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BÁRBARA

ANA ROSA
2021
Copyryght © 2021 – Ana Rosa

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reproduzidos ou utilizados sem a expressa autorização da autora.

ROSA, Ana. Bárbara. Conto. Publicação Independente, Edição Kindle. Julho


de 2021.

Capa: Ana Rosa

Revisão: Ana Rosa


Essa obra foi feita em parceria com o Grimório Tropical!
Agradecimento especial à Jon Jon Ferreira pela aula sobre folclore carioca!
BÁRBARA

Cheguei à corte do Vice-rei no Rio de Janeiro no ano de 1790 com meu marido.

Na época, era conhecida apenas como Bárbara Vicente de Urpia e estava no


auge da minha juventude.

A corte acreditava que meu marido, o Fidalgo Antônio de Urpia, havia


escolhido vir para essas terras a fim de me proteger da cobiça dos homens da
corte portuguesa… minha beleza era estonteante e eu realmente atraia os
olhares de nobres por onde passava. Mas essa não era a verdadeira razão de
nosso êxodo.

Viemos porque eu assassinei minha irmã.

A envenenei numa visita que fiz a sua casa.

Havia planejado tudo cuidadosamente, mas ainda era inexperiente e suspeitas


acabaram recaindo sobre mim. Minha sorte foi que nasci mulher, e os homens
eram incapazes de acreditar que uma jovem seria capaz de ações tão extremas
como fratricídio.

Chegando ao Rio de Janeiro, meu marido e eu fomos recebidos de bom grado


na corte e logo fizemos muitas amizades. Claro, a maioria dessas amizades
eram masculinas.

Antônio não era dado a romances e me incentivava em minhas aventuras pela


sociedade, contanto que pudesse me assistir enquanto estava com outros
homens na cama.

Tivemos anos de paz e sossego e eu quase pude esquecer do que fiz à minha
irmã odiosa, mas acabei conhecendo o amor nos braços de um negro livre e
isso Antônio não conseguiu aceitar.

Eu amava meu marido à minha maneira.

Mas aquele homem, João, havia dominado toda a minha lógica e razão.
Não podia ficar longe dele e não permitiria que ninguém ficasse no caminho
do nosso amor. Então fiz a única coisa que podia: tirei a vida de meu marido
com uma punhalada na nuca, no meio da madrugada, enquanto ele dormia.

Esse foi o começo da minha desgraça.

Perdi acesso à corte mesmo que outro culpado tivesse sido acusado em meu
lugar. Passei a viver com João... eu o amava loucamente. Mas depois de algum
tempo passei a odiá-lo na mesma medida.

Sem Antônio para tomar conta das finanças, logo me descobri sem minha
riqueza, isso se deu no mesmo período em que vieram à tona as várias traições
de João. Eu não aceitava que mesmo depois de tudo o que fiz, ele ainda fosse
capaz de me trair…

No meio de uma discussão fervorosa, esfaqueei meu amado sete vezes.

Não houve investigação alguma sobre a morte de João e logo me vi sem um


vintém.

A única forma de me manter era vender meu corpo. Passava as noites no Arco
do Teles, esperando por algum cliente que me quisesse.

Desde então passaram a me chamar Bárbara dos Prazeres graças à imagem


de Nossa Senhora dos Prazeres que havia no beco.

Com a chegada da Família Real, minha situação melhorou consideravelmente.

Atendia à corte. Incluindo a alguns membros da Família Real. Consegui um


sobrado só para mim, na Rua do Lavradio, e atendia meus clientes com
conforto e privacidade. Eu já não era Bárbara dos Prazeres, a Prostituta…
agora era conhecida como Bárbara dos Prazeres, a Cortesã.

Mas com o tempo fui acometida por doenças que roubavam minha saúde e
minha beleza. Quando dei por mim estava feia, amarga e meus clientes haviam
me abandonado.

Entrei em desespero.
Numa noite em que vagava perto do mar com uma garrafa de vinho de má
qualidade não mãos, vi o Feiticeiro. Ele estava de pé na beira do mar e me
chamou.

Quando me aproximei, me ofereceu um feitiço que prometia me levar de volta


aos meus dias gloriosos. Me disse que eu devia beber e me banhar com o
sangue fresco de animais.

Não me importei nem um pouco com a vida dos cães e gatos de rua que
degolava. Cometi atos obscenos e indescritíveis, mas minha boa aparência não
retornou, pelo contrário, a doença estava se mostrando mais e mais agressiva.

