixoso. Tem os olhos marejados de lágrimas.
Pergunto-me o que é que a Elisa estará a fazer neste momento.
Será que ainda estará a dormir, com os seus longos cabelos a tapar-
lhe o rosto como uma asa protetora? Ou já se terá dado conta da
minha ausência?

Eros

Nenhum deus, nem sequer o mais pérfido e sabotador, poderia


criar um mal-entendido desta envergadura. Tenho de evitar que
Eneias zarpe. Apesar dos meus esforços e da minha experiência
infinita, os humanos continuam a ludibriar-me, a rebelar-se, a
estragar os meus planos, encontrando escapatórias. Não consigo
decifrar o enigma das esperanças desmesuradas que colocam em
mim e, ao mesmo tempo, o seu afã por me iludirem.
Alertado pela súbita reviravolta da situação, sulco o ar,
escorregando nas correntes da manhã ventosa, para chegar ao pé
de Elisa. Encontro-a no baluarte da muralha ao pé de um grupo de
guerreiros. Todos contemplam, absortos no horizonte vermelho, a
dispersão das tropas de Iarbas à volta da cidade.
— Ao amanhecer avistámos pela primeira vez uma nuvem de pó
longínqua — diz a sentinela. — Achámos que era um torvelinho de
areia, mas depois, ao ver que permanecia uniforme e não parava de
se aproximar dos nossos muros, compreendemos o que se passava.
Elisa observa as ondas de homens que galopam em cavalos sem
rédeas, vestidos com túnicas de pelo de dromedário, poderosamente
armados. Depois olha para as azémolas que transportam cereais e
odres de água.
— Planeiam cercar a cidade — afirma. — Ignorantes! Não sabem
que podemos abastecer-nos por mar. Desafiam as nossas tropas
treinadas nas artes do combate com as suas armas primitivas.
— O que é que ordenas, rainha?
— Assegurem as portas. Quando se aproximarem para solapar ou
escalar a muralha, lancem sobre eles um dilúvio de pedras, archotes
a arder, estacas afiadas e dardos.
Entre as dunas da planície, Elisa vislumbra o acampamento
inimigo, onde começam a erguer-se, alinhados em filas, as primeiras
bandeiras de tecido. Eu pego no seu queixo com a minha mão e
transfiro o seu olhar desde os estandartes de guerra até aos mastros
do porto, ali onde os homens de Eneias se apressam a embrear as
naus para poderem empreender a navegação. A suspeita atravessa a
sua mente com a rapidez de um relâmpago. Uma luz febril espreita
pelos seus olhos.
— Mantenham-me ao corrente de tudo o que acontecer —
ordena aos seus guerreiros.
Abandona precipitadamente o baluarte. Cega, febril, percorre as
ruas que conduzem ao porto. As minhas mãos seguram nela, quase
pelos ares, apressando o seu passo. Acredito que ela vai conseguir
deter a fuga dos troianos.
Encontramos Eneias a dirigir os trabalhos em silêncio,
embrulhado na sua capa, sem participar do regozijo dos outros, nem
sequer com um sorriso. Ilumino uma brecha de esperança. Este
encontro no porto é a encruzilhada de todos os nossos anseios.
Eneias sobressalta-se com a chegada de Elisa. Ao vê-la
aproximar-se, os homens que se esforçavam entre os apetrechos, as
velas e o cordame trepam pelos costados do navio deixando os
amantes sozinhos, frente a frente. Quebrando a solidão do encontro,
descubro a figura estranhamente familiar de um homem de tez
morena e grande estatura que os observa desde a beira do cais, a
uns passos do mar, com olhos de triste intensidade.
— Vais partir sem dizer nada? — pergunta Elisa, com um nó na
garganta.
Eneias permanece em silêncio.
— Aparelhas a frota no inverno, entre o bramido dos ventos —
continua Elisa, exagerando com fins dramáticos e expressivos a força
da brisa. — Estás a fugir de mim? Por favor, pela nossa união, pela
tua lealdade, se me amaste, se encontraste em mim alguma doçura,
ouve-me, muda de ideias, suplico-te.
Eneias fita-a com olhos imóveis.
— Ser-te-ei sempre grato, foste generosa comigo. Mas sabes
bem que nunca te prometi nada nem podes dizer que a minha
língua te mentiu.
— Como é que consegues falar-me assim? — diz Elisa, perplexa.
— Por ti expus-me ao ódio dos líbios e dos nómadas, por ti enfrentei
os meus homens.
O estranho de olhar espectral aproxima-se uns passos na sua
direção. Apodera-se de mim a insólita impressão de que se apercebe
da minha presença, quase poderia jurar que em algum momento
pousou os seus olhos tristes nos meus, procurando apoio. Ainda
incapaz de reconhecer esse rosto suplicante, sinto-me descoberto,
desprovido do meu invólucro invisível. Porém, os amantes continuam
completamente alheios a nós, espectadores privilegiados da sua dor.
— Avisei-te desde o início de que obedeço a uma profecia —
responde Eneias. — Duvidei… mas hoje, ao raiar da alvorada, recebi
a mensagem divina, uma ordem dos céus. Os oráculos mandam-me
partir para Itália.
— De novo Itália? Outra vez essa lenda? Porque é que
abandonas uma cidade já construída para procurar uma cidade que
está por fazer?
O homem de tez morena e olhos magoados começa a caminhar à
volta deles, como um mago que, enfeitiçando-os com a sua dança,
estreita o círculo para os aproximar um do outro. Por Orfeu, que se
embrenhou no reino de além-mundo para resgatar a sua esposa
morta, a presença do estranho parece-me chegada de outro mundo,
irreal e fora de tempo.
— Cartago não é o meu destino, o deus manda-me partir. Não te
tortures nem me atormentes. Parto, mas não por minha vontade.
— Com que então recebeste um oráculo, heraldo da vontade
divina — diz Elisa, incrédula. — Cada um chama deuses aos seus
próprios desejos.
As réplicas sucedem-se a uma velocidade tão vertiginosa que não
tenho tempo de tramar nenhum ardil que os reconcilie. As
discussões dos humanos fazem-me sempre lembrar a Hidra de
Lerna, o monstro do qual brotavam várias cabeças sempre que
Hércules ceifava um dos seus nove pescoços. Não é fácil resolver
este conflito. Eneias, impressionado pelo oráculo, interpreta-o em
termos épicos: a rutura entre a vontade e o desejo, entre a ordem
do mundo e as necessidades interiores, entre o divino inextrincável e
os sentimentos secretos. Pelo contrário, Elisa suspeita de que a
profecia sagrada é um mero pretexto para enobrecer o abandono
devido ao tédio, à indiferença, à juventude de Eneias e às suas
ânsias de sulcar os mares em liberdade.
— Concede-me pelo menos um breve alívio, não zarpes ainda —
suplica Elisa depois de uma pausa de silêncio. — Só te peço um
pouco mais de tempo, Eneias, uma trégua para a minha dor, até que
aprenda a suportar a ideia da tua partida.
— Não te enganes. Não serviria de nada.
De repente, a minha memória eterna lembra-se do nome do
poeta de olhos doces e melancólicos que contempla a cena
circulando em redor de Elisa e de Eneias com a orbita aflita dos seus
passos. Desde os séculos vindouros, Vergílio espreitou para esta
história.
— Se pelo menos me deixasses um fruto do teu amor — continua
Elisa, abraçando-se à barriga e baloiçando o seu corpo, com o olhar
ausente. — Se visse um pequeno Eneias, que se parecesse a ti, pelo
menos no rosto, a brincar no palácio, não choraria assim a tua
partida.
— Elisa, não posso escolher. Os fados não me permitem viver a
minha vida. Tenho de encontrar um território para os troianos
noutras praias.
— Dei-te abrigo quando eras um náufrago, salvei as tuas naus,
salvei os teus homens da morte, ofereci-te parte do meu reino e um
lar seguro para o teu filho. E é assim que mostras a tua gratidão?
Será que o meu zelo e cuidado, a hospitalidade dos meus abraços, o
calor das minhas carícias não servem de nada?
— O meu caminho está traçado.
Os olhos de Elisa percorrem-no de cima a baixo com fúria.
— Então, não te retenho nem te suplico mais. Vai para Itália, nas
asas dos ventos! Procura os teus reinos nas negras ondas! Só peço
aos deuses que o meu nome te atormente e que, quando a gelada
morte me levar, vejas o meu fantasma vingador nas trevas da noite.
— Cheguei a estas costas a fugir de dez anos de guerra, morte e
pilhagem — explica Eneias com a voz trémula. — Prometi aos meus
homens construir uma cidade justa onde as leis fossem mais fortes
do que as espadas. Por isso avisei-te contra os ventos de sangue
que açoitam estas terras, por isso te aconselhei a conquistar a
amizade dos povos vizinhos com embaixadas e pacíficas caravanas
de comerciantes. Mas tu e os teus homens preferiram a arrogância
das vossas armas que julgam invencíveis. Invocando os deuses do
combate, enviaste-me para uma expedição punitiva e de pilhagem.
Aqui tens a guerra desejada. Vocês são superiores, vencerão os
nómadas e apoderar-se-ão dos seus pastos e dos seus rios, mas
nós, derrotados em Troia, não albergamos no coração uma audácia
e uma soberba tão grandes. Eu já vivi tudo isto. Não é aqui que
quero que o meu filho cresça.
— Mal consigo acreditar nisso, nem sequer tens uma lágrima
para a minha dor. Vou-me embora. Não quero ouvir nem mais uma
palavra da tua boca — afirma ela, embora deseje acima de tudo que
ele a chame, adiando a separação. Mas nenhuma voz pronuncia o
seu nome e Elisa deixa o cais pálida e inconsolável.
Oscilo entre o assombro e a frustração. Os humanos amam-se
entre si de maneiras tão imprevisíveis… Porque é que, no caso de
uns, as dificuldades os levam a obstinar-se, enquanto no que se
refere a outros os conduzem ao abandono? Porque é que o amor
entre dois efémeros humanos nunca surge com idêntica
intensidade? Porque é que um se apercebe mais claramente do seu
profundo anseio, enquanto o outro fraqueja nos desfalecimentos e
nas intermitências do seu próprio coração? Estranho paradoxo dos
mortais: o amor é uma experiência comum, mas quase nunca
simultânea, o fiel da balança jamais repousa equilibrado.
De costas para mim, Eneias, angustiado, olha para o sol a
refletir-se na água em forma de discos de luz.
Com um gesto derrotado, os olhos mais tristes que alguma vez
vi, Vergílio afasta-se a caminhar entre os homens que preparam os
remos e carregam os últimos mantimentos para a partida. Enquanto
regressa à melancolia dos séculos, ouve-se o retumbar longínquo
dos primeiros tambores de guerra.

