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J.M.

SOLLO
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Copyright© JULIANA MARTINS

Este e-book é uma obra de ficção. Embora possa ser feita


referência a eventos históricos reais ou locais existentes, os
nomes, personagens, lugares e incidentes são o produto da
imaginação da autora ou são usados de forma fictícia, e
qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas,
estabelecimentos comerciais, eventos, ou localidades é
mera coincidência.

CAPA: Y3Y ASSESSORIA LITERÁRIA

DIAGRAMAÇÃO: Y3Y ASSESSORIA LITERÁRIA

ASSESSORIA DE MARKETING: Y3Y ASSESSORIA


LITERÁRIA

REVISÃO: SONIA CARVALHO


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SUMÁRIO

PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
EPÍLOGO
PRÓLOGO

Acordei com os gritos.

Não era a primeira vez, na verdade. A cada noite eles se tornavam


mais familiares, e eu já quase não me assustava. Para ser sincera, eu quase
não conseguia conhecer todas elas. Sabia alguns nomes e tinha certeza de que

alguns rostos ficariam guardados para sempre na minha cabeça, mas outras
simplesmente chegavam e iam embora, como se fossem passageiras em um
trem desgovernado que nos levava na direção de um abismo.

O quarto onde eu ficava era grande, mas tornava-se claustrofóbico


pela porta trancada e pelo fato de haver seis meninas lá dentro. Não éramos
todas da mesma nacionalidade, e nem todas falávamos a mesma língua.
Havia uma coreana, uma mexicana, duas irmãs da Venezuela e outra

brasileira junto comigo. Ao menos naquele momento, porque o grupo foi

trocado algumas vezes. Todas saíram, e eu fiquei.

Nunca nos diziam nada, e as únicas vezes em que entravam naquele


cômodo era para nos levar roupas limpas, água e comida. Tínhamos um

banheirinho pequeno, que precisávamos compartilhar, mas nenhuma de nós


jamais brigara por tempo ou espaço. Havia preocupações maiores em nossas
cabeças.

Apesar de sabermos nosso destino, o que nos esperava quando


viessem nos levar, não tentávamos especular uma com a outra. Se uma de nós
sabia mais do que as outras, guardava para si. O silêncio era o que nos
acompanhava na maioria das vezes e as orações sussurradas das meninas
mais devotas.

Não que eu não acreditasse em Deus. Não era isso. Só que algo me
dizia que Ele não iria interceder por nós àquela altura. Eu conhecia muito
bem o tipo de gente com quem estávamos lidando. Morava em Santa Celeste
do Sul há tempo suficiente para saber quem eles eram e há quanto tempo
estavam de olho em mim. Desde que criei um corpo que lhes chamou a
atenção. Mais do que isso... eles eram poderosos, porque tinham o apoio de
gente mais poderosa ainda. Mil denúncias foram feitas, pelo que descobri no

meu tempo ali, inclusive a nível federal, e eles nunca tinham caído.

E eles tinham muitas pessoas nas mãos, o que os ajudava a terem


álibis e defensores. Meu pai era uma dessas pessoas. Por causa dele, eu
estava naquela situação.

Meu temperamento nunca foi dócil. Não facilitei as coisas para


ninguém ali dentro, mas descobri que, por mais raiva que sentissem, nunca
me tocavam. Nunca me puniam pelas coisas que eu dizia ou fazia. Eram as
outras que pagavam por meus atos rebeldes. Então me tornei a garota
submissa que eles queriam que eu fosse para que ninguém mais pagasse pelos
meus rompantes.

Só que eu já estava ali há semanas. Sempre que iam buscar alguma

menina, o capanga mais alto, que chamavam de Alemão, apontava para mim
com um sorriso provocador e dizia:

— Calma, Ruiva. Sua vez vai ser especial. Estamos preparando algo
grandioso.

O que era esse “algo”? E o que me diferenciava das outras? Eu sabia


que nem todas as meninas que apareciam ali eram virgens e, definitivamente,
nenhuma delas era ruiva, muito menos natural. Porque, sim, a primeira coisa
que perguntaram quando cheguei ali era se eu era toda ruiva. De início

recusei-me a responder, mas acabei cedendo, porque uma das meninas pagou
pela minha impertinência.

Junto do medo, tudo o que eu guardava comigo era o rancor. Era por

culpa do meu pai que eu estava ali. E eu sabia que nem era o pior estágio do
problema. Eu estava no purgatório, aguardando para ser levada ao inferno.

E quando o dia chegou, tanto Alemão quanto outro homem vieram


me buscar. Não disseram nada, não levaram nenhuma outra menina.
Apontaram para mim, ordenando que eu me levantasse. Obedecer era quase
doloroso para mim, porque eu sabia que tudo só pioraria dali em diante, mas
tive que fazer tudo o que me foi designado, ou coisas horríveis poderiam
acontecer.

Fui levada a um banheiro muito maior, onde duas garotas me


aguardavam. Deixaram-me lá com a garantia de que não iriam se apiedar de
ninguém caso eu voltasse a ser a garota difícil de antes. Só que eu não tinha
nem mais forças para lutar.

Havia uma banheira preparada, aonde eu fui guiada e onde as duas


moças me deram banho. Em seguida meu cabelo ruivo, naquele tom entre o
vermelho e o dourado, foi penteado e prenderam um arranjo de flores nele,

deixando-o caindo em cachos. Maquiaram-me de forma bem discreta, e eu fui


vestida com uma peça que mais parecia uma camisola de época, algo bem
virginal.

Fui levada a um espelho, mas o que queriam? Que eu me sentisse


feliz por estar tão bonita ou que as elogiasse pelo bom trabalho? Sabia que
eram tão infelizes quanto eu, que viviam ali como escravas, mas minha
beleza, naquele momento, era a minha maior ruína.

Por isso, quando fui guiada para fora daquela porta, com um homem
de cada lado segurando meus braços, e uma luz forte de um holofote quase
me cegou, eu soube que era o fim.

O fim da minha inocência, dos meus sonhos, de qualquer coisa que


pude almejar um dia.

Os gritos lá embaixo me provavam isso, embora eu não conseguisse


ver a quem pertenciam, mas eles uivavam. Alguns diziam palavras obscenas
ao meu respeito ou declamavam o que planejavam fazer comigo como se
fosse poesia.
Eu estava no meio de um palco. E o leilão pela minha virgindade
estava prestes a começar.
CAPÍTULO 1

Como parte de um ritual, um pano preto foi colocado em meus olhos,


vendando-me. Fazia um pouco de sentido, já que eu me sentia exatamente
como uma oferenda em um sacrifício. Apesar de não poder ver nada ao meu
redor, sabia que não estava sozinha, que qualquer movimento em falso me

faria arrepender amargamente. Se tentasse fugir, seria pega, e os homens lá


embaixo ririam e se divertiriam. Já tinha ouvido falar que quanto mais arisca
a garota fosse, mais eles gostavam, mais se enchiam de desejo.

Asco. Era tudo o que eu podia nutrir. A vontade de vomitar veio


forte, especialmente sentindo o cheiro das bebidas ao redor. Eu odiava álcool,
porque fora ele que transformara meu pai no homem que passei a conhecer.
Homem... que piada. Meu pai era uma marionete. Um brinquedo na
mão daqueles que sustentavam seus vícios. E eu fui vítima de tudo isso.

Pagaria caro por erros que não eram meus.

— Chegou o momento que todos esperavam. Vocês sabem que temos


um carinho especial por nossas meninas virgens, não é? — Alguém começou

a falar. Provavelmente Alemão, porque eu reconhecia sua voz. Apesar disso,


ainda era muito angustiante não saber exatamente o que acontecia, ter que
contar com meus outros sentidos para me protegerem. — Mas esta aqui é
especial. Nunca, em toda a história da nossa Rosa Escarlate tivemos algo tão
precioso assim. Nunca tivemos uma moça tão linda.

Rosa Escarlate era o nome do cassino/boate onde aqueles leilões


absurdos aconteciam. Teoricamente tratava-se de um estabelecimento legal,
válido, mas mesmo que não fosse, era o negócio mais lucrativo da cidade.

Seu dono, que era um mistério para todos, parecia ter a lei dentro de seus
bolsos, porque a polícia nunca chegava em uma hora como aquela, quando
uma das meninas era literalmente vendida como uma mercadoria.

E mesmo se chegassem, nada fariam. Sem dúvidas ainda dariam seus


lances, caso se interessassem por alguma.
— Vocês sabem muito bem que uma moça bonita como essa não se
vê por aí tão facilmente. Toda ruiva, meus amigos!

Oh, Deus, que vergonha!

Levei as mãos ao rosto quando ouvi os uivos vindos do salão,


daqueles bêbados nojentos que, sem dúvida, iriam querer comprovar aquela

afirmação. Qual era a tara dos homens por ruivas? Por que sempre
comentavam sobre minhas sardas, a pele branca e o tom avermelhado do meu
cabelo como se eu tivesse sido criada para o pecado? Como se minha
aparência fosse um chamariz sexual.

— Sabendo disso, que não são todos os dias que uma princesa ruiva
natural aparece aqui para nós, especialmente intocada, nosso leilão será
especial. Qual de vocês irá abrir a carteira o suficiente para levar essa

coisinha linda para cama? — Alemão parecia animado. Mais do que jamais o
ouvi. Ele, provavelmente, sabia que muito dinheiro seria ganho naquela noite.

— Como podemos saber se ela é toda ruiva mesmo? — alguém


gritou na plateia, e eu me encolhi quando alguém tentou levantar a saia longa
do meu vestido, que ia até os meus pés descalços.

Agarrei o tecido em um ato de desespero.


— Não! — Eles não iam me despir ali, na frente de vários homens.
Não que eu tivesse muita escolha, mas fosse quem fosse que estava tentando

me mostrar, desistiu.

— Só vai poder vê-la quem comprá-la. E é uma garantia de que terão


o que eu estou prometendo. Se não, terão o dinheiro de volta.

Claro, se a mercadoria estivesse estragada, era o que ele queria


dizer. Para o meu infortúnio, ele estava falando a verdade em tudo. Preferia
ser devolvida e espancada ou morta do que ser submetida ao que iria
acontecer.

— Podemos começar? Acredito que vocês devam estar ansiosos por


isso.

Mais gritos, e eu estremeci quando ouvi um baque forte e o tilintar de

louça, provavelmente vindo de algum punho mais efusivo que bateu na mesa
para comemorar.

Tentei não imaginar o que aquele punho poderia fazer comigo, caso o
homem em questão conseguisse me arrematar.

Eles pareciam animados demais, e eu só queria fugir, mas –


novamente –, sabia que não conseguiria e que isso só serviria para deixá-los

mais eriçados.

Quando o primeiro lance começou, em cinco mil reais, eu pensei que


era muito. Por que alguém pagaria tanto dinheiro por mim? Por mais que
minha aparência chamasse atenção, uma noite de sexo valia tanto?

Só que as coisas foram aumentando, ao ponto de me deixarem


assustada. Eu sabia que quem quer que fosse o último, aquele que faria o
martelo bater, iria me usar de várias e várias formas para fazer valer o seu
dinheiro. Provavelmente não teria cuidado ao fazer sexo comigo, mesmo
sabendo da minha virgindade. Qualquer que fosse o meu destino naquela
noite, não seria nada agradável.

E depois dela as coisas só piorariam, porque eu precisaria trabalhar

na boate dançando e vendendo o meu corpo todas as noites, até que não fosse
mais interessante para eles.

Eu não sabia o que acontecia com as meninas que eram descartadas.


Se eram jogadas na sarjeta sem um único centavo ou se eram mortas.
Provavelmente a segunda opção, porque sabiam demais.

Os lances já estavam em vinte mil. Minhas pernas tremiam, porque


eu sabia que quanto mais alto fosse o preço, mais eu sofreria. Podia ouvir as
vozes que gritavam, e nenhuma delas me parecia sóbria o suficiente para que

eu pudesse confiar que a pessoa seria ao menos bondosa. Também eram


timbres de homens mais velhos, roucos – provavelmente por serem fumantes
–, e por mais ricos que pudessem ser, tornavam-se animais quando era de seu
interesse. Quando a luxúria estava envolvida.

Há semanas eu vivia em um meio onde o sexo era mercadoria. Passei


a desprezá-lo, odiá-lo, temê-lo. Sabia que seria um trauma para o resto da
minha vida, especialmente porque minha primeira vez, aquela com a qual
toda menina sonha que seja perfeita, seria desastrosa, criminosa... um
sacrifício, embora eu nem estivesse ali de forma voluntária.

— Vinte e três mil — alguém gritou.

Meu Deus! Aquilo não teria fim!

Sentia-me inquieta, com o coração acelerado. Quase entrando em


pânico.

Quem eram aqueles homens? Como tinham tanto dinheiro para gastar
com uma única noite? Uma maldita noite com uma garota virgem, sem
nenhuma experiência, que não queria estar na mesma cama que eles. Nem
mesmo por dinheiro. Poderiam pagar muito menos por uma prostituta que
lhes satisfaria bem mais.

Mas aí estava a parte terrível de toda a coisa. Eles gostavam do fato


de eu não estar consentindo nada daquilo. Gostavam da ideia de me terem
submetida. Eram estupradores em potencial, que queriam acreditar que não

estavam violentando ninguém, porque, afinal, tinham comprado o produto. Se


compraram, lhes pertencia, não o estavam tomando à força, embora, na
prática, tudo fosse diferente.

Eu queria tirar aquela venda e olhar nos olhos de cada um deles, mas
sabia que seria repreendida. Queria que vissem a indiferença que eu poderia
fingir. Eles não teriam a minha luta. Não teriam o gostinho de me ver
implorar, chorar ou me debater. Eu seria uma pedra de gelo. Poderiam me
foder, me machucar, me espancar, eu não falaria, não olharia para eles. Seria

como transar com uma boneca inanimada. Não valeria o dinheiro que
pagaram.

A palhaçada continuou por alguns instantes até que alguém gritou


quarenta mil, e todos ao redor arfaram, já que o lance mais alto tinha parado
em trinta e mais ninguém parecia empenhado em arriscar mais do que isso.
Quarenta mil! Meu Deus!

Todo o salão ficou em silêncio, e eu tentando ouvir os burburinhos.


Alguns riam, alguns cochichavam, mas ninguém mais ousou tentar a sorte.

— Acaba logo com isso, Alemão. A garota é minha. Ninguém vai


pagar mais do que eu — era uma voz asquerosa. Embargada pelo álcool, de

alguém bem mais velho. Sem dúvida um dos fazendeiros da região.

— Vai dar conta dessa coisinha linda, Firmino? — outro homem


perguntou, rindo. — Essa porcaria aí só deve subir com o remedinho azul,
né?

Firmino?

Firmino Pascoal?

Ah, não! Pelo amor de Deus, não!

Eu estava certa, era um dos fazendeiros da região. Dos mais ricos e


mais cruéis. Dizia-se que ele era a favor do trabalho escravo e mantinha
alguns em sua propriedade, inclusive a babá de sua filha, a quem ele
violentava constantemente.
Não era apenas alguém que queria fingir estar comprando uma
prostituta para satisfazer seus desejos de estuprador. Era um, de fato.

— O que eu vou fazer lá dentro com ela é problema meu. Alguém vai
dar mais? Se não, ela é minha.

Minha.

Uma onda de bile subiu pela minha garganta. De todos os homens


que poderiam me arrematar naquela noite, aquele era o que eu poderia
afirmar, com mais certeza, que seria uma jogada de azar. Sádico, nojento,
velho, cruel e pervertido. Ele não teria um átomo de compaixão por mim.

— Bem, se ninguém tem mais nada a oferecer eu... — Quase pude


ouvir o som do martelo sendo erguido, chicoteando o ar ao meu lado.

Só um milagre poderia me salvar.

— Trezentos mil.

Eu não podia ver nada ao meu redor, mas tinha certeza de que o
mundo inteiro tinha parado. Que o relógio desistira de funcionar com o som
daquela voz grave e profunda soltando aquelas palavras tão absurdas que
formavam um valor mais absurdo ainda.

— Senhor... não entendi. Trezentos mil? — Alemão perguntou,


depois de alguns instantes de completo silêncio.

— Trezentos mil. E quero pagar em dinheiro. Mas tenho uma


condição: quero comprar a menina. Ela vai comigo.

Sua voz era de total comando, e eu me arrepiei ao ouvi-la. Não era


familiar, e eu me atrevi a tirar a venda, arrancando-a dos meus olhos, porque
precisava ver quem era aquele homem. Quem era o louco que estava tentando
me comprar.

Não apenas por uma noite.

O que queria comigo? O que faria depois que saíssemos do Rosa

Escarlate?

A partir do momento em que estivéssemos fora do clube... não


haveria regras. Eu seria uma propriedade dele.

Eu mal podia ver o seu rosto, porque ele estava sentado em uma mesa
ao fundo, em uma parte mais escura. Vestido com um moletom preto, capuz,
mangas compridas, eu não fazia ideia do que queria ocultar.

Mas certamente ninguém se esconderia daquela forma se não fosse


por um bom motivo.

— Isso é contra as regras. Não vendemos as meninas.

Ele deu um sorriso de escárnio para a fala de Alemão.

— Quanta consideração! Mas estou te fazendo uma proposta. Depois


que ela for desvirginada não valerá mais quarenta mil, acredito eu. O que
acha que vai ganhar com ela? Quer que eu ofereça mais? Quinhentos mil?
Por isso você a venderia? Se sim, negócio fechado.

Levei a mão ao peito, sentindo minha boca se abrir em uma


exclamação silenciosa de desespero misturado com surpresa.

O que aquele homem misterioso tinha em mente para pagar tanto


dinheiro por uma virgem em um leilão? Não podia ser algo bom. De forma
alguma.

— Negócio fechado, então — Alemão respondeu, um pouco a


contragosto. Eu sabia que ele mesmo provava das meninas depois de terem a
virgindade vendida daquele jeito.

Em um ato impulsivo, comecei a recuar, com passos lentos e


trêmulos, mas fui segurada. Claro que não me deixariam sair dali. Claro que
colocariam novamente a venda em mim.

Antes, no entanto, o homem levantou-se de sua mesa, e por mais que

seu rosto ainda estivesse oculto, tudo o que pude ver foi que se tratava de
alguém enorme. Tanto de altura quanto em ombros largos e poderosos.

Eu não teria nenhuma chance contra ele.


CAPÍTULO DOIS

Eu estava acostumado a ser chamado de louco. Para ser sincero, este


era um apelido até carinhoso. Fera era o mais comum e o que me fazia rir,
porque minha vida estava bem longe de fazer parte de uma porra de uma
história da Disney para iludir garotinhas. Nunca houve um príncipe

encantado dentro da minha casca de monstro.

Já tinha feito muitas coisas consideradas loucas na minha vida, mas,


sem dúvidas, aquela era uma das maiores. E eu não estava me referindo a
oferecer meio milhão de reais por uma garota, mas, sim, em mostrar a merda
da cara, esperando que as pessoas não me reconhecessem, o que parecia estar
acontecendo, já que minha aparência, em dez anos, mudara muito.
Sim, estava contando com a sorte, mas, aparentemente, ao menos
naquela noite, eu a tive do meu lado.

Carregando uma mala, fui levado a um escritório nos fundos da


espelunca que eles chamavam de Rosa Escarlate por um rapaz que deveria ter
pouco mais de dezoito anos. Não havia nome mais brega e vulgar – muito

menos um que combinasse mais.

O garoto abriu a porta da sala, e eu fui bombardeado por uma luz


avermelhada, como de motel. Novamente, o mau gosto imperava, mas o que
eu poderia esperar?

Atrás da enorme mesa estava Alemão. Nós não nos conhecíamos


propriamente, porque ele era novo na cidade – ao menos em comparação a
mim –, mas eu sabia muito bem quem era. E como não saberia? Era o

segundo maior filho da puta de Santa Celeste do Sul.

O primeiro? Sem dúvidas, o dono daquela merda toda. Um dono que


não mostrava a cara, é claro, porque era a porra do prefeito.

Ergui a pasta e a lancei em cima da mesa fazendo um baque,


apertando o botão para abri-la. A tampa se movimentou sozinha, revelando
notas de cinquenta e cem reais. Muitas. Bolos e bolos delas.
Alemão ergueu os olhos na minha direção, com uma sobrancelha
arqueada, parecendo desdenhoso. Cruzei os braços contra o peito, levantando

o queixo e esperando que reclamasse ou que dissesse qualquer coisa.

Com um único gesto de seu dedo em riste, o desgraçado fez sinal


para o garoto que me acompanhou e para mais dois homens que estavam na

porta, para que contassem o dinheiro.

— Isso vai levar algum tempo.

Dei de ombros.

— Não estou com pressa. Você está? — indaguei com ironia,


lançando-me na cadeira logo em frente a ele.

O homem me olhava como se pudesse me fuzilar com aqueles olhos

azuis, que eram mais falsos do que uma nota de três reais. O cabelo, idem.
Oxigenado. Era mais do que óbvio que ele não tinha nada de alemão no
sangue, mas talvez o apelido tivesse pegado exatamente por isso, pelo quanto
ele queria parecer ariano, embora fosse apenas mais um latino como qualquer
um de nós.

— Enquanto meus homens fazem a conta, se puder me ajudar a


preencher seu cadastro... — ele foi falando, voltando-se para o computador à

sua frente.

Cadastro porra nenhuma. Desde quando aquele lugar tinha algum tipo
de organização. Queriam saber quem eu era. Que bom saber que os dez anos
tinham me mudado o suficiente para que não se lembrassem de mim. Ao

menos aquelas pessoas e o resto dos bêbados que estavam no salão, que
provavelmente não se lembrariam da própria cara se a olhassem no espelho.

— Paguei em dinheiro. Não preciso preencher porra nenhuma de


cadastro — afirmei sem paciência.

— É necessário, especialmente porque está fazendo algo que é


completamente inusitado e contra as regras. Não vendemos nossas meninas
dessa forma. Elas costumam ficar sob nossa proteção.

Ah, aquilo, sim, me fez rir. Se eu tivesse espírito para isso, teria
gargalhado.

— Proteção — cuspi a palavra com um imenso sarcasmo. — Se é


assim que querem chamar, porque faz com que tenham a consciência mais
limpa, fiquem à vontade. Só estou interessado em uma delas.
Alemão me lançou um olhar com os olhos estreitos, analisando-me
como se eu fosse um suspeito, e ele, o policial atento e dedicado.

Mais uma bosta de uma ironia.

— É muito dinheiro por uma única garota. Posso ser razoável e te dar
o direito de desistir, ao menos até os rapazes terminarem de contar o dinheiro.

Podemos combinar de você pagar dez mil a mais do que seria pago por
Firmino e pode ficar com ela a noite inteira. Vamos garantir que não lhe
cause problemas e que seja compensador. Então cada um segue para o seu
lado e a menina fica conosco.

Franzi o cenho, porque era minha vez de analisá-lo.

Tendo a profissão que tinha, eu era bom em analisar pessoas. Eram


elas que me proporcionavam inspiração e situações para explorar. Entrelacei

minhas mãos, descruzando os braços, sentido os anéis que eu usava baterem


um no outro. As mangas da minha jaqueta de couro cobriam o que eu queria
cobrir, o que me manteria um pouco mais incógnito, se eu continuasse com
alguma sorte.

O filho da puta desejava a garota. Talvez fosse mais do que isso.


Talvez beirasse a obsessão. Toda a sua linguagem corporal me dizia que
aquela transação o deixava extremamente desconfortável, e eu poderia jurar
que não tinha nada a ver com o fato de que o que estava sendo vendido era

uma mulher. Um ser humano de carne e osso.

Ele não queria que eu tirasse a moça de seu domínio.

— Para um negociador, acho que você não é muito bom no que faz.

Está tentando me convencer a desfazer o negócio? — Eu deveria ficar quieto,


mas era irresistível deixar escapar algum tipo de provocação.

— Não é isso! — Remexeu-se na cadeira, tentando ficar mais


confortável, só que eu continuava sentindo seus olhos fixos em mim, com
uma expressão assassina. — Só não quero que haja arrependimentos. Se
quiser desfazer o negócio depois, não vamos poder ajudar.

— Não tenho essa intenção — foi tudo o que eu respondi, com

convicção.

Alemão respirou fundo e assentiu, mas não parecia nem um pouco


satisfeito.

Ele que se fodesse.


Provavelmente os rapazes que trabalhavam com Alemão não eram
exatamente inteligentes ou tinham a matemática como seu forte, porque

levaram muito mais tempo do que seria necessário para contar aquelas notas.
Pareceu uma eternidade até que me levassem ao local onde a garota
aguardava.

Uma porta trancada foi o que vi à frente, mas não apenas isso. A
moça estava dentro do quarto, mas deitada imóvel sobre a cama. A cabeça
emoldurada pelos longos fios ruivos se virou na minha direção devagar, e
seus olhos verde-amendoados se arregalaram. Ela estava em pânico, mas
continuava quieta, sem grandes reações.

— O que fizeram com ela? — perguntei imediatamente, com um tom


de voz muito sério, mas, ainda assim, impassível.

— Só lhe demos algo para que ficasse um pouco mais... — ele


hesitou, provavelmente buscando a palavra mais adequada — dócil.

A garota obviamente estava drogada. Mal conseguia se mexer.

Dócil, de fato. O que queriam? Que eu a fodesse daquele jeito? Que


me refestelasse em um belo corpo imóvel, como um cadáver?
— Como vai querer levá-la, preciso te advertir que ela não é assim o
tempo todo. Tem um espírito indomável — Alemão falou, olhando para a

garota com aquele tipo de olhar de cobiça que era difícil de disfarçar.

Vi a forma como ele fixou sua atenção nos seios da moça, que
subiam e desciam no decote nada modesto de sua camisola – que fora

escolhida, sem dúvidas, para dar a falsa ideia de recato e torná-la mais
angelical. Deplorável.

Era inegável que ele tinha um desejo animalesco por ela.

— Precisa que eu peça aos rapazes para levá-la até algum lugar? —
Alemão falou, depois de finalmente desviar o olhar dela.

A menina parecia mais e mais ofegante, entrando em pânico.


Visivelmente lutava para ficar consciente.

Inseri novamente um tom provocador na minha fala, cansado de tudo


aquilo:

— Quantos de vocês são necessários para carregar uma garota do


tamanho dela para fora daqui? Não preciso de ajuda. Podem se retirar. Eu me
viro.
Os três homens à minha frente se entreolharam, e Alemão deu mais
uma olhada em Celina, contraindo o maxilar, irritado, frustrado,

provavelmente porque não conseguiria estuprar a garota depois que ela


servisse ao propósito daquela noite ridícula.

Ainda assim, mesmo extremamente contrariado, o filho da puta saiu,

mas não sem antes dar mais uma olhada para mim, com um semblante de
poucos amigos.

Ok, provavelmente tinha feito um inimigo, mas aquela menina estava


em pior situação. Algo me dizia que ele não iria desistir dela, não importava a
quantia que eu pagasse.

Fosse como fosse, a partir daquele momento seríamos eu e ela. E a


outra parte não parecia nem um pouco interessada em socializar.

Não que eu estivesse.

Só que a primeira coisa que eu vi e que me deixou mais do que


incomodado foi um corte em seu braço. Um arranhão, talvez. Recente, fresco.
Sangrava um pouco.

Sendo acometido por péssimas lembranças, estendi a mão na direção


do ferimento, e a primeira coisa que ela fez foi baixar os olhos, ainda mais

apavorada, para ver qual parte de seu corpo eu iria tocar.

Provavelmente precisava dizer alguma coisa, fazê-la entender que


não era o que estava pensando, mas Celina viu a minha tatuagem.

Com os olhos ainda mais arregalados, extraiu todas as forças

restantes de seu corpo para dizer:

— Dorian VanCanto... você é... Dorian...

Então sucumbiu, deixando a cabeça tombar para o lado,


completamente apagada.

Bem, ela teria que saber, mais cedo ou mais tarde, não?

Não importava o que iria acontecer, a menina pertencia a mim. Eu a


tinha comprado, não tinha?

Que merda ridiculamente patética...


CAPÍTULO TRÊS

Eu tinha dez anos quando o incêndio aconteceu. Não que eu tivesse


sido uma vítima real dele, mas não poderia dizer que não afetou a minha vida
de várias formas. Primeiro porque foi o início da queda do que eu poderia
chamar de minha família. Provavelmente também fora o que me levou até ali,

de forma indireta.

Onde quer que ali fosse.

Mas a primeira coisa que surgiu na minha mente, no momento em


que recuperei a consciência, foi a imagem daquele punho. A tatuagem
cobrindo a cicatriz. A imagem que meu pai sempre me descreveu.
Dorian VanCanto era um monstro. Um assassino. Um maníaco. E ele
me comprara.

Drogada como estava, não consegui sequer ver seu rosto direito. Era
apenas uma imagem turva, algo indefinido. Mas o desenho da rosa cheia de
espinhos tornou-se perfeitamente visível, ao menos por um segundo. O

suficiente para que eu soubesse quem fora o homem que investira quinhentos
mil reais para me tirar do Rosa Escarlate.

Só que ele me arrancara de um inferno para me levar a outro. Porque


em nenhum momento eu poderia permitir que meu coração acreditasse que
havia boas intenções em seu ato.

Meu pai não era nenhum santo. Na verdade, por culpa dele acabei
indo parar naquele leilão. Seus vícios, seu comportamento, suas mentiras. Eu

não saberia sequer dizer se ele algum diz quisera cuidar de mim, mas me
tornei sua obrigação quando minha mãe morreu, oito anos atrás. Dois depois
do tal incêndio.

Depois que fui levada para morar com ele, as histórias se tornaram
constantes. Meu pai foi o responsável por espalhar a história de que Dorian
VanCanto era um louco. Fora ele que disseminara as lendas, o que acabou lhe
rendendo alguma fama no início e alguns bicos, porque todos queriam saber
mais do que apenas ele, aparentemente, conhecia.

Só que as fofocas passaram a se tornar desinteressantes com o tempo,


e, com elas, os trabalhos foram rareando. Nós não tínhamos o que comer, e
meu pai gastava metade do que conseguia ganhar para me alimentar e a outra

metade para beber. Depois, o álcool não foi suficiente e vieram as drogas.

Com elas... oportunidades e péssimas companhias.

Bem, e foi mais ou menos assim que Alemão e sua corja entraram nas
nossas vidas.

Foi assim que a minha vida foi roubada. Meus sonhos. Meus
objetivos.

Só que era uma realidade que eu precisava encarar.

Minhas pálpebras foram se abrindo aos poucos, e a primeira coisa


que eu vi foi um lustre bonito pendendo do teto. Algo antigo, como se tivesse
sido instalado ali há uns dois séculos, todo em ouro velho. As lâmpadas
estavam apagadas, mas alguma iluminação vinha de alguma parte do quarto.
Talvez de uma suíte, só que eu não queria investigar.
Na verdade, se pudesse, ficaria deitada naquela cama por dias. Se
pudesse fingir que ainda estava inconsciente, eu o faria, mas imaginava que

em algum momento precisaria ir ao banheiro ou comer. Morrer de inanição


também não era uma opção que me agradasse.

Mas ainda era melhor do que a perspectiva de ser estuprada.

Não era uma boa ideia que nenhum daqueles homens me comprasse.
Eu era um ser humano, não deveria estar à venda, a não ser que fosse da
minha vontade entregar minha virgindade e o meu corpo por dinheiro. Só que
VanCanto certamente não seria a minha escolha, se eu fosse obrigada a
selecionar alguém naquela plateia ridícula.

Não que minha outra opção, com Firmino, fosse melhor.

Ou seja, eu estava entre a cruz e a espada. Mas qual seria o destino

pior? Permanecer no Rosa Escarlate e ser vendida a um homem diferente e


pior do que o outro a cada noite, ou ser a prostituta de um só?

Sentindo-me ainda um pouco insegura e zonza, comecei a me


levantar da cama, instável e sentindo-me cambalear. Sentei-me novamente,
esperando que minha cabeça parasse de girar, e finalmente me coloquei de pé
de fato, sentindo-me um pouco mais segura.
Meus instintos me diziam que eu deveria fugir. Mas a curiosidade era
um pouco mais forte. Além disso, não era como se eu tivesse para onde ir. A

cidade era pequena demais para que eu tivesse algum lugar para me esconder
onde o poderoso VanCanto não pudesse me achar. Eu não tinha ninguém de
fora que pudesse me acolher e nem dinheiro que pagasse uma passagem e
uma estadia bem longe.

Se ele não me encontrasse, Alemão o faria. E eu não sabia qual era a


pior escolha.

Ainda usava o vestido branco ridículo que me foi colocado antes do


leilão, e meus pés continuavam descalços. O piso frio de um corredor me
causou um calafrio, e provavelmente o medo também. Respirando fundo,
esforcei-me para contê-lo, jurando que minha coragem me manteria firme.
Qualquer coisa que aquele homem fosse fazer comigo, eu poderia suportar.

Tinha que acreditar que minha outra opção era muito pior.

Havia um ar sombrio na casa, obscuro, como se esperaria que fosse o


castelo de um homem igualmente sombrio. Não havia quadros nas paredes,
nenhum papel de parede, nenhuma decoração que indicasse que uma pessoa
morava ali. Com exceção dos móveis do quarto e o belo lustre, dava a
impressão de que se tratava de uma casa mal-assombrada. Como se o seu
dono fosse um fantasma.

Eu ouvia barulhos, mas não sabia de onde vinham, o que provava que
não estava sozinha. Pelo que podia perceber era noite, pelo quanto estava
escuro, mesmo que não houvesse janelas por perto – mais uma prova de que
aquele lugar mais parecia uma prisão.

A minha prisão a partir daquele momento.

Havia algumas portas fechadas, e uma delas estava entreaberta. Uma


luz discreta vinha lá de dentro, o que mais uma vez incitou minha
curiosidade. Levei a mão à madeira, empurrando-a com cuidado, esperando
que não fizesse barulho. Fui o mais silenciosa possível, entrando no cômodo,
até que fui impedida quando uma mão enorme agarrou o meu braço, e eu fui
puxada para fora.

Meu corpo colidiu com outro, muito maior, e meus braços foram
segurados, não com força suficiente para me machucar, mas com a
intensidade certa para que eu não conseguisse me desvencilhar facilmente.

Então ergui os olhos.

E não esperava o que vi.


Eu não conseguia ver o mesmo punho que vi anteriormente, mas a
jaqueta era a mesma, sem dúvidas. A camisa preta, também, pelo que eu

podia me lembrar; pelo que meus olhos turvos conseguiram enxergar.

Aquele era Dorian. Sem dúvidas.

Cabelos escuros e longos, que chegavam à altura do pescoço,

cacheados, mas com uma aparência limpa e macia. Uma barba espessa,
densa, lábios desenhados e rosados, olhos castanhos. Um homem muito mais
bonito do que eu poderia imaginar.

Além disso, ombros largos e braços enormes completavam a


aparência, até onde meus olhos conseguiam enxergar. Ele era muito alto,
como logo percebi quando se levantou da cadeira, no Rosa Escarlate. Mais de
um metro e noventa e cinco, sem dúvidas. Eu tinha pouco mais de um e

setenta. Como pensei naquele momento, não o venceria em uma disputa de


força nem se tentasse com todos os meus esforços. Aquele homem era capaz
de me dominar sem nenhum esforço.

Ainda assim, apesar da beleza, isso não queria dizer que eu queria me
entregar a ele. Não significava que sentia desejo.

