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Table of Contents
Sinopse
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
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PERIGOSAS

Capítulo Trinta Três


Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Capítulo Trinta e Sete
Capítulo Trinta e Oito
Capítulo Trinta e Nove
Capítulo Quarenta
Capítulo Quarenta e Um
Capítulo Quarenta e Dois
Capítulo Quarenta e Três
Capítulo Quarenta e Quatro
Capítulo Quarenta e Cinco
Capítulo Quarenta e Seis
Capítulo Quarenta e Sete
Capítulo Quarenta e Oito
Capítulo Quarenta e Nove
Capítulo Cinquenta
Capítulo Cinquenta e Um
Capítulo Cinquenta e Dois
Capítulo Cinquenta e Três
Capítulo Cinquenta e Quatro
Agradecimentos
A Autora
Contatos

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Doce
Inocência
Outro olhar sobre o seu

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Copyright © 2016 Lu Muniz

Título: Doce Inocência, outro olhar sobre o seu.

Capa: Giovana C. Soares

Revisão: Rosenia Soares da Rosa

Diagramação: Giovana C. Soares e Lu Muniz

ISBN: 978-85-92861-57-5
Publicação AMAZON

Gênero: Literatura Brasileira -Romance


Registro na Biblioteca Nacional: 287789

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de
quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Todos os direitos reservados.

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Lu Muniz

Doce
Inocência
Outro olhar sobre o seu

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À Maiara Laxe e Priscilla Lazara.

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Índice
Sinopse
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove

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Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Capítulo Trinta Três
Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Capítulo Trinta e Sete
Capítulo Trinta e Oito
Capítulo Trinta e Nove
Capítulo Quarenta
Capítulo Quarenta e Um
Capítulo Quarenta e Dois
Capítulo Quarenta e Três
Capítulo Quarenta e Quatro
Capítulo Quarenta e Cinco
Capítulo Quarenta e Seis
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Capítulo Quarenta e Sete


Capítulo Quarenta e Oito
Capítulo Quarenta e Nove
Capítulo Cinquenta
Capítulo Cinquenta e Um
Capítulo Cinquenta e Dois
Capítulo Cinquenta e Três
Capítulo Cinquenta e Quatro
Agradecimentos
A Autora
Contatos

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Sinopse
Na duologia DOCE INOCÊNCIA, Francine convida o leitor a
partilhar, em tempo real, dos conflitos, das emoções e das reflexões que
permeiam o amadurecimento feminino em face da transição para a vida adulta.
Nesse primeiro volume, a personagem principal é ainda muito jovem
quando precisa lidar com o primeiro grande problema - aparentemente clichê -
de sua vida: o amor platônico por Ivan; um homem treze anos mais velho,
músico e melhor amigo de infância do seu irmão.
Todo o seu drama pessoal na tentativa de esconder esse amor intenso,
vem da relação fraternal que os une já que Ivan nutre um forte sentimento de
afeto e proteção pela garotinha de olhar doce e inocente que vira nascer e
crescer. O que ele não contava, contudo, é que essa mesma menina se tornaria
uma mulher que o atrairia irremediavelmente e de forma profundamente
perturbadora.
Será que Francine conseguirá convencê-lo de que não é mais a mesma
menininha que ele viu há quatro anos? Será que uma relação fraternal pode se
transformar em amor? Será que relações familiares e preconceito de idade
podem interferir em um relacionamento?
Lu Muniz escreveu o original desse primeiro volume em 1993, quando
não existia internet e nem telefone celular; numa época em que ter discos de
vinil e walkman era o máximo! E foi um desafio para autora reescrever a
história, ambientando-a nos tempos atuais sem deixar que perdesse a sua
essência.
“Doce Inocência, outro olhar sobre o seu” tem uma narrativa
envolvente e é embalada pela magia do amor e pelos sentimentos de uma
garota que convida o leitor a acompanhar o seu amadurecimento de menina-
mulher que desabrocha para o mundo.
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Recomendado para:
Maiores de 16 anos. Não há cenas de sexo. Há contos eróticos
independentes que complementam a série disponíveis na Amazon: “Desnuda-
me” e "Possua-me".Lu Muniz escreveu o original desse primeiro volume em
1993, quando não existia internet e nem telefone celular; numa época em que
ter discos de vinil e walkman era o máximo! E foi um desafio para autora
reescrever a história, ambientando-a nos tempos atuais sem deixar que
perdesse a sua essência.
“Doce Inocência, outro olhar sobre o seu” tem uma narrativa
envolvente e é embalada pela magia do amor e pelos sentimentos de uma
garota que, a cada volume, convidará o leitor a acompanhar o seu
amadurecimento de menina-mulher que desabrocha para o mundo.

Recomendado para:
Maiores de 16 anos. Não há cenas de sexo. O conto erótico “Desnuda-
me”, que complementa o volume, também está disponível na Amazon.

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Capítulo Um
Esta manhã, eu pulei da cama cedo. Quero contemplar o mar e esse é um
momento só meu! É hora de me vestir às pressas, pegar meu livro favorito,
uma toalha de praia e sair sem ser vista. Toda minha família dorme. A casa
está escura ainda e, ao passar pela cozinha, pego uma maçã dentro da fruteira
que há em cima da mesa.
Assim que abro a porta, um vento gelado corta meu rosto e joga meus cabelos
para trás. Ah, Francine! Por que você nunca se lembra de pegar um casaco?
Cresça! Você já tem quatorze anos! Suspiro alto e dou de ombros. Agora é
tarde e a natureza não espera.
Estou passando o início das férias na casa de praia que pertence a minha
família. A construção fica no alto de uma colina e, à noite, podemos ouvir o
som das ondas do mar batendo nas pedras. As casas vizinhas ficam bem
distantes umas das outras, o que torna o lugar perfeito para quem quer fugir da
rotina da cidade grande. Eu amo essa casa, eu amo esse lugar!
Escolho um local na areia para que eu possa me sentar a uma distância
suficiente para que as ondas não me alcancem. Estico a toalha e sento,
colocando o livro sobre ela e dando uma mordida na minha maçã.
No horizonte, uma tênue linha alaranjada começa a se formar no céu, dividindo
a escuridão da noite com as águas do mar. Mais alguns minutos... e o sol
nascerá magicamente. Como eu amo assistir a esse belíssimo espetáculo!
Avisto gaivotas voando baixo, procurando alimentos. O azul começa a fazer
companhia para o laranja no céu. E lá vem ele, o majestoso rei do dia!
Termino de comer a fruta e coloco o miolo ao lado da toalha para jogar fora
depois. Minha professora de Biologia jamais me perdoaria se soubesse que eu
sonhei em emporcalhar a areia com a minha falta de educação... Eu consigo
ser bem mal educada, às vezes, no sentido literal da palavra! Meu lado ogra
adora deixar roupas emboladas, toalha molhada em cima do colchão, cadernos
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e livros espalhados aos pés da minha cama. Coitada da Bastiana! – minha ex-
babá e administradora das tarefas domésticas da minha casa.
Deito na toalha e abro meu livro favorito, que já li incontáveis vezes. Suas
páginas estão amareladas, a orelha marcada e não há mais espaço para minhas
anotações. Sim!!! Eu sou uma ogra quando quero! Mas não me importo porque
tenho outro exemplar novinho em folha, que exibo com orgulho, numa das
prateleiras do meu quarto. Esse, sim, é o exemplar de uma leitora que usa
marcadores e que não empresta aos amigos nem para que eles possam sentir o
cheiro do livro novo. Os opostos dentro de uma só pessoa. Essa sou eu.
Passo a ponta dos dedos pela página do meu antigo amigo, já envelhecido pelo
tempo e sorrio de mim mesma. Eu posso ser patética quando quero também e,
para isso, é só falar de amor. Eu sou romântica demais! Sonho demais! Amo
estar em contato com a natureza, olhar o mar, sentir o perfume das flores,
pensar em... Ivan.
Ivan... Onde ele está? Por que não me dá notícias? Por que nunca me
escreveu? Uma carta para mim, só para mim! As cartas que ele manda
direcionadas aos meus pais, não contam. Eu quero poder ler meu nome com a
letra dele no envelope; saber que está pensando em mim enquanto escreve; que
se importa em me dizer algumas palavras depois de tantos anos ausente,
depois de tantos anos sem me dizer que eu sou sua garotinha e que ele vai me
amar para sempre.
O simples pensamento em Ivan faz meu coração pular de agonia. Não há a
menor condição de continuar a leitura depois desse turbilhão de sentimentos
contraditórios que me invadem. Jogo o livro de lado e sento, abraçando as
minhas pernas e pousando minha cabeça nos joelhos.
Quantos sentimentos podem habitar o coração de uma garota! Quantos sonhos
podem ser possíveis! Quantos dramas internos dentro de uma só criatura! Todo
meu corpo se modifica a cada dia. Minha cabeça não acompanha bem essa
mudança, muito menos meu coração. Dizem que são os hormônios e eu não
consigo entender como essas substâncias invisíveis são capazes de causar
tanto estrago em uma só pessoa!
Além de Ivan, minha família é, um outro problema frequente em minha vida.
Não toda a família, só metade dela. Meu pai e Alexandre, meu irmão mais
velho, não se enquadram nesse aspecto. Mas minha mãe e Bianca, minha irmã
do meio, são meu principal ponto de conflito. Eu, a caçula temporã, sou o alvo
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delas no quesito descontar a raiva! Às vezes, eu revido. Mas na maioria delas,


me calo e sofro sozinha no meu canto.
Meu pai, o Dr. César, é médico e muito atarefado. Eu o amo
incondicionalmente, mas ele não dispõe de muito tempo para dedicar a nossa
família.
Alexandre é treze anos mais velho do que eu e está seguindo os passos do
nosso pai na carreira. Sem dúvidas, é muito dedicado, talentoso e um irmão
maravilhoso para mim. Depois que Ivan, nosso ex-vizinho e melhor amigo
dele desde a infância, se foi, Alex se dedicou totalmente aos estudos e
abandonou um pouco a vida de bares e mulheres oferecidas.
Minha mãe, a D. Lúcia, é uma pessoa de temperamento muito difícil. Ela
sempre me trata com indiferença e não esconde de ninguém as suas
preferências maternais. Papai e Alex não gostam que eu fale mal dela, mas
acho que sua principal preocupação é ser fútil, gastando o dinheiro do meu pai
com tudo o que brilha.
E eu... Ah, eu sou apenas a filha rejeitada! O patinho feio da família! A ovelha
negra que ninguém quer perto, mas não sabe como se livrar. Muitas vezes, me
sinto humilhada e isso só aumenta minha raiva. Tenho vontade de sumir!
Respiro fundo e tento conter as lágrimas. Dói muito esse sentimento todo de
rejeição, de abandono... Mas de tanto ouvir que não sei me vestir e me
comportar, acabo me convencendo de que sou feia o suficiente para não atrair
nenhum garoto. O que para mim, não faz muita diferença, já que tudo o que eu
mais quero na minha patética vida é o amor de Ivan. Não o amor de irmão que
ele sempre me deu, mas o amor que um homem sente por uma mulher.
Quando me eu olho no espelho, não vejo nada além do que uma menina sem
graça, triste, baixinha para a idade, usando óculos fora de moda e aparelho nos
dentes. Aff. Por que a vida tem que ser assim? Por que não sou bonita igual às
modelos de capas de revista e às atrizes de televisão? É tão injusto ser...
comum.
Como posso um dia conquistar um músico e empresário que sai em capas de
revistas internacionais sendo tão... eu? Novo suspiro. Sinto arrepios pelo
corpo, apesar do calor do sol já ter começado a esquentar a minha pele
sensível. Afundo os pés na areia, escondo as mãos sob as mangas da blusa e
fico mais algum tempo a contemplar a paisagem; procurando me libertar da
tristeza e me esquecer, mesmo que por uns momentos, as minhas carências
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familiares e as minhas constantes inquietações.


– Um tostão por seus pensamentos... – Alex se aproxima sem que eu perceba e
acaricia a minha cabeça. Olho para ele assustada. – Desculpe, não quis
assustar você. – sorri gentil como sempre.
– Oi... – digo com ternura. Como amo o meu irmão! Ele consegue despertar o
melhor que há em mim. – baixo os olhos e não sei o que responder. Há tanto
para ser dito e, ao mesmo tempo, não há nada.
Alex se senta ao meu lado, abraça as pernas do mesmo jeito que eu. Eu não
preciso dizer muita coisa, ele sempre sabe o que estou sentindo!
– O que está se passando nessa cabecinha? – me empurra com o ombro e sorri.
– Nada... – digo com desânimo e me distraio riscando a areia com uma
pedrinha.
Mesmo de perfil, posso sentir meu irmão me fitar com preocupação. Ele está
sério, me encarando. Levanta a mão direita, aproximando-a do meu rosto e faz
um leve carinho. A seguir, coloca uma mecha do meu cabelo para trás da
minha orelha. Mais uma vez, baixo os olhos, envergonhada por parecer tão
ridícula por nada.
– Sinto que algo está aborrecendo você. – levanta meu queixo, me forçando a
encará-lo e me olha nos olhos – Tem estado com o olhar triste... Essa não é a
Francine cheia de vida que eu conheço!
Continuo muda, mas meus olhos queimam por segurar as lágrimas. Eu odeio
chorar! E não, não vou bancar a menininha do irmão mais velho! Está mais do
que na hora de eu crescer e encarar meus os problemas.
– Fran... Eu volto a trabalhar segunda-feira. A gente não vai se ver até
acabarem as férias do papai. Que tal você me dar a chance de ajudar? – faz
uma cara de desalento. – O que foi? É a mamãe, não é?
Pronto. Era o que eu estava precisando para desabar. Por que Alex tem que
mexer na minha ferida aberta? Por que não respeita o meu momento de não
querer dizer nada? Não quero conversar, mesmo que seja com ele. Reacende
no meu peito a chama da raiva e sinto vontade de gritar. Seguro a onda, mas
respondo secamente.
– Ela não fez nada, Alex. Aliás, ela nunca faz nada. Não por mim. – esfrego
com força as mãos no rosto para secar as lágrimas que descem sem minha
permissão. Raiva! Raiva! Raiva! Meus sentimentos não combinam com esse
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lugar que eu amo estar! Mas onde mais eu poderia pensar sobre eles?
– Ei... – meu irmão tenta me abraçar e eu o rejeito com as mãos.
– Por favor, Alex, não... Não faz isso ou vai me deixar pior. – balanço as mãos
como sinal de protesto.
– Olha, Fran... – se vira para mim novamente e continua sua tentativa de me
consolar. – Sei que a mamãe e a Bianca costumam não serem muito delicadas
com você. Sei que não é fácil. Mas, você tem a mim! – aponta as duas mãos
para o próprio peito, fazendo uma cara engraçada, o que me faz rir. – Isso,
assim... viu?! Agora, sim! Você nasceu pra sorrir! – fica sério de repente e
completa. – Você sabe que sempre poderá contar comigo, não sabe, minha
bonequinha?
Bonequinha?! Sinto o sangue subir para minha cabeça, mas não vou brigar com
meu irmão! Não posso ser grosseira com a única pessoa que tem tempo para
se preocupar comigo. Será que ele não consegue enxergar o quanto eu sou uma
menina feia, sem sal e desinteressante? Não é à toa que Bianca me coloca
apelidos horrorosos. Respiro fundo e tento não parecer tão irritada com o
comentário dele.
– Sei disso, Alex. Obrigada. Você e o papai são as únicas pessoas no mundo
com quem posso contar... Mas, estou longe de ser uma bonequinha! – olho para
o infinito e balanço minhas pernas como se eu fosse niná-las, típico de quando
estou irritada e tentando me acalmar.
– Se tem tanta certeza que pode contar comigo, por que não me conta o que
está chateando você? – meu irmão não se dá por vencido. Como ele pode ser
insuportavelmente preocupado quando quer! Ele sabe como eu me sinto,
então... falar para quê? Se ainda mudasse alguma coisa... Mas, não. Só dói.
Percebo que Alex quer me ganhar pelo cansaço. Continua aguardando que eu
diga o que está me atormentando. Tento pensar em algo para dizer sobre o
assunto sem parecer tão direta, mas as palavras fogem.
Ganho tempo por alguns segundos com o olhar perdido no tempo e no espaço e
ele ainda está lá, teimoso como uma mula. Ou eu falo alguma coisa ou ele
nunca vai me deixar em paz!
– Alex, você me acha feia? – solto a frase como se cuspisse uma espinha de
peixe que atravessa minha garganta. – Falo de beleza física... De corpo! Não
me venha com papinho de interior e blá blá blá...
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Meu irmão me olha assustado. Com toda certeza ele esperava essa pergunta.
Não foi pego de surpresa. Observa atentamente meu rosto. Analisa minhas
roupas largas, o meu cabelo bagunçado e sorri. Ele sorriu?! Como assim ele
está rindo de mim?! Uma nova onda de raiva me invade.
– Está vendo?! Não devia ter te perguntado nada! – cruzo os braços e fecho a
cara com tanta força que sinto doer o maxilar.
– Não é nada disso, Fran! Olha, você pode até não atender aos padrões de
beleza estabelecidos para as passarelas ou coisa parecida, o que para mim não
é nada saudável... Já viu quantos casos de meninas morrendo de anorexia e
bulimia ultimamente? – diz parecendo sincero, mas eu não dou ouvidos.
– Blá... blá... blá... – digo lentamente enquanto faço caretas.
– É sério, Francine! Desse jeito como posso conversar direito com você? Para
de ser infantil!
Opa. Agora sim. Agora ele me coloca de volta ao meu lugar. Ao meu eixo.
Quem é Francine na fila do pão sem o apoio total de Alex? Baixo os olhos e
me desculpo. Infantil. Criançona. Não posso ser tão injusta! Ele só está
tentando ser um irmão amoroso que deseja ver a irmã feliz... e bem informada
sobre o índice de meninas-mortas-pela-falta-de-ingestão-de-alimentos-
contendo-nutrientes-indispensáveis-ao-organismo! Aff... Saco. Ninguém
merece!
– Então vamos ao ponto, Alex! – tento não parecer irritada, mas acho que não
sou bem sucedida. – Responda a minha pergunta!
– Deixe-me terminar! – meu irmão literalmente não tem limites nos discursos
morais. – Cada um tem a sua maneira de ver a beleza... Quem impôs esses
padrões? Quem os estabeleceu? E por que essa imposição de alguém que não
conhecemos significa tanto? – toca meu rosto com um sorriso no canto dos
lábios.
Eu desisto.
– Se toda essa tristeza é para me perguntar se a sua beleza irá influenciar no
interesse de um garoto por você, eu digo: sim, vai. Mas esse encantamento
pela beleza é passageiro, Fran! O que conta de verdade é a companhia, o
amor, o carinho, a dedicação que recebemos de quem a gente gosta. Na
verdade, é essa beleza que conta.
Continuo muda. Mas o que ele fala me toca profundamente.
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– A beleza do corpo um dia acaba. A de dentro, não. – meu irmão acaricia meu
rosto mais uma vez e levanta meu queixo para que eu possa encará-lo. – E
você, minha irmãzinha, é uma das meninas mais lindas que já vi, por dentro e
por fora. Acredite nesse velho irmão!
Abraço meu irmão com força. Sinto em meus braços a minha rocha, meu ponto
de apoio, meu porto seguro. Ainda abraçado a mim, Alex acaricia minha
cabeça.
– E tem mais um detalhe: um dia, você vai se apaixonar por alguém; essa
pessoa vai dizer o quanto é linda e essas palavras terão um significado ainda
mais especial do que as minhas!
– Amo você, Alex. – digo num sussurro, colada ao abraço dele.
– Também amo você, Fran... Daria o meu mundo para não vê-la chorar.

♫♪

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Capítulo Dois
A varanda da casa de praia é grande e espaçosa. Há quatro redes penduradas
para que possamos sentar e bater papo, exatamente como fazíamos, papai,
Alex e eu nessa manhã quente de início de ano. Cada um em uma. Ao meio dia,
o sol já está de ferver a cabeça, mas as sombras das árvores trazem um vento
agradável de vez em quando.
Observo meu pai sentado, totalmente à vontade, com as pernas abertas, uma de
cada lado da sua rede. Seu cabelo já está quase todo grisalho e acentuadas
rugas se destacam no rosto cansado pelo trabalho desgastante. Meu pai ama o
que faz! Mas sabemos que a medicina consome seu tempo, seu sono, sua vida
familiar e social. Sempre magro e com poucos hábitos saudáveis, vamos
combinar. Ele não é um médico de muitos bons exemplos. É um adorador de
xícaras de café, não se alimenta adequadamente e o cigarro está sempre entre
os dedos enquanto não está trabalhando.
Alex não perde uma oportunidade de implicar com nosso pai sobre seus
hábitos e não cansa de ouvir a mesma resposta: “Cuide da sua vida,
menino!”. E por causa disso, o Dr. Alex-consultor-de-índices-de-mortalidade
vive dizendo que esses maus hábitos podem acabar com a vida dele. Meu
irmão é chato com saúde, mas ele tem razão. Nosso pai fuma demais!
Ao contrário de papai, Alex dedica seu tempo aos estudos, ao trabalho, à
alimentação saudável e à academia. É admirável a sua boa forma, com
músculos definidos e uma pele ótima. Não há na cidade em que moramos, uma
só menina que não caia de amores por ele. Cabelos e olhos castanhos como os
meus, alto e com um sorriso de iluminar qualquer lugar que vá. Ele é focado
no que quer e está solteiro, sim, mas sozinho nunca, que eu sei. Isso é fato.
O meu cachorrinho, Pingo, está com a gente na casa e deita embaixo da minha
rede. Ele se arreganha todo, para que eu esfregue meus pés em sua barriga. Os
pelos pretos estão crescidos e cobrem seus olhinhos, já pedindo por uma tosa.
Papai começa a contar uma piada que já ouvimos um milhão de vezes, mas
rimos mesmo assim, para não deixá-lo sem graça. A risada dele é sempre mais
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engraçada do que a própria história. Foi nesse momento, que D. Rabugenta, ou


melhor, D. Lúcia, a minha mãe, entra indignada pela varanda. Estava dormindo
e seu rosto está marcado pelos travesseiros. Dos olhos, saem faíscas e
parecem, sem motivo algum, estarem atingindo a mim.
– Que inferno! Não se pode mais dormir nessa casa!? – ajeita o roupão e me
olha enfurecida. – Qual é o motivo de tanta graça?
Meu sorriso morre imediatamente. Como a minha mãe tem o prazer de ser
desagradável! Olhamos para ela incrédulos, enquanto o drama particular
continua.
– Passarinhos que não param de piar na minha maldita janela, risada estridente
de Francine, dor de cabeça insuportável... O que mais posso esperar do dia de
hoje? – ela fala sem parar, nem um pouco preocupada em ter respostas.
A minha mãe, às vezes, me desperta um sentimento que não gosto de sentir:
pena. Como ela consegue ser tão repetitiva e vazia? Eu sei cada uma das suas
falas, cada um dos seus dispensáveis comentários maldosos e cada uma das
suas acusações em relação a mim. Estou tão cansada dela que nem tenho mais
paciência para argumentar. Mas não posso negar que quando minha mãe aponta
o dedo para o meu rosto, sinto arrepios pelo corpo. Ela me dá medo.
Ficamos em silêncio e deixamos que extravase sua raiva. Meu pai detesta
discussões e Alex, muito menos. Canso de ver meu irmão deixar o prato de
comida intocado sobre a mesa porque não aguenta as mudanças de humor dela
a troco de nada. Dessa vez, porém, ele se dirige a ela, calmamente, tentando
trazê-la de volta ao convívio de pessoas normais que sabem dialogar.
– D. Lúcia... Que estresse é esse? – sorri forçadamente. – Não acha que já
estava na hora de sair da cama? Já é meio dia! Temos mesmo que passar meus
últimos dias de férias brigando?
Pronto. Falou e disse o filho querido. Alex deve ter tranquilizante nas palavras
porque quase sempre tem efeito imediato nas crises da nossa mãe. Observo a
postura altiva dela se desmontar diante do questionamento do meu irmão.
– Desculpe, filho. A mamãe só está muito cansada e queria dormir mais um
pouco. – se recompõe, endireitando o roupão. – Vou tomar uma ducha e aliviar
a minha enxaqueca com um analgésico... – vira-se para meu pai. – Não aguento
mais essa vida, César!
Oi? Como assim? Como não aguenta mais essa vida? A vida dela é shopping,
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cabeleireiro, Spa, festas... Não é o que qualquer mulher gostaria de ter? Eu


sou só uma adolescente, mas sinto que o que mais falta na vida da minha mãe é
amor. Será que ela ama meu pai? Será que algum dia amou? Nem sei se a
conheço, ao ponto de saber do que ela é capaz...
Almoçamos em silêncio uma hora depois da confusão na varanda. Bastiana
preparou a minha comida favorita: bife com batatas fritas. Na hora da
sobremesa, ouvi o pedido de desculpas forçado de mamãe. Mais um dentre
muitos! Quieta eu estava, quieta eu fiquei. Bianca ao lado, parecia se coçar
para me dizer suas gracinhas, mas se conteve. Ainda bem. Meu termômetro de
paciência já está quase atingindo o seu grau máximo. Bom pra mim e...
principalmente para ela. Faz tempo que minhas unhas não cravam aquele braço
magrelo. Sorrio discretamente ao imaginar esse meu ato de violência. E tenho
que conter uma risada ao lembrar de que ela se acha a gostosona! Sem
comentários. Minha irmã, sim, consegue ser mais patética do que eu. Patética
com força.
À tardinha, volto à praia com meu livro nos braços, agora para ver o sol se
pôr. Penso em nadar amanhã bem cedo. A água do mar sempre renova minhas
energias e eu estou precisando exatamente disso.
Mergulho em minha leitura e viajo pelo mágico universo dos livros.
Concentrada assim, nada é motivo para me aborrecer! O tempo passa e a noite
começa a tomar conta do dia. As lâmpadas dos postes e das casas começam a
se acender quase que ao mesmo tempo e, aos poucos, as luzes artificiais vão
tomando conta da praia. As estrelas estão sobre a minha cabeça e eu me deixo
levar pela beleza com que elas me presenteiam. Majestosa agora é a lua, que
me convida a lembrar do amor que tenho guardado dentro do peito.
Como posso amar um homem treze anos mais velho que eu? Um homem que
sempre me tratou como uma irmãzinha? Alguém que nem sequer deve mais se
lembrar de minha existência?
Fico me lembrando da última vez que o vi, há quatro anos. Eu era uma
menininha de nove, que o idolatrava. Suas mãos fortes me seguravam pela
cintura e me rodavam no ar e eu sempre pedia de novo de novo de novo. E lá
estava Ivan, fazendo todas as minhas vontades.
Guardo sua foto mais recente dentro do meu diário e levo aonde quer que eu
vá. Nem preciso fechar os olhos para ver o seu rosto lindo, tão tipicamente
masculino. Os cabelos muito pretos e lisos, ombros fortes, mãos que me
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protegiam de tudo e todos e, claro, aquele par de olhos incrivelmente verdes.


Seus olhos eram tão bonitos que eu podia fazer uma viagem sem volta neles,
beber da imensidão de tons que o verde podia ter: quando ele estava feliz,
quando ele estava triste ou preocupado... ou ansioso com alguma coisa. Eu
podia, sim, beber desse olhar para sempre. E minha sede nunca passar.
Pode uma menina da minha idade amar desse jeito? Se pode, eu não sei. Mas
tudo o que mais quero no mundo é que Ivan possa me amar e viver esse
sentimento comigo no futuro.
Não sei se alguém suspeita desse amor que carrego dentro de mim. Um amor
que chega a doer de tão forte. Eu nasci para amar você, Ivan! Volta para
mim, volta correndo para mim.
Olho a lua e as estrelas e faço uma oração silenciosa.

♫♪

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Capítulo Três
Nesta noite, sinto uma atmosfera diferente, como se eu fizesse parte de um
grande conto romântico. A brisa sopra em meu rosto e eu jogo minha cabeça
para trás, respirando profundamente.
A areia está grudada em minhas pernas e eu limpo com a própria toalha de
praia, deixando que os minúsculos grãos sejam levados pelo vento. Vou
caminhando até a subida da colina, calmamente. Percebo que alguns casais
estão em alguns pontos da orla, apreciando a noite e, é claro, fazendo o que eu
nunca fiz: namorando. Criançona. Mas e daí? Os garotos são bobos,
desengonçados e implicantes! Quem precisa deles?
Estou nessas divagações quando avisto um carro moderno, parado em frente
ao portão da minha casa. De quem é esse veículo estacionado? Uma visita?
Nós sequer moramos aqui!
Meu corpo paralisa e minha mente faz uma viagem até o lugar mais profundo
do meu íntimo. Uma espécie de formigamento começa pelos pés, sobe pelas
minhas pernas, passa pelo meu ventre, chega rapidamente ao meu peito,
arrepia meus pelos. Quando chega ao meu rosto, sinto-o ferver. A sensação
retorna para o meu peito e, lá... explode... em mil fragmentos! Depois, se
espalha em multicores, cheiros, sabores e sons por todo o meu ser.
Dentro da minha cabeça, a imagem de Ivan soa como um alarme e faz disparar
o meu coração em batidas descompassadas e em um ritmo absurdamente
acelerado. Estou tremendo e temo não ter condições de dar um passo adiante.
Procuro respirar fundo e controlar minhas pernas. Respiro profundamente de
novo. Uma. Duas. Três vezes. E se não for ele? Francine, como você é
estúpida e patética! Dou um tapinha no meu rosto e pisco com força para
espantar aquela sensação poderosa que se apossou de mim. Sonhadora.
Ridícula. Tolinha.
Volto ao mundo real, mas meus batimentos ainda não me obedecem. Aproveito
que as pernas estão colaborando e dou passos lentos em direção aos fundos da
casa. Ouço vozes vindas da sala, mas não quero que ninguém perceba a minha
presença até que eu me certifique quem é a visita misteriosa.
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Abro a porta e Pingo vem me receber abanando o rabinho. Agacho para


acariciá-lo e evitar que ele comece a latir e denuncie a minha chegada.
Bastiana não está na cozinha, o que me faz supor: ou já terminou o jantar e está
no quarto dela ou também está na sala por causa da... visita.
Ouço a risada do meu pai. Alta, descontraída. Então, não se trata de uma visita
formal! É realmente alguém conhecido. Continuo caminhando bem devagar,
tentando não fazer nenhum barulho e me escondo no corredor que me separa da
sala por uma porta. Por sorte, ela está entreaberta, mas eu tenho que me
esforçar um pouco para olhar pelo vão, sem que ninguém me veja.
Agora escuto com toda a clareza. Fecho os olhos. Não sei mais quem eu sou.
Perco o controle do meu corpo que volta a explodir em mais mil fragmentos de
emoções.
O som da única voz que meus ouvidos são capazes de ouvir, acende uma luz
no fim de um túnel muito, muito escuro. Caminho por ele, até que alcanço a
luz. Essa voz ainda me leva, me chama. Ouço minhas risadas, a sensação de
cosquinhas na minha cintura... Venha, minha garotinha, vou contar uma
história para você dormir! Eu levanto o braço e tento tocar aquele rosto que
segura a menina pela mão... Mas minha mão não o alcança. Agora o dono da
voz está empurrando a menina num balanço e logo depois, compra para ela,
um saco de doces. Você canta para eu dormir? Claro que eu canto! Espere que
vou pegar o violão... Venha minha garotinha, vou cantar até você dormir...
Há uma foto envelhecida de um bebê no berço e um garoto de treze anos
velando seu sono. O seu sorriso é tão largo que é possível sentir toda a sua
alegria de ter aquela menininha como seu brinquedo novo. A luz do túnel
ameaça se apagar. A voz do homem é grave, melódica. Sua risada volta a me
chamar. Você sempre vai ser minha garotinha e eu sempre vou te amar.
Vejo uma casa ao lado da minha. Nela, há pais amorosos e orgulhos de um
único filho homem com forte inclinação para a música. Mesmo assim, com os
pés no chão e com medo de não realizar seu sonho, o jovem faz faculdade de
Educação Física e concilia as duas profissões. À noite, o professor dá lugar
ao músico. Muitos flashes de máquinas fotográficas ofuscam a luz do túnel em
que eu estou. As canções do rapaz fazem sucesso na voz de outros cantores e
isso é tudo o que ele havia sonhado. Publicidade. Rádio. Contratos. Estúdios.
Agências. Carreira Internacional. Você sempre será minha garotinha e eu
sempre vou te amar. Uma explosão no céu. Vejo sonhos espatifados junto com

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pedaços de avião. Os pais daquele jovem, não existem mais. Não chora! Eu
estou aqui com você! Casa vendida, objetos de valor levados para fora do
país. Venha minha garotinha, vou cantar até você dormir... Volte, Ivan! Volte
para mim.
De repente, a luz do túnel se apaga e tudo escurece. Francine! Francine! Sinto
umas sacudidas no braço. É Bianca me olhando assustada.
– Francine, o que houve? – está me sacudindo mais uma vez. – Que cara é
essa? Viu assombração?
Venha minha garotinha, vou cantar até você dormir...
– Eu... Eu.. – eu estou em choque.
Você sempre vai ser minha garotinha e eu sempre vou te amar.
– Você está bem? – Bianca pergunta realmente parecendo preocupada.
Oi? Preocupada? Minha irmã que-só-olha-para-o-próprio-umbigo? Não,
realmente eu não posso estar em meu perfeito estado. Devo estar tendo
alucinações. Quero voltar para o túnel. Preciso voltar, me deixe voltar!
– Sua idiota, vai ficar aí parada? – volta ao seu comportamento habitual. – O
Ivan está aí! – dá o seu melhor sorriso de devoradora de bons partidos. Minha
irmã literalmente não se enxerga!
Mas eu não estou no meu melhor momento para formular apelidos nem
comentários maldosos sobre Bianca. Meu corpo ainda não está totalmente
recuperado do transe e eu preciso sair de onde estou. É nesse momento que
minha irmã-sem-noção resolve me pegar pelo braço, me arrastando até a sala.
Ai. Meu. Deus! Um buraco, por favor! Um buraco pode se abrir agorinha? Por
favor! Por favor! Eu juro que nunca mais te peço nada, Deeeeeeus!!!
Nossa entrada súbita chama todos os olhares da sala em nossa direção. Sinto
meu rosto queimar como brasa. Minhas mãos procuram desesperadamente um
lugar para se abrigar. Ivan me olha. Confuso. Das duas uma: ou ele não
esperava que a menina bonitinha que viu pela última vez tivesse crescido mais
um pouco... Ou que essa mesma menina não fosse mais bonitinha e tivesse se
transformado nessa nerd descabelada a sua frente. Burra. Burra. Burra. Eu
sentia vontade de dar um soco na minha própria cara. Estúpida!
Faço uma análise mental rapidamente de como deve estar a minha aparência.
Macacão larguinho... Ok, cabelo todo bagunçado... Ok. Rosto pálido demais,
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óculos de armação ridícula e aparelho nos dentes, cujo tratamento não acaba
nem sob ameaça à dentista, Ok! Perfeito! Ficha completa de uma idiota. Fim.
Esse romance pode terminar aqui.
Não consigo mais suportar o olhar dele sobre o meu. Minha boca aberta pelo
impacto tem dificuldades para fechar. Será que escovei os dentes direito? Ah,
o que importa! Ele já viu mais do que o suficiente para me achar a garota mais
feia e mal vestida da face da Terra!
– Fran... cine... – Ivan diz com o olhar atentamente pousado sobre mim.
– Oi. – digo com completa timidez. Im.be.cil!
– Francine! Você... – esboça um sorriso, que aos poucos, vai se iluminando e
enchendo a sala, como sempre. Ele está feliz em me ver. Dá para sentir isso no
rosto dele. Ele está feliz em me ver!
Ao fundo, eu ouço risadinhas da minha família. Não sei se estão sinceramente
felizes pelo reencontro ou se estão mesmo é debochando da minha total falta
de modos.
De repente, Ivan abre os braços e me pega com firmeza pela cintura, me
jogando no ar. Dou um grito de susto e abro um sorriso saudoso. Ele me roda e
me coloca no chão, já me aconchegando em seus braços.
Você sempre vai ser minha garotinha e eu sempre vou te amar. Eu sempre
vou te amar! Eu sempre vou te amaaaaaar!
Sinto as batidas do coração dele de encontro ao meu ouvido. Ele me abraça
apertado, visivelmente contente.
Sem que eu espere, Ivan me solta. Percebo uma seriedade e um distanciamento
que não senti há poucos minutos. Por quê? Eu não sou mais a sua garotinha? O
que o incomoda? Eu não posso mais ser carregada no colo? Por que eu cresci,
não posso mais ser amada por ele? Volte, Ivan. Volte para mim!
Sinto meu rosto queimar. Tomo um tapa invisível desse olhar que tenta parecer
indiferente. Dói. As coisas mudaram. Eu não sou mais uma garotinha. A linha
de nossa amizade amorosa é muito tênue. E ela se rompeu porque eu cresci. Eu
cresci!
O patinho feio não tem mais ninguém. Um espelho em minha mente se parte em
milhares de pedaços e eu nunca mais quero me olhar. Tomo coragem e corro
para longe da sala, sem olhar para trás.

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♫♪

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Capítulo Quatro
O quarto que eu divido com Bianca na casa de praia é bem pequeno. Duas
camas de solteiro lado a lado e um guarda-roupa compõem o ambiente. Está
impecavelmente arrumado e limpo. Sobre as camas, colchas de quando eu era
criança. É claro que eu trouxe comigo o meu fiel escudeiro: meu ursinho
marrom que tenho desde bebê. Desabo sobre ele na cama e fecho os olhos.
Que diabos eu fiz? Como pretendo um dia conquistar esse homem, correndo
feito uma boba desse jeito? Está de parabéns, criançona!
Viro, encarando o teto. Ivan está de volta. Quatro anos depois. O sorriso lindo
dele, feliz ao me ver, não sai da minha cabeça. Mas a sua indiferença sutil
depois disso, também não.
Uma batidinha à porta me arranca dos meus pensamentos. É Alex, que entra
todo desconfiado e senta na minha cama. Vira a cabeça de lado para me
encarar na horizontal.
– Ah, qual é Alex! Vai começar? – sento, emburrada. – Eu sei, fiz besteira.
Tive um péssimo comportamento! Feito uma completa idiota! – levanto os
braços para o alto e os deixo cair em minhas pernas, totalmente arrependida.
– Anda, maninha...– aponta a porta com a cabeça. – Vamos jantar. – meu irmão
sorri. Devo ter mesmo cara de idiota!
– Não estou com fome, Alex! Vai você. – deito novamente na cama e coloco as
mãos na cabeça. Ou seja, fim de papo, estou com dor de cabeça. Mas ele não
desiste.
– Francine, pare de bancar a bobona... –sorri mais uma vez.
– É isso mesmo que eu sou! Uma bobona!– abro os braços visivelmente
irritada. – E que tanto você ri? – falo de forma agressiva.
– Opa! Sou eu, seu irmão. Baixe essa guarda ou teremos problemas sérios
aqui... – não parecia estar brincando. Alex chateado podia me custar semanas
sem, ao menos, me dirigir uma única palavra.
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– Ok. Desculpa. – sento na cama e baixo os olhos. – Você não vai querer que
eu fale sobre isso, né? – olho pra ele com súplica. – Por favor...
– Fran, eu vim aqui só para chamar você para jantar! Se não quer, já estou de
saída. – levanta e se vira para ir embora.
Ufa. Poupada de ter que explicar a minha cena desprezível. Mas ele volta. É
claro que vai soltar uma liçãozinha de moral antes de ir. Típico de cenas em
que meninas cometem gafes que não conseguem justificar.
– Não é a mim que você deve desculpas. – pisca um olho. – Fica a dica.
Quando o meu irmão se vira novamente para sair, escuto novas batidas à porta
e sento imediatamente, trazendo meu ursinho ao colo. Alex abre a porta e a
figura atlética de Ivan aparece, esperando para entrar no meu quarto. Meu
coração resolve sair pela boca e eu sinto aquela mesma explosão, só que
agora, dentro do estômago. O que eu faço? Preciso pensar no que dizer,
preciso pensar!
– Posso falar com a Fran, irmão? – Ivan se dirige a Alex e volta novamente a
olhar para mim. Meu irmão confirma com a cabeça e bate a porta atrás de si.
Não posso parecer uma tola agora! Não mesmo! Nada de insegurança,
Francine! Nada de insegurança! Ele está de volta! E essa é a sua chance de
recuperar a intimidade que sempre tiveram.
Quatro anos! Ele está ausente há quatro anos! Deixou aqui uma criancinha e
agora... Deve estar confuso. É isso! Ele está muito confuso. Não sabe mais as
coisas que gosto de fazer, as porcarias que gosto de comer... Tudo é novo.
Para mim, ele é o mesmo Ivan. Mas aquela Francine de maria-chiquinha,
chupeta e ávida por saco de balas, não existe mais. Agora, não é mais uma
rodopiada no ar, um empurrão no balanço e cosquinhas na cintura que vão
fazer de mim a menina mais feliz do mundo. Eu cresci. E ele notou isso.
Boa, Francine! Agora sim você mostrou que está amadurecendo! Suspiro e
aguardo que Ivan comece a falar. Mas ele apenas me olha, numa mistura de
surpresa e afeto. Será que o “você sempre será minha garotinha e eu vou te
amar para sempre.” Vai resistir a esse salto no tempo? Ele aponta os pés da
minha cama.
– Posso? – exibe seus dentes perfeitos em seu sorriso mais lindo e continua a
me olhar, talvez tentando encontrar a mesma menininha que deixou para trás.
Tirando o fato de eu estar com um ursinho no colo e de ter corrido dele há
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alguns minutos, nenhuma semelhança.


– É claro. – resolvo começar a falar e me surpreendo porque a minha voz
parece bem firme dessa vez. E porque sai da minha boca mais do que o oi
sussurrado que só consegui dizer até agora. – Eu te devo um pedido de
desculpas, Ivan. Desculpa. Fui muito grosseira saindo da sala daquele jeito.
Ele continua a me fitar, visivelmente admirado com as mudanças que havia
ocorrido em mim.
– Francine, quem deve desculpas sou eu. Fui extremamente precipitado,
tratando você daquela maneira! Imagina só... Você não tem mais nove anos de
idade! E eu te rodando no ar, feito um tremendo idiota! – ri. – Agora vendo
você assim... com essa voz de moça, crescida... me sinto envergonhado por ter
tratado você como criança.
Há muita verdade nessas palavras. Muita. Eu posso sentir. Enquanto eu
pensava que ele não queria mais ter de volta a nossa amizade, Ivan se
preocupava em estar me aborrecendo com brincadeiras de criança! Quanta
ironia! Tudo o que eu mais quero é que ele cante até que eu pegue no sono e
me conte histórias de príncipes e fadas.
– Francine, eu não quis chatear você. Essa não foi minha intenção. Estou
desculpado?
Eu me sinto à vontade perto dele agora. Toda a atmosfera pesada se quebrou.
Dou um sorriso amoroso e espero até que ele sorria de volta. Ah, se Soninha,
minha melhor amiga, pudesse me ver nesse momento! Ela ficaria surpresa com
a minha cara vitoriosa.
– Pode me chatear o quanto quiser... – continuo sorrindo.
– Amigos? – estende uma de suas mãos.
– Amigos! – aperto a mão dele e sinto um calor acalentador invadir meu peito.
Agora, sim, eu me sinto em casa.

♫♪

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Capítulo Cinco
Ivan está aqui nessa casa para passar uns dias conosco. Descansar da vida
corrida que leva. Eu guardo, em casa, recortes de jornais e revistas com
reportagens que saem sobre ele ou sobre o sucesso que suas músicas fazem,
interpretadas por outros cantores. Percebo que sua rotina o deixa bastante
agitado e, às vezes, até com os pensamentos longe. Fico pensando se teria
deixado alguma namorada esperando... Quase me entristeço, mas lembro que
agora ele está comigo, com a nossa família. Azar o dela.
Meus pais têm por Ivan um amor indiscutível. A felicidade em tê-lo de volta
está visível em cada rosto da minha família. Já tinha me esquecido como a
presença dele, faz de minha mãe uma pessoa mais amigável. Ela o cobre de
cuidados e atenção, como se ainda fosse o mesmo garotinho de antigamente,
filho de seus melhores amigos. A morte dos pais de Ivan, de fato, tornara
minha mãe ainda mais amarga e tê-lo por perto, é a minha certeza de alguns
momentos de paz.
Bastiana, mesmo mal humorada como sempre, deixa escapulir, vez por outra,
sua satisfação de ter um dos seus meninos embaixo de suas asas novamente.
Ela já é uma senhora de idade. A visão de seu rosto negro, de suas bochechas
gordas, de seus braços acolhedores e de suas mãos calejadas, sempre me
acalma. É em seu colo que encontro meu conforto maternal; um abrigo entre
toda a fofura de seu corpo roliço.
Deito para dormir e meu coração está tranquilo, enquanto ouço as ondas do
mar batendo nas pedras. Bianca ressona ao meu lado e sorrio com a
normalidade que parece ter retornado a minha vida. Lá no fundo do túnel, o
adolescente Ivan sorri para mim, enquanto Alex, joga a bola que rola até
minhas perninhas curtas. Chuta! Quero ver você fazer o gol sozinha agora! E lá
estou eu usando toda a minha força para orgulhar meus maiores
incentivadores. O som do violão chega aos meus ouvidos. Venha garotinha...
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Vou cantar até você dormir. Só a cadência dessa voz me leva à calmaria. Sou
um passarinho que voa para longe, sem medo, porque sabe que pode voltar...
sempre haverá um lugar para pousar. Você sempre será minha garotinha e eu
sempre vou te amar.

Os dias passam e Ivan parece ter entendido que nada deveria mudar em nossa
relação de amizade. É tão bom tê-lo de volta! Sempre conversamos todas as
tardes, antes do jantar. Ele toca violão e, muitas vezes, acabo adormecendo
sem comer. Todo o seu carinho e atenção me comove e me faz acreditar que
um dia, ainda podemos ser felizes juntos.
Deus, preciso ser logo uma mulher de verdade! Não canso de repetir isso para
mim mesma. Ou vou acabar matando minha própria irmã que não para de se
insinuar para Ivan. Fato que faz a nós dois rolarmos de rir quando estamos
sozinhos e podemos falar do assunto. Na frente dela, sempre muito educado,
ele retribui os elogios com sorrisos descompromissados e amigáveis. Hilário.
Resgatar nosso vínculo do passado está me fazendo muito bem. E acredito que
ao Ivan também. Ele tem sorrido mais e se divertido muito com os passeios
que damos.
Estamos agora os dois, deitados numa toalha na praia. O violão, ao lado,
descansa dos acordes de hoje. Tudo está em seu devido lugar, como nos
últimos vinte dias. Pingo, ao longe, late e corre para pegar o graveto que eu
lancei na areia. O céu, de um azul maravilhosamente lindo e nuvens muito
branquinhas formam os desenhos que tanto gostamos de descobrir juntos.
Aponto uma delas.
– Olha aquela... – ele acompanha meu dedo na direção da nuvem a que me
refiro. – Parece um urso daqueles bem grandões e gorduchos! – solto uma
risadinha.
– Obrigada, Fran. – diz sem tirar os olhos do céu. Eu estremeço. Sinto uma
leve pontada de tristeza em sua voz. O que há de errado?
– Por que está me agradecendo? Eu não fiz nada! – viro a cabeça de lado,
olhando para ele.
– Obrigada por você ter me mostrado que ainda posso sorrir como uma
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criança, digo sorrir de verdade! – realmente parece triste. O que quer dizer?
Que a sua profissão exige que seja sério demais? Eu não sei ao certo, mas me
sinto feliz por eu ter a capacidade de fazer isso por ele. E provavelmente ser a
única pessoa que faz isso por ele. Eu o olho docemente e ele pega minha mão
e beija. Não precisamos de muitas palavras para dizer que está tudo bem.
Um silêncio incômodo aparece, enquanto continuamos olhando as nuvens no
céu. Pingo já está deitado ao meu lado, com aqueles olhinhos que parecem
tomar conta de tudo o que acontece ao redor dele. Um grandessíssimo
fofoqueiro!
– Um tostão por seus pensamentos... – não resisto em usar a pergunta que
fazemos quando um de nós está distraído. Minha curiosidade não está mais
cabendo dentro de mim. Preciso saber o motivo do silêncio e da tristeza sutil.
– Você não mudou nada! – ri. – Quem consegue esconder alguma coisa de você
quando me olha com esse doce olhar inocente?
– Aff. – reviro os olhos. – Lá vem você com esse papo de olhar inocente...
Dessa vez, Ivan não ri. Volto a encará-lo porque o assunto deve mesmo ser
sério.
– Fran... Eu preciso ir embora... – diz de uma só vez, quase num sussurro.
Minha voz morre no fundo da minha garganta. Meu estômago se revira e eu
acredito que não vou mais suportar tanta dor que sinto no meu peito. Meus
olhos queimam e nada do que eu disser agora vai me ajudar a segurar minhas
lágrimas. Aguento com bravura, até que ele toca meu rosto com carinho e eu
fecho os olhos. É quando a estúpida lágrima que eu tento inutilmente segurar,
escorre pelo meu rosto. Ivan se aproxima de mim e beija minha testa
demoradamente. Isso é uma despedida.
Levanto num rompante e corro pela areia em direção a casa. Dessa vez não me
importo com o ato infantil. Ivan nada diz e também não vem atrás de mim.
Como da outra vez, ele entende que é preciso respeitar o meu momento. E o
dele também. Nada do que disser agora, poderá tapar o buraco que se abriu
entre nós. Um abismo nos separa. De novo.
Você sempre será minha garotinha e eu sempre vou te amar.
E eu já não acredito em príncipes e fadas. E agora, muito menos em falsas
promessas.

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Capítulo Seis
... quatro anos depois.
Mesmo de férias, eu acordei cedo essa manhã. Fui levar o documento de
renovação de matrícula assinado na escola. Dessa vez, assinado por mim.
Afinal de contas, acabo de completar dezoito anos. Minha maioridade veio a
cavalo, mas enfim, chegou.
Eu queria ter ido à escola tendo a companhia de Soninha, minha melhor amiga
desde o jardim de infância. Somos unha e carne. Mas ela não pode ir comigo
porque está ajudando a mãe, D. Vanda, com os doces do buffet que administra
e atende a todos os tipos de festa.
Volto para casa toda suada. Verão acaba comigo. Todo dia, tenho a sensação
de estar assando dentro de um forno, como um dos bolos da Bastiana. Um
banho gelado é tudo o que eu preciso.
Da porta da cozinha, avisto a minha velha Bastiana, de costas, retirando do
forno, os melhores biscoitos amanteigados do mundo! Eles são a sua marca
registrada. Ela não percebe minha presença e como faço desde criancinha,
desejo assustá-la. Pingo está todo preguiçoso próximo aos seus pés e nem se
preocupa em vir me fazer festa. O calor está afetando até os bichos.
Ando com bastante cuidado para que ela continue sem me notar, coloco a
minha bolsa sobre a mesa da cozinha e agarro-a por trás, cravando minhas
mãos em sua cintura gorducha e beijando seu rosto bochechudo. Bastiana dá
um grito.
– Oi! – caio na risada da cara zangada que ela faz, correndo em minha direção
e me ameaçando com a toalha de prato, enquanto eu dou uma volta inteira em
torno da mesa da cozinha.
– Menina! Quer me matar do coração, é?! – põe a mão na cintura e me olha
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aborrecida. – Oxe, menina sem juízo!


– Não, Bastiana... – digo ainda rindo e vou em direção ao tabuleiro de
biscoitos que ela havia colocado em cima da pia. – Cadê a Bianca? – eu como
um dos biscoitos ainda absurdamente quente. Queimo minha língua, mas não
me importo. É um manjar dos deuses!
Bastiana repara a minha travessura e balança a cabeça com reprovação.
– Não mexe aí! O tabuleiro tá quente! Ocê vai se queimar. Sua irmã saiu com o
namorado... – põe o tabuleiro em cima da pia e vai acrescentando outros
ingredientes em um recipiente para uma nova massa.
– Qual deles? – não perco a oportunidade de mostrar para o mundo inteirinho
como minha irmã é uma namoradeira de quinta categoria.
– Ave Maria! Deixe a sua irmã! Menina implicante! Sem a sua mãe aqui, essa
casa vira um inferno com ocês duas! Oxe! Queira Deus que ela volte logo
dessa viagem... – se lamenta, cada vez mais zangada e limpa as mãos sujas no
avental.
– Ela foi é torrar o dinheiro do papai, isso sim! – não me dou por vencida.
Nunca. Jamais! – Tão cedo não vai voltar, Bastiana! Deixe Deus fora dessa! –
encosto na pia e cruzo meus braços, encarando-a. – E tem mais! A Bianca que
devia ter ido com ela no lugar do Alex! As duas se combinam. Torrar
dinheiro... – digo com ironia. – É só isso que sabem fazer!
– Creio em Deus Pai! Ocê olhe o respeito com a sua mãe, menina! Seu pai vai
chegar e vou contar essa sua conversinha todinha pra ele, ouviu sua
malcriada? – dá um tapinha na minha mão ao ver que eu ia pegar outro
biscoito. Dou uma risada travessa. – Eu já avisei. Tomara que ocê se queime,
menina teimosa!
Vou tomar banho sem conter o riso. Bastiana é a melhor das melhores. É uma
das pessoas mais puras e mais maternais que eu conheço em toda a minha
vida. Seu mau humor é impagável e eu a amo com todo o meu coração.
Jogo as roupas em cima da cama, como de costume. Minha bagunça não tem
limites.
A água fria tem um poder mágico sobre meus músculos. Estou no meu próprio
banheiro. Meu quarto é uma suíte. Ele já foi dos meus irmãos também, quando
eram pequenos. Meus pais achavam que facilitava os cuidados infantis. Como
sou a caçula, acabei ficando com ele. Bianca morre de inveja disso.
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O banheiro é pequeno, como o que fica no quarto dos meus pais. Minha casa
não é grande, mas é particularmente bem dividida. Ela tem cinco quartos,
todos com o tamanho suficiente para camas, guarda-roupas e mesa de estudos.
Eu amo meu quarto! Tenho a vista privilegiada dos fundos da casa, onde
crescem as flores mais lindas que Bastiana cuida.
Tomo um banho rápido com a intenção de assistir ao filme da tarde na
televisão. Saio de calcinha e sutiã e com uma toalha enrolada na cabeça. Uso
agora a toalha para secar meus cabelos castanhos e longos. Os fios ondulados
molduram meu rosto jovem. Contemplo meu reflexo no espelho e sorrio com o
que vejo. Em nada mais me assemelho àquela adolescente sem graça e
complexada. Eu adoro meu cabelo, o brilho dos meus olhos e o formato da
minha boca. Viro de lado e admiro minhas pernas bem feitas, meus seios
pequenos e firmes e meu bumbum proporcional. Tudo na medida. Mais nada
de ruim a declarar como no passado. Sou parecida com a minha mãe
fisicamente e me orgulho disso, pois ela é muito bonita.
A brancura da minha pele ainda me incomoda um pouco, mas consigo me
bronzear rapidamente sem aparentar ser um camarão. Nada de óculos com
armações grosseiras. Uso lentes de contato agora, mas meus óculos de
emergência estão sempre prontos para serem usados quando preciso. Meu
sorriso conta com dentes alinhados, livres do velho e aposentado aparelho.
Sou muito feliz com minha aparência. Sou muito feliz com a minha vida. Sei
que minha alegria é contagiante, mas também sei que ainda conservo dentro de
mim, a mesma Francine rebelde que fui um dia. Não guardo nada. Vomito cada
um dos meus desafetos. Não sou obrigada a nada.
Não acho mais os garotos chatos e desinteressantes. Eles são bem legais. Meu
primeiro beijo foi com um amigo da escola, o André. Namoramos um
tempinho, mas o que sinto por ele, é somente uma amizade grande e
verdadeira. E é recíproco. O que tivemos, não passou de um rolo.
E Ivan... Ah, Ivan! O que dizer de um homem que ainda rouba meu coração,
mas que foi embora sem olhar para trás? Que não se importou com os meus
sentimentos? Que acredita que uma visita em quatro anos foi o suficiente para
matar a saudade que eu sentia dele? Morro de amor. Mas não me humilho
telefonando nem respondendo às cartas que envia para a minha família. Ele é
um ingrato, isso sim! Acha que pode viver de trabalho, comer trabalho,
respirar trabalho... Mas esquece do mais importante: que é o amor da única
família que tem. Todos os seus tios distantes são um bando de interesseiros e
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Ivan sequer lembra que eles existem.


Minha memória só registrou um beijo dolorido na testa e a raiva de vê-lo
partir e nunca mais voltar. Amadurecer faz parte, Francine! E você caiu na
real! Parabéns! Agora mate esse amor. Mate! Antes que ele mate você
primeiro. Só que não. Meu coração não acompanha a minha cabeça, mas a
idolatria ficou para trás. Descobri que posso viver sem ele. Ponto final. E essa
história pode mais uma vez acabar aqui. Ou não. Quem sabe?

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Capítulo Sete
A sala da minha casa é bem ampla e arejada. Sofás grandes e confortáveis com
almofadas macias compõem o ambiente em tons pastéis. Há um tapete no chão
e bonitos quadros nas paredes, impecavelmente pintadas de branco.
Um dos quadros dessa sala sempre me chamou muita atenção: a pintura de uma
estradinha, que leva a um pequeno povoado com muitas árvores e dividido por
um riacho. Cerquinhas de madeira rodeiam pequenas casinhas. Algumas portas
e janelas estão abertas. Ao fundo, um relevo deslumbrante.
Quando eu era menina, Ivan brincava que íamos visitar as pessoas do povoado
e andávamos por suas estradinhas. Gostávamos de imaginar o que tinha por
detrás dos montes e dentro de cada uma daquelas casas. Esboço um sorriso
com essa lembrança tão bonita de minha infância.
Em frente ao sofá maior, há um móvel não muito grande, onde se encontra a
televisão. Outros objetos modernos também estão sobre ele, decorando-o com
bom gosto. Minha mãe sempre diz que, nesses casos, menos é mais e tenho que
concordar com ela. Uma mesa de jantar está num espaço um pouco mais
afastado desta mesma sala, o que torna o ambiente bem mais íntimo e
acolhedor.
Deito no sofá e rapidamente Pingo vem se esparramar no chão, ao meu lado.
Faço carinho em sua barriga, dizendo a ele o quanto é folgado. Pego o controle
remoto e ligo a televisão.
Não há nem tempo de descobrir se o filme já começou porque ouço o chamado
mal humorado de Bastiana.
– Francine, seu celular tá tocando! – grita da cozinha. – Ocê esqueceu sua
bolsa aqui na mesa!
– Já estou indo! – grito de volta e me dirijo à cozinha a tempo de ouvir seus
resmungos.
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– Trate logo de atender! – diz descascando uma batata. – Diacho de menina!