Ana

— Os barcos fazem-se ao mar sem nós!


Afundo a cabeça entre os joelhos da Elisa. Ela acaricia-me o
cabelo. Ainda sinto a vertigem e os eflúvios das ervas sagradas.
— Minha menina, eu própria mal consigo acreditar nisso, mas é
assim, abandonam-nos. Tens de aprender que todas as esperanças
estão tecidas com fumo.
Tremo. A onda quente do pranto ascende, deixando-me a
garganta em tensão.
— Supliquei-lhe diante do altar do deus Eshmun que nos levasse
para longe desta cidade. Quase consigo sentir o cheiro do sangue
nas ruas. Avisei-o do perigo, da ameaça que paira sobre ele… e
zarpa sem mim.
— Perigo? Ana, o que é que estás a dizer?
— Há uma maldição obscura dentro destes muros. Está tudo
tingido de morte. Alguém trama assassiná-lo… e hoje, à alvorada,
revelei-lho no templo. Devia tê-lo dito a ti. Tu terias sabido o que
fazer.
A Elisa segura na minha cara com as mãos, fitando-me com olhos
repentinamente convertidos em gelo.
— Ana, responde-me. Quem é que planeia o assassinato do
Eneias?
— O Escudo… era Malco, o Escudo, a oferecer ouro e marfim a
um guerreiro, não vi o seu rosto, em troca de matar o Eneias sem
demora.
Apertando-me contra ela, fechando os punhos, soluço. Começam
a brotar umas lágrimas que não consigo conter. A brusca dor da
separação inunda-me como uma preia-mar. Acaricio o tecido da
túnica da Elisa e, ao fazê-lo, tropeço com um vulto áspero e duro,
dissimulado por baixo do tecido. Pergunto-me o que é que estará a
esconder.
— O Malco! Tens a certeza de que era ele?
— Disse que o fazia para casar contigo. Disse que já tinha
mandado matar outros homens poderosos.
Levanto os olhos para ela e vejo o seu semblante fechado, a sua
ferida aberta. A dor invade-me os ossos, o abandono crava o seu
ferrão como um inseto furioso. Imagino o Iulo a gritar o meu nome
quando a noite cai e as ondas escurecem. Longe dele, o futuro
parece cobrir-se de trevas.
— Quanto me enganei — exclama a Elisa. — Malco, o Escudo,
urdiu todas essas mortes misteriosas. E pensar que ele derramou
tanto sangue só para me conseguir, enquanto o Eneias me
abandona, esquecendo a minha generosidade, esquecendo estas
mãos que tanto acariciou…
Tropeço outra vez com o objeto escondido. Apalpo a sua forma,
percorro-o, tateio. Pressinto que se trata de algo importante, quero
saber o que é. Cuidadosamente, em silêncio, retiro a túnica. O
tecido revela pouco a pouco a perna nua da Elisa.
— Oxalá a sua frota nunca tivesse naufragado nas minhas costas
— continua a Elisa a dizer, sem se aperceber dos meus cautelosos
movimentos. — Oxalá o deus nunca tivesse apontado contra mim o
seu arco de ouro, ferindo-me com as suas setas. Agora, depois da
partida do Eneias, tudo se tornará numa noite deserta, infestada de
lobos.
Sufoco um grito ao ver o que a Elisa esconde. Preso à sua coxa
com uma correia de couro, descubro um punhal afiado. Os meus
lábios tremem, cerro os punhos.
O silêncio à nossa volta quebra-se de repente. Aproximam-se
passos, vozes profundas sussurram do outro lado das portas.
Alguém está à procura da rainha através dos labirínticos corredores
do palácio. Por fim, o chefe da guarda entra na sala.
— Rainha, trago uma mensagem do rei Iarbas. Reclama que lhe
entregues o trono de Cartago convertendo-te em sua esposa.
Esperará a resposta até ao pôr do sol deste dia que agora galopa
pelos céus. Se não consentires, ameaça apoderar-se da cidade a
ferro e fogo.
Agora volto a ter medo. Abraço a cintura da Elisa, procurando e
apertando a única coluna que resta de pé no meio das ruínas.

