Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SOLLO
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
EPÍLOGO
PRÓLOGO
alguns rostos ficariam guardados para sempre na minha cabeça, mas outras
simplesmente chegavam e iam embora, como se fossem passageiras em um
trem desgovernado que nos levava na direção de um abismo.
Não que eu não acreditasse em Deus. Não era isso. Só que algo me
dizia que Ele não iria interceder por nós àquela altura. Eu conhecia muito
bem o tipo de gente com quem estávamos lidando. Morava em Santa Celeste
do Sul há tempo suficiente para saber quem eles eram e há quanto tempo
estavam de olho em mim. Desde que criei um corpo que lhes chamou a
atenção. Mais do que isso... eles eram poderosos, porque tinham o apoio de
gente mais poderosa ainda. Mil denúncias foram feitas, pelo que descobri no
meu tempo ali, inclusive a nível federal, e eles nunca tinham caído.
menina, o capanga mais alto, que chamavam de Alemão, apontava para mim
com um sorriso provocador e dizia:
— Calma, Ruiva. Sua vez vai ser especial. Estamos preparando algo
grandioso.
recusei-me a responder, mas acabei cedendo, porque uma das meninas pagou
pela minha impertinência.
Junto do medo, tudo o que eu guardava comigo era o rancor. Era por
culpa do meu pai que eu estava ali. E eu sabia que nem era o pior estágio do
problema. Eu estava no purgatório, aguardando para ser levada ao inferno.
Por isso, quando fui guiada para fora daquela porta, com um homem
de cada lado segurando meus braços, e uma luz forte de um holofote quase
me cegou, eu soube que era o fim.
Seu dono, que era um mistério para todos, parecia ter a lei dentro de seus
bolsos, porque a polícia nunca chegava em uma hora como aquela, quando
uma das meninas era literalmente vendida como uma mercadoria.
afirmação. Qual era a tara dos homens por ruivas? Por que sempre
comentavam sobre minhas sardas, a pele branca e o tom avermelhado do meu
cabelo como se eu tivesse sido criada para o pecado? Como se minha
aparência fosse um chamariz sexual.
— Sabendo disso, que não são todos os dias que uma princesa ruiva
natural aparece aqui para nós, especialmente intocada, nosso leilão será
especial. Qual de vocês irá abrir a carteira o suficiente para levar essa
coisinha linda para cama? — Alemão parecia animado. Mais do que jamais o
ouvi. Ele, provavelmente, sabia que muito dinheiro seria ganho naquela noite.
me mostrar, desistiu.
louça, provavelmente vindo de algum punho mais efusivo que bateu na mesa
para comemorar.
Tentei não imaginar o que aquele punho poderia fazer comigo, caso o
homem em questão conseguisse me arrematar.
mais eriçados.
na boate dançando e vendendo o meu corpo todas as noites, até que não fosse
mais interessante para eles.
Quem eram aqueles homens? Como tinham tanto dinheiro para gastar
com uma única noite? Uma maldita noite com uma garota virgem, sem
nenhuma experiência, que não queria estar na mesma cama que eles. Nem
mesmo por dinheiro. Poderiam pagar muito menos por uma prostituta que
lhes satisfaria bem mais.
Eu queria tirar aquela venda e olhar nos olhos de cada um deles, mas
sabia que seria repreendida. Queria que vissem a indiferença que eu poderia
fingir. Eles não teriam a minha luta. Não teriam o gostinho de me ver
implorar, chorar ou me debater. Eu seria uma pedra de gelo. Poderiam me
foder, me machucar, me espancar, eu não falaria, não olharia para eles. Seria
como transar com uma boneca inanimada. Não valeria o dinheiro que
pagaram.
Firmino?
Firmino Pascoal?
— O que eu vou fazer lá dentro com ela é problema meu. Alguém vai
dar mais? Se não, ela é minha.
Minha.
— Trezentos mil.
Eu não podia ver nada ao meu redor, mas tinha certeza de que o
mundo inteiro tinha parado. Que o relógio desistira de funcionar com o som
daquela voz grave e profunda soltando aquelas palavras tão absurdas que
formavam um valor mais absurdo ainda.
Escarlate?
Eu mal podia ver o seu rosto, porque ele estava sentado em uma mesa
ao fundo, em uma parte mais escura. Vestido com um moletom preto, capuz,
mangas compridas, eu não fazia ideia do que queria ocultar.
seu rosto ainda estivesse oculto, tudo o que pude ver foi que se tratava de
alguém enorme. Tanto de altura quanto em ombros largos e poderosos.
Dei de ombros.
azuis, que eram mais falsos do que uma nota de três reais. O cabelo, idem.
Oxigenado. Era mais do que óbvio que ele não tinha nada de alemão no
sangue, mas talvez o apelido tivesse pegado exatamente por isso, pelo quanto
ele queria parecer ariano, embora fosse apenas mais um latino como qualquer
um de nós.
sua frente.
Cadastro porra nenhuma. Desde quando aquele lugar tinha algum tipo
de organização. Queriam saber quem eu era. Que bom saber que os dez anos
tinham me mudado o suficiente para que não se lembrassem de mim. Ao
menos aquelas pessoas e o resto dos bêbados que estavam no salão, que
provavelmente não se lembrariam da própria cara se a olhassem no espelho.
Ah, aquilo, sim, me fez rir. Se eu tivesse espírito para isso, teria
gargalhado.
— É muito dinheiro por uma única garota. Posso ser razoável e te dar
o direito de desistir, ao menos até os rapazes terminarem de contar o dinheiro.
Podemos combinar de você pagar dez mil a mais do que seria pago por
Firmino e pode ficar com ela a noite inteira. Vamos garantir que não lhe
cause problemas e que seja compensador. Então cada um segue para o seu
lado e a menina fica conosco.
— Para um negociador, acho que você não é muito bom no que faz.
convicção.
levaram muito mais tempo do que seria necessário para contar aquelas notas.
Pareceu uma eternidade até que me levassem ao local onde a garota
aguardava.
Uma porta trancada foi o que vi à frente, mas não apenas isso. A
moça estava dentro do quarto, mas deitada imóvel sobre a cama. A cabeça
emoldurada pelos longos fios ruivos se virou na minha direção devagar, e
seus olhos verde-amendoados se arregalaram. Ela estava em pânico, mas
continuava quieta, sem grandes reações.
garota com aquele tipo de olhar de cobiça que era difícil de disfarçar.
Vi a forma como ele fixou sua atenção nos seios da moça, que
subiam e desciam no decote nada modesto de sua camisola – que fora
escolhida, sem dúvidas, para dar a falsa ideia de recato e torná-la mais
angelical. Deplorável.
— Precisa que eu peça aos rapazes para levá-la até algum lugar? —
Alemão falou, depois de finalmente desviar o olhar dela.
mas não sem antes dar mais uma olhada para mim, com um semblante de
poucos amigos.
Bem, ela teria que saber, mais cedo ou mais tarde, não?
de forma indireta.
Drogada como estava, não consegui sequer ver seu rosto direito. Era
apenas uma imagem turva, algo indefinido. Mas o desenho da rosa cheia de
espinhos tornou-se perfeitamente visível, ao menos por um segundo. O
suficiente para que eu soubesse quem fora o homem que investira quinhentos
mil reais para me tirar do Rosa Escarlate.
Meu pai não era nenhum santo. Na verdade, por culpa dele acabei
indo parar naquele leilão. Seus vícios, seu comportamento, suas mentiras. Eu
não saberia sequer dizer se ele algum diz quisera cuidar de mim, mas me
tornei sua obrigação quando minha mãe morreu, oito anos atrás. Dois depois
do tal incêndio.
Depois que fui levada para morar com ele, as histórias se tornaram
constantes. Meu pai foi o responsável por espalhar a história de que Dorian
VanCanto era um louco. Fora ele que disseminara as lendas, o que acabou lhe
rendendo alguma fama no início e alguns bicos, porque todos queriam saber
mais do que apenas ele, aparentemente, conhecia.
metade para beber. Depois, o álcool não foi suficiente e vieram as drogas.
Bem, e foi mais ou menos assim que Alemão e sua corja entraram nas
nossas vidas.
Foi assim que a minha vida foi roubada. Meus sonhos. Meus
objetivos.
Não era uma boa ideia que nenhum daqueles homens me comprasse.
Eu era um ser humano, não deveria estar à venda, a não ser que fosse da
minha vontade entregar minha virgindade e o meu corpo por dinheiro. Só que
VanCanto certamente não seria a minha escolha, se eu fosse obrigada a
selecionar alguém naquela plateia ridícula.
cidade era pequena demais para que eu tivesse algum lugar para me esconder
onde o poderoso VanCanto não pudesse me achar. Eu não tinha ninguém de
fora que pudesse me acolher e nem dinheiro que pagasse uma passagem e
uma estadia bem longe.
Tinha que acreditar que minha outra opção era muito pior.
Eu ouvia barulhos, mas não sabia de onde vinham, o que provava que
não estava sozinha. Pelo que podia perceber era noite, pelo quanto estava
escuro, mesmo que não houvesse janelas por perto – mais uma prova de que
aquele lugar mais parecia uma prisão.
Meu corpo colidiu com outro, muito maior, e meus braços foram
segurados, não com força suficiente para me machucar, mas com a
intensidade certa para que eu não conseguisse me desvencilhar facilmente.
cacheados, mas com uma aparência limpa e macia. Uma barba espessa,
densa, lábios desenhados e rosados, olhos castanhos. Um homem muito mais
bonito do que eu poderia imaginar.
Ainda assim, apesar da beleza, isso não queria dizer que eu queria me
entregar a ele. Não significava que sentia desejo.
amizade. Muito menos em parecer sedutor para facilitar as coisas para uma
garota virgem se interessar em se entregar.
— Na minha casa.
— Sou sua propriedade agora, não sou? — indaguei com raiva. Era
um destino muito frustrante, algo que eu não desejaria nem para a minha pior
inimiga.
Não tive direito de opinar. Ainda com a mão no meu braço, embora
sem forçar, Dorian me conduziu a outro cômodo; um quarto que não era o
meu e nem o dele. Provavelmente não para conversar. Ou ao menos era o que
eu imaginava, porque não sabia o que esperar de um homem que, até onde eu
sabia, era um monstro.
Levá-la para a minha casa poderia ser um erro. Não poderia mantê-la
ali para sempre e, certamente, acabaria descobrindo coisas que eu preferia
que continuassem ocultas. Como iria saber se ela não era uma fofoqueira,
Merda! Ela realmente era mais bonita do que seria saudável para a
minha sanidade. Havia sardas adoráveis sobre seu nariz, e a boca tinha lábios
cheios e rosados, em formato de coração. Isso sem contar os incomuns fios de
A moça era alta, embora eu fosse mais do que uma cabeça maior do
que ela, o que sem dúvida a intimidava. Não sabia se isso era bom ou ruim.
— Sim, eu comprei.
conhecia, e tudo o que sabia sobre mim provavelmente não era muito
agradável.
puxando-as de volta e cobrindo seus seios nus. Deixei que meus olhos
permanecessem fixos nos dela, embora fosse um pouco tarde demais, porque
a olhei com desejo anteriormente. Mas como poderia ser diferente? A garota
era linda, e isso deveria ser a sua maior maldição.