— O que pensa que está fazendo? — a mesma voz profunda que


atingiu meus ouvidos, enquanto ainda estava vendada, trovejou em meus
ouvidos. Ele não parecia muito satisfeito, nem um pouco interessado em fazer

amizade. Muito menos em parecer sedutor para facilitar as coisas para uma
garota virgem se interessar em se entregar.

Ele seria bruto, cruel. Seria traumático, sem dúvidas.

Só que nem por isso eu tinha planos de me render facilmente. Ergui o


queixo, altiva, olhando fixamente em seus olhos.

— Onde estou? — perguntei sem responder ao questionamento dele.

— Na minha casa.

Respirei profundamente, ainda sentindo o calor de suas mãos na


minha pele e perguntando se muito em breve ele começaria a me tocar por

inteiro. Qual seria a minha reação? Será que eu me encolheria e demonstraria


o asco por ter alguém me violando sem o meu consentimento? Será que iria
lutar contra por puro instinto? Ou será que permitiria e tentaria encontrar
algum prazer?

Será que ele se preocuparia com isso?


Claro que não... O homem me comprara por uma quantia indecente,
porque iria se preocupar em fazer com que fosse bom para mim também?

— Sou sua propriedade agora, não sou? — indaguei com raiva. Era
um destino muito frustrante, algo que eu não desejaria nem para a minha pior
inimiga.

— Acho que precisamos conversar.

Não tive direito de opinar. Ainda com a mão no meu braço, embora
sem forçar, Dorian me conduziu a outro cômodo; um quarto que não era o
meu e nem o dele. Provavelmente não para conversar. Ou ao menos era o que
eu imaginava, porque não sabia o que esperar de um homem que, até onde eu
sabia, era um monstro.

Quando entramos e ele fechou a porta, batendo-a com um estrondo,

apenas um pensamento latejava em minha mente: o que seria da minha vida


dali em diante?
CAPÍTULO QUATRO

Desde o primeiro momento em que pus os pés dentro daquela porra


de espelunca que era o Rosa Escarlate, com a minha missão muito bem
definida, entendi que começaria a ter muitos problemas. Obviamente o
dinheiro que gastei era algo a se levar em consideração, mas a presença da

garota na minha casa era algo ainda mais preocupante.

O fato de ela ser desesperadoramente bonita não entrava na equação.


Era apenas um detalhe. Só que estava escrito em seu rosto que ao mesmo
tempo que parecia bastante inocente, havia algo de indomável em seus
fascinantes olhos verdes. Algo que não poderia passar despercebido.

Levá-la para a minha casa poderia ser um erro. Não poderia mantê-la
ali para sempre e, certamente, acabaria descobrindo coisas que eu preferia

que continuassem ocultas. Como iria saber se ela não era uma fofoqueira,

pronta para destruir tudo o que arduamente construí?

E o primeiro lugar que a encontro tentando bisbilhotar? O meu


quarto.

Sorrateira, como uma pequena ladina, a garota começava a abrir a


minha porta quando consegui interceptá-la. Puxei-a de encontro a mim com
mais força do que pretendia, por conta do susto, e o que consegui foi tê-la
colada ao meu corpo, peito com peito. Olhos nos olhos.

Merda! Ela realmente era mais bonita do que seria saudável para a
minha sanidade. Havia sardas adoráveis sobre seu nariz, e a boca tinha lábios
cheios e rosados, em formato de coração. Isso sem contar os incomuns fios de

cabelo naquele tom de dourado avermelhado, que mais pareciam um halo


sobre sua cabeça e que caíam quase até a cintura finíssima.

A moça era alta, embora eu fosse mais do que uma cabeça maior do
que ela, o que sem dúvida a intimidava. Não sabia se isso era bom ou ruim.

Ela me temia, isso estava escrito em seus olhos, em seu semblante ao


me observar. Foi como ser analisado por uma máquina se iria decidir se eu
era um criminoso ou não. Se eu mentia, se iria ser violento, se iria usá-la
como ela tinha certeza de que seria usada.

Que ela pensasse o que quisesse de mim. Quanto mais mantivesse


minha imagem de monstro, melhor. Não estávamos ali para sermos amigos.

Bati a porta com força, ainda mantendo a outra mão no braço da

garota sem nem saber por quê.

— Na minha opinião, não temos nada a conversar — foi o que ela


disse. Corajosa, altiva, mas dando um longo passo para trás no momento em
que a soltei.

Meus olhos estreitos a observaram com cautela, buscando


compreendê-la. A partir daquele momento a mulher moraria na minha casa,
dormiria no quarto ao lado do meu e, com sorte, se aceitasse, trabalharia para

mim. Precisava saber com quem estava lidando.

— Na minha, nós temos muito — falei em um tom de voz baixo,


quase apaziguador. Por mais que eu não quisesse que soubesse a verdade
sobre mim, tê-la me olhando como se eu estivesse prestes a devorá-la não era
a minha meta de vida.
— Ah, bom, então eu preciso me curvar ao meu mestre e senhor... —
A garota fez uma reverência provocadora, e eu realmente precisava admitir

que ela tinha um espírito audacioso.

— O que diabos está fazendo? — quase rosnei, porque não estava


disposto a ter muita paciência.

— O senhor é meu dono, não é? Sou uma propriedade de Dorian


VanCanto. Estou aguardando ser marcada como gado a qualquer momento.
— Audaciosa e um pouco impertinente. Ok, eu poderia lidar com isso. Era
muito melhor do que a submissa inocente que julguei que fosse de início.
Ainda assim, mantive meu olhar fixo nela, calado, chegando a cruzar meus
braços contra o peito. — Você me comprou, não foi? — Não saberia dizer se
sua pergunta se tratava de uma confirmação ou apenas de mais uma forma de
me provocar, o que parecia ser o seu intuito.

Hesitei um pouco antes de responder. Eu poderia contar a história


toda, mas de quê adiantaria?

— Sim, eu comprei.

Os maxilares delicados se contraíram em uma clara atitude de puro


ódio.
Ela me odiava. E como poderia ser diferente? Eu a havia comprado
em um leilão de sua virgindade.

Talvez eu me odiasse um pouco também, mas fora mais forte do que


eu.

Celina puxou o ar bem fundo em seus pulmões, mas seus ombros

caíram, em uma total demonstração de derrota. Seu queixo, apesar disso,


seguia erguido, como se ela fosse uma guerreira prestes a se entregar em uma
guerra, mas pronta para fazê-lo com honra.

Então eu a vi começar a afastar a alça de seu vestido branco virginal.


Fez com que deslizasse pelo braço, revelando um dos seios. Logo deixou o
outro também à mostra.

Meus olhos recaíram sobre eles como se houvesse um imã a conectá-

los. Engoli em seco enquanto contemplava os pequenos montes alvos e os


mamilos rosados, delicados. Meu corpo inteiro tensionou, porque a visão era
perfeita demais para que eu conseguisse sair daquele momento ileso.

Precisei de alguns instantes para me recompor, mas dei um passo à


frente. Celina se esforçou muito para se manter forte, e eu novamente a
admirei por isso. Era uma garota de pulso firme, muito mais do que suspeitei.
Estendi as mãos, e ela se encolheu um pouco. A ideia do meu toque
parecia repulsivo para ela, o que não julguei. A moça era virgem, não me

conhecia, e tudo o que sabia sobre mim provavelmente não era muito
agradável.

Só que eu a surpreendi quando toquei apenas as alças de seu vestido,

puxando-as de volta e cobrindo seus seios nus. Deixei que meus olhos
permanecessem fixos nos dela, embora fosse um pouco tarde demais, porque
a olhei com desejo anteriormente. Mas como poderia ser diferente? A garota
era linda, e isso deveria ser a sua maior maldição.

Quando dei outro passo para trás, com as mãos erguidas em rendição,
demonstrando que não iria tocá-la novamente, embora meus dedos mal
tivessem encostado em sua pele, ela levou uma das mãos ao peito, como se
sentisse seu coração acelerado.

— Você pagou tanto dinheiro, não vai usufruir do seu produto? —


raiva novamente. Mas um pouco menos, talvez; se é que eu estava
interpretando direito. Como se minha atitude em relação a ela tivesse causado
algum tipo de respeito. Uma surpresa positiva, mas não o suficiente para que
desistisse da provocação.
— Não esta noite — respondi com sarcasmo, esperando que ela
percebesse. Aparentemente não aconteceu, mas eu não iria retirar o que disse.

Ainda assim, ela assentiu. Balançou a cabeça devagar, parecendo


pensativa.

— Por que pagou tanto dinheiro?

— Porque posso. Porque tenho. Sou rico — simplifiquei as coisas.


Não era uma mentira, afinal. Fosse como fosse, era uma resposta muito
canalha.

— Interessante. E você costuma pagar meio milhão de reais por


alguém para enfeitar a sua casa? O que planeja fazer comigo? — Lá estava o
medo. Não era algo que ela quisesse demonstrar, mas consegui sentir no leve
tremor em sua voz. No franzir de um cenho que durou apenas poucos

segundos.

— Gostaria de contratá-la para um trabalho, mas não acho que seja a


hora certa para conversarmos. Você deveria descansar.

— Um trabalho que envolve sexo? — Ergueu a sobrancelha e cruzou


os braços.
Se eu permitisse, ela me tiraria do sério. Fazia muito tempo que eu
não lidava com alguém diferente das pessoas que viviam próximas a mim, o

que não me tornava um cara muito sociável. Talvez eu tivesse me esquecido


qual era a sensação de ter que lidar com outro ser humano diferente de mim.
Com uma mulher. Não era prudente que eu me enfurecesse, especialmente
pela situação em que Celina estava. Meu dever era entendê-la e tentar ser

compreensivo.

Ou o máximo que eu conseguia.

— Creio que seria melhor se você realmente se acalmasse. Volte para


o seu quarto e tente dormir.

— Mais? Até onde eu sei, fiquei horas apagada.

— Bem, mas eu, não. Gostaria de dormir agora que você já sabe onde

está e com quem está.

— Sim... Já sei. — Ela suspirou, cansada. — Se eu decidir acreditar


nas coisas que as pessoas falam, posso concluir que estou no inferno, com o
próprio demônio.

Lancei um olhar profundo na direção dela, sentindo suas palavras me


ferirem mais do que deveriam.

— Pode acreditar no que preferir — respondi rabugento, igualmente


exausto. Novamente dei um passo na direção dela. — Vou te acompanhar ao
seu quarto.

Ela deu mais um passo para trás, outra vez se afastando.

— Posso ir sozinha.

Não me deu tempo de dizer nada, também não pude me mexer antes
que saísse porta afora, com passos apressados. Eu poderia ir atrás dela, antes
que saísse bisbilhotando mais alguma coisa, mas ouvi a porta do quarto ao
lado bater, com força.

Fiquei ali parado, contemplando a saída por onde ela passou,

perguntando o que diabos aconteceria dali em diante e o que eu faria com


aquela maldita garota.
CAPÍTULO CINCO

Nem estava com sono, mas não demorei a adormecer outra vez,
provavelmente por ainda estar sob o efeito do sedativo. Ou melhor... eu não
poderia saber, não é? Era, obviamente, uma situação inédita na minha vida.

Jurei que ficaria por horas ruminando a conversa com Dorian,

tentaria entender suas atitudes nas entrelinhas, principalmente o fato de ele


não me obrigar a lhe fornecer o “serviço pelo qual pagou tanto dinheiro”, mas
fui vencida e acabei despertando apenas quando já havia luz do sol do lado de
fora das janelas.

Diferente da outra vez, consegui me sentar na cama sem maiores


problemas, mas logo senti o estômago roncar, principalmente porque um
cheiro de comida fresca invadiu minhas narinas. Fazia muito, muito tempo

desde a última vez em que coloquei algo realmente gostoso no estômago.

Esta era a maneira que me fazia entender que eu era especial, de


alguma forma, para o nojento do Alemão. Eu era a única, de todas as meninas
que conviviam comigo, que tinha direito de receber algo diferente de pão

velho com manteiga e um café frio, além de água. O meu sanduíche sempre
vinha com queijo, um pouco de presunto, e o meu café chegava fumegando.
Não que fosse uma refeição de princesa, mas era o que me fazia sentir que
tinha algum tipo de regalias. Só que eu recusava a todas e pegava o mesmo
alimento precário das outras.

Se me permitisse ser a preferida do chefe, ele iria entender que eu


gostava daquela posição.

Não demorei a compreender que não apenas havia comida no meu


quarto, como eu não estava sozinha. Eu podia ouvir o som de alguém bem
próximo, sorrateiro, o que me fez sobressaltar e, girar na cama, cobrindo-me
com o lençol, embora estivesse plenamente vestida, com a mesma peça com a
qual participei no leilão.

Com meu movimento súbito, acabei assustando a outra pessoa


também, que era uma mulher de uns quarenta e cinco anos, talvez menos. Um
coque severo, castanho, emoldurava sua cabeça, e ela abriu um sorriso gentil,

mesmo com a mão no peito, demonstrando o susto.

— Perdão, senhorita, não queria assustá-la — ela falou com um tom


de voz calmo e divertido.

— Acho que assustamos uma à outra — concluí enquanto me


remexia sobre a cama, procurando uma posição melhor. Não precisava
continuar me cobrindo com tanto afinco, já que não estava despida e se
tratava de outra mulher.

Ainda assim, o que eu realmente queria cobrir era a minha vergonha.


Será que ela sabia qual era o motivo da minha estadia naquela casa? Será que
me considerava uma prostituta? Não fora minha escolha, é claro, mas quem

iria acreditar que aquele tipo de coisa acontecia debaixo dos olhos da cidade e
ninguém fazia absolutamente nada?

— Trouxe seu café da manhã. Meu patrão acreditou que a senhorita


iria preferir alguma privacidade para comer, mas ele pediu que fosse
encontrá-lo na biblioteca assim que terminar.

Privacidade.
Aí estava uma palavra que se tornara muito distante do meu
vocabulário nos últimos tempos. Não apenas ela, mas livre arbítrio também.

Por mais que na noite anterior Dorian não tivesse me obrigado a nada, eu não
poderia colocar minha mão no fogo de que as coisas continuariam da mesma
maneira. Ainda assim, era bom saber que ele tinha consideração suficiente
para me dar algum espaço nos meus primeiros momentos naquela casa.

— Obrigada. Como é seu nome? — perguntei, esperando que aquela


mulher se tornasse minha aliada ali dentro.

— Sheila, senhorita.

Sorri e balancei a cabeça.

— Pode me chamar de Celina. E acho que vou precisar de sua ajuda,


porque não sei onde fica a biblioteca... — deixei que minha voz soasse doce e

quase tímida. Eu não era uma pessoa manipuladora, mas se tratava de uma
questão de sobrevivência. Faria qualquer coisa para garantir que eu pudesse
deixar o jogo correr ali dentro, se não ao meu favor, da melhor forma
possível.

— Tem um telefone ao lado da sua cama. É só chamar o ramal da


cozinha, que está anotado no cartão. O que precisar, terei prazer em atendê-la
e acompanhá-la.

Era formal, mas organizado. Dava-me a sensação de estar em um


hotel, embora eu soubesse que as coisas não eram exatamente assim.

— Claro. Obrigada... — Coloquei uma mecha de cabelo atrás da


orelha, novamente em posição de constrangimento. — É muito gentil da sua

parte.

— Não há de quê, senhorita. É bom ter alguém para servir.

Opa... uma pista. Não que eu fosse uma investigadora profissional


nem nada, mas era bem observadora e sabia ouvir algo e captar uma
mensagem. Lá estava uma informação perfeita para ser explorada.

— Você não serve o seu patrão? — joguei de forma completamente

inocente. Ela não me parecia uma pessoa muito pouco perspicaz, tanto que
sorriu.

Provavelmente aquela era uma resposta que ela podia dar.

Levantei-me, enquanto ela hesitava, e fui até a escrivaninha vazia,


onde o café fora servido. Era uma bandeja bem farta, e meu estômago chegou
a se contorcer ao ver os ovos mexidos, as torradas, a manteiga fresquinha, o
pedaço de bolo e o café.

— Muito pouco. Ele passa muito tempo em seu escritório,


trabalhando.

— Ah, e o que ele faz? — Peguei a lindíssima xícara de porcelana

pela alça e pelo pires, levando-a à boca e sorvendo o café devagar, porque
estava maravilhosamente quente.

E forte. Como eu gostava.

O sorriso da mulher tornou-se um pouco menos gentil e mais


profissional. Suas mãos foram parar nas costas, esticando os ombros dentro
de um terninho bem impecável na cor azul, que combinava com seus olhos.

— Este tipo de pergunta a senhorita vai ter que fazer ao Sr. Dorian.
Não é meu papel.

Eu não conseguiria nada com ela. A mulher era leal ao patrão, e isso
era admirável. Poderia até pensar que tinha apreço por ele, se não parecesse
tão séria. A governanta perfeita.
Fosse como fosse, rapidamente seus olhos se tornaram mais cálidos
ao dizer:

— Meu patrão explicou algumas coisas a respeito da senhorita, e,


apesar de não ser meu papel falar mais do que devo, preciso dizer que sinto
muito.

Aquilo me desmontou, tanto que meus ombros e toda a minha atitude


estratégica para com ela mudaram. Eu não era mais a sobrevivente tentando
ganhar terreno e sondar inimigos, era só a garota assustada que simplesmente
não sabia o que iria fazer para se livrar de uma situação completamente
perturbadora.

— Acho que também é meu papel, como mulher, alertá-la de que o


Senhor Dorian não é um homem ruim. Não precisa ter medo.

Isso já não era tão simples. Meu pai não era um homem ruim, sangue
do meu sangue, e não teve o menor escrúpulo quando se tratou de deixar a
filha à própria sorte. Onde ele estava naquele momento, quando deveria
cuidar de mim?

— Obrigada — minha voz embargou, e eu precisei puxar o ar mais


fundo antes que começasse a chorar.
Eu não podia fraquejar tão cedo. Não podia me entregar de mão
beijada à fragilidade, especialmente sem lutar.

A mulher assentiu e se afastou, indo em direção à porta.

— Há algumas roupas no armário. Eu mesma as comprei para a


senhorita. — Ela não ia mesmo me chamar pelo nome ou sem toda aquela

formalidade, não é? — Tem toalhas no banheiro, assim como itens de higiene


para que possa usar. Fique à vontade.

Não sabia o que pensar sobre aquilo. Teria ela comprado roupas e
coisas para mim antes ou naquela manhã? Seria minha ida para aquela casa
algo premeditado?

Que pergunta idiota! Nenhum homem apareceria em um lugar como


o Rosa Escarlate com disposição para gastar tanto dinheiro se não fosse de

caso pensado. Algo me dizia que Dorian não fizera tal investimento só
porque se encantara com minha aparência. Ele conhecia o meu pai... pior do
que isso, deveria ter raiva. Eu, provavelmente, era a sua vingança. Por esse
motivo era difícil confiar que suas intenções eram nobres, mesmo tendo sido
quase cavalheiro comigo na noite anterior.

Não levou muito tempo para que Sheila se retirasse e me deixasse


comer.

Logo que terminei, enfiei-me no chuveiro, usando uma das roupas do


armário. Optei por um vestido simples, preto, sem muitos detalhes, mas
confortável. Penteei meus cabelos, deixando-os molhados e caindo pelas
minhas costas.

Já tinha se passado uma hora desde que tive minha conversa com
Sheila, e por um momento receei que Dorian já estivesse impaciente ou
irritado pela demora, mas achei até bom. Eu estava ali contra a minha
vontade, não podia me render ao medo. Ele podia me machucar? Sem
dúvidas. O homem tinha o dobro do meu tamanho – na verdade, ele tinha
porte suficiente para machucar qualquer um –, mas eu não podia facilitar as
coisas. Talvez se lhe desse bastante trabalho ele se livrasse de mim.

Com alguma sorte, nem me levaria de volta para o Rosa Escarlate e...

Burra!

Pelo amor de Deus, Celina! No que você está pensando?

Claro que ele me levaria de volta para aquele antro, e ainda pediria
seu dinheiro de volta. Virgem, ao menos, eu ainda era, ainda serviria a todos
os propósitos loucos de Alemão e Cia.

Dei uma última olhada no espelho e tudo o que vi à minha frente foi
uma garota comum. Fiz questão de não me maquiar, de não me preocupar
com cabelos, e esse era o plano. Sem toda a preparação do dia anterior, eu
parecia bem menos atraente.

Mas... novamente... o que seria melhor? Que ele se interessasse e me


quisesse para si? E se eu acabasse preferindo essa ideia? Estava instalada em
um quarto confortável, com boa comida, um chuveiro com água quente, uma
casa segura e um homem que tivera um mínimo de consideração de não me
tomar à força logo na primeira noite.

Pensando nisso, esforcei-me para parecer um pouco menos pálida,


usando algumas das maquiagens que foram dispostas para mim em uma

caixinha sobre a pia. Não era muita coisa e não havia nenhum batom
vermelho ou chamativo, o que indicava que o homem não tinha fetiches
estranhos.

Havia um secador também, e eu dei um jeito no cabelo.

Sentindo-me pronta, liguei para Sheila, que surgiu em dois minutos.


Eu não gostava da ideia de ter uma pessoa à minha disposição daquela
maneira, porque não queria ser servida, mas ela era tão solícita e parecia tão
satisfeita por ajudar que não me importei.

Não houve conversas amistosas no caminho até a biblioteca, mas


também não era um silêncio desagradável. Ela tomou a frente por uma
distância quase ínfima, e nossos passos se tornaram equivalentes.

Paramos diante de uma porta alta e dupla, que ela abriu com um
empurrão, e meus olhos foram atingidos por uma visão que eu não esperava.

Não era uma simples biblioteca como seria esperado de uma casa
comum. Mais parecia uma instituição pública, daquelas antigas, em madeira,
com direito a um espaço confortável de leitura, com poltronas confortáveis,
um lustre tão bonito quanto o que havia no meu quarto e estantes de carvalho
que cheiravam a madeira de boa qualidade.

— Vou deixá-la aqui, senhorita. Meu patrão já deve estar chegando.

Mal respondi seu comentário, apenas fui andando, entrando naquele


ambiente que chegava a fazer meu coração acelerar no peito.

Eu queria mergulhar naquelas estantes e olhar livro por livro,


lombada por lombada, conhecer os títulos, entender que tipo de homem era o
meu anfitrião pelo seu gosto.

Só que eu não conseguia. Mal sabia por onde começar. Meus olhos
estavam perdidos, embolados nos meus pensamentos sobre o quão
maravilhoso seria se eu tivesse autorização para explorar aquele ambiente e
pegar um ou outro livro emprestado para ler à noite.

Talvez eu pudesse até estar feliz com a possibilidade.

Talvez...

— Perdida? — a voz masculina grave quase me fez pular de susto.

Ele era silencioso para um homem daquele tamanho...

Virei-me em sua direção, e um Dorian muito sério me observava.

Não era correto que eu o achasse mais bonito do que seria prudente,
era? Ainda assim... era inegável. VanCanto era atraente. O tipo de homem
para quem eu olharia duas vezes se estivéssemos em outra situação.

Mas não estávamos. E eu precisava me lembrar disso.


CAPÍTULO SEIS

Era estranho tê-la ali naquele espaço. Além de Sheila nenhuma outra
mulher entrou naquele ambiente em muitos anos. Ou melhor, nenhuma
chegou a entrar na casa, mas... isso era outra história. Eu não tinha tanto
apego pelos outros cômodos como tinha pela biblioteca.

A biblioteca dela.

Claro que muito tempo havia se passado. Dez anos. Era o suficiente
para eu ter superado a perda, e até poderia dizer que meu coração já não era
um lugar tão sombrio se as coisas tivessem acontecido de uma maneira
convencional.
Não foi. E a culpa ainda pesava nas minhas costas.

As portas da biblioteca estavam semicerradas quando entrei. Fui a


passos decididos, imaginando que a garota ainda não teria acordado ou não
estaria ali, porque Sheila não me avisou. Só que lá estava ela. A figura quase
etérea da noite anterior agora vestia negro, uma roupa mais larga e

confortável, provavelmente das que minha funcionária comprara para ela.

Estava parada, bem no meio do cômodo, sobre a bússola que fora


desenhada no chão muito antes de eu mesmo ser o dono daquela propriedade.
O ambiente, em si, sempre foi uma biblioteca, e alguns dos livros foram
herdados do antigo dono. Alguns eram tão antigos que eu tinha até medo de
pegá-los.

Quando comprei a casa, aquele lugar fora crucial para a decisão,

porque seria um presente. Por isso ainda era tão sagrado para mim.

A moça se sobressaltou quando eu falei. Afastou-se vários passos


como se quem tivesse entrado fosse um monstro, pronto para devorá-la.

Deveria tê-la avisado da minha presença ou feito qualquer merda


tipo... pigarreado. Sei lá. Só que soltar uma palavra qualquer do nada sem
dúvidas me transformava em um idiota, mais ainda do que ela provavelmente
pensava que eu era.

— Não estou perdida. Sheila me trouxe aqui. Estou... — ela hesitou,


engolindo em seco. Era impressionante o quão assustada sempre parecia na
minha presença, mas o quanto se esforçava para disfarçá-lo. —
Impressionada. — A palavra foi dita de uma forma quase como se Celina

estivesse se entregando em uma luta. Ela não queria que soasse como um
elogio, mas aconteceu.

Não me lisonjeou.

Eu poderia ter valorizado um pouco mais a resposta dela e tentado


transformar seu interesse por aquele cômodo em algo que a fizesse sentir
menos objeção em estar ali, mas não achei que obteria muito sucesso.

Ao menos não por enquanto.

— Que bom — foi todo o meu comentário sobre o assunto. Até


porque eu não tinha tempo a perder. Com as mãos para trás das costas, passei
por ela e segui em direção às duas poltronas de couro, que instalei ali
propositalmente no passado, quando tinha companhia para ler todas as noites.
— Pode se sentar, por favor?
A hesitação em seus olhos e em sua atitude quase me desanimaram.
Eu não tinha pretensões de ser amigo da garota, mas ter alguém morando sob

o meu teto que parecia morrer de medo de mim não era agradável. Ainda
assim, eu não tinha disposição para me explicar, muito menos de contar
minha história – por mais que eu acreditasse que era o culpado e que nenhum
tipo de absolvição me faria pensar diferente. Absolvição essa que certamente

não viria de uma menina que eu mal conhecia.

Tentando incentivá-la, eu mesmo me sentei, acomodando meu corpo


de quase dois metros na poltrona da forma mais confortável possível.
Segundos depois, após observar-me com cautela, a moça fez o mesmo, com
bem mais recato e parecendo muito menos à vontade.

Era um começo, de qualquer forma.

Na mesinha ao lado da minha poltrona – já que cada uma possuía a


sua –, peguei um envelope pardo.

— Isto aqui é uma proposta formal — falei para Celina, tentando


fazer parecer algo natural. — Gostaria que lesse com cuidado e me desse sua
resposta.

Ela ficou olhando para o negócio na minha mão como se estivesse


entregando-lhe um enigma de milênios e que só ela poderia desvendar.

— Uma proposta? — repetiu, finalmente olhando para mim com os


olhos verdes expressivos muito desconfiados. — E há sexo envolvido nela?
Tipo no filme, onde teremos um contrato e tudo o mais? — mais uma
provocação.

Respirei bem fundo, construindo minha paciência. Ainda assim, o


sorriso em seu rosto me surpreendeu. Era jocoso, de zombaria, e toda aquela
aparência de inocência misturada com a dose de malícia quase me fez perder
o controle.

Remexi-me na poltrona com os olhos estreitos sobre ela, calado,


antes de dizer qualquer coisa.

A garota não desviou o olhar também. Vi seus maxilares se

contraírem e o sorriso desaparecer. Seus lábios rosados tremeram um pouco,


e a impaciência novamente se tornou admiração. Ela era forte. E como não
seria, depois de enfrentar tudo pelo que passou?

— Leia a proposta, Celina. Se quiser, pode ler quando estiver sozinha


e me dê a sua resposta.
Ela finalmente estendeu a mão, pegando o que eu lhe oferecia. Por
um momento julguei que poderia abri-lo ali mesmo, na minha frente, mas não

o fez, apenas levou o envelope ao peito, abraçando-o como se aquele pedaço


de papel pudesse protegê-la.

— Você me comprou. Por quinhentos mil. Teoricamente eu não

tenho escolha, não é mesmo? — ela falou tudo isso quase em um sussurro,
ainda me avaliando, seguindo curiosa.

— Pelo que já entendi você é uma pessoa que leva as coisas muito no
preto e branco — minha resposta teve um tom ácido e desagradável, mas eu
estava cansado de me esquivar de suas acusações sem falar mais do que
devia.

— É difícil não ser assim levando em consideração que eu não tenho

minhas escolhas sendo respeitadas. Que desde que aquele homem me tirou de
casa eu não sou mais dona de mim mesma.

Sua afirmação funcionou como um punhal penetrando o meu peito e


me rasgando por dentro. Era impossível me colocar no lugar dela, mais
impossível ainda não me compadecer pensando, realmente, no quanto deveria
ser angustiante simplesmente não poder assumir o controle de sua própria
vida. Eu teria enlouquecido, mas eu tinha muitas coisas em minha vantagem.
Ela era só uma garota indefesa, vulnerável e desprotegida. Como não

acreditar que eu era mesmo o Lobo Mau, pronto para lhe causar ainda mais
danos?

— Posso me retirar? — ela perguntou de cabeça baixa, parecendo

envergonhada de sua própria confissão. Era a primeira vez que demonstrava


ar de submissão, o que, provavelmente, era muito doloroso.

— Claro — respondi, quase lamentando. Talvez fosse uma boa ideia


conversar um pouco mais com ela, tentar explicar e mostrar que minhas
intenções não eram ruins...

Quando ela lesse a proposta, quem sabe não ficasse um pouco mais
aliviada.

Fosse como fosse, eu precisava deixá-la compreender por sua própria


conta. Dizer que eu não iria machucá-la não a convenceria de nada.
Provavelmente já lhe haviam dito aquilo mil vezes e sempre fora mentira.

Assisti enquanto se afastava e permaneci sentado por algum tempo,


até que decidi seguir com meu dia.
Dirigi-me à parte da biblioteca que usava como escritório, próximo à
janela, de onde podia ver a estufa. Sentei-me à minha mesa e liguei meu

computador. Odiava notebooks, porque minhas mãos eram grandes demais


para aqueles botõezinhos de merda dos teclados, e eu acabava sempre
errando mais do que acertando o que digitava.

Eu não precisava de muita concentração para entrar na história,


especialmente quando ela já tinha passado da metade. Inícios eram um pouco
mais complicados, porque eu ainda não estava tão íntimo dos personagens,
mas depois que os conhecia melhor, as coisas fluíam mais fácil.

O som das teclas era quase como música para os meus ouvidos. Eu
tinha uma produção bem consistente, e ela quase dobrou nos últimos anos.
Afundar-me nos meus enredos me fazia esquecer um pouco da minha
realidade.

Uma porra de um pensamento patético, mas não podia mudar quem


eu era.

Fiquei algumas horas imerso no trabalho, até que o cheiro da comida


fez meu estômago reclamar. A bandeja foi pousada cuidadosamente na mesa
ampla, que eu usava para praticamente tudo, já que dificilmente saía do
escritório, e normalmente teria apenas agradecido a Sheila e a deixado ir
embora, mas, naquele dia, eu a surpreendi.

— A moça comeu? — a pergunta saiu seca, embora essa não fosse a


minha relação com Sheila. Ela era o mais próximo de uma amiga que eu
tinha.

Tanto que seu sorriso foi bastante provocador para alguém que era
apenas minha funcionária.

— Celina, você quer dizer?

Resmunguei qualquer coisa, quase em um rosnado.

— Nós dois sabemos o nome dela, mas é uma moça, até onde eu sei.

Ela cruzou os braços.

— Eu também sou. Não tão bonita quanto ela, é claro. — Novamente


uma zombaria. Se estava esperando algum comentário meu a respeito da
beleza de Celina, iria esperar sentada.

Porra, claro que a garota era bonita. Linda. Deslumbrante. Mas no


que isso mudaria a minha vida?
— Não deveria deixar que ela sinta medo de você.

Mais um resmungo. Aos trinta e cinco anos, eu mais parecia um


velho de oitenta.

— Tem muitas coisas que eu prefiro que ela não saiba. Se me temer,
não irá me causar problemas — atestei.

— Ainda assim, vai permitir que ela mexa nas coisas da senhora.

Ergui os olhos bem abertos para ela, quase chocado pela


impertinência. Mesmo assim, não iria repreendê-la. Não era uma má ideia ter
alguém por perto que me dissesse verdades que não gostava de ouvir. Por
mais que eu mesmo costumasse me culpar e me condenar quando me olhava
no espelho.

— Foi uma decisão pensada. Preciso de alguém que faça isso. Que
termine o que Marcela deixou pendente — eu não queria demonstrar o
quanto aquilo era doloroso, mas foi impossível.

— Já faz dez anos...

— Poderiam ser vinte. Eu ainda iria querer isso. Ela ia querer isso.
Depois de tudo que lhe fiz eu devo...

— Não deve nada, Dorian. Nada. O que aconteceu foi...

A porta estava aberta, mas mesmo assim ouvimos a batida, e nós dois
olhamos na direção dela. Lá estava Celina, esperando para ser convidada a
entrar. Usava a mesma roupa de mais cedo, mas os lindos cabelos ruivos

estavam presos em um rabo de cavalo longo, com alguns fios caindo no rosto.

— Pode entrar — convidei-a, e Sheila se afastou um pouco da mesa,


assumindo novamente sua postura séria e profissional. Não que esta não fosse
sua personalidade no geral, mas como estava trabalhando comigo há muito
tempo, desde pouco antes do incidente, tínhamos algum tipo de
relacionamento amistoso. Ela era quase... da família.

Celina foi entrando, enquanto Sheila ia saindo, com uma mesura

formal.

— Interrompi alguma coisa? — A atitude era completamente


diferente do que vi de manhã. Ela parecia menos na defensiva, como se já
não mais acreditasse que eu estava prestes a atacá-la a qualquer momento.

— Não. Pode falar. — Desliguei o monitor do computador e


entrelacei as mãos, colocando-as sobre a mesa.

Senti mais um pouco de reticência, e Celina demorou a começar a


falar.

— É realmente uma proposta de trabalho... — disse, como se fosse


algo muito absurdo.

Precisei conter um riso, porque a entonação foi muito peculiar.


Recostei-me na cadeira, cruzando as mãos sobre meu abdômen.

— O que esperava?

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Você estava em um leilão de mulheres. O que você esperava que

eu pensasse?

Bem, ela tinha razão.

— Nem tudo é o que parece, menina. — Celina suspirou e assentiu,


dando-me razão. — Você conseguiu ler tudo, ficou alguma dúvida?

— Não. Acho que está tudo muito bem explicado, só estou um pouco
incrédula.

— Não fique. Por isso pretendo fazê-la assinar, como eu farei o


mesmo, para que não haja problemas. Tudo o que está aí é real. — Peguei
uma caneta no porta-lápis e a estendi para ela. — Vai assinar?

Eu realmente esperava que sim.


CAPÍTULO SETE

Era difícil de acreditar.

No momento em que Dorian me entregou aquele envelope, jurei que


encontraria as propostas mais obscenas e degradantes lá dentro. Eu não o
conhecia, e até aquele momento, apesar de ter me dado indícios de ser uma

pessoa um pouco diferente do que sempre imaginei e do que me contaram,


ainda duvidava de sua índole.