Elisa
Deixámos para trás a segurança dos muros do palácio. No nosso
caminho, vejo o vento que conduzirá o Eneias a dançar em suaves
espirais de areia. Diante da porta, ordeno a um dos homens da
minha guarda que anuncie a nossa chegada. As fortes aldrabadas
ecoam e aparece rapidamente um servo.
— Diz ao teu amo que a rainha veio honrar esta morada com a
sua presença.
Os portões abrem-se para nos permitirem entrar. Seguida pelos
passos ressonantes dos meus guardas e o assobio do ar, penetro na
casa entre a pressa dos escravos responsáveis por me mostrarem o
caminho. Avanço com a sensação de cair por um abismo.
Malco, o Escudo, está à minha espera na sala principal.
— Bem-vinda ao meu humilde lar, rainha — diz. — É a primeira
vez que me honras franqueando o limiar da minha porta.
— Grandes sofrimentos se teriam evitado se tivesse vindo antes,
meu estimado Malco, o Escudo — respondo.
As minhas palavras parecem enigmáticas. O Malco fita-me,
debatendo-se entre a satisfação e a incerteza. Impaciente, atravessa
a divisão de uma ponta a outra. O eco das suas passadas retumba
nas paredes.
— Diz-me em que posso servir-te — responde.
— Imagino que já terão chegado aos teus ouvidos as novas
sobre a eminente partida dos troianos, que estão a preparar as suas
naus para zarparem o mais depressa possível — digo, tentando
conquistar a sua confiança.
— Sim, informaram-me dos ignóbeis planos de fuga que o troiano
Eneias quer pôr em prática.
Avanço um passo na direção do Malco. O som do vento perde-se
ao longe. Agora só ouço a sua voz a ressoar como um choque de
espadas.
— Já deves conhecer o ultimato do rei Iarbas… Exige que aceite
casar com ele sob a ameaça de arrasar a cidade caso o rejeite de
novo.
— Fanfarronices! Pura arrogância e temeridade! — exclama o
Malco, a sorrir. Curtido pelo sol, a areia e as constantes escaramuças
do deserto, revela confiança bélica.
— Desde que os troianos chegaram, a cidade foi assolada por
estranhas mortes, por maus augúrios e pela violência dos partidários
do Iarbas, como se uma invisível praga envenenasse a nossa terra.
Temos de acabar com ela, é preciso extirpar a maldição que nos
fustiga. E, para consegui-lo, Cartago precisa de um grande defensor,
um baluarte para a nossa poderosa muralha.
Cravo os olhos nele, tentando adivinhar o efeito das minhas
palavras. Uma expressão de triunfo desenha-se no seu rosto. Dentro
de mim, tudo se afunda no silêncio.
— A minha espada sempre esteve ao serviço da cidade para te
encher de glória, minha rainha — diz.
— A força maligna desta maldição afugentou os troianos. Nestes
momentos de soçobro, tenho de tomar as rédeas e preciso mais do
que nunca de um protetor leal — continuo.
— Dar a Cartago um rei de temperamento guerreiro e forte seria
uma sábia decisão — sussurra. Os seus lábios tremem.
Aproximo-me de novo dele. Nunca tinha sentido o seu corpo tão
perto. Consigo ouvir a minha própria respiração.
— Chegou a hora de engrandecer a cidade e de coroá-la de
vitórias até conseguir que o seu nome seja temido em toda a costa
africana.
— Elisa, as tuas palavras enchem-me de júbilo. Os meus braços
estão abertos.
Permito que me aperte no abraço ritual. O seu hálito toca
levemente na minha pele. O silêncio tornou-se denso, quase
insuportável. Então a minha mão, como se já não fosse minha,
apalpa o cinto da túnica, empunha a adaga que escondo e com um
gesto breve e frio crava-a na sua barriga.
Entre os meus braços, o Malco estremece e exala um leve
gemido não muito diferente dos suspiros do amor. Aqui tens o teu
casamento, sussurro, a noiva é a morte púrpura. O seu pelo eriça-se
como o pelo de um lobo que mostra os dentes. A adaga, guiada pelo
meu braço, atravessa-o de novo. O sangue brota. Cambaleia, os
seus olhos ficam em branco e, quando recebe a terceira punhalada,
desfalece, caindo no chão.
Recuo uns passos com o punhal a gotejar sangue na mão. Os
servidores do Malco, o Escudo, contemplam atónitos a sua agonia.
Ninguém se mexe. A morte chega veloz. Só se ouve o leve rumor
dos dedos do ferido, a dar pequenos golpes convulsos no chão.
— Fiz justiça. Vinguei-me de um assassino — clamo. — Este
homem astuto e insaciável tramava projetos criminosos. Ahiram, o
Dardo, Safat, o Punhal, e Elibaal, o Arco, ajoelharam-se e desceram
ao vazio reino dos mortos por causa da sua ambição desmedida.
Merecia sucumbir assim.
O chefe dos meus guardas, como que acordando repentinamente
de um sonho, dá ordens para me rodearem de forma a protegerem-
me dos servidores armados que guardam a casa. Grata, avanço para
ele e coloco as mãos nos seus ombros.
— Hanão — digo-lhe —, a partir deste momento nomeio-te chefe
supremo das minhas tropas. Tu vais dirigir a guerra contra o Iarbas.
Confio em ti. Derrota o seu exército de nómadas e nativos, esmaga-
os, faz com que as suas entranhas sirvam de alimento aos abutres e
aos corvos.
O Hanão assente. Custodiada pelos meus homens, abandono a
sala. As pegadas sangrentas das minhas solas deixam um rasto atrás
de mim. Ninguém ousa meter-se no nosso caminho.

