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Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
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Tel. 217 626 000
ISBN: 978-972-25-4368-2
Ao meu pai, que zarpou.
Eneias
E esta noite posso dizer, mais uma vez, que estive prestes a
morrer. Ouvi o meu barco ranger. O céu esmagava-nos sobre o mar,
o mar lançava-nos para o céu. Depois achei que o mar e o céu se
partiam aos bocados e se confundiam. Achei que caíamos pelas
fendas dos relâmpagos ou pelos precipícios das ondas.
Nem sequer entendo como é que os meus homens conseguiram
arribar a esta costa com o nosso barco ferido de morte. Esta costa
que, na noite do mar, era apenas um bloco de escuridão mais
profunda, mais cerrada. Surgindo da chuva negra, um porto natural
abriu-se para nós, uma enseada de águas tão calmas que nem
sequer precisámos de amarras para ancorar a nau.
O mar ainda ruge nos meus ouvidos, mas é um eco. A
tempestade está a amainar, as estrelas espreitam abrindo ténues
brechas nas nuvens. Sei que é urgente a tarefa de proteger as
nossas frágeis vidas neste país desconhecido e sei que devo ser o
primeiro a erguer-me da areia onde me deixei cair. Nós, os
sobreviventes, permanecemos aqui, caídos. Sinto uns dedos
húmidos na minha perna às apalpadelas; tocam no meu corpo,
imagino, à procura da segurança de que pelo menos nós
continuemos vivos, a segurança de que esta praia não é a margem
onde os mortos esperam a chegada do barqueiro que os conduzirá
ao outro mundo.
— Eneias… — diz uma voz, que parece de imediato um soluço do
vento. Basta-me isso para me levantar.
— Ouçam-me todos! Ouçam-me todos! — repito, erguendo a voz
por cima do vento que ainda ensurdece. — Sobrevivemos à guerra,
que é a loucura dos homens, e à tempestade, que é a loucura do
mar. Os deuses continuam connosco. Agora não é tempo de
ficarmos prostrados e tremer pelo perigo que já ultrapassámos.
Quero erguer aqui um acampamento, acender um lume que nos
aqueça os ossos e elevar uma oração pelos nossos companheiros
perdidos na tempestade.
Voltamos a ser um exército. A areia esmaga-se sob os nossos
passos. Distribuo tarefas, separo os feridos, mando trazer cereais,
ferramentas e armas do barco. Os meus homens grunhem, insultam-
me entredentes, mas sei reconhecer a nota feroz e alegre com a
qual juram. Chamam-me «cão» e «escória», mas na verdade estão a
perdoar-me. Embora a única coisa que tenhamos feito tenha sido
navegar à procura do lugar onde se concretizará a obscura profecia
e quase não tenham podido desfrutar do descanso dos portos nem
de ter uma mulher entre os seus braços, apesar de tudo isso
continuam fiéis ao seu rei. Uma palavra minha lança-os ao ataque.
Agora, que a morte igualadora recuou, obedecem-me de novo.
Sim, os meus homens estão contentes porque vivemos. O mar
não arrastou até aqui nenhum cadáver, de momento não choramos
ninguém. E um náufrago é sempre um homem alegre, pelo menos
até que se detém para pensar.
O nosso homem do leme partiu o braço, talvez em várias partes.
Golpeado pelas rajadas de mar, o barco balançou para cima e para
baixo e lançou-o contra a borda. Rolou uma e outra vez pelo convés
até ficar ferido. Quando me aproximo dele, agarra-se à minha mão.
— Pai Eneias! — sussurra. É assim que os mais jovens da
tripulação me chamam.
— Salvaste-te — digo-lhe. — Salvámo-nos.
Mas antes de largar a sua mão sou invadido pelo temor de não
voltar a ver o meu único filho. «Pai Eneias…»
O Acates, o meu fiel amigo, conseguiu fazer saltar uma faísca do
pedernal para a lenha e as folhas molhadas. Observo a fogueira que
nasce, observo o Acates com o corpo em tensão, avivando e
protegendo a chama, observo o lume enrolar-se e desenrolar-se no
ar quando por fim é ateado. A partir dessa primeira fogueira
acendem-se outras, em círculo, criando um anel de calor. O fogo é a
nossa primeira vitória sobre o medo e sobre a costa solitária.
O calor desperta a lembrança da fome. Transportamos um cesto
de trigo húmido que se salvou da tempestade. Mãos hábeis ocupam-
se de torrá-lo no lume e moê-lo. Ainda temos água doce e também
odres de vinho trazidos do barco danificado. A noite é invadida pelos
nossos cheiros a povoação: comida, lenha, corpos que suam. O
fumo branco voa até ao céu como um pássaro que estende as asas
e se perde na altitude. E isso preocupa-me: as aves de fumo
denunciam a nossa presença aqui.
Não vou permitir que o bem-estar ao pé das fogueiras nos cegue
diante do perigo que ainda existe. Estamos perante o desconhecido.
Navegámos sem ver o céu nem a terra durante todo o tempo que
durou a tempestade. As nuvens apagaram uma a uma as estrelas e
só nos deixaram a luz da espuma do mar. O vento arrebatou-nos o
governo da nau. É impossível adivinhar a que terra chegámos, entre
que gente estamos, se é uma costa conhecida pelos navegantes ou
está mais além, fazendo parte do mundo inexplorado. Quem sabe
se, ao adormecer, não seremos acordados por umas mãos que nos
imobilizam e prendem, por uma faca na garganta.
Toda a noite haverá sentinelas com os olhos cravados na
escuridão, sem pestanejar. Decido os turnos, distribuo as armas,
marco os postos de guarda com um desenho do meu pé na areia.
Depois afasto-me sozinho para fazer o reconhecimento do
terreno. Quando deixo o acampamento para trás, o vento arrefece a
roupa húmida contra a minha pele. Em mim, veem-se rastos do sal
do mar, como cicatrizes do naufrágio. Movo-me furtivamente entre a
escuridão. Quero chegar até aos escolhos que se embrenham no
mar, delimitando a enseada. Quero procurar na curva do horizonte
as naus da minha frota perdida na tempestade. Será que as outras
tripulações sobreviveram? E o meu filho?
As árvores que cravam as suas raízes na encosta lançam a sua
sombra ao mar. Escuridão a dobrar. Os ramos arranham-me a cara.
Trepo, ando às apalpadelas, mantenho o equilíbrio. Por fim abre-se a
perspetiva. Na débil luz, um céu vazio e um mar que o duplica. Nem
rasto de uma proa ou de um mastro.
Desde que empreendemos a nossa navegação, aconselhados
pelos mais sábios entre os meus homens, eu e o meu filho viajámos
em naus diferentes. «São os últimos da casa real de Troia»,
disseram. «Se naufragarem, teremos mais possibilidades de que pelo
menos um sobreviva», disseram.
Espero não ter vivido para também o perder a ele.
Entorpecido, volto ao acampamento que erguemos no meio do
nada, onde os meus homens me esperam. Agora sei que, mesmo
que encontre o meu caminho através destas costas, vou continuar
perdido. Como é que me posso orientar? Todo o mundo conhecido já
só existe nas nossas recordações.
