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PERIGOSAS NACIONAIS

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Um agradecimento especial a
todos que se apaixonaram pelo
primeiro livro “A Esposa do
Rei”. Confesso que eu não
esperava tanto carinho. Amei
receber mensagens de
madrugada, áudios, vídeos,
montagens e muito mais. A
todos vocês meus amores,
escrevo “A Heroína do Rei”
com todo carinho do Universo.
Amo vocês. De todo meu
coração.
Miriam

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ENCRENCA

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M uito bem, Dona


Everlin! Agora, sim,
a senhorita está metida na maior encrenca de sua
vida e terá de “se virar nos trinta” para sair dela.

Confesso que, a princípio, achei que meus


carcereiros seriam burros o suficiente para manter
aquela carroça-cela na estrada até Dáian nos
alcançar. Mas, pelo visto, e para a confusão ficar
ainda pior, tinha alguma coisa dentro daquelas
cabeças enormes, porque deixaram as trilhas
principais na primeira oportunidade. E olhe, eu não
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estou exagerando não, meu amigo leitor, os


nojentos de Karur eram cabeçudos mesmo! Os
invejosos dirão que é implicância minha, afinal
aqueles homens pertenciam à raça semelhante e,
portanto, por definição, o tamanho das cabeças era
similar. Entretanto, acredite em mim quando digo
que isso não passa de intriga da oposição.
Enfim...
Ao sairmos da estrada, notei o outro bando
vindo atrás de nós, cobrindo os rastros. Aquela era
uma péssima hora para os cretinos resolverem dar
uma de inteligentes, pois arrastando aquele veículo
mata adentro, como estavam fazendo, e, ainda,
ocultando as marcas da carroça, ia ser quase
impossível Dáian nos encontrar.
Em meio àquela maré de azar, tive ao menos
uma gota de sorte já que os homens de Karur foram
burros em, pelo menos, três coisas. A primeira,
amarraram minhas mãos à frente do corpo. A
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segunda, não se deram o trabalho de inspecionar se


haviam objetos na carroça, o que me permitiu
encontrar um pedacinho de metal, não totalmente
afiado, mas ia ter de servir. E a terceira, deixaram
minhas mãos suficientemente livres para eu
friccionar o metal contra as cordas.
Claro que cortar aquele emaranhado de fios
entrelaçados exigiria esforço, tempo e, sobretudo,
muita, mas muita paciência. No entanto, a quarta
burrice deles consistia em terem levado Everlin
Carter Kim como prisioneira e no quesito teimosia,
meu amigo, eu era campeã, campeã olímpica. Além
disso, eu não iria a lugar algum, então, era o que
tinha para o momento.
Passado um tempinho, começamos a transpor
lugares desconhecidos, alguns dos quais era
inacreditável uma carroça ter conseguido
atravessar. Ainda assim, muito embora eu achasse a
minha captura um golpe de muita sorte, o fato era
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que estavam conseguindo me raptar. Levando-me


por caminhos tortuosos e desconhecidos, cada vez
mais distantes de Dáian.
Droga! Hora horrível para o Murphy dar as
caras! Justo agora, quando tínhamos nos
encontrado... ou reencontrado... ou estávamos nos
reencontrando já há um certo tempo... ou... nossa,
meu cérebro até deu curto tentando entender.
Reclinei-me nas paredes balançantes daquela
cela e continuei insistentemente raspando o metal
naquele espesso entrançado. Embora alguém
pudesse considerar o meu plano de fuga um esforço
inútil, retroceder não era o meu estilo.
E mais do que tentar escapar, era preciso
ocupar a minha mente com alguma coisa, porque
recordar a imagem da última expressão que eu
testemunhara no rosto de Dáian estava me
apavorando. Eu tinha a plena consciência de que
uma mente limpa e livre de emoções conturbadas
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constitui a chave da vitória numa luta. Por isso,


lembrar da mudança de sua feição implacável de
guerreiro para uma desorientada de sofrimento me
consumia, literalmente.
E se, porventura, seu estado de espírito
turvou sua concentração na batalha? Não, não,
não!
Esforcei-me para enxotar esse pensamento,
trazendo à memória imagens do quanto ele era
forte. Ele era, simplesmente, o guerreiro mais
habilidoso que eu já havia visto. E eu não tinha tão
pouca experiência no assunto assim, até porque a
guarda real era repleta de lutadores
assustadoramente hábeis, mas, Dáian era, de longe,
o melhor.
Repeti essa ideia mentalmente nem sei
quantas vezes a fim de me convencer de que não
havia nenhum motivo para preocupação. Com toda
certeza, àquela altura do campeonato, Dáian já
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havia dado um “chega para lá” no bando de insetos,


como um limpador de para-brisa, e viera há séculos
ao nosso encalço. A tarefa mais árdua, no entanto,
seria nos encontrar.
Não sei por que, justo agora, o clube das
amebas resolveu acreditar que tinha QI de Albert
Einstein. Ninguém merece!
Percorremos vários lugares madrugada
adentro, e, quanto mais avançávamos por aquela
mata densa e terrenos rochosos, menos ideia de
onde estávamos eu fazia. E para o azar ser
completo, afinal, sem isso, não seria eu quem
narraria a história, não havia a menor condição de
deixar uma pista, nem sequer um rastro de migalhas
ou sinal de fumaça. Não vou negar que era
desanimador prosseguir tão impotente daquele
jeito.
Apesar de toda a situação, aquela última troca
de olhares com Dáian não saía de minha mente.
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Vê-lo empalidecer enquanto me levavam


prisioneira, a chama de combatente inabalável
esvaindo-se, dando lugar a um tipo de temor, que
eu ainda não havia vislumbrado nele. Aliás, até
aquele momento, ele parecera não temer nada.
Se eu estivesse no lugar dele, teria tido um
surto psicótico, no mínimo.
Entretanto, Dáian não era como eu. ERA UM
REI. E reis estão acostumados a não deixar
sentimentos pessoais sobrepujarem o bem-estar dos
demais. Muito embora, nos últimos tempos, ele
tenha ficado um pouco fora de si, por minha causa,
devo admitir, ele ainda manteria o foco quando o
assunto era o fim do mundo, não manteria? Tinha
de manter!
Eu olhava aquele céu enegrecido pelas
repentinas nuvens, bem como para as parcas
estrelas que relutavam em permanecer visíveis
enquanto eu tentava me convencer de que o rei se
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mantivera firme e sentia minha própria


determinação por um fio. Resolvi, então, fazer uso
das minhas técnicas de sobrevivência mental, na
tentativa de me manter, mais uma vez, no domínio
no palco da minha mente.
Abençoado seja Dr. Augusto Cury!
Essa técnica consistia, basicamente, encher
minha cabeça com besteiras. Não que o pobre Dr.
Augusto tenha ensinado isso em algum livro, mas
era o jeito Everlin de interpretar o que lia. Por mais
que o caro leitor pense que aquela era uma péssima
hora para pensar em bobagens, e de fato era, não
pense que sou tão “sem noção” para não ter
consciência disso, acredite em mim quando digo
que, às vezes, “abstrair” ou “fingir demência”,
como diria alguns, é o melhor remédio quando se
trata de se manter no controle. Sério!
E, sinceramente, eu precisava de qualquer
coisa para não pensar que minha decisão de fazer
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Dáian retornar para proteger o templo pudesse ter-


lhe custado a vitória ou tê-lo ferido ou...
Lá, lá, lá, lá, lá, lá... vamos pensar em outra
coisa, pelo amor de Deus!
A primeira ideia que me levou a divagar foi
pensar nas chances de alguém acreditar em minha
história. Venhamos e convenhamos, qual a
probabilidade de alguém estar em um avião e cair
no exato lugar em que fica uma ponte de Einstein-
Rosen, que fica no oceano, não nos esqueçamos
desse detalhe, e desta ponte levar esse alguém para
outro planeta? E, para as chances ficarem mais
remotas ainda, neste planeta esse alguém encontrar
seu primeiro amor, que conhecera há dez anos em
um sítio na Terra? Uma em um trilhão, uma em um
quatrilhão? Será que já inventaram um número para
esse cálculo?
E mais, o primeiro, e único vamos ser bem
sinceros, amor desse alguém era, ninguém menos,
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que o rei de uma das principais nações deste outro


mundo. Um rei lindo, admirado e com um harém de
mais de setecentas esposas.
Tá legal, vamos riscar da história a parte das
esposas.
Hum... será que estou contando a vida de
alguém ou o enredo da próxima franquia de sucesso
dos cinemas?
Admito que eu não era muito de acreditar em
destino ou predestinação, mas minha história e a de
Dáian era, simplesmente, fantástica. E essa
definição não era bem um elogio. Talvez, até na
mente mais cética, se alguém se dignasse a
acreditar em mim, o que eu duvidava muito,
acenderiam faíscas de indagação sobre nosso
propósito no Universo ou sobre a existência de algo
maior que nós.
Foi incrível como essa singela ideia acalmou
meu coração. A de algo maior ter me trazido até
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Dáian. Logo, não era possível que tivéssemos


sofrido tanto para a felicidade nos ser roubada
assim tão facilmente, aos quarenta e cinco minutos
do segundo tempo.
Outra coisa que não pude evitar pensar foi
nas pontes de Einstein-Rosen. Eu não sabia tanto
assim sobre o assunto, mas, quando elas
despontaram como parte importante de alguns
filmes dos meus super-heróis prediletos, a minha
curiosidade foi aguçada e joguei o termo no
Google.
Não terei a menor vergonha de admitir que
não entendi nadinha dos termos técnicos existentes
nos artigos científicos espalhados pela internet,
afinal eu era péssima em física, mas, basicamente, a
ponte, conhecida como “buraco de minhoca”,
funciona como um atalho pelo espaço e pelo tempo.
Uma espécie de túnel, o qual pode encurtar o
caminho entre dois pontos no Universo.
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Pelo que entendi, os cientistas apenas


especulam acerca da existência destas pontes. Se
souberem que eu fui a primeira pessoa na história
da humanidade a passar por um buraco desses,
muito provavelmente, eu seria levada para ser
estudada em laboratório pelo resto da minha vida.
Bom, na verdade Dáian foi o primeiro que
conheço a passar por uma ponte dessas. Sem
mencionar a descoberta de uma bem no quintal do
sítio dos meus pais. Pensando nisso, finalmente
compreendi porque diziam que quem entrava
naquela caverna nunca mais saía.
Então, o medo daquele lugar tinha
fundamento, afinal.
Provavelmente se tratava de um
conhecimento passado de geração em geração
desde os antigos indígenas e acabou se
transformando em uma história de terror para
jovens aventureiros. Meu pai quis explorar aquela
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caverna uma vez, por causa da fama um tanto


bizarra. No entanto, minha mãe fez um escândalo
tão grande e, no fim, ele acabou desistindo. Até eu
não gostava daquela gruta, embora eu não seja
muito de crendices.
Resolvi não tecer conjecturas, pelo menos
não naquele momento, acerca do que seria se
alguém da Terra descobrisse o mundo escondido
atrás daquela cachoeira.
Isso sim seria um problema de proporções
apocalípticas.
Melhor deixar o apocalipse para o futuro, que
é o lugar dele. Em vez disso, mudei a direção dos
meus pensamentos para me concentrar um pouco
naquele planeta. Eles denominavam o seu mundo
de Toran. O planeta gigante que me atormentou por
um bom tempo era Konen e o destruído, o qual
circundava, como uma lua estranha, já foi Cosen.
Contudo, pelo que entendi, depois da guerra,
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tornara-se nada mais que um corpo celeste sem


vida sendo levado pela maré da gravidade.
Sete luas reinavam no céu noturno e, no
diurno, um sol, cuja luz já não era tão amarela
quanto à do nosso. A cor da luz deles era mais
tendente ao branco e, em alguns momentos, notava-
se os tênues espectros coloridos. Como isso era
possível? Não me perguntem.
Toran também levava trezentos e sessenta e
cinco dias para dar uma volta em torno do sol deles
e vinte e quatro horas para dar uma volta em si
mesmo. Portanto, os dias e as noites eram
iguaizinhos aos nossos. As semanas também eram
divididas em sete dias, e essa similaridade
contribuiu muito para minha adaptação, se é que eu
podia me considerar adaptada.
Por outro lado, a divisão dos meses era
bastante curiosa. Em vez de dividirem os meses em
doze de trinta, trinta e um, vinte e oito, e, às vezes,
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vinte e nove dias, como nós fazemos, não. Os anos


tinham treze meses de exatos vinte e oito dias, e os
meses contavam com quatro semanas de sete dias
cada. Resultado: todos os dias do ano sempre, eu
disse sempre, caíam no mesmo dia da semana. Por
exemplo, dia primeiro de janeiro era sempre um
domingo, em todos os anos, e para sempre. Dia
dois de janeiro era sempre uma segunda-feira, e
assim por diante. Isso fora que o último mês do ano
deles não era dezembro, e sim de trezembro.
Que coisa mais doida, não é? Bom, pelo
menos na ótica de alguém que nasceu e viveu vinte
e quatro anos em outro planeta.
Outra curiosidade era que tinha uma “sexta-
feira 13” em todos os meses, não que eles
soubessem o que isto significa. Além disso, o ano
bissexto deles acrescentava um dia ao último mês,
o décimo terceiro, que ficava com vinte e nove dias
a cada quatro anos. Nesse mês havia uma semana
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especial de oito dias e um dia raro, de nome único,


no qual faziam a festa dos reis.
Eu até fiquei aliviada porque a Terra não
adotava esse sistema, e sim o bom e velho
calendário gregoriano. Já pensou na chatice que
seria se soubéssemos de antemão exatamente em
que dia da semana cairiam os feriados, de todos os
anos e para sempre? Isso seria, simplesmente, dar
adeus à expectativa pelos nossos amados feriadões.
Ou coitado do azarado cujo dia do aniversário
caísse justamente numa segunda-feira. Seu
aniversário seria numa segunda até o fim da vida!
Se bem que o meu alívio era totalmente sem
propósito, pois, no fim das contas, eu havia
escolhido Toran como meu lar no minuto em que
decidi me casar com Dáian. Por óbvio, eu sentiria
falta de tudo da Terra, de todas as facilidades
modernas, principalmente do cinema. E do sorvete.
E de poder tomar água gelada. E do ar
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condicionado. E do meu carro, ainda que fosse um


“porva veinho”. E do celular, então... nem se fala.
A falta dos meus pais seria algo
completamente à parte. Infelizmente, não posso
dizer que tivemos muito tempo juntos, afinal, por
muitos anos, eles se dedicaram quase
exclusivamente à carreira. Agora, por maior que
seja a saudade e a vontade de compensar cada
minuto perdido, não escolherei a Terra. Dáian
respirava naquele planeta, e isso já era mais do que
o suficiente para eu também querer respirar nele.
Então, eu teria de aproveitar ao máximo aquele
que, provavelmente, seria meu último dia no
mundo azul. Meu último dia com meus pais.
Ai, meu Deus, vamos pensar em outra coisa?
Que tal aniversários?
Eu não havia pensado nisso, mas o
aniversário de Dáian também devia cair todos os
anos no mesmo dia da semana. E eu, simplesmente,
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não fazia a menor ideia de qual dia era esse.


Domingo? Quinta? Segunda não, pelo amor de
Deus! Eu também não havia dito a ele o dia do meu
aniversário. A partir dos dezoito anos acabei não
achando mais graça em comemorar e, por isso, eu
sempre torcia para que ninguém lembrasse. Às
vezes dava certo e meus pais esqueciam, mas não
adiantava cantar vitória porque lembravam no dia
seguinte.
Deixando de lado um pouco datas e
calendários, comecei a me recordar do dia em que
fui levada ao palácio e vi Dáian pela primeira vez,
aliás primeira vez naquele planeta. Sua estranha
expressão enquanto fitava minha pulseira, naquele
fatídico dia, pareceu-me um verdadeiro mistério.
Quem diria que, no fim, faria todo sentido.
Ele nunca pretendeu tomá-la de mim, só a
havia reconhecido.
Refletindo um pouco melhor no assunto, não
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entrava em minha cabeça como foi possível tudo


aquilo ter acontecido. Claro que eu não sou o tipo
de pessoa sobre a qual diriam: “minha nossa como
ela é superdotada, não é?”. No entanto, eu me
considerava alguém de inteligência mediana. Ainda
assim, eu passei tanto tempo no palácio, vários dias
ao lado de Dáian, treinado com ele, conversado
com ele todos os dias sem ter a menor ideia de
quem era.
Agora entendi a razão dele ter me chamado
de lerda!
Bom, mesmo que eu não gostasse nadinha da
ideia, iria ter de engolir meu orgulho e deixar esse
episódio ser registrado no meu histórico de “bolas
foras”, o qual, graças ao bom Deus, não era tão
extenso assim. Se bem que, uma “bola fora”, como
essa, já valia por toda uma vida de “bolas foras”.
Por falar em “foras”, recordando todas as “tiradas”
que eu havia dado em Dáian, meu rosto começou a
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formigar e queimar de tão corada que devo ter


ficado. Por sorte, eu estava sozinha e, além disso, a
noite um tanto escura impedia alguém de me ver,
caso contrário teria pensado: essa garota é doida.
Será que ele me reconheceu assim que me
viu?
A minha reação não poderia ter sido outra,
afinal eu pensava nele como um déspota cretino e
agiota, cujo prazer era “confiscar” filhas e netas
como pagamento ao menor sinal de inadimplência.
O “pisão”, relativamente gratuito, teve lá sua dose
de vingancinha, admito.
O que será que Dáian deve ter pensado?
Ora, quem podia adivinhar que não era um
encontro, e sim de um reencontro? Só depois da
verdade vir à tona, compreendi aquela expressão
esdrúxula de quem ficava feliz e triste ao mesmo
tempo, toda vez que eu me negava a ceder. Uma
parte dele me queria amando o passado, ao passo
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que a outra desejava que eu olhasse o futuro.


Também havia uma dúvida que não queria calar:
por que Dáian não me disse quem era desde o
início? De que a intenção dele nunca foi se divertir,
eu tinha plena certeza, então...
Será que ele ficou com medo de eu não
corresponder ao seu sentimento?
Ele simplesmente ficava investindo e
investindo, dando uma de conquistador, mesmo eu
acreditando que ele era outra pessoa. Ofereceu-me
um monte de coisas naquele dia na muralha. No
fim, o tiro acabou saindo pela culatra porque a
estratégia dele só me fez ficar mais desconfiada, se
é que posso colocar as coisas nesses termos.
Será que o medo dele era eu escolher ir
embora?
Analisando bem, essa era a única explicação
lógica para aquele nervosismo insano quando me
levou ao templo.
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Ele sofrera todo esse tempo por medo de eu


escolher voltar para Terra, mesmo depois de saber
a verdade!
À medida que essa conclusão se firmava em
minha mente, algumas coisas começaram a se
encaixar como peças de um quebra-cabeça: a
insistência para que eu me acostumasse, para que
não procurasse o caminho de casa, a sua apreensão
quando me viu tentando aprender a escrita erudita e
a implicância irracional com Lui.
Quando me convenci de que essa era a única
solução possível, um aperto sufocante dominou
meu peito, como se o ar tivesse se tornado denso
demais para eu respirar. Para completar, desejos
dolorosos demais afloraram em mim, fazendo-me
quase entrar em agonia. Desejo de tocá-lo, de sentir
seus braços em volta de mim, naquele aconchego
que me fazia voar como uma pluma, de pressionar
meus lábios contra os dele com tanta força que
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nada nem ninguém seria capaz de me desgrudar


dele, ainda que tivéssemos de enfrentar os protestos
veementes de Ralifax, dizendo que perdemos a
vergonha ou algo assim.
Dáian está bem. Dáian está bem.
Comecei a repetir sem parar.
Droga. Meu plano de “abstrair” começou a
falhar.
O ponto positivo do meu plano foi o tempo
ter passado mais depressa e, quando notei, o dia já
estava raiando. Um alívio, ainda um tanto
apreensivo, refrescou minha mente. A claridade,
sem dúvida, colaboraria na tentativa de fuga, mas
eu teria de ser cuidadosa. Não importava como, eu
tinha de voltar para os braços de Dáian o mais
rápido possível. Continuei a friccionar
veementemente o pedaço de metal contra aquelas
cordas, mas, apesar de ter feito isso, praticamente, a
noite toda, ainda estava na metade da espessura.
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Levaria mais algum tempo até que eu conseguisse


arrebentar aquilo. O jeito era torcer para que me
deixassem em paz até eu me soltar.
Quando o sol já estava um tanto alto,
resolveram parar a carroça. Armaram uma espécie
de acampamento e colocaram uma gororoba para
cozinhar na fogueira ao centro. Minutos depois, o
segundo bando se juntou à primeira leva de
carcereiros.
Droga, mais homens para derrubar.
A essa altura, a corda em meus braços já
estava quase cedendo. Contudo, após avaliar as
possibilidades, notei que minhas chances não eram
tão boas, pois, no acampamento, onze homens ao
todo se movimentavam e eu não fazia a menor ideia
de onde estava. Ao redor só havia mata fechada
para qualquer dos lados que eu percorresse o olhar.
Minha melhor chance, naquela situação, seria
aguardar até passarmos por alguma cidade ou
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vilarejo para, só então, tentar a fuga.


— Ei, vamos deixar a curandeira morrer de
fome? — indagou um dos homens de Karur, de
forma arrogante e modos que deixariam até uma
garota sem frescura enojada.
Os homens de Karur miraram-me como se
tivessem, enfim, lembrado que carregavam um
brinquedo com eles.
— Vamos fazê-la comer porque morta não
tem serventia — pronunciou outra voz, no entanto,
um grunhido de um homem das cavernas teria sido
bem mais compreensível.
Em seguida, um dos meus sequestradores
veio até minha cela e a abriu. Saí sem reclamar,
mantendo os braços juntos para que não
percebessem que eu tentara cortar a corda.
— Soube que o Rei Sete devolveu todas as
esposas do harém por causa dessa aí — insinuou
outro agente de Karur, lançando sobre mim um
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olhar lascivo de cima a baixo.


— Olha só, é uma raríssima — pipocou outra
voz — sei de um “rogoxá” que pagaria uma fortuna
por uma potranca como esta — asseverou me
avaliando.
Encarei firme todos aqueles idiotas. Jamais
deixaria que notassem qualquer sinal de medo ou
fraqueza em meu semblante. Nunca lhes daria esse
gostinho. Entretanto, se resolvessem mesmo me
vender para algum “rogoxá”, aí sim eu estaria
perdida. Dáian nunca me acharia.
Calma, meu amigo leitor, eu jamais faria uma
maldade desta de deixá-lo no “vácuo” sobre os
“rogaxás”. Como eu havia dito, o planeta deles era
dividido em três países organizados. Para além das
fronteiras destas nações, havia uma vasta porção de
terra ocupada por grupos humanos não
estruturados, como bandos de salteadores e tribos
nômades governadas por pessoas intituladas de
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“rogoxás”. Sentei-me sobre uma pedra como se o


comentário daquela ameba nem tivesse me afetado.
— Cale a boca! Se voltarmos para Karur sem
ela, Éfer nos matará — concluiu outro agente.
— Quem falou em voltar? — retrucou a
ameba.
— Quê? Quer ficar escaldando os pés no
deserto, como os nômades? Você é retardado, é? —
argumentou o cabeçudo que mandara o outro se
calar. Ele tinha um cabeção tão grande, que resolvi
apelidá-lo de Tinky-Winky, muito embora eu
soubesse que seria um baita insulto aos pobres
Teletubbies.
— Estou falando de dez mil ciclos de ouro
por ela — insistiu a ameba, que parecia não querer
desistir da ideia, igualzinho a um cão que não larga
o osso.
— Tudo isso! — exclamou outro trouxa do
bando.
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— Não seja estúpido, se for pra vendê-la, o


próprio Sete pagaria muito mais. Aposto que ele
daria o quanto pedirmos. Aí, meu camarada, o céu
é o limite. Um milhão de ciclos? Um bilhão? —
argumentou outro idiota.
Talvez seja melhor eu começar a apelidar
todo mundo do bando, já está ficando confuso.
— Sete arrancará nossas cabeças por causa
dela — afirmou outro sequestrador, esse era
baixinho e tinha um cabeção, parecia o ratinho
“cérebro” daquele desenho Pink e o Cérebro. Já
tinha achado o apelido perfeito. Bom, pelo menos
era esperto o bastante para saber o que Dáian faria.
— Por isso estou dizendo para vendê-la ao
“rogoxá” do deserto de Crã. Se dissermos que ela
era esposa de Sete, ele pagará mais, muito mais —
continuou o ameba, olhando para mim com aqueles
olhos maliciosos repugnantes.
Felizmente, até então, eu não tinha tocado
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nada daquela gororoba, senão teria vomitado, com


certeza. Enquanto os bocós discutiam meu destino,
eu continuava serrando discretamente a corda e
arquitetando o que seria mais inteligente a fazer. Se
decidissem me vender, eu não teria escolha a não
ser lutar e fugir. Se resolvessem me levar para
Karur, o melhor seria esperar algum povoado
porque teriam de cruzar com um em algum
momento.
— Façam ela comer. Morta, não valerá nem
meio ciclo — interrompeu o ratinho cérebro.
Em seguida o Tinky-Winky foi até à fogueira,
pegou a concha e jogou aquele ensopado bizarro
num projeto de prato, vindo até mim. Aceitei.
Primeiro, eu não queria chamar a atenção, e
segundo, a hora em que eu fosse enfrentá-los,
naquele momento ou mais à frente, precisaria de
forças.
Coloquei na boca e, de fato, estava
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intragável, mas tinha algum nutriente, e isso era o


que importava. Comi, engolindo junto com aquela
gosma todas as possíveis caretas que meu corpo
queria desesperadamente fazer. Esse gostinho, eu
também não lhes daria. Não se divertiriam às
minhas custas nem que para isso eu tivesse de fazer
cara de paisagem pelo resto da vida.
— Ela é durona mesmo — caçoou o ameba.
Tão logo o cretino começou a rir, lancei na
direção dele o meu olhar raivoso, aquele que o
fantasma do curandeiro havia conhecido muito bem
num passado não tão distante. A diversão do idiota
encerrou na hora, pois ficou sério e retraiu a
cabeça, espantado. Eu não desceria do meu salto
nem como prisioneira.
Se eles não me conheciam, iriam me
conhecer. Ah... se iam!
Quando a corda estava prestes a ceder,
comecei a analisar o terreno e os objetos em busca
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de qualquer possível arma e a única que avistei foi


justamente a vara usada para manter o diminuto
caldeirão, para lá de improvisado, acima do fogo.
Prossegui com a comida bem devagar, espreitando
o que decidiriam.
— Vamos levá-la para Éfer e ponto final —
concluiu o agente que havia dito que morreriam se
não me levassem.
Tá aí, bom apelido, medroso. Na verdade, eu
queria um que começa com a letra “c”, cujo fim
seria “zão”, ou com a letra “b”, e a última sílaba
seria “dão”, mas preciso pensar na censura moral.
— Você não ouviu o quanto ela vale? —
retorquiu o ameba.
— Éfer tomará Yonah de Sete e, pelo que
tem em seu arsenal, o mundo inteiro. Quanto tempo
acha que vamos conseguir nos esconder? — alegou
o medroso.
Como assim? Que arma teria em seu
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arsenal?
Passei a ouvir com muito mais atenção.
— Que nada. Deixa de ser molenga. Vamos
pegar o dinheiro e sumir — teimou o ameba.
— Acreditem... Éfer está fazendo bruxarias e
logo o mundo inteiro será dele — insistiu o
medroso.
Será que ele se refere àquela arma
biológica?
— Conversa. Essa curandeira já descobriu
um jeito de acabar com a bruxaria dele — soltou
outro sequestrador.
— Ah... aquilo não foi nada — retorquiu o
medroso.
Engoli em seco. Se Éfer tinha algo pior que
aquela bactéria, tínhamos de nos preparar e
descobrir o que era, e rápido. O problema era que
não tinha como saber se o medroso dizia a verdade
ou se estava se “borrando” e tentava convencer os
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outros por pura covardia. Entretanto, não seria


inteligente arriscar. Era preciso fugir e avisar Dáian
ou talvez, com um pouco de sorte, descobrisse algo
a respeito antes de dar no pé.
— Cale a boca, Maldon! Vamos vendê-la
para Dermet e não se fala mais nisso — decretou o
ameba.
Então, o “rogoxá” do deserto de Crã se
chamava Dermet e era comprador de escravos.
Estudando as leis de Yonah, descobri que o
comércio de pessoas era ilegal em todo o país, mas
a prática era liberada em Karur. Os povos sem
nação não tinham leis definidas e, pelo jeito, os
nômades também tinham o péssimo hábito de
comprar escravos.
— Vocês é que são um bando imbecis, Éfer
pode destruir um exército inteiro sem mover um
único homem — declarou Maldon, o medroso,
colocando as mãos sobre a boca como se tivesse
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dito algo que não deveria.


Essa informação me fez paralisar onde
estava. Fiquei tão chocada que até me esqueci de
respirar. Todos os outros sequestradores também
pareceram congelar com a afirmação.
Meu Deus do céu, isso tem de ser um blefe!
— Conversa fiada — interpelou o ameba,
balançando a cabeça dando a impressão de que
havia acabado de ponderar a informação e optado
pela solução que lhe era mais conveniente.
Após ouvir aquilo, deduzi que a melhor coisa
a fazer seria fugir naquele exato momento. Eu tinha
de avisar Dáian sobre isso e depois daríamos um
jeito de usar os recursos do palácio para descobrir o
que Éfer estava tramando. Se eu esperasse mais,
poderia ser que Dáian utilizasse toda sua energia e
tempo à disposição para procurar por mim, e
quando se preocupasse com Karur, já seria tarde
demais. Por isso, resolvi agir.
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Soltei a corda de meus braços e voei até a


vara que sustentava o caldeirão no centro da roda.
Aquele novo dado me encheu de coragem e a
adrenalina correu por mim como um superpoder.
Eu tinha de avisar Dáian, não importava como.
Agarrei aquele bastão pela ponta, onde estava mais
frio, e arremessei o caldeirão bem na cara do Tilky-
Winky que, sucumbindo às queimaduras, rolou pelo
chão.
De posse de uma arma, comecei a enfrentar
os agentes de Karur um a um. Aquele instrumento
me dava a vantagem de impedir que avançassem de
uma vez. Essa percepção e habilidade, eu devia a
Dáian. Pensando assim, ele havia me ensinado
muito bem. Em menos de cinco minutos, consegui
colocar metade deles no chão, deixando os outros
receosos de se aproximarem.
Eu tinha mesmo aprendido com o melhor,
não é?
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— Deixem de ser estúpidos, é só uma mulher


— bradou aquele que parecia o ratinho cérebro.
— Uma mulher não... a mulher — vociferei,
manobrando minha arma como se eu fosse uma
heroína de filme de ação.
Não que eu gostasse de exibir o que havia
aprendido, mas parece que fazer algumas “firulas”,
com a arma que se está empunhando, tem mesmo o
poder de intimidar o inimigo e desestruturá-lo
mentalmente. Essa era a finalidade da exibição de
habilidades num combate. A manobra que executei,
na frente de Dáian, sempre saía desajeitada, mas,
naquela hora, ficou perfeita como uma verdadeira
mestra.
Se Dáian tivesse visto, aposto que teria
ficado orgulhoso.
Após imaginar a feição de orgulho de meu
marido “postiço”, senti instantaneamente uma
pressão amarga em meu peito. Aquele tipo de
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aperto que transforma até um ato simples como


respirar em algo penoso e dolorido. Há tanto tempo
eu não me sentia assim, com tanta saudade de
alguém. E não tínhamos ficado nem vinte e quatro
horas separados.
Balancei minha cabeça e voltei a me
concentrar na luta à minha frente. Eu não podia
desviar minha atenção no meio de uma batalha
como aquela com tanta coisa em jogo. Bom, a
“firula” com o bastão funcionou direitinho, pois,
depois da minha exibição, os idiotas recuaram e
pareciam mais acuados. No entanto, de relance
percebi que “o medroso” apenas observava a
confusão sem se envolver, e a postura dele
demonstrava que não fazia isso por covardia. Por
óbvio, aguardava o melhor momento para se
aproximar de mim.
O pior foi que não consegui mais
acompanhar o que “o medroso” arquitetava, pois os
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outros imbecis não desistiram de tentar me


dominar. No momento em que eu estava distraída,
colocando quase todos aqueles vermes no chão, o
medroso chegou até mim pelas costas e, num
movimento ágil, pressionou contra o meu nariz um
tecido embebecido em algum um tipo de líquido.
Tentei me debater, mas, em questão de segundos,
aquele cheiro forte começou a entorpecer meus
sentidos. Com toda certeza, era outra arma do
arsenal de Éfer.
Droga, já tinham inventado o clorofórmio
nesse planeta.
Éfer estava brincando com compostos
químicos e biológicos. Era preciso avisar Dáian, o
mais rápido possível. Entretanto, meus sentidos
foram cedendo, por mais que eu lutasse, até que
meus pensamentos se tornaram brancos como uma
nuvem e minha mente acabou escorregando para o
universo tranquilo da inconsciência.
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ATO DE GUERRA

M eus
retornaram
sentidos
mais
lentamente do que eu gostaria e meu cérebro só
captava o balançar da minha carcaça. Onde eu
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estava se mexia tanto que parecia um mixer gigante


ligado durante um terremoto de nove graus na
Escala Richter. Lutei para abrir os olhos, no
entanto, meu corpo ainda estava entorpecido de um
jeito estranho.
Alguma coisa poderosa havia vencido minha
adrenalina e, sejamos sinceros, para derrubar
Everlin no modo mortal kombat, devia ter sido um
treco bem forte de fato. Balancei a cabeça na
tentativa de acelerar o processo de reinicialização,
contudo estava um tanto escuro apesar de toda
aquela movimentação. O sacolejo e a falta de luz
confundiam toda a minha noção de espaço, que já
não é lá essas coisas. Quando dei por mim, notei
que havia retornado ao chão daquela cela
ambulante, e o veículo trepidava e andava a todo
vapor.
Levantei o tronco com dificuldade e senti
minhas mãos amarradas de um modo muito mais
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apertando do que antes. Olhando ao redor,


compreendi o motivo da escuridão. Meu carcereiro
havia coberto a cela com um tipo de lona. Arrastei-
me até uma pequena abertura no tecido e
vislumbrei uma grande cidade logo à frente. Queria
poder me gabar do quanto fui forte, no entanto,
sendo bem sincera, ao me dar conta da minha
situação, um nervosismo apavorado tomou conta de
mim, fazendo meu corpo todo tremer e minhas
mãos esfriarem como mármore. Não queria nem
pensar o quão longe de Dáian eu estava e sem a
menor perspectiva de me livrar daquela baita
encrenca na qual estava metida até o pescoço.
Calma, calma, calma. Só venceram um
round, trapaceando ainda. Tem muito combustível
para queimar antes da guerra acabar e a palavra
rendição não está no meu vocabulário. Não,
mesmo!
Um raio de esperança acalentou meu coração
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quando percebi a persistência na estupidez de


amarrar minhas mãos à frente do corpo. Passei os
braços, unidos pela corda, pelos buracos das barras
e ajeitei um pouco a pequena abertura, melhorando
a visão.
Logo que consegui dar uma boa olhada na
estrada, vi diversas carroças, dividindo o caminho
com a minha cela ambulante. Observei também
pessoas andando e carregando suas mercadorias.
Havia, ainda, uns animais lindos, grandes, os quais
lembravam elefantes, transportando caixas e
provisões.
Tentei pedir ajuda às pessoas na estrada, mas
minha voz não saía, por mais fôlego que eu
tomasse. Seja qual for a substância usada para me
doparem, era extremamente forte. Após tentar, sem
sucesso, chamar por socorro, procurei algo para
desgastar a corda, como da outra vez, contudo não
havia nada. Ao que tudo indicava, desta vez,
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haviam checado a carroça.


Continuei a olhar por aquela fresta, rezando
para recuperar as forças antes de atravessarmos a
cidade. Ao cruzarmos uma espécie de muro, a
carruagem-cela começou a desacelerar e
acompanhar as outras, num ritmo mais
compassado.
Meus olhos captavam poucas imagens
através do buraco, entretanto, pude obter uma
noção do tamanho daquela cidade. Era
simplesmente gigante. Reparei em cada pequena
coisa, cada detalhe possível de distinguir e, ainda
assim, não consegui discernir se estávamos em
Yonah ou se já tínhamos cruzado a fronteira. A
carroça foi desacelerando cada vez mais até
estabilizar numa marcha lenta, acomodando-se
atrás de outras conduções enfileiradas.
Estranhamente, aquele tipo de situação me era
familiar. Se estivéssemos na Terra, eu diria que
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estávamos nos aproximando de uma blitz. Esse


pensamento me fez ter um sobressalto.
Só pode ser algum tipo de fiscalização!
Mesmo após muitas tentativas, minha voz
teimava em permanecer inaudível. Então, comecei
a puxar aquele tecido com toda a força que ainda
me restava, com a esperança de retirar aquele pano
de cima da grade e deixar que me vissem ali presa.
Se estivéssemos em Yonah, a situação chamaria a
atenção. Puxei a lona com tudo o que tinha, porém
só consegui abrir um pouco mais o rasgo. A certa
altura, nossa carruagem improvisada parou, e
minha dedução foi quase certeira. Andávamos
devagar porque passaríamos por um ponto de
cobrança de impostos.
Quem diria que, até em outro planeta, já
haviam inventado o pedágio!
— Iá... — ouvi o condutor bradar tão logo
passamos pelo cobrador. Eu podia apostar meu
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braço direito que era aquele tal de Maldon, o


“medrosão”.
Provavelmente, ele também havia dopado os
demais agentes do bando e fugira comigo.
Que cara de pau!
Após pagar pela passagem, ele arrancou com
a carroça, voltando a trafegar em uma velocidade
um pouco exagerada para o lugar. Pela rapidez,
certamente, ainda estávamos em Yonah, essa era a
única explicação razoável para o cocheiro sem-
vergonha estar com tanta pressa. Devia estar
morrendo de medo de descobrirem o tipo de carga
que transportava.
Após conseguir me equilibrar em pé,
levantei-me para ganhar impulso na tentativa de
arrancar de vez a lona e avistei nitidamente os
soldados da guarda de elite do rei enfileirados na
estrada.
Ao perceber minha chance de salvação, uma
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injeção pesada de força sobreveio e me forcei ao


limite para permanecer firme. Dentre todas aquelas
imagens borradas pela velocidade, distingui
perfeitamente uma. Minha adrenalina
superpoderosa voltou a alimentar meu motor de
combate, dando-me a determinação necessária para
encher os meus pulmões com todo ar que consegui.
Agarrei-me nas barras e soltei minha voz com a
potência de uma verdadeira cantora de ópera.
— Luiiiiiiiiii — estrondeei enquanto,
finalmente, consegui fazer com que aquele tecido
caísse na estrada e o conteúdo da cela ficasse
escancarado para quem quisesse olhar.
Meu ex-professor virou-se com o chamado e
seu espanto por me ver foi tamanho, a ponto de
demorar alguns segundos para conseguir reagir. No
instante seguinte, disparou com seu cavalo,
juntamente com a guarda de elite de Yonah, vindo
a toda velocidade ao nosso encalço. Ao perceber a
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aproximação dos soldados, o medroso, cara de pau,


acelerou ainda mais a carroça.
Os minutos que vieram a seguir foram dignos
de uma cena de faroeste, e o contexto seria,
literalmente, algo a se definir como cowboys e
aliens. Lui não tirava os olhos de mim, enquanto
cavalgava freneticamente em minha direção. A
guarda vinha em seguida, quase formando um “V”.
E o pior, o idiota do cocheiro parecia temer
só a Éfer porque continuou conduzindo a
carruagem-cela num ritmo assustador até
deixarmos a cidade, fazendo os cidadãos saírem do
caminho do jeito que podiam. Manobrava a
condução de maneira cada vez mais perigosa, como
se preferisse morrer a deixar a guarda nos alcançar.
Mal havíamos nos afastado da cidade, avistei algo
impressionante. Um cânion gigantesco, que se
estendia na horizontal até onde os olhos podiam
alcançar. O condutor da minha cela nos guiava a
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um caminho de ligação entre as duas extremidades


do cânion. A passagem para a qual nos dirigíamos
tinha até boa largura, contudo, quando comparada
ao tamanho da fenda criada pela natureza, era
impossível não lembrar de uma corda bamba.
Continuamos numa cena de perseguição
digna de filme de Hollywood, e um daqueles que,
sem dúvida, ganharia a estatueta de “melhor efeitos
visuais”. A travessia daquela estranha formação
geológica, parecida com uma ponte, foi
impressionante, com a guarda real de Yonah em
uma verdadeira caçada. Eu teria vibrado se tivesse
visto as nuances numa série, e não ao vivo e em
cores.
Ao adentrarmos naquele estranho caminho,
Lui pareceu desesperar-se sobremaneira,
cavalgando a toda velocidade sem se importar nem
um pingo com a própria segurança. E o pior de
tudo, eu não tinha a menor ideia de como ajudá-lo a
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me ajudar.
Por mais que aquela passagem não fosse tão
estreita, confesso que deu um “friozinho” na
barriga por ver aquele cânion enorme dos dois
lados. Qualquer desvio de percurso, e a queda seria
um tombo e tanto. A guarda real acelerou o ritmo e,
quando estava quase nos alcançando, transpomos o
final daquela estranha passagem. Tão logo a
carroça trespassou para a outra extremidade, o
medroso diminuiu a velocidade, voltando a
conduzir com certa tranquilidade. Olhei para a
passagem, e observei Lui, bem como toda a guarda
detendo-se no exato limite da ponte.
Essa não! Não acredito! Que filho da...
Eu não conhecia aquela região, mas, só de
observar a situação, compreendi tudinho. Se eu
tivesse um milhão de ciclos de ouro podia apostar
que aquele cânion era a divisa entre Yonah e Karur.
Por isso, a guarda parou bem ao final da ponte. Eu
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tinha ultrapassado a fronteira do país.


Droga!
Em um dos meus dias de estudo, na
biblioteca, li alguma coisa sobre ao tratado de paz,
o qual era claro quanto às regras de migração. Civis
podiam transitar livremente entre as nações, mas
militares... Olhei para Lui e temi ao ver sua
expressão profundamente aflita. A vontade de
continuar a perseguição era tão evidente, que ele,
certamente, seria capaz de cometer alguma
imprudência. Lui balançou a cabeça como se
dissesse ao mundo inteiro “dane-se”. Em seguida,
cutucou as costelas de sua montaria, fazendo-a
avançar e atravessar a fronteira.
— Lui, nãoooooo! — bradei, tentando fazê-lo
retornar.
Entretanto, ele ignorou por completo meu
apelo e continuou vindo em minha direção.
— Isso é ato de guerra! — vociferei ainda
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lutando para persuadi-lo.


Não que envenenar a água do país vizinho
também não fosse um ato de guerra colossal.
Entretanto, se aquele cretino, que me levava
prisioneira, estivesse certo, e se fossem verdadeiros
os boatos de que o exército de Karur era muito
maior, toda cautela seria pouca quando o assunto
era enfrentar aquela nação. Além disso, não
podíamos abrir nenhuma brecha para Éfer nos
culpar publicamente por uma eventual guerra.
Conflito que, se dependesse de mim, seria evitado a
todo custo, nem que eu tivesse de dar o sangue para
isso.
Ao notar um soldado de Yonah ainda vindo
em perseguição, o condutor da carroça acelerou,
dando um tranco, fazendo-me cair naquele assoalho
de madeira ambulante. Contudo, muito antes de me
levantar e tentar persuadi-lo novamente, ele já
havia saltado do cavalo para cima da minha cela.
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Em um movimento bastante habilidoso, Lui desceu


do teto até a parte traseira da carroça e passou a
golpear as correntes da gaiola. No momento em que
a tranca foi aberta, pulamos na estrada. Ele caiu
como um gato. Já eu, bom... quase.
O treinamento da guarda de Yonah tinha
direito a todos os tipos de situação de combate e
saltar de veículo em movimento também estava no
currículo obrigatório. Naquela hora lamentei por
não ter aprendido direito essa lição. O comandante
veio até mim e começou a cortar as amarras. Mal
havia acabado de me libertar e já estávamos
cercados por cavaleiros nem um pingo amigáveis.
Um deles era grandalhão, do tipo semelhante, mas
o tamanho exagerado levava a crer que havia
sofrido algum tipo de anomalia genética. Esse
desceu primeiro de sua montaria e avançou contra
Lui, travando uma batalha bem injusta. Eu sabia
como era aquilo. Enfrentar alguém muito maior.
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Os outros dois eram mais normaizinhos e


desceram das montarias logo em seguida. Também
teriam avançado contra Lui se eu não os tivesse
impedido. Avancei contra um deles do mesmo
modo que faria um jogador de rugby, até tomar
dele aquele nunchaku esquisito, o qual eu já havia
visto usarem.
Embora meu corpo ainda estivesse debilitado,
consegui impedir que aqueles dois se
intrometessem no combate de Lui e o tornassem
ainda mais injusto. No entanto, caso
conseguíssemos derrotar o trio, a situação não era
das mais animadoras. Aqueles cavaleiros eram
apenas peões que deram a sorte de chegar até nós
primeiro. Bastou reparar um pouco melhor no
cenário a nossa volta, para perceber a aproximação
da comitiva principal.
Voltei-me para Lui e o vi lutando de maneira
formidável. Ele também era extremamente hábil
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nessa arte, todavia, o oponente era maior e isso é


desafiador até para os mais preparados. Desejava
ajudá-lo, mas, infelizmente, eu tinha meus próprios
adversários para me preocupar. Assim que
consegui, enfim, derrotar os dois idiotas, olhei para
Lui e o vi em sérios apuros. Pelo visto, o
monstrengo, além de gigante, era bem treinado. A
respiração de meu ex-professor já estava
demasiadamente arquejante e não demorou muito
para que o opositor conseguisse golpeá-lo, mais
vezes do que eu gostaria de ter testemunhado.
Corri, interpondo-me no combate, e ajoelhei
perto de Lui, colocando seu rosto ferido entre
minhas mãos. Ele me olhava com tanta ternura,
mas, por maior que fosse a determinação em
prosseguir no combate, era visível que seu corpo
chegara ao limite.
— Minha senhora, fuja — ele sussurrou.
— Vai ficar tudo bem, não fale — pedi,
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enquanto assistia os sentidos dele desvanecendo.