Quando dei outro passo para trás, com as mãos erguidas em rendição,
demonstrando que não iria tocá-la novamente, embora meus dedos mal
tivessem encostado em sua pele, ela levou uma das mãos ao peito, como se
sentisse seu coração acelerado.
segundos.
compreensivo.
— Bem, mas eu, não. Gostaria de dormir agora que você já sabe onde
— Posso ir sozinha.
Não me deu tempo de dizer nada, também não pude me mexer antes
que saísse porta afora, com passos apressados. Eu poderia ir atrás dela, antes
que saísse bisbilhotando mais alguma coisa, mas ouvi a porta do quarto ao
lado bater, com força.
Nem estava com sono, mas não demorei a adormecer outra vez,
provavelmente por ainda estar sob o efeito do sedativo. Ou melhor... eu não
poderia saber, não é? Era, obviamente, uma situação inédita na minha vida.
velho com manteiga e um café frio, além de água. O meu sanduíche sempre
vinha com queijo, um pouco de presunto, e o meu café chegava fumegando.
Não que fosse uma refeição de princesa, mas era o que me fazia sentir que
tinha algum tipo de regalias. Só que eu recusava a todas e pegava o mesmo
alimento precário das outras.
iria acreditar que aquele tipo de coisa acontecia debaixo dos olhos da cidade e
ninguém fazia absolutamente nada?
Privacidade.
Aí estava uma palavra que se tornara muito distante do meu
vocabulário nos últimos tempos. Não apenas ela, mas livre arbítrio também.
Por mais que na noite anterior Dorian não tivesse me obrigado a nada, eu não
poderia colocar minha mão no fogo de que as coisas continuariam da mesma
maneira. Ainda assim, era bom saber que ele tinha consideração suficiente
para me dar algum espaço nos meus primeiros momentos naquela casa.
— Sheila, senhorita.
quase tímida. Eu não era uma pessoa manipuladora, mas se tratava de uma
questão de sobrevivência. Faria qualquer coisa para garantir que eu pudesse
deixar o jogo correr ali dentro, se não ao meu favor, da melhor forma
possível.
parte.
inocente. Ela não me parecia uma pessoa muito pouco perspicaz, tanto que
sorriu.
pela alça e pelo pires, levando-a à boca e sorvendo o café devagar, porque
estava maravilhosamente quente.
— Este tipo de pergunta a senhorita vai ter que fazer ao Sr. Dorian.
Não é meu papel.
Eu não conseguiria nada com ela. A mulher era leal ao patrão, e isso
era admirável. Poderia até pensar que tinha apreço por ele, se não parecesse
tão séria. A governanta perfeita.
Fosse como fosse, rapidamente seus olhos se tornaram mais cálidos
ao dizer:
Isso já não era tão simples. Meu pai não era um homem ruim, sangue
do meu sangue, e não teve o menor escrúpulo quando se tratou de deixar a
filha à própria sorte. Onde ele estava naquele momento, quando deveria
cuidar de mim?
Não sabia o que pensar sobre aquilo. Teria ela comprado roupas e
coisas para mim antes ou naquela manhã? Seria minha ida para aquela casa
algo premeditado?
caso pensado. Algo me dizia que Dorian não fizera tal investimento só
porque se encantara com minha aparência. Ele conhecia o meu pai... pior do
que isso, deveria ter raiva. Eu, provavelmente, era a sua vingança. Por esse
motivo era difícil confiar que suas intenções eram nobres, mesmo tendo sido
quase cavalheiro comigo na noite anterior.
Já tinha se passado uma hora desde que tive minha conversa com
Sheila, e por um momento receei que Dorian já estivesse impaciente ou
irritado pela demora, mas achei até bom. Eu estava ali contra a minha
vontade, não podia me render ao medo. Ele podia me machucar? Sem
dúvidas. O homem tinha o dobro do meu tamanho – na verdade, ele tinha
porte suficiente para machucar qualquer um –, mas eu não podia facilitar as
coisas. Talvez se lhe desse bastante trabalho ele se livrasse de mim.
Com alguma sorte, nem me levaria de volta para o Rosa Escarlate e...
Burra!
Claro que ele me levaria de volta para aquele antro, e ainda pediria
seu dinheiro de volta. Virgem, ao menos, eu ainda era, ainda serviria a todos
os propósitos loucos de Alemão e Cia.
Dei uma última olhada no espelho e tudo o que vi à minha frente foi
uma garota comum. Fiz questão de não me maquiar, de não me preocupar
com cabelos, e esse era o plano. Sem toda a preparação do dia anterior, eu
parecia bem menos atraente.
caixinha sobre a pia. Não era muita coisa e não havia nenhum batom
vermelho ou chamativo, o que indicava que o homem não tinha fetiches
estranhos.
Paramos diante de uma porta alta e dupla, que ela abriu com um
empurrão, e meus olhos foram atingidos por uma visão que eu não esperava.
Não era uma simples biblioteca como seria esperado de uma casa
comum. Mais parecia uma instituição pública, daquelas antigas, em madeira,
com direito a um espaço confortável de leitura, com poltronas confortáveis,
um lustre tão bonito quanto o que havia no meu quarto e estantes de carvalho
que cheiravam a madeira de boa qualidade.
Só que eu não conseguia. Mal sabia por onde começar. Meus olhos
estavam perdidos, embolados nos meus pensamentos sobre o quão
maravilhoso seria se eu tivesse autorização para explorar aquele ambiente e
pegar um ou outro livro emprestado para ler à noite.
Talvez...
Não era correto que eu o achasse mais bonito do que seria prudente,
era? Ainda assim... era inegável. VanCanto era atraente. O tipo de homem
para quem eu olharia duas vezes se estivéssemos em outra situação.
Era estranho tê-la ali naquele espaço. Além de Sheila nenhuma outra
mulher entrou naquele ambiente em muitos anos. Ou melhor, nenhuma
chegou a entrar na casa, mas... isso era outra história. Eu não tinha tanto
apego pelos outros cômodos como tinha pela biblioteca.
A biblioteca dela.
Claro que muito tempo havia se passado. Dez anos. Era o suficiente
para eu ter superado a perda, e até poderia dizer que meu coração já não era
um lugar tão sombrio se as coisas tivessem acontecido de uma maneira
convencional.
Não foi. E a culpa ainda pesava nas minhas costas.
porque seria um presente. Por isso ainda era tão sagrado para mim.
estivesse se entregando em uma luta. Ela não queria que soasse como um
elogio, mas aconteceu.
Não me lisonjeou.
o meu teto que parecia morrer de medo de mim não era agradável. Ainda
assim, eu não tinha disposição para me explicar, muito menos de contar
minha história – por mais que eu acreditasse que era o culpado e que nenhum
tipo de absolvição me faria pensar diferente. Absolvição essa que certamente
tenho escolha, não é mesmo? — ela falou tudo isso quase em um sussurro,
ainda me avaliando, seguindo curiosa.
— Pelo que já entendi você é uma pessoa que leva as coisas muito no
preto e branco — minha resposta teve um tom ácido e desagradável, mas eu
estava cansado de me esquivar de suas acusações sem falar mais do que
devia.
minhas escolhas sendo respeitadas. Que desde que aquele homem me tirou de
casa eu não sou mais dona de mim mesma.
acreditar que eu era mesmo o Lobo Mau, pronto para lhe causar ainda mais
danos?
Quando ela lesse a proposta, quem sabe não ficasse um pouco mais
aliviada.
O som das teclas era quase como música para os meus ouvidos. Eu
tinha uma produção bem consistente, e ela quase dobrou nos últimos anos.
Afundar-me nos meus enredos me fazia esquecer um pouco da minha
realidade.
Tanto que seu sorriso foi bastante provocador para alguém que era
apenas minha funcionária.
— Nós dois sabemos o nome dela, mas é uma moça, até onde eu sei.
— Tem muitas coisas que eu prefiro que ela não saiba. Se me temer,
não irá me causar problemas — atestei.
— Ainda assim, vai permitir que ela mexa nas coisas da senhora.
— Foi uma decisão pensada. Preciso de alguém que faça isso. Que
termine o que Marcela deixou pendente — eu não queria demonstrar o
quanto aquilo era doloroso, mas foi impossível.
— Poderiam ser vinte. Eu ainda iria querer isso. Ela ia querer isso.
Depois de tudo que lhe fiz eu devo...
A porta estava aberta, mas mesmo assim ouvimos a batida, e nós dois
olhamos na direção dela. Lá estava Celina, esperando para ser convidada a
entrar. Usava a mesma roupa de mais cedo, mas os lindos cabelos ruivos
estavam presos em um rabo de cavalo longo, com alguns fios caindo no rosto.
formal.
— O que esperava?
eu pensasse?
— Não. Acho que está tudo muito bem explicado, só estou um pouco
incrédula.
muito menos qual era o gênero que escrevia, mas pelo que pude entender
havia alguma relevância em sua carreira. Ela morrera antes de concluir seu
trabalho mais recente, e se eu o fizesse, receberia os créditos por isso.
Não apenas trabalharia para Dorian porque ele pagara uma fortuna
para me tirar daquele lugar horrível que seria o meu destino, mas porque... eu
me tornaria uma escritora.
Como ele sabia que eu escrevia? Teria meu pai comentado algo? Não
era possível que estivesse dando aquela incumbência tão importante para
alguém que não tinha experiência.
leitor.
Não poderia dizer que éramos amigos, mas aquela fora uma conversa
gostosa. Acontecera alguns meses antes do que eu poderia alegar como sendo
— Eu sempre quis ser escritora. — Não sei por que lancei essa
seu nome.
correndo?
Dorian esticou o braço para pegar uma rosa vermelha que estava
sobre a bandeja de seu almoço, que destoava completamente de todo o resto,
e mais ainda nas mãos enormes do homem, mas ele apenas se afastou.
espiral.
com detalhes mais coloridos e enfeites adoráveis, além de uma mesa com um
notebook bem antigo, mas cheio de adesivos fofos.
— Isso é velho. Não sei nem se está funcionando, não sei a senha,
mas deve ter anotada em algum lugar. Marcela era bem organizada, mas
meticulosa. Ela fazia muitas pesquisas para suas histórias, então há cadernos
numerados e datados em caixas dentro daquele armário — ele apontou na
direção do móvel mencionado.
Mas... o quê?
— É o Stephen King!
— Sou fã. — Terror não era o meu gênero favorito, mas King era
outro nível.
Encontrei alguns exemplares em português, sendo que dois dos títulos eram
os mesmos de filmes. Ainda mais surpresa, peguei-os e percebi que as capas
combinavam com o pôster do cinema. Um era com um elenco menos famoso,
mas o outro tinha Julianne Moore e Hugh Jackman com suas caras bonitas
estampadas.
Como eu não era tão fã do gênero e não tinha muito dinheiro para
comprar livros, não tinha muito acesso a nomes de autores, a não ser os que
se tornavam muito famosos. Eu deveria saber o nome dele, ao menos,
especialmente por causa dos filmes, embora eu não os tivesse assistido.