Ana
Elisa
Eneias
Elisa
Ana
Tenho medo. Quero sair daqui. Não quero ser esta menina feia
de braços ossudos.
Durante as últimas luas cresci muito. Estico-me, trepo para cima
como as parreiras. Tenho as pernas demasiado compridas, sou a
irmã desses pássaros de asas vermelhas que dão cor ao lago, irmã
dos flamingos. Se a brisa brinca com o meu corpo e me levanta a
túnica, verão as minhas pernas magras e os meus joelhos enormes.
E os meus ossos continuam em frente, afastando-se do chão,
puxando a carne, tornando-me mais comprida tal como a tarde que
torna mais comprida a minha sombra.
A Elisa disse-me que dentro de pouco tempo chegará o primeiro
sangue e que não me devo assustar. Mas não percebo bem. Como é
que se abre no meio das pernas essa ferida que não tem cura?
Saberei que já sou adulta quando me manchar com o meu próprio
sangue?
Mas não é preciso ter medo dos estrangeiros chegados do mar.
Escondida entre a multidão, observo e ouço o homem vestido de
lobo. Fala na língua dos reis sobre traições e fugas. Vejo as suas
costas, as mãos inchadas e roxas dentro dos nós de corda, as
barrigas das pernas fortes, as cicatrizes nas suas pernas.
— A tempestade arrastou-nos, rainha — diz o prisioneiro. — Os
náufragos não podem escolher o lugar onde encontram a salvação.
A Elisa, montada no seu cavalo, olha de cima para baixo. Gosta
de falar com os homens desde a altura do ginete. Não quer que
ninguém se esqueça de que é poderosa.
— Valente Eneias — diz, com um sorriso que se vai entristecendo
e uns olhos que vão escurecendo —, eu também perdi a minha
pátria, onde nasci. Eu também fui traída. Conheço essa dor e
também os caminhos do mar e o desejo de construir uma cidade
nova. O teu destino e o meu são parecidos.
Fitam-se.
Uma pedra silva no vento e golpeia a têmpora de um dos
prisioneiros. Recebe o impacto fulminante, agita as mãos atadas que
não pode colocar na ferida, cerra os punhos. O sangue cai, ramifica-
se, atrai as moscas.
Os gritos da turba crescem com ferocidade.
A Elisa levanta a mão para calá-los e depois fala na nossa língua.
— Não magoem os estrangeiros. Não são piratas. São
sobreviventes da Guerra de Troia em busca de uma terra que
possam chamar sua. Lembrem-se de que muitos de nós conhecemos
o destino dos perseguidos. Por isso, desejo oferecer aos troianos o
meu acolhimento e conceder-lhes tempo e ajuda para repararem as
suas naus. Enquanto permanecerem entre nós, as suas espadas
poderão unir-se às nossas se formos atacados na noite.
Olhos frios, rostos hostis, corpos tensos recebem as palavras da
Elisa. Ninguém se mexe, ninguém diz nada. Se alguém dá o primeiro
passo, o do desafio, a multidão criará um motim. Espancarão e
enforcarão os estrangeiros, darão pontapés às carroças, roubarão
ânforas de vinho e cairão adormecidos pela bebedeira debaixo dos
pés dos enforcados balançando-se suavemente no vento.
Eu sei. Vi estes homens fazerem coisas horríveis. Já me gelaram
o sangue outras vezes.
Sustenho a respiração, que treme encerrada no meu peito.
Será que uma menina feia e ossuda poderia detê-los?
Avanço. As pessoas afastam-se. Caminho com passos silenciosos
até ao grupo de troianos.
Quando vivia em Tiro, chamavam-me a filha da feiticeira. Aqui, a
Elisa disse-me: «Tu serás a sacerdotisa-menina de Eshmun, a
adivinha.» Mas será que acreditarão em mim se eu falar em nome
dos deuses? Ou farão troça e lançar-me-ão pedras?
Estou no meio da praça. Estico os braços.
— A hospitalidade é sagrada — digo —, e os deuses amam-na.
Estes homens estão protegidos pelos deuses.
Ponho uma mão no braço do prisioneiro ferido. Depois viro-me
para que todos contemplem a minha figura magra e, sobretudo, a
mancha negra de nascimento na minha cara. A minha cara marcada
desde que saí da barriga da minha mãe.
Diziam que a minha mãe fazia feitiços em frente do lume, que
rasgava animais vivos e que falava com estranhos gemidos aos
mortos. Se acreditaram em tudo isso, agora recearão os poderes
ocultos em mim.
Olhamo-nos, medo contra medo. O seu desejo de matar assusta-
me, a flor negra da minha face assusta-os.
Volto a tocar na ferida do prisioneiro, o seu cabelo colado à
cabeça pelo sangue. Afrouxo a corda que ata as suas mãos
azuladas. Alguns homens viram-se, desatam as mulas e vão-se
embora. Outros seguem-nos. O tempo da violência já passou.
A Elisa desmonta. Com a sua espada corta as cordas que atam os
prisioneiros.
— Sigam-me até ao palácio. As minhas escravas vão preparar-vos
um banho e trazer-vos túnicas novas — diz, porque os troianos estão
sujos e cheiram mal.
O Eneias traduz para os seus homens. Enquanto falam, esfregam
os pulsos e dobram os dedos com dor. As moscas percorrem a sua
pele.
A praça esvaziou-se entre murmúrios de palavras ásperas a meia-
voz. As sentinelas voltaram aos seus lugares. A Elisa aproxima-se e
pega na minha mão. Os seus dedos entrelaçam-se com os meus.
Muitas vezes gostava de abraçá-la tal como abraçava a minha mãe,
escondendo a cabeça entre as macias montanhas dos seus peitos.
Mas sou demasiado grande e por isso ela só me oferece a mão, o
prémio da sua palma morna e dos nossos dedos entrançados uns
com os outros como os vimes de uma cesta.
Fui corajosa. Está orgulhosa de mim.
O Eneias agradece-nos, mas eu distraio-me. As frases longas da
linguagem dos palácios, que dizem uma e outra vez as mesmas
coisas, aborrecem-me. Porém, ouço uma palavra da qual tinha
sentido a falta em segredo desde que fugimos de Tiro, a palavra
mágica e alada. Falam de um menino!
— Rainha Elisa — está a dizer o Eneias —, tenho um filho
chamado Iulo, um menino sem mais família do que eu nem mais
proteção do que a minha. Preciso de saber se sobreviveu à
tempestade. Peço a tua autorização para ir procurá-lo entre os
despojos da minha frota.
A Elisa desfaz a cesta construída pelas nossas mãos e aponta
para o palácio.
— Vem comigo — diz. — Ofereço-te um cavalo e a escolta dos
meus soldados, que conhecem o terreno.
Não os acompanho ao palácio. Deixo a praça a balançar os
braços.
Um menino! Sou invadida pelo riso de pura alegria devido ao som
da palavra.
Atravesso o bairro de pescadores, onde as redes se estendem de
casa em casa como céus rendilhados. Há cheiros de especiarias,
cheiros de cozinha, cheiros de mar. Confundo-me entre os escravos
e os aguadeiros que enchem as ruas.