Não que pudesse me considerar uma expert em sua personalidade –


claro que não –, mas tudo o que li naqueles papéis que me entregou me
deixaram muito surpresa.
Era realmente uma proposta de trabalho. E nada ligado a qualquer
coisa doméstica, ou o que se poderia esperar de uma mulher que ele comprara

em um leilão. Ele queria que eu terminasse um dos livros de sua falecida


esposa, que era escritora.

Eu não fazia ideia de qual era o nome dela, se usava um pseudônimo,

muito menos qual era o gênero que escrevia, mas pelo que pude entender
havia alguma relevância em sua carreira. Ela morrera antes de concluir seu
trabalho mais recente, e se eu o fizesse, receberia os créditos por isso.

Não apenas trabalharia para Dorian porque ele pagara uma fortuna
para me tirar daquele lugar horrível que seria o meu destino, mas porque... eu
me tornaria uma escritora.

Como ele sabia que eu escrevia? Teria meu pai comentado algo? Não

era possível que estivesse dando aquela incumbência tão importante para
alguém que não tinha experiência.

E... ok, eu também não tinha. Não profissionalmente. Mas amava


livros e tinha algumas coisas guardadas. Nunca tive muita coragem de
mostrar para outras pessoas, mas meu pai sabia. Passamos uma noite inteira
conversando sobre meu sonho e até permiti que lesse algo. As que eu
considerava melhores. Alguns contos, inícios de histórias – embora ele nunca
tivesse chegado a ler nenhuma inteira, porque ele não era exatamente um

leitor.

Não poderia dizer que éramos amigos, mas aquela fora uma conversa
gostosa. Acontecera alguns meses antes do que eu poderia alegar como sendo

a maior desgraça da minha vida, equiparada à morte da minha mãe.

Mas eu não poderia ficar pensando no meu pai. Se fizesse isso,


acabaria sentindo algum tipo de empatia e saudade, e eu não podia permitir
que meu coração se entregasse dessa forma. O que estava em jogo ali era o tal
trabalho que Dorian me oferecia.

Peguei a caneta, que ainda estava estendida.

— Eu sempre quis ser escritora. — Não sei por que lancei essa

confissão. Era algo muito pessoal, que eu não compartilharia com um


desconhecido como Dorian, mas escapou da minha garganta e saiu pela
minha boca em um tom pouco mais alto do que um sussurro.

Ele apenas assentiu, enquanto se levantava. Daquela vez, seu


movimento não me intimidou. Talvez devesse, mas nem recuei. Não poderia
confiar tão facilmente, porque os últimos homens que se aproximaram de
mim não fizeram nada além de me usarem. Quem poderia prever que Dorian
não estaria tentando ganhar minha simpatia para depois dar o bote?

Era difícil saber.

Dando a volta na mesa, colocou-se de frente para mim, quase


próximo, mas distante o suficiente para não me sufocar com sua presença que

parecia preencher todo o ambiente, e apoiou os quadris na mesa, cruzando os


braços contra o peito amplo.

Calado, esperou que eu falasse mais alguma coisa.

Só que eu não falei, apenas usei o espaço vazio da mesa, próximo à


bandeja que Sheila deveria ter levado para ele, para assinar o tal documento.
Assim que terminei, pousei a caneta sobre o papel, e Dorian também deixou
sua assinatura, com uma caligrafia firme e precisa sobre a lacuna acima de

seu nome.

Houve uma troca de olhares em silêncio, e era estranho conviver com


alguém daquela forma, quase como se estivéssemos em alerta o tempo todo,
esperando que o outro fosse dar um passo em falso, algo que nos
surpreenderia de forma negativa.
O que Dorian faria se eu decidisse tentar fugir, depois de ter pagado
tanto dinheiro por mim? O que aconteceria se eu simplesmente saísse

correndo?

Eram pensamentos que me ocorriam desde que abri meus olhos


naquela casa.

Mas eu tinha acabado de assinar um contrato. Dei minha palavra.


Além do mais, devia-lhe algumas coisas.

Dorian esticou o braço para pegar uma rosa vermelha que estava
sobre a bandeja de seu almoço, que destoava completamente de todo o resto,
e mais ainda nas mãos enormes do homem, mas ele apenas se afastou.

— Vou te mostrar o ambiente onde vai trabalhar — ele informou,


tomando a dianteira e começando a caminhar na direção de uma escada em

espiral.

Não me restou nada além de segui-lo.

Subimos degrau por degrau, até que chegamos em uma espécie de


mezanino – se é que poderia ser chamado assim –, que era totalmente
convertido em um pequeno e delicado escritório feminino.
Apesar de ter a mesma vibe amadeirada da biblioteca do andar de
baixo, havia detalhes que faziam toda a diferença: plantas, estantes delicadas

com detalhes mais coloridos e enfeites adoráveis, além de uma mesa com um
notebook bem antigo, mas cheio de adesivos fofos.

Dorian apontou exatamente para o computador.

— Isso é velho. Não sei nem se está funcionando, não sei a senha,
mas deve ter anotada em algum lugar. Marcela era bem organizada, mas
meticulosa. Ela fazia muitas pesquisas para suas histórias, então há cadernos
numerados e datados em caixas dentro daquele armário — ele apontou na
direção do móvel mencionado.

Enquanto eu olhava ao meu redor, vi quando retirou uma rosa igual à


que tinha em mãos, mas completamente murcha, de um vasinho fino sobre a

mesa e substituí-la pela nova. Não houve explicações para a atitude, e eu


também não perguntei nada.

Caminhei em direção à estante de livros, sabendo que estava sendo


observada, mas mantendo meus passos firmes mesmo assim. Estiquei a mão e
levei os dedos às lombadas, percebendo que havia vários títulos com o nome
de uma autora: M. V. Cantho. O sobrenome não era igual ao de Dorian, mas
era próximo o suficiente para pode ser um pseudônimo. Havia livros em
vários idiomas, então imaginei que ela fora traduzida para outros países.

Alguns exemplares em capa dura chamaram a minha atenção, porque eram


particularmente lindos.

Baixei um pouco os olhos e vi outra leva de livros, com lombadas em

tons mais escuros, com outro nome: D. V. Cantho.

Mas... o quê?

Peguei um deles nas mãos e percebi que, pela ilustração sinistra da


capa, deveriam ser de terror.

— São seus? — perguntei, extremamente surpresa. Ele apenas


assentiu.

Continuei observando o exemplar em minhas mãos, que era uma


cópia em inglês. Logo na capa havia a famosa frase: Best-seller do The New
York Times. Quando virei, para ler a sinopse – eu falava o idioma quase
decentemente –, algo chamou a minha atenção. Havia uma recomendação de
Stephen King, dizendo que se tratava da “obra de terror mais bem construída
dos últimos tempos”.
Olhei para ele com os olhos arregalados e boquiaberta.

— O Stephen King leu o seu livro? — indaguei, parecendo uma


idiota pela forma como soou.

— Alguns deles. Ele é um cara bem generoso e acessível.

— É o Stephen King!

— Você gosta dele? — Dorian perguntou como se não fosse nada de


mais.

— Sou fã. — Terror não era o meu gênero favorito, mas King era
outro nível.

Não esperei sua resposta e me voltei para a estante novamente.

Encontrei alguns exemplares em português, sendo que dois dos títulos eram
os mesmos de filmes. Ainda mais surpresa, peguei-os e percebi que as capas
combinavam com o pôster do cinema. Um era com um elenco menos famoso,
mas o outro tinha Julianne Moore e Hugh Jackman com suas caras bonitas
estampadas.

— Suas obras foram adaptadas? — Ele novamente assentiu,


corriqueiramente.

Como eu não era tão fã do gênero e não tinha muito dinheiro para
comprar livros, não tinha muito acesso a nomes de autores, a não ser os que
se tornavam muito famosos. Eu deveria saber o nome dele, ao menos,
especialmente por causa dos filmes, embora eu não os tivesse assistido.

Era uma loucura. Eu estava morando na casa de um homem que


conhecia um dos meus autores favoritos e que tivera trabalhos adaptados para
Hollywood.

Não era difícil entender como tinha tanto dinheiro para gastar.

— Se você é escritor, por que você mesmo não termina o trabalho da


sua esposa?

Ao vê-lo cruzando os braços contra o peito, percebi que não estava


muito à vontade com a pergunta, ainda assim, respondeu:

— Não me sentiria confortável.

Assenti, tendo que aceitar aquela resposta, embora não fosse muito
satisfatória.
— E sobre o quê é o livro?

— Não sei.

— Como assim? Os dois, como escritores, não conversavam sobre os


enredos? — Estava me intrometendo demais, com certeza, mas a curiosidade
chegava a ser palpável.

— Não sobre esse em específico. Ela manteve em segredo.

Hummm... um segredo? Péssimo sinal, não?

Por que será que eu tinha a impressão de que ainda descobriria que
havia muitos mistérios a serem descobertos naquela casa?

E por que eu tinha a impressão de que eu faria parte de alguns deles

dali em diante?
CAPÍTULO OITO

Eu precisava desapegar. Ter uma pessoa diferente mexendo nas


coisas de Marcela me deixaria ansioso, sem dúvidas, mas era a única forma
de eu completar aquilo que tinha como uma missão: a última obra dela não
poderia ficar guardada, escondida. As pessoas precisavam conhecer seus

últimos pensamentos, mesmo que focados em uma obra de ficção.

Grace, minha agente americana estava cobrando, porque a editora


que nos publicava achava que seria um sucesso enorme. Eu não estava
preocupado com isso, mas com o lado sentimental da coisa. Quando lhes
contei que planejava contratar uma garota inexperiente para o trabalho,
ficaram muito desapontados. Planejavam contratar alguém que já tivesse
algum nome, para chamar a atenção de outros leitores, mas era a minha

condição. Não queria alguém com seus vícios e que pudesse mudar qualquer
intenção da história de Marcela. Não queria uma pessoa que já conhecesse
bem o mercado editorial, que já tivesse sua fama. Queria oferecer uma
oportunidade.

E que melhor do que uma garota que estava com sua vida em perigo,
que não tinha para onde ir e nem saberia como recomeçar?

O dia se arrastou, para ser sincero. A partir do momento em que a


deixei sozinha, para que tivesse privacidade no escritório de Marcela,
começasse a conhecer o local e a forma como minha esposa trabalhava, mal
consegui me concentrar, o que era raro. A qualquer movimento de passos, de
coisas sendo movimentadas, eu erguia meus olhos, como se pudesse vigiá-la
com algum tipo de visão de raio-x que atravessasse o teto da biblioteca.

Colocar uma câmera seria uma opção, mas eu não queria. Não
desejava aquele tipo de comportamento abusivo enquanto aquela garota
estivesse em minha casa. A não ser que lhe avisasse que estaria sendo
observada. Era aceitável, não? Estava trabalhando em um ambiente pessoal.

Bem, precisaria avaliar a possibilidade.


Acabei encerrando meu expediente mais cedo e jantei no meu quarto.
Esperava que Celina tivesse comido, porque Sheila não me respondera

naquela hora quando perguntei, e questioná-la seria um sinal claro de que


estava interessado demais.

Porque eu não estava. Era uma questão de responsabilidade. A

menina estava comigo, não estava? Morando na minha casa. Vê-la


definhando por inanição não era uma opção atraente.

Tomei um banho e me joguei na cama mais cedo do que o normal,


com um livro. Até a hora em que saí da biblioteca, Celina não tinha retornado
de lá, mas foi mais ou menos perto da meia-noite que ouvi a porta do quarto
onde ela estava instalada se fechar.

E assim foi por uns quatro dias. Ela chegava um pouco depois de

mim, me dava bom dia, subia para o escritório de Marcela e ficava lá até
tarde. Todos os dias eu precisava me controlar como louco para não enchê-la
de perguntas, para não tentar descobrir o que tinha encontrado, se conseguira
algo com o material que tinha disponível, mas sempre evitava, porque temia
que se sentisse pressionada.

Todas as noites, quando eu me deitava no meu quarto, pronto para


dormir, decidia que no dia seguinte iria aproveitar e trocar a flor do vaso da
mesa de Marcela, o que era uma tradição entre nós, e aproveitaria para tentar

conversar com Celina. Só que, provavelmente, a rosa já deveria estar mais do


que murcha, porque acabava desistindo.

Fui deitar mais tarde daquela vez, porque descontei um pouco minhas

frustrações na sala de musculação. No momento em que realmente fui para a


cama, que me acomodei e me preparei para dormir, já passava mais do que da
hora de Celina ter voltado para seu quarto, a julgar por seus horários usuais.

Tarde demais para me oferecer para conversarmos, mas eu estava


completamente sem sono.

Era a terceira noite que me revirava na cama por horas e horas e


acabava indo para a estufa. A busca por um local que me acalmasse, por estar

entre as flores de Marcela, era constante. Naquela noite não foi diferente. Só
que quando coloquei meus pés descalços no chão, antes mesmo de conseguir
vestir uma blusa, um som de total desespero chamou a minha atenção.

Vinha do quarto de Celina, e não foi apenas um. Ela parecia estar em
agonia, gemendo, chorando. Quando soltou um grito estrangulado, não pude
mais me conter e saí correndo em sua direção.
Abri sua porta, por mais errado que pudesse ser, e irrompi seu quarto,
acendendo a luz. Suspeitava que fosse o que realmente era – um pesadelo –,

mas e se estivesse passando mal ou algo assim?

Mas mesmo com o meu rompante e com a iluminação sobre sua


cabeça, a garota não acordou. Continuou revirando-se de um lado para o

outro, ofegante e parecendo muito assustada, o que me apavorou também.

Ela estava em segurança, mas o desespero na forma como se


contorcia sobre a cama me deixou incomodado, ao ponto de avançar na
direção dela e me esforçar para acordá-la.

— Celina? Acorde, é um pesadelo — apenas falei, enquanto me


sentava na cama, sem tocá-la.

Só que ela não acordou. Chutava as cobertas e murmurava coisas sem

sentido. Parecia que estava sendo torturada, então não tive escolha a não ser
colocar a mão em seu braço, cutucando-a gentilmente para tentar tirá-la
daquele tormento. Segurei-a com um pouco mais de força quando continuou
na mesma, e quando acordou, seus olhos estavam arregalados. O pulo que ela
deu, para se sentar, levou-a a ficar com as costas imprensadas na cabeceira,
abraçando os joelhos.
— Calma, está tudo bem — tentei usar do meu tom de voz mais
calmo e sereno, enquanto ela respirava ofegante, tentando recuperar o ar.

— Aqueles homens... ele queriam... naquela noite... Eles iriam... —


Ela não precisava completar o pensamento. Eu compreendia. — Eles iam me
machucar.

Sim, eles iam, especialmente aquele que quase conseguiu comprar


sua virgindade. Era uma criatura cruel e sádica.

— Quantas vezes, desde aquela noite, você sonhou com isso? — Eu


nem deveria perguntar, porque não era da minha conta, mas achei necessário.
O que andava acontecendo debaixo do meu teto, e eu sequer sabia?

Os olhos verdes de Celina me fitaram ainda mais assustados e


marejados. Ela estava se esforçando muito para não chorar, mas toda a sua

linguagem corporal me dizia que estava destruída por dentro.

— Todos os dias. Eu não consigo esquecer. Por mais que tente, a


cada momento que me deixo perder nos meus pensamentos, sou transportada
de volta para aquela noite — foi uma confissão difícil. Era inegável que
aquela pequena guerreira tinha sua honra, sua dignidade, e estava disposta a
lutar pelo que acreditava.
Encolhida sobre a cama, deixou que seus olhos recaíssem sobre meu
peito nu, e eu cheguei a praguejar por estar daquela maneira na frente da

garota, que já estava mais do que assustada pensando em ter tarados tocando-
a sem sua permissão.

Ergui um dedo em riste, pedindo que esperasse, e corri ao meu

quarto, vestindo qualquer coisa que encontrei pelo caminho, retornando logo
depois.

Encontrei-a na mesma posição e me dei conta de que talvez fosse


uma boa ideia tirá-la um pouco de dentro daquele quarto. Até onde eu sabia,
a menina mal tinha visto a luz do sol desde que chegara. Não que fosse ver
àquela hora, mas ao menos respiraria um pouco de ar puro.

Um pouco hesitante, sem saber se era o certo a fazer, estendi a mão

para ela. Celina franziu o cenho, olhando para a minha mão como se fosse
algo completamente fora de contexto. E talvez fosse, mas não desisti, o que a
fez me tocar.

Sua mão pequena se encaixou dentro da minha, e eu a ajudei a se


levantar.

— Vista um casaco — foi quase uma ordem, e eu não conseguiria


soar diferente, porque há muito tempo eu não falava com uma mulher com
quem não tivesse uma relação de trabalho.

— Para onde vai me levar? — Preferi não responder, então ela


suspirou e foi até o cabideiro, vestindo uma jaqueta jeans por cima de sua
camisola. Não era nada sensual, era bem comportada, mas de alguma forma

ela estava tão bonita como sempre, mesmo com os cabelos bagunçados, os
olhos vermelhos e a expressão de quem tinha acabado de acordar.

Conforme passamos pela porta, coloquei a mão na curva de suas


costas, incentivando-a a caminhar, mas logo tomei a dianteira. Não
estávamos mais de mãos dadas, mas ela me seguiu, e eu a levei através da
porta principal, chegando ao quintal.

O terreno da minha casa era enorme, e a estufa se tornou visível no

momento em que nos vimos lá fora. Era uma estrutura de vinte e cinco
metros quadrados, retangular, com flores por todos os lados. Marcela fora a
idealizadora do projeto, com a ajuda de um arquiteto, e o pai de Celina
cuidara daquele pequeno espaço por um bom tempo, até que tudo ruiu.

Apesar de muitas coisas estarem em pedaços na minha vida, fiz


questão de que aquele lugar se mantivesse vivo, mesmo sem a ajuda de um
profissional. Eu e Sheila fizemos nossas pesquisas e conseguimos cuidar de
tudo.

Pude ver nos olhos de Celina que ela estava surpresa com o que via.
Até eu mesmo, às vezes, me surpreendia. Como poderia haver um espaço
como aquele em meio a uma casa que emanava tanta escuridão?

Em silêncio, eu mesmo fiquei observando a estufa, vendo os pontos


de cores que ela proporcionava; eles quase iluminavam até mesmo a noite. O
contraste era quase... calmante.

Talvez esse tivesse sido o motivo pelo qual decidi levá-la até lá.

Repetindo o movimento anterior, estendi a mão para ela, e Celina não


mais hesitou. Parecia estar tão perdida em seu momento de surpresa que nem
percebeu o que estava fazendo.

Puxando-a como se ela fosse uma sonâmbula inconsciente em meio a


uma floresta assustadora, chegamos à porta da estufa, e eu a abri, sendo
recebido pelo cheiro das plantas que passaram a nos cercar.

Celina fechou os olhos, absorvendo-o, respirando fundo, e um sorriso


muito discreto curvou seus lábios.
— Que coisa linda — ela falou baixinho, como se precisasse ser
silenciosa ou acabaria perturbando as plantas.

A maioria delas eram rosas – a flor preferida de Marcela –, e elas


tinham sido plantadas em abundância, das mais variadas cores. Mas havia
outros tipos de flores. Tendo isso em mente, dei-me conta de que Celina

imediatamente partiu em direção a um conjunto de lírios, que se revelavam


em um canto da estufa.

Ela se agachou em frente a eles, tocando em um com muita


delicadeza, como se pegasse algo frágil.

Sua fascinação era tão grande, que não pude resistir em perguntar:

— Gosta de lírios?

Ela assentiu com veemência, com um sorriso um pouco maior.

— Quando eu nasci, minha mãe queria que meu nome fosse Liliana,
para me chamar de Lily, que é lírio em inglês... Bem, você sabe. — Deu de
ombros, quase tímida por estar tentando me ensinar algo. Passado o
momento, ela prosseguiu: — No final das contas, meu pai sugeriu Celina,
porque ela ainda conseguiria me chamar de Lily, se quisesse. E este era o
apelido que usava. — Adquiriu um ar sonhador, que era novidade em seu

rosto. Eu o preferia a expressão assustada, como se pudesse ser devorada a

qualquer momento. — Acho que este é o motivo.

— É uma flor muito bonita também — completei como se fosse algo


relevante. Uma merda de uma afirmação óbvia que me fez sentir um idiota,

depois de ela ter me contado uma história que deveria lhe causar tanta
nostalgia.

— Ela é.

Formou-se um silêncio um pouco constrangedor, ao menos para mim,


porque Celina continuava completamente encantada com as flores,
principalmente os lírios. Comecei a me remexer, sem exatamente saber como
agir, até que pigarreei como um velho introvertido e disse:

— Você pode vir aqui sempre que quiser. Quando estiver se sentindo
sufocada pelas lembranças...

A garota ergueu os olhos para mim, tão comovidos e agradecidos que


eu quase a puxei para os meus braços, para abraçá-la e lhe oferecer um pouco
de conforto. Mas eu era o homem a quem ela temia, como poderia dar-lhe
mais do que já estava dando?
— Obrigada, Dorian. Significa muito.

Dorian...

Era a primeira vez que dizia meu nome sem nenhum tipo de
provocação ou malícia. Soou doce e sussurrado em sua voz, quase uma
carícia, que por muito pouco não me fez estremecer.

Eu não podia desejar aquela menina. Ela era inocente demais e havia
muita escuridão dentro de mim para que eu ousasse contaminá-la.

Por isso mudei de assunto...

— Seu pai cuidava deste espaço para mim.

O sorriso imediatamente desapareceu de seu rosto. Estava mais do

que claro que ela realmente não tinha o pai em alta conta.

— Parece que ele cuidava muito bem. Pena que não fazia o mesmo
com a filha — pura amargura em sua fala. Quem poderia culpá-la? Apesar de
eu dever algumas coisas ao homem, ele realmente se perdera e quem pagara o
preço fora Celina.

Havia algumas coisas que, talvez, ela precisasse saber para se sentir
um pouco melhor, mas com tanta raiva em seu coração e com as coisas tão
recentes, certamente não valeria de nada contar. Eu poderia esperar um

pouco.

— Desculpa por ter te acordado. Eu não queria perturbar — ela falou


subitamente, ainda passando a mão cuidadosa e displicentemente pelas flores.

— Não estava dormindo. E não foi nada.

— Ainda tenho medo, sabe? Eu tenho certeza de que Alemão não vai
desistir de mim. Há muito tempo sinto algo estranho na forma como me olha.
Mesmo antes de me levar ao Rosa Escarlate. Ele me tratava melhor do que às
outras meninas. Não sei se sente algum tipo de obsessão...

Até onde eu podia imaginar, ela não estava errada. A forma como o
pervertido se comportou era mais do que prova de que tinha intenções muito

cruéis com a garota.

— Se ele for tão obcecado quanto penso que é, não acho que pode
desistir, sabe? Ele é poderoso, rico...

— Eu também sou, Celina. Provavelmente mais do que ele jamais


será. Você está comigo agora. Não vou deixar que te machuque ou que te
leve daqui. Sei que não é o ideal, que você não queria vir para esta casa, mas

é o que temos.

Ela não respondeu nada. Nem que eu estava certo nem que estava
errado. Era mais do que óbvio que minha companhia não era exatamente o
que ela sonhava para si, muito menos viver em uma casa que mais parecia

morta do que viva.

— Obrigada. De verdade. Por tudo... — Ela ainda parecia hesitante


em relação a mim, provavelmente pela forma como nos conhecemos, e eu
não poderia julgá-la, mas algum tipo de confiança se estabeleceu entre nós
naquele momento, em meio às flores, em meio à noite.

Poderia perguntar sobre o trabalho, saber se tinha descoberto algo


sobre o livro de Marcela, mas achei que não era o momento para quebrar o

clima. Se eu fizesse isso, ela apenas acreditaria que eu estava mais


interessado no resultado de sua presença ali do que em protegê-la.

Para ser sincero, nem eu sabia exatamente o que se passava pela


merda da minha cabeça naquele momento. E nem queria saber.
CAPÍTULO NOVE

Dormi muito pouco. Quando eu e Dorian saímos da estufa e voltamos


para os nossos quartos já passava de três e meia da manhã; e por mais que eu
pudesse me dar ao luxo de dormir até mais tarde, quando Sheila surgiu com o
café da manhã, eu já estava de pé, de banho tomado.

Logo depois de comer, parti para o escritório de Marcela, voltando à


minha tarefa que iniciei nos dias anteriores.

Como Dorian me garantiu que não havia pressa, comecei fazendo


algo muito importante: mergulhei no mundo da escrita de M. V. Cantho,
conhecendo seu estilo, suas nuances, a forma como apresentava e
caracterizava seus personagens, o tipo de narrativa, como eram seus finais,
como eram os clímaces e até mesmo as cenas sensuais, já que eu não tinha

experiências reais a respeito disso.

Elas eram bem quentes, bem descritas, e eu não poderia negar que me
deixaram... bem... excitada. Também foi inevitável pensar o quanto daquelas
já tinha feito com Dorian. Se ele era tão bom em dar prazer a uma mulher

quanto os mocinhos que ela criava.

Era um pensamento muito idiota e impróprio, mas era um pouco


impossível não ter uma visão sexualizada do homem depois de vê-lo sem
camisa, na noite anterior, sentado na minha cama. Acordar e dar de cara com
aquele ser enorme e com aquela aparência quase selvagem bem à minha
frente, foi um pouco assustador de início, porque, em minha inconsciência,
não consegui discernir quais eram suas intenções. Só que ao perceber que
estava ali apenas para me acalmar de um pesadelo, e conforme fui retomando

minha consciência aos poucos, a primeira coisa que vi foram seus ombros
largos, braços muito musculosos, a barriga chapada e discretos pelos que se
espalhavam esparsos por um peito amplo. Tudo nele era esculpido. Perfeito.

Outras tatuagens preenchiam sua pele além daquela no punho, que foi
o que me fez distingui-lo na primeira vez em que o vi. Não consegui definir o
que eram, ou eu teria que ficar olhando para seu corpo muito mais do que
seria aceitável, mas o que vi foi suficiente para me deixar bem impressionada.

O que era muito perigoso.

Eu estava morando na casa de Dorian há uns cinco dias, e até aquele


momento, com exceção de certos olhares com algum resquício de desejo, ele
não tentara absolutamente nada comigo. O que era bom... Meu Deus, era

muito bom, porque provava que não me comprara para ter um brinquedinho
sexual para quando lhe fosse conveniente, mas ainda mantinha a minha
dúvida sobre a quantidade de dinheiro que pagara por mim.

Não podia acreditar que tinha algo a ver com a proposta de que eu
trabalhasse no livro de sua esposa, porque isso não fazia o menor sentido. Ele
conseguiria uma escritora muito mais famosa e competente por aquele valor.
Sinceramente, eu nem sabia o que estava fazendo. Não fazia ideia se daria

conta de tamanha responsabilidade.

Fosse como fosse, eu ia tentar. Estava conhecendo o trabalho de


Marcela e gostando muito dele, para ser sincera. Suas histórias tinham
exatamente o tom de romance, sensualidade e mistério que me agradavam.
Apesar de terem histórias de amor intensas, não perdiam o quê de suspense
que me fazia ficar presa e voar pelas páginas sem nem perceber o tempo
passar.

Naqueles dias, eu já tinha lido três deles. Tinha acabado de terminar o


terceiro naquele instante, algumas horas depois de acordar, então decidi que
poderia começar a ação em si.

Sentei-me em sua cadeira, reparando que a rosa do vaso tinha sido

trocada sem que eu nem visse. A nova era linda – ainda em botão, em um
tom de vermelho vivo. Eu já sabia que era Dorian que as trocava, o que o
tornava bem mais sensível do que qualquer um poderia imaginar ao olhar
para sua aparência. Além disso, ele amava a esposa, isso era óbvio.

O que acontecera então? Por que era tido como um monstro, culpado
pela morte dela?

Isso era o que ainda me deixava reticente ao seu respeito. Ele poderia

ser um psicopata; seduzir suas vítimas com uma imagem de protetor, de


romântico e melancólico – o que era, certamente, um afrodisíaco – e depois
mostrar sua verdadeira face.

Só que não era momento para eu pensar nisso.

Há alguns dias tinha encontrado um caderninho de Marcela, com


algumas coisas importantes anotadas. Senhas, principalmente. Ela parecia ter

anotado tudo às pressas, como se quisesse que alguém as tivesse. Como se

soubesse que iria morrer. Estaria com medo? Teria Dorian a ameaçado ou
dado indícios de que se tornaria violento?

Mais uma vez, eu tinha coisas mais importantes para pensar. Acessei

finalmente o notebook de Marcela, tendo a paciência de esperar que


inicializasse. Apesar de ser um modelo antigo, não era dos piores.
Obviamente uma pessoa com dinheiro, tinha total condição de possuir um
computador decente, mesmo para os padrões da época. Eu mesma, o que
tinha em casa, não era exatamente uma máquina da NASA, mas conseguia
me virar bem com ele, ao menos para escrever.

Fui fuçando pasta por pasta, até achar uma com o ano de sua morte,
2011. Imaginei que fosse a que continua informações mais recentes, o que me

fez abri-la.

Imediatamente me deparei com uma pasta com o nome XXX. Se


Marcela estava trabalhando em um projeto tão secreto, sem dúvidas seria bem
interessante nomeá-lo assim. Havia outras pastas também, mas nada que
tivesse chamado a minha atenção.
O que encontrei imediatamente foram pesquisas a respeito de fogo.
Incêndios. Quais materiais eram consumidos mais rapidamente, o que era

necessário... havia de tudo. Matérias e artigos, que me fizeram acreditar que


ela estava pesquisando para algum livro.

Mas era uma ironia que tivesse morrido exatamente daquela forma.

Seria mesmo uma ironia?

Continuei minha busca e cheguei a outra pasta, do ano anterior, que


supus conter alguns textos mais pessoais. Alguns desabafos, como um diário.
Talvez ela os usasse como um estudo de escrita, uma técnica que eu sabia que
muitos autores usavam para sair de bloqueios criativos.

Eram organizados e tinham data, então eu abri um aleatório, do ano


anterior.

Sentia como se estivesse invadindo a privacidade de Marcela, mas


Dorian tinha me liberado seu computador por inteiro, não tinha? Conhecê-la
talvez fosse uma boa ideia para compreender algumas coisas e usar esse
conhecimento para continuar a história já iniciada.

Não havia muito a ser compartilhado, não era uma vida assim tão
emocionante, mas estava mais do que claro que Marcela amava o marido. E,

aparentemente, ele era louco por ela. Romântico, gentil e dedicado, o que

contrastava totalmente com sua aparência mais bruta, e mais ainda com o
apelido que a cidade decidiu lhe dar.

Havia muitas entradas naquela espécie de diário, e eu poderia deixar

para lê-las depois. Continuei vasculhando o computador, com toda a


paciência por ele ser um pouco mais lento, e encontrei um arquivo com o
nome “carta.doc”, junto a uma pasta “Livro Novo 2011”. Achei promissor.

Ao abri-lo, percebi que se tratava de uma carta dela a Dorian.

De todas as invasões de privacidade que eu poderia estar cometendo,


aquela, sem dúvidas, seria a maior de todas, mas não consegui impedir meus
olhos de verem uma informação muito importante: Marcela afirmava que o

livro no qual estava trabalhando era para Dorian. Era em homenagem a ele.

Isso foi me deixando mais e mais curiosa, ao ponto de não perceber


que já tinha anoitecido. Havia duas bandejas de comida no aparador próximo
à entrada do escritório, mas eu não estava com fome. Para ser sincera, desde a
fatídica noite no leilão, eu não andava com muita vontade de comer, o que era
um pecado, porque a comida era deliciosa, e eu passei tantos dias a pão e
água, que era até condenável.

Só que eu ainda estava pensando naquela carta quando me dei conta


de que não estava mais sozinha.

Passos começaram a ecoar, indicando que alguém estava subindo as


escadas. Poderia ser Sheila, embora ela fosse bem mais silenciosa, mas supus

que se tratava de Dorian.

Rapidamente fechei o notebook e fingi estar mexendo no armário


abaixo da mesa na qual eu trabalhava. Por algum motivo ainda não queria
que ele visse os arquivos de Marcela, porque eu não sabia até que ponto ele
fora culpado pela morte dela. E se houvesse segredos ali que ela não queria
que ele soubesse? Até mesmo a carta... teria entregado ou ficara apenas
arquivada naquele HD sem nunca ter sido lida por seu destinatário?

Enquanto mexia no armário, mesmo que fosse fingimento, percebi


outra coisa suspeita: havia garrafas e garrafas de bebidas alcoólicas. Todas
elas escondidas atrás de uma caixa.

Fechei a portinhola rapidamente, no momento em que a voz de


Dorian anunciou sua presença.
— Boa noite — ele falou com educação. Girei a cadeira para olhar
para ele e percebi que estava observando as bandejas intocadas. — Pelo que

vejo, você não comeu nada.

— Tomei um bom café da manhã. Mas não foi por mal. Acabei
perdendo a hora mexendo nas coisas aqui.

— Ah, sim! — Ele colocou as mãos dentro dos bolsos do jeans. —


Encontrou muitas coisas promissoras?

— Talvez. Comecei lendo os livros de Marcela, para entender mais


de seu estilo. Ela era muito boa.

O ar de melancolia, que nunca o abandonava, tornou-se mais


evidente.

— Ela era, sim. — Seus olhos se abaixaram para o chão, e eu o senti


respirar profundamente. Então se voltou para mim mais uma vez, parecendo
um pouco recuperado, embora aqueles olhos castanhos tristes fossem
perturbadores, porque me faziam ter a certeza de que havia muitas coisas
guardadas em segredo naquela casa e na vida daquelas pessoas. — O que
acha de jantarmos juntos? Talvez seja uma forma de você finalmente comer.
Em qualquer outro dia, eu o teria provocado e dito que não havia
escolha, já que ele era meu dono a partir do momento em que me comprou;

ou teria sentido medo de nos tornarmos tão próximos, mas a ideia me pareceu
até... interessante. Nunca me importei com a solidão, mas algo me dizia que
Dorian já tinha passado tempo demais por sua própria conta.

Até aquele momento, eu poderia acreditar que seus motivos para


pagar tanto dinheiro por mim eram nobres. Ele não me dera nenhuma razão
para pensar o contrário, então o mínimo que eu poderia fazer era lhe oferecer
uma boa companhia.

— Tudo bem. Eu só gostaria de tomar um banho primeiro, pode ser?

— Claro. Nos encontramos às oito na sala de jantar.

Dei uma risadinha boba.

— Eu nem sei onde fica. Não cheguei a explorar a casa.

— E por que não? — Dorian ergueu uma sobrancelha, surpreso.

— Bem... — Dei de ombros. — Eu não quero sair bisbilhotando


nada. Só vou aos lugares que me foram permitidos.
Ele lançou um olhar muito sério para mim, e eu senti seu jeito mais
rabugento, que ele parecia controlar com todo o esforço, retornar.

— É sua casa agora. Espero que se sinta à vontade.

Ao dizer isso, ele saiu, deixando-me ali, olhando em sua direção,


enquanto sua frase se repetia na minha mente uma e outra vez: “aquela era a

minha casa”.

Mas então por que eu não me sentia assim?


CAPÍTULO DEZ

Ela tinha dito que não sabia onde ficava a sala de jantar, não fora?
Então eu estava que nem um idiota, na frente da porta de seu quarto, pronto
para bater e acompanhá-la.

Só não contava que antes mesmo que eu pudesse chamá-la, meu

celular iria tocar.