No momento em que percebi que o
monstrengo não iria retroceder, apesar de ser óbvio
que a vitória já lhe era certa, acabei interferindo em
seu caminho.
— Saia da frente, mulher, antes que se
machuque — grunhiu aquela coisa com uma voz
que, se estivéssemos na Terra e em outra situação,
eu juraria que era uma mixagem no efeito “monstro
de filme de terror”.
Soltei o nunchaku e agarrei os bastões de Lui,
posicionando-me para a luta. Ao me ver na posição
de combatente, o grosseirão soltou uma risada
gutural, deixando-me bem irritada, e aquele bocó
tamanho família não conhecia Everlin Carter Kim
no modo irritada. Entretanto, pelo rumo que as
coisas estavam tomando, não demoraria nadinha
para ele passar a conhecer.
— Ora, ora. Essa mulher pensa estar à altura
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de ser um adversário.
Antes que eu pudesse responder, chegaram os
cavaleiros da outra comitiva e, dando uma boa
olhada no grupo, pude perceber um deles
ostentando um colar com uma espécie de brasão.
Ele era do tipo que Joen classificaria com
incomum, e seu corpo era alto e magro. Bem
magro, do tipo “nunca passei nem em frente a uma
academia na vida”. Seus olhos eram verdes
acinzentados e o cabelo negro comprido estava
semipreso por um coque. Parecia ser alguém
importante porque o nariz empinado estava nas
alturas. O restante não passava de um bando de
idiotas, isso era óbvio, no entanto havia um bocó
dentre aqueles homens, observando tudo de longe,
como se, simplesmente, adorasse ver o circo pegar
fogo.
Após dar uma boa olhada naquele grupo,
tornei a me concentrar na minha batalha com o
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esquisitão. Era claro que eu não estava em posição


de me exibir, tampouco ignorava minha
desvantagem. Havíamos ultrapassado a fronteira e,
por isso, não contávamos com proteção alguma.
Mas, mesmo assim, eu sempre fui “sem noção”
demais para abaixar a crista.
— Oh, meu filho — comecei — você pode
ser grande, mas não é dois. Eu posso ser mulher,
mas não sou metade — completei, levantando os
bastões e me posicionando para proteger Lui.
Ele retraiu a cabeça e franziu o cenho como
se não esperasse pela postura desafiadora, muito
menos pela comparação.
— E quem é você, garota insolente?
Parei uns instantes para avaliar a situação. Eu
sabia que não era alguém tão importante assim,
contudo, naquele momento, eu juro que queria ter
um título de família nobre, se possível a mais
pomposa de Yonah, só para esfregar na fuça dele.
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Eu nunca fui de me gabar por nada, mas aquela


circunstância exigia um pouco de alarde, sim.
Afinal, primeiro, aquele não era dia de eu estar
enfrentando um gigante bocó, como diria o rei
Julian do filme Madagascar, mas sim me casando.
Já haviam me tirado isso. Segundo, haviam me
dopado e me arrastado até a fronteira. E, por fim,
aquele “manezão” havia acabado de dar uma surra
em um dos meus melhores amigos, bem debaixo do
meu nariz.
Todos hão de concordar que já tinham
abusado demais da minha boa vontade.
Ora, se aquele grandalhão ia receber uma
lição de mim, eu tinha de mostrar-lhe que eu não
era pouca porcaria, e sim muita porcaria. O único
inconveniente era eu não possuir um título de
nobreza para esfregar na cara de ninguém. Portanto,
usei a única coisa que me ocorreu.
— Eu sou Everlin, a última esposa do Rei
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Sete de Yonah — e, o pior, eu disse aquilo com um


olhar tão sério e fazendo uma pose de super-
heroína que faria qualquer um jurar que eu era
alguém importante mesmo.
Eu ia morrer, mas ia morrer “me achando”.
A cara do grandalhão foi a melhor porque a
mistura de confusão com sarcasmo ficou tão
estranha que, se alguém chegasse naquele exato
momento e visse só a cara dele, sem saber da
situação, teria pensado que o gigante amarelou.
Boa, Everlin!
— Então é hoje que Sete ficará sem mulher
— rebateu, já avançando em minha direção.
— Espere! — intrometeu-se o emproado o
qual ostentava o brasão.
— Sim, Vossa Graça — respondeu o
esquisitão, recuando.
Em seguida, o magricelo de nariz empinado
se aproximou com sua montaria e me olhou de
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cima a baixo.
— Está muito longe de casa, senhora, e seu
marido não tem nenhum poder aqui — afirmou de
um jeito presunçoso ao extremo, colocando meu
módulo “ranço” para funcionar.
— Vossa Graça não deveria ficar tão próxima
da fronteira, isso é um risco ao nosso país —
considerou uma voz daquele grupo.
Observando bem aquela situação, algo não
me cheirava bem. Decidi dar minha cartada.
— Então, o próprio Rei Éfer estava
esperando por mim? Ora, mas quanta consideração
— disparei, bem sarcástica, enquanto espreitava a
reação do grupo ao redor.
— A última esposa de Sete merecia minha
especial atenção — retrucou o metido de cima da
montaria, exalando um sarcasmo muito maior que o
meu.
Olhei bem para ele, analisando detidamente.
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— Bom, já que sabe quem sou, fique Vossa


Graça sabendo que eu só falo com o homem no
comando — retorqui, estreitando bem os olhos,
outra coisinha que aprendi com o melhor.
O magricelo franziu o cenho, espantado, e
todos daquele bando arregalaram os olhos, menos
um.
Bingo!
— Raptar a esposa do rei da nação vizinha é
uma provocação que autoriza uma retaliação. Mas é
claro que Vossa Graça deve saber muito bem disso,
não é mesmo? Rei Éfer — falei, virando minha
cabeça na direção daquele que só assistia a tudo de
longe.
Não sei de onde tiraram que aquele teatrinho
ridículo iria me enganar. Era só raciocinar um
pouquinho para saber o que estava acontecendo ali,
e perceber que o idiota olhando tudo sem se
envolver, com ar superior, observando o desenrolar
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dos acontecimentos, era o mandachuva. Ele tinha


um corpo bem mais atlético do que o magricelo.
Era loiro, um tipo de loiro meio bege, com os
cabelos compridos e presos por um rabo de cavalo
baixo.
A cor dos olhos era meio indefinida, às vezes,
meio esverdeada, às vezes, castanha. O formato do
rosto era anguloso e ostentava uma barba rasteira,
exalando um ar com triplo da arrogância do palito à
minha frente. Ele me lembrava de alguém da Terra,
mas não consegui recordar quem.
Ao ter certeza de que eu não desviaria meu
olhar, ele cutucou sua montaria e veio para o centro
do semicírculo. Desceu do cavalo e chegou bem
perto, encarando-me do mesmo modo que eu o
encarava. Na sequência, o olhar tornou-se
debochado, avaliando-me.
— Vossa Graça, já não lhe disse que o seu
marido não tem poder aqui, minha senhora? —
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inquiriu com um tom irônico e um palavreado


educado, típico de nobres.
Agora sim, a farsa foi de vez para o brejo.
— Se Vossa Graça quer se esconder como
um covarde por trás de um burocrata bobalhão
como este aí — provoquei apontando para o
magricelo — devia ao menos aprender a disfarçar
os modos reais — completei triunfante.
Éfer soltou uma gargalhada exagerada, porém
aparentemente genuína, e isso aumentou o meu
estado de alerta. Eu tenho de confessar que o
comportamento contraditório me incomoda.
— O que me denunciou? — indagou altivo,
voltando a se concentrar em mim.
— Um rei? Magricelo como este aí? No
comando de uma nação que está cheia de vontade
de arrumar encrenca e tendo a plena consciência da
montanha de músculos que é o rei da nação
vizinha? E ainda branquelo parecendo que não vê
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um raio de sol há milhares de anos? Com esse jeito


de falar de burocrata, que passa os dias enfiado em
livros e contas? Me poupe... — discorri sem muita
paciência.
Éfer estreitou os olhos e abriu um sorriso
malicioso como se quisesse esfregar na minha cara
que também havia desvendado algo sobre mim do
mesmo modo que eu acabara de descobrir sobre
ele. Em seguida, dirigiu o olhar a Lui e sua
aparência transmudou-se para uma de desdém.
— Dáian devia ensinar melhor a sua guarda.
O armistício, em vigor desde de Dar, o magnífico,
estabelece que a travessia de militares pela fronteira
autoriza a declaração de guerra. Mas é claro que a
senhora já sabia disso — afirmou, voltando-se para
mim, com aquele ar superior insuportável.
Era estranho ele chamar Dáian publicamente
pelo nome e não pelo título em forma de número,
como todo mundo fazia. Em todo o tempo que
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estive no palácio, nunca ouvi Dáian mencionar


Éfer, principalmente assim, com ar de intimidade.
— Claro... e... envenenar a população vizinha
e sequestrar a esposa do rei não autoriza, não é? —
retruquei com ironia.
Os lábios de Éfer se curvaram para a direita
num meio sorrisinho quase diabólico, ele continuou
a olhar para mim com uma mistura de curiosidade e
reflexão. Podia apostar que imaginava um modo de
me usar para atingir seus objetivos escusos.
Esse cara é perigoso! Perigoso demais. Do
tipo de perigo que se enfrenta e se elimina antes
que seja tarde demais.
Provavelmente fosse mesmo do tipo que
gosta da maldade pela simples maldade. Se assim
fosse, com um tipinho como aquele, todo o cuidado
era pouco. Minha mente devaneou em algumas
conjecturas, porém, naquele momento, o mais
prudente era não tirar conclusões precipitadas,
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afinal ainda era cedo para deduzir o que Éfer


realmente queria ou qual era o seu jogo. O mais
urgente era avisar Dáian das possíveis armas
químicas. Aquele treco que usaram para me fazer
dormir era bem forte, muito mais do que eu
gostaria ter de reportar. Aliás, se dependesse de
mim, eles não teriam nem estilingues.
— Autoriza sim, mas... — Éfer se aproximou
— ... no seu mundo não ensinam que “manda quem
pode e obedece quem tem juízo”? — cochichou,
com os olhos fixos em mim.
Paralisei por alguns instantes. Eu não fazia a
menor ideia de até que ponto Éfer sabia sobre mim.
Ele sabia sobre a ponte de Einstein-Rosen, isso era
fato. Entretanto, admitir as minhas origens não
traria vantagem alguma, nem naquele momento
nem no futuro. Negar, ainda era a melhor saída.
— Era para eu ter entendido a piada? —
indaguei do jeito mais desentendido que consegui.
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Eu não era boa mentirosa, mas, quando o


destino do mundo está em jogo, habilidades surgem
das profundezas, de onde acreditamos não ser
possível extrair mais nada.
— Hum — ele arfou, não sei se acreditando
ou fingindo acreditar.
Após isso, desviou o olhar e fixou-se em Lui.
— Estou vendo que não se trata de um
soldado qualquer, e sim do comandante da guarda
de elite de Dáian.
Ele mencionou Dáian com essa intimidade
toda de novo?
— Matem-no — decretou repentinamente.
— Nãooooo! — estrondeei.
Ele esboçou um meio sorrisinho irritante,
como se minha atitude tivesse aguçado sua vontade
de jogar mais um pouco.
— Dáian sabe desse seu apreço pelo
soldadinho? — insinuou, mantendo o sorriso
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provocador.
— O Rei Sete não se importa nem um pingo
por quem tenho ou deixo de ter apreço — blefei,
porque eu não podia deixar que Éfer me usasse
como uma arma para os seus propósitos.
— Não sei se isso é bem verdade, afinal ele
se desfez de setecentas por você — retorquiu, ainda
jogando.
— Parece que Vossa Graça está mal
informado. O rei dispensou todas as esposas,
inclusive eu. No entanto, ainda precisava de mim
como curandeira. Mas agora que já ensinei o que
precisam fazer, não necessitará mais de meus
serviços — contra-ataquei — se devolver o soldado
à Yonah vivo, como ato de misericórdia, mesmo
que ele tenha violado a divisa, aposto que o Rei
Sete esquecerá esse mal-entendido e dará o assunto
por encerrado — finalizei, rezando para que o
movimento que eu acabara de realizar no tabuleiro
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fosse digno de, pelo mesmo, um “xeque”.


Éfer se aproximou de mim tal qual um
pugilista se aproxima de seu adversário no dia da
pesagem.
— Você joga muito bem, e estes olhos em
chamas são bastante interessantes — falou ao
mesmo tempo em que aproximava o rosto do meu.
— Que bom que foi com a minha cara,
porque eu não fui nem um pingo com a sua —
desafiei, encarando-o sem desviar nem por um
segundo.
Éfer gargalhou.
— Faça comigo o que quiser, mas você vai
devolvê-lo vivo ao seu país — disparei, e ele não
mentira quando dissera que meus olhos estavam em
chamas, porque senti o fogo intensificar de tal
maneira que podia jurar que dali surgiria um raio
laser a qualquer momento.
— Vamos ver se a masmorra dobra esse seu
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espírito — ameaçou, mirando-me com a mesma


postura altiva.
Ao ouvir a ameaça do rei, aquele bando de
idiotas começou a rir e a caçoar, como se tivessem
certeza de que aquele aviso seria suficiente para me
fazer recuar.
Coitados, não me conhecem.
— Experimenta — afrontei, porque se eu não
tivesse desafiado ninguém menos que o rei da
nação mais perigosa daquele planeta, não seria eu.
Éfer sorriu de forma diferente.
— Devolvam o soldado para o país dele, com
vida — ordenou — e tragam a senhora de Yonah
conosco, mal posso esperar para que Dáian venha
atrás dela — completou.
— Vai esperar sentado — cantarolei, afinal o
jogo ainda não havia acabado.
O rei de Karur subiu em sua montaria e
passou a conduzir o grupo na direção oposta à
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Yonah. Em seguida, o idiota medroso, que havia


me trazido, passou a me escoltar de volta à carroça-
cela.
Umas férias na masmorra não era exatamente
o que eu pretendia, mas o fato de Lui ser levado de
volta com vida servia para eu me considerar
vitoriosa em meu primeiro embate com Éfer. É e,
pelo jeito, eu iria ter de fazer uma visitinha a Karur,
querendo ou não.

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SOBREVIVENTE

K arur era pior do que


eu imaginava. E não

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era pouco pior não, era muito pior. Quilômetros e


quilômetros de nada e, percorrendo mais à frente,
ainda se podia encontrar um pouco mais de nada.
Quando finalmente chegamos a uma cidade, tudo o
que pude captar foi aglomeração, desordem,
barulho e uma dose de caos temperada com
crueldade, cujo aroma se espalhava pelo ar, como
uma nuvem negra e poluída.
Açoites em plena via pública pareciam
comuns. Além disso, pessoas carregavam pessoas
em meios de transportes estranhos. Na Terra, acho
que esse tipo de carroça de tração humana se chama
jinriquixá, mas não tenho bem certeza. No entanto,
os jinriquixás terrestres podiam ser considerados
muito mais dignos que aquilo. Quanto mais aqueles
cenários repulsivos iam povoando a minha mente,
mais eu tinha certeza de uma coisa: Yonah parecia
um verdadeiro paraíso perto daquilo. Talvez o país
mais pobre da Terra já fosse o céu comparado
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àquele lugar.
Ao que parecia, Éfer tinha cruzado um bom
trajeto até a fronteira para me recepcionar
pessoalmente e isso indicava que ele tinha alguma
informação privilegiada a meu respeito. Certamente
ele desconfiava de que eu vinha do mundo azul, a
pergunta era: como ele poderia saber disso?
Transpomos a cidade e logo avistei um
castelo sombrio erguido no alto da colina, cuja
construção possuía um aspecto medieval,
assemelhando-se a uma verdadeira fortaleza.
Droga, fugir vai ser bem mais complicado do
que pensei.
O mais engraçado era que essa cena de
chegar a um palácio em um veículo de tração a
cavalo me dava uma sensação estranha de déjà vu.
Ainda que muitos pensem que um harém seja
melhor que uma masmorra, continuo a crer que isso
depende do ponto de vista.
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O castelo de Éfer também era extenso e, pelo


aspecto, um dia já havia sido maior ainda. Era
perceptível, algumas alas foram destruídas,
resistindo, tão somente, as bases de pedra
enegrecidas pelo tempo, as quais já partilhavam seu
espaço com a vegetação, que crescera livre com o
passar dos anos.
Éfer fez questão de me conduzir
pessoalmente até a masmorra e, no trajeto,
cruzamos uma boa parte do palácio. O castelo não
era tão luxuoso quanto o de Yonah, mas tinha lá
sua dose de riqueza. Qualquer um que o visse
acreditaria que pertencia à realeza, sim.
Como qualquer bom mausoléu, a masmorra
ficava no subsolo. E dei graças a Deus por não ser
tão insalubre quanto aparentava. Lógico, não
deixava de ser horrorosa. No entanto, eu,
sinceramente, pensei que fosse pior. Essa também
era uma das técnicas de autopreservação que
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desenvolvi com os anos. Sempre imagine uma


coisa ruim, como sendo muito, mas muito ruim.
Assim, quando você enfim conhecer seu desafio,
vai perceber que ele não era tão ruim quanto
imaginou.
— Seus aposentos, minha senhora — falou
Éfer com escárnio, sinalizando para a cela
aparentemente vazia.
Adentrei sem floreios nem hesitações.
No momento em que me virei para encará-lo,
ele fechou a grade bem devagar e, pelo seu olhar
fixo em mim, parecia estar me dando todo o tempo
do mundo para implorar.
— Já pode começar a chorar — ele sugeriu,
após girar as chaves.
— Espere deitado, porque se esperar sentado
você vai se cansar — provoquei.
O rei gargalhou e deu para ouvir o riso
reverberando pelos corredores.
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— Pois bem, então — soltou por fim,


retirando-se, mas mantendo os olhos fincados em
mim até desaparecer no corredor.
Só não mostrei a língua porque seria muito
infantil, mas que deu vontade, isso deu.
Assim que ele se retirou, comecei a dar uma
olhada minuciosa onde estava. A penumbra cobria
parte da cela e resolvi não explorar a parte escura
até porque era melhor não descobrir quais criaturas
estariam ali me fazendo companhia. Eu sempre
amei animais, contudo, tinha repulsa de alguns
como toda boa mulher. A pequena janela ficava no
alto e, só de olhar, deduzi a pouca chance de
escapar por ali.
No minúsculo quadrado, que não chegava a
ser um cubículo, mas também não era tão espaçoso
assim, só havia uma vassoura como aquelas do
filme Harry Potter, não a nimbus 2.000, as mais
desgrenhadas mesmo, um balde, que
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provavelmente era o banheiro, e uma cama que era


nada mais do que uma tábua presa à parede por
correntes.
Após analisar um pouco a situação, tive a
plena certeza de que o único meio de escapar era
tomar a chaves de algum guarda, responsável pela
refeição ou que eu conseguisse atrair. Sentei e
recostei a cabeça na parede fria de pedra.
A situação não era boa, eu tinha de admitir.
Dáian sabia que haviam me trazido para Karur e
devia estar ciente de que o palácio era bem
guarnecido. Então, só havia dois caminhos: ou ele
invadiria o lugar, e isso não era nada bom seja
pelos boatos do tamanho do exército ou pela
informação daquele idiota de que Éfer apostara em
armas de destruição em massa, ou tentaria uma
incursão furtiva. O pior era: nenhuma das soluções
parecia boa ou, pelo menos, pouco perigosa.
Respirei fundo. O jeito seria tentar fugir por
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conta, antes que Dáian fizesse alguma coisa e


depois arrumar um meio de encontrá-lo. Ele era
famoso e eu tinha boca, então, chegar ao rei não
seria tão impossível assim. O desafio mor era
arranjar uma maneira de escapar dali.
Depois de um tempo pensando, trouxeram-
me uma comida intragável, que acabei comendo
sem pestanejar. Ficar magra e sem forças, não era
uma opção. Acredite em mim, caro amigo leitor,
existem momentos na vida que a força de vontade
tem de ser maior que qualquer coisa, qualquer coisa
mesmo, se quisermos conquistar a alegria de
alcançar um objetivo.
Naquele momento, eu tinha um novo
objetivo. Não importava como, nem o que eu teria
de fazer para consegui-lo, eu iria retornar aos
braços do homem que eu amava, aliás, do homem
que sempre amei. Eu iria voltar para perto de
Dáian, nem que fosse a última coisa que eu fizesse
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na vida. Só estranhei o fato de terem trazido duas


cumbucas, contudo, resolvi não reclamar. Como eu
disse, enfraquecer não era o que tinha para amanhã,
nem para depois de amanhã. Eu não sabia ao certo
quantos dias eu demoraria para escapar, só podia
rezar para que não fossem tantos assim.
Passado mais algum tempinho, vi um guarda
se aproximar. Levantei na mesma hora. Poderia ser
uma chance, até porque nunca se sabe quando a
oportunidade da vida da gente vai aparecer. O
guarda veio acompanhado de dois homens
maltrapilhos e, em seguida, abriu a cela.
— Vossa Majestade lhe enviou companhia —
avisou e saiu rindo, assim que empurrou os dois
para dentro, voltando a trancar a grade.
— Olha só o que temos aqui — falou um dos
novos prisioneiros.
— Que belezura, hein — gracejou o outro
colega de cela.
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Mirei com o canto dos olhos a vassoura


recostada na parede, enquanto calculava todos os
movimentos necessários para chegar até ela. Uma
arma é sempre uma vantagem numa luta, seja ela
qual for. Estreitei meus olhos e agucei meus
sentidos, programando-os para agir ao menor sinal
de hostilidade.
— Olha só, ela é arisca — desdenhou um
daqueles homens.
— E só dá mais vontade de provar —
insinuou o outro.
— É... Éfer não nos colocaria aqui com uma
maravilha rara dessas à toa — concluiu o primeiro.
Maravilha, é? Não ia demorar nadinha para
me conhecerem no modo “mulher maravilha”, e eu
podia apostar que não iriam gostar nem um pingo.
— É claro que não — concordou o outro, já
dando um passo em minha direção.
Dei um sorrisinho torto. Entretanto, muito
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antes de um daqueles caras efetuar o primeiro


movimento, eu já estava próxima da vassoura e
bastou uma manobra com o pé para arremessá-la ao
ar e, em seguida, agarrá-la.
Pronto, eu já tinha uma arma.
Os idiotas hesitaram por um breve instante,
mas já era tarde demais. Investissem ou não contra
mim, o destino deles já estava selado. Os
movimentos realizados foram dignos da guarda de
elite e cada vez que eu os golpeava, conseguia
ouvir em minha mente a trilha sonora do filme da
minha heroína predileta. Claro, eu não podia me
esquivar de balas, mas que eu já era capaz de pôr
idiotas em seus devidos lugares, isso eu era. O
espaço relativamente limitado acabou sendo bem-
vindo no fim das contas, pois não deu chance de
eles escaparem da minha vassoura da justiça. Antes
que percebessem, suas mentes já tinham sido
anestesiadas pelo mundo misericordioso da
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inconsciência.
Eu sabia perfeitamente que Éfer viria
pessoalmente conferir se seus “presentinhos” me
fariam implorar por piedade. Então, resolvi colocá-
los de em uma forma bem confortável para mim e
me sentei à espera do anfitrião, o qual não me
deixou aguardando muito. O rei de Karur se
aproximou das barras da cela e, assim que ele me
olhou, mexi meu traseiro, afofando meu novo
assento.
— Quer mandar mais alguns para deixar
minha mais nova poltrona maior e mais macia? —
indaguei, mirando-o com aquele meu olhar
desafiador infalível.
O rei estava vestido de forma bem mais
descontraída e, no momento em que assimilou a
situação, cruzou os braços e se apoiou na parede,
abrindo um sorriso bem debochado.
— E se eu colocasse uns dez aí com você,
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será que isso a fará implorar?


Levantei na mesma hora.
— Se fizer isso, veremos quem tem a
determinação maior. Quem puder mais, vai chorar
menos, isso eu lhe garanto — pronunciei entre
dentes.
No instante em que terminei meu discurso,
Éfer gargalhou de um jeito diferente, como se
tivesse, enfim, liberado todo o senso de humor que
estava reprimido dentro de si.
Que humor horroroso! Aff...
— Onde Dáian foi arrumar uma mulher como
você?
— Eu já disse, o Rei Sete me dispensou —
reiterei, voltando a sentar-me sobre os homens.
Éfer me analisou e, pela sua postura, parecia
ponderar sobre a verossimilhança do que eu disse.
Era hora de reforçar a cartada.
— Não que eu quisesse ser dispensada, o Rei
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Sete é bem bonitão. Mas essas coisas acontecem,


não é? E o que não falta neste mundo é homem rico
à procura de uma raríssima — esclareci com o
máximo de desdém que consegui, ignorando a
pontada de dor ao pensar nele.
— Então... Dáian atravessou a ponte dos
mundos e foi buscar você? — indagou novamente
me escrutinando.
Engoli em seco. O idiota também sabia jogar.
— Não sei do que está falando. Você é doido
— ataquei, mantendo-me no controle.
— Acredite, você vai me contar tudo o que
quero saber.
— Acredite, vou mandar você para “aquele
lugar” muito antes do que eu havia pensado —
revidei.
Éfer gargalhou novamente. E o mais incrível,
sua atitude dava a impressão de que havia
começado a se divertir comigo. O único
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inconveniente era não ter certeza se isso poderia ser


uma vantagem.
— Tirem esses dois daí — ordenou aos
soldados.
O melhor, no momento, era abrir caminho,
então acabei me levantando.
— Vamos ver como estará o seu humor daqui
a alguns dias ou alguns meses — decretou com um
sorrisinho torto.
Devolvi o mesmo sorriso torto.
De novo essa vontade de mostrar a língua!
O jantar veio, novamente, em duas
cumbucas, apesar da comida ser horrível, deixei a
reclamação guardada para quando chegasse a hora
de dar uns sopapos na fuça do Éfer. Isso também
era uma coisa a se fazer na vida. Ah, se era!
Resolvi deixar o balde-banheiro embaixo da
cama improvisada e dormir no chão mesmo.
Definitivamente aquela estadia não iria para a lista
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das melhores da minha vida, entretanto, eu iria


sobreviver e escapar dali. Minha teimosia garantiria
isso.
Quando o sol raiou, decidi levantar e me
alongar um pouco. Colocaram um balde com água
e improvisei um pouco de higiene pessoal.
Fazer o quê?
Era o que tinha para aquele dia. Durante a
noite, reparei que a guarda era rendida uma única
vez. A tarefa do dia consistia em aferir quantas
trocas de guarda eram feitas. Tão logo acabei
minha pseudo-higiene, sentei-me novamente
pensando em como poderia atrair algum guarda,
sem ter de apelar para métodos mais escusos. Acho
que não preciso explicar o que eu quis dizer, não é
mesmo, caro leitor?
Eu mirava um ponto da parede da cela,
enquanto meus pensamentos divagavam entre os
mais inusitados planos, quando ouvi um barulho
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vindo da parte escura do cárcere. Levantei num


sobressalto. Eu não quis explorar o que tinha ali, no
entanto, como aquele lugar permaneceu silencioso
por todo aquele tempo, julguei que não houvesse
nada. Agarrei a vassoura, caso fosse necessário
matar alguma coisa, principalmente se rastejasse, e
me aproximei bem devagar. Em seguida, decidi
usar o cabo para tentar cutucar o que quer que
estivesse se escondendo naquela penumbra. Usei a
vassoura e o meu pior medo se concretizou. Tinha
alguma coisa ali, sim.
Caramba!
Antes de fazer o que meu instinto estava
ordenando, que era bater na coisa até eu sentir que
não poderia me atacar, resolvi trazê-la para luz,
afinal era melhor constatar o que era primeiro,
antes de qualquer atitude mais radical. Assim que a
puxei “aquilo” para onde estava um pouco mais
claro, levei um baita susto. Era um rapaz, mas,
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como estava de costas para mim, não pude ver seu


rosto logo de cara. Decidi, então, arrastá-lo mais
um pouco e movê-lo a fim de ver o rosto, e, no
instante que o virei, meu assombro foi às alturas.
Até perdi fala.
Jesus, eu não acredito nisso!
Meu corpo, simplesmente, não parava de
tremer enquanto eu o fitava atônita. Ele usava uma
camiseta com a estampa dos Guardiões da Galáxia.
Forcei meu cérebro a funcionar e comecei a dar-lhe
tapinhas no rosto para ver ser acordava. Estava
muito magro e seus sentidos haviam sumido pela
febre. Reparando melhor naquele homem, pude ver
que vestia uma jaqueta rasgada e uma calça jeans
também em frangalhos. Examinando mais a fundo,
percebi que o motivo da debilidade provinha de um
ferimento enorme na perna. O rapaz precisava de
cuidados urgentemente.
— Oi.. oi... acorde — eu chamava, enquanto
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continuava com os tapinhas.


Ele se moveu de um jeito tão fraco e olhou
para mim, contudo, não conseguia se fixar. Peguei
a gosma que haviam trazido de café da manhã e
comecei a amassar ainda mais, dando-lhe na boca,
na esperança de que recuperasse um mínimo de
força.
O rapaz comeu um pouco, tomou a água, que
eu, praticamente, enfiei goela abaixo, e voltou a
deitar-se. Pelo menos, depois de se alimentar, até a
respiração dele pareceu ficar mais forte. Comi a
gosma que sobrou e acabei entendendo o porquê
das duas cumbucas. Nossa, eu tinha comido duas
refeições do rapaz, não que tivesse sido um prazer
fazer isso.
Após o desjejum, fiquei observando-o e, após
um tempinho, o meu recém descoberto
companheiro de cela já demonstrava um leve sinal
de melhora. Ponderei se seria prudente fazer um
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escândalo em busca de cuidados para ele.


Será que Éfer sabia sobre ele ali?
O fato de ser rei não lhe dava
automaticamente a percepção de tudo. Portanto,
poderia muito bem desconhecer esse fato. Então,
não seria inteligente eu lhe dar essa informação de
bandeja, até porque havia muita coisa em jogo. As
roupas denunciariam sua origem ou, pelo menos,
levantariam suspeitas.
Um pouco mais tarde, o forcei a beber mais
um gole de água. Ele tentou balbuciar alguma
coisa, mas acabei por tocar seus lábios, deixando
claro que o silêncio seria melhor naquele momento.
No instante em que cerrou os olhos novamente,
comecei a vasculhar seus bolsos em busca de
alguma informação. Muito provavelmente,
considerando o seu estado, já o haviam depenado.
Contudo, poderia ter alguma coisa que indicasse
como ele havia chegado ali.
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Ao remexer o bolso traseiro da calça, achei o


que procurava. Era um papel, o qual já havia sido
molhado e, depois, secado dentro da roupa mesmo.
Apesar de muita informação já ter sido perdida, era
inconfundível do que se tratava. Sem desviar o
olhar do que tinha em mãos, sentei-me, e recostei
minha cabeça na parede da cela. Em seguida,
respirei fundo, tentando pôr as ideias em ordem,
sem acreditar nem um pingo no que tinha entre
meus dedos.
Um cartão de embarque da Air France!
Ele estava comigo na aeronave. Não pude
acreditar. Também era um sobrevivente do voo AF
3.600. Nesse momento, uma emoção inexplicável
começou a tomar conta de mim, semelhante àquela
sensação em meu peito ao ver a porta de casa.
Esse rapaz é da Terra! Meu Deus!
Meu primeiro ímpeto foi levantar e fazer o
maior escarcéu até que alguém viesse e tratasse o
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moço. Não que uma “rodada de baiana” fosse


resultar em alguma coisa, porém toda tentativa
bem-intencionada é válida. Entretanto, pensando
melhor, e se Éfer não soubesse mesmo dele ali?
Comigo, querendo ou não, o rei de Karur ainda
mantinha certa cautela, afinal, para todos os efeitos,
eu era esposa do rei da nação vizinha.
Mas, com aquele jovem, Éfer, com certeza,
faria o que quisesse, sem que eu pudesse fazer nada
para impedir. Por óbvio, o terráqueo recém-
descoberto não sabia sobre o templo e a ponte de
Einstein-Rosen, contudo, se o rei de Karur tivesse
acesso a alguma arma da Terra ou objetos tão
perigosos quanto, poderia obrigá-lo a revelar o que
eram e como funcionavam.
Droga!
Talvez chamar a atenção não fosse mesmo o
mais inteligente, apesar do rapaz precisar de
cuidados médicos urgentemente. Como eu disse,
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havia muito em jogo. Quando o almoço chegou,


amassei a comida o quanto pude e o forcei a comer.
Ele já aparentava estar mais fortalecido do que
quando o descobri. Com um pouco de esforço,
abriu os olhos.
— Obrigado — sussurrou, e o meu espanto
foi porque ele disse isso na minha língua.
Ainda que estivesse na aeronave, podia muito
bem ser de outro país.
— Não fale, descanse — respondi, na nossa
língua.
Mesmo debilitado daquela maneira, ao me
ouvir, ele arregalou os olhos que, quase
imediatamente, encheram-se de lágrimas.
— Você me entende? — indagou
emocionado.
Balancei a cabeça afirmativamente.
— Onde estamos? Pelo amor de Deus, me
diga! — implorou agitado.
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— Calma. O mais importante agora é você


recuperar um pouco de força. Prometo que
explicarei tudo quando você estiver melhor —
falei, tentando acalmá-lo.
— Qual é o seu nome? — perguntou com a
voz enfraquecida.
— Everlin e o seu?
— Jason.
— Seus pais eram fãs de Power Rangers ou
Sexta-feira 13? — brinquei, tentando aliviar um
pouco a situação, afinal não precisamos deixar as
tragédias mais pesadas do que já são.
— Power Rangers, meu pai adorava o ranger
vermelho — respondeu com um sorriso quase
imperceptível.
— Era o meu favorito também — afirmei,
ainda com a intenção de animá-lo mesmo sendo
óbvio que as circunstâncias não eram nada
animadoras.
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Quando ele voltou a dormir, dei uma boa


examinada na ferida, e estava muito feia, mais do
que eu gostaria de constatar. Após alguns minutos,
percebi que alguém se aproximava e arrastei Jason,
novamente, para a parte escura, voltando a me
acomodar no chão da cela em seguida.
Éfer veio até as grades e se abaixou olhando-
me diretamente, como se procurasse por alguma
coisa, talvez algum sinal de medo. Encarei-o com o
mesmo afinco, buscando perceber se o olhar dele se
desviaria para a penumbra da cela, nem que fosse
só de relance. Entretanto, seus olhos se mantiveram
fixos em mim, e isso só podia significar que não
soubesse mesmo de Jason. Se Éfer tivesse
conhecimento do terráqueo naquela cela, e
estivesse mesmo só me testando, ele era ardiloso ao
extremo.
— Diga o que quer de uma vez — impus sem
paciência.
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— Posso deixá-la aqui por mil anos que não a


farei implorar, não é?
— Só agora você percebeu?
Éfer ensaiou um meio sorriso.
— Venha comigo — falou enfim, abrindo a
cela.
Hesitei por alguns instantes, afinal como eu
poderia deixar Jason ali sozinho?
— Não me diga que gostou do aposento? —
indagou Éfer ao pressentir minha breve incerteza.
Mesmo que eu não gostasse da ideia, a
melhor chance, minha e de Jason, seria se eu
descobrisse uma forma de escapar e depois viesse
buscá-lo.
— Não é isso, só estou desconfiada do
repentino surto de benevolência — disfarcei.
Éfer gargalhou.
— A senhora sempre tem uma resposta na
ponta da língua, não é?
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— Não mais que Vossa Graça — o Vossa


Graça saiu tão arrastado e corrosivo que o rei
acabou rindo de minha alfinetada.
Deixei o cativeiro e o segui pelos corredores
daquele palácio, o qual ninguém podia negar que
era um tanto sombrio, até para uma realeza
despótica como a de Karur. Após percorrermos
alguns cantos lúgubres, chegamos a uma sala, não
tão longe assim do ponto de partida. O rei abriu a
porta apontando para que eu adentrasse. Semicerrei
meus olhos, deixando evidente que eu não estava
gostando nadinha daquela situação.
Éfer não tentaria nenhuma gracinha, disso eu
tinha certeza, até porque testemunhou, com os
próprios olhos, do que eu era capaz e aparentava ter
inteligência suficiente para não terminar com o
nariz torto, ou melhor dizendo, com o nariz
entortado por mim.
Mal coloquei os pés naquela sala e me
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deparei com um cenário que me fez paralisar, quase


de imediato. Embora estupefata, tive o cuidado de
respirar normalmente e fabricar uma bela cara de
paisagem para que Éfer não percebesse a mudança
do meu estado de espírito. A sala encontrava-se
repleta de prateleiras entulhadas de cima a baixo
com os mais diversos objetos da Terra.
Tentei não me fixar em nada específico,
fingindo total desinteresse, mas, de relance,
observei várias velharias, alguns aparelhos
modernos que, visivelmente não funcionavam, e
duas coisas muito interessantes: uma mala médica
moderna que, só pela aparência do case, devia ser
completíssima e alguns objetos cilíndricos
embrulhados em papel pardo com a inscrição
dynamite.
Droga.
— Aposto que sabe o que são estas coisas —
insinuou voltando a me analisar.
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— Tudo o que vejo é que Vossa Graça é dado


a colecionar quinquilharias — comentei enquanto
tentava ao máximo não transparecer a minha
vontade de pegar as bananas de dinamite, a mala
médica e sair correndo.
— Isso aqui parece ser importante porque
está olhando com especial interesse — insinuou,
tocando a mala médica e fitando-me.
Cuidado com esse cara...
— Só achei interessante — disfarcei.
— Um estojo preto? — indagou incrédulo.
— É um estojo preto interessante — insisti,
procurando ser o mais convincente possível.
— Hum — expressou sem me deixar saber se
se convencera.
— Já posso voltar para meu aposento? — a
última palavra saiu tão zombeteira que eu já estava
me considerando perita no assunto.
— Não vai tentar me convencer a cuidar
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daquele rapaz?
A pergunta me deixou perplexa, mas tentei
bravamente não fazer nenhum movimento brusco.
Ele sabia do Jason e, por isso, me pôs lá. É
ardiloso ao extremo mesmo!
Eu tinha de pensar em algo rápido, até
porque, mesmo que fosse um jogador formidável,
ele não ia me vencer.
— Para quê? Pelo que vi até agora deste país,
seria inútil. É claro que aquele pobre desgraçado
vai morrer ali no escuro sem que ninguém sequer
note — encenei, sem expor a menor gota de
sentimento.
Éfer me mirou com os olhos semicerrados e,
em seguida, delineou um sorriso astuto.
— Será que me enganei a seu respeito, minha
senhora?
— Disso eu não tenho dúvida — respondi
entre dentes.
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Logo após, o rei de Karur tocou uma sineta


que tirou de um dos bolsos, em seguida, alguns
criados apareceram rapidamente.
— Levem a senhora para banhar-se e a
vistam-na de forma mais apropriada. Depois,
levem-na para a ala de hóspedes e deem a ela o
melhor aposento — ordenou.
— Que isso agora? — indaguei na defensiva.
— Só desfrute de minha generosidade,
senhora — ele afirmou, pegando uma de minhas
mãos e beijando o dorso dos dedos.
Retrai a minha mão no ato num gesto
totalmente involuntário e Éfer gargalhou diante da
minha atitude. O problema foi que a minha reação
lhe deu a falsa impressão de que eu, ao menos
naquele aspecto, era facilmente encurralável.
Droga.
Resolvi mudar o rumo das coisas e despejar o
que me incomodava desde a fronteira, na tentativa
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de inverter o jogo ao meu favor.


— Olhe, eu não entendo muito de protocolos
reais, mas, pelo pouco que sei, não se usa Vossa
Graça para se dirigir a um rei — provoquei porque
se eu o pegasse em alguma contradição ou, pelo
menos, em algum ponto que não havia planejado
direito, seria uma excelente oportunidade de
derrubá-lo do pedestal.
— Eu sei, mas Vossa Graça transmite um ar
bem mais divino, não acha? — justificando a
idiotice como se fosse o motivo mais brilhante do
mundo.
Confesso que diante de tamanha asneira
acabei ficando completamente sem reação.
Formular uma resposta para aquilo seria nivelar-me
a estupidez. Os únicos músculos que teimaram em
se mover foram os da minha testa, que acabou
franzida.
Éfer gargalhou novamente.
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— Devia ver sua cara, minha senhora. Está


hilária.
Vou mostrar o “hilário” para esse cara, já,
já!
— Vossa Graça chama menos atenção nessas
incursões um pouco mais... discretas e a senhora
estava usando o termo de maneira tão graciosa...
— Debochada, você quis dizer — interrompi.
— ... que não quis corrigi-la — finalizou.
Estranhamente, Éfer passou a me encarar de
um modo muito diferente de antes. Talvez tivesse
feito os cálculos e resolvido utilizar outro tipo de
abordagem comigo. Mal sabia ele que podia tentar
o que quisesse, não iria me pegar de calça curta.
Criatividade, não me faltava.
— Acompanhe-a — ordenou, enfim.
Mesmo que eu estivesse preocupada o Jason,
decidi aceitar o que ele chamara de generosidade. A
melhor estratégia, naquele momento, seria
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aproveitar a oportunidade para observar o palácio,


principalmente, possíveis rotas de fuga ou qualquer
coisa que servisse para realizar um bom plano, o
que seria impossível trancafiada em uma cela.
Mais tarde, após me banhar e tomar um café
da tarde decente, alguns servos me acompanharam
de volta ao que seria meu novo quarto. Estiquei-me
o quanto pude na janela para tentar ver ao redor, no
entanto, tudo que consegui constatar foi a
gigantesca extensão do palácio.
Dei alguns passos em direção à porta para
entreabri-la e observar quantos guardas havia no
corredor e, para minha perplexidade, não havia
nenhum. Abri a porta e coloquei a cabeça no
corredor, olhando de um lado para o outro e, de
fato, ninguém estava por ali.
Será que Éfer está tão confiante assim,
achando que sou incapaz de fugir?
Minha vontade foi apregoar aos quatro
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ventos: agora sei por que os subordinados são tão


burros, também com um rei desses! Entretanto, não
se pode brincar com a sorte, nem desperdiçar
oportunidades preciosas, ainda mais quando nos
são dadas assim tão gratuitamente. Andei pelos
corredores e, após algum tempo caminhando,
entendi porque Éfer estava tão tranquilo.
Droga, quebrei a cara.
O castelo era mais fortificado do que
aparentava quando o vi pelo lado de fora. Fugir era
o que se poderia definir como missão impossível,
ainda mais porque eu pretendia levar um
prisioneiro ferido comigo. Continuei caminhando
pelo palácio sem nenhuma resistência dos guardas,
como se eu fosse uma convidada e não uma
prisioneira.
Pensando em toda aquela situação, de duas,
uma: ou Éfer estava convicto de que eu não fugiria
e, por isso, podia perambular e xeretar à vontade
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sem o menor risco de eu levar algum segredo à


nação inimiga ou mantinha as armas secretas bem
longe do palácio. Considerando bem as variáveis,
eu podia apostar alguns ciclos de ouro, se eu
tivesse, na primeira opção.
Perambulando um pouco mais, cheguei a
uma ala bem afastada e isolada que, naquele
momento da história, era externa, mas aparentava
que já tinha sido interna em um passado remoto. A
vegetação crescia sem ser perturbada, misturando-
se aos alicerces e paredes que sobreviveram,
formando uma área verde linda e exótica. Até as
flores surgiram entre o verde abundante como se
fossem destinadas, desde o princípio do mundo, a
estarem ali. Atravessei uma espécie de túnel de
pedra ou o que sobrara deste, observando as lindas
flores brancas no teto e as pedras sobrepostas que,
ao que parecia, haviam sido fortes o suficiente para
conquistarem o direito de permanecerem de pé. Ao
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final, cheguei até um muro de onde se podia ver


toda a planície abaixo.
Meu Deus, esse lugar é uma fortaleza! E
agora?
Um arrepio gélido começou a descer por
minhas costas. Dáian teria de vir com um exército e
pôr aquela fortaleza abaixo se quisesse me resgatar.
Não que eu duvidasse que fosse capaz disso, mas
era a coisa mais insana a fazer ou poderia tentar
uma solução diplomática, algo quase impossível
com aquela hiena astuta a quem chamavam de rei.
Uma incursão furtiva também era uma missão
suicida, porque, pelo que verifiquei, o palácio
embora fosse fácil de entrar, era impossível de sair.
Portanto, o mais prudente, como rei, era se
esquecer de mim e me abandonar.
Meu coração acelerou e minhas mãos
esfriaram quase instantaneamente. Afinal, o tal
Murphy ia ou não ia com a minha cara? Não era
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possível que eu passasse por tudo isso: uma queda


de aeronave, ficasse o mais longe de casa que
qualquer outro ser humano da história, sofresse
prisão por dívida de outrem, fosse hostilizada por
mulheres sedentas por um rei, descobrisse que a
porta de casa estava perto o tempo todo, assim
como o homem que eu sempre amei, para, no fim,
dar-lhe adeus?
O sol já estava baixo no horizonte e o vento
melancólico parecia, tão somente, alimentar dentro
de mim um desespero que já estava se espalhando a
todo vapor. Talvez, sozinha, com o passar do
tempo, eu até pudesse escapar, mas como faria para
carregar Jason? Eu não poderia ir e largá-lo a
própria sorte. Nesse momento percebi lágrimas
ácidas rolarem por minha pele, desprendidas muito
antes de eu começar a senti-las. Fiquei, ainda, um
tempo contemplando o poente sem secar o rosto,
imersa em pensamentos.
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Não, não, não, Everlin. Você não é assim!


Enxuguei as lágrimas e bati no rosto de leve,
enxotando o desânimo.
Retroceder, jamais! É claro que vou fugir e
levar Jason comigo. Se a hiena me provocar, ainda
mostro um dedinho para ela ou todos os dedos das
duas mãos, e dos pés, porque um dedo só não é
suficiente.
No momento em que me voltei para seguir
pelo caminho do túnel, não pude acreditar no que
vi.
— Não pode ser... — foi tudo o que consegui
expressar.

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PALAVRAS MÁGICAS

A primeira coisa que


pensei foi se, depois
de fugir por tanto tempo, a insanidade, enfim, tinha
me encontrado. Aquela visão só podia ser uma
miragem, algo que meu cérebro, desesperado,
produzia para me acalmar, assim como os oásis no
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deserto. Ele vinha caminhando em minha direção a


passos firmes e, como se uma força magnética me
atraísse, minhas pernas começaram a ser mover na
direção dele. No instante em que ele passou pela
entrada do túnel de pedra, retirou o capuz e a capa.
Usava roupas simples e, pela protuberância, repleta
de armas, botas de combate, a bainha da espada
presa às costas e, ainda, a peça mais bonita, uma
camisa branca um pouco aberta, formando um
decote pequeno, porém suficiente para revelar a
pele lisa daquele peitoral perfeito.
O cabelo desgrenhado, como se tivesse
trespassado um furacão, voava com o vento, dando-
lhe um charme quase sobre-humano. Permaneci
estática ao final daquela construção em ruínas,
contemplando o que só podia ser um delírio, afinal,
em uma situação como aquela, vê-lo caminhar tão
decididamente em minha direção e emoldurado por
aquele cenário de pedras e flores, não podia ser
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realidade. Era impossível.


Mais rápido que previ, minha visão ficou
bem a minha frente e o melhor de tudo: a fantasia
era tão palpável que eu podia sentir sua respiração
arfante, seus olhos vidrados em mim e seu perfume
inebriante, aliviando a terrível saudade. Eu estava
convicta de que aquilo não passava de uma
miragem e, então, nem fiz questão de esconder as
lágrimas melancólicas se formando e turvando
minha visão. Entretanto, algo me chamava a
atenção. Meu sonho demorava a desaparecer, e,
numa explosão de emoção, veio coragem para
balbuciar alguma coisa.
— Da...
Nem consegui terminar a palavra. Apenas
senti que flutuava em seus braços fortes, bem como
os lábios contra os meus, pressionando com força e
desespero, enquanto prensava-me naquelas paredes
de rocha, perfumadas pelas inúmeras flores acima
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de nós. O beijo foi se tornando cada vez mais


ávido, mais urgente, como se o pavor da perda
tivesse mesmo o poder de elevar a paixão à
milésima potência. O sabor, o cheiro, a respiração,
o toque, cada mínima sensação fazia meu corpo
queimar, perdendo totalmente o controle.
Deixei a timidez, bem como todos os
pensamentos racionais nas profundezas mais
esquecidas da minha mente e alteei minha mão até
as raízes de seus cabelos, fechando-a com força e
puxando-o ainda mais para mim, como se a
diminuta distância entre nós fosse longe demais
para ser suportável. Ele arfou em resposta, dando
um sorriso sem afastar os lábios de mim. Em
seguida, prensou-se ainda mais contra o meu corpo.
Estremeci.
Que paixão cheia de deleite é essa, meu
Deus! A vida toda eu o amei e, ainda assim, aquilo
parecia... sei lá... novidade.
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Mesmo parecendo não querer desprender os


lábios dos meus, ele afastou-se poucos centímetros,
repousando sua testa sobre a minha, sem abrir os
olhos, numa expressão que mesclava dor e alívio,
medo e consolo, aflição e paz, morte e vida.
— Te achei, te achei — repetia com a
respiração completamente irregular.
— Dáian, você está mesmo aqui? —
indaguei, sem a menor coragem para abrir os olhos,
porque se eu deixasse a luz entrar por eles, poderia
ser que eu despertasse daquele sonho.
Ele acariciou meu rosto.
— Olhe para mim, Lin — pediu entre
suspiros ternos, os quais quase fizeram meu
coração parar.
Abri os olhos, ainda com medo, e vislumbrei
aquela íris cor de caramelo, o meu tormento desde
os catorze anos. Após me fitar por alguns instantes,
ele voltou a cerrar as pálpebras e repousar a testa
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sobre a minha, comprimindo os músculos do rosto


com força e tornando àquela mesma feição de
desespero de quando me viu ser levada.
— Você nunca mais sai de perto de mim,
nunca mais! — decretou, ofegando e dominando
meus lábios num beijo dez vezes mais arrebatador.
O mais curioso foi perceber que aqueles
beijos diferiam totalmente dos que trocamos
quando descobri a verdade. E esses, por sua vez,
também em nada se assemelhavam àquele primeiro
beijo, dado no sítio de férias dos meus pais. Isso só
provava uma coisa. Cada beijo com Dáian era
único e especial ao seu modo. Era como se aquela
habilidade dele, a de mostrar várias faces de si
mesmo, também lhe desse a capacidade de me fazer
experimentar diversos tipos de beijos e carícias.
Todas novas e sinceras. Cada uma especial e
inédita.
Será que seria assim a vida toda? Quantas
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vezes esse homem pretende fazer com que eu me


apaixone? Quantas vezes ele pretende fazer meu
coração explodir, como uma supernova, que
ilumina e estremece o universo dentro de mim?
Ele terminou o beijo contrariado, deixando
claro que, por ele, meu corpo se fundiria ao seu
para sempre.
— Te machucaram, Lin. Fizeram alguma
coisa? — indagou e, pela expressão, estava
apavorado com minha resposta.
— Não. Estou bem — respondi, sem nem
disfarçar que eu queria responder o mais rápido
possível para ganhar outro beijo.
— Não esconda coisas de mim. Eles... eles...
eles te tocaram... — não conseguia formular a
pergunta completa.
Enfim compreendi o que o atormentava.
— Não... não... estou bem mesmo. De
verdade... — falei depressa para tranquilizá-lo.
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— Eu nunca tive tanto medo em minha vida


— confessou, voltando a assenhorar-se vorazmente
de meus lábios.
Seu beijo era tão bom que falar parecia um
desperdício de tempo. Após alguns minutos, ele
afastou-se. Agora quem ficou contrariada fui eu.
— Precisamos ir — ele disse enfim, com
aquele olhar que não escondia a frustração por não
estarmos em um lugar que nos permitisse manter as
carícias por tempo indefinido.
A felicidade tomou conta de mim como um
feitiço poderoso o bastante para me manter sob
domínio perpétuo. Dáian estava ali, com seu corpo
junto ao meu, fazendo-me sentir a mais amada, a
mais especial, a mais importante, a única. Além
disso, só Deus sabia o que ele devia ter enfrentado
para estar ali. Ao pensar nisso, uma emoção cálida
envolveu-me, como um cobertor numa noite sob
estrelas de inverno e me flagrei pensando que o
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meu maior desejo na vida era ser dele até o meu


último suspiro.
— Me leve para casa — foi tudo o que
consegui dizer.
Ele ouviu minhas palavras e, logo em
seguida, irrompeu numa alegria radiante, beijando-
me e sorrindo como uma criança. Devolvi o sorriso
porque os beijos dele se tornaram tão travessos que
começaram a fazer cócegas. Dáian me pôs no chão
e acabei tendo de me recompor. Nosso momento
foi tão intenso que nem percebi que minhas roupas
estavam completamente desalinhadas. No instante
em que nos viramos, notamos Lui parado ao nosso
lado, totalmente empalidecido e imóvel, enquanto
assistia àquela cena com um semblante
completamente perdido.
— Eu não ordenei que esperasse por mim no
ponto de encontro? — indagou Dáian em um tom
bem pouco amigável.
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Lui não respondeu à pergunta. Continuou


olhando em nossa direção, como se não estivesse
ali, como se sua alma tivesse sido arrebatada e
agora repousasse em alguma parte distante do
cosmos.
— Soldado? — Dáian insistiu e sua voz saiu
beirando a rispidez.
As marcas do combate na fronteira ainda
estavam visíveis em seu rosto. Ele mirava nós dois,
especialmente a mim, com um desalento que me
fez meu corpo todo arrefecer.
— Lui? — chamei-o devagar.
Ele pareceu deixar o transe ao ouvir minha
voz.
— Senhora? — respondeu com a voz fraca.
— O seu rei está lhe falando — dei a dica
bem devagar, pois não queria piorar as coisas.
Lui desviou-se de mim e olhou para Dáian
com o semblante desorientado.
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— Vá à frente e prepare a montaria —


ordenou o rei.
O comandante não emitiu nenhuma resposta
e continuou sem se mover.
— Soldado? — persistiu Dáian já sem a
menor paciência.
— Lui... por favor — pedi.
— Sim, minha senhora — ele assentiu, por
fim, e se retirou ainda desnorteado.
Ai, meu Deus!
Não consegui desviar o olhar enquanto ele
seguia pelo caminho de volta.
— Por que está apertando minha mão assim,
Lin? — inquiriu Dáian.
Nem percebi que minha mão pressionava a
dele com força, de uma maneira firme até para
mim, que não tenho muita paciência para
delicadezas.
— Me perdoe... É só que... não gosto de ver
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outra pessoa sofrer — respondi.


— Não gosta de ver outra pessoa sofrer em
geral ou não gosta de ver ele sofrer? — continuou
indagando, enfatizando bem a palavra “ele”.
Exibi o meu próprio sorriso travesso,
enquanto fitava aquela expressão severa, a qual não
disfarçava nadinha o que estava sentindo. Às vezes,
impressionava-me o quanto Dáian era sincero em
relação aos próprios sentimentos.
— Está rindo de quê? — elaborou a pergunta
destilando o sentimento que o corroía.
— Está com ciúmes, majestade? —
perguntei, sem esperar de fato uma resposta.
— Morrendo! Odeio essa... simpatia que
você nutre por ele.
Gargalhei. Não aguentei.
— Não é que o Rei Sete está mesmo aí —
brinquei, arqueando uma das sobrancelhas.
Ele cruzou os braços e me encarou.
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— Não gosto do sofrimento em geral —


respondi com a voz terna, tentando sossegá-lo.
Ele me olhou como se dissesse nitidamente:
“ele que sofra o quanto quiser, ninguém mandou
desejar a esposa alheia”. Balancei a cabeça.
— Você sabe exatamente o que estou
pensando, não é, Lin? — Dáian inquiriu me
puxando para perto de si.
— Nós não íamos fugir? — insinuei em tom
de comédia.
— Engraçadinha. Nós vamos fugir, mas você
não vai fugir do assunto. Espera até sairmos daqui.
Sorri. Dáian retribuiu o sorriso.
Caminhamos furtivamente e atravessamos as
alas externas do palácio. Era engraçado que aquele
castelo fosse tão fortificado e, ainda assim, a parte
interna construída como labirinto deixava vários
pontos cegos. Chegava a ser um paradoxo. Ao nos
aproximarmos da montaria, vi Lui nos aguardando.
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— Dáian, espere — lembrei-me de repente.