Conheço um lugar secreto para onde a maré lança os restos dos
naufrágios. Talvez ali encontre os companheiros do Eneias, o
troiano. Tenho de saber se o menino está vivo. Odeio esta cidade
sem crianças, esta cidade onde não encontraremos nenhum idoso de
boca encovada e pescoço magro que cante uma canção de embalar
antiga, esta cidade onde não há cegos, nem aleijados, nem gente
compassiva. Odeio esta cidade de colonos fortes que embarcaram
com a Elisa a fugir de um rei louco. Aqui ninguém brinca, ninguém
conta lendas à volta da fogueira.
Enveredo pelo caminho da ribeira. As palmeiras dançam no ar,
nesse vento morno que levanta e encaracola pequenos remoinhos
de pó.
Aqui as mulheres não têm filhos, vivem escondidas num silêncio
vingativo. Lembro-me de quando os nossos homens as raptaram
para terem companheiras de leito, do pavor daquela noite no Chipre,
das casas em chamas, dos pais e maridos esfaqueados. Agora elas
tecem redes, fazem sandálias, cozem peixe, deitam-se nas camas
dos guerreiros e amaldiçoam-nos em segredo. Na escuridão da
noite, ninguém protege ninguém com o calor do seu corpo.
Acaricio o meu colar de amuletos. Deuses, façam com que o
menino troiano esteja vivo.
Corro com as minhas pernas compridas, a minha túnica esvoaça.
Ao longe, os rebanhos balem. Deixo para trás a cidade, as pedreiras
e as colinas avermelhadas. Não tenho mais forças para correr,
caminho. Estou quase a dar-me por vencida quando distingo luzes
de fogueiras por baixo do negrume dos abetos na falésia. Chega até
mim um limpo cheiro a pinheiros, e a brisa fresca, e a fumo de
lenha. O mar palpita e brilha. Ao atravessar entre as matas
espinhosas, o ar traz ecos de vozes e de ondas a rebentar. Encontrei
o lugar secreto, sei que são eles.
Trepo pelo tronco de uma azinheira que cresce na encosta da
falésia branca. Escondida entre os ramos, vigio e espero. O céu é um
remoinho de cor lavanda e laranja, depois de um amarelo frio. As
gaivotas com as suas asas de foice giram sobre a minha cabeça. Os
estrangeiros entram e saem das suas tendas de peles, acendem
fogueiras, sentam-se a comer em pequenas rodas. Saltam faíscas do
lume. O vento move as sombras dos barcos escorados com os seus
mastros partidos e as velas rasgadas.
Ali está, o menino Iulo.
A brisa levanta camadas de pó dourado. Os últimos raios que
ficaram para trás tornam a areia loura. O menino salta, do alto de
uma duna, e cai sobre os calcanhares. Depois perde o equilíbrio, os
braços à procura de asas impossíveis no ar.
Pela primeira vez desde que cheguei a estas terras, tremem-me
na barriga vagas de riso.
Eneias
Eros
Ana
Eneias
Há horas que espreito entre os canaviais. O frio da noite
desperta-me. De vez em quando, ouço os movimentos dos meus
homens entre os juncos e as espadanas. Eles trouxeram-me até este
veio de água no território ressequido, vêm aqui todos os dias encher
os cântaros e regressam com eles às costas, a caminho do
acampamento.
As estrelas flutuam sobre a minha cabeça e também no rio. Aqui
em baixo, a brisa baloiça-as e às vezes quebra-as com um sopro
mais forte. Lá em cima, tremeluzem com calma.
Tenho entre as mãos o arco pronto, a seta acomodada na
encurvadura, a aljava bem carregada de dardos. Quero que os meus
homens provem outra vez o sabor da carne assada na fogueira. Os
mantimentos que carregámos desde Cartago parecem abundantes
quando o despenseiro mos entrega proferindo imprecações, mas são
escassos ao chegar ao acampamento. É preciso racionar as
provisões. Sei como é que os meus homens se sentem. Têm fome.
Sonham o dia todo com comida. Depois de comerem, ainda têm
mais fome; chegaram a vias de facto por um punhado de tâmaras.
Receio que os soldados enviados pela Elisa para me escoltarem
acabem por nos lançar o pão como se fôssemos animais.
Não devemos permitir que os cartagineses nos humilhem.
Apalpo a corda do arco que ecoa como um chilrear de andorinha.
Começa a amanhecer; a noite afunda-se pouco a pouco no oceano.
Vou mandar construir umas latrinas de madeira e abrir um fosso
num lugar afastado. Não quero que os meus homens sujem a praia.
Que ao chegar os encontremos a defecar na margem ou a catarem
os piolhos uns aos outros. Que a reparação dos barcos comece
assim que possível.
A Terra inclina-se para o Sol e em troca recebe um banho de luz.
O vento traz fluxos de frescura e fluxos mais quentes. O meu ouvido
atento capta o som de uns cascos, os juncos esfregam-se uns contra
os outros com suavidade, um animal avança para o rio. O instinto
move os meus braços levantando o arco, retesa os meus músculos,
aguça-me o olhar. O meu corpo responde sem pensar, reproduz as
antigas sensações do combate.
Chega o veado. A sua pele, sob a luz vermelha, tem uma cor de
cobre. Baixa a cabeça e lambe a água. Aponto para o seu pescoço.
Durante um instante nada se move exceto as minhas recordações, o
remoinho de imagens. Vejo-me em Troia. Disparo uma seta, acerto
no pescoço de um grego, a ponta da flecha emerge do outro lado do
queixo. Desfalece. Um grosso jorro de sangue brota do seu nariz. O
seu corpo retumba no chão, ecoam as armas, resplandecentes,
reluzentes. Sofre espasmos enquanto a morte púrpura se espalha
pelos seus membros.
O veado bebe. Estou a suar, sinto como me humedeço. No meu
arco a morte incha. Diante de mim, de frente, o animal, que só com
um gesto meu rodará aos meus pés esvaindo-se em sangue,
permanece quieto. A seta aponta. Expulso o ar lentamente. Se soltar
o projétil, atravessará a garganta do veado.
O veado alarma-se. Levanta a cabeça, fareja o ar, intensifica a
sua quietude. O meu suor impregna o vento, está a cheirar-me.
Parece-me voltar a ver as poças de sangue na terra de Troia,
durante a luta. Não resta mais do que o sopro de um instante para
disparar. Agora ou nunca. Baixo os braços. O veado empreende uma
corrida alada, saltando com a armação alta. A sua figura veloz
parece prolongar-se no percurso do meu olhar. Perdi a minha presa.
A uma certa distância, as setas silvam. Os meus homens
dispararam. Viro as costas à caça, no azul aquoso da manhã. Apoio-
me no tronco de um amieiro. Um rio acre sobe-me pela garganta,
salta por cima da minha boca, mete-se entre as minhas narinas,
volta a baixar ao meu peito.
Chamam-me. Os meus companheiros de caça abateram três
presas, levam-nas penduradas do ombro. Caminhamos até ao lugar
onde prendi o cavalo que a Elisa me confiou. Carregamos os animais
ainda quentes sobre o seu lombo. Contentes, os outros gracejam e
felicitam-se.