Eneias

Desembainho a minha espada e corto com golpes rápidos as


amarras. O vento do entardecer palpita nas velas desfraldadas, mas
os meus homens, sentados em filas nos bancos, pegam nos remos
para apressar a partida. Rapidamente cavalgamos na crista das
ondas, descendo e voltando a elevar-nos com um flutuar suave.
Faço um sinal ao Acates, que me observa desde o seu posto ao pé
dos vaus do castelo do Leoa e também ele dá a ordem de zarpar. Os
remadores da sua tripulação obedecem entre gritos de júbilo e
varrem com os seus fortes braços a planície de espuma. Um a um,
todos os barcos da minha frota se fazem ao mar.
De pé, ao lado da grande vasilha de água potável presa ao
gurupés com cordas, respiro o hálito húmido que ascende com a
brisa. Ouço as vozes dos remadores a acompanharem a voga. No
mastro, fixo à verga, o velame voa e estala. O meu olhar detém-se
no céu de poente rasgado por uma última ferida de luz vermelha.
Depois, com tristeza, vou até à popa e, com os cotovelos na borda,
de costas para o homem do leme, contemplo o cais cada vez mais
longínquo. Do porto da cidade, os barcos cartagineses, com os seus
grandes olhos pintados no casco para preservarem as naus das
maldições, parecem fitar-me com muda censura. As nossas naus
desenham à sua passagem incisões prateadas, traços luminosos
rapidamente cobertos pela escuridão das ondas.
O Iulo também escolheu a alta popa para a despedida. Num
canto do convés colocou com cuidadosa formação todos os
brinquedos dos seus dias em Cartago: um búzio de cor malva, o
cavalo de madeira de pinho, conchas, nozes, caroços de ameixa e
uma bola de tecido que a Ana coseu. Defendido pelo seu pequeno
exército infantil, mantém o olhar fixo na cidade que se perde ao
longe. Durante a tarde, no meio da confusão dos preparativos e do
carregamento, entre a reparação da tela das velas e a faina com as
cordas, fugiu sem ninguém ver. Ao descobrir a sua ausência, fui
invadido por uma sucessão de medos: um rapto, uma fuga, uma
tentativa de impedir a nossa partida. Contudo, o Iulo regressou por
sua própria vontade. Após a sua estranha fuga, negou-se a dizer
qualquer coisa ou a comer. Apesar do seu silêncio, consigo ouvir os
soluços que sufoca e o som surdo da sua ira contra mim.
Tal como o Iulo espalhou os seus brinquedos, eu desdobro as
minhas lembranças no crepúsculo. Parece-me ver a pele da Elisa,
morena como a argila de um oleiro, e a fita que usa no seu cabelo
escuro. Regresso à tarde em que, abraçado ao seu corpo morno, no
frio da gruta, contemplava as gotas de chuva a tremer à beira das
folhas das árvores e depois cair de repente, desfalecendo. Com os
olhos da memória recupero a imagem da mulher nómada que
dormiu na minha tenda após o cerco à povoação, o brilho das
fogueiras no deserto, o barco a arder, o cadáver do conselheiro sob
a Lua vermelha, o cavalo branco a galopar em círculos, esporeado
pela ânsia de fugir.
Navegamos velozes, lançando a cada lado da proa duas ondas
luminosas e sussurrantes. Em frente dos muros de Cartago
desenvolve-se uma cena conhecida: o início do cerco. Os guerreiros
do Iarbas cravam robustas varas com ponta de bronze entre as
fileiras de tijolo da muralha, esforçando-se por abrir uma brecha. Ao
pé das fogueiras, os seus arqueiros pegam fogo à ponta das setas
que tiram da aljava e lançam-nas a arder sobre as ameias. As
primeiras tropas de assalto avançam com rapidez levando escadotes
de madeira para treparem pelos muros.
Prepara-se outra guerra inútil, uma nova colheita de cadáveres.
Fiz tudo o que esteve ao meu alcance para evitá-la, mas, contra os
presságios, contra os fados, contra a vontade dos deuses, os
cartagineses desejam o combate, impelidos pelo orgulho que a sua
força e o seu poderio lhes inspiram. Agora compreendo que, ao
zarpar de Cartago, estou a desatar as amarras que ainda me uniam
a Troia, ao velho mundo. Agora sei que estou destinado a fundar
uma cidade nova, amuralhada por leis justas. E, se as forças me
assistirem, a minha tarefa será, no lugar onde encontrar uma
morada agradável para o meu povo, abater o soberbo e lamentar-
me sempre do submetido.
— A Ana virá buscar-me — sussurra o Iulo, tremendo de frio.
Recuo uns passos, pego numa manta e envolvo-o entre os meus
braços.
Acaricia-me uma brisa com cheiro a sal, volto a sentir o ligeiro
toque da esperança alada. Penso que Cartago fazia parte do meu
destino, que nunca me desviei. Talvez sem o admitir, a Elisa me
tenha ajudado a encontrar o meu caminho, a reconhecer o meu
trilho. Os desígnios dos deuses ordenam-se à minha frente como as
estrelas que vão ocupando o seu espaço preestabelecido no alto
céu.
Levanto os braços e murmuro uma nova oração. Livrem-me,
deuses, dos remorsos vingadores, da dor, do pesado fardo do medo,
da pálida doença, da fome, da miséria, da guerra e da discórdia que
agita os seus cabelos de serpentes.
Sim, em Cartago a batalha começa, mas desta vez o meu arco
descansa mudo e alheio ao silvo das setas incendiárias. Ergo os
olhos para o céu de cor azul ultramar, sem limites. Desce sobre mim
o solitário grito das aves marinhas.