Irada, depois de algum tempo, procurei o tal Feiticeiro e o encontrei no mesmo


lugar, perto do mar, na baía de Guanabara. O questionei fervorosamente sobre
a ineficácia de meus atos doentios mas ele apenas sorria para mim.

Por fim, me contou sobre um método ainda mais perverso: eu devia me banhar
com sangue ainda morno de crianças.

Não sei se foi meu desespero, a lepra ou os dois, mas fiquei esperançosa com
a ideia de que esse feitiço funcionaria. Em nenhum momento a perversidade
do ato de matar crianças acusou minha consciência. Talvez estivesse ficando
louca, mas para mim pouco importava.

Eu comecei a assassinar crianças.

Não tinha preferência, mas as crianças pequenas e pobres eram mais fáceis
de capturar.

Acreditava mesmo que os desaparecimentos seriam ignorados pela sociedade,


mas não foi o que aconteceu.

Algumas semanas depois que comecei minha caçada, a população do Rio de


Janeiro já sabia que havia uma ‘Bruxa’ que roubava crianças e não deixava
sequer o corpo para ser enterrado com dignidade.

Nesse momento, comecei a ser chamada de Bárbara, a Bruxa do Arco do Teles.

As crianças já não saíam sozinhas… e novamente me vi num beco sem saída.


Tinha plena certeza de que os rituais demoníacos estavam fazendo efeito, mas
se não conseguisse realizá-los a doença voltaria com ainda mais força. Por
mais de três semanas não tive a oportunidade de matar e isso me corroía por
dentro e por fora.

Numa noite, enquanto eu caminhava pela cidade desesperada em busca de


minha próxima vítima, eu vi a Roda dos Enjeitados.

Na Santa Casa da Misericórdia, vi uma jovem deixar um bebê na portinhola,


tocar o sino e fugir.

Deste dia em diante, todas as noites eu rondava a Santa Casa, esperando que
alguma mulher em situação desesperada entregasse uma criança aos
cuidados das freiras.

Eu estava radiante... havia encontrado uma fonte interminável de crianças…


crianças que não fariam falta. Agora eu sabia que conseguiria minha saúde e
beleza de volta.

As freiras desconfiaram, mas o que um bando de carolas poderia fazer contra


uma mulher desesperada que já havia vendido a alma ao demônio?

Mas uma coisa não fazia sentido.

Se eu estava fazendo exatamente o que o Feiticeiro mandou, porque meu rosto


continua se desfigurando? Porque meus dentes apodrecem e caem, um a um?
Porque a dor da doença não me deixa?

Precisava confrontá-lo e o encontrei às margens da baía de Guanabara, como


se estivesse me esperando.

O persegui, estava enlouquecida de fúria mas ele correu para o mar.

Estava fria, a água… mas entrei mesmo assim. Minhas saias molhadas
pesavam uma tonelada no mar, mas eu continuei nadando.

Ele permanecia sempre a alguns metros de mim, sempre distante… sempre


inalcançável. Como minha juventude e beleza… perdidas para sempre.
Não desisti… continuei nadando mas o mar me puxava para o fundo, como se
mãos saídas do inferno puxassem minhas roupas para a escuridão fria do
oceano.

---

12 de Fevereiro de 1825

Uma semana depois do aparecimento do corpo feminino na baía de


Guanabara, as Freiras da Santa Casa de Misericórdia afirmam que as crianças
deixadas na Roda dos Enjeitados não estão mais sendo levadas.

As autoridades da Corte afirmam que o corpo pertence à Barbara dos Prazeres,


também conhecida com a Bruxa do Arco do Teles, mas essa informação não
pode ser confirmada devido ao estado de putrefação do corpo encontrado.

As autoridades pedem aos pais que não descuidem de suas crianças. Ainda
não se sabe se as Bruxa está solta ou morta.
Sobre a autora:

Ana Rosa é autista, programadora e mãe de três.

Viciada em livros, cria histórias desde que aprendeu a escrever e divide seu tempo
entre o trabalho, a família, o Grimório Tropical e a leitura.

Siga nas redes sociais: @anarosa_autora


Sobre o Grimório Tropical:

O Grimório Tropical é um projeto sem fins lucrativos, composto por um grupo de


pesquisadores de diversas áreas para entender e reforçar a identidade cultural
brasileira, folclórica, histórica, geográfica e literária, focado em pesquisa, estudo e
respeito à pluralidade nacional, aplicando isso em jogos educativos, como o RPG de
mesa.

Site: grimoriotropical.com.br

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