— Não nos esquecemos de como disparar.
— E pensar que ainda estava escuro…
Ao sair do matagal, um vento salgado incha-nos a roupa. Soam
trovões de ondas. O mar embate contra os lados da terra sem
descanso. O sol, escondido atrás das nuvens, deslumbra
dolorosamente. Um aroma fresco de oliveiras invade o meu nariz.
Afasto-me para cavalgar a sós, em silêncio, longe dos meus
companheiros, enquanto regressamos ao acampamento. Baixei o
arco e deixei que outros matassem em meu lugar. Só me resta ficar
calado. O mesmo vento que puxa o mar empurra-me a mim.
Durante um momento desfruto deixando o meu corpo nas suas asas,
os meus olhos protegidos da areia dentro do cotovelo.
Quando começamos a descer até ao mar, explode de repente um
grito furioso, depois outro e mais outro, uma estranha canção uivada
por vozes de mulher. O canto vem de uma povoação de cabanas
onde vivem, fora das fortificações, em refúgios de canas, algas e
lama, nativos de pele escura.
Elisa tinha-me falado deles.
— Estavam aqui antes da nossa chegada, pescavam na enseada
onde construímos o nosso porto — disse a Elisa. — São inofensivos.
Expulsos pela força das armas, como nós, vagabundeiam sem
rumo à procura de angras onde alimentar-se de moluscos. As suas
barcas já não podem sair para pescar no mar cartaginês.
Um grupo de mulheres jovens corre para nós, açoitando as suas
bocas com o chicote da língua, chamando-nos, oferecendo os seus
peitos nus com as mãos num gesto idêntico às estátuas
cartaginesas, tal como deusas caídas na miséria. Viram o
carregamento de carne sobre o nosso cavalo. A fome leva-as a isso.
Aproximam-se de nós para mendigar e oferecer os seus corpos. Os
meus homens protegem as suas peças de caça apontando com o
arco às mulheres.
— Fora, fora. Longe. Não.
Elas recuam. A mais jovem fita-me, a fome refletida nos seus
olhos, e agita o seu corpo magro como aprendeu a fazer, ondulante.
— Lábios doces — diz outra, na nossa língua. Ela, se não todas,
já se deitou com algum dos meus homens em troca de um prato de
sopa aguada ou de uma tira de peixe seco.
Os meus ouvidos demoram-se no arquejo do mar. Enquanto as
deixamos para trás, pergunto-me há quanto tempo os meus dedos
não acariciam o corpo de uma mulher. Pergunto-me quantas
troianas, agora escravas dos vencedores, terão de receber os seus
donos sobre o ventre e entre os seus peitos nus porque já não
passam de pilhagem de guerra.
Quando chegamos ao acampamento, os meus companheiros
esfolam os veados. Dentro de pouco tempo as peles estão
penduradas a gotejar de um poste. Esquartejam e cortam a carne
aos pedaços. As coxas e a gordura brilhante atraem todos os
olhares. Para quebrar o sortilégio de tantos olhos cravados na
iguaria de caça, dou ordens e atribuo tarefas a cada um.
Os meus dedos desenham no ar os perfis de um barracão e de
uma paliçada. Planeio ao detalhe as melhorias do acampamento.
Mando um grupo de lenhadores sair. Inspeciono as ferramentas que
se salvaram do naufrágio. Por último, abro os baús à procura de algo
valioso para oferecer à Elisa em troca dos favores que ainda lhe
pedirei. Encontro um véu com uma orla de acanto dourado que
pertenceu à minha mulher. Calculo o risco de despertar certas
recordações dentro de mim, mas decido-me. Não me resta mais
nada que seja digno dela.
Estou a guardar o tecido nas albardas da minha sela quando
ouço um estrépito de cascos.
— Olhem! — grita um vigia apontando para o caminho que
conduz a Cartago.
Um cavalo sem ginete corre para a cidade, desbocado, com todo
o desespero do terror. Leva um estranho pacote atado à sela.
Monto e saio no seu encalço. Está gravemente ferido. O que
tinha tomado por uns arreios decorados com franjas são enxertos da
sua própria carne. Encurto a distância. Seguro-me na sela. Com uma
mão consigo agarrar nas rédeas e travar o cavalo de carnes
rasgadas. Tropeça, as suas patas da frente dobram-se e é vencido,
fica estendido no chão, palpitante.
Acaricio a sua garupa, evitando as terríveis feridas. Desato o
pacote. Algo redondo, pesado e húmido aparece perante os meus
olhos, envolvido em folhas de figueira. O pressentimento de mais
crueldades detém-me por um instante, mas não posso evitar olhar.
Afasto as folhas ensanguentadas, uma a uma. O meu coração
palpita. É uma cabeça humana, torturada e cortada pelo pescoço.
No ricto da boca reconheço o homem que me insultou durante o
banquete, no palácio. Observo os lábios mortos que me cobriram de
injúrias há apenas dois dias.
Elisa
Eros
Vergílio
Acha que o seguem, que puseram alguém atrás dos seus passos.
Tem a claríssima sensação de que é vigiado.
Mergulhado no rio de cidadãos, escravos e estrangeiros que
fervilha nos becos, tenta confundir-se com a multidão. O barulho
ensurdecedor que começa com a alvorada, quando soam as
marteladas dos caldeireiros e a gritaria dos alunos da escola, parece
capaz de silenciar o seu medo. Por outro lado, sabe que é inútil
tentar esconder-se. A sua grande estatura, os movimentos
desajeitados, o aspeto camponês, permitem reconhecê-lo à distância
e, portanto, vigiá-lo à vontade.
Se existe a mínima possibilidade de o estarem a espiar, devia
renunciar aos seus planos. Devia, mas não o fará. Está cansado.
Viver aqui exige demasiadas precauções ou, para dizê-lo com a
crueldade das verdades dolorosas, demasiado servilismo. Gostava de
voltar aos campos de Nápoles, onde uma vez esteve a sua
verdadeira casa. Pelo contrário, Roma sempre lhe pareceu uma
cidade sinistra, um poço de corrupção cheio de homens
escandalosamente ricos e desgraçados desesperadamente pobres.
Tentando abstrair-se, caminha entre as pessoas obcecado por
Eneias e os seus segredos, quando uma conversa casual entre dois
desconhecidos o arranca dos seus pensamentos.
— Lúcio! Onde é que vais a correr e cheio de pressa como um
rato preso num penico? Cumprimentar o patrão?
— Deixa-me passar, que não quero ser o último a chegar. Já
cumpriste, Quinto? Sim, claro, tu não ficas colado aos lençóis se se
pode encher a bolsa. Espero que continues a enriquecer, mas sem
ficar anafado.