Vergílio

Acho que tenho febre. Suo, estou atordoado. À minha volta, as


pessoas sensatas fecham-se nas suas casas, encerram-se e trancam
as portas. Os ferrolhos chiam quando correm sobre os batentes. As
bancas e as tendas dos mercadores de meia-tigela que de dia
invadem os passeios desapareceram com a mesma celeridade. Os
mendigos rastejaram de volta para os seus escuros casebres. De vez
em quando sou assolado pela dúvida e pergunto-me se estou a ver
o entardecer em Roma ou em Cartago, se os partidários de Iarbas
me perseguem ou o inquietante desconhecido de barba branca que
durante todo o dia caminhou atrás dos meus passos.
Mas a forma como a noite cai sobre Roma, como uma ameaça,
escurecendo a cidade com a sombra de um perigo latente, é
inconfundível. A urbe noturna torna-se sinistra. Sem lamparinas a
óleo nem tochas penduradas nos muros, sem o clarão amigável de
uma lanterna no dintel de uma porta, converte-se, toda a gente
sabe, em território de ladrões, assassinos e todo o tipo de homens
violentos. A partir dessa hora até ao amanhecer, ninguém se
aventura a sair sem guarda pessoal ou sem uma volumosa escolta
de escravos. Só as rondas de vigilantes armados e com archotes
acesos fazem lembrar, no meio destas ruelas povoadas por
náufragos da noite sem faróis, que vivemos no mundo ferreamente
governado pelo imperador Augusto, Pai da Pátria, da nobre gens
Júlia, que faz remontar a sua origem a Iulo, o troiano.
Sinto-me doente. Respiro um ar viciado. O estômago não me
deixa em paz. Percorro uma ruela que fede a esgoto e a despojos de
peixe. O sabor do vómito assoma-se à minha boca. Nem sequer
saberia dizer onde estou. O meu coração palpita com violência
quando me apercebo de que entrei num beco sem saída. Não tenho
outra opção do que enfrentar o meu perseguidor, o homem que,
tenazmente, me perseguiu como uma sombra. Esta é a sua
oportunidade. Aqui, por mais que grite, ninguém virá em meu
auxílio.
Porque é que não regressei a casa, à segurança da minha prisão
dourada, enquanto ainda estava a tempo? O que é que me levou a
vaguear pela cidade, sem rumo, sem motivo que o justifique,
dançando uma dança macabra com quem poderia ser o meu
assassino?
O homem da barba grisalha avança lentamente para mim. O luar
envolve-o numa claridade fantasmagórica. Uma grande desolação e
uma nova pena apoderam-se de mim. Apesar do jogo temerário que
me conduziu a esta ruela escura, apesar de tentar a morte, quero
viver. As minhas pernas fraquejam. No rosto do desconhecido, que
continua a aproximar-se, assomam-se umas rugas profundas
escavadas entre as sobrancelhas por uma vida longa e difícil. Junto
as mãos com desespero, esboçando uma súplica. O meu perseguidor
para e fita-me com olhos vazios. Apesar da sua idade, é um homem
vigoroso perante o qual não tenho qualquer possibilidade de defesa.
Porque é que prolonga tanto esta agónica pausa? É a sua vez de
brincar comigo?
De repente, o idoso murmura umas palavras rítmicas e repete-as
com uma voz monótona, profunda e terrível como o eco de um
trovão. Reconheço essas palavras. Que sentido faz tudo isto? Quem
me perseguiria até me encurralar numa ruela tenebrosa para recitar
versos em língua grega?
Uma imagem nascida da febre abre caminho na minha cabeça
atordoada. Fui ameaçado durante todo o dia pelo fantasma do poeta
eterno? Será que o espectro do mesmíssimo Homero pretende
castigar-me por tentar usurpar a sua coroa de louros? O meu
coração palpita em grandes golpes, sinto como os meus pelos se
arrepiam. Tremo. Tenho medo da morte, tenho medo da loucura. A
minha mente está doente? Faço essa pergunta a mim próprio,
rendido pela fadiga e pela angústia.
O idoso continua a repetir o seu refrão. Pela primeira vez, o
significado das palavras penetra na minha mente e capto o seu
sentido. Ilíada, livro VI. Fala da lendária Helena, aflita, durante o
cerco de Troia: «No futuro, os poetas cantarão os nossos
sofrimentos às gerações que estão por nascer.» O verso gira como
um torvelinho na minha cabeça febril. Cantarão os nossos
sofrimentos. De repente, sinto-me iluminado por uma ideia, uma
revelação.
A febre arde dentro de mim. O idoso Homero fica em silêncio.
Depois vira-se sobre os seus passos e afasta-se, desaparecendo na
escuridão.
Atordoado pelo espanto e pela surpresa, continuo imóvel. Os
meus pensamentos galopam sem freio. As guerras caem no
esquecimento, os cantos permanecem. Só o poema fica para narrar
a dor dos vencidos, o destino de quem é atropelado pelos
imparáveis acontecimentos que forjam a História. Aqueles a quem
hoje chamamos heróis foram um dia seres açoitados pela desgraça.
O vinho das lendas brota da vindima do sofrimento. Eu conheço o
sofrimento, a dúvida, o pesado fardo do medo, mas também
experimentei a redenção e o consolo das palavras. Agora eu sei.
Posso escrever este poema.
Encontrei a minha voz.

Elisa

O Sol moribundo está a afundar-se no mar. Rapidamente, em


menos tempo do que demora uma junta de bois a arar um sulco,
terminará o prazo estabelecido pelo Iarbas e o seu ataque terá
início. Despeço-me do dia, despeço-me da paz, despeço-me dos
tempos dourados, da felicidade tão difícil de agarrar.
Procurei a solidão da açoteia do palácio para contemplar este pôr
do sol. A aspereza do fumo arde-me na garganta, as chamas altas
aquecem as minhas costas. Olho para o porto. As naus do Eneias
partem em busca de novos fundeadouros onde lançar as suas
âncoras. Afastam-se, avançando com remos e velas. Os meus olhos
perseguem os barcos fugitivos, vejo as telas tensas nas vergas, vejo
o mar aberto pelas proas. Os mastros rasgam o céu crepuscular, os
negros cascos abrem fendas na água. O vento seca as minhas
lágrimas, enche as suas velas.
Nunca tinha sentido tamanha tristeza. O futuro paira como uma
espessa escuridão, como uma noite de incessante chuva. Ao vê-lo
partir sou sacudida pela fúria e, porém, o desejo de que regresse no
último instante, arrependido, virando as suas naus, revive. Mas não
haverá retorno. Na minha pele desenham-se rugas de dor, a
infelicidade está a enraizar-se no meu rosto.
O Sol já se escondeu na negra distância. Os seguidores do Iarbas
apoiam as suas escadas na muralha e começam a trepar. As tropas
que permanecem ao pé dos muros apoiam o seu avanço lançando
setas incendiárias. Os meus guerreiros entrincheirados atrás das
ameias lançam-lhes caldeirões de peixe a arder. As queimaduras
arrancam rugidos de dor.
Abandonando o parapeito, aproximo-me da grande fogueira que
mandei acender na açoteia. Decidi queimar tudo o que foi do Eneias,
lembranças de dias melhores, estocadas da memória. Desejo ver
como o fogo devora a túnica e o manto púrpura que lhe ofereci,
também o véu bordado que ele salvou da ruína de Troia e quis que
fosse meu. Ao receber alimento, o fogo acalma-se e depois aviva-se.
As chamas esvoaçam e rugem. Elevam-se grandes volutas de fumo.
Agarro com força no punho da espada que encomendei para o
Eneias ao melhor armeiro da cidade. Pergunto-me que destino dar a
uma peça tão magnífica, criada para ser leve e precisa como um
membro vivo, embelezada com uma pedra verde engastada na
maçã. Eu própria, feliz pelo usufruto antecipado da sua alegria, fui à
frágua quando o mestre forjador temperava a lâmina. Nunca mais o
verei a segurar nela.
O estrondo da batalha aumenta. Espreito de novo para o
combate desde a atalaia da açoteia. Vejo um enxame humano que
fervilha, como formigas a contorcerem-se à beira do alvião que
alguém usa para destruir o seu formigueiro. Caem vítimas dos dois
bandos, os homens desfalecem tal como álamos abatidos por um
lenhador.
De repente, chega até mim um eco de latidos raivosos do outro
lado da cidade. Longe do combate principal, o Iarbas conseguiu abrir
uma brecha na muralha e os seus guerreiros irrompem nas ruas.
Elevam-se clamores de morte, misturados com fumo, confusão e
fúria. Brotam incêndios, ardem as vigas de palácios e de humildes
casas, as mulheres correm à procura de refúgio na fortaleza
enquanto as nossas tropas tentam conter o inimigo erguendo
barreiras, onde aguardam emboscadas. Os invasores nómadas, com
o aço pronto para degolar, lançando um cerrado granizo de setas,
abrem caminho e semeiam cadáveres à sua passagem. Assalta-me
um medo gélido. O impossível está a acontecer, somos invadidos.
Será que um traidor, ou um prisioneiro sob tortura, terá revelado ao
Iarbas onde encontrar o ponto mais fraco dos nossos muros? A
morte do Malco debilitou até esse ponto as nossas defesas?
Sempre me compadeci do destino das mulheres que se
convertem em pilhagem de guerra e têm de amassar o pão,
transportar a água e partilhar o leito dos vencedores. Será esse o
meu destino? Que piedade posso esperar do Iarbas se a nossa
cidade cair derrotada?
Reina a escuridão que antecede a saída da Lua. As estrelas
observam com os seus estranhos olhos frios a luta que se trava em
Cartago. Sinto que a noite e os astros são indiferentes à nossa
desgraça. O mundo que eu julguei seguro é assolado pelo luto e o
pavor. Como o vento leva o fumo, assim se desvanece, num só dia,
tudo o que construí.
Tiro os olhos do combate, fixo-os na fogueira que agoniza numa
lenta dança. Apalpo a lâmina da espada abandonada pelo Eneias.
Sou dominada por uma repentina calma. As palavras evaporam-se
na minha boca, todos os meus pensamentos caem em letargia,
exceto um: já navego fora do tempo.