Não era difícil entender como tinha tanto dinheiro para gastar.
Assenti, tendo que aceitar aquela resposta, embora não fosse muito
satisfatória.
— E sobre o quê é o livro?
— Não sei.
Por que será que eu tinha a impressão de que ainda descobriria que
havia muitos mistérios a serem descobertos naquela casa?
dali em diante?
CAPÍTULO OITO
condição. Não queria alguém com seus vícios e que pudesse mudar qualquer
intenção da história de Marcela. Não queria uma pessoa que já conhecesse
bem o mercado editorial, que já tivesse sua fama. Queria oferecer uma
oportunidade.
E que melhor do que uma garota que estava com sua vida em perigo,
que não tinha para onde ir e nem saberia como recomeçar?
Colocar uma câmera seria uma opção, mas eu não queria. Não
desejava aquele tipo de comportamento abusivo enquanto aquela garota
estivesse em minha casa. A não ser que lhe avisasse que estaria sendo
observada. Era aceitável, não? Estava trabalhando em um ambiente pessoal.
E assim foi por uns quatro dias. Ela chegava um pouco depois de
mim, me dava bom dia, subia para o escritório de Marcela e ficava lá até
tarde. Todos os dias eu precisava me controlar como louco para não enchê-la
de perguntas, para não tentar descobrir o que tinha encontrado, se conseguira
algo com o material que tinha disponível, mas sempre evitava, porque temia
que se sentisse pressionada.
Fui deitar mais tarde daquela vez, porque descontei um pouco minhas
entre as flores de Marcela, era constante. Naquela noite não foi diferente. Só
que quando coloquei meus pés descalços no chão, antes mesmo de conseguir
vestir uma blusa, um som de total desespero chamou a minha atenção.
Vinha do quarto de Celina, e não foi apenas um. Ela parecia estar em
agonia, gemendo, chorando. Quando soltou um grito estrangulado, não pude
mais me conter e saí correndo em sua direção.
Abri sua porta, por mais errado que pudesse ser, e irrompi seu quarto,
acendendo a luz. Suspeitava que fosse o que realmente era – um pesadelo –,
sentido. Parecia que estava sendo torturada, então não tive escolha a não ser
colocar a mão em seu braço, cutucando-a gentilmente para tentar tirá-la
daquele tormento. Segurei-a com um pouco mais de força quando continuou
na mesma, e quando acordou, seus olhos estavam arregalados. O pulo que ela
deu, para se sentar, levou-a a ficar com as costas imprensadas na cabeceira,
abraçando os joelhos.
— Calma, está tudo bem — tentei usar do meu tom de voz mais
calmo e sereno, enquanto ela respirava ofegante, tentando recuperar o ar.
garota, que já estava mais do que assustada pensando em ter tarados tocando-
a sem sua permissão.
quarto, vestindo qualquer coisa que encontrei pelo caminho, retornando logo
depois.
para ela. Celina franziu o cenho, olhando para a minha mão como se fosse
algo completamente fora de contexto. E talvez fosse, mas não desisti, o que a
fez me tocar.
ela estava tão bonita como sempre, mesmo com os cabelos bagunçados, os
olhos vermelhos e a expressão de quem tinha acabado de acordar.
momento em que nos vimos lá fora. Era uma estrutura de vinte e cinco
metros quadrados, retangular, com flores por todos os lados. Marcela fora a
idealizadora do projeto, com a ajuda de um arquiteto, e o pai de Celina
cuidara daquele pequeno espaço por um bom tempo, até que tudo ruiu.
Pude ver nos olhos de Celina que ela estava surpresa com o que via.
Até eu mesmo, às vezes, me surpreendia. Como poderia haver um espaço
como aquele em meio a uma casa que emanava tanta escuridão?
Talvez esse tivesse sido o motivo pelo qual decidi levá-la até lá.
Sua fascinação era tão grande, que não pude resistir em perguntar:
— Gosta de lírios?
— Quando eu nasci, minha mãe queria que meu nome fosse Liliana,
para me chamar de Lily, que é lírio em inglês... Bem, você sabe. — Deu de
ombros, quase tímida por estar tentando me ensinar algo. Passado o
momento, ela prosseguiu: — No final das contas, meu pai sugeriu Celina,
porque ela ainda conseguiria me chamar de Lily, se quisesse. E este era o
apelido que usava. — Adquiriu um ar sonhador, que era novidade em seu
depois de ela ter me contado uma história que deveria lhe causar tanta
nostalgia.
— Ela é.
— Você pode vir aqui sempre que quiser. Quando estiver se sentindo
sufocada pelas lembranças...
Dorian...
Era a primeira vez que dizia meu nome sem nenhum tipo de
provocação ou malícia. Soou doce e sussurrado em sua voz, quase uma
carícia, que por muito pouco não me fez estremecer.
Eu não podia desejar aquela menina. Ela era inocente demais e havia
muita escuridão dentro de mim para que eu ousasse contaminá-la.
que claro que ela realmente não tinha o pai em alta conta.
— Parece que ele cuidava muito bem. Pena que não fazia o mesmo
com a filha — pura amargura em sua fala. Quem poderia culpá-la? Apesar de
eu dever algumas coisas ao homem, ele realmente se perdera e quem pagara o
preço fora Celina.
Havia algumas coisas que, talvez, ela precisasse saber para se sentir
um pouco melhor, mas com tanta raiva em seu coração e com as coisas tão
recentes, certamente não valeria de nada contar. Eu poderia esperar um
pouco.
— Ainda tenho medo, sabe? Eu tenho certeza de que Alemão não vai
desistir de mim. Há muito tempo sinto algo estranho na forma como me olha.
Mesmo antes de me levar ao Rosa Escarlate. Ele me tratava melhor do que às
outras meninas. Não sei se sente algum tipo de obsessão...
Até onde eu podia imaginar, ela não estava errada. A forma como o
pervertido se comportou era mais do que prova de que tinha intenções muito
— Se ele for tão obcecado quanto penso que é, não acho que pode
desistir, sabe? Ele é poderoso, rico...
é o que temos.
Ela não respondeu nada. Nem que eu estava certo nem que estava
errado. Era mais do que óbvio que minha companhia não era exatamente o
que ela sonhava para si, muito menos viver em uma casa que mais parecia
Elas eram bem quentes, bem descritas, e eu não poderia negar que me
deixaram... bem... excitada. Também foi inevitável pensar o quanto daquelas
já tinha feito com Dorian. Se ele era tão bom em dar prazer a uma mulher
minha consciência aos poucos, a primeira coisa que vi foram seus ombros
largos, braços muito musculosos, a barriga chapada e discretos pelos que se
espalhavam esparsos por um peito amplo. Tudo nele era esculpido. Perfeito.
Outras tatuagens preenchiam sua pele além daquela no punho, que foi
o que me fez distingui-lo na primeira vez em que o vi. Não consegui definir o
que eram, ou eu teria que ficar olhando para seu corpo muito mais do que
seria aceitável, mas o que vi foi suficiente para me deixar bem impressionada.
muito bom, porque provava que não me comprara para ter um brinquedinho
sexual para quando lhe fosse conveniente, mas ainda mantinha a minha
dúvida sobre a quantidade de dinheiro que pagara por mim.
Não podia acreditar que tinha algo a ver com a proposta de que eu
trabalhasse no livro de sua esposa, porque isso não fazia o menor sentido. Ele
conseguiria uma escritora muito mais famosa e competente por aquele valor.
Sinceramente, eu nem sabia o que estava fazendo. Não fazia ideia se daria
trocada sem que eu nem visse. A nova era linda – ainda em botão, em um
tom de vermelho vivo. Eu já sabia que era Dorian que as trocava, o que o
tornava bem mais sensível do que qualquer um poderia imaginar ao olhar
para sua aparência. Além disso, ele amava a esposa, isso era óbvio.
O que acontecera então? Por que era tido como um monstro, culpado
pela morte dela?
Isso era o que ainda me deixava reticente ao seu respeito. Ele poderia
soubesse que iria morrer. Estaria com medo? Teria Dorian a ameaçado ou
dado indícios de que se tornaria violento?
Mais uma vez, eu tinha coisas mais importantes para pensar. Acessei
Fui fuçando pasta por pasta, até achar uma com o ano de sua morte,
2011. Imaginei que fosse a que continua informações mais recentes, o que me
fez abri-la.
Mas era uma ironia que tivesse morrido exatamente daquela forma.
Não havia muito a ser compartilhado, não era uma vida assim tão
emocionante, mas estava mais do que claro que Marcela amava o marido. E,
aparentemente, ele era louco por ela. Romântico, gentil e dedicado, o que
contrastava totalmente com sua aparência mais bruta, e mais ainda com o
apelido que a cidade decidiu lhe dar.
livro no qual estava trabalhando era para Dorian. Era em homenagem a ele.
— Tomei um bom café da manhã. Mas não foi por mal. Acabei
perdendo a hora mexendo nas coisas aqui.
ou teria sentido medo de nos tornarmos tão próximos, mas a ideia me pareceu
até... interessante. Nunca me importei com a solidão, mas algo me dizia que
Dorian já tinha passado tempo demais por sua própria conta.
minha casa”.
Ela tinha dito que não sabia onde ficava a sala de jantar, não fora?
Então eu estava que nem um idiota, na frente da porta de seu quarto, pronto
para bater e acompanhá-la.
detetive que contratei para encontrar Celina, e que me informou sobre o dia
em que aconteceria a porra do leilão que iria vendê-la como uma mercadoria.
— Sim.
— Está. Tudo bem. Por que você está ligando? — Não era uma
pergunta muito gentil ou simpática a se fazer, mas ele já me conhecia e sabia
que eu não era de rodeios.
meninas foi morta, no dia em que Celina saiu de lá. Que Alemão ficou
furioso, escolheu uma, estuprou de todas as formas possíveis, torturou e
matou.
— Qual era o nome dela? — era importante que ela tivesse um nome.
Que alguém se importasse. Além disso, eu precisaria contar para Celina. Por
mais que a notícia fosse horrível, sabia que se descobrisse por outros meios
poderia ser ainda mais doloroso.
Sem contar que precisava saber que a obsessão de Alemão por ela
podia chegar a níveis extremos e muito perigosos.
Uma menina.
— Quero que encontre a família dela, se houver. Faça o que tiver que
fazer, eu pago. Preciso que saibam o que aconteceu com a garota. Talvez a
estejam procurando até hoje.
espelunca.
— Já tentamos na época que você tirou Marcela de lá. Você sabe que
eles têm as costas quentes. Têm a polícia na mão. E o filho da puta do dono
manda na porra da cidade inteira...
— Não importa. Está mais do que na hora. Tarde demais. Faça o que
tiver que fazer, cace o que tiver que caçar, vamos foder com eles, não importa
o que eu precisar gastar.
ela abominasse.