O espetáculo das manhãs, quando os homens saem para cumprir
as suas obrigações de respeito, entristece-o. Toda a gente em Roma
tem um protetor e deve apresentar-lhe os seus cumprimentos
chamando-lhe «amo» todos os dias, antes de começar a sua jornada
laboral, se é que tem a sorte de trabalhar. Entre todos formam o
tecido de uma grande rede de amos e aduladores, por isso a cidade
inteira fervilha num remoinho de visitas. Nesta dança de cortesias
dançada ao amanhecer, o poder de cada homem mede-se pela
quantidade de clientes que vão ter com ele e esperam durante horas
na antessala da sua casa para serem recebidos. Ele, que participa no
vaivém de cortesias tal como o resto, sente dor perante essa
servidão, uma dor que não sabe apaziguar. Quem é que pode passar
sem o donativo diário que o amo paga em troca de uma visita? Para
os advogados sem causas, os professores sem alunos ou os artesãos
sem encomendas, esta gorjeta é a única forma de vida. Os restantes
somam esse dinheiro ao seu salário e sobrevivem. Por isso, se o
amo pede alguma coisa, tem garantida a obediência. É tão simples
como isto, tão inapelável como isto.
Ele serve diretamente o imperador. Um serviço delicado, até
perigoso.
Sente um repentino desassossego na barriga. Sofre do ventre
quase todo o tempo, as suas digestões são pesadas e acres, por
baixo da túnica sente com muita frequência a pele tensa como um
tambor. E, para além disso, há as urgências, como esta que agora o
leva a procurar as latrinas públicas mais próximas. Atravessa com
pressa uma salgalhada de ruas. Tropeça nas pessoas que circulam,
recebe várias cotoveladas, alguém lhe dá um golpe com uma
vasilha, a sandália tachonada de um centurião crava-se no seu pé.
Ofegante, chega aos pórticos, paga um asse ao responsável pelas
retretes e corre para um assento de mármore enquadrado por
relevos em forma de golfinho.
O seu alívio é imenso. Ali sentado, embalado pelo murmúrio da
água que corre pelos regueiros desde o repuxo, sente algo muito
parecido ao prazer. Fecha os olhos. Chegam-lhe fragmentos de
frases; nas latrinas, as pessoas marcam encontros, conversam e
aparecem para tentar a sorte, esperando que alguém as convide
para almoçar.
— Vou apostar pela equipa azul, são os melhores… Vou ao fórum
pedir dinheiro, tenho crédito… gladiadores de meia-tigela… graças
aos deuses, isso acabou, agora há paz… durante os anos de guerra
tornaram-se ricos com as expropriações… o pão está caro, os
vereadores puseram-se de acordo com os padeiros… um homem
bondoso, amigo dos seus amigos, podia cortar as garras a um
pássaro em pleno voo… prefere um asse na sua arca à vida de todos
nós, construiu sobre vigas magras como flautas…
Pensa na paz que voltou. Viveu toda a sua juventude entre
guerras e por isso é que a guerra lhe parecia a própria imagem do
mal do mundo. No meio do horror da luta, escreveu: «Aqui o bem e
o mal confundem-se, tantas guerras no mundo, tantas facetas da
maldade.» Foi o primeiro a cumprimentar a paz, embora a paz
chegasse graças à devastadora vitória de um senhor da guerra que
tinha eliminado todos os seus adversários, um a um. Desde então,
esse senhor da guerra, Octávio, chamado Augusto, proporciona ao
seu povo segurança e esplendor, sem dúvida. Ele acha que os
romanos compraram a paz ao preço da obediência. Não se absolve a
si próprio, quis o fim da violência a qualquer preço, naquela altura,
quando se combatia perto da sua casa. Mas agora nasceu dentro de
si um poço de tristeza ao descobrir, porque também existe, a miséria
da paz, o rosto pacífico do domínio.
Dá voltas de novo no círculo de pensamentos que o obcecam.
Será que terá coragem de se rebelar ou é demasiado tarde para ele,
que já se vendeu ao encanto dos poderosos? O que é que fará
finalmente Eneias em Cartago?
Um homem de dentes pretos senta-se na retrete contígua e
começa a conversar.
— Andas por aqui há muito tempo, amigo. A barriga não
obedece?
— Sofro do estômago — responde ele.
— A mim fez-me muito bem a pele da romã e a resina dissolvida
em vinagre — diz o desconhecido, e liberta os seus gases. — Mas,
claro, como vês o meu estômago soa como um touro selvagem.
Mas, enfim, Públio, nenhum de nós nasceu sem rabo. Não há
tormento maior do que aguentar a vontade…
— Chamaste-me Públio. Como é que sabes quem sou? —
pergunta ele com desconfiança, esticando a mão para uma das
esponjas atadas ao extremo de um pau.
— Toda a Roma sabe quem és.
Depois de se limpar, ele lava as mãos, enxuga a testa e afasta-se.
Atravessa de novo as ruas, cada dia mais estreitas porque os
proprietários constroem habitações em sacadas sobre o rés-do-chão
dos edifícios e alugam-nas a preços exorbitantes. Os inquilinos
desses cubículos têm de usar um escadote para subir. Se não
pagarem o aluguer, apressam-nos retirando a escada, e eles ficam
prisioneiros lá em cima, sem comer, até saldarem a sua dívida. A
vida na cidade é dura. Ele fica indignado quando passeia pelo
labirinto urbano, onde as casas se ampliam com essas construções
frágeis para acrescentarem divisões, até que os moradores de um e
de outro lado conseguem dar a mão desde a janela. Pensou muitas
vezes que, ao urbanizar o ar em todas as direções, Roma vai caindo
pouco a pouco nas sombras, longe da superfície e da luz, como um
lento naufrágio.
Ao evitar uma cadeira portátil que balança nas mãos de uns
escravos, volta a ver de esguelha o homem barbudo de quem
suspeita. Alguém está a segui-lo, não há dúvida, mas não renuncia a
visitar a casa proibida. Apesar de encaixar mal com o seu carácter,
habitualmente tão doce que sofre entre os seus conhecidos troças e
alcunhas no feminino, hoje sente o apetite de uma desobediência.
Talvez o perigo não seja mais do que o preço que deve pagar para
recuperar um pouco de respeito por si próprio.
Aproxima-se de uma velha que vende legumes frescos e diz-lhe:
— Por favor, avó, sabe qual é a casa do Cornélio Galo?
— É forasteiro na cidade? O Cornélio Galo está morto há meses.
Tirou a sua própria vida.
— Eu sei. Disseram-me que agora a mãe dele vive aqui perto.
A idosa começa a andar à frente dele. Guia-o até uma casa e
bate à anteporta.
— É aqui.
Ele paga uma gorjeta. Quando o porteiro espreita, faz-se
anunciar. Depois espera algum tempo porque demoram a pedir-lhe
para entrar.
— Públio, a tua visita surpreende-me — diz a mãe de Cornélio. —
Os amigos do meu filho deixaram de aparecer.
— Fico contente por te ver, Gala. Estás com bom aspeto.
— Fazes troça de mim? Estes meses debilitaram-me muito.
Depois do que aconteceu com o Cornélio, já só me resta esperar —
diz Gala, dobrando os seus dedos enrugados. Ele capta a intenção:
mais um dia é menos um dia, uma conta atrás para a morte. Pensa
que será doloroso ver os olhos dela encherem-se de lágrimas e
também que, com a sua habitual falta de jeito, não conseguirá lidar
com a situação.