Ele voltou-se para mim.
— Precisamos fazer uma coisa antes de
partir. Temos de ir a um lugar.
— Onde? — quis saber.
— Até a masmorra.
— Até a masmorra! De maneira alguma! —
decretou resoluto.
Peguei em uma de suas mãos.
— Por favor, meu amor. É importante —
supliquei.
Dáian expeliu o ar dos pulmões e balançou a
cabeça.
— Ai! O que você não consegue de mim com
esse “meu amor” — falou vencido e extasiado pela
demonstração semipública de afeto.
Lui abaixou o olhar, obrigando-se a se
concentrar na montaria. A seguir, voltou-se para
mim como se não conseguisse conter o ímpeto de
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interferir em minha conversa com Dáian.


— Por favor, senhora. Não vá. É muito
perigoso.
Dáian virou-se para ele, fulminando-o.
— É muito importante, mesmo — esclareci,
tentando justificar o perigosíssimo desvio do plano.
— Vamos — interrompeu o rei —
apontando-me o caminho de volta para o palácio.
Percorremos mais alguns caminhos ladeados
de paredes de pedra e Dáian parecia saber
exatamente para onde ir. Um pouco à frente,
chegamos a uma parte do castelo, a qual reconheci
imediatamente.
— Por aqui — falei.
— Não, por aqui — retorquiu.
— Mas...
— Confie em mim.
Continuei a segui-lo por mais alguns
corredores, até que nos aproximamos de uma
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parede diferente das demais do palácio. Dáian


olhou os lados, como um caçador, observando o
menor sinal de perturbação no ambiente e, em
seguida, acionou um tipo de dispositivo, o qual
abriu uma passagem secreta.
— Vai dar direto nas masmorras, vamos.
— Você já esteve nesse palácio? Parece
conhecê-lo como a palma da mão — questionei
intrigada.
— Nunca... Mas sou um rei — ele afirmou,
abrindo aquele sorriso travesso impressionante e
piscando para mim na sequência.
Ele piscou para mim? Foi isso mesmo?
Permaneci feito um objeto inanimado e, por
um breve momento, esqueci que meu corpo
também é movido a ar, porque se eu não tivesse me
esquecido desse pequeno detalhe teria, sem dúvida,
lembrado que seres vivos devem respirar a cada
segundo. Pensando bem, aquela piscadela deve ter
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me feito ficar, no mínimo, um minuto sem ar.


Acorda, Everlin! Não me diga que, enfim, vai
se deixar vencer por esse lado sedutor do Rei Sete?
É claro que ele conhecia o castelo inimigo
como a palma da mão, sem nunca ter estado lá.
Dáian era um guerreiro formidável e, para proteger
o seu povo, tinha sempre de estar um passo à
frente, sempre atento a todos os possíveis
desfechos. Isso o tornava o mais incrível de todos
os homens. Ninguém o pegaria desprevenido.
Exceto... Talvez... Quando o assunto fosse eu.
Será que eu me tornei a fraqueza dele?
Não sei bem o porquê, mas essa ideia, lá no
fundinho, não me era ruim.
Olha, eu já me achando!
Continuamos por aquela passagem até
atingirmos o corredor que levava ao nosso destino.
Discretamente, colocamos alguns guardas para
dormir e, no caminho do cárcere, reconheci uma
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das portas.
— Dáian, espere — chamei baixinho.
— Lin, temos de ser rápidos — alertou,
sussurrando.
— Eu sei, mas preciso entrar aqui, rapidinho.
Antes que ele pudesse protestar, abri devagar
a porta daquela sala e logo fitei as prateleiras
abarrotadas de coisas. Avancei sem nem piscar na
direção da lanterna que tinha visto antes e, graças a
Deus, as pilhas ainda tinham alguma carga. Meu
próximo alvo foi a mala médica. Em seguida,
peguei uma bolsa, onde coloquei algumas coisas
úteis, até que parei em frente à dinamite, cogitando
se devia levá-la conosco.
Estava alocada junto com outras bugigangas,
isso só podia significar que Éfer não fazia a menor
ideia do propósito do artefato. Se ele tinha mesmo
acesso a algum tipo de...
Espera um pouco...
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Naquele momento, tudo fez sentido. Éfer


sabia a localização da ponte que levara a mim e a
Jason àquele mundo. Caso não soubesse onde
estava exatamente, pelo menos, conhecia quem
tinha acesso a ela. Era a única explicação para
aquela sala estar repleta dos mais diversos objetos
da Terra daquele jeito. Se fosse mesmo o caso, não
seria inteligente ensinar para que servia a dinamite.
Além de que não eram tantas bananas assim.
Conclui por deixá-las onde estavam. O melhor era
continuarem servindo apenas para entulhar aquele
quarto.
— Meu Deus, Lin. Essas coisas são do seu...
— sussurrou o rei.
— São sim — interrompi, também mantendo
o tom baixo.
— E o que está levando?
— Coisas muito úteis — respondi dando-lhe
um beijinho rápido e caminhando para a porta.
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Dáian me seguiu.
— Então já podemos ir?
— Ainda não. Tem algo muito mais
importante numa das celas.
— Vamos rápido, então — advertiu.
Atravessamos aqueles corredores sinuosos e
a chegada da noite revelara-se muito bem-vinda
porque colaborou muito com o nosso modo “ninjas
invisíveis”. Assim que alcançamos a ala da
masmorra, Dáian dominou o carcereiro e o colocou
para dormir, muito antes deste perceber o que o
atingira. Pegamos o molho de chaves e fomos até a
cela. A sorte foi que o lugar ainda se encontrava
vazio e a pouca iluminação me obrigou a utilizar
mais uma vez a lanterna.
— Jason — chamei.
O terráqueo abriu os olhos com dificuldade e,
assim que me reconheceu, um alívio emocionado o
dominou.
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— Everlin. Não posso acreditar. Você veio


— falou em nossa língua, abraçando-me com a
pouca força que tinha.
Mal Jason havia enlaçado seus braços em
torno mim, sentimos o movimento gélido de uma
lâmina, posicionada bem na direção do pescoço do
rapaz.
— Solte-a — ordenou Dáian, falando
também em nossa língua, enquanto mantinha a
espada afiada a milímetros de Jason.
— Ele também é da Terra? — indagou o
ferido, parecendo comemorar e esquecer-se da
arma branca próxima ao pescoço.
— É uma longa história. Agora precisamos ir
— respondi, afastando-o.
— Precisamos? — Dáian inquiriu e, pelo tom
de voz, não gostou da nadinha da ideia de levarmos
meu mais novo amigo conosco.
— Meu amor, por favor. É do meu planeta.
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Está ferido e perdido. Não posso deixá-lo aqui.


— Parece que você descobriu as palavras
mágicas para arrancar o que quiser de mim, não é?
— Meu amor — repeti.
— Descobriu mesmo — afirmou abaixando a
espada e segurando meu rosto para depositar outro
beijo rápido em meus lábios.
Jason fez um esforço descomunal para se
levantar, mas há um limite de onde se pode chegar
só com força de vontade, e, então, acabou por
desmaiar. Assim que ele cedeu à gravidade, tentei
erguê-lo, no entanto, Dáian tomou à frente e o
colocou sobre um de seus ombros, como se não
pesasse nada.
Nossa!
O rapaz estava magro e fraco, mas, ainda
assim, era um homem, e um homem relativamente
alto.
Pensei ser a única que Dáian fazia parecer
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uma pluma.
Passei pela porta da cela e, assim que Dáian a
atravessou, ouvi o barulho da cabeça de Jason se
chocando com a grade.
— Ops! — emitiu o rei.
— Ops? — ecoei, reprovando-o.
— Já estou carregando um homem que te
abraçou na minha frente, então... acredite... estou
fazendo muito mais do que pensei ser possível —
justificou.
Balancei a cabeça.
O Rei Sete estava mesmo ali, não é?
Voltamos pela mesma passagem secreta e
seguimos pela área externa até encontrarmos Lui,
que nos aguardava com o nosso meio de fuga.
— Pegue-o — disse Dáian, entregando Jason
a Lui, quase como se fosse uma carga.
— Um homem! — exclamou meu ex-
professor dirigindo-se a mim.
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— Eu explicarei tudo, prometo.


Lui alocou o ferido à frente de si em sua
montaria, ao passo que eu me sentei à frente de
Dáian, sentindo aquele peitoral cheio de músculos
em minhas costas e mergulhando, contra a minha
vontade, devo dizer, em um nervosismo de donzela
indefesa diante daquela postura imponente de
cavaleiro medieval. Incontinente, seguimos em
direção a um portão estreito, no canto da muralha,
que mais parecia o que chamaríamos de entrada de
serviço, pela qual só transitavam criados e cargas
mais humildes. Tão logo nos aproximamos, Dáian
desceu da montaria e entregou a um homem uma
bolsa que, pelo barulho, estava repleta de moedas.
Eu podia apostar que eram de ouro.
Ah... Suborno. É claro. Embora Dáian fosse
formidável, até eu estranhei, estava fácil demais.
— Foi um imenso prazer fazer negócio com o
grande Rei Sete — bajulou o homem.
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— Nenhuma palavra e voltaremos a negociar


— replicou o rei, retornando à montaria.
— A senhora deve ser mesmo uma mulher
muito especial para o nobre rei vir pessoalmente
buscá-la, ainda mais porque Éfer acaba de ordenar
que todos os criados do palácio a atendam em tudo,
além de providenciarem vestimentas da mais alta
realeza e joias. Acredito que será uma decepção
para o nosso rei quando descobrir que a senhora
não se encontra mais em seus domínios —
discursou o homem, cujas palavras estavam
carregadas de um cinismo fofoqueiro.
Dáian se contorceu onde estava.
— Faça uma boa viagem, meu nobre rei —
externou o homem, finalizando a adulação para lá
de melada.
O rei limitou-se a assentir e prosseguimos
pelo portão, deixando para trás o palácio de Karur.

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NÃO DESCANSAREI

M esmo depois de
transpormos os
limites do palácio, ainda cavalgamos um tanto
apreensivos, tendo em vista a quantidade de
pessoas transitando por aquelas estradas secas, as
quais pareciam feitas de fuligem e pó. Karur era
infinitamente mais retrógrada que Yonah, e a

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dureza da vida estava estampava no rosto de cada


cidadão. Passamos por várias pessoas que,
simplesmente, desviavam de nosso caminho, como
se nos dissessem que queriam qualquer coisa,
exceto problemas. Logo que findamos a parte do
trajeto mais movimentada, tomamos uma nova rota
por estradas mais afastadas e, finalmente, pudemos
nos despir da tensão que nos rondava. Até senti o
corpo de Dáian, atrás do meu, relaxar um pouco.
Era cedo para que pudéssemos nos considerar a
salvo, no entanto, a cada metro avançado, a
liberdade se tornava mais nítida no horizonte.
Dáian se moveu no lombo do cavalo e
recostou o corpo no meu, aconchegando seus
braços em volta de mim, confirmando minha teoria
de que já estávamos cada vez mais próximos de
comemorar o êxito da missão de resgate.
— Você está bem? — ele sussurrou em meu
ouvido.
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Meu coração disparou, enquanto meu corpo


todo se enrijecia.
Pelo amor de Deus, Everlin, calma mulher.
Ele só fez uma pergunta!
— Aham — foi tudo o que saiu de mim.
— Que foi, meu amor? Por que está tão
nervosa? Já está segura — lembrou-me, tentando
me acalmar.
O problema era que ele não sabia que minha
repentina rigidez era motivada por outra coisa.
— Não foi nada, estou bem — falei depressa,
rezando para ele não me fazer mais perguntas,
porque seria constrangedor ter de respondê-las.
— Posso saber quem é aquele homem? —
indagou em tom mais sério, mudando o rumo da
conversa.
Graças a Deus!
— Eu não sei, só sei que estava comigo no
dia do acidente — respondi já mais descontraída.
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— Como sabe disso?


— Ele tinha no bolso um cartão de embarque,
uma espécie de documento de viagem — expliquei,
lembrando de que ele não saberia o que era o tal
cartão.
— Não me diga que estava naquele bolso da
calça bem em cima do traseiro dele? — questionou
com uma inflexão na voz pouco amistosa, aliás,
para falar a verdade, eu diria nada amistosa.
— Bom... — comecei, já me encolhendo.
— Lin! — disparou, repreendendo-me.
— Eu precisava saber mais dele —
justifiquei.
— Ainda assim... não gostei. Não gostei
nadinha.
Nesse instante, virei-me para ver sua
expressão e a lua iluminava aquele rosto lindo. O ar
bravio o tornava muito mais atraente, se é que isso
era possível. Montado naquele cavalo, com aquelas
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roupas de guerreiro e com aquele rosto perfeito, ele


parecia mesmo um príncipe encantado de contos de
fadas. A questão era: como uma garota como eu
estava ali sendo salva por ele? De princesa, eu não
tinha nada. Acho que nem para mocinha em perigo
eu servia direito.
— Por que está me olhando assim? — quis
saber, já mais calmo.
— Por nada... Rei Sete — provoquei.
— Você me diz que colocou a mão nas partes
íntimas de um homem e quer que eu não fique
zangado?
Acabei rindo. Não teve como não rir.
Após conseguir acalmar meu ataque súbito de
riso, fiquei olhando para aquela carinha enciumada,
sem o menor domínio de minhas expressões. Para
ser bem sincera, devo ter ficado vários minutos
observando-o meio abobalhada. Num ato meio
impensado, acabei acomodando mais meu corpo ao
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dele, reclinando minha cabeça sobre o seu ombro


forte. Digo ter sido impensado porque, ainda que eu
tivesse meu lado bocuda, quando o assunto era
“amor”, eu era um tanto tímida e demonstrações
públicas de afeto, decididamente, não eram o meu
forte.
— Nós brigamos? — perguntei.
— Longe disso — ele respondeu apertando-
me mais.
— Que bom...
O rei mirou o céu por alguns momentos e
seus traços tornaram-se reflexivos.
— De verdade... Eu nunca tive tanto medo
em minha vida — desabafou novamente.
Empertiguei-me.
— Eu estou bem — falei na tentativa de
afugentar sua preocupação.
O rei colocou a mão em um dos bolsos e
retirou um objeto que fez meu coração parar na
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mesma hora. Em seguida, apanhou uma de minhas


mãos, a mesma que ele pegara num dos dias mais
felizes da minha vida, e colocou aquele metal
familiar contra minha pele, prendendo o fecho. As
lágrimas começaram a correr em profusão por meu
rosto, minha pulseira preciosa havia retornado ao
seu lugar.
Vendo minhas lágrimas, Dáian tocou meu
rosto, virando-me para ele e, em seguida, levou
meus lábios para junto dos seus. Após alguns
segundos, o beijo se tornara ainda mais úmido e
muito mais salso, misturando-se a lágrimas, que
não eram minhas. Diante de sua emoção,
intensifiquei a nossa proximidade o quanto pude,
ansiando, com todas as forças, que ele me sentisse
por inteira.
O vento suave tocava nossa pele,
incentivando nosso beijo e fazendo-o se estender
por um bom tempo até que Dáian afastou os lábios
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sorrindo quando percebeu a montaria praticamente


sem condução.
— Pode dormir um pouco se quiser, ainda
temos um longo caminho — ofereceu.
— Acho que vou aceitar — respondi
sorrindo, já me reclinando em seu corpo.
Quando os primeiros raios da manhã
despontaram no céu, despertei meio atordoada.
Notei, só pela mudança de ares e de paisagens, que
já havíamos cruzado a fronteira de Yonah.
Prosseguíamos no lombo do cavalo, porém num
ritmo bem mais vagaroso, talvez para não cansar
tanto o pobre animal. O corpo de Dáian continuava
colado ao meu e ele acariciava-me com a pele do
rosto. No instante em que notou o meu despertar,
começou a deslizar os lábios por meu pescoço, sem
a menor pressa, explorando minha pele até o
ombro.
— Você conseguiu dormir um pouco? —
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questionou, mantendo as carícias.


— Acho que sim — respondi meio acanhada.
Dáian se movimentou um pouco atrás de
mim e, conforme seu quadril se moveu, pude sentir
nitidamente seu corpo reagindo à proximidade do
meu, de um jeito bem... como posso dizer...
caliente.
Ele está... me desejando! Aqui?
Corei e meu coração acelerou, descontrolado.
A única reação que puder expressar foi outra
paralisia instantânea.
— Me perdoe, meu amor. Mesmo com tanto
treinamento, acho que tem um limite para o quanto
posso suportar com você... assim... tão perto.
Assenti, ainda sem saber direito como fazer
para meu corpo voltar ao normal. Dáian se moveu
novamente, apertando-me com muito mais vigor e
me deixando sentir a saliência, constrangendo-me
até a alma.
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— Está incomodando? — ele sussurrou a


pergunta, com aquele ar travesso que tanto me
atormentou em um passado não tão distante.
Meu Deus, que pergunta foi essa? O que eu
deveria responder? Que sim? Que não? QUE
NÃO! Como assim?
— Amor, mas que pergunta! — reagi, por
fim, sem saber onde me enfiar.
— Foi uma pergunta simples. Sim ou não? —
retrucou, sem abandonar aquela expressão traquina.
— Dáian — atalhei entre dentes, beliscando a
primeira parte que minha mão alcançou: o
abdômen.
— Ai.... doeu... Posso interpretar isso como
um não?
Belisquei de novo e com mais força.
— Ai...
— Se você insistir, vou beliscar de novo —
avisei.
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— Eu ficaria o dia todo levando beliscões


para ouvir essa resposta — ele disse, escorregando
os lábios por meu pescoço, arrepiando-me todinha
enquanto sentia sua respiração acariciando minha
pele.
— Dáian! — repreendi, enterrando meu rosto
entre minhas mãos, já que eu não tinha um buraco
por perto.
— Que linda... Você ainda fica vermelhinha,
igualzinho quando éramos adolescentes — afirmou,
libertando aquela gargalhada gostosa e divertida,
que sempre me enchia de felicidade.
— Senhora! — chamou Lui, vindo com seu
cavalo em nossa direção e interrompendo o nosso
momento, sem esconder que estava muito feliz por
isso.
Endireitei-me na montaria.
— O que você quer? — inquiriu o rei de
forma ríspida.
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— Tem alguma coisa acontecendo —


explicou Lui, sem abandonar aquela feição de
tristeza, marcada em seu semblante desde que
presenciara meu encontro com Dáian no castelo.
A seguir, nos aproximamos deles e notei que
Jason respirava com muita dificuldade. Paramos
próximo a uma árvore, meus salvadores desceram o
ferido da montaria, repousando-o no tronco, que
angulava como uma poltrona reclinável. Examinei-
o rapidamente, e a debilidade havia piorado muito
com o desgaste da viagem.
— Ele não pode prosseguir — anunciei,
voltando-me para Dáian.
— Lin, eu não posso me ausentar tanto do
palácio — ressaltou, abaixando-se para me olhar.
— Ele vai morrer se continuar — insisti, sem,
ainda, valer-me de minhas palavras mágicas.
— A cidade de Katar é aqui perto. Vossa
Majestade pode voltar ao palácio na frente
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enquanto a senhora e eu vamos até a cidade para


cuidarmos do ferido — propôs Lui e, pelo jeito
insinuante de falar, suas intenções não eram tão
desinteressadas quanto queria transparecer.
O rei levantou-se na mesma hora.
— Eu não me separo mais da minha esposa
— decretou, enfatizando bem o pronome
possessivo “minha”.
— Amor, mas e o palácio? Tem certeza de
que...
Dáian pousou o dedo sobre meus lábios,
impedindo-me de finalizar a frase.
— O vilarejo de Jahar fica a poucos
quilômetros antes da cidade, lá será mais tranquilo
para cuidar de alguém. E estou quase ordenando
que você vá à frente a avise a Ralifax de nosso
regresso — falou apontando para Lui — no
entanto, até eu tenho de admitir que o caminho que
temos pela frente é longo e ter mais um guerreiro
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no grupo significa mais proteção para minha


esposa. Saiba que é só por isso que você fica —
expôs o rei, mirando o soldado com aquele olhar
estreito que eu conhecia muito bem.
Lui ficou sem argumento e eu também.
— Outra coisa, Lin — expressou o rei,
voltando-se para mim — como sabia que ele estava
na masmorra? — finalizou com a indagação.
— Bem... não entrou para minha lista de
melhores noites — respondi sem graça.
— AQUELE MALDITO TE COLOCOU NA
MASMORRA! Vou matar aquele infeliz com
minhas próprias mãos, eu juro! — estrondeou
Dáian, cerrando o punho na altura do rosto com
tanta força que eu podia jurar que se ele socasse a
árvore, ela iria cair.
— Está tudo bem, amor. Como eu disse, não
foi a melhor noite da minha vida, mas consegui
sobreviver. O mais importante agora é irmos logo
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ao vilarejo.
Dáian assentiu a contragosto, porque, só de
ver sua reação eu soube que, por ele, voltaríamos a
Karur naquele mesmo instante, apenas para ele ter
o prazer de socar a cara da hiena astuta. A seguir,
voltamos a nossa montaria e, após um tempinho,
chegamos ao nosso destino, descendo dos cavalos
logo na entrada do vilarejo. Apenas Jason
permaneceu onde estava.
À medida que caminhávamos pelas pacatas
ruas e as pessoas iam reconhecendo Dáian, uma
comoção ia se formando em torno dele. Em
pouquíssimo tempo, mais e mais pessoas se
aproximaram formando um aglomerado gigante de
gente, querendo cumprimentá-lo, tocá-lo e até
beijar-lhes as mãos.
Tudo bem que ele era o rei. Isso ninguém
discute. No entanto, confesso que fiquei espantada
com aquele tipo de reação da população. Não
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demorou muito para que Lui, Jason e eu


estivéssemos na retaguarda da celebridade.
Algumas pessoas até se emocionavam ao vê-lo.
— Por que as pessoas estão reagindo assim?
— indaguei, voltando-me para Lui.
— Os vilarejos e as cidades, mais pobres no
passado, agora o veneram — limitou-se a
esclarecer.
Reparando um pouco melhor naquela
pequena vila, era notório que as pessoas andavam
alegres e cumprimentavam umas às outras com um
sorriso largo no rosto. As crianças brincavam
felizes. Parecia um lugar seguro e farto. Não havia
luxo, mas, ainda assim, era repleto de... sei lá...
uma abundância do essencial. Um lugar que devia
ser modelo para qualquer civilização inteligente.
Não sei por que minha imaginação voou,
transformando aquele cenário em um muito pobre,
com pessoas sofrendo e doentes pelas ruas, em uma
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miséria subumana. Acho que foram as lágrimas


sinceras das pessoas que me fizeram ter uma
remota noção do que Dáian havia feito por aquele
lugar.
Ao presenciar o meu amado ser tão querido
por seu povo, confesso que um sentimento pleno
inundou meu coração. Um orgulho inexplicável que
me fazia pensar: como era possível que um homem
como aquele tivesse se apaixonado por mim?
Lágrimas acabaram se formando nas janelas
de minha alma, muito embora eu as tenha represado
corajosamente. Não queria que Dáian deixasse de
desfrutar do carinho do povo por me ver chorando
e, pior, achar que o pranto era por qualquer outra
coisa.
— No passado, esse lugar era muito pobre,
então? — quis confirmar com Lui e conversar um
pouco para espantar de vez o choro fora de hora.
— Um dos mais miseráveis — respondeu em
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um tom áspero.
Estranhei um pouco a entonação que o
comandante usara desde minha primeira pergunta e
resolvi mirá-lo por alguns instantes. Não havia
como deixar de notar ele fitando Dáian com um
olhar ressentido e amargo, como se não
conseguisse lidar com a própria dor. Sem querer,
aquela expressão desorientada que demonstrou
quando nos encontrou no castelo, voltou a minha
memória. Só, então, compreendi o tamanho do meu
egoísmo.
Nossa... Everlin, como você é sem noção!!!
Aff...
Com toda a vergonha do mundo, tenho de
admitir que a minha “sem noçãozisse” me vez
esquecer completamente de um detalhe crucial: a
grandeza da minha felicidade era diretamente
proporcional ao sofrimento enfrentado por Lui.
Dáian tinha razão. Ele havia... de fato...
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— Ah... é mesmo? Fico feliz que as coisas


tenham mudado então — falei, disfarçando e
saindo de perto dele.
Era melhor deixá-lo em paz para superar o
seu desafio. Minha presença, tão somente, pioraria
as coisas, afastar-me, portanto, era o mais sensato a
ser feito.
— Senhora, espere — interpelou o soldado,
agarrando a minha mão.
Virei-me bruscamente quando senti o puxão.
— Eu não quis ser rude, me perdoe. Não
precisa ir.
Caramba! Ele interpretou minha mudança de
atitude como mágoa por causa do seu tom de voz.
— Não, você não foi rude. Não se preocupe
— respondi, tentando me desvencilhar.
— Por favor, não me interprete mal —
suplicou.
— Está tudo bem, de verdade.
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— O que acontece aqui? — interrompeu


Dáian.
Lui soltou o meu braço e encarou o rival com
um olhar ferino e desafiador, como se, de seu ponto
de vista, Dáian fosse o que há de errado com o
mundo.
— Nada, meu amor. Então, os moradores irão
nos ceder algum espaço? — questionei, mudando
totalmente o foco da conversa.
— Esta é minha esposa Everlin —
pronunciou o rei, mostrando-me ao povo.
— Uma raríssima! — ouvi quase como em
coro.
Fiz o que pensei ser algum tipo de mesura,
mas não sei se saiu boa.
— Precisamos de um lugar para cuidar de um
homem ferido — solicitou o rei.
— Mas é claro, majestade — afirmou um
homem que, pelo jeito, devia ser o chefe local ou o
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prefeito.
Minutos depois, já estavam nos conduzindo a
uma das casas e acabei por aceitar a ajuda de
alguns curandeiros. Dáian saiu para atender os
líderes da região, ao passo que eu fiquei um bom
tempo me dedicando aos cuidados de Jason. Ainda
que a nova mala médica tenha se mostrado útil, não
continha remédios eficazes, como antibióticos.
Então, eu estava apreensiva ao pensar se aquela
ferida na perna iria mesmo se curar.
Assim que Jason estava relativamente
medicado e descansando, saí para respirar um
pouco, mais com a intenção de enxotar dos meus
ombros o peso da minha própria impotência que a
de dar um passeio de verdade. Caminhando à beira
do rio, encontrei uma árvore baixa, cujo tronco
secundário parecia um banco confortável. Resolvi
me acomodar e admirar o curso d’água.
— Senhora, posso lhe falar? — ouvi atrás de
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mim e, pelo termo senhora, sabia bem de quem


vinha a pergunta.
A inflexão da voz também denotava que não
seria uma conversa trivial. Virei-me para olhá-lo de
frente. Lui era bondoso, gentil e sempre me tratara
com muito carinho e respeito, mesmo no dia em
que me levara ao palácio. Se ele resolvesse travar
uma conversa sobre o beijo, o qual presenciou no
palácio de Éfer, eu não iria fugir.
Apesar de saber que ter um diálogo árduo
sobre sentimentos não era a coisa mais agradável
do mundo e, de um modo geral, as pessoas adiam
ao máximo esse tipo de situação, Lui merecia isso
de mim. Conquistara o direito a uma explicação, a
uma conversa franca. Se era isso o que ele queria,
era o que iria ter.
— É claro — respondi com ternura.
— Machucaram-na, em Karur? Fizeram
alguma coisa? — perguntou preocupado, e era
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nítido o desejo de dissipar a própria tensão.


— Não, estou bem. Não se preocupe —
afirmei com um sorriso.
— Fico feliz — expressou, sem, contudo,
saber o que fazer com as mãos, as quais se
agitavam freneticamente.
Respirei fundo. Pelo andar da carruagem, a
“conversa” estava próxima e eu teria de achar uma
maneira de torná-la o mais indolor possível para
ele. Se a verdade seria dura, as palavras não
precisariam ser.
— Então... a senhora decidiu se tornar esposa
dele de verdade — proferiu, livrando-se do ímpeto
de protelar o assunto.
Refleti por um instante em que responder.
Pensei em mil formas de explicar o que havia
acontecido. Entretanto, no fim, cheguei a uma
conclusão: talvez, a sinceridade direta fosse mesmo
o melhor remédio.
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— Sim — afirmei, também sem rodeios.


Lui abaixou o olhar e sua respiração se
tornou arquejante. Exalava o ar com uma mistura
de fúria e dor. Vendo-o passar por aquela provação,
pensei em lhe dizer que sentia muito, que não
queria vê-lo sofrer, que ele encontraria outra pessoa
ou qualquer dessas tolices típicas de uma situação
como aquela. Contudo, eu sabia que nada daquilo
diminuiria sua dor. Pelo contrário, talvez até a
aumentasse.
Decidi voltar a minha atenção para o rio.
Aquela conversa era um desafio para mim, sem
dúvida, mas, para Lui, era uma batalha, e ninguém
seria capaz de ajudá-lo a vencer, nem mesmo eu.
Esse inimigo, ele teria de suplantar sozinho.
Ponderei se não era melhor me retirar e deixá-lo em
paz com seus pensamentos.
— Por que ele? — inquiriu de repente.
— Eu...
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— Tenho certeza absoluta de que a fortuna


ou o reinado dele pouco lhe importam, então, se era
para desistir disto — Lui pegou meu braço onde
repousava a pulseira — por que por ele? Por certo,
sabia que eu também era uma opção. Então, por
que ele? Foi porque ele foi mais direto? Foi isso?
— despejou interrompendo-me e suas palavras
exalavam uma carga de desespero, a qual me fez
congelar onde estava.
O sentimento dele por mim é grande mesmo!
— pensei assustada.
Inspirei profundamente, decidindo começar
pelo começo. Afinal, é sempre por aí que se iniciam
as coisas.
— Então você sabe o que é isto — mostrei-
lhe a pulseira.
— É claro.
— Engraçado como todo mundo sabia,
menos eu — falei mais comigo mesma do que com
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ele.
— Não sabia o que era quando colocou no
braço? — investigou, incrédulo e espantado.
— Pois é... então... não — confessei,
encabulada.
Lui franziu o cenho.
— Dáian não me disse o que era quando
colocou no meu braço, eu tinha apenas catorze anos
na época — expliquei com cuidado, torcendo para
que fosse o suficiente para esclarecer tudo.
Meu ex-professor arregalou os olhos e
manteve-se estático, olhando para mim como se
não pudesse crer no que acabara de ouvir.
— Mas... quando estava no palácio, a senhora
agia como se nunca o tivesse visto na vida! —
exclamou atônito.
— Tá aí uma coisa engraçada, não é? —
expressei com a cara mais sem graça que já produzi
na face da Terra ou terras, afinal aquele planeta não
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deixava de ser uma “terra”, no fim das contas.


— Isso não é possível!!! — desabafou,
abaixando olhar.
— Pois é... parece que é sim... — prossegui
ainda sem graça porque uma coisa era deixar que a
“bola fora” fosse registrada em meu histórico e
outra, completamente diferente, era ouvi-la da boca
de alguém.
— Mas a senhora me disse que era do mundo
azul.
— Bom... deve saber que o rei, quando ainda
era um príncipe, foi punido por infringir uma
determinada lei, não sabe?
— Sim... eu era um cadete quando ele foi
açoitado pelo Rei Seis.
Um nó se formou na minha garganta.
Respirei fundo e prossegui.
— Então sabe qual lei ele “violou”, por assim
dizer? — perguntei, mais para induzir seu
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raciocínio.
— Isso não pode ser! — refletia Lui,
reagindo do mesmo modo que qualquer ouvinte
diante de uma história como aquela.
— Agora que já sabe a verdade, por que não
desiste de uma vez? — interrompeu Dáian e, pelas
palavras, devia ter ouvido toda a nossa conversa.
Lui olhou para mim como se implorasse para
eu lhe dizer outra coisa. Como se quisesse se
agarrar a um fio de esperança de que tudo aquilo
não passava de um pesadelo e eu fosse a única com
poder para fazê-lo despertar. Desviei o meu olhar.
Tudo o que eu havia dito era a mais pura verdade e
não havia nada que eu pudesse fazer por ele.
Depois de ouvir tudo, o comandante voltou-se
atordoado para a trilha do vilarejo e a seguiu.
Entretanto, após caminhar um pouco, retornou com
passos decididos, não se detendo até estar frente a
frente comigo.
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— Senhora — chamou-me e, após pensar por


alguns instantes, corrigiu-se — Everlin — disse,
por fim.
Olhei diretamente para ele.
— Eu a amo e não descansarei até que
chegue o dia em que deixe de amar o rei e passe a
amar a mim — declarou-se, sem desviar aqueles
olhos negros e penetrantes nem por um segundo.
Já recebi algumas declarações de amor ao
longo da vida. A de Dáian foi a primeira, como o
caro leitor está careca de saber. Depois dele, teve
um menino chamado David no ginásio. No colegial
foi um garoto chamado Caio. Por fim, na faculdade,
um rapaz chamado Alan me chamou para sair.
Pensando bem, não foram tantas assim. Mas depois
de Dáian, foi fácil lidar com cada um. Eu
simplesmente dizia “não” e saía andando.
Literalmente.
Afinal, cachorro picado por cobra tem medo
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até de salsicha.
Entretanto, eu não sabia bem o porquê de não
conseguir formular uma resposta decente para Lui.
Mesmo com Dáian diante de nós, não fui capaz de
pensar em algo aceitável a dizer ao homem que
acabara de fazer a declaração de amor mais direta e
ousada que já ouvi na vida. Até tentei mexer os
lábios, mas o som não se formava. Ao perceber que
minha resposta não vinha, Dáian acabou se
interpondo entre nós.
— Quando ela for sua rainha terá de se
curvar — interpelou o rei, desafiando.
— Pelo que vejo, majestade, ainda tem muita
água para correr por debaixo dessa ponte antes
disso acontecer — retorquiu o comandante,
enfrentando o seu rival.
O rei também pareceu ficar sem reação diante
da determinação inabalável de um homem
apaixonado. Lui exalava o ar confiante de um
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guerreiro disposto a tudo, como um cavaleiro que


fizera um juramento quando resolveu empunhar sua
arma e seguir para uma luta de vida ou morte. Tão
logo terminou de desafiar seu oponente, olhou uma
última vez para mim e voltou a trilhar o caminho
em direção ao vilarejo. A única indagação que
permaneceu no ar foi se as coisas haviam se
resolvido ou se estavam apenas começando.

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Florescer Dourado

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S entada ao lado de Jason,


eu viajava num oceano
de pensamentos. Os últimos acontecimentos e a
maneira com que minha vida tinha, simplesmente,
virado do avesso em tão pouco tempo povoavam
minha mente, fazendo-me mergulhar
profundamente em mim mesma. A Terra parecia
tão distante, como se o tempo em que vivi em meu
próprio planeta não tivesse passado de um sonho e
aquela fosse a realidade.
Meu coração pesava por pensar que,
enquanto eu estive no palácio e na casa de Joen,
Jason estiveram por terras hostis e sujeito a todo
tipo de provação. A febre havia baixado, mas a
ferida não mostrara nenhuma melhora significativa.
Para essa finalidade, a planta joia da rainha não
fora tão eficaz.
— Ainda pensando no que aquele soldado te

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disse? — perguntou o rei, assim que adentrou no


quarto e me viu pensativa.
Dáian era tão ciumento que chegava a ser
engraçado. Estendi minha mão em sua direção até
que ele a pegasse e se sentasse em uma cadeira
próxima a mim.
— E você já chegou à conclusão do que estou
pensando? — insinuei, abrindo aquele sorriso
levado que ele mesmo me ensinara.
— E não estava? — indagou já mais
contente.
— Não.
Ele abriu um sorriso lindo e alegre.
— Pensava por onde esse rapaz esteve
enquanto me hospedei na casa da Raposa do Norte
e no palácio — esclareci para ver se ele sossegava
de vez.
— Xi... continua sendo ruim para mim de
toda forma — reclamou, abaixando o olhar.
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Tive de abraçá-lo. Não aguentei.


— Lin, esse ferimento não melhorou nada, se
continuar assim...
— Eu sei. O problema é que ele não
aguentará uma viagem até o palácio, muito menos
até o templo.
— Estava esperando a noite chegar para te
levar a um lugar — afirmou e tive certeza de que o
repentino convite tinha o único propósito de me
afastar da apreensão.
— Onde?
— Venha comigo — convidou-me,
levantando-se e estendendo-me uma das mãos.
— Ah... Dáian... já ia me esquecendo.
Precisamos conversar sobre algo muito importante.
— Quando chegarmos lá, conversamos.
Prometo.
Saímos da casa e, mesmo que a noite tivesse
caído sobre nós em uma época do ano em que as
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fases lunares não eram tão brilhantes, o vilarejo


estava todo iluminado tanto quanto qualquer cidade
da Terra. A luz resplandecia de umas lamparinas
estranhas, iguais às do palácio, mas duas vezes
mais potentes. Um pouco mais adiante da vila,
havia uma espécie de fábrica rústica, e boa parte
dela estava instalada ao ar livre, próxima a uma
encosta no paredão da montanha.
— O que fabricam aqui? — perguntei
curiosa.
— Você já vai ver — Dáian respondeu,
piscando para mim.
Meu Deus, como ele fica charmoso quando
faz isso!
Para o meu azar, aquele gesto também
poderia ser classificado como um gatilho mágico
para ele obter o que quisesse de mim. Mas era
óbvio que eu não diria isso. Pelo menos não assim
tão facilmente.
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Logo que atravessamos algumas árvores,


deparei-me com uma das visões mais fantásticas
que contemplaria na vida. Um pouco mais abaixo
do morro havia uma espécie de floresta iluminada,
na qual cada árvore reluzia como se decorada para
o Natal, contudo a luz não era artificial e sim
proveniente da própria natureza. Os frutos e as
flores daquelas árvores produziam algum tipo de
fluorescência. Até os insetos que voavam de fruta
em fruta eram luminosos como se fossem pequenos
vagalumes de LED.
— Isso é incrível! — exclamei embasbacada.
— Não tem isso no seu planeta? — inquiriu
Dáian com um ar debochado, como o de alguém
que pensa que venceu em pelo menos uma coisa,
algo ou alguém, que acredita ser melhor.
Naquele momento, ele deve ter se sentido
vitorioso por seu planeta ter alguma coisa que me
impressionasse. Mal sabia ele que o próprio céu
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deles já era exótico demais para mim. Dáian


admirava demais o meu mundo, penso até que ele
achava que o mundo azul era melhor que o dele em
tudo ou quase tudo.
— Natural assim, poucas coisas. Artificial
tem bastante — respondi, não querendo deixar o
meu planeta tão atrás assim.
Dáian abriu aquele sorriso maroto que me
arrancava todo o ar. Arrancava o ar do mundo
inteiro, eu diria.
— Vamos lá? — desviei o foco, afinal eu não
queria ser vencida por um simples sorriso.
Caminhamos por aquelas árvores magníficas
e ao reparar melhor nas fissuras dos troncos até a
seiva era fluorescente.
— São maravilhosas. O que são?
— Essa espécie foi preservada no templo de
Yonah e permaneceu no jardim particular dos reis
por várias gerações.
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— Templo de Yonah?
— Sim, é subterrâneo.
— Foi como preservaram os pergaminhos
também, imagino.
— Sim.
— Não me diga que os reis do passado não
queriam dividir? — fiz a pergunta mais como um
comentário brincalhão, enquanto continuava
pulando para tentar colher uma das flores.
Um silêncio estranho se instalou no ar a
nossa volta. Parei de saltar feito um canguru e olhei
para Dáian, que mirava o céu como se se
envergonhasse pelos atos dos antepassados.
— Amor, me perdoe. Eu não quis tocar em
um assunto que não me diz respeito — falei sem
saber ao certo o que dizer.
Dáian sorriu.
— Tudo o que me diz respeito, te diz respeito
— insinuou, tocando a ponta do meu nariz e
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piscando com aquele ar sedutor.


De novo, a falta de ar.
— Para de piscar assim para mim — pedi
sem pensar.
— Ah... então você gosta quando eu pisco —
provocou daquele jeitinho perigoso de Rei Sete.
Eu acertei na mosca quando o julguei como o
tipo mais perigoso de homem.
— Ah... o Rei Sete resolveu nos dar o ar de
sua graça, mais uma vez. Engraçado como vira e
mexe ele volta para atazanar — gracejei.
Dáian gargalhou com uma expressão
divertida e despreocupada, afugentando aquele
peso que parecia sentir pelos erros dos ancestrais.
Ele se ergueu um pouquinho na ponta dos pés e
apanhou um dos frutos.
— Vem — convidou.
Ele se sentou aos pés de uma árvore linda e
eu me aconcheguei entre suas pernas, igualzinho
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fazíamos no passado, debaixo de nossa cerejeira.


— Como se chama? — questionei, apontando
o fruto que acabara de receber.
— Éden.
— Jura?
— Sim. Ué, por quê?
— Essa palavra também tem um significado
no meu mundo.
— E qual é?
— Jardim, eu acho.
— Nossa... que incrível.
— O que é este lugar? — perguntei curiosa.
— Esse fruto e a seiva das árvores são
utilizados para fabricar o óleo que queima nas
lanternas que viu na vila. Está abastecendo o país
inteiro e, de uns tempos para cá, outros países
também.
Virei na direção dele.
— São maravilhosas, brilham mais que
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lâmpadas de LED modernas do meu mundo —


comentei entusiasmada.
— As lanternas de Éden estão substituindo as
tochas e velas pelo mundo todo, gerando muita
riqueza à população. Vários campos como este
estão sendo cultivados por toda nação e erradicando
muita pobreza.
— Você trouxe modernidade e uma fonte de
renda para os desfavorecidos simplesmente
compartilhando algo que estava no seu jardim?
— Basicamente. Claro que ainda há muito a
ser feito pela nação. Mas verá que mudanças não
são tão rápidas quanto gostaríamos. É complicado
equilibrar os interesses opostos que envolvem as
classes de um país.
Permaneci olhando aquele rosto lindo
enquanto ele falava, iluminado por árvores
magníficas. É claro que governar um país não é
assim tão simples e ser um rei não é só desfrutar de
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privilégios como muitos podem pensar. As


responsabilidades existem, mesmo que os
governantes deem as costas para elas. E Dáian
estava fazendo a diferença, deixando no mundo um
legado maior que ouro. Maior do que qualquer
riqueza humana.
Eu havia lido sobre a linhagem dele e,
enquanto seus ancestrais buscaram, basicamente,
por territórios, sem se preocuparem com o destino
dos povos depois de conquistados, Dáian queria
melhorar a vida das pessoas. No fim, são as pessoas
que importam, ele sabia disso. Dáian era como
Joen, alguém que devia ter a entrada garantida na
terra dos bem-aventurados.
— Por que está me olhando assim?
— Por nada — disfarcei.
— Prove. É uma delícia — declarou
apontando para a fruta.
Ao dizer que o fruto era gostoso, a entonação
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de sua voz me fez ficar desconfiada. Ele sabia ser


travesso quando queria, por isso, esperei até que ele
comesse primeiro. O pior foi que ele percebeu
minha suspeita e abocanhou a fruta que estava em
minha mão. Tão logo terminara de engolir, sorriu,
mostrando os dentes todos fluorescentes.
Ri feito criança.
— Sua vez.
Mordi o fruto, era, de fato, muito saboroso.
Tinha um gosto exótico adocicado e, ao mesmo,
cítrico. Mais gostoso do que uma laranja bem
docinha.
— Mostre o sorriso, Lin.
Balancei a cabeça, negando.
— Anda... eu mostrei o meu — insistiu
frustrado.
Neguei outra vez.
— Por favor, que injusto — reivindicou.
Acabei mostrando a língua e, pela cara alegre
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que fez, ela devia estar bem brilhante. Em seguida,


Dáian puxou-me e, quando notei, meus lábios já
estavam nos seus, num beijo adocicado, cintilante
e, acima de tudo, incrível. Minha teoria acabou se
mostrando verdadeira e, assim que terminamos o
beijo, nossos lábios estavam com o mesmo
pigmento da fruta. Parecia que tínhamos usado
maquiagem fluorescente.
— Esse óleo é caro? — eu quis saber.
— Bom, tem gerado boa renda para a
população e para os cofres da coroa.
— É por isso que te chamam de “o rei do
florescer dourado”?
— Onde você ouviu isso?
— Ora, no harém. Foi Ralifax quem disse
quando te anunciou todo cheio de pompa e et
cetera e tal — brinquei.
— Ah, isso — expressou o rei arqueando a
cabeça e levando a mão à testa.
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— Te achei um perfeito idiota — confessei,


com a voz baixa e mordendo a fruta novamente.
Dáian desfez aquela postura um tanto sem
graça para me encarar na mesma hora.
— Só estou sendo sincera — externei ainda
mantendo o ar zombeteiro e segurando o riso.
— Ralifax começou a fazer isso porque, por
duas vezes, desisti de entrar mesmo estando na
porta. Então, ele resolveu que, anunciando, eu não
poderia desistir. Cresci com ele me dizendo que a
pontualidade e a educação são as marcas da realeza.
A educação inclui não sair correndo depois de
anunciado.
Sorri e acabei expondo os dentes
fluorescentes.
— Ele foi um pai, não foi? — perguntei,
refletindo um pouco melhor em sua história.
— Quase. Ainda existe certo limite entre
servos e príncipes, mesmo servos preceptores. Eu
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nunca quis essa barreira entre nós, mas ele mesmo


a estabeleceu, e eu acabei respeitando. Ralifax é
muito leal ao seu senso de dever — explicou com
um semblante entristecido.
— Entendo.
Claro. Ralifax sabe bem o seu lugar.
Provavelmente se magoaria se não soubesse. Dáian
seria o rei e ele sempre o servo. Não sei por que
aquela conversa que tivemos na tenda, quando fui
obrigada a dormir na mesma cama que ele, voltou a
minha mente. Pensando bem, Dáian sempre
exalava esse ar solitário. Desde que o conheci. No
entanto, naquele tempo, não tive coragem de
invadi-lo, perguntando a respeito. A questão era
saber se eu teria essa coragem agora.
Queria perguntar sobre o pai dele, mas não
sabia se era o momento. Com tudo o que ele viveu
e passou, era certo que falar do pai lhe traria
sofrimento. Cheguei à conclusão de que era melhor
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não ser eu a fazê-lo reviver seu passado,


ressuscitando memórias que deveriam permanecer
na ilha dos esquecidos. Se algum dia ele quisesse se
abrir, como fez na tenda, eu ouviria. Mas não seria
eu a mexer nisso.
— Pode perguntar do meu pai, se é o que
quer saber — ele falou sorrindo com uma leveza
que me impressionou.
Tudo o que consegui fazer foi encará-lo
espantada.
— Desde quando você lê meus pensamentos?
— protestei acanhada.
O rei continuou com aquele sorriso inocente
e leve, como se desfrutasse da paz dos justos.
— Se não perguntar do meu pai, vou
perguntar dos seus pais — cutucou, com um ar
brincalhão.
Dáian emanava um ar tão feliz e não era
qualquer tipo de felicidade. Era do tipo “felizes
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para sempre”, igual àqueles contos de fadas nos


quais os heróis sofrem tanto para conquistar seu tão
esperado “final feliz” e, ao o alcançarem, a
narrativa acaba porque nada será capaz de lhes
arrancar a felicidade, então não faz o menor sentido
prosseguir com a história. Se era assim, talvez, falar
do pai não fosse tão dolorido.
Será que toda essa felicidade, que ele exibe
tão abertamente, é porque estou aqui? Felicidade
tamanha que sofrimentos passados perderam a
importância?
Como eu disse, Dáian merecia, mais do que
ninguém, obter o seu “feliz para sempre”. Se a
felicidade dele era me ter, ele me teria. Mesmo que
eu não chegasse a dizer isso a ele, assim, com todas
as letras. Meu lado “desbocada” só dava as caras
quando eu julgava que era algo trivial.
— Está feliz? — a pergunta acabou
escapando sem querer.
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Dáian abandonou o ar travesso e fitou-me


emocionado.
— Muito. Como jamais imaginei que poderia
ser — esclareceu fixando-se em mim, como se
quisesse memorizar cada traço do meu rosto.
— Isso tem algo a ver comigo? — arrisquei,
encabulada.
— Não — soltou facilmente.
Meu corpo se enrijeceu cedendo aos reflexos
e acabei abaixando o olhar.
— Tem tudo a ver com você — Dáian
completou me abraçando.
— Malvado — ralhei, beliscando-o e
sentindo um alívio que fez relaxar até meu último
fio de cabelo.
O rei sorriu e pressionou os lábios nos meus,
saboreando cada movimento que eu fazia para
corresponder ao beijo. Era engraçado como isto
ficara frequente. E o mais curioso, eu queria aquilo
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com cada vez mais. De repente, ouvimos alguém


tossir de leve próximo a nós. Paramos e olhamos
para quem nos interrompera.
— Majestade, perdoe por atrapalhar, mas se
pudesse nos ceder um pouquinho de sua atenção —
rogou o prefeito.
Dáian não conseguiu esconder a frustração.
— Tudo bem, meu rei. Eu vou indo ver como
está meu paciente — falei, chamando-o de um jeito
diferente, afinal eu não sabia como devia tratá-lo
perto de autoridades. Também não queria que o
pobre prefeito se sentisse desconfortável depois do
rei ter deixado bem claro que o que queria ter dito
de verdade era: “vaza daqui”.
Dáian me olhou parecendo aquele emoji de
uma sobrancelha baixa e a outra levantada, como se
dissesse: você me chamou de quê?
— Depois conversamos — expliquei
baixinho — com licença — despedi-me na
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sequência.
— Majestade, antes de entrar nos assuntos
mais preocupantes, gostaria de lhe dar uma boa
notícia. Muitas plantações estão prosperando na
região, graças às flores de Éden. Essas árvores
foram uma benção para a nossa gente.
Ouvi o prefeito e minha curiosidade acabou
me vencendo. Tive de retornar.
— Me perdoe, mas o senhor disse que as
flores auxiliam nas plantações de outras culturas?
Como? — perguntei sem saber se era adequado de
minha parte, aliás sem me importar nem um pingo
com isso.
— Ah... minha senhora. O pólen das flores de
Éden mantém outras plantações livres de doenças e
pragas. As abelhas e outros insetos fazem a
polinização. A polinização é um processo...
— Eu sei o que é polinização, não se
preocupe — interrompi.
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— Minha senhora, me perdoe — corrigiu-se,


um pouco sem graça.
— Tudo bem. Me diga, essas árvores não
contraem doenças, nunca?
— Nem as plantas ao redor contraem,
senhora. Nem plantações próximas há um bom
tempo.
— E vocês não usam as flores para nada?
— Não, somente os frutos e a seiva.
— O senhor permitiria que eu apanhasse
algumas flores? — solicitei eufórica, porque podia
estar diante de uma descoberta e tanto.
— Minha senhora, a esposa de nosso rei pode
ter o que quiser — garantiu, curvando-se.
Eu não sabia se devia deixá-lo se curvar ou
impedi-lo. Esse negócio de “esposa do rei” me
deixava confusa. Dáian e eu íamos precisar ter uma
conversa sobre a isso.
— Majestade, posso pegar algumas flores?
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— pedi.
Dáian veio andando até mim e, em seguida,
deu a volta por meu corpo, abraçando-me pelas
costas.
— Meu amor, pode me chamar do que quiser
na frente de qualquer pessoa deste mundo. Pode me
chamar de “meu amor”, “meu querido”, “meu
benzinho” e por aí vai. A lista pode ser infinita —
falou, como se fosse a coisa mais séria do mundo.
O prefeito corou e virou-se para o lado
encabulado.
— Dáian — repreendi entre dentes — quero
dizer, majestade — corrigi, ainda entre dentes, mais
vermelha e mais sem graça que o prefeito.
O rei gargalhou. Era o único achando graça
da situação.
— Para que quer a flor, meu amor?
— Ora, se mantém doenças afastadas até de
outras plantas, deve ser um biocida poderosíssimo.
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— Bio... o quê, senhora? — quis saber o


prefeito.
— Ah... — expressei, calculando o custo-
benefício de tentar explicar — eu vou fazer o teste,
depois explico — finalizei, após chegar a uma
conclusão.
— Vai usar isto na perna do rapaz? —
questionou Dáian.
— Claro, temos algo promissor aqui —
asseverei, ansiosa.
Dáian colheu algumas flores e me entregou.
— Vou testar agora mesmo — falei, já
tomando o rumo do vilarejo.
— E meu beijo? — perguntou o rei.
— Majestade, vou contar a Ralifax que anda
se esquecendo do decoro — provoquei,
cantarolando.
— Está bem, você venceu. Depois nos vemos
— assentiu vencido.
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— Até depois — me despedi.