Vou até ela e beijo sua bochecha, abraçando-a pela cintura.
– Rabugenta! – dou uma risadinha e pego meu celular na bolsa, atendendo-o
em seguida. Viro de costas para não dar motivo a ela de continuar reclamando.
Saio em direção à sala. – Oi, amiga! – digo animada. É Soninha.
– Oi, miga! E aí, como foi lá na escola? Levou o documento? – minha amiga é
o cúmulo da responsabilidade. É claro que o documento dela já estava na
escola no dia seguinte ao pedido de entrega. Soninha é dessas. Preocupada
com tudo e extremamente organizada. É daquelas meninas que arrumam a caixa
de lápis de cor por tons em ordem crescente, mantém as canetas todas viradas
para o mesmo lado dentro do estojo, tem a letra mais linda e o caderno mais
bem organizado do planeta. Eu particularmente acho tudo isso uma perda de
tempo. TOC, talvez? Mas olha! Eu. A rainha da bagunça! Da desordem! Será
que tenho o direito de dar palpite na organização alheia? Aff. Ninguém
merece... E viva a toalha molhada em cima da cama!
– Sim, estava atrasada na entrega, mas deu tudo certo! – respondi
simplesmente.
– Ah, que bom! Estava preocupada!
Alguém tinha dúvida disso, Soninha? Não, nem eu! Julia, nossa outra amiga
íntima e eu vivemos para implicar com as preocupações de Soninha. Mas
minha amiga é impassível. Nada abala seu senso de responsabilidade. Ela dá
de ombros e nem liga. Nós? Nós damos risada.
– E vocês aí? Acabaram os doces? – volto a sentar no sofá da sala.
– Que nada! Pelo visto, isso vai render até tarde, mas não podemos reclamar.
É desse trabalho que minha mãe tira nosso sustento, né? – Soninha diz com
seriedade.
Senti meu rosto arder como se tivesse levado um tapa no meio da minha cara!
Essa constatação me faz sentir vergonha dos meus pensamentos e ações poucos
gentis com minha amiga. Eu nunca precisei trabalhar para ajudar a sustentar
minha família. Nunca precisei me preocupar com o almoço do dia seguinte. Eu
nunca deixei de ter pai. Eu nunca precisei ter mais responsabilidades do que
estudar para a prova do dia seguinte. De repente, ela vem. A culpa. A tão
dolorosa culpa! Minha amiga devia ser motivo de orgulho para mim, não de
brincadeiras sem graça.
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– Desculpa, amiga. – digo sentida.


– Desculpar? Pelo quê? Ficou doida? – Soninha parece confusa.
– Por eu ser tão egoísta, às vezes... Por não perceber o quanto você é especial.
– Eita, você bebeu o que hoje? – diz rindo e muda rapidamente de assunto. –
Ah, não se esqueça de que eu estou esperando você aqui em casa amanhã. E
outra coisa: Vá à merda com suas desculpas! – desliga.
Essa é a sua maneira de me dizer que está tudo bem.

Assisto ao filme e cochilo no sofá. Quando acordo, já é noite. Bianca vem


descendo as escadas, falando pelo aparelho do telefone fixo. Sua voz está alta,
estridente, sem um pingo de delicadeza com quem quer que seja seu
interlocutor.
– Tudo bem, pai. Tá bom, eu digo... Está bem... – a expressão dela é de
extrema impaciência. Você já disso isso, pai...! Tá bom. Tchau. – caminha em
direção à cozinha.
– Ei, Bianca! – chamo antes que ela desapareça.
– Fala, água de salsicha! – olha para mim com deboche. Vinte e dois anos!
Minha irmã tem vinte e dois anos de nada com nada e coisa nenhuma! Como
pode isso?! Ela consegue se comportar feito uma completa imbecil! E a
propósito: água de salsicha é aquele escroto do seu novo ficante! Engulo os
xingamentos.
– Papai não chega para o jantar? – pergunto contando até dez mentalmente. Ela
merece um murro nessa cara abusada!
– Não. Ele pediu para avisar. – responde com cara de paisagem.
– E por que você passou por mim e não falou nada? – pergunto abismada com
tamanha cara de pau.
– Porque não sou obrigada a falar com você... Simples assim. – recoloca o
fone para continuar ouvindo seu repertório musical. Tão patético quanto ela.
Minha irmã me dá pena. Sabe ser ridícula. Ridícula com força. Mas eu
consigo ser bem mais.

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– Ah, Bianca! – chamo e ela volta a me encarar. – Quantos anos você tem
mesmo? Doze?
Ela me fuzila com o olhar e eu me jogo no sofá rindo a valer. Qualquer dia
desses, eu me engasgo com a minha língua ferina.
Sabe como eu me sinto agora?
Como uma nota de três reais. Não valho nada!

♫♪

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Capítulo Oito
Essa manhã, o clima está particularmente fresco. O sol escaldante de todos os
últimos dias não parece querer dar o ar de sua graça. Tomo meu banho
matinal, desço para tomar o café da manhã e ouço o telefone fixo tocar. Então,
vou com toda a energia dos meus dezoito anos, atender à chamada.
– Alô? – Quem seria tão cedo? Meu rosto se ilumina. – Alex! Como você está?
Quando você volta? – digo sem parar para respirar.
– Calma, Francine! – escuto seu riso do outro lado da linha. – Nós estamos
bem e nós voltaremos daqui a dois dias! – meu irmão deixa claro, enfatizando
a palavra nós, duas vezes, que o esquecimento para com a mamãe não é
perdoável.
– Desculpe... – respiro fundo, recompondo-me pela bronca sutil.
– Tudo bem, irmãzinha. – volta a sorrir. – A mamãe está mandando um beijo.
Ah, para! Tive que me segurar para não gargalhar com essa frase fora de
contexto. Nossa mãe?! Mandando um beijo... para mim? Seria hilário se não
fosse trágico. Ou não necessariamente nessa ordem. O fato é que esperar
beijos e abraços de D. Lúcia é perda total de tempo. Quiçá, de vida. Eu
poderia ter sido poupada desse comentário descabido. Mas ter uma discussão
com Alex agora sobre isso está fora de cogitação.
– Agradeça e diga que mandei outro. – quem responde é o sangue de uma
barata que crio numa caixa de sapato.
– E papai, Bianca e Bastiana? Estão bem? – Alex emenda.
– Bianca deve descer já já para o café. A Bastiana deve estar lá fora, ainda
não a vi. Mas, direi que você ligou. – conserto. – que vocês ligaram. Papai
chegou tarde do hospital ontem e deve dormir mais um pouco, afinal ele tem
folga hoje. Mas, e aí? O que está achando da viagem?

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– Nossa, Fran! Aqui é lindo! Espero trazê-la também em breve. – diz


empolgado. – A mamãe está adorando!
– Que bom... – eu sei que não é para menos. Minha mãe está onde queria, com
o filho querido, numa cidade turística, gastando as economias do meu pai com
tudo o que brilha aos seus olhos.
– Fran, vou ter que desligar. Eu ligo quando a gente estiver indo para o
aeroporto.
– Está bem. Cuide-se e... – respiro fundo e completo – Cuide da mamãe
também.
Desligo o telefone e sinto um aperto no coração. Um sentimento tão estranho!
Minha mãe e eu não nos damos bem, mas é fato que eu desejo que tudo fosse
diferente. Aprendi a não contar com ela e a me virar sozinha. Ou quando não
consigo, sei que posso gritar a Bastiana, o papai ou o Alex. Mas algo dentro
de mim... lá no fundo, diz que eu tenho uma mãe e que é meu dever e meu
direito contar com ela. Carência materna? Um pouco, talvez. Não faço ideia
do motivo pelo qual ela, às vezes, me hostiliza tanto. Quem sabe um dia eu não
consiga descobrir?
Bastiana vem trazendo a garrafa de café quente em uma das mãos e um prato
de bolo de cenoura na outra. Geralmente, coberturas de chocolate costumam
me tirar de qualquer devaneio e agora não é diferente. Papai vem descendo as
escadas, todo cheiroso, com a barba feita e a expressão cansada.
– Bom dia, filha. – beija minha cabeça, enquanto sentamos à mesa.
– Bom dia, paizinho. – digo enchendo um copo de leite quente. – Dormiu bem?
Ele já está com os óculos de leitura na ponta do nariz e o jornal aberto, quando
olha para mim e responde:
– Como uma pedra. Aquele hospital ontem estava um Deus nos acuda! Não
consegui simplesmente virar as costas e sair. Ainda bem que a clínica também
não abre hoje. – me olha de rabo de olho, enquanto mastigo um pedaço de pão.
– Filha, preciso te pedir uma coisa... – tira os óculos e me encara de um jeito
sério.
Lá vem bomba! Quando meu pai me olha desse jeito e fala nesse tom, eu já sei
que o pedido é daqueles bem difíceis de realizar. O pedaço de pão desce
atravessado e eu tomo um pouco do suco para ajudar o trajeto dele até meu
estômago. Aposto que ele vai me pedir para acompanhá-lo naquelas festas
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chatíssimas de final de congressos. Mas nem sob tortura! Não. Não e não!
Será que papai não podia ao menos ter esperado eu comer meu pedaço de bolo
com cobertura de chocolate?! Resmungo algo incompreensível. Ele entende
que deve continuar seu discurso de convencimento inútil e me olha já
entendendo que não precisa dizer do que se trata. Minha cara já diz tudo. Ele
já sabe a minha resposta.
– Ah, filha, por favor, vai?! Só essa vez! – junta as mãos, implorando.
– Não, não senhor! – balanço a cabeça em negativa, já começando a ficar
irritada. – Você sabe que aquelas festas são terríveis de chatas. Eu acabo
ficando lá sozinha, enquanto você se diverte com seus amigos. Para que eu ir
então? – digo chateada.
– Mas dessa vez vai ser diferente. Eu juro! É a última vez que eu te peço. – dá
um sorriso apelativo. – Você vai negar isso ao seu pai que nunca te nega nada?
– Isso é golpe baixo, Dr. César! Jogo muito sujo! – caio na risada. – Quando é
essa festa?
– Hoje, às oito. – papai sorri vitorioso.
– Hoje?! – abro a boca e arregalo os olhos, surpresa demais para acreditar. –
Mas eu combinei com a Ju e a Soninha de...
– Por favor?! – papai junta as mãos novamente em súplica.
– Tá... Tá bom! – levanto os braços, rendida. – Você venceu! Mas deixo
registrado aqui que essa é a última vez que vou a essas festas medonhas. E não
terá nada que me convença do contrário! Nem essa sua cara de cachorrinho
que caiu da mudança! – rimos os dois.
Quem podia com ele?
Tomamos café juntos e papai vai para o quarto descansar, enquanto eu ajudo
Bastiana a tirar a mesa. Ela reclama que ele tem comido feito passarinho, que
sempre sobra comida no prato e eu também me preocupo com isso.
Bianca vem descendo as escadas, com expressão de sono e mau humor. Uma
novidade, por favor, Deus!? E para não me aborrecer logo cedo, dou bom dia
e vou subindo as escadas em direção ao meu quarto.
– Papai falou da festa com você? – ela me pergunta.
Oi? Minha irmã patética está falando comigo? Mas enfim, boas maneiras são
ensinadas para serem praticadas. Resolvo responder a pergunta dela com outra
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pergunta.
– Por quê? – levanto o queixo, desafiando-a.
– Só para saber. – diz.
Ei! Espere um minuto, por favor! Há algo muito estranho nessa história! Se
Bianca vai a essa festa acompanhando papai, porque diabos eu tenho que ir
também? Algo não está me cheirando bem. O que meu pai está aprontando?
Subo as escadas em direção ao quarto dele e encontro um bilhete na porta,
escrito em letras de forma:
– Encontro você na sala, às oito. – Simples assim.
Fim de papo. Não me incomode, Francine! Até mais tarde.
Minha professora de Língua Portuguesa ficaria orgulhosa de como eu sei
internalizar as entrelinhas das frases. Eu leio o não-dito. Eu ouço vozes de
contenção. E isso merece um dez.
O que merece um zero é a minha falta de convicção em dizer não.
♫♪

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Capítulo Nove
Minha casa fica situada em um bairro próximo ao centro da cidade. Ela tem
dois andares e possui uma varanda na frente. Não somos ricos, mas temos o
suficiente para vivermos confortavelmente. Nos fundos da nossa garagem, fica
guardada a minha bicicleta. Decido usá-la para ir até a casa de Soninha.
Pedalo pelas ruas estreitas, de árvores altas e casas bonitas do meu bairro.
Sou nascida e criada aqui e não há um só vizinho que não tenha me visto
crescer. Minha mãe não gostava muito, mas eu adorava brincar na rua até tarde
com meus coleguinhas. Voltava para casa tão suada e suja que Bastiana me
dava banho às escondidas:
– Peste de menina! Já pro chuveiro antes que sua mãe olhe ocê! Parece um
muleque! Vô esfregar ocê inté tirar o couro! Diacho! – ela me enxotava para
o banho.
Novas crianças, agora, brincam nas calçadas. Cachorrinhos latem com a minha
passagem, idosos estão sentados em suas varandas em um bate-papo matinal.
– Bom dia, D. Penha! - aceno para uma senhora conhecida de longa data.
– Bom dia, querida! – com um sorriso, ela retribui acenando também.
A minha vida se resume a esse lugar! Amo cada esquina, cada pedacinho do
bairro onde moro.
O sol começa a esquentar minhas costas, quando salto em frente a uma casa
grande e particularmente conhecida, com muro baixo, árvores frondosas no
jardim e uma garagem enorme: a casa da minha amiga.
Desço da bicicleta e vou empurrando-a até o portão. Toco a campainha e vejo
através do vidro da janela da sala, um rostinho redondo, emoldurado por
cabelos lisos e loiros que caem em desalinho sobre a testa.
Segundos se passam até Soninha vir me receber, com um sorriso largo,

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estampado. Ela é muito alegre, assim como eu. E muito bonita: loira, magra,
olhos verdes e mais alta do que eu. Aff. Isso não é tão difícil.
– Fran! – minha amiga me abraça com força, como se não nos víssemos há
dias. – Preciso tanto conversar com você! – está apreensiva.
– O que aconteceu? Que cara é essa? – pergunto preocupada.
– Vamos, entre. – abre caminho para que eu possa passar com a bicicleta. – Lá
dentro conversamos melhor. A mamãe disse que está com saudades de você.
Guardamos a bicicleta nos fundos da casa e entramos. D. Vanda, a mãe de
Soninha, está sentada à mesa da cozinha, tomando um café. Em uma bancada
ao lado, há uma infinidade de docinhos de festa em pratos coloridos.
Recipientes, panelas e colheres de pau estão sujos de doce dentro da pia,
formando uma montanha de louça para lavar.
Soninha se parece muito com a mãe, em todos os sentidos. Não me lembro
direito do seu pai. Ele faleceu quando tínhamos quatro anos. Desde então, D.
Vanda sustenta sozinha a única filha, fazendo todo o tipo de doces, tortas e
bolos para vender. A pensão que recebe do marido, não é suficiente para
mantê-las com o mínimo de conforto. Quando não tem atividades escolares,
Soninha ajuda a mãe no trabalho de preparar os quitutes.
– Oi, filha! – levanta-se assim que me vê e me abraça.
– Oi, tia. – sempre a chamei carinhosamente assim. – Como a senhora está? –
beijo seu rosto.
– Depois de lavar tudo isso... – aponta a louça, com uma careta. – Eu estarei
ótima! – dá uma risada. – E você, filha?
– Posso ajudar vocês se quiserem... – me ofereço prontamente.
– Tá louca, amiga? Nada disso! – Soninha interfere. – Agora é a vez dela
lavar! – aponta a mãe, sorrindo. – A senhora nem pense em repassar a tarefa!
A outra leva de louça foi todinha minha! – D. Vanda dá risadinhas travessas,
enquanto Soninha se volta para mim. – Ela é trapaceira, amiga!
Nós três caímos na risada. A relação delas, ultrapassa o fato de serem mãe e
filha: há uma linda amizade sempre presente em cada gesto, em cada palavra,
em cada brincadeira. Cúmplices em todos os momentos da vida.
– Tia, a senhora estava querendo me usar para passar a perna na sua própria
filha? – digo ainda rindo.
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Soninha dá um beijo no rosto da mãe.


– Volto para te ajudar com o almoço daqui a meia hora, está bem? Fran vai
almoçar com a gente...
– Não se preocupe, filha! Arrumo tudo em dois tempos. O almoço já está
adiantado. Vá conversar com a Fran... – D. Vanda diz resolvida e dirige-se a
mim. – Vê se coloca um pouco de juízo na cabeça da sua amiga! – levanta o
queixo na direção de Soninha.
– Mais? - solto uma risada.
– Mamãe! – Soninha exclama com indignação.
– E por acaso eu estou falando alguma mentira!? – fala em um tom mais alto do
que a filha. – Tá aí toda chateada por causa de maluquices que a sua própria
cabeça inventa! – caminha em direção à pia.
Não entendo muito bem aonde D. Vanda quer chegar, mas acredito que tenha
algo a ver com Nando, o namorado de Soninha. Eles se conheceram na escola
e namoram há dois anos.
Minha amiga me puxa pelo braço até o seu quarto. Sentamos em sua cama de
solteiro e ela me conta a respeito das suas suspeitas em relação à fidelidade
de Nando. Ele havia se matriculado no cursinho preparatório para carreira
militar que há na escola, no período da tarde. E Rebeca, uma garota que estuda
conosco, também. Desde o ano anterior que Soninha vinha estranhando certa
proximidade dos dois. Agora, ela descobre que eles vão estudar juntos na
parte da tarde e longe do alcance de seus olhos.
D. Vanda não acredita que o jovem genro esteja enganando a filha. Ela o vê
como um filho e não duvida de sua honestidade. Mas Soninha, como toda
menina apaixonada e insegura, pinta monstros onde não existem. Ou será que
existem?
– Amiga, suspeitar é bem normal. Mas você já está aí, acreditando que ele
esteja realmente traindo você! – tento tranquilizá-la. Nando sempre foi um
cara tão bacana... Eu sinceramente não acredito que ele faria uma coisa dessas
com você.
– É... Pode ser que você tenha razão. – diz visivelmente triste.
– Escute, Soninha... – coloco a mão em seu ombro. – A Rebeca sempre foi uma
oferecida! Eu acho que você devia sentar com o Nando e conversar
abertamente sobre tudo isso que está te angustiando...
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Ela deixa cair uma lágrima. Soninha está sofrendo e eu sei disso. Poucas vezes
na vida, eu a vi chorar. Seguro-a pelos ombros e tento reconfortá-la com um
abraço.
– Tudo vai se resolver, você vai ver. – digo acariciando sua cabeça, enquanto
ela chora.
Eu almoço com Soninha e D. Vanda e volto pra casa rapidamente, afinal, eu
tenho a droga da festa para ir à noite. Recebo uma ligação da Julia para
confirmar a nossa ida ao cinema, mas eu cancelo por motivos óbvios. Estou
com dor de cabeça e mal humorada. Não necessariamente nessa ordem Aff...
Maldita festa! Tomo um analgésico e deito na minha cama, olhando para o teto.
Penso na minha amiga sofrendo, nas vidas tão diferentes que levamos...

Adormeço.

♫♪

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Capítulo Dez
Eu me considero uma garota comum. E meu quarto prova isso. Acima de minha
mesa de estudos, há uma bancada com uma televisão, um aparelho de som que
eu ganhei de presente de Natal. Acima, há três prateleiras com livros, CDs e
bichinhos de pelúcia. Todos os móveis são brancos, assim como as paredes.
O ambiente ganha vida com as cores das cortinas românticas que cobrem as
janelas de madeira envernizadas, os acessórios femininos, além das almofadas
coloridas e das colchas que costumo revezar em cima da minha cama macia.
Cama essa em que eu desperto agora, com o chamado de Bastiana.
– Acorda, menina! – a voz dela vinha de muito longe no meu sonho. – Anda,
Francine! Levanta! – sacode meus ombros. – Vá tomar banho e botar uma
roupa senão ocê perde a festa...
Festa? Aiii... A festa! Sento completamente atordoada, ainda sentindo as
pontadas da dor na cabeça.
– Oh, meu Deus! A festa... – passo a mão pela testa banhada de suor.
– Ave Maria! – Bastiana não está nada paciente. – É menina... A festa do seu
pai. Anda logo ou vai se atrasar.
Levanto da cama e piso no tapete felpudo que adoro esfregar os pés. O rosto
tão familiar de Bastiana é tranquilizador para mim e sou muito grata a ela por
ter ajudado a me criar com tanto amor. Abraço-a de surpresa e dou um beijo
em seu rosto carinhosamente:
– Bastiana... Eu adoro você! - digo pausadamente. – Sabia?!
Bastiana é durona, sempre foi assim. Sinto sua timidez brotar quando ela
revira os olhos e resmunga, tentando se libertar dos meus braços.
– Oxe! Pare de falar bobagem e vai tomar banho! – dá um tapinha no meu
traseiro como se eu fosse a mesma criança travessa que ela esfregava inté
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tirar o couro.
Entro no banheiro sorrindo e mando um beijo na ponta dos dedos em sua
direção. Ela sempre fica encabulada com manifestações de afeto, mas sei que
me ama com a mesma intensidade que amaria um filho biológico seu, se os
tivesse. Somos os seus meninos desde que nos viu nascer, dando broncas e
fazendo nossas vontades. Sempre seremos os seus meninos.
Sinto meu corpo relaxar no banho. Lavo os meus cabelos e me dou conta de
que as pontadas na cabeça desapareceram. Penso em como essa noite será
longa e cansativa. Terei que aguentar caras inconvenientes, gente bebendo,
dançando, fumando e falando em medicina a noite toda. Ainda tinha que aturar
Bianca resmungando. Nin-guém merece!
Opto por um vestido preto, de alcinhas e com um decote discreto e sapatos de
salto, da mesma cor. Seco meus cabelos longos com cuidado e decido deixá-
los soltos. Após uma make caprichada, olho o relógio em cima da mesinha de
cabeceira: dez para às oito. Ufa. Salva pelo gongo. Digo, pela Bastiana.
– Francine! – meu pai bate à porta.
– Entre! – olho para minha imagem refletida no espelho e aprovo o que vejo. –
Está adiantado dez minutos, nem venha com sermões! – digo enquanto ele entra
no quarto.
Há um silêncio incômodo no ar e eu olho para ele confusa. Meu pai está me
fitando de um jeito estranho. Uma mistura de admiração e... tristeza?
– O que houve? – pergunto assustada. – Decepcionei? – toco o vestido e olho
para o meu reflexo no espelho, procurando algo errado com a minha
aparência.
– Não, filha... – meu pai sorri abanando a mão. – De jeito nenhum! – me olha
atentamente. – Eu... estou encantado com a mulher linda que você se tornou e
eu ainda não tinha tido tempo de notar! – sorri. – Você está... linda!
Meu coração se enche de ternura. Oh, meu paizinho! Que difícil deve ser para
ele me ver tão independente, tão menos insegura.– Às vezes fico me
lembrando de quando você era pequena e ainda precisava de mim. Como eu
era feliz naquela época! Eu podia protegê-la... – pega uma de minhas mãos e
eu o fito com todo o meu amor. – Eu conhecia seus medos, suas fraquezas, o
brinquedo que a faria feliz... – suspira.
– Você sempre me faz feliz... Sempre! – eu o envolvo em um abraço. – E eu te
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amo muito!
– Eu também te amo, minha filha. – beija o alto da minha cabeça e suspira.
Meu pai é o melhor do mundo.

O salão de festas é enorme. Está localizado na cobertura de um prédio


comercial no centro da cidade. Há uma pista de dança, bar e salão de jogos.
Sou apresentada a alguns médicos e amigos do meu pai. Um jovem residente,
que está entre eles, me convida para dançar. Seu nome é Mauro. Ele é moreno,
forte, dono de um par de olhos castanhos sedutores. É bonito. E sabe disso.
Bastam três danças para que eu perceba que a modéstia não é uma qualidade
do doutor eu sei eu faço eu tenho eu quero. Minha impaciência começa a ficar
evidente quando ele começa a flertar comigo e apresentar possessividade ao
segurar minha cintura. Opaaa! Vamos baixar a bola, filhinho de papai!
Procuro meu pai com o olhar e o encontro conversando com as mesmas
pessoas das quais eu fui apresentada, antes de ser raptada por esse
inconveniente. Preciso encontrar uma desculpa rapidamente para que eu possa
me livrar dele. Digo que estou cansada e que gostaria de voltar a me juntar ao
meu pai. Ele, rapidamente, me propõe conhecer uns amigos que estão bem
próximos a nós, em frente ao salão de jogos. Antes mesmo que eu possa
esboçar qualquer reação, Mauro me puxa pela mão e me apresenta
forçadamente aos seus amigos.
Cumprimento cada um deles com um aperto de mão, pensando numa maneira
de me livrar daquela situação, na primeira oportunidade, sem parecer
grosseira. Enquanto isso, a conversa entre eles volta ao seu curso normal e eu
me distraio, com as pequenas bolhas de ar em meu copo de água tônica.
E assim que eu levanto os olhos e foco na porta de entrada, não posso
acreditar no que estou vendo. Não posso controlar o tremor de minhas pernas,
a palpitação do meu coração, o calor que se apossa de mim...
Isso é uma despedida. E até quando será assim? Isso é uma despedida. Uma
despedida. Você vai voltar? Eu volto assim que puder.
Assim que eu puder.

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Em meio à barulheira de música e copos, avisto uma pequena porta que dá


para uma área externa. É para lá que eu vou assim que conseguir sair do
campo de visão do chato do Mauro. Uma emoção incontrolável, ao avistar
Ivan, está tomando conta de mim e eu preciso sair de onde estou. A
necessidade de ficar sozinha torna-se tão essencial quanto respirar.
– Desculpe, se me dão licença, preciso ir ao banheiro... – tento dar um sorriso
mais natural possível. – Foi um prazer conhecê-los... – digo me referindo a
todos eles. Mas a figurinha impertinente não se manca.
– Quer que eu a acompanhe até a porta? – Mauro me segura pelos ombros.
– Não há necessidade, Mauro. Obrigada. – tento me esquivar de sua mão em
meu pulso, em vão.
– Tem certeza? – insiste.
Idiota! Eu quero ficar sozinha, ouviu? So-zi-nha! Entendeu ou quer que eu
desenhe? Respiro fundo e tento não parecer mal educada.
– Absoluta. – entrego a ele meu copo com impaciência.
– Eu aguardo você. – eu ainda o escuto dizer quando viro às costas.
Arghhh... Ba-ba-ca!
Ah, mas meu pai vai ter que se ver comigo! Além dessa festa insuportável,
ainda tenho que aturar esse imbecil até quando? E ainda tem Ivan, que chega
assim de repente... De repente para mim! Porque está mais claro do que dois e
dois são quatro que papai sabia que Ivan estava no país! Por isso aquele
empenho todo em me convencer a vir! Burra. Burra. Burra!
Entro no banheiro feito um furacão e respiro profundamente repetidas vezes.
Acalme-se, Francine! É só o Ivan! Só o Ivan! O melhor amigo do seu irmão,
que a considera uma irmãzinha. É só o Ivan. Não paro de respirar, tentando
manter o controle. É só o Ivan com aquele rosto lindo, com aquele corpo
viril, mãos que me amparam, olhar que me destrói... Ai. Meu. Deus! O que eu
vou fazer? Meus últimos pensamentos mandam minha respiração ir à merda e
apertam novamente o botão que dispara minha adrenalina.
Calma... Calma... Seco minha testa e sopro o ar com força. Uma. Duas vezes.
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A imagem que vejo refletida no espelho em nada se assemelha àquela menina


de óculos, cabelo bagunçado e aparelho nos dentes. Tenho dezoito anos! Sou
uma mulher. E como tal, preciso saber me controlar. Mais cedo ou mais tarde,
Ivan e eu vamos nos encontrar. Então, por que fugir dessa maneira?
Saio do banheiro sem ser notada e vou para a área externa, onde há um canto à
direita bem mais escuro e reservado. Avisto um pequeno sofá encostado à
parede e, ao lado, um lugar para pousar copos. Debruço na sacada com vista
parcial da cidade, cujas luzes artificiais parecem estrelas na terra. Pequenos
pontos luminosos que dão vida e trazem uma magia especial a essa noite.
Acima da minha cabeça, uma lua crescente linda, parece me dizer que tudo vai
ficar bem.
Meus pensamentos são meu céu e meu inferno.

♫♪

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Capítulo Onze
Meus pensamentos me levam para muito longe. Estou à deriva em um pequeno
barquinho. Ondas agitadas o lançam de um lado a outro com agressividade.
Não sou mais a menina que Ivan vira pela última vez. Eu cresci. Não tenho
mais catorze anos. Não fantasio mais como antes... Amores impossíveis são
impossíveis e ponto final. Mas... O que fazer com esse sentimento poderoso
que sinto brotar e crescer dentro de mim novamente? Isso é uma despedida.
Achei que tinha conseguido enterrar esse amor. Tolice! Lá está ele, berrando
dentro do meu peito, me alertando que está mais vivo do que nunca.
Ouço o som de passos vindos em minha direção. Prendo a respiração e
mantenho meus olhos fixos num ponto luminoso lá embaixo. É ele! Sinto que é
ele! Ele veio me ver. Ele veio me ver!
Minhas mãos estão geladas e trêmulas, meu coração perde o ritmo e eu fecho
os olhos por segundos, rezando para que esteja equivocada. Por favor, que não
seja ele, por favor! Mas meus sentidos dizem totalmente o contrário.
– Estou incomodando? – a voz grave de Ivan chega aos meus ouvidos. Sua
presença é tão perturbadora que eu mal consigo encará-lo. Observo-o com o
canto dos olhos e vejo que aprecia as luzes da cidade. Ele está com uma calça
jeans escura e uma camisa social branca com as mangas dobradas nos
antebraços. O peito largo convida qualquer mulher a pousar a cabeça. Na mão,
ele carrega um copo com uma bebida escura. Uísque talvez.
– Não, não está. – aperto minhas mãos com força nas grades da sacada. É
impressão minha ou ele não me reconheceu?
Ivan se apoia nas grades, ao meu lado, centímetros o suficiente para manter
uma distância razoável. Está claro que não quer parecer inconveniente.
– Linda essa vista, não é? – diz ainda sem me olhar.
Minhas pernas estão a ponto de desabar. O meu coração está batendo
descompassado. Ele realmente não me reconheceu! E uma força estranha me
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faz gostar disso. Estou me sentindo poderosamente detentora de um segredo.


Eu dou as cartas agora. Eu digo como deve ser, eu controlo. Fuja se for capaz.
– Muito bonita. Vim para cá atraída por ela. – aparento naturalidade.
Bingo. A palavra atraída literalmente o faz tirar os olhos da vista e me fitar
com interesse. Posso sentir um leve sorriso em seus lábios e olhos curiosos
sobre mim. Gosto desse jogo. O terreno é sensivelmente perigoso, mas eu me
arrisco. Em minha cabeça, estou jogando um Sete de Copas antes de ter saído
o Ás do mesmo naipe, em um jogo de sueca. Risco de por tudo a perder. De
deixar a dupla oponente vencer a rodada ao arrebatar meu Sete com a carta de
maior valor. Mas... se o Ás não sair, valeu o frio na barriga. Valeu a
adrenalina. Valeu o risco.
– Você está sozinha? – Ivan me pergunta. Opa. Esse lado do campo está
minado, preciso levá-lo à outra direção.
– Não. Estou com a minha família. Tem interesse por medicina? – prendo a
respiração por segundos, desejando que ele fale mais sobre si mesmo.
– Pra dizer a verdade, não. – sorri. – Eu sou músico. – toma um gole do
uísque, coloca o copo sobre a mesinha e continua a falar. – Só vim encontrar
minha família aqui...
Minha família. É bom ouvi-lo falar desse jeito. Traz de volta a sensação que
eu sentia quando ele vivia na casa ao lado da minha. Mas, ao mesmo tempo,
sinto brotar uma ponta de revolta, já que está claro que não importa o quanto
minha família seja importante... Ele sempre vai embora. Sinto um frio na boca
do estômago quando penso em como ele reagirá ao saber minha identidade.
Percebo que os olhos de Ivan se perdem em um ponto qualquer da cidade e
que sua respiração fica superficial. A música, a minha família, a vida que
levamos... Tudo isso junto, traz a lembrança dolorosa de seus pais. Eu sei
disso. E posso compreender. É difícil para ele falar de família.
Quando percebo que voltará a conversar, desvio minha atenção para alguns
carros que passam em uma estrada ao longe.
– Eu moro fora do país. Mas resolvi voltar para ficar com eles. Tentar
reconstruir a minha vida aqui. – sinto todo o peso da sua tristeza na voz.
Reconstruir minha vida aqui. Bebo dessas palavras como um oásis. De
repente, estou sedenta por desfrutar de meus dias ao seu lado e viver meu
amor em toda a sua plenitude. Agora eu sou uma mulher, maior de idade! Esse
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dia chegou. E sim. Eu ainda... quero. Eu o quero. Eu quero Ivan para mim.
– E isso é bom? – dou um sorriso, tentando mudar o clima pesado que fica no
ar.
Ouvimos vozes se aproximando e vemos algumas pessoas entrarem na área
externa para apreciar a vista. Ivan volta a me fitar.
– Muito bom... – diz essas palavras lentamente, me olhando com extremo
cuidado, curiosidade e... desejo?
– Não se adaptou ao clima de lá? – dou uma risadinha e ele ri junto.
– Não é bem isso... – fica sério e volta a me encarar. – Lá eu me sentia muito
sozinho.
Sozinho? Isso quer dizer que não existem mulheres esperando por ele? Que em
sua vida não há nada mais do que encontros casuais? Sinto um alívio imenso
me invadir. Obrigada, make caprichada! Obrigada, vestido lindo e cabelo
sedoso! Faço uma imagem mental de minha atual aparência e me sinto feliz por
estar sendo capaz de mexer com Ivan. É nítida a rigidez do seu corpo para se
manter afastado e o jeito como me olha. Mesmo na semiescuridão, sinto que
sou... desejada. Devorada.
– Quantos anos você tem? – Ivan se aproxima e fica a poucos centímetros de
mim. Já começo a sentir seu calor e o cheiro indescritível do seu perfume. Não
costumo beber, mas sinto um ligeiro torpor, como se começasse a ficar
embriagada.
– Dezoito. – respondo e acabo com a distância entre nós. Aproximo meu rosto
do dele e sinto meus lábios ficarem secos de tão nervosa que eu estou. Passo a
língua para umedecê-los e quando dou por mim, estou com as mãos pousadas
em um peito forte e os lábios sendo explorados por uma boca ávida. Sua
língua toca a minha, intensamente. Intimamente. Seu toque me desnuda. E eu
estou aqui. Entregue.
O tempo para. Nada. Absolutamente nada nesse momento importa. Tudo. Tudo
o que eu sinto são as batidas de um coração acelerado na palma da minha mão;
uma boca voraz sobre a minha, exigindo, implorando, invadindo... Suas mãos
me puxam ainda mais para junto do seu corpo, me tentando, me provocando.
Seu perfume e o gosto do uísque em sua boca me deixam entorpecida. E eu
quero mais! Quero muito mais!
Quero que esse calor continue invadindo as células do meu corpo, me
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queimando, me arrebatando.
– Você é... linda! – diz com ardor. – Linda demais! – volta a me beijar.
Os lábios de Ivan passeiam pelo meu pescoço e deixam um rastro de fogo que
queima meus poros e inflama meu ventre. Eu quero mais. Eu quero. Eu o
quero.
Ivan abandona meus lábios, que ainda ardem pelo toque dos seus. Estou
totalmente sem fôlego. Preciso urgentemente de ar. Ele olha em meus olhos
atentamente, exprimindo um desejo que não parece ser capaz de conter. Ele
está visivelmente confuso, mas ao mesmo tempo, deixa emanar do seu olhar
toda sua vontade de me possuir.
– Qual é o seu nome? – me pergunta ainda ofegante e com as mãos sobre meus
ombros.
Encho meu peito de ar e com todo o juízo que ainda me resta, respondo em um
golpe só. Como uma facada. Num só impacto. Como um tiro.
– Francine. – respiro fundo e repito. – Eu me chamo Francine.
♫♪

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Capítulo Doze
Choque. A expressão de Ivan se resume nisso: choque. Seus olhos estão
arregalados e a boca entreaberta. Ele está absolutamente pasmo. Não sei o que
dizer, mas meu corpo está numa mistura de sentimentos intensos e
contraditórios. Por um lado, todo o meu ser reage feliz por ter sido beijada
pelo homem da minha vida e, por outro lado, acho que agi como uma completa
idiota em não me revelar para ele antes. Ou não. Sei lá.
O corpo de Ivan está paralisado. Ele fica sério e os músculos do seu rosto
estão tensos, o maxilar trincado. E agora? Não sei o que pensar. Seu olhar está
duro e eu o imagino virando as costas e indo embora assim como fiz algumas
vezes. Ivan fugindo? Não, isso não fazia o feitio dele. Mas o fato é que, aos
trinta e um anos, está se vendo atraído por mim. Eu. A menininha que ele
carregou no colo, que cantou e contou histórias para dormir.
Essa menininha cresceu e deu lugar à mulher que sou hoje. Desafiadoramente
atrativa. Quando ele, finalmente, resolve falar, sinto a ponta de uma faca roçar
o meu peito.
– O que foi que aconteceu aqui, Francine? Eu... – pigarreia. A voz falhando
numa mistura de arrependimento, surpresa, emoção e ainda, desejo.
Eu sou incapaz de falar. Estou acuada e, dessa vez, não há espaço para a velha
Francine sair correndo. É preciso encarar os fatos. Nós nos beijamos, foi
maravilhoso e nós dois gostamos disso. Minha cabeça procura em meu
escasso vocabulário no momento, algo inteligente a dizer, mas não consigo
pensar em mais nada além do calor que ainda sinto queimar os meus lábios
depois desse beijo. Eu... quero mais. Levanto a mão e tento tocar sua boca
com a ponta dos dedos, mas Ivan dá um pulo para trás, me empurrando
gentilmente.
– Francine, eu fiz uma pergunta! – diz com um tom severo, como se a menina
Francine tivesse feito uma brincadeira de mau gosto.

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Pigarreio também e percebo que é minha hora de falar. Qualquer coisa que eu
diga é melhor do que esse silêncio constrangedor. Não consigo tirar os olhos
da sua boca. Em seus lábios, quero me perder. Volto a me concentrar no que
dizer.
... me perder.
– O que você acha que aconteceu aqui? – devolvo a pergunta, empinando o
queixo, em desafio.
– O que eu acho que aconteceu aqui? – Ivan parece irritado. Muito irritado. –
O que aconteceu foi que eu cheguei nesse salão para reencontrar a sua família.
Encontro com seu pai e Bianca. Ela me diz que você estava em algum lugar da
festa com o seu namorado. –ri. – Eu nem sabia que você tinha um namorado! –
joga as mãos para o alto e as deixa cair ao lado do corpo.
Alôuuu, Ivan!? A Francine, cresceu, sabia? É claro que ela pode ter sim, um
namorado. Mas não. Mauro NÃO é meu namorado. Contudo, não me atrevo a
interrompê-lo para dizer isso e ele continua seu discurso acalorado.
– ... Estou cansado da viagem e não aguento ficar no meio daquela barulheira
toda. Venho para cá querendo um pouco de paz... – respira fundo e olha lá para
baixo, onde as luzes da cidade brilham na noite quente. – E encontro uma
garota sozinha, linda e... – abana a cabeça. – E essa garota era você! Você,
Francine! Você! – diz visivelmente chocado e arrependido.
– E eu lá sabia que você tinha o hábito de beijar garotas desconhecidas sem ao
menos saber quem elas são! – digo, ainda o desafiando.
– Você não sabe nada sobre os homens, Francine! – Ivan me olha
profundamente perturbado. – Por que não me disse quem você era? – pousa as
duas mãos, uma em cada lado, nos meus ombros.
Eu não sei o que responder. Ser sincera agora poderá afastá-lo para sempre.
Olha, Ivan, eu sempre amei você, desde que eu era uma menininha! Suicídio.
Imagino seu embarque no próximo avião. Meu coração não para de bater
acelerado e eu já não tenho pernas para me sustentar.
Em seus lábios quero me perder...
Sinto uma vertigem estranha e quase que a completa escuridão toma conta dos
meus sentidos. A pressão emocional que estou sofrendo está me abalando de
tal forma que mal posso suportar ficar de pé.
Ivan me ampara em seus braços e eu procuro desesperadamente por sua boca
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outra vez. Ele tenta resistir, mas meus braços enlaçam seu pescoço e beijo a
discreta covinha do seu queixo. Ele fecha os olhos.
– Francine, pare! – pede, mas seus olhos continuam fechados, procurando
autocontrole.
Em seus lábios quero me perder...
Ivan ainda me mantém presa ao redor de seus braços. Eu me liberto deles, mas
mantenho meus olhos dentro dos seus.
– Desculpe. – é a única coisa que consigo dizer, me afastando. Meu corpo está
em brasa. Viro as costas para ele e dou dois passos em direção à saída. Mas
sua mão forte me segura pelo pulso e me puxa de encontro ao seu corpo
másculo.
... me perder.
– Para o diabo com as suas desculpas e com o meu juízo! – novamente Ivan se
apossa da minha boca e... me arrebata.
E mais uma vez, em seus lábios... me perco.

♫♪

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Capítulo Treze
O som das vozes das pessoas que olham a vista nos traz de volta à realidade.
Ivan parece constrangido e eu também. Damos uma distância de um passo um
do outro e ele levanta as mãos como se me pedisse calma. Passa uma delas
pelos cabelos lisos e escuros, levando-a ao queixo, logo em seguida. Custo a
entender que o pedido tinha sido feito para que ele também pusesse em ordem
seu autocontrole e pensasse em algo coerente a dizer.
Eu continuo sem fôlego, respirando com extrema dificuldade. Minhas mãos
tremem ainda de emoção e meu coração está em puro êxtase. Sim! Eu amo esse
homem com todas as forças do meu ser. E quero. Eu o quero.
– Francine... me desculpe. – fala apreensivo. Está muito perturbado. Sinto que
é a hora de dizer um pouco da verdade que ainda escondo dentro de mim.
– Ivan, eu quis tanto quanto você! – digo olhando em seus olhos. – Não se
culpe porque eu não me arrependo de nada do que aconteceu aqui.
– Eu acho que você não está entendendo... – aproxima-se. – Não é uma questão
de se arrepender ou não. – revira os olhos e sua expressão é de apelo. Ele
junta as mãos. – Isso nunca mais pode acontecer. – repete como se estivesse
tentando convencer a si mesmo – Isso nunca mais vai acontecer!
– Como quiser... – sinto uma dor profunda no meu peito e minha vontade é de
sair correndo. Mas a nova Francine só se permite caminhar em direção à
saída. Como da outra vez, Ivan agarra um dos meus pulsos e me encara, ainda
sustentando o olhar duro e o maxilar trincado...
– Você acha que há algo de errado com você, não é? – estuda atentamente meu
rosto como se buscasse por si só a resposta para essa pergunta. – Não há nada
de errado com você. Eu te desejei... - respira e solta meu braço. – Meu Deus,
o que estou dizendo! - está confuso, muito confuso. Totalmente transtornado.
Resolvo que é preciso dar as cartas novamente, tranquilizando-o.
– Ivan, está tudo bem... – seguro uma de suas mãos e o olho com convicção. –
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Está tudo bem... – dou um sorriso e aguardo até que ele faça o mesmo. –
Amigos? – aperto a mão dele.
– Amigos! – dá uma risadinha nervosa e me olha sério. – Um olhar doce e
inocente – ele diz e eu faço uma careta – ... em uma mulher... Você agora é uma
mulher! Uma mulher linda.
Linda. A menininha feia e desinteressante agora é uma mulher linda. Vai ser
difícil dormir com um barulho desses, não é mesmo, Ivan? Fuja se for capaz.
Mais uma vez, ouvimos passos entrando na área externa. É Mauro. Ele
caminha em nossa direção e quando me vê segurando a mão de Ivan, se
aproxima de forma um tanto quanto agressiva. Ameaçadora até.
– Francine?! Por que demorou tanto? Disse que ia ao banheiro! Fiquei
preocupado e... – o médico residente interrompe sua frase. Talvez por
perceber o clima que há no ambiente. Se tivesse chegado minutos antes, teria
nos visto em um beijo de tirar completamente meu fôlego.
– Olá. Eu sou o Ivan... – Ivan solta minha mão e estende a dele para Mauro,
que a aperta com desconfiança. – E você deve ser o namorado de Francine... –
diz a palavra namorado, trincando os dentes.
Ciúme. É visível que está se roendo de ciúmes. Eu não sei ainda se é ciúme da
antiga menininha que ele defendia dos perigos ou se é da mulher que acabara
de beijar. Tento desmentir a situação, mas Mauro, que ainda segura a mão de
Ivan, se apressa em falar.
– Muito prazer. Eu sou Mauro. Francine e eu... – agora é a vez de Ivan
interrompê-lo.
– O prazer é meu. – responde secamente e vira-se para mim. –Vou até seu pai!
E você devia fazer o mesmo! – está sério e dirige-se à Mauro – A propósito,
sou só o irmão postiço dela, não se preocupe comigo. – vira-se e caminha
firmemente em direção à saída da área externa.
Irmãos?! Nossa, jura?! Depois da maneira como nos beijamos, ele ainda
espera que pode ser meu irmão?! Quase dou uma risada. É hilário pensar que
ele acredita mesmo que Mauro é meu namorado. Quanta ironia! Logo eu, que
estou louca para me ver livre desse cara chato pra caramba!
Tive ímpeto de gritar por Ivan. De implorar que voltasse; de dizer que Mauro
não era meu namorado e que eu queria muito que me tomasse em seus braços e
me beijasse de novo, de novo, de novo... Está frio aqui sem o seu calor, sem
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seus braços ao redor de minha cintura.


Em seus lábios quero me perder...
Perdida eu estou em meus pensamentos quando Mauro me chama pela segunda
vez. Eu tinha levado meus dedos aos lábios, num gesto automático e não havia
dado conta disso. Retiro a mão da boca e encaro seu olhar curioso.
– Hum? – digo ainda absorvida pelos últimos acontecimentos. Aff. O que esse
cara ainda está fazendo aqui, olhando para mim desse jeito? Ele não se
manca? Onde aperta o botão do Caia fora, você é chato a beça, no caso!?
– Vamos tomar algo no bar? – propõe.
Meu pai está no bar. É lá mesmo que vou despachar esse encosto.
– Vamos. – respondo secamente, sem a menor paciência.
Você agora é uma mulher! Uma mulher linda. Caminho para fora da área
externa, em um misto de coragem e temor. Aceito o desafio. Eu o quero. Eu
quero muito. Estufo o peito. Uma mulher linda. Dou um sorriso de vitória
antecipada para mim mesma.
Fuja se for capaz, Ivan. Porque eu o quero. Eu o quero pra mim.
♫♪

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Capítulo Quatorze
Avisto meu pai, Ivan e alguns médicos próximos ao bar. Mauro me acompanha
no trajeto até lá. Ao me aproximar, percebo que meu pai está um pouco mais à
vontade do que o habitual em um evento como este. Ele sempre leva muito a
sério sua vida profissional, por isso eu estranho seu comportamento um pouco
mais solto. Acredito que os goles de uísque a mais se devam a volta de Ivan.
Nunca foi segredo para ninguém que papai o considera um filho e que tudo que
ele mais quer é a presença dele em nossa casa.
Quando seus pais morreram, Ivan passou um período relativamente curto
morando conosco, mas a dor das lembranças, tão fortes e presentes, ainda
moravam na casa ao lado e, principalmente, dentro de si mesmo.
– Oi, filha. – papai sorri quando me vê, me puxa para perto e beija a minha
testa. – Gostou da surpresa? – continua sorrindo. Ele acredita ter realizado o
sonho da filhinha de rever o irmãozinho! Pobre papai! Não sabia da missa, a
metade.
Retribuo o sorriso, balanço a cabeça em sinal afirmativo e me aconchego em
seu peito. Ele parece muito feliz e orgulhoso com a volta do filho do coração,
mas também com a beleza da sua filha caçula.
– Ela não está uma moça linda, Ivan? - exibe a mim com orgulho, apertando
sua mão em meu ombro.
Observo atentamente o olhar de Ivan. Há neles cobiça, um desejo velado. Ele
passa os olhos rapidamente sobre mim. Agora estou iluminada pelas luzes do
salão. Não há semiescuridão que oculte nenhum detalhe de minha aparência.
Ivan dá um sorriso respeitoso. Seu olhar experiente percorre meu corpo, mas
parece que ninguém nota a ponta de malícia... Eu vejo, sim, malícia nesse
olhar! Ele me deseja. Eu sei que deseja.
– Muito... – desvia seus olhos para o seu copo de uísque com gelo.
– Estou muito feliz que esteja aqui, filho! – meu pai me solta e abraça Ivan
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pelos ombros. Mauro observa a tudo atentamente e parece não deixar passar
nada. Eu acho que ele também notou o olhar de Ivan sobre mim.
– Também estou, meu velho e querido amigo! – retribui o abraço com tapinhas
em suas costas. – Estou certo de que vou ficar muito bem vivendo com vocês!
– ele diz e olha diretamente para mim.
Opa! Como assim?! Vivendo com a gente?! Como foi que perdi essa parte?!
Sinto uma esperança palpitante brotar do meu peito. Então ele iria morar
conosco mesmo?
– Mudar de vida é tudo o que eu quero agora. – Ivan bebe um pouco do
conteúdo do seu copo. – Um estúdio para que eu possa trabalhar... Até mesmo
voltar a dar aulas de Educação Física, por que não? – levanta o copo em
direção a meu pai e continua. – Eu só quero poder voltar a ter uma vida mais
calma...
– Gente, a pista de dança está bombando... – Bianca chega falando alto. - Não
é, Diogo? – o médico residente sorri para ela, concordando. – Vim só beber
um gole de... – não completa a frase porque um copo cheio de um líquido
vermelho que estava sobre a bancada do bar, já está em seus lábios. Ela bebe
e solta um gritinho, me pegando pelos braços. – Ai, eu adoro essa música!
Vem Francine! – me empurra para frente, na direção da pista de dança. – Vem
você também! – segura Mauro pela mão e também o empurra. Ele esbarra em
mim e eu tenho vontade de dar um soco no meio da cara da minha irmã! Que
criatura mais insuportável quando quer ser! E ela quer sempre.
Olho de soslaio para Ivan, que mantém o rosto impassível. Não consigo sequer
imaginar o que se passa por sua cabeça. A música é lenta. Resumindo: a idiota
aqui vai ter que dançar colada com o idiota que está a sua frente. Um dia, eu
ainda queimo todas as roupas de marca de Bianca numa fogueira só! Joana
d’Arc que nada! Bianca não sabe o que é ser bruxa!
Na pista de dança, assumo minha posição e Mauro me conduz. Encosto minha
cabeça em seu braço para não ter que encará-lo. Esta situação já está
chegando ao cúmulo do insustentável.
– Esse cara... – Mauro diz encostado no meu ouvido. – Esse Ivan... – repete
especificando a quem se refere. – Ele parece interessado em você ou estou
enganado? – uma das mãos está em minhas costas e começo a me sentir
nauseada. O cheiro do perfume dele, o jeito como ele fala, o jeito como me
toca. Quem esse cara pensa que é? Chega, né?! Já passou de todos os limites
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do tolerável!
Paro de dançar repentinamente. Encaro seu olhar petulante e levanto meu
famoso queixo quando aceito um desafio.
– Escuta aqui, seu medicozinho de quinta categoria! – digo entre os dentes. –
Quem é você para especular minha vida desse jeito?! – continuo encarando-o,
falando sem alarde, mas com raiva suficiente para que perceba que não é bem
quisto por mim. Ele só me observa, agora, assustado. – Você passou a noite
toda se comportando feito um verdadeiro imbecil e eu estou até agora tentando
ser educada! – continuo sem um pingo de arrependimento de ter iniciado os
insultos. – Não sou sua propriedade, não namoro você e há poucas horas, eu
não sabia que você sequer existia! Portanto, pegue seu egocentrismo e seu
complexo de narciso e vá à merda!
Mauro está em pé, a centímetros de mim, absoluta e definitivamente chocado.
Sua boca está entreaberta e seus olhos, incrédulos, por minha postura direta.
Ninguém a nossa volta, percebe o que está acontecendo. A música está alta e
não altero minhas feições. Só minhas palavras e meu tom de voz exprimem
toda a raiva que estou sentindo.
– Estou até agora tentando dizer que você não é bem-vindo! Mas você não
parece querer entender! – respiro fundo. – Deu para entender agora ou você
ainda quer que eu desenhe?!
Mauro ainda está olhando para mim, totalmente atônito, quando percebo a
presença de alguém ao nosso lado. É Ivan, com um leve sorriso de
divertimento nos lábios. Eu também posso mandá-lo ir à merda com esse ar de
ironia, mas prefiro ficar calada para não gerar mais atritos em uma só noite.
Estou com os braços cruzados; e muito impaciente e irritada. Mauro olha
demoradamente para Ivan de baixo à cima e depois me encara.
– Você não passa de uma patricinha mimada! – diz entre os dentes e se afasta
de nós. Ivan o acompanha com o olhar e volta para mim com seu arzinho
irônico. Paciência, Deus, por favor?! Paciência! Devolvo seu olhar com
sangue nos olhos.
– Fica calma... Você não quer que todos percebam o que acaba de acontecer
aqui, não é? – suas mãos estão nos bolsos. Tira uma delas e estende em minha
direção. – Pode me conceder essa dança?
Respiro fundo, tentando manter o autocontrole. Estou muito, muito irritada.
Mas o simples toque de sua mão na minha, já é o suficiente para eu ir me
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acalmando. Ele me enlaça pela cintura, enquanto pouso minhas mãos em seus
ombros. Os dois primeiros botões da camisa estão abertos e posso ver a sua
pele. Minha cabeça instintivamente descansa em seu peito e eu aspiro o cheiro
que emana dele. Meu corpo inteiro se agita e se arrepia. Eu necessito desse
toque como necessito do ar para viver.
– Parece que seu namorado ficou bem chateado. – comenta, com o rosto em
meu cabelo.
– Ele não é meu namorado! – levanto minha cabeça e afasto meu corpo do
dele, totalmente enérgica. Ivan me puxa novamente para junto de si e respira
fundo em meu ouvido. – Não é?
– Não, é claro que não! – meu rosto está aconchegado em seu ombro
novamente. – Estou a noite toda tentando dizer isso!
– Pensei que fosse... – ri. De quê? Deboche? Alívio? – A Bianca me disse
que...
– Pois pensou errado! A Bianca é uma mentirosa sem noção! – digo ainda com
raiva.
– E porque ele estava tão nervoso? – Ivan agora acaricia meu pescoço. Os
dedos roçando em minha nuca, em uma espécie de tortura com prazer.
Em seus braços quero me achar.
Em sua boca quero me perder...
– Porque ele achava que tinha poderes sobre mim...
Ivan enlaça ainda mais seu corpo de encontro ao meu. Eu me movo tímida ao
som da música lenta. Sinto sua respiração entrecortada na minha pele e as
batidas descompassadas do seu coração na palma da minha mão. Nossos
corações estão em descompasso. Eu mexo com ele. E ele me deseja. Ele me
deseja muito.
Vibro agora com a carícia que recebo em minhas costas e dou um sorriso,
rendida. Estou definitiva e absolutamente abandonada ao prazer de estar em
seus braços. Não há espaço para mais nada. Só há nós dois.
– E alguém tem poderes sobre você, Francine? – pergunta. Sua respiração está
forte em meu ouvido. Sinto a tensão dos nossos corpos ao ritmo da melodia.
É óbvio que também não há espaço para resposta nesse momento. Não há
espaço para mais nada. Só há nós dois. Ele e
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eu. Ele. O ser que detém todos os poderes sobre mim. Todos.

♫♪

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Capítulo Quinze
Abro os olhos, solto um bocejo e sento na cama. Todo meu corpo parece ter
sido moído numa máquina de carne. Essas festas sempre são muito cansativas,
mas devo confessar que todo o meu cansaço vale muito à pena. A lembrança
de estar envolvida nos braços de Ivan compensa todo o resto. Até mesmo
aquele intragável do Mauro. Mas se as fadas madrinhas do bom senso existem,
elas jamais permitirão que ele cruze o meu caminho outra vez! Eu não mereço
esse castigo de novo.
Já passam das dez da manhã e eu não acredito que os membros da minha casa
já estejam acordados depois da agitada noite anterior. Bianca nunca levanta
para o café em dias rotineiros, que dirá hoje. Ela passou a noite toda dançando
com aquele novo carinha, um dos médicos residentes. Como era mesmo seu
nome? Diego, Diogo... Sim, Diogo. Mas eu não me preocupo em decorar o
nome dos ficantes de Bianca. Minha irmã não se prende a ninguém. Hoje
mesmo o tal Diogo será dispensado e ela já estará em outra. Se é que já não
foi dispensado.
Papai bebeu um pouco demais, deve acordar com uma enxaqueca das bravas!
Ele não está acostumado a isso. Só bebe socialmente, principalmente em
eventos como da noite passada. E Ivan... Ah, meu Ivan! Deve estar tão cansado
da viagem e de todas as surpresas que tivemos que não acordará tão cedo
também. Mas teremos todo o tempo do mundo para colocar nossos pingos nos
is. Ele agora mora no quarto de hóspedes. Bem ao lado do meu.
Meu celular toca e eu vejo o nome da Julia brilhar na tela do display.
Remarcamos nosso cinema para hoje à tardinha.
– Oi, Ju! – minha voz ainda está rouca por ter acabado de acordar.
– Amiga! – Ju exclama do outro lado da linha. – Desculpa, acordei você?
– Não... Já estava acordada! Na verdade, estou levantando da cama.
– Menos mal porque quero saber tudo da festa... Tinham muitos gatos lá? – Ju
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pergunta rindo. – Ah, Francine! Não vai me dizer que você não pegou
ninguém?
Julia é impossível. Ela me conhece e sabe que não sou menina que fica na
primeira noite. Ao contrário dela, que não perde tempo algum. Dou uma risada
e fico imaginando a sua cara do outro lado da linha quando eu disser quem eu
peguei. Só de pensar nos beijos que Ivan e eu trocamos, fico extasiada.
– Peguei... – digo sorrindo, imaginando seus olhos arregalados.
– Ai. Meu. Deus! – minha amiga diz pausadamente. – Como foi?! É gato?
– Muito, muito gato. – continuo sorrindo.
– Francine, pelo amor de nossa senhora das amigas impacientes! Fala logo! –
ela é pura ansiedade.
– Pois peça paciência a ela porque eu só conto quando nos encontrarmos hoje
pessoalmente. – bufa do outro lado da linha. Um gesto nada feminino, como
diria D. Lúcia, diga-se de passagem.
– Não dá para adiantar nadinha, cara? – insiste.
– Hum-hum... – eu respondo em negativa. – Guarde sua ansiedade e ligue para
Soninha para confirmar nosso cinema. Mande um torpedo com a hora que
encontro vocês na praça de alimentação do shopping.
– Tá... Tá bom! – Ju responde nada satisfeita.
– Agora deixe eu me adiantar aqui porque ainda nem tomei café da manhã.
Beijo! – ouço seu resmungo e desligo, rindo.
Julia é minha amiga desde menina, assim como Soninha. Estudamos na mesma
sala e somos um trio para tudo. Ela mora no centro da cidade. Sua família é
muito alegre, divertida e cheia de vida, assim como ela: muitos irmãos,
sobrinhos, avós, tios e primos.
Ju é morena, um pouco mais alta do que eu e tem uma linda voz. O sonho dela
é ser cantora de uma banda, depois quem sabe, ter uma carreira solo e ficar
famosa. Por causa disso, diz que estilo é tudo. Seu maior hobby é testar várias
tendências da moda, cortes de cabelos ousados e esmaltes chamativos naquilo
que ela chama de unha. Desde criança, minha amiga rói as unhas quando fica
ansiosa. Conclusão: sempre. Acredito que ninguém mais consiga lembrar qual
é a cor original de seus cabelos porque vive para tingi-los cada hora de uma
cor.
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Entro animada no banheiro, apesar do cansaço e tomo meu banho matinal.


