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Contos

Prof.ª Cristina Prates


• Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, Ucrânia, no dia 10 de
dezembro de 1920, veio para o Brasil em março de 1922, passou a
infância na cidade do Recife e em 1937 mudou-se para o Rio de
Janeiro, onde se formou em Direito
• Estreou na literatura ainda muito jovem com o romance "Perto do
Coração Selvagem" (1943), que teve calorosa acolhida da crítica e
recebeu o Prêmio Graça Aranha.
Em 1944, recém-casada com um diplomata, viajou para Nápoles,
onde serviu num hospital durante os últimos meses da Segunda
Guerra. Depois de uma longa estada na Suíça e Estados Unidos,
voltou a morar no Rio de Janeiro
Começou a colaborar na imprensa em 1942 e, ao longo de toda a
vida, nunca se desvinculou totalmente do jornalismo. Trabalhou na
Agência Nacional e nos jornais “A Noite” e “Diário da Noite”. Foi
colunista do “Correio da Manhã” e realizou diversas entrevistas para
a revista Manchete. A autora foi cronista do “Jornal do Brasil”.
Produzidos entre 1967 e 1973, esses textos estão reunidos no volume A
Descoberta do Mundo.
Faleceu no Rio de Janeiro no dia 9 de dezembro de 1977.
Obras
• Romances:
- Perto do Coração Selvagem (1944);
- O Lustre (1946);
- A Maça no Escuro (1956);
- A Paixão Segundo G.H. (1964);
- Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969);
- Água Viva (1973);
- A Hora da Estrela (1977);
- Um Sopro de Vida (1978).
• Contos:
- Alguns Contos (1952);
- Laços de Família (1960);
- A Legião Estrangeira (1964);
- Felicidade Clandestina (1971);
- A intimação da Rosa (1973);
- A Via-Crúcis do Corpo (1974);
- Onde Estivestes de Noite (1974);
- A Bela e a Fera (1979).
• Crônicas:
- A descoberta do Mundo (1984).
Obras
•Literatura Infantil
• O Mistério do Coelho Pensante (1967)
• A Mulher que Matou os Peixes (1968)
• A Vida Íntima de Laura (1974)
• Quase de Verdade (1978)
•Crônica
A Descoberta do Mundo (1984) – seleção de crônicas publicadas em
jornal entre agosto de 1967 e dezembro de 1973
•Entrevistas
Entrevistas (2007) – seleção de entrevistas realizadas
nas décadas de 1960 e 1970
•Correspondências
Cartas Perto do Coração (2001) • Correspondências (2002) • Minhas
Queridas (2007)
“... também fiquei pensando qual seria
o poema dessa manhã!
Ser mulher já é tão poético!.”
O ponto de partida da
literatura de Clarice é o da
experiência pessoal da mulher
e o seu ambiente familiar.
Contudo, a escritora extrapola
os limites desse universo. Seus
temas, no conjunto, são
essencialmente humanos e
universais, como as relações
entre o eu e o outro, a
falsidade das relações
humanas, a condição social da
mulher, o esvaziamento das
relações familiares e,
sobretudo, a própria linguagem
– única forma de comunicação
com o mundo.
Terceira Geração Modernista
O processo epifânico pode ser irrompido
a partir de fatos banais do cotidiano: um
encontrão, um beijo, um olhar, um susto.
A personagem, mergulhada num fluxo
de consciência, passa a ver o mundo e a
si mesma de outro modo. É como se
tivesse tido, de fato, uma revelação, e, a
partir dela, passasse a ter uma visão
mais aprofundada da vida, das pessoas,
das relações humanas. De modo geral,
esses momentos epifânicos são
dilacerantes e dão origem à ruptura de
valores, a questionamentos filosóficos e
existenciais, permitindo a aproximação
de realidades opostas, tais como
nascimento e morte, bem e mal, amor e
ódio, matar ou morrer por amor, seduzir
e ser seduzido, etc.
Silêncio da aniversariante: Silêncio enigmático e ameaçador.  No fundo, a velha despreza os
seres opacos, azedos, infelizes que gerou. Sujeitos treinados somente para macaquear a
felicidade, enquanto sofrem por dentro sem nem mesmo perceber que sofrem. Seres que não
suportam o pensamento, que lidam mal com os sentimentos e para quem a vida nada mais é
que a sustentação de um teatro.

Ao dar a primeira talhada no bolo, "com punho de assassina", com a força que vem do
desprezo que sente pela própria prole, ela incomoda com sua paradoxal vitalidade. Essa ação
cresce e transforma-se na cusparada fatídica, expressão maior do desdém.

Momento epifânico
O ato de “cuspir no chão” é a figura que manifesta, no nível discursivo, o fato de os laços de
família não se sustentarem mais, extremamente fragilizados no momento em que se
encontram. Com essa atitude, por outro lado, a velha senhora provoca a raiva da filha Zilda,
que teme a sanção negativa dos irmãos.
Desfecho

Constatação de uma nova situação:


• A aniversariante vira o jogo: “- Que vovozinha que nada! explodiu amarga a
aniversariante. - Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e
vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy!”;
• A família mostra-se perdida diante da polêmica da ruptura que a velha
senhora empreende, pois, com sua cólera, faz cair as máscaras da falsidade
que adornam o rosto de seus componentes;
• Percebe-se, então, que a festa de aniversário se processa apenas no nível
do parecer. O título do conto “Feliz aniversário” sugere a leitura irônica dos
“laços de família” que, na visão do enunciador, se tornam fragilizados, pois a
confraternização familiar não acontece verdadeiramente.
Momento da epifania
A freada: percepção da necessidade de manifestar a afetividade do amor entre mãe
e filha.