E por falar em desgraça... era uma merda achá-la cada dia mais
bonita. Naquela noite ela prendera os cabelos para trás, deixando duas
mechas se encontrarem, e todo o resto solto. Eram tão longos, brilhantes e de
Celina parecia um anjo, e toda essa inocência era algo que, sem
dúvidas, se tornara seu inferno particular, sua maldição. Não era difícil
entender o por quê de Alemão ser tão louco por ela.
novamente.
— Sim, fez bem. Claro que você pode usar o seu estilo, mas é
importante que haja alguma semelhança.
— Sei que não te conheço tão bem, mas aconteceu alguma coisa?
Parece mais sério do que o normal. — Ela abriu um sorriso ao final da frase,
tentando fazer com que as coisas ficassem mais leves, só que eu não consegui
corresponder. A notícia não podia ser dada com serenidade.
Ela ainda estava comendo, mas se eu pedisse para esperar, com
certeza perderia a fome do mesmo jeito, preocupada.
— Não! — Ela levou uma das mãos à boca, e pela expressão em seu
rosto, o nome não lhe era estranho.
risada sarcástica: — Claro que foi. Não pode ter sido coincidência. Ele a
estuprou?
situação de merda.
Apenas assenti mais uma vez, e uma lágrima começou a deslizar pelo
rosto de Celina.
— Ela era virgem, como eu. Isso foi uma retaliação, Dorian, eu tenho
certeza. E se ele fizer isso com outras meninas?
— Meu Deus... são seres humanos! Como você pode falar assim,
desse jeito frio. Eu estava lá. Poderia ter sido eu.
Levantei-me, sentindo que ela estava nervosa demais.
— Mas não foi. Eu realmente lamento pela moça, mas você precisa
se preservar. Está cada vez mais claro que Alemão é obcecado em um nível
muito doentio.
falado aquilo para mim, mas daquela vez, eu poderia jurar que estava mais
divagando do que conversando, já que mal me encarava, estava olhando para
o nada, com os olhos perdidos.
Queria muito dizer que não, que preferia que ela ficasse ali, porque
estava preocupado com seu comportamento, mas não podia obrigá-la.
Deitei na cama, levantei, busquei algo para fazer, mas uma hora e
meia se passou, sem que eu conseguisse parar de me sentir agitado. Precisava
falar com ela... o estrago tinha sido feito por mim, então consertar as coisas
era a saída mais correta.
Não sabendo o que iria encontrar ou como seria recebido, fui atrás
dela, colocando uma jaqueta para me proteger do frio, já imaginando que
que Dorian fora um milagre na minha vida. Mal importava o que aconteceria
dali em diante, pensar que poderia ter sido eu a me tornar o brinquedinho de
estava vivendo no conforto de uma mansão, com um homem que até aquele
momento não fora nada além de respeitoso, e ainda tinha um trabalho que
estava começando a gostar. O que me tornava melhor para ter direito a tantas
bênçãos?
de álcool até aquele dia fora uma taça de vinho que meu pai abriu um dia,
quando conseguiu um dinheiro razoável por um bico, e mesmo assim foi o
suficiente para me deixar bem grogue. Uma garrafa inteira de uísque? Eu mal
lembrava o meu nome.
que eu? Por que você me deu outra chance? O que eu tenho de especial? O
quê? — a voz soava embargada, mais um sinal de que eu estava muito
embriagada.
— Eu não sou muito bom em falar, sabe? Mas acho que você deveria
saber que seu pai falava muito de você para mim.
— Como acha que eu descobri sobre seu dom para a escrita? Ele
falava o tempo todo de você. Nem sempre as coisas são como nós pensamos
— Como assim?
— E sabe outra coisa que não faz o menor sentido? — perguntei com
um dedo em riste, mas minha mão conseguia ficar parada, no mesmo ritmo
que minha cabeça girava. — Você não me deseja. Nem um pouco.
o sexo. Meus cabelos, meu corpo, meus olhos... Eu gostava do que via no
espelho, mas ao mesmo tempo odiava. É como se eu tivesse culpa de algo.
sempre me pareceu tão frívolo. Ter uma boa aparência nunca foi nada por
esforço meu. Eu queria que as pessoas me amassem por quem eu era, que me
respeitassem por algum talento ou capacidade.
pensamentos. Não apenas porque não o conhecia, mas porque seus olhos
pareciam ilegíveis.
mulher mais bonita em quem já coloquei os olhos, e espero que não duvide
disso a partir de agora.
Dor de cabeça, boca seca, estômago embrulhado... era tudo real. Mais
do que real. Era assustador.
morrendo de fome.
Poderia ser por conta de seu coração partido, sua melancolia, sua
viuvez, e eu respeitava isso, mas ao ver seu espaço vazio, sem o seu notebook
sobre a mesa, tive a completa certeza de que sua escolha fora me evitar
depois do meu showzinho idiota na noite anterior.
Isso foi ficando mais e mais evidente quando a cena foi se repetindo
por dias.
Era um déjà vu que eu passei a odiar mais e mais. Eu acordava,
tomava banho, comia alguma coisa e ia para o escritório de Marcela, mas
Dorian nunca estava à vista. Sheila me dissera que ele estava em época de
entregar o livro novo e que aquele comportamento era comum, mas isso não
minimizou a impressão de que estava me evitando.
Ainda não possuía título, mas havia uma nota de autora. Algo curto,
mas que me deixou surpresa. Ela dizia:
Preciso deixar os créditos deste livro à vida. A história, ao menos a
primeira parte dela, não foi uma criação da minha mente. O pequeno Adam
Como ela sabia que não poderia fazer o marido feliz? O que tinha
acontecido com aqueles dois? O que eu ainda iria descobrir durante aquelas
pesquisas?
Com o passar dos dias, depois de ler aquele desabafo de Marcela, fui
encontrando mais e mais coisas.
Apesar de ser muito organizada, para aquele livro em específico ela
parecia estar trabalhando de uma forma caótica. Havia cadernos além dos
arquivos do notebook. Ela também não escrevia de forma linear, então eu não
cheguei a encontrar um início para o livro, principalmente porque suas
intenções eram que fosse um romance de formação, o que me fazia esperar
que o tal personagem, Adam – que era a personificação de Dorian –, tivesse
Ele era muito mais quebrado do que eu poderia imaginar, e aquele era
Foi essa consciência de que eu estava lidando com uma pessoa muito
peculiar que deixei meu orgulho de lado naquela noite e pedi a Sheila que me
permitisse levar o jantar de Dorian no lugar dela.
Claro que seus olhos se arregalaram ao me ver ali, na porta, com sua
bandeja nas mãos. Desajeitada e morrendo de medo de derrubar alguma
coisa, aliás.
— Boa noite. Só vim saber se você está bem. Faz alguns dias que não
nos falamos. — Estendi a bandeja, sentindo-me feliz por ele tê-la pegado e
me livrado do medo de ser estabanada.
— Não, entre.
Fiquei um pouco sem graça, pensando que ele poderia estar fazendo
isso só por educação, mas não pensei muito, apenas entrei.
Tentei não ficar olhando muito para o local, mas era um quarto
organizado. Sombrio e triste como o resto da casa, o que não me surpreendeu.
Era grande, com uma cama enorme bem no meio, com colunas, uma colcha
cinza pesada, travesseiros com fronhas da mesma cor, e havia uma mesa bem
grande, onde estava seu notebook.
assunto, mas era mais errado ainda estar trabalhando sob seu teto, em um
projeto para o qual ele me contratou sem conversar sobre o que descobri. —
Encontrei algumas coisas hoje. Parecem promissoras para eu começar, de
fato, a produzir algo.
— E qual é?
um. O que o deixou com uma enorme cicatriz no punho – aquela que fora
coberta pela tatuagem que me fez reconhecê-lo, naquela noite, no Rosa
Escarlate.
— O incêndio que matou Marcela não foi culpa sua, não é? — foi a
conclusão que eu tirei. Como ele estaria mexendo em fogo se tinha tanto
medo, memórias ruins? Não fazia sentido.
— Meu pai mentiu sobre você. Ele espalhou boatos por toda parte. Te
fez parecer um monstro e...
— Celina, por favor, eu não quero falar sobre isso — afirmou com
convicção.
falar, as pessoas vão entender. É meu dever consertar o que meu pai fez,
depois de tudo o que fez por mim e...
— Mas, Dorian...
Eu não estava preparada para ser tratada daquela forma, mas mesmo
assim mantive minha dignidade, levantei-me de sua cama, passei por ele –
ainda com a esperança de que me impedisse e que dissesse qualquer coisa
que consertasse a situação – e quase saí.
Droga, Marcela!
Sempre fui da opinião de que algumas verdades deveriam ficar
enterradas bem fundas na terra, mas ela parecia não concordar com isso.
MERDA!
estivesse sendo intrometida – palavra que ela mesma usou –, não era sua
culpa. Fui eu que decidi mexer no vespeiro.
sua esposa?
Abri-a e entrei.
Isso, sem contar que eu andava realmente fugindo dela. Desde o dia
em que quis saber se eu a achava bonita.
Compreendi seu dilema de quando afirmou que sua beleza sempre foi
Celina não era apenas a mulher mais bonita que já vi. Ela era mais do
que isso. Era corajosa, doce e generosa. Eu não a conhecia tão bem assim,
mas ela era muito mais do que apenas um rosto e um corpo atraentes.
A cena era gloriosa. Seus cabelos caíam em ondas pesadas por suas
costas, contrastando com o vestido claro, que a deixava com aquela aparência
angelical.
em casa, e eu não tinha um celular, então deixei Lúcia em casa, jurando que
ela iria se comportar, para ir à casa de um amigo ligar para o meu chefe,
avisar da falta. Era uma boa menina, não dava trabalho.
— O que eu não sabia era que minha mãe já estava ciente sobre nossa
vizinha e avisou à patroa que não poderia ir para cuidar de Lúcia. A patroa
dela era uma mulher bem legal, compreensiva. Nesse meio tempo, minha mãe
voltou para casa, do mercado... — Hesitei, porque continuar não era simples.
Eu só tinha contado aquela história para Marcela. — A perícia disse que o
incêndio começou por causa de um fósforo, que ele lambeu as cortinas da
janelinha da cozinha que ficava perto do fogão, cujo acendedor não estava
funcionando. Acho que Lúcia quis cozinhar para me ajudar, não sei... Fui
descobrindo a história aos poucos, porque quando voltei para casa, ela já
estava em chamas.
sair, porque minha irmã morreu queimada. Foi o que os laudos disseram.
Com sua mão delicada, Celina tocou minha cicatriz, com os dedos
acariciando as curvas que a pele deformada fazia. O tatuador conseguiu
— Não foi sua culpa — ela falou com tanta doçura que eu quase me
perdi em suas palavras, quase me deixei levar por elas.
Marcela tinha dito o mesmo, mas ela nem de longe era tão paciente,
meiga e adorável como Celina. Eu não queria compará-las, de forma alguma,
mas minha falecida esposa era um furacão. Celina era calmaria. Algo que eu
apreciava e, talvez, precisasse.