Visto um short jeans e uma blusinha amarela que eu adoro. Calço sapatilhas e
prendo meu cabelo num rabo de cavalo, o que me deixa com um ar infantil. Às
vezes, não consigo fugir disso. Faço uma maquiagem bem leve e aplico um
pouco de perfume. Acessórios discretos para combinar e meu ar de menina se
desfaz um pouco.
Bastiana está na cozinha limpando o balcão e cantarolando uma música
folclórica. A mesa do café de hoje está posta lá. O cachorro está deitado entre
as pernas do meu pai, que se encontra sentado em uma das cadeiras, lendo o
jornal do dia. Quando me vê, Pingo vem fazer festa para mim.
– Bom dia! – beijo o rosto do meu pai e o de Bastiana. – Quais são as notícias
de hoje?
– As mesmas de sempre. Violência, crise no país, políticos corruptos... –
suspira e fecha o jornal, colocando-o sobre a cadeira vazia ao lado da sua. – E
você, dormiu bem? – pergunta me observando sentar a sua frente e adicionar
achocolatado ao meu copo de leite quente.
– Dormi bem, obrigada. Mas ainda estou bastante cansada. – tomo um gole do
leite. – Nem ouse me obrigar a ir nesse tipo de festa novamente! – digo sem
olhar para ele.
– Ah, mas vai dizer que dessa vez não valeu à pena?! – dá um sorriso de pura
satisfação.
Sorrio também, com discrição. Não posso ficar demonstrando demais a minha
própria satisfação em ter Ivan de volta. Tento me controlar para não perguntar
por ele, mas não resisto.
– Onde Ivan está? –uso meu tom de voz mais natural possível.
– O menino Ivan acordou... – Bastiana responde sem esconder a alegria. –
Tomou café e voltou pra cama. Ave Maria, o bichinho tava tão cansado!
– Deixe que ele descanse, Bastiana! A viagem foi longa e ainda teve a festa!
– O senhor não carece de se preocupar, não. Vou cuidar do meu menino como
tem que ser. – diz com um leve sorriso e recolhe a xícara que está em cima da
mesa. – Tava forte como o senhor queria?
– Sim, Bastiana, muito obrigada. – meu pai diz e retira os óculos, esfregando
os olhos. Estou realmente preocupada com ele. Esses maus hábitos com a
alimentação e o uso abusivo de cigarros não está me agradando.
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– Você não vai comer nada, pai? – digo preocupada. – Está de ressaca!
Precisa se alimentar!
– Que ressaca o quê, menina! – meu pai responde levemente irritado. Ele não
gosta de ser contrariado.
– Ah, não? – decido retrucar. – Por que será então que está tomando o
milagroso café forte da Bastiana?! Aliás, o senhor só tem fumado feito uma
chaminé e sobrevivido de xícaras de café ultimamente! – observo-o fechar o
semblante. – Desculpe falar desse jeito, pai, mas você é médico, é um
formador de opiniões... – não posso concluir porque ele me interrompe. Já era
o esperado.
– Epa... Francine, já chega, está bem? – agora sim, ele está muito irritado. –
Sei muito bem me cuidar sozinho. Não preciso de ninguém para me dizer como
devo ou não me comportar!
Pais! Estão sempre se achando no topo da razão. Posso até errar em cobrar
isso dele, sem falar com um pouco mais de tato. Mas sinceramente, não sei
como fazer isso sem ir direto ao assunto. Não aguento ver meu pai se
destruindo! Estou muito, muito chateada. Ouço Bastiana resmungar e balançar
a cabeça negativamente, me condenando por ter repreendido meu pai. Ela vem
de um tempo em que os filhos não retrucavam seus pais em hipótese alguma. O
que eu acabo de fazer, para ela, é uma total falta de respeito.
Levanto e jogo o guardanapo em cima da mesa. Já deu sobre esse assunto para
mim.
– Está bem, papai. Desculpe. Não está mais aqui quem falou... Fui! – ajeito a
cadeira próxima à mesa e viro as costas.
– Ocê já vai sair, menina? Nem comeu direito! – Bastiana deixa a louça
ensaboada na pia e vira-se para mim.
– Vou. Estou indo me encontrar com as meninas. – respondo séria. – Até mais
e bom dia para vocês!
Meu pai não diz nada, mas eu percebo seu olhar reflexivo. Eu só quero o seu
bem e ele sabe disso.
– Esses meninos não têm juízo não, doutor... – ainda ouço Bastiana dizer
quando saio da cozinha.
Dou uma volta pelo shopping e compro algumas peças para meu guarda-roupa.
Além de estar precisando delas, eu tenho que fazer hora para esperar as
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meninas chegarem. Vinte minutos após o combinado, avisto as duas juntas se


aproximando.
– Não olhe para mim! – Soninha diz se defendendo, ao ver minha cara de
odeio esperar. – Você conhece a Ju! Leva cinco horas para arrumar o cabelo!
– Não seja exagerada, Soninha! Deixa de ser uma velha reclamona! – Ju
revida e beija minhas bochechas. – Desculpe, amiga. Eu me atrasei porque o
pico não está dos melhores hoje. Mas... – sorri abrindo os braços para mim. –
... vim o mais rápido que pude para saber como foi com o carinha da festa.
– Não é um carinha, qualquer... – digo sorrindo, beijando o rosto de Soninha.
– Hummmmmm... – as duas exclamam ao mesmo tempo e vão me carregando
pelo braço em direção à praça de alimentação.
– Conta, conta! – Soninha pede.
– Vocês duas são curiosas demais! – sento em uma das cadeiras da mesa
escolhida.
– Raciocina comigo... – Ju especula. – Você, uma santinha pós-graduada,
conhecer um bofe em uma festa e ficar com ele na mesma noite... – ri. – Isso é
um milagre! – junta as mãos e gargalha.
– E quem disse que eu não o conhecia...? – pego um panfleto que está em cima
da mesa, fingindo interesse.
– Oi?! – Ju se sobressalta.
– Hein? – Soninha também.
– Vocês me subestimam demais... – adoro controlar as conversas. Estou me
divertindo com a expressão abismada delas. – E se eu dissesse a vocês que o
cara que eu fiquei ... – pronuncio a última palavra fazendo um sinal de aspas
no ar. – ... Era o Ivan...?!
– Ai. Meu. Deus! – Soninha diz pausadamente nosso principal bordão.
– Não, cara! Não pode ser...! – Ju completa no mesmo tom. – Tá na hora de me
amarrotar porque eu tô passada! – minhas amigas estão com meio palmo de
boca aberta.
Continuo séria e fingindo estar entretida com o panfleto. Por dentro, estou
morrendo de rir com o choque delas diante da minha revelação.
– O que vamos pedir para comer? – pergunto com um ar forçadamente

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inocente.
Sinto que posso dominar o mundo depois dessa revelação bombástica. Ele e
eu. Ele. O ser que detém todos os poderes sobre mim. Posso tocar o céu com
um único beijo, posso vencer barreiras sociais, posso deixar minhas amigas
incrédulas...
Eu posso dominar o mundo.
Eu posso mudar a história. A minha história. E esse é o meu mundo. E isso me
basta.

♫♪

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Capítulo Dezesseis
Enquanto conto os acontecimentos da noite anterior, Soninha e Ju não
desgrudam os olhos de mim um único segundo. Encontram-se embevecidas
com tantas emoções em uma só noite. Minhas amigas desistem do cinema e
resolvem, então, ir a minha casa para uma visitinha. Estão eufóricas com o
novo morador.
– Chegamos! – saúdo Bastiana quando entro na sala. Ela está limpando os
móveis com uma flanela e nos observa desabar nos sofás.
– Oi, Bastiana! – Soninha a cumprimenta.
– Oi, menina, como vai a sua mãe? – pergunta sem deixar de limpar.
– Ela está bem. Temos uma nova encomenda e ela já começou a fazer... –
minha amiga diz visivelmente orgulhosa.
Ju faz caretas para mim como se dissesse Vai! Pergunta onde ele está! O que
está esperando? Retribuo a careta com Calma! Olha o coração! Dou uma
respirada básica para iniciar os trabalhos e, enfim, pergunto:
– Onde está todo mundo, Bastiana? – mordo o lábio inferior, já tensa.
– Seu pai foi trabalhar, ora! – diz emburrada. – A menina Bianca saiu e o
menino Alex ligou pra dizer que ele mais a patroa chegam amanhã.
Ah, Deus! Por que será que Bastiana é tão lenta?! Eu disse todo mundo!
Respiro de novo e sou mais específica dessa vez:
– E o Ivan? Onde está? – Ju pisca para mim e diz Ok só movendo os lábios.
– Tá na piscina. Mas vê se ocê não vai aperrear o menino com prosa besta.
Ele precisa de sossego! – resmunga. – Vou assar um bolo pr´ocês comerem.
– Bastiana! – eu chamo quando ela já está caminhando em direção à cozinha. –
Te amo! – dou um sorriso para ela que abana uma mão em minha direção como
se dissesse Diacho! Ocê me chamou pra isso? Não tem mais o que fazer? e
vai assar seu bolo.
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Minhas amigas acham graça e se voltam para mim. A ideia de ir para a piscina
imediatamente nos parece tentadora. Elas, porém, estão sem biquíni. Vestimos
o mesmo tamanho, então eu vou emprestar a cada uma um conjunto meu para
darmos um mergulho. Pedir discrição a elas é um pouco demais,
principalmente se tratando de Ju, mas eu acho que pode ser divertido.
Subimos as escadas com destino ao meu quarto e após uma pequena busca em
minhas peças de vestuário, encontro os biquínis. Jogo em cima da cama, onde
minhas amigas estão deitadas.
– Ai. Meu. Deus! – Ju exclama abrindo os braços para o teto e sorrindo. – O
Ivan está aqui!
– Eu também não estou me contendo! – Soninha emenda, abafando um grito
com a mão e agarrando uma almofada com a outra.
– Ei! Psiu! – repreendo. – Quietas vocês duas! Estão loucas?! Querem colocar
tudo a perder?
– Lógico que não, amiga... – Soninha senta na cama e fica séria. – Já não basta
eu com problemas sentimentais...
– Vai me dizer que você ainda não conversou com o Nando?! – pergunto
surpresa.
- Do que estão falando? Atualizem a amiguinha, por favor! – Ju também senta e
observa Soninha com um olhar curioso.
– Ainda não... – solta um suspiro e se dirige a Ju. – Depois falamos disso!
Agora nosso foco é outro! I-van! – ela diz fazendo um coração com as mãos.
Jogo uma almofada em cima dela e todas rimos.
– Por falar em homem gato... – Ju suspira. – Que falta faz aquele seu irmão
nessa casa, hein! Gente, me abana! Ele é um deus! Ai ai ai... – a parte do abana
fica por conta dela mesma.
– Ele chega amanhã! Não vai demorar nada para essa casa estar bombando
com os dois maiores deuses do bairro! – entro na brincadeira dela.
– Vou apresentar algum bombeiro a você! – Soninha provoca e Ju dá de
ombros.
– Se for gato, amiga... Tá valendo! – damos uma risada ao mesmo tempo. A Ju
não tem jeito! – Preciso é encontrar o homem certo. Sou mulher pra casar!
– Hummmm...! – Soninha e eu exclamamos ao mesmo tempo.
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Trocamos de roupa e vamos até a piscina. Ela fica nos fundos, em um espaço
grande. É toda de azulejo azul, bem tradicional. Próximos à borda esquerda,
há três conjuntos de mesa com cadeiras e guarda-sóis. Ivan está no primeiro
deles, deitado em uma das espreguiçadeiras, lendo um livro.
Só de avistá-lo de longe, minhas pernas ameaçam ficar bambas e o coração
começa a bombear com mais força. Muita descarga de adrenalina deve estar
sendo lançada pela minha corrente sanguínea porque meu rosto esquenta
imediatamente. E não é por causa do sol. O calor tem relação direta com a
minha visão de um homem moreno, vestindo uma sunga preta e todo trabalhado
em músculos proporcionais. O peito, sem nenhum pelo, brilha com as gotas
d’água restantes do último mergulho. O cabelo escuro está molhado, jogado
para trás.
Uma das pernas de Ivan está com o joelho dobrado, onde ele apoia o livro.
Vou abrindo caminho à frente das meninas, reunindo toda a minha coragem
para me aproximar. Estou orgulhosa do meu biquíni da moda com estampas em
tom azul. Gosto de azul. É uma cor que me favorece.
Caminho tentando demonstrar segurança a mim mesma, mas tenho a impressão
de que se eu ficar em pé bem ereta, minhas pernas vão tremer a olhos vistos.
Mantenha o foco, Francine! O foco! Mas Ivan é o foco que me agita e que faz
meu barquinho ficar à deriva outra vez num mar agitado. É a ansiedade de
avistar o porto seguro que faz meu barquinho perder o controle.
– Oi. – digo simplesmente, o arrancando da leitura.
Ivan, a princípio, me olha surpreso. Essa surpresa vai dando lugar a um nítido
embaraço. Ele passeia os olhos rapidamente sobre mim e desvia o olhar para
as meninas, sorrindo.
– Oi, garotinha. – beija minha testa. Na testa, Ivan?! Depois dos nossos beijos
trocados?! Chega a ser patético.
– Você se lembra das meninas? – estendo minha mão e as apresento agora já
crescidas. – Essa é Ju e essa é Soninha.
– Como vai, Ivan? – Soninha é a primeira a cumprimentá-lo com beijos no
rosto e Ju a segue.
– Nossa, como vocês cresceram! – parece constrangido. – Estou me sentindo o
tiozão aqui...
– Quem me dera ter um tio feito você! – Ju mal completa a frase e é atingida
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pelo cotovelo de Soninha. Ela geme e Ivan ri.


– Obrigado pelo elogio! – continua rindo. – Isso é um elogio, não é?
– Vamos dar um mergulho? – proponho a fim de encerrar o assunto. Um dia, Ju
ainda me mata de vergonha.
Minhas amigas concordam com o mergulho, balançando a cabeça
afirmativamente e eu ponho minha toalha e o protetor solar em cima da mesa
vazia ao lado.
Ivan volta a sentar, coloca os óculos de sol e encosta a cabeça na cadeira. Eu
sinto. É claro que eu sinto! Seus olhos estão pousados em mim. Imagino
quantos sentimentos podem estar misturados dentro dele agora. Deve estar se
culpando por desejar a antiga irmãzinha. Ao mesmo tempo, se sente incapaz
de levantar e ir embora. Fuja se for capaz. Mas ele não foge. Ele
provavelmente examina cada movimento meu... Segue cada curva do meu
corpo, guarda na mente cada detalhe. Sorrio.
Ivan é o foco que me agita, que faz meu barquinho ficar à deriva outra vez
num mar agitado. É a ansiedade de avistar o porto seguro que faz meu
barquinho perder o controle. Podemos dominar o mundo. O nosso mundo. Ele
e eu.

♫♪

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Capítulo Dezessete
O banho de piscina mexeu um pouco com meus nervos. Eu me sinto agitada e
ansiosa. Meus pensamentos sempre serão meu céu e meu inferno, quando se
trata de Ivan. Penso na minha família. No desapontamento que seria para todos
se eu demonstrasse sentir por ele, mais do que amor de irmã. Como reagiriam?
O que teria acontecido se alguém tivesse nos flagrado, aos beijos, na área
externa daquela festa?
Aos beijos... Deixo a água fria escorrer por meu rosto. Estou tomando banho
no banheiro do meu quarto e nem mesmo esta água fria da ducha é capaz de
abrandar o calor que me invade. Eu me lembro da forma como Ivan me tomou
nos braços e se apossou da minha boca; na maneira como ele reagiu ao meu
toque...
Sim, fomos criados como irmãos! Sim, ele é treze anos mais velho do que eu!
Mas também sou convicta em dizer: Sim, ele me deseja. E eu o amo. Amo,
com toda a minha alma.
Lembro que na hora do banho de piscina, as meninas ficaram alguns minutos
na companhia dele tomando sol. Falaram baixinho alguma coisa que não
consegui ouvir. Logo depois, ele pegou o celular e anotou algo.
Uma ponta de ciúme volta a me atingir com a lembrança. O que eles
cochicharam? Por que deram risadinhas? Será que se eu perguntasse as minhas
amigas, pareceria paranoica demais?
Troco de roupa e quando termino de pentear meu cabelo, ainda molhado, ouço
a buzina de um carro do lado de fora da casa. Escuto minha ex-babá gritar lá
debaixo:
– Eles chegaram! Eles chegaram! – Bastiana parece correr em direção à porta.
Quando chego ao fim da escada, Alex está entrando pela porta da sala com
uma mala na mão. Meu irmão é meu melhor amigo.
– Alex! – eu me atiro em seus braços. – Que saudade, que saudade!
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– Oi, minha bonequinha... – acaricia meu cabelo ternamente, beija meu rosto e
se afasta um pouco para me admirar. – Nossa, como está linda aos dezoito!
– Ah! – retribuo com um sorriso.
– Vamos comemorar! – diz dando uns passos à frente, colocando a mala no
chão e abraçando Bastiana.
É nesse momento que me vejo cara a cara com mamãe. Ela se aproxima da
porta e coloca sua mala no chão. Tira os óculos de sol do rosto e coloca no
alto da cabeça.
– Você leva para mim, querido? – pede a Alex que prontamente pega a mala.
– Olá, Francine. – minha mãe me cumprimenta e eu sinto minhas mãos geladas.
Por que sempre me sinto uma idiota na frente dela? Por que é sempre tão
desconfortável estar em um mesmo ambiente sem precisar medir as palavras,
controlar os movimentos, calcular as consequências de um comentário?
– Oi, mãe. Como foi a viagem? – é tudo o que consigo dizer.
– Foi ótima, obrigada. – responde secamente. – Ah, Bastiana! – afasta-se e a
abraça. – Como está tudo por aqui?
– Noite, patroa! – Bastiana cumprimenta minha mãe com um aceno de cabeça.
– Tudo bem. Fiz a comida que o meu menino mais gosta pra janta!
– Mas você é demais! – Alex abraça Bastiana, tirando-a do chão.
– Oxe, menino mais miolo mole! Ocê me coloque no chão e pare de me
aperrear! – dá tapinhas no ombro do meu irmão enquanto rimos. Até mamãe.
– Trouxemos presentes! – minha mãe coloca a bolsa de couro preta em cima
do sofá e se senta. – Estou exausta! Onde está Bianca?
– Tá no quarto dela. – Bastiana diz. – Deve tá com aquele negócio no ouvido!
Vou chamar.
Minha família está completa agora. E imagino qual não será a surpresa de
mamãe e Alex quando virem Ivan em carne e osso aqui em casa. E antes que
eu possa especular um pouco mais sobre essa possibilidade, o grande hóspede
da casa vem descendo as escadas, bem vestido, cheiroso e com o mais bonito
de todos os sorrisos que eu já vi em minha vida.
– Meu Deus! – minha mãe diz com os olhos arregalados. – Ivan, meu filho! É
você?! – vai ao encontro dele e o abraça. Quando? Quando em toda a minha
vida minha mãe me abraçou desse jeito carinhoso? Quando foi que minha mãe
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me abraçou?
– Que abraço bom, D. Lúcia! – ele a beija no rosto. – Assim vou ficar mal
acostumado! Há muito tempo não sou tão mimado.
– Ah, meu filho! Que alegria ter você de volta! – ela o solta. –Não vai embora
rápido dessa vez, né?
– Na verdade... Dessa vez não pretendo ir embora... – Ivan diz indo em
direção a Alex e minha mãe junta suas mãos à boca em sinal de puro
contentamento.
– E aí, irmão! – Alex o abraça com força, dando várias batidas em suas costas.
Um cumprimento tipicamente masculino. – Pô, cara! Que alegria ter você de
volta, meu camarada!
Meu pai chega da clínica e se junta a nós. Bianca e Bastiana também. Fico
observando cada gesto, cada olhar, cada movimento desse reencontro e não
posso deixar de sentir uma emoção imensa. Esse é o meu mundo. Essa é a
minha família, essa é a minha vida. Esse é o homem que desejo ao meu lado
para o resto dos meus dias.
Essa é a segunda vez que vejo essa cena se repetir. E espero nunca mais
assisti-la porque não haverá mais despedidas. Não haverá mais promessas de
retorno. Esses abraços serão constantes e eternos. Essas manifestações de
carinho serão diárias. Essa paz será a mola propulsora da nossa convivência
em família.
– Ah, meu filho, que bom que voltou! E vai ficar com a gente! Isso é muito
bom! – minha mãe volta a abraçar Ivan. Pelas minhas contas, o trigésimo
abraço da noite... após o jantar.
– Se eu não for atrapalhar... – ele diz sorrindo e põe o copo com o licor que
meu pai nos serviu, no descansa-copos em cima da mesinha.
– Você nunca atrapalha, meu querido! – segura uma de suas mãos.
– Mamãe, os presentes! – Bianca lembra.
– Sim, os presentes! Filho, pegue a mala! – pede a Alex, enquanto se levanta.
Alex prontamente se encarrega de abrir, no tapete, uma mala cheia de
pequenos pacotes, embrulhados com papel de presente. Ele dá um dos seus
relógios para Ivan, já que não fazia ideia de que o encontraria de volta em
casa. Ganho dele uma linda gargantilha com um pingente de coração. Um a um,
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os embrulhos vão sendo entregues aos donos.


De repente, vejo minha mãe estender o braço em minha direção. Em suas
mãos, uma pequena caixa está embrulhada com papel cetim e uma fita lilás
transpassada acaba em um pequeno laço em cima. Sinto um calafrio percorrer
minha espinha e olho para ela, intrigada. Um turbilhão de sentimentos me
invade. Minha mãe se lembrou de mim durante a viagem? Ou tem o dedo de
Alex nisso? Prefiro acreditar na primeira hipótese e sorrindo, pego o pacote.
Minha mãe aguarda que eu o abra e isso confirma que não estou equivocada.
Ela mesma comprou o meu presente. Pessoalmente. Há um silêncio no ar, uma
espera coletiva, olhares voltados para mim.
– Obrigada. – abro o papel com cuidado, com pena de rasgar e, de dentro da
pequena caixa, tiro uma delicada caixinha de música. – Ah...! – exclamo
admirada. – É linda! É realmente uma gracinha! – fico séria de repente e me
dirijo a minha mãe. – Obrigada.
Minha mãe parece observar cada movimento meu. Parece estudar os
escaninhos da minha alma, vasculhar meus sentimentos, trazer à tona o que
guardo de mais bonito dentro de mim. Será? Será que ela deseja se aproximar?
– Achei que iria gostar. – diz virando as costas e anunciando a todos. – Hora
de banho e cama!
E minha observação se parte em mil pedaços no chão. Não há aproximação,
não há busca, não há nada. Então... o que eu vi em seus olhos? Em que
momento eu me enganei?
Não há nada que eu possa fazer quanto a isso. Minha mãe é uma ostra. Não
adianta querer abri-la à força. Mas eu sei, no fundo do meu coração, eu sei...
Há pérolas lá dentro.
No fundo da ostra que é a minha mãe, há pérolas! E um dia, eu serei
presenteada com elas.

♫♪

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Capítulo Dezoito
Já passa da meia noite e minha casa está silenciosa. Todos parecem dormir.
Eu, ao contrário, reviro de um lado para o outro na cama, fritando como um
bife. Não consigo dormir! Minha cabeça não para de pensar em todas as
coisas intensas que aconteceram na minha vida em menos de quarenta e oito
horas. Faz uma semana que completei dezoito anos e parece que todos os
problemas da fase adulta resolveram me alcançar com mais força.
Não adianta ficar aqui deitada, alternando entre olhar para o teto ou virar de
lado em busca da posição ideal para pegar no sono. Meu íntimo está dentro do
meu velho barquinho...
Levanto decidida a beber um copo d’água. Meu quarto, iluminado apenas com
as luzes que vinham de fora, está me sufocando. Eu preciso de ar. Estou com o
short do pijama e uma camiseta branca, sem sutiã. Não pretendo demorar, por
isso, não me preocupo em trocar de roupa. Calço minhas sandálias e vou pelo
corredor com extremo cuidado. A casa está no escuro. Desço as escadas pé
ante pé e alcanço a cozinha. Acendo a luz e abro a geladeira. Sinto um pouco
de fome, não comi bem no jantar. Encho um copo d’água e bebo, enquanto
analiso as opções da geladeira. Resolvo preparar um prato com fatias de
queijo minas e presunto, e tomar um iogurte.
Vou me sentar para comer no meu lugar favorito do quintal: meu banquinho sob
as parreiras. De lá, eu sempre consigo admirar o céu quando tem estrelas à
noite. Vou comendo calmamente, enquanto observo o quanto as parreiras
cresceram e tomaram todas as estruturas de madeira. É como se eu estivesse
dentro de uma casa. Uma casa que fabrica uvas.
O céu está deslumbrantemente lindo essa noite, cheio de estrelas de um brilho
indescritível e de uma lua crescente que convida ao amor. Suspiro e tomo um
gole do iogurte de garrafinha. Se eu soubesse que não havia mosquitos e que a
noite estava tão incrível, teria trazido uma toalha para deitar sobre o gramado,
em meio às parreiras.
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Ouço passos e estalos em folhas secas. Um perfume familiar se aproxima.


Fecho os olhos e sinto meu coração iniciar seu treinamento para as próximas
olimpíadas. Ivan me encontra sentada em meu velho banco. Há um clima
desconfortável no ar. Ele está vestindo uma bermuda clara, cheia de bolsos e
uma camiseta preta de banda de rock nacional. Não consigo ver seu rosto com
perfeição, mas sinto a urgência que emana da sua presença. Ele passa a mão
no cabelo desalinhado e usa os dedos para jogá-los para trás.
– Posso falar com você? – se aproxima e senta ao meu lado.
– Claro. Como sabia que eu estava aqui? – pergunto jogando meus ombros
para frente. Um recurso sutil, porém desesperado para que a minha camiseta
branca não marque os bicos dos meus seios. Meu rosto está pegando fogo com
essa constatação.
– Na verdade... – começa a falar olhando para frente do gramado, na direção
da piscina. – Eu ouvi você saindo do quarto e a segui. – completa ainda sem
me olhar.
Hã? Como assim me seguiu? O que isso significa? Significa, sua idiota, que
ele acompanhou cada movimento seu da cozinha até aqui! Os meus seios
marcados pela camiseta branca que, agora eu tento esconder, estavam bem
visíveis para ele sob a luz da cozinha! Estou muito envergonhada e tudo o que
gostaria de fazer nesse momento, é ir para o meu quarto. Mas se não for
possível, muito menos porque a nova Francine não corre mais, Deus poderia
ser bacana e abrir um buraco para que eu pudesse colocar minha cabeça
dentro. Que tal? Nada mal para uma mente que acredita no país de Alice.
Afinal de contas, o que Ivan queria comigo ao ponto de me seguir pela casa e
vir parar aqui fora? Seguro o banco com força, ainda inclinada para frente e
espero que ele continue, mas o silêncio que impera é pesado, difícil até para
respirar.
– Por que você me seguiu? – consigo dizer num fio de voz.
– Porque eu acho que precisamos conversar sobre o que vem acontecendo... –
diz isso com um ar confuso, inseguro até.
– E o que está acontecendo? – Ivan se volta para mim e sorri. Levanta uma de
suas mãos e acaricia o meu rosto. Na mesma hora, minha respiração e meus
batimentos cardíacos se alteram ainda mais e um calor poderoso começa a
subir pelo meu corpo. Fecho os olhos por segundos e quando os abro, ele está
a centímetros de mim, quase pousando os lábios sobre os meus. Seus olhos
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urgentes brilham por antecipação. Eu seguro sua mão, sem tirá-la do meu rosto
e beijo a palma.
Em seus braços quero me achar. Em sua boca quero me perder...
... me perder.
... me perder!
O que ele está esperando para me tomar nos braços e devorar minha boca
como fez há um dia? Por que ele não manda seu juízo ir para o diabo de novo?
– Isso, Francine... – Ivan solta meu rosto e segura meu braço com firmeza. –
Isso... – esfrega com a mão esse mesmo braço e os meus pelos se arrepiam.
Minha expressão é de completa dúvida. O que ele está querendo dizer com
isso? É necessário me tocar para dizer o que nós dois já sabemos?
– Eu... – gaguejo, quase sem voz. – Eu não entendo...
– Eu voltei para casa para ter paz! – parece alterado. Por quê? Está com raiva
de mim? O que eu fiz de errado? – Meu objetivo era retomar minha vida,
diminuir o ritmo de trabalho, me assentar de novo... Mas parece que isso não
vai ser possível.
– E o que está te impedindo? – pergunto com medo da resposta.
– Você... – seu maxilar está contraído. Sua expressão é quase de... dor.
– Eu?! – digo alarmada, enquanto me levanto. – Você está me culpando por não
conseguir retomar a sua vida?! É isso mesmo o que estou ouvindo?! – estou
encarando-o.
– Não você... Mas... – procura as palavras, abanando a cabeça. – Mas a forma
como você reage quando estamos juntos! – se levanta também e sua expressão
é dura. – Isso não está certo, Francine! Não está certo! Eu vi você nascer e
crescer! Eu sou seu irmão!
– Você não é meu irmão droga nenhuma! – quase grito na cara dele. – Mas se o
que está tentando dizer é que a minha presença atrapalha a sua vida, fique
descansado... – levanto meu queixo, em desafio. – Farei o possível para estar
bem longe do seu caminho! – quando viro as costas, uma de suas mãos agarra
meu pulso como na noite da festa, mas ele não me puxa ao seu encontro.
Fico parada, alguns segundos, tentando entender o que significa essa conversa
toda e aonde Ivan quer chegar. Seus dedos afrouxam em meu pulso e eu me
viro para ele, lentamente. Ficamos, os dois, nos olhando por um tempo difícil
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de calcular e quando percebo, a aspereza de uma das madeiras, que serve de


coluna para as parreiras, está roçando as minhas costas. Os lábios de Ivan
devoram os meus e sua língua quente se apossa da minha boca como se
quisesse sugar todo o néctar da minha essência.
De novo... Somos ele e eu.
Uma de suas pernas se encaixa entre as minhas coxas e suas mãos seguram
minha cabeça como se eu fosse capaz de fugir. Estou presa, atada àquela
madeira, com o corpo em chamas e os lábios queimando pelo movimento dos
dele. A barba por fazer roça meu queixo, meu rosto e eu não sinto mais meus
pés no chão. Eu posso flutuar, posso estrelas contar, posso mergulhar no
infinito...
Os dedos de Ivan estão emaranhados em meu cabelo e ele os puxa levemente,
forçando minha cabeça para o lado, enquanto beija o meu pescoço. A sua
barba roçando, o seu nariz inalando o perfume da minha pele e sua mão livre
deslizando por meu corpo, me deixam inebriada.
Em seus lábios... me perco.
Não quero voltar à superfície. Não quero pensar por que ele veio me procurar
no quintal, no risco que estamos correndo expostos desse jeito. Mesmo
protegidos pelas parreiras, nossos corpos se movem ao som de beijos e as
mãos passeiam por nossas peles sedentas para serem tocadas.
Ivan continua a me beijar com ardor e já não sinto mais minhas pernas. Minhas
mãos apertam os músculos dos seus ombros e braços e ele agora, alcança um
dos meus seios por cima da minha camiseta, provocando, massageando... Solto
um gemido rouco e inclino meu quadril em sua direção, jogando minha cabeça
para trás.
... seu toque me desnuda. E eu estou aqui. Entregue.
De repente, nada. O vazio. As chamas entram em contato com o vento. Ivan se
afasta, deixando meu corpo queimar na madeira. Minha voz está presa no
fundo da minha garganta e eu não consigo me mexer. Estou inerte, e ao mesmo
tempo, em ebulição...
– Fique longe de mim, Francine! – Ivan diz engolindo em seco. – Por favor... –
vira-se e vai embora.
E eu começo a sentir as chamas se apagando. E, então, caio no vazio. E eu...
sou o nada.
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♫♪

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Capítulo Dezenove
Três dias se passaram e eu estou aqui no meu quarto, sem vontade de fazer
nada. As minhas férias terminam daqui a três dias e nem meu material escolar
consegui comprar. Estou me sentindo envergonhada, culpada, profundamente
triste. Em momento algum Ivan disse que sentia algo por mim. Toda a culpa
pelo que ele julga estar acontecendo é minha. Eu sinto. Eu reajo. Puro
machismo!
Ele não. Ele não sentiu nada... Coitadinho! Pobre coitado! Foi seduzido pela
irmãzinha inexperiente de dezoito anos! Pobre homem maduro de trinta e um!
Estou com raiva. Muita raiva. E tenho certeza de que é isso que ele quer que
eu sinta. Nesses três dias, mal nos cumprimentamos e, quando precisamos
fazer nossas refeições juntos, dizemos o mínimo do indispensável.
Todo esse distanciamento me deixa louca. Chego a pensar que prefiro a
amizade dele a sentir todo esse gelo. Ivan está me evitando e, quando não
consegue evitar, me ignora. Dói. Dói muito. Acho que nunca mais
conseguiremos recuperar a intimidade que uma vez tivemos. Sempre haverá
esse vão, esse quase, esse mas entre nós.
E eu só consigo pensar no eu quero, no agora, no porquê não... Minha vida
parece perder o sentido e eu me vejo cair num poço fundo, muito fundo e sem
nada a que eu possa me agarrar.
Todas as noites após o jantar, Ivan tem saído. Fico imaginando onde ele está,
com quem... E quando o fazendo o quê começa a dominar a minha mente, dou
tapinhas no meu próprio rosto. Suicida. Você gosta do caminho que a leva à
morte...
Passo a manhã trancada no quarto. Não me alimento adequadamente há três
dias. Resolvo tomar um banho e descer para almoçar, antes de ir ao shopping
comprar o material escolar. Desço exatamente na hora em que minha mãe e
Ivan estão se servindo. Não há mais ninguém em casa para a refeição. Somos
só nós três. Não podia ter escolhido me alimentar em um pior momento. Ivan
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está ao lado da cadeira vazia em que eu costumo me sentar. Todos os sintomas


típicos de quando o vejo, invadem meu corpo. A diferença agora é que se
tornou constrangedor estar ao seu lado.
– Boa tarde. – cumprimento antes de me sentar.
– Boa tarde... – minha mãe me responde, enquanto Ivan só move a cabeça para
frente, me estudando com seus olhos observadores. – Vai sair? – ela me
pergunta, analisando meu vestidinho curto de verão, antes mesmo que eu
comece a me servir. Estou dobrando o guardanapo e colocando sobre o colo.
– Vou até o shopping comprar meu material do colégio. – respondo colocando
um pouco de arroz em meu prato.
– Ivan acaba de me dizer que vai ao centro da cidade. Por que não pega uma
carona com ele? – minha mãe parece não fazer a menor ideia do que acaba de
propor. O silêncio se instaura ainda mais pesado, enquanto ela me analisa com
atenção. Procuro coordenar os pensamentos e transmitir naturalidade em minha
voz.
– Não há necessidade. – digo concentrada na salada verde que estou
adicionando ao meu prato. – Eu vou de ônibus.
– Isso não tem o menor cabimento, Francine! – a voz grave de Ivan invade a
sala e eu o encaro, surpresa. – Se eu estou indo para o centro, não há porque
você ir de ônibus. Eu vou levá-la e não se fala mais nisso...
Hã? Mas que grandessíssimo filho da mãe! Ivan passa três dias me ignorando,
três! Os piores dias da minha vida! E agora vem com essa cara de pau agir
como se eu estivesse negando sua carona a troco de nada? Engulo a minha
raiva enquanto acrescento agora um pedaço de carne a minha alimentação do
dia. Perdi o apetite. Estou sem vontade de comer, de responder, de permanecer
aqui...
Minha mãe está me encarando. Começo a sentir minhas mãos trêmulas.
Continuo calada e levo um pouco de comida à boca, enquanto ela parece ter
iniciado um assunto com ele. Não absorvo nada do que ela diz. Aliás, não
tenho absorvido nada. Meu único pensamento é uma saída para o grande
labirinto em que eu me encontro. Não absorvo nem, tampouco, exprimo. Finjo.
Finjo que não sou, que não quero, que não sinto o que sinto e que não ligo para
o dito. Eu não absorvo, nem exprimo... Eu finjo. Eu minto. E me guardo num
casulo dentro de mim mesma. Eu não sou eu. Sou outra.
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Meus pensamentos me levam para longe e, em meio deles, ouço a voz da


minha mãe, uma... duas vezes. Ela me chama e me devolve à realidade dura da
qual eu desejo ardentemente escapar.
– Oi? – finalmente respondo.
– Oi? Como oi? – minha mãe me olha com um ar severo. – Você está há
minutos remexendo esse prato. Não comeu nada! – Sim, ela está irritada. – O
que há com você? Está pálida, emagrecendo muito...
– Só estou sem apetite. – dou de ombros. – Só isso...
– Vou pedir a seu pai que prescreva uns exames para você, isso não está
normal! – minha mãe continua sua sessão de preocupação excessiva, em um
tom mais alto.
Levanto num salto. Perdi a paciência e não estou disposta a ser humilhada na
frente de Ivan dessa forma. Não sou mais uma garotinha que precisa ser punida
por suas travessuras.
– Aonde pensa que vai?! – ela se exaspera quando viro as costas e pego minha
bolsa. – Eu ainda não terminei...
– Pois eu já... – coloco a alça da bolsa atravessada ao meu corpo e fecho a
porta atrás de mim.
Que saco! Até quando eu tenho que aguentar esse tipo de coisa? Por que eu
nunca posso ser levada a sério? Bato o portão e ganho a rua, indo em direção
ao ponto de ônibus. Final de semana, o fluxo de trânsito é bem menor, mas em
compensação, o número de coletivos circulando também é. Estou muito
aborrecida, muito. Só quero poder ter o direito de ser quem eu sou, sentir o
que sinto e fazer o que tenho vontade sem ser criticada, julgada ou reprimida o
tempo inteiro!
Um carro prata se aproxima lentamente e para ao meu lado. A janela do carona
se abre. Ivan me olha sério do banco do motorista. Os óculos de sol não
permitem que eu consiga ver os seus olhos, mas posso sentir toda a expressão
pesada de suas feições. Ele está com raiva de mim. Raiva por eu estar tão
próxima dele. Raiva por eu demonstrar o que sinto por ele. E mais que tudo,
deve estar com raiva de si mesmo, por não saber como controlar seus
instintos. E por que diabos ele não toma o primeiro avião rumo ao inferno de
onde veio? Afinal, não fui eu que me instalei na casa dele!
– Entre, Francine! – ele diz controlando a raiva na voz.
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Finjo que não é comigo. Não sou obrigada a nada. Muito menos a entrar no
carro de um homem que há três dias me pediu para manter distância. Um
homem que me acusou de estar prejudicando-o na retomada de sua vida. Ele
que vá para o inferno! Para o inferno com esse maldito carro.
– Francine, entre no carro! – fala mais alto e algumas pessoas que estão
próximas começam a perceber a quem ele se dirige.
– Ivan, me deixa em paz...! – digo entre os dentes e com os olhos destilando
raiva.
– Francine, entre nessa droga desse carro... AGORA! – ele diz ainda mais alto
e bravo. Eu olho para os lados e me sinto profundamente envergonhada. Ele
venceu. Caminho até a porta do carona e entro no veículo.
Ivan põe o carro em movimento pela avenida em direção ao centro. Eu estou
quase explodindo de tanto ódio, mas seguro o máximo que posso. Até que não
aguento mais.
– Se você acha que pode falar comigo daquele... – não consigo terminar.
– Pelo amor de Deus, Francine! – os óculos de sol ainda não me permitem ver
os seus olhos, mas posso sentir toda a sua raiva. – Fica calada!
O sangue ferve em minhas veias. Meu corpo todo treme sem controle e eu sinto
uma vontade horrível de chorar. Fico lutando contra minhas lágrimas, enquanto
Ivan estaciona dentro do shopping, tira finalmente os óculos e me encara.
– Desculpe! – expira profundamente. – Por favor, me desculpe... Fui
extremamente grosseiro com você e isso não está certo. Peço sinceramente que
me desculpe.
As lágrimas teimosas que eu, inutilmente tentei segurar, começam a descer
pelo meu rosto. Odeio chorar! Não consigo pronunciar uma única palavra.
Estou cansada demais, ferida demais. Só queria voltar para casa...
Ivan vence a distância que há entre nós e me aconchega em seus braços. O
cheiro dele começa a alcançar meu sentido olfativo e o calor do seu corpo
manda um sinal para meu coração de que eu estou onde deveria. No lugar
certo. No meu porto seguro. Nos seus braços.
Minhas lágrimas começam a pingar na sua camisa e eu esvazio minha alma de
encontro à certeza de seu consolo. Seus braços são minha base. Seus braços
são meu lar. Estou... exposta, vulnerável. Ele pode tocar minha alma com as
suas mãos.
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– Minha garotinha... – acaricia meus cabelos gentilmente e beija o alto da


minha cabeça. – Eu não quis magoar você, me desculpe. Eu nunca quis isso!
Ficamos nós dois, aqui, durante os minutos que se arrastam, até que eu me
acalme. Choro por todos os anos que ficamos separados; choro por todas as
despedidas; choro por toda essa distância afetiva que nos separou esses três
dias...! Sento no banco e apoio a cabeça no encosto, respirando
profundamente. Ivan apenas me observa.
– Precisamos conversar mais sobre... nós. – diz finalmente. – Vem! – pega
minha mão, me convidando a sair do carro – Mudei de planos!
– Como assim? – digo ainda secando meu rosto.
– Eu tinha umas coisas para fazer, mas elas podem esperar. Vamos passear e
comprar suas coisas... – dá um sorriso que enche meu coração de ternura. –
Eu... – suspira e me olha com carinho. – Eu quero minha garotinha de volta...!
E ele toca minha alma com suas mãos.

♫♪

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Capítulo Vinte
Ivan e eu estamos no shopping e ele me aguarda do lado de fora do banheiro
feminino. Lavo meu rosto e tento assimilar todos os acontecimentos da última
hora. Aparentemente, sem querer, minha mãe havia colaborado para que
tivéssemos pelo menos a oportunidade de voltar a conversar.
Meu rosto e meu pescoço ainda estão cheios de placas vermelhas deixadas
pelo meu choro. Dos males, o menor, consegui desabafar. Estou me sentindo
aliviada, vazia de sentimentos ruins. A cabeça ainda precisa de respostas, mas
o coração volta a bater sem a angústia que me afligia.
Uso as toalhas de papel para me secar, escovo meu cabelo e passo um brilho
labial. Estou com o rosto inchado e as placas vermelhas demorarão a sair, mas
é o máximo que posso fazer pela minha aparência no momento. Passo a mão
pelo meu vestido e analiso se está tudo em ordem para deixar o banheiro, sem
parecer uma louca descabelada, de nariz escorrendo e roupa amassada.
Ivan está encostado em uma pilastra me aguardando. A camisa azul clara que
ele veste está social demais para um passeio no shopping e contrasta com meu
simples vestido estampado de verão. Seja o que for que ele tinha para fazer,
não era nada casual.
Quando me vê, Ivan sorri com gentileza e me guia pelo shopping com um
braço protetor em minhas costas. Como eu amo esse velho Ivan! Esse homem
que me cobre de cuidados e atenção desde que eu era uma menininha. Caminho
ao lado dele e não faço a mínima ideia de onde está me levando. Não importa.
A proteção daquele braço sobre meus ombros é o que basta nesse momento
para que eu me sinta a pessoa mais amada desse mundo.
A praça de alimentação está cheia de gente. Ivan me leva para um local um
pouco mais reservado, com a linda vista panorâmica da cidade. Eu me sento
em uma das cadeiras, admirando-a.
– Espere um instante... – ele me diz. – Eu já volto! – vira as costas e eu o
perco de vista.
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Estou me sentindo exausta. Assim como minha mente, meu corpo também está
cansado. E meus olhos pesam no meu rosto. Mesmo assim, não abro mão desse
momento. Não abro mão de poder conversar sobre tudo o que me aflige; tudo o
que eu sinto; tudo o que eu espero em relação a nós.
Precisamos falar sobre... nós. Sim, Ivan. Precisamos falar sobre nós! O que
engloba o que você sente, o que você pensa e o que você espera para nós.
Nunca na vida esse pronome esteve tão dentro de um contexto palpável.
Ivan volta após longos minutos com uma bandeja nas mãos e a coloca sobre a
mesa. Há um suco e um sanduíche sobre ela. Estou sem reação diante de todos
esses cuidados. Ele não parece entender minha expressão incrédula e se
mantém sério.
– Coma... – aponta o sanduíche e cruza os braços sobre a mesa me encarando.
– Você não comeu nada hoje. – E como continuo a olhá-lo embevecida, sorri e
me provoca. – Quer na boca, garotinha?
Não há nada sexual nessa pergunta. Ele está só se referindo às inúmeras vezes
em que eu me recusava a comer quando criança e, ele se oferecia para me dar
as colheradas na boca. Dou um sorriso irônico e mordo o sanduíche.
– Boa garota... Agora, sim, estamos começando a nos entender. – ri.
– Começar a nos entender significa que tenho que fazer tudo o que o mestre
mandar, né? – dou outra mordida no lanche. A fome agora se manifesta e a
ogra incorpora.
– Sempre admirei sua inteligência! – ri a valer da minha fingida cara de brava.
– Assim...! – exclama carinhoso e sorridente, enquanto me observa comer. –
Eu gosto de ver você assim... – inclina o queixo em minha direção.
– Irritada? – digo de boca cheia.
– Nada disso. Com esse apetite voraz... Quer outro? – oferece.
– Não... – fico encabulada. Limpo o molho que escorre pelo canto da boca e
bebo uns goles do suco. – Obrigada.
– Não há de quê. – Ele está de volta! Meu Ivan está de volta. Ele toca uma de
minhas mãos sobre a mesa e a acaricia. Uma onda elétrica sobe por ela e eu
preciso me controlar para não retirá-la com o susto. Mas ele rapidamente
recolhe a sua, como se também tivesse sentido a mesma eletricidade. Somos
magneticamente atrativos, não há como fugir disso.

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Termino de comer, enquanto Ivan me pergunta sobre a volta às aulas e quais os


materiais preciso comprar. Caminhamos pelos corredores do shopping e ele
continua mantendo sua posição protetiva sobre as minhas costas. Eu estou
adorando isso, pois mantém as mulheres de olhares lânguidos que passam por
nós bem afastadas. Construo a ilusão temporária de que agora ele está ao meu
lado e não há outra mulher que importe.
Entramos em uma loja que anuncia promoções em materiais escolares.
Compro o que preciso, enchendo duas sacolas. Saímos da papelaria e ficamos
dando uma volta pelo shopping, vendo as vitrines.
– Eu não contei ainda a você, mas... – Ivan diz sorrindo. – Eu consegui
comprar um estúdio muito bacana.
– Mas isso é ótimo! – retribuo o sorriso, visivelmente contente pela conquista
dele. – E qual é o próximo passo?
– Fui procurado por uma banda de pop rock muito interessante que me pediu
acessoria. Pretendo empresariá-los. – diz com firmeza. – São muito bons!
– Essa é uma ótima notícia! Fico muito feliz por você! – eu me lembro da Ju e
resolvo contar a ele. – Você sabia que aquela minha amiga, a Julia, canta
maravilhosamente bem? – Ivan me olha admirado e eu continuo. – Ela
participa de vários concursos de talento. E vence quase todos!
– Nossa! Que bom saber disso! – parece realmente gostar. – Quem sabe não
posso ouvi-la e apresentá-la aos meninos? Seria uma boa ter uma voz feminina
na banda!
– Sério?! – estou com as mãos na boca e os olhos arregalados. – Ela vai pirar!
Quando pode ser isso?
– Podemos marcar essa semana... – sugere e muda a expressão de sorridente
para uma... curiosa? – Adoraria levar você para conhecer o estúdio... – diz
com olhos pousados de forma intensa sobre os meus.
– E eu terei o maior prazer em conhecer! – retribuo o seu olhar e ele pisca
duas vezes antes de continuar me conduzindo pelo corredor.
De repente, uma loja de bichos de pelúcia surge em nosso caminho. E a
Francine menina que ainda existe dentro de mim, escala as paredes do meu ser,
atravessa meu corpo e crava os olhos em cima de um urso enorme, branco e
gordo na vitrine.
– Olhe que coisa linda! – meus olhos estão enfeitiçados pelo brinquedo.
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Ivan me analisa atentamente. Posso sentir seus olhos pesando sobre meu rosto.
O que será que eles querem me dizer? Estariam me censurando por ser uma
garota grande demais para ursos de pelúcia?
– Muito bonito mesmo! – responde rindo, retomando sua postura natural.
– Sou uma garota patética, né? – viro para ele, rindo também.
– Não! – fica sério. – Não quis dizer isso!
– Qual garota na minha idade iria parar em frente uma loja de brinquedos e se
encantar com um deles?! – ainda estou rindo.
Ivan levanta meu queixo ainda sério e eu paro de sorrir. Essa mão é capaz de
causar estragos significativos nos meus sentimentos.
– Ouça bem o que eu vou dizer... – seu olhar é intenso. – Você não é e nunca
será uma garota comum.
– Isso é um elogio? – estou séria também.
– Um elogio, uma constatação e uma verdade absoluta. – solta meu queixo,
sem deixar de me olhar.
– Eu preciso dizer uma coisa a você... – minha voz sai rouca, falhada.
– Diga o que quiser... – sua expressão agora é de curiosidade. – Mas vamos
fazer isso no carro. – Venha!
Entramos no estacionamento e sentamos nos bancos do carro. Ele no do
motorista e eu ao seu lado, no do carona. Ele se vira para mim.
– Bem, agora está bem melhor. – seu olhar indica que eu devo prosseguir. – O
que precisa me dizer?
E agora? É pegar ou largar. Confessar ou mentir. Ficar ou correr. Não... Não
há como largar, mentir ou correr. A nova Francine é corajosa, destemida e
verdadeira com seus sentimentos.
Encaro seus olhos perspicazes e observo cada músculo do seu rosto ficar
tenso. Será que ele tem ideia do que está por vir? Será que imagina as
palavras que irão sair da minha boca? Meu silencio inicial possibilita que ele
também organize seus pensamentos e me diga algo coerente.
– Eu estou apaixonada por você, Ivan! – digo de uma só vez. – Completamente
apaixonada...! E não há nada que eu possa fazer para mudar isso...
– Francine... – interrompe muito, muito sério.
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– Espere, por favor... Preciso falar... por favor. – continuo. – Eu sempre fui
apaixonada por você. Sempre! Desde que eu era uma garotinha. – engulo em
seco. – Não sei como conviver com essa situação, mas eu amo você. Amo
demais! Eu sempre amei...
Ivan parece analisar os músculos contraídos do meu rosto. Eu, por outro lado,
observo sua boca comprimida e seu acentuado nervosismo expressado através
de sua mão passando pelo cabelo; um gesto típico de quando fica nervoso.
– Deus do céu, o que está acontecendo?! O que você está me dizendo,
menina!? – pergunta mais a si mesmo do que a mim. Ele respira fundo e volta a
me encarar. – Francine... – pega minhas mãos geladas e trêmulas entre as suas.
– Pensa comigo: Nós dois nascemos praticamente numa mesma família. Eu sou
treze anos mais velho do que você. Sempre a enxerguei como uma criança,
uma menina que eu brincava, protegia...
Eu estou muda. Mas não deixo de estudar seus olhos e absorver cada palavra,
cada expressão, cada gesto seu.
– Você não pode estar apaixonada por mim... – tenta avaliar meus sentimentos.
– Acredito no seu amor, mas no mesmo amor que eu sinto por você. No amor
que nasceu desde que vi a inocência do seu olhar pela primeira vez na minha
vida!
– Você não pode analisar os meus sentimentos desse jeito... – digo num
sussurro. – Eu sei o que sinto. E eu amo você!
– Você tem ideia do que está me dizendo, Francine? – ele me pergunta,
procurando respostas demais onde não existe explicação.
– Esperei por você todos esses anos... Contei cada dia, cada hora, cada
segundo para que você voltasse e pudesse retribuir todo esse amor que sinto.
Como pode dizer que não sei o que é o amor?! – há emoção em cada palavra
minha e isso atinge Ivan de forma certeira.
– Ah, garotinha! Como eu poderia ser capaz de assumir um sentimento como
esse! Eu não posso, Francine! Acho que nunca poderia! Sinto sim, uma atração
enorme pela mulher que você se transformou. Mas isso não está certo! Eu sou
capaz, eu posso controlar isso.
– Eu sei que você não me ama... – digo profundamente exausta. Agora eu
quero, eu preciso, eu necessito da minha cama.
– Não do jeito que você quer, garotinha... – Ivan toca meu rosto e eu fecho os
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meus olhos. – Não quero ser seu inimigo como vinha tentando nesses últimos
dias. Não é isso que quero! – continua, decidido. – Podemos, sim. Voltar a
sermos amigos e fingir que tudo é como antigamente...
– Acha mesmo que podemos fazer isso? – pergunto com irritação. Como Ivan
pode resumir todos os meus sentimentos desse jeito? Decidindo sozinho o que
devemos fazer? – Fingir?! Fingir é o que venho tentando fazer a minha vida
inteira no que diz respeito a você! – grito. – Chega! Vamos embora! Eu quero
ir pra casa, por favor... Não há mais nada a ser dito.
Ivan me olha chocado e balança a cabeça afirmativamente.
– Como quiser... – coloca os óculos de sol e liga o carro.
– Eu vou esquecer você, Ivan! Eu juro! – ainda consigo dizer antes que ele dê
partida do carro.
Não há mais nada a ser dito. Não há mais nada a ser feito.
Minha alma chora e, dessa vez, ele não pode tocá-la.
♫♪

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Capítulo Vinte e Um
Minha família jantou reunida na sala. Eu procurei me concentrar nos assuntos
trazidos à mesa e parecer a Francine de antes. Fiz comentários, aparentando
uma animação que estava longe de sentir.
Estou em meu quarto agora. Meu celular apita e eu vejo as inúmeras
mensagens que as meninas trocaram em nosso grupo @ Amigas de Infância
Forever, enquanto eu estive ausente. Soninha dizia que tinha conversado com
Nando e que, enfim, tinham se acertado e, em meio à conversa, vários cadê,
Francine?, eu li.

Eu(22:08): Oi! Cheguei!


Soninha (22:08): Amigaaaaa! Vc sumiu! O que houve?
Ju (22:08): Ela devia estar ocupada a beeeça com Ivan. ♥♪♫ #nucasu
Soninha (22:09): hahaha. Tá tudo bem?
Eu (22:10): Aff. Ocupada a beça é pouco! Esse homem consegue me
tirar do sério! Não tenho mais estrutura para levar essa maluquice adiante...
Ju (22:10): Oi? A-mi-ga! Alôouuu! Essa não é a Francine que EU
conheço.
Soninha (22:11): Levanta essa cabeça! ☼
Ju (22:11): Desembucha! E a propósito: Seu irmão gostosão já
chegou? ♥
Soninha (22:12): Juuuu! Cala a boca!
Eu (22:13): Eu disse para aquele imbecil que sou louca por
ele..
Soninha (22:13): Ihhh. E ele???

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Eu (22:13): Disse que não me ama do mesmo jeito...


Ju (22:13): Odeio esse cara! Que babaca!
Eu (22:14): Ele quer ouvir vc cantar e se gostar, vc pode fazer
parte da banda que ele agora é empresário...
Ju (22:14): Mas todo mundo tem defeitos! Concordam comigo?

Soninha e eu caímos na risada. A Ju tem um senso de humor imbatível.