— Gostava de saber o que é que realmente aconteceu.
— O Cornélio sabia que Augusto o promoveu e que lhe devia a
sua nomeação como perfeito do Egito. Nesta família não somos
ingratos nem esquecidos, Públio. Alguma vez te escondemos que o
meu marido é um liberto? Não, nunca escondemos as nossas
origens. E, apesar disso, noutros tempos, as pessoas importantes
como tu não nos evitavam.
Ele apercebe-se da sua amargura e aceita-a. Quase inveja essa
dor justa, purificadora.
— Não te evitei, Gala. Há algum tempo que desejava ir visitar-te,
mas estive muito ocupado. Continua, por favor. Contaram-se tantas
coisas incríveis sobre o Cornélio…
— Conhecia-lo melhor do que ninguém, foste seu amigo de
juventude. Nunca se considerou um simples servo de Augusto,
discutiam sobre assuntos de governo. Começaram rapidamente a
circular rumores de que tinha criticado o imperador e o falatório foi
crescendo. Depois disse-se que o Cornélio mandava erguer grandes
obeliscos para celebrar as suas vitórias no Egito, que se sentia um
novo faraó… Foi acusado de alta traição e obrigaram-no a suicidar-
se.
— Lamento, Gala. Desejo que descanse e que a terra não pese
sobre os seus restos — afirma ele.
— A inimizade de Augusto não termina no túmulo. Dizem que
mandou apagar o seu nome até dos teus versos. É verdade que será
publicada uma nova edição dos teus poemas sem o louvor que
escreveste sobre o meu filho?
Sente-se incapaz de responder. Obrigaram-no a trair em público o
seu amigo caído em desgraça, a suprimi-lo da sua obra para evitar
que Cornélio Galo seja recordado através das carinhosas palavras de
alguém que o amou.
— Gala, pouco posso dizer em minha defesa. Fi-lo a contragosto.
Os outros marcam o meu caminho.
— O que é que estás a fazer, Públio? Sempre foste um homem
bondoso. Vais mesmo converter-te no propagandista de Augusto?
As rugas em redor dos seus olhos envelhecidos retêm as lágrimas
antes de as deixarem rolar. Uma luz turva penetra pelas janelas
protegidas com peles.
Ele interroga-se. Seria justo dizer que sim, que sempre quis agir
bem, ou pelo menos escolher o menor dos males, e que os tempos
não o deixaram fazê-lo? Ou era preciso mais coragem, mais energia,
mais integridade do que aquela que ele alguma vez teve?
— Até à próxima, Gala. Espero que tenhas saúde — diz, e sai.
Não tem vontade de voltar à sua casa no Esquilino, a mansão
que lhe ofereceram pelos seus serviços ao imperador. Gala acertou
dolorosamente com a expressão: o propagandista de Augusto. O sol
de outono cai obliquamente, deixando passar esses raios de cor ouro
escuro de que tanto gosta. Deambula sem qualquer fim concreto,
absorto nos seus pensamentos, algo que lhe acontece com muita
frequência nos últimos tempos.
«Todos lutamos pela grandeza de Roma», a frase ecoa na sua
cabeça, mas não sabe se a ouviu nos lábios de Augusto ou se foi o
seu amigo Galo quem a pronunciou ao consagrar-se à luta política e
deixar a poesia só para os tempos de lazer. Foi precisamente Galo
quem lhe apresentou Augusto e o seu círculo. Quando as armas se
calam e a palavra desdobra a sua força, o poder precisa de se
rodear de homens que saibam contar histórias. Augusto
compreendeu-o depressa, rapidamente começou a pedir aos seus
protegidos para escreverem um canto épico para o Império Romano.
Por alguma razão, ele sofreu mais pressões do que os outros. Pouco
a pouco, sem saber como, ficou claro que a temível encomenda
seria para ele.
Detém-se ao pé de um mendigo mutilado que pede esmola num
beco. Ouve a história das suas desgraças e, terminado o relato,
incapaz de resistir a um bom narrador, dá-lhe várias moedas. Afinal
de contas, o pedinte e ele têm apenas as suas implorantes palavras
para seduzir o mundo.
Segue em frente, sem rumo, a sonhar com o passado. Lembra-se
do dia em que Augusto lhe disse:
— Escreve, Vergílio, um poema sobre a guerra, a coragem dos
homens e o destino de Roma. Garanto-te de que nada te faltará
enquanto trabalhares. Mas não me dececiones. Sê leal comigo e
comprovarás o quão generoso posso ser.
Duvida se a conversa foi realmente assim. Acha que pelo menos
a última frase — Sê leal comigo e comprovarás o quão generoso
posso ser — pertence a outro momento, ao dia em que Augusto o
mandou eliminar do seu poema o elogio a Galo. Quando o imperador
fita alguém, gosta que essa pessoa baixe os olhos, como se
estivesse diante do Sol.
Todos esperam uma grande obra, tão grande como a Ilíada, tão
memorável nos séculos futuros. Para que possa criá-la, libertaram-
no de preocupações materiais, ofereceram-lhe uma casa cheia de
luxos, puseram à sua disposição uma tropa de escravos e
amanuenses. A encomenda está paga de antemão, muito bem paga.
Augusto conhece o preço das palavras e está decidido a pô-las ao
seu serviço: «O poderio de Roma fortalece-se graças às suas
tradições e aos seus heróis.»
Apesar do tempo que passou, foi incapaz de escrever uma única
linha à altura da encomenda. Sente-se paralisado. Esta exigência,
este louco e descomunal trabalho é demasiado para ele. Cada vez
que pensa nisso, o seu estômago contorce-se. À noite acorda a suar.
E Augusto começa a ficar impaciente. Desde a Hispânia, onde
está a combater contra os cântabros, o imperador escreve-lhe cartas
a pedir com insistência «o primeiro rascunho do poema ou uma
passagem qualquer». No início era cortês e suplicava, agora utiliza
um tom ameaçador. Reunindo toda a coragem de que é capaz,
respondeu: «Quanto ao meu Eneias, juro-te que, se já tivesse algo
digno dos teus ouvidos, to enviaria com prazer, mas esta tarefa é tão
enorme que quase me parece ter embarcado em algo tão grande
por alienação mental.»
Sabe que não poderá pôr à prova a paciência do imperador
durante muito mais tempo. A campanha cântabra já está decidida.
Augusto fundou as cidades onde se instalarão os seus veteranos.
Uma Emérita Augusta, uma César Augusta e, preenchido o seu afã
de ficar na História através da toponímia, dentro de pouco tempo
regressará a Roma.
Se deu ordens para o seguirem e vigiarem, ao seu regresso da
Hispânia encontrará um relatório detalhado sobre a sua vadiagem
pela cidade e sobre as suas companhias inapropriadas. Assim saberá
que na grande casa do Esquilino os copistas estão inativos, que o
poema permanece estagnado, que a grandeza de Roma não tem
cantor.
Então, o que é que se sucederá à sua pergunta? Treme só de
pensar nisso. Haverá duras represálias contra ele, que talvez
também alcancem a sua família, os seus pais e os seus irmãos.