— Não adianta eu dizer isso, sei muito bem como funciona. Todos os
dias tento encontrar a culpa em mim em relação ao que aconteceu. Fico
tentando procurar algum momento em que eu tenha atiçado os instintos
doentios de Alemão ou insisto que poderia ter fugido, encontrado um
trabalho em algum lugar... qualquer coisa. Até o tipo de roupa que usei me
passa pela cabeça. E eu sei que é errado, mas não consigo evitar esses
pensamentos.
Merda...
Como ela podia saber exatamente o que eu sempre desejei ouvir, mas
nunca me disseram? A culpa era uma merda, uma porra de uma doença que
me consumia por dentro, mas não era simples se livrar dela, como todos
tesoura grande, voltando ao ponto onde Celina estava. Ela parecia curiosa,
mas manteve-se parada, observando-me.
Celina vieram parar no meu peito, espalmadas – uma delas segurando o lírio
A forma como nos entendemos e nos encaixamos foi tão natural, tão
perfeita, que parecia que fazíamos aquilo há muito tempo. Ou mais do que
isso: era como se estivéssemos destinados um ao outro.
— Não diga que foi um erro, por favor — deixei escapar, porque,
pela forma como nos afastamos – como ele recuou –, algo me dizia que iria
tentar minimizar o que aconteceu.
Dorian abriu a boca, com os olhos cheios de uma emoção que gritava
arrependimento. Apressei-me em encostar o dedo indicador em seus lábios,
calando-o.
— Não foi errado para mim. Eu queria. Quero — enfatizei, para que
entendesse que minha intenção não era que se tratasse de um beijo perdido
que nunca repetiríamos.
Agarrando a minha mão com a sua, ele beijou os nós dos meus dedos,
com os olhos fechados, bem apertados, e a minha outra mão, a que segurava
o lírio, foi parar novamente em seu peito, na altura de seu coração, e eu me
dei conta de que estava batendo no mesmo ritmo do meu. Acelerado, fora de
ritmo, frenético.
— Não quero que pense que isso tem alguma coisa a ver. Que estou
— Seria bem idiota da minha parte. Você poderia ter feito isso na
primeira noite, e aqui estou eu, ainda intocada.
Ele, aliás, parecia estar mantendo-as ali, como duas prisioneiras, porque
temia ir mais longe e me tocar de uma forma que ele ainda não sabia se era
permitido.
Quando nos afastamos, bem diferente daquela primeira vez, que foi
por um rompante, ele ainda me tocava com carinho e continuou deixando
selinhos na minha boca, chegando a dar uma mordida sexy no meu lábio
inferior, puxando-o com a dose certa de intensidade.
Mais uma vez tivemos nosso momento de olhares trocados, até que
Dorian me puxou para os fundos da estufa, exatamente o mesmo ponto onde
nos sentamos no outro dia, quando eu estava mais bêbada do que seria
prudente, mas me surpreendeu ao me puxar para que me sentasse em seu
colo.
Ergui uma sobrancelha, surpresa, mas ele não respondeu nada, apenas
deu um beijo na minha testa e me puxou, para que eu aninhasse a cabeça em
seu peito.
esperava — falei baixinho, enquanto seu coração pulsava contra meu ouvido,
proporcionando um som que poderia me acalmar facilmente em pouco
tempo.
Ele me afastou um pouco, para que nos olhássemos nos olhos, e seu
cenho estava franzido, em confusão.
nós.
E ele sorriu.
— Muito — falei com toda a sinceridade e fui beijada mais uma vez,
só que de uma forma completamente diferente. A pegada de Dorian tornou-se
mais cheia de gana, e eu cheguei a soltar um gemido de puro prazer quando
uma de suas mãos apertou minha cintura, mergulhando os dedos na carne,
quase como se quisesse tomar posse.
Eu queria que ele me beijasse para sempre, que nunca parasse, que
nossos corpos se perdessem ali mesmo, que me possuísse, que me
Ele foi descendo aquela boca experiente pelo meu pescoço, afastando
a alça do meu vestido, e eu deixei a cabeça cair para trás, soltando o ar que
estava preso no meu pulmão. Meu peito subia e descia, e eu queria que
Dorian me tocasse ali, com as mãos ou a boca; ou ambas. Queria que usasse a
força de suas mãos para me tocar com desejo, que acalmasse o calor que
estava nascendo entre as minhas pernas.
tempo.
Quando estava de costas para a porta, alguém entrou. Jurei que seria
Dorian, mas reconheci o rosto como sendo o de um dos homens de Alemão.
boca, calando-me.
— A putinha teve uns dias de princesa, né? Mas agora meu chefinho
te quer de volta. Espero que fique quietinha ou vai apanhar, está escutando?
Como aquele bandido tinha chegado até ali? Como chegara até mim?
Ele fedia a álcool e a cigarro, e tudo o que eu pedia era que Dorian
voltasse e não permitisse que me levasse.
CAPÍTULO QUINZE
Poderia não ser nada também, mas mantive a tesoura na minha mão para o
caso de precisar me defender. Ou, mais importante, defender Celina.
Minha casa era segura. Além disso, o que Alemão iria fazer?
Pagar tanto dinheiro por Celina fora errado. Uma mulher não deveria
ser comprada nem vendida, mas esperei que fosse uma garantia de que ela
jamais precisaria voltar para aquele lugar. O filho da puta do dono do Rosa
Escarlate, que sequer morava em Santa Celeste do Sul, era um avarento e
certamente ficara louco com tanta grana, especialmente porque fiz questão de
assinar um documento – o que era ainda mais ridículo levando em
consideração o que fora negociado –, mas esperei que isso fosse suficiente
para tirar a moça de seu radar.
Tirá-la de mim...
De mim.
O que acabara de acontecer conosco... seria certo? Ela era tão mais
jovem, tão inocente, tão delicada e doce... O que eu poderia acrescentar na
vida de uma moça como ela? Um homem recluso, que não tinha muitas
intenções de ver o mundo e sair de sua toca. Eu gostava de ficar no meu
canto, escrevendo, produzindo e ganhando meu dinheiro. Gostava de passar
Porra, não era apenas um desejo físico, uma atração óbvia porque ela
era linda. Era mais do que isso. Eu queria protegê-la. Queria fazê-la sorrir.
E os beijos... puta que pariu. Ela estava molhada para mim. Teria
gozado nos meus dedos se tivéssemos ido mais longe. Eu me certificaria
disso.
Voltei para a estufa com isso em mente. Nada poderia nos impedir
daquela vez.
ousei usar a tesoura que tinha em mãos. Por mais que pensasse em mim
daquela forma muitas vezes, eu não era um monstro. Não era um assassino e
não queria ser. Eu poderia encher a cara daquele demônio de porradas, mas o
levaria à polícia, que era o certo.
Só que ele não parecia ter a mesma índole que eu, porque agarrou
minha mão que segurava o objeto pontiagudo, torcendo-a o suficiente para
que a lâmina me atingisse, bem na cintura, fazendo um corte.
A dor era aguda, intensa, e eu temi por Celina, só que ela foi rápida
em pegar a tesoura que deixei cair, antes do desgraçado. Estava suja de
sangue, pingando, mas a garota a apontou para ele, e sua voz soou dura,
corajosa, irritada:
— Você não faria isso, lindinha. É uma boa moça, não é? Não teria
coragem de machucar outro ser humano.
da mão de Celina, mais puto do que seria bom para a minha insanidade, e me
aproximei do saco de bosta, encostando a ponta do que, naquele momento,
era uma arma, bem em sua barriga, chegando a perfurar um pouco.
— Eu não vou te matar agora porque quero que avise ao Alemão que
se ele voltar a mandar alguém na minha casa, será recebido de forma muito
menos cordial. Esqueça Celina. Eu paguei por ela, ela está livre dele. — Era
uma forma odiosa de se falar, mas eu esperava que Celina entendesse.
olhos.
minha condição, mas, ao mesmo tempo, muito orgulhoso por Celina ter
— O que aconteceu hoje não vai acontecer de novo. Eles não vão
chegar perto de você outra vez — sussurrei em seu ouvido, tentando parecer
o máximo seguro possível. Era o que eu queria, mantê-la segura, mas naquela
— Eu confio em você.
do tempo.
Dorian tinha pedido que a história não fosse contada com a menção
de que era verídica e sobre ele, mas eu ainda não tinha certeza se iria manter
sua decisão ou se fora um rompante. Fosse como fosse, eu precisava começar
efetivamente a produzir.
declarássemos isso aos leitores, seria bom eu ter uma base para me guiar.
alguns dias que ele já estava cem por cento bem, já que o incidente
acontecera há uma semana e meia, e ele era um homem forte, com uma boa
recuperação.
Eu não tinha mais dormido em sua cama, desde o dia em que fora
ferido, mas voltava para a minha bem tarde, quando já estava exausta e com
os lábios inchados. Dorian também não tentara ir mais longe, como na noite
na estufa, em que me tocara de forma mais íntima, mas eu queria.
garganta.
Só que a cada vez que eu era literalmente tomada daquele jeito, por
sua pegada forte, eu começava a pensar por que não me entregar por inteiro?
Sem dúvidas estava apaixonada, e por mais que ainda não tivesse
coragem de declarar, meu coração sabia. Nunca tinha acontecido comigo,
então era algo especial. Não havia homem mais especial para que eu
entregasse meu corpo pela primeira vez a não ser aquele que me salvou de
todas as maneiras.
então o que eu poderia fazer para que ele compreendesse onde queria chegar?
— Celina... — ele falou por entre dentes, mas seus olhos não saíam
dos meus seios. — É perigoso me provocar dessa forma.
— Por quê?
— Ainda bem.
daquela forma.
E... pelo amor de Deus! Eu não fazia ideia de que era daquele jeito.
Ou talvez não e Dorian fosse o homem mais habilidoso do mundo.
Eu queria gritar. Mais alto do que deveria. Queria gemer de forma tão
ensandecida que o mundo inteiro poderia ouvir. A língua me acariciava, ora
de forma mais veloz, ora de forma mais lenta e sensual. Ele chupava, sugava,
pena.
respirar.
cintura para me levar até a cama. Fui deitada com cuidado, e ele me deixou
meu coração.
E foi o que aconteceu. Foi doloroso no início, mas logo ele conseguiu
me dar prazer. Aparentemente estava sentindo o mesmo, porque os sons que
saíam de sua boca eram deliciosamente eróticos.
contra seu corpo, e eu me senti protegida como nunca. A sensação era de que
aquele homem não permitiria que nada acontecesse comigo.
Não tive pesadelos. Não que fossem sempre tão assustadores quanto
na noite em que acordei gritando, mas sempre estavam presentes. Muitas
vezes como cenas rápidas e silenciosas que me perturbavam a mente o
suficiente para que eu despertasse pensando e passasse o dia inteiro
lembrando-me das emoções assustadoras. Só que ao lado de Dorian eles
simplesmente tinham desaparecido.
Fora isso, eu poderia até imaginar de onde vinha aquela chave. Havia
uma caixinha dentro de uma das gavetas da escrivaninha, que eu nunca
consegui acessar, porque supus que a chave estaria perdida.
pousada sobre um papel. Ela sorria feliz, mas havia uma marca neste mesmo
pulso.
Pobre mulher.
imagens.
Nostálgicos.
