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Com o devido tempo, percebeu que a filha possui valor e até parece
sua falecida mulher. Por vezes, parece demasiadamente. Nos movimentos,
na pele, no cheiro… é muito semelhante à progenitora. Seu sentimento, que
aprendeu a transitar entre amor e ódio, confronta-se com novas paixões. Já
não sabe definir o que sente ― e precisa descobrir rápido, antes que a
loucura responda em seu lugar.
Parte I
Não sabia como, ou mesmo se era possível, suprir a falta de mãe que
sua filha sentia. Faltava-lhe uma figura maternal, as avós estavam mortas e
não havia nenhuma tia. A mãe de Viktor se matou ainda na adolescência
dele. Já a de Barbara, Helena, morreu num acidente com lobos.
Seria sua filha uma médium? Talvez. “Pode-se esperar muitas coisas
de alguém que matou a própria mãe”, pensou. Acreditar na coincidência
exigia cada vez mais fé.
― Eu… Ela ainda não nasceu, Barbara. Esqueça-a! Vamos viver por
nós!
Não permitiu que fossem sozinhos para o quarto, isso seria exagero,
não suportaria tamanha cólera.
Posteriormente refletiu sobre a questão. Até onde sabia, sua filha era
virgem. Nunca perguntou. Responder isso poderia auxiliá-lo a desvendar a
teoria da reencarnação, pois, pensou com seus primitivos neurônios, a garota
não tinha meios de descobrir a atuação sexual da mãe, isso era
demasiadamente íntimo; ninguém além dele poderia contar os detalhes. O
argumento para ver a jovem transar pareceu-lhe ótimo, questionável, mas
ótimo. Acobertava várias camadas obscuras? Talvez… “mas é ótimo”,
repetia para si mesmo.
Olhava o vidro quase sem piscar. Era como olhar um filme pornô.
Ficou ereto, mas contido pela racionalidade. Observou os detalhes da
movimentação, da atuação, agiu feito um crítico de cinema. Evitou
pensamentos sexuais, embora dançassem em seu subconsciente; era quase
impossível não lembrar da esposa em copulação.
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Fez o melhor jantar que podia com os poucos itens que havia. Abriu
uma garrafa de vinho, serviu em taças. A mesa ficou cheia em frente a eles.
O barulho da mata criava uma atmosfera animalesca, levemente tensa; junto
à casa, era como viajar no tempo ― exatamente o que Viktor queria fazer.
Falaram da mansão, dos arredores, do quanto tudo aquilo carregava nas
entranhas as histórias de seus moradores…
― É óbvio, esse lugar tem pelo menos trezentos anos. Muita gente
morou e morreu nesse chão. Devem ter vários cadáveres no pátio.
― Sei lá, você sabe muitas coisas, né? Mais que eu, às vezes.
― Por que seria da vovó? ― a voz saiu rouca, mórbida, direta das
profundezas da terra, do corpo da falecida senhora Helena.
― Por quê? ― riu com elegância. ― Algum palpite? Ah… qual será
o motivo… Bom, é uma redundância, certo? ― Bebeu um gole de vinho.
Ambos tremiam, remexiam as pernas, conflitavam no olhar. Ele balançava a
faca, sem perceber; ódio e medo preenchiam seus sentidos. Estava diante de
Helena, tornou-se incapaz de ver a jovem Priscila. Podia esfaqueá-la, vingar-
se pelo passado de mentiras e provocações; uma parte dele queria isso, outra
queria o oposto.
Por três dias e três noites ficou naquele lugar, defecando e urinando
num balde, gritando quando conseguia ― momentos cada vez mais raros. A
fome tremulava seu estômago e ela pensou que morreria. Definharia por um
mês, imaginou. Quebrou o pulso tentando desprendê-lo da corrente, e suas
costas colecionavam arranhões. Partiu um pedaço do tronco que formava a
“cama” e tentou usar para abrir suas amarras, foi inútil. Matar-se-ia mais
tarde, deixou como última opção.
A primeira noite já originou o fruto, mas ele não sabia disso, por isso
repetiu até vê-la vomitar e atrasar a menstruação.
Escreveu: ― Após o parto, ela será toda sua. Vou partir e nunca
mais retornar.
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Barbara (a nova) amava seu marido, não desejava nada além dele.
Ouvia as histórias da relação da sua avó com seu marido e se colocava no
lugar dela, pois assim ele queria. Absorvia o máximo da identidade da avó
Barbara, e o tempo tornou isso mais fácil, porque realmente começou a se
lembrar das vidas passadas ― fragmentos confusos.
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