Será que poderia fazer com que Augusto compreendesse que ele
nunca será capaz de escrever grandes versos sobre as guerras
épicas de Eneias em Itália? Pelo contrário, o poema ganha vida
quando pensa nos remos e nos ventos, à beira de Cartago, batida
pelas ondas, nas constelações que tomam banho no mar, nas feridas
silenciosas, nos vaivéns do destino, no tempo breve e sem retorno,
na branca Lua a iluminar os caminhos, nas espumas da grisalha
ondulação, nos sonhos forjados por aqueles que amam, nas mãos
de Elisa.
III. SANGUE
Eneias
Ana
Eneias
Eros
Elisa
Eros
Ana
Não pares aqui, Iulo. Atrás desta paliçada está o pátio traseiro da
prisão. Anda, anda, despacha-te. Viste que no céu já brilha o
barquinho da Lua?
Viras-me as costas? Agarras-te aos postes para trepar pelo muro?
Do outro lado estão os prisioneiros nómadas. Um deles podia esticar
a mão e agarrar-te… assim! Vamos embora antes que ele te apanhe.
Agora sentas-te no chão, de cócoras, e negas-te a mover-te por
mais que eu puxe por ti. O que é que tens? Este não é um bom
lugar para uma criança, sobretudo de noite. Se me deres a mão
agora, ofereço-te o meu amuleto. Ou, melhor, o meu búzio lilás. Se
lhe tocares por fora é áspero, mas lá dentro tem a suavidade da
madrepérola.
Porque é que te portas assim hoje? Mal quiseste comer, só
lambeste o teu leite como um gato. Zangas-te de repente e olhas
para mim como se eu fosse uma inimiga. Para além do mais, o que é
que esperas ver ao ficar aqui com o nariz enfiado no espaço entre
dois postes? Os escravos estão dentro das suas jaulas de madeira.
Há dois guardas a avivarem uma fogueira. O que é que estão a
fazer? Têm umas barras de metal incandescentes. Também têm uns
ganchos. Não gosto disto. Vou-me embora. Se não quiseres vir
comigo, vais ter de dormir aqui sozinho. Não me percebes, Iulo?
Vou-me embora. Vou-me embora a sério…
Continuas de costas, teimoso. Agora observas no chão a sombra
dos postes, que vira rapidamente. Alguém move uma tocha do outro
lado do muro, isso é tudo. Sim, os guardas estão a entrar numa
cela, carregados com as suas barras e os seus ganchos. Já não há
nada para ver, vamos embora, pode ser?
Julgava que eras um bom menino, mas hoje estás a portar-te
muito mal. Se soubesse que te ias portar assim, não te tinha levado
aos lavadouros. Fizemos esses barcos com casca de noz e um palito
lá dentro a fazer de mastro e uma folha para a vela com tanto
entusiasmo… As mulheres que estavam a pisar a roupa suja nas
pilhas disseram-te coisas com uma voz alegre. Estava tudo tão
bonito… As túnicas, os cintos e os mantos estendidos à beira-mar,
onde a água devolve os seixos mais limpos à terra, secavam com o
último resplendor do sol. As nuvens eram peixes avermelhados que
passavam pelo céu, a nadarem devagar com o vento. E tu?
Começaste a chorar. Deitaste-te de costas e esperneaste. Gritaste
com essa voz aguda que fazes de propósito. E não quiseste brincar.
Sabes uma coisa? Nunca mais te levo. Pensava coser uma bola de
tecido, mas acabou. Se não quiseres olhar para mim nem dar-me a
mão, não haverá bola nem lavadouros.
E esse grito de mulher? Vem da prisão, da cela na qual os
guardas entraram. Outro grito. Mais outro. E agora esse guincho
longo, longo. Sei o que se passa lá dentro, uma prisioneira está a
dar à luz, Iulo. A minha mãe era parteira e chamavam-na sempre
nos partos difíceis. Eu acompanhava-a para ajudá-la e aprender o
ofício, embora naquela altura fosse muito pequena. Quando as
mulheres deitam uma criança cá para fora, gritam muitíssimo.
Contorcem-se e esticam-se de dor. Uivam.
A minha mãe sabia como arrancar-lhes a criança das entranhas
mesmo se o seu corpo se fechasse. Essa mulher da cela teria sorte
se a minha mãe entrasse para ajudá-la, como fazia em Tiro, até que
ela própria teve as dores e o meu irmãozinho morreu na sua barriga
e a levou.
A minha mãe era suave. Acalmava a parturiente com murmúrios
e conselhos, punha o seu corpo na posição adequada, dizia-lhe
como respirar e incentivava-a a empurrar. Eu conhecia os feitiços
para invocar a deusa lunar, eu recitava as palavras e rezava. A minha
mãe nunca usava ferros nem ganchos como os guardas da prisão.
Sim, isto que ouves, Iulo, são os gritos de uma mãe. A tua mãe
também gritou assim, Iulo, enquanto cerrava os dentes e empurrava
e tu vinhas ao mundo rasgando-a por dentro com acessos de dor.
Queres que rezemos pedindo aos deuses pela mulher que grita
na cela? Para que a morte não apague os seus olhos no parto, como
aconteceu com a minha mãe? Sim, reza.
Eu disse-te que o meu irmãozinho que morreu sem nascer teria a
mesma idade do que tu? Perdi-o, mas agora tenho-te a ti.
A minha mãe sabia muitas coisas. Fazia mistelas de ervas, de
mel, de gordura, de peixe, e untava-as nas barrigas das mulheres
grávidas. Eram receitas muito antigas para afugentar os maus
espíritos. Também preparava pomadas para aliviar e dar proteção
mágica. E filtros de amor. E era a única que sabia a fórmula da
poção de mandrágora contra os demónios que tornam estéreis as
mulheres jovens. A Elisa vinha buscar essa poção à casa da minha
mãe, porque a sua barriga se negava a curvar-se. A minha mãe
fazia-lhe massagens, enquanto murmurava ensalmos. Um dia a Elisa
trouxe uma boneca de trapos e ofereceu-ma. Outro dia veio com uns
astrágalos pintados, cada um de uma cor, e brincou comigo,
ensinando-me a lançá-los tal como dados e a saber o valor que tem
cada lado do astrágalo. Também trouxe um guizo em forma de
porquinho para o menino que a minha mãe levava dentro de si.
Notava-se que gostavam de estar juntas. A Elisa aproximava a mão
da barriga da minha mãe e sorria com espanto sempre que sentia os
golpes através da camada de carne.
Quando a minha mãe morreu, a Elisa levou-me para a sua casa
para viver com ela e com o marido. Naquele dia chamou-me irmã e
chorou comigo. Já nunca mais nos separámos, sabias? Desde então,
eu amei-a. Temos o mesmo pai, mas amei-a pelas lágrimas que
chorou pela minha mãe.
A cela retumba, esse grito foi o último. Que silêncio nos rodeia
agora! É estranho, não se ouve o pranto do recém-nascido. É muito
estranho.