Corri para a casa em que Jason se encontrava,
com a esperança renovada. Se a flor de Éden fosse
mais forte que a joia da rainha, ainda que não fosse
milagrosa, poderia trazer algum resultado. E
qualquer resultado era melhor que nenhum
resultado.
Amassei as flores e fiz um tipo de emplastro
com outros unguentos, que os curandeiros haviam
disponibilizado. Bom... Era como dizem... O “não”
eu já tinha, só faltava o “sim”.
Algum tempinho depois de aplicar o curativo
com o “remédio” novo, meu paciente terráqueo
pareceu dormir bem mais tranquilo. Muito
provavelmente a dor diminuíra, isso já podia ser
considerado um raio de esperança. A ideia de ter de
fazer uma cirurgia às pressas e sem nenhum aparato
apropriado, como na série de TV The Walking
Dead, definitivamente, arrepiava-me até os ossos.
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Resolvi deixar o ferido com um curandeiro, que o


acompanharia até de manhã, e segui para a casa
onde eu ficaria hospedada.
Após me banhar e me preparar para dormir,
eu não sabia ao certo se devia procurar por Dáian
para lhe desejar boa noite. No fim das contas, não
havíamos conversado sobre Éfer nem o que
faríamos para manter a paz.
Entretanto, pelo que deduzi, o trabalho de rei
não tinha carga horária definida, como oito horas
diárias e quarenta e quatro semanais. Além de não
dar direito à carteira assinada, portanto, Dáian teria
de estar sempre à disposição quando o povo
precisasse dele. Assim que adentrei no quarto, notei
que a cama que haviam preparado era enorme e do
tipo superconfortável.
É talvez “a esposa do rei” tenha lá suas
regalias.
Eu estava tão cansada da viagem, bem como
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das encrencas dos últimos dias, que nem procurei


alguém para negociar outro quarto para dizer que
eu não precisava de tudo aquilo. Pensei que, só por
aquela noite, a cama “de diva” seria bem-vinda.
A temperatura da noite começara a cair um
pouco, obrigando-me a procurar por algo para me
cobrir. Encontrei um lençol dando sopa, o qual ia
ter de servir. A camisola que disponibilizaram era
branca de alcinha, cujo comprimento ia até um
pouco acima dos joelhos, o tecido, de tão sedoso,
acariciava minha pele como um pedaço de manto
dos deuses. Se eu mesma tivesse escolhido aquela
peça numa loja, não teria me caído tão bem.
Deitei sobre a cama maravilhosa e suspirei
aliviada. Era engraçado como em uns dias se dorme
no chão de uma masmorra e em outros numa cama
de artista de cinema. Embora desejasse dar um
beijo de boa noite em meu rei, eu estava exausta e
ele atarefado. Decidi deixar a conversa para a
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manhã seguinte. Então, cerrei meus olhos e deixei o


merecido sono me dominar.

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BANHO FRIO

E m meus sonhos,
flutuava entre nuvens,
pousando em um lugar familiar. De repente, eu
estava naquela cachoeira azul esverdeada, o
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perfume de Dáian me envolvia, enquanto eu lhe


contava sobre as coisas que eu amava. Ele se
levantou e veio até mim, dando a volta por meu
corpo e pousando os lábios em meu pescoço, em
beijos suaves. Era tão real, eu podia jurar que o
sentia me beijar de verdade. Meus olhos
começaram a se entreabrir, deixando o doce mundo
da inconsciência para retornar à dimensão dos
mortais.
Não se atreva a acordar, Everlin. Por favor,
o sonho está tão bom.
No entanto, já era tarde demais. Comecei a
ver o quarto escuro e a tímida luz do luar se
insinuando pela janela. Eu sabia perfeitamente que
já havia deixado a terra da fantasia, no entanto eu
continuava sentindo Dáian me beijar, como se
ainda permanecesse sonhando.
— Acorda, meu amor. Vamos conversar um
pouquinho — ouvi sua voz suave como o vento.
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Se, de fato, eu estava misturando realidade


com sonho, a única explicação razoável era que eu
estava no meio de um delírio. E isso era
preocupante, afinal eu tinha um parafuso a menos,
mas não a ponto de sair da realidade. E para piorar
a sensação de devaneio, eu continuava a sentir
aqueles lábios macios e quentes em meu pescoço.
Virei um pouquinho na cama e vi meu sonho
sorrir.
— Dáian — sussurrei.
— Oi — ele respondeu, baixinho.
— Dáian!!! — sentei-me na cama num
sobressalto.
— Oi, meu amor — ele disse alegre.
— Você... você...
— Desculpe te acordar. Você estava
dormindo tão tranquila. Mas eu queria tanto
conversar mais um pouquinho. Me perdoe, por
favor — justificou, enquanto continuava a me
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beijar.
Olhei em volta para tentar entender a
situação, observei que a porta estava trancada, a
janela também, as luzes apagadas, o quarto
parcialmente iluminado pela luz das luas e Dáian
vestia roupas de dormir.
— Mas você pretende dormir aqui? —
questionei surpresa.
— Ué, por que não? — insinuou, sem tirar os
lábios de mim.
— Amor... é que... é que... já havíamos
combinado... — tentei explicar, sem conseguir
formular uma frase coerente sequer.
— Por favor, amor. Não me expulse. Eu
prometo que fico quietinho. Eu nem estou
pensando nisso! — argumentou com uma carinha
que quase parecia de santo. Quase.
Olhei para ele, arqueando uma das
sobrancelhas e cruzando os braços.
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— Tá bom, eu estou pensando nisso, mas vou


ficar quietinho. Prometo. Não me expulse. Além
disso, o prefeito já preparou esta casa para nós e
seria muito deselegante de nossa parte fazê-lo
ajeitar outra a essa hora da noite — expôs sem a
menor vergonha na cara.
— Tem um sofá no outro cômodo —
lembrei, com uma cara bem traquina.
— Ah, amor... por favor... essa será nossa
felicidade de hoje em diante — insistiu com um
olhar esperançoso e singelo.
— O que quer dizer?
— Lin, essa será a parte do dia só nossa.
Agora os dias serão assim para mim, não ver a hora
da noite chegar para estar aqui com você. É aqui,
nesse nosso momento, que eu vou conhecer cada
pedacinho do seu corpo e cada cantinho da sua
alma. Essa é a parte do dia em que faremos amor,
transformaremos nossos sentimentos em carícias e
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conversaremos sobre tudo.


— Dáian...
— Tudo bem que decidimos esperar até você
se sentir minha esposa para fazermos amor, mas,
ainda assim, não precisamos esperar para aproveitar
as outras dádivas de dividir a cama conjugal, não é?
Como conversar e nos beijarmos a noite toda —
discorreu mantendo o olhar esperançoso de menino
crescido.
— Amor...
— Além disso — interrompeu-me — você
falou que queria me dizer algo importante e não
conversamos sobre isso.
Espertinho!
— Viu como precisamos de um momento
nosso sem interrupção? — finalizou com aquele ar
interesseiro e confiante.
Fiquei sem argumento.
— Por favor, amor, não me expulse. Eu
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prometo que se eu começar a perder o controle,


saio e tomo um banho frio. E outra, esperar mais
uns dias, não vai me matar. Quanto tempo para
voltarmos ao palácio? Dois ou três dias no máximo,
não é? Então... daí continuaremos de onde paramos.
— Todo esse discurso minuciosamente
elaborado para me convencer a deixar você dormir
aqui? — indaguei, mantendo uma das sobrancelhas
arqueadas.
— Anda, amor. Por que não podemos
começar a desfrutar de uma boa parte de nossa
felicidade, hein? — pediu com aquela carinha de
garoto chantagista, que só ele tinha.
Balancei a cabeça. Ele sabia criar uma
estratégia eficaz para conseguir seus propósitos
escusos. Não sabia dizer quem era mais perigoso,
Dáian ou Éfer. Comecei a pensar que se Dáian
fosse um vilão, estaríamos todos perdidos.
— Você sabe mesmo negociar — assenti,
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vencida.
Assim que me ouviu, o rei explodiu de
felicidade e me beijou, deixando toda aquela
vibração alegre chegar até mim, fazendo com que
meu corpo palpitasse na mesma sintonia.
— Você está linda, a propósito.
Ruborizei.
Em seguida, despiu a camisa e se atirou sobre
a cama com os braços abertos, mostrando-me o
peito, como se dissesse para eu me aninhar ali e
sem abandonar, nem por um minuto sequer, aquele
sorriso contente maravilhoso. Acabei me rendendo
e deitando onde ele queria.
Dáian suspirou, no instante em que meu rosto
tocou o seu peito.
— Então, o que tem para me dizer de tão
importante? — indagou satisfeito.
Levantei e o encarei.
— Lin, continue aqui — reclamou, batendo
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os dedos gentilmente contra o tórax.


— Não, meu amor. Isso é muito grave e
precisamos conversar olhando um para o outro.
O rei também acabou sentando-se na cama.
— Então... Enquanto os homens me levavam,
um deles disse que Éfer tem uma arma que pode
acabar com um exército inteiro sem mover um
único homem.
Dáian respirou fundo e seu semblante tornou-
se apreensivo.
— Acha que não era um blefe?
— Amor, você viu quantas coisas do meu
mundo Éfer tem? E, no meu mundo, algumas armas
podem se encaixar nessa descrição.
Dáian elevou uma das mãos ao queixo
enquanto mirava um ponto no quarto, mergulhando
fundo nos próprios pensamentos.
— Eu desconfio que Éfer saiba onde está a
passagem pela qual Jason e eu passamos. Não é um
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lugar acessível para pessoas, mas objetos podem ter


passado sim, ao longo de décadas e séculos. Amor,
você faz alguma ideia de onde isso fica isso?
— Não. Deve estar sob o domínio do
mercado negro e, se assim for, a localização está
guardada por segredo de sangue.
— Como assim?
— Quem fala, morre.
— Temos de achar esse lugar e dar um jeito
de trancá-lo.
— Se Éfer tentou nos envenenar antes de nos
invadir é porque não está tão convicto da vitória
assim. Então, ainda temos tempo para descobrir o
que está tramando. Quantos dias para regressarmos
ao palácio?
— Acho que dois ou três, no máximo, como
você disse.
— Enviarei uma mensagem amanhã ao
conselho de guerra para investigarem atividades
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suspeitas do mercado negro dos nômades e de


Karur.
— Amor, tem certeza de que você não
precisa voltar antes disso?
— Não! Eu vou ficar com você.
— Mas, amor...
— Shhh — disse, colocando um dedo sobre
meus lábios — nós não nos separamos mais —
finalizou, substituindo o dedo pelos lábios.
Sucumbi ao beijo.
— Não queria que se preocupasse com essas
coisas — afirmou, após alguns minutos, sem se
afastar de mim.
— Amor... você não disse que “esse” passa a
ser nosso momento, que passaremos a dormir
juntos de hoje em diante? Então... De certo modo,
já começamos a vida de casados. E se é assim, sua
preocupação é a minha e a minha preocupação é a
sua — falei, abaixando o rosto e disfarçando a
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vergonha, até porque esse tipo de declaração direta


ainda me deixava sem graça.
Dáian ouviu atentamente cada palavra, como
se eu fosse um discurso de motivação para um jogo
na final ou para um dia “D” antes de uma prova de
concurso ou vestibular. No momento em que
minha coragem voltou e levantei o olhar para
encará-lo, notei-o visivelmente emocionado, como
se aquele universo de felicidade dentro dele fosse
grande demais para conter em si e fosse extravasar
a qualquer minuto. Em seguida, esboçou aquele
sorriso encantador que eu amava, tocou meu rosto
suavemente, trazendo-me para perto de si,
dominando completamente meus lábios com os
dele.
Muito embora Dáian tenha sido o único
homem que eu beijara na vida, eu sabia um pouco
sobre beijos, afinal eu tinha vinte e quatro anos e,
com essa idade, não se é tão ingênuo assim. Minhas
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amigas, sobretudo no colegial, não paravam de


tagarelar a respeito do assunto. Sempre diziam que
o sabor do beijo dependia muito da bala ou do
chiclete que o parceiro tivesse em mãos na hora.
Então, os beijos eram mentolados ou com
toque de hortelã ou até alguns sabores mais
exóticos, como melancia ou maçã verde.
Entretanto, o homem que eu amava não recorria a
esses subterfúgios e, ainda assim, era... delicioso.
Era... simplesmente... sabor de Dáian. O mais
maravilhoso que já provei.
Após alguns minutinhos apreciando aquele
momento, o corpo dele veio sobre o meu, fazendo-
me deitar naquela cama sensacional, o seu toque
tornava-se cada vez mais intenso, assim como sua
respiração cada vez mais irregular, arfante,
descontrolada. Seus lábios passaram a pressionar os
meus com mais força, tornando-se mais exigentes,
enquanto entrelaçava seus dedos nos meus e
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apertava a minha mão.


— Você está tão linda, Lin. Tão cheirosa e a
maciez da sua pele é o meu tormento eterno —
confessou, enquanto corria os lábios pela pele do
meu rosto, deslizando-os por meu pescoço, indo
devagar por meu ombro até a alça da camisola.
Em seguida, ele colocou um pouco do seu
peso sobre mim, deixando-me senti-lo
transbordando de virilidade e queimando de desejo.
Tão logo ele encostou em mim, meu corpo
começou a reagir, como se eu tivesse sido feita para
ele e, então, pela primeira vez, senti-me
exuberantemente feminina e prestes a arder.
Provavelmente fosse mesmo uma grande
tolice, como o meu caro amigo leitor pode estar
pensando e, com razão, devo admitir, esperar para
fazer amor com o homem dos meus sonhos, ainda
mais tendo a plena consciência de que ele me
amava com a mesma intensidade. Além disso, eu já
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tinha idade mais que suficiente.


Contudo, eu queria me sentir esposa dele.
Não como algo que todos, incluindo ele, diziam-me
a torto e a direito, mas como algo que emergisse
naturalmente do meu coração e da minha alma.
Queria estar convicta disso, se é que posso colocar
as coisas nesses termos. Queria me sentir pronta e,
mais do que isso, queria lhe fazer uma promessa
solene, uma que pudesse ficar registrada entre as
estrelas por toda eternidade, antes de me entregar.
É estranho, eu sei, mas, esta sou eu.
Dáian estava desesperado para que meu
corpo se unisse ao dele e isso era nítido em cada
toque, cada carícia e em cada batida de seu coração,
que vibrava por nossa pele, vindo até mim como
numa explosão de fogos de artifício.
— Amor... eu... — expressei, sem conseguir
terminar.
Dáian se ergueu um pouco. Era visível que o
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desejo refreado o deixava contrariado, mas, ao


mesmo tempo, ele parecia saber que eu não estava
pronta, isso também o incentivava a querer esperar.
— Tudo bem, meu amor. Eu vou... eu vou...
tomar um banho frio.
— Estou te torturando, eu sei — admiti,
cabisbaixa.
— Com você até tortura é felicidade — disse
com aquela entonação marota, dando-me um
beijinho descontraído.
Sorri enquanto ele saía da cama.
— Lin, me espera, tá bom? — pediu com
aquele tom de garoto mimado.
— Tá bem — falei me ajeitando na cama,
como quem não promete nada.
Nesse momento, Dáian puxou o lençol e o
saiu carregando.
— Dáian, volte aqui com esse lençol, agora
— protestei.
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— Sem lençol, você não dorme. Se você não


dormir, vai me esperar — justificou como se fosse
a solução mais engenhosa do mundo.
— Vou esperar, prometo. Agora devolva o
lençol — reivindiquei, fazendo-o confiar em minha
palavra.
— Me espere — ele disse, devolvendo o
lençol, enquanto beijava minha testa.
— Tá bem, mas não demore — alertei.
Passado um tempinho, Dáian retornou ainda
secando os cabelos, sem camisa e com uma toalha
amarrada à sua cintura. Comecei a pensar que
esperar, mesmo por poucos dias, ia dar trabalho se
ele ficasse aparecendo diante de mim tão lindo
daquele jeito. Ele voltou a deitar-se com os braços
abertos e me indicou seu peito novamente. No
instante em que me aninhei, ele começou a
acariciar meus cabelos, igualzinho quando éramos
adolescentes. Não consegui me conter, e lágrimas
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nostálgicas começaram a brotar de mim.


— Lin, por que está chorando? — quis saber,
preocupado.
— Nada, isso só me traz lembranças —
esclareci, tentando me secar.
— A mim também.
Acabei me enterrando mais no peito dele.
— Agora eu deixo você dormir — ele disse,
brincalhão.
Nem respondi. Apenas apertei mais o meu
corpo sobre o dele.
— Boa noite, minha Lin.
Ouvi suas palavras de despedida, mas a
minha mente já estava flutuando em direção a
lugares distantes. Na manhã seguinte, despertei me
sentindo renovada, mas Dáian não estava na cama.
Encontrei apenas um bilhete sobre a mesinha.

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O que será que ele quis dizer com Festival do


Solstício? Era algo que eu deveria saber?
Terminei de despertar ao abrir a janela,
deixando entrar aquele sol maravilhoso. Na
verdade, o sol era o mesmo de sempre, bem como o
céu com o qual eu já estava até me acostumando. O
ar continuava puro, o vento fresco, tudo parecia em
seu lugar, no exato lugar em que estiveram ao
longo dos milênios. Ainda assim, era diferente.
O fato de todas as coisas estarem
maravilhosas, além do normal, só tinha uma
explicação: a felicidade. A mesma que me fazia ver
borboletas e beija-flores em todos os lugares. Por
um minuto, senti que se eu cantasse, os passarinhos
viriam me ajudar a arrumar a casa.
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É mesmo impressionante o poder que a


felicidade tem.
Assim que deixei o quarto, umas gentis
senhoras me serviram o café da manhã e acabei
saindo apressada tão logo terminei. Precisava saber
se o novo remédio dera o resultado esperado.
Quando cheguei, Jason ainda dormia, um alívio
inexplicável tomou conta de mim ao ver que o
emplastro com as flores de Éden melhorara o
ferimento. Não era um milagre no sentido mágico
do termo, no entanto, eu já podia comemorar, sem
sombra de dúvida, que a perna de “meu paciente”
ia se recuperar.
Obrigada, meu Deus!
— Minha senhora — um homem irrompeu,
chamando-me.
— Sim — respondi.
— Disseram que a senhora tem experiência
em cura de animais, por favor, venha comigo.
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Coloquei uma espécie de avental e, nos


bolsos, alguns instrumentos não incisivos da mala
médica, acompanhando, logo em seguida, o homem
até um campo de vegetação rasteira, um pouco
antes da plantação das árvores de Éden. Ao
chegarmos, notei um animal bem exótico deitado
na grama.
Se fossemos comparar com algum animal da
Terra, seria similar a um boi, contudo, tinha uma
pele lisa e espessa, em vez de fina e com pelos, e a
boca se assemelhava a de uma tartaruga. Ele era
bastante estranho, porém magnífico ao seu modo.
Acho que a palavra “alienígena” é a que melhor o
definiria.
— Qual o problema com ele? — indaguei.
— Ele não se move, senhora. Está deitado
assim desde cedo.
O peito do animal subia e descia
normalmente. Ele parecia estar, tão somente,
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adormecido, em um sono profundo. Examinei as


pálpebras com a ajuda da lanterninha, o bichinho
parecia que havia sido sedado e com um sedativo
bem forte ainda por cima. Analisei o máximo da
superfície da pele para constatar se havia sido
picado ou atingido por alguma coisa, mas não
encontrei nada.
— Isso é a primeira vez que acontece? —
questionei o homem novamente.
— É a primeira vez que vejo, minha senhora.
Reparando melhor nos lábios do animal,
notei que tinha resquícios de uma espécie de látex.
Olhei ao redor e logo encontrei várias flores com
formato de frutinhas e, algumas delas, nitidamente,
haviam sido comidas, pois ainda escorria pelo caule
um tipo de látex semelhante ao que o animal havia
ingerido.
Isso parece... papoula — pensei.
Colhi algumas e coloquei no bolso.
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— Bom... o animal só está dormindo


profundamente porque comeu essas plantas aqui —
apontei — o senhor terá de juntar alguns homens
para tentar levá-lo a um lugar seguro até que ele
acorde e cercar para que outros não cheguem perto
dessas flores.
— Senhora, não perdemos o animal, então?
— quis confirmar o homem, com o alívio
estampado em seu rosto.
— Não, ele parece bem. Só precisa esperá-lo
acordar e não o deixar mais chegar perto daqui.
— Obrigado, minha senhora — agradeceu o
senhor, curvando-se.
— Não tem de que e não precisa fazer isso —
corrigi sorrindo.
Ao retornar à casa em que Jason se
recuperava, havia uma grande comoção de pessoas
na porta. Algumas senhoras se aproximaram de
mim.
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— Minha senhora, por favor, poderia dar


uma olhada nos doentes do vilarejo. Os curandeiros
estão pasmos com a melhora do seu amigo.
Disseram nunca terem visto nada igual.
— Posso sim, mas não deem o crédito a mim.
Foram as flores de Éden — esclareci um pouco sem
graça.
— Mas o prefeito disse que a senhora quis
usar as flores no homem ferido — contestou a
mulher.
— Só foi um palpite — informei ainda sem
graça — em que posso ajudar? — completei,
colocando-me à disposição.
Não sei por que eu fui dizer isso. Em menos
de dez minutos havia uma fila de pessoas com os
mais diversos problemas para eu examinar. Até
unha encravada eu tive de atender. Não que eu
estivesse reclamando, ser útil era uma das coisas
que mais me fazia feliz no mundo. Mas a situação
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acabou se tornando tão esdrúxula que eu já estava a


ponto de ser confundida com alguém famoso. As
pessoas pareciam gostar de ter algum problema, só
para serem tratadas por mim.
Talvez estejam me confundindo com o rei.
As refeições eram coletivas na comunidade e
até na hora em que me sentei para almoçar com os
demais cidadãos, havia certo alvoroço em torno de
mim.
— Senhora, pode ir almoçar com o rei no
gabinete do prefeito, se quiser — falou-me um
senhorzinho.
— Não. Estou bem aqui. Obrigada —
agradeci.
De relance, vi Lui olhando-me e seu rosto
denunciava que estava admirado de me ver por ali.
Será que ele pensou que eu preferia almoçar
com Dáian em um ambiente mais cheio de rococós
do que aqui com o povo? Ué, até parece que não
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me conhece.
Em dado momento, Lui se levantou e veio
em minha direção trazendo seu prato. Pela atitude,
não havia dúvida de que viria se sentar ao meu
lado. Ao perceber o que o meu ex-professor faria,
confesso que um ataque súbito de nervosismo me
invadiu e, tão logo ele se acomodou, eu me
levantei. Uma atitude infantil e mais óbvia só se eu
fizesse isso com uma melancia amarrada no
pescoço.
Lui queria me dizer alguma coisa, mas, no
fim, optou por se calar. De minha parte, nem lhe
dei chance de pensar melhor e conversar. Não
queria que sofresse e, muito menos, que fosse eu a
lhe causar alguma dor. Queria menos ainda que ele
e o rei tivessem outro embate. Dáian era impulsivo
e muito ciumento, duas características que não
combinam nadinha com um triângulo amoroso.
Retornei para a multidão de pacientes, a qual
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me aguardava com indisfarçável expectativa.


Enquanto atendia uma garotinha linda, cujo
problema era a garganta um pouco inflamada,
Dáian passou por nós, vendo aquela fila de gente
esperando para se consultar comigo. Embora
também estivesse rodeado de pessoas, desta vez, eu
ganhei como a celebridade mais badalada.
O rei parou por alguns instantes e
permaneceu me olhando atender a pequenina, sem
esconder o tamanho do orgulho que estava
sentindo. Percebi que ele me mirava, mas prossegui
com que fazia, afinal eu ainda não me sentia à
vontade com o nosso relacionamento público.
Ok, caro leitor. Eu sei, é estupidez, mas eu
era virgem aos quase vinte cinco anos, o que você
esperava?
No momento em que terminei de atender o
último paciente, resolvi passar para ver como Jason
estava, contudo acabei parando no meio do
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caminho quando vi algumas crianças construindo o


que, para mim, pareciam pipas. Meu pai adorava
pipa. Até os oito anos, em todas as férias no sítio,
eu soltava pipa com ele. No entanto, depois disso, o
sucesso dele foi aumentando na mesma proporção
em que o tempo diminuía.
Os garotos maiores do vilarejo construíram
pipas fantásticas e saíram exibindo-as. Um
pequenino tentava, sem sucesso, construir a sua, e
ninguém parecia ter paciência para ajudá-lo. Numa
situação como esta, era óbvio que Everlin tinha de
ir se meter, não é?
Pegamos um lençol que estava estendido em
um varal e picotamos para fazer a nossa pipa, até
porque ela tinha de ficar espetacular a ponto de
deixar as dos garotos maiores no chinelo. Quando
terminamos a nossa arte, ficamos tão orgulhosos e
corremos para ver se flutuava. Só não conseguimos
ser rápidos o bastante para não sermos pegos pela
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dona do lençol, uma senhorinha para a qual tive de


prometer que pagaria pelo tecido estragado.
Pela primeira vez eu teria de pedir dinheiro
emprestado ao meu namorado rico. Ou seria noivo
rico? Ou marido rico? Só de pensar, dava um nó
na caixola.
No instante que a pipa levantou voo, fiquei
mais feliz que o garotinho. A nossa obra de arte
dava dez a zero nas dos outros garotos. Muitos
deles até nos pediram para experimentar o nosso
sucesso, que voava alto no céu.
— Não acredito que a senhora retalhou um
lençol para fazer aquilo! — ouvi alguém comentar.
Gelei no momento em que percebi que a
pergunta viera de Lui.
— Já paguei àquela senhora pelo lençol, não
se preocupe.
— Então terei de te devolver — falei
encabulada.
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— Não será necessário, se me deixar brincar


um pouco mais à tarde. Brincaria agora, se não
tivesse de ir com os guardas checar uma
movimentação estranha na estrada para Katar —
esclareceu, e notei que ele fez questão de me dizer
em que estava trabalhando.
— Será bom ter alguém para brincar com ele
mais tarde — informei sorrindo, sem entrar em
detalhes dos motivos de sua incursão com os
guardas.
Lui devolveu o sorriso e, por fim, seguiu o
seu caminho com ar decepcionado. Provavelmente
queria que eu tivesse estendido a conversa
perguntando sobre qual era o problema na estrada.
Eu teria feito isso, se não fossem as circunstâncias.
Ele tinha de desistir de mim e quanto antes
acontecesse, melhor. Assim que ele se foi, fiquei
ainda um tempo me divertindo com as crianças, até
que resolvi retornar aos meus afazeres e, ver como
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Jason estava, era prioridade. Tomei o caminho da


casa em que meu companheiro terráqueo se
restabelecia, quando ouvi Lui aos berros.
— Senhora! — chamou-me.
No momento em que me virei para ver do
que se tratava, congelei.
Essa não!

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TEMPESTADE

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L ui vinha correndo com


um garoto nos braços,
e tamanho do ferimento na coxa do menino era
assustador. O osso da perna também estava fora do
lugar. O pobre aparentava ter acabado de ingressar
na pré-adolescência e a dor aguda o fazia gritar e
gemer, partindo o coração de todos que assistiam
àquela cena.
— Leve-o até a casa dele, vou buscar minha
maleta — bradei o mais confiante que consegui,
empurrando lá para o fundo do mim o pavor
inconveniente.
A razão do medo era bem simples: não foi
difícil de constatar que o pequenino ia precisar do
triplo de pontos que Dáian daquela vez na cabana.
Corri com a mala médica, que graças ao bom Deus,
veio equipada com um kit cirúrgico, e adentrei
afoita à casa do menino, após toda a vila ter me
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indicado o caminho. Lui permaneceu com ele nos


braços e banhado em sangue, enquanto os pais do
pequeno permaneciam inconsoláveis.
— Coloque-o na mesa — ordenei.
O comandante obedeceu assim que os pais do
menino desocuparam o móvel. O garoto prosseguia
sofrendo entre gritos e gemidos abafados. Parei por
alguns para pensar no que fazer, pois não poderia
suturar a perna do menino sem anestesia. Coloquei
uma das mãos nos bolsos e senti a papoula
alienígena.
Meu Deus, eu não testei isso ainda, como
posso usar num garotinho desse tamanho?
— Segure a perna e não o deixe se mexer
enquanto examino — pedi a Lui.
— Sim, minha senhora — assentiu sorrindo.
Enquanto observava a ferida e pensava no
que fazer, o garoto se moveu. Levantei a cabeça na
direção de Lui, mas ele olhava fixamente para a
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porta, como se algo houvesse arrebatado a sua


atenção. Nem quis ver o que era, agarrei seu rosto e
o puxei de volta para mim.
— Foco, soldado — repreendi-o.
— Sim, minha senhora — atendeu
constrangido, dedicando-se com o dobro de
concentração.
Após alguns minutos, criei a coragem
necessária para fazer o que tinha de ser feito. Sedar
o menino era a única solução, tendo em vista que
ele precisava que o osso fosse posto no lugar e uma
sutura de, pelo menos, trinta pontos.
— Bebida alcoólica — solicitei, dirigindo-me
aos pais.
— Senhora, perdão, o que disse? —
exclamaram em uníssono.
— Foi isso mesmo que ouviram, preciso de
bebida alcoólica para dar ao garoto e rápido.
Eles se entreolharam espantados e Lui
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também.
— Tragam o que sua senhora está lhes
pedindo porque o que precisará fazer é doloroso até
para um homem adulto e treinado, imaginem para
uma criança — ouvi alguém disparar na porta.
Voltei-me para a entrada e vi Dáian recostado
no batente.
A distração de Lui fez sentido.
— Agora mesmo, meu senhor — acatou o pai
do garoto.
Tão logo trouxeram a bebida, extraí um
pouquinho do látex, tomando cuidado com a
quantia, até porque poucas flores foram o suficiente
para apagar um baita animal. Misturei o extrato
natural a um pouco de água e à bebida. Em seguida,
dei o pseudoláudano ao menino.
As pessoas costumam dizer que “o Universo
conspira”, e essa era a única explicação razoável
para eu ter descoberto aquela planta, justo naquele
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dia. No entanto, eu só não conseguia entender por


que era sempre eu quem estava bem no centro das
conspirações do Universo, pelo menos quando ele
resolvia cuidar das “coisas” naquele planeta.
Ainda que aquele fosse o tipo de situação
capaz de levar qualquer ser humano ao seu limite, e
eu fosse mesmo aquele tipo de garota que sempre
marcava presença no meio da confusão, o
pequenino precisava de mim, isso bastava para eu
suportar o que fosse. Suspirei aliviada ao ver que,
em poucos minutos, o projeto de láudano fizera o
menino adormecer.
Bom, tirando que eu havia acabado de dar a
matéria prima do ópio para um garotinho que
aparentava não ter chegado aos quinze anos, tudo
parecia sob controle. Pelo menos, na medida do
possível.
— O que você deu a ele? — quis saber o rei.
— É melhor nem perguntar — respondi,
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apressando-me para esterilizar o material.


— Por gentileza, se puderem esperar lá fora...
Quanto menos pessoas aqui, melhor será para o
menino — roguei, assim que os instrumentos
ficaram prontos.
Os pais do pequenino se entreolharam.
— Ele ficará bem — assegurei, transmitindo-
lhes alguma segurança, afinal também era meu
papel como médica.
O casal acabou concordando e se retirou.
— Lui, você já está com a mão na massa,
então fique — decretei.
Em seguida, vinha a tarefa mais difícil. Virei-
me para Dáian e fiz um gesto afirmativo com
cabeça, dizendo-lhe claramente que também
deveria ir. O pior foi que ele fez exatamente o que
previ. Olhou para mim e depois para Lui, como
quem indaga: “e ele vai ficar?”.
— Como eu disse, ele já está com a mão na
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massa, literalmente — afirmei.


Lui sorriu e Dáian bufou, retirando-se. Eu
podia estar errada, mas aquela cena me pareceu
muito familiar, praticamente um déjà vu ao
contrário.
Eu me meto em cada uma! Bem, fazendo um
rápido balanço geral da situação, pelo menos
convencer Dáian foi mais fácil do que eu havia
previsto.
Quando o rei saiu, começamos nosso longo e
delicado trabalho. O comandante me perguntava
cada etapa de nosso procedimento, e eu respondia
gentilmente, como uma forma de presenteá-lo pelo
interesse sincero.
Entretanto, eu não conseguia deixar de notar
que o sorriso dele transmitia algo a mais, dando a
impressão de que o repentino interesse pela
medicina não era tão natural, mas sim porque
descobriu algo que poderíamos ter em comum. Um
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mundo nosso, o qual não seria facilmente


compartilhado com outrem.
É... Lui sabia mesmo lutar pelo que queria.
Ao finalizarmos a pequena cirurgia,
colocamos o garoto sobre a cama, e eu puxei uma
cadeira. Precisava acompanhar de perto o sono e
calcular com cuidado quanto tempo duraria o efeito
do sedativo.
— A senhora pretende ficar mais com ele?
— Pelo menos até ele acordar. Preciso me
certificar de que ficará bem.
— Então, eu também ficarei — se dispôs, já
procurando por outra cadeira.
— Não precisa, de verdade. Você deve estar
ansioso para tomar um banho e tirar essa roupa —
afirmei, sorrindo.
A camisa de Lui havia sido, praticamente,
tingida de vermelho. Ele me fitou por alguns
instantes, como se hesitasse para pôr em prática
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uma ideia que o corroía.


Após refletir por poucos segundos, respirou
fundo e retirou a camisa. Não de um jeito sedutor
como Dáian teria feito, mas de um modo prático, o
qual, diga-se de passagem, combinava bem mais
com seu estilo. Eu até teria interpretado seu gesto
como algo corriqueiro se não fossem os olhares
incansáveis em busca da minha reação, deixando
evidente que sua intenção, desde o início, fora a de
aproveitar o momento para mostrar o que tinha.
Esses homens!
Está bem, minha querida leitora, muito
embora eu não me sinta muito à vontade para tocar
em certos assuntos, ainda mais quando se trata de
algo tão pessoal, farei isso porque sei o quanto está
morrendo de curiosidade para saber como Lui era.
Bom, por onde começo?
Semelhante ao rei, ele se submetia a uma
rotina pesada de treinos, pelo que eu sabia, por isso,
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também ostentava um peitoral bem torneado,


coberto por uma pele branca em perfeito contraste
com os cabelos e os olhos, de um negro bastante
intenso.
Os pelos rasteiros cobriam uma boa parte do
peito e os braços, assim como as mãos, eram bem
fortes, com curvas firmes. Não vou negar que ele
chamava muito a atenção e despertaria uma paixão
facilmente. Também não vou negar que qualquer
garota sã iria adorar se aninhar naquele pedaço de
mau caminho. E me doía vê-lo tentar, com tanto
afinco, fazer com que eu fosse essa garota sã.
— Lui, é melhor você achar alguma coisa
para se cobrir porque se Dáian o vir assim perto de
mim, ele vai te matar, e eu não poderei fazer nada
para impedir — alertei.
— Queria pensar que está pedindo isso
porque se sente, nem que seja um pouquinho,
incomodada de me ver assim — insinuou de um
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jeito tão tímido, que me fez querer rir na mesma


hora.
— Essa não é a questão — expliquei,
sentando-me e respirando fundo.
A confusão estava me circundando outra vez,
eu podia quase sentir o cheiro dela.
Lui sorriu, como se eu tivesse admitido que o
achava atraente.
Eita!
Resolvi não olhar mais para ele, enquanto
tentava convencê-lo a não ser morto.
Em seguida, o senti tocar em meus cabelos, o
que me fez levantar a cabeça, assustada.
— A senhora é tão linda e tão cheia de
virtudes. Às vezes, chego a achar que é um anjo,
não poderia ser uma simples mulher — declarou
encabulado.
Levantei da cadeira num sobressalto.
— Lui, por favor, não enfrente Dáian assim,
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ele é seu rei. E, além disso, os meus sentimentos


não vão mudar, desista — asseverei — não sofra —
pedi, fixando meu olhar no dele.
— A senhora não sabe o futuro. Pode
afirmar, com toda a certeza de que o amanhã não
será diferente? — indagou — pode? — insistiu.
— Não. Mas podemos ter uma ideia do
amanhã, com base no hoje.
— Mesmo assim, não passará de uma mera
ideia — retorquiu, sorridente.
— Lui, não faça isso. Não alimente
esperanças assim, por favor. Além do mais, vou ser
sincera com você. Penso que se você se interessou
por mim, mesmo sabendo o que era isto — mostrei-
lhe minha pulseira — você assumiu um risco —
contra-argumentei, jogando as cartas na mesa de
uma vez.
— E continuo assumindo — proferiu, com
aquela esperança que só o faria sofrer, com toda
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certeza.
No entanto, embora eu desejasse, com todas
as forças, que ele não se machucasse, embora eu
soubesse que ele era a última pessoa da face da
Terra deles a merecer sofrer por amor, a decisão era
dele e não minha.
— Você está mesmo testando a minha
paciência, não é? Soldado — Dáian rosnou da porta
do quarto.
Lui afastou-se uns passos, jogando a camisa
suja por sobre um dos ombros. Dáian entrou e se
interpôs entre nós. Em seguida, os dois se
entreolharam por alguns momentos, e o
comandante acabou seguindo para fora do quarto,
lançando sobre o rei um olhar ferino, como se
estivesse convencido de que seu oponente não
passava do maior estraga-prazeres do universo, ou
melhor, o maior estraga-felicidades.
— Você está bem? — indagou o rei,
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voltando-se para mim, assim que Lui saiu.


— Vou ficar quando ele acordar — respondi.
— Lin, eu juro, estou tentando ser paciente.
— Eu sei, meu amor. Só mais uns dias,
quando nos casarmos, ele desiste, acredite —
garanti, mais para ver se aplacava um dos lados,
pelo menos.
Dáian olhou para o chão e depois para o teto
como se uma ideia estivesse martelando em sua
mente e não conseguiria mantê-la dentro de si por
muito mais tempo.
— Você reparou nele? — questionou,
deixando extravasar o que o consumia.
Comecei a rir. Eu queria ter outra reação, mas
não deu. Dáian pareceu ficar mais desconfortável
com o meu ataque de riso.
— Meu amor, por que esse ciúme todo? —
questionei com carinho.
— Reparou ou não reparou?
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— Dáian, olhe para mim — pedi, trazendo


seu rosto para a minha direção.
Ele se voltou para mim, mas acabou
desviando o olhar.
— Eu vou dizer isso só uma vez, então
aproveite bem. Depois que eu vi você... bom... bem
à vontade, vamos dizer assim, ver os outros
acabou... como posso dizer... perdendo a graça —
confessei acanhada.
Dáian abriu um sorriso lindo e confiante,
como seu eu tivesse dito o que mais precisava
ouvir. Como se tivesse escolhido, dentre tantas que
existem, as palavras certas.
— Ah, amor. E se eu não tiver aproveitado
muito bem? Pode dizer isso de novo? Só mais uma
vezinha?
— Não, eu avisei que diria só uma vez.
— Ah, malvada.
Nesse instante, ouvimos o gemido do
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pequenino, que despertou pedindo água.


Graças a Deus!
Recomendei aos pais repouso absoluto para o
jovem e para manterem a perna imobilizada por um
bom tempo. Recebi os agradecimentos, e, na
sequência, Dáian e eu partimos para casa onde
estava Jason. Contudo, o rei teve de me deixar
assim que chegamos, porque aquele monte de gente
que gravitava em torno de nós acabou levando-o
para longe de mim outra vez.
Ossos do ofício, Everlin. Quem mandou você
namorar um homem tão requisitado?
Tão logo entrei, notei que o meu
companheiro terráqueo se recuperava bem. Desde
que chegáramos ao vilarejo, preferi não insistir em
saber muito acerca dele. Talvez fosse muito cedo
para assimilar a montanha de coisas que havia
acontecido. Por outro lado, eu não sabia ao certo o
quanto daquele mundo ele já tinha visto, então,
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deixei-o se recuperar sem maiores preocupações.


Quanto mais forte ele estivesse, melhor encararia
aquele planeta no céu.
— Não entendo uma palavra do que esse
povo diz — sentenciou assim que me viu.
— Que bom que já está conseguindo
reclamar — brinquei.
Jason sorriu.
— Esperei por você o dia todo, queria muito
lhe fazer umas perguntas — falou encarando-me.
Engoli em seco, enquanto me sentava ao seu
lado, afinal eu não sabia bem o que responder,
muito menos o quanto responder. Assim que me
acomodei, fiz um gesto de que disponível para
ouvi-lo.
— Muito bem, primeiro, onde estamos?
— Isso é um pouco difícil de explicar —
considerei, sem saber o que de fato responder.
— Como viemos parar aqui?
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— Isso é ainda mais difícil de explicar — eu


não sabia sair de nenhuma das perguntas dele.
— Você também estava no avião?
— Sim.
— Não acha isso algum tipo de sonho
bizarro, sei lá — expressou, balançando a cabeça.
— Você já viu o que tem lá fora, então? —
indaguei devagar.
— O quê? O cenário de Star Wars? Jura que
eu não sonhei com aquilo?
Balancei a cabeça de um lado para o outro.
Eu não fazia a menor ideia de como sequer
começar a explicar. E, pior, não sabia como lhe
contaria sobre o templo ou se seria prudente
revelar. Eu tinha certeza absoluta de que se o povo
da Terra descobrisse aquela passagem, seria o fim.
E não qualquer fim, mas daquele tipo de apocalipse
que só se vê em documentários dos canais de
ciência. Preferi não pensar nisso, por enquanto.
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— Qual sua teoria? — perguntou na lata.


— A minha teoria é que atravessamos um
buraco de minhoca — respondi-lhe também na lata.
— Buraco de minhoca? Tipo... como no
filme do Thor? — questionou incrédulo.
Droga, eu não podia dizer que já tinha visto
a ponte, muito menos que não se parecia em nada
com uma Bifrost.
— Talvez não exatamente como no filme,
mas algo do tipo — limitei-me a responder.
— Não acha que fomos abduzidos?
— Tá vendo alguma nave por aqui? Eles não
têm nem energia elétrica, como terão naves com
capacidade de abduzir alguém? — lancei as
perguntas e meu tom foi quase como o de alguém
que se oferece para desenhar uma explicação.
— Tá bem, você me pegou. Jura que não tem
energia elétrica?
— Juro.
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Jason mirou o teto por alguns instantes. No


fundo, o que ele realmente queria era que eu o
resgatasse e lhe dissesse qualquer coisa, menos o
que eu havia dito.
— Você tá brincando, né? Com esse lance do
buraco de minhoca? — questionou, não como se
estivesse zombando da minha explicação, mas
como alguém alimentando a esperança de acordar
na própria cama, deixando o pesadelo no mundo
imaterial, onde é o seu lugar.
— Por que não descansa um pouco? —
propus mais como consolo do que uma necessidade
de fato.
Ele assentiu conformado e deteve bravamente
as lágrimas em formação.
— E vamos colocar um banho na sua lista de
tratamento — afirmei sorrindo.
— Oh loco... nem tá tão bravo assim —
contestou, cheirando os... eu queria dizer axilas,
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queria mesmo, mas narrar aquela situação requer o


uso do que chamamos de “o português correto”,
então, ele cheirou os sovacos mesmo.
Após sentir o próprio odor, pensou um
pouquinho.
— Ou talvez esteja sim — afirmou já
devolvendo um sorriso.
Nesse momento, um dos curandeiros entrou,
recomendei a troca do emplastro e, sobretudo, o
banho. O pobre senhor não conseguiu esconder a
risada quando mencionei o banho.
— Ele tá rindo porque você me mandou
tomar banho, acertei?
— Acertou na mosca.
— Você é médica? — indagou subitamente.
— Formanda em veterinária.
— Ah...
— E você?
— Engenharia.
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— Nossa, pela sua cara, pensei que ganhasse


a vida jogando videogame.
— Ela adora uma piada, não é? — falou para
o curandeiro, com um sorriso bem mais largo já,
como se o pobre senhor fosse compreender alguma
coisa do que ele dizia.
— Engenharia civil? — investiguei mais um
pouco.
— É.
— Meus pais também.
— Olha... bacana! — devolveu, reclinando-se
sobre a cama e ajeitando a perna ferida.
Jason era do tipo nerd. Estava muito
debilitado quando o encontrei, por isso era difícil
descrevê-lo e não me lembrava de tê-lo visto no dia
no acidente. Considerando que ele mantinha aquela
cara de doente, resolvi deixar para reparar melhor
quando se recuperasse de fato.
— Descanse, tá? Eu já vou. Amanhã venho
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ver como está.


— Ok, doutora — respondeu em tom de
comédia.
Enquanto caminhava até a casa em que eu
estava hospedada, não conseguia parar de pensar
em Jason. Ele devia ter família, pais, irmãos e
irmãs arrasados, cogitando que morrera naquele
acidente, assim como meus pais deveriam estar.
Seria muita crueldade não lhe contar sobre o
templo. Entretanto, se eu contasse, e ele jogasse
isso na mídia, um vídeo no Youtube que fosse,
estaríamos fritos.
Esse era um dilema e tanto.
Logo que terminei meus afazeres e me
preparei para dormir, fiquei olhando o céu noturno
da janela do que seria uma sala, se aquela fosse
uma casa da Terra, e o vento frio invadia o lugar,
embora eu nem o notasse. As nuvens carregadas
aumentavam, anunciando a aproximação de uma
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tempestade. Pelo rumo que as coisas estavam


tomando, não seria uma tempestade só no clima.
Permaneci ali a observar o céu vermelho por um
tempo indefinido, quando os braços de Dáian me
envolveram.
— Cheguei já faz um tempo, me aprontei
para dormir e você nem me notou. Posso saber em
que está pensando, assim tão distante?
— Me perdoe, amor. Em nada de especial.
— Tem uma chuva forte chegando, e, em
nosso momento, terá de me contar — ele disse,
tomando-me nos braços, logo após fechar a janela.
O rei me carregou pela casa e parou por uns
minutos na porta do que era nosso quarto
provisório.
— Dáian, isso parece... — respirei fundo,
sem saber ao certo se devia concluir a ideia —
noite de núpcias — soltei, por fim.
— E não é? — insinuou com aquela
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entonação travessa que só ele tinha.


— Sossega — falei, beliscando aquele
abdômen firme.
— Ai, amor. Perguntar é de graça — teve a
coragem de dizer.
Ele me colocou sobre a cama e correu para
abrir a janela, cujas cortinas começaram a voar com
o forte vento.
— Amor, vai chover. Não é melhor deixar a
janela fechada?
— Vou deixar só um pouquinho. Quero sentir
o cheiro da chuva. Noites chuvosas passaram a ser
as minhas favoritas.
— Como assim, passaram a ser?
— Em uma das melhores noites da minha
vida, estava chovendo.
— É mesmo?
— Sim. Uma cabana simples, uma cama
improvisada e o amor da minha vida em meus
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braços. Nessa noite, estava chovendo — ele disse,


todo contente, enquanto se jogava na cama e abria
os braços.
Compreendi qual era a noite à que ele se
referia.
— Você se esqueceu de mencionar o
abdômen costurado — brinquei.
— Foi só um detalhe, diante da perfeição do
momento — gracejou, levantando-se e se
aproximando de mim, deixando-me sentir aquele
cheiro maravilhoso.
— Seu perfume é tão bom — confessei sem
pensar.
— Por falar em perfume — Dáian levantou-
se entusiasmado, pegou um potinho, o qual parecia
uma embalagem de cosmético moderna, e me
entregou.
Soltei a tampa admirada em como aquilo
parecia um frasco de cosmético de marca do meu
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mundo. Assim que abri, cheirei.