Eu quase não usava o maldito aparelho. Não tinha redes sociais,


quase não falava com ninguém, mas precisava mantê-lo por conta do
trabalho. Grace sempre mandava alguma mensagem ou me ligava quando
precisava falar comigo de forma mais urgente, e o assunto preferido dela
ultimamente era o livro de Marcela.
Jurei que era ela, para me encher o saco, mas o número era da outra
pessoa que falava comigo quase constantemente. Tratava-se de Paulo, o

detetive que contratei para encontrar Celina, e que me informou sobre o dia
em que aconteceria a porra do leilão que iria vendê-la como uma mercadoria.

Voltei para o meu próprio quarto, já sabendo que poderia ser um

assunto que não queria que ela ouvisse.

— Paulo? — atendi, bastante sério, já sabendo que os motivos da


ligação não eram bons. Seu trabalho comigo já tinha sido concluído, porque
Celina estava em segurança.

— Ei, Dorian. Está podendo falar?

— Sim.

— Como estão as coisas? A moça está bem?

— Está. Tudo bem. Por que você está ligando? — Não era uma
pergunta muito gentil ou simpática a se fazer, mas ele já me conhecia e sabia
que eu não era de rodeios.

— Olha, não é uma notícia muito agradável... — E eu também odiava


rodeios, mas ele estava querendo testar a minha paciência, aparentemente. —
Deixei um informante lá no Rosa Escarlate, e ele me avisou que uma das

meninas foi morta, no dia em que Celina saiu de lá. Que Alemão ficou
furioso, escolheu uma, estuprou de todas as formas possíveis, torturou e
matou.

Puta merda. Que desgraçado filho da puta!

— Qual era o nome dela? — era importante que ela tivesse um nome.
Que alguém se importasse. Além disso, eu precisaria contar para Celina. Por
mais que a notícia fosse horrível, sabia que se descobrisse por outros meios
poderia ser ainda mais doloroso.

Sem contar que precisava saber que a obsessão de Alemão por ela
podia chegar a níveis extremos e muito perigosos.

— Mercedes. Uma mexicana. Dezenove anos.

Uma menina.

Deus... quanta crueldade.

— Quero que encontre a família dela, se houver. Faça o que tiver que
fazer, eu pago. Preciso que saibam o que aconteceu com a garota. Talvez a
estejam procurando até hoje.

Paulo ficou em silêncio do outro lado da linha, mas eu podia ouvir


sua respiração.

— Outra coisa, Paulo... está na hora de fodermos com aquela

espelunca.

— Já tentamos na época que você tirou Marcela de lá. Você sabe que
eles têm as costas quentes. Têm a polícia na mão. E o filho da puta do dono
manda na porra da cidade inteira...

— Não importa. Está mais do que na hora. Tarde demais. Faça o que
tiver que fazer, cace o que tiver que caçar, vamos foder com eles, não importa
o que eu precisar gastar.

— Tá certo, Dorian. Pode deixar comigo.

Desligamos o telefone, e eu nem esperei mais por Celina em sua


porta. Desci para a sala de jantar e pedi que Sheila fosse buscá-la.

Conhecendo-me bem, minha funcionária já sabia que havia algo de


errado, mas não disse absolutamente nada, principalmente por conhecer meu
temperamento.

Minutos depois, Celina surgiu. Para a minha surpresa, havia um


sorriso em seu rosto. Não era uma expressão aberta ou convidativa, mas algo
mais discreto, tímido, como se estar em minha presença não fosse algo que

ela abominasse.

Em qualquer situação, eu acharia algo positivo. Não era como se eu


quisesse que a garota fosse infeliz. Já fiz pessoas infelizes o suficiente na
minha vida para desejar ser a desgraça de mais uma.

E por falar em desgraça... era uma merda achá-la cada dia mais
bonita. Naquela noite ela prendera os cabelos para trás, deixando duas
mechas se encontrarem, e todo o resto solto. Eram tão longos, brilhantes e de

uma cor tão peculiarmente fascinante que era quase hipnótico.

Celina parecia um anjo, e toda essa inocência era algo que, sem
dúvidas, se tornara seu inferno particular, sua maldição. Não era difícil
entender o por quê de Alemão ser tão louco por ela.

Ela se acomodou ao meu lado, à direita, no lugar posto para ela. A


comida foi servida, e eu pensei que precisava começar um assunto. Deixá-la
comer em paz era uma estratégia melhor do que sair jogando as más notícias.
A garota já andava comendo como um passarinho, perigava perder a fome

novamente.

— Como anda o trabalho? — perguntei, tentando soar displicente e


não como um chefe disposto a colocar pressão na funcionária.

Celina tinha acabado de colocar uma garfada de peixe na boca, então,


educadamente ela terminou de mastigar para responder:

— Tudo caminhando. Marcela era bem organizada, mas ainda não


encontrei muitas coisas sobre o livro novo. Mas como te falei, estava me
familiarizando um pouco mais com a escrita dela.

— Sim, fez bem. Claro que você pode usar o seu estilo, mas é
importante que haja alguma semelhança.

Ela assentiu, limpando os lábios com o guardanapo.

— Sei que não te conheço tão bem, mas aconteceu alguma coisa?
Parece mais sério do que o normal. — Ela abriu um sorriso ao final da frase,
tentando fazer com que as coisas ficassem mais leves, só que eu não consegui
corresponder. A notícia não podia ser dada com serenidade.
Ela ainda estava comendo, mas se eu pedisse para esperar, com
certeza perderia a fome do mesmo jeito, preocupada.

— Acabei de receber a ligação de um informante. Ele disse que


Alemão matou uma das meninas do Rosa Escarlate.

Celina deixou o garfo cair sobre o prato, fazendo a louça tilintar.

— Quem foi? Quem...? — sua voz falhou na segunda vez em que


perguntou.

— Mercedes o nome dela.

— Não! — Ela levou uma das mãos à boca, e pela expressão em seu
rosto, o nome não lhe era estranho.

— Você a conhecia? — Ela assentiu. — Sinto muito.

A cadeira onde ela estava sentada foi arrastada, e a garota levantou-se


em um rompante, jogando o guardanapo na mesa. Afastando-se um pouco,
começou a andar de um lado para o outro na sala de jantar, deixando-me sem
saber o que fazer.

— Foi por minha causa, não foi? — saiu quase em um sussurro,


como se ela mal quisesse assumir para si mesma. Mal consegui responder,
porque Celina simplesmente atropelou as coisas, acrescentando, com uma

risada sarcástica: — Claro que foi. Não pode ter sido coincidência. Ele a
estuprou?

Como responder àquilo? Eu não poderia mentir, mas... porra! Que

situação de merda.

Apenas assenti mais uma vez, e uma lágrima começou a deslizar pelo
rosto de Celina.

— Ela era virgem, como eu. Isso foi uma retaliação, Dorian, eu tenho
certeza. E se ele fizer isso com outras meninas?

— Aquilo é um negócio para ele, e para o dono. Se Alemão começar


a matar todas as garotas, não terão mais lucro.

Daquela vez a mão de Celina foi parar em sua barriga, como se


estivesse com dor ou enjoada.

— Meu Deus... são seres humanos! Como você pode falar assim,
desse jeito frio. Eu estava lá. Poderia ter sido eu.
Levantei-me, sentindo que ela estava nervosa demais.

— Mas não foi. Eu realmente lamento pela moça, mas você precisa
se preservar. Está cada vez mais claro que Alemão é obcecado em um nível
muito doentio.

— Nunca duvidei disso. O jeito como ele me olhava... — ela já tinha

falado aquilo para mim, mas daquela vez, eu poderia jurar que estava mais
divagando do que conversando, já que mal me encarava, estava olhando para
o nada, com os olhos perdidos.

Dei um passo na direção dela, querendo tocá-la, mesmo que


involuntariamente, apenas porque percebia que a notícia a havia afetado mais
do que esperei. Não sabia que conhecia a menina, muito menos que teria
tanta empatia ao ponto de se culpar e se torturar daquela forma.

— Celina... — eu ia falar alguma coisa. Ou melhor, nem sabia o que


dizer. Não era bom naquele tipo de coisa, em confortar pessoas... Porra, eu
não era bom nem em conversar quanto mais em dizer palavras bonitas para
acalmar o coração perturbado de alguém. E eu bem sabia que o meu era
fodido o suficiente para não poder dar conselhos.

Só que ela deu um passo para trás.


— Você se importa se eu me retirar?

— Você praticamente não tocou na comida — afirmei, apontando


para seu prato, quase cheio.

— Perdi a fome. Me desculpa.

— Eu não deveria ter falado nada — quase rosnei, puto comigo


mesmo.

— É melhor que eu saiba. Tudo bem se eu... — falou, olhando para


baixo, enquanto esfregava uma mão na outra, nervosa.

Queria muito dizer que não, que preferia que ela ficasse ali, porque
estava preocupado com seu comportamento, mas não podia obrigá-la.

— Claro. Se precisar de alguma coisa...

Mal consegui terminar a frase, porque assim que dei minha


“permissão”, ela foi se afastando, chegando a dar uma corridinha para poder
sair mais rápido dali.

Estressado comigo mesmo, dei um soco na mesa, extravasando. Eu


era mesmo um imbecil. Como podia falar para a garota aquele tipo de coisa
sem nenhuma preparação?

Acabei também perdendo a fome.

Deixei a comida toda na mesa, partindo para o meu quarto. Assim


como acontecera com Celina, fiquei andando de um lado para o outro, como
um leão enjaulado, lamentando minha falta de tato.

Deitei na cama, levantei, busquei algo para fazer, mas uma hora e
meia se passou, sem que eu conseguisse parar de me sentir agitado. Precisava
falar com ela... o estrago tinha sido feito por mim, então consertar as coisas
era a saída mais correta.

Mas como? A garota provavelmente nem gostava de mim. O que eu


poderia fazer ou dizer que a faria se sentir melhor?

Sentindo-me ainda angustiado, cheguei à janela, abrindo a cortina.


Aparentemente foi um movimento quase ensaiado, porque lá estava ela. Fora
de seu quarto, usando apenas o vestido fino que usara para jantar,
caminhando pelo quintal, em direção à estufa.

Cambaleante. Como se estivesse embriagada.


Eu não fazia ideia de onde tinha conseguido bebidas – se é que era o
caso –, mas em um estômago quase vazio como o dela deveria estar? Álcool

faria um belo estrago.

Não sabendo o que iria encontrar ou como seria recebido, fui atrás
dela, colocando uma jaqueta para me proteger do frio, já imaginando que

aquela noite seria longa.


CAPÍTULO ONZE

Eu trocava as pernas, quase não conseguindo caminhar em uma linha


reta, tropeçando em tudo e em nada. Mal sabia o que estava fazendo. Mal
sabia no que estava pensando. O que era bom. A intenção de me embebedar
daquela forma fora exatamente para tentar esquecer.

Não era apenas Mercedes, embora saber da morte dela tivesse me


deixado muito abalada. Era um conjunto de coisas. Era pensar que todos os
dias meninas novas sofriam e passavam por coisas desumanas. Que não se
alimentavam direito, eram agredidas e violentadas, e eram produtos nas mãos
de homens que se consideravam seus donos.

Ao mesmo tempo... por que eu era melhor que elas ao ponto de


receber uma salvação? Porque, sim, eu já não tinha mais nenhuma dúvida de

que Dorian fora um milagre na minha vida. Mal importava o que aconteceria
dali em diante, pensar que poderia ter sido eu a me tornar o brinquedinho de

Alemão e de todos os outros era algo que me revirava o estômago.

Mas não tirava o sentimento de culpa dos meus ombros. Eu saí,

estava vivendo no conforto de uma mansão, com um homem que até aquele
momento não fora nada além de respeitoso, e ainda tinha um trabalho que
estava começando a gostar. O que me tornava melhor para ter direito a tantas
bênçãos?

Foi isso que me levou a pegar uma das garrafas escondidas de


Marcela.

Nunca me embriaguei na vida. Para ser sincera, o máximo que bebi

de álcool até aquele dia fora uma taça de vinho que meu pai abriu um dia,
quando conseguiu um dinheiro razoável por um bico, e mesmo assim foi o
suficiente para me deixar bem grogue. Uma garrafa inteira de uísque? Eu mal
lembrava o meu nome.

Mas lembrei o caminho para a estufa. Aquele ponto de luz e cor


dentro de uma casa sombria.
Segui para lá, entrando sem ser convidada e me encaminhando para
os fundos, jogando-me no chão, sentada, encolhendo-me. Eu não queria

chorar, embora Mercedes merecesse a minha tristeza e o meu luto. Não


chegamos a nos tornar amigas, porque naquele lugar isso era impossível, mas
quando se passa por um momento difícil ao lado de alguém cria-se uma
conexão forte. Vi seu olhar para mim quando fui levada, e senti a compaixão.

Lembrava-me dela com sua medalhinha de Nossa Senhora de


Guadalupe, rezando e pedindo por todas nós, não apenas por si mesma. Era,
provavelmente, uma boa moça, que não merecia passar pelo que passou.

Então... novamente: por que eu fui poupada?

— Hein, Deus? — gritei dentro do ambiente pequeno, de olhos


fechados, mesmo sem saber se Aquele que eu buscava iria me ouvir. — Por

que eu? Por que você me deu outra chance? O que eu tenho de especial? O
quê? — a voz soava embargada, mais um sinal de que eu estava muito
embriagada.

Uma movimentação ao meu lado me tirou daqueles pensamentos


masoquistas e me fez abrir os olhos. Lá estava Dorian ao meu lado, sentando-
se no chão. Uma das pernas longas esticada, a outra, com o joelho flexionado,
apoiou um dos braços, também esticado, e ele tentou ser silencioso, mas era
quase impossível que um homem daquele tamanho conseguisse fazer algo

sem ser notado.

Ele cheirava bem. A sabonete. A algo muito masculino. Entorpecida


como estava, quase me aconcheguei em seus braços e pedi que me

embalasse. Mas ainda não tinha perdido toda a sanidade.

Ou tinha... porque ele começava a parecer mais e mais atraente para


mim.

— Eu não sou muito bom em falar, sabe? Mas acho que você deveria
saber que seu pai falava muito de você para mim.

Eu deveria estar realmente muito bêbada. Dorian estava tentando me


fazer sentir melhor? E mais... meu pai falava... de mim?

— Isso não faz o menor sentido — a ênfase na palavra foi


completamente involuntária, porque eu já não estava no domínio das minhas
emoções. Nem das minhas faculdades mentais.

— Por que não?


— Porque meu pai não se importava comigo. Ele não me dava nem
um pouco de valor. Se desse, já teria me procurado. Não teria permitido que

Alemão me levasse. — Ah, droga, era doloroso. Era muito doloroso.

— Como acha que eu descobri sobre seu dom para a escrita? Ele
falava o tempo todo de você. Nem sempre as coisas são como nós pensamos

— ele falou em uma voz quase sussurrada, o que me fez estremecer.

Novamente, o álcool me deixava um pouco sensível, porque desejei


que me tocasse. Desejei que me fizesse sentir algo diferente daquela angústia.

— Tem razão. Você não é como eu pensei.

Dorian pareceu surpreso com aquela confirmação, chegando a erguer


uma sobrancelha.

— Como assim?

Uma risada de escárnio escapou da minha boca.

— O que acha que eu pensei quando te vi naquele quarto? Eu mal


conseguia me mexer e a primeira coisa que enxerguei foi que o homem que
me comprou tinha o dobro do meu tamanho. Tudo no que pensei foi o quanto
você poderia me machucar — aquela confissão só saiu porque eu estava
bêbada. Nunca teria dito algo parecido em caso de sobriedade.

— Eu nunca faria isso — mais uma vez ele soou rouco e em um


sussurro, o que me fez suspirar.

O que estava acontecendo? Por que minhas reações a Dorian eram

tão passionais? Por que ele me parecia tão sedutor, de repente?

Era o álcool, com certeza.

— E sabe outra coisa que não faz o menor sentido? — perguntei com
um dedo em riste, mas minha mão conseguia ficar parada, no mesmo ritmo
que minha cabeça girava. — Você não me deseja. Nem um pouco.

Dorian ficou calado, e eu me arrependi imediatamente do que disse,

só que já não conseguia mais controlar a minha língua.

— Mas talvez faça sentido, sim, né? — Remexi-me onde estava


sentada, começando a me sentir incomodada. O correto seria levantar-me dali
e desaparecer da frente dele, só que estava cheia de desinibições, o que não
era normal. — Eu sou só uma garota inexperiente. Talvez você nem me ache
bonita...
Dorian engoliu em seco. Ele desviou os olhos de mim e senti que
ficou um pouco inquieto. Assim como eu, movimentou-se, e seu corpo

imenso pareceu contrair-se, como se seus músculos estivessem prestes a


explodir.

Meu coração acelerou no peito no momento em que olhei para ele, e

seus olhos finalmente encontraram os meus.

— Você me acha bonita, Dorian? — eu disse em um tom que mais


soou como um choramingo. A resposta inicial dele foi outro suspiro.
Profundo, que saiu de seu peito. Como ele hesitou e demorou para responder,
apressei-me em acrescentar: — Sempre odiei minha aparência. Não vou usar
de falsa modéstia, porque não é o caso aqui. Só que as pessoas sempre me
olharam de um jeito que me fazia mal. Os homens... eles sempre me disseram
coisas, sempre me fizeram sentir suja, como se eu tivesse sido esculpida para

o sexo. Meus cabelos, meu corpo, meus olhos... Eu gostava do que via no
espelho, mas ao mesmo tempo odiava. É como se eu tivesse culpa de algo.

— A culpa é das pessoas, não sua...

— Sim, sim... mas não é aí que eu quero chegar. O que estou


tentando dizer é... — Daquela vez quem hesitou fui eu. Abaixei os olhos para
o meu próprio colo, onde minhas mãos estavam juntas, os dedos de uma
brincando com os dedos de outra. — De alguma forma, você é diferente. Eu

gostaria que você me achasse bonita.

Ah, droga! Que tipo de comentário era aquele? Eu estava quase


implorando, quase mendigando por um elogio, coisa que nunca fiz, porque

sempre me pareceu tão frívolo. Ter uma boa aparência nunca foi nada por
esforço meu. Eu queria que as pessoas me amassem por quem eu era, que me
respeitassem por algum talento ou capacidade.

Pela escrita, por exemplo, se eu algum dia tivesse a sorte de me


tornar uma autora publicada.

Só que Dorian novamente não falou nada. Continuava me olhando,


estudando-me, analisando-me, e eu não sabia interpretar quais eram seus

pensamentos. Não apenas porque não o conhecia, mas porque seus olhos
pareciam ilegíveis.

Provavelmente estava me considerando uma garota ridícula,


clamando pela atenção de um homem quinze anos mais velho, que não tinha
o menor interesse nela como mulher. Ele fora casado, sabia muito mais da
vida, provavelmente tivera suas amantes depois, e mesmo tendo comprado
uma menina virgem em um leilão, não tentara sequer tocá-la.

Frustrada com minhas próprias atitudes, levantei-me do chão, com


certa dificuldade pela quantidade de álcool no meu sangue, mas consegui me
colocar de pé, começando a caminhar para longe de Dorian e,
consequentemente, para fora da estufa.

— Desculpa, foi ridículo — apesar do rompante de consciência,


novamente comecei a tropeçar nos meus próprios pés, mas acelerei a
caminhada, porque percebi que ele vinha atrás de mim.

Eu já tinha cruzado a porta da estufa quando a mão grande de Dorian


se fechou no meu punho, segurando-me. Tentei me desvencilhar, mas ele me
girou em sua direção, deixando-nos olhos nos olhos.

— Eu seria um louco ou um cego se não te achasse atraente. Você é a

mulher mais bonita em quem já coloquei os olhos, e espero que não duvide
disso a partir de agora.

Pretendia falar alguma coisa, mas Dorian simplesmente tirou sua


jaqueta, colocando-a ao redor dos meus ombros, e ergueu-me em seus braços,
começando a me carregar por todo o caminho até a casa. Eu estava exausta,
tanto que nem protestei. A sensação de segurança e seu caminhar lento,
paciente, como se não quisesse me perturbar em seus braços, além do balanço
cadenciado, fizeram-me relaxar ao ponto de encostar a cabeça no peito dele,

pegando no sono em tempo recorde.

Naquela noite o álcool – ou o entorpecimento que aquele homem me


causou com suas palavras – me protegeu de pesadelos, e eu dormi

tranquilamente como um bebê.


CAPÍTULO DOZE

Sempre me falaram muito sobre ressaca, e ela costumava ser um


fantasma que me assombrava todas as vezes que eu pensava em beber mais
do que suportava. Só que nem de longe eu poderia imaginar a quantidade de
mal-estar que sentiria na manhã seguinte.

Dor de cabeça, boca seca, estômago embrulhado... era tudo real. Mais
do que real. Era assustador.

Bem feito para mim.

A quase silenciosa Sheila chegou pontualmente com o meu café da


manhã, e pela primeira vez em dias, senti meu estômago roncar. Não me
mexi sobre a cama, porque a ideia de interagir com alguém, naquele estado,
era insuportável, sendo assim, permiti-me mais alguns minutos, mesmo

morrendo de fome.

Quando me levantei, sentindo-me um lixo, pedi que Deus abençoasse


Sheila para o resto de sua vida por ter deixado um copo d’água e duas

aspirinas na bandeja. Tomei-as sem demora, esperando que o efeito fosse


rápido. Também coloquei comida no estômago, porque sabia que a fome
poderia causar uma sensação ruim e ajudava a intensificar a dor de cabeça.

Finalmente comi decentemente, aproveitando as refeições deliciosas


que me eram servidas desde que cheguei à casa de Dorian. Pensei em
Mercedes e nas meninas que não tinham a mesma sorte que eu. Eu era uma
ingrata por estar aproveitando tão pouco.

Pensar em Mercedes causou uma dor aguda no meu coração. E


também me fez lembrar da noite anterior, do meu comportamento nada
adequado.

Queria que a bebida tivesse me causado uma pequena amnésia,


porque esquecer as coisas que falei para Dorian teria sido muito melhor. Só
que não aconteceu. Eu me recordava de boa parte delas.
Recordava-me do que eu disse, mas também do que ele falou.

Sua expressão ao dizer que me achava bonita. A intensidade de seu


olhar. O toque de suas mãos em meus braços. Mas mais do que isso... as
sensações que ele me causou.

Que estava me causando só com as memórias.

Eu queria ter sido beijada. E o desejo ainda durava até aquele


momento, mesmo que a embriaguez tivesse passado. Minha consciência
estava completamente em alerta, mas nada dentro de mim tinha mudado.

O que diabos estava acontecendo?

A explicação racional era apenas uma: eu o via como um protetor. O


homem que me salvara. O cavaleiro de armadura com o qual toda garota

como eu sonhava. Aquele que me tirou de uma situação perigosa e levou-me


para um castelo – por mais sombrio que fosse –, deu-me abrigo, segurança e
um trabalho. Em uma biblioteca.

Aquilo estava mais parecido com o conto de fadas do que eu imaginei


a princípio. Com a exceção de que a Fera era um homem bonito e sexy; um
que a garota virgem em mim desejava mais do que seria prudente.
Tomei um banho de água fria, obrigando-me a estar pronta para um
dia de trabalho, mesmo que tudo o que eu quisesse fosse ficar debaixo das

cobertas e dormir por mais umas doze horas.

Só que eu tinha uma missão, e ela estava me deixando muito e muito


intrigada.

Assim como Dorian me deixou naquele dia.

Normalmente, quando eu chegava à biblioteca, podia vê-lo sentado


em sua mesa, digitando sem parar, concentrado. Às vezes eu tentava passar
despercebida, mas ele me via e me cumprimentava. Normalmente um meneio
de cabeça ou um bom dia muito sério, o que sempre me fazia pensar que ele
tinha muito menos interesse em mim do que eu por ele. Não apenas como um
homem desejável, mas como pessoa.

Poderia ser por conta de seu coração partido, sua melancolia, sua
viuvez, e eu respeitava isso, mas ao ver seu espaço vazio, sem o seu notebook
sobre a mesa, tive a completa certeza de que sua escolha fora me evitar
depois do meu showzinho idiota na noite anterior.

Isso foi ficando mais e mais evidente quando a cena foi se repetindo
por dias.
Era um déjà vu que eu passei a odiar mais e mais. Eu acordava,
tomava banho, comia alguma coisa e ia para o escritório de Marcela, mas

Dorian nunca estava à vista. Sheila me dissera que ele estava em época de
entregar o livro novo e que aquele comportamento era comum, mas isso não
minimizou a impressão de que estava me evitando.

Esta frustração, de início, deixou-me um pouco dispersa no trabalho,


especialmente porque comecei a me sentir muito sozinha. Não que isso não
fosse comum na minha vida, levando em consideração que eu não era uma
garota cheia de amigos ou que passava os dias rodeada de companhias, mas
não ter ninguém para conversar começava a me enterrar em um limbo.

Para compensar, comecei a entrar no universo do livro novo de


Marcela, e algumas informações me deixaram mais e mais curiosa a respeito
da história. Eu só tinha vasculhado o notebook e havia uma espécie de roteiro

– que ela chamava de outline – preparado. Encontrei também um arquivo de


Word com poucas páginas, nomeado como “Rascunho!”.

Ainda não possuía título, mas havia uma nota de autora. Algo curto,
mas que me deixou surpresa. Ela dizia:
Preciso deixar os créditos deste livro à vida. A história, ao menos a
primeira parte dela, não foi uma criação da minha mente. O pequeno Adam

existe, com outro nome. A história de superação daquele garotinho que


sofreu tanto e que teve sua infância destruída por um destino cruel é
verídica, e eu tenho o prazer de conviver com o homem que ele se tornou, de
ser a mulher de sorte a quem escolheu amar.

A segunda metade do livro, porém, contém partes que diferem da


realidade. Meu querido Adam precisa ter um final feliz, um que eu não pude
dar a ele.

Somente isso, mas não precisava ser muito brilhante para


compreender que ela pretendia contar a história de Dorian, porém o que me

intrigou foi como a nota terminou.

Como ela sabia que não poderia fazer o marido feliz? O que tinha
acontecido com aqueles dois? O que eu ainda iria descobrir durante aquelas
pesquisas?

Com o passar dos dias, depois de ler aquele desabafo de Marcela, fui
encontrando mais e mais coisas.
Apesar de ser muito organizada, para aquele livro em específico ela
parecia estar trabalhando de uma forma caótica. Havia cadernos além dos

arquivos do notebook. Ela também não escrevia de forma linear, então eu não
cheguei a encontrar um início para o livro, principalmente porque suas
intenções eram que fosse um romance de formação, o que me fazia esperar
que o tal personagem, Adam – que era a personificação de Dorian –, tivesse

um início como criança.

Tentei organizar o que fui encontrando e, até aquele momento, o


primeiro texto que encontrei era, dentro do roteiro, algo como capítulo sete
ou oito. O que li partiu o meu coração em um milhão de pedaços. Conforme
as palavras de Marcela iam formando imagens na minha cabeça, toda a
mágoa que eu estava sentindo por Dorian foi se dissipando.

Ele era muito mais quebrado do que eu poderia imaginar, e aquele era

apenas o primeiro relato que lia.

Foi essa consciência de que eu estava lidando com uma pessoa muito
peculiar que deixei meu orgulho de lado naquela noite e pedi a Sheila que me
permitisse levar o jantar de Dorian no lugar dela.

Claro que seus olhos se arregalaram ao me ver ali, na porta, com sua
bandeja nas mãos. Desajeitada e morrendo de medo de derrubar alguma
coisa, aliás.

Vê-lo depois de quase cinco dias só serviu para confirmar o que eu já


sabia: Dorian VanCanto mexia comigo. De uma forma bastante perigosa.

— Boa noite. Só vim saber se você está bem. Faz alguns dias que não

nos falamos. — Estendi a bandeja, sentindo-me feliz por ele tê-la pegado e
me livrado do medo de ser estabanada.

Ele a pousou em algum lugar, porque quando voltou para a porta, já


estava sem ela.

— Posso ir embora, se você quiser. Provavelmente foi uma má ideia


— comecei a atropelar as palavras, mais uma vez sem saber como lidar com
aquele homem.

— Não, entre.

Fiquei um pouco sem graça, pensando que ele poderia estar fazendo
isso só por educação, mas não pensei muito, apenas entrei.

Tentei não ficar olhando muito para o local, mas era um quarto
organizado. Sombrio e triste como o resto da casa, o que não me surpreendeu.
Era grande, com uma cama enorme bem no meio, com colunas, uma colcha

cinza pesada, travesseiros com fronhas da mesma cor, e havia uma mesa bem
grande, onde estava seu notebook.

— Sheila me falou que você está com um prazo apertado.

Ele cruzou os braços contra o peito, e eles se destacaram na blusa


branca que usava, que era de algodão e quase colada ao corpo. A calça de
moletom cinza pendia da cintura, e seus pés estavam descalços. O cabelo fora
preso em um coque samurai, o que era sexy pra caramba.

— Os prazos que eles me dão são pequenos, porque eu escrevo


rápido. Lanço três livros por ano. — Dorian continuou parado, parecendo
desconfiado da minha visita ao seu quarto.

— Uau. É muita coisa.

— Não depois que você pega o jeito. Marcela era mais


perfeccionista, demorava pelo menos um ano para sentir que um livro estava
pronto.

— Hummm... — murmurei, sem graça, aproximando-me de sua mesa


de trabalho e passando a mão pelo tampo de carvalho. Eu mal sabia o que

fazer com as mãos. — Falando sobre isso... — Era um risco entrar no

assunto, mas era mais errado ainda estar trabalhando sob seu teto, em um
projeto para o qual ele me contratou sem conversar sobre o que descobri. —
Encontrei algumas coisas hoje. Parecem promissoras para eu começar, de
fato, a produzir algo.

— Isso é bom, não? — Avaliando-o com cuidado, ele parecia ainda


mais constrangido do que eu. E como não estaria? Quase me joguei para ele
há alguns dias, como uma pobre carente implorando por amor.

— Sim, é. Também descobri o tema do livro.

— E qual é?

— Você. — Dorian ergueu uma sobrancelha, curioso. — Marcela

estava escrevendo um livro contando a sua história. Encontrei algumas


coisas... — Dei um passo na direção dele, estendendo a mão e tocando em
seu braço, em um passo ousado.

E eu nem tinha a desculpa de estar bêbada daquela vez.

— Sinto muito... pelo incêndio quando você era adolescente.


Pelo que li no texto de Marcela, o incêndio que tirou a vida dela não
fora o único na vida de Dorian. Ele perdera a mãe e a irmã, de dez anos, em

um. O que o deixou com uma enorme cicatriz no punho – aquela que fora
coberta pela tatuagem que me fez reconhecê-lo, naquela noite, no Rosa
Escarlate.

Além da cicatriz, o trauma o deixou com uma aversão a fogo. O que


explicava muita coisa.

— O incêndio que matou Marcela não foi culpa sua, não é? — foi a
conclusão que eu tirei. Como ele estaria mexendo em fogo se tinha tanto
medo, memórias ruins? Não fazia sentido.

— Foi um acidente. Não pude controlar. Uma coincidência sombria


— ele falou com um tom de voz sem nenhuma simpatia. Além disso,

começou a se afastar do meu toque, chegando a se virar de costas.

Parabéns, Celina! Grande forma de recuperar o contato com o cara!

— Meu pai mentiu sobre você. Ele espalhou boatos por toda parte. Te
fez parecer um monstro e...

— Celina, por favor, eu não quero falar sobre isso — afirmou com
convicção.

Eu deveria parar, realmente. Se ele pedira... Não era um assunto fácil,


sem dúvidas. Mas não consegui. Era muito cruel o que falavam dele, como o
viam.

— Dorian, você precisa contar a verdade. Eu posso fazer isso. Se eu

falar, as pessoas vão entender. É meu dever consertar o que meu pai fez,
depois de tudo o que fez por mim e...

— Não, porra! — ele rosnou, o que me fez sobressaltar. Afastei-me


dele o máximo que pude, batendo com as costas dos joelhos em sua cama e
caindo sentada sobre ela. — Não quero nada disso. Quero que faça seu
trabalho, só isso. E que tire do livro qualquer menção a mim. Deixe que
pareça uma história de ficção.

— Mas, Dorian...

— Faça o que estou mandando, Celina — mais um rosnado. Daquela


vez eu finalmente fiquei calada. Ele suspirou, quase se mostrando
arrependido, mas não voltou atrás. — Por favor, me deixe sozinho.

Foi como receber um tapa na cara. Um que poderia ter me derrubado


no chão, se fosse real.

Eu não estava preparada para ser tratada daquela forma, mas mesmo
assim mantive minha dignidade, levantei-me de sua cama, passei por ele –
ainda com a esperança de que me impedisse e que dissesse qualquer coisa
que consertasse a situação – e quase saí.

Com a mão no batente da porta, de costas para ele, apenas


acrescentei:

— Me desculpa. Não queria ser intrometida.

Fechando a porta atrás de mim e lhe dando a privacidade que ele


parecia querer, saí, sentindo que deixava meu coração em pedaços lá dentro.
CAPÍTULO TREZE

Merda! Duas vezes merda! Mil vezes!

Eu sabia que a maldita ideia de colocar a garota para trabalhar no


livro de Marcela não podia ser boa, só que eu não pensava que pudesse ser
tão ruim. Tão fodida.

Como iria imaginar que minha falecida esposa estava escrevendo um


livro sobre mim? Que iria colocar a porra da minha história no papel para que
o mundo inteiro a conhecesse?

Droga, Marcela!
Sempre fui da opinião de que algumas verdades deveriam ficar
enterradas bem fundas na terra, mas ela parecia não concordar com isso.

MERDA!

Um soco na minha mesa de trabalho foi minha tentativa de escape,


embora fosse ridículo. Ou melhor... eu descontei na garota. E por mais que

estivesse sendo intrometida – palavra que ela mesma usou –, não era sua
culpa. Fui eu que decidi mexer no vespeiro.

Não pretendia mudar de ideia, de forma alguma. Terminar o livro de


Marcela era importante para mim, porque, conhecendo-a como conhecia, ela
não iria querer que algum de seus projetos ficasse inacabado, apesar dos
pesares. Só que eu deveria ter checado os arquivos antes. Não podia imaginar
como Celina chegara à conclusão de que se tratava da minha história, mas as

obras de Marcela costumavam contar com Notas da Autora, porque ela


gostava de conversar com os leitores sobre o que iriam encontrar em seus
livros. Era a explicação que eu conseguia encontrar.

Minha respiração estava ofegante, minhas mãos, quando as coloquei


na cintura, inquieto, não paravam de tremer. Eu chegava a senti-las inchadas,
como se minha pressão estivesse alta pelo nervosismo. Passei uma delas pelo
cabelo, tentando devolver os fios cacheados que caíam pelo meu rosto para
trás.

Não sabia se estava mais irritado pela situação em si ou pela forma


como tratei Celina. Mas não era isso que eu queria? Que as pessoas me
vissem como um monstro? Como o louco que fora o culpado pela morte de

sua esposa?

Mas era isso que eu era, não?

Para ter ainda mais certeza, peguei um molho de chaves dentro da


gaveta da minha mesa e saí do meu quarto em um rompante, seguindo pelo
corredor até a última porta daquele andar, que estava trancada.

Abri-a e entrei.

Fazia um bom tempo que não ousava me torturar daquela forma, e a


dor que me atingiu quase me tirou o ar. Quase me fez perder o equilíbrio,
tanto que me segurei na porta, abaixando a cabeça, olhando para o chão e
tentando colocar os pensamentos no lugar.