Converso com elas até tarde da noite e quando meus olhos não aguentam o
cansaço que me domina, me despeço. Tomo um banho e desabo na cama.
Acordo pela manhã com uma sensação tão boa! Estou de bruços e sinto uma
mão acariciando meu cabelo. Eu não abro os olhos. Meu pai frequentemente
me acorda assim. Viro de frente ainda de olhos fechados e espreguiço. Quando
os abro, Ivan está me observando. Sento num salto e me cubro até o peito com
o lençol. Que susto!
– O que você está fazendo aqui? – pergunto esfregando os olhos.
– Feliz aniversário atrasado! – exclama e aproxima um saco enorme de
presente, amarrado num laço de fita.
Fico confusa. Não acordei direito e tudo parece estar vindo de um sonho
distante. Meu aniversário foi há pouco mais de uma semana e só meu pai me
presenteou: com a promessa de pagar todo o processo para que eu tire minha
carteira de habilitação. Não sei o que dizer.
Ivan coloca o embrulho sobre a cama e continua me olhando. Seus olhos estão
ansiosos como de um garoto e eu tomo momentaneamente um chá de
esquecimento e sorrio para ele.
– Obrigada. – digo puxando o laço.
– Abre logo, Francine! Estou ficando nervoso... – o mesmo Ivan. Tão maduro
e, ao mesmo tempo, um menino inseguro.
Quando abro o presente, o urso branco de pelúcia que eu vi ontem na vitrine
está diante de mim. Gordo e macio!
– Gostou? – e eu estou maravilhada. – Só tinha esse. É o da vitrine! – nas
palavras de Ivan, toda uma carga de ansiedade.
– Se eu gostei?! – abro o melhor dos meus sorrisos. Depois eu poderia me
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odiar para sempre, mas agora tudo o que eu desejo é me atirar em seus braços.
Posso deixar a minha raiva para depois. – Ah, Obrigada! Obrigada! Obrigada!
– digo abraçada a ele. – Muito obrigada!
Sinto seu corpo todo rijo ao redor de meus braços e quando me afasto,
percebo que ele está olhando diretamente para a minha camiseta branca
transparente, de onde, segundos antes, meus seios tocaram o seu peito. Minha
face fica quente e eu me sinto enrubescer. Desejo tocar em seu rosto, contornar
a linha perfeita do seu queixo com os meus dedos, mas tenho medo de ser
rejeitada e não quero arriscar.
– Não foi nada... – diz com carinho. – Faço qualquer coisa para ver você
feliz...
Eu me jogo novamente em seus braços e inspiro seu cheiro, que me deixa tonta
e trêmula. Começo a me afastar e fico a centímetros de sua boca. Seus olhos
estão cravados nos meus e eu sinto toda a tensão presente entre nós. Beijo seus
lábios levemente, enquanto ele fecha os olhos, tentando manter o controle.
– Perca o controle, Ivan... Perca... – dessa vez sou eu que me aposso de sua
boca.
Ivan se entrega ao meu beijo e joga o seu peso sobre mim. Suas mãos deslizam
pelo meu corpo e sua língua quente acaricia a minha violentamente. Seu toque,
sempre tão gentil, tem agora uma urgência agressiva que me deixa assustada.
Estou... com medo? Eu tento afastá-lo com minhas mãos. Não consigo
acompanhar seus movimentos e a sofreguidão com que me beija.
De repente, ele me solta e se levanta, arrumando as roupas. Estou deitada na
cama, chocada, sem conseguir me mexer. Sempre assim! Pareço uma
verdadeira idiota! Por que preciso sempre ter problemas motores quando o
assunto é Ivan?
– Não posso pedir desculpas dessa vez... – está visivelmente perturbado. –
Não posso! – diz trincando os maxilares. Um dos gestos típicos de quando fica
nervoso. – Você é uma menina... Uma menina teimosa! – aponta o dedo para
mim. – Não se deve tentar um homem desse jeito...! Principalmente se você
ainda não é capaz de dar o que insiste em pensar que está na hora de querer!
Fico olhando para Ivan, tentando absorver suas palavras e pela primeira vez,
percebo que tem razão. Estou tentando conquistá-lo da maneira errada: usando
a atração que sente por mim. Mas ficou claro que não estou preparada para me
entregar a ninguém nem mesmo a ele. Eu o vejo se recompor, ajeitando a
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camisa e, segundos depois, fecha a porta atrás de si.


E agora? Com que cara vou conseguir encará-lo de novo?
Eu vou esquecer você, Ivan. Eu juro!
Tolinha!
Eu quebro juramentos facilmente. Eu não sou uma pessoa confiável. Não
mantenho minhas decisões e mal consigo defini-las com clareza. Ivan tem
razão. A menina Francine ainda não foi embora totalmente. Engatinho cada dia
em direção à maturidade.
Passo quase o dia todo arrumando meu quarto e as minhas coisas. Minha cama
está com uma colcha que eu adoro e meu mais novo colega de quarto está
deitado como um rei sobre ela: o urso branco.
Soninha e Ju aparecem, de repente, para uma visita à tarde. Querem me levar
para dar uma volta na praia. Não estou com muita vontade, mas é impossível
retrucar quando as duas se juntam para me convencer a fazer alguma coisa.
Encontramos com nosso amigo André e conversamos por mais de duas horas.
Ele é um garoto muito bacana e eu tenho um carinho enorme por ele, mesmo
após nosso término de namoro infantil.
O celular de Soninha vibra e ela se afasta para atender. Volta um pouco tensa,
dizendo que a mãe tinha feito um bolo e uns doces para uma festa de
aniversário e que havia esquecido alguns deles na bancada da cozinha. E por
isso, ela precisa ir embora imediatamente. Só que eu vou precisar acompanhá-
la porque esqueceu suas chaves de casa no meu quarto.
André oferece uma carona e vamos todos juntos em seu carro. Assim que ele
estaciona, em frente a minha casa, ouço uma música muito alta vinda lá de
dentro. Desço do veículo, confusa, e abro o portão com as pernas trêmulas.
Um burburinho se mistura ao som alto. Caminho em direção aos fundos e me
deparo com uma festa preparada ao redor da piscina. Há uma faixa que diz
Seja bem-vinda à maioridade!
E eu, em choque, me choco contra a minha própria certeza de estar aqui.
Quem sou eu nesse mar de eternas surpresas?

♫♪

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Capítulo Vinte e Dois


Ainda estou paralisada diante da cena. Meus amigos da escola, minha família
e Ivan estão em volta da piscina. Pequenas luminárias estão instaladas em
vários pontos, iluminando o ambiente e dando uma atmosfera íntima. Bolas
brancas, rosas e vermelhas estão penduradas em toda parte.
Caminho com a ajuda de Ju e Soninha. André vem vindo logo atrás. Há uma
tenda com uma enorme mesa de frutas, frios e petiscos. Meu pai e Alex estão
parados logo à frente e eu já consigo ver o interior da piscina. Dentro dela,
pétalas de rosa da mesma cor que as bolas boiam na superfície. Tudo
impecavelmente lindo de se ver.
Todo mundo está batendo palmas para mim e a vergonha me domina. Não vejo
a hora de me aproximar e ir cumprimentar as pessoas para que tudo isso acabe
logo.
– Ah, Alex! – me atiro nos braços do meu irmão, enquanto meus amigos se
misturam aos demais presentes. – Obrigada! – Ivan está nos fundos da área da
piscina e eu posso vê-lo com os olhos pousados sobre mim.
– Oh, minha bonequinha grande! – meu irmão me aperta nos braços e me dá
beijos estalados nas bochechas. – Você cresceu! Que droga! – diz sorrindo.
Meu pai se aproxima e me acolhe em seus braços protetores. Acredito não
haver no universo alguém que o ame mais do que eu. Fecho os olhos e inspiro
todos os bons sentimentos que ele me desperta.
– Parabéns, minha filha! – exclama beijando minha testa. – Que você possa só
colher frutos bons de tudo aquilo que planta!
– Muito obrigada, pai. Por tudo... – agradeço olhando em volta. – E por essa
festa linda também. Eu não esperava...
– Quanto a isso, não agradeça a mim. Agradeça ao Ivan. – meu pai revela. –
Ele foi o responsável por tudo isso aqui.
Meu queixo acaba de cair no chão. Como assim Ivan fez isso tudo sozinho?
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Agora as coisas começam a fazer sentido. Segredinhos com minhas amigas na


piscina, surpresa pela manhã no meu quarto e até mesmo, sumiços durante o
dia, por que não?
Eu não posso deixar de admirar as tentativas desesperadas de Ivan de querer
resgatar nossa velha amizade e manter uma postura natural quanto a essa
relação diante das pessoas. Todos sabem o quanto nós dois sempre fomos
ligados, isso não é segredo para ninguém. E uma festa toda vinda dele,
preparada por ele, não desperta nenhuma estranheza.
Enquanto cumprimento os convidados, observo Ivan conversar ao longe.
Impecavelmente bem vestido e com um copo de bebida na mão. Ele ri de
alguma coisa que disseram e joga a cabeça para trás, completamente à
vontade. Eu nem preciso fechar os olhos para sentir o perfume dele em minha
memória olfativa. É como uma marca carimbada na conexão que o leva aos
meus estímulos cerebrais. É como uma droga que invade e destrói meus
neurônios e me causa dependência. Cada dia mais apaixonada. Cada dia mais
abobalhada... e com problemas motores.
Minha mãe se aproxima e me cumprimenta rapidamente. Bianca está animada e
se aproxima me abraçando e implicando comigo como sempre, mas eu não
consigo levar nada do que diz a sério. Minha irmã precisa ser objeto de
estudo. Só acho.
Ganho presentes, mimos, cartões e todo tipo de lembrança carinhosa que
alguém gostaria de receber. Abraços apertados e beijos cheios de afeto.
Sinto um cheiro narcótico se aproximar e levanto o queixo na direção. A
pessoa que me deu o maior presente da noite está diante de mim. Não havia
conseguido chegar até ele e até esse momento, eu não tinha dado conta de
como estava ansiosa por isso.
– Isso é pra você. – Ivan diz sorrindo e estende para mim um pequeno buquê
de flores-do-campo naturais nas mãos.
– São lindas... – não desgrudo meus olhos dele. – Obrigada. E... obrigada por
tudo isso aqui. Acho que nunca vou conseguir agradecer o suficiente!
– Eu sei como você vai conseguir agradecer... – diz me fitando e sorrindo
travesso. – Você não quer me dar um abraço?
– É claro que sim! – eu o envolvo em um abraço e me sinto viva de novo. –
Muito obrigada pela surpresa! Eu estou realmente muito feliz! – levanto o
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rosto e me afasto. – Como você conseguiu fazer tudo isso tão rápido? – aponto
a movimentação a nossa volta.
– Digamos que eu tive sorte em conseguir todo o tipo de ajuda. – ainda está
sorrindo.
– Francine! Vem aqui rapidinho! – André aparece entre mim e Ivan, de repente,
nos assustando. Ele me puxa pelo braço e eu o acompanho. Olho para trás,
ainda sendo puxada e vejo Ivan nos observando. Mãos nos bolsos e seu velho
maxilar contraído. Ele está... com raiva.
Meu copo de bebida vazio é substituído com frequência por outro cheio e eu já
começo a sentir as consequências disso. Meu vestidinho branco e de alcinhas
delicadas, já está manchado de alguma porcaria qualquer.
Após a música ao vivo por conta de Ju, cortamos o bolo delicioso que D.
Vanda fez. E eu estou agora em uma roda de amigos, envolvida em um papo
bastante animado.
Vez por outra, procuro por Ivan e o encontro conversando com Alex. Seus
olhares para mim são de censura, mas eu não estou me importando. Meu
cérebro começa a perder o controle de alguns comandos e eu me sinto tonta.
Muito tonta. Levanto meu copo para ele e o saúdo à distância.
Já é madrugada, a música já foi desligada e minha família não está mais
presente no quintal. Não há sinal de Bastiana e só uma roda de amigos homens
se mantém aqui comigo. Soninha e Ju também já foram embora.
– Por que não esticamos a noite em um barzinho aqui perto? – André propõe e
eu acho a ideia muito boa.
– Ge-ni-al! – digo cambaleando para o lado dele e me apoiando em seu
ombro.
– Você não vai a lugar algum! – sinto uma mão segurar meu braço e parte da
bebida que está em meu copo, derrama sobre meu vestido. Todos parecem um
pouco chocados com a intromissão.
– Ah, Ivan! Qual é?! – estou rindo. Eu es-tou rin-do! Sinto uma vontade louca
de gargalhar na cara dele.
– Pessoal, a festa acabou! – Ivan diz sério, enquanto me segura e aguarda que
todos saiam. – Batam o portão, por favor! – Eu começo a rir
descontroladamente. Velho! Ele é um velho caretão!

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– Você não pode fazer isso... Eu estou me divertindo! – embolo as palavras.


Por que a minha língua demora a me obedecer? Será que eu também estou com
problemas de fala? Volto a rir.
– Venha, vamos entrar! – Ivan me apoia e tenta me conduzir.
– Ah! Ivan, me solta! – falo alto e o empurro com o que me resta de forças.
Meus braços desabam um de cada lado do meu corpo.
Ivan me solta e eu vou cambaleando pela casa até as escadas. Por onde eu
passo, ele fecha as portas e apaga as luzes. Eu chego aos pés da escada e
tropeço. Rapidamente sinto mãos me ampararem.
– Você não aguenta beber! – a voz dele chega de muito longe aos meus
ouvidos. – Por que você fez isso?!
– O que você tem com isso?! – esbarro em seu rosto, quando levanto a cabeça.
– Fale baixo! Estão todos dormindo! – ele diz sem paciência, ainda me
segurando. – Ou melhor, cale essa boca!
Recomeço uma nova crise de riso. Minhas pernas estão bambas e não sei se eu
posso subir mais um degrau da escada. Elas falham e Ivan segura meu corpo
com mais firmeza. Pouso minhas mãos em seu peito forte e convidativo.
– Você não tem forças nem para ficar de pé! – está me encarando. – Se eu não
estivesse por perto, sabe-se lá o que poderia acontecer com você em uma hora
dessas!
Minha cabeça está rodando... rodando... rodando... O rosto de Ivan, às vezes,
parece perder o foco. Mas que droga! Meu eu com juízo grita lá dentro de
mim. Ele está certo! Não estou acostumada a beber. Por que eu fiz isso?! Devo
estar pagando o maior mico de todos da minha vida! Mas o meu eu com
problemas psiquiátricos, diz que preciso me atirar nos braços desse homem e
transar com ele até o dia amanhecer. Sim, eu disse transar. Fazer amor é para
as menininhas que não são capazes de dar o que pensa que quer! E eu quero.
Eu quero... agora.
É claro que o álcool etílico alimenta meu eu com problemas psiquiátricos.
Esse eu é loucamente corajoso e não mede consequências. Tampouco, está
preocupado com o senso de qualquer ridículo que uma pessoa plenamente
capaz, dentro de suas faculdades mentais, se importaria.
– Não sou mais uma garotinha para ser vigiada... – mordo meu lábio inferior
enquanto tento fixar o meu olhar sobre o dele.
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Tento abrir sua camisa com violência e acabo arrancando o primeiro botão
que estava fechado. A pele exposta do peito dele é convidativa para minha
boca que se apressa em explorá-la com a língua. Sinto a tensão dos músculos
de Ivan em minhas mãos, entre as minhas pernas... Ele tenta me soltar, mas
sabe que se fizer isso, eu vou desabar no chão.
– Francine, você está bêbada! Pare! – sou sacudida pelos ombros. – Você
enlouqueceu?! – ajeita a camisa toda amassada, ainda me sustentando com as
mãos e com o próprio corpo. – Vem, vou levá-la até seu quarto... – tenta me
ajudar a caminhar. Subo o restante dos degraus e paro para encará-lo de novo.
– Só se você quiser dividi-lo comigo hoje... – solto uma risadinha por causa
da expressão de espanto dele.
– Se me fizer essa proposta novamente, posso não me responsabilizar pelos
meus atos! – não consigo avaliar a veracidade do que foi dito.
– Posso propor de novo se você quiser... – seguro o queixo dele e beijo a
covinha discreta que tem no queixo.
– Se um dia... – Ivan está me segurando pela cintura, me olhando diretamente
nos olhos. – Se algum dia eu vier a tê-la... No dia seguinte, você terá que se
lembrar de cada detalhe do que aconteceu... – diz cada palavra pausadamente
para que eu possa assimilá-las. E eu continuo sem condições de interpretar
qualquer entrelinha.
– Ah, é...?! - sem que ele possa esperar, ataco sua boca com a minha,
provocando-o com a língua, derrubando sua resistência, minando suas forças.
Entre as minhas pernas, sinto toda a sua rigidez e inclino meu corpo para
frente, me oferecendo para ser sua.
Nenhum sinal de perigo soa em minha mente. Ivan corresponde ao meu beijo,
enfeitiçado, seduzido...
Não há perigo. Não há alerta. Não há possíveis interrupções. Eu sou dele. Eu
me findo nele. Ele e eu. Ele.
A urgência se desfaz num piscar de olhos. O calor esfria lentamente... As
minhas mãos despencam do peito dele. O meu corpo desaba para trás e a
escuridão completa me domina.
Sou dominada pela escuridão e ela faz de mim um ser que viaja... no nada.

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♫♪

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Capítulo Vinte e Três


A luz que vem da janela atinge diretamente os meus olhos. Não consigo mantê-
los abertos. O peso que sinto sobre eles me impede de despertar
completamente. Minhas cortinas estão abertas e a luz do dia está invadindo
meu quarto. Sinto um gosto terrivelmente amargo na boca e um enjoo que
causa um mal-estar geral por todo o meu corpo. Ressaca... Ai. Meu. Deus...!
Eu estou de ressaca!
Abro os olhos e a tontura me domina, mesmo deitada. Tento manter o controle
da situação para que possa chegar ao banheiro. Com dificuldade, apoio a mão
no travesseiro a fim de sustentar o meu peso e levantar. Toco o meu cabelo e
ele está molhado. Quando me sento totalmente na cama, reparo com espanto
que estou completamente nua. Deus do céu! Eu estou nua! Quem faria uma
coisa dessas? Quem me acudiria bêbada e me daria um banho? A imagem de
Bastiana surge em minha mente e eu dou um suspiro de alívio. É claro, só ela,
só Bastiana seria capaz de extremo cuidado comigo. Entre já pro banho! Vô
esfregar ocê inté rancar o couro! Eu posso me preparar... Vou ganhar um
sermão daqueles!
Minha cabeça ainda está rodando... rondando muito. E eu corro para o
banheiro para vomitar. Estou suando, minhas mãos estão frias assim como o
restante do meu corpo. Como não percebi que estava bebendo demais? Por
que não me dei conta que era hora de parar?
Sou inexperiente com bebidas alcoólicas. Nunca tomei mais do que um dedo
de licor ou um copo de vinho na presença do meu pai. Essa foi a primeira vez
que eu experimentei outro tipo de bebida e o gosto doce e de fácil ingestão, me
fez perder o controle rapidamente. Uma nova ânsia de vômito me domina
quando me lembro do gosto do coquetel.
Abro o chuveiro e deixo a água fria me lavar por inteira. Encosto a cabeça no
azulejo e fecho os olhos, me concentrando em sentir a sensação de alívio que a
água proporciona ao meu corpo exausto. Imagens começam a atravessar a
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minha mente: Alex me abraçando, flores-do-campo lindíssimas em minhas


mãos, Ivan me censurando e sendo saudado com um copo de bebida em minhas
mãos...
A água da ducha continua a cair sobre minha cabeça e as imagens cortadas não
me dão trégua. Meu pai beija minha testa... Eu estou feliz, muito feliz! Sou
solicitada em várias rodinhas de pessoas que conversam, bebem e riem. Um
balão estoura em algum lugar. Bolhas do líquido que está em meu copo fazem
cócegas no meu nariz, enquanto bebo. Eu estou rindo. Adoro azeitona!
Risadas. Muitas risadas.
Será que todas essas imagens não são um delírio da minha cabeça confusa? Ou
de fato são recordações da noite anterior? Algumas delas, sim, eu tenho
certeza de ser realidade! Outras, eu não faço a menor ideia.
Lavo meu cabelo e começo a esfregar o sabonete com força sobre a minha
pele. Essas lembranças estão me trazendo uma sensação tão... estranha. Sinto
um constrangimento, o peito comprimido, a respiração suspensa em alguns
minutos como se algo ruim estivesse para acontecer.
Palmas. Soninha sorri e eu estou muito envergonhada. O pedaço de bolo que
chega a minha boca está delicioso. Dona Vanda me abraça. Ju canta e Ivan toca
violão. Outro balão estoura. Desço do carro para pegar as chaves no meu
quarto. O mar está calmo e eu preciso ir embora.
Desligo o chuveiro e de repente, sinto um perfume familiar dentro da minha
memória. Estou explorando com a língua uma pele que me excita. Tropeço em
um degrau. Há um beijo quente que me traga para as profundezas da completa
escuridão. Sinto dor no dedo do pé.
Pego a toalha que está pendurada ao lado da porta de vidro do box e seco o
rosto com raiva de mim mesma. Muita raiva! Como eu posso ter me deixado
levar pela bebida desse jeito? E agora? Com que cara vou encarar as pessoas
sem saber quais de minhas lembranças são reais ou fantasiosas?
Tudo é muito distorcido e desconexo em meus pensamentos. Assustador,
incoerente, insólito... Delírios! Só podem ser delírios!
Escovo meus dentes com força, desejando que esse gosto amargo de bebida
desapareça da minha boca. No quarto, eu fecho as cortinas, visto um blusão e
desabo na cama novamente.
– Menina, acorde... – Bastiana acaricia minha cabeça horas mais tarde. – Já
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passa do meio-dia e ocê não comeu nada... – parece muito preocupada.


– Estou com uma enxaqueca horrível, Bastiana! Mal consigo me mexer. –
choramingo com a mão na cabeça. – Acho que bebi demais... – escondo o
rosto no travesseiro.
– Ocê bebeu? - coloca a mão na cintura. – Oxe, desde quando ocê bebe
menina?
– Eu não bebo! Você sabe disso. – solto um gemido de dor.
– Ave Maria! – parece irritada. – E por que ocê fez isso?
– Só estava tentando me divertir igual a todo mundo... – com enorme esforço
sento na cama.
– Mas e beber agora é diversão? – Bastiana não parece estar para brincadeira.
– Ocê fique quieta aí. Vou buscar um remédio pr’ocê. Diacho de menina
atentada! – se vira para sair do quarto.
– Bastiana... – chamo e ela se volta para mim. – Não vai dizer nada a ninguém,
né? – peço quase que implorando. – Por favor...?
– Oxenti! E desde quando mainha me pariu pra fazer fofoca da vida dos
outros?! – exclama de cara fechada. Sinto vontade de rir, mas a ocasião não
está para isso.
– Obrigada, viu? – digo simplesmente. – Por hoje e por ontem à noite.
– Ontem à noite? – arqueia as sobrancelhas e aguarda uma explicação minha.
– Oxe, ‘inda tá bêbada... Vá deitar, vá! Eu já volto.

Passo o dia na cama, de molho. Bastiana me trouxe analgésico e um prato de


caldo de galinha, que eu tomei tudo sem reclamar. Estava quentinho e ajudou a
me recuperar. Ela reclamou que a casa tinha ficado uma bagunça depois da
festa, mas que já havia terminado de limpar com a ajuda de uma diarista, que
meu pai, de vez em quando, paga para ajudar nas tarefas.
Bastiana tem muito ciúme da minha família e da casa. Não aceita ajuda e
sempre acha que dá conta do serviço sozinha. Ela me contou também que
papai e Alex estão de plantão hoje e que Bianca e mamãe estão no clube. Não
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tocou no nome de Ivan e eu também não tive coragem de perguntar. Estou


sentindo raiva dele e não faço ideia do motivo. Sei que ele foi o responsável
por toda a festa surpresa e que devia estar agradecida por isso. Somente
agradecida. Mas algo que eu não sei definir me consome.
Estou bem melhor agora à noite e, após comer um lanche no quarto, sinto a dor
de cabeça me abandonar definitivamente. Acendo a luz do abajur que está em
cima de minha mesinha de cabeceira, coloco meus óculos e pego o livro que
estou lendo. Abro na página indicada pelo marcador e inicio minha leitura.
Meus pensamentos vêm e vão. Eles continuam sendo meu céu e meu inferno. E
a impressão que tenho é que meu barquinho nunca vai alcançar um porto
seguro para atracar. Vivo à deriva, com medo das ondas bravas que ameaçam
me naufragar.
Estou em meio à leitura e a uma infinidade de pensamentos confusos, quando
ouço uma leve batida à porta.
– Entre... – sem sair da cadeira, vejo Ivan entrar no meu quarto. Ele fecha a
porta e me encara com as mãos nos bolsos.
– Estou incomodando? – pergunta e, a seguir, não contém sua expressão de
surpresa. – Não sabia que ainda usa óculos...! – volto minha atenção para o
livro como se a sua presença nada significasse.
– Tem muita coisa sobre mim que você não sabe... – não tiro os olhos da
página do livro, mantendo-me totalmente indiferente.
– O que, por exemplo? – está me provocando, com um ar levemente divertido.
– Que eu detesto quando você vem ao meu quarto sem ser convidado é um
exemplo. Satisfeito? – digo com raiva.
Mas o que isso, Francine?! Que bicho te mordeu?! Está de TPM?! O cara dá a
você uma festa linda e presentes maravilhosos, reúne sua família e seus
amigos... E você o trata dessa maneira? O que está acontecendo? Estou
chocada comigo mesma e fico ainda mais com o comentário que ele faz a
seguir:
– Não foi o que você disse na noite passada... – mantém o mesmo ar de
divertimento. Cada palavra dita contém uma conotação sexual em sua
essência.
– A noite passada... – estou sobressaltada e aquela sensação estranha volta a
me dominar. – O que eu disse na noite passada?
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– Que queria dividir sua cama comigo... – suas palavras são irônicas e soam
maliciosas.
– Que absurdo! Eu jamais diria isso! – digo exaltada – Não depois de tudo o
que você me disse...! Depois de tentar me convencer de que não há a menor
chance de termos algum tipo de relação! – não consigo respirar entre as frases.
– E o pior, depois da forma como você me humilhou aqui nessa cama...! –
minhas mãos estão trêmulas e se eu não me controlar, minha voz vai acabar
falhando. Tem um travo de amargura atravessado em minha garganta.
– Ah, não acredita em mim? – Ivan parece se divertir. – Eu teria dado o que
tanto pediu, se você não tivesse desmaiado em meus braços! – cruza os
braços, ainda me encarando com ar debochado.
As palavras dele começaram a fazer algum sentido na minha cabeça. O beijo
em meus delírios, o desmaio, a expressão confusa de Bastiana quando
agradeci por ontem à noite... Pisco várias vezes, tentando manter a calma e
abano a cabeça. Não foi Bastiana quem me deu banho e me deixou dormir nua.
Foi ele! Foi Ivan quem me despiu!
Não consigo entender esse nosso jogo de gato e rato. Essa raiva que às vezes
nos domina a ponto de nos agredirmos e sentirmos o prazer pela tortura
psicológica que infringimos um no outro. Mas... Por quê? Eis a pergunta-chave
desse momento! Por que fazemos isso? Qual é o sentido desse amor-amizade
que transita entre ironia – carinho – tortura – proteção – deboche – gentileza?
Eu não consigo entender! Sinto vontade de gritar!
– O que você fez comigo, Ivan?! – não consigo acreditar que ele pudesse me
tocar sem consentimento. Que pudesse se aproveitar de mim, enquanto eu não
estivesse consciente disso. Mesmo que eu tivesse me oferecido! Ele não tinha
esse direito!
– Eu? Eu não fiz nada! – levanta as duas mãos para o alto, em defesa. – Eu só
trouxe você pra cá e te dei um banho! Você se agarrou em mim e eu fiquei todo
molhado! Coloquei você na cama e isso foi tudo. – eu podia sentir o
divertimento em seus lábios.
– Então... – digo pausadamente. – Foi você mesmo que me despiu?
– Francine... – respira profundamente. – Você se ofereceu pra mim com todas
as letras! Fui convidado para partilhar da sua cama! Você arrancou o botão da
minha camisa, me beijou... Você fez tudo isso! – aponta o indicador para mim.

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E a sensação vem de novo... A sensação estranha de que algo ruim


aconteceria. A sensação de vergonha, arrependimento, de raiva...! Quero ter o
poder de voltar e apagar tudo o que aconteceu com as minhas próprias mãos.
Eu estou profundamente envergonhada. Por tudo. E agora ainda mais! Fui
oferecida e estou sendo ingrata. Ele poderia ter me deixado dormir
embriagada e do jeito que eu estava vestida. Ou ter chamado alguém para me
acudir. Mas o fato é que essa última opção poderia ter me causado sérios
problemas com meus pais.
Será que não dava para simplesmente agradecer e parar de bancar a vítima? A
garotinha que foi violentada? Estou sendo ridícula e infantil. E quando penso
em me desculpar e mudar o rumo dessa conversa, Ivan continua a falar:
– Tenho uma reputação a zelar. Fique tranquila! Não me aproveitei do seu
lindo corpinho inocente. Volte para as suas bonecas! – despeja sua frustração
toda em cima de mim.
Tudo o que eu havia pensado em dizer para me desculpar dessa situação se
reduz a pó.
Volte para as suas bonecas!
– Ora, vá para o inferno! – digo antes que ele abra a porta e saia do meu
quarto com uma expressão dura.
Eu perco meu chão. Eu me perco. E dessa vez, não é nos lábios de Ivan...
Volte para as suas bonecas! Volte para o inferno de onde veio!
E eu me perco... no labirinto em que a única saída existente desemboca em um
abismo.

♫♪

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Capítulo Vinte e Quatro


Primeiro dia de aula. Eu acordo com o despertador do celular e, ainda
sonolenta, tateio em busca dele em cima da mesinha de cabeceira. Esbarro nos
meus óculos sobre o livro que parei de ler ontem, quando Ivan entrou no meu
quarto para despejar aquele monte de insinuações maldosas em cima de mim.
Demorei a adormecer na noite anterior, fiquei muito confusa com tudo o que
havia acontecido.
Desligo o despertador e vou ao banheiro me preparar para tomar o café da
manhã. Estou faminta hoje.
Desço as escadas e vejo meus dois irmãos sentados à mesa, posta na sala.
Coloco minha bolsa e minha pasta em cima do sofá.
– Bom dia! Bom dia! – cumprimento meus irmãos, animadamente e beijo a
cabeça de Alex.
– Só se for pra você... – Bianca diz entre os dentes. Mau humor medonho às
seis da manhã! Mas, estudar é preciso e meu pai não paga um curso de Moda
para ela à toa.
– Bom dia, irmãzinha! – Alex parece preocupado. – Você está melhor? A
Bastiana disse que você comeu algo que não fez bem...
– Sim, estou bem melhor! – sento ao lado de Bianca e colocando um pão
francês no meu prato. Mentalmente, estou agradecendo à Bastiana pela
mentirinha providencial. – E com uma fome de leoa!
– Nossa, quanta disposição! – Bianca resmunga. – Nem parece que dormiu
sozinha essa noite!
– É meu último ano na escola... – corto o pão, fingindo que não ouvi a sua
segunda frase. – Isso já é motivo mais que suficiente para estar bem disposta!
– acrescento fatias de queijo e presunto ao sanduíche.
Bastiana entra na sala e Pingo vem atrás dela fazendo festa para mim. Ela me
dá bom dia e enche meu copo com leite quente. Agradeço e acrescento
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achocolatado.
– Fiz essa merendinha pr’ocê... – coloca uma bolsinha térmica que eu sempre
levo para o colégio com algo saudável para comer, em cima do meu material.
Ela diz que não posso ficar comendo as porcarias que vendem na cantina.
Sorrio para meu anjo da guarda. Minha mãe.
– Obrigada, Tiana! – começo a comer com afinco. Minha eterna babá sai da
sala, chamando o cachorro para acompanhá-la.
– Não vi o Ivan ontem... – Alex diz pensativo. – Será que as coisas estão
correndo bem lá no estúdio? – pergunta mais a si mesmo. – Ele está fazendo
testes com a Julia, né? – agora se dirige a mim.
– Sim... está. – respondo sem muita animação. – Mas não o vi também...
– Deu pra mentir agora também, Francine? – Bianca me pergunta com um ar
irônico e está me encarando. Alex não entende muito bem a acusação e se
mantém atento a ela.
– Não estou entendendo... – respondo com desdém.
– Que você é uma sonsa não é novidade para mim... Agora mentirosa...!? –
belisca um pedaço de queijo. – Francamente!
– Será que dá pra ser mais clara, Bianca? – Alex vem em minha defesa. – Por
que você está falando com Francine desse jeito?
– Pergunta a ela! – Bianca se altera. – Pergunta a sua irmãzinha por que agora
ela deu pra mentir que Ivan frequenta seu quarto! – cospe a frase na minha
cara. – E ainda vem com esse papinho de não vi o Ivan! – afina a voz,
debochando. – Faça-me um favor!
– Cale a boca, sua idiota! – grito com ela.
– Ei , ei... – Alex agita as mãos na direção de cada uma de nós. – Parem com
isso!
– Ela que começou! – levanto o queixo em direção à Bianca. – Que tipo de
insinuação é essa?!
– Ahh... Vai se fazer de bobinha agora?! – Bianca continua. – Eu vi com os
meus próprios olhos ontem quando cheguei do clube! Eu vi! Ele estava saindo
do seu quarto! – olha para mim com raiva. – E agora vem bancar a ingênua de
que não viu o Ivan? – dirige-se a Alex. – Só vocês não repararam ainda que
esses dois estão se pegando...
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Perco a linha. Saio do salto. Desço o barraco.


– Cala essa boca, sua imbecil! – levanto e voo em cima dela. Minha mão
acerta em cheio seu rosto e Alex me segura pelos braços antes que eu invista
sobre ela de novo. Eu me agito, querendo me soltar. Estou estourando de raiva.
– Vem...! Pode vir...! Experimenta bater de novo pra você ver se eu não quebro
essa sua cara de sonsa! – Bianca destila ódio e segura o rosto vermelho e
marcado pelos meus dedos. Mas a cascavel não se dá por vencida. – E pela
cara que ele saiu do seu quarto, a cama deve ser pequena para os dois!
– Maldita! – grito, ainda tentando me soltar das mãos de Alex. Eu quero matar
essa desgraçada!
– Parem as duas já! – Alex também grita me mantendo presa em suas mãos. Se
ele me soltar, vou voar na cara dessa cretina de novo e arrancar os olhos dela
com as minhas unhas.
– Creio em Deus Pai! O que é que tá acontecendo aqui, diacho?! – Bastiana
vem correndo da cozinha.
– Pergunte a sua preferida... – Bianca despeja, vermelha feito um camarão,
pega a bolsa e sai.
Alex ainda está segurando o meu braço e eu sinto uma vontade absurda de
sumir. Minha irmã é impiedosa e sem escrúpulos. E eu, estou com muita raiva.
Mas pelo menos me sinto vingada. Meti a mão naquela cara abusada! Ela que
não ouse me dirigir a palavra ou vai perder os dentes!
– Ocês não se cansam! Deram sorte do doutor já ter saído e da patroa não ter
acordado com essa gritaria toda... – Bastiana balança a cabeça negativamente
e volta para cozinha. – Ocês não têm um pingo de juízo...
Eu respiro com dificuldade. Estou tremendo. A sala fica silenciosa e Alex
solta o meu braço. Com que cara eu olho para meu irmão agora? Como posso
me defender dessa insinuação? Há mesmo por que me defender? Há motivo
para isso? Ou será que não é hora dele saber toda a verdade?
Eu poderia revelar parte da verdade. A minha parte. O meu sentimento. Mas
contar tudo, envolveria Ivan e a relação de amizade que existe entre ele e
Alex. E eu não posso fazer isso! Não tenho esse direito. Cabe a Ivan dizer a
Alex o que vem acontecendo. E se ele não contou, é porque de fato, só
acredita única e exclusivamente na relação fraternal que sempre tivemos.
– Você não acha que eu mereço uma explicação? – meu irmão quebra o gelo e
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eu me sento aborrecida em minha cadeira. – O que aconteceu aqui?


– Ela fez parecer tudo muito vulgar... – digo esfregando meus braços e
cuspindo minha raiva. – Víbora!
– Isso eu já sei, Francine! – Alex se senta também e me encara. Braços
cruzados sobre a mesa. – O que eu estou tentando entender é porque você
mentiu para mim sobre o Ivan?
– Que mal há em Ivan ir ao meu quarto? – respondo com outra pergunta,
tentando me acalmar. Ah, se eu pego Bianca de novo!
– Essa pergunta também é você quem deve me responder! Se não há mal, por
que você mentiu? – meu irmão sorri para mim e eu vejo compreensão nesse
sorriso. – Do que tem medo, Fran?
– Medo, eu? – estou tensa. Não sei o que falar sem piorar ainda mais a
situação. Preciso me concentrar no que dizer e esquecer o que faria quando
pegasse a cara de Bianca de novo. Odeio violência, mas também odeio a cara
cínica dela!
– O que está acontecendo entre você e o Ivan? – meu irmão me olha
atentamente, buscando em minha expressão algo que possa responder por mim.
– Não está acontecendo nada... Absolutamente nada! – tento controlar a minha
voz. Detesto mentir para ele!
– Fran... – Alex pousa sua mão sobre a minha na mesa. – Eu não sou bobo, não
nasci ontem! – sorri. – Conheço você e conheço o Ivan como a palma da minha
mão... – não consigo encará-lo, meus olhos estão cravados em sua mão sobre a
minha. – Já percebi os olhares que vocês trocam, sinto uma energia diferente
no ar! Vocês dois sabem que podem confiar em mim...!
– Eu sei... – encaro meu irmão. – Mas de verdade, não está acontecendo
nada... – suspiro. – Mesmo eu querendo muito que aconteça! – pronto, falei.
Está falado e não há como voltar atrás.
Alex está me olhando. Visivelmente chocado. Ai. Meu. Deus! Não quero
magoá-lo! Eu não quero! Mas ele disse que já tinha percebido e que podia
confiar nele. E agora?
Vou até o sofá e pego a minha bolsa. Melhor deixá-lo sozinho depois dessa
revelação. Paro de frente para o meu irmão que já está de pé. Toco o rosto
dele e beijo.

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– Então eu não estava louco? Vocês estão mesmo se curtindo? – enfim, resolve
dizer alguma coisa.
– Quem me dera... – respondo e meu irmão arregala os olhos. – Estou
profundamente apaixonada pelo Ivan, Alex! Eu o amo com todas as minhas
forças. Sempre o amei, desde menina! – suspiro de novo, jogando as mãos
para o alto. – Cansei de esconder isso de você! Pronto. Agora você já sabe de
toda a verdade.
– E... – meu irmão esfrega a barba por fazer. – Ele corresponde a isso?
– Claro que não... – balanço a cabeça negativamente. – Ainda olha para mim e
vê a mesma garotinha para quem ele cantava pra dormir.
Alex está pensativo. E eu estou aliviada. Um peso saiu de cima de mim. Ele é
o meu melhor amigo e eu devia isso a ele.
– A única coisa que eu te peço é que isso fique aqui entre nós... Por favor...? –
junto as mãos.
– Você não precisa me pedir isso... – Alex me abraça e beija minha cabeça. –
Só não minta mais pra mim!
– Obrigada... – estou acolhida em seu abraço. – Você pode me dar uma
carona? – olho para ele. – Se eu for de ônibus, chego atrasada.
Quando caio no abismo, descubro que as ondas do mar podem me salvar. Eu
boio. E sou levada a outro porto seguro. Mas meu barquinho continua à deriva
em alto mar.
Eu agora estou segura.
Porém... náufraga.

♫♪

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Capítulo Vinte e Cinco


Meu colégio fica no centro da cidade. Logo após o muro alto, há dois prédios
seguidos, de três andares, cada um com várias salas de aula. O espaço é muito
bom, com piscina esportiva, quadra de esportes e campo de futebol. Além de
várias oficinas de artes, leitura, dança, desenho, teatro, capoeira e curso
preparatório para vestibular e carreira militar.
O colégio é sempre muito movimentado, com várias atividades acontecendo
ao mesmo tempo. Eu adoro estudar aqui. É minha escola da vida inteira.
Beijo Alex e me despeço, descendo do carro. Muitos alunos já estão
uniformizados, mas eu estou aproveitando a oportunidade única que a escola
dá, durante uma semana, de comparecer às aulas sem uniforme.
Há muitos estudantes do lado de fora ainda e carros param o tempo todo para
desembarcar mais. Os ônibus que fazem rotas também chegam a todo minuto,
apinhados de alunos.
Durante as férias, fizeram os reparos de costume. Há uma pintura nova nas
paredes e nos portões. Avanço pela entrada e o falatório é insistente. Procuro
pelas listagens a fim de descobrir onde será minha sala.
– Cheguei! – Soninha me encontra tentando localizar nossos nomes nas listas.
– Que cara é essa?
– Aff. Nem te conto! Briguei com Bianca agora de manhã e meti a mão na cara
dela! –volto a olhar as listas.
– Gente! Que babado! – Soninha exclama. – Mas por que isso?
– Vamos resolver isso aqui primeiro e já te conto... – corro os olhos por outra
lista e encontro nossos nomes em uma das turmas de terceiro ano. – Achei!
Bloco 1, Sala 23!
– Ótimo! Vamos procurar a Ju! – Soninha diz pegando o celular. – Será que ela
vem hoje? Ela ia fazer mais um teste ontem com a banda do Ivan. – Por falar
nisso, você o viu depois do que ele fez ontem à noite?
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– Não... – digo cabisbaixa. – E foi esse o motivo da minha briga com Bianca.
– Oi? – Soninha parou de discar e me olhou assustada.
– Pois é. A Bianca viu o Ivan saindo do meu quarto ontem à noite... – dou de
ombros.
– Até aí, nada demais... – avalia.
– O problema foi que eu neguei que estive com ele. E Bianca contou que o viu
saindo do meu quarto! – levanto as mãos. – Ou seja??? Eu menti! E tudo
pareceu bem vulgar do jeito que ela falou!
– Que vaca! – Soninha exclama com raiva. – Desculpe, amiga! Sei que é sua
irmã, mas que raiva que me deu!
– Não se preocupe, já xinguei Bianca de coisas muito piores! – rimos juntas.
– E o que aconteceu depois? – digita uma mensagem, mas continua atenta a
nossa conversa.
– Eu contei toda a verdade para o Alex em relação aos meus sentimentos! –
levanto os ombros e os deixo cair. – E foi um alívio fazer isso!
– Mentira! – minha amiga leva uma das mãos à boca, surpresa.
– Já devia ter feito isso há muito tempo! Mas só falei o que dizia respeito a
mim. Quanto aos beijos e aos sentimentos de Ivan, não tenho nenhum direito de
expor. Concorda?
– Acho que tem razão... – está pensativa. – Eu não teria essa maturidade toda...
– Alex prometeu não contar a ninguém e eu confio nele. – afirmo e Soninha lê
uma mensagem que chega pelo celular.
– Ela está na cantina! Óbvio! Vamos buscá-la porque o sinal já vai tocar.
Caminho com Soninha pelo pátio até chegarmos à cantina. Lá está Ju, atracada
com um milk-shake e um misto quente. Não entendíamos como podia ser tão
magra. Estou rindo muito quando nos aproximamos e Ju arqueia as
sobrancelhas, com curiosidade.
– O que foi, gente? – pergunta ainda com a boca cheia.
– Estávamos falando que você só poderia estar aqui, alimentando a solitária
que vive em seu estômago! – rimos as três.
– Preciso me alimentar! – Ju limpa a boca com o guardanapo. –
Principalmente agora que vou ficar famosa!
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– Hummmm... – bato palminhas.


– Graças a você, amiga! – Ju estende a mão para alcançar a minha e aperta. –
Você é a responsável por tudo de bom que está me acontecendo...
– Ah, miga! Que isso...! – dou tapinhas em cima da mão dela. – Você não teria
conseguido se não fosse pelo seu talento! – sorrio, orgulhosa.
– Ah... – ela coloca o último pedaço de misto quente na boca. – E obrigada
pelo seu aniversário incrível! Nunca conversei tanto com aquela delícia que é
o seu irmão! Deus! Que homem é aquele!? – limpa os farelos de pão da blusa,
enquanto rimos dela.
– Ele te deu atenção, foi? – pergunto e ela só balança a cabeça
afirmativamente, já que a boca está ocupada com o copo de milk-shake.
– E como deu, amiga! – Soninha responde por ela. – Sou testemunha... Estava
todo trabalhado na admiração pela Ju. Até o Nando que é sempre tão
desligado, notou!
O sinal toca e nós encerramos a conversa com risadinhas. Pegamos nossas
coisas e nos dirigimos à turma indicada. A sala é grande e arejada. Duas
amplas janelas ficam do lado direito do professor e mostram a vista da frente
do colégio. Há um quadro branco enorme que acompanha toda a extensão da
parede. Os quatro lados da sala estão pintados de branco, da altura da minha
cabeça para cima; e de cinza, para baixo.
Meus amigos continuam os mesmos do ano passado, com exceção de Renato.
Um carinha que faz o tipo marrento e é repetente há vários anos. Deve estar na
faixa dos vinte e três anos de idade. Ele tem uma moto e, por causa disso,
algumas oferecidas, morrem de amores por ele. Usa cabelos nos ombros,
piercings e tatuagens de caveira. Não vou com a cara dele. Não pelas
características citadas, mas pelo seu jeito brigão, largado e abusado. Óbvio
que ele se uniria ao grupinho de Rebeca, Fabinho e Daniel: os não-tô-nem-aí-
pra-estudar da turma do ano passado!
Meu grupinho de amigos de sempre já estão reunidos em um canto da turma e
nossos lugares estão reservados por eles. Sorrio ao vê-los!
– Aí, pinguça! – André me saúda, rindo. – Tomando bronca e tudo de irmão
postiço!
– Ele não é meu irmão e você sabe muito bem disso! – sento séria.
– Caramba! – João exclama sem dar confiança para minha irritação. – Imagina
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se fosse! – e ri a valer. – O cara só faltou bater na sua bunda!


Dou a língua a eles, num gesto infantil. Mas não estou disposta a manter essa
conversa boba nem mesmo revelar meus segredos para aqueles dois
palhações. Três, né? Porque Max, está atrás de André, rindo também. Idiotas!
Nossos dois primeiros tempos são de inglês com a professora mais amada do
planeta Terra. A Rosana é o tipo de professora #loveforever. Logo depois,
temos um tempo de História com o professor Victor, o deus da Grécia
encarnado entre nós. E para que nossos ânimos possam se acalmar (das
meninas, eu me refiro), o sinal toca para o intervalo. Obrigada, Deus! O
ventilador de teto não está dando conta do calor que a visão do professor
provoca em nós. Nosso grupinho se reúne no pátio para lanchar, conversar
sobre as férias, as novidades, enfim, todas as futilidades típicas de jovens de
nossa idade. Quando olho para essa cena, tudo parece de volta à normalidade
em minha vida.
De volta à sala, assistimos mais uma aula do professor tudo de bom e somos
surpreendidos a seguir com uma nova professora de Geografia. Nova
inclusive, no colégio. O que fizeram com a professora Magali? Aff. Quero que
ela volte com urgência!
A nova professora é ameaçadoramente bonita. Alta, corpo escultural, morena,
cabelos pretos e longos. Mas também é a visão do pedantismo. Os meninos
suspiram com a sua chegada e as meninas torcem o nariz. Não é simplesmente
o fato de ter aquela aparência exuberante que parece nos incomodar. Mas é a
maneira como ela nos olha. Há uma espécie de rivalidade no olhar dela, uma
arrogância e uma prepotência das quais não estamos habituadas a ver em uma
professora.
Norma. Seu nome é Norma. E eu antipatizo com ela imediatamente. Será que
seu nome também nos brindaria com novas normas?
A normalidade que eu pensei estar sentindo no intervalo dá lugar a uma total
descrença da minha capacidade paranormal de pressentir futuros problemas! E
eles viviam normalmente atraídos por mim como se eu fosse uma espécie de
para-raios. Normal? Para uma pessoa como eu, com certeza, sim...
Principalmente porque, às vezes... Eu costumo
descumprir normas.

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♫♪

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Capítulo Vinte e Seis


Uma semana se passa desde o início das aulas. Quero me dedicar bastante
para prestar vestibular. Pretendo fazer Jornalismo. Eu adoro escrever e estou
apostando nessa minha habilidade para conquistar espaço na edição de uma
Revista ou Jornal.
Pouco tenho saído do meu quarto, a não ser para fazer as refeições ou ir ao
colégio. Estou focada nos estudos e isso me ajuda muito a tirar Ivan dos meus
pensamentos. Não sei por onde ele anda. Não o vejo há dias.
Meus pais não ficaram sabendo de minha briga com Bianca. Ela parece ter
guardado para si a humilhação de ter apanhado na cara da irmã caçula. Mas eu
sei que ela é uma cobra venenosa. Só está esperando o momento certo de me
dar o bote.
Estou sentada em minha mesa de estudos. Óculos de grau no rosto e olhos
atentos às questões de matemática. O lápis dança entre meus dedos e eu me
concentro em compreender o enunciado.
Ouço uma leve batida à porta e meu corpo gela. Será que é Ivan? Será que
veio me pedir desculpas pelo ocorrido na semana passada ou me afrontar
ainda mais com aquele seu ar de você-não-passa-de-uma-criança-Francine?
Estou tensa. Conserto minha postura e ajeito o cabelo.
– Quem é? – grito em direção à porta fechada.
– Eu, Alex! – Ufa. É só o Alex. É só o meu irmão... Relaxo na cadeira e grito
para que ele entre.
Alex está com um ar preocupado, sério. Usa uma calça branca do trabalho e
uma camisa social da mesma cor. Parece arrumado para sair. Está cheiroso e
barbeado.
– Posso conversar com você um instante? – ele se aproxima e aponta a minha
cama.
– Claro, irmão! Senta. – Já posso imaginar qual será o assunto. Minha
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revelação da semana passada gerou dúvidas e ele, como meu irmão mais
velho, se acha no direito de saber o que está acontecendo! Sua frase
preferida nos últimos dezoito anos! Bora lá descobrir o que ele tanto deseja
saber...
– O que houve? – pergunto deixando o lápis sobre o caderno e virando a
cadeira giratória para ele.
– Senta aqui, Fran... – dá batidinhas na minha cama, me chamando para uma de
suas típicas conversas de irmão excessivamente preocupado.
– Você está me assustando, Alex! – digo enquanto ele pega em minhas mãos.
– O Ivan me contou tudo... – observa minha expressão atentamente.
– O quê?! – estou sobressaltada. – Contou o quê? – pergunto temendo que meu
irmão esteja blefando a fim de tirar alguma informação de mim...
– Ele me contou que você pensa que está apaixonada por ele...
– Eu penso não: eu estou! – interrompo, corrigindo-o. – Mas Até aí nenhuma
novidade! Eu mesma disse isso a você!
– Mas não disse que vocês se beijaram e que ele se sente atraído por você! –
levo um choque. Mesmo sabendo como os dois são amigos, não acreditava que
Ivan conseguiria revelar uma coisa dessas, mesmo que fosse para o seu melhor
amigo! – Por que escondeu isso também? Eu não disse que podia confiar em
mim?
– Sim, você disse! – eu me levanto. – Mas o que você parece não compreender
é que essa história não é só minha! É também de uma pessoa que tem um
vínculo muito forte com você! Eu não podia simplesmente despejar toda a
verdade sem o consentimento dele!
– Eu entendo, minha irmã! – Alex se levanta e alcança minhas mãos de novo. –
E isso só prova o quanto você está amadurecendo! Estou muito orgulhoso de
você! – eu o abraço, recolhendo minha maturidade numa caixinha e deixando a
menina se sentir protegida pelo irmão. – Mas também estou muito
preocupado...
– Com o quê? – me afasto e o encaro, com curiosidade.
– Com as consequências disso tudo! Com os seus sentimentos, com a atração
que ele está sentindo por você... Tudo isso é muito estranho pra mim, Fran!
Mas eu estou tentando digerir...
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– Não será preciso digerir, Alex! – sento na cama de novo e abraço uma das
minhas almofadas. – Nunca teremos nada! Eu sou só uma irmãzinha para ele...
– E o que você vai fazer com o que sente aqui dentro? – meu irmão diz
baixinho, tocando o lado esquerdo do meu peito.
– Vou matar esse amor. Antes que ele me mate primeiro! – digo com um pouco
de raiva. – É isso que meu juízo vem dizendo há muito tempo!
Meu irmão me abraça de novo, bem apertado. Ele tem motivos para se
preocupar, mas não deve. Ivan não tem a menor pretensão de ter um romance
comigo e, pela distância que temos mantido um do outro, também não tem a
menor pretensão de voltar a me tocar ou, até mesmo, de resgatar nossa antiga
relação. Não sobrou nada do que vivemos. Nada. Só uma amizade abalada, um
coração partido e desejos reprimidos. E eu... sendo obrigada a conviver com
sua presença constante sem ter o direito de sequer ter esperanças...

Desço para jantar e Bianca está assistindo televisão na sala com minha mãe.
Notícias da crise do país, violência, corrupção e outras tantas vergonhas que
ainda somos obrigados a presenciar em pleno século XXI.
Minha mãe reclama do preço das roupas e Bianca dá de ombros como se nada
disso interferisse em sua vida. Eu me recuso a sentar com elas e partilhar
desse assunto pobre de conteúdo.
Graças a minha sorte, meu pai está chegando bem na hora em que eu ia à
cozinha perguntar a Bastiana se podia jantar antes de todo mundo. Pelo menos
agora, eu teria meu pai para me fazer companhia durante a refeição.
– Olá! Boa noite! Boa noite, meninas! – papai está com uma aparência muito
abatida. Beija meu rosto e joga a maleta sobre a bancada do corredor.
– Boa noite, pai... Janta comigo? – peço em tom de súplica.
– Claro, filha! – vai até minha mãe e Bianca e beija as duas também. – É só o
tempo de tomar um banho e já desço para comer com vocês. – olha em volta. –
Onde estão Alex e Ivan?
Aff. Por que ninguém nessa casa consegue passar sem falar de Ivan? Droga! É
difícil conviver com o fato de tê-lo como novo morador. Sua presença ainda
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será de extrema complicação para mim!


– O Alex tinha um plantão... – minha mãe diz folheando uma revista. – E o Ivan
recebeu um telefonema e saiu. Ele disse que ia ver algo relacionado a um
emprego, mas ainda não voltou.
– Emprego? – meu pai estranha. – As coisas não estão indo super bem lá no
estúdio? – dá de ombros. – Não estou entendendo mais nada... – sobe alguns
degraus da escada antes de gritar. – Volto num instante!
Emprego? Curioso demais isso! Meu pai tem razão! Se tudo está caminhando
bem no estúdio; se Ivan continua a compor suas canções, trabalhando com o
que gosta... Que emprego seria esse? Suspeito, muito suspeito!
Ju tinha me contado que o estúdio é lindo. Espelhado, super moderno. Ivan não
me levou, como prometera. Segundo minha amiga, a banda é um furacão. Os
meninos são muito talentosos e, juntos, eles têm tudo para explodirem no
mercado e garantirem as paradas de sucesso.
Estou muito feliz por ela ter sido escolhida e acolhida por eles. O talento de Ju
é algo inquestionável. Sua voz é potente, segura e ela tem uma presença de
palco incrível.
Deito para dormir com meu peito apertado e sinto uma sensação de
sufocamento.
Estou farta dessa sensação. Sinto falta do meu velho barquinho e me atiro nas
ondas revoltas para alcançá-lo. Chego à proa cansada, mas satisfeita... Preciso
do meu barquinho para ser feliz e para continuar brigando dentro de mim.
Sem meu velho barquinho, não vale à pena chegar à praia.
É ele que me navega, que me dá direção, que me faz refletir conflitos.
Sem meu barquinho, sou náufraga de meus próprios sentimentos e eu prefiro
estar correndo risco em ondas.
É o meu barquinho que revela quem eu sou.
E eu sou tudo o aquilo que decido que sou capaz de ser.

♫♪

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Capítulo Vinte e Sete


Nessa manhã, eu acordo muito bem disposta. O fato de começar a tomar as
rédeas da minha vida e aceitar que preciso aprender a conviver com todos os
meus sentimentos, me desperta para a beleza da vida.
Estou atrasada e me preparando para ir ao colégio. Sorte que, desde a noite de
ontem, minha bolsa já está pronta com o material que preciso levar hoje.
Termino de me aprontar, pego minhas coisas e entro na cozinha feito um
furacão.
Meu pai e Alex estão tomando café. Bastiana esquenta o leite, mas não há
tempo para nada. Estou muito atrasada.
– Bom dia! Bom dia! Bom dia! – digo apressada, beijando os três no rosto.
– Bom dia, maninha! – Alex responde enquanto leva o copo de suco à boca.
– Bom dia, filha! – sorri. – Dormiu bem?
– Sim, como uma pedra! – estou sendo sincera. Recuperar meu barquinho me
deu coragem.
– Não vai tomar café? – Bastiana pergunta com a leiteira já pronta para encher
o copo.
– Não, estou super atrasada! Como alguma coisa na escola! – pego uma maçã
na fruteira que está sobre a bancada e dou uma mordida.
– Oxe, menina! Logo hoje que não fiz ainda sua merenda... – Bastiana diz
chateada. - Lá vai ocê comer aquele monte de porcaria!
– Não se preocupe, minha linda! – beijo o rosto dela. – Partiu!
– Não quer uma carona? – meu pai limpa a boca com o guardanapo e se
levanta. – Já estou saindo também.
– Opa! Bora! – digo ajeitando a alça da bolsa no ombro.
– Já é! – meu irmão exclama, imitando forçadamente o jeito dos garotos que
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utilizam a gíria. E caímos na risada.


Bianca entra na cozinha reclamando que perdeu a hora. Ainda está com o rosto
amassado pelos travesseiros e a aparência de quem dormiu tarde. Estou saindo
a tempo de ouvir Bastiana retrucar.
– Se eu te acordo, tomo fora. Se eu não acordo, ocê reclama! Eu não entendo
ocê, menina!

Minha animação toda fica comprometida quando lembro que temos os dois
primeiros tempos de Geografia. Voilà! Norma para os interessados nos índices
de crescimento da população mundial. Aff. Não tenho a menor paciência para
as caras e bocas que ela faz!
No intervalo, Rebeca surge das profundezas de um bueiro qualquer e se dirige
a mim e minhas amigas como se fizéssemos parte do seu rol seleto de best
friend forever da semana. Patética!
– Meninas! – diz toda empolgada e encostando-se a mim. Eu retiro meu ombro
com força e faço uma cara de Quem é você na fila do pão?, mas ela finge que
não nota e continua sua tagarelice. – Já viram o novo professor de Educação
Física? – abre a boca com a nossa expressão desdenhosa. – Não? Nossaaaa!
Para tudo! É um gato!
– Ahhh, que bacana! É mesmo, Rebeca!? – Ju debocha, mordendo um pedaço
da casquinha do sorvete que tinha tomado.
– O que você tem mais a dizer a respeito disso? – Soninha zomba e nós três
começamos a rir. Mas a falta de noção de Rebeca não tem limites e ela
continua agindo como se estivesse no meio de uma zoação entre... amigas.
– Estão duvidando de mim, é? Pois fiquem sabendo as três... – aponta para
nós. – ... que vão babar! – sai rebolando e jogando o longo cabelo pro alto.
Nossa! Que amor de pessoa!
– Viva as pontas duplas! – Ju exclama jogando o guardanapo fora.
– Uiii! – Soninha completa. – Você é cruel!
O sinal toca e vamos com nosso material em direção aos vestiários femininos.
Teríamos nossa primeira aula de natação com o mais novo professor de
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Educação Física do colégio.