— Nossa... isso é coco com baunilha?
Igualzinho ao que eu usava quando... — olhei para
ele sem conseguir terminar — deixa para lá —
finalizei.
— Encomendei com o maior alquimista do
mundo em Aldrean.
— Aldrean? A outra nação, não é?
— Sim. Lá tem os melhores alquimistas.
Tentei negociar com Amir a permissão para que
aprendizes de Yonah estudassem alquimia lá, mas
nunca consegui.
— O Rei Amir tem razão, infelizmente.
Química pode ser muito perigoso.
— Não sabe a quantidade de coisas que tive
de cheirar para conseguir reproduzir esse perfume.
Dáian mandou mesmo um químico do mundo
deles reproduzir o creme de coco com baunilha que
eu usava?
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Acabei olhando o potinho, sem ter a menor


ideia do que dizer.
— Está pela metade. Não me diga que você
andou usando? — indaguei, “tirando onda” com a
cara dele como fazia quando éramos crianças.
— Não. Acredito que seja um perfume
feminino, não?
— Sim, mas então?
O rei abaixou o olhar, como se se
envergonhasse de algo.
— Não, você não fez isso! Dáian, você não...
Você não pedia para as garotas do harém usarem
isso, pedia? — finalizei com a pergunta, sem
esconder o quanto estava boquiaberta.
— Como acha que eu conseguia fingir que
estava com você?
Ao ouvir sua justificativa, eu, sinceramente,
não sabia o que pensar. Não sabia se devia beijá-lo
para sempre ou dar uma bronca nele. Não era justo
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com elas, mas também não era justo com ele. Nem
comigo. Pensando bem, a justiça havia passado
longe de todo mundo.
Dáian não queria ter se separado de mim,
nem eu dele. A injustiça começou aí. E o resto?
Acabou apenas se tornando uma bola de neve quase
sem fim. Inadvertidamente, lágrimas começaram a
rolar por meu rosto.
— Meu amor, não. Não lhe contei isto para
fazê-la chorar — confortou-me com um abraço
cheio de zelo.
— Você nunca me esqueceu! — transformei
em palavras o pensamento que me assombrava
porque enquanto eu havia feito tudo o que pude
para esquecê-lo, ele fez tudo o que pode para me
manter viva em sua memória.
— Nem um dia sequer. Sabe por que pisar
naquele harém e escolher uma mulher era um dos
piores momentos da minha vida?
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Olhei para ele sem conseguir imaginar o que


ele diria, até porque, muito embora não tivesse
amor, era claro que ele teria, ao menos, prazer.
Então, eu não conseguia imaginar um tormento
grandioso o suficiente para se sobrepor a uma noite
de luxúria ao lado de uma bela mulher.
— Porque toda vez... toda santa vez... uma
ideia martelava em minha mente e crescia dentro de
mim como um câncer. Simplesmente me consumia
em fúria e frustração.
— E qual ideia seria essa?
— A ideia de que você estava chegando aos
trinta anos.
Foi a gota d’água. Quando dei por mim, meus
lábios já estavam nos dele, num beijo delicioso.
Desta vez, a iniciativa foi minha. O beijei com uma
paixão que eu, honestamente, não sabia de que era
capaz. Eu não fazia a menor ideia de que um
instinto voraz como aquele habitava as profundezas
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de mim. Saboreei cada movimento de sua boca,


cada respiração entrecortada, cada suspiro, cada
carícia da pele e, mais que isso, deixei que meu
corpo incendiasse o dele.
Dáian era apaixonado e muito viril. Ele era o
tipo de homem que faria qualquer mulher ficar aos
seus pés, sem muito esforço. Eu estava certa em
achá-lo perigoso. Na verdade, ele era
perigosíssimo, isso sim. Agora fazia sentido a briga
de foice daquelas garotas porque se ele fechava os
olhos, sentia meu perfume, imaginava que estava
comigo, e, para completar, agia da mesma maneira
como estava agindo comigo, a noite delas devia ser
muito boa mesmo.
Uma amiga uma vez me disse que um
homem não pode ser bonito, rico e simpático ao
mesmo tempo. Algum defeito teria de ter, senão
não seria real. Por isso, às vezes, eu me perguntava
se ele era, de fato, real ou se eu tinha batido com a
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cabeça quando criança e imaginado tudo. E, mesmo


naquele momento, continuava imaginando. Dáian
era lindo de rosto, lindo de corpo e lindo de alma,
sem mencionar a fabulosa fortuna de um rei.
Bom, se esses lábios incríveis são um sonho,
ai daquele que me acordar!
Entre beijos e suspiros, Dáian se deteve por
alguns instantes.
— Você não faz ideia, Lin, do quanto me
atormenta pensar em outro homem te tocando.
Então, por favor, pelo que mais ama, nunca mais
deixe aquele soldado tocar sequer em seus cabelos.
Senão acabarei fazendo as coisas a minha maneira
e não quero te assustar. Eu o teria cegado naquele
dia, se você não tivesse me impedido. Não posso
nem pensar em outro sentindo essa pele, já me
enfurece só de ter uma vaga noção do quanto ele
fantasia com você — desabafou, olhando para
cama e respirando profundamente, como se o que
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acabara de confessar fosse o seu maior medo, como


se temesse aquilo mais que a própria morte.
Eu sabia que ele tinha ouvido a conversa
toda.
Antes de eu pronunciar qualquer palavra em
resposta, um raio trespassou céus, iluminando o
quarto, como uma rajada de poder do cosmos, e o
trovão reverberou pela terra, anunciando a chegada
da terrível tempestade. Ao ouvir o estrondo, meu
corpo todo estremeceu e eu voei para Dáian,
recostando-me em seu peito e enterrando meu rosto
em seu pescoço.
— Amor? — indagou.
Em seguida, outro raio tocou o chão e o
ribombar do trovão veio logo na sequência. Eu
tremia tanto que não conseguia falar e meus braços
se enrijeceram em torno dele.
— Medo de trovões? É sério isso? —
questionou novamente, beijando-me.
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— Fo.. fo.. foi o aci.. acidente — tentei


explicar.
— O acidente teve relação com trovões?
Outro clarão iluminou o céu, e eu me agarrei
a ele com mais força.
— Ah, minha Lin. Está tudo bem. Eu estou
aqui, está segura — ele disse, aninhando-me em
seu corpo forte.
Mesmo com suas palavras, minha voz não
saiu para explicar sobre a queda do avião porque os
raios começaram a cair um após o outro, e os
trovões vieram sem piedade, juntamente com a
chuva torrencial, confirmando a fúria dos céus
acima de nós.
— Vou fechar a janela — dispôs-se
carinhoso.
No instante em que ele disse isso, meus
braços apertaram-no ainda mais. Dáian, então,
tomou-me nos braços, levantou, fechou a janela e
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voltou a deitar-se comigo empoleirada sobre o seu


corpo.
— Vai parecer egoísta o que vou dizer, mas
nem consigo descrever a felicidade que estou
sentindo agora. Você é sempre tão forte, Lin. Vê-la
assim, frágil em meus braços, conhecer esse lado
seu, que ninguém mais conhece, me faz acreditar
que sou mesmo tudo de que você precisa. Que não
pode viver sem mim — admitiu, olhando-me com
aquela ternura encantadora.
— Na... não po... posso viveer sem vo... você
— tentei dizer, mas o pavor fez com que soasse
como ruídos meio estranhos.
— Eu amo tempestades — afirmou
sorridente, enquanto nos cobria com um cobertor
macio, ajeitava-se para me deixar o mais embolada
nele possível, acariciava meus cabelos e sussurrava
que ele nunca deixaria nada me acontecer.
— Talvez eu também comece a amar
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tempestades — soltei, entre suspiros, quando os


céus deram uma trégua, desejando que meu
inconsciente seguisse o dele para continuarmos
juntinhos na terra em que sonham os apaixonados.

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SOLSTÍCIO

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A cordei com a claridade


dos raios de sol, os
quais invadiam nosso quarto pela janela, e dei
graças a Deus por não serem raios de tempestade.
Era estranho pensar em “nosso” quarto. Tudo bem
que era um dormitório provisório, mas, mesmo
assim, era meu e de Dáian.
Por falar em Dáian, naquela manhã ele
dormia feito um anjo. Era tão bom, simplesmente,
olhar para ele. Às vezes eu tinha de me convencer

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de que, tê-lo ali, não era um sonho. Ele sempre


dormia sem camisa e até sua pose sobre a cama era
a de um rei. Aproximei-me devagar e corri minha
mão por seu braço forte. Queria ver seu rosto, mas
sua posição de lado não me permitia vê-lo de
frente. Resolvi acariciá-lo, bem suavemente, para
não o despertar.
Tão logo meus dedos se moveram, senti o
leve relevo na pele. Ao olhar mais de perto, pude
distinguir a ligeira deformidade que se espalhava
por toda pele das costas. Eram cicatrizes, e a
espessura denotava tiras de couro entrelaçadas.
Com certeza, foram feitas por um chicote. No
mesmo instante, senti um aperto dolorido no peito.
Queria beijar cada uma daquelas marcas, como se
fosse suficiente para apagá-las.
No entanto, ele dormia tão gostoso e
tranquilo que acabei não querendo despertá-lo.
Decidi me levantar e checar como Jason estava
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porque, caso já estivesse melhor, eu diria ao meu


rei que poderíamos partir. Quanto mais rápido
voltássemos, mais rápido nos casaríamos e mais
rápido eu seria dele.
Corri até a casa onde meu paciente se
recuperava e os curandeiros me informaram não
apenas da melhora espantosa, como também sobre
a decisão de utilizar as flores de Éden como
remédio dali por diante.
A ferida cicatrizava perfeitamente e, talvez,
até pudesse viajar conosco. Contudo, pensei ser
melhor ele permanecer no vilarejo para se curar por
completo. Jason também continuava dormindo e,
ao examiná-lo com cuidado, notei a incrível
melhora em sua fisionomia, pois seus traços
ficaram bem mais definidos e saudáveis.
Como eu disse, ele era do tipo nerd, tinha um
cabelo ruivo encaracolado. Era alto, não como
Dáian, e bem branquinho. Com o tratamento,
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ganhara corpo, possivelmente estava recuperando o


corpo, melhor dizendo. Perguntei ao curandeiro
mais detalhes de seu estado e o bom homem me
informou todo o progresso conforme as etapas do
tratamento. Em seguida, retirou a camisa e as
calças do paciente para me mostrar o que definiu
como “anomalia na pele”. Dei uma boa examinada
e, na verdade, era alergia ao calor. Expliquei que o
melhor seria hidratar a pele lesionada, e o
curandeiro, então, partiu em busca de um óleo
essencial considerado ótimo.
Voltei-me para Jason e, ao prestar atenção
detidamente, deparei-me com uma protuberância
estranha dentro da cueca dele. Calma, meu amigo
leitor. Não é o que está pensando, eu lhe garanto.
Verifiquei mais de perto e parecia algo familiar, tão
familiar que encheu meu coração de alegria. E pior,
o único jeito de ter certeza de que aquilo era o que
eu suspeitava, seria tocar. Cuidadosamente,
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levantei um pouco a peça íntima e coloquei a minha


mão sorrateiramente dentro da cueca. Assim que eu
senti a textura do objeto, eu tive certeza do que era
e comemorei radiante o meu novo achado. Se Jason
tinha se dado ao trabalho de pôr dentro da cueca era
porque suspeitava que aquele tesouro poderia
sobreviver ao acidente.
— Lin!!! — exclamou Dáian atônito.
Ignorei o apelo e continuei pescando de
dentro da cueca um dos bens mais preciosos do ser
humano, com um sorriso de orelha a orelha. No
momento em que retirei aquela peça prateada
maravilhosa de seu esconderijo, veio a tensão para
saber se funcionava. Com toda a calma do mundo,
apertei o botão power e, no instante em que a tela
iluminou, explodi num grito de felicidade.
— Não acreditoooooooo!
— Nem vem, esse celular é meu — protestou
Jason, sonolento.
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— Amor, olha — mostrei ao rei, totalmente


tomada pela alegria.
— Lin... você tirou isso de dentro da... você
pôs a mão no... — Dáian não conseguia finalizar o
pensamento, estava, praticamente, paralisado.
— Amor... você não sabe as maravilhas que
essa coisinha faz... Teria colocado a mão até na
“caca” para pegar um desse, pode acreditar —
afirmei eufórica.
— Everlin, esse celular é meu, tira o zóio —
continuou reclamando.
— Sou esposa do rei, posso confiscar —
asseverei a Jason — não posso, amor? — indaguei,
voltando-me para Dáian.
— Não — respondeu o rei, mantendo o ar
carrancudo.
Expeli o ar, decepcionada.
— Mas eu posso. Sou o rei deste país e o
aparelho está confiscado — informou Dáian a
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Jason, falando em nossa língua.


Meu companheiro e eu nos entreolhamos.
— Para você, meu amor. O aparelho é todo
seu — o rei determinou, ainda falando em nossa
língua e mantendo a entonação de poucos amigos.
— Aaaaahhhhh... — explodi — obrigada,
meu amor — agradeci, enchendo-o de beijos, os
quais não desfizeram a careta zangada.
— Isso não vale — continuou protestando o
terráqueo.
— Deixe de ser mal-agradecido, salvamos a
sua vida — repreendi-o.
Jason abaixou a cabeça, como se tivesse
concluído que, de fato, seu comportamento beirava
à ingratidão.
— Tem razão, devo agradecer a vocês dois
por terem me tirado daquela prisão — reconheceu
com um semblante afetuoso.
— Vem, meu amor. Eu tenho de te mostrar
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algumas coisas que essa belezinha faz — chamei o


rei, já o puxando para a porta.
— Everlin, espere. Eu preciso conversar com
você — interpelou Jason.
— Depois — decretei — vem, amor —
propus novamente, voltando-me ao rei.
Dáian continuava aborrecido, mas me seguiu
para fora da casa sem dar um pio. Assim que
deixamos o recinto, olhei para as ruas daquele
vilarejo imaginando onde seria um bom lugar para
executar a minha façanha, afinal era um momento
quase histórico porque, enfim, eu iria obter uma
coisa que eu quis por toda a minha vida.
Puxei o meu marido “postiço” pelo braço,
avançando pelas pacatas ruas até chegarmos às
árvores à beira do rio. O sol estava a todo vapor no
céu, nem parecendo que o mundo tinha caído na
noite anterior. Escolhi um lugarzinho menos
molhado e me sentei. Ele se sentou logo em
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seguida.
— Vem, aproxime-se mais e sorria — instruí
animada.
Dáian não obedeceu e ficou mirando o rio.
— Amor, vem — insisti.
— Você acabou de pôr a mão nas partes
íntimas de um homem — despejou irritado.
— Ah, meu bravinho — brinquei,
aproximando-me dele e depositando carícias em
seu pescoço, bochecha e lábios.
— Nem vem, você não vai me fazer ceder
com beijos — avisou.
O mais engraçado era ele afirmar com tanta
convicção que não iria se render, mas inclinava-se
cada vez mais para mim, permitindo mais e mais
beijos.
— Eu prometo que você irá entender assim
que eu mostrar.
— Eu acho bom — decretou.
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— Vem, sente-se mais perto.


Enfim, ele atendeu ao meu pedido.
— Agora é para eu sorrir? — questionou sem
entender.
— Sim, sorria olhando para cá — expliquei,
mostrando nossa imagem no celular.
— Lin, somos nós dois ali? — exclamou
assombrado.
— Sim, sorria.
Dáian abriu o sorriso mais lindo que eu já
havia visto. Eu poderia usar facilmente aquela
imagem para marketing de algum produto se eu
fosse dona de uma empresa de moda ou
cosméticos. Tentei fazer uma pose à altura, mas
não sei se consegui.
Tão logo apertei o botão da câmera, e a nossa
imagem ficou registrada no banco de dados daquele
celular, meus olhos turvaram numa emoção que
não consigo descrever. Eu tinha, finalmente, uma
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fotografia minha com o amor da minha vida.


Mostrei-lhe a nossa foto, disfarçando as
lágrimas.
— Meu Deus, Lin. Que coisa maravilhosa.
Como fazemos agora para pôr esse tesouro
naqueles quadrinhos bonitos?
— Quadrinhos? — indaguei sem entender.
— É. As imagens ficam envoltas nesses
quadrinhos no seu mundo, não ficam? Tem um cor-
de-rosa lindo.
Quando ele disse “cor-de-rosa” fiquei
imaginando o que poderia ser. Sem querer, lembrei-
me das minhas fotos de infância. Meu aniversário
de sete anos havia sido decorado com balões cor-
de-rosa e bexigas em formato de castelo. Minha
mãe gostou tanto das fotos que até comprou um
porta-retratos cor-de-rosa maravilhoso para colocar
aquela em que eu assoprava a velinha do bolo de
princesa.
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Pera um pouco! Quadrinhos?


— Amor, que imagem tem nesse quadrinho
cor-de-rosa de que você falou?
Dáian mostrou aquele sorriso travesso que
sempre arrancava algo poderoso das profundezas
de mim. Ele sempre trazia à tona o melhor ou o
pior do meu interior, com essa arma sedutora e
encantada que, volta e meia, usava e me
enlouquecia.
— Uma menina linda assoprando uma vela
de um bolo — confessou sem abandonar “o
sorriso”.
— Até as minhas fotos você pegou?! —
inquiri sem acreditar.
— Ah, amor. Você era tão linda quando
criança. Não as tire de mim, por favor — pediu
com aquela carinha de garoto interesseiro.
Fiquei sem ter o que dizer, apenas olhando
aquele sorriso e aquela carinha que eu amava. Eu o
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amava. Mais que tudo. Mais do que eu um dia


pensei ser capaz de amar.
— Quando formos a Terra para eu me
despedir dos meus pais e nos casarmos, podemos
revelar a fotografia e colocá-la num porta-retratos,
o “quadrinho”, que você mencionou — falei,
deixando meu amor transbordar de mim e emanar
por meu olhar chegando até ele como uma onda
viajante através do ar.
Meu sentimento chegou ao seu destino
porque Dáian passou a me olhar na mesma maneira
e aproximou os lábios dos meus. Contudo, antes
que nos tocássemos, alguém nos interrompeu.
— Majestade, perdoe-me a intromissão, mas
existem assuntos que necessitam de sua atenção
urgentemente — interpelou o prefeito.
Esse cara sempre chega nos piores momentos
— pensei colocando a mão na testa igualzinho
aquele emoji do Whastapp.
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— Parece que a tempestade foi bem violenta,


e os trabalhadores estão encontrando algumas
dificuldades na barragem — continuou.
— Já entendi. Estou indo — Dáian
concordou, sem ocultar a frustração.
— Não sabe o quanto estamos felizes por tê-
lo conosco no Festival do Solstício — afirmou o
prefeito.
— Ah, meu amor. Quando poderemos ir? —
indagou Dáian.
— Acho que amanhã já podemos —
respondi, analisando a situação em minha mente.
— Hoje à noite teremos um festival para ir,
então — disse o rei, estranhamente contente mesmo
depois de ouvir que precisávamos ficar mais um
dia.
— A senhora vai adorar o festival, a cidade
ficará toda iluminada e as mulheres já estão
agitadas por causa da tradição — enfatizou o
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prefeito.
— Solstício, o dia mais longo do ano, não é?
E por que comemoram?
O prefeito olhou-me aturdido.
— A senhora não conhece as tradições de
Yonah?
— A minha esposa veio de um lugar distante
— esclareceu o rei.
— Amor, você disse no bilhete para eu não
me esquecer do festival. Tem alguma razão em
especial?
— Não, Lin. Não se preocupe com isso —
respondeu meio acanhado.
Não sei por que, não acreditei muito nesse
“não se preocupe com isso”.
— É melhor irmos. Até mais tarde, amor —
despediu-se, beijando minha testa.
Quando seguia para onde Jason estava
hospedado, algumas senhorinhas solicitaram que as
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acompanhasse até a casa de outra senhora que se


encontrava indisposta, desviando-me do meu plano
original. Após examiná-la e lhe prescrever o
tratamento, voltei caminhando na companhia das
anciãs e observando a agitação da mulherada do
vilarejo.
— O que está havendo? — quis saber,
curiosa.
— É a tradição do Festival do Solstício. Todo
ano, nesta data, as jovens ficam em polvorosa.
— E que tradição seria essa?
— A senhora não conhece? — indagaram
quase fazendo um coro.
— Não — respondi de uma vez.
— No solstício, à noite, há um grande festival
em todas as cidades e vilarejos da nação para
comemorar o novo ciclo e a colheita. Durante o dia,
as jovens solteiras preparam um almoço especial
para os homens que gostariam que as desposassem.
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As recém-casadas também preparam para os


maridos.
— Um almoço? — repeti espantada.
Agora entendi o porquê do bilhete. É claro
que Dáian quer que eu cozinhe para ele. Como se
eu não o conhecesse bem para saber disso. E
agora? Como vou preparar alguma coisa? E o
pior, o que vou cozinhar? Tô lascada!
— A senhora pretende preparar algo para o
rei? — inquiriu uma das senhorinhas.
— Bom, eu fui pega de surpresa e...
— Pode usar minha cozinha, se quiser —
ofereceu-me gentilmente.
Pensei por alguns instantes. Dáian, com
certeza, queria um almoço feito por mim. Eu
poderia preparar alguma coisa, nem que fosse bem
simples para deixá-lo feliz.
— Vou aceitar sim, muito agradecida —
respondi.
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A cozinha daquela senhora era bem equipada,


mas, pelo que conversamos, a família dela não era
grande. Ela ficara viúva havia algum tempo e o
filho se mudara com a família fugindo da fome,
estabelecendo-se em um canto distante do país.
Vi algumas coisas que podia usar na dispensa
e, mais incrível, vi um instrumento muito útil para
o que eu tinha em mente. Era um prato muito
simples, até porque meus dotes culinários não são
lá essas coisas. Entretanto, se eu conseguisse
executar, até que seria uma façanha e tanto.
Preparar uma macarronada não é tão difícil,
mas confesso que no dia em que consegui fazer a
massa do zero me senti uma master chef. Lembro
da primeira vez que fiz massa de macarrão. Era um
feriado que não tinha nada em casa e chovia
horrores. Resultado: ou eu inventava ou morreria
de fome. Vi a receita no Youtube e me aventurei.
Não ficou lá aquelas coisas, mas matou a fome e,
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no fim, é isso que importa. E, de quebra, acabei


feliz e me sentindo uma chef de verdade.
Vamos ver o que Dáian vai achar...
Quando estava abrindo a massa com o
instrumento, o qual até passaria por um rolo de
macarrão decente, a senhorinha se aproximou para
ver minha aventura gastronômica.
— Comida estranha — ela comentou.
— De onde eu venho é bem comum —
expliquei sorrindo.
Nesse instante, chegaram várias mulheres
pedindo utensílios e temperos emprestados. Pelo
jeito, fazer o almoço dos homens era, de fato, um
megaevento. Deixei a massa secando enquanto
fervia a água e fazia o molho. Eles não tinham
tomates no sentido literal do termo, mas possuíam
um similar com um pigmento bem avermelhado.
Nesse ponto, todas as mulheres, que passavam por
ali, reparavam no que eu preparava. Mais uma vez,
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acabei me tornando a atração do momento.


Ao finalizar, empratei, ou melhor dizendo,
“emarmitei” minha proeza. O prato ficou tão
bonitinho com o toque verde dos temperos finais
que acabei ficando toda orgulhosa do meu
momento “dona de casa”. Dentre os temperos,
havia um azeite tão cheiroso e saboroso que resolvi
adicioná-lo como toque finale, já me achando digna
de levar o prato aos jurados. Enquanto concluía
minha obra de arte, percebi várias mulheres
passando por mim e disfarçando suas risadas. Até
algumas senhoras me olhavam e levavam a mão à
boca para cobrir o riso.
O que será que está acontecendo?
O evento teria início em alguns minutos, eu
já estava prestes a fechar a marmita.
— Hum... vejo que teremos um príncipe
logo, logo — observou a senhora que me cedera a
cozinha, aproximando-se, vermelha de tanto
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segurar o riso.
— Como assim? — indaguei sem entender.
— Você encheu o prato do rei com azeite de
Kalahan — falou, mostrando-me o vidro do óleo
maravilhoso.
— O gosto é muito bom — justifiquei.
— Sim, ele é uma delícia — concordou.
Depois me puxou para perto de si.
— E muito afrodisíaco — finalizou, falando
baixinho.
— O queeeeeeeê? — exclamei constrangida e
mais alto do que gostaria.
Quase instantaneamente, a mulherada caiu na
gargalhada.
Caramba! E agora? Não tenho tempo de
refazer!
Se eu não levasse o prato para Dáian era
quase certeza que ele ficaria chateado, mas, se eu
levasse, como ficaria... bem... o “nosso momento”?
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Bom, seja o que Deus quiser.


Fechei a marmita.
Segui o fluxo de mulheres, carregando minha
marmitinha improvisada, cujo conteúdo era uma
bomba hormonal masculina, diga-se passagem, e
sem muita convicção se devia dá-la ou não ao meu
marido “postiço”. Passei por Lui no caminho e ele
parecia concentrado no que fazia. Olhando
rapidamente, eu diria que traçava estratégias de
segurança, juntamente com o bando de soldados
que o rodeava. Os líderes estavam reunidos
discutindo as melhores soluções para consertarem
os estragos da tempestade, contudo Dáian não
estava com eles.
Onde será que está o rei?
Continuei acompanhando a mulherada até
que chegamos à barragem do rio. Mirei a parte de
cima daquela enorme construção de madeira e não
pude acreditar no que vi. No alto da barragem,
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Dáian trabalhava no reforço da obra junto com os


aldeões. Ele estava sem camisa, deixando os
músculos bem torneados expostos para quem
quisesse olhar. Aquela visão me deixou
completamente sem fôlego, não só porque estivesse
lindo demais, suando sob o sol quente e mostrando
o corpo daquele jeito, mas por fazer algo que
jamais imaginei que faria.
Sem querer, as lembranças do palácio
povoaram minha mente como um trailer de filme.
Um palácio imponente e com tanto luxo capaz de
nutrir a ostentação de gerações de reis. Para se ter
uma noção, a casa do rei era ornada de ouro até no
teto.
Dáian crescera em um ambiente que lhe dava
tudo o que quisesse. No entanto, ali estava ele,
simplesmente, trabalhando com o povo, como se
fosse um deles. Era um deles. Lui fazia o seu
trabalho com muita dedicação, mas Dáian ia muito
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além. Lui era digno, mas Dáian era extraordinário.


Recostei-me em uma árvore e fiquei
admirando a beleza dele, que transcendia à mera
imagem captada por meus olhos. De repente,
comecei a notar a comoção de garotas que se
formou aos pés da barragem, todas carregando
marmitas, voltadas para a mesma direção para qual
eu olhara minutos antes.
Mais do que isso, comecei a escutar o
burburinho.
— Meu Deus, que homem lindo! — ouvi
pipocar em um volume mais alto.
— Ele está sem camisa, acho que vou
desmaiar... — comentou a companheira.
O problema era que esse “zum zum zum”
estava quase por toda parte. Em pouco tempo, uma
enxurrada de garotas guardava ao pé da barragem.
E eu pensando que já tínhamos passado
dessa fase.
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— Pelos deuses, está para nascer um homem


mais lindo que aquele — ressoou outra voz.
— O que eu não daria para pôr minha mão
naquele bumbum — exprimiu uma garota quase ao
meu lado.
Oi? Pera aí, esse projeto não tem nem
tamanho! Everlin, trate de botar essa garota no
lugar dela, agora! Aff...
O duro era que Dáian já havia me
apresentado como esposa oficial. E se, ao elevar a
voz, eu fizesse algo que o envergonhasse? Algo
fora da etiqueta? Acabei engolindo em seco.
— Veja lá como fala, a esposa dele está bem
ali — cochichou a moça que a acompanhava.
— O rei pode ter quantas esposas quiser — a
atrevida retrucou e a todo volume.
Dane-se a etiqueta! Agora sim ela vai ver.
No instante em que eu já ia em direção a ela,
uma agitação se iniciou. As garotas começaram a
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gritar como se um cantor famoso estivesse


passando por ali. Virei-me para ver o que acontecia
e vi que Dáian desceu da barragem, ficando, num
instante, rodeado de mulheres, as quais imploravam
para que ele aceitasse suas marmitas. A bocudinha
saiu correndo em direção a ele também.
— Majestade, aceite a minha marmita. Eu
acordei às seis da manhã para começar a preparar
— confessou uma voz.
— Eu acordei às cinco — pipocou outra voz.
Não sei o porquê, mas escondi minha
marmita atrás de mim, e me recostei numa árvore.
O mais estranho, além da excentricidade da
situação em si, foi perceber que, apesar daquelas
garotas estarem loucas para lhe entregar uma
marmita ou deslumbrarem-se com sua beleza física,
nenhuma delas pareceu admirá-lo pelo mesmo
motivo que eu. Mesmo com tantas mulheres à sua
frente, o rei olhava de um lado para o outro,
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procurando por alguma coisa e, assim que me viu,


abriu caminho pelo mar de estrogênio.
— Oi — ele disse, logo que se aproximou,
com os olhos tão esperançosos que fiquei até sem
graça.
— Oi — respondi sem jeito, acho que um
pouco abalada pela situação.
Dáian olhou para os lados, como se estivesse
com vergonha de me perguntar o que o estava
atormentando. Depois, sem notar o que eu
carregava atrás de mim, fitou-me, tentando
vigorosamente disfarçar a decepção.
— Me perdoe pelos trajes, eu estava...
— Eu sei — interrompi.
— Quer ir almoçar comigo na casa do
prefeito, sei que não deve ter tido tempo, afinal está
cuidando do seu paciente e do povo da vila —
discorreu, evitando me encarar para, nitidamente,
esconder de mim seu estado de espírito.
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Quando retirei de trás de mim o que eu trazia,


Dáian explodiu de felicidade. Ele não conseguia
nem falar. Sorri, mordendo meus lábios, acanhada e
um sentimento tão pleno inundou meu coração,
fazendo-me sentir que minha pele era a única coisa
que me impedia de voar para qualquer lugar.
Quem diria que a felicidade de alguém pode
ser a sua própria, de forma tão genuína, intensa e
indizível como aquela? Naquele momento, tive a
mais absoluta certeza de que, se eu pudesse fazer
aqueles olhos sorrirem tão radiantes assim até o fim
dos meus dias, quando chegasse minha hora de
partir, eu morreria imersa em meu próprio oceano
de felicidade.
— Vamos sentar — convidei.
Tão logo nos acomodamos, abaixei minha
cabeça e fiquei desenhando formas na areia com
meus pés. Ali havia mulheres que se levantaram
muito cedo para preparar pratos elaborados ao
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passo que eu havia feito uma mera macarronada.


— Amor, eu não tive mesmo muito tempo de
preparar nada mais sofisticado, sabe... se não
estiver tão bom, não precisa comer...
— O quê? — disse o rei, o som de suas
palavras estava para lá de esquisito.
Ergui a cabeça para encará-lo e, no momento
em que o fitei, ele estava com a boca cheia e toda
suja de molho. Comecei a rir. Não aguentei.
— Majestade, isso são modos? — brinquei.
— Mas você não vai contar a Ralifax, vai?
— Depende, o que eu ganho?
— Engraçadinha.
— Aprendi com o melhor — insinuei.
Dáian sorriu tão gostoso e, mesmo com a
boca toda lambuzada, era lindo demais. Devolvi o
sorriso.
— Amor, por acaso você colocou azeite de
Kalahan nesse prato? — perguntou, após alguns
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minutos degustando.
Ai, meu Deus, tinha me esquecido da bomba.
Enterrei minha cabeça entre meus braços,
debruçando-me sobre a mesa, sem saber onde me
enterrar de verdade.
— Você quer mesmo me matar, não é? —
soltou, caindo na gargalhada.
— Ah, amor. Só depois que eu já tinha
colocado me disseram o que isso fazia. Eu não
tinha ideia... — tentei explicar a situação, mas
acabei sendo meio reticente.
— Estou vendo, terei de dormir no rio hoje
— afirmou ainda sorrindo e abocanhando o
macarrão.
— Ah, amor, então, não coma mais.
— Claro que eu vou comer. Não sabe o
quanto esperei por essa comida —declarou,
comendo com tanto gosto que eu, certamente,
poderia esperar por chumbo grosso à noite.
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Ele saboreava o prato com tanta vontade que


terminou rapidinho sua refeição e só então se
limpou. Em seguida, ficou olhando para mim como
se quisesse me abraçar e nunca mais soltar.
— Não sabe quanta inveja já tive dos
trabalhadores, quando recebiam suas refeições de
suas amadas. E hoje, até que enfim, ganhei a
minha. Estava uma delícia, meu amor. Obrigado —
agradeceu, com uma ternura que abalou até meu
último fio de cabelo.
Ruborizei quase instantaneamente e fiquei
mexendo o corpo, desconcertada, sem ter a menor
ideia do que fazer ou dizer.
— Preciso voltar a trabalhar — lembrou,
resignado.
— Que tal vestir uma camisa? — propus,
esforçando-me para parecer o mais natural possível.
— Nesse calor?
— Passar um pouco de calor não vai fazer
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mal.
— Eu coloco se você admitir que está
enciumada.
— Enciumada, eu? Claro que não.
— Então, vou trabalhar assim.
— Então, vai dormir no rio mesmo ou no
sofá, você escolhe.
— Malvada — rendeu-se vencido, colocando
a camisa.
Hum... descobri outro gatilho para conseguir
o que eu quiser — refleti valendo-me novamente da
cara de emoji pensativo.
— Por que não admite que está com ciúmes?
— indagou, aproximando-se e agachando-se bem a
minha frente.
— Está estampado na minha testa, por que
quer que eu diga? — questionei, esbanjando meu
jeito Everlin de ser.
— Porque, às vezes, o outro precisa ouvir,
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mesmo que seja óbvio — respondeu, com aquela


carinha de garotinho suplicante.
— Quando estivermos a sós, eu digo —
concordei, derrotada mais pela cara que ele fez do
que pelo que acabara de dizer.
Dáian voou em meus lábios antes que eu
pudesse protestar. Beijou-me de um jeito voraz,
exalando felicidade de uma maneira que só ele
sabia fazer.
— Então, mal posso esperar por nosso
momento — falou entre suspiros.
— Tá todo mundo olhando para a gente —
avisei.
— E daí?
— E daí que já estou sentindo os espíritos de
ressentimento dirigidos a mim.
— Quer que eu as disperse?
— Não. Já me acostumei ao ódio feminino
por sua causa.
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Dáian sorriu daquele jeito travesso, como se


estivesse comemorando dentro de si por me ver no
modo “mordida de ciúmes”.
— Então, nos vemos à noite para o festival?
— Até à noite — prometi, encerrando o
primeiro round do dia do solstício.

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FESTIVAL

Q uanto mais a tarde caía, mais


agitadas as pessoas ficavam.
Com o aproximar da noite, o vilarejo ficou todo
iluminado pelas lâmpadas de Éden e com
decorações festivas. Assim que entrei em minha
casa provisória, algumas mulheres vieram até mim,
mostrando um vestido vermelho de alcinha
lindíssimo, com detalhes em preto. Não pude deixar

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de lembrar do vestido vermelho que usei em meu


último encontro formal com rei. Só faltou Ralifax
me por numa passarela com ele. Eu só não sabia
bem o porquê de quererem tanto me fazer usar
vermelho. Talvez me achassem com cara de
Chapolin, vai saber.
— Vamos ajudá-la a se arrumar, senhora.
— Mas para que tudo isso? — indaguei sem
graça, afinal eu não estava habituada a me arrumar
para encontros nem para festivais.
— O rei disse que vem buscá-la em uma
hora. Parece que ele vai levá-la para Katar —
informaram-me entusiasmadas.
— E por quê?
— Porque a cidade é maior e o festival bem
mais bonito. Venha, sente-se aqui. Vamos arrumá-
la — impuseram.
— Não tem jeito, não é? — aprovei, vencida.
Em pouco tempo, as mulheres me
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produziram inteirinha, com direito a maquiagem e


tudo mais. Fizeram um penteado elaborado, digno
de publicar no Pinterest, e arremataram com flores
de Éden. Embora tenha ficado lindo, achei a
produção um pouco exagerada. Pensando bem, não
sabia dizer se eu estava mais para madrinha de
casamento ou uma versão estilizada de
chapeuzinho vermelho.
Tão logo terminaram, fui até a porta esperar
por Dáian.
Mal posso esperar para aproveitar “a
produção” e tirarmos uma selfie. Já estava
exagerada mesmo, não é? O jeito agora é
aproveitar.
Quando pus os pés para fora, notei Lui
recostado na entrada. Parecia esperar por alguém.
No instante em que me viu, empertigou-se,
encarando-me estupefato.
— Está linda, senhora — elogiou sem desviar
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o olhar.
— Obrigada — agradeci sem saber se devia
permanecer ali ou voltar para dentro.
Resolvi retroceder para evitar a confusão, a
qual já se tornara mais frequente do que eu
gostaria.
— Espere, senhora.
— Lui, por favor... — comecei sem
conseguir finalizar.
— Já viu uma desta? — indagou, mostrando-
me uma rosa maravilhosa.
Era cintilante. Não fluorescente como as
flores de Éden, mas reluzia conforme a luz tocava
as pétalas. Era, simplesmente, espetacular.
— Pela sua surpresa, suponho que não tem
dessas no seu mundo.
— Assim, brilhando naturalmente, nunca vi
— afirmei sorrindo.
— Para a senhora — ofereceu, estendendo a
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bela rosa em minha direção.


— Lui, eu não posso aceitar.
— Ela é selvagem. Cresce somente no
paredão da montanha próxima a Katar. Deu um
trabalhinho colhê-la, então, por favor, aceite —
insistiu.
Lui? Fazendo chantagem emocional? Agora
já vi de tudo.
— Mesmo assim, não posso aceitar.
— Faremos o seguinte, então — falou,
enquanto retirava o caule da rosa e colocava a flor
em meus cabelos.
O perfume também era incrível.
— Desse jeito, não está oficialmente aceita.
— Lui, por favor. É melhor você não estar
aqui quando Dáian chegar.
— Eu vou, se me prometer que não vai retirá-
la do cabelo.
Mal Lui havia acabado de terminar sua frase,
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notamos uma carruagem se aproximando.


— Ah... tudo bem. É melhor você ir, por
favor.
Meu ex-professor se afastou com um sorriso
enorme no rosto, como se estivesse comemorando
uma vitória.
Outro espertinho!
A carruagem parou em frente a casa e Dáian
saiu de dentro dela.
— Está pronta? — questionou
carinhosamente, mas desviando o olhar de mim.
Ué? O que há de errado?
— Sim — respondi, sem saber bem o que
responder, na verdade.
O rei apontou a carruagem olhando para o
chão como se não quisesse mirar-me diretamente.
Entrei sem ter a menor ideia do que estava
acontecendo. Dáian se acomodou e sinalizou para o
cocheiro, dando início ao nosso passeio. A seguir,
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me cobriu com a uma capa e depois se sentou


mirando a janela, sem, ainda, olhar para mim.
Será que viu Lui comigo e ficou zangado?
Bem, eu sabia perfeitamente que nem tudo
são flores em um relacionamento. Entretanto, eu
não tinha a menor paciência para meias palavras
nem situações desconfortáveis. Muito menos para
suportar a densidade do clima num estresse velado.
Eu sou daquelas que fala de uma vez para definir
logo as coisas.
— Dáian, se não quer passear hoje ou se não
está a fim de companhia, eu entendo perfeitamente.
Também tenho coisas a fazer, então... Se quiser
cancelar o passeio, não vou me opor. Vou pedir ao
cocheiro para dar meia volta.
— Não, Lin. Pelo amor de Deus! — disse,
espantando-se sobremaneira, e vindo para o meu
lado da carruagem, abraçando-me na sequência.
— Dáian, o que você tem? — indaguei,
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afastando-me um pouco e olhando-o nos olhos.


— Lin, não se zangue. Não me entenda mal.
— Não estou zangada. Ainda. Mas você
sequer olhou direito para mim. O que está
acontecendo? Conversando, a gente se entende.
— Me perdoe. Você está tão linda, que não
posso reparar. Não hoje.
— O que quer dizer?
Dáian retirou a capa e ficou me fitando. Em
seguida, colocou os lábios em meu pescoço e
começou a beijá-lo de um jeito diferente, seu corpo
tremia e os pés não paravam quietos. Em poucos
instantes, o rei dominou meus lábios com um beijo
ávido, no entanto, era completamente distinto da
maneira que normalmente nos beijávamos. Já
trocamos alguns beijos ardentes, mas não como
aquele. Aquele era... eu sei lá.... lascivo.
A respiração do rei arquejava violentamente
e, na sequência, ele escorregou as mãos por meus
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ombros, fazendo as alcinhas do meu vestido


descerem. Meu coração disparou na mesma hora.
— Linda, linda demais — repetia, enquanto
arfava e me apertava cada vez mais forte.
— Meu amor. Você está... meio diferente
hoje.
— Desculpe, meu amor. Não se assuste, por
favor — pediu, afastando-se um pouco.
Dáian mordia os lábios e apertava as mãos.
Estava suando.
Espera um pouco!
— Ai, meu Deus, é o azeite! — bradei,
levantando-me de supetão e batendo a cabeça
contra o teto da carruagem.
Dáian riu.
— Ai — exclamei — você ri, né?
Engraçadinho. Não tenho culpa de ter esquecido
onde estávamos — reclamei indignada e rindo de
minha própria idiotice.
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— Me perdoe, meu amor. Seu jeitinho


desajeitado é tão engraçadinho. Você está bem?
— Sim. A questão é: você está bem? —
inquiri preocupada.
— Vou ficar, só estou frustrado porque
sonhei tanto em te mostrar esse festival e quando,
enfim, está comigo, não consigo olhar para você
sem enlouquecer.
— É minha culpa. Me desculpe — supliquei,
enterrando o meu rosto entre as minhas mãos.
— Não é sua culpa. Hoje terei de dormir no
rio mesmo. E acho melhor eu ir com o cocheiro —
ponderou, já levantando para dar-lhe o sinal.
— Não, meu amor — o detive.
— Me quer aqui? — questionou com aquele
ar juvenil esperançoso que, às vezes, expressava
quando resolvia mostrar suas múltiplas faces.
— Que pergunta! Claro! — decretei,
sorrindo.
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— Adoro quando demonstra os seus


sentimentos — afirmou com um sorriso,
capturando meus lábios novamente.
Seus beijos estavam muito mais intensos e,
mesmo que Dáian não tivesse me desrespeitado
nenhuma única vez, acariciando-me em lugares
mais íntimos, eu sentia sua paixão em cada toque, a
cada vez que sua pele tocava a minha. Como
quando me colocou em cima daquela penteadeira,
era nítida sua ansiedade por me acariciar em
regiões mais sensíveis.
— Lin, você me deseja? — quis saber entre
beijos e carícias.
— Amor, está fazendo cada pergunta —
repreendi, com o rosto queimando de vergonha.
— Você falou que me diria quando
estivéssemos sozinhos.
— Não, eu disse que admitiria que fiquei
com ciúmes, só isso — lembre-lhe constrangida.
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— Responda. Por favor.


— Dáian, eu...
— Tudo bem, meu amor. Me desculpe. Acho
que estou ficando impaciente demais.
— E sofrendo, não é?
— Não. É impossível sofrer com você —
completou com aquele sorriso traquina.
Parei por alguns instantes e fiquei admirando
o rosto dele. Toquei seus lábios devagar, deslizando
meus dedos pela pele lisa. Ele estava quente e as
pupilas dilatadas. Já fazia meses que eu estava no
palácio e, desde que cheguei, Dáian não passara à
noite com nenhuma das esposas. E resistira
bravamente quando me despi para ele, embora eu
tivesse sentido na pele o quanto ele queimava de
desejo por mim. Aquela espera devia ser
agonizante. Ele estava sofrendo, eu via isso, mesmo
que ele dissesse que não.
E, para ajudar, fui dar uma bomba hormonal
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para ele. Bem minha cara fazer isso.


Ainda que no fundo da minha alma eu
desejasse esperar pelo casamento, aliás pela minha
concepção de matrimônio, eu havia descoberto algo
muito mais poderoso no almoço mais cedo.
Descobri como a felicidade de Dáian pode ser
genuína, verdadeira e plenamente a minha própria
felicidade. E naquele momento vi, com clareza
ofuscante, o quanto o sofrimento dele também era o
meu. Dáian me amava. Sob sua ótica, eu era sua
esposa. Então, por que esperar e torturá-lo assim?
Pelo amor de Deus, Everlin. Você já tem
quase vinte cinco, já está bem grandinha. Além
disso, você já esteve disposta a fazer amor com ele
antes.
Esse pensamento, só me trazia à memória o
quanto a tristeza de Dáian me abalava. Respirei
fundo.
— Não sofra, amor — pedi, trazendo seu
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rosto para mim e beijando-o com aquela mesma


paixão despertada noites antes.
Dáian deu um sorriso durante o beijo e tomou
as rédeas do momento, fazendo-me sentir o fogo
dentro dele.
— Tem alguma chance de você me largar? —
indaguei acanhada.
— Quê? Alguém vai me matar? Porque só
morto — respondeu sorrindo.
— Foi uma pergunta séria — insisti.
— A minha resposta foi mais séria ainda —
retrucou.
Corei, balançando a cabeça.
— Por que a pergunta, meu amor?
— Porque, talvez, não devamos esperar mais
mesmo — cogitei com o rosto ardendo de tanta
vergonha.
— Não, meu amor. Não diga uma coisa
dessas. Não hoje. Porque meu corpo está
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implorando pelo seu e estou totalmente impedido


de raciocinar.
Era impressionante o quanto ele conseguia
ser tão sincero e aberto quanto aos próprios
sentimentos. Cada palavra pronunciada fez, não só
o meu coração disparar descompassado, como
também emergir aquele “friozinho na barriga”
apavorante, como se a feminilidade dentro de mim
também implorasse por ele. Mas é claro que eu não
admitiria isso em voz alta da mesma forma ele
fazia, nem que a minha vida dependesse disso.
— Como você consegue ser tão sincero? —
lancei a pergunta retoricamente.
— Eu rezo para um dia eu conseguir fazer
com que você seja. Tem tantas coisas que eu quero
ouvir.
Sorri feito boba. Dáian voltou-se para a
janela e ficou observando as luzes que já
despontavam no horizonte.
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— Eu nunca deixei meu instinto masculino


me dominar desse jeito. Aliás, sempre tive muito
domínio de mim, esta é a maior habilidade que um
guerreiro pode desenvolver. Já suportei os mais
diversos golpes, até chicotadas, sem me deixar
vencer ou abater. Minhas convicções sempre foram
muito claras também e eu sempre me guiava por
elas. Mas, desde que te conheci, não consigo vê-la
num vestido bonito sem perder a capacidade de
pensar.
Enrubesci novamente.
— Lin, se não quiser, hoje é o dia em que
você precisa estar convicta e me pôr para fora.
Porque se você me disser talvez, eu a farei minha.
Então, por favor, esteja certa do que quer. Eu sonho
com você desde os dezesseis anos, então, imagine o
que é, para mim, transformar um sonho, como esse,
em realidade.
Depois de ouvi-lo, fiquei sem palavras. Eu
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não imaginava que ele me desejava desde aquela


época. Muito menos havia parado para pensar sob
este ângulo. Foram mais de dez anos de amor
reprimido entre nós dois, longos anos perdidos a
serem recuperados. Quantas vezes eu também não
sonhara com ele? Com o dia em que estaríamos
frente a frente.
Meu Deus, acabei de me dar conta de quanto
tempo estava perdendo. Já havíamos perdido
muito. Não podíamos perder nem mais um
segundo.
— Já nos roubaram dez anos, não é amor?
Cada segundo conta agora. Chega de esperar —
falei decidida, arfante, tremendo e com o coração a
mil.
Em seguida, respirei fundo e me sentei em
seu colo. Queria que ele sentisse que eu realmente
estava decidida e não apenas cedendo ao seu
desespero.
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— Ah, minha Lin! É hoje que eu morro —


declarou, trazendo meus lábios para os seus,
dominando-me, incendiando-me e me fazendo
sentir a mais amada das mulheres.
Novamente senti a sua inquietação por
acariciar os lugares mais delicados do meu corpo.
Apesar disso, não se atrevia a seguir adiante.
Resistia bravamente. Ao vê-lo naquela situação,
olhei para ele, surpresa com o tamanho da minha
determinação e com a profundidade do meu próprio
desejo.
— Dáian, você está desesperado para me
acariciar, não é? Digo, com carícias mais... —
perguntei sem conseguir finalizar, sentindo o ar
faltar, apesar de tanto oxigênio espalhado pelo
mundo.
— E como eu estou, meu amor... eu quero
tanto... — respondeu com a respiração por demais
arfante.
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— Então... me acaricie — sussurrei bem


próxima aos lábios dele, trancafiando qualquer
resquício de razão na parte mais esquecida da
minha mente e fazendo as alças do vestido caírem
mais, deixando quase à mostra uma parte do meu
corpo, a qual sei o quanto o deixava maluquinho.
— Pelos céus, Everlin. É hoje que eu morro
de verdade — confessou, levando minha mão para
junto de seus lábios e, em seguida, fazendo-a
descer lentamente até o seu coração, que palpitava
forte e freneticamente.
Eram raras as ocasiões em que Dáian
pronunciava o meu nome daquele jeito. Desde que
permiti, ele sempre usava o apelido. Chamava-me
de “Lin” mesmo quando eu não permitia. Sempre
preferi “Lin” à Everlin, até porque nunca fui de
achar meu nome bonito. Mas... nossa... como ficou
lindo ao som da voz dele.
E se ele me chamasse de “Everlin” com essa
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voz na hora “h”?