Quando a ergui novamente, reuni todas as minhas forças para encarar


o que estava à minha frente: o berço destruído, as estantes, o papel de parede
queimado, os brinquedinhos, especialmente os de pelúcia, quase em cinzas. O

tapete cor de rosa, o mosquiteiro, os quadros – tudo pensado com tanto

carinho... tudo em ruínas.

Cada centímetro daquele cômodo ativava minhas lembranças. Os


gritos. O pavor. O desespero. A sensação terrível de não encontrar Marcela

em lugar nenhum. Tê-la morta nos meus braços.

Um pesadelo do qual eu não conseguia acordar, mesmo quando se


tratava de uma memória ou um sonho. Era mais real do que eu poderia
suportar.

Não ousei me afastar da porta. Permaneci perto dela, como se aquela


pequena linha que delimitava a entrada do quarto fosse o meu limite, algo
que eu não poderia ultrapassar sem perder a sanidade que ainda me restava.

Respirando fundo, afastei-me, fechando e trancando a porta


novamente, como se pudesse me livrar dos pensamentos aprisionando-os lá
dentro também.

Quando voltei para o meu quarto, segui para a varanda, em busca de


ar puro. Era como ter a fumaça de volta nos meus pulmões. Se fosse possível,
poderia até acreditar que a cicatriz estava novamente doendo, embora ela
tivesse sido feita há vinte anos.

Era uma reação psicológica às lembranças. Algo para o qual eu não


deveria dar atenção.

Mas o que era impossível de ignorar era a mulher caminhando pelo


meu quintal como um déjà vu. Lá estava ela, linda como um sonho, a passos

firmes daquela vez, seguindo para a estufa novamente.

Aparentemente aquele lugar tinha se tornado um refúgio. E como


poderia ser diferente? Dentro de uma casa que era mais do que uma fortaleza
obscura, encontrar um ponto de luz era uma escolha quase sábia.

Suspirando mais uma vez, refleti sobre a possibilidade de deixá-la


sozinha. Estava em um lugar seguro, sóbria e, provavelmente, muito chateada
comigo para querer minha companhia.

Só que eu lhe devia um pedido de desculpas. Ela não fizera nada de


mais. Passara por tantas coisas, por inúmeras provações há pouquíssimo
tempo, e ainda precisava lidar com um louco grosseiro que a expulsava como
se ela fosse um bichinho inconveniente.

Isso, sem contar que eu andava realmente fugindo dela. Desde o dia
em que quis saber se eu a achava bonita.

Porra... nenhuma resposta que eu desse seria suficiente para explicar


qual era a minha opinião sobre ela. Mas não apenas sobre sua aparência, que
era deslumbrante, celestial, mas sobre a mulher em si.

Compreendi seu dilema de quando afirmou que sua beleza sempre foi

um tópico que a deixou desconfortável, porque principalmente homens


tendiam a serem tóxicos com mulheres muito bonitas. E muitas pessoas,
provavelmente, não eram capazes de enxergar além.

Celina não era apenas a mulher mais bonita que já vi. Ela era mais do
que isso. Era corajosa, doce e generosa. Eu não a conhecia tão bem assim,
mas ela era muito mais do que apenas um rosto e um corpo atraentes.

Ainda pensava nisso quando me peguei andando na direção dela,

mais uma vez, repetindo a cena do outro dia.

Entrei na estufa, abrindo a porta com cuidado, e a peguei de pé,


próxima aos lírios, acariciando-os.

A cena era gloriosa. Seus cabelos caíam em ondas pesadas por suas
costas, contrastando com o vestido claro, que a deixava com aquela aparência
angelical.

Celina era a imagem da inocência, então por que tudo o que eu


pensava em relação a ela me remetia ao pecado?

— Me desculpa — foi a primeira coisa que eu falei, antes mesmo de


entender se ela já tinha percebido minha presença ali.

Celina continuou com seus olhos voltados para as flores, tocando-as


gentilmente, como se fossem rostos de bebês. Assentiu, porém, como se não
fosse importante.

Mas era. Ela estava magoada.

Colocando-me ao lado dela, imitei seus gestos, acariciando a flor que


estava plantada ao lado dos lírios – um grupo de gérberas. Não queria encará-

la para dizer o que estava prestes a dizer.

— O incêndio que tirou a vida da minha mãe e da minha irmã foi um


acidente. Causado por mim. — Fiz uma pausa, porque aquela merda iria
contaminar a minha cabeça como um veneno, e eu precisava estar pronto para
isso. — Eu trabalhava depois da escola, porque meu pai nos abandonou, e eu
queria ajudar minha mãe com as contas. Naquele dia, nossa vizinha, que
cuidava da minha irmã, não podia ficar com ela. A gente não tinha telefone

em casa, e eu não tinha um celular, então deixei Lúcia em casa, jurando que

ela iria se comportar, para ir à casa de um amigo ligar para o meu chefe,
avisar da falta. Era uma boa menina, não dava trabalho.

Celina estava prestando atenção, mas eu ainda não conseguia olhar

para ela. Mesmo assim, prossegui:

— O que eu não sabia era que minha mãe já estava ciente sobre nossa
vizinha e avisou à patroa que não poderia ir para cuidar de Lúcia. A patroa
dela era uma mulher bem legal, compreensiva. Nesse meio tempo, minha mãe
voltou para casa, do mercado... — Hesitei, porque continuar não era simples.
Eu só tinha contado aquela história para Marcela. — A perícia disse que o
incêndio começou por causa de um fósforo, que ele lambeu as cortinas da
janelinha da cozinha que ficava perto do fogão, cujo acendedor não estava

funcionando. Acho que Lúcia quis cozinhar para me ajudar, não sei... Fui
descobrindo a história aos poucos, porque quando voltei para casa, ela já
estava em chamas.

— Você entrou? — Ela apontou para meu punho, onde a marca


daquela tarde existiria para sempre.
— Entrei, mas era tarde demais. Minha mãe chegou bem no início do
incêndio, mas nem ela e nem Lúcia conseguiram sair. Acho que ela não quis

sair, porque minha irmã morreu queimada. Foi o que os laudos disseram.

Com sua mão delicada, Celina tocou minha cicatriz, com os dedos
acariciando as curvas que a pele deformada fazia. O tatuador conseguiu

deixar as pétalas dispostas de uma maneira que disfarçava a feiúra da marca,


mas eu sabia que ela estava ali. Uma lembrança eterna de um dos piores
momentos da minha vida.

— Não foi sua culpa — ela falou com tanta doçura que eu quase me
perdi em suas palavras, quase me deixei levar por elas.

Marcela tinha dito o mesmo, mas ela nem de longe era tão paciente,
meiga e adorável como Celina. Eu não queria compará-las, de forma alguma,

mas minha falecida esposa era um furacão. Celina era calmaria. Algo que eu
apreciava e, talvez, precisasse.

— Não adianta eu dizer isso, sei muito bem como funciona. Todos os
dias tento encontrar a culpa em mim em relação ao que aconteceu. Fico
tentando procurar algum momento em que eu tenha atiçado os instintos
doentios de Alemão ou insisto que poderia ter fugido, encontrado um
trabalho em algum lugar... qualquer coisa. Até o tipo de roupa que usei me
passa pela cabeça. E eu sei que é errado, mas não consigo evitar esses

pensamentos.

Era exatamente isso. Ela me compreendia. Aquela garota linda, e tão


doce que não merecia nada do que sua vida difícil lhe proporcionara, dissera

exatamente o que eu precisava ouvir.

— Você não merece se culpar, mas é humano fazer isso. O fato de


você pensar assim mostra que se importa.

Merda...

Como ela podia saber exatamente o que eu sempre desejei ouvir, mas
nunca me disseram? A culpa era uma merda, uma porra de uma doença que
me consumia por dentro, mas não era simples se livrar dela, como todos

faziam parecer. Era um mal poderoso, sombrio, que contaminava tudo ao


redor. Tudo dentro de mim. Fora a culpa que tornara meu coração algo muito
mais obscuro. Marcela me salvara uma vez, só para depois me afundar
novamente na lama.

Seria Celina capaz de me conceder absolvição novamente? Seria


aquela menina, tão mais jovem e inocente, o que eu precisava para encontrar
outra vez o meu caminho?

Eu mal a merecia, mas se algum tipo de sorte a colocou no meu


caminho, queria agarrar o momento com unhas e dentes.

Havia um pequeno armário dentro da estufa, um que fora cuidado


pelo jardineiro e, depois, por mim e por Sheila. Fui até ele e peguei uma

tesoura grande, voltando ao ponto onde Celina estava. Ela parecia curiosa,
mas manteve-se parada, observando-me.

Com cuidado e da forma como tinha aprendido a fazer, cortei um


lírio, entregando-o para ela.

Comovida, Celina ergueu os olhos para mim, e eu mergulhei neles,


sabendo que não conseguiria mais me controlar.

Baixei a cabeça, inclinando-me na direção dela, encostando nossas


bocas. Deveria pedir permissão para beijá-la, para tocá-la daquela forma, mas
mal pensei. Quando me dei conta, ela estava abrindo os lábios para mim, em
um convite.

Aceitei-o, tomado por um frenesi que não me acometia há muito


tempo. Jogando a tesoura longe, para que nenhum de nós acabasse em um
acidente, usei meus braços para rodear sua cintura fina, e as duas mãos de

Celina vieram parar no meu peito, espalmadas – uma delas segurando o lírio

–, enquanto eu aprofundava nosso beijo, deleitando-me com seu gosto e com


a forma como se rendia a mim.

A forma como nos entendemos e nos encaixamos foi tão natural, tão

perfeita, que parecia que fazíamos aquilo há muito tempo. Ou mais do que
isso: era como se estivéssemos destinados um ao outro.

A sensação foi tão forte que eu cheguei a interromper o beijo


abruptamente.

Destinados? O que isso significava?

Perdemos algum tempo um olhando para o outro, e nós parecíamos


não entender o que nos levara até ali.

Nossas respirações estavam ofegantes, e eu sabia que alguma coisa


especial tinha acabado de acontecer.

Eu só não sabia se era o certo...


CAPÍTULO QUATORZE

O que tinha acabado de acontecer? Será que o mundo tinha parado de


girar, ou estava girando rápido demais ao ponto de eu ter sonhado acordada?

Dorian tinha me beijado. Era real isso?

Mais do que apenas um beijo... ele... Meu Deus! Fora perfeito!

Eu não tinha muita experiência, mas já tinha sido beijada mais de


uma vez. Por meninos. Nunca por um homem. Muito menos um que sabia
perfeitamente o que estava fazendo.

E lá estava ele me olhando, daquele jeito que poderia me fazer


derreter sem esforço e ao mesmo tempo congelar as minhas entranhas com o
quanto era intimidante.

— Não diga que foi um erro, por favor — deixei escapar, porque,
pela forma como nos afastamos – como ele recuou –, algo me dizia que iria
tentar minimizar o que aconteceu.

Dorian abriu a boca, com os olhos cheios de uma emoção que gritava
arrependimento. Apressei-me em encostar o dedo indicador em seus lábios,
calando-o.

— Não foi errado para mim. Eu queria. Quero — enfatizei, para que
entendesse que minha intenção não era que se tratasse de um beijo perdido
que nunca repetiríamos.

Agarrando a minha mão com a sua, ele beijou os nós dos meus dedos,

com os olhos fechados, bem apertados, e a minha outra mão, a que segurava
o lírio, foi parar novamente em seu peito, na altura de seu coração, e eu me
dei conta de que estava batendo no mesmo ritmo do meu. Acelerado, fora de
ritmo, frenético.

— Eu não sou o homem certo para você, Celina — ele falou de um


jeito sussurrado tão sensual, que se queria me convencer de que aquilo era
errado precisaria se esforçar um pouco mais para que eu não o desejasse.

— Por quê? — indaguei quase em desespero, ansiosa por sua


resposta.

— Porque tudo em relação a mim é complicado.

Não pude conter uma risadinha desdenhosa.

— Você me encontrou sendo leiloada em um palco. Alguém ia pagar


pela minha virgindade. Se acha isso normal, e não complicado, seus
conceitos são um pouco estranhos. — Eu ainda estava sorrindo quando
aquele braço musculoso e quase possessivo me enlaçou, puxando-me em sua
direção.

— Não quero que pense que isso tem alguma coisa a ver. Que estou

reivindicando algo que comprei.

— Seria bem idiota da minha parte. Você poderia ter feito isso na
primeira noite, e aqui estou eu, ainda intocada.

Dorian contraiu os maxilares e engoliu em seco, como se o fato de eu


permanecer virgem e pura mexesse com ele. A menção ao sexo, talvez? Ele
me queria? Eu esperava que sim.

Levei a mão livre ao seu rosto, tocando a barba espessa, sentindo os


pelos, encontrando-os mais macios do que esperei.

— Ainda bem que foi você — falei em um sussurro também,


esperando soar tão sexy quanto ele conseguia sem esforço.

Aparentemente, certificar-lhe de que eu estava feliz por estar com ele,


ou ao menos aliviada pela forma como as coisas aconteceram, funcionou,
porque suas mãos se ergueram ao meu rosto, e ele me acariciou
delicadamente, novamente buscando meus lábios em um beijo.

Daquela vez foi mais intenso, como se Dorian estivesse começando a


aceitar que, talvez, pudesse dar certo.

E, meu Deus, se não era certo... o que poderia ser?

A lentidão dos movimentos de sua língua contra a minha quase me


deixou sem fôlego, porque ao mesmo tempo em que eu queria mais, desejava
que continuasse da mesma forma, seduzindo-me devagar, apresentando-me
cada nuance de quão delicioso era ser venerada por ele. E isso porque só
estávamos compartilhando um beijo.
O que aconteceria se fôssemos mais longe.

Cheguei a me remexer, sentindo o centro do meu corpo latejar.

Meus seios colados ao peito sólido dele, mesmo através do tecido do


vestido que eu usava, pareciam implorar por atenção, e eu quase – por muito
pouco mesmo – não tirei uma das mãos de meu rosto levando-a até um deles.

Ele, aliás, parecia estar mantendo-as ali, como duas prisioneiras, porque
temia ir mais longe e me tocar de uma forma que ele ainda não sabia se era
permitido.

Quando nos afastamos, bem diferente daquela primeira vez, que foi
por um rompante, ele ainda me tocava com carinho e continuou deixando
selinhos na minha boca, chegando a dar uma mordida sexy no meu lábio
inferior, puxando-o com a dose certa de intensidade.

Mais uma vez tivemos nosso momento de olhares trocados, até que
Dorian me puxou para os fundos da estufa, exatamente o mesmo ponto onde
nos sentamos no outro dia, quando eu estava mais bêbada do que seria
prudente, mas me surpreendeu ao me puxar para que me sentasse em seu
colo.

Ergui uma sobrancelha, surpresa, mas ele não respondeu nada, apenas
deu um beijo na minha testa e me puxou, para que eu aninhasse a cabeça em
seu peito.

Combinamos nossas respirações, e eu sorri, sentindo como se tivesse


finalmente encontrado meu lugar.

— Repito o que disse naquele dia: você não é nada do que eu

esperava — falei baixinho, enquanto seu coração pulsava contra meu ouvido,
proporcionando um som que poderia me acalmar facilmente em pouco
tempo.

— É uma coisa boa, não é? Eu não pareço um cara amigável quando


me olham pela primeira vez.

— Não, mas não é nada mau de se olhar.

Ele me afastou um pouco, para que nos olhássemos nos olhos, e seu
cenho estava franzido, em confusão.

— O quê? Você me acha bonito?

Com uma expressão quase divertida e desdenhosa, respondi:

— Não me venha com falsa modéstia. Você é lindo. De um jeito


selvagem, meio rústico, o que, certamente, agrada muitas mulheres — falei
em um tom bobo, percebendo que aquele era o primeiro momento leve entre

nós.

E ele sorriu.

A maneira como meu coração respondeu a um simples sorriso foi um

pouco assustadora, porque foi intensa demais, mas ao mesmo tempo me


provocava um sentimento cálido, como se eu finalmente tivesse uma direção
a seguir. Um refúgio.

— Agrada a você? — apenas um dos cantos de sua boca estava


curvado, e isso era sexy.

Droga, eu estava começando a achar tudo em relação a ele muito


sedutor.

— Muito — falei com toda a sinceridade e fui beijada mais uma vez,
só que de uma forma completamente diferente. A pegada de Dorian tornou-se
mais cheia de gana, e eu cheguei a soltar um gemido de puro prazer quando
uma de suas mãos apertou minha cintura, mergulhando os dedos na carne,
quase como se quisesse tomar posse.
Eu queria que ele me beijasse para sempre, que nunca parasse, que
nossos corpos se perdessem ali mesmo, que me possuísse, que me

reivindicasse para si. Que fosse meu primeiro homem e me transformasse em


mulher. Em sua mulher.

Ele foi descendo aquela boca experiente pelo meu pescoço, afastando

a alça do meu vestido, e eu deixei a cabeça cair para trás, soltando o ar que
estava preso no meu pulmão. Meu peito subia e descia, e eu queria que
Dorian me tocasse ali, com as mãos ou a boca; ou ambas. Queria que usasse a
força de suas mãos para me tocar com desejo, que acalmasse o calor que
estava nascendo entre as minhas pernas.

Eu sentia que ele estava excitado. Sentada em seu colo, podia


perceber sua ereção se avolumando.

Sua língua começou a passear pelo meu colo, quente e precisa,


atingindo pontos que me fizeram estremecer. Aquele era um nível novo. Não
passei de beijos desajeitados e que não me fizeram sentir absolutamente nada.

Aquilo ali era outro nível de sedução.

— Me faça parar, Celina. Não sou tão forte assim... — Dorian


ronronou e, novamente, foi a coisa mais excitante que eu já ouvi.
— Nem eu.

Ouvindo isso, ele soltou um rosnado gutural e me girou, colocando-


me deitada no chão, como se eu não pesasse absolutamente nada. Veio por
cima de mim, continuando os beijos pela minha pele, enquanto sua mão
passeava pelas minhas coxas, subindo a saia do meu vestido.

Toda a atmosfera me deixou ainda mais entorpecida, e eu jurei que


permitiria que fizesse tudo comigo. Em meio àquelas flores, em meio àquele
lugar que se tornara o meu preferido da casa.

Sua barba roçava minha pele. Seu cheiro masculino se impregnava


em mim. Seu toque firme me fazia querer pedir mais.

— Meu Deus... eu nunca imaginei que... — falei sem pensar, em um


impulso. A voz saiu soprosa, quase inaudível.

— Mal comecei, querida. Há muito mais que eu posso te mostrar, se


você quiser.

— Sim, eu quero. Sim! — a última palavra soou como uma súplica


desesperada, e a mão de Dorian que começava a subir pela minha perna
encontrou a lateral da minha calcinha, tocando-me onde eu nunca tinha sido
tocada antes.

— Você está molhada. Porra! — mais um rosnado sexy. Ele ia me


matar.

Seu dedo começou a brincar com a minha fenda, preguiçosamente,


como se tivéssemos o mundo inteiro só para nós. Como se controlássemos o

tempo.

Quando ele estava prestes a me penetrar com um dedo, nós nos


sobressaltamos ao ouvir um barulho lá fora.

Dorian pareceu um pouco intrigado, chegando a olhar para mim com


o cenho franzido. Ainda sobre mim, tentou ouvir mais alguma coisa, mas
nada aconteceu.

Só que de alguma forma, ele continuou inquieto, saindo de onde


estava e estendendo-me sua mão para me ajudar a levantar.

— Fique aqui. Vou ver o que aconteceu.

Assenti, preocupada. Provavelmente não era nada, ele só estava


querendo ser cuidadoso, mas quando saiu pela porta da estufa, com a tesoura
que usou para cortar o lírio que me deu, deixando-me lá dentro, comecei a me
sentir inquieta, andando de um lado para o outro.

Quando estava de costas para a porta, alguém entrou. Jurei que seria
Dorian, mas reconheci o rosto como sendo o de um dos homens de Alemão.

Apavorada, preparei-me para gritar, mas ele levou a mão à minha

boca, calando-me.

— A putinha teve uns dias de princesa, né? Mas agora meu chefinho
te quer de volta. Espero que fique quietinha ou vai apanhar, está escutando?

Sim, eu estava, mas não conseguia acreditar.

Como aquele bandido tinha chegado até ali? Como chegara até mim?

Ele fedia a álcool e a cigarro, e tudo o que eu pedia era que Dorian
voltasse e não permitisse que me levasse.
CAPÍTULO QUINZE

Eu não costumava me incomodar com barulhos aleatórios na minha


casa, mas algum tipo de intuição me colocou em alerta.

Eu morava em uma região erma da cidade, a propriedade era cercada


por muros e um portão altos, e nunca senti necessidade de colocar uma

equipe de segurança para vigiá-la, levando em consideração que vivíamos em


uma cidade tranquila. Alguns adolescentes um pouco mais festeiros surgiam,
querendo um pouco de diversão com a “Fera” da cidade, fingindo que
ousariam escalar os muros e ver quem eu era; ou alguns curiosos apareciam
querendo fotografar o lugar ou enxergar algum movimento, mas no geral
eram inofensivos.
Só que eu nunca tinha lidado com um bandido antes.

Alemão estava na minha cola, eu sabia disso. Sua obsessão por


Celina o tornava capaz de muitas coisas, inclusive uma invasão de
propriedade. Fosse para nos dar um susto ou para coisa pior.

Afastei-me um pouco da estufa, em busca da origem do barulho.

Poderia não ser nada também, mas mantive a tesoura na minha mão para o
caso de precisar me defender. Ou, mais importante, defender Celina.

Tentei pensar em como uma pessoa poderia tentar invadir a casa em


si e fiz o caminho do muro mais baixo, que seria o mais simples de escalar.
Eu não tinha a menor experiência naquele tipo de coisa, mas comecei a
pensar que, talvez, estivesse entrando em alguma paranoia.

Minha casa era segura. Além disso, o que Alemão iria fazer?

Pagar tanto dinheiro por Celina fora errado. Uma mulher não deveria
ser comprada nem vendida, mas esperei que fosse uma garantia de que ela
jamais precisaria voltar para aquele lugar. O filho da puta do dono do Rosa
Escarlate, que sequer morava em Santa Celeste do Sul, era um avarento e
certamente ficara louco com tanta grana, especialmente porque fiz questão de
assinar um documento – o que era ainda mais ridículo levando em
consideração o que fora negociado –, mas esperei que isso fosse suficiente
para tirar a moça de seu radar.

E era nisso que eu precisava pensar. Ela estava na minha casa,


segura, nada aconteceria. O barulho poderia ter a ver com mil e uma coisas,
não necessariamente uma tentativa de tirá-la de mim.

Tirá-la de mim...

De mim.

O que acabara de acontecer conosco... seria certo? Ela era tão mais
jovem, tão inocente, tão delicada e doce... O que eu poderia acrescentar na
vida de uma moça como ela? Um homem recluso, que não tinha muitas
intenções de ver o mundo e sair de sua toca. Eu gostava de ficar no meu
canto, escrevendo, produzindo e ganhando meu dinheiro. Gostava de passar

noites lendo na minha biblioteca, de conquistar meu conforto, e eu não fazia


ideia de como poderia acrescentar algo de bom a uma menina que tinha a
vida inteira pela frente.

Ainda assim, eu a queria.

Porra, não era apenas um desejo físico, uma atração óbvia porque ela
era linda. Era mais do que isso. Eu queria protegê-la. Queria fazê-la sorrir.

Queria saber mais sobre ela.

E os beijos... puta que pariu. Ela estava molhada para mim. Teria
gozado nos meus dedos se tivéssemos ido mais longe. Eu me certificaria
disso.

Voltei para a estufa com isso em mente. Nada poderia nos impedir
daquela vez.

Isso era o que eu tinha em mente até que ouvi um grito.

Saí correndo como um louco, ainda segurando a tesoura na mão,


voltando à estufa. Minha visão chegou a escurecer com a raiva no momento
em que vi um homem, de quem o rosto me era bem familiar, agarrando
Celina, que parecia tentar fugir, e cobrindo sua boca com a mão, arrastando-a

para longe da estufa.

Ela se debatia, e eu podia ouvir os murmúrios abafados, de quem luta


desesperadamente para sobreviver.

Comecei a correr com toda a força das minhas pernas e num


rompante de desespero, fui em cima do filho da puta como um touro,
atingindo-o como um jogador de futebol americano. Ele foi ao chão,

derrubando Celina, mas ela rapidamente se afastou, o que me fez acreditar

que estava bem.

Agarrei o filho da puta, socando-o e aproveitando que eu estava em


vantagem, com ele caído no chão. Mesmo no alto da minha adrenalina, não

ousei usar a tesoura que tinha em mãos. Por mais que pensasse em mim
daquela forma muitas vezes, eu não era um monstro. Não era um assassino e
não queria ser. Eu poderia encher a cara daquele demônio de porradas, mas o
levaria à polícia, que era o certo.

Só que ele não parecia ter a mesma índole que eu, porque agarrou
minha mão que segurava o objeto pontiagudo, torcendo-a o suficiente para
que a lâmina me atingisse, bem na cintura, fazendo um corte.

Soltei um grunhido de dor, levando a mão imediatamente ao


ferimento, e isso foi o suficiente para que ele conseguisse me tirar de cima de
seu corpo.

A dor era aguda, intensa, e eu temi por Celina, só que ela foi rápida
em pegar a tesoura que deixei cair, antes do desgraçado. Estava suja de
sangue, pingando, mas a garota a apontou para ele, e sua voz soou dura,
corajosa, irritada:

— Vá embora, seu filho da mãe! Nos deixe em paz.

O babaca, com a cara toda fodida dos meus socos, e a camisa


manchada pelo meu sangue, levantou-se com as mãos erguidas, em rendição,
com os olhos arregalados.

— Você não faria isso, lindinha. É uma boa moça, não é? Não teria
coragem de machucar outro ser humano.

— Ser humano eu não teria mesmo, mas um demônio como você...


Não me subestime... — a voz dela estava um pouco trêmula, mas seu
discurso convenceria qualquer um.

Levantei-me com algum custo, colocando-me de pé. Peguei a tesoura

da mão de Celina, mais puto do que seria bom para a minha insanidade, e me
aproximei do saco de bosta, encostando a ponta do que, naquele momento,
era uma arma, bem em sua barriga, chegando a perfurar um pouco.

— Eu não vou te matar agora porque quero que avise ao Alemão que
se ele voltar a mandar alguém na minha casa, será recebido de forma muito
menos cordial. Esqueça Celina. Eu paguei por ela, ela está livre dele. — Era
uma forma odiosa de se falar, mas eu esperava que Celina entendesse.

Pela forma como ela continuava olhando para o miserável, sem


dúvidas não se incomodou com minha forma de falar.

O cara não respondeu nada, apenas ficou olhando para nós, de um


para o outro, como se fôssemos adversários em uma quadra de tênis. Cansado

daquele joguinho e sentindo a ferida queimar, avancei um pouco a tesoura,


afundando mais a ponta na carne de seu corpo, sabendo que o tinha ferido.

Ele soltou um gemido baixinho, assustado.

— Da próxima vez vai ser na garganta. Bem na veia. O que acha


disso?

Como um garotinho que acabou de ver uma assombração, o cara saiu

correndo, fugido, e eu me rendi. Caí no chão de joelhos, depois de lutar para


ficar de pé por tanto tempo, e Celina veio até mim.

— Dorian! — ela gritou. — Meu Deus... você está muito ferido? —


Suas mãos pequenas e ávidas começaram a tatear minha blusa, que era
branca, bem no local da mancha. Ela rasgou o tecido em dois, encontrando a
fonte do machucado.
Tirou rapidamente o casaquinho que usava, levando-o ao ferimento,
pressionando-o.

— Não é nada. Vou ficar bem — afirmei, com a voz rouca.

— Você precisa ir a um hospital! — ela afirmou aflita, então eu


agarrei seu punho, infelizmente manchando-o de sangue, e olhei bem em seus

olhos.

— Não... Sheila... ela vai saber cuidar de mim. É ex-enfermeira. Só


me ajude a... — Remexi-me para me levantar, mas soltei um urro abafado.
Não queria que ela me visse com dor, porque sabia que iria se preocupar, mas
era difícil evitar, porque aquela merda estava doendo pra caralho.

Celina veio me ajudar, e eu fiz um esforço enorme para não colocar


muito do meu peso sobre ela. Eu pesava uns noventa quilos, e a garota,

provavelmente, uns sessenta, era até cruel imaginá-la se esforçando, depois


de passar pelo que passou, tendo que me aguentar como um fardo.

Ainda assim, ela foi firme, ajudando-me a chegar em casa, onde me


largou no sofá, ofegante e agindo rápido, correndo para chamar Sheila.

As duas mulheres cuidaram de mim, algo de que eu não gostava. Não


queria depender de ninguém e cheguei a ficar um pouco rabugento pela

minha condição, mas, ao mesmo tempo, muito orgulhoso por Celina ter

ficado ao meu lado, segurando a minha mão, mesmo enquanto Sheila


costurava a ferida a seco.

As duas me ajudaram a subir, colocando-me na cama, mas quando

Celina se afastou, dizendo que queria me deixar sozinho para descansar,


segurei a mão dela, tentando mantê-la comigo.

— Não vá. Me faça companhia. Durma comigo. — Provavelmente


era um pedido muito ousado, mas a minha intenção era apenas tê-la ali. Eu
não conseguiria sequer tocá-la de forma mais íntima, por causa da dor e dos
analgésicos que tomei.

Só que Celina não fez perguntas, não hesitou.

— Eu só preciso tomar um banho e trocar de roupa. Tudo bem? —


Assenti, quase certo de que ela não voltaria.

Estava no limiar entre o sono e a consciência quando senti o colchão


afundar ao meu lado, enquanto um corpo delicado se enfiava sob as cobertas.
Ela cheirava a sabonete e roupa limpa, e eu fui ao céu.
Mesmo sabendo que a ferida iria repuxar, enlacei-a com um braço e
puxei-a para mim, fazendo-a surpreender-se.

— O que aconteceu hoje não vai acontecer de novo. Eles não vão
chegar perto de você outra vez — sussurrei em seu ouvido, tentando parecer
o máximo seguro possível. Era o que eu queria, mantê-la segura, mas naquela

noite quase a perdi.

Celina soltou um suspiro longo, remexeu-se um pouco nos meus


braços e falou algo, tão baixinho que eu quase poderia não ouvir, mas que eu
sabia que me marcaria para sempre, porque era uma coisa que há muito
tempo ninguém me dizia:

— Eu confio em você.

E isso bastou para que eu caísse em um sono tranquilo, mesmo

depois do que aconteceu.


CAPÍTULO DEZESSEIS

Foi com muito esforço que eu e Sheila conseguimos manter aquele


homenzarrão na cama por alguns dias, para que seu ferimento sarasse mais
rápido. Ele se tornou rabugento e inquieto, e tinha horas que eu jurava que
iria gritar e repreendê-lo, sem paciência, mas então ele mudava

completamente a minha opinião com um de seus beijos magníficos.

Ele não parou de trabalhar, porque realmente estava com o prazo


apertado para entregar o livro, mas usou o note na cama, e eu acabei fazendo-
lhe companhia, usando sua escrivaninha para continuar meu trabalho com o
livro de Marcela.

Era complicado mergulhar nos pensamentos de outra pessoa,


especialmente alguém que eu não conhecia. Continuei lendo as passagens do

livro que ela chegou a escrever, completamente fora de ordem.

O que encontrei em seguida à história de adolescência e o incêndio


que mudou completamente a vida de Dorian, foi um relato de Marcela de
antes deles dois se conhecerem sobre seus vícios.

Por conta de uma depressão profunda, ela se perdeu em drogas de


todos os tipos, além de álcool, o que a deixou em uma situação precária –
algo que não encontrei naquele relato. Talvez achasse alguma menção mais à
frente, o que eu esperava, ou seria muito difícil prosseguir sem informações.

Em seguida achei mais algumas coisas sobre a infância difícil de


Dorian. Era complicado seguir a cronologia, uma vez que Marcela escrevera
tudo de forma desorganizada, mas comecei a me dedicar a traçar uma linha

do tempo.

Dorian tinha pedido que a história não fosse contada com a menção
de que era verídica e sobre ele, mas eu ainda não tinha certeza se iria manter
sua decisão ou se fora um rompante. Fosse como fosse, eu precisava começar
efetivamente a produzir.

Anotei algumas coisas que precisaria entender para preencher


lacunas, pensando em fazer perguntas a Dorian, quando – e se – ele estivesse
disposto a responder. Se o livro seria sobre ele, mesmo que não

declarássemos isso aos leitores, seria bom eu ter uma base para me guiar.

Ainda estava fazendo essas anotações, em um caderno, quando senti


duas mãos grandes nos meus ombros, massageando-os. Eu sabia que fazia

alguns dias que ele já estava cem por cento bem, já que o incidente
acontecera há uma semana e meia, e ele era um homem forte, com uma boa
recuperação.

Senti quando afastou meus cabelos do meu pescoço, liberando um


espaço de pele, encostando os lábios na curva do meu ombro. Era um ponto
sensível, que ele já havia descoberto em uma de nossa sessão infinita de
beijos antes de dormirmos.

Eu não tinha mais dormido em sua cama, desde o dia em que fora
ferido, mas voltava para a minha bem tarde, quando já estava exausta e com
os lábios inchados. Dorian também não tentara ir mais longe, como na noite
na estufa, em que me tocara de forma mais íntima, mas eu queria.

Nossa... como eu queria.

— Estou te atrapalhando? — ele perguntou com uma voz sedutora, o


que me fez estremecer.

— Não, mas e o seu livro?

— Acabei de terminar. Sou todo seu.

Respirei fundo ao ouvir aquilo, e uma risadinha escapou da minha

garganta.

— O que foi? — ele perguntou, curioso.

— É que é muita responsabilidade ter um homem do seu tamanho por


inteiro. Será que eu dou conta? — foi uma brincadeira ousada. A verdade era
que tínhamos construído alguma intimidade nos últimos tempos, mesmo que
ainda houvesse hesitações entre nós, o que era comum, porque não nos
conhecíamos há tanto tempo.

Dorian não respondeu, ele apenas puxou a cadeira de rodinhas onde


eu estava sentada e me virou em sua direção. Sem esperar, tirou-me de onde
eu estava sentada, pegando-me pelas coxas e me colocando sentada sobre a
mesa, puxando o notebook um pouco para o lado.

Era difícil não perder o fôlego com aquele tipo de atitude.


Especialmente quando ele se colocou entre as minhas pernas e reivindicou
um beijo, invadindo minha boca com sua língua e começando a me seduzir,

como eu já sabia que era sua especialidade.

Só que a cada vez que eu era literalmente tomada daquele jeito, por
sua pegada forte, eu começava a pensar por que não me entregar por inteiro?

O que eu tinha a perder?

Sem dúvidas estava apaixonada, e por mais que ainda não tivesse
coragem de declarar, meu coração sabia. Nunca tinha acontecido comigo,
então era algo especial. Não havia homem mais especial para que eu
entregasse meu corpo pela primeira vez a não ser aquele que me salvou de
todas as maneiras.

Mas eu não tinha a menor experiência com aquele tipo de coisa,

então o que eu poderia fazer para que ele compreendesse onde queria chegar?

Minha melhor escolha, ou a ideia que me surgiu, foi afastá-lo.