Ana

Tarde, cheguei demasiado tarde. Só vi as popas dos barcos


troianos, terminadas em cauda de peixe, a afastarem-se das nossas
costas. Em alguma das naus, o Iulo mergulhava na distância sem
despedida. Agitei o braço até sentir dor apesar de saber que ele não
me podia ver. Um corvo-marinho voou em círculo sobre o mar,
desceu e mergulhou de um salto. O Sol, por trás do fio do horizonte,
fechou pouco a pouco o seu grande olho púrpura e a noite caiu
sobre mim. Perdi rapidamente de vista as velas e o brilho dos
espumosos rastos a branquearem as ondas escuras.
A nossa alegria quebrou-se, disse-me, tal como se quebra um
junco num canavial. Depois vagueei, a tremer e à beira das
lágrimas, pelos arredores do porto, através de ruas desertas, sem
me importar com o destino que guiava os meus passos. Como é que
me puderam deixar para trás nesta cidade maldita onde não nascem
crianças e eu me sinto como um feixe que ganha bolor a um canto?
Chego ao lavadouro onde eu e o Iulo brincámos tantas vezes a
fretar as nossas cascas de noz e a vê-las navegar, levantando com
as mãos uma suave ondulação para impulsioná-las. Dentro da pia, a
água está tão lisa como um telhado. Mas, o que é que boia na
esquina, semioculto entre as sombras? Baloiçando suavemente,
distingo uma pequena jangada de cortiça com uns raminhos
cravados, como um barco de brinquedo. Aproximo-me, pego nela e
acaricio-a em silêncio. As lágrimas ardem-me na garganta. Só o meu
pequeno Iulo é que pôde deixá-la aqui, para mim.
De repente, os meus dedos tropeçam numas estranhas incisões
na madeira do casco que a escuridão não me deixa ver. Não demoro
a encontrar uma lanterna pendurada sobre o dintel de uma porta;
coloco-me sob a cascata de luz oscilante e observo com cuidado os
cortes que antes apalpei. São traços de escrita gravados
desajeitadamente com uma faca, uma mensagem deixada à deriva
no lavadouro, o mar das nossas brincadeiras. Decifro pouco a pouco
os grosseiros desenhos de criança até ganharem sentido: «O Iulo
não esquece a Ana. Procura-me em terra de lobos.»
— Procurar-te-ei — respondo. — Percorrerei a Itália e darei
contigo nem que tenha de me aventurar nos covis dos lobos.
Sento-me no chão com as costas apoiadas contra um muro e
coloco o barco sobre os meus joelhos. Aperto o punho fechado
contra a boca e choro. Não sei quanto tempo passa. Perto de mim
ouço vozes, passos, cascos de cavalo, sons perdidos que vêm das
casas. De repente, um silêncio ameaçador, até a cidade contém o
fôlego. Espero. Algo terrível está prestes a desencadear-se,
pressinto-o. Nos longínquos latidos de cão vibra o terror. Depois,
ouço um prolongado lamento humano, gritos de mulher que rasgam
o ar. Sobre os telhados começam a espreitar línguas de fogo.
O que é que se passa? O meu coração salta de medo tal como
um potro. Levanto-me. Surge da escuridão um pequeno
destacamento de guerreiros, que galopam com a luz do combate
nos olhos. Empunham archotes e armas.
— Procura um refúgio, depressa! — grita-me um deles ao passar.
As tochas dobram uma curva e a luz desvanece-se nos muros.
Com o barco de madeira nos braços, começo a correr para casa. O
desastre, a confusão e a gritaria crescem no meio da noite que
desfigura tudo. Encontro no meu caminho mulheres chorosas, o
fumo dos incêndios encaracola-se no ar. Alguns edifícios em chamas
já mostram a tisnada ossada das suas vigas. Acelero cada vez mais
a minha corrida, mordendo os lábios ressequidos.
Perto das portas do palácio, no declive da colina, algo me faz
estremecer e me enche de frio, como um presságio. O pavor
serpenteia dentro de mim, começo a tremer. Afasto-me para um
lado da rua. Que solitário e fantasmagórico é este trecho do
caminho… De repente, vislumbro um resplendor, uma estranha
claridade a aproximar-se em silêncio. Parece um remoinho de areia
branca trazida pelo vento, ou talvez um farrapo de névoa flutuante.
Reconheço-o quando passa ao meu lado, é a silhueta do cavalo da
Elisa, veloz, luminoso, ágil, dir-se-ia que os seus cascos não tocam
no chão. O alado galope deixa-me vislumbrar uma horrível ferida
que rasga o seu peito, um regueiro espumoso de sangue preto. O
animal, uma sombra branca, cavalga sem rédeas nem sela, livre de
ataduras, em direção ao mar.
Corro às cegas, apavorada. Ouço um bulício de vozes graves e
vejo fogo de tochas. A guarda juntou-se diante da entrada do
palácio para defender a Elisa. Reconhecem-me e deixam-me passar.
Cruzo a soleira, atravesso o pátio da frente, as sentinelas correm a
tranca dos ferrolhos e fecham os postigos atrás de mim. Estou a
salvo.
De sala em sala, de porta em porta, chamo a minha irmã aos
gritos. As escravas, tomadas pelo medo, não respondem às minhas
perguntas.
— Elisa! Onde é que estás?
Subo os empinados e tenebrosos degraus que conduzem à
açoteia.
— Elisa! Se me estás a ouvir, responde-me!
Abro a pequena porta. Diante da balaustrada, uma fogueira
esmorece, inundando o lugar de uma luz que treme como que
assustada. A Elisa está estendida no chão, quieta e pálida. Parece
uma estátua caída. Os seus olhos abertos são dois espelhos escuros
e opacos, dois tanques vazios. Uma espada atravessa o seu peito.
— Elisa!
Abraço-a, tento estancar com as minhas roupas o sangue que
brota, tento guardar nos meus lábios o mais fraco sopro do seu
fôlego. Mas sei que estou agarrada a uma sombra.