Estremeci só de imaginar.
— Você sabe mesmo fazer de mim o que
bem quer, não é? — admitiu enquanto ainda
mantinha minha mão em seu peito e, pela
entonação, não esperava que eu respondesse.
— Olha quem fala. Não foi você quem
conseguiu me convencer hoje? — provoquei.
— Se já não tivéssemos chegado, eu a
acariciaria todinha agora, mandaria o cocheiro dar
meia volta e o festival ficaria para o ano que vem
— concluiu sorridente.
Só então notei que as luzes da cidade já
estavam em nossa janela.
Acabei deixando o colo dele contrariada.
Quem foi o “ser” que fez esse caminho tão
curto? Resolvi que queria “pegá-lo de pau” na
saída.
— Mas, em nosso momento, você não me
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escapa — alertou com aquele sorriso peralta que eu


tanto amava e com uma mirada firme de predador,
a qual era novidade.
O olhar dele transformou o “friozinho” da
minha barriga em uma calota polar.
Descemos da carruagem, e a visão da cidade
me deixou boquiaberta. Estava toda iluminada com
as ruas cobertas de barracas de comidas, jogos,
lembrancinhas, livros, flores, tudo. Aquele lugar
transbordava cores e vida. A luz produzida pelo
óleo dos frutos de Éden era sensacional. A
decoração era, simplesmente, caleidoscópica. Se
fossemos comparar com algum lugar no universo
talvez fosse a Quinta Avenida em Nova York, só
que sem toda aquela poluição visual. Não que eu já
tenha visitado a Quinta Avenida, meu amigo leitor.
Estou comparando apenas pelo que vi em vídeos e
fotos, afinal não nos esqueçamos da minha pobreza.
Meu pai é rico, mas como não sou meu pai...
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enfim...
Prosseguindo, aquele lugar era, apenas,
brilho. Puro, límpido, natural e, o melhor,
ecologicamente sustentável.
— É maravilhoso — elogiei atônita.
A luz dos enfeites por toda a cidade ia até
onde os olhos podiam alcançar. Em poucos
minutos, Dáian se transformou em celebridade,
igualzinho no vilarejo, eram sempre os mais
humildes a demonstrar-lhe mais amor. Não vou
negar que me senti bem orgulhosa, nem vou negar
minha total preocupação por ele ter dito: “em nosso
momento, você não me escapa”.
Passeamos por vários lugares. Comi muito.
E, o melhor de tudo, parecíamos um casal
razoavelmente normal, desfrutando de um passeio
de fim de semana. Em dado momento da noite, o
povo da cidade se reuniu na parte mais baixa, onde
havia um rio aos pés do morro. Só então fiquei
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sabendo que aquele evento era o auge do festival, a


parte em que as lanternas de Éden eram soltas para
flutuarem até o céu.
O mais curioso era que essas lanternas, tais
quais lanternas chinesas, eram diferentes das usadas
na decoração. Reluziam com muito mais força
como se fossem miniestrelas guiadas pelo vento e
ascendendo da terra até o alto, numa das imagens
mais lindas que já vi na vida.
Dáian contou que aquela tradição nasceu
como uma homenagem aos entes queridos que já
partiram. Ao ouvir o significado da comoção, fiz
uma pequena prece e lancei minha lanterna,
pedindo para meus pais estarem bem e por uma
oportunidade de lhes dizer o mais rápido possível
que eu estava viva. Dáian lançou a dele com
lágrimas nos olhos.
Diante daquele rosto triste, um aperto
sufocante se formou em minha alma. Não pensei
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em mais nada a não ser em como faria para enxotar


aquelas lágrimas amaldiçoadas de seus olhos e,
sobretudo, de seu coração. Uma noite maravilhosa,
definitivamente, não fora feita para tristeza. E ele
era o último ser na face daquele planeta a merecer
ficar deprimido numa festa tão linda. Coloquei meu
cérebro para funcionar e só tinha um jeito.
Respirei fundo. Havia um bloqueio em mim,
isso eu não podia negar. Era difícil expor
sentimentos tão abertamente como ele, mas, para
apagar aquelas lágrimas, eu faria. Faria um milhão
de vezes. Respirei fundo mais uma vez e deixei a
coragem vir.
— Eu te amo — me declarei, olhando-o sem
me desviar e sem deixar minha timidez ofuscar a
demonstração de pública de afeto que ele merecia,
do jeitinho que ele tanto amava.
De imediato, as lágrimas foram substituídas
por um sorriso largo, radiante, emocionado e,
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principalmente, feliz. Ao vê-lo alegre daquela


maneira, senti meu propósito na Terra, ou no
Universo, sendo devidamente cumprido. Na fração
de segundo seguinte, eu já estava flutuando nos
braços do rei, e meus sentidos foram
completamente roubados por beijo mágico, com
direito a mais de mil pequenas estrelas
resplandecentes gravitando a nossa volta.
Mais tarde, regressamos pelas ruas até a
carruagem, enquanto Lui nos observava ao longe.
Ele ficou nos olhando assim a noite toda?
Como um desastre nunca vem sozinho, Dáian
pegou a rosa presa aos meus cabelos.
— Esta flor aqui é um pouco difícil de
conseguir e duvido muito que alguma das mulheres
da vila tenha pego. Quem te deu?
— Bem...
— E por que você aceitou? — interrompeu-
me já encurtando a conversa.
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— Não aceitei exatamente.


— Você me disse que iria esfregar a verdade
na cara dele — lembrou-me.
— Eu fiz isso.
— Tem que esfregar com mais força.
Balancei a cabeça.
— Engraçado que, de mim, você não tinha
dó, não é? — fez questão de lembrar todo
indignado.
— Ah... quem está enciumado agora? —
provoquei, tomando a rosa das mãos dele.
— Quer saber, vamos logo para casa porque
essa provocação terá volta de outro jeito.
Reprimi qualquer palavra a respeito, eu quase
esqueci o que estava em meu futuro relativamente
imediato.
— Que tal continuarmos de onde paramos, da
parte das carícias? — atiçou, assim que adentrou na
carruagem.
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— Que tal esperarmos por uma hora em que


não seremos interrompidos — brinquei, reclinando-
me em seus ombros.
— Nisso você tem razão, porque a hora em
que eu começar, ninguém me fará parar —
asseverou com aquele sorriso travesso delicioso.
Quando chegamos ao vilarejo, a festa ainda
se encontrava no auge. Muita gente, principalmente
as crianças, comemorava pelas ruas. No momento
em que viram o rei, o povo se aglomerou e suplicou
para que participássemos um pouco das
festividades da vila.
Dáian estava ansioso para nos recolhermos,
mas acabou assentindo diante do carinho que lhe
era ofertado tão genuinamente. Permanecemos nas
festividades por um bom tempinho, até que a
quadrilha de dança se formou. As senhoras
puxaram o rei para o centro do deque, onde os
casais se preparavam. Dáian veio até mim e me fez
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acompanhá-lo.
— Eu não sei os passos — informei, tímida.
— Não se preocupe. Faça como no
treinamento. Aguce seus sentidos e siga seu mestre
— afirmou, piscando para mim.
Ah, de novo esse gatilho.
Dançamos sob os mais diversos olhares. A
maioria deles transbordava felicidade, pois uma boa
parte do povo me aprovava como “Esposa do Rei”.
Entretanto, alguns destilavam inveja, e o pior de
todos era o da bocudinha. Havia também um olhar
triste, fitando-nos em meio à multidão.
Lui ainda está acompanhando a gente?
Apesar disso, dançar com Dáian foi incrível.
— Já está na hora de nos recolhermos —
avisou novamente com “a carinha travessa”.
Ai, meu Deus. É agora! Mas espera um
pouco. Eu nem preparada estou. Não posso fazer
Dáian desbravar uma floresta, não é? E agora?
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— Amor, acho que vou precisar de uns


minutinhos para me preparar.
— Ah, amor. Desista. Hoje você não me
escapa.
— Não vou escapar, só me preparar, se é que
me entende — expliquei já sentindo meu rosto
queimar.
Dáian sorriu.
— Você quer me matar de ansiedade, isso
sim.
— Juro que não.
— Ah, não vale demorar. Porque eu não vou
dormir.
— Esse marido que eu fui arrumar... —
soltei, balançando a cabeça e sorrindo.
— Diga isso outra vez.
— Dizer o quê?
— Que sou seu marido.
Sorri de um modo diferente. De um modo
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acanhado e ao mesmo tempo ousado, como se fosse


possível essa polaridade díspar compor algo
harmônico e único. De um jeito que vez Dáian voar
e me beijar no mesmo instante.
— Então, vamos? — convidou mais
esperançoso do que eu jamais vira.
Concordei, encabulada.
Caminhávamos de mãos dadas rumo à casa
em que estávamos hospedados, quando ouvi
alguém chamar por mim.
— Senhora, posso lhe falar? — indagou Lui,
vindo em nossa direção sem desviar o olhar de
mim.
— É claro que não — interpelou Dáian.
— Por favor, é importante — suplicou sem
deixar de me encarar nem por um instante.
Fiz um gesto afirmativo, enquanto tocava o
braço de Dáian, que bufou encolerizado.
Em seguida, Lui pegou-me pela mão e saiu
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puxando, até me levar para uma rua entre casas, um


pouco mais afastada da movimentada rua principal.
— Lui, o que foi? — inquiri, achando a
atitude esdrúxula demais.
O comandante me soltou e virou-se para
mim.
— Por favor, não vá com ele — pediu sem o
menor pudor.
— Lui...
— Por favor! — insistiu com a voz quase
inaudível.
— Você não tem nenhum direito de pedir
isso a ela! — esbravejou Dáian atrás de nós.
— Por favor, senhora — persistiu, agarrando
a minha mão com força.
Ao reparar melhor em seu semblante, vi sua
face pálida e o suor minando por sua testa. O olhar
parecia sem foco e as mãos estavam trêmulas.
— Lui?
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Tão logo o chamei, suas pernas cederam e


corri para apoiá-lo. Ao colocar uma das mãos em
sua testa, notei a alta temperatura.
— Ele está queimando de febre — falei,
voltando-me para Dáian.
— Quê? Quer que eu o carregue?
— Por favor, meu amor.
— Não acredito que está usando as palavras
mágicas para isso!
— Se tivesse outro jeito...
Dáian bufou, era visível que sua paciência
estava mesmo por um fio. A seguir, pôs Lui em seu
ombro. A febre já o estava fazendo delirar.
— Para onde eu levo? — inquiriu revoltado.
Lancei para ele um olhar insinuante,
deixando claro o melhor lugar para cuidar do
paciente.
— Nem pensar — decretou o rei.
— Amor, minha mala médica está lá na casa
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onde estamos. Febre é um sintoma grave e urgente,


por favor.
— Eu mereço — Dáian soltou, enraivecido.
O rei seguiu com Lui nos braços para o nosso
alojamento, enquanto eu contemplava aquela cena
por alguns instantes.
Dizem que o Universo traça rotas estranhas
para chegar ao exato destino de cada um. Talvez
seja o famoso “escreve certo por linhas tortas”.
Bom, seja para o bem ou para o mal, seja obra do
Murphy ou não, seja para minha sorte ou azar, seja
para azar ou azar de Dáian, ou seja para testar o
coração do caro leitor, não seria desta vez. Como
diriam na Terra: “não iria rolar”.

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HEROÍNA

E nquanto Dáian
colocava Lui no sofá,
os curandeiros chegavam apressados para ajudar.
Peguei a mala médica e comecei a examiná-lo. Em
seguida, passei a retirar-lhe a camisa.
— Lin! — repreendeu o rei.
— Amor, eu tenho que fazer isso —
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justifiquei.
Assim que despi o tórax, o ergui para que se
sentasse, puxando-o para mim.
— Refresquem as costas com um pano úmido
— pedi aos curandeiros, que estavam auxiliando.
Nesse instante, Lui passou a me abraçar e a
se aproveitar da proximidade para sentir o perfume
do meu pescoço.
— Tão linda, tão cheirosa — falava sem o
menor controle enquanto, praticamente, agarrava-
me.
Dáian esmurrou a porta e os ajudantes se
entreolharam.
— Lui, está me colocando em uma situação
constrangedora — repreendi.
— Que todos saibam de uma vez. Eu a amo.
Não suporto vê-la com o rei — bradava
desenfreado.
— Resfriem a testa também — solicitei.
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— Sim, minha senhora — responderam os


auxiliares.
— Estão testando aquela flor que eu falei?
— Sim, minha senhora. É um sedativo
poderosíssimo.
— Tragam, por favor. Tragam o chá
calmante também, por gentileza.
— Agora mesmo, senhora.
— Não, senhora. Por favor. Não me dê aquilo
que deu ao menino. Não quero dormir. Se eu
dormir, a senhora irá embora com ele. Por favor,
não — Lui repetia sem parar.
— Senhora, o que ele tem? — indagou um
dos curandeiros, assustando-se.
— Nada, aparentemente. Por incrível que
pareça, a febre é emocional — respondi, voltando-
me para Dáian.
— Aqui, senhora — disse outro auxiliar,
dando-me a flor e o chá.
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— Não, senhora. Por favor — insistia o


comandante.
— Só o chá, então. E eu não vou a lugar
algum.
— A senhora promete?
— Prometo. Agora, beba.
Lui tomou o chá ainda relutante. A infusão já
era bem forte. Era a mesma que Joen me dera
quando esteve cuidando de mim. Meu ex-professor
lutou contra a inconsciência por um bom tempinho,
até que o efeito da erva venceu e o fez ceder. Lui
adormeceu com uma das mãos grudada em meu
pulso.
— Podem ir — dispensei os curandeiros.
— Podem ir, não! — interpelou Dáian —
eles vão cuidar do soldado, você vem comigo —
decidiu.
— Amor — comecei, levantando-me — se eu
soubesse que isso iria acontecer, eu não teria
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pedido para ele me ensinar, eu juro. Por favor, me


deixe ficar. Eu já perdi a irmã dele. Por favor —
implorei, deixando as lágrimas correrem livres.
— Lin — condoeu-se o rei, abraçando-me e,
de minha parte, agarrei-me vigorosamente a ele.
— Amor, não queria isso, eu juro —
pronunciei aos prantos.
— Shhh... eu sei — expressou, consolando-
me.
A seguir, o rei dispensou os curandeiros, os
quais partiram incontinente e completamente
inteirados da nossa “novela”.
— Ele já está dormindo, não precisa
permanecer aqui — objetou carinhoso, mas
visivelmente contrariado.
— Estresse emocional a ponto de ter febre,
não é algo que se vê sempre. Eu preciso
acompanhar isso de perto — esclareci.
Dáian respirou fundo e depois expeliu o ar
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com força, técnica típica de quem quer controlar a


raiva ou o nervosismo. No caso dele, acho que
foram as duas coisas juntas.
— Eu vou me banhar — resolveu, sem a
menor preocupação de disfarçar a irritação.
Assim que Dáian saiu, retirei as flores do
meu cabelo, troquei de roupa e me sentei ao lado de
Lui, observando-o. Apesar da febre ter cedido um
pouco, o sono não era tranquilo. Continuei ali
sentada, analisando-o por um bom tempo e
pensando na profundidade de seus sentimentos.
Refleti se eu poderia fazer alguma coisa quanto a
isso, no entanto, conhecendo-o bem, aliás,
conhecendo bem a sua determinação, as chances de
eu poder ajudá-lo eram bem remotas.
— Pretende mesmo passar a noite aí, não é?
— perguntou o rei.
Era incrível como ele sempre ficava lindo ao
sair do banho, com os cabelos molhados, sem
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camisa e com a toalha na cintura. Para ser bem


sincera, aquela imagem mexia demais comigo.
Quando minha alma retornou ao meu corpo,
levantei-me e coloquei um pouco do chá calmante
em uma caneca. Em seguida, caminhei em direção
ao rei, conduzindo-o ao “nosso” quarto.
— Não, Lin. Você não vai me dar isso —
protestou.
— Vou sim. Você também precisa. Venha,
vou pôr Vossa Majestade na cama.
— Não é me pôr na cama, é vir dormir
comigo — retrucou, enquanto eu o fazia deitar-se.
Sentei-me ao seu lado, e Dáian se ajeitou de
modo a ficar sentado no leito.
— Beba, amor. Por favor. Vai ajudar a passar
o efeito do azeite.
Dáian tomou o chá a contragosto.
— Como são os casamentos no seu mundo?
— quis saber, de repente.
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— Quer me prender aqui com um assunto?


— indaguei, em um tom divertido.
— Ele usa os truques dele e eu os meus.
Sorri.
— Bom, os dois vão à igreja e ficam na
frente de um pastor ou padre, que é uma espécie de
autoridade religiosa, como um símbolo de que
farão uma promessa diante de Deus. Depois trocam
alianças e prometem amar e respeitar um ao outro
até a morte.
— É uma cerimônia?
— Sim.
— E o que é uma aliança?
— Ah, é um tipo de anel. O noivo coloca um
no dedo da noiva e vice-versa.
— Só um anelzinho? E como os outros
homens percebem que a mulher é casada? Um anel
quase não dá para ver — questionou indignado.
— Hã... olham na mão. Na maioria das vezes
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— expliquei com uma pitada bem leve de


sarcasmo, afinal todos sabemos que a mão é o
último lugar para o qual um homem olha.
— E quando formos nos casar, nós iremos a
essa tal de igreja?
— Bom, não exatamente. Eu pensei em
fazermos nossa cerimônia aos pés da cerejeira da
casa dos meus pais. Nós dois temos tantas
lembranças dela, não é? E podemos escrever uma
promessa um ao outro, com nossas próprias
palavras. Seria lindo. Pelo menos, na minha mente
é.
— Seria... simplesmente... perfeito —
declarou Dáian, levantando-se entusiasmado e se
aproximando de mim.
Acabei desviando meu olhar dele, queimando
de tanta vergonha, porque, só depois de já ter
respondido à pergunta, notei que havia acabado de
revelar a minha fantasia mais secreta sobre o nosso
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casamento.
— Quase perfeito. Só será perfeito se eu
puder colocar, no lugar da aliança, um bracelete
maior que esse — acrescentou, sem a menor
vergonha na cara.
— O quê? Quer por uma algema em mim, é?
— perguntei em tom de comédia.
— Não me dê ideias — devolveu a
brincadeira.
Balancei a cabeça, rindo meio boba.
— Lin, me diga uma coisa. Se eu não sou seu
marido no seu mundo e nem seu noivo, o que eu
sou?
— Namorado — respondi de forma bem
direta.
— O que é um namorado?
— Hã... um namorado é... puxa nunca
imaginei que eu um dia teria de definir o que é um
namoro. Bem... duas pessoas namoram para se
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conhecerem e saberem se o relacionamento vai dar


certo. Quando elas têm certeza de que querem ficar
juntas pelo resto da vida, noivam e depois casam...
acho que é isso — tentei explicar da maneira mais
simples que consegui.
— E se elas não tiverem certeza?
— Terminam o namoro.
— Como assim, terminam o namoro?
— Ah... se separam e namoram outras
pessoas.
— Você quer dizer que o namorado não tem
nenhum poder sobre o relacionamento? Se a
namorada quiser deixá-lo, ela deixa?
— É... em tese...
— Eu não sou seu namorado, não.
Definitivamente, não somos namorados porque
nosso relacionamento não é terminável. Você é
minha esposa e ponto final — encerrou a questão,
virando-se e me deixando apreciar, pela primeira
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vez, o seu bico quilométrico.


Ao ouvi-lo resmungar daquele jeito,
permaneci admirando aquela carinha indignada,
sem ter a menor ideia do que dizer. Às vezes, o
modo como ele raciocinava era demais para mim.
— Preciso ir agora — lembrei, resignada.
— Não, eu ainda não dormi — reclamou.
— Porque está lutando contra o sono —
deixei claro o motivo.
— Eu vou dormir, mas tem que prometer que
vai velar o meu sono também. Aliás, que vai ficar
mais aqui do que lá.
— Eu prometo, majestade.
Dáian deitou-se e eu fiquei acariciando seus
cabelos, até o momento em que ele, enfim, partiu
para a terra dos sonhos. A noite não havia saído
como planejáramos, mas, entre mortos e feridos, as
coisas acabaram tomando o rumo menos pior, pelo
menos sob a minha ótica.
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Com os olhos fechados, ele ficava tão lindo e


me deixava completamente hipnotizada. Exalava
um ar de anjo em um corpo de guerreiro. Sem
perceber corri minha mão por seu rosto, descendo-a
pelo pescoço e levando-a até a abertura da camisa
desabotoada, desfrutando, por alguns instantes, da
pele lisa e firme do peito. Não resisti, e acabei
depositando um beijo furtivo bem ali.
Everlin, pelo amor de Deus. Isso é assédio!!!
Está assediando Dáian dormindo? Toma vergonha
nessa cara. Ou como diria alguns: “tome tento”.
Resolvi não alimentar a tentação, e retornei
para a sala, onde repousava meu paciente. Como
prometi, velei mais o sono de Dáian que o de Lui,
mas me mantive em boa parte da noite ao lado do
meu ex-professor. Resumindo, não quebrei
nenhuma de minhas promessas. Pela manhã, eu
estava, simplesmente, exausta. Lui abriu os olhos e
meu viu ao seu lado.
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— Me perdoe, minha senhora. Lembro-me de


poucas coisas, mas recordo-me da senhora me
repreendendo por deixá-la desconfortável.
— Deixou o seu rei bem irritado também, e
eu tive de ter muita paciência, mocinho — fui
sincera e o reprovei.
— Me perdoe, minha senhora. Não tive a
intenção.
— O que importa é que você está bem — o
tranquilizei, sendo um pouco mais compreensiva.
Nesse instante, Dáian adentrou no recinto.
— Ela passou a noite aqui, como prometeu.
Mas fique você sabendo que isso nunca mais
acontecerá. Ela é minha. Desista de uma vez —
exigiu, resoluto.
Lui sentou-se calmamente e olhou para o rei
com uma serenidade que não combinava com o
momento. Após encarar o rival por alguns
instantes, respirou fundo, como se o que estava
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prestes a dizer fosse uma verdade universal tão


óbvia que demandava certa formalidade para ser
dita. Em seguida, abaixou o olhar como se lhe
pesasse a certeza de que, por ora, a desvantagem
ainda permanecia do seu lado do campo de batalha.
— As coisas mudam, majestade. As coisas
sempre podem mudar — afirmou com uma
convicção surpreendente e sua voz reverberou pela
casa, emudecendo a mim e a Dáian.
Não sei bem o porquê, mas aquelas palavras
ressoaram dentro de mim, não como a lembrança
de uma premissa inconteste, mas sim como um
presságio. Dáian também encarou Lui sem protestar
e senti que, para ele, as palavras vieram como uma
flecha agourenta.
— Majestade, comandante — estrondeou um
homem desesperado, o qual adentrou na casa de
súbito.
— Um bando de nômades assassinou o
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destacamento do vilarejo de El e está seguindo


montanha acima, rumo às casas. A informação é
que procuram por mulheres — despejou a notícia
sem rodeios.
— Quantos homens? — inquiriu Dáian.
— Os sobreviventes disseram que são cerca
de duzentos — falou o homem, engolindo em seco.
— Duzentos! — exclamei sem pensar.
— Sabem de que clã? — continuou
indagando o rei.
— Não, senhor.
— Reúna todos os soldados do vilarejo, além
de homens capazes de lutar. Eu já estou indo.
— Sim, Vossa Majestade — assentiu o
informante, retirando-se.
— E você? Se já está em condições, vamos.
Temos um trabalho a fazer — disparou Dáian em
direção a Lui.
— Dáian, espere. Eu vou com você, eu posso
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ajudar — me ofereci.
— Nem pensar. Você fica aqui, cuidando do
seu outro paciente. Eu volto logo, prometo —
comprometeu-se, beijando minha testa rapidamente
e saindo em companhia de Lui.
— Dáian... — chamei-o novamente, mas ele
já estava fora de alcance.
Todos os soldados do vilarejo e os homens
capazes de empunhar uma espada deixaram a vila
sob o comando do rei. E aquele dia acabou
ascendendo ao topo da lista dos mais angustiantes
de minha vida. Dáian havia partido com pouco
mais de cem homens e cada hora, sem informação,
tornava-se um verdadeiro martírio.
A cidade de Katar era grande e próxima,
contava com um bom contingente de militares. O
problema é que o vilarejo de El se situava em
sentido oposto, num lugar quase inacessível para
quem se aproximava pelo pé da montanha. À
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medida que a tarde caía, meu desespero aumentava


e meu único consolo foi ouvir aquele homem dizer
que os nômades estavam seguindo montanha
acima. Então, pela lógica, atacaram pelo acesso
difícil, o que, talvez, equilibrasse as coisas.
Deixei todos os curandeiros de prontidão e
todas as coisas que poderíamos precisar arrumadas
e à vista, caso voltassem com feridos da incursão.
Quando a noite começou a despontar no horizonte,
o prefeito, o qual já era um senhor de meia-idade,
veio me chamar.
— Senhora, os meninos disseram que tem um
exército vindo para cá. E não são os homens do rei.
— Onde?
— Vou levá-la ao local de onde os avistaram.
Peguei uma coisa bem interessante que eu
tinha surrupiado das quinquilharias de Éfer e segui
o prefeito, juntamente com os garotos até uma parte
alta de um morro, quase na entrada da vila.
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— Lá, senhora — indicou um dos meninos.


Estiquei a luneta e olhei. Na passagem, um
pouco ao longe, um bando de homens se
aproximava, chefiado por um guerreiro numa
armadura corpulenta.
— Olhe, veja se os reconhece — pedi ao
prefeito, ofertando-lhe a luneta.
— Meu Deus, senhora. Parecem tão
próximos com isto!
— Mas não estão. Só diga se sabe quem são
— compeli.
— São os nômades.
Um pavor paralisante correu por minhas
veias, tornando pesada a respiração.
Meu Deus, e Dáian?
— O que eles querem? — indaguei devagar,
como se fosse suficiente para me fazer pensar com
clareza naquele mar de apreensão.
— Eles levam mulheres jovens, crianças e
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mulheres grávidas.
O bando cavalgava a certa distância do
vilarejo, mas não demoraria a nos alcançar. Além
disso, na vila não havia um guerreiro sequer.
— Aquela fenda no paredão do morro, logo
na encosta e próxima à fábrica, aonde leva?
— Ao outro lado do monte, senhora. A
passagem começa bem estreita e depois se expande.
É uma volta grande até chegar do outro lado para
quem não passa pela abertura da rocha.
— Ótimo — falei ao prefeito — vão e avisem
as mulheres para irem à frente e levarem as
crianças até a encosta próxima à fábrica, rápido.
Quando forem para lá, levem uma pederneira —
ordenei, dirigindo-me aos garotos.
Os meninos assentiram e dispararam para a
vila. De minha parte, também corri e apanhei dois
bastões de luta. Em seguida, comecei a bradar a
todo volume para as mulheres e crianças se dirigem
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à fenda no paredão. Assim que cheguei à fábrica,


subi a encosta e passei a ajudar as mulheres
grávidas a subirem. Após um tempinho auxiliando
o povo em dificuldade, notei uma garota fazendo
um escândalo porque não conseguia subir o morro.
— Eu devia deixar os nômades levarem você,
bocudinha — vociferei.
— Por favor, senhora — implorou.
— Ah, agora sou senhora, né? Vem logo —
ordenei, ajudando-a a subir.
Tão logo os aldeões do grupo de risco já
estavam na encosta e adentrando o paredão pela
fenda, desci e comecei a derrubar os barris de óleo
pelos caminhos de acesso e em toda a lateral do
outeiro, o qual era o único obstáculo entre quem
vinha e à abertura. Pensei: se esse óleo acende
lamparinas, então é óbvio que é inflamável. Só
rezei para ser forte o suficiente para produzir uma
boa chama. Após, subi novamente o morro e notei a
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mudança na direção do vento.


Ah não, São Pedro, não escute o Murphy,
não. Chuva agora nem pensar.
Os garotos do vilarejo vieram correndo até
mim.
— Trouxeram a pederneira como pedi? —
inquiri.
— Sim, minha senhora.
— Deem-me.
— Senhora, onde nos posicionamos? —
quiser saber alguns adolescentes valentes, vários
deles empunhavam facas, um deles vinha com um
arco e uma aljava com algumas flechas.
— Me dê o arco e as flechas e levem os
garotos para a fenda. Corram e não olhem para trás.
E não deixem ninguém voltar, entenderam? Conto
com vocês.
— Sim, minha senhora — bradaram em
uníssono.
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Após me certificar de que os meninos


correram para a fenda, permaneci em pé à beirada
da encosta observando através da luneta o bando
chegar à vila. Os idosos e demais aldeões, os quais
não pertenciam ao grupo visado pelos invasores,
também haviam se escondido, por precaução,
próximo à barragem, e logo os nômades
perceberam o vilarejo deserto. Frustrados, o bando
começou a incendiar algumas casas.
Tomara que se deem por satisfeitos e
resolvam ir embora de uma vez!
No entanto, para infelicidade geral das
células que trabalham para garantir minha
paciência, o extenso grupo mudou seu foco, vindo
na direção da fábrica.
Droga! Ou alguém lá em cima não gosta de
mim ou alguém lá em cima não gosta de mim. Não
é possível!
E o pior, eu não era muito boa com arco.
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Apesar de ter tentado, muito mesmo, acredite,


aprender durante o treinamento, para ser bem
sincera, eu era um verdadeiro desastre. Tudo o que
conseguia era atirar uma flecha, o que já era muito
porque, disparar um projétil usando um arco não é
tão simples quanto parece nos filmes. Acertar o
alvo, então? Xi! Isso já era outros quinhentos. E
bota outros quinhentos nisso.
Embora por dentro eu não estivesse tão
confiante, por fora devia estar parecendo uma
verdadeira guerreira de Game of Thrones, com um
arco em minha mão e uma aljava encaixada nas
costas, posicionada em cima de uma rocha
enquanto meus cabelos voavam ao vento, apesar de
todos concordarmos que um dragão seria bem
melhor do que um pedaço de madeira, cuja única
vantagem era a ponteira de metal afiado.
Fazer o quê?
Eu precisava conseguir que aquele simples
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pedaço de madeira salvasse a todos nós.


Respirei fundo e me tranquilizei o máximo
possível, pensando que a flecha não teria de ser tão
precisa assim. Meu alvo era relativamente grande.
Rasguei um pedaço do meu vestido e enrolei na
ponta da flecha.
Acompanhei o percurso dos inimigos a cada
passada de seus cavalos, sem perdê-los de vista um
instante sequer. Quando os invasores despontaram
na fábrica, acendi a ponta do projétil com a
pederneira, posicionei-o no arco e o puxei, trazendo
a flecha para mim e sentindo as penas roçarem meu
rosto.
Expeli o ar devagar e esperei pelo exato
momento em que a comitiva passaria próxima aos
barris. No instante em que uma boa parte dos
cavaleiros transpôs o óleo derramado, atirei minha
flecha.
Assim que a seta atingiu seu alvo, os barris
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acenderam e, em poucos segundos, um estrondo


colossal propagou-se pelo ar enquanto a língua de
fogo azulado chegou até os céus, iluminando toda a
mata por quilômetros. Muitos episódios vividos
naquele planeta pareciam ter saído de uma série,
mas aquele, em especial, foi assustador. O abalo da
explosão foi tão intenso que o chão tremeu sob os
meus pés. Descobri, naquele minuto, o quanto o
óleo de Éden era inflamável.
Os cavalos relincharam assustados,
derrubando seus cavaleiros e as labaredas azuis se
espalharam na velocidade da luz, subjugando os
inimigos num único minuto. Os mais próximos à
explosão arderam em chamas. Logo, a beirada da
encosta se transformou em uma pira azul
fluorescente. Aquele quisesse chegar a nós, não
teria outro caminho a não ser passar pelo fogo.
A chuva fina começou cair sobre nossas
cabeças, mas o fogo continuou vívido e implacável,
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como se seu furor fosse impossível de se abrandar


por meros respingos. Alguns homens mais teimosos
enfrentaram o fogaréu e conseguiram subir à
encosta onde eu me encontrava. A minha sorte foi
que não conseguiam atravessar a parede de fogo ao
mesmo tempo, então, meus inimigos começaram a
se aproximar um a um.
Combati ferozmente os adversários que
investiam contra mim. E a habilidade dos nômades
superava em muito a dos soldados de Karur. A cada
novo inimigo derrotado, o próximo parecia ser mais
veloz e mais determinado. Cada um dos derrotados
levava consigo um pouco da minha força e eu a
sentia nitidamente se esvaindo como as areias de
uma ampulheta.
Não era para menos, afinal eu havia passado
a noite em claro e permanecido uma pilha de
nervos durante todo o dia todo, portanto, àquela
altura, não me sobrara muita energia para combates
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longos. Sem contar a angústia por não ter notícias


do rei, de Lui e dos demais guerreiros do vilarejo.
Ainda assim, confrontei todos que
apareceram diante de mim, derrotando-os um a um,
até porque ninguém me vencia no quesito teimosia.
Quando eu já estava no limite das minhas forças,
meus joelhos cederam e logo senti o chão abaixo
deles.
A fina chuva se intensificara e minha visão
começou a ficar turva. Nesse momento, um
guerreiro atravessou o fogo e o reconheci de
imediato, era ninguém menos do que o chefe do
bando. Seu o corpo estava protegido por uma
armadura imponente, a qual ocultava sua pele
quase por completo.
Ele tinha longos cabelos negros, presos ao
alto da cabeça por um rabo de cavalo, o qual
balançava impelido pelo vento. Fiquei perplexa ao
ver o seu rosto. Ele era o que se definiria na Terra
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como “japonês”, cujos olhos eram mais puxados


que os meus. Causava-me um sentimento estranho
estar diante dele porque, apesar de eu já ter visto
tanta gente naquele mundo, aquele homem era o
primeiro parecido comigo que eu encontrava.
Ostentando uma armadura daquele porte e exibindo
aquela pose toda, ele lembrava um samurai. Não
um samurai de verdade, mas um desses de mangás
ou animes.
O guerreiro trazia consigo uma espada
acomodada à bainha presa a sua cintura. Seus olhos
correram por meu rosto e, em seguida, por meu
corpo ajoelhado no chão, com uma mistura de
ferocidade e contemplação.
Ele se aproximou de mim dando um passo
após o outro, bem compassadamente, como se não
acreditasse na figura diante de si. Como se
esperasse por esse momento a nem sei quanto
tempo.
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— Enfim, encontrei você — pronunciou sem


desviar os olhos de mim.
A linha dos lábios curvou-se para direita,
demonstrando uma satisfação desmedida. Não sei
bem o porquê, mas me senti como um troféu ou um
tesouro encontrado após incansáveis anos de busca
sem sucesso.
A voz dele era grave e reverberou poderosa
pelos paredões de pedra. Queria ter disparado uma
saraivada de perguntas, mas minha respiração
traidora continuou ofegante e meu peito, mais
traidor ainda, teimou em permanecer dolorido.
Minha condição não me permitiria prosseguir
lutando. A teimosia havia contribuído até o
momento, mas não me faria avançar. Meu corpo
havia atingido o extremo.
Alguns minutos após o samurai ter
trespassado o fogo, outro do bando também o
cruzou, e tive a plena certeza de que minha derrota
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estava mais próxima do que eu gostaria. No


momento em que o segundo homem deu dois
passos em minha direção, uma flecha o atingiu em
cheio, derrubando-o. No segundo seguinte, Lui
atravessou o fogo, empunhando um arco. Dáian
veio logo após, interpondo-se entre mim e o
samurai.
— Ora, ora... o poderoso Sete em pessoa —
falou o guerreiro misterioso.
— Torça para ela estar bem, Dermet, senão
vou persegui-lo até no Tártaro, eu juro.
— A última rara do mundo! Quanto tempo
acha que ficará com uma mulher dessas? Tão bela e
capaz de um estrago como esse.
O rei inflamou sua postura e estava a ponto
de dilacerar o oponente.
— Não sou tão tolo para lutar com você,
Sete, mas ainda nos veremos porque você está com
uma coisa que eu quero — insinuou, lançando-me
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um olhar interesseiro.
— Coisa é a sua avó, seu cretino — bradei
para meu mais novo inimigo.
Pensando bem, meus inimigos também
estavam proliferando como coelhos.
Dermet gargalhou, depois saltou da encosta,
fugindo. Dáian veio até mim e me abraçou. Mirei
seu rosto, mas não pude lutar contra a gravidade.
Sucumbi.
— Lin! — o rei chamava desesperado.
Entrei num estado de semiconsciência. Eu
ouvia tudo ao meu redor, mas não conseguia
responder, nem demonstrar reação alguma. Vi os
homens do vilarejo correndo angustiados em busca
de suas mulheres e irromperem em alegria ao
encontrá-las a salvo. Ouvi Dáian bradar, o que me
pareceu um milhão de vezes, por curandeiros,
enquanto me carregava para vila. Ao chegarmos ao
nosso alojamento, o meu “não-namorado” me
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deitou na cama. Perdi alguns fatos, depois disso.


Quando retornei, vestia roupas secas, no entanto,
embora captasse tudo o que acontecia ao meu
redor, não conseguia reagir em resposta.
— Lin, por favor. Por favor, não me deixe —
Dáian suplicava desesperado.
— Senhor, os músculos dela estão
enrijecidos. Precisamos massageá-los com este
unguento — escutei um dos curandeiros
diagnosticar.
— Me dê. Eu faço isso — o rei se
prontificou.
Em seguida, senti aquelas mãos maravilhosas
massageando-me com tanto cuidado e, pela
vibração do toque, pude perceber o quanto Dáian
estava angustiado.
— Meu senhor, não levaram uma criança
sequer. Foi a senhora quem teve a ideia de levar o
povo para o paredão e enfrentou os nômades
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sozinha. Sua esposa é uma heroína, senhor — ouvi


o prefeito dizer.
— É a minha heroína — declarou o rei,
enquanto cuidava de mim.
Queria tanto ter sorrido quando ele disse
aquilo, mas o meu corpo tornara-se o mais
desobediente dos organismos. Apesar de toda a
minha teimosia, o som da voz de Dáian ficou cada
vez mais distante até o silêncio me envolver por
completo, levando-me para as profundezas de
minha mente. Um lugar onde, infelizmente, eu não
podia levar o meu “não-namorado” comigo.

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Exército

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N em sei quanto tempo


minha consciência
demorou para retornar, mas, quando, enfim, minha
capacidade de perceber o mundo a minha volta deu
o ar de sua graça, senti Dáian beijando a minha
mão. Muito embora tenha perdido a noção do
tempo, algo me dizia que o relógio não havia dado
uma trégua e, mesmo assim, o rei permanecera ali,
provavelmente aguardando-me demonstrar alguma
reação.
Tentei dizer a ele que eu estava bem,
contudo, meu corpo ainda estava rebelde.
— O que você quer? — ouvi o rei perguntar
rispidamente.
— Acordado a esta hora, majestade? Só vim
ver se ela está bem — escutei a resposta, a voz era
de Lui.
— Saia — decretou Dáian sem piedade.
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— Não é o único que se preocupa com ela —


retorquiu o comandante.
— Sou o único que importa.
— Se tem tanto medo de eu me aproximar, é
porque sabe que ela gosta de mim.
— Simpatiza com você, é diferente —
contra-argumentou o rei.
— Isso é o senhor quem está dizendo —
desdenhou meu ex-professor.
— O único motivo de você ainda estar
respirando é porque eu temo a reação dela. Se não
fosse isso, você já estaria morto há muito tempo.
Eu devia tê-lo cegado quando tive chance, ela me
impediu. Mas, não abuse da sorte — admoestou o
rei.
— O meu único pecado foi tê-la levado ao
palácio no lugar na neta do Abdali. Se eu tivesse
sido um pouco mais inteligente, teria levado a
garota certa, depois voltado lá e a levado para mim.
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— Ela nunca teria ido com você, não se


iluda. Ela não veio nem comigo antes de saber
quem eu era.
— Sempre a achei extraordinária por se
manter fiel a esse bracelete, mesmo podendo
desfrutar de todo luxo como vossa esposa. Ela não
foi ao palácio por vontade, se ofereceu no lugar da
amiga que estava aos prantos.
— Isso ela me disse — retorquiu o rei, sem
abandonar a rispidez.
— Demoramos para dar destino aos nômades
mortos na fábrica, havia muitos. Ela já era forte
assim aos cartorze anos?
— Isso não é da sua conta.
Lui pareceu rir consigo mesmo.
— Tem tanto medo de mim assim,
majestade? Então sou mesmo uma ameaça —
concluiu o comandante.
— Ela sempre foi linda assim, tanto antes
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quanto agora. Antes ela era mais doce, mais


inocente. Não era tão combativa quanto agora, mas
algo nela sempre foi diferente. Essa sintonia com a
natureza, a vontade de conhecer as coisas, a
empatia pelo demais, tudo isso parece ter
permanecido intacto com os anos — discorreu
Dáian.
No início ele pareceu responder à pergunta de
Lui na tentativa de provar que não se sentia
ameaçado, mas depois sua entonação foi se
tornando nostálgica, como se relembrar o passado o
confortasse.
— Ela ficou magoada por eu ter partido sem
me despedir. Meu pai deu ordens para ferirem-na
caso a encontrassem, então não tive escolha a não
ser me render e voltar. Talvez ela tenha chegado a
me odiar, mas... mesmo assim... manteve a joia no
braço — continuou meu marido-postiço, porém,
desta vez, não pareceu responder a Lui, e sim
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refletir consigo, sem se importar com o fato de


fazer isso de um jeito audível até demais.
A conversa dos dois estava até interessante.
No entanto, não quis arriscar que aquilo terminasse
em algo mais grave. Forcei meu corpo a reagir.
— Dáian — murmurei devagar, espantando-
me com o quanto minha voz aparentava debilitada.
— Meu amor — ele respondeu emocionado.
— Tem água? — perguntei, tentando sorrir.
O rei suspirou aliviado e, pelos sons, tive a
impressão de que exultava de felicidade.
— É claro que tem. Aqui está — ofereceu
sobremaneira aliviado, já colocando o líquido
milagroso em meus lábios.
— Fico feliz que esteja bem, senhora — ouvi
Lui dizer.
O rei bufou.
— Lui, o que está fazendo aqui uma hora
dessas? Aliás que horas são, hein? — eu quis saber.
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— Já vai amanhecer — Dáian informou.


— Ah, amor. E você ainda acordado?
— Enquanto não tivesse a mais absoluta
certeza de que estava bem, não tiraria meus olhos
de você, minha Lin.
— Eu estou bem, vem dormir um pouquinho,
então — pedi com carinho.
— Não precisa pedir uma segunda vez —
atendeu-me todo feliz.
— Você também Lui. Vá dormir, sim?
— Posso ficar se quiser.
Antes que Dáian explodisse, interpelei.
— Não precisa, vá descansar. Por favor.
— Sim, minha senhora — cedeu vencido,
retirando-se.
Tão logo Dáian bateu a porta atrás de Lui,
aconchegou-se ao meu lado na cama.
— Amor, por que aquele “tosco” estava atrás
de mim? — aproveitei para perguntar.
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— Como sabe que o alvo era você, Lin?


— Mesmo antes dele ter me dito “até que
enfim achei você” — essa última parte eu disse
tentando imitar a voz do samurai — ficou óbvio
que o plano era retirar os homens da vila para o
ataque.
— Esperta. Respondendo à sua pergunta:
porque aquele “tosco” é obcecado por ter um filho
raro. Só não pensei que ele fosse capaz de me
desafiar desse jeito. Mas ele não perde por esperar,
assim que voltarmos ao palácio, eu me encarregarei
pessoalmente de que ele nunca mais importune
você.
— E o idiota pensa que eu vou ser a mãe do
filho raro dele?
— Dermet é um dos últimos raros do mundo.
Nessa obsessão, ele teve uma porção de filhos.
Nenhum raro como ele.
— Agora entendo o que vocês querem dizer
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com “raros”. Foi até estranho ver outra pessoa


parecida comigo.
— E isso importa?
— Hum?
— Quero dizer, importa o fato de ele ser
parecido com você? Isso despertaria o seu
interesse?
— Amor, às vezes, me assusto com o quanto
você é ciumento.
Ainda bem, meu Deus, ele tem um defeito.
Isso prova que ele é real.
— Só tenho medo de perder você. Tenho
medo de que venhamos a nos separar algum dia, só
isso.
— Não vamos nos separar, nunca. Agora
durma, tá bem?
— O seu desejo é uma ordem, ó poderosa
guerreira.
— Anda engraçadinho, hein, majestade.
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Espere até eu melhorar para te mostrar uma


coisinha.
Dáian riu feito garoto e, em seguida, se
ajeitou na cama, abraçando-me. Em poucos
minutos, pegou no sono e descansava
tranquilamente. Quando tudo se aquietou, não sei
bem o porquê, mas as palavras de Lui, “coisas
mudam”, voltaram a ressoar dentro mim, como
ondas de um mar agitado.
Tentei com todas as forças enxotar os
pensamentos teimosos, os quais insistiam na ideia
de que aquilo era um presságio, convencendo-me
de que não passava de farpas de uma alma ferida.
Deve ser muito doloroso amar e não ser
correspondido. Pobre Lui.
Pela manhã, acordei com Dáian me
massageando.
— Estou gostando desse tratamento vip —
insinuei brincalhona.
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— Só o melhor para minha adorada esposa


— respondeu também em tom de comédia.
— Se me acostumar mal assim, vai ter de
bancar outra vez o spa. Vou querer massagens
todos os dias.
— Já lhe disse que nenhum homem toca em
você além de mim — dessa vez o tom não estava
tão descontraído.
— Então terá de ser você a me massagear
todos os dias, ora essa... — brinquei.
Dáian mordeu o lábio e lançou sua mirada de
predador. Ruborizei quase instantaneamente.
Após isso, algumas senhoras entraram com
bandejas, oferecendo um verdadeiro café da manhã
para lá de colonial. Outras mulheres trouxeram
flores.
— Minha senhora, é uma felicidade vê-la
melhor.
Tentei me sentar na cama, mas acabei
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sucumbindo a dor.
— Ai... — soltei, mas já era tarde demais.
— Não se esforce, amor — pediu o rei, vindo
amparar-me.
— Minha senhora, o povo está agradecido
pelo que fez. Os homens contaram que só
conseguiram chegar a tempo porque foram guiados
pelo fogo na fábrica.
— Mas a fábrica está destruída e algumas
casas foram queimadas — lembrei, voltando-me
para Dáian.
— Ninguém foi levado, minha senhora. É
isso o importante. Todos no vilarejo a chamam de
heroína.
— Eu ouvi você me chamar de sua heroína
ontem quando o prefeito esteve aqui — revelei,
fitando o rei e arqueando uma das sobrancelhas.
— Ouviu, é? — expressou, com um sorriso
lindo.
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— Então agora sou “A Heroína do Rei”?


Gostei bem mais desse título — confessei sorrindo
e cerrando meus olhos, satisfeita.
— Eu não — Dáian retrucou.
As mulheres caíram na gargalhada, mas o rei
continuou sério.
Após o café, tentei levantar, contudo, meu
corpo havia sido “robotizado” de um jeito muito
pior que a aula de dança num passado que,
comparado aos últimos acontecimentos, parecia até
tranquilo. Eu não conseguia me mexer nem na
cama. Até respirar, doía. Dáian começou a passar
um unguento nas mãos e, em seguida, a massagear
meu corpo.
— Amor, você deve ter um monte de coisas
para fazer, até porque a fábrica ficou em ruínas.
— Não tenho nada para fazer, além de cuidar
de você — afirmou, piscando para mim.
Ah... essas piscadelas um dia me matam.
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Tenho de confessar, um pouco acanhada, eu


diria, que a dor diminuía muito cada vez que Dáian
deslizava as mãos em mim. Digo acanhada porque,
contando assim, qualquer um já imaginaria outra
coisa. O tratamento tinha lá sua dose sexy vai, para
ser bem sincera. No entanto, contra todas as
expectativas, ele se manteve firme em sua postura
de médico. Pelo menos, até aquele momento.
— Amor, temos de passar o unguento nos
músculos das costas também — recomendou com
uma pitada de constrangimento em suas palavras.
Como o unguento parecia um óleo de
massagem, compreendi na hora o motivo do
repentino acanhamento. Contudo, achei melhor não
pôr em palavras, perguntando a respeito.
— Posso pedir para uma das senhoras ajudar
com isso — propus, sentindo meu rosto começar a
ficar quente.
— Por quê? Eu posso fazer — reclamou com
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um visível desapontamento.
— Claro que pode — concordei
constrangida, lembrando-me do que tínhamos
combinado na noite em que Lui teve febre e
desejando um buraco para me enterrar, um que eu
pudesse caber inteira já no primeiro pulo, de
preferência.
— Então, eu vou me virar para que você
possa despir a parte de cima do vestido — falou
enquanto respirava fundo e não sabia o que fazer
com as mãos.
Gelei. Gelei de verdade.
Dáian se virou, eu também acabei respirando
profundamente, na tentativa fracassada de me
acalmar. Despi a parte de cima da minha roupa e
deitei de bruços sobre a cama, agarrando-me ao
travesseiro. Permaneci por alguns angustiantes
minutos esperando pelo toque dele e o alívio do
remédio.
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De repente, os lábios de Dáian correram


lentamente pela pele nua das minhas costas. Meu
corpo reagiu na mesma hora, tremendo
incontrolável. Na sequência, arrepiou-se e reagiu à
carícia dele. Em alguns momentos, ele apenas
roçava os lábios e, em outros, beijava-me
levemente.
Algumas reações foram intensas demais,
algumas inéditas e outras embaraçosas. Dei-me
conta de que quanto mais nosso relacionamento se
aprofundava, mais a menina dentro de mim dava
lugar à mulher.
Everlin, deixe de ser idiota. Vire-se e faça
amor com ele, agora! Mas... estou toda
alquebrada, meus músculos doem tanto que seria
impossível aproveitar. E, comigo desse jeito, ele
pode acabar frustrado.
Resultado do embate razão x emoção: vitória
da razão!
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No momento em que os lábios de Dáian


alcançaram a minha cintura, ele parou.
— Me perdoe meu, amor. Não consegui
resistir. Você se recuperando e eu pensando em
bobagens — censurou-se, encabulado.
— Tu.. tu.. tudo.. be... bem — gaguejei.
Dáian riu. A seguir, o rei começou a
massagear minhas costas e um alívio quase
instantâneo tomou conta de mim. Eu tinha mesmo
me forçado ao limite na batalha. Após o almoço,
levantei-me debaixo de protestos veementes de
meu marido-postiço. Meu corpo ainda doía, mas eu
não aguentava mais ficar na cama. Assim que pus
os pés para fora da casa, recebi aplausos e
cumprimentos do povo. Até a bocudinha quis me
abraçar.
Vendo aquela cena, uma alegria inexplicável
tomou conta de mim. Era lindo ver que ninguém se
preocupava com os bens materiais perdidos, mas
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valorizavam o fato de ninguém ter sido levado


pelos nômades. Se todos os lugares daquele mundo,
e também da Terra, fossem iguais àquele vilarejo,
acho que, enfim, os seres inteligentes poderiam se
experimentar um pouco do que chamamos de
“utopia”.
Dáian passou o dia todo comigo. Não me
deixava dar um passo a mais sem ter certeza de que
onde eu pisaria era seguro. Fiquei imaginando
como seria quando eu estivesse grávida. Eu podia
apostar um milhão, se eu tivesse é claro, que ele
iria me carregar no colo por nove meses. No meio
da tarde, resolvi ir ver como Jason estava.
— E aí? Como está a perna? — indaguei
bem-humorada.
— Sangrou um pouco ontem com o corre-
corre — respondeu — mas e você? Não entendi
muito bem, mas o pouco que pude captar me
pareceu que tinha se machucado — finalizou
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genuinamente preocupado comigo.


Era estranho, mas conversávamos como se já
fossemos amigos. Provavelmente era empatia
natural de duas pessoas que se encontram no
mesmo barco.
— Estou melhor, obrigada.
— Não se lembra de quem o levou para o
castelo de Éfer? — Dáian indagou na minha língua.
— Não. Só me lembro de nadar e nadar até
cair na terra. Depois, só imagens sem sentido —
informou, baixando o olhar.
— Não se lembra também de como se feriu?
— inquiri.
— Não. Bom... não sei se é sonho ou
realidade. Só me lembro de tentar fugir e correr
muito de um bando de homens, até que despenquei
de um morro.
— É... só um morro não é uma pista — refleti
em voz alta.
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— Não vamos poder voltar por onde viemos,


só tem água — lembrou cabisbaixo.
— Não é por isso que queremos saber.
Precisamos descobrir de onde estão
contrabandeando tecnologia — explicou o rei.
— Ele também é da Terra? — indagou Jason,
olhando para mim.
— Não exatamente — respondi, pensando
em quanta informação seria prudente fornecer.
— Como assim, contrabando de tecnologia?
— quis saber.
— No castelo de onde te tiramos tinha muita
coisa da Terra — respondi.
— E daí? — questionou despreocupado.
— E daí? E daí que se resolverem brincar
com armas de fogo ou dinamite, por exemplo,
estamos fritos aqui, né? — repliquei.
— Tem razão, não tinha pensado nisso.
— Jason, eu vim te dizer que precisaremos
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partir. Você fica até se recuperar. Quando estiver


cem por cento, levarão você até onde estou, tudo
bem?
— Você está tentando achar um jeito de ir
para casa, não está? — indagou, encarando-me.
— Conversaremos sobre isso no momento
certo. Por ora, você precisa se recuperar —
recomendei — E vê se aprende a falar um pouco o
idioma daqui. Pode ser que precise alguma hora —
exortei, sorrindo.
— Eles falam “enrolado” demais.
Dáian ia responder, mas tomei à frente.
— Não se reclama na casa de outros,
ninguém te ensinou isso não? — repreendi em tom
de comédia.
— Desculpe.
— Deixaremos instruções para levarem você
ao palácio assim que estiver bem — Dáian
reforçou.
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— Palácio? — questionou, espantando-se.