Nunca interrompi um beijo nosso, então Dorian ficou um pouco


surpreso. Uma de suas sobrancelhas se ergueu, mas então sua expressão
mudou completamente quando eu comecei a tirar a minha blusa por cima da
cabeça.
Os olhos de Dorian se tornaram pesados, muito fixos em mim,
principalmente quando prossegui, tirando o meu sutiã, ficando com a parte de

cima do meu corpo despida.

— Celina... — ele falou por entre dentes, mas seus olhos não saíam
dos meus seios. — É perigoso me provocar dessa forma.

— Por quê?

— Porque eu não vou resistir...

— Ainda bem.

Muito delicadamente, Dorian afastou meus cabelos, para poder olhar


meu corpo melhor, jogando os fios ruivos para trás dos meus ombros. Com
uma paciência admirável, ele começou a passar as mãos pela minha pele,

começando pelo meu pescoço, descendo devagar, passando pelo colo,


descendo até chegar à carne volumosa dos seios. Seus dedos agarraram os
bicos com certa força, girando-os, como se ele não conseguisse se controlar.
A sensação era gloriosa.

Lancei a cabeça para trás, de olhos fechados, gemendo baixinho e


suavemente.
— Você tem certeza, querida? — perguntou, e era quase uma
covardia, porque eu nunca conseguiria dizer não enquanto ele me tentava

daquela forma.

— Tenho. Quero que você me faça sua.

Ainda de olhos fechados, apenas senti sua boca se fechando em um

dos mamilos, chupando-o de uma forma enlouquecedora. Perdeu bons


minutos usando sua língua e os lábios, até passar para o outro seio, do qual
ele também se deleitou.

Enquanto continuava com seus beijos – se é que poderia ser chamado


assim –, ele foi descendo as mãos até a barra do short de algodão que eu
usava, e eu me remexi na mesa, ajudando-o a tirá-lo junto à calcinha.

Segurando meus joelhos, ele os abriu, deslizando a língua até chegar

ao meio das minhas pernas. Puxou-me para a borda da mesa, começando um


sexo oral. O primeiro da minha vida.

E... pelo amor de Deus! Eu não fazia ideia de que era daquele jeito.
Ou talvez não e Dorian fosse o homem mais habilidoso do mundo.

Eu queria gritar. Mais alto do que deveria. Queria gemer de forma tão
ensandecida que o mundo inteiro poderia ouvir. A língua me acariciava, ora

de forma mais veloz, ora de forma mais lenta e sensual. Ele chupava, sugava,

lambia e me possuía com a boca. Se aquilo era o prelúdio de fazer amor, eu


estava perdida.

Sabia que seria doloroso no momento, mas as sensações valiam a

pena.

Enquanto prosseguia, ele começou a brincar com meu clitóris com


uma das mãos, erguendo a outra para voltar a girar um dos meus mamilos,
causando uma combinação de movimentos intensos que faziam minha mente
girar vertiginosamente.

— Dorian! — gritei o nome dele em um gemido agudo, e isso só o


fez intensificar os movimentos ao ponto de que eu já não conseguia mais

respirar.

Uma explosão de sentidos aconteceu, e eu supus que se tratava de um


orgasmo. Um violento, maravilhoso... meu primeiro.

Eu esperava que não fosse o último, porque queria mais.

Trazendo meu próprio gosto para a minha boca, Dorian me beijou,


enquanto me puxava mais para frente e encaixava minhas pernas em sua

cintura para me levar até a cama. Fui deitada com cuidado, e ele me deixou

ali, pegando uma camisinha.

— Prevenido? — brinquei ao pensar que ele tinha uma na mesinha ao


lado da cama.

— Seria no seu tempo, mas os nossos beijos estavam ficando cada


vez mais tentadores... Sabe como é...

— Ah, eu sei bem — respondi, sorrindo, mas fiquei séria no


momento em que aquele homem começou a se despir na minha frente.

Era uma perfeição de músculos, de curvas rígidas e de pelos nos


locais certos. Eu já o tinha visto sem camisa, mas completamente nu era algo
novo. E seu membro estava rijo, grande, ereto e pronto para mim.

Dorian deitou-se sobre mim, e eu comecei a me sentir um pouco


nervosa. Queria muito não demonstrar, mas ele percebeu. Tanto que acariciou
meu rosto, com um olhar terno.

— Não precisamos ir mais longe.


— Precisamos, porque eu quero. Desejo.

Ele assentiu e começou a me acariciar onde sua boca me levara à


loucura poucos minutos atrás, bem devagar, com cuidado, até que eu senti
seu membro duro me penetrando.

Foi entrando devagar, muito mais delicadamente do que poderia se

esperar de um homem com aquela aparência tão bruta.

— Odeio a ideia de te machucar, mas...

Tomei seu rosto em minhas mãos, olhando fundo em seus olhos.

— Não vai. Não da forma que importa.

Ele podia até me causar dor fisicamente, mas estaria acalentando o

meu coração.

E foi o que aconteceu. Foi doloroso no início, mas logo ele conseguiu
me dar prazer. Aparentemente estava sentindo o mesmo, porque os sons que
saíam de sua boca eram deliciosamente eróticos.

Sentia que estava se contendo, porque seus movimentos eram lentos e


cadenciados. Combinados com beijos, eu apreciei cada segundo.
— Ah, querida... eu não consigo mais esperar... eu...

Prendi meus tornozelos em suas costas, mantendo-o ali e ainda


erguendo meus quadris para recebê-lo mais fundo. Isso o fez grunhir tão alto
que pensei que o som ia explodir no quarto. Continuou estocando e
estocando, mais forte do que antes, e eu gemi tão alto quanto ele,

encontrando-o no calor do orgasmo.

No final das contas, eu realmente entreguei a virgindade ao homem


que me arrematou em um leilão, mas da forma mais perfeita e sublime
possível.
CAPÍTULO DEZESSETE

Desde a noite em que Dorian se feriu, aquela foi a primeira vez em


que dormimos juntos. E foi completamente diferente. Por mais que já
tivéssemos nos beijado naquele dia, a sensação de intimidade era bem
diferente. Além disso, ele já estava recuperado, então me apertou com força

contra seu corpo, e eu me senti protegida como nunca. A sensação era de que
aquele homem não permitiria que nada acontecesse comigo.

Não tive pesadelos. Não que fossem sempre tão assustadores quanto
na noite em que acordei gritando, mas sempre estavam presentes. Muitas
vezes como cenas rápidas e silenciosas que me perturbavam a mente o
suficiente para que eu despertasse pensando e passasse o dia inteiro
lembrando-me das emoções assustadoras. Só que ao lado de Dorian eles
simplesmente tinham desaparecido.

Beijos delicados pelo meu rosto foram meu despertador, e um mais


longo, na boca, me derreteu. Fui eu que abri os lábios, esperando que o
contato se tornasse mais profundo, e Dorian veio para cima de mim, com seu

corpo enorme cobrindo o meu, deslizando carinhosamente sua mão pela


minha pele nua, até chegar à minha coxa, que ele apertou com vontade.

— Você é deliciosa — murmurou contra os meus lábios. — Vai


precisar lidar comigo, menina, porque acho que fiquei viciado.

Eu apenas sorri e deixei que ele colocasse uma camisinha e me


amasse, daquela vez sem dores, apenas prazer.

Levantamo-nos algumas horinhas depois, ambos atrasados para

começarmos nossos trabalhos. Sheila não levou o café da manhã, e nós o


encontramos na biblioteca, ambos sobre a mesa de Dorian. Fora discreto da
parte dela, mas deixou-me um pouco constrangida por imaginar que deduzira
que estávamos juntos na cama. Provavelmente entrou no meu quarto e viu a
cama intocada. Não era difícil imaginar, levando em consideração que nossa
atitude mudara nos últimos dias, e ela chegara a pegar um beijo nosso, o que
pareceu deixá-la satisfeita.

Comemos juntos, e eu precisei voltar ao quarto para pegar o caderno


onde estava fazendo minhas anotações, porque o esqueci, e quando retornei,
Dorian já estava concentrado, lendo algo em seu notebook, provavelmente
fazendo a revisão e lapidação de seu livro. Decidi passar o máximo silenciosa

possível e subi as escadas para o pequeno escritório de Marcela.

Quando cheguei, qual não foi a minha surpresa quando encontrei, no


vasinho de sempre, ao invés de uma rosa, um lírio?

O sorriso que se formou na minha boca quase cruzou meu rosto


inteiro, e eu não resisti em pegar a flor, levando-a ao nariz e sentindo o cheiro
delicioso que ela exalava. Encontrei também outra coisa sobre a mesa: um
papel com uma letra feminina com uma chave sobre ele. Era um recado

assinado por Sheila.

Encontrei esta chave dentro de um dos bolsos de uma das roupas da


senhora Marcela, que estou arrumando para doação. Espero que ajude em
algo.
A primeira informação que me chamou atenção foi o fato de Sheila
estar mexendo nas coisas de Marcela depois de tanto tempo? Teria sido um

pedido de Dorian? Teria algo a ver comigo? Talvez eu precisasse conversar


com ele para saber os motivos. Não queria que se sentisse pressionado a
apagá-la totalmente de sua vida por minha causa. Ela sempre seria uma
lembrança boa, e eu não teria ciúmes. O passado era passado, e nós podíamos

construir um novo futuro, se realmente nos empenhássemos.

Fora isso, eu poderia até imaginar de onde vinha aquela chave. Havia
uma caixinha dentro de uma das gavetas da escrivaninha, que eu nunca
consegui acessar, porque supus que a chave estaria perdida.

Foi o primeiro lugar que testei e consegui abrir.

Encontrei um mar de fotografias, todas impressas, e decidi me sentar

no chão para olhá-las com mais liberdade, espalhando-as um pouco.

A primeira que encontrei foi de um casal jovem e sorridente,


abraçados com uma paisagem atrás, onde se via a torre Eiffel. Da mulher eu
desconhecia o rosto, mas era bonita, morena, cabelos cacheados, pele de um
belo tom de oliva. O homem... era de tirar o fôlego.

Lá estava uma versão de Dorian que não tive o prazer de


testemunhar, embora não tivesse nada a reclamar do que conheci. Só que ali
ele usava os cabelos curtos, em um corte moderno para a época. A barba

continuava cheia, cobrindo os maxilares e o queixo, e eu começava a


conseguir arrancar sorrisos como aqueles nos últimos dias.

Era um deleite, aliás, fazê-lo sorrir.

Fui passeando pelas imagens que encontrei, tentando conhecer um


pouco mais do Dorian daquela época e da mulher que ele amou um dia. Eles
viajavam muito, havia registros de sessões de autógrafos conjuntas, dela
dando palestras, de assinaturas de contratos.

E foi uma dessas que novamente capturou minha atenção.

Foi tirada em um ângulo bem próximo, e eu pude ver o punho de


Marcela, enquanto ela segurava uma caneta elegante, tinteiro, que estava

pousada sobre um papel. Ela sorria feliz, mas havia uma marca neste mesmo
pulso.

Uma rosa vermelha, pequena, torta e mal feita.

A marca do Rosa Escarlate.


Não cheguei a ganhar uma, porque somente as meninas que
passavam pelo primeiro leilão e se tornavam propriedade da casa é que eram

marcadas, como gado.

Então Marcela estivera em uma situação muito parecida com a


minha... Não era de se estranhar que a mulher tivesse entrado em uma

depressão profunda. Especialmente porque se ganhara aquela tatuagem,


passara por muito mais coisas do que eu.

Pobre mulher.

Isso tudo me fazia questionar como o relacionamento dela com


Dorian se iniciara.

Só que minha resposta não demorou a chegar, porque logo não me vi


mais sozinha em meio a todas aquelas fotografias.

Dorian chegou silencioso como sempre e sentou-se ao meu lado, no


chão, pegando algumas fotografias ainda sem dizer nada.

— Desculpa, eu não queria bisbilhotar. Foi Sheila que encontrou a


chave da caixinha — comecei a falar, esperando que ele não ficasse chateado
por eu estar remexendo naquelas coisas.
— Você pode mexer em tudo. Não tenho nada a esconder —
respondeu com um tom sereno, gentil, mas seus olhos estavam perdidos nas

imagens.

Nostálgicos.

— Você era feliz, não era? — indaguei sem sentimentos adversos. Eu

queria que ele tivesse sido feliz. Merecia isso.

— Fui, até onde um homem pode ser quando tem a mulher que deseja
muito, mas não tem seus sentimentos correspondidos. — Ele voltou seus
olhos cheios de pesar para mim: — Marcela nunca me amou. Eu fui um
refúgio, um porto seguro para ela. Nós nos dávamos bem, quase como
amigos, mas eu sentia que ela era minha esposa, na prática, porque pensava
que me devia algo.

Não pude conter um sorriso malicioso.

— Pelo que pude perceber ontem, acho muito difícil que uma mulher
fizesse qualquer coisa com você por obrigação.

Dorian sorriu. Não era agradável falar com o homem por quem eu
estava apaixonada sobre o sexo que fazia com outra mulher, mas era
necessário fazê-lo enxergar o que, aparentemente, ele não conseguia por

conta própria.

— Existe uma grande diferença entre fazer amor com alguém quando
há sentimentos envolvidos e quando não há. Quando há uma entrega total de
corpo e alma por parte da outra pessoa.

Queria fazer muitas perguntas e saber se Dorian sentira algo especial


comigo na noite anterior, como eu senti com ele, mas não ousei. Se não
gostasse da resposta, sabia que meu coração iria se magoar. Mas eu poderia
garantir que tinha me entregado completamente ao momento, ao homem que
me fizera sua, que me ensinara sobre o prazer pela primeira vez.

Ainda assim, deixei que continuasse falando, porque aparentemente


precisava desabafar.

— Não foi por acaso que eu quis tirar você daquele lugar. Eu já tinha
péssimas memórias.

— Eu vi a tatuagem dela — comentei.

— Sim. Eu era novo na cidade, e uns amigos me arrastaram ao Rosa


Escarlate. Não tinha a menor intenção de levar uma mulher para cama
naquela noite, mas eu fiquei fascinado por Marcela. Acabamos nos tornando

amantes constantes, porque eu sempre voltava por ela. Até que me contou sua

história. — Ele fez uma pausa, demonstrando pesar. — Ela foi leiloada,
assim como você, e eu era o primeiro homem que tinha qualquer
consideração ao tratá-la. Nós conversávamos, tínhamos uma interação. Só
que, infelizmente, quando consegui livrá-la de lá, também pagando um

dinheiro muito alto por sua liberdade, ela já estava completamente doente
emocionalmente. Não conseguia me amar, por mais que tentasse.

— Não passei por metade do que ela passou e já consigo imaginar o


motivo — respondi, com empatia.

— A única coisa que a deixou feliz, também tiraram dela. — Franzi o


cenho, confusa. Ao perceber isso, Dorian levantou-se, estendendo a mão para
mim, ajudando-me a sair do chão.

Saímos do escritório, descemos as escadas, passamos pela biblioteca


e voltamos para o corredor dos quartos. Fui levada à última porta, que sempre
via fechada, mas Dorian tirou uma chave do bolso e a abriu.

A cena foi surpreendente.

Eram os restos de um quarto de bebê. O que eu via era um papel de


parede queimado e descascado, alguns brinquedos, um berço queimado
também, além de prateleiras e móveis. Todos delicados, em tons de azul.

Dorian avançou no espaço, deixando-me parada perto da porta,


observando aquilo tudo sem entender.

— Consegui conter o fogo a tempo de não destruir tudo, mas não

cheguei a tempo de salvá-la. — A expressão de seu rosto me dizia que ele


estava sofrendo. Mais do que eu poderia imaginar.

— Você não precisa me contar nada que não queira — afirmei. Por
mais que minha curiosidade falasse mais alto, não queria torturá-lo.

— Mas eu quero. Acho que tem coisas que você precisa saber,
porque fazem parte da sua história também.

Então eu iria ouvi-lo...


CAPÍTULO DEZOITO

Depois da jornada até o quarto do bebê, com a mão entrelaçada à de


Celina, eu a guiei ao jardim da casa. Passamos pela estufa e seguimos,
ultrapassando um portão, chegando a uma parte não tão bem-cuidada, com
uma grama mal-aparada. Era um lote que adquiri quando descobrimos sobre

a gravidez, porque eu planejava criar um pequeno parquinho para meu filho.


Mal tive oportunidade de demolir o muro e mal me interessei em embelezá-lo
depois de tudo o que aconteceu.

Havia uma cruz fincada na terra em um canto, e foi para lá que levei
Celina.

Não havia inscrição, mas não era difícil entender que se tratava de
uma lápide. Provavelmente ela interpretou erradamente, então eu fiz questão

de esclarecer:

— Seu pai foi enterrado aqui.

Celina me olhou com surpresa, e eu podia ver em seus olhos que não
compreendia o motivo.

— Meu pai... está morto? — sua voz mal saiu, e eu me arrependi de


ter dado a notícia daquela forma. Só que não havia maneira certa. O que eu
lhe daria, compensaria minha falta de tato.

— Sinto muito, querida.

Celina voltou os olhos na direção da lápide, ainda confusos, mas não


demoraram a marejar. Eu sabia que ela tinha suas diferenças com o pai, mas

laços de sangue sempre seriam fortes, não importavam as circunstâncias.

— Ele foi um grande amigo meu — acrescentei, meio que sem saber
o que dizer, desejando poder lhe dar algum tempo para lamentar. Era direito
dela, sem dúvidas, mas eu queria que soubesse a verdade.

— Um grande amigo que te traiu, não foi? As coisas que dizia de


você pelas costas... — sem olhar para mim, ela falou, por entre dentes, com
toda a sua raiva.

— Não. Ele foi mais leal do que eu poderia pedir.

Coloquei as mãos nos braços dela, girando-a e virando-a para mim,


fazendo-a olhar nos meus olhos.

— Seu pai era o único que sabia que foi Marcela que colocou fogo no
quarto do bebê. Ela começou o incêndio. — Celina levou a mão à boca,
chocada.

— Ela matou o bebê de vocês?

— Não! — apressei-me em responder, porque não queria que aquela


hipótese sequer surgisse na mente de Celina. Não queria que Marcela tivesse

tal imagem perante ninguém. — Nós perdemos nosso filho. Ele nasceu
morto. Isso devastou Marcela, porque a gravidez foi a única coisa que a
deixou realmente feliz.

Por mais que eu tivesse feito de tudo por ela, minha esposa nunca
conseguiu viver plenamente. Eu a incentivei a escrever, que sempre foi seu
sonho, possibilitei seu contrato com uma editora gringa, fui o mais carinhoso
possível e lhe dei espaço. Nunca a obriguei a nada, sempre compreendi seus

silêncios e seus momentos, mas Marcela nunca foi minha.

Não como Celina foi em uma única noite.

Tive outras mulheres, é claro, mas nunca houve sentimento. Foi


exatamente por isso que lhe expliquei que existiam enormes diferenças entre

o sexo com uma pessoa de quem você gostava e com alguém aleatório.
Nunca fui um homem de relações casuais, embora elas tivessem acontecido, e
a única mulher por quem nutri mais do que uma atração, não conseguia
retribuir nada.

Ela respondia ao sexo, sentia prazer, gostava do ato em si, mas ele lhe
trazia lembranças tão ruins, de ser machucada constantemente e maltratada,
que não conseguia se libertar.

A noite anterior com Celina fora... Deus... Inexplicável.

A menina não tinha experiência, entregara-se pela primeira vez, e eu


nunca me senti como com ela. Nunca uma mulher se rendeu daquela forma,
com plena confiança, deixando-me conduzir as coisas à minha maneira,
respondendo aos estímulos com tanta sensibilidade e desejo. A forma como
seu corpo reagiu ao meu, como nossos olhares se conectaram, mesmo em
silêncio, fora muito mais do que eu poderia pedir.

O ato de fazer amor nunca fez tanto sentido.

Eu ainda não amava Celina, é claro. Conhecia o amor e sabia muito


bem o que ele causava, mas poderia chegar a amá-la. Estava fascinado,
admirado, atraído, e queria muito mais dela. Não somente na cama. Mas para

que nosso relacionamento começasse da forma correta, ela precisava


conhecer a história inteira.

— Quando voltamos para casa sem o nosso bebê, Marcela piorou


muito. Tentei convencê-la a se consultar com psiquiatras, a tomar remédios,
fazer terapia, mas ela não queria. Passava boa parte do dia escrevendo, sem
falar com ninguém, e bebendo escondida. À noite, dormia no quarto do bebê.
Estava tomando remédios para pegar no sono, e várias vezes eu a tirei de lá

apagada, levando-a para o nosso quarto.

— Desculpa por ter bebido tanto naquela noite. Devo ter ressuscitado
lembranças bem ruins — pediu com humildade, mas eu balancei a cabeça em
negativa.

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sei onde conseguiu as
bebidas, porque ela achava que eu não sabia que as escondia, mas o que eu
poderia fazer? Se a proibisse, ela se tornaria ainda mais miserável.

— Como ela morreu, afinal? No incêndio?

— Não. Cortou os pulsos com uma gilete. Só estávamos eu, seu pai e
Sheila em casa. Foi em uma tarde. Quando o fogo começou, ela já tinha
sangrado muito. Provavelmente se feriu antes de iniciar o incêndio,

principalmente porque tinha sangue espalhado por todo o quarto.

— Que horror — Celina sussurrou, com os olhos apertados, cheios de


compaixão.

— Sim, foi um pesadelo. — Afastei-me um pouco dela, começando a


me movimentar, porque reviver aquelas memórias enquanto parado fazia
minha alma se remexer dentro do meu corpo a um ponto insuportável. — Foi
seu pai quem me ajudou com tudo, inclusive a espalhar aqui na cidade que o

incêndio foi culpa minha. Eu não queria que as pessoas começassem o boato
de que Marcela era louca. Por muito tempo ela sofreu com o julgamento de
todos, por ser uma prostituta, sem que nem soubessem como foi levada a essa
vida.

— Mas não houve uma perícia? Não sabem que a causa da morte
dela foi pelos cortes nos pulsos?
— Tudo foi feito em outra cidade. Aqui, em Santa Celeste, as pessoas
acreditam muito mais no que ouvem e no que querem acreditar. — Celina

assentiu, concordando comigo. — E eu pedi que seu pai fosse o portador do


boato que eu quis que as pessoas ouvissem. Tive que enterrá-lo aqui, porque
temi que quisessem profanar o corpo de alguma forma. — Abaixei a cabeça,
envergonhado. — Por isso sinto que tudo o que aconteceu com você foi, de

certa forma, culpa minha.

— Dorian... não...

Ergui um dedo e o levei aos seus lábios, interrompendo-a,


substituindo-o por um beijo, prosseguindo:

— Ele ficou sem emprego por minha causa. Eu estava louco, Celina.
Destruí a estufa inteira. Só depois de muito tempo conseguimos trazê-la de

volta à vida.

— Ele podia ter escolhido mil outros caminhos. Isso não foi culpa
sua — ela respondeu com veemência, parecendo querer muito que eu
acreditasse em suas palavras.

Dei de ombros. Claro que todo mundo tinha as suas escolhas,


qualquer um poderia seguir por caminhos diferentes, independente da
situação em que estava, mas eu não conseguiria me eximir totalmente da
culpa.

— Ele chegou aqui muito ferido. Quando te levaram, foi atrás de


você e brigou com todo mundo para te tirar de lá. Só que era um homem só,
não muito jovem, não em muito boa forma. Quando veio me procurar,

morreu aqui, na minha casa, implorando que eu te salvasse.

Celina estava completamente paralisada, olhando para mim confusa,


como se eu lhe estivesse contando algo muito absurdo. Mas era a história de
um pai tentando proteger uma filha, o que ela nunca acreditou que pudesse
ter acontecido. Minha intenção não era deixá-la com a consciência pesada ou
qualquer coisa assim, mas que soubesse a verdade. Era importante que a
memória de seu pai fosse limpa, ao menos para ela. Eu devia isso ao meu
amigo.

— Eu não fazia ideia — suas palavras quase falharam. Saíram em


uma corrente de ar, enquanto ela levava a mão ao peito. — Para mim, meu
pai simplesmente me deixou lá, à própria sorte.

— Não. Ele errou, mas tentou consertar o erro.

— Então ele morreu por minha causa! — Celina arregalou os olhos, e


eu novamente a segurei pelos braços.

— Qualquer pai morreria por um filho, mas ele não morreu por sua
culpa. Não foi você mesma que disse que ele buscou o que aconteceu? Que
tinha escolhas? Ele te colocou em uma situação perigosa, e sabia disso.
Quando decidiu ir tentar te buscar, sabia dos riscos. O que teria acontecido se

você tivesse sido realmente vendida a alguém que quisesse te fazer mal? Te
usar? Tirar sua virgindade, como era o plano inicial? E se estivesse agora nas
mãos de Alemão? Seria culpa sua? — falei com paixão, porque não queria
que ela continuasse pensando daquela forma. Celina não merecia.

Porra, ela merecia o melhor. Merecia um homem melhor também,


mas eu me empenharia em cuidar dela, em lhe dar tudo, e esperava que isso
compensasse todo o resto.

Ela foi segurando enquanto podia. Com uma força que nem parecia
possível de existir naquele corpo delicado. Quando levou as mãos ao rosto,
cobrindo-o, e ameaçou despencar no chão de tanta angústia, eu a segurei,
amparando-a nos meus braços e aos poucos fui baixando-a, até que nós dois
estávamos ajoelhados no chão, sem nos importarmos que era terra pura e que
iríamos nos sujar.
Quando ela se acalmou, eu a ajudei a se levantar e a vi caminhar sem
qualquer explicação, o que me fez segui-la. Vi quando parou na estufa, entrou

e foi direto à gaveta, de onde me viu pegando a tesoura da primeira vez.


Aproximou-se dos lírios e me entregou o objeto, como quem pede permissão.

Sem pensar duas vezes, cortei com cuidado um dos mais bonitos dos

que estavam plantados, e entreguei a ela.

Voltamos juntos, de mãos dadas, até o túmulo improvisado de seu


pai, onde ela depositou a flor e ficou alguns minutos em silêncio.

Ao menos já sabia da verdade. Ao menos aquela parte da história


chegara ao seu fim.
CAPÍTULO DEZENOVE

O luto tornou-se presente em minha casa nos dias seguintes. Era uma
situação familiar para mim, mas decidi que Celina merecia seu tempo para
lamentar a morte do pai. Entristecia-me pensar que sua maior dor era por
achar-se culpada de alguma forma. Ela era a vítima naquela história.

Mas eu entendia muito bem de culpa. O suficiente para saber que não
bastava simplesmente dizer: tire isso da sua cabeça. Eu a compreendia.
Queria que soubesse que eu estava ao seu lado e que minha empatia era
infinita.

Apesar do clima melancólico, ficávamos muito tempo juntos.


Marcela gostava de trabalhar mais afastada de mim, o que não acontecia com
Celina. Incentivei-a a escrever seu próprio romance, ao invés de focar apenas

em terminar o de minha falecida esposa, porque sabia que era um de seus


sonhos. Até onde eu sabia, ninguém da editora tinha conhecimento de qual

era o tema do livro inacabado, então, poderíamos apresentar qualquer coisa.

Quando fiz a primeira proposta a Celina sobre isso, jurei que a

deixaria indignada, por ter que dividir os créditos de uma história


completamente sua, mesmo tendo ela escrito cem por cento, mas, pelo
contrário. Foi recebida com muito entusiasmo – ou o máximo que ela
conseguia naqueles dias –, porque ela sabia que era uma porta que se abriria.
Se fosse aprovada, eu conseguiria que escrevesse outros livros e que tivesse
um contrato de prioridade.

Com isso, descobri que tinha muitos enredos em mente. Contar suas
histórias para mim, enquanto estávamos abraçados na cama, para que eu a

ajudasse a escolher qual delas poderia ser a primeira, começou a fazê-la


sentir-se bem ao ponto de ir melhorando a olhos vistos. Parecia mais corada,
com uma expressão um pouco mais alegre, e seus sorrisos retornaram.

Assim que escolheu a história que eu julguei ser a mais apropriada


para apresentar à editora, começou a trabalhar como louca nela. Presenteei-a
com um notebook novo, o que a deixou muito surpresa – porque não poderia
continuar usando o velho de Marcela para sempre –, e levei a mesinha do

escritório do mezanino para a biblioteca, colocando-a ao lado da minha.

Não era raro pegarmos nossos dedos entrelaçados enquanto relíamos


um parágrafo ou enquanto pesquisávamos algo. Volta e meia trocávamos
olhares e alguns beijos em pausas esporádicas, o que transformava nossa

conexão em algo muito raro. Era como se tivéssemos estabelecido um ritmo


completamente nosso, criando um universo onde só nós dois existíamos.

Eu sempre conversava com ela sobre fazermos viagens, explorarmos


outros lugares e sairmos daquela cidade que só nos enchia de péssimas
recordações, mas ela estava em uma fase de querer trabalhar loucamente no
livro, o que eu entendia. O início era assim mesmo, e eu estava morrendo de
orgulho.

Foi quando entendi que a amava.

Ela estava na minha casa há três meses, sendo minha companhia


diária. Nós nos víamos de manhã, de tarde e de noite. Dormíamos juntos.
Comíamos juntos. Conversávamos mais do que eu jamais conversei com
qualquer outra pessoa. E a desejava mais do que já desejei qualquer pessoa.

Só que o que eu pensei que era apenas uma paixão, algo novo e
indefinível que começava a crescer, foi se avolumando dentro do meu peito
até que parecia mal caber. Eu era um recluso, um solitário, alguém que não

lidava bem com sentimentos, mas não havia dúvidas. O que explodia dentro
do meu coração quando eu olhava para ela não era algo simples ou trivial.
Era uma emoção diferente, especial.

Naquele momento, eu estava observando-a dormir. Já era tarde,


passava da meia-noite, e eu quis ficar um pouco mais escrevendo, porque se
tratava de um dia de inspiração. Não que eles fossem raros, mas quando me
empolgava com uma história, principalmente com uma nova, eu era capaz de
virar noites digitando sem parar.

Não era o caso ali, porque eu queria dormir ao lado de Celina.


Mesmo que ela já tivesse ido deitar e que eu não tivesse coragem de acordá-la
para fazermos amor, sabia que acabaria se aconchegando em mim no meio da

noite, o que era sempre um deleite.

Queria tomar um banho antes de efetivamente ir para a cama, mas


meu celular tocou.

Como não reconheci o número, julguei que pudesse ser algum celular
de alguém da editora. Não era incomum que funcionários novos do
marketing, ou da assessoria de imprensa, entrassem em contato comigo,
especialmente durante a produção de um livro. O último que entreguei estava

em processo de revisão, mas os planejamentos estratégicos já começavam a


acontecer. Sem contar que minha agente ficara muito empolgada com a
história e queria começar a oferecê-la para produtoras para que assinássemos
logo um contrato para transformar a obra em um roteiro de filme ou série.

Eu gostava disso. Gostava da ideia de ter os personagens que criei


ganhando vida. Gostava de pensar que mais pessoas, que não gostavam tanto
de ler, teriam acesso à história que criei. Com as plataformas de streaming, as
chances de adaptações aumentaram, e Grace era ótima vendedora.

Quem sabe eu não conseguisse que agenciasse Celina e tivesse o


mesmo empenho com ela. Tudo o que li das coisas que começara a escrever,
do livro que iniciou, estavam me deixando boquiaberto. Dei-lhe algumas

dicas, mas, em sua maioria, minha garota era incrivelmente talentosa por si
só. E eu estava muito ansioso para mostrar o trabalho dela para todo mundo.
Não apenas para a editora, mas para os leitores.

Afastei-me um pouco, entrando na suíte, para atender à ligação.

— Alô? — chamei, hesitante, porque não sabia quem era.


— Ah, atendeu, né, seu filho da puta? — uma voz masculina e
bêbada me atendeu do outro lado da linha.

Eu a conhecia, é claro. Era Alemão.

— Já chega de brincar de casinha com a minha ruivinha. Tá na hora


de você devolvê-la para mim.

Fiquei calado por alguns segundos, tentando absorver o tamanho


daquela audácia. E da loucura. Ele realmente achava que Celina lhe
pertencia? Mesmo depois de eu ter pagado uma fortuna para livrá-la daquele
lugar?

Que mundo era aquele em que homens achavam que poderiam ter
posse sobre outro ser humano? Que nojo de universo permitia que mulheres
fossem escravizadas daquela forma, ao ponto da pobre Mercedes, que eu nem

conhecia, ser torturada, morta e estuprada naquelas condições, sem poder


rever sua família, sem poder ter uma escolha?

— Vá se foder — respondi baixinho, tomando o cuidado de sair do


banheiro e, consequentemente do quarto, para não acordá-la. Fechei a porta
cautelosamente, ficando no corredor, mas me afastando um pouco. — Não
vai colocar as mãos nela. Não adianta mandar seus capangas.
Já fazia algum tempo que ninguém aparecia ali, especialmente porque
tinha contratado uma equipe de segurança para proteger a casa, e eu quase

jurei que estávamos livres. Mas eu deveria ter adivinhado que aquele
desgraçado não desistiria tão fácil. Claro que tinha o fato de que ele a
desejava, mas eu poderia jurar que seu ego ferido contava muito mais naquela
situação.

— Ela é minha — a voz embargada pelo álcool não negava o quanto


ele deveria estar na merda.

Se ele queria iniciar uma discussão sobre a posse de Celina, não seria
comigo. Eu não iria ficar perdendo o meu tempo, enquanto uma mulher linda
me esperava na cama, desejando estar comigo.

— Continue com seus delírios. As surpresas virão. — Desde a morte

de Mercedes, junto a Paulo, continuávamos reunindo provas que envolviam


todas as atividades ilegais do Rosa Escarlate.

A cidade sabia, a polícia sabia, e aquela merda era praticamente


protegida por todos os políticos de Santa Celeste do Sul, das cidades ao redor,
por filhos da puta do país inteiro, porque todos tiravam uma casquinha
daquele lugar. Todos usavam aquelas meninas, e a maioria sabia que elas
eram traficadas, que estavam ali obrigadas.

Porra, a noite do leilão de Celina era a prova disso. Qualquer um que


a visse ali não teria a menor dúvida de que a mulher fora obrigada a estar
naquele palco, que não estava trabalhando com seu corpo por livre e
espontânea vontade.

Só de lembrar... só de pensar que Firmino Pascoal poderia ter


colocado as mãos nela e a maltratado... eu queria explodir aquela merda toda.

— Você já tentou me destruir, seu idiota. No dia do leilão da Celina


eu não te reconheci, mas não foi difícil descobrir. Eu fodi a sua esposinha
morta muitas vezes, e vou foder a ruivinha. Tanto, mas tanto, que ela não vai
sentar por dias.

Senti como se uma mão estivesse me sufocando, mas fiquei calado.

Ele estava me provocando, e eu não poderia cair. Celina estava comigo,


dormindo a apenas uma porta de distância, mas, ainda assim, por que me
sentia tão vulnerável?

Por que tinha a impressão de que ele parecia seguro demais de que
conseguiria chegar a nós?
— Aproveite seu tempo com ela. Será curto.

E desligou.

Novamente... por que será que eu o sentia tão confiante? Quais


seriam seus planos? Demorara tanto para entrar em contato, para fazer novas
ameaças, que eu poderia até acreditar que tinha algo em mente. Algo

arquitetado.

— Senhor... está tudo bem? — Sheila chegou sorrateiramente ao


ponto de me fazer sobressaltar. Virei-me para ela, finalmente tirando o
telefone do ouvido e segurando-o com força na mão.