Quando estou próxima às grades que separam o vestiário da piscina, observo
o novo professor, de costas, retirando uma das raias horizontais móveis. A
visão daquelas costas dentro da camiseta e do cabelo escuro molhado me traz
uma estranha sensação de desconforto. Eu conheço os músculos daqueles
braços como e com a palma da minha mão. Conheço o movimento daquele
quadril, a agilidade daquelas mãos, o gingado dos passos...
Estou chocada. Ivan... É o Ivan! Mas que diabos ele está fazendo aqui?
Estou paralisada com as bolsas nas mãos. Eu preciso de uma consulta
urgentemente para avaliar esses meus problemas motores. Minhas amigas não
entendem porque parei de andar e me olham assustadas.
– O que houve? – Ju pergunta enquanto Soninha acompanha meu olhar.
– Ivan... – diz baixinho.
– Meu Deus! É o Ivan! – Ju quase grita com o susto. – Mas o que é que ele está
fazendo aqui e... vestido daquele jeito?
– Ele... – minha voz falha e engulo em seco. Pigarreio e conserto a minha
postura. – Ele também é formado em Educação Física.
– Como assim, Brasil?! – Ju leva as mãos à boca. – Cara, isso significa que
ele vai dar aulas... pra gente? – aponta para nós três e solta um suspiro alto. –
Aí babou! – leva as unhas à boca e já começa seu processo de decepar o dedo.
– Vamos trocar de roupa, vamos! – Soninha nos empurra gentilmente.
– De jeito nenhum! – digo sobressaltada. – Nunca que eu vou me sujeitar a
uma coisa dessas!
– Amiga, alôoou! – Ju estala os dedos no meu rosto. – Há tempos você daria
tudo para que isso pudesse acontecer! Aproveita a oportunidade e agarra logo
esse bofe!
– Eu não estou entendendo... – Soninha está pensativa. – O cara pede
distância, você dá. Jura que não sente nada por você... E vem trabalhar
justamente aqui?
– Eu acho que ele está caidinho por ela, isso sim! – Ju cruza os braços e assim
como nós, continua observando Ivan de longe. – Acho que tudo isso faz parte
do joguinho de sedução dele.
– Pensando bem... Vamos trocar de roupa! – digo decidida. – Ele está
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jogando? Pois, então. Vamos ver quem dá as cartas primeiro! Ou melhor,


vamos ver quem vence esse jogo!
– Hummm... – Ju bate palminhas e me segue até o vestiário. – Assim que eu
gosto! Adoro uma competição saudável! – esfrega as mãos e vira os olhos,
fazendo uma careta.
Visto o maiô preto e prendo meu cabelo num coque alto. A touca da mesma cor
que o maiô cobre minhas orelhas e eu ponho os óculos de natação no alto da
cabeça. Guardamos nossos pertences no armário e caminhamos em direção à
piscina.
Então é esse o seu novo emprego? Um emprego cujo salário não paga nem um
dos ternos que ele usa! Por quê? Para me punir? Para me castigar por eu amá-
lo tanto? Não consigo entender! Por que ele está fazendo isso?
Se for para satisfazer um capricho de ser professor, ele poderia ter escolhido
qualquer colégio. Qualquer um! Menos o meu! É desse jeito que pretende se
manter afastado? Ele tinha estudado naquela escola, está certo. Há muitas
lembranças vivas para ele naquelas paredes, mas mesmo assim... Ele fez de
propósito! A pergunta, porém, é insistente: Por quê?
– Meninas! – Ivan aproxima-se de nós. Eu estou parada de frente para ele, de
braços cruzados e com fogo nos olhos! - Que bom que serão minhas alunas!
Fiquei contentíssimo quando vi os nomes no diário... – seus olhos estão
pousados em mim, feito um ímã.
– Que palhaçada é essa?! – confronto-o entre os dentes. – Por que não me
contou nada?
– Contou o quê? – um sorrisinho de canto de boca aparece, enquanto enrola a
cordinha do apito na mão.
– Que viria dar aulas aqui...? – estou profunda e absurdamente irritada.
– Por acaso estou sentindo uma... irritabilidade em sua voz? – Ivan ironiza.
Está sendo um divertimento para ele conduzir parte da minha vida!
– Claro que está! – quase grito. – Não foi você mesmo quem me pediu para...
– Ei! – ele me interrompe. – Que tom é esse, mocinha?! Respeite o meu
trabalho, por favor! – chega mais perto e fala baixo. – A direção me ligou, me
fez uma proposta e eu aceitei. Isso é tudo! Eu não tenho que dar satisfações a
você! – olha de um lado a outro. – E para de fazer cena porque está todo
mundo olhando!
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– Ah!!! – digo ainda mais alto. – Pois você devia ter ficado preocupado com
as minhas cenas antes de... – Soninha, segura meu braço.
– Cara, se controla! Ele está só tentando provocar você.
Argh! Só, Soninha? Só?
– Vamos lá, pessoal! – Ivan diz batendo palma e olhando fixamente para mim.
Leva o apito à boca e assopra forte. – Vamos aquecer para cair na água!
Mi-se-rá-vel! Mas que ódio! Que ódio! Que ódio! O que ele pretende com
isso?
Ivan agora é meu professor. É autoridade dentro do colégio. Estou batendo o
queixo de tanto sentimento acumulado. Se ele pretende que eu passe a odiá-lo
para conseguir me afastar...Vai realizar seu desejo mais rápido do que pensa!
Começando em 3, 2, 1...
Ivan é meu professor. Autoridade sobre mim.
Meu professor... Detentor de mais um poder. Mais um.
Há uma linha tênue entre o amor e o ódio. E eu agora caminho sobre ela,
segura do meu objetivo. Quando todo o amor que eu sinto se transformar em
ódio, tomarei todos os poderes que estão em suas mãos.
E serei plena de mim mesma.

♫♪

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Capítulo Vinte e Oito


Há dois dias, venho ignorando completamente a presença de Ivan. Não tenho
feito as refeições em família, alegando ter muita coisa para estudar. Hoje,
porém, sou pressionada por Alex a almoçar na sala. Ele está de folga e
pretende ir com Ivan até o estúdio. Eu sei de onde está vindo tanto apreço
musical do meu irmão ultimamente. E esse apreço atende pelo nome de Julia.
Papai está de plantão no hospital e o restante da família, senta à mesa agora
para o almoço. Ivan está a minha frente e me observa pelo canto dos olhos. Eu
sinto. Alex, seu interlocutor, conversa animadamente com ele e, se está
percebendo seus olhares furtivos para mim, não demonstra.
Minha mãe participa da conversa e, às vezes, interrompe para perguntar
alguma coisa. Não estou prestando atenção. A tarefa de mastigar e engolir a
comida exige demais de mim no momento. Se eu pudesse, voltaria para o meu
quarto, de onde eu não devia ter saído desde que cheguei do colégio.
– Já tem data para a estreia da Julia? – ouço minha mãe perguntar e o assunto
me interessa.
– Acredito que daqui a uns dois meses já estará tudo pronto e a Julia
preparada para o grande dia! – Ivan passa os olhos por mim, mas não me
encara.
– Ela é um talento! – Alex fala, empolgado. – Estou realmente admirado! –
leva um pouco de comida à boca.
– Pelo visto você também está pegando a doença do Ivan... – Bianca fala com
ironia.
Todos os olhares da mesa estão voltados para ela. O rabo da serpente passa
esfregando a ponta do meu nariz e se enrosca no pescoço de Ivan. Sinto meu
rosto queimar e fixo o olhar em um ponto qualquer da mesa. Minha respiração
está suspensa e tudo o que eu faço agora é me concentrar em contar o número
de pombinhas brancas imaginárias para não voar em Bianca outra vez! Eu não
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marquei sua cara o suficiente.


– O que foi que disse, Bianca? – Ivan vira-se para ela. – Seja mais direta, por
favor... Estou muito interessado em ouvir o que você tem a dizer! – o tom de
Ivan é tão ameaçador que eu agarro o assento da cadeira e aperto com toda a
força que eu posso.
Minha mãe encara Bianca atentamente, esperando uma explicação para esse
tipo de comentário. Tudo o que se refere a Ivan ou Alex diz muito respeito a
ela!
– Eu quis dizer que, agora, Alex vive às voltas com as adolescentes assim
como você... – olha para mim. – São os titios da criançada!
– Ah, mas isso eu faço desde sempre! – Ivan ri, retribuindo a ironia. – Minha
graduação no assunto foi com você!
Todos riem também. Menos Bianca e... eu. Juro que estou vendo sua
cabeça tombar para trás como se tivesse levando uma bofetada. Ela recua, mas
avança de novo sobre a presa enroscando seu chocalho.
– Mas pelo menos você não precisava... me colocar para dormir, não é
mesmo? – levanta com raiva, pega a bolsa e vai saindo.
Com exceção da minha mãe, nós três entendemos muito bem o que a cascavel
está querendo dizer. Eu sinto o suor escorrer pelas minhas costas e minhas
mãos doem de tanta força que faço para me segurar na cadeira.
- Bianca! Eles só estão brincando! – minha mãe exclama, rindo. – Aguardo
você no salão...! – dá uma risadinha quando ela sai. – Vocês não são fáceis,
hein! Não perdem essa mania de implicar com ela! – levanta-se ainda
acreditando que tudo não passou de uma brincadeira. – Vocês me deem
licença... – Vamos, filho? Você pode me levar mesmo?
– É claro, mãe! É só o tempo de escovar os dentes! – olha para Ivan e depois
para mim. Pisca o olho. – Vou subir com você, espere!
Basta ficarmos sozinhos para que Ivan crave os olhos em mim. Eu me levanto
com a expressão fechada e coloco o guardanapo sobre a mesa.
– Com licença... – digo sem olhar para ele.
– O que houve, Francine? Está chateada com alguma coisa? – pergunta assim
que minha mãe e meu irmão desaparecem da sala. Deus! Por favor, não me
abandone nesse momento! O que mais terei de suportar no dia de hoje?
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– Imagina... – transpareço calma, sem qualquer emoção na voz. – Impressão


sua... Só estou um pouco... cansada. Tenho estudado muito!
– Isso é bom! É o que deve fazer qualquer menina da sua idade! – qual botão
desliga seu sorriso não debochado?
Ajeito a cadeira, sem demonstrar qualquer sinal de raiva ou aborrecimento.
Apoio as palmas das minhas duas mãos sobre a mesa e encaro Ivan com toda a
naturalidade do mundo.
– Você pode me fazer um favor? – pergunto sem qualquer alteração em minha
expressão.
– Se eu puder ajudar... – diz cruzando as mãos, cotovelos apoiados na mesa.
– Você pode, sim... – respiro fundo e digo pausadamente. – Vá para o inferno
de onde você nunca deveria ter saído e me deixa em paz!

As semanas se arrastam e eu encontro no estudo, a única maneira de manter


meus pensamentos longe de Ivan. Tenho aulas com ele quatro tempos por
semana e isso é um problema do qual eu não posso fugir. Em casa, faço o
possível para não estar no mesmo ambiente que ele. Passo o dia no quarto,
estudando com afinco, pois as provas estão se aproximando.
Julia faltou hoje por causa do ensaio com a banda e Soninha foi dar uma volta
com Nando depois da aula. Eu caminho até o ponto de ônibus e, com os
pensamentos longe, acabo esbarrando em Renato. Cigarro na mão. A moto
estacionada a sua frente.
– Calma, gatinha! Vai aonde assim com tanta pressa? – me segura buscando
equilíbrio.
– Desculpa... Eu estava distraída! – observo que ele ainda está segurando o
meu braço. – Você já pode me soltar...
– Nossa! Calma! – Renato levanta os braços em sinal de redenção. – Você é
sempre assim tão marrenta?
– Marrenta? Eu?! – faço cara de espanto e dou um risinho irônico. – Não... Só
não sou boba!

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– Hum... Gostei. – ri. – Quer uma carona? – joga o cigarro no chão, solta a
fumaça do último trago e apaga a guimba com a ponta do tênis.
– Não, obrigada. – tusso propositalmente e dou um passo adiante. – Tenho um
compromisso logo ali à frente.
– Vai nessa, então! – Renato balança a mão para mim e me observa virar as
costas.
A escola inteira sabe que não é só cigarro que ele fuma. Não sei quanto a estar
envolvido em coisas piores. Eu não vou muito com a sua cara, mas acho que
pessoas como ele precisam de ajuda. É visível isso. Às vezes, me culpo por
não prestar mais atenção às necessidades dos outros. E Renato é um cara
problemático. Prometo a mim mesma que vou tentar ser menos arredia da
próxima vez.
Continuo caminhando com a intenção de pegar o ônibus no próximo ponto para
sustentar a desculpa que eu tinha que fazer algo logo ali. Até que a imagem do
meu livro de matemática, dentro do meu armário do colégio, me traz de volta à
realidade. A realidade nua e crua de que, se eu não voltar para pegá-lo, terei
sérios problemas com o teste do dia seguinte.
Percorro todo o caminho de volta e é com alívio que constato que Renato não
está mais no ponto de ônibus. Ufa! Ah, Francine! Como você esquece fácil
suas promessas! Cadê aquele papo religioso de olhar mais para as pessoas
que necessitam?
Passo apressada pela porta principal. Poucos alunos ainda estão pelos
corredores. É hora do almoço e, mesmo quem participa de atividade
extraclasse, não costuma transitar por eles nesse horário. Vou até o andar em
que eu estudo. Meu armário é pequeno como todos os outros, mas ajuda um
bocado a não levarmos pesos desnecessários para casa.
Não há ninguém no meu corredor, exceto um dos inspetores de turno. Bato
minha mão para ele e abro meu armário, retirando o livro que preciso. Além
desse livro de Matemática, voltarei para casa com um livro de Gramática e um
caderno grosso de seis matérias.
Saio pelo portão lateral e decido contornar o colégio pelos fundos para cortar
caminho até o ponto de ônibus. Ando lentamente olhando para o chão. Bolsa
nos ombros e material no colo. Minha cabeça está nas questões de matriz que
eu teria que resolver. Além, é claro, na loucura que é decorar aquelas fórmulas
medonhas! Meu professor jura que vai servir para alguma coisa na nossa vida.
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Mas enfim...
Dou dois passos a frente e, quando levanto meus olhos, vejo a mais dolorosa
de todas as cenas da minha jovem vida. O carro de Ivan está estacionado na
calçada e seu dono está encostado na traseira dele com a professora Norma
em seus braços. Eu acabo interrompendo o beijo porque, com o susto, deixo
todo o meu material cair no chão.
– Oi, Francine. – pela primeira vez em semanas, eu vejo Ivan perder o ar de
controle sobre as coisas. Ele está tão chocado quanto eu.
– Ah, oi... – começo a apanhar meu material sem saber o que dizer. –
Desculpe, eu não quis atrapalhar vocês... – olho dentro dos seus olhos, quando
ele se agacha para me ajudar a apanhar os livros.
Norma, em pé, continua a me olhar, sem dizer nada. Ela parece observar cada
entrelinha, cada gesto, cada palavra dita, perfurando o ar com seu domínio.
Parece até um pouco... ameaçadora?
– Não deveria estar em casa agora? – Ivan pergunta totalmente sem graça, me
entregando um dos livros.
– Eu só vim buscar isso... – digo apontando o livro, num fio de voz. Não há
mais nada a fazer ali, não há mais nada a fazer na vida. Não há mais sonhos
para viver! Placas tectônicas vão se abrindo sob meus pés e eu vou caindo...
caindo...
Onde está a Francine disposta a deter o poder? A Francine corajosa que aceita
suas derrotas de cabeça erguida? Ela deve estar em algum sótão dentro de
mim, agachada e encolhida, ameaçada pelas forças da natureza! Não há o que
fazer contra as forças da natureza!
– Norminha, a Francine é filha do Dr. César de quem eu tanto falo... – Ivan
resolve nos apresentar. Se essa é a palavra certa! Sou a cobaia do palhaço
nesse exato momento. Posso ouvir a risada da plateia!
Norminha? Nossa! Quanta intimidade! Que a-mor...! Não sei se bato palma,
sento ou me finjo de morta. Aguardo o próximo comentário, mas ele não vem.
Respiro fundo e dou um tchau que só é ouvido, graças ao silêncio que reina
entre nós.
Norma sibila nos meus ouvidos e seu chocalho me arrepia. Sou uma presa que
ameaça. Sinto isso nos olhos dela. Sou uma presa que possui teias. Para que eu
seja pega, minha predadora precisa se enroscar nelas.
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Norma é minha predadora. Eu, a presa.


Mantida prisioneira de meus próprios sentimentos e refém dos meus próprios
conflitos.
Uma presa...
Uma presa que como qualquer outra... descumpre normas.

♫♪

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Capítulo Vinte e Nove


Os dias se passam velozes e já faz três meses desde que eu completei dezoito
anos e que Ivan está morando com a minha família. Procuro ao máximo evitar
contato direto com ele, mas às vezes é inevitável. O desconforto que sentimos
na presença um do outro é tão forte que até o meu pai já tentou conversar
comigo a respeito. Muitas vezes penso que não há espaço para nós dois nessa
casa. Se eu tivesse que conviver sozinha com os meus sentimentos como era
antes, tudo seria mais fácil. Mas o fato de eu ter revelado a ele o que sentia,
dificultou muito a nossa relação amigável.
Ivan me evita também o máximo que pode. E quando não consegue, parece que
sente prazer em me ferir. Tudo que sai da sua boca é com ironia e descaso. Às
vezes, tenho a sensação de ver culpa em seus olhos e até uma tentativa de
reparar alguma coisa, mas rapidamente o Ivan que provoca o que há de pior na
minha pessoa, volta a se fazer presente. Eu não acredito que ele faça isso por
desgostar de mim. Não... Isso não é possível! Temos uma história linda juntos,
vivemos momentos inesquecíveis... Ele não pode me odiar! O que está
tentando fazer é me afastar ao despertar minha raiva. Esse é o ponto-chave.
Mas... Por quê?
Fico pensando nos motivos que Ivan tem para fazer isso e três opções me vêm
à cabeça: 1. a atração que sente é forte demais; 2. ele só quer que eu o
esqueça; ou... 3. está mais apaixonado por mim do que pode supor. Seja qual
for o motivo, Ivan é um idiota! Sim, um idiota se acha que pode mudar
sentimentos tão profundos.
Eu tenho me dedicado ao máximo e estudado bastante para tirar boas notas no
colégio. E isso tem me ajudado muito a mantê-lo afastado dos meus
pensamentos.
O estúdio parece ir muito bem e em breve, Ju irá estrear junto com a banda. O
namoro dele com Norma também parece bem firme e ela não perde uma
oportunidade de me alfinetar com comentários nada pedagógicos. Eu odeio
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essa mulher! Com todas as minhas forças!


Há alguns dias, teve uma cerimônia de abertura para os jogos colegiais.
Vários meninos da minha sala estão no time de futebol, coordenado pelo
professor Emerson, também de Educação Física. E algumas meninas no time
de vôlei estão sob os cuidados de Ivan. Hoje de manhã, mesmo sendo final de
semana, estão acontecendo treinos na escola e Ivan está lá.
Sinto em meu coração que precisamos conversar. Eu preciso dizer a ele o
quanto desejo ter a nossa amizade de volta e que nada no mundo me importa
mais do que vê-lo feliz. Preciso dizer que não precisamos nos maltratar do
jeito que estamos fazendo! Eu não me importo mais! Eu não me importo mais
em ser a sua irmãzinha, desde que ele me olhe e que fale comigo...
Vou até a escola o mais rápido que posso. Meu peito está explodindo de
ansiedade e eu preciso extravasar o que estou sentindo. Eu me sinto... liberta.
O meu próprio amor me libertou. Somos dois passarinhos, Ivan e eu. E eu
queria mantê-lo preso comigo. Voa, Ivan! Voa!
Na quadra, eu me informo que ele está numa sala reservada aos acessórios
esportivos. É para lá que eu estou indo nesse exato momento, com passos
tímidos, mas decidida. Dou duas leves batidas à porta e entro.
Pela primeira vez em semanas, consigo olhar para Ivan de verdade. Ele usa
uma roupa própria para praticar esportes, que deixa seus músculos ainda mais
definidos. Está sentado numa cadeira e agora olha para mim com uma caneta
na mão. Há papéis sobre a sua mesa.
– Oi... Eu... – pigarreio. Estou nervosa. Muito nervosa. Gostaria de conversar
com você. – fico parada esperando por sua reação, mas ele apenas me observa
de um jeito diferente. Há uma curiosidade triste no jeito como me olha. Talvez
por me achar cada vez mais magra e... abatida?
– Pode falar. – Ivan responde voltando sua atenção para os papéis que estão
sobre a sua mesa. Eu me sinto do tamanho de um grão de areia. Minha
presença ali parece não ter a menor importância!
– Será que você podia parar só alguns minutinhos e me ouvir? Vai ser rápido!
– insisto. – Prometo.
– Não, Francine! Tenho muita coisa a fazer. – faz uma anotação. – Não posso
ficar perdendo tempo. Enquanto escrevo, você fala, certo?
– É só um minuto! – estou quase implorando. – Não vou tomar muito o seu
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tempo, eu juro!
– Diga logo o que quer, Francine! – altera a voz, larga a caneta e cruza os
braços me encarando muito sério.
– Droga, Ivan! Você me ignora o tempo todo! – explodo. – Será que não
podemos nem mesmo voltar a ser amigos?!
– Você não entende mesmo, não é? Não entende que tudo o que eu faço é para
o seu bem! – o rosto dele parece tremer.
– Meu bem? Como assim, meu bem? – estou indignada. – Maltratar, humilhar e
perseguir as pessoas agora tem outro nome?
– Você não sabe de nada, Francine! – está exaltado.
– Então me explica! Por favor...? – junto as mãos no peito.
– Era só isso que tinha pra me dizer? –pergunta por fim, pegando novamente a
caneta.
– Se o fato de você me fazer muita falta é ser só isso pra você... – suspiro,
rendida. – Sim, é só isso... – dou as costas para ele e fecho a porta atrás de
mim. Fico encostada nela alguns segundos; as lágrimas escorrendo...
Ouço um barulho forte vindo lá de dentro da sala. Parece um soco. Um soco
sobre a mesa. Mas ele atingiu foi o meu estômago. Coloco minhas mãos em
cima da minha barriga e deixo minhas lágrimas correrem.
Eu perdi... Eu perdi Ivan para sempre. E não há mais nada que eu possa fazer
sobre isso.
Você é minha garotinha e eu sempre vou te amar...
Soluço de encontro à porta.
Isso é uma despedida. Eu volto assim que puder.
Uma despedida. Uma despedida. Uma droga de uma despedida!!!
Meu estômago dói ainda mais e eu aperto minha mão de encontro à barriga.
Estou enjoada. Muito enjoada.
Ouço passos e me escondo ao lado de um armário de ferro que há próximo a
porta. É Norma. Ela entra rebolando na sala em que Ivan está e, do lado de
fora, posso ouvir a sua voz.
– O que houve, Ivan? Que cara é essa?

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Mas eu não posso ouvi-lo. Não posso compreender o que sua voz está
dizendo. É quase um sussurro, um acalanto, uma canção de ninar...
Sua voz é música em tempos de guerra... É alimento em tempos de paz.
Ivan levou minha paz. Ivan é minha guerra.

♫♪

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Capítulo Trinta
Quando estou saindo pelo portão do colégio, Renato me aborda. Estou gelada,
com as mãos trêmulas e devo estar cheias de placas vermelhas por ter
chorado.
– Ei, gata! – ele me alcança. – Qual é?! O que foi? Tu tá chorando? – segura
meu braço.
Odeio! que segurem meu braço. Odeio! gente chata. Odeio! gente impertinente!
Meu olhar abandona o rosto dele e faz um passeio até o meu braço preso em
suas mãos e depois volta para o seu rosto. Qualquer pessoa normal nesse
mundo entenderia Dá para me soltar, idiota?! Mas Renato, não... Renato tem
problemas cognitivos. Sua repetência contínua no colégio não me deixa mentir.
– Nada. – respiro fundo. – Não é nada demais! – Você pode me soltar? – olho
para o meu braço de novo.
Alôou? Você pode se mancar!?
– Marrenta como sempre! – sorri e eu puxo o meu braço. – Pô, gatinha! Fica
assim, não... Bora sentar e trocar uma ideia...
– Nós dois sabemos que não temos ideia nenhuma para trocar! – digo alterada.
– E você tá namorando a Rebeca!
Foi só eu abrir minha maldita boca para que os amigos de Renato apareçam no
portão, acompanhados de Rebeca. Eles param próximos ao muro, um pouco
mais a frente da entrada. Estão conversando animadamente. Rebeca deixa seu
sorriso morrer no momento em que nos vê conversando.
– Ela não é minha namorada... A gente só fica de vez em quando! – Renato diz
colocando as mãos sobre mim. – Mas eu nunca estive na dela!
Os amigos de Renato voltam a dar risadas, mas agora por um motivo diferente.
E esse motivo sou eu. Rebeca também está sendo alvo do deboche deles. É
obvio. Os olhos dela saltam em minha direção e eu não me intimido. Levanto
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meu queixo e volto a encarar Renato.


– Afinal de contas... O que você quer de mim? – pergunto com irritação. – Eu
não faço parte da sua turminha, não gosto das mesmas coisas que você... Qual
é a sua?
– Sempre tão direta! Gosto disso... Gosto muito disso! – aponta o dedo para
mim. – É essa a resposta, gata! Gosto de você porque você tem atitude, porque
sabe o que quer...
– Sim, eu sei. – coloco as mãos nos meus bolsos traseiros da calça jeans. – E
isso não inclui você... Dá licença, por favor... Eu quero passar. – tento passar
por ele, mas seu corpo está bloqueando a minha passagem.
Renato está rindo. Eu me vejo bufar! Sou capaz de fechar a minha mão direita
e enfiar na cara dele! Cretino! Abusado! Ele continua rindo... Será que eu
tenho o dom de divertir as pessoas? Só pode! Todo mundo ultimamente tem
rido a valer da minha cara, na minha cara... E eu estou farta disso!
O corpo de Renato continua bloqueando a minha passagem. Dou um passo
para o lado e ele me acompanha. Ficamos nesse zig-zag por mais umas duas
vezes em que tento ir embora. Ouço a risada de Fabinho e o sangue sobe para
minha cabeça. Paro e o encaro com a expressão de raiva estampada na minha
face.
– Eu adoro um desafio... – Renato toca meu queixo e eu afasto sua mão
violentamente do meu rosto.
– Eu quero passar! – sinto os olhos de Rebeca fuzilarem meu pescoço. Será
que ela não está vendo o que de fato está acontecendo aqui? É ele quem está
me abordando! É ele quem está me importunando! Cruzo os braços, muito
irritada. Sou capaz de fazer qualquer coisa em uma hora como essa! Eu... não
confio em mim.
As risadas continuam e a minha cabeça está andando em círculos. O que
preciso fazer para me livrar disso tudo sem precisar gritar, morder, bater ou
chamar a polícia? Retiro tudo o que disse sobre dar uma oportunidade para
esse cara idiota. Nem todo mundo merece a minha generosidade! E esse
ninguém está me tirando do sério como há muito tempo nem Bianca tira!
– Ou você sai da minha frente agora ou eu vou chamar a polícia! – digo entre
os dentes para ele. Onde estão meus amigos!? André, Max... João! Por que não
estão aqui fora também para me defender desse... desses babacas?
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– Vamos fazer uma coisa, então... – Renato afasta um pouco as pernas e cruza
os braços. – Você me dá um beijo. Um único beijo! – E eu te deixo passar! –
pisca para mim. – Eu juro!
– Você está louco! – empurro o peito dele com toda a minha força e tento
passar. Ele me segura pelos braços e eu giro meu corpo, mas mesmo assim, ele
consegue me deter. Estou virada agora de frente para o portão da escola. Basta
me livrar das suas mãos que eu corro para longe. – Por favor, me solta! –
sacudo o braço para tentar me libertar.
Os meninos estão rindo do outro lado da rua. Rebeca está caminhando em
nossa direção. Até que enfim, alguém de bom senso! Ou não... Será que ela
está vindo tirar satisfações... comigo? É só isso que falta para o circo dos
horrores ficar armado. Mas não... Eu não tenho rezado o suficiente e o circo
pode ficar ainda mais aterrador. Preparem-se nas cadeiras, incrível público, o
show vai começar! Não bastam um domador, alguns palhaços e uma mulher
que cospe fogo...! É preciso mais do que isso para manter a lona levantada!
Norma e Ivan. Eis que os dois mais novos integrantes do elenco resolvem se
apresentar no picadeiro!
Ivan e Norma estão saindo pelo portão da escola e caminham pela calçada
oposta a minha, em direção ao carro dele. Ele estanca na porta do veículo,
com a chave na fechadura. Seus olhos, curiosos estão sobre mim e Renato.
Norma acompanha seu olhar e me fita com curiosidade.
Nossa, Francine! Parabéns! Quantas coisas boas de uma só vez! Eu sou mesmo
um para-raios para problemas! Há um maluco me segurando pelo braço, uma
garota feroz vindo em minha direção, uma professora desconfiada, um ex-amor
me fuzilando e uma turma de babacas rindo da minha cara!
As imagens vão uma a uma passando pela minha mente, enquanto as risadas se
misturam à sensação de que quem está pronta para vencer a rodada desse jogo
sou eu. O rosto de Renato está bem próximo do meu e demonstra todo o
divertimento por me ver constrangida e louca para me livrar dele.
Então eu decido. Em questão de segundos, eu decido! Choque. É isso que
pretendo causar: Choque. Francine... A garota que é capaz de derrotar quase
dez inimigos de uma só vez e... sem usar as mãos! Alcanço a boca de Renato
em questão de segundos e o beijo com toda a minha raiva. Sinto o gosto do
cigarro dele e do meu veneno. As mãos de Renato me puxam pela cintura e eu
apoio as minhas mãos em seus ombros, desejando que tudo isso acabe tão de
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repente quanto começou.


Segundos se passam e eu me sinto anestesiada. Não há sentimento algum
dentro de mim. Minha raiva foi embora, minha dor foi embora... Eu... fui
embora. Devo estar vagando em algum lugar por aí, livre de mim mesma.
Quando Renato finalmente deixa minha boca e me solta, abro os olhos
lentamente e observo cada um dos olhares direcionados a mim. Renato.
Rebeca. Norma. Ivan. A galerinha do mal. Todos... Absolutamente todos estão
com a boca entreaberta, chocados.
A Francine que habita em mim nesse momento, gargalha... Lá dentro do meu
íntimo. Ela gargalha... Gargalha de novo. E de novo. E de novo de novo de
novo...
Cravo meus olhos nos de Ivan e dou um leve sorriso. Eu tenho a melhor de
todas as plateias reunida. E eu... deixo de ser a presa. O animal que tentavam
domar há poucos minutos. Eu agora sou a atriz principal desse picadeiro. Sou
a contorcionista que deixa a plateia sem fôlego ao pensar que ela vai se
quebrar no primeiro movimento, mas que é surpreendentemente flexível.
Quando eu saí da sala de esportes e ganhei a rua, estava com dor no estômago.
Mas é incrível constatar que minha dor passou. Levo minha mão à barriga.
Não há nenhum sinal de dor!
Sem dor. Sem enjoo. Estou me sentindo bem melhor agora. Foi simples! Eu só
precisava vomitar...
E eu acabo de fazer isso.

♫♪

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Capítulo Trinta e Um
Quando eu cheguei ao colégio para a aula, após o final de semana, não havia
quem não soubesse do beijo que dei em Renato. Algumas pessoas vieram,
inclusive, me perguntar se estávamos namorando. Patético! Eu não chegaria a
tanto! Mas não faria mal algum deixar que algumas pessoas pensassem isso.
Tinha chegado a minha vez! Agora eu vou me divertir!
Soninha, Ju e os meninos estão de queixo caído com a minha frieza. Minha
rede social bombou com os comentários. Meus amigos e eu passamos todo o
final de semana, curtindo com a cara desse povo fofoqueiro. Estamos no pátio,
agora, prontos para a primeira aula.
Lá no fundo, porém, a velha Francine está de volta ao meu íntimo e eu sinto
uma pontada de amargura em meio a esse vazio todo. Ivan não me procurou
para falar do ocorrido, sequer nos vimos. Hoje não é dia dele na escola, então,
provavelmente, não nos veremos.
– Posso falar com você, Francine? – Rebeca está parada ao meu lado e se
dirige a mim de um jeito muito delicado. Estranho...! Eu estava aguardando
uma chuva de insultos e acusações! E ela vem até mim... assim?
Olho para meus amigos e balanço a cabeça em um Está tudo bem. Dou uns
passos na direção de Rebeca e ela se afasta mais um pouco, indicando que
deseja falar em um canto mais afastado. Ela quer conversar a sós. Mantenho
minha postura séria e pronta para qualquer combate, mas não sustento uma
expressão dura. Sua aproximação me parece pacífica.
– Francine... – Rebeca começa a falar. – Eu sei que você não gosta de mim e
também não é segredo que eu não gosto de você...
E? Coloco meus polegares nos bolsos da minha calça jeans e dou um risinho
irônico. Ela não parece se importar.
– Eu fiquei com muita raiva de você pelo o que aconteceu, mas agora não
estou mais...
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É para eu rir? Onde ela está querendo chegar com esse papinho de gente boa?
Quem é essa Rebeca que não conheço e que nunca vi em lugar algum? Em
todos esses anos, eu desconhecia esse lado dela... Será que esse lado existe de
fato ou é mais um joguinho da Rebolativa?
– Olha, Rebeca... – a interrompo espanando minhas mãos no ar. – Não se
preocupe, tá? Aquilo foi um erro, um grande engano! Eu não tenho a menor
intenção com seu namorado! – falo demonstrando plena convicção.
– Ai é que está, Francine! – diz um tom acima. – Ele não é meu namorado! Ele
não é... nada! – vejo raiva em seus olhos. – Renato não vale um centavo!
– E por que você está se preocupando em me dizer isso? – cruzo meus braços
e continuo encarando-a sem entender.
– Porque ele está metido em um monte de parada errada... Porque ele não
gosta e não tem medo de ninguém... Por que é impossível fazê-lo parar... –
Rebeca vai falando sem parar para respirar.
– E o que eu tenho a ver com isso?! – pergunto franzindo o cenho.
– Ele está obcecado por você! – exclama dizendo baixo. –Disse que vai te
pegar! E... – suspira. – ... não é de hoje que ele diz isso!
Sinto um calafrio percorrer minha espinha, mas mantenho minha frieza diante
de Rebeca. Por que isso? Por que eu? O que Renato quer comigo? O que ele
ganha me perseguindo?
– O que você está querendo? Que eu fique com medo? – respiro fundo
tentando manter o controle da minha voz. Mas sim! Senti uma pontada de
medo. O que aconteceria se Renato me pegasse em algum lugar sozinha?
– Só quis te avisar... Mas se você acha que estou fazendo isso para manter
você longe dele porque estou com ciúme... – bate uma mão na outra duas
vezes. – ... o problema é todo seu! Bom, o recado está dado! – Rebeca se vira
e eu a chamo de volta.
– Obrigada... – digo num fio de voz. – por... – tento encontrar as palavras
certas. – ... me avisar.
– Eu não gosto de você...! – joga na minha cara. – Mas abre seu olho! – ela se
vai e o sinal toca.
Não tenho tempo para contar aos meus amigos o que aconteceu com detalhes.
Falo por alto e eles me tranquilizam. Nada aconteceria comigo com eles por
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perto. Subimos as escadas e entramos na sala. Renato está ao fundo, me


olhando com um ar estranho. Zombeteiro.
O que foi que você fez?! Hein, Francine corajosa e vingativa?! Cadê a sua
coragem agora? Não se esconda, não! Saia já desse sótão e venha tomar as
rédeas da situação porque a Francine culpada e desprotegida quer sair
correndo e pedir ajuda ao irmão mais velho! Covarde! Saia já daí!
Mantenho o controle da minha respiração, mas não estou me sentindo nada
bem. Cadê a diversão do dia, hein!? Patética...
No intervalo, vou ao banheiro, sozinha, e quando saio, Renato me puxa pelo
braço. Sinto vontade de gritar por socorro, mas, nesse caso, eu pareceria uma
louca sem controle. Até agora ele só segurou o meu braço. Argh! Só isso.
– Preciso falar com você! – aperta meu pulso com força.
– Que mania horrorosa você tem de me segurar desse jeito! – dou um puxão no
braço. – Me solta!
O rosto de Renato vai da raiva ao divertimento em fração de segundos. Ele é...
estranho. Muito estranho! O cabelo está preso num rabo de cavalo e os olhos
estão um pouco vermelhos, como se tivesse esfregado as têmporas.
– Queria falar com você sobre aquele outro dia... – começa.
– Não houve nada naquele dia! – eu digo um pouco mais alto. – Você me disse
que não me deixaria passar se eu não te desse um beijo... E foi o que eu fiz!
– Humm... – cruza os braços. – Então quer dizer que você é uma menina...
Obediente?
– Por que você não me deixa em paz, Renato?! – continuo falando alto e me
viro, mas ele me segura de novo. Alguns alunos começam a observar a cena
que ele está promovendo no meio do pátio.
– Não vou deixar você em paz... – me olha de cima abaixo com um ar de
cobiça. – Você vai ser minha!
Nojento! Que... nojo! Eu o encaro e levanto meu queixo. Não retiro sua mão do
meu braço e conto os segundos antes de cuspir no meio da sua cara. Ele se
assusta e me solta. Enxuga o rosto com a mão e me devolve um olhar cheio de
fúria e sarcasmo.
– Experimenta encostar em mim de novo pra você ver! – esfrego meu braço
dolorido, enquanto grito as palavras na cara dele. – Eu furo seus olhos com as
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minhas unhas! Você entendeu? – berro, confrontando-o.


Uma roda de alunos se forma a nossa volta e meus amigos rapidamente vêm
em meu socorro. André põe os braços protetores em minhas costas e
tranquiliza um inspetor de turno - que veio correndo ao ouvir os meus gritos -
dizendo que não tinha sido nada, só um desentendimento passageiro.
Estamos na sala de aula agora. Vai começar o penúltimo tempo e eu me ajeito
na cadeira, aguardando a chegada de Norma para a aula de Geografia. Se é
que posso chamar isso de aula. Para mim, é mais uma perda de tempo. Se eu
faltar todos os dias e ler os capítulos do livro, sozinha, eu aprendo mais. A
aula dela se resume à exibição gratuita de atributos nada pertinentes a uma
docente em exercício de suas funções.
Uma dor de cabeça absurda começa a me dominar assim que Norma entra na
sala e senta em sua cadeira. Um cheiro enjoativo de perfume doce entra em
minhas narinas. Estou com os nervos à flor da pele. Parece que vou explodir
de tanto mal-estar!
Respiro fundo e me concentro em sua... aula. Ela está falando agora do time
de vôlei feminino da escola que se mantém arrasando no campeonato. O
professor Ivan é um excelente treinador! As meninas estão perfeitas no saque
porque o professor Ivan... Argh!
– Professora, que horas começa a aula? – pergunto alto, enquanto Soninha me
fuzila com o olhar cala-a-boca-ficou-maluca? e a turma diz uiii, em coro.
Trinta minutos. Trinta! Ela levou trinta minutos falando sobre o time de vôlei e
no quanto o professor Ivan é perfeito em todos os quesitos que um ser humano
pode ser. Não aguento mais Ivan, não aguento mais Norma, não aguento mais
aula, não aguento mais Renato... Eu não me aguento mais! Onde posso ligar o
botão durma agora e acorde com todos os seus problemas resolvidos?
Eu vejo mãos imaginárias de Norma chegarem até o meu pescoço, tamanha é
cólera nos olhos dela! Percebo que ela não sabe o que dizer e, eu agradeço
mentalmente, já que não estou com disposição para qualquer tipo de guerrinha
particular em sala de aula.
– Isso tudo é o quê? Ciúme do irmãozinho? – Norma pergunta, pegando a
caneta do quadro branco e o livro da turma em sua mesa. Ufa. Conversinha
fiada à parte, a aula enfim, parece que vai começar... depois da minha
próxima resposta.

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– Bom, em primeiro lugar, o professor Ivan não é meu irmãozinho... – digo


sorrindo, enquanto agulhas invisíveis perfuram meu cérebro. – ... e em segundo
lugar, ciúme é coisa de mulher mal amada, recalcada, incapaz e com medo de
possíveis rivais... O que não é o meu caso! – pego o livro em cima da mesa e
volto a olhar para ela. – Em qual página é para abrir o livro... professora?
Sim! Eu sou atrevida, malcriada, petulante, grosseira e tantos outros adjetivos
pejorativos que possam me caracterizar. Por trás desse corpo de menina
aparentemente frágil e dessa doce inocência em meu olhar, existe uma mulher
que é capaz de gritar, cuspir, revidar... Uma mulher que escala ferozmente as
paredes do meu ser e escapole pelos meus poros, exalando o odor que
aniquila os predadores.
Já provei que posso ser caça, mas também já provei que posso ser caçador.
Posso laçar minha presa à unha, aniquilar a chacota sem usar as mãos, tocar
sem nada sentir...
Prefiro ser bicho, ser essência, ser origem...
Mas, às vezes, preciso me tornar caçador: para me proteger dos humanos!

♫♪

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Capítulo Trinta e Dois


A madrugada de hoje foi bem tensa. Estou exausta por não ter dormido direito.
Meu maior desejo hoje é ficar sob as cobertas. Mas eu prometi a André que
iria vê-lo jogar. Não haverá aula, só a semifinal do campeonato de futebol
masculino. São quase nove horas e o jogo começa às dez. As meninas não
poderão ir. Soninha vai aproveitar para ajudar D. Vanda com uma encomenda
grande de doces e Ju está poupando a voz para sua estreia daqui a duas
semanas. Se ela for, sabe que vai ficar berrando. Sobrou para quem? Para a
Franfran aqui! E lá vamos nós, assistir ao meu esporte preferido, só que não!
Quando desço para tomar o café da manhã, não há ninguém em casa, além da
Bastiana. Ela faz um lanche para mim e eu como rapidamente. Escovo os
dentes e pego um ônibus para ir à escola. O caminho não é tão longo, mas eu
me distraio ouvindo música em meu celular.
Quando desço do coletivo, vou caminhando pela calçada, totalmente distraída
com a música. De repente, vejo se materializar a figura de Renato na minha
frente. Eu levo um susto e dou um passo para trás, retirando os fones de
ouvido. Renato dá um passo à frente na minha direção. Eu recuo mais uma vez
e ele dá uma gargalhada estrondosa. Alguns amigos dele, que não são alunos
da escola, estão no bar e eu posso ouvir suas risadas a minha direita.
– Com medo de mim? – pergunta querendo me intimidar.
– Por que eu teria? – olho para o lado rapidamente e vejo seus amigos
esquisitos pegando tacos de sinuca para iniciarem uma partida.
– Porque eu posso ser perigoso... – avança um pouco sobre mim.
– Isso é uma ameaça? – eu o enfrento. – Porque se for, tenha cuidado! Eu já
provei parte do que sou capaz se você tentar encostar um dedo seu em mim de
novo!
Ainda posso ver seus olhos faiscarem quando ouço alguém me chamar. É Max.
Ufa. É meu amigo Max. Mas ele vem em nossa direção mancando, parece ter
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machucado a perna.
– Fran! – grita de novo e balança a mão para mim.
Max é lutador de artes marciais e treina com frequência. Ninguém na escola se
atreve a encará-lo. Apesar de ser baixo, é ágil e muito experiente. Ele se
aproxima de mim, arfando. Sabe que algo está acontecendo. Algo de errado.
Renato certamente não devia estar na minha frente. Não mesmo!
– Tá tudo bem, Fran? – meu amigo pergunta, colocando a mão no meu ombro,
visivelmente preocupado. Olha sério para Renato e volta-se para mim. – Tá
precisando de alguma coisa?
– Não, amigo... Tá tudo bem. – encaro Renato. – O nosso... amiguinho aí já
está voltando para a espelunca de onde saiu... – aponto o local com o queixo.
Renato resmunga alguma coisa inaudível, enquanto caminha em direção ao bar
e Max me abraça pelos ombros.
– Falou com a gente, parceiro?! – Max grita para ele e eu o atinjo de leve com
o meu cotovelo. Chega de confusão! Quero distância desse cara! Maldita hora
que eu o beijei! Se ele já estava cismado comigo, depois da minha
inconsequência, então, nem se fala!
Será que não seria o caso de falar com meu pai, o Alex ou até mesmo... Ivan?
Não sei até que ponto vai a loucura desse garoto e reflito a possibilidade de
tomar providências mais severas. Não posso ficar me escondendo atrás dos
meus amigos sempre que me vir em situações como essa, apesar de me
defender bem sozinha. Mas o fato é que eu nada podia contra a força de
Renato!
– Está tudo bem mesmo, amiga? – Max me pergunta, preocupado. – O que ele
queria?
– Queria torrar minha paciência! – ofereço meu braço a ele e caminhamos em
direção à entrada do colégio. – Está tudo bem... – olho para sua perna e dou
uma risada. – Com você é que não está muito, né? O que houve?
– Não soube? Cai no treino ontem e torci o tornozelo! – revela pesaroso. – Tô
fora do campeonato!
– Poxa! Que coisa chata! Mas está tratando, né? – pergunto entrando no
colégio. – Você não devia estar repousando essa perna?
– Cale a boca antes que a direção me mande pra casa! – nós rimos. – Estou
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fazendo tudo direitinho... Vou continuar com os remédios e fazer fisioterapia! –


abre os braços. – Mas hoje... Estou fora do campeonato só no campo... porque
a arquibancada é toda minha! – começa a rir. Viciado em esportes. É a cachaça
dele.
– Obrigada, viu? – empurro o ombro dele, dando um leve sorriso. E é o
bastante para que ele entenda a que me refiro: livrou-me de Renato.
– Disponha. – me retribui com o mesmo sorriso cúmplice. – Agora vamos
procurar o melhor lugar para sentar. Não quero perder um lance!
Sento com Max na primeira fileira para assistir ao jogo. Ele não pode subir
escadas por causa da perna. E quando a partida começa, seus olhos não
desgrudam um minuto do campo. Ele grita André, reclama do árbitro, ameaça
levantar, narra o jogo, soca o ar e grita uhhh toda vez que quase sai um gol.
O time do nosso colégio é muito melhor no ataque do que o da escola
adversária. O treinador parece ter estudado bem as táticas do jogo porque os
garotos estão dando um show de dribles e passos precisos. E quando o gol
finalmente acontece, Max não se contém e levanta gritando.
De repente, me vejo abraçada ao meu velho amigo e quando tentamos nos
afastar, seus lábios quase tocam os meus. Sinto um frescor em meu rosto e uma
sensação gostosa de estar sendo admirada por alguém. Um garoto. Um garoto
bacana feito o Max. Gosto dele. Gosto muito dele.
Meu amigo fica ruborizado e volta a encarar o campo. Está visivelmente
constrangido. Será que ele gosta de mim e eu nunca me dei conta disso?
Estarei mais atenta. O que há de errado em me aproximar dele? É um cara
bonito, charmoso, educado, gentil e com um ótimo caráter. Dos meus três
amigos, ele é o mais adulto. Vive reclamando das criancices de André. Faz
parte. Há hora para tudo. Até para amadurecer.
Nosso time vence o jogo e todos nós vibramos muito. Um relâmpago corta o
céu escuro por nuvens cinzentas. Não vai demorar e vai chover muito. Vejo
Ivan ao lado do professor Emerson e tenho a ligeira impressão de que,
segundos antes, ele estava me encarando. Meu coração não aguenta com tanto
distanciamento. Mas já consigo entender que tudo tem o seu tempo e que o que
tiver que ser, será.
As torcidas vão esvaziando as arquibancadas e, aos poucos, não há quase
ninguém. Decidimos esperar um pouco para evitar o tumulto da saída, já que a
perna de Max está machucada. Ficamos um bom tempo conversando sobre o
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jogo, até que sinto um pingo de chuva no alto da minha cabeça e um trovão me
assusta. Não há mais ninguém próximo.
Nós dois rimos e damos as mãos para sair o mais depressa possível da
arquibancada. Os pingos grossos começam a nos atingir.
Andamos o mais rápido que podemos até o final do corredor que dá acesso
aos vestiários. Queremos encontrar André lá. Max entra no vestiário e eu
aguardo embaixo de uma marquise, colada em um murinho que separa o
banheiro feminino do masculino. Tudo está muito silencioso e eu desconfio
que não tenha mais ninguém lá.
Max volta e confirma minhas suspeitas. O vestiário está vazio. André passou
uma mensagem avisando que estão a caminho do Bar Estudantil do centro da
cidade. Todos estão indo comemorar lá.
– Vamos, então? – pergunta. As gotas de chuva estão atingindo o meu rosto e
eu me encolho à pilastra para evitar que me molhe mais.
– Não é melhor esperarmos só um pouco para ver se a chuva diminui? –
sugiro.
– É melhor mesmo ou vamos chegar ensopados lá... – pega a minha mão. –
Vem, vamos sentar no banco lá da... – um relâmpago clareia todo o céu escuro
e me agarro a Max, assustada. O barulho do trovão que vem a seguir me causa
tanto pavor que eu enterro minha cabeça em seu peito.
Max me abraça forte e eu sinto a rigidez dos seus músculos malhados. Inspiro
ar e o cheiro do seu perfume me acalma. Ele toca meu rosto de leve e levanta
meu queixo. Olho para o meu amigo de sempre e sinto uma ternura muito
grande. Em questão de segundos, tento avaliar se o que está por vir pode
abalar a amizade imensa que temos um pelo outro... Mas não tenho tempo de
terminar a avaliação porque seus lábios já estão sobre os meus.
Não há urgência nesse beijo. Há carinho, respeito e delicadeza. Proteção.
Nenhum relâmpago ou trovão será capaz de me amedrontar ou atingir enquanto
ele estiver me beijando. Suas mãos acariciam meu rosto e minhas costas e eu
gosto dessa sensação. Não é o melhor beijo do mundo, mas é uma troca de
afeto. Se havia alguma dúvida do que poderia existir entre nós, essa dúvida se
desfaz agora. Somos amigos! Max e eu. E esse beijo está deixando isso bem
claro.
De repente, percebo uma sombra contra a luz da entrada do banheiro, que
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havia se acendido automaticamente quando o céu escureceu por causa da


chuva. Abro os olhos e afasto Max com minhas mãos.
– Francine, me desculpe, eu... – Max não completa a frase quando percebe
minha fisionomia assustada e acompanha meu olhar. Quando vê Ivan, parado,
nos observando, ele também parece ficar chocado.
– Estou atrapalhando alguma coisa? – Ivan parece ironizar.
– Professor, nos desculpe... – Max ameaça continuar suas justificativas.
– Não, não, não... – Ivan o interrompe sacudindo as mãos. – Poupem meus
ouvidos com explicações inúteis! – sobe um tom de voz. – Vocês sabem muito
bem que é terminantemente proibido ter esse tipo de comportamento dentro da
escola, não sabem?
Eu não consigo dar uma única palavra, mas Max continua tentando se explicar.
– Nós sabemos professor e pedimos desculpas. Isso não vai mais acontecer! –
diz com sinceridade.
– Claro que não vai! – Ivan grita, muito irritado. – Porque posso expulsar os
dois... Agora!
– O senhor está no seu direito. Nós erramos. Mas, por favor... – Max pede. –
Deixe a Francine ir! Ela não tem culpa! Eu respondo pelo que aconteceu!
– Nobre... Muito nobre, garoto! – Ivan parece se acalmar e o fita realmente
admirado. Intrigado até. – Gostei disso. Gostei de você. – Aponta a saída com
o queixo. – Vai... Vai embora... Eu quero falar a sós com a Francine.
Max fica um pouco perdido, sem saber direito o que fazer. Olho para ele e
balanço a cabeça para que obedeça a ordem de Ivan, mas ele parece temeroso.
Pigarreio e tento usar a minha melhor voz no momento.
– Pode ir, Max... Está tudo bem. – aperto a sua mão. – Vá devagar e cuidado
com a perna... – sorrio, incentivando-o. – Eu também preciso falar com o I...
com o professor Ivan a sós.
Meu amigo continua me olhando desconfiado, mas aceita meu pedido. Balança
a cabeça para Ivan e se desculpa mais uma vez. Ivan acompanha os passos
dele até o final do corredor. Estou encostada à pilastra, não tenho visão de
Max, mas pela demora, acredito que ele ainda está mancando por causa das
dores.
– Agora sou eu e você, mocinha... – Ivan abre um pouco as pernas e fica bem
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ereto, com os braços cruzados. A chuva continua caindo incessantemente.


– O que você quer? – pergunto apreensiva. Estou molhada e o frio começa a
cortar a minha pele.
– O que estava acontecendo aqui, Francine? Céus! O que você pensa que está
fazendo? – está muito, muito irritado. Quem está falando aí? O professor
severo? O irmão zeloso? O amante ferido? Ou um cara apaixonado? Não sei
dizer. Ivan me assusta, me surpreende, me desestabiliza. Ele pode ser todos em
um. Ele sempre é o que deseja ser.
– Estou fazendo o que toda menina da minha idade faz: namorando! Por quê?
Não posso?
O maxilar dele se contrai. Uma mecha do cabelo está caída sobre a testa em
desalinho e eu tenho vontade de esticar a mão para arrumar. Seus olhos verdes
parecem mais escuros por causa da raiva e me fitam com um ar... ferido?
– Você só pode ter perdido o juízo! – diz entre os dentes.
– Desculpa! É isso que você quer que eu diga?! – pergunto irritada. – Me
desculpa! – levanto a mão para o alto como se pedisse paciência!
– Você ainda vai me deixar louco, Francine... – Ivan diz com os olhos
vidrados. Há um misto de raiva, tensão e desejo.
– Por quê? – estou irritada. – Por que você me hostiliza tanto?! Sou eu quem
deveria estar louca com você! – engulo em seco e umedeço meus lábios, muito
nervosa. Será que essa conversa pode terminar aqui? – Você invadiu minha
casa, minha família, meu colégio... minha vida! Quem você pensa que é?!
– Eu já estou louco... – Ivan passa a mão pelo cabelo, sua agonia é visível. –
Eu sou um louco! – avança sobre mim e aprisiona meus pulsos e o meu corpo
contra a parede gelada. Estou hipnotizada pela profundidade do seu olhar e
mais uma vez, umedeço meus lábios e ele solta uma espécie de gemido.
Minha boca é rapidamente dominada pela de Ivan, em um beijo ardente. Ao
contrário do que aconteceu entre mim e Max, sinto a forte presença do desejo
invadir esse beijo. Um ardor percorre a minha espinha e se expande para o
meu corpo todo em ondas aveludadas. Posso sentir o veludo pelo toque.
Ivan exige de mim movimentos poderosos e intensos. E eu correspondo com
uma intensidade que nunca havia sentido antes! Estou viva! Vibrante! Trêmula
e quente em seus braços.

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A virilidade dele está sobre minhas coxas e eu arqueio meu quadril para sentir
ainda mais a sensação poderosa que o seu toque me proporciona. A língua de
Ivan desce pelo meu pescoço e encontra o meu decote. O fogo que se alastra
pelo caminho que ela faz, me consome e me faz querer mais. Eu quero mais!
O desejo que ele me possua é forte e Ivan parece disposto a isso também, mas
o alarme que soa na minha cabeça parece também soar na sua. Ele abandona
meus lábios e me olha intensamente. Volta a beijá-los, bem de leve e esfrega o
polegar sobre eles.
– Você precisa ir embora agora... – Ivan diz. – Por favor... – ele se afasta uns
dois passos para trás com as palmas das mãos para cima. E quando eu penso
em me jogar em seus braços, ouço a voz do professor Emerson, na entrada do
corredor:
– Ivan! Você está aí, meu camarada? Conseguiu encontrar o seu relógio?
Relógio. Tempo. O meu tempo. O tempo de Ivan.
O nosso tempo.

Sempre atrasado demais.

♫♪

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Capítulo Trinta Três


O céu está muito escuro para duas da tarde. A chuva caiu pesada sobre a
cidade, parece noite. Ivan está calado ao meu lado, atento à direção. As ruas
estão escorregadias e todo cuidado é pouco. Estamos voltando para casa em
seu carro, após nosso beijo trocado dentro da escola. Ele não parece tenso
nem arrependido. Pelo contrário, acho que algo mudou, mas ainda não sei o
que é.
De soslaio, observo as linhas do seu rosto, a maturidade que está chegando a
cada traço. Não há sinal de fios brancos em seu cabelo e, hoje, ele está muito
bem barbeado. O seu cheiro é uma característica marcante e quando o perfume
se mistura ao seu toque sobre mim, há uma embriaguez imediata em meus
sentidos.
Encosto minha cabeça no banco e acompanho a extensão do seu braço sob a
camisa. Admiro suas mãos bonitas sobre o volante e a destreza com que Ivan
domina o carro. Ele percebe meu olhar sobre si e me fita rapidamente antes de
voltar sua atenção à condução do veículo.
– Garotinha, garotinha... – quebra o silêncio e estende a mão direita,
acariciando meu rosto. Eu não espero esse toque, recuo um pouco e ele
recolhe a mão de volta ao volante. – O que você anda fazendo, garotinha!? – é
mais uma exclamação do que uma pergunta direta.
– Ivan... – ele volta a me olhar. – Quero me desculpar mais uma vez. De
verdade, eu...
– Namoro na porta dos banheiros... Desrespeito a professor... Beijo em
garotos perdidos... – dá um risinho. – Sua lista está ficando comprida.
– Número 1 da lista: Namoro não. O que você viu foi só um beijo... – mostro
um dedo indicador, tocando-o com o outro da outra mão. – Max e eu somos
apenas amigos...
– Ah, amigos?! – dá uma risadinha irônica. – Amigos não se beijam na boca,
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Francine! – parece... enciumado?