— É palácio, não se faça de surdo e vê se se
cuida, hein? — interrompi, mantendo o ar de
animação.
— Você não vai devolver meu celular? —
insinuou, deixando-se levar pelo clima divertido.
— Meu celular, você quer dizer — brinquei.
Rimos juntos.
— Se cuida você também e nos vemos em
breve, então — falou o terráqueo já mais contente.
— Até — me despedi de meu companheiro.
Ao sairmos da casa, voltei-me para o meu
marido “postiço”.
— Se alguém não tivesse batido a cabeça
dele na grade, talvez agora ele se lembrasse de
alguma coisa útil — provoquei.
— Se ele não tivesse tido a audácia de
abraçar a esposa de alguém na frente desse alguém,
esse alguém não teria batido a cabeça dele na grade
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— respondeu com um sorriso tão torto que minha


primeira reação foi levar a mão à testa.
— Senhor! — bradou uma voz.
Ah, pelo amor de Deus. Dá uma trégua
Murphy. Mais problemas não!
— O que foi? — o rei perguntou.
— A fogueira de alerta foi acesa.
O semblante de Dáian mudou na mesma
hora.
— E o que significa? — interpelei.
— Que tem um exército vindo para a
fronteira — o rei respondeu, apreensivo.
— Tem algum lugar alto de onde possamos
ver a fogueira e a direção de onde podem ter
avistado o exército? — inquiri.
— Da montanha de Katar — respondeu o
homem.
— Vamos até lá — sugeri para Dáian.
— Não veremos muita coisa — deduziu.
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— Veremos sim, confie em mim.


Fomos até a montanha de Katar, onde nos
instalamos em um lugar bem alto de onde era
possível ver tudo ao redor desde o penhasco, a
fronteira até a fogueira acessa. Na direção do fogo,
posicionei a luneta a fim de verificar a situação e,
ao ver a imagem, um calafrio apavorante percorreu
todo o meu corpo.
Era, sem brincadeira, de um exército no estilo
O Senhor dos Anéis ou Game of Thrones
marchando rumo à fronteira de Yonah e Karur. No
entanto, o meu limitado conhecimento sobre
guerra, ainda mais guerra num estilo antigo, não me
permitia classificar se aquilo era uma ameaça nível
hard, medium ou easy.
Por outro lado, até para uma leiga como eu,
ficou evidente o cenário de “gente que não acabava
mais”. Só de pensar em Dáian à frente de um
exército oposto àquele, meu coração já queria parar
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de bater.
— Meu amor, você está gelada — Dáian
estranhou, arrancando-me dos meus pensamentos.
Entreguei-lhe o instrumento e apontei na
direção que eu estava vendo. Assim que o rei mirou
o horizonte através da luneta, seu corpo se
enrijeceu.
— Temos de voltar ao palácio imediatamente
— asseverou o rei.
Quando retornamos ao vilarejo, Dáian
convocou várias autoridades locais com urgência.
Logo o lugar estava repleto de militares e pessoas
importantes, trouxeram também uma espécie
animal linda que chamaram de Sairens, a qual, para
mim, assemelhava-se aos velociraptors vistos no
cinema, porém a pele encouraçada tinha uma cor
indefinida e reluzia como tinta metálica. Eram
lindos demais.
— São dóceis? — perguntei ao primeiro
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soldado que avistei segurando um.


— Muito, minha senhora.
Aproximei-me e toquei. Eu nunca pus a mão
em um dinossauro, mas, se acariciasse um, tenho
certeza de que a sensação seria a mesma.
— Por que eles estão aqui?
— São o meio de comunicação mais veloz
que temos. Mas só usamos com autorização real
porque eles são muito rápidos, no entanto, morrem
com a viagem.
— Ah, entendi. Quando o organismo
desacelera, o coração para.
— Exatamente, senhora.
— Que pena, grandão — expressei —
sentimos muito, mas precisamos de você hoje.
Você dará a vida para salvar muita gente. Você é
que é o herói — completei, acariciando o animal
maravilhoso.
Logo que a reunião estratégica acabou, o rei
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convocou nossa partida. Ficou decidido que todo o


contingente do exército da região marcharia rumo à
fronteira sob o comando de Lui. Dáian falava de
matá-lo um trilhão de vezes, contudo, no fundo,
sabia que o comandante não era um homem a ser
descartado facilmente. Ele era muito bom no que
fazia, destemido ao extremo e o melhor para
comandar.
Antes de adentrar na carruagem, a qual nos
levaria de volta ao palácio, entreguei a luneta a Lui,
mostrando-lhe como funcionava. Meu ex-professor
aproveitou o momento em que eu lhe entregava o
objeto para tocar na minha mão furtivamente.
— Nos veremos logo — sussurrou para mim.
— Se cuide — falei, com um sorriso
apreensivo.
Nossa carruagem foi tracionada pelos Sairens
e acabamos chegando ao palácio em tempo recorde.
Era até estranho voltar. Parecia que eu havia ficado
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longe dali por um ano e não por uma semana. Pela


janela da carruagem, vi uma figura maravilhosa nos
aguardando na entrada. O veículo mal acabara de
estacionar e desembarquei, correndo para a porta
do palácio, assim que meus pés tocaram o chão.
— Raliiiii! — chamei enquanto corria para
ele.
— Minha senhora! Benditos os olhos que a
veem! — comemorou o servo, vindo em minha
direção e abandonando o protocolo.
Ralifax me abraçou e seus olhos irromperam
em lágrimas, assim como os meus.
— Minha rainha, estou tão feliz que esteja
bem — falou entre lágrimas e sorrisos.
— Eu também, Rali. É bom estar em casa —
confessei, fitando aquela entrada colossal.
Ao ouvir o que eu disse, Ralifax se
emocionou sobremaneira e me abraçou tão forte
que me senti a mais querida das criaturas. Nem
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percebi a presença de Dáian conosco.


— Vossa Majestade — cumprimentou,
curvando-se.
— Meu amigo — replicou meu marido
“postiço”, abraçando-o.
— Fico tão feliz por vê-los juntos e a salvo
— expressou o servo, limpando as lágrimas.
— Ralifax, um banho para a minha esposa. E
o conselho de guerra está no palácio como ordenei?
— Sim, meu senhor. Mas tem um assunto
que necessita de sua atenção antes disso.
— Não, Ralifax. Nada antes da reunião do
conselho.
— Meu senhor, um mensageiro do Rei Éfer
está esperando pelo senhor já há dois dias. Disse
que tem uma mensagem que só pode ser entregue
em mãos.
— Uma mensagem daquela hiena sádica! —
expressei sem pensar.
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— Vejo que já conheceu o Rei Éfer, minha


senhora.
— Mais do que eu gostaria, Rali.
— Peça aos guardas para o levarem ao meu
escritório.
— Agora mesmo, meu senhor.
— Posso ir também? — pedi.
Dáian assentiu com um sorriso.
Quando chegamos ao escritório, um
sujeitinho com cara de espertinho observava cada
detalhe da sala embora estivesse rodeado pelos
guardas. Se estava comparando o palácio de Yonah
com o de Karur, fazia todo sentido a expressão de
idiota ambicioso.
— Grande Rei Sete, aqui está a mensagem
que trago — disse, colocando sobre a mesma um
rolo de couro, preso por cordões.
— Pode ir, diga ao Rei Éfer que minha
resposta será enviada o mais rápido possível —
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respondeu, dispensando o homem.


Os homens da guarda o levaram para fora.
Dáian abriu o rolo misterioso.
— E aí, meu amor? O que diz? — indaguei
impaciente.
— Que Éfer quer se encontrar comigo. Que
está disposto a negociar.
— E podemos confiar?
— Tratando-se de Éfer, não muito.
Refleti por alguns instantes em toda aquela
situação. Era óbvio que Éfer queria o templo
porque sabia que, por ali, pessoas poderiam passar.
Provavelmente ele tinha acesso à passagem que
trouxera a mim e a Jason a este mundo e percebeu
que por ela só atravessavam objetos. Pensando
nisso, foi um verdadeiro milagre que meu
companheiro ferido e eu tenhamos passado pela
ponte no oceano. Isso sem contar a chance dos
outros passageiros do avião terem transposto a
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ponte, afinal, se Jason e eu conseguimos, outros


também podem.
— Em que está pensando, meu amor? —
Dáian quis saber.
— O que será que Éfer quer xeretar no meu
mundo? Tecnologia? Invasão?
— Acredito que Éfer não seja tão tolo para
invadir um lugar desconhecido assim. A propósito,
amor. Por que disse a Ralifax que o seu mundo não
pode descobrir a existência da passagem de jeito
nenhum?
Olhei para ele sem conseguir responder à
pergunta.
— Não, não fariam isso — Dáian inferiu,
sentando-se assombrado.
— Um planeta inteiro? Dois na verdade.
Cheios de recursos e ouro? Um que se pode
respirar, como eu estou fazendo agora? É claro que
fariam — afirmei envergonhada, pois eu sabia o
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que meu povo seria capaz de fazer.


— Pelos céus! — exclamou empalidecido.
— E mais, amor, não é só seu mundo que
está em risco. Se meu mundo descobrir, será o fim.
Acha que os outros países do meu planeta
permitirão que uma nação seja dona de dois
planetas sozinha? Vão se matar na disputa de quem
será o dono disto aqui.
— Dono? — o rei inquiriu.
— Amor, a tecnologia de guerra do meu
planeta é muito superior à do seu. Meu mundo
também é movido por interesses e ambições, talvez
como qualquer outro lugar, pelo que vi aqui —
discorri, abaixando o olhar.
— Não pode ser... — expressou sem
conseguir terminar o pensamento.
— Você arriscou muito indo lá — cheguei à
conclusão, aproximando-me dele e correndo
minhas mãos por seus cabelos.
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— Foi a melhor coisa que fiz na vida —


asseverou, mirando com aquele olhar amoroso e
penetrante.
Sorri, mordendo meus lábios na sequência.
— Temos de destruir a montanha, então. Eu
só não a destruí naquele dia porque achei que
queria se despedir de seus pais — disse, ainda
pensativo.
— É aí que está problema. Não podemos
destruir a montanha — expliquei.
— Não, Lin. Você não está pensando em
manter a passagem aberta para voltar para lá algum
dia, não é? Você já me fez promessas.
— Amor, não é nada disso. Não sabemos o
que aquilo é? Parece inofensivo, mas cientistas do
meu mundo dizem que é necessária muita energia
para produzir um “treco” como aquele. E se gerar
alguma reação em cadeia, uma explosão ou até um
buraco negro, sei lá? O mais inteligente é deixar
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aquilo quieto, temos de trancar sem mexer na


estrutura.
— Isso vai levar tempo, mas se é tão perigoso
assim...
— Eu voto com os conselheiros, não é uma
coisa que se possa mexer assim sem saber.
Dáian riu.
— Eu tenho voz ativa. Sou a heroína do rei
agora — provoquei.
— Em breve, será rainha. A voz mais ativa
depois da minha.
— Há controvérsias, majestade. Sabe que no
meu mundo dizem que o homem é o cabeça, mas é
a mulher é o pescoço. E o pescoço move a cabeça
para onde quiser — insinuei altiva.
— Olha... no seu mundo, sabem das coisas —
devolveu a brincadeira, agarrando-me e me
presenteando com aquele beijo divino.
— E o que vamos fazer, então? — perguntei
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assim que afastamos nossos lábios, muito antes do


que eu gostaria, tenho de confessar.
— A melhor aposta é uma aliança com
Aldrean. Mas Amir jamais viria aqui, a não ser
que...
— A não ser que o quê?
— A não ser que déssemos um baile.
— Baile... baile? Tipo... baile de verdade?
— Nunca entendo essa expressão do seu
mundo “de verdade”. A minha vontade é perguntar
se existe baile de mentira — respondeu
gargalhando.
— Pare de provocar... você entende sim,
engraçadinho — repreendi, beliscando-o e sorrindo.
Dáian mordeu o lábio e, em seguida, me deu
um beijinho rápido.
— Mas daríamos uma festa em plena guerra?
— Mataríamos duas raposas com um golpe
só. Eu poderia me encontrar com Éfer e Amir, sem
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provocar uma tensão.


— Analisando por esse ângulo...
Em seguida, Dáian acionou um dispositivo e
o um criado apareceu na porta.
— Avise que desejo uma reunião com o
conselho de guerra e a equipe cerimonial em meia
hora — ordenou ao criado.
— Sim, meu senhor — assentiu o servo
retirando-se.
Por mais incrível que possa parecer,
estávamos na eminência de uma guerra e daríamos
um baile. Não sei se existem duas coisas mais
incompatíveis em todo o universo. Eu só queria
saber se as coisas poderiam ficar mais estranhas
que aquilo ou, pensando bem, talvez o melhor fosse
nem descobrir.

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BAILE

A cabei não pedindo a


Dáian para participar
da reunião, afinal, apesar de saber que, por ele, não
haveria problema algum, seria algo revolucionário,
tanto para o conselho de guerra quanto para os
outros nobres. Então, o mais prudente, naquele
momento da história deles, seria a “esposa” não se
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intrometer em certos assuntos. No entanto, isso não


significava que eu não poderia bisbilhotar e me
inteirar do que acontecia pelo país. Corri até a
biblioteca e passei pela porta secreta, acomodando-
me no corredor acima do salão, atrás da cortina,
sem evitar a lembrança do quanto aquela situação
era familiar.
Já tenho meu lugarzinho toda vez que quiser
xeretar as reuniões.
Permaneci ali invisível para todo mundo,
menos para uma pessoa, é claro. Muitos nobres,
principalmente de terras fronteiriças, vieram, às
pressas, em busca de uma solução para a tensão
com a nação de Karur. O exército de Éfer não
marchara apenas para a fronteira que havíamos
visto, mas para outras também. Isso só confirmava
os rumores de que o contingente da nação inimiga
era de fato enorme.
Pelo jeito, não haviam descoberto nada sobre
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a tal arma de destruição em massa nem sobre o


provável contrabando. O clima de apreensão era tão
grande que não tive a menor dúvida: a ameaça era
nível hard.
Dáian explicou não só a respeito da
mensagem do rei da nação vizinha, como também
do baile como subterfúgio para negociar uma
aliança com Aldrean. Todos receberam a ideia
como uma solução brilhante e concordaram que a
vias diplomáticas ou a aliança estratégica eram as
únicas alternativas viáveis, pois a opção militar
seria demasiadamente desvantajosa para Yonah.
Ainda assim, foi dada a ordem de recrutamento e
preparação do exército.
No momento em que começaram a discutir
sobre as táticas de combate, para o caso da tensão
se transformar numa guerra, não consegui mais
ouvir e saí de fininho. Imaginar Dáian à frente de
um exército me fazia querer implorar para a hiena
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sádica, afinal não foi para obter isso que ele tanto
me aporrinhou quando tive o desprazer de conhecer
sua masmorra?
Após me preparar para dormir, fiquei
imaginando se devia ficar em meu quarto ou ir para
o do rei. Havíamos combinado de dormirmos
juntos, mas a ideia de ir ao quarto dele congelava-
me até a alma. Além disso, eu não sabia ao certo
quanto tempo ainda duraria a reunião ou se
haveriam outros compromissos ao término.
Decidi permanecer em meu aposento e,
embora eu tivesse me deitado havia certo tempo,
continuava a me revirar na cama, sem conseguir
agarrar o sono nem a laço. Até que, enfim, ouvi a
porta do quarto abrir em meio à penumbra.
Nem pensei duas vezes, levantei-me na
mesma hora e corri até ele, abraçando-o.
— Ainda acordada, meu amor? — indagou o
rei, cheio de carinho.
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— Não pude dormir depois do que ouvi.


— Não quero que se preocupe com essas
coisas.
— Como não vou me preocupar? Acha que o
Rei Amir concordará com uma aliança?
— Sinceramente, não sei. Amir evita se
envolver em conflitos. Mas podemos tentar
convencê-lo de que a ameaça afetará o mundo todo,
pelo que você me disse.
— Posso falar com ele, se quiser.
— Tudo o que quero agora é que fiquemos
bem juntinhos — disse, tomando-me em seus
braços e me carregando para a cama.
Dáian deitou-se comigo, aninhando-se a
mim, como se eu fosse seu único refúgio no
universo, enquanto eu acariciava seus cabelos.
— Quanto tempo até o baile? — perguntei.
— Menos de um mês, eu espero.
— Então, não poderemos sair daqui por
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enquanto, não é?
— Acho melhor não, ao menos até
conseguirmos a paz. Perdoe-me, meu amor. Sei que
deve estar doida para rever seus pais.
— Para nos casarmos também — confessei
sem jeito.
O rei sorriu como um menino.
— Já somos casados, não sou isso que você
disse, o tal “namorado”, coisa nenhuma, já falei —
sentenciou resoluto.
Acabei rindo.
— Lin, preciso lhe dizer uma coisa.
Dáian endireitou-se para me olhar de frente, e
eu mirei seu rosto com mais atenção.
— Eu quero a nossa cerimônia. Quero lhe
fazer uma promessa diante de seus pais e diante de
Deus, como você disse. Por isso, vamos esperar
para fazer amor — pronunciou, fitando-me com um
olhar tão brilhante que consegui apreciar
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perfeitamente mesmo com as luzes apagadas.


— Amor, eu não quero que você...
— Shhh... — manifestou, colocando um dedo
sobre meus lábios — eu não estou sofrendo. Claro
que, para mim, não é fácil ficar tão perto de você
assim, mas para isso a água fria foi inventada, não
é? Eu compreendi o que você quer e, acredite,
passou a ser o meu desejo também. Não estamos
perdendo tempo algum, pelo contrário, estamos
fortalecendo nosso amor à medida que nossa
sintonia aumenta, e o desejo de um passa a ser o do
outro — concluiu, emocionando-me.
— Por que você tem que dizer essas coisas?
— indaguei com a voz embargada.
— Vamos conseguir a paz e, muito antes de
nos darmos conta, já estaremos juntinhos, tomando
banho de cachoeira, depois da nossa troca de
promessas — afirmou sorrindo e dominando meus
lábios, entusiasmado.
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Era impressionante como, às vezes, o meu


próprio otimismo me irritava, mas... o dele...
parecia um bálsamo.
Como Dáian havia previsto, os dias passaram
voando, enquanto me dedicava ao aprendizado da
etiqueta e da dança clássica deles porque, pelo que
entendi, eu seria a anfitriã do baile juntamente com
o rei. Solicitei aos servos que colocassem o piano
na parte anexa ao grande salão e dispusessem um
grande número de cadeiras.
Decidi tocar um pouco para os convidados e,
com um pouco de sorte, talvez acalmasse os
ânimos. Tínhamos de conseguir resolver o impasse
sem uma guerra. Essa era a prioridade.
Passei pelos mesmos procedimentos de
beleza de quando cheguei ao palácio e, no
momento em que vi o que estava no manequim,
quase tive outro surto psicótico.
— Rali, pelo amor de Deus, isto não é muito
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exagerado? — indaguei, levando uma das mãos à


testa e balançando a cabeça.
— Claro que não! Hoje mostraremos ao
mundo quão linda é a futura rainha de Yonah —
explicou como se fosse óbvio o suficiente para me
convencer.
Aquele sim era, sem brincadeira, um vestido
digno de uma princesa da Disney, com sua cor
perolada cintilante, uma saia volumosa gigante e
uma cauda maior ainda. Cada detalhe do vestido
dava a impressão de que fora feito para uma rainha.
— Rali, eu não vou me casar, só participar de
um baile — reclamei.
— O vestido da coroação será cem vezes
mais lindo que esse — enfatizou, mais com a
intenção de ver se eu me conformava de vez com
meu destino.
E muito pior do que ver no manequim foi
vestir aquilo. Não sei exatamente qual foi o truque,
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mas o decote “tomara que caia” deixou as coisas...


Como eu diria? Muito para cima, para cima até
demais. Coloquei minhas duas mãos acima do
corpete, sentindo a pele nua, meu coração acelerado
e, principalmente, a megaondulação do busto.
— Meu Deus, Rali. Isto está muito
chamativo, não tem nada para eu cobrir aqui? —
indaguei, queimando de tão corada.
— Claro que tem — disse o servo, com um
sorriso engraçadinho enquanto trazia um estojo
luxuoso.
— Ah não, Rali. Não me diga que...
— Sim... Veja... — respondeu, abrindo a
caixa vermelha aveludada.
Fitei o colar e os brincos, os quais, de tão
brilhantes, quase me fizeram querer cobrir os olhos,
como num desenho animado antigo. Nunca havia
visto tantos diamantes juntos em toda minha vida.
— Você só pode estar brincando! Eu não vou
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usar um treco desse, de jeito nenhum! — avisei, já


descendo da plataforma onde terminavam de me
enfeitar.
— Pertenceu à própria imperatriz Yonah.
Ficará magnífico na senhora. E hoje faremos de
nosso rei o mais orgulhoso de todos os homens, não
faremos? — falou, lançando um olhar insinuante.
— Jogo sujo, hein, Rali? — soltei, respirando
fundo.
O servo sorriu e bateu palmas, sinalizando
para as servas colocarem as joias em mim.
Senhor, só me faltava trazerem sapatos de
cristal!
— Ah, já ia esquecendo algo muito
importante — disparou Ralifax.
O preceptor agarrou outro estojo um pouco
maior e o abriu.
Everlin, você está proibida de pensar
sarcasticamente pelas próximas doze horas, no
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mínimo, entendeu?
Não eram sapatos de cristal, mas quase. Era
uma sandália de salto finíssimo, toda trabalhada em
diamante.
— Não, Rali. Isso não! Ninguém vai ver os
meus pés nesse oceano de tecido — decretei,
movimentando o mar de pano sobre o meu quadril.
— Vão sim, porque o rei a fará flutuar
quando dançarem — lembrou o servo.
— Isso é um baile ou um pesadelo? —
protestei, mais alto do que gostaria.
— Senhora, hoje é o dia em que mestre a
apresentará formalmente para o mundo —
asseverou o preceptor, com uma voz afetuosa.
Apesar da minha rebeldia de garota
acostumada à normalidade, era bom sentir o quanto
Ralifax me aprovava como rainha, mesmo quando
nem eu me aprovava. Aliás, apenas me acostumar
com a ideia já parecia impossível.
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Em seguida, as servas me maquiaram e


colocaram joias até em meus cabelos. No fim, eu
parecia um cruzamento engraçado de uma princesa
encantada com uma rainha élfica. O colar de Yonah
realçava, por demais, o decote do vestido. Estava
muito... como eu diria... convidativo.
— Linda. A rainha que nasceu para ser —
ressaltou Ralifax, quase chorando.
Tudo bem. Eu tinha de admitir que nunca
estivera tão bonita em minha vida, nem mesmo
depois das outras transformações pelas quais
passei. Mas isso não significava que a palavra
“irreconhecível” não me definisse melhor.
Caminhei a passos lentos pelo corredor,
respirando fundo a cada passada. De acordo com o
que eu havia praticado com Ralifax, minha entrada
seria pelas escadas e, com aquele salto fino, eu
tinha de rezar para não ser uma verdadeira
catástrofe. Assim que cheguei ao alto da escadaria,
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o mestre de cerimônia me anunciou e, de imediato,


todos do salão se viraram para me olhar.
Meu Deus, quanta gente! Respira... respira...
respira...
Comecei a descer os degraus, deslizando
minha mão pelo corrimão na tentativa frustrada de
conter a tremedeira e cada passo meu era
acompanhado por aquela multidão, composta, em
sua maioria, por homens. Era impressionante como
naquele planeta o número de homens da raça
“incomum” era superior ao de mulheres. Já a raça
“semelhante” parecia bem equilibrada nesse ponto.
Dentre o grupo feminino, notei algumas garotas
que pertenceram ao harém real, as quais ainda me
encaravam como se eu fosse um inseto.
Ignorei.
Dáian me aguardava ao pé da escada e,
quando o mirei, senti o ar faltar. Ele estava
lindíssimo. Preto e dourado, definitivamente, eram
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as suas cores. Seu traje real era todo decorado com


adornos dourados e uma longa capa, toda
trabalhada, alocada em apenas um dos ombros,
acrescentava um charme exclusivo à vestimenta.
Uma coroa dourada fabulosa, delicada e imponente
realçava seus os cabelos.
Eu queria que ele tivesse ficado
impressionado comigo, mas a verdade fora eu a
ficar embasbacada com ele. Segurei a mão a
estendida em minha direção, ajoelhando-me numa
mesura completa, como Ralifax ensinara. Apesar
de eu não estar muito acostumada com esse tipo de
formalidade quase servil, não me importei. Dáian
merecia. Em seguida, fiz uma meia mesura até o
joelho para o público.
— Eu vou matar Ralifax — o rei cochichou.
Ué, por que ele disse isso? Será que ele não
gostou de me ver com as joias de Yonah?
Nem consegui refletir sobre o que Dáian
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acabara de dizer. No instante seguinte, já estávamos


no meio do salão, entrelaçados numa dança suave,
compassada e perfeitamente executada, cativando a
atenção de todos do salão. Como Ralifax havia
previsto, Dáian me suspendia pelo ar graciosamente
em vários momentos da canção, encantando os
convidados.
Apesar da parceira do rei ser um pouco
travada, sua habilidade com a dança era esplêndida
e o fez contornar o problema rapidinho. Quando
finalizamos, eu estava ofegante, mas feliz por não
ter cometido nenhuma gafe, e os aplausos
irromperam pelo recinto.
Quando Dáian e eu, como casal anfitrião,
terminamos nossa dança, outros casais se
posicionaram e os músicos iniciaram uma nova
canção, transformando aquele círculo numa
miscelânea de cores e movimentos ritmados. Num
minuto, o salão transmudou-se e transbordava uma
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energia alegre de vitalidade, mesclada a vigorosa


vibração dos sons. Aquilo sim era um baile de
verdade.
Mesmo após três canções, Dáian continuava
posicionado como meu par.
— Amor, Ralifax me alertou sobre o costume
do rei anfitrião de dançar com outras jovens da
nobreza — cochichei.
— De jeito nenhum! Se eu a soltar por um
instante sequer serei obrigado a permitir uma dança
sua com outro. De maneira alguma! — decretou,
fitando o decote do meu vestido.
Sorri, balançando a cabeça. Ninguém havia
ensinado ao meu rei que os seres humanos,
normalmente, disfarçam o ciúme.
Após o período de dança, veio a chuva de
apresentações e mesuras.
— Vossa Majestade, é uma raridade muito
bela — ouvi do nobre, ao qual intitulavam como o
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Urso do extremo sul.


Era o elogio da maioria, ao qual eu sempre
retribuía com um sorriso e uma leve mesura. Um
pouco mais tarde, veio a apresentação mais
aguardada da noite. Um senhor, aparentando ser de
meia-idade, aproximou-se de nós. Com um coroa,
também bonita, sobre a cabeça e vestes dignas de
um rei.
— Meu caro Sete, é um prazer revê-lo —
cumprimentou sorrindo.
— Amir, o prazer é meu — declarou o rei,
apertando-lhe as mãos amistosamente.
Graças a Deus, eles têm um bom
relacionamento. Já é um começo — pensei
aliviada.
— Esta é minha esposa, Everlin —
apresentou-me.
— É um prazer, majes...
Antes que eu pudesse terminar, o Rei Amir
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agarrou o meu rosto e ficou virando-o e me


examinando, como se eu fosse uma espécie em
extinção. Paralisei, sem reação.
— Meu Deus, Sete. Eu nunca havia visto
uma rara antes. Só em obras de arte — comentou o
rei de Aldrean.
— Eu também antes de conhecê-la, Amir —
confessou o rei de Yonah, sorrindo para mim.
— Minha senhora, me perdoe. Não quis ser
desrespeitoso, apenas fiquei chocado — desculpou-
se.
— Não se preocupe, majestade — respondi,
já mais descontraída.
— Sete, meu caro, lembra-se de minha filha,
não é mesmo? — indagou o rei, estendendo braço
em direção a uma moça ao seu lado.
A princesa de Aldrean era uma loirinha de
grandes olhos, cuja íris levava um azul bem
definido. E, de tão delicada, dava a impressão de
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que se quebraria se fosse tocada.


— É claro — respondeu o rei — Nazik —
prosseguiu, cumprimentando a princesa.
— Dáian — ela respondeu com uma mesura,
mirando-o fixamente e, em seguida, desviou o olhar
ruborizada.
Opa. Pera aí... o pai dela, que é o rei, o
chama de Sete e ela, que é a princesa, o chama de
Dáian? A outra era “Nahina”, esta é “Nazik”. O
que é? As “nas” me perseguem, é?
— Esta é minha esposa Everlin —
apresentou-me, na sequência.
Fiz uma mesura e a princesa a retribuiu.
Pareceu me encarar um pouco, no entanto, não
deixou suas intenções tão óbvias.
Ah, Everlin. Não seja também tão paranoica.
Qualquer garota com um pouco mais de percepção
irá olhá-lo assim, a beleza dele é algo impossível
de se ignorar.
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Nesse instante, outra figura apareceu diante


de nós. Uma muito mais familiar do que eu
gostaria.
— Um encontro como esse é um evento
histórico não acham, meus caros colegas? —
anunciou a hiena sádica, caminhando espalhafatosa,
como se estivesse em sua própria casa.
— Meu caro Éfer — cumprimentou o Rei
Amir, e seu tom não foi muito amigável, apesar da
amabilidade da saudação.
— Éfer — disse Dáian, entre dentes.
Pelo jeito, ele não esqueceu o episódio da
masmorra.
— Princesa Nazik, está tão bela quanto um
raio de sol — elogiou a hiena astuta.
— É um prazer revê-lo nobre Rei Éfer —
saudou, mais amistosa que o pai.
— Minha senhora — disse o rei de Karur
voltando-se para mim — não me parece tão
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“dispensada” quanto tentou, tão vigorosamente, me


fazer crer — finalizou com um sorrisinho
maquiavélico.
Dáian nos olhou sem entender.
— Vossa Graça não esperava que eu
entregasse o jogo de mão beijada, esperava? —
disparei, e o “Vossa Graça” saiu mais sarcástico do
que o ambiente permitia.
— É claro que não. Para uma senhora tão
perspicaz e rara, é claro que não — elogiou o rei,
beijando o dorso de meus dedos.
Não recolhi a mão, mas fabriquei um sorriso.
Dáian se contorceu onde estava.
— Majestade — falei voltando-me para
Dáian — creio que pretenda fazer um convite aos
nobres reis e aos demais presentes para o recital de
música. Terá início dentro de alguns instantes —
lembrei, encarando-o.
— É claro — disse o rei de Yonah, engolindo
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a raiva reprimida e a vontade de me lançar uma


chuva de perguntas.
— Um recital de música! Mal posso esperar
— concluiu o Rei Éfer.
Tão logo o servo cerimonialista anunciou a
audição e o rei anfitrião fez o convite formal, as
cadeiras no anexo ficam lotadas. Éfer sentou-se na
primeira fila, parecendo esquecer-se de que Dáian
permanecia em pé, conversando com alguns
nobres, bem como com o rei Amir. Não sabia dizer
se sua falta de interesse nas ações do soberano
inimigo motivava-se na demasiada confiança em
seu exército ou na convicção de que o rei de
Aldrean jamais aceitaria uma aliança. Nenhum dos
dois motivos era animador para nós.
Respirei fundo e toquei várias músicas,
intercalando clássicas e love songs, a fim de deixar
a plateia o mais calma possível. Ao final, fui
agraciada com uma longa chuva de aplausos,
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fazendo-me sentir uma verdadeira pianista famosa.


Agradeci com uma mesura, e já ia me retirando,
quando me detive ao som de um chamado.
— Minha senhora, aposto que não se
importará em atender a um pedido de um
convidado, não é? — indagou Éfer, levantando-se e
despertando a atenção de todos, inclusive dos reis,
os quais voltaram sua atenção em nossa direção
imediatamente.
Retornei para o centro do “palco”.
— Aliás, um pedido, não. Um desafio —
completou o rei de Karur.
Fiquei apreensiva, Éfer tramava alguma
coisa, disso não havia dúvida. Olhei na direção de
Dáian, e ele também pareceu cismado.
— Minha nobre senhora, lançarei meu
desafio, esperando que seja corajosa o bastante para
aceitá-lo. Toque outra canção, qualquer uma de sua
escolha. Se eu for capaz de acompanhá-la com
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perfeição ao seu julgamento, a senhora atenderá a


um pedido meu. Se eu não for capaz, atenderei a
um pedido seu — disparou a todo volume,
semicerrando os olhos e provocando um alvoroço
entre os espectadores.
Que proposta foi essa?
Ou era uma proposta boa demais para ser
verdade ou uma armadilha disfarçada de uma
proposta boa demais para ser verdade. Ele dissera
que o julgamento seria meu, assim como a escolha
da canção. Portanto, ou ele se julgava bom a ponto
de me impressionar ou queria que eu lhe fizesse um
pedido. A questão era: com o que ele iria me
acompanhar?
Se eu o vencesse, seria a chance de pedir que
assinasse um acordo de paz. Certamente, esse seria
meu pedido, mas e o dele? Se ele vencesse, o que
pediria? Embora fosse uma hiena sádica, não seria
tão tolo de pedir algo indecoroso na frente de tanta
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gente. Mirei Dáian em busca de algum conselho e


vi-o fulminando Éfer com o olhar. Logo em
seguida, fez um gesto negativo discreto na minha
direção.
Mesmo que Dáian não concordasse, eu tinha
em minhas mãos cinquenta por cento de chance de
conseguir o ajuste de paz, algo a não ser descartado
facilmente. Entretanto, o bom senso aconselhava a
ir com calma, sem deixar tão óbvio o nosso desejo
por um acordo. Decidi jogar, afinal se Éfer sabia
articular um bom jogo, eu também sabia.
— Majestade, meu marido e eu ficaríamos
felizes em atender-lhe um pedido, se isso fosse
contribuir para pôr um fim na tensão entre nossos
países — lancei, com uma mesura educada.
Eu sabia perfeitamente que só isso não era
suficiente para dobrar a hiena sádica, mas poderia
mostrar ao Rei Amir a nossa boa vontade em
manter a paz. Éfer sorriu como se tivesse
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desvendado minhas intenções.


— Ah, minha senhora. Mas, assim, não seria
tão interessante... Além disso, se aceitar o desafio, e
eu vencer, farei um pedido à senhora, e não ao Rei
Sete — contra-atacou.
O bicho é esperto demais. E agora o chamou
de Rei Sete, é?
— Bem, já que é assim... só não vale
acompanhar com um instrumento de percussão —
alertei, sentando-me ao piano.
O rei de Karur gargalhou e se retirou por
alguns instantes. Posteriormente, retornou
carregando um case pequeno. Ao se aproximar do
piano, abriu o pequeno estojo e retirou dele algo
maravilhoso. Era um violino todo diferente, eu diria
estiloso, cujo design deixava claro que não era
proveniente da Terra.
Eu sempre quis aprender violino, mas nunca
consegui encaixar as aulas na minha agenda lotada.
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Então, quase toda noite eu procurava por um vídeo


rápido de violinistas na internet. No instante em
que Éfer posicionou o instrumento, recordei-me de
quem ele me lembrava na Terra. Ele era bem
parecido com David Garrett, com o coque baixo
prendendo os cabelos loiros, e o traje, semelhante a
um terno preto, estava igualzinho ao vídeo no qual
o violinista toca a canção Viva la vida.
Respirei fundo. Se Éfer não me
acompanhasse, teríamos o acordo de paz. Embora
tenha me oferecido a vantagem de escolher a
música, eu não quis parecer tão óbvia selecionando
uma canção impossível de tocar. Por outro lado,
não poderia desperdiçar a chance, tocando algo que
pudesse acompanhar com facilidade. Optei por uma
das músicas mais difíceis e ritmadas do meu
repertório. Uma que, apesar de difícil, eu podia
tocar de olhos vendados.
Comecei a introdução e a primeira estrofe,
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enquanto Éfer apenas ouvia uma das minhas


canções preferidas — Burn de Ellie Goulding. A
partir da frase “when the lights turned down, they
don't know what they heard”, o rei de Karur passou
a me acompanhar com o violino. Tocava sem erros,
mas, num primeiro momento, mostrou-se bastante
tímido ao manusear o instrumento.
Entretanto, no instante em que finalizamos o
primeiro refrão, Éfer passou a tocar a melodia da
música e a improvisar um acompanhamento para o
piano com uma perfeição que me deixou
boquiaberta. E não foi só, ao acabarmos o segundo
refrão, ele fez um arranjo extremamente complexo,
deslizando os dedos pelas notas da escala, com a
exatidão de um profissional excepcional. O arranjo
ficou parecidíssimo com o de um violinista
chamado Seth G., que eu havia visto no Youtube
certa noite.
A performance de Éfer foi tão maravilhosa
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que esqueci completamente de prosseguir com o


meu instrumento, até ouvir Ralifax me chamando
baixinho. Virei na direção do servo, totalmente
perdida no tempo, enquanto ele me apontava o
piano. Mirei a plateia de relance e todos esperavam
uma reação minha, Dáian nos observava com os
braços cruzados e o cenho franzido.
Ele simplesmente descobriu o padrão da
música, ouvindo apenas um trecho, uma única
vez!!! A partir daí, passou a tocar como se
conhecesse a canção desde que nascera, indo
muito além da improvisação. Até eu tinha de
admitir que ele era um músico extraordinário, pois
eu nunca soube de um com essa capacidade.
— Se não me guiar, não saberei para onde ir,
minha senhora — gracejou com aquela cara
debochada.
A seguir, Éfer abriu um sorrisinho vitorioso
e, ao ver aquela fuça, era óbvio que eu não
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entregaria a batalha sem lutar até o meu último


suspiro. Alonguei meus dedos rapidamente e voltei
a tocar a última parte da música com tudo que eu
tinha, exibindo todos os meus arranjos
cuidadosamente elaborados ao longo de anos de
estudo. Bastava um único compasso sem
acompanhamento e a vitória seria minha. O rei
pareceu se divertir com o meu último fôlego de
determinação e passou a me seguir com mais
entusiasmo.
Embora eu também tenha me deixado levar
pela empolgação, afinal é desafiador tocar com
alguém tão bom assim, fosse déspota ou não, eu
não conseguia deixar de pensar em como aquela
situação era bizarra, até para os mais acostumados
com esquisitices.
Eu estava, acredite ou não, tocando um piano
alienígena, para uma plateia alienígena, com um rei
alienígena em seu violino alienígena, nada menos
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que Ellie Goulding. Aquilo era de “pirar o cabeção”


de qualquer um.
Minha teimosia me fez tocar tão bem a última
parte da música que acabei provocando uma reação
em cadeia: Éfer deixou-se contagiar pelo embalo,
os percussionistas do evento começaram a nos
acompanhar e, antes de percebermos, já estávamos
balançando ao ritmo de um dos maiores fenômenos
da música pop da Terra. Resultado: assim que
finalizei com as últimas notas da canção, um
estrondo em forma de aplauso irrompeu o lugar,
levando os convidados a se levantarem para
aplaudir de pé.
Fiz uma mesura e Éfer acabou fabricando
uma também, ainda que ele e Dáian estivessem,
visivelmente, trocando farpas com olhares. Não
havia como negar, o rei de Karur havia vencido o
desafio. O que vinha a seguir era o x da questão:
qual seria pedido que ele me faria.
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Noite de Ralifax

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— Tenho uma confissão, minha senhora, foi


uma das melodias mais difíceis de desvendar que já
ouvi — disse o rei de Karur ao meu ouvido.
— Nunca imaginei que Vossa Graça tivesse
uma habilidade excepcional como esta — respondi
em um volume mais alto — músicos, geralmente,
são tão... pacifistas — terminei, alfinetando.
— Minha senhora não perde uma
oportunidade, não é? — insinuou.
— Nem meia oportunidade — respondi na
lata.
— Mas me diga nobre Rei Sete, como faz
para lidar com uma mulher tão espirituosa? —
indagou Éfer, devolvendo o comentário mordaz.
O rei de Yonah mirava Éfer como se
estivesse prestes a pular em seu pescoço.
Dáian era muito astuto, mas quando o
assunto era eu...
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O rei de Karur percebeu o silêncio de seu


oponente e voltou-se para mim. Quando estava
prestes a lançar mais veneno, teve de deter seu
discurso.
— Não acho que minha esposa seja alguém
com quem devo “lidar”, nobre Rei Éfer. Talvez seja
sua falta de experiência com mulheres — disparou
Dáian, fazendo a hiena voltar-se para ele.
Graças a Deus, Dáian recobrou os sentidos.
— Estou ciente de sua vasta experiência com
o sexo oposto, nobre Rei Sete. Mas, em Karur, o rei
desposa uma única mulher e faz dela sua rainha —
destilou e, por incrível que pareça, voltou-se para
mim.
— E depois de desposá-la, passa a “lidar”
com ela? — o rei de Yonah contra-atacou.
— Ainda tenho direito a um pedido —
interrompeu Éfer, e eu não soube interpretar se era
porque se deu por vencido ou só mudara de
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estratégia.
— Estou ouvindo, majestade — respondi.
— Quero que cante, minha senhora —
solicitou.
— Cantar? Mas eu não canto muito bem —
retruquei.
— Não sei o porquê, mas acredito que isso
não seja inteiramente verdade — retorquiu,
enviando-me um olhar insinuante.
Resolvi me dirigir ao piano, afinal era um
pedido do qual eu não poderia fugir. Sentei-me
calmamente, matutando o que eu poderia cantar.
Sem querer, minha mente divagou, voltando ao
passado distante. Eu aprendi piano depois de
conhecer Dáian, muito embora já sonhasse com o
instrumento desde os seis anos. Com essa idade,
lembro-me de ter juntado duas mesadas para
comprar um minipiano de cauda, que emitia sons
de verdade e vinha até com a banquetinha. Assim
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que o desembrulhei, pus um bilhete nele, onde


escrevi que um dia teria um de verdade.
Após Dáian partir de minha vida, resolvi me
dedicar ao instrumento. Juntei “trocentas” mesadas
para comprar um velhinho de uma senhora, que
estava se desfazendo do instrumento, e passei a
praticar, pois me ajudava a não pensar. Apesar de
meu consciente negar a todo custo, teve uma
canção que, toda vez que eu praticava, imaginava-
me cantando para ele.
Antes de me dar conta, meus dedos já
passeavam pelas teclas e reproduziam a introdução
da canção, a qual eu sempre quis cantar para o
garoto mudo, que havia partido meu coração. Tão
logo as notas iniciais se findaram, comecei:

I know there's something in the wake of your


smile
I get a notion from the look in your eyes, yea
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You've built a love, but that love falls apart


Your little piece of heaven turns to dark

Listen to your heart


When he's calling for you
Listen to your heart
There's nothing else you can do
I don't know where you're going
And I don't know why
But listen to your heart
Before you tell him goodbye

Não deixei de fitar Dáian um minuto sequer


enquanto cantava. O mundo é estranho, não é?
Depois de sonhar tantas vezes, nunca imaginei que
um dia cantaria Listen to your heart de Roxette
para ele de verdade. O mais curioso, Dáian sabia
que cada palavra era dirigida a ele. Isso estava
estampado em seu sorriso. O pé direito alto ajudou
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muito e minha voz reverberou de um jeito até


aceitável. Fazendo um balanço geral, naquele
contexto, até que cantei bem, por assim dizer.
Assim que acabei, recebi a saraivada de aplausos,
mas o melhor foi o olhar emocionado do meu
garoto mudo.
— Muito lindo, minha senhora. Mas devia ter
cantado para o convidado de honra, e não para o
seu marido — insuflou a hiena.
Claro que o bicho ia perceber, não é?
— Não me lembro disso estar incluso no
pedido — disparei.
Éfer gargalhou e Dáian se aproximou de nós
enquanto os convidados retornavam, aos poucos, ao
salão de baile.
— Que instrumento magnífico! — exclamou
o rei de Karur — o que é, nobre Sete? — finalizou
indagando.
— Isso é um... isso é um... — Dáian olhou
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para mim, sem conseguir completar a resposta.


— Isso é um piano de cauda, majestade —
respondi, fitando meu marido “postiço” sem
entender nadinha.
— É esplêndido. Como conseguiu? —
inquiriu Éfer.
Fiz questão de olhar bem para o rosto de
Dáian, só esperando sua resposta.
— Pedi aos melhores inventores, artesãos e
músicos do reino para reproduzirem em escala real
a partir de uma réplica.
Permaneci fitando o meu rei por alguns
instantes, sem ter a menor ideia do que dizer. Por
óbvio, eu sabia exatamente a qual réplica ele se
referia.
— Um dia terei um de verdade — ele disse
baixinho, olhando para mim com plena certeza de
que seria o suficiente para responder a todas as
minhas perguntas.
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Pela primeira vez em minha vida, desejei que


todos a nossa volta se evaporassem num simples
estalar de dedos. Porque, por aquele breve
momento, os lábios de Dáian se tornaram uma
necessidade mais urgente que o próprio oxigênio e,
ainda assim, precisávamos manter as aparências.
Tive de me contentar, a total contragosto, eu diria,
em, tão somente, tocar a sua mão. E meu rei
pareceu sentir o mesmo, pois o simples entrelaçar
de nossos dedos foi tão inadiável quanto um beijo
desesperado.
— Sete — alguém chamou atrás de nós.
Ao nos virarmos, percebemos que o chamado
viera do Rei Amir, cuja filha continuava ao seu
lado. Dáian respirou fundo e deu uns passos em
direção à realeza de Aldrean, detendo-se e
voltando-se para Éfer, encarando-o. Não sei se
esperando o rei de Karur acompanhá-lo ou sair de
perto de mim.
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— Acalme-se, meu caro Sete. Já vou sair de


perto de sua preciosa esposa — comentou a hiena,
interpretando a atitude como sendo a segunda
opção.
Após esse episódio, passei um tempo longe
de meu “não-namorado”, cumprimentando nobres e
esclarecendo dúvidas sobre doenças e animais.
Recebi muitos elogios, principalmente sobre o
evento que, para todos os efeitos, transcorria como
um verdadeiro sucesso. Contudo, eu só o
consideraria bem-sucedido quando o rei de Yonah
voltasse com a notícia da aliança ou, pelo menos,
um armistício.
Entre cumprimentos e formalidades,
encontrei um tempinho para me sentar, desfrutando
de cada instante por ter a plena consciência do quão
curto seria o meu alívio. Só então consegui
observar detalhadamente a beleza do salão, todo
decorado com lanternas de Éden, velas tradicionais,
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flores, cristais e peças de ouro. Pensando bem,


devíamos grande parte do sucesso do baile a
Ralifax e à equipe cerimonialista. Resolvi dar-lhes
o devido crédito quando recebesse outro elogio pela
festa.
Dei uma olhadinha pelo salão, mas não vi
Dáian em nenhum lugar. O Rei Amir parecia à
vontade na companhia de alguns nobres e pensei
que não seria apropriado eu me aproximar dele sem
o rei. Até a hiena parecia se divertir em sua roda de
acompanhantes. Caminhei um pouco pelo recinto, e
não encontrei meu rei em parte alguma, além disso,
a princesa de Aldrean também havia sumido do
salão.
Everlin, pare de colocar caraminhola nessa
caixola. Só porque os dois não estão no salão, não
significa que estejam juntos por aí.
Dáian tinha caráter. Ele não iria me trair,
disso eu tinha a mais plena certeza, mas e se os
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sentimentos dele mudassem? Meu coração gelava


só de pensar nessa hipótese. Continuei caminhando
em direção a porta do grande salão, sentindo
minhas mãos tremerem.
Tudo bem, tudo bem. Não estou indo
procurar por ele, só tomar um pouco de ar fresco.
Bem já dizia Jane Austen: “somos todos tolos
no amor”.
No instante em que passei pela entrada e virei
no corredor, senti alguém me puxar para trás de
uma das enormes folhas de madeira da porta.
Quando dei por mim, os lábios dele já estavam nos
meus e ambos encobertos pela leve penumbra, num
esconderijo perfeito.
— Amor, o que está fazendo aqui? —
indaguei, quando nos afastamos um pouco.
— Torcendo para você aparecer. Ainda bem
que não me fez esperar muito — ele respondeu
sorrindo.
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— E por quê? Aconteceu alguma coisa?