— Era Alemão. — Ela era a única pessoa em quem eu confiava além


de Celina, a quem eu precisaria alertar, é claro, mas... porra, ela estava
começando a ficar bem novamente, depois do choque da morte de seu pai.

Talvez eu pudesse esperar um pouco...

— Ele quer a menina, não é? — ela perguntou. Assenti. — Como


pode? Pelo dinheiro que você pagou...

— É obcecado por ela. Não vai descansar, e eu...


A porta se abriu, interrompendo minha conversa com Sheila.

— Dorian? — Uma Celina sonolenta, com os cabelos bagunçados,


apareceu no corredor, com a voz quase sussurrada, confusa. — O que está
acontecendo?

Eu deveria dizer a verdade. Sheila chegou a me olhar com uma

sobrancelha erguida, praticamente me desafiando a fazê-lo.

— Nada. Por que não volta a descansar e...

— Não sou idiota, Dorian! — exclamou, indignada. — Ouvi muito


bem o que você disse agora. Falou com Alemão, não foi?

Ok, eu não poderia mentir.

— Tudo bem, entre. Precisamos conversar.

Coloquei a mão em seu braço, conduzindo-a de volta para o quarto e


fechando a porta, lançando um olhar para Sheila, que estava séria demais.
Provavelmente, assim como eu, ela também sabia que os dias pacíficos
naquela casa tinham terminado. Teríamos que começar a viver em alerta ou
tomar uma atitude, antes que fosse tarde.
CAPÍTULO VINTE

A paz era passageira, eu sempre soube disso, mas não pensei que
pudesse durar tão pouco. Nunca duvidei que Alemão viria me procurar, mas
julguei que teria mais algum tempo com Dorian. Sentindo-me protegida e
vivendo um sonho, de escrever, de construir meu livro, de viver em um lugar

onde eu era querida.

Dorian me guiou para dentro do quarto, fechando a porta e nós


ficamos em silêncio por algum tempo. Fiquei olhando para ele, parada, com
os braços cruzados, aguardando.

— Escute, Celina, eu não vou deixar que ele faça nada contra você,
mas acho que precisamos fazer alguma coisa — ele afirmou com convicção,
e eu ergui uma sobrancelha.

— O que, por exemplo?

— Tenho uma casa, em outra cidade, você poderia ficar lá. Ao menos
por um tempo, até que meu detetive consiga provas para destruir o Rosa
Escarlate.

— Isso não faz sentido! — também exclamei, quase indignada. —


Dorian, aquele negócio não vai cair.

— Se não cair, eu vou dar um jeito de foder com Alemão. Vamos


levá-lo para a prisão. Vamos tirá-lo do seu caminho. Só preciso de um pouco
mais de tempo.

— E me afastar de você, acha mesmo que é a saída mais segura?

— Posso enviar um segurança com você para essa casa. Podemos dar
um jeito... Ele não vai te encontrar lá.

Dei as costas para Dorian, esperando que ele não percebesse o quanto
aquela ideia me deixava mal. Não queria me separar dele. Não queria ser
enviada para uma casa distante e isolada, sendo vigiada por um segurança,
como uma fugitiva. Mas o que eu poderia dizer? Estaria sendo imprudente se
insistisse? Se batesse o pé e dissesse que queria ficar?

— Celina, eu não posso te perder...

Eu não esperava uma confissão como aquela. Muito menos como ela
soou.

Havia um desespero em sua voz, um sentimento que eu não esperava.


E foi isso que me fez virar para ele e olhar em seus olhos.

Quando o fiz, ele se aproximou, segurando meus braços.

— Eu amo você.

Meus olhos se arregalaram instantaneamente diante do choque que

me causou aquela afirmação.

Dorian... me amava?

Só que ele não me deixou responder nada, porque passou um braço


ao redor da minha cintura, com ímpeto, puxando-me para si.

— Eu amo você, Lily.


Lily...

Era quase covardia de sua parte usar o apelido que minha mãe me
dera, pelo qual eu não era chamada há tantos anos e do qual sentia tanta falta.
Aquilo me levou às lágrimas quase que instantaneamente.

Ou melhor... as duas coisas levaram. A forma como me chamou e sua

declaração.

Eu podia ver em seus olhos que estava dizendo a verdade. Podia


sentir em seu toque desesperado que seus sentimentos eram reais. Que não
era algo que ele diria da boca para fora. Até porque Dorian não era esse tipo
de homem. Ele não usaria uma frase como aquela para me convencer de
alguma coisa.

Levei as duas mãos ao seu rosto, tomando-o para mim e puxando-o

na minha direção para que nossos lábios se encontrassem. Era uma


insinuação bem clara de que não importava o que tinha acabado de acontecer:
eu o queria. Pela forma como conduzi o beijo, do qual Dorian logo tomou o
controle, era para que compreendesse que não bastaria que me amasse como
se eu fosse uma boneca de porcelana. Eu queria tudo. Queria o homem
selvagem e bruto que sabia que ele poderia ser.
Compreendendo-me mesmo sem que eu precisasse dizer uma única
palavra, Dorian me empurrou para a parede mais próxima, imprensando-me

nela. Agarrou meus dois braços e prendeu meus punhos contra o concreto,
sobre a minha cabeça, com uma de suas mãos, usando a outra para abrir os
botões da frente da blusa do pijama que eu estava usando para dormir. Sem
sutiã, o atrito de seus dedos com meu seio era quase insuportável, no melhor

sentido da palavra.

Ele não poupou nada, porque agarrou um dos bicos, puxando-o e


girando-o, enquanto passeava sua boca pelo meu queixo e maxilar, chegando
à orelha e mordendo o lóbulo enquanto dizia:

— Eu vou amar te foder esta noite, querida. É o que você quer, não
é? — era um sussurro combinado com um ronronar muito másculo, e eu
quase não consegui me firmar em minhas próprias pernas de tanto tesão.

— É, é o que eu quero — foi a resposta que consegui lhe dar, e


mesmo assim, o ar preso em meus pulmões quase não me permitiu ser
audível.

Deixei que me despisse por inteiro, deixando-me completamente nua.


Tirou também sua própria roupa e virou-me de frente para a parede,
deixando-me de costas para si. Seu corpo se avolumou ante o meu,
empurrando-me contra o concreto, e nós ficamos colados, como se fôssemos

um só, permitindo que minha bunda tocasse sua ereção poderosa.

Viajou com ambas as mãos para o centro do meu corpo, encontrando


o clitóris e minha fenda já molhada. Penetrou-me com um dedo e massageou

o ponto inchado e sensível, ambos ao mesmo tempo, combinando


movimentos e sensações.

Gemi com um dos lados do rosto colado à parede e as mãos me


apoiando nela, sentindo meus dedos se fecharem em garras, desejando algo
para me segurar e amassar, para que pudesse tentar manter minha sanidade.

Dorian enfiou outro dedo dentro de mim, estocando com mais força,
fodendo-me com suas mãos, enquanto reivindicava meus lábios, com minha

cabeça virada para trás, por cima do ombro. Era impossível seguir o beijo
com coordenação suficiente enquanto ele me tocava daquele jeito. Tentei me
desvencilhar, não porque não quisesse beijá-lo, mas porque não conseguia,
mas ele agarrou meus cabelos, inclinando minha cabeça para trás, e
mergulhou sua língua ainda mais na minha boca.

Aquela era a sensação de ser possuída de forma mais selvagem, mais


crua, não era? Foi o que eu pedi. E eu gostava.

Quando eu estava prestes a gozar – e Dorian aparentemente sabia


disso, porque sentia meu corpo respondendo à eminência do orgasmo –, ele
tirou o dedo do meu clitóris e continuou somente me penetrando, investindo
com um pouco mais de delicadeza, como se quisesse me manter menos

excitada.

Ouvi alguns sons ao redor, mas estava em um transe muito intenso


para perceber o que estava acontecendo, até que Dorian sussurrou no meu
ouvido:

— Você confia em mim?

Foi entranho pensar que a resposta surgiu no meu coração antes


mesmo de escapar pela boca. Tanto que eu apenas disse que sim, sem hesitar,

sem tentar pensar duas vezes.

Quando me dei conta, ele estava segurando meus dois punhos para
trás das costas, amarrando-os com algo. Um tecido suave, como seda.

— Um joguinho inocente, Lily. Topa?


Abri um sorriso enquanto ele ainda fechava o nó, mantendo-me
imobilizada.

— Não há nada de inocente nisso.

— Prometo que você vai gostar.

— Tenho total certeza.

Então me levou até a cama, fazendo-me sentar bem na beirada.


Ajoelhou-se à minha frente e voltou a me masturbar, rapidamente
encontrando o ponto que quase me levou ao orgasmo muito rápido.

Fechei os olhos, mas rapidamente ele disse, em tom de comando:

— Olhe para mim, Celina.

Não pude não obedecer, e nossos olhos se encontraram. A cada


momento que eu tentava desviá-los ou que o prazer me obrigava a arquear a
cabeça para trás, ele me segurava, fazendo-me contemplar o que estava
fazendo. Tanto que em um momento me incentivou a olhar enquanto seu
dedo entrava e saía de mim.

— Fique olhando. Quero que veja enquanto eu te dou prazer.


Foi erótico. Completamente novo e diferente. Nunca pensei que ver
seu dedo entrar e sair de dentro de mim, molhado com meus sucos, pudesse

me colocar em um frenesi ainda maior.

Mas foi ainda mais intenso quando Dorian trocou sua mão por sua
boca, ordenando que eu continuasse olhando. Ver sua cabeça movimentando-

se no meio das minhas pernas, enquanto sentia tudo o que estava me


causando, entendendo a origem do prazer, mas sem ver efetivamente o que
fazia, porque sua massa de cabelos cacheados castanhos me impedia de ter
uma plena visão, era delicioso.

Não poder tocá-lo, não poder levar minhas mãos a seus ombros para
agarrá-lo como eu gostava de fazer enquanto me chupava daquele jeito, era
uma tortura, mas que só aumentava o nível de prazer.

Eu estava outra vez prestes a gozar, mas Dorian se levantou,


colocando-se diante de mim, enquanto encaixava a camisinha no pau ereto.

— Fique de pé. De costas para mim e de frente para a beirada da


cama — outra ordem com aquela voz poderosa e rouca de luxúria. Quem
seria a mulher capaz de negar qualquer coisa a um homem como ele?

Fiz o que me mandou, e Dorian empurrou meu corpo na direção da


cama, deixando-me com a bunda empinada. Senti um tapinha delicado nela, o
que me fez sorrir, porque nunca pensei que sentiria prazer com aquele tipo de

coisa na cama. Mas, talvez, ele estivesse certo. Com a pessoa correta, tudo se
tornava muito mais gostoso.

Abrindo minhas pernas ao máximo, senti minha boceta sendo

preenchida lentamente, com ele atrás de mim. Era a primeira vez que
usávamos aquela posição, e a cada centímetro de seu pau que ia entrando em
mim, eu já sentia que perderia a cabeça pouco a pouco.

Quando ele estocou com força... eu quase perdi os sentidos, inebriada


por um prazer que nunca pensei sentir.

Foi uma sucessão de gemidos combinados com os grunhidos de


Dorian, porque ele não parecia prestes a parar ou diminuir o ritmo. A cada

investida, parecia querer mais e mais, afundando-se em mim até onde era
possível ir.

Suas mãos agarraram minhas coxas com força, mas não me importei.
Queria que deixasse uma marca em mim, que seus dedos ficassem tatuados
por alguns dias na minha pele branquinha, para que eu sentisse que lhe
pertencia, só que não da forma como poderia ter acontecido, dadas as
circunstâncias da nossa história.

Dorian realmente me reivindicara para si, só que com seu amor, e não
com seu dinheiro.

Foi pensando nisso que cheguei ao clímax, seguida por ele, nossos
sons ecoando pelo quarto, e, em seguida, nossas respirações se moldando

uma à outra, enquanto ele me soltava e me colocava na cama, deitada ao seu


lado, sentindo-me mais completa do que sonhei algum dia me sentir.
CAPÍTULO VINTE E UM

Acordei sobressaltada, com batidas desesperadas na porta do quarto.


Dorian se levantava, ao meu lado, e eu comecei a me cobrir, já sabendo que a
notícia que viria não seria de nosso agrado.

Ouvi uma Sheila desesperada começando a falar:

— Senhor... estão tentando invadir a casa. Os seguranças estão


contendo, mas são muitos, e estão armados — a pobre mulher falava com
uma voz chorosa, e eu tentava entender, embora o sono ainda me mantivesse
um pouco grogue.

— Pegue algumas coisas, Sheila. Vamos para a cabana — Dorian


ordenou, e eu vi a mulher sair do quarto. Em segundos, algo foi jogado para

mim, e eu me dei conta de que se tratava da minha roupa.

Vesti-me apressada, no automático, enquanto Dorian colocava uma


camisa, porque atendeu Sheila só de calça de moletom.

Assim que se viu pronto, ele colocou nossos notebooks dentro de

uma mochila, além de seu celular, e nós saímos de mãos dadas do quarto.

Queria fazer perguntas, tentar entender mais ou menos o que estava


acontecendo, mas não havia espaço. Sheila já estava nos esperando, e eu
comecei a ouvir os barulhos lá fora. Sobressaltei-me com um tiro, mas um
braço protetor de Dorian pesou sobre o meu ombro, puxando-me.

Estávamos caminhando em direção à biblioteca, sem que eu


entendesse o motivo, até perceber que havia uma estante com uma espécie de

passagem.

— Você está brincando comigo! — Não era hora para isso, mas não
pude deixar de comentar. Havia uma passagem secreta na biblioteca?

— Dá em uma garagem subterrânea. Vamos descer. Tenho um carro


lá para emergências. — Ao perceber que eu estava confusa, ele continuou
falando, enquanto me ajudava a descer a escada em caracol. — A passagem

sempre existiu. A casa data da época da segunda guerra mundial.

Provavelmente o dono era alguém um pouco precavido ou paranoico, mas


desde que recebemos a primeira visita indesejada do capanga de Alemão,
deixei as coisas preparadas. Foi ideia de Sheila, aliás.

Ao chegarmos, virei o rosto para a mulher, que ainda estava


apavorada, quase agradecendo-a por ter pensado em algo assim.

Chegamos a uma espécie de porão, e Dorian nos levou até um carro,


onde entramos, todos os três em silêncio. Não estávamos levando nada
conosco além de nossos notebooks. A roupa seria a do corpo, mas isso não
era importante. Eu só queria estar a salvo.

Sabia que se Alemão precisasse machucar alguma daquelas pessoas

para chegar até mim, ele o faria. Dorian, principalmente. Aliás, essa deveria
ser a sua estratégia. Enquanto estivesse vivo, Dorian seria o homem que
pagou uma fortuna por mim; eu seria, na teoria, sua propriedade. Se
morresse, ele poderia me tomar para si.

Deus... era doentio, mas eu poderia jurar que deveria ser isso que
passava por sua cabeça.
Dorian começou a dirigir, subindo uma pequena ladeira e abrindo um
alçapão – ou algo assim –, pelo qual passamos, saindo no terreno onde havia

a lápide do meu pai. Ou seja, fora dos limites da mansão. Outro portão foi
aberto, nos fundos desse lote, e saímos na noite, enquanto o caos reinava
atrás de nós.

Chequei o retrovisor para ver se enxergava alguma coisa, porque era


triste pensar que aqueles seguranças poderiam estar dando suas vidas para
nos proteger. Claro que eles ganhavam para isso, era seu trabalho, mas não
conseguia afastar meu pensamento do quão horrível era, mesmo
indiretamente, ser a causadora de tanto mal.

— Celina, não faça isso — Dorian alertou, parecendo ler meus


pensamentos.

Endireitei-me no banco, colocando o cinto de segurança, e


assentindo. Ele estava certo, aquilo só serviria para me torturar.

Nós estávamos fugindo. E por quanto tempo precisaríamos ficar


ausentes? Por quantos dias, meses, teríamos que nos afastar da casa que eu
aprendi a amar; da rotina que estabelecemos e que era minha alegria diária?

Qualquer um poderia dizer que eu estava sofrendo por pouco, que o


importante era estar viva e razoavelmente segura, com a perspectiva de ir
para um refúgio onde Alemão não me encontraria, mas por que eu precisava

me contentar em aceitar o que o destino me oferecia? Por que eu não poderia


desejar ser realmente feliz, quando finalmente estava encontrando uma
maneira de ser?

Ao menos Dorian estava comigo... Sua ideia inicial era me mandar


para lá sozinha com um segurança; no final das contas ele estava ao meu
lado. Tentaria pensar pelo lado positivo.

— Diga o que está pensando — ele disse em tom de comando,


enquanto observava a estrada à sua frente. Estava escuro, e ela era mal
iluminada, o que me deixava apreensiva.

E se tivessem nos visto sair? Poderiam vir atrás de nós, não

poderiam? Como Dorian iria fazer para defender duas mulheres sozinho
contra pessoas armadas?

Se tentassem machucar um dos dois, eu iria me entregar, sem pensar


duas vezes.

— A casa para onde vamos... é segura? — minha pergunta soou mais


frágil do que desejei, e não era exatamente o objeto do meu pensamento, mas
achei que se comentasse com Dorian que eu tinha planos de me entregar caso
ele estivesse em perigo, isso o deixaria um pouco fora de si.

— Tanto quanto pode ser. Vou ligar para a equipe de segurança,


assim que chegarmos lá, e pedir que mandem alguém.

— E os homens que ficaram na mansão? O que vai acontecer com

eles?

— Provavelmente os próprios já pediram reforços. Espero que


fiquem bem; são treinados para isso. — Mas nem mesmo Dorian tinha
completa certeza. Só que eu precisava pensar no positivo. E pensar em mim,
na minha segurança, e das pessoas ao meu redor.

A segurança do homem que eu amava.

Porque, sim, no momento em que Dorian me confessou seu amor, eu


não tive nenhuma dúvida a respeito dos meus sentimentos por ele; só que as
coisas ficaram tão frenéticas e intensas que não tive a oportunidade de
retribuir. Além disso, ele merecia mais do que um “eu também te amo”,
depois de ter convivido tantos anos com uma mulher que não sentia o mesmo
por ele.
Queria que fosse especial, queria dizer em um momento só nosso,
mas quando isso aconteceria? A partir daquela fuga, quando teríamos nossa

paz de volta?

Seguimos o caminho quase todo calados, e Sheila, no banco de trás,


parecia a mais assustada de nós. E como não seria? A pobre mulher fora

jogada naquela situação sem ter nada a ver com a história.

Foi pouco mais de uma hora e meia de viagem, e eu me perguntava


se aquilo ali seria longe o suficiente para Alemão.

Mas minha resposta não tardou a chegar, porque assim que saltamos
do carro, mal vi de onde veio a ação, mas eu fui agarrada, e minha boca foi
coberta por uma mão enluvada.

— O ratinho veio direto para a armadilha, que delícia! — a voz era

de Alemão, e seu hálito fedia a álcool.

Quando busquei ao redor, para olhar para Dorian, dois homens


grandes o seguravam. Ele lutava, e parecia um animal de tanto que se
esforçava para se soltar, o que fez um dos dois dar uma coronhada em sua
cabeça.
Tentei gritar por trás da mão que me calava, mas Alemão me segurou
com mais força.

— Ele vai ficar bem, preciso da Fera para o show final. Quero que ele
assista enquanto eu te foder, ruivinha. Depois, sim, ele pode ir para a vala.

Não! Meu Deus... Não! O que estava acontecendo...? Como ele nos

encontrara?

No instante em que essa pergunta surgiu na minha cabeça foi que vi


Sheila de pé, ao lado do carro, sem ninguém a segurá-la. Por um instante de
insanidade quase lhe pedi ajuda, mas meus olhos se arregalaram ao constatar
a verdade: ela não estava do nosso lado.

E fazia muito sentido. Ela fora a informante de Alemão sobre o local


para onde estávamos indo. Provavelmente dera todas as dicas para ele, até

mesmo uma cópia da chave, já que tinha acesso a tudo de Dorian, por ser sua
assistente pessoal.

Vi os dois homens começarem a arrastar o corpo inconsciente de


Dorian para dentro da cabana e tentei novamente me desvencilhar de Alemão,
embora não houvesse muitas chances. O que eu faria se conseguisse me
soltar? O máximo seria socar a cara daquela mulher à minha frente.
— Quero o meu dinheiro para sumir daqui — ela falou, com aquele
seu jeito sério, sem nem olhar para mim. Como era possível que não sentisse

um pingo de empatia? Até onde eu sabia, Dorian sempre fora bom para ela.

— Claro. Mas antes, você pode mostrar uma coisa para a nossa
amiguinha aqui? Erga a manga do seu casaco.

Ela se aproximou, um pouco hesitante, sem tirar os olhos de Alemão.


Estendeu a mão na nossa direção, com a manga erguida, e foi então que eu vi
a tatuagem – a marca do Rosa Escarlate. A dela não era no pulso, ficava mais
abaixo um pouco

Mais uma surpresa que quase me tirou o ar.

Só que ao invés de lhe entregar qualquer dinheiro, Alemão fez um


sinal para um dos homens que voltava de dentro da cabana, e ele sacou uma

arma, atirando na mulher, na cabeça.

Ela caiu bem aos nossos pés, enquanto eu gritava por trás da mão
sobre a minha boca, porque a cena era traumatizante.

— Uma traidora não merece compaixão. Se ela traiu o patrão de


anos, por que não trairia a mim. Aprenda, meu amor. É assim que eu lido
com quem faz merda comigo.

Com isso, fui literalmente arrastada para dentro da cabana, e Alemão


fechou a porta, enquanto abafava meus gritos, por mais que eu pudesse
apostar que ninguém iria nos ajudar naquele fim de mundo, àquela hora.

Estávamos por nossa conta.


CAPÍTULO VINTE E DOIS

Gasolina.

O cheiro era de gasolina.

Fui despertando aos poucos, retornando à consciência, sentindo a

cabeça doer, bem na nuca. Não demorei também a perceber que meus punhos
estavam amarrados para trás de uma cadeira.

Então as memórias foram voltando aos poucos. Acordar com batidas


na porta do meu quarto, o desespero para sair de casa, a viagem de carro, a
surpresa na porta da cabana. A escuridão...
Meus olhos foram abrindo bem devagar, ajustando-se à claridade,
enquanto eu tentava ficar desperto. A primeira coisa que eu vi foi Celina

deitada sobre uma cama, apagada, com um vestido branco muito parecido
com o que a vi usar no maldito leilão do qual a tirei.

Por alguns momentos tentei ser silencioso, olhando ao redor para

verificar quem estava ali, qual era a situação e o que eu poderia fazer para nos
livrar dali. Com algum esforço, eu sabia que conseguiria me soltar, mas
precisava ganhar algum tempo.

Eu não estava gostando nada da ideia de sentir aquele cheiro.


Deixava-me no limite, como se qualquer coisa pudesse acontecer a qualquer
momento.

Fosse como fosse, eu não podia perder tempo, então logo comecei a

tentar me libertar.

Não fiquei sem companhia por muito tempo. Claro que Alemão
estava entre nós e não demorou a aparecer.

Segurava um lírio na mão e aproximou-se da cama bem lentamente,


como se estivesse vivendo uma cena de um filme em câmera lenta.
Divertindo-se muito, aliás.
Olhando para mim de soslaio, ele se colocou ao lado dela na cama,
deitando-se, passando a flor por seu corpo novamente em uma imitação

ridícula de algo completamente brega. Celina mal se mexia. Sua cabeça


estava tombada para o lado, uma das mãos sobre a barriga plana, a outra
pendendo da cama. Observá-la me deixava ainda mais nervoso e desesperado
para conseguir me soltar, porque o filho da puta ia tocá-la, e ela não poderia

nem se defender.

Além do cheiro de gasolina, que não saía da minha cabeça, porque


não era uma coincidência.

Aquele filho da puta tinha planos, e tudo o que eu queria era


conseguir me soltar e lhe dar umas porradas antes que colocasse fogo no
lugar inteiro.

— Me conta, VanCanto... ela é ruivinha lá embaixo também? Acho


que é a pergunta que todo homem faz, né? Você gostou do que viu?

— Vá se foder — falei por entre dentes, com uma raiva que fazia
meu corpo queimar. Sem contar os meus punhos. Não me importava se os
esfolasse por inteiro, mas eu ia conseguir me soltar. Era minha meta de vida
naquele momento.
— Não vou precisar. Eu vou foder a princesinha aqui. Tão duro... —
Ele suspirou, continuando a passar a flor em Celina. Era nojento. Eu queria

matá-lo. — E quero que você assista tudo, VanCanto. Quero ver a sua cara
quando eu estiver gozando dentro dela. Talvez até fazendo um filho. Seria
uma linda criança, não seria?

Nunca tive dúvidas de que o cara era um maníaco. Um sádico. Mas


ele ia estuprar a minha mulher na minha frente. Ele queria que eu assistisse,
completamente impotente e incapaz de defendê-la.

Só que eu não ia permitir. Estava concentrado o suficiente para sair


daquela merda de situação. Eu era uma porra de um escritor e já tinha escrito
cenas similares. Já tinha feito pesquisas suficientes para saber a melhor forma
de soltar meus punhos. Não poderia permitir que Alemão percebesse, é claro,
mas de resto, com cautela, eu poderia resolver ao menos essa parte do

problema.

Para isso, eu precisava mantê-lo falando, antes que acabasse sendo


tarde demais e ele fizesse algo com Celina.

— Deve ser muito deprimente precisar pegar uma mulher estando ela
inconsciente, não é? Ou precisar manter um homem amarrado para que ele
não te dê umas belas porradas... — arrisquei, em tom provocador. Eu não
conhecia Alemão muito bem, mas sabia que ele tinha um ego grande. Sabia

que toda aquela perseguição a Celina era mais fruto de uma obsessão, porque
ele a queria e não podia tê-la do que desejo em si.

Com certeza ele a desejava, da forma mais doentia possível, mas

havia mais coisas naquela relação. A posse, principalmente. Ele pensou que
ela seria seu brinquedinho para usar quando bem entendesse, como fazia com
as outras mulheres, e eu estraguei seus planos.

Fiquei com medo de que isso o deixasse mais nervoso e partisse para
cima de Celina, mas levantou-se da cama e começou a se aproximar de mim.
Ótimo, eu estava quase conseguindo me soltar.

O soco veio e atingiu em cheio o meu maxilar. Não seria forte o

suficiente para me derrubar, se eu estivesse em pé, mas me impediu um


pouco de continuar minha saga na tentativa de me soltar, porque me deixou
um pouco desnorteado. Mas não durou muito, e eu apenas fingi que tinha me
causado mais estragos, porque queria tirar seu foco dos movimentos dos
meus braços.

— Foi bom pra você, filho da puta? Acha que mexe com a minha
consciência, falando uma merda dessas? Estou pouco me lixando para a
moral e os bons costumes. Posso te encher de porrada enquanto estiver aí

preso, e eu só vou sentir o prazer de ouvir teus ossos contra os meus. — Ele
deu uma risada nada agradável e coçou o nariz, o que me fez acreditar que
estava chapado. Então olhou para Celina e lambeu os lábios, como se ela
fosse uma sobremesa deliciosa. Isso revirou minhas entranhas. — E sobre

ela...? Fala sério... Eu comeria a ex-virgenzinha de qualquer jeito. Quero só


que você assista, depois vamos sumir no mundo. Foda-se o Rosa Escarlate.
Eu tenho quinhentos mil no meu bolso para escapar dessa cidade de merda e
começar em outro lugar. Só quero ela.

Então o desgraçado tinha se aproveitado do meu dinheiro para


planejar tudo aquilo?

— O que o nosso querido prefeito falou quando perdeu uma das

meninas e nenhum dinheiro foi visto? — tentei manter a conversa


funcionando, porque eu estava quase chegando lá. Quase conseguindo me
soltar.

— E você acha que ele tem controle sobre tudo? Acha que contei a
ele sobre ela? — Apontou para Celina. — Ela era minha preciosidade. Só que
eu precisava de uma desculpa para pegá-la. O pai dela ficou nos devendo,
então foi perfeito. Não me importaria em me aproveitar dos restos de outro,

porque ela seria minha no final das contas. Ela não seria propriedade do Rosa

Escarlate.

Fingi dar atenção a ele, mas estava esperançoso por conseguir me


livrar das cordas. Ele continuou falando, vomitando suas obscenidades, e eu

esperei o momento certo. Assim que o filho da puta virou-se de costas para
mim, pulei sobre ele, agarrando-o e girando-o na minha direção, acertando
um primeiro soco.

Alemão ficou completamente desnorteado, tanto pelo golpe, mas


provavelmente também por não estar esperando aquela reviravolta. O que
funcionou muito ao meu favor.

O chão estava escorregadio, mas parti novamente para cima dele,

acertando-lhe mais um soco, o que iniciou uma sucessão de vários outros,


que eu nem consegui e nem quis contar. Tudo o que queria era ver sua cara
começando a ficar toda fodida, cheia de sangue, enquanto eu pensava em
tudo o que ele poderia ter feito com Celina.

Ouvi quando gritou e outro homem entrou, armado. Claro que ele não
estaria sozinho. Era covarde o suficiente para não se garantir daquela forma,
mesmo contra um cara amarrado.

Não me importei. Estava alucinado. Para mim, aquilo ali era vida ou
morte – a defesa da mulher que eu amava; para ele? Apenas mais um
trabalho. Ele provavelmente nem sabia por que estava me ameaçando. Eu era
um alvo sem história. Nossas motivações eram diferentes, o que, novamente,

me deu alguma vantagem.

Peguei a cadeira onde estava sentado, e minha reação foi tão louca,
tão inconsequente, de voar no capanga com ela, que ele nem se mexeu. Usei-
a contra seu punho, tão rapidamente, que este largou o revólver, fazendo-o
cair no chão. Ergui uma das pernas para chutá-lo contra a parede e aproveitei
o tempo para agachar-me e me armar com a arma que ele derrubou.

Só que no momento em que girei o corpo na direção de Alemão, ele

estava riscando fósforos e apagando-os com um sopro, só para provocar.

— Tem gasolina na cama também, VanCanto. Se quiser que o


corpinho delicioso da sua ex-virgenzinha pegue fogo por inteiro, é só atirar.
Eu morro, mas ela vai junto e de uma forma bem dolorosa.

Merda! Merda!
Claro que o local estava cheio de gasolina, e por que ele não
umedeceria também a cama? Por que não garantiria essa vantagem para si?

Eu sabia que ele tinha Celina como um objeto de posse e que tinha alguma
predileção por ela, mas isso não queria dizer que não seria capaz de chegar a
extremos para salvar sua pele. Ele era egocêntrico a esse ponto, sem dúvidas.

Ouvi o som do capanga de Alemão sair em disparada, deixando-nos


ali, naquele dilema. Passou a ser eu contra aquele filho da puta. Eu tinha um
revólver na mão, e ele, a vida da mulher que eu amava.

Eu tinha pavor de fogo. Ele tirara duas pessoas importantes da minha


vida e protagonizara um dos momentos mais terríveis que estava presente em
minha memória. Ainda assim, eu tinha que fazer uma escolha. Tinha que
pensar rápido... era uma questão de sobrevivência.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Eu não conseguia tirar os olhos do fogo. A pequena chama do fósforo


reluzia como se não houvesse mais nada no quarto. Meus olhos eram atraídos
para ela como uma mariposa, e eu a observava tremular como se a qualquer
momento tudo realmente fosse pelos ares.

Engoli em seco, tentando colocar minha mente para funcionar. Não


era possível que eu não conseguisse pensar em nada. Eu criava enredos
mirabolantes para os meus livros e não conseguia encontrar uma saída para
aquela situação? Como era possível?

Se eu atirasse...
Porra, por mais que eu não fosse um expert em armas, já tinha
praticado tiro, novamente para estar seguro na construção de um livro. Talvez

essa fosse a magia de ser escritor, você sabia um pouco de cada coisa apenas
pelas pesquisas que fazia. E a minha pontaria era muito boa.

Ainda assim...

Qualquer movimento em falso, aquela merda de fósforo cairia sobre


Celina. Eu não seria rápido o suficiente para tirá-la daquela cama sem que se
ferisse, talvez até gravemente. Sentiria como se fosse mais uma pessoa a
quem eu não conseguiria salvar, que morreria sob minha responsabilidade.

Mais uma pessoa a quem eu amava que morreria nos meus braços –
literal ou figurativamente.

— Está com medinho, VanCanto? Podemos voltar ao ponto

anterior... Você se senta naquela merda de cadeira, me entrega essa arma e


observa como se fode uma mulher de verdade. Talvez eu possa até te ensinar
algumas coisas e te deixe sair daqui para praticar. Com outra, é claro. Essa
aqui é minha.

Enquanto ele falava, até ouvi suas palavras, mas não conseguia
absorvê-las. Minha atenção estava totalmente focada nas minhas próximas
ações; no que eu precisava fazer.

Foi então que o fósforo apagou. E Alemão acendeu outro.

Mentalmente e de forma inconsciente, contei os segundos que ele


demorou para isso. Onze.

Eu tinha onze segundos para agir.

Claro que muitas coisas poderiam acontecer. Ele poderia se enrolar


para acender o próximo fósforo ou ser mais rápido. Tudo dependeria de
probabilidades.

Eu poderia esperar também. Em algum momento ele cansaria, sem


dúvidas. Ou aquela caixa acabaria, e ele teria que pegar outra, o que
demoraria mais tempo e me daria oportunidades maiores de atingi-lo. Só que

era contar muito com a sorte. E se algum fósforo escorregasse e caísse? Ou se


ficássemos ali por tanto tempo que seu capanga voltaria com outra arma?
Muitas coisas se passavam pela minha cabeça, então eu precisava fazer algo.

Mesmo que fosse arriscado.

Então eu esperei.
Alemão continuou sua provocação, supondo que eu perderia a
cabeça. Que acabaria desistindo ou me entregando, ou talvez ele não

imaginasse que meu sentimento por Celina fosse tão forte. Provavelmente
julgava que fosse apenas tesão, porque era o máximo que ele conseguia
sentir.

Quando o segundo fósforo apagou, foi a minha chance.

O joelho foi meu alvo. Era um tiro doloroso, e aquele filho da puta
merecia toda a dor que eu pudesse lhe causar. Eu sabia que tentar na cabeça
seria arriscado. Era um ponto muito específico. Tinha mais chances de errar,
assustando-o e fazendo-o causar um acidente. Para baixo, eu tinha mais
espaço. Se acertasse uma coxa ou um quadril, seria uma ideia menos segura,
mas o desequilibraria antes que conseguisse acender o próximo fósforo.

Então eu não hesitei. E acertei em cheio.

O grito irrompeu por toda a cabana, de tal forma que qualquer um


que estivesse ao redor juraria que era um animal abatido. Um animal
selvagem.

— SEU FILHO DA PUTA! — gritou, ou urrou, eu não saberia dizer.


— Porra! Porra! Ahhhh! — continuou berrando, e eu apenas olhei para ele.
Fiquei observando enquanto se contorcia.

Sentia-me um sádico ao ver uma pessoa se esvaindo em sangue e


sentindo mais dor do que seria possível suportar, mas sem um pingo de
compaixão. Não era difícil, na verdade, quando se pensava o que aquele
homem era fora responsável por fazer. Não apenas o que ele pretendia com

Celina e o que fizera com Marcela, mas eu pensava em todas as garotas a


quem fizera mal, que afastara de seus pais, que prendera e estuprara. Pensei
na pobre Mercedes, que nem conheci, mas que não tivera nenhuma sorte e
que morrera tão jovem.