– Sim, somos amigos, sim! Foi... uma troca de afeto, só isso! Mas já percebi
que não vai passar daquilo e tenho certeza de que ele também!
– Hum... Entendi. –balança a cabeça afirmativamente, franzindo o rosto numa
careta.
– Número 2 da lista: – solto o dedo médio para indicar o segundo item. –
Desrespeito a professor? Desde quando eu desrespeito professor?
– Bom, quando eu cheguei ao colégio você não foi nada respeitosa comigo e...
– ri travesso. – A Norma me contou o que você andou fazendo com ela!
– Ah, é isso! – deixo meu tronco cair no banco. – Então a sua namorada foi
fazer fofoca pra você?
– Ela não fez fofoca nenhuma... Só comentou como você chamou a atenção
dela na frente da turma, o que não deixa de ser um desrespeito... – continua
sorrindo.
– Ah, mas então ela pelo menos admitiu que merecia ser chamada atenção,
né?! – digo chateada. – A aula dela se resume a contar a vida particular,
incluindo você! – estou emburrada. O ciúme salta dos meus olhos.
– É mesmo?! - Ivan me olha surpreso e ri de novo. – Juro que não sabia disso!
E a propósito: ela não é mais minha namorada...
– Oi? – arqueio minhas sobrancelhas, surpresa.
– Terceiro e último (por enquanto!) item da lista! Prossiga... – ele sacode a
palma da mão no ar, me encorajando a continuar.
Quer dizer então que... Norminha... caiu fora de campo? Mas... por quê? Quem
será que terminou o relacionamento? Minha língua coça para perguntar, mas
acredito que essa não seja a hora mais apropriada para isso. No momento,
estou mais interessada em manter o papo bacana que estamos tendo e
aproveitar a oportunidade de falar de Renato para alguém. E Ivan está me
dando abertura para isso.
– O terceiro item foi a pior burrada que eu fiz na minha vida! – coloco as mãos
na testa.
– Ah, jura que você acha isso?! – Ivan ironiza e olha para mim.
– Estou falando sério! – levanto as mãos e deixo-as cair no meu colo. – Eu o
beijei para me vingar, mas esse cara é doente! Ele está me perseguindo...
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Se eu não tivesse de cinto, meu rosto iria bater no vidro dianteiro com a freada
que Ivan deu no carro. Ouço muitas buzinas atrás de nós e eu olho chocada
para os que nos ultrapassam. O que aconteceu?
– Como é que é?! – a expressão dele está fechada, os olhos duros. – Esse cara
está perseguindo... você?! Explica isso direito!
– Calma, Ivan... Estacione o carro primeiro! – peço.
– Estacione o carro uma ova! – grita – O que esse babaca está fazendo com
você? Fala!
– Por enquanto ele não fez nada que tenha me machucado... – estou preocupada
com a sua expressão de raiva. – Mas...
– Mas...? – os músculos do seu rosto estão tremendo.
– Mas ele tem me abordado, feito algumas... insinuações.
– Esse cara está te ameaçando?! É isso?! – soca o volante. – Se ele estiver
ameaçando você, por favor, me diga... porque ele vai se arrepender de ter
nascido!
– Por favor, Ivan, se acalme! – pego a sua mão. Eu tenho um pouco de medo
dele, mas é só pelo jeito que me aborda. – resolvo não dizer exatamente o que
aconteceu, com medo de uma tragédia. Ivan está fora de si. Transtornado. Ele
jamais permitirá que alguém me faça algum mal.
– Você devia ter me contado logo! E já teríamos resolvido isso! – vira-se para
mim. – Por que não me contou?
– Você nem sequer me olhava direito... – fixo meu olhar no dele e Ivan
retribui, durante segundos, com arrependimento e culpa. Um abraço apertado
me acolhe e eu me sinto aquecida e... protegida.
– Desculpe, minha garotinha! – afunda o rosto no meu cabelo e eu sinto sua
respiração no meu pescoço. – Me desculpe! Eu só quis te proteger, Francine!
Só te proteger!
– Me proteger de que, Ivan? – pergunto com uma das mãos em seu peito.
– Te proteger de mim, garotinha! – ele se afasta e toca meu rosto. – Te proteger
de mim...
O carro está parado no meio da rua, sem alerta, sem nada. Estamos fechando
uma das vias de mesmo sentido. Os carros começam a buzinar com insistência.
Ivan senta ereto ao volante, recoloca o cinto que tirou para me abraçar e dá a
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partida.
Estou confusa. Temos uma definição muito diferente para a palavra proteção.
O que acaba de acontecer? A energia que está nos unindo novamente parece
me puxar para ele como um ímã.
Te proteger de mim...
Eu só quis te proteger, Francine! Só te proteger!
Do que ele foge tanto? Do que ele tem medo?
Você é minha garotinha e eu sempre vou te amar...
Então me ame, Ivan! Quero ser tomada nos braços e amada como ninguém
nunca amou. Ame!
Eu não preciso dessa proteção que afasta, que limita, que me impede de tê-lo
por perto. Essa proteção eu dispenso! Ame!
Eu desejo a proteção que me acolhe em seus braços e me ajuda a compreender
o mundo. Ame!
Eu quero a proteção que doa, que soma e multiplica.
Eu quero a proteção que ama. Ama. Amor. É só isso que desejo ter.
Só o seu amor, Ivan... me basta.
♫♪

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Capítulo Trinta e Quatro


Ainda chove muito quando Ivan estaciona o carro em frente à casa vizinha. Eu
desço e corro para o portão. Paro embaixo de uma pequenina marquise e olho
para ele sem entender o motivo de estar parado na chuva. Seus olhos estão na
casa ao lado. A casa que um dia foi sua. Levo uns segundos para compreender
o que devia estar acontecendo. Suas recordações o acompanham aonde quer
que ele vá, mas estar de frente para essa casa, é como reabrir uma velha
ferida.
– Ivan! – eu o chamo e ele sai do transe em que está. – Vem, vamos entrar! –
digo assim que me olha.
Ivan corre, fugindo da chuva e vindo em minha direção, como se fizesse
alguma diferença. Suas roupas estão encharcadas! Ele me alcança embaixo da
marquise e nossos corpos se chocam. Sinto o toque de sua mão sobre a minha
e eu o fito demoradamente. Com a outra mão, afasto uma mecha do seu cabelo
da testa. As gotas d’água estão pingando sobre mim e me ensopando também.
– Senti sua falta... – digo em um fio de voz. – Senti muito a sua falta! –
confirmo sem tirar os olhos dele.
E então, não existe mais distância. Sua boca alcança a minha e sou tomada em
seus braços. Paixão. É essa a energia que sinto aqui. Nossas roupas molhadas
não são suficientes para apagar a chama que está acesa e queimando em minha
corrente sanguínea.
A chuva cai violentamente e o vento sopra nos molhando ainda mais. Nossas
bocas estão unidas em um beijo saudoso. Ivan me quer. Sim, ele me quer!
Sinto isso pela pressão de suas mãos sobre o meu corpo, pela sua língua ágil
invadindo a minha boca, pelo ritmo descompassado do seu coração... Ele... me
quer!
Nesse momento não há medo de sermos flagrados, não há culpa, não há
arrependimento. Não há deboches, ironias nem Normas, Renatos e Maxes. Só
há ele e eu. Ele. Só ele me basta. Só ele. Eu estou totalmente rendida em seus
braços.

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As mãos de Ivan passeiam pelas minhas costas e onde seus dedos tocam, sinto
queimar. Quando elas chegam ao meu rosto, o toque é cuidadoso, gentil,
carinhoso. Ele diminui o ritmo do beijo e me olha nos olhos. Seus dedos
continuam tocando meu rosto. Será que consigo compreender o sentimento que
está dentro do seu olhar?
As pontas dos seus dedos continuam passear pelo meu rosto e eu fecho os
olhos sentindo seu toque e os pingos de chuva que caem sobre nós. Suas mãos
me amparam e eu tenho absoluta certeza de que não desejo nunca mais perder
essa proteção.
Não há espaço para dizer qualquer coisa. Nada do que dissermos conseguirá
dar conta do que estamos sentindo. E o sentimento, seja ele qual for, é intenso
e profundo demais para ser expressado em palavras.
Estamos nos olhando... só nos olhando. Frases inteiras estão sendo ditas nesse
olhar. Só há ele e eu. Ele. Só ele me basta. Só ele. Ivan pega a minha mão e
leva aos lábios. O toque é de uma ternura que parece irradiar pelos meus
poros. Ele me puxa pela mão que acaba de beijar para entrarmos em casa.
Chegamos ensopados à cozinha e Bastiana vem em nosso socorro. Não há
mais ninguém em casa.
– Subam, já! Eu vou preparar um chocolate quente pr’ocês! Valha-me, Deus!
Vão se gripar! – ela diz nos enxotando.
A casa está silenciosa. Só ouvimos o barulho da chuva incessante lá fora.
Subimos as escadas e meu celular apita no bolso da calça. Não entendo como
ele ainda pode estar funcionando! Há uma mensagem de Max que diz “Sinto
muito por hoje. Sua amizade é muito importante para mim. Espero não ter
metido você em problemas.” Eu estou parada no degrau, lendo séria. Ivan
percebe meu desconforto.
– É ele, né? – pergunta. – É o garoto...
– Sim, é o Max. – digo constrangida. Não sei exatamente como me comportar.
Até agora, Ivan e eu não trocamos uma única palavra sobre nós. Sobre a nossa
relação. Nós... temos um compromisso? Ou tudo não passa de uns beijos
ardentes e nada mais que isso?
– Não quero atrapalhar... – ele passa por mim e chega ao topo da escada. – ...
fique à vontade para conversar com seu amigo.

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Acabo de me livrar das roupas molhadas e tomo um longo banho pensando em


como gostaria de ter evitado que Ivan se trancasse no quarto depois de me
dizer aquilo. Eu cheguei a passar por sua porta e tocá-la de leve, mas não tive
coragem de bater. O que eu iria dizer? Então, cara, você me beijou. Temos ou
não temos um compromisso? Aff. Eu não consigo fazer isso! E se ao invés de
ouvir uma declaração de amor eu ouvir um só tenho tesão por você e nada
mais? É dessa proteção que ele falava antes? Estar me protegendo do desejo
dele?
Sinto minha pele ainda queimando pelo seu toque, ansiosa por mais. Será que
um dia esse desejo se aplacaria? São muitos conflitos, muitas questões que
não cabem dentro de uma só pessoa!
Coloco um blusão e penteio meu cabelo. Meu celular já está seco em cima da
minha mesinha e eu me assusto ao descobrir que já passam das seis. Ouço uma
batida à porta e meu coração dispara. Ivan... Levanto num salto e abro. É Alex,
com um ar preocupado.
– Tá tudo bem? – pergunta me perscrutando.
– Tá, sim! Peguei uma chuva brava! – sento na cama e apoio o meu corpo no
ursão branco.
– Sei... – fecha a porta e puxa a cadeira para mais perto de mim. – Também
peguei no caminho para casa. Mas sempre tenho um guarda-chuva na mala... –
Alex parece querer me dizer algo.
– O que houve, irmão? Você parece... preocupado? – aguardo uma resposta.
Outra batida à porta. Grito para que a pessoa entre, especulando quem seria
dessa vez. E é claro que a bateria que tenho no peito já está aquecida
novamente para o próximo carnaval. Dessa vez, é Ivan. Lindo como sempre.
Cheirando a loção pós-barba e desodorante masculino. Cabelo molhado e
olhos verdes e brilhantes. Está com roupas confortáveis de ficar em casa.
Alex e eu estamos olhando para ele, que parece um pouco sem jeito de como
se portar. Traz na mão uma xícara saindo fumaça.
– Desculpa, não queria incomodar... – se aproxima e me entrega a xícara. – A
Bastiana pediu para entregar o seu chocolate quente... – vira-se para Alex. – E
aí, irmão, pegou muita chuva?
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– Cara, nem fala! – meu irmão definitivamente está percebendo o clima entre
nós. – Que bom que deu carona a Francine!
– Pois é. – passa a mão pelo cabelo. – Sorte eu ter ido ajudar na escola hoje...
– aparenta desconforto. – Bom, preciso terminar um trabalho... – volta-se para
mim. – Vê se você se agasalha direito! Pegou muita chuva e a temperatura caiu
muito. Tchau pra vocês! – sai do quarto e o silêncio predomina.
– O que foi isso que acabou de acontecer aqui? – Alex está me fitando com um
ar curioso e divertido.
– Não sei o que quer dizer... – faço a cara mais inocente que consigo.
Alex cai na gargalhada. E eu começo a rir também. Ele sabe. Meu irmão sabe
tudo. E o melhor de tudo é que ele não parece querer conversar sobre isso.
– Mas, hein... – digo rindo. – O que você queria mesmo me dizer quando
entrou aqui? – desconverso e ele fica sério.
– É... – pigarreia e está absurdamente embaraçado. Minhas placas vermelhas
de quando fico nervosa se alastram nele. Eu me compadeço por essa timidez.
Sei muito bem como é se sentir assim por causa de alguém. Não é qualquer
pessoa, mas alguém. E o alguém dele atende pelo nome de Julia.
– Faz uma coisa, meu irmão? – pego suas mãos e o encaro. – Não precisa me
dizer nada! Eu sei. Eu também sei. Eu sei de tudo.
Selar segredos sem dizer uma única palavra me encanta porque os segredos
são chaves para a confiança. Confiança... Com fio... fiar: arte de tecer em fios.
O elo. O laço. A aliança.
Com... fiança, que não se paga para ter.

♫♪

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Capítulo Trinta e Cinco


Fui dormir com a sensação de que Ivan não foi ao meu quarto só para entregar
uma xícara de chocolate quente. Havia algo nele que o constrangia como se
pudéssemos, Alex e eu, saber do que se tratava. Acordo com essa mesma
sensação. Ivan queria sim, me dizer alguma coisa!
Rapidamente, fico pronta para ir à escola. Desejo muito conseguir falar com
ele antes de sairmos de casa. Chego à cozinha e meus pais estão tomando café.
Bianca ainda não acordou e Alex já foi trabalhar.
– Bom dia! – saúdo a todos, sentando à mesa. – O Ivan já saiu?
– Bom dia, filha! – meu pai me cumprimenta. – com os óculos na ponta do
nariz e o jornal aberto.
– O Ivan já saiu... – minha mãe diz cortando um pedaço de queijo branco.
– Hoje é dia dele na escola, queria pegar uma carona... – aceito o copo de
leite quente que Bastiana me serve. – Obrigada.
Chego à escola atrasada. Há um congestionamento devido aos estragos
causados pela chuva do dia anterior. Entro na sala, arfando, a tempo de pegar
o final da primeira aula. Max me olha e balança a cabeça sorrindo Está tudo
bem, não precisamos falar sobre isso.
Ao fundo, vejo Renato com a cabeça baixa na carteira. Será que está
dormindo, descansando ou sentindo alguma coisa? Nenhuma das alternativas.
A mais pertinente das respostas é que ele, com certeza, não está afim de
assistir à aula, como sempre. Rebeca tem sentado do lado oposto da sala.
Parece mesmo levar a sério seu discurso.
Ju está ao meu lado e eu retribuo seu sorriso travesso Estou pegando seu
irmão! Eu sei. Soninha está do outro me observando atentamente Eu sei o que
você andou fazendo ontem com Ivan, garota terrível! Meus amigos e eu nos
comunicamos através de olhares e sorrisos telepáticos.
Procuro por Ivan discretamente no intervalo, mas o destino não parece estar
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conspirando a meu favor. Como a maçã que trouxe de casa e converso com os
meus amigos. Nada de diferente. Só o fato de Max e eu termos um segredo. De
vez em quando nos olhamos e sorrimos.
Quase ao final da última aula de Biologia, um aluno do sexto ano bate à porta
e pede autorização à professora para falar comigo. Comigo? Só conheço
aquele menino de vista. O que quer comigo? Peço licença e vou até ele,
encostando a porta para não atrapalhar a aula.
– Oi... – digo, observando-o com curiosidade.
– Oi, Francine! O professor Ivan me pediu que eu te entregasse isso... –
estende a mão e eu vejo um envelope branco, lacrado. Olho para ele sem
entender e pego o envelope.
– Obrigada... – ainda tenho tempo de responder antes que ele saia correndo e
desapareça nas escadas.
Observo o envelope e identifico a letra de Ivan Francine Bloco 1 Sala 23. Eu
reconheceria aquela letra nem que se passassem mil anos! Eu lia todas as
cartas que ele mandava endereçadas aos meus pais ou ao Alex. Agora eu
recebia uma carta, um bilhete... direcionado a mim! Com a letra dele!
Levo o envelope ao peito e dou um suspiro. O que será que há escrito
dentro dele? Cheiro o papel e meus lábios o tocam. Isso significa muito mais
do que uma simples carta. Não importa o que esteja escrito nela. Só o fato de
recebê-la tem um significado especial demais para mim. Sinto uma emoção
muito forte. Rasgo a lateral do envelope e retiro uma folha de dentro dele.
A letra de Ivan forma um texto que diz Garotinha, pensei muito sobre tudo o
que vem nos acontecendo e quero muito conversar com você. Tentei fazer
isso ontem, mas fui surpreendido ao ver Alex no seu quarto. E realmente
acredito que lá não seja mesmo o melhor lugar para conversamos sobre nós.
Queria poder fazer isso quando saísse da escola, mas trabalho nos dois
turnos hoje e não terei a tarde livre. Minha ansiedade é grande! Preciso ver
você antes disso! Encontre comigo assim que acabar a sua última aula, na
sala de acessórios de Educação Física. Um beijo. Ivan.
Eu estou parada e minha respiração está suspensa. Passo a mão pelo bilhete e
o releio. Minha ansiedade é grande! Preciso ver você antes disso! Sinto um
nó na garganta e as minhas mãos estão trêmulas. Releio novamente a
mensagem, com o coração aos pulos.

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Garotinha, pensei muito sobre tudo o que vem nos acontecendo e quero
muito conversar com você. Se ele está me chamando de garotinha é porque
deve ser uma coisa boa... ou não? A ansiedade agora é minha, Ivan! Minha!
Volto para a sala e sento sob o olhar de Renato. Um arrepio sinistro passa pela
minha espinha e eu esfrego os braços. Os olhos dele estão vermelhos. Muito
vermelhos!
Soninha me cutuca e pergunta baixinho o que houve. Cochicho que está tudo
bem. Só um bilhete. A professora está falando sobre o processo de fertilização
in vitro. Soninha me pergunta se quero estudar com ela para a prova de
História na Biblioteca. Coleta. Óvulos congelados. Nego, tenho um
compromisso. Inseminação artificial. Um compromisso inadiável. Fecundação.
Ela me olha curiosa.
Quando o sinal toca, mal me despeço dos meus amigos e corro em direção à
sala de acessórios. Vários alunos caminham na direção oposta. À medida que
percorro os corredores do fundo do colégio, percebo que vai ficando mais
silencioso e vazio.
A sala de acessórios é nos fundos da quadra. É bem deserta quase sempre. Seu
corredor não tem saída. Um pouco mais para o fundo dele, após a porta, há a
estante que eu me escondi de Norma outro dia. Dou um suspiro alto e bato à
porta. Não há resposta. Bato de novo um pouco mais forte. E como continuo
sem resposta, viro a maçaneta e entro. Não há ninguém na sala. Ivan ainda não
chegou.
Objetos de natação estão espalhados por todos os lados. Há uma mesa
comprida com uma garrafa térmica de café, uma garrafa d’água e copos
descartáveis. Pego um dos copos e encho com um pouco de água. Estou com a
garganta seca de tanta ansiedade.
Há outra mesa um pouco maior, onde Ivan estava sentado na outra vez em que
estive aqui. Muitos papéis estão espalhados sobre ela e eu me aproximo com
curiosidade. Um caderno está aberto em uma página cheia de partituras. Uma
das melodias, já com letra, me chama atenção. Está escrito Doce Inocência.
Temo que Ivan chegue e me pegue bisbilhotando suas coisas, mas eu não posso
resistir a esse título.

Dos meus sonhos você nasceu, menina

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Doce ternura de amar


Acalanto em meu peito a cantar
A doce inocência que brota do olhar.

Cresce, menina, me engana outra vez


Desafia com o queixo a me tentar
Mostra, menina, o encanto
Que encanta a minha vida a te amar.

Ivan fez uma música para mim! Pra mim!


Minha emoção é tão grande que não percebo as mãos que se aproximam e,
agora, me agarram por trás. Uma delas tapa a minha boca, enquanto eu solto
um grito de susto. O hálito da voz que chega aos meus ouvidos me dá ânsia de
vômito imediatamente.
– Eu não falei que eu te pegava...?! – Renato está com a boca em meu ouvido.
– Peguei você, marrenta!
Eu tento gritar, mas suas mãos abafam o som. Ele me aperta, enquanto eu tento
me livrar de suas mãos asquerosas. Jogo braços e pernas inutilmente.
– Cale a boca...! – diz junto ao meu ouvido. Sua raiva é evidente. O que ele
pretende fazer comigo? – Agora somos só nós dois...! – empurra o meu corpo
para o chão com o peso do dele e me deita de costas para o piso frio. Eu me
bato e continuo a gritar.
– Fica quietinha, sua cadela maldita! – diz entre os dentes. – Acha mesmo que
pode comigo, né? – sobe em cima do meu quadril e eu penso que o mundo
pode acabar agora. Não tenho como sair daqui. Não posso nada contra a força
de Renato.
Ele solta a minha boca para abrir o zíper da minha calça jeans e eu aproveito
para gritar e usar a minha mão livre para socá-lo. Consigo mover as minhas
pernas, mas não há nada que eu possa fazer com elas a fim de me libertar. Ele
abre meu zíper e eu grito de novo. Sinto meu rosto arder com o forte tapa que
me atinge e um gosto acre de sangue na boca vem a seguir.
– Cadela! Cale a maldita boca! – estou tonta. Minha blusa está rasgada e eu
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estou perdendo meus sentidos. Minha cabeça bate no chão uma, duas, três
vezes. E tudo fica escuro. Gritos. Mais gritos.
Escuridão. Sinto o peso de Renato sair de cima de mim. Eu estou caindo...
Levanto a mão tentando me segurar. Caindo... Marginal! Novos gritos. Eu
estou gritando? Quem está gritando? Vozes. A voz. Ivan... Caindo... Minha mão
não consegue alcançá-lo! Ela está sangrando! Caindo... Cuidado com a cabeça,
não mexam nela!!! Ivan, me ajude...! Estou caindo... Caindo... Chamem a
polícia! O que estão esperando? Abram essa maldita porta!
Francine... Fica comigo, Francine...!
Sangue. Cabeça. Caindo... Polícia. Renato. Ivan. Sangue...
Dos meus sonhos você nasceu, menina.
Francine...
Fica comigo, Francine...!
Fica.
♫♪

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Capítulo Trinta e Seis


Uma luz está penetrando em meus olhos. Sinto o peso dela sobre as minhas
pálpebras. Eu sei que estou acordada, mas não sou capaz de abri-las. Há um
machucado na minha cabeça que está latejando um pouco. Meus braços e
pernas parecem anestesiados. Tento falar, dizer que despertei, mas não
consigo.
Ouço uma porta abrir. Passos lentos se aproximam. Quem está aí? Por que não
consigo abrir meus olhos se já acordei? Uma voz de mulher chega aos meus
ouvidos de muito longe. Vá comer alguma coisa, meu bem... Meu bem? Quem
é meu bem e de quem é essa voz? Por favor! Eu preciso de ajuda! Quero me
mexer, mas não consigo!
Eu lembro de sentir gosto de sangue. De gritos. Fica comigo...! De uma dor
muito forte na cabeça. Fica...! Mergulhei na escuridão... e caí.
Ouço outra voz, mais jovem. Passos... A porta abre e se fecha. Onde eu estou?
Algo está mexendo o meu cabelo. Uma mão... está acariciando meu cabelo.
Filha... Minha filha... Filha? De quem eu sou filha? A mão continua a me
acariciar e, de repente, toca a minha. Uma onda poderosa sobe por ela e chega
até meu cérebro.
Minha ansiedade é grande! Preciso ver você antes disso!
Mostra, menina, o encanto.
Que encanta a minha vida a te amar.
A luz corta meus olhos, eu pisco. Sinto um aperto na mão. Novamente a luz me
fere. Meu braço é levantado e eu o sinto pousar sobre um colo. Mãos ansiosas
o acariciam e eu pisco de novo. A luz...
Tento manter o foco e vejo um teto branco. O peso sobre as minhas pálpebras
é muito grande, não sei se vou resistir. Onde estou? Que lugar é esse? Quem é
essa pessoa que segura minha mão e me chama de filha? Quem é essa mulher?
– Filha... – ouço alguém me chamar bem próximo ao meu ouvido. – Oh, minha
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filha! Dorme... A mamãe está aqui.


A voz me acalma. A escuridão me domina de novo. E eu mergulho.

Sinto uma mão mexer em mim. Meu braço é levantado e colocam alguma coisa
embaixo dele. Algo aperta o outro braço e logo afrouxa. Por que meus olhos
doem tanto? Onde está aquela voz? A voz que me acalmou? Cresce, menina,
me engana outra vez. Um líquido quente sobe pelo meu braço. Fica...! Fica
comigo...!
Mostra, menina, o encanto.
Que encanta a minha vida a te amar
Fica...! Fica comigo...!

Fico. Eu fico. Abro os olhos. Encaro o teto novamente, mas a luz já não me
incomoda mais. Está mais escuro. Estou zonza. Pisco com força e minhas
pálpebras parecem mais leves. O teto ainda está sem foco. Alguém aperta a
minha mão.
– Filha... – ouço aquela voz de novo. E me dou conta de que despertei.
Minha cabeça dói quando movimento. Olho para o lado e minha surpresa é
grande quando vejo minha mãe em pé, ao lado da cama, segurando a minha
mão. Ela acaricia meu rosto e eu estou confusa. Muito confusa.
– Mãe? – chamo num fiozinho de voz. Parece que não falo há dias! Não tenho
forças...
– Filha... A mamãe está aqui. – ela encosta seu rosto no meu. – Fica calma,
está tudo bem agora.
– O que aconteceu? Onde eu estou? – pergunto confusa.
– Você sofreu um acidente, bateu a cabeça, mas já está tudo bem... – acaricia
meu rosto.
Eu estou sonhando? Ou estou em uma pegadinha? Quem é essa mulher do meu

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lado me acariciando e me chamando de... filha? Essa não é D. Lúcia! Não


pode ser! Não conheço essa mulher... Quero o meu pai, quero o Alex... Ivan!
Onde está o Ivan?!
– Ivan! – grito e tento levantar da cama, mas minha mãe me detém. O acesso no
meu braço recebia soro direto na veia.
– O Ivan está vindo... – minha mãe usa um tom de voz controlado. – Procura se
acalmar... Por favor. Eu estou aqui com você!
– Eu quero o meu pai! – eu digo e sinto uma faca invisível atravessar o peito
da minha mãe. Sinto vontade de chorar e parece que ela também.
– Ele já esteve aqui e voltou ao trabalho... – os olhos dela estão marejados.
– Minha cabeça está doendo... – tento levantá-la e sinto uma pontada.
– Por favor, não se mexe. Fica quietinha... – aperta minha mão e acaricia meu
rosto.
– O que você faz aqui? Isso é um hospital? – pergunto ainda confusa.
– Sim. É um hospital. Vim ficar com você. – suspira. – Você não se lembra do
que aconteceu?
Eu balanço a minha cabeça negativamente, mas um flash passa pela minha
mente. O bilhete de Ivan. Ivan... Amor da minha vida. Razão da minha
existência. Eu fico. O envelope com a letra dele. Minha ansiedade é grande!
Preciso ver você antes disso! Lembro-me dos corredores vazios e minha
loucura pelo encontro. Minha garganta está seca. Doce Inocência. A música.
Dos meus sonhos você nasceu, menina...
Sinto meu rosto doer. Levo minha mão que está livre do acesso venoso ao meu
rosto. Meu lábio está cortado. Sangue. Sinto gosto de sangue. Cadela maldita!
Cale a boca!
– Renato! – grito, sobressaltada.
– Shiii... Se acalme! – minha mãe segura meu braço.
– Ele me machucou. Ele queria... Ele queria...! – as lágrimas vão vindo, junto
com os soluços e eu dou vazão a elas. Minha mãe tenta me acalmar.
– O Ivan chegou na hora. Renato não tocou em você! Já passou, filha! Já
passou... – Quando foi que minha mãe se transformou em outra pessoa? E eu
choro... Choro até me sentir vazia.

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- Por que de fato você está aqui? – pergunto quando estou um pouco mais
calma.
– Eu... – ela parece embaraçada e caminha até a janela. – Eu... precisava estar
com você...
– Precisava? Por quê? – não estou entendendo nada. Absolutamente nada!
– Eu nunca te contei uma história quando você era menina... – uma lágrima
escorre do seu rosto. - Posso te contar uma agora?
Eu balanço a cabeça devagar, concordando. O que está acontecendo afinal? O
que tudo isso significa?
– Quando seu pai e eu nos conhecemos ficamos muito apaixonados. Seu avô
não aprovava meu namoro porque dizia que seu pai não tinha onde cair morto.
Era um garoto pobre, sem ambições políticas... – suspira e continua, olhando
para mim. – Eu briguei com os seus avós e minha família inteira porque queria
ficar com César. Ele pediu que eu o esperasse se formar para que pudesse me
levar embora. E quando isso aconteceu, nós nos casamos.
Eu não conhecia essa história, muito menos todos os sentimentos que minha
mãe está deixando transparecer em sua narrativa. Sinto ainda os efeitos do
sedativo e dos medicamentos para dor, mas mantenho meus olhos bem abertos
e meus ouvidos atentos para ouvir a primeira história que minha mãe conta
para mim. Essa não é uma história de fadas e princesas, mas é a sua história.
– Quando eu fiquei grávida de você, seu pai ficou tão feliz, tão feliz! – respira
fundo. – Acho que bem mais feliz do que quando engravidei de Alex... – volta
a olhar pela janela. – Talvez porque ainda tivéssemos dificuldades financeiras
quando seu irmão nasceu. E com você, tudo foi diferente. Ele podia dar o que
você queria e precisava.
– Eu não entendo aonde está querendo chegar... – estou cada vez mais confusa.
– O que está querendo dizer?
– O que eu estou querendo dizer é que eu não queria você! – minha mãe me
encara e sua expressão é de dor. – Não queria e me culpava por isso. Eu me
sentia um monstro, renegando a própria filha!
Eu fico calada e respeito o seu silêncio. Está chorando.
– Você nasceu quando tínhamos um casal e nada me fazia mais feliz do que o
que eu já tinha... Foi por isso, Francine... – ela se aproxima de mim – que
quando engravidei de você, não aceitei. Na minha cabeça egoísta, minha
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família já estava formada e tínhamos estabilidade financeira. E a gravidez


significava perder tudo o que eu tinha. Festas, ginásticas, meu corpo... – pega
minha mão. – Tudo de novo! Eu quis interromper a gravidez, mas seu pai não
deixou. E você nasceu!
Minha mãe aperta minha mão de encontro ao seu rosto e suas lágrimas banham
meus dedos. Eu me sinto estranha. Abrindo a ostra e vendo uma quantidade
enorme de lindas pérolas. Eu abri a ostra! Eu consegui fazer isso.
– Eu a olhava e uma depressão horrorosa me fazia rejeitar você, tudo o que
vinha de você. Tentei lutar contra isso com todas as minhas forças, fiz
terapia... – enxugou o rosto. – Mas nada fazia com que eu me sentisse sua
mãe... Até hoje. – ela me olha e novas lágrimas brotam. – Seu pai me
substituiu muito bem e a Bastiana foi a mãe que eu nunca consegui ser.
Meu coração está batendo forte. Sinto uma energia familiar no toque dela na
minha mão e a aperto. Estou chorando também e não tinha dado conta disso.
– Eu pensei, minha filha, minha filha! – repete um tom acima. – ... que eu não
conseguiria dizer a você o quanto eu a amo! – minha mãe cola o rosto no meu.
– Eu amo você, minha filha! Pensei que nunca pudesse dizer isso porque, até
então, nunca tinha me sentido sua mãe. Mas hoje... – a voz dela está embargada
de emoção. – Hoje ouvi cada célula do meu corpo gritar que você é minha
filha! Minha filha!
– Mãe... – é só o que consigo dizer.
– Tudo o que eu mais quero nesse momento... – leva minha mão de encontro ao
peito. – É o seu perdão. Você me perdoa? Por favor, me perdoa, filha!
Eu arranco o acesso venoso e me jogo nos braços da minha mãe. Minha mãe.
A mulher que eu imitava quando menina. A mulher com quem gostaria de
parecer. A minha mãe.
A história não foi de fadas e princesas. Foi de uma ostra.
Uma ostra liberta dos seus segredos mais profundos.
Recolho seu tesouro e a devolvo ao mar revolto.
E conto todas as pérolas.
Uma a uma.

♫♪
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Capítulo Trinta e Sete


Minha urgência é grande para te encontrar. Não há barreira que me impedirá
de chegar. Prova de História, eu... preciso estudar um pouco mais. Pouco
importa. Te proteger de mim... Fertilização in vitro. Quero muito conversar
com você. Letras de música. A água desce pela garganta seca. Doce Inocência.
Dos meus sonhos você nasceu, menina. Esse cara está te ameaçando?! É
isso?! Caindo... Está muito escuro aqui. Ele vai se arrepender de ter nascido!
Sangue. Dor. Desafia com o queixo a me tentar. Mostra, menina, o encanto.
Que encanta a minha vida a te amar. Escuridão. Mergulho. Fica comigo,
Francine...! Fica.
– Ivan! – acordo gritando, sobressaltada.
Ivan está de pé ao lado da cama e imediatamente me toma nos braços. Minhas
lágrimas estão caindo sem que eu consiga contê-las. Soluço, enquanto ele
balança meu corpo e beija minha cabeça.
– Está tudo bem. Acalme-se... Shii... Ivan está aqui. Está tudo bem... Ivan está
aqui... – não para de me acalentar. E eu estou balançando em seus braços,
como uma criança que acaba de acordar no meio da noite com um pesadelo.
Aos poucos, vou começando a me acalmar. Ainda estou muito confusa. Não
sinto mais os efeitos do sedativo. O curativo da minha cabeça está seco, não
há sinal de sangue, mas ainda dói um pouco. Retiraram o acesso venoso e
meus braços estão livres.
– Você vai ficar bem... – Ivan diz quando percebe que levei a mão à cabeça. –
Seus exames estão ótimos. Está tudo bem... – segura meu rosto com as duas
mãos e confirma sua frase para me dar segurança.
– Por quê? Por que ele fez isso comigo? – pergunto, tentando entender.
– Porque ele é um psicopata do inferno! – Ivan se descontrola e esbraveja,
pousando as mãos sobre a cama. Seus olhos destilam ódio.
– Não gosto quando fala assim... – seguro seu punho.
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– Cheguei bem a tempo de pegá-lo com aquelas mãos imundas em você! – seu
rosto sustenta uma expressão dura. – Mas quebrei a cara dele... e só não
acabei com ele porque me seguraram.
– Não diga isso nem de brincadeira! – exclamo, chocada.
– Agora ele vai pagar pelo que fez na cadeia! E o idiota ainda foi enquadrado
por tráfico... – dá um risinho irônico. – Acharam droga pesada na mochila
dele! Maldito! Marginalzinho de quinta!
Eu o olho surpresa. Sempre soube que Renato não era bom caráter, mas não
consegui alcançar as palavras de Rebeca quando disse que ele estava metido
em muita parada errada.
– Minha maior preocupação era você... – seus olhos estão marejados. – Você
não faz ideia do que senti quando a vi, desacordada e suja de sangue... – há
amor nesse olhar. Sim, há amor nele!
– Obrigada... – toco em seu rosto e o abraço. Ele me aconchega e eu suspiro,
sentindo seu calor. – Eu amo você...
Só ouço sua respiração e a batida descompassada do seu coração. As mãos de
Ivan acariciam meu cabelo, meu rosto, meu braço... Recebo vários beijos no
alto da cabeça. Te proteger de mim...! Só queria te proteger de mim!
– Seu amor me comove... – finalmente diz me fitando e eu sinto todo o seu
sentimento. É forte, poderoso e intenso.
Começo a prestar mais atenção a ele. A barba está por fazer e aparenta não ter
dormido muito durante a noite. Veste uma calça jeans e uma camisa
amarrotada. O cabelo está desalinhado sobre a testa. Há um travesseiro e um
lençol jogados em uma pequena poltrona.
– Você dormiu aí? – aponto. Ele está rindo como um menino travesso.
– Você não sabe a guerra que foi... – começa a falar e seu rosto se ilumina. – ...
para decidir quem iria dormir aqui... nesta poltrona super confortável! – faz
uma careta.
– E você venceu com todo o seu charme! – começo a rir também. Toda a
tensão e a confusão mental estão me abandonando por completo.
– Hum... Quer dizer que sou charmoso? – aponta o próprio corpo de cima para
baixo.
– Muito... – Ainda resta um pouco de malícia no meu rosto machucado?
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Ivan fica embaraçado e nenhum de nós dois pode dizer mais nada porque uma
médica entra no quarto. Ele se afasta para permitir que ela possa realizar o seu
trabalho.
– Bom dia! – é relativamente jovem, baixinha, morena e muito simpática. – Eu
sou a Dra. Isabel e você deve ser a filha do médico mais amado desse
hospital, acertei?
– Sim... – sorrio. E irmã do médico mais gato também! Eu quase digo, mas me
contenho. A ocasião não é das melhores para minhas tiradas de humor. – Eu
me chamo Francine.
– Muito prazer, Francine. Como se sente? – ainda sorridente, pega o meu
prontuário sobre a mesinha de canto, analisando-o. Verifica uma radiografia e
alguns exames anexados que trouxe junto com ela.
– Com um pouco de dor na cabeça, mas estou bem... – digo prestando atenção
ao meu corpo. Ivan observa a tudo, visivelmente tenso.
– Sente alguma tontura, zumbido no ouvido, enjoo? – a médica analisa meus
olhos sob a luz de uma espécie de lanterna. A seguir, afere minha pressão
arterial.
– Não, nada... – respondo com certeza.
– Ótimo! – pega o prontuário e escreve mais alguma coisa. – Vou prescrever
mais um medicamento para dor e, em breve, você estará liberada.
– Está tudo bem, doutora? – Ivan se aproxima e pergunta.
– Muito bem. A mocinha teve muita sorte! – dá tapinhas no ombro dele. – Não
se esqueçam de marcar o acompanhamento psicológico. É importante! No
mais, tudo caminhando como deve ser. – sorri gentilmente mais uma vez. –
Daqui a pouquinho a enfermeira virá para trocar seu curativo e ajudar no
banho. E alimente-se bem.
Quando a médica sai, Ivan se aproxima e me abraça novamente.
– Viu? Vai ficar tudo bem... Tudo bem...
Acalanto em meu peito a cantar. A doce inocência que brota do olhar.
– Afinal de contas, o que você queria falar comigo de tão importante? –
pergunto em um sobressalto e ele sorri.
– Teremos muito tempo para falar sobre isso. A minha ansiedade já passou...
Você está aqui. – acaricia meu rosto, pega algo no bolso da calça e estende
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para mim. – Isso pertence a você.


– O seu bilhete... – Onde estava?
– Caiu do seu bolso quando os paramédicos colocaram você na maca...
Levo o bilhete ao peito e sorrio para ele.
– Você pode iluminar o mundo com esse olhar... – passa o dedo indicador pelo
meu nariz.

Durante o dia, recebo além da polícia - para que eu pudesse prestar


depoimento -, a visita dos meus pais, do meu irmão, da Soninha e da Julia. Os
meninos acharam melhor não vir e aguardar que eu me restabeleça para fazer
uma visita em casa. Minha mãe me entrega um bilhete da Bianca dizendo
Melhoras, irmãzinha! Você sabe que eu odeio hospital. Espero você em casa.
A vida realmente é capaz de nos surpreender. E eu estou adorando ser
surpreendida.
Meu pai parece ter envelhecido dez anos em um dia. Sua fisionomia cansada e
abatida aponta o excesso de preocupação comigo. Ele aproveita a visita para
me presentear com os biscoitinhos de Bastiana embrulhados em papel toalha.
Sebastiana, a minha protetora. Aquela que quase nada fala, mas que está
presente em tudo. Aquela que carimba Deus abençoe ocê, em um punhado de
biscoitos.
À noite, Ivan cede a vez a minha mãe para dormir comigo no hospital. Estou
rodeada de cuidados maternos. De cuidados especiais. Estou rodeada de
pessoas que me amam... Estou rodeada de amor.
Durmo essa noite e, sim, mergulho em uma escuridão repleta de amor. Eu me
fundo a ele. Somos um só. O amor e eu.

♫♪

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Capítulo Trinta e Oito


Estou de volta a minha casa há cinco dias. Mesmo dizendo que está tudo bem,
ainda querem me ver na cama. Mas jurei a mim mesma que esse é o último dia.
Não aguento mais parecer doente, cheirando a hospital. Não sinto mais dor na
cabeça e, dentro de alguns dias, retirarei os pontos. Estou fisicamente bem.
Meu quarto está com as janelas abertas. Bem arejado. E eu estou encostada
sobre travesseiros altos na cama. Uma almofada está no meu colo. Olho para o
teto enquanto uma música que eu adoro está tocando em meu celular.
Estou vestindo um pijama comportado e meu cabelo está solto. Ouço leves
batidas à porta e Ivan coloca só a cabeça para dentro do quarto.
– Oi... – seu ar de moleque tem acompanhado seu comportamento com
frequência. Deus, como eu amo esse homem!
Abro um sorriso para ele antes mesmo de responder. Não cabe em mim a
felicidade que sinto em tê-lo tão perto. Pouco me importa se conversamos ou
não, se temos um compromisso ou não... O fato de tê-lo inteiro de novo,
retribuindo todo o amor que eu sinto por ele através dos cuidados e da
proteção que sempre teve comigo, já me basta. Eu o amo com todas as minhas
forças e... com todas as minhas fraquezas também. Porque ele é todas elas.
– Claro que pode! Vem aqui... – eu o chamo com uma das minhas mãos e ele
senta na beira da cama, de frente para mim.
– Como a minha garotinha está se sentindo? – Ivan me pergunta acariciando
meu braço.
– Presa em um cativeiro há cinco longos dias! – digo rindo.
– Ah, que absurdo! – faz uma careta. – Só estamos zelando pela sua saúde. Só
mais um dia no quarto? Mais um? Hein? – pede franzindo o rosto.
– Nem pensar! – coloco a mão na testa e me afundo nos travesseiros.
– Você merece umas palmadas! E sua lista de burradas cresceu um pouco
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mais... – ri.
– O que eu fiz dessa vez?! – digo indignada.
– Você me seduziu... – suas mãos estão sobre o meu rosto em frações de
segundos. Seu polegar roça meus lábios e, eu fecho meus olhos, sentindo a
carícia. Seu toque é tão poderoso que a dor no corte interno, provocado pela
bofetada de Renato, não parece me incomodar.
O rosto de Ivan se aproxima do meu e estamos a centímetros um do outro. Ele
me beija delicadamente e eu estou arfando. Seus lábios vão tocando meu rosto,
passeando da boca ao pescoço. Inclino minha cabeça para o lado, enquanto ele
segue seu caminho. Meus pelos estão arrepiados e o ar não chega aos meus
pulmões como deveria.
Mantenho minhas mãos firmes na cama e concentro-me apenas em sentir. Sinto
seu toque, seus lábios, seu calor, seu cheiro, tudo o que emana dele. Não cabe
nesse momento sequer um pensamento. Minha mente está vazia. Só possuo a
capacidade de sentir.
Uma das mãos de Ivan, agora, sobe pelo meu braço lentamente e essa sutileza
causa em mim uma tortura prazerosa. A mão alcança meu rosto novamente e
acaricia minha nuca com as pontas dos dedos. Um calor sobe pelo meu corpo
quando ele passa a língua pelo lóbulo da minha orelha e deixa escapar o hálito
quente, junto com o gemido que escapa de sua boca.
Quando estou prestes a me jogar em seus braços, ouvimos vozes. A porta do
meu quarto se abre e Ivan dá um pulo para trás, antes que ela fosse totalmente
aberta.
– Oieeee! Viemos movimentar um pouco isso aqui! – É Julia. A rainha da
banda, do escândalo e... do empata. Atrás dela, Soninha, Nando e Max. Meus
amigos.
Sorrio para eles e Ivan se levanta imediatamente da cama. Está visível em seu
rosto que a presença de Max ainda o ameaça.
– Quem bom que vieram! – digo feliz, mas ainda sob os efeitos do toque de
Ivan. Por que diabos não trancamos a porta? Mas que diferença faria?
– Estamos... atrapalhando? – Ju olha para Ivan e depois de volta para mim.
– Claro que não, Ju! – ele exclama, sorrindo gentil. – Fiquem à vontade, eu já
estava de saída.

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Ô, que saída! Tento controlar minha respiração para que a veia que
está pulando do meu pescoço volte a se comportar como uma simples
condutora de sangue.
Ivan olha para mim com um olhar maroto e mantém uma postura séria para
deixar o quarto.
– Ju, trate de poupar essa voz! E, por favor, não agitem muito a Francine!
Oi? Não agitar muito a Francine?! Deus, diz a ele que meus amigos não vão
precisar se dar a esse trabalho? Meu corpo está agitado dentro do meu velho
barquinho. As ondas revoltas, enfim, o estão levando para a arrebentação,
onde eu já avisto meu porto seguro.
– Deixa comigo, chefe! – bate uma continência para ele. – Tudo sob controle!
Quando Ivan sai, as meninas começam a rir olhando para mim. Max
acompanha esse olhar. Sabemos muito bem o que estava acontecendo aqui!
Mas nós, meninas, temos o código de honra de nunca falarmos dessas coisas
na frente de garotos. O saber é geral, mas o comentário é telepático.
– Como você está, Fran? – Nando pergunta, nitidamente preocupado.
– Estou bem... Foi um susto... – suspiro alto. – Mas estou bem.
– A situação do Renato é bem complicada... – Max também vem me
cumprimentar. – Está bastante encrencado! Imagino o que você passou nas
mãos daquele bandido!
– Nossa, Fran...! – Soninha começa a falar e vem me dar um beijo no rosto. –
Já disse isso a você no hospital, mas a sua imagem apagada e toda suja de
sangue, não sai da minha cabeça...
– Mas já é hora de esquecermos isso, vocês não acham? – Ju diz quebrando o
clima pesado. – Afinal de contas, a nova protagonista do momento sou eu! A
senhora trate de sair logo dessa cama para estar inteira e arrasando no meu
show de lançamento!
– Com certeza, estarei! Não aguento mais essa cama! Não aguento mais ficar
trancada nesse quarto! – jogo as mãos para o alto.
– Quando você volta para escola? – Max pergunta. – Você faz muita falta...
– Amanhã estarei lá ou não me chamo Francine! – sorrio, mas me lembro de
algo que está me incomodando. – Só não sei como vou encarar o olhar e os
comentários piedosos das pessoas...
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– Quanto a isso, fique tranquila... – Soninha diz. – Estaremos ao seu lado o


tempo todo! – toca minha mão e dá um leve aperto. Meus amigos se
aproximam. Ju senta ao meu lado na cama e me abraça pelos ombros. Os
meninos estão em pé, nos olhando protetores.
– Como está a perna, Max? – pergunto segurando sua mão.
– Nova em folha! Pronta pra próxima! – ri. Depois dá um chute no ar e simula
sentir dor. Arregalamos os olhos e ele ri de novo. – Tô brincando, galera!
Nada de dor, mas também nada de esportes por enquanto...
– Onde estão André e João? – pergunto estranhando a falta deles.
– Onde... – Max resmunga. – No treino para a grande final... que eu estou fora!
– faz uma careta.
– Mas a arquibancada o espera! – Nando declara e nós todos rimos, mas Max
me olha de um jeito diferente. Nós dois sabemos o motivo.
– Agora nos conte direito essa história com a sua mãe... – Ju beija meu rosto,
solta meus ombros e aguarda uma resposta.
– A minha mãe se transformou em outra pessoa! – engulo em seco. – Ela está
sendo pra mim o que nunca foi. Todos os dias eu vejo nas atitudes dela, não só
comigo, mas com todo mundo, que está tentando ser uma pessoa melhor.
– Sei o quanto isso sempre foi importante pra você, amiga... – Soninha me fita
com cumplicidade.
– Quantas vezes eu invejei você por ter uma mãe tão maravilhosa como D.
Vanda, sem saber que as pessoas podem mudar. Todo mundo é capaz de mudar
o seu jeito de encarar a vida, mudar a sua postura em relação às outras
pessoas... Todo mundo é capaz de amar! – estou emocionada. – E a minha mãe
descobriu que pode me amar... E está correndo atrás de todo o tempo que ela
perdeu!
– Mas nunca é tarde quando o amor é de verdade! – Ju exclama.
– Hummm...! Filosofando! – Nando provoca.
– Você que o diga né, Ju?! – bato meu ombro no dela e solto uma gargalhada.
– Vamos manter esse assunto quietinho, por favor? Nada de assuntos
sentimentais agora... – ri.
Amigos. Esses são os meus amigos! Os melhores do mundo. Os melhores que
eu poderia ter.
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Sabemos muito bem o que estava acontecendo aqui!


Estaremos ao seu lado o tempo todo!
O tempo todo. Sim, o tempo todo! Porque o tempo não para.
E meus amigos são incansáveis.

♫♪

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Capítulo Trinta e Nove


Minha rotina voltou ao normal e isso é um alívio para mim. Quer dizer, mais
ou menos normal porque dessa vez a anormalidade está ao meu favor. Minha
família nunca esteve tão unida. Meu pai e Alex sempre os mesmos, me
cobrindo de atenção; minha mãe e eu ainda um pouco desconfortáveis com
nossa nova postura uma com a outra, mas a cada dia tentando agir o mais
naturalmente possível; Bianca dando uma trégua sutil nas provocações e;
Ivan... Ah! Meu mundo novo não seria o mesmo sem ele!
Ivan me levou à escola todos os dias dessa semana, mesmo os que ele não
trabalhou. Seu carinho e preocupação comigo me tomam de admiração e
gratidão. Estamos juntos sempre que podemos, mas nosso contato físico não
tem passado de toques carinhosos que deixam gosto de uma prazerosa
expectativa.
Uma semana se passou e ainda não conversamos sobre nós. Isso me causa
certa aflição e, a ansiedade tem aumentado a cada dia. Conto os segundos para
vê-lo e podermos trocar nem que sejam poucas palavras, mas já é o bastante
para que eu seja a garota mais feliz do dia.
Quanto à escola, tudo correu bem melhor do que eu esperava. Fui recebida
com muito carinho por todos. Nada de comentários nem olhares de piedade.
Rebeca foi a única que me olhou diferente assim que cheguei. Seus olhos
diziam Eu te avisei!
Tirando o esquema interno de segurança rigoroso adotado pela escola e de
minha entrada e saída estar sempre sendo acompanhada por alguém da minha
casa, nada me dá motivos para lembrar do terrível episódio. Estou
frequentando as sessões de terapia, mas ainda tenho pesadelos com aquele
inicio de tarde. Sonho com toda agressão que sofri e revivo a sensação penosa
da cena se repetir. Emocionalmente, abalada. Mas pronta para dar a volta por
cima!
Ivan e eu estamos dentro do carro agora, mais uma vez a caminho da escola.
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Ele está com as mãos no volante, concentrado na direção. De vez em quando,


estende sua mão e acaricia meu rosto, dando um leve sorriso Estou feliz por
você estar aqui... Eu também. Cada dia que passa, sinto a necessidade ainda
maior de me perder em seus braços e entender qual é o papel que eu tenho em
sua vida. Pretendo tocar no assunto ainda hoje, pelo menos para deixarmos
marcada a nossa conversa, mas começo pelas beiradas.
– Nervoso para amanhã? – estou me referindo à estreia da banda. Finalmente o
grande dia deles chegou.
– Sim, sempre fico nervoso. – passa a mão pelo cabelo. – Não importa quanta
experiência se tenha, a estreia é sempre assustadora! – se vira para mim e
sorri. – E você? Preparada?
– Eu? Por que deveria? – pergunto sem entender bem a pergunta.
– Ué! Pensei que estivesse nervosa pela Ju e... por mim. – fala simulando
tristeza.
– Oh, meu Deus! Como é dramático! – acho graça. – É claro que estou
apreensiva! Mas vai dar tudo certo! Onde tem talento, o sucesso é garantido!
– Obrigado. – diz com um sorrisinho de canto de boca. – Mas não era sobre
essa preparação que eu me referia...
– Ah, não?! – me volto para ele, surpresa.
– Não... – olha para mim com uma ponta de malícia. – Pretendo conversar com
você amanhã sobre nós... – o sorrisinho ainda continua lá. – Está preparada
para o que eu tenho a dizer?
– Claro que sim! – meu coração começa agora um ensaio de última hora para o
carnaval do próximo ano. A bateria está a todo vapor. – Mas não entendo
porque ainda não fizemos isso...
– A conversa que precisamos ter, requer tempo e privacidade. Coisa que não
temos tido ultimamente com tantos acontecimentos! – respira fundo e continua.
– E você também não estava em condições! Eu precisava respeitar o momento
delicado pelo qual você estava passando. Foram muitas emoções, pontos na
cabeça e dor. – acaricia meu cabelo com a ponta dos dedos. – A minha única
preocupação era você, garotinha!
Há uma mistura de sentimentos dentro de mim: amor, carinho, admiração,
medo, ansiedade, dúvida... Mas também há a certeza de que eu nunca aguardei
tanto um momento na minha vida.
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– Mas agora não há mais dor e nem pontos! E minhas emoções estão prontas
para serem testadas, como sempre... – digo com segurança.
– Eu estou preparando uma surpresa para você! Mas você tem que prometer
que vai fazer tudo o que eu mandar... – avisa. – Precisa confiar em mim!
– E quando foi que eu deixei de confiar? – cruzo meus braços e o encaro. – Eu
me jogaria no escuro se soubesse que você estará lá para me pegar...
Ivan me olha com um misto de admiração, surpresa e medo. Não entendo o seu
olhar até que ele explica o que sente.
– Você me assusta, às vezes... – volta a prestar atenção à direção. – Sua
confiança plena em mim me faz questionar se eu sou uma pessoa capaz de
merecê-la.
– Você é a única. – confirmo fitando-o.


Estou me olhando no espelho agora e admirando o que vejo. Meu cabelo está
solto e com um volume excepcionalmente lindo essa noite, a maquiagem está
perfeita e meu vestido preto é de arrasar. É delicado e ao mesmo tempo realça
todos os meus jovens atributos.
Coloco alguns acessórios como batom, pente, lenços umedecidos e um
pequenino frasco de hidratante para as mãos dentro da bolsa. Minhas unhas
estão impecavelmente pintadas de vermelho e eu as admiro antes de conferir
se a minha carteira com cartões, dinheiro e documentos estão dentro dela.
Estou pronta para o grande dia!
Desço e encontro meus pais sentados no sofá da sala, abraçados, assistindo
televisão. Ele está de folga, mas os dois resolveram não ir à boate. Querem
ficar sozinhos. E eu gosto disso. Gosto de ver o quanto se aproximaram nos
últimos dias.
– Boa noite! – digo descendo os últimos degraus. Os olhos deles me
acompanham com uma expressão de Nossa! Quem é você? O que você fez com
a nossa filha? Beijo meu pai primeiro e ele retribui o meu boa noite.
– Boa noite, filha... – minha mãe usa as duas mãos para segurar o meu rosto e
me beijar. Há em seu toque toda a vontade de expressar seus sentimentos por
mim. – Você está linda!
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– Obrigada... – estou sem jeito. – Não vão mesmo com a gente?


– Não, filha, vão vocês! Já estou velho para isso! – meu pai recusa.
– Seu pai tem razão! É um momento só de vocês... A Bianca não vai? – minha
mãe me pergunta.
– Ela disse que vai mais tarde com um novo carinha aí... Acho que é...
Henrique. Sim... Henrique! É esse o nome! – faço uma careta e eles riem.
– Quem será que essa menina puxou hein, César? – cutuca meu pai com o
cotovelo.
– Não foi a mim! Que calúnia é essa agora!? Eu era um santo! – começa a rir.
– Ah, pois bem, meu bem! – ela retruca. – Quando eu o conheci, minha filha,
seu pai tinha duas namoradas!
– Mas larguei todas para ficar com você! – meu pai diz divertido e fica
falsamente sério. – Isso lá é coisa que se diga para a menina?!
– Isso é para ela saber o passado tenebroso do Dr. César! – estamos rindo os
três. Melhor momento em família não há. Eu os observo e me esqueço da vida.
– E o Alex? – meu pai levanta e vai até a janela lateral, acendendo um cigarro.
Fumando e trabalhando de mais, comendo e descansando de menos. Minha
mãe parece não gostar. Enfim, minha última conversa sobre o estilo de vida do
meu pai gerou conflitos e eu me recolho a minha insignificância.
– Já deve até estar lá com a Ju! – sorrio e completo. – Ele está feliz, isso que
importa.
– Ela é uma boa garota. – meu pai afirma. – Mas é muito jovem pra ele! Uma
menina ainda! – expõe sua opinião. E isso me dá um frio na espinha. E quando
ele souber de mim e Ivan? Como será? Que reação terá?
– Alex tem trinta anos! E a Ju já vai completar dezenove! – entro em defesa do
meu irmão e dos meus próprios interesses. – São só onze anos! Poderiam ser
cinquenta! Que diferença isso faz quando existe amor? – minha mãe me
observa com um ar bastante desconfiado. Será que fui enfática demais? Que
deixei transparecer minha necessidade de uma futura aprovação?
– Só onze anos?! Só?! – meu pai ri e eu dou de ombros.
– Onde está o Ivan? Ele vai me levar...
– No carro, esperando você. – papai responde tragando um cigarro.

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– E impecável como nunca! – mamãe completa e ao ver minha expressão


surpresa: – Pensei que soubesse que ele já estava esperando!
Vou caminhando até a porta e quando já estou na varanda, minha mãe me
chama e eu aguardo. Ela está vindo até mim. Sua expressão é um pouco sem
jeito, mas decidida. Encosta a porta da sala para que possa falar comigo a sós
na varanda.
– Francine... – pega as minhas mãos. – Minha filha... – suspira. – Eu estou
muito orgulhosa da mulher que você se tornou. – Passa a mão pelo meu rosto.
– E... eu desejo a você a melhor noite da sua vida!
Percebo agora, chocada, uma grande verdade... Minha mãe sabe. Minha mãe
sabia! Minha mãe sempre soube. Como eu nunca percebi isso antes? Fico
surpresa, olhando para ela. Não há nada a dizer nesse momento.
– Siga seu coração e confie no sentimento poderoso que existe dentro de você.
– beija minha testa carinhosamente. – Eu te amo! – sorri timidamente e me
abraça. – Agora vai! Ele está esperando...