— Fui, até onde um homem pode ser quando tem a mulher que deseja
muito, mas não tem seus sentimentos correspondidos. — Ele voltou seus
olhos cheios de pesar para mim: — Marcela nunca me amou. Eu fui um
refúgio, um porto seguro para ela. Nós nos dávamos bem, quase como
amigos, mas eu sentia que ela era minha esposa, na prática, porque pensava
que me devia algo.
— Pelo que pude perceber ontem, acho muito difícil que uma mulher
fizesse qualquer coisa com você por obrigação.
Dorian sorriu. Não era agradável falar com o homem por quem eu
estava apaixonada sobre o sexo que fazia com outra mulher, mas era
necessário fazê-lo enxergar o que, aparentemente, ele não conseguia por
conta própria.
— Existe uma grande diferença entre fazer amor com alguém quando
há sentimentos envolvidos e quando não há. Quando há uma entrega total de
corpo e alma por parte da outra pessoa.
— Não foi por acaso que eu quis tirar você daquele lugar. Eu já tinha
péssimas memórias.
amantes constantes, porque eu sempre voltava por ela. Até que me contou sua
história. — Ele fez uma pausa, demonstrando pesar. — Ela foi leiloada,
assim como você, e eu era o primeiro homem que tinha qualquer
consideração ao tratá-la. Nós conversávamos, tínhamos uma interação. Só
que, infelizmente, quando consegui livrá-la de lá, também pagando um
dinheiro muito alto por sua liberdade, ela já estava completamente doente
emocionalmente. Não conseguia me amar, por mais que tentasse.
— Você não precisa me contar nada que não queira — afirmei. Por
mais que minha curiosidade falasse mais alto, não queria torturá-lo.
— Mas eu quero. Acho que tem coisas que você precisa saber,
porque fazem parte da sua história também.
Havia uma cruz fincada na terra em um canto, e foi para lá que levei
Celina.
Não havia inscrição, mas não era difícil entender que se tratava de
uma lápide. Provavelmente ela interpretou erradamente, então eu fiz questão
de esclarecer:
Celina me olhou com surpresa, e eu podia ver em seus olhos que não
compreendia o motivo.
— Ele foi um grande amigo meu — acrescentei, meio que sem saber
o que dizer, desejando poder lhe dar algum tempo para lamentar. Era direito
dela, sem dúvidas, mas eu queria que soubesse a verdade.
— Seu pai era o único que sabia que foi Marcela que colocou fogo no
quarto do bebê. Ela começou o incêndio. — Celina levou a mão à boca,
chocada.
tal imagem perante ninguém. — Nós perdemos nosso filho. Ele nasceu
morto. Isso devastou Marcela, porque a gravidez foi a única coisa que a
deixou realmente feliz.
Por mais que eu tivesse feito de tudo por ela, minha esposa nunca
conseguiu viver plenamente. Eu a incentivei a escrever, que sempre foi seu
sonho, possibilitei seu contrato com uma editora gringa, fui o mais carinhoso
possível e lhe dei espaço. Nunca a obriguei a nada, sempre compreendi seus
o sexo com uma pessoa de quem você gostava e com alguém aleatório.
Nunca fui um homem de relações casuais, embora elas tivessem acontecido, e
a única mulher por quem nutri mais do que uma atração, não conseguia
retribuir nada.
Ela respondia ao sexo, sentia prazer, gostava do ato em si, mas ele lhe
trazia lembranças tão ruins, de ser machucada constantemente e maltratada,
que não conseguia se libertar.
— Desculpa por ter bebido tanto naquela noite. Devo ter ressuscitado
lembranças bem ruins — pediu com humildade, mas eu balancei a cabeça em
negativa.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sei onde conseguiu as
bebidas, porque ela achava que eu não sabia que as escondia, mas o que eu
poderia fazer? Se a proibisse, ela se tornaria ainda mais miserável.
— Não. Cortou os pulsos com uma gilete. Só estávamos eu, seu pai e
Sheila em casa. Foi em uma tarde. Quando o fogo começou, ela já tinha
sangrado muito. Provavelmente se feriu antes de iniciar o incêndio,
incêndio foi culpa minha. Eu não queria que as pessoas começassem o boato
de que Marcela era louca. Por muito tempo ela sofreu com o julgamento de
todos, por ser uma prostituta, sem que nem soubessem como foi levada a essa
vida.
— Mas não houve uma perícia? Não sabem que a causa da morte
dela foi pelos cortes nos pulsos?
— Tudo foi feito em outra cidade. Aqui, em Santa Celeste, as pessoas
acreditam muito mais no que ouvem e no que querem acreditar. — Celina
— Dorian... não...
— Ele ficou sem emprego por minha causa. Eu estava louco, Celina.
Destruí a estufa inteira. Só depois de muito tempo conseguimos trazê-la de
volta à vida.
— Ele podia ter escolhido mil outros caminhos. Isso não foi culpa
sua — ela respondeu com veemência, parecendo querer muito que eu
acreditasse em suas palavras.
— Qualquer pai morreria por um filho, mas ele não morreu por sua
culpa. Não foi você mesma que disse que ele buscou o que aconteceu? Que
tinha escolhas? Ele te colocou em uma situação perigosa, e sabia disso.
Quando decidiu ir tentar te buscar, sabia dos riscos. O que teria acontecido se
você tivesse sido realmente vendida a alguém que quisesse te fazer mal? Te
usar? Tirar sua virgindade, como era o plano inicial? E se estivesse agora nas
mãos de Alemão? Seria culpa sua? — falei com paixão, porque não queria
que ela continuasse pensando daquela forma. Celina não merecia.
Ela foi segurando enquanto podia. Com uma força que nem parecia
possível de existir naquele corpo delicado. Quando levou as mãos ao rosto,
cobrindo-o, e ameaçou despencar no chão de tanta angústia, eu a segurei,
amparando-a nos meus braços e aos poucos fui baixando-a, até que nós dois
estávamos ajoelhados no chão, sem nos importarmos que era terra pura e que
iríamos nos sujar.
Quando ela se acalmou, eu a ajudei a se levantar e a vi caminhar sem
qualquer explicação, o que me fez segui-la. Vi quando parou na estufa, entrou
Sem pensar duas vezes, cortei com cuidado um dos mais bonitos dos
O luto tornou-se presente em minha casa nos dias seguintes. Era uma
situação familiar para mim, mas decidi que Celina merecia seu tempo para
lamentar a morte do pai. Entristecia-me pensar que sua maior dor era por
achar-se culpada de alguma forma. Ela era a vítima naquela história.
Mas eu entendia muito bem de culpa. O suficiente para saber que não
bastava simplesmente dizer: tire isso da sua cabeça. Eu a compreendia.
Queria que soubesse que eu estava ao seu lado e que minha empatia era
infinita.
Com isso, descobri que tinha muitos enredos em mente. Contar suas
histórias para mim, enquanto estávamos abraçados na cama, para que eu a
Só que o que eu pensei que era apenas uma paixão, algo novo e
indefinível que começava a crescer, foi se avolumando dentro do meu peito
até que parecia mal caber. Eu era um recluso, um solitário, alguém que não
lidava bem com sentimentos, mas não havia dúvidas. O que explodia dentro
do meu coração quando eu olhava para ela não era algo simples ou trivial.
Era uma emoção diferente, especial.
Como não reconheci o número, julguei que pudesse ser algum celular
de alguém da editora. Não era incomum que funcionários novos do
marketing, ou da assessoria de imprensa, entrassem em contato comigo,
especialmente durante a produção de um livro. O último que entreguei estava
dicas, mas, em sua maioria, minha garota era incrivelmente talentosa por si
só. E eu estava muito ansioso para mostrar o trabalho dela para todo mundo.
Não apenas para a editora, mas para os leitores.
Que mundo era aquele em que homens achavam que poderiam ter
posse sobre outro ser humano? Que nojo de universo permitia que mulheres
fossem escravizadas daquela forma, ao ponto da pobre Mercedes, que eu nem
jurei que estávamos livres. Mas eu deveria ter adivinhado que aquele
desgraçado não desistiria tão fácil. Claro que tinha o fato de que ele a
desejava, mas eu poderia jurar que seu ego ferido contava muito mais naquela
situação.
Se ele queria iniciar uma discussão sobre a posse de Celina, não seria
comigo. Eu não iria ficar perdendo o meu tempo, enquanto uma mulher linda
me esperava na cama, desejando estar comigo.
Por que tinha a impressão de que ele parecia seguro demais de que
conseguiria chegar a nós?
— Aproveite seu tempo com ela. Será curto.
E desligou.
arquitetado.
A paz era passageira, eu sempre soube disso, mas não pensei que
pudesse durar tão pouco. Nunca duvidei que Alemão viria me procurar, mas
julguei que teria mais algum tempo com Dorian. Sentindo-me protegida e
vivendo um sonho, de escrever, de construir meu livro, de viver em um lugar
— Escute, Celina, eu não vou deixar que ele faça nada contra você,
mas acho que precisamos fazer alguma coisa — ele afirmou com convicção,
e eu ergui uma sobrancelha.
— Tenho uma casa, em outra cidade, você poderia ficar lá. Ao menos
por um tempo, até que meu detetive consiga provas para destruir o Rosa
Escarlate.
— Posso enviar um segurança com você para essa casa. Podemos dar
um jeito... Ele não vai te encontrar lá.
Dei as costas para Dorian, esperando que ele não percebesse o quanto
aquela ideia me deixava mal. Não queria me separar dele. Não queria ser
enviada para uma casa distante e isolada, sendo vigiada por um segurança,
como uma fugitiva. Mas o que eu poderia dizer? Estaria sendo imprudente se
insistisse? Se batesse o pé e dissesse que queria ficar?
Eu não esperava uma confissão como aquela. Muito menos como ela
soou.
— Eu amo você.
Dorian... me amava?
Era quase covardia de sua parte usar o apelido que minha mãe me
dera, pelo qual eu não era chamada há tantos anos e do qual sentia tanta falta.
Aquilo me levou às lágrimas quase que instantaneamente.
declaração.
nela. Agarrou meus dois braços e prendeu meus punhos contra o concreto,
sobre a minha cabeça, com uma de suas mãos, usando a outra para abrir os
botões da frente da blusa do pijama que eu estava usando para dormir. Sem
sutiã, o atrito de seus dedos com meu seio era quase insuportável, no melhor
sentido da palavra.
— Eu vou amar te foder esta noite, querida. É o que você quer, não
é? — era um sussurro combinado com um ronronar muito másculo, e eu
quase não consegui me firmar em minhas próprias pernas de tanto tesão.
Dorian enfiou outro dedo dentro de mim, estocando com mais força,
fodendo-me com suas mãos, enquanto reivindicava meus lábios, com minha
cabeça virada para trás, por cima do ombro. Era impossível seguir o beijo
com coordenação suficiente enquanto ele me tocava daquele jeito. Tentei me
desvencilhar, não porque não quisesse beijá-lo, mas porque não conseguia,
mas ele agarrou meus cabelos, inclinando minha cabeça para trás, e
mergulhou sua língua ainda mais na minha boca.
excitada.