Desfecho
Voltando para casa, depois da partida da mãe, Catarina pensa em seu filho, qualificado por
Severina como uma criança nervosa. Encontra-o ensimesmado, introspectivo, absorto. Dá
trabalho libertá-lo de seu mundo, chamar a sua atenção. Mas consegue. Resolve sair com ele
para um passeio, o que deixa o seu marido apreensivo. Misteriosamente ele sabe da explosão
de sentimento, de amor que a esposa está tendo e que parece querer transferi-lo para o seu
filho. Talvez por isso ele exclame: "Catarina, esta criança ainda é inocente!". Mas sua frase cai
no vazio. Está sozinho. Da janela do seu apartamento, vê sua mulher e seu filho passeando.
Intui o laço misterioso que há entre eles. Sente-se mais solitário, por estar excluído dessa
ligação.
Felicidade clandestina
• ”Prometo que lhe empresto o livro amanhã” > desencadeia na narradora-personagem a
esperança de que a potência daquele ato de fato se concretize;
• Projeção da experiência infantil no futuro: submete-se ao sofrimento como fosse condição
da própria vida e das relações sociais:
“Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas
adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem que me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra”;
Este saber sobre a vida, a conquista do “amor pelo mundo”, figurativizado pelo livro que a
narradora-personagem tanto deseja e cuja condição de conquista é o sofrimento, vai
acompanhá-la por toda vida: “(...) os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira
(...).”.
• A menina-protagonista, no processo de conquista do livro, objeto do desejo,
possibilitado pela intervenção da mãe da antagonista que desmascarou o jogo
elocucional urdido pela filha, percebe que as coisas e as pessoas são
transitórias, no sentido de não pertencerem a ninguém, ainda que se acredite
poder possuí-las: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher
com o seu amante.”

Momento epifânico:
A menina que se torna “amante” do livro.
• “Felicidade clandestina”:
significação marginal de
“felicidade” que de alguma
forma abala a estabilidade
dos discursos e dos
atributos que “felicidade”
adquiriu no processo de
evolução da língua;
• “A felicidade ia ser
sempre clandestina para
mim.”
A narradora-personagem
aprendeu algo sobre a vida:
transformou-se de menina
em mulher.
Uma esperança

Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória,
embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.
Houve um grito abafado de um dos meus filhos:
- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia
em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é
coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de
minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais
magra e verde não podia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com
surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas
pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois
quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
A primeira leitura do conto indica no artigo “uma”
apenas a indefinição que é proposta para a palavra
esperança. E assim entraremos no conto impulsionados
pela necessidade de recortar a sua significação. É
interessante observarmos que, se permutarmos “uma
esperança” por “a esperança” ou por “esperança”, nas
três frases a ambiguidade se faz presente. A explicação
é simples: recordando o princípio da iconicidade, a
polissemia é resultado de um processo de erosão
provocada pelo atrito fonológico, de sorte que a
mensagem acaba sendo alterada em decorrência da
elaboração criativa.
➢Visão negativa > a
esperança que pousou no
seu braço “como se uma flor
tivesse nascido em mim.”
Nega a possibilidade de algo
positivo acontecer quando
afirma: “Depois não me
lembro mais o que
aconteceu. E acho que não
aconteceu nada.”

➢ Epifania: a visão do inseto


esperança que leva a mulher
a se questionar sobre o
nada.
Macacos

Lisette

Quase cabia na mão. Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana. E um ar de


imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra. De imigrante
também eram os olhos redondos.
Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era de uma tal
delicadeza de ossos. De uma tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era
arredondado. Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia sempre arrumada,
o colar vermelho brilhante. Dormia muito, mas para comer era sóbria e cansada.
Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca.
Segundo macaco: Feminino:
Primeiro macaco: Masculino: Lisette > escolha da mãe;
“macacão”, “gritos de presente para os filhos: sinais de
marinheiro”, “jogava cascas delicadeza e feminilidade ➢
de banana onde caíssem”, Humanização  Saia, brincos,
“sobressalto”, “homem colar; ar de imigrante “mulher
alegre”  Não é nomeado, ≠ em miniatura”.
não foi escolhido/ ambiente ➢Morte de Lisette: reação
ruim na chegada do mínima: Lisette morre no
“macacão: quente, sem água; hospital: o filho mais velho
ela cansada; comenta a semelhança entre a
mãe e Lisette.
➢Epifania: a macaquinha que induz o filho a perceber seu amor pela mãe.
Mineirinho
Suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por
que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os
treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha
cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um
conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações
contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre-
dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na
própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já
matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco,
vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava
mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem
não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já
entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”. Por que?
No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não
matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero
morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com
um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o
quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração
batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro
digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo
terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Mineirinho
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela.
Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja
sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu
não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da
casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto
isso dormimos e falsamente nos salvamos.

Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e
oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse
não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por
Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos
salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu
espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo
como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida,
placenta e sangue, a lama viva.
Mineirinho
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele
viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência.
Sua violência inocente — não nas consequências, mas em si inocente como a
de um filho de quem o pai não tomou conta.

Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro
para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre-
meça.

A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da


esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e
fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem
de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o
gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma
coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move
montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a
mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é
uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de
radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em
algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou
punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não
porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também
eu, que não me perdi, experimentei a perdição.

A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou
não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é
porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele
ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai,
quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco
tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares
uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva,
enquanto eu tive calma.

Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no


último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha
justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza
de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus
inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me
sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu
precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que
estamos todos certos e que nada há a fazer.

Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma


coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que
desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda
diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e
matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma
coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem
metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero
em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a
grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o
conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem
porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só
como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando
vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança,
pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de
destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com
oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em
conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou
porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto
grito desarticulado serve de sinalização.

Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do


medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo.
Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que
nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a
maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem:
para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de
fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que
na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem
querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime
particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso –
nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o
sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem
dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos
refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.

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