Não havia perdão para um homem como aquele.

Alemão continuava se contorcendo, chegando a girar o corpo,


ficando de costas para mim. Foi quando eu comecei a me aproximar, pronto

para atirar a queima roupa e acabar com aquilo. Tirar a vida de alguém não
era algo que me agradasse. Eu não era um monstro, não era um assassino.
Chamavam-me de Fera, mas o verdadeiro demônio estava ali, abatido, no
chão.

Só que em questão de segundos, dois passos que eu dei, um lastro de


fogo se formou no chão. Bem à minha frente, separando-me da cama onde
Celina estava deitada.

— Nos vemos no inferno, VanCanto... — Alemão falou em um tom


ofegante, pela dor, e eu vi as labaredas de fogo começarem a consumi-lo. No
momento em que caiu no chão, ele também se sujou com a gasolina, e os
sons eram terríveis.

O fogo era terrível.

As lembranças eram terríveis.

Por um milésimo de segundo, eu paralisei. Tudo era muito familiar,


muito assustador. Eu era apenas humano; um homem com traumas como
qualquer outro. Minhas memórias estavam recheadas de momentos horríveis,
e aquele pequeno instante poderia custar muito. Só que eu não conseguia me
mover.

O chão ao redor da cama de Celina estava cercado, e eu só tomei um


impulso, depois de um alerta do meu coração acelerado, quando percebi que
era uma questão de poucos centímetros para a ponta solta do lençol ser
consumida.

Arrastei meus medos para outro canto da minha mente, tentando


focar que eu poderia sofrer depois. Que os gritos de Alemão, que ainda eram

audíveis, me perseguiriam por muito tempo, mas que nada disso importava.

O que eu tinha que fazer era tirar Celina dali.

Corri para a cama, sem soltar o revólver, e enquanto fazia isso, pensei
em dar um tiro de misericórdia no homem que agonizava. Só que,

novamente, ele não merecia isso. Não depois de ter feito mal a tantas pessoas.

Com cuidado, enrolei Celina na coberta sob seu corpo, tirando-a da


cama e começando a me dirigir para a saída da cabana. Era, por sorte, uma
propriedade pequena, e tudo tinha acontecido rápido o suficiente para nosso
caminho ainda estar desobstruído. Tive que chutar a porta de madeira com
força, para arrombá-la, uma, duas vezes, mas conseguimos sair.

Respirei o ar puro da noite, apertando Celina contra o meu peito com

força. Fiquei alguns minutos parado, afastado da casa, agachado no chão,


com Celina apoiada em uma das minhas pernas, apenas tentando me
recompor.

Ainda estava ofegante quando ela se remexeu nos meus braços.

— Dorian? — sussurrou baixinho, e eu me afastei para olhá-la.


— Ei, amor... você está bem? — tentei soar o máximo calmo, embora
estivesse apavorado. O alívio de vê-la desperta, sem dúvidas, deixou-me um

pouco menos apreensivo, mas não fazia desaparecer todo o resto.

Eu ainda podia ouvir os gritos de Alemão, mas não sabia se eram


reais ou coisa da minha cabeça.

— Acho que sim. O que aconteceu?

Era hora de tirá-la dali. Sua voz, seus olhos me fitando, débeis, mas
vivos, me deram forças. Levantei-me, ajeitando-a no meu colo, começando a
caminhar novamente.

— Vamos para casa, querida. No caminho eu te explico.

Virei as costas para casa, mas vi que Celina olhou para ela por cima

do meu ombro.

— Fogo? Estávamos lá dentro e...? — Então ela olhou nos meus


olhos cheia de compaixão. — Sinto muito, Dorian. Você ter que enfrentar
isso de novo e...

Ergui um pouco o braço que sustentava suas costas, encostando


nossas bocas, no momento em que cheguei ao carro, que ainda estava parado
no mesmo lugar onde fomos abordados. Precisava daquele beijo para me

sentir vivo. Para sentir que estávamos bem e a salvo.

— Vamos para casa — repeti, colocando-a no chão para abrir a porta,


que não estava travada, por sorte. Eu tinha uma cópia da chave no porta-

luvas, que serviria para nos tirar dali.

Era só o que eu precisava.

Mais uma vez: estávamos bem, era o que importava.


CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Quando chegamos em casa, o sol já começava a nascer no horizonte.


Parecia uma bola de fogo em meio ao céu que ainda guardava tons de
púrpura da noite, e eu me sentia mais cansada do que se tivesse lutado uma
guerra inteira.

Bem, na verdade, eu tinha. Claro que o que eu vi não se comparava


ao que Dorian deveria ter visto, mas, apesar de calado, ele parecia uma rocha
ao meu lado, dirigindo com consciência, mesmo pela estrada sinuosa, com a
intenção de nos levar em segurança para casa.

Eu sentia cheiro de gasolina em mim, mas não sabia de onde vinha.


Talvez de alguma parte daquele vestido branco que me deixava cheia de

repulsa, ou talvez dos dedos, dos pés... Não sabia e não queria checar. Talvez
eu pudesse me considerar uma sortuda, porque estive inconsciente durante
todo o processo, mas os olhos vidrados de Dorian me diziam que muita coisa

ficou por um triz.

Dorian saltou do carro e falou com o chefe de segurança. Pelo que


ouvi da conversa, a invasão fora apenas uma distração. Ninguém se
machucou, e a casa estava em ordem. Tratavam-se apenas de baderneiros,
provavelmente já instruídos por Alemão, para causar um tumulto a fim de
que Sheila nos guiasse a fazer o que ele queria que fizéssemos.

Os guardas revistaram a casa e afirmaram estar tudo em ordem, o que


me deixou aliviada.

Dorian voltou para o carro, seguiu e estacionou na garagem, abrindo


a porta e me tirando de dentro do carro no colo.

— Estou bem. Posso andar.

Só que não recebi nenhuma resposta. Ele estava sério, calado, sisudo,
e marchou pela casa, passando para os fundos por um caminho lateral,
levando-me para a estufa.
Também permaneci calada, dando-lhe tempo, apenas com medo de
que sua raiva tivesse alguma direção a mim. De uma forma ou de outra, eu

era a culpada.

— Desculpa — falei baixinho, sem nem perceber que a palavra saiu


de forma inconsciente.

Ele simplesmente parou de andar, franzindo o cenho ao olhar para


mim.

— Você não tem culpa de nada — ele afirmou com tanta convicção
que eu cheguei a estremecer em seus braços. Dorian estava puto. Então eu o
deixei seguir seu caminho, em silêncio, aceitando o que pretendia fazer.

Entramos na estufa e fomos lá para os fundos, o que eu já


considerava nosso cantinho, e ele me depositou no chão, sentada, com muito

cuidado. Acomodou-se ao meu lado, ainda calado.

Daquela vez eu não disse nada. O cheiro das flores me acalmou um


pouco e quase suprimiu o da gasolina, que eu sentia impregnado em mim.
Queria tirar aquela roupa, tomar um banho e me livrar daquilo, mas Dorian
parecia precisar de um momento.
— Precisamos encontrar Sheila. Não sei o que aconteceu com ela —
ele falou, preocupado, olhando para frente, para algum ponto aleatório.

Então ele ainda não sabia... Que ótimo! Teria que ser eu a dar a
notícia. Não era algo que me agradasse, e eu nem saberia como fazê-lo, mas...
ok.

— Dorian, ela nos traiu. Foi ela que contou sobre nossa localização,
sobre a cabana. Não sei o que mais compartilhou com Alemão. — Isso
pareceu chocá-lo, e ele olhou para mim com os olhos arregalados. — Além
disso... — hesitei, sabendo que seria mais uma notícia que o deixaria
surpreso, e de uma forma nada positiva. — Ela tinha a tatuagem do Rosa
Escarlate.

— O quê? — Bem, ele aparentemente não sabia.

— Não era no pulso. Era no braço. Talvez por isso você nunca tenha
visto.

— Sim, ela sempre usava casacos, blazers... Comentei uma vez que
ela não precisava ser tão formal, especialmente no calor, mas não adiantava.
Aí estava a explicação.
Assenti, e nós dois perdemos algum tempo um pouco pensativos.

— Ela deve ter sofrido muito, Dorian. Não a julgue — falei baixinho.
Talvez fosse pedir demais para ele, que perdoasse uma pessoa que o traiu
daquela forma, que fez o que fez, mas eu sabia que seu coração era grande.
Tão grande ao ponto de salvar uma garota que ele não conhecia só por

lealdade a um funcionário que se tornou um amigo.

— Eu a considerava como da minha família. — Ele não tinha muitas


pessoas próximas. Ser traído por uma, deveria ser devastador.

— Entendo.

— Mas creio que um dia vou perdoá-la. Agora só estou com raiva.
Preciso me acalmar.

Eu podia sentir todo o seu corpo tenso ao lado do meu. Estávamos


mais afastados do que eu gostaria, então algo me surgiu em mente. Um
pensamento assustador, que eu não queria externar, mas que sabia que nem
toda a minha força de vontade seria suficiente para me manter calada.

— Agora que Alemão está fora da minha vida, você não precisa me
manter sob suas asas, não é? — tentei soar casual, sem toda a carga
emocional e o medo que a ideia de perdê-lo me proporcionava, mas foi quase

impossível.

Dorian voltou o rosto na direção do meu, parecendo completamente


surpreso com minha afirmação.

— Por quê? Você quer ir embora? Quer... — Quase sorri ao vê-lo tão

desnorteado com a ideia de eu deixá-lo.

Com ternura, levei uma das mãos ao seu rosto, tocando-o


delicadamente.

— Não, eu não quero. Mas você poderia estar cansado de bancar o


protetor de uma garota sem graça — brinquei. — Não é sua obrigação.

Dorian agarrou a minha mão, e todos os sentimentos que nos

rondavam vieram à tona com aquele pequeno gesto, que, para mim, era tão
grandioso.

— Eu disse que te amo, Celina. Não falo esse tipo de coisa da boca
para fora.

Respirei fundo, sabendo que, talvez, eu estivesse realmente fazendo


um pouco de drama, mas era difícil evitar. Depois das coisas que tinham
acontecido, não apenas naquela noite, mas em um geral... Alemão estava

finalmente fora do meu caminho, e era quase difícil de acreditar depois de


tanto tempo. Eu sabia que ainda poderia estar em perigo, porque não sabia o
que aconteceria em relação ao Rosa Escarlate, mas sentia-me mais confiante.
Ainda assim, queria que as coisas não mudassem entre mim e Dorian. Queria

mais, até.

— Eu também te amo — falei baixinho, ainda olhando em seus


olhos, esperando que ele ouvisse e visse a verdade em cada uma das minhas
expressões. — Você me salvou de muitas formas.

— E você salvou a mim. — Ele beijou a mão que ainda segurava. —


Você trouxe luz à minha escuridão. — Inclinou-se para encostar a testa na
minha, e nós trocamos um beijo rápido, apenas um toque de bocas, selando o

momento. — Minha Lily... — Dorian sussurrou, e o apelido tocou fundo no


meu coração.

O beijo que veio em seguida foi bem mais intenso que o anterior, e
nós nos entregamos a ele como se fosse nossa redenção. E talvez realmente
fosse.
Já era de manhã quando caminhamos até a casa, de mãos dadas.
Dorian e eu tomamos banho, cada um em seu quarto, e eu combinei que iria

para a cama, com ele, para descansarmos, assim que terminasse o banho, mas
acabei dando uma passada na biblioteca para pegar um livro, porque eu tinha
certeza que não conseguiria dormir tão facilmente, apesar de exausta.

De acordo com Dorian, teríamos alguns dias difíceis, porque


precisaríamos fazer boletim de ocorrência e contar tudo o que acontecera. A
cabana estava em seu nome, e precisaríamos explicar o incêndio. O corpo de
Sheila desaparecera, e algo precisaria ser feito a respeito disso também. Fora
a questão da invasão à mansão e do quanto de testemunhas tínhamos.
Tentaríamos ligar tudo ao Rosa Escarlate, embora acreditássemos que nem
assim as coisas ficariam tão fáceis.

Seria um período conturbado, mas o pior já tinha passado; ao menos

era o que pensávamos e esperávamos.

Cheguei à biblioteca, esperando passar alguns minutos ali,


observando as lombadas e me demorando na escolha, só para estar entre os
livros, já que eles tanto me acalmavam. Eu queria algo divertido e leve, nada
que me remetesse a momentos de tensão.
Só que antes que eu pudesse começar a minha busca efetivamente, vi
que na mesa de Dorian, que deveria estar vazia, havia um envelope bem ao

centro.

Quando o peguei, vi, numa caligrafia bonita, os nomes: Dorian e


Celina. Ou seja, era uma carta para nós dois. Não demorei a suspeitar que se

tratava de algo de Sheila.

Sem nem pegar o livro que eu queria, saí apressada e subi as escadas,
chegando ao quarto de Dorian. Ele estava usando apenas uma calça, sem
camisa, secando os cabelos longos, e eu precisei conter a resposta do meu
corpo a ele. Não era o momento para isso, é claro, mas era completamente
inconsciente. Era um homem lindo em todos os sentidos, e eu era uma mulher
de sorte por tê-lo, por amá-lo e ser amada.

— O que houve? — Atencioso, percebeu minha expressão.


Aproximei-me e lhe estendi a carta. — É a letra de Sheila. — Exatamente
como eu imaginava.

Em um movimento silencioso e quase ensaiado, nós dois nos


sentamos na cama, lado a lado, e Dorian abriu o envelope. Não se tratava de
uma mensagem muito grande, mas não demoramos a entender que se tratava
de um pedido de desculpas.

Deixei a carta endereçada aos dois, porque, por mais que tenha sido
por pouco tempo, Celina fez parte da minha vida e merece uma explicação.

Eu me tornei uma traidora, e isso me envergonha. Nunca tive a


intenção de ser desleal a nenhum de vocês, muito menos a Dorian, que foi
mais do que apenas um patrão para mim e se tornou um amigo – se me
permite chamá-lo assim. Só que eu nunca deixei de pertencer ao Rosa
Escarlate. Ele me deixou sair para trabalhar, porque já estava velha para
servir como prostituta, mas sempre manteve um olho em mim. Era possessivo
com as mulheres. Principalmente as que ele achava que lhe pertenciam. Eu
pertencia. Ninguém pagou por mim para que minha dívida fosse sanada. E

isso não é um comentário amargurado. Tanto Marcela quanto Celina


tiveram sorte de que um homem as amasse de verdade e as salvasse.

Tentei passar o máximo de informações distorcidas para Alemão e


não contar tudo o que eu sabia. Nunca falei para ele sobre o que Celina
estava fazendo aqui, sobre o livro e qual era a relação de vocês. Isso não me
redime, mas eu só queria que soubessem.
Estou neste momento no meu quarto, escrevendo esta carta com
pressa, porque sei que em pouco tempo ele mandará alguns homens para

cá... Eu vou novamente traí-los, mas espero que as coisas terminem da


melhor forma e que vocês consigam ler esta carta. Se esta mensagem chegar
ao seu destino corretamente é porque aconteceu o milagre que eu tanto pedi
e os dois se salvaram.

Queria poder alertar à polícia, mas sei que de nada adiantaria.


Alemão os têm como marionetes. Queria poder fazer qualquer outra coisa,
mas não tenho tempo, e sei que viria atrás de mim caso desconfiasse. Tenho
medo. Ele jurou que vai me dar o dinheiro suficiente para eu ser libertada do
Rosa Escarlate para sempre. Com a quantia que vou receber, poderei sumir,
finalmente. Tenho dinheiro guardado para me manter por algum tempo e
conseguirei outro emprego.

Preciso que compreendam e me perdoem. O que fiz irá me


acompanhar para toda a vida, mas nunca foi uma escolha para mim.

Que vocês possam ser felizes, de alguma forma. E eu também.

Sheila.

Eu não saberia dizer por Dorian, embora conseguisse ler o suficiente


de suas expressões para entender que estava tocado. Meu coração, por sua
vez, estava em frangalhos. Desde o momento em que vi a marca do Rosa

Escarlate no braço de Sheila não duvidei que ela havia passado por um
inferno naquele lugar e que tudo o que fizera, por mais condenável que
pudesse ser, tinha uma explicação. Não fora cem por cento sua culpa. Por
mais que tivéssemos nossas escolhas e que ela pudesse ter pedido ajuda a

Dorian, nem sempre as coisas são tão simples. Na teoria tudo é menos
complicado; na prática... só quem vive sabe.

Coloquei a mão no ombro dele, que simplesmente dobrou a carta


novamente, guardando-a e colocando-a sobre a mesa de cabeceira.
Abraçando-me, puxou-me para nos deitarmos e apertou-me com força contra
seu corpo, suspirando cansado contra o meu pescoço.

Nós dois precisávamos descansar. Precisávamos daqueles momentos

de paz para minimizar o que aquelas últimas horas nos causaram.

Dali para frente – eu esperava – poderíamos seguir nossas vidas


como elas deveriam ser.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

UM ANO DEPOIS

Eu estava presente no dia em que o Rosa Escarlate veio a baixo. Fiz


questão de estar presente e testemunhar com meus próprios olhos todos os
envolvidos sendo presos, depois que Paulo conseguiu reunir evidências

suficientes para provar que o local era financiado e frequentado por gente
muito grande da cidade e arredores. O paspalho do prefeito de nossa cidade,
Joelson Muniz, foi tirado de sua casa pela polícia federal, em um ato que
gerou uma comoção em todas as pessoas de Santa Celeste do Sul. Foi notícia
por meses. O vice que assumiu alegou não ter conhecimento de nada e ainda
estava sendo investigado. Aparentemente nada fora encontrado, esperava que
continuasse assim.

Como uma afronta, eu comprei o prédio do Rosa Escarlate. Ainda


não havia decidido o que faria com ele, mas estava fechado por tempo
indeterminado. Celina não teve coragem de colocar os pés lá novamente, e eu
a compreendia. O que eu não queria era que alguma pessoa com péssimas

intenções o adquirisse e criasse um estabelecimento parecido, que começaria


como algo inofensivo e terminaria como um antro de maldade e crimes.
Queria garantir, ao máximo, a segurança da cidade.

As meninas que ainda estavam lá puderam voltar para seus países, e


eu garanti que o fizessem em segurança. Paguei suas passagens, e Paulo me
ajudou em todos os momentos com os contatos com suas famílias.
Certifiquei-me de que meu detetive cuidaria de tudo e garantiria que elas
chegassem sãs e salvas. Eram quase vinte mulheres, de idades entre dezoito e

trinta e dois anos. Algumas ainda não tinham sido “vendidas”, outras
trabalhavam para aquele lugar há mais de uma década.

Isso ficou na minha cabeça, porque eu sabia que algumas delas


precisariam de ajuda. E quantas outras mulheres viviam pesadelos parecidos?

Talvez eu pudesse fazer alguma coisa, mas, naquele momento, eu


tinha algo para pensar.

Fazia uns bons anos que eu não colocava um terno, e a ocasião nem
me obrigava a usar um, mas achei que ela merecia.

Para ser sincero, merecia muito mais, mas eu até que estava bem
razoável todo embecado.

Prendi o cabelo em um coque, aparei a barba e a roupa estava


impecável. Só que quando desci para encontrá-la, na casa que alugamos em
Los Angeles, quase perdi o ar. Eu poderia até estar apresentável, mas
Celina... Porra, ela era de tirar o fôlego.

E o mais incrível era que, apesar de saber que era bonita, ela não
tinha a menor noção da reação que causava nas pessoas. As positivas, é claro.
Ela não fazia ideia do quanto sua beleza poderia ser contemplada também de

maneiras inocentes, com pura admiração.

Com amor... porque eu a amava. Mais do que poderia explicar.

Como disse a ela quando me confessou seu amor pela primeira vez,
ela fora a luz que destruíra a escuridão, não apenas a que me rondava, mas a
que vivia dentro de mim. Aquela menina perfeita, tão jovem, que surgira na
minha vida de forma tão inesperada, mas que me ganhara por inteiro e me

deixara fascinado em tão pouco tempo.

Eu estava explodindo de orgulho por ela, sem dúvidas. Era talentosa,


dedicada, trabalhadora e muito inteligente, com uma noção de como queria
que as coisas fossem feitas que nem eu mesmo tive no início da carreira. Ela

acompanhava autoras que gostava e estudava sobre suas estratégias de


marketing, o que era extremamente admirável.

Quando terminei de ler seu original, mesmo que tivéssemos mantido


nossa ideia de vendê-lo à editora como sendo o livro de Marcela inacabado,
eu desisti imediatamente. O livro era incrível. Muito mais do que os que li da
minha ex-esposa, sem desmerecê-la.

Marcela era uma ótima escritora, mas faltava-lhe um pouco de

emoção, e ninguém poderia julgá-la pelo quão frio seu coração se tornou por
seu passado traumático. Celina era puro amor e sentimento, e isso brotava de
suas palavras. Cada detalhe de suas cenas fazia com que entrássemos na pele
dos personagens e tivéssemos empatia por eles imediatamente.

Foi a mesma coisa que a minha agente falou quando terminou de ler
o manuscrito, já em inglês, porque contratamos uma pessoa para traduzi-lo.
Ela torceu o nariz quando tentei fazê-la ler a obra, acreditando que eu poderia
ser parcial apenas por estar apaixonado. Obviamente essa ideia foi arrancada

de sua cabeça, porque minutos depois de ler o FIM, ela me ligou em prantos,
dizendo que – com todo o respeito aos meus, que eram de um estilo diferente
– aquele era um dos melhores livros que ela tinha lido.

E lá estava minha Lily, pronta para ganhar o mundo. Estávamos


prontos para o lançamento de seu primeiro livro, pela mesma editora que eu
publicava os meus. Aliás, eu também iria lançar meu mais novo trabalho, e
era a primeira vez que eu fazia um evento de sessão de autógrafos em onze
anos. Pelo que Grace falou, já tinha fila de espera cruzando dois quarteirões.

Esperava que a maioria dessas pessoas desse uma chance também a


Celina, mesmo sendo um estilo um pouco diferente, embora houvesse um
suspense muito instigante no livro dela.

Não consegui resistir ao olhar para ela, toda elegante, em um terninho


de calça e blazer, pretos, que a deixavam elegante, com a cintura fina
marcada. Os cabelos longos e ruivos estavam cacheados nas pontas, e ela
optara por uma maquiagem discreta, realçando os olhos verdes e deixando os
lábios desenhados e cheios apenas com uma cor suave.
Seu batom que me perdoasse, mas ele não iria durar muito tempo, se
dependesse de mim, porque rapidamente enlacei sua cintura, puxando-a

contra meu peito e beijando-a, chegando a incliná-la para trás, como em um


filme de Hollywood, o que a fez rir, deliciada.

— Você vai me desarrumar toda! — reclamou, mas ainda divertida.

— Se continuar reclamando, vai parar na cama, e vamos chegar


atrasados.

Levei um tapinha no ombro e a soltei, porque sabia que estava


ansiosa e nervosa. Não que eu não estivesse. Fazia um bom tempo que eu não
encontrava leitores, e esperava que fosse um momento divertido.

— Acha que vai dar certo? Estou desesperada. E se eu não souber o


que dizer a eles? Ou se responder algo errado na entrevista? — Antes da

sessão de autógrafos, teríamos uma pequena coletiva, na própria livraria, e


Celina tinha estudado muito seu inglês, embora ainda não fosse perfeita. Eu
tinha me oferecido para servir de intérprete, o que a deixou um pouco mais
tranquila, mas eu sabia que a primeira vez era sempre muito difícil.

— Claro que vai. Eles vão te amar. — Beijei sua mão, sentindo-a
gelada, e ela sorriu. Era um sorriso nervoso, mas cheio de esperança.
Com isso, nós saímos. Pegamos um táxi e partimos para a livraria,
que era enorme. A fila, realmente, era intimidante, tanto que liberaram uma

entrada pelos fundos, uma passagem de carga, para que pudéssemos fazê-lo
sem causar um tumulto.

O evento inteiro foi muito melhor do que esperávamos. Celina lidou

bem com a imprensa, respondendo de forma coerente todas as perguntas, até


mesmo as pessoais, sobre nosso relacionamento, usando de muito mais jogo
de cintura do que eu teria, porque odiava aquele tipo de intromissão.

Ela foi gentil e carinhosa com os leitores, e a grande maioria dos que
adquiriram os meus livros levaram o dela também, muito curiosos. Alguns se
emocionaram muito ao estarem na minha presença, porque acompanhavam
meu trabalho há muito tempo, e eu não pude deixar de me divertir com os
elogios das mulheres, que afirmavam não imaginar que eu fosse tão bonito –

o que eu achei um pouco exagerado, mas ok... se elas queriam me elogiar,


tudo bem.

Eu só tinha olhos para uma.

Ao final do evento, saímos para jantar com os executivos da editora e


minha agente, que já começaram a cobrar um livro novo a Celina. Eu a vi
maravilhada, com os olhos brilhando, dizendo que tinha algumas ideias, mas
que queria terminar o livro de Marcela primeiro, o que deixou a todos muito

animados.

Menos a mim. Eu sabia sobre o quê era o livro e sabia que Celina iria
tentar me convencer a transformá-lo no que Marcela queria que fosse: uma

biografia minha. E aquela mulher era capaz de me convencer de qualquer


coisa.

Mas se fosse mesmo assim, eu queria que a história tivesse um final


digno.

Voltamos para casa uns três dias depois. Sabia que estávamos
cansados do voo – ao menos eu estava, e Celina chegou a dormir um pouco,
no meu ombro, no táxi que pegamos do Rio de Janeiro até Santa Celeste do

Sul, durante as horas de viagem, por isso não me senti tão mal de fazê-la ficar
acordada por mais tempo.

Peguei sua mão e a guiei até a estufa, que ainda era nosso local
favorito da casa, até mesmo antes do espaço que montamos para nós dois na
biblioteca, para que continuássemos trabalhando juntos. Durante a caminhada
da garagem até lá, ela foi a primeira a falar:
— Não te perguntei até hoje, mas você ficou chateado com a resposta
que eu dei para o pessoal da editora sobre o meu próximo livro ser o que

Marcela começou? Podemos fazê-lo em forma de ficção, sem problemas, mas


acho que seria uma homenagem a ela.

Chegamos à estufa, e eu abri a porta para Celina passar.

— Tudo bem, amor. Podemos fazer. Não importa se revelaremos que


é sobre mim ou não. Se é uma vontade sua...

Ela parou, virando-se de frente para mim, com uma sobrancelha


erguida e cruzando os braços.

— Vai ser sempre assim, Dorian VanCanto? Você sempre vai fazer
todas as minhas vontades? — perguntou em tom de brincadeira, provocadora.

— Sempre que for possível. Mas será que você vai realizar uma única
minha? — Ela estava pronta para perguntar, e eu apenas tirei uma caixinha do
bolso, ajoelhando-me à sua frente.

— Ah, meu Deus, Dorian! — ela exclamou, e eu já fiquei


esperançoso, porque pareceu animada como uma garotinha. — É o que eu
estou pensando?
— Não sei no que você está pensando. Mas sei no que eu estou.
Todos os dias. Em todos os momentos. Tudo o que surge na minha cabeça é

você, vestida de noiva, vindo em minha direção até o altar. Mais do que
isso... penso em poder chamá-la de minha esposa. Em ter filhos com você. —
Os olhos de Celina se encheram de lágrimas. — Essa é a minha vontade,
Lily. O meu desejo. Você vai realizá-lo? Vai aceitar se casar comigo?

— É claro que eu aceito! — respondeu entusiasmada, parecendo uma


garotinha.

Sem demora, coloquei o anel em seu dedo e levantei-me, agarrando-a


e beijando-a com força, sentindo como se eu estivesse a ponto de explodir.
Quem diria que depois de tantas coisas pelas quais nós dois passamos,
acabaríamos ali, em meio a flores, trocando um beijo apaixonado, com
nossos corações cheios de esperança?

A vida podia, sem dúvidas, ser surpreendente.


EPÍLOGO

SEIS ANOS DEPOIS

Com o bebê apoiado no meu quadril, chamei as gêmeas, que


brincavam com outras crianças no enorme salão. Eram meninos e meninas
que acabaram se tornando parte de nossa família, porque nós vimos nascer e

crescer. Eram nossos filhinhos, de certa forma, também, já que eu e Dorian


tomamos não só eles como suas mães sob nossa proteção.

Rosas e Lírios, foi o nome que escolhemos. Por algum tempo


deixamos o prédio fechado, porque a ideia de entrar naquele lugar me
causava arrepios. Até que Dorian teve a ideia incrível de transformá-lo em
uma ONG onde receberíamos mulheres refugiadas, que não tivessem para

onde voltar depois de uma vida como a que muitas viveram no Rosa
Escarlate. Não necessariamente mulheres traficadas, mas prostitutas que

precisaram escolher essa vida para sobreviver.

Muitas chegavam lá grávidas, descartadas pelos bordéis ou casas

onde trabalhavam, e éramos nós que lhes dávamos abrigo, comida e um lugar
para ficarem. Aos poucos algumas empresas foram entrando em parceria
conosco, oferecendo-lhes emprego. Lá dentro também proporcionávamos
cursos para que pudessem se especializar. Algumas já tinham conseguido
refazer suas vidas e foram embora, tanto para se casarem quanto para
montarem suas casinhas por própria conta.

Nossos corações ficavam apertados, porque nos apegávamos a cada


uma, mas ficávamos felizes por estarem recomeçando, com boas

perspectivas. Queríamos lhes dar oportunidades de destinos mais justos.

Eu ia visitá-los três vezes na semana. Contava história para as


crianças e fazia um clube do livro com as mulheres, incentivando-as a lerem
mais e amarem histórias como eu amava. Duas delas tinham vontade de
serem escritoras, e eu as incentivava como podia.
Só que já era hora de voltar para casa. Meus três tesourinhos –
Priscila e Heloísa (as gêmeas de três anos) e meu garotinho, Fábio, de um –

reclamaram um pouco, mas ficaram felizes quando argumentei que era hora
de ver o papai. Por mais que me amassem muito, eram loucos por Dorian.

Chegamos em casa e fomos recebidos por Lourdes, nossa nova

governanta. Era triste pensar que nunca encontramos o corpo de Sheila. Sabia
que ela não poderia ter sobrevivido ao tiro que levou, mas gostava de
inventar uma história na minha cabeça de que conseguira ser livre e viver sua
vida em outro lugar.

— Bem-vinda, senhora — Lourdes cumprimentou, ajudando-me com


as crianças. Ela era maravilhosa conosco, e meus filhos a amavam. As duas
meninas correram em sua direção, abraçando-a como se não a vissem há
anos, e Fábio começou a bater palminhas ao vê-la. — Quer que eu fique com

eles um pouquinho? O patrão acabou de subir para a biblioteca.

— Você se importa?

— De jeito nenhum.

Sorri para ela, partindo para a biblioteca. Por mais que amássemos ter
nossos filhos por perto, e que sempre curtíssemos a vida em família, quando
podíamos, gostávamos de ter nossos momentos sozinhos. Lourdes era ótima
nisso, em entreter os pequenos para que pudéssemos ser um casal de vez em

quando, e... bem... eu ainda era louca pelo meu marido. Ele conseguia me
seduzir sem esforço.

Até mesmo só com um sorriso, como o que aconteceu naquele

momento.

— Feliz? — perguntei para ele, aproximando-me e inclinando-me


para beijá-lo. Dorian me puxou, fazendo-me cair em seu colo, na cadeira de
trabalho.

— Sim, tenho uma boa notícia. — Ele afastou uma mecha do meu
cabelo dos olhos, aproximando seu braço, cujo punho ganhara uma tatuagem.
No esquerdo ainda estava a rosa, escondendo sua cicatriz. No direito, um

lírio.

— Adoro boas notícias! — Envolvi os braços ao redor de seu


pescoço, passando a mão em seus cabelos. Sentia falta dos fios longos, mas
ele os cortara novamente há uns dois anos e nunca mais deixara crescer.

Ele era lindo de qualquer jeito.


— Uma produtora bem grande comprou os direitos de dois dos meus
livros — ele anunciou, parecendo muito orgulhoso. — Eles foram

responsáveis por um filme indicado ao Oscar no ano retrasado.

— Uau! Dorian! Isso é maravilhoso! — exclamei, empolgada. Fazia


tempo que um livro dele não era adaptado. O último foi um sucesso de

bilheteria.

— E o contrato é bem gordo. Grace negociou muito bem desta vez.

— Ela é incrível. Nem acredito que conseguiu vender meu livro novo
para tantos países. — Eu tinha lançado meu sexto livro há dois meses, e eu já
tinha contatos para publicá-lo no Brasil, Itália, França, Alemanha e na
Argentina. Todos os outros tinham sido vendidos internacionalmente
também, mas não tão rápido. Isso, provavelmente, queria dizer que eu estava

crescendo na carreira.

Devia tudo a Dorian, é claro, mas ele sempre insistia que tinha a ver
com o meu talento. Que se não fosse isso, eu não teria chegado tão longe.

— Pois é... então acho que você vai gostar de saber que essa mesma
produtora também quer fechar um contrato para Um Novo Caminho.
Demorei alguns segundos para entender do que ele estava falando.

Um Novo Caminho era o meu livro. O meu livro novo. O mesmo que
eu já estava imensamente feliz por ter sido vendido tão rápido para tantos
países.

— Um livro meu vai ganhar adaptação? — perguntei, chocada.

Dorian assentiu. — Ah, meu Deus! — Levei ambas as mãos à boca, feliz. Ou
mais do que feliz.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, uma batida na porta nos
interrompeu.

— Pode entrar... — eu e Dorian falamos juntos, embora eu nem


soubesse como tinha conseguido dizer qualquer coisa de tão grande que era o
nó na minha garganta pela notícia.

Antes que víssemos Lourdes, nossas garotinhas vieram correndo


como dois furacões para cima de nós. Nossa funcionária veio com o bebê no
colo, com olhos arregalados.

— Me desculpem, mas eles estavam doidos para ver o pai.


— Que bom, porque temos tanto a comemorar e precisamos fazer
isso em família — Dorian falou. Levantei-me de seu colo, e ele pegou as

duas meninas, agarrando-as, cada uma em um dos braços e dando beijos


estalados em seus rostinhos. — Lourdes, prepare um jantar especial para nós,
por favor.

— Batata frita, papai! — Priscila falou.

— Muita batata frita! — Heloísa gritou, sempre fiel à irmã.

— Que seja, então! Muita batata frita!

Lourdes assentiu e saiu rindo da biblioteca, depois de me entregar


nosso garotinho.

Dorian fazia cosquinhas nas meninas, que riam deliciadas. Fiquei

observando-os e alternando com olhares de soslaio para Fábio, que agarrou


meu cabelo em sua mãozinha, fascinado por ele.

Percebendo minha atenção, Dorian olhou para mim, dando uma


piscadinha e um sorriso de canto, que me dizia que teríamos muito a
comemorar mais tarde, só nós dois. Retribuí o sorriso, aproximando-me dos
três, emocionada por aquela ser a minha família. Comovida pela sorte de ter
sido resgatada por uma Fera que mostrou ser um príncipe. Animada pelo

futuro. Ansiosa pelo que o destino ainda iria nos mostrar. Maravilhada pela

ideia de que, dali para frente, nossa história seria cheia de momentos como
aquele: de risadas, alegria, esperança e pequenas, mas significativas, vitórias.

FIM

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