Caminho até o portão, absolutamente confusa. Está claro para mim que minha
mãe sempre soube dos meus sentimentos por Ivan e que agora tem certeza que
alguma coisa vai acontecer essa noite. Alguém revelou algo para ela? Alex?
Impossível! Ivan? Pouco provável. Prefiro apostar no sexto sentido feminino
de uma mulher experiente. Respiro fundo e saio. Ivan veste uma calça social
escura e uma camisa clara, de mangas dobradas. Os braços estão cruzados
sobre o peito e seu corpo está encostado no carro. Olha para um moderno
relógio prata, provavelmente questionando minha demora de aproximadamente
quinze minutos!
Quando me vê, abre um largo sorriso e me admira da cabeça aos pés, mudando
o seu olhar de feliz em ver você! para Você está abalando minhas estruturas!
Caminho até ele.
– Oi... – estou sorrindo docemente. – Está sozinho?
– Agora não estou mais... – retribui o sorriso e beija o meu rosto. Seu cheiro
chega até mim e eu começo meu processo de embriaguez. Se ele me tomasse
nos braços agora, eu não iria a lugar algum! Mas ele parece saber disso e
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mantém distância. – Você está... deslumbrantemente linda!


– Obrigada. Você também! – ele não se barbeou, o que o deixa com um estilo
mais despojado para um músico. Gosto disso. Acho muito atraente. Suas
mandíbulas estão trincadas, como se estivesse se esforçando para manter o
controle.
– Sabe o que eu queria fazer nesse exato momento? – o brilho que está em seu
olhar ilumina a rua.
– O quê? – pergunto com a voz embargada. Sinto uma emoção única.
– Levá-la para a cama mais próxima e amar você... – toca o meu rosto e eu
fecho os olhos.
O som de um celular interrompe o momento. Ele atende com raiva e ouve com
atenção o que diz a pessoa do outro lado da linha.
– Já estou indo, merda! – grita irritado.
Você está... deslumbrantemente linda! Levá-la para a cama mais próxima e
amar você...
Agora vai! Ele está esperando...
Minha mãe sabe. Minha mãe sabia! Minha mãe sempre soube.
E eu? Eu acabo de descobrir que meus saberes estão perdidos no vão...
Entre o carro e a cama mais próxima.

♫♪

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Capítulo Quarenta
A boate está lotada. Muita gente está à espera da nova banda lançada no
mercado por um empresário musical muito bem quisto no universo
internacional. Um DJ toca as músicas das últimas paradas e Ivan me leva pela
mão através do salão.
O camarim está movimentado também. Pessoas transitam no espaço,
organizando, suprindo o estoque de água, conversando uns com os outros,
dando coordenadas de iluminação e som: amigos das estrelas da noite e
funcionários da boate ou da equipe de produção de Ivan.
Três sofás grandes ocupam duas paredes inteiras. Há uma porta para um
banheiro; um frigobar; uma penteadeira tradicional, daquelas com lâmpadas
em volta de um espelho; e uma mesa enorme com frios, frutas, petiscos e água.
Os garotos da banda parecem apreensivos, aguardando o sinal para que
comecem. Quando me vê, Julia se levanta da penteadeira e abre um sorriso
largo. Soninha está ajudando na maquiagem dela. Usa um vestido preto com
recortes em verde, super na moda para ocasião. As unhas estão pintadas de
esmalte escuro, em uma tentativa estratégica para não roê-las. Representação
de toda a sua perseverança em controlar o nervosismo e a ansiedade.
– Amiga! – Ju me abraça apertado.
– Nossa, mas você está linda! – eu a admiro, colocando as mãos na boca.
– Obrigada! – diz dando uns pulinhos de pura excitação.
– Soninha me ajudou... – passa a mão pelo vestido.
– Ôoo! E que ajuda! – Soninha faz uma careta. – Levamos três dias para que
ela escolhesse um único vestido!
– Claro! – Ju exclama. – Eu tenho que abalar essa noite!
A voz de Ivan falando um pouco mais alto com os meninos chama a nossa
atenção e nos voltamos para ouvir também.
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– Tudo o que precisamos fazer é repetir o que fizemos nos ensaios, dando o
nosso melhor. A emoção de vocês reflete no público e tudo aquilo que fazemos
com amor volta para nós em dobro! – Ivan diz para que todos na sala ouçam.
Estão todos em silêncio, bebendo das palavras dele. – Tudo certo? Prontos
para começar? – olha um por um. – Julia?
– Estou pronta! – minha amiga diz com convicção.
– Então está na hora! Vamos entrar lá e fazer dessa banda a melhor dos últimos
tempos! Quebrem a perna!
Todos batem palmas e riem cumprimentando uns aos outros. Eu acho curiosa a
forma como os artistas desejam sorte. Ivan trouxe do seu inglês Break a leg!, a
superstição de que ao desejar má sorte, boa sorte trará. Então, que todos
quebrem suas pernas! E Merda!, sempre!
Lembro como se fosse hoje de nossa aula de Artes em que a professora nos
explicou que a expressão Merda!, fazia referência ao Teatro Francês do
Século XIX, quando o público ia aos teatros em carruagens conduzidas por
cavalos. Quanto mais excrementos de cavalo estivessem na porta do teatro,
mais sucesso o espetáculo teria, porque a casa estava lotada. Estou perdida
nessas divagações quando ouço um rapaz dizer:
– Pessoal, cinco minutos! – está portando um walk talk, aqueles
comunicadores de ouvido que mantêm a produção de um evento interligada e
em constante contato. Eu abraço Julia apertado, desejando que tudo corra bem
e que possamos comemorar esse dia em grande estilo.
– Venha, Alex já está lá fora. Ele reservou uma mesa para nós na área vip! –
pega minha mão e nós voltamos ao coração da boate. Soninha nos segue.
A música que toca agora tem uma batida super dançante e vários jovens estão
espalhados pelo salão, dançando e se divertindo. Encontramos com Alex e
Nando em uma das mesas da área vip. Bianca, pelo visto, teve algo melhor
para fazer, não é mesmo? Nossos outros amigos e a família de Ju estão do
lado oposto, no outro espaço da área vip. De onde estou, posso vê-los.
O DJ para de tocar, agradecendo a presença de todos. Anuncia a banda com
bons elogios. Nós estamos paralisados, com a respiração suspensa. Luzes de
várias cores começam a piscar sobre o palco e os integrantes começam a tocar
seus instrumentos, um a um... Eu seguro a mão de Ivan que está pousada na
perna e a aperto. Sou sua cúmplice. Nada vai dar errado.

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Uma canção conhecida, em ritmo pop rock, chega aos nossos ouvidos e o
salão explode dando início a letra da música com a entrada de Julia. Sua voz é
de uma potência assustadora e podemos perceber na expressão das pessoas lá
embaixo o quanto estão gostando disso.
A presença de palco da jovem cantora incentiva o público a retribuir cada
verso e gritar o refrão como se estivessem sendo conduzidos pela força de um
furacão. Uma diva. É isso o que Julia é. Ela domina o palco, envolve nossas
emoções, acaricia o público, aveluda a melodia, contorna as nuances, desenha
as notas com as mãos...
Cada música que a banda toca, o público reage com aplausos e acompanha
cantando com a vocalista. Assistimos ao show, extasiados e extremamente
orgulhosos. Eu posso ver isso em cada rosto da minha mesa. Nossos copos de
bebida estão praticamente intocados e não cabe mais qualquer movimento que
não seja de nossos olhos atentos sobre o palco.
Quando Ju anuncia que cantará canções de autoria da própria banda, há uma
aceitação geral. Rapidamente, o refrão da primeira música é dominado e todos
do salão estão cantando em uma só voz. Sucesso! Merda! Merda! Merda!
Ao final do show, o DJ volta a tocar e nós nos abraçamos e nos
cumprimentamos; satisfeitos com o resultado. Um show! De talento e de
domínio. Os meninos estão prontos para voar e Ivan está fazendo seu trabalho
em orientá-los com maestria.
– Ela está... incrível! – Alex diz, boquiaberto. E eu entendo sua expressão
porque eu também me sinto como ele.
Estamos a caminho do camarim, onde haverá mais cumprimentos. Muita gente
se aglomera nas portas dos banheiros, no bar e na escada que dá acesso ao
camarim da boate.
Entramos no espaço proibido para pessoal não autorizado e, enfim, chegamos
ao encontro da mais nova banda apresentada da região. Estão todos rindo, se
abraçando e curtindo o seu momento. Ivan começa a cumprimentar o pessoal
um a um e eu o sigo. Estão todos muito felizes com o resultado.
Alex passa na frente, surgindo com um enorme buquê de rosas vermelhas para
Julia. Ela abre um dos seus mágicos sorrisos e o abraça. Ele está muito
apaixonado por ela. Vejo isso em cada um dos seus gestos e no encantamento
com que a olha. Julia retribui esse sentimento de maneira curiosa para nós,
suas amigas, sempre observadoras de seu comportamento nada apegado aos
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relacionamentos. Eles estão se amando, ponto. Isso é fato mais que


comprovado. Meu irmão entrega as flores. Ela o abraça e é imediatamente
envolvida em um beijo nada envergonhado diante da plateia presente.
Dou uma olhada de canto de olho para Ivan e sua expressão é de pressa de sair
daqui. Segura minha mão com tanta firmeza que eu sinto seu calor emanar dela.
Ele aguarda que Alex se afaste da Ju para que possamos cumprimentá-la. As
pessoas a minha volta festejam, batem palmas, cantam trechos das canções,
comentam as partes marcantes do show... O burburinho é grande e Ivan se
inclina para falar próximo ao meu ouvido:
- Pronta para fazer tudo o que eu mandar? - faz referência à condição para a
surpresa que me prometeu.
- Eu mergulharia no escuro se soubesse que você estaria lá, esqueceu? – digo
bem próximo ao seu ouvido e olho dentro dos seus olhos. – Eu sempre estarei
pronta pra você!
O brilho que se apossa dos olhos de Ivan me revela o desejo estampado de me
ter em seus braços. E hoje, não importa o que me diga, eu estarei pronta para o
que ele tiver para me oferecer. Eu sou dele. Dele. E nada mais importa nesse
instante.
Ivan aperta a minha mão e eu sinto sua respiração presa sair com dificuldade
pelo nariz. O peito se movimenta com o esforço de esvaziar os pulmões. Ele
se dirige ao casal e coloca a mão no ombro de Alex.
– Com licença, amigo! Hora de cumprimentar a dama da noite! – sorri e Ju
retribui. – Minha estrela preferida! – Ivan a abraça com extremo carinho.
– Como devo chamá-lo aqui? – Julia está se divertindo. – Professor?
Empresário?
– Aqui eu sou só o amigo que admira o talento de uma rainha no palco! – está
segurando as mãos dela. – Eu sabia que você não me decepcionaria! Estava
maravilhosa lá em cima, Julia!
Todos estão batendo palmas para Ju, enquanto Nando e Soninha vão abraçá-la
também, seguidos de outras pessoas. Ivan começa um pequeno discurso de
encerramento:
– Esse foi apenas um dos primeiros shows dessa banda incrível! Dessa banda
que promete emplacar nas paradas e me dar muita satisfação em empresariar.
Estou muito, muito orgulhoso do trabalho impecável que vocês fizeram hoje! E
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que venham mais eventos como esse para que possamos dar nossa alma e
nosso coração de novo! Muita luz para nós! – bate palmas e nós o seguimos. –
Parabéns a todos pelo empenho! Ficou tudo incrível! Mais do que imaginei!
As palmas continuam e os garotos também vão um a um se manifestando,
discursando sobre a apresentação. Ivan solta minha mão dizendo que precisa
tratar dos cachês com o seu pessoal e que voltará rapidamente. Estou ao lado
dos meus amigos e vendo a felicidade estampada no rosto da Ju. Ela está
protegida pelos braços do meu irmão em volta do seu ombro. As flores nas
mãos são o seu troféu da noite.
De volta para perto de nós, Ivan se dirige a Alex, mas a roda de amigos
íntimos o ouve:
– Francine e eu já estamos indo... – encosta no ombro de Nando e Alex,
respectivamente.
– Ah, já?! – Ju exclama triste. – Não vão comemorar com a gente?
– Não, Ju... – Ivan lamenta. – A Francine está muito cansada. E ela não pode
abusar.
– Vai, irmã... – Alex me abraça. – Vá descansar!
Eu olho no rosto de cada uma dessas pessoas e entendo o sentido da expressão
mentira social. Todo mundo sabe a verdade, mas ninguém a contesta. E cabe a
mim, o papel representativo de confirmar para que a pequena farsa fique
completa.
– Obrigada. Estou realmente muito cansada. Boa noite para vocês e... Boa
festa!

Estamos dentro do carro agora, Ivan e eu. Saímos pelos fundos da boate para
evitar o tumulto que ainda está no interior. Já passa da meia noite e agora é
que ela está literalmente começando para muitos. Inclusive, para mim. E isso
me assusta um pouco. E agora? Para onde eu irei? O que de fato acontecerá?
Encosto minha cabeça no banco e Ivan faz o mesmo, rindo.
– Você foi muito bem! Cumpriu a primeira ordem da noite! – olha para mim e
ri ainda mais.
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– E você é um tremendo mentiroso! – estou rindo também. – Quer dizer que a


Francine está muito cansada, é?
– Sim... – para de rir e me encara. – E só há um remédio para a cura do
cansaço dela... – toca meu rosto e eu sinto cada parte do meu corpo responder.
Seu velho maxilar trincado indica que está tentando manter o controle de algo
que eu ainda não sou capaz de entender. Ele estende a outra mão para o porta-
luvas e segura algo lá dentro. Está escuro e eu não consigo ver. Mas a beleza
desse momento é tão grande que não me importo. Não estou preocupada em
sentir curiosidade. Não quero pular etapas, não quero sentir nada às pressas...
Sentir requer paciência e apreciação.
– Vire de costas pra mim... – Ivan pede e eu me viro no banco, ficando de
frente para a janela do carona. – Essa é a segunda ordem da noite... –
aproxima um pedaço de pano comprido dos meus olhos e os venda. Afasta
meu cabelo e aproxima seu rosto de encontro ao meu pescoço. Ele beija a
minha pele, explorando minha nuca e me abraça por trás. Suas mãos deslizam
pelos meus braços, enlaçam a minha cintura e eu deixo minha cabeça pender
para trás, em sua direção. E quando suas mãos alcançam meus seios e ele solta
um gemido rouco, meu corpo inteiro se inflama de desejo.
Mas sua tortura é lenta. E prazerosa. Ivan abandona meu corpo ao me colocar
em posição adequada no banco e puxar o cinto. De repente o carro está em
movimento e eu só sou capaz de ouvir. E as únicas coisas que consigo ouvir
agora são as batidas do meu próprio coração e as nossas respirações
entrecortadas pela abrupta interrupção de uma carícia ousada. Umedeço meus
lábios e ele liga a direção do carro, soltando um suspiro.
– Você me deixa louco quando faz isso... – sua voz está rouca e baixa.
– O quê? – pergunto perdida na escuridão das minhas sensações.
– Passa a língua nos lábios desse jeito... – o carro avança e Ivan providencia o
controle de sua respiração soprando forte o ar.
A tortura é lenta. E prazerosa. Eu me mergulharia no escuro se soubesse que
você estaria lá!
Pronta para fazer tudo o que eu mandar?

Sempre. Eu sempre estarei pronta pra você, Ivan!

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Sempre.

♫♪

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Capítulo Quarenta e Um
Continuo com os meus olhos vendados, sentada no banco do carona do carro
de Ivan. Ivan... O homem que, em meus dezoito anos de idade, preenche toda a
minha vida. O fato de ser treze anos mais velho do que eu e melhor amigo de
infância do meu irmão, não impediu que nosso amor fraterno se transformasse
nesse sentimento arrebatador.
Estamos somente nós dois dentro desse carro e ele me leva ao desconhecido.
Sinto as rodas deslizarem com facilidade pelo chão, o que me indica que
estamos passando por uma estrada sem nenhum tipo de congestionamento.
Minha única preocupação agora é sentir. Minha mente está vazia de qualquer
especulação ou curiosidade. O que me move é a sensação que os lábios dele
deixaram na pele do meu pescoço enquanto me vendava.
Procuro me manter em silêncio ao longo do percurso, mas parece que o som
de nossas respirações pesadas não está excitando somente a mim. Ouço uma
canção conhecida invadir o carro e sua letra romântica me faz suspirar. Ivan
controla o volume para que fique bem adequado ao momento e toca meu rosto
com as costas da mão. Eu inspiro o ar e sorrio, apreciando a carícia. Eu o amo
com todas as minhas forças e não há nada no mundo que mudará esse fato.
Nasci e cresci para amar Ivan. E ele... que me ninava quando criança; me
entupia de doces; me balançava em todos os brinquedos do parquinho;
desmanchava os namoros porque as garotas não aguentavam a menininha
grudenta que o seguia para todo lado... Ele... que cantava, tocava e lia
historinhas de fadas e princesas para que eu pegasse no sono; que negou até
onde pode seus novos sentimentos por mim... Ele... está aqui ao meu lado
agora. Dirigindo esse carro que nos leva à surpresa que me prometeu; à
conversa sobre nós que há tempos tem evitado; e à privacidade e ao tempo que
tanto é necessário para que possamos, enfim, nos expressar.
O som da música me embala e eu mergulho relaxada na escuridão proposital e

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condicionada aos meus olhos. E eu mergulho nesse escuro porque sei que ele
está aqui. Do meu lado. Para me segurar.
A venda em meus olhos é a segunda ordem. A primeira delas foi despistar as
pessoas com a desculpa de estar precisando descansar. Haverá mais ordens
essa noite? Será? Mas eu estou pronta. Eu sempre estarei pronta para Ivan.
Sempre. Muito bem, Francine! Ele dá as cartas agora, mas é você quem está
vencendo o jogo!
O carro para e a porta do motorista se abre. Uma lufada de vento chega até
mim e sinto cheiro de maresia. Segundos depois de ouvir a porta bater, a do
carona se abre. A mão de Ivan pega a minha e me ajuda a descer do carro. O
vento bate no meu rosto e inspiro o ar em meus pulmões.
– Está pronta? – a voz dele chega aos meus ouvidos e eu me limito somente a
balançar a cabeça em afirmação. Meu coração está batendo desenfreado
dentro do meu peito.
Quando ele retira a venda do meu rosto, levo uns segundos para que meus
olhos se acostumem ao cenário a minha frente. Estamos olhando para a praia
em que passei tantas férias em família e em sua companhia; na praia em que
brincávamos, passeávamos e ele tocava violão na areia...
Corro meus olhos mais acima e à direita da colina, onde a casa de praia da
minha família dorme no escuro, em meio aquele ambiente mágico e
acalentador de ondas, lua e estrelas.
Olho para Ivan, maravilhada. Há tempos não piso nesse lugar. Meu coração
continua pulando e eu abro um sorriso agradecido pela surpresa maravilhosa
que ele está me proporcionando. O som emitido por um pássaro, ao longe,
chama a minha atenção e eu abro os braços e sinto através do vento, toda a
energia desse momento. Jogo a bolsa e os sapatos dentro do carro e desço os
degraus que levam à areia.
Ivan me acompanha com o olhar embevecido. Parece observar com
apreciação, cada um dos meus movimentos. Eu me sinto livre! Livre como um
pássaro! Dou um grito em resposta à ave que há poucos segundos nos brindou
com seu voo noturno.
A lua está majestosa sobre nossas cabeças e as estrelas cintilam a magia que
essa praia nos presenteia. Ivan também tira os sapatos, tranca o carro e me
segue.

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– Eu amo esse lugar... – abro os braços e, giro sobre mim mesma. – Amo! – a
areia é fria e macia sob meus pés. – Venha, Ivan! Sinta o cheiro desse mar e a
carícia do vento em seu rosto! – abro os meus braços e continuo a girar sobre
o meu corpo sem parar. – Olhe a imensidão deste céu! Em lugar algum você
veria um como esse, abrigando uma lua tão linda e estrelas tão brilhantes... –
solto uma risada de puro contentamento. – Eu amo esse lugar! Ouviu?! – grito
mais alto. – Amo!
Ivan está próximo a mim, sorrindo. Não deixa de me examinar um só minuto
com demasiado interesse. Eu me aproximo e ele me pega pela cintura e me
joga para o alto, contagiado pela minha alegria. Ele me roda no ar uma, duas,
três vezes. Exatamente como fazia quando eu era criança. Eu abro os braços e
fecho os olhos. Quando me ampara de volta em seu peito, estamos tontos e
despencamos juntos na areia, às gargalhadas.
O peso dele está sobre mim e nossas risadas vão diminuindo até que nossos
olhos começam a conversar entre si. Trocamos frases inteiras de sentimentos e
emoções dos quais nenhuma língua civilizada é capaz de expressar. Ouço as
ondas do mar longe agora... O mundo que se abre para mim é rico em
mistérios e romance de livros que devoro todos os dias.
– Obrigada... – digo olhando em seus olhos e ele me acaricia em toda a
extensão do rosto. Sua mão está quente e ansiosa por me tocar. – Prometo fazer
tudo o que você mandar...
– Também prometo não me esquecer disso... – Ivan se apossa da minha boca
com uma voracidade que exprime toda uma frustração acumulada. O seu corpo
rígido sobre o meu denuncia, ávido, o desejo tolhido por um tempo quase que
incalculável.
A língua dele explora a minha com loucura, me invadindo, me provocando, me
convidando a extravasar a paixão e o desejo que emana dos nossos corpos. Eu
correspondo ao beijo, acompanhando seus movimentos. Estamos abraçados,
unidos e sedentos pelo próximo ato.
– Eu sou louco por você, garotinha! – Ivan diz em um sussurro rouco, enquanto
nossas bocas se afastam, liberando nossas respirações entrecortadas. – Sou
louco por você! – volta a me beijar. Dessa vez, mais delicadamente. – Não sei
o que vai acontecer quando formos embora depois desta noite, mas quero que
você saiba que eu não me importo. Nada mais importa. Nada na minha vida faz
mais sentido se eu não tiver você.
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Eu bebo essas palavras como um oásis. E em seus lábios... me perco. Em seus


braços... me encontro.
Mais uma vez, não há espaço para mais nada. Só há ele e eu. Ele. O ser que
detém todos os poderes sobre mim. Todos. Todos eles.
Nada faz sentido sem seu toque, sem o seu amor, sem a sua existência. E eu o
quero aqui. Agora. Nesse momento. Para todo o sempre.

♫♪

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Capítulo Quarenta e Dois


Ivan beija minha testa e me pega no colo. Estamos nos olhando profundamente.
Ele caminha pela areia e vai em direção a casa. Em frente ao portão, me
coloca no chão. Tiramos toda a areia que está grudada no corpo e ele pede que
eu feche os olhos de novo para me vendar. Essa é a terceira ordem. Caminho
no escuro pela varanda quando o portão é aberto e ele me senta em uma
cadeira.
– Espere um minuto. Já venho te buscar! – ouço o barulho das chaves e a porta
se abre. Alguns minutos se passam até que ele volta e pega as minhas mãos.
Sou conduzida pela casa, sem tocar em nada.
De repente, nós paramos e eu sinto cheiro de velas aromáticas. Ivan se afasta e
sua voz está um pouco mais distante, pedindo para que eu retire a venda. Eu
obedeço à ordem e levo uns segundos para me acostumar à nova condição dos
meus olhos. O que vejo diante de mim é difícil de descrever, tamanha emoção
que me toma. Apoio minhas mãos na parede para controlar a surpresa.
Meus olhos voltam ao ponto inicial, de onde estou. Há um caminho nos meus
pés feito de pétalas de rosas até o sofá da sala onde provavelmente devo me
sentar. Ao lado, há uma mesa decorada com um jarro de flores-do-campo,
taças já com champanhe e um recipiente com morangos e mousse de chocolate.
As velas das quais senti o aroma estão espalhadas pelo ambiente.
Continuando o caminho de pétalas de rosas para o lado oposto da sala, há um
equipamento de gravação de som ligado e um teclado, no qual Ivan está
devidamente posicionado para começar a tocar.
Sinto uma emoção tão grande que não sei o que fazer. Estou surpresa demais
para dar qualquer passo, dizer qualquer palavra ou até mesmo emitir qualquer
som...
As lágrimas chegam aos meus olhos e eu as deixo cair, lavando minha alma de
toda a dor sofrida por lutar contra meus sentimentos por esse homem. Mas, eu

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o amo. Eu o amo com a minha alma não mais sofrida. Eu o amo com a minha
alma viva. Eu o amo com a minha vida.
Ivan aponta o sofá e eu umedeço meus lábios, nervosa demais para caminhar
sozinha. Ele parece compreender o que está acontecendo, pois se levanta e
caminha em minha direção. Alto, ombros largos, corpo atlético. A calça jeans
escura e a camisa clara com as mangas dobradas lhe caem muito bem. Dono de
um maxilar incrivelmente bonito, que hoje, apresenta uma barba por fazer de
arrancar o meu fôlego.
Quando ele se aproxima e toca meu rosto, sinto minhas pernas bambearem.
Estou trêmula e completamente sem palavras. Os olhos verdes de Ivan me
hipnotizam imediatamente e eu sou tragada para a profundidade deles, onde me
sinto protegida e ao mesmo tempo, lançada em um mar de ondas revoltas de
excitação. Os cabelos escuros, quase sempre desalinhados sobre a testa, estão
jogados para o lado.
Ivan me ampara nos braços e me beija levemente nos lábios. Sou novamente
carregada no colo até o sofá. Ele me segura pelo queixo e repete o beijo.
Caminha com segurança de volta ao teclado, se posiciona e liga o aparelho de
gravação.
Segundos depois, seus dedos tomam conta das teclas do instrumento. A
melodia é suave, calma, acalentadora. Como uma canção de ninar. Ele avança
sobre as notas, me olhando com intensidade e dedilhando cada uma com
precisão. Quando a música alcança seu ponto máximo, ele fecha os olhos e
respira profundamente.
Não há letra. Não há voz, não há palavras. Só música. Só aquela melodia
chega ao meu coração e o embala para que durma um sono tranquilo. Estou
inclinada no sofá, de pernas cruzadas. Minhas mãos estão pousadas sobre elas
e minha cabeça repousa no encosto, levemente inclinada para o lado. Não
consigo controlar a minha emoção e as lágrimas continuam caindo.
Ivan termina de tocar e encerra a gravação. Bato algumas palmas tímidas e,
depois, eu seco meu rosto com as mãos. O que acaba de acontecer aqui? Onde
eu estou? Que mundo paralelo é esse? Que coisa linda! Eu jamais vou
esquecer esse momento...
– Linda...! – digo voltando a bater minhas palmas, sorrindo para ele. – Linda
música...!
Ivan sorri também e dá início a reprodução do que acaba de tocar. A melodia
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preenche a sala com seus acordes novamente e ele se aproxima lentamente de


mim.
Eu me levanto e ele pega a minha mão, beijando-a delicadamente. Sentir. Eu
sinto hoje com todas as células do meu corpo.
Sou envolvida por seus braços que me convidam a dançar. Apoio minhas mãos
em seus ombros e pouso minha cabeça em seu peito. O seu cheiro me alcança
e eu reinicio meu processo costumeiro de embriaguez que esse contato me
proporciona. Ivan afaga minha cabeça e minhas costas sobre meu vestido
preto. Eu inspiro profundamente.
De repente, sua voz está cantando em meu ouvido... A sua voz grave que
recebe doses de açúcar para acalentar a menina que eu fui um dia.

Dos meus sonhos você nasceu, menina


Doce ternura de amar

Minha respiração está suspensa. A canção está tomando forma com a letra que
ele escreveu para mim e eu acabei encontrando em suas coisas totalmente por
acaso. Meu Deus! Essa música é minha! Ele fez para mim!

Acalanto em meu peito a cantar


A doce inocência que brota do olhar.

Nossos corpos continuam a se mover no ritmo da música e eu me delicio ao


som da sua voz e no embalo que a melodia nos envolve. Ele repete a primeira
estrofe e a canção cresce. Ivan explode o refrão no meu ouvido e seu abraço é
ainda mais acolhedor.

Cresce, menina, me engana outra vez


Desafia com o queixo a me tentar

A letra é tão linda, tão minha... tão nossa! É a nossa vida, a nossa história

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impressa nessas notas. Livres para ganhar o mundo em forma de canção.

Mostra, menina, o encanto


Que encanta a minha vida a te amar.

Eu me encontro em seus braços, agarrada à certeza de que o tempo pode parar,


que eu nem vou dar conta disso. Estamos nos movendo ao som da música;
nossos corpos unidos pela arte de sentir.
Quando a canção acaba, Ivan me olha e eu vejo uma luz diferente de todas as
que eu já vi em seus olhos verdes. A intensidade que há neles é capaz de
expressar por si só todo o sentimento que vinha há tempos tentando negar. Só
que agora, mesmo expressando com os olhos, ele também permite que a boca
revele o que diz seu coração:
– Eu te amo, Francine! – diz trincando os maxilares. – Eu te amo tanto que
chega a doer! – seca uma lágrima solitária minha com as pontas dos dedos. – E
eu quero... Sim, eu quero muito! Eu quero você.
Eu o fito demoradamente e enlaço seu pescoço. Eu sonhei a minha vida inteira
para ouvir essa declaração e não há nada que me importe mais nesse instante.
Estou tomada pela emoção de estar em seus braços e saber ser amada por ele.
– Então me toma agora porque eu sou sua... – digo unindo ainda mais meu
corpo ao dele. – Me toma agora porque eu sempre te amei! Sempre.
Ivan me abraça e alcança meus lábios em questão de segundos. Chegou o
momento. O momento que eu aguardo há muito tempo. O momento de consumar
o meu amor por esse homem que me desestabiliza, que abala minhas
estruturas, que me tira o ar, me tira o chão...
Chegou o momento de parar de lutar contra esse amor que nos envolve e nos
arrebata para outra dimensão, onde não há um só ser que se contente em ser
um só. Ser. Sentir.
Sinto o sofá em minhas pernas e desabo nele. Ivan continua a me beijar com
ardor e me acaricia com urgência. O calor que invade meu corpo começa a me
dominar e sinto ser tragada para o vale dos desejos. Desejo tudo essa noite.
Não há nada que me impeça de desejar. Desejo tudo. Desejo o corpo dele
sobre o meu.
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Desnuda-me. Desnuda-me, Ivan!


E me possua.

♫♪

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Capítulo Quarenta e Três


Já amanheceu, mas o quarto está na penumbra. Só uma luminosidade sutil
escapa através das cortinas. Sorrio lânguida com os beijos que estou
recebendo na face.
– Bom dia, linda... – Ivan acaricia minha cabeça e eu vou despertando,
envolvendo-o pelo pescoço. – Olha o que eu trouxe para você... – sento na
cama esfregando os olhos e o vejo pegar uma bandeja com comida. Ele abre
um pouco as cortinas para que a claridade do dia entre no quarto.
Há uma rosa na bandeja com suco, frios, bolo, café e morangos. E ele estende
a flor para mim. – Uma rosa para outra rosa...! Clichê, mas totalmente
verdadeiro se tratando de você.
– Bom dia, meu amor. Obrigada... – digo pegando a rosa e cheirando as
pétalas. – Hummm... Que delícia! – reparo na bandeja de café da manhã e pego
um morango, levando-o à boca. – Parece que estou em um sonho! – eu me jogo
nos travesseiros de novo. – Não quero nunca mais acordar!
Ivan me observa com um leve sorriso. Está vestido com a calça da noite
anterior e eu, com a sua camisa. Está absurdamente tentador esta manhã: o
cabelo desarrumado, os olhos verdes brilhantes, o conhecido sorriso travesso
nos lábios e o peito nu, provocantemente atraente aos meus olhos.
Ele deposita a bandeja na mesinha de canto ao lado da cama, pega um
morango e partilha da fruta comigo, deitando sobre mim. O beijo com o sabor
tão sensual do morango partilhado é excitante para os meus sentidos e eu me
vejo tateando seu peito, sedenta por explorar seu corpo outra vez.
Ivan sorri e acaricia os dois lados do meu rosto, me olhando com tanto amor
que eu penso que vou explodir de tanta felicidade. A lembrança do que
partilhamos essa noite esquenta imediatamente meu rosto e o calor se espalha
pelo meu colo.
Os lençóis amarrotados e nossas roupas pelo chão confirmam que tudo foi
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real. Provas mais que suficientes de que a realidade superou os meus sonhos
de menina.
– Acho melhor levantarmos agora, tomarmos um café reforçado e
conversamos, enfim, sobre nós... – sorri, divertido. – Ou jamais sairemos
dessa cama! Não que eu não deseje isso...
– É verdade... Afinal de contas, foi para isso que viemos aqui... – reflito. – Ou
não?
– Tam-bém...! – diz pausadamente, levantando da cama e me puxando pela
mão. Nós rimos juntos e ele me beija nos lábios. Eu me sento e a bandeja é
colocada de volta entre nós. – Coma!
– Isso é uma ordem? – pego outra fruta e sorrio, divertida.
– Claro que sim! – diz falsamente sério.
– Como você conseguiu fazer tudo isso? – me refiro às surpresas, a casa e tudo
o mais; e ele parece entender.
– Eu tenho meus contatos... – diz engolindo um pedaço de bolo de laranja. –
Peguei as chaves da casa com Alex, contratei um pessoal para limpar e
abastecer... Ontem vim trazer o equipamento e deixar tudo pronto para receber
você.
– Nossa... – meus olhos não dão conta de segurar minha emoção. – Obrigada!
Ficou tudo tão lindo... tão lindo! – digo embargada. – O fato de voltar a essa
casa, à praia... De ouvir você tocar e cantar para mim... só pra mim! Uma
música feita pra mim...! – tento encontrar as palavras para expressar o que
sinto. – O fato de você cobrir essa casa de flores, cheiros, sons e sabores só
para me agradar... prova ainda mais que meu coração sempre esteve certo em
ter escolhido você para amar.
O rosto de Ivan está contraído. Ele parece profundamente tocado por minhas
palavras. Sua mão alcança a minha e ele a beija num leve toque.
– Eu demorei muito para entender o que sentia por você, Francine... – respira
fundo. – Enquanto estive fora, pensava em você como aquela menininha que eu
amava como a uma irmã. Sempre a amei demais, mas meu amor por você era
puro e simplesmente um amor de irmão...
Eu consigo alcançar o que Ivan diz e sei bem o quanto esse sentimento foi
verdadeiro durante a minha infância e até mesmo após a sua volta, anos antes.

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– Eu sei... – aperto a sua mão, o incentivando a continuar.


– E quando eu a reencontrei na área externa daquela festa foi como se um
botão de perigo fosse acionado dentro de mim! – passa a mão pelo cabelo e eu
continuo a segurar a outra. – Eu lutei, eu juro que eu lutei! Eu lutei muito
contra o que eu sinto por você! O meu amor se transformou...
– Eu também sei disso... Mas agora você finalmente entendeu que não
podemos fugir do que sentimos, não é? – pergunto acariciando seu rosto e ele
fecha os olhos sentindo a minha carícia.
– Não há mais como fugir desse sentimento que me liberta de tudo, Francine!
Eu me sinto livre quando estou com você! – Ivan se levanta e caminha pelo
quarto procurando as palavras certas a me dizer. – Eu tentei fazê-la me odiar e
falhei; eu pensei em fugir e falhei; eu procurei o carinho de outra pessoa e
falhei! Minhas asas continuavam amarradas! Do mesmo jeito quando eu tentei
fugir da dor pela morte dos meus pais...
Estou atenta a todos os movimentos e a todas as palavras dele. Cada frase é
uma manifestação da confiança e do elo que estamos criando juntos.
– Fugir não me fez voar. Pelo contrário! O medo durante a fuga não me
permitia alçar voo. – Ivan se aproxima de mim e se ajoelha ao meu lado, aos
pés da cama. – Mas você, Francine... Você me faz voar. Você me liberta do
medo. Você me liberta de mim mesmo! Eu sei que posso descobrir o mundo
que meu pouso ao seu lado é seguro. – ele me abraça pela cintura e eu beijo a
sua cabeça. Um menino. Ivan se transforma em um menino em meus braços.
– Eu te amo! Eu te amo tanto! – digo acalentando-o.
– Só o nosso amor me liberta... – olha para mim e seus olhos estão marejados.
Ficamos abraçados assim alguns minutos como se eu fosse a mãe do menino
que ele se tornou. Eu o acaricio e balanço seu tronco, agarrado a minha
cintura. O profissional competente, o amante quente e experiente, o homem
maduro e determinado, o senhor de si... está perdido em algum lugar fora
daquele quarto. Aqui, abraçado comigo, há só um menino que pede para que
eu o embale.
Aos poucos, o Ivan responsável começa a tomar forma outra vez e eu o vejo
sorrir para mim, totalmente refeito de suas emoções.
– O que diremos a seus pais? – sorri com divertimento. – Estou imaginando a
cara deles! Eles vão me odiar! Mas até isso perdeu a importância pra mim se
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for comparado a ficar sem você...


– Vamos dizer a verdade... – levanto os ombros e os deixo cair. A descoberta
do seu amor, maior até mesmo do que sua consideração pela minha família me
comove profundamente. – ... Que nós nos amamos e vamos ficar juntos. É isso
que você quer, não é? – pergunto num fio de voz.
– E você tem alguma dúvida? – segura as minhas mãos. – Me perdoe por todo
o sofrimento que causei... Eu me arrependo de cada tolice que disse para que
você me odiasse e pudesse me esquecer.
– Não adiantou muito, né? – percorro seu maxilar com o meu dedo. – Por que
eu só passei a amá-lo ainda mais...
– Eu fui um covarde! Um estúpido! – critica a si mesmo. – Mas... estou aqui,
na sua frente, ajoelhado aos seus pés para pedir que perdoe o tolo que eu fui...
– Não há necessidade disso! Deixe de ser bobo! Não há o que ser perdoado...
– estou sorrindo.
– Então vou aproveitar a oportunidade que minha posição está me
proporcionando para pedir a você... – desvira uma xícara da bandeja que
esconde uma caixinha de veludo vermelho em formato de coração. – ... que
aceite se casar comigo. Casa comigo? – Ivan está me olhando, ansioso, com
seu par de olhos exoticamente verdes.
Estou observando as duas alianças douradas dentro da caixinha aveludada que
ele acaba de abrir, em choque. Lágrimas me vêm aos olhos e eu não consigo
contê-las. Levo minhas mãos à boca e suspendo minha respiração.
– E isso não é uma ordem. É um pedido.

Prometo fazer tudo o que você mandar.


Também prometo não me esquecer disso.
Mas isso não é uma ordem. É um pedido.
Você é minha garotinha e eu sempre vou te amar.
Eu também te amo, Ivan...
Para sempre.

♫♪
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Capítulo Quarenta e Quatro


Ivan me deixa à vontade para usar o banheiro e vai fazer algumas ligações
importantes, após nossa conversa e o café compartilhado. Sorrio extasiada
pelos últimos acontecimentos; maravilhada pelo rumo que minha vida está
tomando.
O fato de ter que encarar a surpresa da minha família não me assusta tanto
quando me lembro da sua figura protetora ao meu lado. Estamos juntos nessa
situação até o fim. E além dele.
Entro no banho e deixo que a água morna alivie meus músculos exaustos.
Ofereço meu rosto à ducha que cai com força sobre mim. Esfrego meu corpo
com o sabonete e observo as pétalas de rosa que ainda estão no fundo da
banheira. Tantas surpresas... Tanto cuidado... Tanta dedicação por mim. A
felicidade não cabe dentro do meu peito. Ela explode em multicores por todo
meu corpo!
Ontem eu era uma menina virgem e hoje eu sou uma mulher com uma aliança
de ouro no dedo. Olho para ela em minha mão direita. Noiva. Noiva de Ivan.
Termino de tomar banho e me seco. Saio para o quarto enrolada em uma
toalha. Ivan está ainda de calça e com o celular no ouvido, dando comandos
profissionais. Ele observa meus movimentos, enquanto fala com seu
interlocutor.
– Está certo. Disponibilize quanto precisar... – corre seus olhos pelo meu rosto
atentamente à medida que visto minha calcinha. – Ok, eu aguardo seu retorno e
fechamos o evento. Sem problemas, isso fica ao seu critério. Ok. Fico
aguardando, então. Obrigado. Bom dia. – desliga e vem ao meu encontro.
– Ei... – beija meus lábios e envolve a minha cintura. – Eu machuquei você?
– Oi? – olho para ele assustada.
– Vi sua expressão dolorida... – procura a resposta em meu olhar. – Você está
bem?
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– Você disse a palavra certa! – enlaço o seu pescoço e beijo seus lábios num
estalo. – Do-lo-ri-da. – sorrio, fazendo uma careta ao contorcer meus
músculos do quadril. – Estou bem dolorida! Bem feliz! – beijo de novo. – Bem
ansiosa! – de novo. – Bem apaixonada! – beijo três vezes seguidas.
– Jura? – pergunta como um menino inseguro.
– Por tudo o que quiser... – declaro em seu ouvido e ele me abraça apertado.
– Mas não foi bem isso o que quiser dizer... – ainda me olha preocupado.
– Não, você não me machucou... – enrosco meus dedos em seus cabelos atrás
da nuca. – Eu sempre soube que você é o mais gentil de todos os homens! –
beijo levemente seu rosto.
– Você é o maior e o melhor presente que ganhei na vida! – Ivan diz me fitando
sério. – E eu a amo de todo o meu coração...
– Ama? – estou sorrindo. – Então ... prove! E isso, sim, não é um pedido... – e
nós nos beijamos com paixão demoradamente. – Agora vá buscar minha bolsa
porque preciso encontrar um pente para desembaraçar esse cabelo medonho! –
estamos rindo e é a segunda vez no dia em que ele me obedece.

Estamos no carro agora, indo para casa. Um som ambiente está tocando uma
música que eu adoro. A mão de Ivan está pousada na minha perna e ele a
mantém assim, enquanto não precisa passar a marcha. Às vezes, esfrega a
palma subindo pelas minhas coxas, numa carícia extremamente ousada. Eu
estremeço; ele sorri para mim malicioso e volta sua atenção para o trânsito.
– Posso te perguntar uma coisa? – resolvo quebrar nosso silêncio.
– Claro que pode... – está me olhando com curiosidade. – Pergunte o que
quiser!
– Por que você ficou com a Norma? – cuspo a pergunta na cara dele e prendo
a minha respiração.
– Nossa, meu amor! Que pergunta! – percebo seu embaraço. – Achei que a
resposta para isso já tivesse ficado clara... Mas... Ok. Vamos lá! – fica sério. –
Eu queria tentar apagar o que sentia por você e precisava de algum conforto
também... – solta o ar demoradamente. – E acabei unindo tudo isso ao fato de
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que ela estaria sempre próxima para afastar você de mim! – comprime o rosto,
arrependido. – Fiz tudo errado! Uma sequência absurda de enganos!
– Mas você gostou dela? Ficou interessado de verdade nela? – minha voz está
trêmula.
– Por que essas perguntas agora? – está me olhando, surpreso. – Meu amor, eu
já não dei provas o suficiente de que é você que eu quero?
– Sim, mas... – preciso saber. Quero entender! – Eu preciso saber!
– Gostar é uma palavra muito genérica. – parece medir as palavras. – Sim,
gostei dela no mais simples dos significados. É excêntrica, mas é uma boa
pessoa. – olha para mim de novo, sorrindo. – E não, ela não se compara a
você, muito menos desperta um milionésimo do sentimento ou do desejo que
eu sinto por você. Em nenhum aspecto! O que partilhamos ontem transcende
qualquer relação que possa ter tido com ela... – suspira. – Está satisfeita
agora?
– Sim... – estou sorrindo com timidez.
– Um pouco de ciúme não faz mal a ninguém, não é mesmo? – Ivan está rindo.
Se divertindo com a situação. – Quem deveria ter ciúmes sou eu, com o tanto
de amigos que vivem a sua volta!
– Você disse bem: amigos! Nada mais do que isso. Mas... – eu me lembro de
um fato e resolvo expô-lo. – Como vamos conviver na escola a partir de
agora? Digo, com essa aliança no dedo, com Norma e tudo o mais? Você é meu
professor...
– Vamos manter a calma... Tudo será resolvido a seu tempo... Está bem? –
parece compreender meus receios e me olha com ar de cumplicidade. – Vai
ficar tudo, tudo bem! – acaricia minha perna.
– Por que você foi trabalhar lá? – coloco minha mão sobre a dele, apertando-
a. Também preciso dessa resposta.
– Achei que isso também fosse uma resposta fácil... – ele continua sorrindo da
minha inexperiência. – Porque eu não queria tirar meus olhos de cima de você,
garotinha... – passa o dedo pelo meu queixo.
Encosto a minha cabeça no banco e tento me concentrar agora no que dizer aos
meus pais. Ivan parece bem seguro ao meu lado, mas eu confesso estar
começando a sentir um frio na barriga.

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Minha mãe deixou claro saber dos meus sentimentos e, mais ainda, o que iria
acontecer na noite anterior. Acredito que não haverá nenhum tipo de problema
com ela. Mas, e meu pai? E meu velho pai tradicional? O paizinho que ainda
enxerga em mim a menininha dele... O que ele dirá quando souber que essa
filha passou a noite fora de casa e se entregou ao homem que deveria protegê-
la como um irmão? Deus! Estou começando a ficar nervosa... de verdade.
A aliança cintila no meu dedo e eu imagino a reação do Dr. César ao vê-la...
Noiva. Noiva do seu filho do coração. Da noite para o dia... Vamos nos casar,
pai! Nós nos amamos! É tudo o que posso dizer a ele. Fim de papo.
Já passa das dez da manhã e eu ainda não voltei para casa. Não sei qual foi a
desculpa que Alex deu em relação a minha ausência. Se é que ele deu alguma.
Do jeito que as coisas estavam encaminhadas ontem, certamente Julia e ele
também não haviam voltado para casa ainda.
Mas nem minhas maiores divagações acerca do momento em que contaríamos
a verdade, se comparam ao que sinto, agora, frente a frente com meu pai e toda
a família, na sala da minha casa.
– Noivos?! Como assim noivos?! – meu pai parece ter comido um marimbondo
vivo. Seu rosto está em brasa e ele parece cuspir fogo. – Mas, que loucura é
essa, Ivan?!
– Acalme-se, César! Por favor... Você não precisa agir assim... – Ivan tenta
tranquilizá-lo. – Nós vamos nos casar; formar uma família. Eu estou aqui
assumindo minha responsabilidade por tudo o que aconteceu esta noite. Eu sou
homem! E amo e respeito a sua filha!
– Minha filha... – meu pai está embargado. – Minha menina! – anda de um lado
para o outro e de repente encara Ivan. – Olhe para essa menina, Ivan! Olhe! É
a minha filha caçula, lembra-se dela? Lembra-se da Francine?! Aquela menina
que você pegou no colo e que tratou a vida inteira como a uma irmã!?
– Eu sei, César... Eu sei...! – baixa a cabeça. – Eu entendo o que você está
sentindo...!
– Pai... – eu me aproximo dele e pego suas mãos. – Me ouve... – e ele me olha.
– Eu sempre, sempre... em toda a minha vida, amei o Ivan. Sempre, pai!
– Filha, isso é um absurdo! Não consigo acreditar numa coisa dessas! Você é
uma menina para ele, filha!
– Absurdo é amar e não poder viver esse amor! E eu amo o Ivan, pai! – sorrio
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compreensiva, enquanto ele chora. – E o Ivan me ama também! Não há nada de


errado nisso! E tenho certeza de que você, como meu pai, quer mais que tudo
nessa vida que eu seja feliz...
– É claro, minha filha...! – meu pai diz, secando as lágrimas com as costas das
mãos.
– Então olhe para sua filha... – abro meus braços e dou o meu melhor sorriso,
abraçando Ivan em seguida. – Eu sou a filha mais feliz desse mundo e é ele...
É Ivan, o responsável por essa felicidade!
Meu pai nos olha, tentando assimilar todas as informações. Minha mãe e meus
irmãos se mantêm calados, respeitando o momento dele. Aos poucos o meu
pai-sempre-compreensivo, vai tomando o lugar do meu pai-indignado.
– Meu Deus...! – papai coloca as mãos na cabeça e dá um sorriso incrédulo. –
Vocês só podem estar loucos! E vocês dois?! – aponta para Alex e Bianca que
permanecem calados. – Sabiam disso? Eu me admiro você, Alex! Sempre tão
certinho! – passa a mão pelo cabelo.
Eu não acho que meu irmão seja a pessoa mais adequada para o termo
“certinha” no momento, mas enfim...
– Eu também sabia, César! – minha mãe diz movida pela emoção de vir ao
meu favor pela primeira vez na vida. – Eu sempre soube. Acho que só você
não percebia os sentimentos da nossa filha. Eu sou mulher! Eu sempre percebi
o modo como Francine olhava para Ivan... – suspira. – E quando ele começou
a retribuir esse olhar e a se comportar como se não aceitasse o que estava
sentindo, eu entendi tudo! Eu sabia como tudo isso ia terminar! Ou melhor,
começar... – olha para mim, com um leve sorriso.
– Papai, você os ouviu?! Eles se amam! Não há nada que se possa fazer para
mudar isso! – Bianca exclama. – Eu confesso que achava tudo isso ridículo e
até tentei me meter no lance deles, mas... Olhe pra eles! – ela aponta para nós.
– Parecem dois idiotas!
– César, meu querido... – minha mãe se levanta e vai ao encontro dele. – A
nossa filha cresceu; se tornou uma mulher e merece ser feliz com quem ela
escolheu. – abraça seus ombros e dá uma leve sacudida. – Vamos homem!
Confesse! Ela não poderia ter escolhido um homem mais decente e mais
bacana do que o Ivan...
Minha mãe se aproxima de nós e nos abraça, enquanto meu pai mantém a
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cabeça baixa, pensativo.


– Desejo que vocês perpetuem essa felicidade que estão sentindo... – beija o
rosto de Ivan e segura o meu entre as mãos, sorrindo. – Minha filha... – e beija
minha testa.
– Pai, a Francine e o Ivan não vão ficar aqui, a manhã toda, esperando seu
consentimento! – Alex resolve intervir. – Deixe de ser turrão! Minha irmã é
maior de idade e o Ivan não é nenhum estranho! Pelo contrário!
Meu pai está aparentemente desolado ainda, mas se levanta do sofá e se dirige
a nós. A expressão do seu rosto é impassível. Ivan ameaça começar um novo
discurso para tentar convencê-lo, mas papai o interrompe com as mãos.
– Seja bem-vindo novamente! Bem-vindo a sua família! – meu pai aperta a
mão de Ivan após algum tempo, em silêncio, nos olhando. – A família da qual
você sempre fez parte... E... sejam felizes! – sorri, beijando minha testa e
dirigindo-se agora exclusivamente a Ivan. – Ai de você se não fizer mesmo a
minha filha feliz...
– Você não vai precisar ter o trabalho de mandar me surrar... – Ivan abraça
meu pai. – Obrigada, meu velho!
– Vou precisar de tempo para me habituar a isso... – papai diz, emocionado.
– Parabéns, minha irmã e... – Alex nos abraça. – irmão-cunhado! E não
demorem a me dar um sobrinho!
– Deus me livre! – Bianca se levanta com o comentário. – Nada de crianças
remelentas e de nariz escorrendo me chamando de tia, ouviram?! Argh!
Crianças...! – faz uma careta e depois nos cumprimenta. – Sorte... Vocês vão
precisar!
Nós todos rimos de Bianca. Ela é patética, mas dessa vez, seu mau humor nos
atingiu inversamente. Ela é intolerante a casamentos e relações duradouras.
Sorte é o máximo que ela pode nos desejar.
– Eu... Estou tão feliz! – digo enlaçando Ivan pelo pescoço após nossa família
nos deixar a sós.
– Eu disse a você que tudo vai dar certo, não disse? – me balança. – Quer
ainda que eu prometa?
– Hum-hum... – balanço a cabeça negativamente.
– Então fica caladinha agora... – ele me aperta de encontro ao seu corpo. –
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Estou louco para beijar a minha noiva... – e em um sussurro, com os lábios


bem próximos aos meus, completa: – E isso não é um pedido.
Você é o maior e o melhor presente que ganhei na vida! E eu a amo de todo o
meu coração... Ama? Então ... prove!
Ele prova.
Eu provo.
Nós provamos quando não há nada para provar.
Exceto o gosto um do outro.
♫♪

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Capítulo Quarenta e Cinco


As duas melhores amigas do mundo vão dormir essa noite aqui em casa.
Estamos deitadas juntas em um grande colchão no chão do meu quarto.
Soninha está com um caderno na mão, fazendo a minha lista de chá de panela e
Julia tagarela sobre as várias possibilidades de vestidos de noiva que há na
revista.
Estou cansada. Hoje tive minha última aula prática da autoescola e a minha
prova está próxima. Estou muito ansiosa para obter minha carteira de
habilitação. Meu pai pagou por todo o processo como presente de aniversário.
Já estamos no meio do ano letivo e tudo está caminhando bem. Ivan continua a
ministrar as suas aulas de Educação Física, após a conversa que minha família
teve com a direção do colégio. Mantemos uma postura ética quanto a minha
posição de aluna e ele de professor.
Mas Ivan não pretende mais lecionar. E eu sei muito bem o porquê disso. Se
eu não vou estar mais lá, não faz mais sentido para ele continuar. Agora tudo
parece muito lógico.
Nossa volta para a escola de aliança no dedo gerou muitos comentários, mas
conseguimos contornar tudo da melhor maneira possível. As redes sociais
bombaram com a fofoca do ano. A aluna quase-violentada vira noiva do
professor-herói. Que por sinal, mora na casa dela e a viu nascer! Nossa, a
notícia é do século!
Norma continua a dar as suas aulas insuportáveis, mas parece manter uma
distância razoável da minha pessoa. Não se dirige a mim em momento algum e
nem solta piadinhas. Acho que ela percebeu duas verdades incontestáveis: 1.
Francine tem veneno na língua e 2. Ivan pertence única e exclusivamente a ela!
Simples assim, professora! E a minha nota azul, já está no diário? Afinal de
contas, eu estudo para isso!
Está frio hoje e eu penso em Ivan no quarto ao lado, dormindo sozinho. Depois

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de todos esses dias, fugindo para a cama dele, à noite, fiquei mal acostumada.
– Fran! É a terceira vez que chamo você... – Soninha me desperta do transe. –
Está com a cabeça onde, hein, amiga?
– No quarto ao lado... Onde mais estaria? – Ju dá uma risadinha e eu jogo um
travesseiro no rosto dela.
– Pode ir, minha amiga! – Soninha me incentiva. – Vá dormir com ele que a
gente fica por aqui...
– De jeito nenhum! – digo categórica. – Vocês não estão aqui pra isso...
Vamos voltar à lista... Releia o que já está anotado! A Ju poderia largar essa
revista e ir pesquisando na internet os itens mais usados, hein?!
– Jura que não quer dar uma olhada nos vestidos primeiro? – Ju deita de
bruços e abre em uma página apontando um modelo. – Olha esse que incrível!
– Lindo, minha mais nova cunhada! Mas vamos ajudar a Soninha com a lista,
primeiro, hã? Teremos tempo para escolher o vestido...
– A mais nova e última, eu espero! – Ju exclama se referindo ao meu irmão. –
Serei a senhora Alexandre e não se fala mais nisso...
– Hummm... Que isso hein, novinha?! Tá podendo a beeeça! – Soninha diz e
nós três rimos. A seguir, voltamos a nossa atenção para a lista do chá. –
Talheres, concha, escumadeira... – ela para de citar os itens e me fita com
atenção. – O que mudou em você?
– Oi? – digo sem entender a pergunta. – Como assim?
– O que mudou em você depois que você e o Ivan...
– Transaram?! – Ju interrompe. – Qual é, Soninha!? Qual é o seu problema em
falar de sexo?
– Problema nenhum, Ju... Só não gosto de me expressar assim... como você...!
– Soninha está visivelmente encabulada.
– Só falta você dizer que sou vulgar... Valeu mesmo pela parte que me toca! –
Ju faz uma cara de magoada e cai na risada. – Amiga!!! Alôuu? – ela coloca a
mão no queixo. – Até quando você e Nando vão ficar assim... nesse chove e
não molha?
– Eu não sei... Por isso estou querendo conversar com vocês! Mas é tão difícil
falar sem ouvir suas piadas!

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– Amiga, o que você está querendo exatamente saber? – eu intervenho. – Não


sou nada experiente no assunto, mas posso tentar responder alguma dúvida, sei
lá...
– Eu tenho medo... – assume.
Soninha está se sentindo diferente de nós. Isso é óbvio. O fato de nunca ter
feito sexo com Nando, tampouco, com ninguém, a tem incomodado.
– Medo de quê? – Ju e eu perguntamos juntas.
– Medo de não estar pronta! – minha amiga revela de uma vez seu motivo.
– Se você está fazendo essa pergunta é porque não está! – Ju diz e deita de
frente, olhando para o teto.
– Pela primeira vez ouço você dizer algo que preste hoje, cunhadinha! – eu
empurro o ombro dela com a mão.
– Soninha, o tempo de cada mulher é único. Não apresse nada... Se você ama o
Nando e não se sente pronta, ele deve respeitar isso. Se não respeitar, é
porque não merece você!
– Ele tem me pressionado um pouquinho, mas eu realmente acho que não estou
pronta. – Soninha diz pensativa. – Tenho receio das consequências que isso
pode ter. Sei que há preservativos, pílulas e tudo, mas... E se ele não for o
cara certo? Como vai ficar a minha cabeça depois?
– É, isso é muito importante para ser levado em consideração. – digo
analisando a situação com ela. – Nunca tive esse medo porque sempre soube
que o Ivan era o homem da minha vida!
– Eu nunca fui muito ligada a isso... – Ju volta a expor suas opiniões. – Nunca
acreditei em contos de fadas. Sempre fiz o que quis e nunca me arrependi. Mas
hoje, com o Alex, percebo que se pudesse ter feito algumas coisas diferentes e
me preservado mais... Eu não teria batido tanta cabeça por ai!
– Viu, amiga?! Somos muito diferentes! Temos tempos diferentes para nossas
escolhas... – eu continuo. – O que realmente importa é como você lida com
elas. Cabe só a você decidir o que fazer e quando fazer.
– Doeu? – ela me pergunta totalmente sem graça.
– Um pouquinho. – sorrio. – Mas isso também varia de mulher para mulher.
Então, não precisa se preocupar!
– Até porque se doesse para sempre ninguém ia gostar tanto de fazer menino
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nesse mundo, né?! – essa é Ju e suas tiradas certeiras.