Vergílio

À procura do meu caminho sem tocha, às cegas dentro do


labirinto de rampas e ruelas tortuosas e escuras, consegui chegar à
minha casa do Esquilino. É noite cerrada, está tudo em silêncio, os
meus escravos descansam depois da labuta do dia. Contudo, eu,
deitado no leito, agito-me sem repousar; o orvalho do sono não
acaricia os meus olhos, o encontro fantasmagórico não me deixa
dormir. Levanto-me e dirijo-me ao jardim. Vou para o meu recanto
mais amado, à beira do tanque, onde posso admirar as colunas de
mármore do peristilo, os capitéis trabalhados com folhas de acanto e
frutos, as estrelas a tremer nas águas do algibe.
Penso na minha época de estudante, quando abandonei os
ouropéis de Roma para me unir a uma comunidade epicurista em
Nápoles. Nunca esquecerei aquela quinta sob os céus limpos e
quentes da Campânia onde uns jovens com ânsias de se regerem
por outras normas encontraram morada. Ali tudo o que tínhamos era
comum, prescindíamos do luxo para nos habituarmos à simplicidade
e esforçávamo-nos para criar uma pequena sociedade mais justa e
humana, fora do alcance das guerras civis. Parecia-nos a única
forma possível e esperançosa de continuar a viver.
Mas procurar refúgio não serviu de nada, foi inútil. As
turbulências da minha época vieram buscar-me ao lugar onde me
tinha abrigado. Que difícil é salvar-se dos perigos do nosso tempo,
embora nos afastemos do campo de batalha, embora renunciemos
aos emblemas vazios do poder!
O aviso do fim chegou em forma de carta, aquela triste carta
enviada desde a minha casa, na aldeia de Andes. O meu pai e a
minha família iam ser despejados e as nossas terras entregar-se-iam
a veteranos de guerra. Para salvá-los contraí dívidas de gratidão com
Augusto que ainda não acabei de saldar. Sei que os meus idosos pais
perderão tudo se não cumprir e sinto o peso do seu destino sobre os
meus ombros. Este poema será o último pagamento.
Apesar de toda a fama que colhi, apesar de as minhas obras
terem sido adaptadas com um sucesso avassalador ao teatro, apesar
de todos os romanos me conhecerem e de muitos me invejarem, há
sempre na minha boca um travo amargo de fracasso. Forjo a beleza
dos meus versos — e muitas vezes ditando-os —em honra do
terrível soberano de Roma. Corrompi as palavras pondo-as ao
serviço de um homem a quem considero perigoso, os meus livros
lavaram o sangue que mancha as mãos do tirano. As riquezas com
as quais me recompensou não foram um bálsamo para a minha
consciência maltratada e, porém, já não saberia abrir mão delas
porque a minha saúde piorou e preciso de cuidados. Aprendi que a
mesma pessoa pode encarnar a máscara do triunfo e o rosto da
derrota. Acho que acontece algo parecido com o Império Romano,
essa grande conquista erguida sobre tanta violência e tantos ideais
traídos.
«Os poetas cantarão os nossos sofrimentos.» A frase retumba
uma e outra vez na minha cabeça. Agora sei que posso contar como
começou tudo, quando Eneias salvou do desastre de Troia o seu
velho pai e o seu filho pequeno. Quero relatar nos meus versos a
sua fuga, com o som do fogo a crepitar nos ouvidos, no meio do
torvelinho da pilhagem grega. Relembrar os primeiros passos da
grandeza romana, os passos hesitantes de um herói que perdeu a
sua guerra, alguém prestes a ficar arrasado, com um idoso às costas
e uma criança pela mão. Agora sei que a derrota é sempre o ponto
de partida de uma grande história.
Iluminarei a tristeza desta lenda: a viagem de Eneias desde as
chamas de Troia através dos mares, o seu naufrágio nas costas de
Cartago, o amor que o uniu a Elisa, as esperanças de Ana, o suicídio
de Elisa ao ver tudo o que tinha construído e amado desmoronar-se.
Evocarei os lamentos de Ana sobre o corpo sem vida de Elisa, o seu
vão entusiasmo de reconstruir com Iulo os dias felizes de
brincadeiras à beira-mar. Descreverei a partida de Eneias rumo a
Itália, ao comando das suas naus, ainda ignorante da guerra, da
violência e da morte que aí o esperam. Relatarei por último como
edificará uma cidade nas terras do Tibre, mas não viverá o suficiente
para vê-la crescer.
Os meus versos transformarão as dores em música.
Durante meses lutei comigo próprio para dar a Eneias e a Elisa, a
Ana e a Iulo, um final mais doce, mais clemente, mas foi-me negado
o voo livre da imaginação. Nem sequer nos reinos sonhados do
poema posso sacrificar a fundação de Roma em troca da felicidade
de uns amantes e das brincadeiras de umas crianças. Tenho a
obrigação de ser fiel à lenda, de entrar no rio do tempo, de guiar o
meu canto pelo trilho imposto para que aconteça o que aconteceu e
se cumpra o passado do nosso povo. Tal como Eneias, devo
obediência à imperiosa profecia que, na noite dos tempos, decretou
a chegada dos troianos a Itália.
Sinto o sabor dos seus fracassos como se fosse o meu próprio.
Os seus desejos naufragaram como o nosso pequeno paraíso da
Campânia. Levanto a cabeça e contemplo as constelações onde os
sábios astrónomos desenharam as figuras dos heróis: Hércules,
Perseu, Andrómeda, Cassiopeia… É estranho, a lenda encontra uma
nova justiça para os perdedores. Existe um esplendor humano em
todas as nossas derrotas.
«Os poetas cantarão os nossos sofrimentos a gerações que estão
por nascer.» Encontrei o meu caminho nas sábias palavras do velho
Homero. Comporei para Augusto o poema que tanto deseja, com os
meus versos darei vida aos seus antepassados, mas incutir-lhes-ei as
minhas esperanças e não a sua sede de poder. O imperador terá a
sua ansiada homenagem, mas o poema albergará a melodia rebelde
de todas as aspirações não cumpridas. Cantarei ao Império mais
poderoso do orbe quando era apenas o frágil sonho de um náufrago.
Amanhã, com a primeira luz da alvorada, vou começar a escrever.
VIII. DETENHAM AS ÁGUAS DO OLVIDO

