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Ao dar a primeira talhada no bolo, "com punho de assassina", com a força que vem do
desprezo que sente pela própria prole, ela incomoda com sua paradoxal vitalidade. Essa ação
cresce e transforma-se na cusparada fatídica, expressão maior do desdém.
Momento epifânico
O ato de “cuspir no chão” é a figura que manifesta, no nível discursivo, o fato de os laços de
família não se sustentarem mais, extremamente fragilizados no momento em que se
encontram. Com essa atitude, por outro lado, a velha senhora provoca a raiva da filha Zilda,
que teme a sanção negativa dos irmãos.
Desfecho
Desfecho
Voltando para casa, depois da partida da mãe, Catarina pensa em seu filho, qualificado por
Severina como uma criança nervosa. Encontra-o ensimesmado, introspectivo, absorto. Dá
trabalho libertá-lo de seu mundo, chamar a sua atenção. Mas consegue. Resolve sair com ele
para um passeio, o que deixa o seu marido apreensivo. Misteriosamente ele sabe da explosão
de sentimento, de amor que a esposa está tendo e que parece querer transferi-lo para o seu
filho. Talvez por isso ele exclame: "Catarina, esta criança ainda é inocente!". Mas sua frase cai
no vazio. Está sozinho. Da janela do seu apartamento, vê sua mulher e seu filho passeando.
Intui o laço misterioso que há entre eles. Sente-se mais solitário, por estar excluído dessa
ligação.
Felicidade clandestina
• ”Prometo que lhe empresto o livro amanhã” > desencadeia na narradora-personagem a
esperança de que a potência daquele ato de fato se concretize;
• Projeção da experiência infantil no futuro: submete-se ao sofrimento como fosse condição
da própria vida e das relações sociais:
“Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas
adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem que me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra”;
Este saber sobre a vida, a conquista do “amor pelo mundo”, figurativizado pelo livro que a
narradora-personagem tanto deseja e cuja condição de conquista é o sofrimento, vai
acompanhá-la por toda vida: “(...) os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira
(...).”.
• A menina-protagonista, no processo de conquista do livro, objeto do desejo,
possibilitado pela intervenção da mãe da antagonista que desmascarou o jogo
elocucional urdido pela filha, percebe que as coisas e as pessoas são
transitórias, no sentido de não pertencerem a ninguém, ainda que se acredite
poder possuí-las: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher
com o seu amante.”
Momento epifânico:
A menina que se torna “amante” do livro.
• “Felicidade clandestina”:
significação marginal de
“felicidade” que de alguma
forma abala a estabilidade
dos discursos e dos
atributos que “felicidade”
adquiriu no processo de
evolução da língua;
• “A felicidade ia ser
sempre clandestina para
mim.”
A narradora-personagem
aprendeu algo sobre a vida:
transformou-se de menina
em mulher.
Uma esperança
Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória,
embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.
Houve um grito abafado de um dos meus filhos:
- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia
em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é
coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de
minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais
magra e verde não podia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com
surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas
pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois
quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
A primeira leitura do conto indica no artigo “uma”
apenas a indefinição que é proposta para a palavra
esperança. E assim entraremos no conto impulsionados
pela necessidade de recortar a sua significação. É
interessante observarmos que, se permutarmos “uma
esperança” por “a esperança” ou por “esperança”, nas
três frases a ambiguidade se faz presente. A explicação
é simples: recordando o princípio da iconicidade, a
polissemia é resultado de um processo de erosão
provocada pelo atrito fonológico, de sorte que a
mensagem acaba sendo alterada em decorrência da
elaboração criativa.
➢Visão negativa > a
esperança que pousou no
seu braço “como se uma flor
tivesse nascido em mim.”
Nega a possibilidade de algo
positivo acontecer quando
afirma: “Depois não me
lembro mais o que
aconteceu. E acho que não
aconteceu nada.”
Lisette
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com
um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o
quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração
batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro
digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo
terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Mineirinho
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela.
Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja
sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu
não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da
casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto
isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e
oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse
não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por
Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos
salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu
espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo
como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida,
placenta e sangue, a lama viva.
Mineirinho
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele
viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência.
Sua violência inocente — não nas consequências, mas em si inocente como a
de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro
para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre-
meça.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou
não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é
porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele
ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai,
quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco
tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares
uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva,
enquanto eu tive calma.