Eu disse-te que sei dar banho a um recém-nascido, esfregá-lo
com sal e envolvê-lo numa venda de linho? É o que se deve fazer,
porque todos os meninos veem ao mundo ensanguentados e sujos.
Mas aqui ninguém chora, só há silêncio.
Iulo, acabou tudo, vamos embora. Fico triste ao recordar a minha
mãe com a língua ferida das dentadas, sem forças para me sorrir, as
vagas de dor a passarem pela sua cara, o vulto disforme e
sanguinolento que saiu da sua barriga depois de dois dias de fadiga,
gemidos e gritos.
Acabou tudo, vamos embora. Aqui cheira a morte.
Espera um momento, abre-se uma porta na cerca. Agora foges a
correr? Queres bisbilhotar tudo. Anda cá! Não incomodes esses
guardas que saem a carregar uma padiola. Levam um corpo tapado
com um lençol, não te aproximes. O braço está pendurado de fora.
Vejo uma dessas tatuagens que os nómadas pintam com sumo de
ervas. Uma serpente a enroscar os seus anéis. E, para além disso,
há regueiros de sangue sobre a pele escura desse braço. Deixa-os
passar, vão enterrar o corpo. Agora assustas-te e choras? Não te
tinha dito que este sítio não é para crianças?
Elisa
Elisa
Vergílio
Eneias
Elisa
Ana
Eros
Elisa
Ana
Eneias
Eros
Eneias
Ana
Elisa
Eneias
Ana
Vergílio
Ana
Eneias
Eros
Ana
Elisa
Deixámos para trás a segurança dos muros do palácio. No nosso
caminho, vejo o vento que conduzirá o Eneias a dançar em suaves
espirais de areia. Diante da porta, ordeno a um dos homens da
minha guarda que anuncie a nossa chegada. As fortes aldrabadas
ecoam e aparece rapidamente um servo.
— Diz ao teu amo que a rainha veio honrar esta morada com a
sua presença.
Os portões abrem-se para nos permitirem entrar. Seguida pelos
passos ressonantes dos meus guardas e o assobio do ar, penetro na
casa entre a pressa dos escravos responsáveis por me mostrarem o
caminho. Avanço com a sensação de cair por um abismo.
Malco, o Escudo, está à minha espera na sala principal.
— Bem-vinda ao meu humilde lar, rainha — diz. — É a primeira
vez que me honras franqueando o limiar da minha porta.
— Grandes sofrimentos se teriam evitado se tivesse vindo antes,
meu estimado Malco, o Escudo — respondo.
As minhas palavras parecem enigmáticas. O Malco fita-me,
debatendo-se entre a satisfação e a incerteza. Impaciente, atravessa
a divisão de uma ponta a outra. O eco das suas passadas retumba
nas paredes.
— Diz-me em que posso servir-te — responde.
— Imagino que já terão chegado aos teus ouvidos as novas
sobre a eminente partida dos troianos, que estão a preparar as suas
naus para zarparem o mais depressa possível — digo, tentando
conquistar a sua confiança.
— Sim, informaram-me dos ignóbeis planos de fuga que o troiano
Eneias quer pôr em prática.
Avanço um passo na direção do Malco. O som do vento perde-se
ao longe. Agora só ouço a sua voz a ressoar como um choque de
espadas.
— Já deves conhecer o ultimato do rei Iarbas… Exige que aceite
casar com ele sob a ameaça de arrasar a cidade caso o rejeite de
novo.
— Fanfarronices! Pura arrogância e temeridade! — exclama o
Malco, a sorrir. Curtido pelo sol, a areia e as constantes escaramuças
do deserto, revela confiança bélica.
— Desde que os troianos chegaram, a cidade foi assolada por
estranhas mortes, por maus augúrios e pela violência dos partidários
do Iarbas, como se uma invisível praga envenenasse a nossa terra.
Temos de acabar com ela, é preciso extirpar a maldição que nos
fustiga. E, para consegui-lo, Cartago precisa de um grande defensor,
um baluarte para a nossa poderosa muralha.
Cravo os olhos nele, tentando adivinhar o efeito das minhas
palavras. Uma expressão de triunfo desenha-se no seu rosto. Dentro
de mim, tudo se afunda no silêncio.
— A minha espada sempre esteve ao serviço da cidade para te
encher de glória, minha rainha — diz.
— A força maligna desta maldição afugentou os troianos. Nestes
momentos de soçobro, tenho de tomar as rédeas e preciso mais do
que nunca de um protetor leal — continuo.
— Dar a Cartago um rei de temperamento guerreiro e forte seria
uma sábia decisão — sussurra. Os seus lábios tremem.
Aproximo-me de novo dele. Nunca tinha sentido o seu corpo tão
perto. Consigo ouvir a minha própria respiração.
— Chegou a hora de engrandecer a cidade e de coroá-la de
vitórias até conseguir que o seu nome seja temido em toda a costa
africana.
— Elisa, as tuas palavras enchem-me de júbilo. Os meus braços
estão abertos.
Permito que me aperte no abraço ritual. O seu hálito toca
levemente na minha pele. O silêncio tornou-se denso, quase
insuportável. Então a minha mão, como se já não fosse minha,
apalpa o cinto da túnica, empunha a adaga que escondo e com um
gesto breve e frio crava-a na sua barriga.
Entre os meus braços, o Malco estremece e exala um leve
gemido não muito diferente dos suspiros do amor. Aqui tens o teu
casamento, sussurro, a noiva é a morte púrpura. O seu pelo eriça-se
como o pelo de um lobo que mostra os dentes. A adaga, guiada pelo
meu braço, atravessa-o de novo. O sangue brota. Cambaleia, os
seus olhos ficam em branco e, quando recebe a terceira punhalada,
desfalece, caindo no chão.
Recuo uns passos com o punhal a gotejar sangue na mão. Os
servidores do Malco, o Escudo, contemplam atónitos a sua agonia.
Ninguém se mexe. A morte chega veloz. Só se ouve o leve rumor
dos dedos do ferido, a dar pequenos golpes convulsos no chão.
— Fiz justiça. Vinguei-me de um assassino — clamo. — Este
homem astuto e insaciável tramava projetos criminosos. Ahiram, o
Dardo, Safat, o Punhal, e Elibaal, o Arco, ajoelharam-se e desceram
ao vazio reino dos mortos por causa da sua ambição desmedida.
Merecia sucumbir assim.
O chefe dos meus guardas, como que acordando repentinamente
de um sonho, dá ordens para me rodearem de forma a protegerem-
me dos servidores armados que guardam a casa. Grata, avanço para
ele e coloco as mãos nos seus ombros.
— Hanão — digo-lhe —, a partir deste momento nomeio-te chefe
supremo das minhas tropas. Tu vais dirigir a guerra contra o Iarbas.
Confio em ti. Derrota o seu exército de nómadas e nativos, esmaga-
os, faz com que as suas entranhas sirvam de alimento aos abutres e
aos corvos.
O Hanão assente. Custodiada pelos meus homens, abandono a
sala. As pegadas sangrentas das minhas solas deixam um rasto atrás
de mim. Ninguém ousa meter-se no nosso caminho.
Eneias
Vergílio
Elisa
Ana
Vergílio
Eros