Eros

Invisível e translúcido, assisto ao enterro em campo aberto. Perto


daqui ouve-se o canto retumbante do mar e o grito das gaivotas que
sobrevoam a baía na madrugada. Um reduzido grupo de dolentes
amigos rodeiam o pequeno rasto erguido entre a erva, cova habitada
pelo que resta do corpo e o montículo de terra fresca que o cobrirá.
Não sei chorar, mas hoje desejaria partilhar com os homens o
estranho alívio das lágrimas quentes que rodam pelas pálpebras e
caem.
Parece-me assustador, agora que penso nisso, perceber quantos
humanos morrem, geração após geração, acreditando erroneamente
que fracassaram. Imagino que se deva à fugacidade das suas vidas,
à sua falta de perspetiva. Nós, deuses, sabemos que muitas
sementes germinam quando quem as planta já não vive para vê-las
crescer. Os indivíduos morrem e, no entanto, a morte não se ergue
vencedora. A humanidade caminha sob a luz do sol sem nunca ficar
totalmente nas sombras e continua a entoar cantos que fazem
daquilo que se viveu algo memorável. Por isso nós, deuses, não
conseguimos afastar os nossos fascinados olhos desse mundo
efémero.
Na ferida originária do tempo, os humanos encontram a sua
audácia transformadora e graças a ela amam, sofrem, desfrutam,
lutam, lavram, navegam, edificam e, em momentos de repouso,
tecem mitos e lendas para recriarem o seu mundo através dos
relatos. Sem carne nem sangue, caídos em letargia na eternidade,
nós, deuses do Olimpo, sentimo-nos frios fantasmas diante dos
mortais. Em certos momentos de ebriedade provocada pelo néctar e
pela ambrosia, temos a vertiginosa impressão de ser apenas parte
dos relatos humanos, pálidas abstrações que dão sentido às suas
histórias.
A beleza pertence totalmente aos humanos. Refiro-me a essa
beleza rara e comovente das ações generosas, do bem que ninguém
recompensará, do ato justo pelo qual se paga um elevado preço, da
luta perdida de antemão contra adversários invencíveis. Na sua
finitude, os seres efémeros saboreiam todas as delícias: a
intensidade do desejo, a paixão fulgurante, a força transfiguradora
do amor, a possibilidade de arriscar, a fantasia que permite inventar
palavras e imagens para se sobreporem ao caos e, em suma, o
sonho luminoso de viver fugazmente e depois morrer.
Enquanto os coveiros, à luz das tochas, começam a cobrir a fossa
e os golpes de terra tamborilam sobre a urna funerária, medito
sobre o curso serpenteante da história humana, no qual tantas
derrotas aparentes acabam em vitória.
Eneias chegou às margens do Tibre para cumprir o destino que
os deuses lhe tinham confiado. Morreu vítima de espadas e
discórdias, mas, algum tempo depois, muito perto do seu túmulo,
sobre sete colinas do Lácio, floresceu uma civilização que é
recordada pela grandiosa arquitetura das suas leis, que sob o seu
comando unificou todo o Mediterrâneo, que construiu pontes e
estradas para unir os povos que antes vergou. Entre os seus
habitantes, Eneias foi chamado «o pai de Roma». Nem a paz dos
caminhos empedrados, nem a água que corre paciente pelos
aquedutos, nem o baluarte do direito que protege os cidadãos
existiriam sem os seus muitos naufrágios e a sua tenaz convicção.
O seu filho Iulo, grande caçador, esperança dos troianos
emigrados, construiu uma cidade, Alba Longa, e reinou sobre ela.
Contam que ali nasceram dois gémeos que foram amamentados por
uma loba, Rómulo e Remo. Eles traçaram com um arado o sulco em
redor do Palatino e fundaram a grande urbe romana. Séculos mais
tarde, Júlio César e Augusto, membros da gens Júlia, disseram ser
sucessores daquele jovem Iulo que brincou nas areias de uma praia
africana.
Ana embarcou numa navegação pejada de aventuras rumo a
Itália. Depois de naufragar na costa, reencontrou-se com Eneias e
Iulo, que a acolheram no seu palácio. Juntos derramaram lágrimas
por Elisa e pela memória do tempo passado. Um dia,
misteriosamente, Ana desapareceu e nunca mais se soube dela. É
venerada há séculos nas terras do Tibre, onde a evocam como uma
agradável pequena deusa, Ana Perena, que faz biscoitos para livrar o
povo da fome.
Cartago, a cidade construída pela rainha Elisa, converteu-se
numa grande potência mediterrânica, o único adversário capaz de
pôr em perigo a soberania romana ao longo de três contendas, as
Guerras Púnicas, que ceifaram a vida de gerações de jovens
guerreiros. No mais sangrento desses três conflitos, o general Aníbal
cruzou-se com um exército de elefantes nos montes Pirenéus e nos
Alpes. Nunca conseguiu vencer Roma. Do amor interrompido de
Elisa e de Eneias nasceu a maldição que pôs em confronto os dois
povos, mar contra mar, praia contra praia, legião contra legião,
numa pugna encarniçada que os pais, filhos e netos dos netos
herdaram. Mas tudo o que ela construiu e amou perdura na
memória dos homens.
Os coveiros terminaram o seu trabalho. A terra já cobre o túmulo.
Vergílio morreu num desagradável dia de setembro devido a umas
febres. Dedicou, em conjunto, dez anos da sua vida ao poema que
ficará conhecido como a Eneida. Durante a agonia, suplicou com
insistência ao seu amanuense de confiança, um jovem chamado
Eros, que lançasse o manuscrito ao fogo. Estava convencido de que
a sua obra não merecia ser dada a conhecer. Mas Augusto tomou
providências para que a Eneida se salvasse e se conseguisse
publicar. E assim, por ordem do imperador, o último desejo de
Vergílio não é cumprido.
O séquito de dolentes abandona o solitário lugar. O corpo
repousa a duas milhas de Nápoles, onde um dia habitou uma
humilde comunidade epicurista. O epitáfio gravado na pequena
estela, poucas palavras apenas, diz: «Cantei as pastagens, os
campos, os heróis.»
Vergílio, moribundo, não chegou a sabê-lo, mas escreveu uma
obra mais duradoura do que o próprio Império Romano. Não chegou
a saber que, ao longo dos séculos, meninos e jovens vão aprender a
conhecer as silhuetas das palavras e a amar o fulgor da linguagem
com os versos da sua Eneida. Não chegou a saber que, geração
após geração, muitos vão ler e vão amar o seu poema em línguas
ainda por nascer. Eu próprio poderia recitar com a minha perfeita
memória longos fragmentos, e considero uma honra ser uma das
personagens. Confesso que gosto mais da harmonia destes vibrantes
versos do que da monótona e sobrevalorizada música das esferas.
Nasce a primeira luz da alvorada. O meu papel nesta história já
terminou. Dou meia-volta e subo pelos degraus do vento até ao meu
lar na preguiçosa eternidade.

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