Quando me dei conta, ele estava segurando meus dois punhos para
trás das costas, amarrando-os com algo. Um tecido suave, como seda.
Mas foi ainda mais intenso quando Dorian trocou sua mão por sua
boca, ordenando que eu continuasse olhando. Ver sua cabeça movimentando-
Não poder tocá-lo, não poder levar minhas mãos a seus ombros para
agarrá-lo como eu gostava de fazer enquanto me chupava daquele jeito, era
uma tortura, mas que só aumentava o nível de prazer.
coisa na cama. Mas, talvez, ele estivesse certo. Com a pessoa correta, tudo se
tornava muito mais gostoso.
preenchida lentamente, com ele atrás de mim. Era a primeira vez que
usávamos aquela posição, e a cada centímetro de seu pau que ia entrando em
mim, eu já sentia que perderia a cabeça pouco a pouco.
investida, parecia querer mais e mais, afundando-se em mim até onde era
possível ir.
Suas mãos agarraram minhas coxas com força, mas não me importei.
Queria que deixasse uma marca em mim, que seus dedos ficassem tatuados
por alguns dias na minha pele branquinha, para que eu sentisse que lhe
pertencia, só que não da forma como poderia ter acontecido, dadas as
circunstâncias da nossa história.
Dorian realmente me reivindicara para si, só que com seu amor, e não
com seu dinheiro.
Foi pensando nisso que cheguei ao clímax, seguida por ele, nossos
sons ecoando pelo quarto, e, em seguida, nossas respirações se moldando
uma mochila, além de seu celular, e nós saímos de mãos dadas do quarto.
passagem.
— Você está brincando comigo! — Não era hora para isso, mas não
pude deixar de comentar. Havia uma passagem secreta na biblioteca?
para chegar até mim, ele o faria. Dorian, principalmente. Aliás, essa deveria
ser a sua estratégia. Enquanto estivesse vivo, Dorian seria o homem que
pagou uma fortuna por mim; eu seria, na teoria, sua propriedade. Se
morresse, ele poderia me tomar para si.
Deus... era doentio, mas eu poderia jurar que deveria ser isso que
passava por sua cabeça.
Dorian começou a dirigir, subindo uma pequena ladeira e abrindo um
alçapão – ou algo assim –, pelo qual passamos, saindo no terreno onde havia
a lápide do meu pai. Ou seja, fora dos limites da mansão. Outro portão foi
aberto, nos fundos desse lote, e saímos na noite, enquanto o caos reinava
atrás de nós.
poderiam? Como Dorian iria fazer para defender duas mulheres sozinho
contra pessoas armadas?
eles?
paz de volta?
Mas minha resposta não tardou a chegar, porque assim que saltamos
do carro, mal vi de onde veio a ação, mas eu fui agarrada, e minha boca foi
coberta por uma mão enluvada.
— Ele vai ficar bem, preciso da Fera para o show final. Quero que ele
assista enquanto eu te foder, ruivinha. Depois, sim, ele pode ir para a vala.
Não! Meu Deus... Não! O que estava acontecendo...? Como ele nos
encontrara?
mesmo uma cópia da chave, já que tinha acesso a tudo de Dorian, por ser sua
assistente pessoal.
um pingo de empatia? Até onde eu sabia, Dorian sempre fora bom para ela.
— Claro. Mas antes, você pode mostrar uma coisa para a nossa
amiguinha aqui? Erga a manga do seu casaco.
Ela caiu bem aos nossos pés, enquanto eu gritava por trás da mão
sobre a minha boca, porque a cena era traumatizante.
Gasolina.
cabeça doer, bem na nuca. Não demorei também a perceber que meus punhos
estavam amarrados para trás de uma cadeira.
deitada sobre uma cama, apagada, com um vestido branco muito parecido
com o que a vi usar no maldito leilão do qual a tirei.
verificar quem estava ali, qual era a situação e o que eu poderia fazer para nos
livrar dali. Com algum esforço, eu sabia que conseguiria me soltar, mas
precisava ganhar algum tempo.
Fosse como fosse, eu não podia perder tempo, então logo comecei a
tentar me libertar.
Não fiquei sem companhia por muito tempo. Claro que Alemão
estava entre nós e não demorou a aparecer.
nem se defender.
— Vá se foder — falei por entre dentes, com uma raiva que fazia
meu corpo queimar. Sem contar os meus punhos. Não me importava se os
esfolasse por inteiro, mas eu ia conseguir me soltar. Era minha meta de vida
naquele momento.
— Não vou precisar. Eu vou foder a princesinha aqui. Tão duro... —
Ele suspirou, continuando a passar a flor em Celina. Era nojento. Eu queria
matá-lo. — E quero que você assista tudo, VanCanto. Quero ver a sua cara
quando eu estiver gozando dentro dela. Talvez até fazendo um filho. Seria
uma linda criança, não seria?
problema.
— Deve ser muito deprimente precisar pegar uma mulher estando ela
inconsciente, não é? Ou precisar manter um homem amarrado para que ele
não te dê umas belas porradas... — arrisquei, em tom provocador. Eu não
conhecia Alemão muito bem, mas sabia que ele tinha um ego grande. Sabia
que toda aquela perseguição a Celina era mais fruto de uma obsessão, porque
ele a queria e não podia tê-la do que desejo em si.
havia mais coisas naquela relação. A posse, principalmente. Ele pensou que
ela seria seu brinquedinho para usar quando bem entendesse, como fazia com
as outras mulheres, e eu estraguei seus planos.
Fiquei com medo de que isso o deixasse mais nervoso e partisse para
cima de Celina, mas levantou-se da cama e começou a se aproximar de mim.
Ótimo, eu estava quase conseguindo me soltar.
— Foi bom pra você, filho da puta? Acha que mexe com a minha
consciência, falando uma merda dessas? Estou pouco me lixando para a
moral e os bons costumes. Posso te encher de porrada enquanto estiver aí
preso, e eu só vou sentir o prazer de ouvir teus ossos contra os meus. — Ele
deu uma risada nada agradável e coçou o nariz, o que me fez acreditar que
estava chapado. Então olhou para Celina e lambeu os lábios, como se ela
fosse uma sobremesa deliciosa. Isso revirou minhas entranhas. — E sobre
— E você acha que ele tem controle sobre tudo? Acha que contei a
ele sobre ela? — Apontou para Celina. — Ela era minha preciosidade. Só que
eu precisava de uma desculpa para pegá-la. O pai dela ficou nos devendo,
então foi perfeito. Não me importaria em me aproveitar dos restos de outro,
porque ela seria minha no final das contas. Ela não seria propriedade do Rosa
Escarlate.
esperei o momento certo. Assim que o filho da puta virou-se de costas para
mim, pulei sobre ele, agarrando-o e girando-o na minha direção, acertando
um primeiro soco.
Ouvi quando gritou e outro homem entrou, armado. Claro que ele não
estaria sozinho. Era covarde o suficiente para não se garantir daquela forma,
mesmo contra um cara amarrado.
Não me importei. Estava alucinado. Para mim, aquilo ali era vida ou
morte – a defesa da mulher que eu amava; para ele? Apenas mais um
trabalho. Ele provavelmente nem sabia por que estava me ameaçando. Eu era
um alvo sem história. Nossas motivações eram diferentes, o que, novamente,
Peguei a cadeira onde estava sentado, e minha reação foi tão louca,
tão inconsequente, de voar no capanga com ela, que ele nem se mexeu. Usei-
a contra seu punho, tão rapidamente, que este largou o revólver, fazendo-o
cair no chão. Ergui uma das pernas para chutá-lo contra a parede e aproveitei
o tempo para agachar-me e me armar com a arma que ele derrubou.
Merda! Merda!
Claro que o local estava cheio de gasolina, e por que ele não
umedeceria também a cama? Por que não garantiria essa vantagem para si?
Eu sabia que ele tinha Celina como um objeto de posse e que tinha alguma
predileção por ela, mas isso não queria dizer que não seria capaz de chegar a
extremos para salvar sua pele. Ele era egocêntrico a esse ponto, sem dúvidas.
Se eu atirasse...
Porra, por mais que eu não fosse um expert em armas, já tinha
praticado tiro, novamente para estar seguro na construção de um livro. Talvez
essa fosse a magia de ser escritor, você sabia um pouco de cada coisa apenas
pelas pesquisas que fazia. E a minha pontaria era muito boa.
Ainda assim...
Mais uma pessoa a quem eu amava que morreria nos meus braços –
literal ou figurativamente.
Enquanto ele falava, até ouvi suas palavras, mas não conseguia
absorvê-las. Minha atenção estava totalmente focada nas minhas próximas
ações; no que eu precisava fazer.
Então eu esperei.
Alemão continuou sua provocação, supondo que eu perderia a
cabeça. Que acabaria desistindo ou me entregando, ou talvez ele não
imaginasse que meu sentimento por Celina fosse tão forte. Provavelmente
julgava que fosse apenas tesão, porque era o máximo que ele conseguia
sentir.
O joelho foi meu alvo. Era um tiro doloroso, e aquele filho da puta
merecia toda a dor que eu pudesse lhe causar. Eu sabia que tentar na cabeça
seria arriscado. Era um ponto muito específico. Tinha mais chances de errar,
assustando-o e fazendo-o causar um acidente. Para baixo, eu tinha mais
espaço. Se acertasse uma coxa ou um quadril, seria uma ideia menos segura,
mas o desequilibraria antes que conseguisse acender o próximo fósforo.
para atirar a queima roupa e acabar com aquilo. Tirar a vida de alguém não
era algo que me agradasse. Eu não era um monstro, não era um assassino.
Chamavam-me de Fera, mas o verdadeiro demônio estava ali, abatido, no
chão.
audíveis, me perseguiriam por muito tempo, mas que nada disso importava.
Corri para a cama, sem soltar o revólver, e enquanto fazia isso, pensei
em dar um tiro de misericórdia no homem que agonizava. Só que,
novamente, ele não merecia isso. Não depois de ter feito mal a tantas pessoas.
Era hora de tirá-la dali. Sua voz, seus olhos me fitando, débeis, mas
vivos, me deram forças. Levantei-me, ajeitando-a no meu colo, começando a
caminhar novamente.
Virei as costas para casa, mas vi que Celina olhou para ela por cima
do meu ombro.
repulsa, ou talvez dos dedos, dos pés... Não sabia e não queria checar. Talvez
eu pudesse me considerar uma sortuda, porque estive inconsciente durante
todo o processo, mas os olhos vidrados de Dorian me diziam que muita coisa
Só que não recebi nenhuma resposta. Ele estava sério, calado, sisudo,
e marchou pela casa, passando para os fundos por um caminho lateral,
levando-me para a estufa.
Também permaneci calada, dando-lhe tempo, apenas com medo de
que sua raiva tivesse alguma direção a mim. De uma forma ou de outra, eu
era a culpada.
— Você não tem culpa de nada — ele afirmou com tanta convicção
que eu cheguei a estremecer em seus braços. Dorian estava puto. Então eu o
deixei seguir seu caminho, em silêncio, aceitando o que pretendia fazer.