Estamos rindo e o clima se descontrai. Continuamos mais um tempo falando
sobre nossos assuntos de meninas e depois reiniciamos nossa lista de chá de
panela.
Dormimos em meio a nossa cama coletiva e eu acordo uma hora mais tarde
com o barulho de uma mensagem no celular. Todos os meus grupos são
silenciados, então, a mensagem só podia ser de Ivan. A cama está muito
grande e fria sem você. Eu sorrio e respondo prontamente. Estarei aí em um
minuto para ocupá-la e esquentá-la. Quase que de imediato, mais uma
mensagem chega. 59, 58, 57... Ele está contando os segundos e eu apago a luz
do quarto saindo de mansinho para não acordar as meninas.

– Não consigo mais dormir aqui sem você... – Ivan me diz, enquanto me
aconchego junto ao seu corpo embaixo dos cobertores.
– Antes de pegar no sono com as meninas lá no meu quarto, eu pensei a mesma
coisa... – acaricio a pele do seu ombro.
– Sinto falta de ter você assim... – me aperta em seus braços. – Quero poder
fazer isso todos os dias e para o resto da vida!
Eu balanço minha cabeça concordando e inspiro o cheiro da sua pele o
abraçando com mais força.
– Estávamos outro dia falando em comprar a nossa casa... – me viro para ele e
ouço atentamente. – Você viu que a minha casa... digo... a casa aqui do lado
estava à venda há alguns meses?
– Sim, logo depois que você chegou, a família se mudou para outro estado e
colocou a casa à venda. Há uma placa lá se não me engano... – digo olhando-o
ansiosa.
Será que Ivan vai comprar a casa? Para nós? A casa que foi dele? A casa em
que seus pais foram tão felizes juntos? Meu rosto se ilumina com a
possibilidade de poder dar a ele um pouco do seu passado de volta.
– Posso pegar o número se você quiser ligar... – digo com ansiedade e
esperança de que ele se interesse mesmo pela compra.
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– Pois, é... Eu já liguei. E a casa já não está mais à venda...


– Puxa... – volto a pousar minha cabeça no peito dele, decepcionada. – Mas
vamos conseguir encontrar uma do nosso jeitinho, você vai ver...
– Ela não está mais à venda porque eu comprei...! – Ivan diz e eu paraliso em
seus braços.
– Você está me dizendo... – sento na cama me cobrindo com as cobertas. – Que
você comprou a casa... a sua casa... pra nós?!
– Sim! – exclama com o mais encantador dos sorrisos. – Comprei a minha
casa de volta e ela agora é nossa!
Eu me agarro a Ivan tão feliz que não consigo dar conta de expressar. Meu
Deus! A felicidade não cabe em mim! Estou abraçando-o e cobrindo todo o
seu rosto de beijos.
– Shiuu! – ele me silencia com o indicador. – Quer que o seu pai descubra por
onde sua filhinha anda passeando, à noite, antes do casamento?
– Passeando, não... – aponto meu dedo indicador para ele. – Explorando...! –
o abraço de novo e exploro a sua boca em um beijo apaixonado e feliz.
Era uma vez uma menina que se apaixonou e hoje é a mulher mais feliz desse
mundo. Simples assim. Como nos livros de romance que eu adoro ler.
Explorar o novo. Reviver o passado.
Podem ser duas faces de uma mesma moeda.

♫♪

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Capítulo Quarenta e Seis


As promoções de final de ano estão a todo vapor. Lojas em liquidação atraem
os clientes como formigas ao açúcar. Mesmo com a crise que o país enfrenta,
o shopping está apinhado de gente.
A decoração verde e vermelha assim como a figura do Papai Noel, presentes
em todo o lugar, atraem as crianças e fazem das festas de fim de ano uma
época singular, tamanha a sua magia.
Entro no estacionamento com várias sacolas nas mãos e guardo tudo com
cuidado no porta-malas. Vários itens de cama, mesa e banho estão dentro
delas para serem lavados e guardados na minha casa nova.
O tempo começou a esquentar e eu ligo o ar condicionado assim que dou a
partida no carro. Há muito que ser feito até o meu casamento no início do ano
que vem. Os móveis de quarto estão chegando essa tarde e estou apressada
para chegar a tempo de acompanhar a entrega e o trabalho do montador.
Ivan está em um período de muito trabalho no estúdio. A banda tem se
apresentado cada vez mais e o sucesso dela está em todas as paradas. Estou
muito orgulhosa e também muito feliz, diante da proporção que o trabalho
deles está tomando.
A casa está simplesmente linda após a reforma. Tem somente um andar e um
grande terraço em cima. No quintal da frente, optamos por manter a grama com
os canteiros que dona Helena, a mãe de Ivan, cultivava no passado.
Contratamos um profissional de jardinagem que fez um excelente trabalho, ao
reconstruir o espaço com flores lindíssimas.
A varanda da frente é pequena, mas os cômodos do imóvel são grandes. A sala
já está bem aconchegante com todos os móveis claros, a cozinha super
funcional e personalizada, e o banheiro clássico com a banheira que Ivan tanto
ama.
Ficaremos com a única suíte da casa e faremos os outros dois amplos quartos
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em escritório e quarto de hóspedes, respectivamente.


A varanda dos fundos é um pouco maior, pois mede toda a extensão da casa.
Há uma piscina pequena nos fundos e um canil. Uma escada de frente para a
porta do canil leva ao terraço coberto que ocupa toda área da casa. Fizemos
um espaço ao lado do banheiro para churrasqueira e uma pia grande.
Do lado direito da casa, há uma garagem grande que termina onde a escada do
terraço se encontra. Os muros agora estão altos e com proteção contra roubo.
Linda. Minha casa está linda! E eu, em estado de graça.
Estaciono em frente ao portão e é com surpresa que encontro Ivan, instruindo
os entregadores onde devem descarregar os móveis.
– Oi, amor... – beijo seus lábios rapidamente, colocando as sacolas em cima
da mesa da sala. – Pedi a Bianca que recebesse para mim caso não
conseguisse chegar a tempo...
– Tive uma trégua no trabalho e vim ver de perto como vai ficar nosso ninho
de amor... – ele me enlaça pela cintura. – Mas que beijinho mais sem graça foi
esse? – ri e me beija um pouco mais demoradamente.
– Ocês guardem esse fogo pra mais tarde... – Bastiana vem entrando com
garrafas d’água e copos.
– O que é isso, Tiana!? – Ivan ri e afunda o rosto no meu cabelo.
– Oxe!!! – ela exclama indignada. – E ocês acham que eu sou alguma velha
caduca, é?! Ara! Só o doutor não sabe que a menina Francine vive errando a
porta do quarto!
Estamos gargalhando com Bastiana e eu penso no esforço que meu pai deve
fazer para fingir que não sabe que eu durmo no quarto de Ivan todas as noites.
– E tratem de ir lá que os homi estão esperando... – deixa as garrafas d’água e
sai, nos deixando às gargalhadas.
– Viu só?! Está mais do que na hora de casarmos! – Ivan diz me soltando e
pegando a garrafa e os copos. – Até a Bastiana já sabe o que fazemos todas as
noites!
– Fazer o que se meu noivo tem andado muito assanhado! Ainda bem que as
aulas acabaram porque eu tinha que me controlar para não rir da sua cara
decepcionada por não poder se aproximar muito de mim... – rindo, pego as
sacolas com as compras; e o acompanho.
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– Deus é pai! Era uma perdição ver você naquele maiô! – diz alto.
– Ivan! – eu fecho meu rosto, indicando com o queixo a presença dos homens
no quarto e morro de rir em seguida da careta que ele faz.
– Você é uma perdição mesmo... – ele me enlaça de novo mesmo com garrafa e
os copos nas mãos; e me beija rapidamente. – Mas é minha.

Minha formatura na escola foi bem simples. Tivemos uma colação de grau e
uma festinha para os familiares e poucos amigos. Eu nunca gostei muito de me
sentir o centro das atenções, então, estava doida para tirar a beca e o capelo e
saltar os dias para saber o resultado do vestibular. Se tudo corresse como o
esperado, eu poderia começar o curso de Jornalismo antes mesmo do
casamento.
A solenidade, porém, teve uma importância grande para a minha família, já
que a filha caçula estava se formando no colégio. Respeitei todas as regras
sociais de sorrir, abraçar, beijar bochechas, agradecer, suportar o salto alto e
tirar fotos. Aff. Muitas fotos.
Estou embalando alguns presentes para essa noite. É véspera de Natal. Mas
estou mesmo é pensando na viagem que eu farei com Ivan no Ano Novo. Será
nosso primeiro réveillon como um casal; e eu estou muito ansiosa para que
tudo dê certo. Vamos romper o ano só nós dois, na região dos lagos, numa
cidade linda e paradisíaca.
Meu pai não está nada confortável com essa lua de mel antecipada, mas minha
mãe conseguiu convencê-lo de que os tempos são outros e que ele precisa
acompanhar a modernidade. Ele discursou mais algumas vezes sobre como a
modernidade está moderninha demais para o gosto dele, mas depois desistiu.
Nada a declarar. Ele anda reclamando de tudo ultimamente e com os mesmos
maus hábitos no que diz respeito a sua saúde. Já o presenciei diversas vezes
com a mão do peito, franzindo o rosto por causa da falta de ar.
Termino de embrulhar os presentes e desço para encontrar a minha família na
sala. Meu vestido vermelho é lindo, com um decote em V e costas nuas. A
mesa da sala está um luxo e muito farta. Todo ano Bastiana prepara suas
iguarias natalinas maravilhosas e eu engordo uns cinco quilos só comendo
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rabanada.
Ivan está na varanda da frente falando em inglês ao celular. Eu estranho e
procuro me aproximar de forma silenciosa para prestar atenção à conversa.
Ele parece tenso e um tanto quanto desconfortável.
– Thank you, Mr. Robbins. I’m so happy with this big news. I’m thrilled to be
into it by all means! – quando me vê, a tensão e o desconforto se acentuam
ainda mais e parece querer finalizar o assunto. – Ok. Ok. Thanks. Thank you so
much! Talk to you later! – desliga sem mais delongas.
Estou parada na porta da varanda olhando para ele. Ivan parece incomodado
com algo mais nada diz. Eu também acho melhor não perguntar. Não quero
parecer invasiva demais. Se quiser e for realmente importante, vai me dizer.
Ele caminha em minha direção e abre um sorriso.
– Meu amor! Uau! Como você está linda! – sou abraçada por ele e sinto a
rigidez dos seus músculos.
O que será que aconteceu? Quem é o senhor Robbins? E que notícia ele pode
ter dado para que Ivan se sentisse tão feliz e honrado? E se está tão feliz,
porque não compartilha comigo? Por que está tão tenso?
Eu não sei...
Mas o silêncio está me corroendo por dentro. Algo me diz que não é uma coisa
tão boa e tão feliz assim. Pelo menos, não para mim...
Noite feliz? Nem tanto...
Papai Noel me presenteou com o mais incômodo dos presentes.
Uma pulga atrás da minha orelha.

♫♪

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Capítulo Quarenta e Sete


O caminho que nos leva à região dos lagos é lindo demais. A serra nos
presenteia com um verde exótico e, em alguns trechos, me sinto como se
estivesse dentro de um túnel, tamanha a complexidade da vegetação que se
entrelaça de um ponto a outro da estrada.
O som está ligado e eu cantarolo, acompanhando uma música internacional que
está tocando. Ivan, ao volante, não tira a atenção da pista e eu uso a ponta dos
meus dedos para acariciar a parte de trás da sua cabeça, entrelaçando seu
cabelo nos meus dedos. Ele adora quando faço isso. Vez por outra, pousa a
mão na minha perna ou faz alguma observação sobre a estrada, mas eu sinto
que algo o está incomodando.
Paramos o carro em um ponto lindo da estrada. A vista é linda do alto. Uma
lagoa está se apresentando para nós com o seu azul celeste rico em beleza.
Tiramos algumas fotos e ficamos mais algum tempo, contemplando a paisagem.
O vento batendo no rosto e uma paz invadindo a alma. Estamos nos
distanciando de tudo e aqui não há espaço para mais nada além de viver esse
amor que só faz crescer a cada dia.
Lanchamos logo adiante, em uma dessas lanchonetes enormes de beira de
estrada que servem de parada obrigatória para ônibus de turismo; e onde há
sempre pastéis maravilhosos e um pão com linguiça daqueles que só de falar,
enchem a boca d’água.
Eu me lembro, agora, da semana passada: Enquanto arrumava algumas coisas
em caixas, para levar para a minha casa nova, encontrei um álbum meu de
infância, em que Ivan está na maioria das fotos. Os cabelos eram escuros e os
olhos verdes, exatamente como agora. Mas ao contrário do corpo atlético de
hoje, era um menino franzino demais. Estava sempre sorrindo nas poses,
exibindo o seu troféu: eu.
Desde pequenos, nós nos amávamos. Nós nos amávamos muito! E o ciúme me
corroia quando ele aparecia com uma nova namoradinha. Eu fazia de tudo para
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acabar com a relação e quase sempre conseguia fazer isso saindo isenta de
culpa. Mas nem sempre eu tinha tanta sorte. E ele, como diz Bastiana, ralhava
comigo e me deixava uma semana sem doces.
Estou sorrindo com a lembrança e Ivan me olha com curiosidade. Não posso
deixar de comparar aquele menino com o homem que está ao meu lado.
– Do que está rindo? – pergunta curioso.
– Lembra quando eu atrapalhava seus romances e você descobria? – cubro a
boca com a mão e começo a rir de verdade.
– Se lembro! – ele ri também. – Eu não levava você no parquinho por uma
semana!
– E cometia a crueldade de me deixar sem doces! – levanto o indicador e falo
com tom indignado.
– E você acha muito?! – seu riso passeia de bem humorado para malicioso. –
Se bem que você cresceu e meus castigos não adiantaram muito, né?
– Você se refere ao seu projeto de romance com aquele projeto de professora?
– digo desdenhosa. – Você devia me agradecer! Eu livrei você da maior
enrascada da sua vida!
Ivan dá uma risada, enquanto acaricia meu rosto. A seguir, pressiona meu
queixo com a mão e o balança de um lado para o outro.
– Garotinha... Garotinha! – diz maroto. – Você merece todos os doces por isso!
– ri. – Por falar em doces, já está tudo certo com o buffet de Dona Vanda?
Fechou com ela?
– Sim, tudo certo! Ela vai fazer um desconto especial para gente no pacote que
inclui o bolo, doces, salgados... Enfim, tudo o que ela sabe fazer de melhor. –
solto um suspiro. – Ivan, nós precisamos definir nossos padrinhos...
– Ué?! – ele me olha assustado. – Isso não é coisa para as mulheres
decidirem?
– É claro que não, Ivan! Ahh, homens! – levanto as mãos e ele ri.
– Pensei que você escolheria pra mim... – olha para mim rapidamente e volta a
sua atenção à estrada.
– Ok. Vamos lá! – suspiro alto. – Você tem bastante amigos, mas eu acredito
que não exista ninguém que seja tão próximo quanto o Alex... Então, posso
ceder meu irmão pra você.
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– Fechado. – diz sem me olhar.


– Eu fico com a Soninha e o Nando... – fixo minha atenção em um ponto
qualquer do painel do carro, reflexiva. E me volto para ele. – O problema é:
quem será par de Alex? Bianca ou Julia?
– Me inclua fora dessa!!! – Ivan exclama, soltando uma gargalhada. – Eu
sabia que ia sobrar pra mim!
– Ivan! – eu o repreendo, cruzando os braços.
– Amoor... – ele aperta minha perna. – Psiu... olha para mim... – eu o olho
emburrada. – Por favor... decida pra mim!
Quem pode com ele? Quem pode com Ivan? Não consigo controlar meu riso
ao ver a sua cara de cachorro que acaba de cair da mudança.
– Está bem! – sacudo as palmas das minhas mãos.
– Eu sabia que podia contar com você! – fala ainda sorrindo.
– Podemos colocar dois casais de cada lado, então... – sugiro. – Alex e Julia.
Bianca e algum outro amigo seu. O que acha?
– Eu não sei como consegui viver sem você por tanto tempo! – ele me beija
rapidamente. – Perfeito! Eu te amo!
Quando chegamos à pousada, já passava das duas da tarde. Ainda não
tínhamos almoçado, mas estávamos ansiosos para irmos à praia. A virada do
ano seria na noite do dia seguinte e tínhamos cinco dias para aproveitar.
Resolvemos comer peixe em algum quiosque na praia para não perdermos a
tarde de sol. O mar está calmo e convidativo. Caminhamos de mãos dadas até
a areia e escolhemos um local para sentarmos. Um funcionário do quiosque
vem rapidamente nos atender e abrir o guarda-sol.
Almoçamos um peixe maravilhoso e curtimos o mar como nos velhos tempos.
O violão nos serve de companhia depois que pagamos a conta e sentamos na
areia, próximos às pedras, para ver o pôr do sol.
Não há ninguém próximo a nós e Ivan começa a me tocar com intimidade.
Estamos deitados na areia e sinto sua excitação em minha perna quando ele me
abraça. É hora de voltarmos para a pousada.
Passamos todo o fim de tarde e o começo da noite, muito ocupados com o
amor que sentimos um pelo outro. Estamos à vontade nesse paraíso para nos
expressarmos sem o receio de sermos flagrados por um pai nada moderno.
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Não que isso nos importe. Mas não queremos criar atritos em uma casa que
não é mais nossa. Falta pouco. Muito pouco para vivermos uma vida juntos e
termos toda a privacidade que tanto desejamos.

Os fogos de artifício estão riscando o céu. Ivan me abraça apertado e me beija


demoradamente. Há muito barulho em volta, mas nós não nos importamos com
a plateia.
– Feliz ano novo, garotinha... – ele diz próximo ao meu ouvido.
– Feliz ano novo, amor da minha vida! – e eu retribuo seu beijo.
Ivan sente o celular vibrar no bolso e lê a mensagem, trincando os maxilares.
– Vamos embora... – diz muito sério, me puxando em direção ao calçadão.
Eu acompanho seu andar apressado, desviando das pessoas com passos
trôpegos e, quando enfim, chegamos até o carro, tremo da cabeça aos pés. Ivan
me segura pelos ombros e me olha transtornado.
– O que houve?! – pergunto quase gritando, assustada. Ou melhor, apavorada.
O que poderia nos tirar de uma viagem como essa? Em uma hora como essa?
Estamos a muitos quilômetros de distância! Só algo muito grave pode ter
acontecido...
– Seu pai... – Ivan revela de uma vez.
– O que tem meu pai?! – grito com lágrimas já brotando dos meus olhos.
– Foi internado no hospital. – aperta meus ombros.
– Ele está bem? – pergunto num fio de voz.
– Está entre a vida e a morte...
Vida. Morte.
Dois reveses do meu jogo de cartas.
Eu junto o baralho e coloco sobre a mesa invisível.
Não quero mais jogar.

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♫♪

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Capítulo Quarenta e Oito


Já está quase amanhecendo quando entro feito um furacão pelo hospital. Meu
corpo todo está tremendo e eu não consigo pensar em mais nada a não ser no
bem-estar do meu pai. Ivan me segue muito nervoso também e encontramos
minha família no saguão.
– Onde ele está? – seguro Alex pelos ombros. – Eu quero ver meu pai! – novas
lágrimas estão brotando dos meus olhos.
– Calma... – meu irmão me ampara. – Ele voltou para a sala de cirurgia...
– Por quê?! – grito com meu irmão. – Por favor, Alex, vá até lá! Não deixe que
ele morra! Não deixe que ele morra! – agarro as mangas da sua camisa,
desesperada.
– Filha, se acalme... – minha mãe se aproxima e me segura pelos ombros. –
Vamos aguardar que a cirurgia acabe. Seu irmão não é autorizado a
acompanhar.
– Mas por que ele precisou ser operado?! – procuro entender a situação.
– Nosso pai teve um acidente vascular cerebral hemorrágico. – Alex começa a
me explicar. – Isso quer dizer que um vaso sanguíneo se rompeu e a equipe
que está lá dentro está tentando retirar o sangue de dentro do cérebro dele,
entendeu?
Balanço a cabeça afirmativamente e abraço o meu irmão. E agora? A única
coisa que podemos fazer é esperar. E torcer para que tudo corra bem na
cirurgia e que meu pai possa se recuperar.
Minha mãe beija minha cabeça e volta a se sentar ao lado de Bianca e seu
ficante. Se não me engano, esse ainda é o mesmo. O tal do Henrique. Por
causa do ano novo, estamos todos vestidos de branco, mas sinto como se
fizéssemos parte de uma grande colônia de médicos que cheiram à morte.
Sinto um arrepio assustador.
Meu pai sempre foi tudo para mim. Ele foi pai, mãe, conselheiro, amigo, o
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meu porto seguro. Com o apoio de Alex e Bastiana, ele foi o grande
responsável pela minha educação. Não há um só momento de minha vida em
que não estivesse presente para compartilhar da vida que se abria para mim. E
agora, vê-lo nessa situação, correndo risco de vida, é demais para minha
cabeça!
Ivan me segura pelos ombros e eu solto Alex para me aconchegar nos braços
dele.
– Mantenha a calma. Tudo vai dar certo. – acaricia minha cabeça, enquanto eu,
fungo, desolada.
– Ele sabia que estava fumando demais! – Bianca é a única com
coragem de cuspir a verdade.
– Bianca, minha filha... Não é hora para críticas! – minha mãe a
repreende. – Elas não são bem-vindas!
– Mas eu estou dizendo alguma mentira?! – minha irmã se defende.
– Não está. Mas esse tipo de comentário não vai resolver a situação...
– Alex diz se sentando.
Henrique abraça Bianca pelos ombros e eu sinto algo diferente nesse
abraço. Esse rapaz dá a minha irmã um tipo de apoio que ela realmente
precisa. Ela é uma garota problemática, mal resolvida, que cria uma casca de
proteção à base de arrogância e ressentimento. Acho que no fundo ela sempre
se sentiu tão rejeitada quanto eu, ou até mais... E a amargura fez morada nela.
– Meu Deus, está demorando demais! – mamãe diz se levantando e
caminhando de um lado para o outro.
– É assim mesmo, mãe! O quadro do meu pai é grave. O AVC hemorrágico é
mais raro e requer mais cuidados. – Procure manter a calma... – dá um abraço
nela.
É nesse momento que o médico responsável pela cirurgia chega com uma
expressão cansada, mas aparentemente calma. Todos nós nos sobressaltamos
com a sua chegada, mas ele nos tranquiliza com as palmas das mãos.
– A cirurgia do Dr. César correu muito bem. – nós todos suspiramos alto, de
puro alívio, e eu abraço Ivan.
– E o prognóstico, Dr. Rogério? – minha mãe pergunta.
– Não podemos afirmar nada ainda, D. Lúcia. Vamos esperá-lo acordar para
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avaliarmos as consequências que podem ter ocorrido com a ruptura do vaso. –


Dr. Rogério explica. – A partir daí é que vamos poder direcionar o tratamento
adequado para reabilitá-lo.
– E esse tratamento inclui exatamente o quê? – minha mãe continua a fazer as
perguntas cabíveis.
– Bom... – parece procurar as palavras mais apropriadas ao entendimento
dela. – Cada tratamento é adequado mediante as particularidades de cada
paciente, mas de um modo geral, englobam fisioterapeutas, fonoaudiólogos e
até mesmo uma equipe de enfermagem e terapia ocupacional. – suspira. – Mas
como eu disse antes, cada caso é um caso. Tudo vai depender das possíveis
sequelas que o Dr. César pode vir a apresentar.
– Se fizermos tudo certinho... – minha mãe está embargada. – Poderemos ter o
meu César de volta?
– Mãe, meu pai está vivo! – Bianca diz alto.
– Mas não é mais o mesmo, Bianca! – minha mãe rebate. – E o Dr. Rogério
entendeu perfeitamente o que eu quis dizer!
– Sim, D. Lúcia... O Dr. César tem grandes chances de recuperar toda e
qualquer habilidade que possa vir a ser comprometida nos primeiros meses de
tratamento. – pigarreia. – Por isso a mudança no estilo de vida dele deve ser
de suma importância para sua recuperação.
– Ele já está fora de perigo, Dr.? – pergunto.
– Sim. Vocês já podem ficar tranquilos. Está tudo sob controle agora. Ele será
mantido em observação nesse pós-operatório e em breve, poderão vê-lo. –
coloca as mãos nos bolsos do jaleco. – Minha recomendação agora é que
procurem descansar. Quando ele sair daqui, vai precisar muito de vocês.
Ouço essas palavras como se estivesse levando uma facada no peito. Meu pai.
Meu paizinho. O homem que a vida toda foi o esteio de nossa família. Aquele
que nos amparou e protegeu. Será que ele merece viver dependendo de outras
pessoas para sempre? Sem ao menos conseguir escovar os dentes sozinho?
Sem conseguir se mover ou falar? Não, ele não merece.
E eu não acho nenhuma graça da vida. Ela está pregando a mais cruel das
peças em todos nós.
E parece se divertir.

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Mas eu não vejo nenhum motivo para rir.

Meu pai voltou para casa, abatido, após os dias em que esteve internado. Um
de seus braços está paralisado e ele não tem qualquer sensibilidade nesse
membro. A fala está um pouco arrastada, mas a fonoaudióloga nos
tranquilizou, dizendo que o prognóstico linguístico é muito positivo.
O que mais me deixa apreensiva é o fato de vê-lo apresentar uma tristeza tão
incomum a sua natureza alegre. Ver-se preso a uma cadeira de rodas está
deixando-o visivelmente deprimido.
A sua rotina está sendo toda adaptada e eu ajudo como posso. Novos hábitos
alimentares foram aderidos e ele agora começa a parecer mais corado. Como
diz Bastiana, quando ocê não para pra viver, a vida te para. E foi o que
aconteceu com meu pai. Tanto trabalho, tanto tempo dedicado a salvar vidas, a
levar o sustento para nossa casa... Para no fim das contas, a vida rir da sua
cara e pará-lo sem carta de aviso. Ou não.
Os avisos vieram na forma de cansaço, dores, tosses e cafezinhos. Oh, meu
pai! Por que não nos escutou! Quanto sofrimento podia estar sendo evitado!
Por outro lado, a minha surpresa vem da minha mãe. Extremamente dedicada
ao meu pai, está à frente de tudo: exames, cuidados com sua higiene,
alimentação, tratamentos, medicação... Tudo o que diz respeito ao seu conforto
e ao seu bem-estar é sempre a prioridade dela e isso tem me dado muito
orgulho da pessoa que ela se tornou.
Ivan e eu continuamos os preparativos para o casamento, mas algo mudou na
gente e eu não sei precisar exatamente o quê. A doença do meu pai nos afetou
de um jeito muito esmagador. Nossos assuntos passam rapidamente pelo
casamento e se assentam em torno do meu pai. Quem entraria na igreja
comigo? Como faríamos? Não seria melhor alguém ir empurrando-o na
cadeira até o altar ao meu lado? Muitos questionamentos e nenhuma resposta.
Tudo mudou. Tudo.
Eu ainda fujo para o quarto de Ivan à noite, mas quase sempre o cansaço nos
domina e dormimos quase instantaneamente. Não tivemos nenhum contato mais
íntimo desde a nossa viagem, há quatro semanas.
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O resultado do vestibular veio a galope, mas em meio aos nossos dias


corridos e sofridos, eu recebo a notícia de que fui aprovada no curso de
Jornalismo em décimo terceiro lugar. Ivan está feliz, mas a minha velha
sensação de que algo não está certo me domina. Desde a noite de Natal que
algo está muito... muito errado.
Essa noite, nós vamos comemorar minha aprovação jantando em um
restaurante caro da cidade. Estou com um vestido azul que me cai muito bem e
sandálias de salto alto. Como sempre, Ivan me elogia e sentamos para comer.
Pela primeira vez, em dias, parecíamos o casal apaixonado de casamento
marcado para daqui a três semanas. Bebemos vinho e rimos das nossas
aventuras juntos.
Ivan é meu chão. É o alicerce que sustenta a minha vida. O que eu faria sem
ele? Esses momentos em que rimos e deixamos os problemas de lado, só me
provam o quanto sou dependente dele.
O desconforto volta a abater as feições de Ivan e ele toca minha mão sobre a
mesa.
– Ivan... – procuro seus olhos e eles deixam-se encontrar com os meus. – O
que está acontecendo? Sei que algo está acontecendo com você e que não tem
nada a ver com o meu pai... – dou uma pausa e ele bufa. Um gesto nada
educado, mas uma expressão viva do quanto está atormentado. – Por que não
confia em mim?
Ivan está me olhando agora, com os olhos comprimidos. O tempo parece parar.
Por que tenho a estranha sensação de que não vou suportar o que ele tem a me
dizer?
– É que... – engole em seco.
– Ei... – eu o incentivo. – Fale! O que está te incomodando?
– O Paul Newton... – parece andar em cima de ovos.
– Sei... o cantor. O que tem ele? – pergunto já impaciente.
– Ele vai gravar uma de minhas músicas. – diz sério. – O Sr. Robbins, agente
da companhia musical do cara, me ligou para dizer que querem fechar contrato
comigo...
– E você me diz isso assim?! – meu rosto se ilumina. – Meu amor! Isso é
ótimo!

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– Não, Francine... Não é bem assim. – trinca os maxilares como de costume. –


O contrato também solicita meus serviços empresariais...
– E? – não consigo alcançar aonde ele quer chegar.
– E isso requer exclusividade a ele por dois anos, organizando e limpando o
chão que o cara pisa! Eu teria que voltar pro exterior...
Placas de terra estão se abrindo sob meus pés. O que tudo isso significa? Que
ele está me deixando? Que ele vai embora sem olhar para trás? Um nó se
forma em minha garganta e eu sinto uma pequena vertigem. Não me sinto nada
bem.
– Francine... – Ivan toca a minha mão e eu puxo a minha com violência. – Você
está bem? Preciso que me escute, eu...
– Você está terminando comigo, é isso? – estou chocada, o encarando.
– Claro que não, Francine! – ele diz um tom acima e várias pessoas que estão
nas mesas ao nosso redor nos olham.
– Então seja mais claro... – digo entre os dentes e cruzo meus braços tentando
manter meu foco. Estou muito tonta.
– Eu estou tentando propor que você venha comigo... – sorri encabulado.
– Eu? Ir com você?! – estou rindo, mas é de ironia.
– É! A gente casa e você vai comigo... – ele diz.
– Você não acha que o que está me pedindo é um pouco demais? Meu pai está
em uma cadeira de rodas e você quer que eu vire as costas para isso e vá
embora para outro país?
– Meu amor, são só dois anos! – junta as mãos. – Você fala tão bem inglês...
Vai passar rapidinho. Podemos usar esse dinheiro para ter uma vida muito
mais confortável do que já temos!
– Ambição nunca foi meu forte, Ivan! E você está sendo além de ambicioso,
egoísta! – estou profundamente magoada. – E a minha faculdade, meus
projetos, nossa casa, nossa família? Meu pai precisa de nós, Ivan!
– Meu amor, eu não estou sendo ambicioso! É uma das maiores oportunidades
da minha vida! Será que não está enxergando isso? É o nosso futuro! Posso
ganhar muito mais em dois anos do que você a vida inteira como jornalista.
Eu sinto meu rosto arder. O impacto de suas palavras dói mais do que um tapa.

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Quem é esse Ivan? Não conheço esse homem que está a minha frente; esse
homem que só pensa em si mesmo; esse homem que menospreza a profissão
que eu escolhi para mim; que ignora as necessidades da família que o abraçou
a vida inteira! Não! Definitivamente não! Não há amor que resista a tanto
egocentrismo!
Meu amor próprio, guardado em uma caixinha há meses, escala as paredes do
meu ser e salta dos meus olhos. Não há lágrimas, nem lamentos nem
questionamentos.
– Você não merece que eu responda o que acaba de me dizer... Vá ganhar o seu
dinheiro e... seja feliz com ele! – pego a bolsa em cima da mesa e saio do
restaurante ganhando a rua sozinha.
Isso é uma despedida. Volto daqui a dois anos, cheio de dinheiro do bolso e
sem o seu amor.
Isso é uma despedida. Estou indo embora como eu sempre faço. Vou virar as
costas para única família que tenho e para a mulher que digo amar.
Isso é uma despedida. E eu nunca vou te perdoar, Ivan. Nossa história acaba
aqui. O baralho foi queimado e não há mais cartas para serem lançadas.
Game over.

♫♪

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Capítulo Quarenta e Nove


Minha aliança de noivado está sobre a mesinha de canto em meu quarto. Não
saio dele há três dias, mesmo Ivan tendo tentado conversar comigo. Não há o
que ser dito. Nada justifica a forma como ele abordou aquele assunto tão
difícil. Egoísta. Sim, um egoísta e machista!
Ouço uma batida à porta e escondo a cabeça sob o travesseiro. Não quero
falar com Ivan, não quero falar com ninguém. A menina Francine tomou conta
de mim. Sou uma criança mimada e profundamente contrariada. Eu só quero
minha casa nova, minha faculdade, o meu casamento, o meu antigo amor
perfeito de volta...
– Francine... – a voz de Alex chega aos meus ouvidos.
– Alex, me deixa ficar sozinha... – digo sem levantar a cabeça. – Por favor...
– Eu posso até deixar você ficar sozinha, mas não sem antes entregar isso... – a
curiosidade me faz levantar a cabeça e me deparar com um envelope nas mãos
dele. Uma carta? Para mim?
Sento na cama, tentando controlar a ansiedade e pego o envelope da mão do
meu irmão. Estou encarando-o com uma expressão de interrogação.
– O Ivan cansou, Francine! O Ivan cansou de tentar conversar com você e não
dar em nada. O Ivan cansou...
Eu sinto meu corpo gelar. O que meu irmão quer dizer com isso? Rasgo o
envelope com rapidez e nervosismo porque sei que a resposta para essa
pergunta está dentro dela. A caligrafia de Ivan está impressa em cada linha,
marcando seu cansaço pela minha infantilidade.
Francine, não há mais nada que eu possa fazer para mudar o que aconteceu.
Você não me permite. Peço perdão por todo esse sofrimento que estou
causando a você. Não posso obrigá-la a compreender o meu trabalho, assim
como não posso menosprezar o seu, sinceramente, me perdoe.
A casa ao lado é sua. Está em seu nome. Fique com ela em nome de tudo o
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que vivemos juntos. Não deixe que a memória dos meus pais volte a morrer
naquelas paredes.
Meus projetos estão encaminhados aqui e eu partirei para os dois anos da
grande oportunidade que me aguarda. Não serei feliz com o dinheiro, mas
sim com a lembrança de ter tido você em meus braços.
Eu sempre vou amar você, de uma forma ou de outra.
Até um dia, Ivan.

Até um dia, Ivan. Até um dia. Um dia? Ivan! Como assim um dia? Não... O que
estou fazendo da minha vida? Pra onde vai o meu orgulho e a minha
imaturidade? Onde está a minha razão?
Não posso deixá-lo partir! Não posso! Ou... Eu posso ir! Sim, eu posso ir!
Não estou virando as costas para o meu pai... Há pessoas cuidando dele e tudo
o que ele não quer ser é um peso para ninguém, muito menos para mim. Ele
nunca me perdoaria se soubesse que deixei de ser feliz por causa dele...
Posso trancar a faculdade, posso fechar minha casa, posso casar em qualquer
lugar... Mas será que posso fazer o amor da minha vida voltar para mim?
Não, Ivan... Não se despeça, Não é o fim. O jogo não acabou. Eu estava
blefando. Volte para mim!
Aperto a carta de encontro ao peito e minhas lágrimas continuam caindo,
descontroladas.
– Você perdeu a sua razão, minha irmã... – suspira. –Você perdeu quando se
isolou nesse quarto, se recusando a resolver o primeiro dos muitos problemas
de casal que teriam! – Alex toca a minha mão. – Você foi imatura e mimada,
Francine...! Muito imatura e mimada.
Eu seco um lado do meu rosto com as costas da minha mão e sinto uma dor que
não cabe dentro de mim. Dou um salto da cama e me sinto tonta por tanto
tempo sem me alimentar direito.
– Eu sou uma verdadeira idiota! – digo num sussurro. – Onde ele está?
– Já saiu com as malas. O voo dele é à tarde. – meu irmão continua a me olhar
como se dissesse Vai ficar aí parada mesmo, idiota? e eu levo uns segundos
para entender o que devo fazer.
Nunca imaginei que duas cartas enviadas por um mesmo homem, mudariam
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tanto a minha vida...

Alex me deixa na porta do aeroporto e se despede de mim com um beijo na


testa. Aperto o papel com dados do voo de Ivan e corro pelo saguão com a
minha mochila nas costas. Ligo várias vezes para o celular dele e só deu caixa
postal. Só me resta correr, correr muito.
Burra, burra, burra! Como eu pude ser tão burra, tão idiota, tão imbecil?
Minha lista pejorativa sobre mim mesma não se esgota nunca. Quem não se
cansaria de uma tola, feito eu?
Corro o máximo que posso e alcanço a escada que dá acesso ao primeiro
andar. O embarque já deve estar sendo anunciado há dez minutos. Estou muito,
muito atrasada para impedir que Ivan embarque. Não vou deixá-lo partir sem
mim! Eu sou dele e ele é meu. Podemos fazer isso e muitas outras coisas
juntos. Nós podemos resolver qualquer problema se a criançona aqui não
bater o pezinho e chorar porque foi contrariada!
Não serei feliz com o dinheiro, mas sim com a lembrança de ter tido você em
meus braços.
Tento mais uma vez ligar para o celular dele e a secretária eletrônica atende.
Preciso correr até quase o fim do corredor, na plataforma 43. Meus pés nem
tocam o chão, tamanho é o meu desespero de chegar. Esbarro nas pessoas,
contorno obstáculos, peço desculpas, mas não paro de correr. E quando
finalmente chego à plataforma 43, estanco.
Eu sempre vou amar você, de uma forma ou de outra.
Outra forma.
Outra forma...
Essa é a outra forma de você me amar?
Levo a mão à barriga. Ela dói como daquela outra vez em que fui praticamente
colocada para fora da sala de acessórios de Educação Física da escola. Dói.
Não serei feliz com o dinheiro, mas sim com a lembrança de ter tido você em
meus braços.

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Ter tido você em meus braços... meus braços...


Nos braços... dele.
Braços que agora confortam os ombros de Norma, minha ex-professora de
Geografia e ex-namorada dele para o próximo embarque. Braços que já
possuem outro alguém para ter. Eu... não passo de uma lembrança.
Meu estômago está revirado. Estou curvada com a dor.
Mas dessa vez, não há plateia.
Não posso vomitar.

♫♪

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Capítulo Cinquenta
1º trimestre

Sou dominada pela escuridão e ela faz de mim um ser


que viaja no nada.

E eu me perco... no labirinto em que a única saída


existente desemboca
em um abismo.

♫♪

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Capítulo Cinquenta e Um
2º trimestre

Minha alma chora e, dessa vez,


ele não pode tocá-la.

E eu, em choque, me choco


contra a minha própria certeza
de estar aqui.

♫♪

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Capítulo Cinquenta e Dois


3º trimestre

Eu agora estou segura...


Porém, náufraga.

♫♪

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Capítulo Cinquenta e Três


Acabo de tomar um banho rápido e olho, desanimada, para a quantidade de
textos que tenho que ler para a entrega de um trabalho na próxima semana.
Meus livros estão amontoados na mesa do escritório e a minha rotina tem sido
tão puxada que não encontrei tempo ainda para organizá-los como gostaria. É
difícil administrar uma casa sozinha.
Depois que Ivan se foi, mudei para a casa ao lado, para a casa que foi dele,
para a casa que seria nossa. Trabalho, desde então, como designer gráfico,
fazendo lembrancinhas de aniversário, convites e todo tipo de material que
necessite de arte.
Caminho para o terceiro período da faculdade de Jornalismo e criei uma
página, na internet, chamada Doce Inocência. E é através dela que conto um
pouco da minha história, desabafando alguns dos meus dramas... Cheio de
flores, dores, sonhos e amores.
Sorte minha ter uma família e amigos como os meus. Soninha e Nando estão
noivos e de casamento marcado para daqui a três meses. Sou uma das
madrinhas. Nando já está na carreira militar e Soninha caiu de cara nas
Ciências Contábeis. Matemática sempre foi o forte dela, ao contrário de mim.
D. Vanda continua fabricando suas iguarias e, agora, me ajuda a divulgar o
meu trabalho nas festas que faz. Diz Soninha que ela anda de namorico com um
de nossos vizinhos divorciados e eu acho isso incrível.
Max foi campeão estadual esse ano em uma das modalidades de artes marciais
e André está estudando Engenharia Civil em uma das universidades mais bem
conceituadas do estado. E isso me orgulha demais.
João assumiu sua homossexualidade, fato que nunca foi segredo para nós, mas
que ele não se sentia confortável em revelar. Ele não tentou vestibular, mas fez
curso de cabeleireiro e está abalando em um salão da cidade. E isso também
me orgulha demais. Porque é preciso ter muita coragem e ser muito homem

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para sair por aí dando sua cara para o preconceito bater sem piedade. Eu bato
palma pro João! Esse sim, é homem de verdade! Porque assume o que é!
Meu pai está avançando muito bem em sua reabilitação. Com muita
fisioterapia já não usa mais a cadeira de rodas e caminha sozinho. Não aceita
mais ajuda para realizar as tarefas rotineiras como escovar os dentes, tomar
banho e se alimentar. Minha mãe é seu apoio presente. Sua fala está
recuperada quase que totalmente. O quase é devido a uma lentidão que, antes
do acidente, não era uma característica sua.
Na medida do possível, minha família se adaptou bem a todos os imprevistos
que nos atingiram. Bianca mudou para o apartamento do Henrique. Ela
terminou o curso de Moda e tem feito trabalhos lindos como estilista. Aos
poucos, minha irmã tem encontrado seu lugar no mundo e, como todos
percebem, Henrique tem grande participação nisso.
Alex e Julia continuam juntos; e ela... cada dia mais maravilhosa como
vocalista da banda. Já participaram de alguns programas de televisão e, pelo
que meu irmão anda dizendo, não deve demorar em emplacar uma de suas
músicas na trilha sonora de alguma novela de televisão.
O estúdio e a banda estão sob os cuidados de Marcos Paulo, amigo de Ivan
desde a infância e músico como ele. Agora são sócios e ele administra todo o
trabalho deixado aqui.
Meu cachorro, Pingo, está enterrado no meu jardim. Coloquei uma pedra
bonita de quintal em cima de sua sepultura, com o seu nome gravado com tinta
de artesanato. Um amigo que se foi quando eu não suportava mais tantas
despedidas...
E eu sigo com a ajuda de Bastiana, minha fiel escudeira. A maior e mais fiel
de todas as minhas amigas. Ranzinza como sempre, mas meu porto seguro e
minha fortaleza; a rocha que me sustenta de pé.
Solto um suspiro e lembro-me do rosto de Ivan em algumas revistas
internacionais que saíram na internet. Evito ao máximo procurar qualquer
informação sobre ele, assim como proibi qualquer pessoa da minha família ou
amigos de dar informações minhas a ele. Às vezes, chegam cartas suas, mas eu
nunca as leio. Estão guardadas em uma caixa na prateleira do escritório. O que
haveria nelas? Promessas? Mentiras? Ilusão?
Não, não me importa o que está escrito nelas. Não importa. Nada irá apagar a
visão dos seus braços sobre os ombros de Norma e a minha angústia de vê-lo
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partir sem olhar para trás.


Deixei aquele aeroporto com um grito preso na garganta, com uma dor na
barriga como se tivesse levado um soco, com o vômito querendo sair...
Passei esses longos onze meses tentando esquecê-lo. Mas ele está presente em
tudo. Tudo. Essa casa cheira a ele. Meu corpo cheira a ele... Tudo. Tudo o que
eu sou e faço têm a marca dele.
Estou com quase vinte anos, mas não mudei nada. Meu cabelo só está um
pouco mais curto graças ao trabalho lindo do João. E talvez tenha emagrecido
um pouco mais do que deveria também. O que não é muita novidade se
tratando de mim. Perco peso tão rápido quanto revido uma ofensa.
A campainha toca e eu ouço o portão bater. Passos se aproximam da varanda.
Quem será? Bastiana acabara de sair para ajudar minha mãe com as tarefas da
tarde.
O tempo parece parar e todas as coisas em movimento ficam congeladas no ar.
Como nos filmes da Bela Adormecida. Eu não sinto mais o chão sob meus pés
e meu coração deixou um espaço vazio dentro do meu peito ao sair pela minha
boca.
Meus olhos estão cravados em outros olhos. Olhos que tentam
desesperadamente desvendar os meus. Em uma espécie de súplica. Olhos que,
onze meses atrás, se desviaram dos meus.
Estou completamente muda. Muda. Segurando a porta com uma das minhas
mãos e a outra pousada sobre o portal. Meus lábios estão secos e, como de
costume, eu os umedeço com a língua. Agora, enxergo dentro do outro olhar
uma dor latente que brota das profundezas de sua íris. O tempo parece
retroceder e mesmo com toda a mágoa que habita em mim, desejo
ardentemente que o dono desse par de olhos tome a minha boca com a sua.
Ivan... Meu peito explode em multicores pelo ar e eu flutuo, sentindo um misto
de sentimentos confusos e cheios de contradição: alívio, raiva, alegria, mágoa,
decepção.
Ivan está parado à porta da casa que seria nossa, com mãos nos bolsos, me
fitando com uma intensidade que eu não consigo descrever.
Em meu delírio, levanto minha mão e alcanço seu rosto. Ele beija a minha
palma e me toma nos braços. E eu me encontro neles... Nos seus braços. E eu
ainda... quero. Eu o quero. Eu quero Ivan para mim.
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Você sempre vai ser minha garotinha e eu sempre vou te amar.


Será que você foi feliz com a minha lembrança? Será que isso bastou para
você? O que está fazendo aqui antes do tempo? O que aconteceu com o tempo?
Será que fiz as contas erradas e dois anos se passaram ao invés de onze
meses?
Pouco importa. A dor e a saudade se unem e se alastram como fogo em meu
ser.
No meu delírio, Ivan me abraça.
E toca minha alma com suas mãos.

♫♪

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Capítulo Cinquenta e Quatro


Pisco três vezes seguidas e estou de volta à realidade. Ivan está em pé, na
varanda, me contemplando. Suas mãos nos bolsos parecem dizer que ele veio
em paz. Ele aguarda um sinal meu, mas como eu continuo emudecida, quebra o
silêncio.
– Oi. – sua voz grave chega aos meus ouvidos como um bálsamo de conforto e
alívio. Ao mesmo tempo, há muitas verdades que caíram em meio ao vão que
se abriu entre nós.
– Oi... – eu o observo mais atentamente e posso sentir o abatimento em suas
feições. O que será que ele veio fazer aqui? Será que alguém seria capaz de
ligar para ele e falar sobre mim? Por que alguém faria isso? Quem se
intrometeria em um assunto tão delicado, onde tantas feridas estão abertas e
queimando, feito brasa?
– Como vai, Francine? – Ivan me pergunta com a voz embargada. Ele... Está
emocionado?
– Bem... – engulo em seco. – Eu estou bem... Eu... – continuo segurando a
porta com força. Sinto uma necessidade enorme de adiar esse encontro e tudo
o que virá como consequência dele. Será que estou pronta?
– Eu posso entrar? – ele me interrompe e eu pisco embaraçada. Termino de
abrir a porta e me afasto para que possa entrar. Ele se acomoda em um dos
sofás da sala e eu fecho a porta com chave. Não sei o que essa visita
representa, não sei por onde começar, o que dizer... Mas seja lá o que tiver
que acontecer; que aconteça logo. Temos mesmo muito que dizer um para o
outro.
– E, então... – tento aparentar tranquilidade na voz. Uma tranquilidade que eu
estou longe de sentir. Será que eu fechei a porta do escritório? Que escondi a
bagunça lá dentro? Que escondi meus sentimentos mais profundos? Que fechei
a caixinha de pandora?

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– A casa está linda, Francine... – parece emocionado. – Muito bem cuidada.


Eu sempre soube que você seria uma excelente administradora de um lar...
Lar. Ele disse lar e não, casa. Um lar. Era tudo que tínhamos sonhado juntos
para nós em cada um de nossos encontros à noite. Todos os nossos sonhos
estão impressos naquelas paredes e, saltam aos olhos dele, a desilusão de não
ter podido viver isso.
Mas e Norma? Onde ela está? A pessoa excêntrica, porém boa? Será que ela
sabe que ele está aqui? Será que ela o incentivou a deixar a menina mimada e
birrenta para ir embora com ela? Será que ela o motivou a deixar nossos
planos para trás?
– Obrigada. Eu faço o que posso... – sorrio totalmente sem graça. – A Bastiana
me ajuda, mas basicamente sou eu que cuido da casa, em meio aos estudos da
faculdade, aos trabalhos que faço em casa e com... – eu paro de falar e me dou
conta de que Ivan me observa atentamente. O que vejo em seus olhos?
Saudade? Arrependimento? Não consigo precisar. – Você... – levanto do sofá.
– Você quer um café? – pergunto para ter com que ocupar minhas mãos. E
também para aproveitar para me afastar dele e confirmar se tranquei a porta
do escritório.
– Aceito, sim. – ele também se levanta.
– Eu preparo num instante. Já volto... – digo isso para tentar impedi-lo de me
seguir, mas é inútil.
– Eu acompanho você... – Ivan diz e minha respiração está desestabilizada
completamente.
Passo pela porta do escritório. Ela está encostada, assim como a dos outros
quartos. Dessa forma, há uma barreira impondo os limites a ele. Sinto seus
passos atrás de mim e a sensação de calor familiar que emana do seu corpo.
Cada gesto meu está sob a mira dele e meu íntimo está em plena revolução.
Agradeço aos céus por ter onde pôr as mãos, caso contrário, duvido da minha
sanidade mental se elas estivessem desocupadas e eu me deparasse com a
combinação de olhos, boca, cabelos e maxilares perfeitos.
A água começa a ferver no fogo e eu preparo o pó de café para ser coado. O
silêncio predomina sobre nós e eu começo a me sentir intimidada. É hora de
embaralhar as cartas do novo baralho e distribuir a primeira rodada. O jogo
precisa recomeçar.
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– Conseguiu uma folga do trabalho? – pergunto pegando o pote de açúcar e


colocando-o em cima da bancada.
Em questão de segundos, sinto Ivan se aproximar por trás de mim. E quando
fala, sua voz roça meu cabelo.
– Por que não respondeu às minhas cartas, Francine? – meu coração está
batendo freneticamente descompassado dentro do meu peito e meu rosto
esquenta com a proximidade do seu contato.
– Eu... – pego uma xícara na bandeja a minha frente. – Eu não recebi carta
alguma. – minto.
– Não minta pra mim... – sussurra e eu sinto cada pelo do meu corpo se
arrepiar. Fecho os olhos e me calo. – Você me odeia tanto assim, Francine? –
sua boca está roçando meu cabelo e eu sinto minhas pernas começarem a
tremer.
– Eu não odeio você... – digo com os olhos ainda fechados e sinto suas mãos
tocarem a minha cintura.
– Eu escrevi cada uma daquelas malditas cartas esperando que você me
dissesse que me perdoava; que eu podia voltar... – sua boca continua roçando
o meu cabelo e quase toca meu rosto. – Eu liguei, deixei milhões de recados,
mas você quis evaporar com o vento... Quis ignorar que um dia eu fiz parte da
sua vida!
– Ivan, me solte... – seguro suas mãos em minha cintura e, isso só faz com que
ele cole seu corpo às minhas costas.
– Eu fui um idiota, mas estou aqui! Por que nada na minha vida faz o menor
sentido sem você... – roça a barba por fazer no meu rosto e eu sinto meu ventre
arder. – Eu te amo tanto, Francine... Tanto...
Ivan me vira para ele e me arrasta até a parede azulejada e fria da cozinha.
Suas pernas se encaixam entre as minhas e eu posso sentir toda a sua
virilidade de encontro a minha coxa. Já estou com o corpo todo ardendo com o
seu toque e ansiosa para ser amada por ele de novo.
Um beijo saudoso acontece e o mundo parece silenciar a nossa volta. Nossas
bocas se unem em um reencontro de amor guardado e desejo frustrado.
Eu sou dele. Eu me findo nele. Ele e eu. Ele.
Minhas mãos percorrem o corpo de Ivan sobre a roupa e expressam a minha
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urgência em ser desnudada, liberta, amada e inteira de novo. Inteira. Porque


sou só metade de mim longe dele. Só metade. E uma metade feita de vazio.
– Que saudade, minha garotinha...! – diz enquanto beija meu pescoço e roça o
corpo contra o meu. – Que saudade...!
De repente me dou conta de que vivi aqueles onze meses à espera de Ivan. À
espera da sua volta. À espera do seu beijo e do calor dos seus braços em volta
de mim.
Eu o amo. Eu o quero. E eu o desejo como nunca deixei de amar, querer e
desejar. Não consegui matar o amor e, tampouco, o amor me matou. Fiz dele
minha fortaleza para seguir em frente. Fiz dos meus erros e dos meus enganos
os degraus da escada que me levam à maturidade.
Erros e enganos esses que batem à minha porta, esperando que eu os revele.
Esperando que eu abra a porta e os desvende.
Ivan fica imóvel e aguça os ouvidos. Um choro alto de criança pode ser
ouvido próximo a nós. Eu o afasto com as minhas mãos e corro em direção ao
escritório. Ivan me segue e para na porta, me observando pegar a bebê no
carrinho e acalentá-la.
– Que criança linda... – ele diz pausadamente se aproximando devagar. Seu
olhar analisa o rosto da menina e a minha postura protetiva em relação a ela.
Há desconfiança nesse olhar. – Como é o nome dela? – sussurra e observa a
bebê choramingar, enquanto eu a embalo em meus braços.
– Helena. – meus olhos cravam os dele. Um lampejo de incredulidade neblina
suas feições e ele abana a cabeça.
– Você é a babá dela? – pergunta em um fio de voz.
– Não. – sussurro com os olhos marejados.
– Ela se chama... Helena? – Ivan me fita, com os olhos marejados como os
meus. – O que essa criança faz aqui, Francine? – seu rosto está tenso e posso
sentir sua respiração suspensa. Sua pergunta só quer uma confirmação. Porque
ele sabe! Ele já sabe!
Eu respiro fundo e tomo coragem para abrir a minha caixinha de pandora e
trazer à tona a verdade nua e crua que me corrói há onze meses; trazer o fruto
do nosso amor aos olhos do mundo; trazer a prova do meu silêncio
equivocado...

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– Ela se chama Helena porque é o nome da avó dela... E está aqui porque é
minha filha.
Eu abro a caixinha.
E a verdade se desvenda, agora...
... através dos olhinhos verdes de Helena.

♫♪

Continua...

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Agradecimentos
À generosidade de Rosenia Soares da Rosa, Marta Coutinho, Felipe Assis e Flávia Mattos;
Ao mundo linguístico particular de Michele Baroza, Lígia Rosa e Rebeca Lazara, a quem
devo a construção de alguns personagens;
À memória do meu pai Manoel, que leu o manuscrito original repetidas vezes;
À minha irmã Priscila pelo apoio de sempre;
À Priscilla Lazara, Maiara Laxe e mais uma vez à Rebeca Lazara, em que o entusiasmo,
incentivo e apoio foram imprescindíveis para que esse livro tivesse sido reescrito;
Ao músico Almeida Neto, que deu melodia à canção Doce Inocência, tornando palpável a
relação dos leitores com os personagens;
Ao Heleno Bezerra, por ajudar a tornar o inglês do protagonista adequado ao contexto;
Aos meus grandes incentivadores desde a versão original desse livro: Mário Lemos, Anallu
Mothé, Diva Elaine, Alessandra Negreiros, Alessandra Quintanilha, Angélica Moura,
Deborah Martina, Angela Lima, Kátia Regina, Robéria Ribeiro, Cristiane Carvalho e Dione
Costa (in memoriam);
Minha segunda versão não estaria sendo publicada sem o prestígio e igual incentivo de
Bruno Malhtus, Rodrigo Guedes, Camila Mariana, Ana Elisa Santos, Francieli Ribeiro,
Valesca Costa, Daniele Benevides, Kelly do Amaral, Fernanda Mara, Lu Boechat, Danielle
Lascolla, Margôt Karabin, Rafael Jorge Senna, Keli Amolinario, Elaine Chistofori, Daniele
Oliveira, Lorena Neves, Flávia Reis, Karina Silva, Daniele Branco, Roberto César, Fabiana
Brito, Lorimar Dornellas e Karlla Paiva.
E finalmente, meus agradecimentos sem medidas à autora Giovana Soares, por suas mãos
estendidas em meu auxílio e a todas as meninas que integram os fãs clubes FRANátic@s e
Destináticas. Muito obrigada!

♫♪

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A Autora
Nasci em 13 de novembro de 1979, no Rio de Janeiro. Desde pequena já demonstrava
interesse pela leitura e pelas artes. Cresci entre livros e com a televisão ligada.
Ainda lembro quando recebi o meu primeiro livro, na formatura da alfabetização: Eu sabia
ler! Era uma felicidade que não cabia dentro do peito.
Fui menina arteira...! Gostava de ser criança, de viver como criança... E entre uma arte e
outra, ler era a minha diversão favorita!
Minha primeira poesia surgiu aos onze anos, inspirada na paixão platônica de uma amiga,
que na época, era vista como moderninha. E quando fiz treze anos, uma colega de classe me
perguntou se eu gostava de ler. Eu disse que sim, pensando naqueles livros em série que as
professoras cobravam a cada bimestre como matéria de prova.
E qual não foi minha feliz surpresa ao me deparar com um romance: um livro
velho, sem capa, que eu só conseguia ler o nome na lombada. Eu pensei: “Ei, também posso
escrever algo assim!” Foi aí que peguei um caderno e Doce Inocência começou a surgir.
A partir deste momento, não parei mais! Escrevi poesias, peças de teatro, crônicas, contos,
histórias infantis e outros romances. Apaixonada por literatura, eu decidi cursar Letras e foi
através de um romance autoral, intitulado “Quando você chegou...”, que dissertei que
recebi meu diploma de Educação Superior.

E aqui estou eu, saboreando a publicação do romance Doce Inocência. Um sonho realizado!
Lu Muniz.
♫♪

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Contatos
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Facebook: Lu Muniz para Leitores
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