Então ele ainda não sabia... Que ótimo! Teria que ser eu a dar a
notícia. Não era algo que me agradasse, e eu nem saberia como fazê-lo, mas...
ok.
— Dorian, ela nos traiu. Foi ela que contou sobre nossa localização,
sobre a cabana. Não sei o que mais compartilhou com Alemão. — Isso
pareceu chocá-lo, e ele olhou para mim com os olhos arregalados. — Além
disso... — hesitei, sabendo que seria mais uma notícia que o deixaria
surpreso, e de uma forma nada positiva. — Ela tinha a tatuagem do Rosa
Escarlate.
— Não era no pulso. Era no braço. Talvez por isso você nunca tenha
visto.
— Sim, ela sempre usava casacos, blazers... Comentei uma vez que
ela não precisava ser tão formal, especialmente no calor, mas não adiantava.
Aí estava a explicação.
Assenti, e nós dois perdemos algum tempo um pouco pensativos.
— Ela deve ter sofrido muito, Dorian. Não a julgue — falei baixinho.
Talvez fosse pedir demais para ele, que perdoasse uma pessoa que o traiu
daquela forma, que fez o que fez, mas eu sabia que seu coração era grande.
Tão grande ao ponto de salvar uma garota que ele não conhecia só por
— Entendo.
— Mas creio que um dia vou perdoá-la. Agora só estou com raiva.
Preciso me acalmar.
— Agora que Alemão está fora da minha vida, você não precisa me
manter sob suas asas, não é? — tentei soar casual, sem toda a carga
emocional e o medo que a ideia de perdê-lo me proporcionava, mas foi quase
impossível.
— Por quê? Você quer ir embora? Quer... — Quase sorri ao vê-lo tão
rondavam vieram à tona com aquele pequeno gesto, que, para mim, era tão
grandioso.
— Eu disse que te amo, Celina. Não falo esse tipo de coisa da boca
para fora.
mais, até.
O beijo que veio em seguida foi bem mais intenso que o anterior, e
nós nos entregamos a ele como se fosse nossa redenção. E talvez realmente
fosse.
Já era de manhã quando caminhamos até a casa, de mãos dadas.
Dorian e eu tomamos banho, cada um em seu quarto, e eu combinei que iria
para a cama, com ele, para descansarmos, assim que terminasse o banho, mas
acabei dando uma passada na biblioteca para pegar um livro, porque eu tinha
certeza que não conseguiria dormir tão facilmente, apesar de exausta.
centro.
Sem nem pegar o livro que eu queria, saí apressada e subi as escadas,
chegando ao quarto de Dorian. Ele estava usando apenas uma calça, sem
camisa, secando os cabelos longos, e eu precisei conter a resposta do meu
corpo a ele. Não era o momento para isso, é claro, mas era completamente
inconsciente. Era um homem lindo em todos os sentidos, e eu era uma mulher
de sorte por tê-lo, por amá-lo e ser amada.
Deixei a carta endereçada aos dois, porque, por mais que tenha sido
por pouco tempo, Celina fez parte da minha vida e merece uma explicação.
Sheila.
Escarlate no braço de Sheila não duvidei que ela havia passado por um
inferno naquele lugar e que tudo o que fizera, por mais condenável que
pudesse ser, tinha uma explicação. Não fora cem por cento sua culpa. Por
mais que tivéssemos nossas escolhas e que ela pudesse ter pedido ajuda a
Dorian, nem sempre as coisas são tão simples. Na teoria tudo é menos
complicado; na prática... só quem vive sabe.
UM ANO DEPOIS
suficientes para provar que o local era financiado e frequentado por gente
muito grande da cidade e arredores. O paspalho do prefeito de nossa cidade,
Joelson Muniz, foi tirado de sua casa pela polícia federal, em um ato que
gerou uma comoção em todas as pessoas de Santa Celeste do Sul. Foi notícia
por meses. O vice que assumiu alegou não ter conhecimento de nada e ainda
estava sendo investigado. Aparentemente nada fora encontrado, esperava que
continuasse assim.
trinta e dois anos. Algumas ainda não tinham sido “vendidas”, outras
trabalhavam para aquele lugar há mais de uma década.
Fazia uns bons anos que eu não colocava um terno, e a ocasião nem
me obrigava a usar um, mas achei que ela merecia.
Para ser sincero, merecia muito mais, mas eu até que estava bem
razoável todo embecado.
E o mais incrível era que, apesar de saber que era bonita, ela não
tinha a menor noção da reação que causava nas pessoas. As positivas, é claro.
Ela não fazia ideia do quanto sua beleza poderia ser contemplada também de
Como disse a ela quando me confessou seu amor pela primeira vez,
ela fora a luz que destruíra a escuridão, não apenas a que me rondava, mas a
que vivia dentro de mim. Aquela menina perfeita, tão jovem, que surgira na
minha vida de forma tão inesperada, mas que me ganhara por inteiro e me
emoção, e ninguém poderia julgá-la pelo quão frio seu coração se tornou por
seu passado traumático. Celina era puro amor e sentimento, e isso brotava de
suas palavras. Cada detalhe de suas cenas fazia com que entrássemos na pele
dos personagens e tivéssemos empatia por eles imediatamente.
Foi a mesma coisa que a minha agente falou quando terminou de ler
o manuscrito, já em inglês, porque contratamos uma pessoa para traduzi-lo.
Ela torceu o nariz quando tentei fazê-la ler a obra, acreditando que eu poderia
ser parcial apenas por estar apaixonado. Obviamente essa ideia foi arrancada
de sua cabeça, porque minutos depois de ler o FIM, ela me ligou em prantos,
dizendo que – com todo o respeito aos meus, que eram de um estilo diferente
– aquele era um dos melhores livros que ela tinha lido.
— Claro que vai. Eles vão te amar. — Beijei sua mão, sentindo-a
gelada, e ela sorriu. Era um sorriso nervoso, mas cheio de esperança.
Com isso, nós saímos. Pegamos um táxi e partimos para a livraria,
que era enorme. A fila, realmente, era intimidante, tanto que liberaram uma
entrada pelos fundos, uma passagem de carga, para que pudéssemos fazê-lo
sem causar um tumulto.
Ela foi gentil e carinhosa com os leitores, e a grande maioria dos que
adquiriram os meus livros levaram o dela também, muito curiosos. Alguns se
emocionaram muito ao estarem na minha presença, porque acompanhavam
meu trabalho há muito tempo, e eu não pude deixar de me divertir com os
elogios das mulheres, que afirmavam não imaginar que eu fosse tão bonito –
animados.
Menos a mim. Eu sabia sobre o quê era o livro e sabia que Celina iria
tentar me convencer a transformá-lo no que Marcela queria que fosse: uma
Voltamos para casa uns três dias depois. Sabia que estávamos
cansados do voo – ao menos eu estava, e Celina chegou a dormir um pouco,
no meu ombro, no táxi que pegamos do Rio de Janeiro até Santa Celeste do
Sul, durante as horas de viagem, por isso não me senti tão mal de fazê-la ficar
acordada por mais tempo.
Peguei sua mão e a guiei até a estufa, que ainda era nosso local
favorito da casa, até mesmo antes do espaço que montamos para nós dois na
biblioteca, para que continuássemos trabalhando juntos. Durante a caminhada
da garagem até lá, ela foi a primeira a falar:
— Não te perguntei até hoje, mas você ficou chateado com a resposta
que eu dei para o pessoal da editora sobre o meu próximo livro ser o que
— Vai ser sempre assim, Dorian VanCanto? Você sempre vai fazer
todas as minhas vontades? — perguntou em tom de brincadeira, provocadora.
— Sempre que for possível. Mas será que você vai realizar uma única
minha? — Ela estava pronta para perguntar, e eu apenas tirei uma caixinha do
bolso, ajoelhando-me à sua frente.
você, vestida de noiva, vindo em minha direção até o altar. Mais do que
isso... penso em poder chamá-la de minha esposa. Em ter filhos com você. —
Os olhos de Celina se encheram de lágrimas. — Essa é a minha vontade,
Lily. O meu desejo. Você vai realizá-lo? Vai aceitar se casar comigo?
onde voltar depois de uma vida como a que muitas viveram no Rosa
Escarlate. Não necessariamente mulheres traficadas, mas prostitutas que
onde trabalhavam, e éramos nós que lhes dávamos abrigo, comida e um lugar
para ficarem. Aos poucos algumas empresas foram entrando em parceria
conosco, oferecendo-lhes emprego. Lá dentro também proporcionávamos
cursos para que pudessem se especializar. Algumas já tinham conseguido
refazer suas vidas e foram embora, tanto para se casarem quanto para
montarem suas casinhas por própria conta.
reclamaram um pouco, mas ficaram felizes quando argumentei que era hora
de ver o papai. Por mais que me amassem muito, eram loucos por Dorian.
governanta. Era triste pensar que nunca encontramos o corpo de Sheila. Sabia
que ela não poderia ter sobrevivido ao tiro que levou, mas gostava de
inventar uma história na minha cabeça de que conseguira ser livre e viver sua
vida em outro lugar.
— Você se importa?
— De jeito nenhum.
Sorri para ela, partindo para a biblioteca. Por mais que amássemos ter
nossos filhos por perto, e que sempre curtíssemos a vida em família, quando
podíamos, gostávamos de ter nossos momentos sozinhos. Lourdes era ótima
nisso, em entreter os pequenos para que pudéssemos ser um casal de vez em
quando, e... bem... eu ainda era louca pelo meu marido. Ele conseguia me
seduzir sem esforço.
momento.
— Sim, tenho uma boa notícia. — Ele afastou uma mecha do meu
cabelo dos olhos, aproximando seu braço, cujo punho ganhara uma tatuagem.
No esquerdo ainda estava a rosa, escondendo sua cicatriz. No direito, um
lírio.
bilheteria.
— Ela é incrível. Nem acredito que conseguiu vender meu livro novo
para tantos países. — Eu tinha lançado meu sexto livro há dois meses, e eu já
tinha contatos para publicá-lo no Brasil, Itália, França, Alemanha e na
Argentina. Todos os outros tinham sido vendidos internacionalmente
também, mas não tão rápido. Isso, provavelmente, queria dizer que eu estava
crescendo na carreira.
Devia tudo a Dorian, é claro, mas ele sempre insistia que tinha a ver
com o meu talento. Que se não fosse isso, eu não teria chegado tão longe.
— Pois é... então acho que você vai gostar de saber que essa mesma
produtora também quer fechar um contrato para Um Novo Caminho.
Demorei alguns segundos para entender do que ele estava falando.
Um Novo Caminho era o meu livro. O meu livro novo. O mesmo que
eu já estava imensamente feliz por ter sido vendido tão rápido para tantos
países.
Dorian assentiu. — Ah, meu Deus! — Levei ambas as mãos à boca, feliz. Ou
mais do que feliz.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, uma batida na porta nos
interrompeu.
futuro. Ansiosa pelo que o destino ainda iria nos mostrar. Maravilhada pela
ideia de que, dali para frente, nossa história seria cheia de momentos como
aquele: de risadas, alegria, esperança e pequenas, mas significativas, vitórias.
FIM