— Aconteceu que eu não podia esperar mais
um segundo para te beijar — afirmou com aquele
sorriso travesso sensacional, beijando-me
novamente.
Sorri acanhada, tão logo paramos para
recuperar o fôlego.
— Eu vou matar Ralifax, por deixar você
assim tão linda para esse bando de gente. Devia
arrumá-la assim só para mim — asseverou como se
fosse a lógica mais óbvia do universo.
— Pensei que não tivesse gostado de me ver
com as joias de Yonah — confessei encabulada.
— Ficaram lindas em você — afirmou
enquanto corria os dedos pelo colar como se os
estivesse deslizando por minha pele.
Corei.
— Se eu fizer uma coisa, você promete não
me odiar.
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— Já disse que isso é impossível — reafirmei


sorrindo.
Dáian devolveu o sorriso e, lentamente,
trouxe seu rosto para o decote do meu vestido,
beijando as curvas ondulantes do meu busto e
roçando as pontas dos dedos pela linha do corpete,
como se estivesse resistindo corajosamente ao
instinto de fazer o vestido descer cada vez mais.
Meu corpo todo reagiu, instantaneamente. Minha
respiração mudou, meu coração acelerou e minha
pele começou a queimar.
— Amor, os convidados — avisei, voltando à
razão.
— Esse decote está tão bonito — repetia,
entre um toque de seus lábios e outro, e entre cada
respiração vigorosa e entrecortada.
O rei continuou pressionando os lábios contra
minha pele. Quanto mais me beijava daquela
maneira, mais ele arfava, mais o seu corpo tremia e
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seus músculos se enrijeciam, envolvendo-me em


sua aura masculina de força, proteção, desejo e
deleite.
Aquilo era bom, bom demais. Tão bom a
ponto de eu me surpreender com minha própria
vontade de que o vestido descesse, revelasse mais
do meu corpo e o deixasse tocar mais, até chegar às
partes sensíveis de mim. Em poucos minutos,
Dáian começou a me beijar do mesmo modo da
carruagem, e, desta vez, o azeite não estava em seu
organismo.
— Diga, Lin. Diga que é minha. Sussurre em
meu ouvido — suplicou, enquanto seus lábios
devoravam cada centímetro descoberto da minha
pele.
Ruborizei, mas, ainda assim, eu queria
atender o pedido. Alteei minha mão e segurei os
seus cabelos, trazendo seu ouvido para bem perto
dos meus lábios.
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— Eu sou...
— Melhor não — Dáian me parou, colocando
um dedo sobre meus lábios — Senão não vou
aguentar — completou, encabulado.
Eu também acabei recuperando um pouco o
senso de realidade.
— Eu vou matar Ralifax, eu juro — brincou,
na sequência.
— Ele só queria que se sentisse orgulhoso —
respondi, retornando à dimensão dos mortais.
— Eu fiquei muito orgulhoso, hoje. Mordido,
mas orgulhoso — admitiu com um sorriso,
tentando também se recompor.
— Temos de conseguir a aliança — lembrei,
já mais com os pés no chão.
— Sim. Vamos selar a paz hoje, porque eu
preciso te levar para o seu mundo amanhã —
confessou, estendendo-me uma das mãos e
convidando-me a regressar.
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Antes de eu poder dizer qualquer coisa,


Dáian deu alguns passos decididos em minha
direção, prendendo-me novamente contra o pilar.
— Hoje você dorme comigo em meu quarto.
E vá com esse vestido — sussurrou, ofegante.
— O quê? No seu quarto... — repeti, meio
atordoada e com o coração na boca.
— Sim — confirmou, depositando outro
beijo bem na ondulação do meu busto, tão
chamativa graças aos truques das criadas, com
Ralifax arquitetando tudo, claro.
— Não vale fugir nem me fazer esperar —
alertou, afastando-se um pouco e estendendo-me
mais uma vez sua mão.
— Eu... eu... eu preciso tomar um pouco de
ar — falei, sem jeito e tropeçando nas palavras.
— Mas não demore — pediu, sorrindo e
dando-me outro beijo rápido, voltando ao salão
com passos vagarosos.
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No momento em que estava prestes a deixar


meu campo de visão, regressou alguns centímetros
e lançou-me aquela piscadela travessa e “arrasadora
de corações”.
Malvado.
Mordi o lábio. Eu era vaidosa o suficiente
para ficar uma fera por me sentir vencida por
aquela “piscadinha”.
Também sei piscar, ele vai ver. Ou pelo
menos sei usar outros truques.
Quando enfim consegui abandonar o meu
modo “flutuando nas nuvens”, porque, por mais
que eu detestasse admitir, ele me deixava assim,
segui pelo corredor até chegar à área mais aberta,
recostando-me em uma das muretas.
A noite estava maravilhosa e as luas repletas
de energia, iluminando todo o castelo, como se o
banhassem num mar de prata. Acabei sorrindo feito
boba em direção ao céu, sentindo a brisa fresca
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levando meus cabelos e renovando minhas forças.


— Acho que nunca vi um sorriso tão bonito
quanto este, minha senhora. Deve ser porque nunca
vi alguém feliz de verdade.
Ao virar, deparei-me com a hiena sádica
também recostada na mureta a poucos passos de
mim. Éfer se aproximou.
— Diga-me toda essa felicidade é por causa
do seu marido? A senhora não me parece o tipo de
mulher que se impressiona apenas com um par de
bíceps.
— E Vossa Graça não parece o tipo de
homem que persegue a esposa do rei vizinho —
disparei em resposta.
— O que a faz pensar que a estou
perseguindo? — insinuou, dando alguns passos
estratégicos em minha direção.
— Não aparenta ser o tipo de rei dado a
suspirar ao luar.
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Éfer soltou uma gargalhada exagerada,


contudo aparentemente espontânea.
— Dáian também não parece ser dado a isso,
então o que ele tem de tão especial? Ele é bom de
cama?
Não consegui evitar dar umas tossidinhas, ao
ouvir o disparate da hiena. No entanto, logo
recobrei meus sentidos e continuei o embate.
— Por quê? Quer experimentar?
Éfer gargalhou novamente. Em seguida,
reclinou-se na mureta.
— Suas respostas são, simplesmente,
formidáveis, minha senhora. Não sabe o quanto são
divertidas essas nossas conversas. Porém, por mais
forte que seja, não consegue esconder a sua
fraqueza.
Nesse momento, o rei de Karur se aproximou
bem devagar, ultrapassando o limite da
aproximação e mantendo os olhos fixos em mim.
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Não consegui esconder o embaraço, entretanto não


recuei.
— Ainda é muito tímida para certas coisas.
Tão tímida que não consegue nem esconder —
asseverou, com o rosto bem perto do meu.
Meu olhar em chamas entrou em ação.
— Não se preocupe, nosso mundo não é tão
evoluído quanto o seu. Algumas coisas ainda são
um pouco extravagantes por aqui. Duvido que,
neste mundo, algum homem lhe seja rival —
respondeu, afastando-se alguns passos.
— O que ganharia indo ao mundo azul? —
lancei sem rodeios e dando um fim aos joguinhos.
— Não sei. Sete, pelo jeito, ganhou muito —
retrucou, olhando-me de cima a baixo.
— Eles viriam aqui e nos massacrariam. O
que tem a dizer sobre isso?
— Posso imaginar, afinal tomei
conhecimento de alguns dos brinquedinhos que seu
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povo inventou — afirmou, fitando-me.


Engoli em seco.
— Não devia deixar sua fraqueza assim tão
exposta, Dáian — provocou o rei de Karur, olhando
outro ponto do corredor e, em seguida, voltando a
me mirar, exibindo um sorriso torto insuportável.
Só então notei o rei de Yonah se
aproximando.
— Ainda vai lamentar por tê-la colocado na
masmorra — disparou Dáian, tomando uma de
minhas mãos e me conduzindo de volta ao baile,
enquanto a hiena apenas nos mirava a distância,
sem, contudo, revelar suas verdadeiras intenções.
Entretanto, uma coisa era certa: ele tinha
mesmo a habilidade de captar a fraqueza de seus
oponentes.
O final do evento transcorreu sem maiores
intercorrências. Contudo, Éfer se foi sem dizer
absolutamente nada em relação à tensão entre as
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nações. Apesar de sua postura não ter sido hostil,


também não poderia ser considerada amigável. A
boa notícia foi Dáian conseguir manter o rei Amir
hospedado por mais uns dias no palácio de Yonah,
e nossas esperanças se concentraram numa possível
aliança.
O baile terminou, e Dáian permaneceu preso
no mar de despedidas de nobres e pessoas
importantes. Já eu retornei ao meu quarto e fiquei
andando em círculos só pensando em como faria
para criar a coragem para ir ao aposento do rei.
O meu “não-namorado” havia sido categórico
ao dizer: “Não vale fugir nem me fazer esperar”.
No entanto, não sabia bem o porquê de, na minha
mente, ser tão diferente “ele dormir aqui” de “eu
dormir lá”. Dáian havia compartilhado o seu desejo
de também esperar pela noite de núpcias e, por
todos esses dias, tinha se comportado como um
verdadeiro lorde.
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Então, não havia motivo para alarde.


Mas hoje ele pareceu especialmente
animadinho. Se eu voltar à Terra, pelo menos por
mais de um dia, terei de escrever um livro sobre
“todos os possíveis efeitos de um decote”.
Continuei nesse estado de “cachorro girando
atrás do rabo” até ouvir alguém bater na porta.
Ai, meu Deus. Dáian veio me buscar!
Esperei por alguns instantes, mas o repentino
visitante não entrou. Respirei aliviada. Se fosse o
rei já teria adentrado, apesar de nem eu mesma
saber o motivo de tanto nervosismo. Era
impressionante o quanto minha inexperiência em
assuntos amorosos me fazia parecer uma tonta.
— Pode entrar — falei, por fim.
— Minha senhora — iniciou, Ralifax.
— Oi, Rali — cumprimentei, tentando me
desvencilhar da tensão inoportuna.
— O baile foi simplesmente um sucesso —
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comemorou o servo.
— Sim, graças a você e aos demais servos
que fizeram um trabalho excepcional — agradeci,
tomando suas mãos entre as minhas.
— Graças a nossa futura rainha que brilhou
mais um diamante hoje — vibrou o preceptor.
— Rali, ainda não podemos comemorar, não
sem um acordo de paz.
— O acordo virá, minha rainha. Tenha fé —
encorajou-me.
Sorri. Ralifax tinha esse poder de melhorar
tudo com seu otimismo, e não tive a menor dúvida
de com quem Dáian havia aprendido isso. Também
não sabia o porquê de eu não querer corrigir o
“minha rainha”. Talvez fosse a forma tão
carinhosa com a qual ele pronunciava essas duas
palavras.
— Mas não vim até aqui para elogiar o baile,
e sim para buscá-la, minha senhora — informou o
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servo.
— Me buscar? — indaguei, achando
estranho.
— Sim, o rei a aguarda em seu aposento.
— Ah não, Rali. Pensando melhor, diga para
Dáian vir até aqui — acabei surtando, nervosa.
— De maneira alguma! Não me esforcei
tanto para deixá-la deslumbrante para nada. Hoje,
enfim, é o grande dia. Eu sabia que deixar tudo nas
alturas ia dar resultado — desabafava quase
retoricamente.
— Quer dizer que isso tudo aqui — falei
apontando para a parte chamativa da minha
produção — foi de caso pensado, é? — indaguei,
abismada.
— Claro! Tantas noites aqui e nada —
explicou o servo como se fosse lógico.
— Como sabe disso? — inquiri, incrédula.
— Ah, o dia em que meu menino realizar o
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maior desejo da vida dele, eu saberei — informou


com uma careta traquina.
Até Ralifax sabe fazer essa cara.
— Rali, eu...
— Senhora, eu sei, talvez queira casar como
fazem lá na sua terra — começou o servo — mas
nosso povo precisa de um príncipe. E vocês se
amam de um jeito tão bonito, tão sólido e forte. Há
quantos anos já reprimem esse sentimento? O amor
de vocês sobreviveu a tudo e um milagre a trouxe
para nós, para ele — finalizou e sua entonação era a
de um conselheiro sábio.
As palavras de Ralifax acabaram me
acalmando um pouco.
— Tudo bem, Rali. Não vamos deixar o rei
esperando. Não é o que você sempre diz? —
respondi sorrindo.
O servo explodiu em alegria. Depois me
conduziu até o aposento real e, a cada passo, meu
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coração parecia querer sair do peito. O preceptor


bateu à porta e, na sequência, ouvimos o rei
permitir nossa entrada.
Andamos um pouco pelo enorme hall de
entrada e, ao nos aproximarmos da ala da cama,
notei o espaço todo enfeitado com rosas vermelhas
e velas perfumadas por toda parte. As lamparinas
também estavam diferentes, produzindo apenas
uma meia luz.
— Por que este quarto está assim? — soltei a
pergunta atônita e encabulada.
Antes de um dos dois me responder, Ralifax
prosseguiu.
— Meu rei, trago a escolhida. Não só para a
noite, mas para a vida — pronunciou e, posso estar
enganada, mas sua voz estava levemente
embargada.
Dáian me olhou emocionado. No entanto, o
momento estava tão tenso que não aguentei.
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— Era isso que iria acontecer comigo


naquela noite?
Meu marido-postiço assentiu, sorrindo.
— Então, ainda bem que pisei no seu pé —
desabafei, meneando a cabeça e de um jeito tão
sincero que chegou a ser cômico.
Dáian gargalhou.
— Minha rainha — Ralifax pronunciou num
protesto carinhoso.
— Rali, isso tudo está me deixando nervosa
— ralhei.
O rei abriu um sorriso lindo e gesticulou,
pedindo para eu me aproximar. Tão logo fiquei a
sua frente, ele estendeu-me uma das mãos. Seu
olhar estava tão emocionado que não pensei duas
vezes. Toquei sua mão estendida, e Dáian me
puxou para si, fazendo-me sentar em uma de suas
pernas.
— Caprichem — disparou o servo.
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— Raliiii — protestei acanhada, enterrando-


me no pescoço do rei, entretanto, quando ergui a
cabeça, o preceptor já estava saindo pela porta.
Voltei para Dáian e ele sorria como um
menino.
— Então, Ralifax queria me atiçar com esse
vestido? — comentou, balançando a cabeça.
— Ele te conhece tão bem, chega a ser
surpreendente — devolvi o comentário.
Mirei o rosto do rei, mas, o mais
impressionante, era que sua expressão não parecia a
de um homem ansioso por uma tórrida noite de
amor. Seu olhar estava apreensivo e cansado.
— Meu amor, tudo bem? — indaguei após
analisá-lo por alguns minutos.
— Você está tão linda. Por fim posso admirar
sem interrupções, por fim posso considerar ser só
para mim — asseverou, abraçando-me.
— Mas não está com uma carinha de quem
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quer aproveitar como Ralifax quer que aproveite —


eu disse, já preocupada.
Dáian voltou a me olhar. Em seguida, trouxe
seu rosto para o decote do meu vestido, porém não
como no baile, beijando e insinuando querer fazer
meu vestido descer, e sim aninhando-se ao meu
peito, como se quisesse se refugiar nele para todo o
sempre.
— Meu bem, o que foi? — perguntei,
acariciando seus cabelos.
— Não sei, meu coração está pesado. Um
pressentimento estranho. Algo ruim — desabafou.
Quem observasse o cenário de fora, chegaria
à conclusão: tudo vai se resolver, afinal um dos reis
ainda estava no palácio. No entanto, o peso do
mundo estava sobre os ombros, não era algo tão
simples assim. Um mundo não! Três mundos! O
meu, o dele e o do céu. A incerteza era grande
demais para se carregar sozinho.
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Além disso, a incredulidade pode ser mais


destrutiva que a própria guerra. Existem no mundo,
e com toda certeza em todos os mundos, pelo visto,
aqueles que nunca acreditam que algo pode
acontecer, até esse “algo” realmente acontecer.
Entretanto, para o infortúnio dos inocentes, quando
o evitável passa a ser inevitável, já é tarde demais.
— É natural, meu amor. Está sob muita
pressão. Mas vou dizer o que Ralifax me disse, o
acordo virá, tenha fé — expressei, com a feição
mais carinhosa que pude, transmitindo-lhe força e
confiança, as quais, muito provavelmente, nem eu
mesma tivesse.
Entretanto, acredito que isso também
signifique ser uma companheira: dar força, mesmo
quando não se tem.
Dáian ergueu a cabeça e me puxou para um
beijo. Seus lábios se movimentavam em busca de
cada resposta dos meus, como sempre, contudo era
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diferente. Ele parecia querer mais que o sabor, mais


que toque, mais que a sensação. Ele parecia querer
o que estava dentro de mim, minha alma talvez, ou
qualquer que seja a energia responsável pela minha
existência no universo.
Eu já havia experimentado esse tipo de sede.
Desta vez, parecia ser ele a querer entrar dentro de
mim se pudesse, não fisicamente, ou pelo menos
não só fisicamente, mas em essência. Um tipo de
amor, o qual a matéria não é o bastante.
Acabamos nos beijando assim por um longo
tempo. Embora um beijo sensual seja maravilhoso
ao seu modo, aquele beijo era, sei lá, parecia me
fazer querer chorar. Não um choro triste, e sim um
de emoção, como se os sentimentos fossem
poderosos demais para manter aprisionados em
meu corpo.
Logo após esses pensamentos permearem
minha mente, senti as lágrimas de Dáian. Nossa
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sintonia era quase mágica. Afastei meus lábios dos


dele.
— Não gosto que me veja assim — ele
sussurrou.
— Amor...
— Sempre quero lhe mostrar meu lado mais
forte, mas sempre acabo lhe revelando o que há de
mais frágil em mim. Quero ser aquele que lhe dará
segurança, ser um pilar para você, mas às vezes
eu...
— Shhhh — emiti o som, trazendo-o para
junto de mim e aninhando-o novamente em peito.
— Lin, eu...
— Shhhhh... Fique aqui, quietinho. Onde é o
seu lugar.
Dáian sorriu.
— Uma vez você me disse que um rei
também tem fraquezas, lembra? — brinquei
sorrindo.
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— Me impressiono com o quanto você


sempre sabe o que dizer.
— Não quero que seja minha segurança,
apenas que me ame. O resto, faremos juntos.
— Eu te amo mais que minha vida —
declarou-se, fitando-me com aqueles olhos cor de
caramelo sensacionais.
Eu poderia passar o resto dos meus dias só
admirando aquela íris.
— Parece que Ralifax terá outra decepção —
comentei, tentando alegrá-lo um pouco.
— Será? No meu mundo dizem que quando
um homem consegue tocar a ponta do nariz assim
— falou, tocando a ponta do seu nariz lindo — ele
já está pronto para fazer amor com sua amada.
— Como assim? Todo homem consegue
fazer isso rapidinho — repliquei indignada.
— A velocidade para um homem tocar o
nariz e ficar acesso é a mesma.
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— Você inventou isso agora — contestei.


— Não inventei, não.
— Inventou sim.
— Vamos perguntar a Ralifax para ver o que
ele acha?
— Para quê? Para ele nos mandar caprichar
de novo?
— Foi um conselho muito sábio.
— Ora, ora, majestade. Então é assim que a
tristeza vai embora rapidinho? — brinquei.
— Não. É você quem faz minha tristeza ir
embora rapidinho — disse, com o olhar penetrante
e encantado.
Depois disso, Dáian se aproximou e dominou
meus lábios novamente. Quando terminou o beijo
abriu um sorriso lindo, contudo seu olhar ainda
revelava aquela apreensão angustiante. Acariciei
seu rosto e o trouxe novamente para se aconchegar
em meu peito, enquanto corria meus dedos por seus
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cabelos.
Não pensei muito, apenas comecei:

Now I've heard there was a secret chord


That David played, and it pleased the Lord
But you don't really care for music, do you?

Senti Dáian suspirar em meu colo, prossegui:

It goes like this the fourth, the fifth


The minor fall and the major lift
The baffled king composing "Hallelujah"
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Halleluuuuujah

— Obrigado — meu rei agradeceu.


Acabei por não dizer nada, apenas continuei
acariciando seus cabelos, com ele aninhado em
mim, enquanto deixava minha voz se propagar
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livremente pelo quarto perfumado. Como as noites,


normalmente, não estavam saindo muito bem
conforme o planejado, e o placar dos azarados
continuava sem marcar muitos pontos, desta vez,
não fora a noite de Ralifax.

Aliança

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T erminei minha canção,


mas não quis deixá-lo
sair de onde estava. Então, fiquei afagando seus
cabelos por um bom tempinho. Com o carinho,
Dáian acabou cochilando. Estava exausto. Por
todos esses dias, vinha dormindo muito tarde e
levantando-se antes do sol. Em várias ocasiões,
permaneceu enfurnado em reuniões com o conselho
de guerra, nobres e os guerreiros responsáveis pelo
serviço de inteligência. A apreensão na fronteira
ainda era grande.
Eu nunca diria isso a Dáian, é claro, mas eu
torcia para Lui estar bem e a salvo.
A única explicação para o rei estar tão
vulnerável era ele ter notado o que, ao demais, não
seria tão óbvio assim. Algo que, para mim, também
estava patente. Estava estampado na fuça dele. Éfer
aspirava por uma guerra. E faria qualquer coisa
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para consegui-la.
Não queria ter de despertar meu amado, mas
eu precisava trocar aquele vestido.
— Meu amor, vou me trocar e já volto —
sussurrei.
— Ah... não. Está tão bom aqui —
murmurou, contrariado.
— Imagino, o problema é esse vestido
gigante — argumentei para ver se ele desligava o
modo “garoto mimado”.
— Você está linda assim.
— Mas não posso dormir desse jeito, amor
— insisti, carinhosa — Eu volto já, prometo.
— Não demora, tá. Vou esperar por você.
— Não precisa, pode dormir.
— De jeito nenhum. Só durmo, quando você
chegar.
Achei melhor não contrariar.
Levantei e fui até meu quarto. Troquei o
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vestido pela camisola de sempre. Peguei o celular e


fui ao spa lavar o rosto e usufruir de um momento
feminino, porque aquilo não era um banheiro
comum nem de longe. Após, segui na ponta dos pés
até o aposento do rei.
— Nada hoje também, meu Deus! — ouvi
alguém exclamar.
— Rali, que susto — censurei, colocando a
mão no coração.
— Perdão, minha senhora, não foi minha
intenção — desculpou-se o servo.
— Ele não está bem — expliquei, abaixando
o olhar.
— E não era para menos, o rei Éfer estava
com aquele olhar sanguinário. Das poucas vezes
que o vi, ele já aparentava um certo desapreço pela
paz, mas desta vez...
Ralifax também percebeu.
— O rei Amir também não é nada fácil, então
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imagino como o mestre deve estar. Cada vida


perdida o entristece sobremaneira. No último
ataque a cidade de Katar, ele não dormiu direito por
quase um mês.
— E só você e eu conhecemos esse lado dele,
não é? — afirmei, tocando seu ombro e
emocionada pelo tamanho do carinho que Ralifax
tinha por ele.
— Somos tudo o que ele tem. A senhora
muito mais do que eu, é claro.
— Não diga isso, Rali.
— É a mais pura verdade, minha rainha —
asseverou o servo, sorrindo.
— É melhor entrar. Ele disse que não iria
dormir até eu voltar.
— Bem a cara dele dizer isso — concluiu o
servo, balançando a cabeça.
— Boa noite, Rali — despedi-me com um
abraço.
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— Boa noite, minha rainha. Por favor, cuide


bem dele.
— Pode deixar — tranquilizei-o, sorrindo.
Tão logo desejei boa noite ao servo, adentrei
no aposento, e Dáian estava sentadinho na cama,
esperando por mim como prometera. Coloquei o
celular sobre a mesinha e peguei o lençol,
ajeitando-me em baixo dele até estar juntinha ao
meu amor.
— Você demorou, não me diga que Ralifax
estava na porta?
Sorri encabulada em vez de responder.
— Quando nos casarmos, ele fará uma vigília
todas as noites do lado de fora até darmos a notícia
de que o príncipe está a caminho — gracejou,
sorrindo, voltando-se para mim e acariciando meu
rosto.
Corei.
— Posso confessar uma coisa?
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— É claro, meu amor.


— Que deliciaaaaaaaaaaaaaaaa — soltei o
verbo, enquanto me revirava naquela cama campeã
de divindade, deliciosa elevada à infinita potência.
Virei-me e revirei-me várias vezes sentindo o
colchão suave, fazendo questão de cada pedacinho
da minha pele sentir a maciez daquela cama de
realeza. O rei, por sua vez, não parava de rir
enquanto me assistia dando praticamente um show.
— Plumas de Linora, muito raras. Só para
reis — comentou altivo.
Não dei atenção a Dáian se gabando e
continuei me movimentando como se realizasse
nado sincronizado na cama mais macia de todos os
tempos. O rei virou-se de lado e apoiou a cabeça no
dorso dos dedos ao mesmo tempo em que apoiava o
braço no travesseiro.
— Às vezes me assusto com o quanto você
consegue ser divertida, meu amor.
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— Vou ignorar você porque preciso me


concentrar aqui nessa maciez.
Dáian soltou aquela risada gostosa enquanto
eu continuava me revirando feliz igual “pinto no
lixo”.
Parei de repente.
— Por que estávamos dormindo em outro
lugar, se tínhamos uma cama dessas? — indaguei
revoltada.
— Porque alguém ficava aterrorizada com a
ideia de vir para cá — insinuou.
— Não sei de que ameba você está falando
— desconversei.
— Não, é? — indagou, não resistindo mais e
enchendo-me de beijos animados.
Quando Dáian se afastou, continuei
deslizando os braços e pernas, como se estivesse
fazendo um boneco de neve no mar de maciez. A
seguir, dei continuidade à exploração, passando a
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mão por baixo dos travesseiros e encontrei algo


familiar. Retirei o objeto do inusitado local onde
seguia guardado e, no momento em que o vi, meus
olhos turvaram quase instantaneamente.
Voltei para o meu não-namorado e mostrei o
MP3.
— É aqui que você deixa? — perguntei,
tentando manter a voz firme.
— Desde que você me deu — o rei
respondeu aproximando-se de mim e acariciando
meu ombro com a face.
Levei meu rosto até o dele e dei-lhe um
beijinho rápido. Ele pareceu gostar.
— Me perdoe, meu amor. Sem querer,
quebrei o aparelho. Não sei o que fiz, mas não
funciona mais. Eu estava escutando e, de repente,
ele parou.
— Não está quebrado, amor. Não se
preocupe. Só acabou a bateria. Quando formos para
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Terra, recarregamos. Se bem que este modelo já


está ultrapassado. Celulares agora fazem isso e
muito mais. Veja.
Peguei o celular, desconectei o fone do MP3
e o encaixei no aparelho em minhas mãos. A
seguir, procurei a playlist de Jason. Graças a Deus
havia algumas músicas um pouco mais do meu
estilo. Encontrei uma bem inesperada para o celular
de um homem, no entanto me deixou feliz da vida.
Mirrors, cantada por Anthem Lights. Coloquei um
dos fones no ouvido do meu marido-postiço e o
outro no meu. Apertei o play.
Dáian deu um sobressalto quando a canção
começou.
— É linda. Chega a emocionar — falou
entusiasmado.
— Show me how to fight for now
And I'll tell you, baby, it was easy
Comin' back into you once I figured it out
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You were right here all along — comecei


a cantarolar junto com a canção.
O rei ficou me encarando enquanto eu
cantava acompanhando os artistas, como se meus
interesses e meus gostos fossem, de fato,
fascinantes para ele.
— Qualquer dia desses, eu toco ela para você
— me ofereci, encabulada.
— Sou o homem mais sortudo do mundo
mesmo, não sou? Do mundo não. Acho que do
universo todo — declarou, envolvendo-me em seus
braços fortes e presenteando com outro beijo de
tirar o fôlego.
Quando terminamos o beijo, ele ficou
olhando os aparelhos, intrigado.
— Amor, se não está quebrado, por que não
funciona?
— Está vendo esse cantinho aqui? —
indaguei mostrando o canto da tela do celular.
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— Sim, o que tem?


— Ainda se lembra dos símbolos dos
números do meu mundo, não lembra?
— Sim. Esses dois números compõem
noventa e sete.
— Isso — comemorei, feliz por saber que ele
não havia esquecido — este símbolo de
porcentagem não te ensinei, eu acho. E esse
desenho é uma bateria. Significa noventa e sete
porcento de carga na bateria, ou seja, está quase
cheia.
— Ainda não entendi muito bem.
— Deixe-me ver... como posso explicar... Já
sei. É como as lanternas de Éden. Elas queimam
enquanto tem óleo. Sem óleo, elas apagam.
— Tem óleo aqui dentro? — perguntou,
analisando minuciosamente o MP3.
— Não. Só algo que funciona como se fosse
o óleo. É o combustível do aparelho.
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— E o que é?
— Energia elétrica.
— Ah... é o que acende as lâmpadas do seu
mundo.
— Isso. Exatamente.
— Ahhh... — expressou com um gesto
afirmativo, parecendo tão feliz por saber que o
MP3 não estava danificado.
Em seguida, o rei agarrou-se a um travesseiro
e deitou-se de bruços, olhando para mim. No
entanto, seus olhos estavam pesados. Suas
pálpebras demoravam cada vez mais para abrir
entre uma piscada e outra. Deitei ao seu lado. Tão
logo Dáian fechou os olhos, segurei o celular e tirei
uma foto dele dormindo.
Era impressionante, mas Dáian não tinha um
único pelo no rosto. Nem na face nem no peito,
muito menos na axila. Talvez fosse alguma
peculiaridade da genética dele, algum tipo de
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mutação, sei lá. Comecei a correr meus olhos por


seu corpo, curiosa. Será que ele tinha pelos no...
Pelo amor de Deus, Everlin. Pare de pensar
em bobagens a essa hora da madrugada!
Dei uns tapinhas na cabeça para ver se
enxotava os pensamentos idiotas.
— Está tudo bem, amor? — inquiriu, com a
voz bem arrastada pelo cansaço.
— Tudo, não se preocupe. Pode dormir
tranquilo — falei, devolvendo o celular à mesinha.
— Vem dormir também — chamou.
— Quero fazer mais uma coisinha antes de
dormir.
Aproximei-me de meu rei e passei a retirar
sua camisa.
— Eu sabia que você gostava de me ver nu
— gracejou.
— Sossega — ralhei, beliscando-lhe o
abdômen.
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Comecei a deslizar meus dedos por suas


costas, sentindo o relevo das cicatrizes. Não resisti.
Praticamente deitei por cima dele, beijando cada
uma daquelas marcas.
— Se eu soubesse que ganharia carícias
assim, apanharia mais algumas centenas de vezes
— brincou.
— Não é engraçado, amor — repreendi.
Dáian virou-se na cama com tanta agilidade
que, quando percebi, minhas mãos estavam
deslizando pelo seu peito e não mais por suas
costas. Na fração de segundo seguinte, seus lábios
estavam nos meus e nos beijamos por um tempo,
até ambos pegarem no sono.
Pela manhã, senti dificuldade para abrir os
olhos. A cama estava boa demais. E não só pela
maciez e conforto, mas porque o cheiro dele estava
impregnado em todos os lugares, nos travesseiros,
nos lençóis, tudo levava aquele perfume
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maravilhoso. Corri minha mão pela cama, mas o rei


não estava.
Tão logo levantei, fui até a mesa de jantar
real para o café e nela já estavam meu “não-
namorado”, o Rei Amir e a Princesa Nazik.
— Perdoe-me, majestade, pelo atraso. Ontem
foi uma noite muito agitada — desculpei-me, afinal
tínhamos visitas ilustres.
— Soube que a esposa que lhe sobrou não
vem de uma linhagem nobre, caro Sete. Deve ser
por isso que não está habituada a pontualidade —
lançou o rei de Aldrean, juntamente com um olhar
um tanto desdenhoso.
Respondo? Ou não respondo? Respondo? Ou
não respondo? Everlin, fique quieta pelo amor de
Deus. Ponha um pão nessa boca.
— Vossa Majestade há de convir que uma
esposa não é uma rainha. Rainhas têm
compromissos, esposas não. Então, se não tenho
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compromissos, não posso ser tachada de impontual


— respondi.
Mas era óbvio que eu tinha de responder,
não é? Senão, não seria eu...
Mordi o lábio. Muito provavelmente eu havia
acabado de estragar a chance de uma aliança. Dáian
me olhou com uma mistura de apreensão e orgulho.
— Vou ser obrigado a concordar —
manifestou Amir, após pensar por alguns instantes.
Respirei aliviada, sentei-me e resolvi manter
a boca fechada dali por diante. Dáian e Amir
prosseguiram conversando a respeito de territórios,
comércio, imigração, entre outros assuntos de
Estado enquanto a Princesa Nazik parecia ouvir
atentamente. De minha parte, eu queria “meter o
bedelho” em várias questões sobre as quais, no meu
ponto de vista, estavam muito atrasados, mas resisti
bravamente, até porque não seria interessante
revelar a minha origem.
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— Pretende renovar o harém, Dáian, ou,


finalmente, optou pela monogamia? — indagou a
princesa.
Coloquei um pão na boca.
— Meu desejo sempre foi a monogamia,
Nazik. Só não havia encontrado a mulher certa —
Dáian respondeu — ou melhor, já havia
encontrado, mas meu pai não permitiu na época.
Agora ele não está aqui para me impedir —
finalizou.
Engoli o pão.
— Se foi uma garota sem berço como esta,
quem poderia julgá-lo? — disparou a emproada.
Coloquei outro pão na boca.
— Minha filha, como a senhora tão
gentilmente nos lembrou, ela não é a rainha, mas
uma mera esposa. Nesse caso, de fato, a origem não
é tão relevante assim — interpelou o rei de
Aldrean.
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Esse pão foi duro de engolir.


Nesse instante um servo adentrou apressado.
— Vossa Majestade, precisamos da ajuda da
senhora, urgente — solicitou.
— O que aconteceu? — indagou Dáian.
— Uma das éguas está morrendo no estábulo.
Levantei imediatamente. Não era um motivo
para agradecimento, mas eu estava feliz por não
precisar participar mais do café.
— Eu irei também — prontificou-se o rei de
Yonah.
— Não é necessário, majestade. Eu cuido
isso — tranquilizei-o.
— Sua esposa entende de medicina animal,
Sete? — questionou o rei Amir.
— É a melhor — Dáian respondeu, olhando
para mim com aquela mirada terna.
— Nesse caso, eu preciso testemunhar isso
— exprimiu o rei convidado.
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Corremos até o estábulo, onde os servos não


sabiam como proceder diante das complicações no
trabalho de parto de uma égua.
— Quando isso acontece, a égua e o potro
morrem, senhor. Mas sua esposa está no palácio e,
por isso, decidimos pedir ajuda — explicou o
servo.
— O servo tem razão, nesse caso, não há
mais o que ser feito. O animal tem de ser
sacrificado — declarou o Rei Amir.
— É claro que não! — disparei.
Retirei o excesso de vestido de mim,
mantendo apenas as vestimentas mais leves de
baixo e passei a examinar o equino.
— Está mal posicionado, apenas — revelei o
diagnóstico.
Em seguida, fui até a fronte do animal e o
acariciei.
— Você vai conseguir — encorajei a futura
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mamãe, levantando-a — segurem-na, com calma,


enquanto eu reposiciono o potro — ordenei aos
servos, na sequência.
Logo após, iniciei o procedimento e
imediatamente notei que o problema era a cabeça
do potrinho. Não se encontrava na direção correta.
Com muito cuidado, auxiliei o filhote, colocando-o
na posição certa e, nesse exato momento, senti a
vibração aliviada e agradecida da gestante.
— Isso é nojento! — sentenciou a Princesa
Nazik.
— Não, princesa. Isso é vida! — retorqui.
No instante em que terminei, o parto
prosseguiu sem problemas, e logo testemunhamos o
nascimento do novo ser, assim como a alegria da
nova mamãe. Quando o filhote surgiu, os
empregados comemoraram.
— Pronto — também comemorei.
— Meu Deus, Sete. Perdi a conta de quantas
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éguas já se foram em meu curral desse jeito. E sua


esposa, com essa habilidade, salvou o animal. Veja
só, reparando agora, o seu estábulo é maravilhoso.
Até o brilho dos pelos é magnífico — exclamou o
rei de Aldrean.
— Um acréscimo simples na dieta fez toda a
diferença, majestade — interpelei em resposta ao
Rei Amir.
— Foi é? — Dáian indagou sorridente.
— Sete, seria extraordinário se permitisse
uma visita de sua esposa ao meu estábulo. Talvez
ela pudesse ensinar esse procedimento aos meus
servos — rogou o rei da nação vizinha.
— Meu marido e eu nos sentiríamos
honrados em visitá-lo, Rei Amir. Eu ficaria
imensamente feliz de instruir seus servos, se Yonah
e Aldrean puderem estreitar relações — propus
esperançosa.
— Seria esplêndido — respondeu o rei.
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Sorri animada na direção de Dáian, que me


devolveu um olhar pleno de orgulho.
— Ficarei muito feliz também em deleitá-lo
mais tarde com um pouco de música, Rei Amir, se
for do seu agrado — disparei em seguida.
— É verdade, Sete. Sua esposa tocou
lindamente ontem. Será uma lisonja apreciar um
pouco mais — manifestou o monarca hóspede.
Dáian sorriu para mim como se dissesse
claramente: “muito esperta”.
— Por agora, gostaria de olhar mais o
estábulo. E se a senhora pudesse me mostrar a
melhoria da ração... — solicitou o Rei Amir.
— É claro — assentiu o rei anfitrião,
interrompendo.
— Enquanto isso, Dáian me acompanha de
volta ao palácio — interpelou Nazik.
Meu marido “postiço” me olhou e,
nitidamente, queria saber o que eu achava. O fitei
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de volta como quem diz: “não tem jeito, não é?”.


Dáian caminhou até a princesa e, muitos antes dele
se aproximar de fato, ou sequer respirar, ela já se
empoleirou em seu braço.
Agora sim, não gostei disso. Meu radar
podia se enganar só uma vezinha, não é?
Após isso, acabei revelando ao Rei Amir
todos os meus segredos para manter os cavalos
lindos e saudáveis. E muito sortuda por ele ter uma
paixão desmedida por equinos, ajudou a termos
muito assunto e conversarmos mais abertamente.
Quando ele me liberou, enfim, retornei ao
palácio, bem mais tarde do que gostaria e, após um
bom banho, resolvi ir à biblioteca para fuçar
alguma coisa e passar o tempo. Caminhava pelo
corredor, quando senti alguém me puxar para um
vão na parede.
— A...
Nem consegui concluir o pensamento. Um
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beijo maravilhoso cobriu meus lábios antes disso.


— Então, você gostou de se esconder comigo
em algum cantinho, não é? — soltei a pergunta
esboçando uma careta bem traquina.
— Adorei. Essa sensação de um lugarzinho
só nosso é incrível — o rei respondeu com um
sorriso maior que o céu.
Corei, mordendo os lábios.
— Tenho uma notícia maravilhosa. Mais
tarde, Amir e eu nos reuniremos para discutir os
termos da aliança.
— Não acreditoooooo! — comemorei,
abraçando-o.
— Tenho certeza de que, com essa aliança,
Éfer não se atreverá a declarar guerra. Enquanto
isso, descobriremos e acabaremos com qualquer
operação secreta que esteja intentando — asseverou
confiante.
— Graças a Deus! — festejei.
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— Acha que seus pais vão gostar de mim? —


indagou deixando a insegurança nítida pelo gesto
estranho com as mãos.
— A minha mãe vai te adorar, com certeza
— afirmei, sorrindo.
— E o seu pai?
— O que faria com o namorado de nossa
filha?
— Provavelmente o jogaria num ninho de
Célis.
— Então, a sua sorte é que no meu mundo
não existem Célis. Mas meu pai vai pensar em
alguma coisa.
Dáian sorriu, mas, no fundinho, sabia que
devia se preparar para conhecer o futuro sogro.
— Tenho de ir agora, que tal pastéis para o
jantar? — insinuou interesseiro.
— Engraçadinho, você, né? Mas tem razão, a
ocasião merece pastéis para comemorar — declarei
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sorrindo.
— Depois da reunião conversamos, então —
despediu-se beijando-me.
— Até depois.
Passei o resto da tarde na biblioteca distraída
com alguns registros de Ralifax referentes ao pai de
Dáian. Comecei intrigada com a informação de que
falecera aos setenta e seis anos. Se Dáian tinha
dezenove na época, ele tinha idade para ser avô do
atual rei, e não pai. Pesquisando um pouco mais as
informações disponíveis e ao estabelecer uma
conexão com alguns dados, inclusive financeiros,
descobri o motivo.
O Rei Seis havia feito pagamento de altas
quantias à boa parte da nobreza para que esperasse
o máximo pelo herdeiro, gerando uma reação em
cadeia no cofre real, refletindo sobre impostos e
empobrecendo boa parte da população.
— Não imaginei que se interessasse por esse
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tipo de informação, minha rainha.


— Rali.... me achou aqui, é? — questionei
enquanto fechava os pergaminhos.
— Se quer saber sobre os feitos dos reis,
sugiro que veja os do Rei Sete ou do Rei Um, Dar,
o magnífico. Ele tem alguns feitos interessantes —
aconselhou, sorrindo.
— Rali, me diga. O Rei Seis só teve Dáian
quando não tinha mais nenhum subterfúgio para
adiar, não é?
— Só quando o conselho interveio.
— Ele odiava a ideia de Dáian lhe tirar o
trono, estou errada?
— Mais que qualquer coisa. O Rei Seis era
bastante forte. Tinha muito vigor quando faleceu.
Odiava a ideia de se aposentar.
— Detestava a aposentadoria e o herdeiro,
não é?
— Minha senhora, por que não falamos de
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coisas mais animadas. Como os preparativos de sua


coroação?
— Nem me lembre disso, Rali. Que tal irmos
para a cozinha? O rei fez um pedido especial para o
jantar de hoje — lembrei, levantando-me.
— Já até imagino... Ele quer aquela comida
estranha que a senhora preparou uma vez —
concluiu, levando a mão à testa.
— Exatamente — concordei, abraçando-o e
seguindo para o corredor.
Ralifax sorriu e me acompanhou contente.
— Nossa, Rali. Preciso preparar uma lista de
coisas que tenho de trazer de casa — exclamei,
mais falando comigo mesma do que com ele.
Tinha me esquecido completamente desse
detalhe, mas existem algumas facilidades modernas
sem as quais a vida de uma garota se torna um
verdadeiro martírio. Absorvente era o número um
da lista, sem dúvida nenhuma.
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— Rali, acha que Dáian se oporia a um


pequeno financiamento?
O servo gargalhou.
— Minha senhora, o mestre lhe compra até a
lua do seu mundo se a senhora lhe pedir.
Jamais em minha vida pensei que, depois de
casada, não teria um emprego e, por consequência,
o meu próprio dinheiro. Além disso, a viagem a
Londres me deixara tão pobre que eu não
conseguiria comprar nem uma caixa do meu
desodorante favorito. Sempre tive aversão à ideia
de ser sustentada por um marido rico. No entanto,
se Dáian fosse esse “marido rico” até que não soava
tão ruim assim.
Ralifax e eu continuamos caminhando pelos
corredores quando o rei passou por nós, sem sequer
notar a nossa presença. Estava furioso.
— Minha senhora, ele não me enxergar é até
normal, mas não notar a senhora? Alguma coisa
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muito grave aconteceu — alertou o servo,


apreensivo.
Olhei para o preceptor, ainda hesitando se
deveria verificar o que havia acontecido ou deixar
Dáian esfriar a cabeça. Resolvi checar o que
sucedera, com Ralifax cobrindo minha retaguarda,
e rezando para que o Murphy não tivesse atacado
outra vez.

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Mensagem

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D áian bateu a porta do


escritório e, por isso,
esperei alguns instantes para reabri-la. Girei a
maçaneta com cuidado e empurrei um pouquinho
uma das metades da porta, colocando-me bem
devagar entre elas. O rei estava debruçado sobre a
mesa com a respiração pesada e compassada.
— Meu amor, tudo bem? — perguntei,
enfim.
Dáian ergueu a fronte ao ouvir minha voz.

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— Oi, meu amor. Está sim — respondeu,


endireitando-se sobre a cadeira.
— Posso entrar?
— É claro — disse, estendendo-me uma das
mãos.
Ralifax se colocou entre a metade da porta,
onde eu estava, enquanto eu me aproximava do rei,
dando um passo de cada vez.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei da
forma mais serena que consegui.
Nesse instante, um servo bateu e adentrou no
escritório.
— Senhor, o Rei Amir deseja saber se
retornará à reunião — indagou o empregado, com
os olhos arregalados.
— Não. Expulse os dois daqui — estrondeou
o rei.
Voltei-me para Ralifax assustada, fazendo
um gesto negativo, na sequência. O servo hesitou
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por alguns segundos e, após refletir atônito,


assentiu discretamente, acompanhando o outro
servo.
— Meu amor... — comecei com cuidado.
— Não tem acordo — interrompeu-me
resoluto.
— Mas... talvez... se pensarmos com mais
calma... — insisti.
— Não tem aliança, Lin. Não concordo com
os termos deles — decretou.
Nesse momento, ouvimos alguém bater à
porta.
— Entre — ordenou Dáian, sem paciência.
— Senhor, chegou uma mensagem urgente.
— Dê-me.
— Ah... — hesitou o servo — é para a
senhora. É do Comandante Lui.
Dáian ergueu-se da cadeira sobremaneira
irado.
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— Ele acha que pode mandar mensagens


para a minha esposa, agora? — vociferou com uma
fúria que, graças a Deus, testemunhei em poucas
ocasiões.
— Senhor, é que... — tentou explicar o servo,
gaguejando e tremendo — junto com a mensagem,
vieram alguns soldados... feridos — completou.
— E onde estão? — perguntei aflita, pegando
a mensagem das mãos do homem.
— Por aqui, senhora — mostrou-me o
caminho.
Corremos acompanhando o servo até a
entrada do palácio e cerca de dez soldados feridos
eram retirados do veículo, tracionado por Sairens.
Nenhum deles conseguia andar, aproximei-me e
constatei queimaduras pelo corpo dos feridos. Abri
a mensagem de Lui.

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Meu Deus! Uma nuvem? Como assim?


— Senhora, outros podem se aproximar? Ou
estes homens devem ser separados, como da outra
vez? — questionou o servo ajudante.
— Podem se aproximar. Chamem mais
curandeiros e os levem para um lugar onde possam
ser tratados — solicitei.
— Agora mesmo, minha senhora.
Tão logo acomodamos os feridos, passei a
observá-los atentamente sem parar de pensar no
que Lui havia dito. Além das queimaduras, o
sistema respiratório mostrava-se deveras
comprometido. Só uma coisa no mundo poderia ter
feito algo como aquilo. Meu corpo todo tremia só
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de cogitar. Eu não sabia o que era pior, saber que


Éfer tinha bombas de gás, mostarda, ao que tudo
indicava, ou constatar a queimadura de mais de
trinta por cento nos corpos daqueles soldados.
Quantos devem estar assim na fronteira?
Senhor, nos ajude!
— O que o soldado falou? — inquiriu o rei.
— Amor, é possível eu enviar uma
mensagem? Uma mensagem rápida? — pedi, sem
adentrar em mais explicações.
— Autorize — disse o rei ao servo.
— Sim, Vossa Majestade.
Peguei um papel e uma caneta depressa.

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Entreguei o bilhete ao servo rapidamente,


antes que Dáian pudesse perguntar ou querer lê-lo,
e ordenei que o remetesse imediatamente.
— Nem me mostrou? — reclamou o rei.
— Me perdoe, amor. Estou um pouco
agitada, e não era nada demais. Só o instruí sobre
os cuidados com os feridos — menti, não que eu
goste de mentir, mas o que fiz poderia salvar
muitos soldados na fronteira.
— O que é isso, amor? Como esses soldados
chegaram a esse estado? — quis saber o rei,
preocupado.
— É uma arma. Éfer está usando isso contra
as tropas da fronteira. Talvez seja a arma a que se
referiu aquele sequestrador.
— Que tipo de arma consegue fazer uma
coisa dessa?
— Uma terrível. Uma do meu mundo. Só não
tem como saber se Éfer está contrabandeando ou
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produzindo isso — expliquei, abaixando minha


cabeça e correndo minhas mãos por meus cabelos.
Dáian mirava os soldados estarrecido,
enquanto aquela fúria implacável de guerreiro
acendia em seus olhos, um furor que só se aplacaria
quando estivesse com o rei inimigo em suas mãos.
— Ralifax! — Dáian saiu chamando.
Corri atrás dele.
— Amor, talvez devesse reconsiderar sobre a
aliança...
— Não, Lin! — encerrou a questão.
— Senhor, está me chamando? —
interrompeu o servo, esbaforido.
— Quero uma reunião com o conselho de
guerra e quero para ontem — decretou.
— Sim, Vossa Majestade.
Puxei Ralifax uns instantes, assim que Dáian
prosseguiu resoluto em direção ao salão de
reuniões.
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— Rali, o que houve com o Rei Amir? —


sussurrei.
— Minha senhora, isso pode custar meu
pescoço, mas fiz o que ordenou. Os realoquei, ele e
a Princesa Nazik, nos aposentos com uma desculpa.
— Ótimo.
— Acha que conseguirá convencer o mestre?
— Temos de fazer isso.
Ralifax seguiu ao encontro do rei, ao passo
que eu fui cuidar dos meus novos pacientes.
Infelizmente, ao cair da madrugada o que eu temia
aconteceu, pois seis dos dez soldados já estavam
mortos e os outros quatro não sobreviveriam até o
amanhecer. O palácio transformou-se numa
verdadeira zona de apreensão e correria, com os
mensageiros indo e vindo apressados. Vi muitos
Sairens também.
O conselho de guerra ficou reunido por horas
a fio. Entretanto, não havia nada que pudesse ser
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feito contra as bombas de gás. A melhor solução, se


é que havia alguma, era uma aliança com o país
vizinho e torcer para que isso intimidasse a hiena a
ponto de fazê-la recuar.
Se Éfer atacou desse jeito, logo após o baile,
devia estar convicto de que o Rei Amir não
concordaria com uma aliança. No entanto, o mais
estranho havia sido que Dáian não anuíra aos
termos. Por qualquer ângulo que se analisasse a
situação, o cenário revelava-se nebuloso demais.
Eu tinha certeza de uma única coisa: era
preciso convencer Dáian a aceitar o pedido do Rei
Amir independente do que fosse. Éfer tinha um
exército digno de “Senhor dos Anéis” e, ainda,
armas de destruição em massa. Eu jamais deixaria
meu rei marchar contra isso. Se a cartada sobre a
aliança desse certo, e a notícia fizesse o exército
retroceder, o meu marido “postiço” ia ter de aceitar
o acordo de qualquer maneira.
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Será que as palavras mágicas serviriam para


isso?
Pela manhã, os soldados que sobraram
faleceram e nem tivemos tempos de lhes dar um
velório digno. Mais e mais pessoas feridas vindas
das cidades fronteiriças começaram a chegar ao
palácio com idênticas queimaduras e descrevendo o
evento da mesma forma que Lui. Para piorar, Éfer
também atacara civis. Enquanto alocava as pessoas
e reunia todos os curandeiros disponíveis, avistei
uma figura muito familiar.
— Jason, o que aconteceu? — indaguei,
correndo até ele.
— Eu não sei bem como foi. Nos atacaram
com bomba de gás. Avisei quantos pude e do jeito
que deu, mas foi tarde — esclareceu ofegante.
— Minha senhora, o seu amigo salvou boa
parte da vila. Não sabíamos o que era. Foi ele quem
mandou as pessoas correrem. Trouxemos os feridos
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para o palácio, não sabíamos mais para onde ir —


informou o prefeito.
— Fizeram muito bem — asseverei — Rali,
acomode-os, por favor — prossegui, instruindo o
servo.
— Sim, minha senhora.
Não vou mentir. A pior parte de tudo aquilo
foi ver as crianças sendo retiradas das carroças,
pois muitas estavam com mais de trinta por cento
do corpo queimado. Além disso, foi muito
angustiante separar aqueles que possuíam maior
chance de sobreviver daqueles com menor chance,
até porque o número destes últimos era muito
superior ao dos primeiros.
Cuidei de quantos pude e, quando me dei
conta, meus braços e minhas roupas já estavam
tingidos de vermelho. Havia vermelho até no meu
rosto. Diante do tamanho daquele sofrimento, nem
pensei direito.
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Caminhei pelos corredores do palácio sob os


olhares espantados de servos, soldados,
mensageiros, escribas e quem mais quisesse olhar.
Abri as duas metades da porta do salão de reunião
e, imediatamente, os presentes voltaram a atenção
para mim, mas eu procurava apenas por um.
— Pelos deuses, ela está banhada em... —
exclamou uma voz, sem, contudo, concluir o
pensamento.
— Lin, o que aconteceu? Você está ferida?
— ouvi a pergunta aflita daquele a quem eu
procurava.
— Sei que o que vou pedir será inoportuno e
até impertinente, mas gostaria de pedir licença aos
senhores para falar com o rei a sós — bradei, sem
desviar os olhos de Dáian.
Acho que eu devia estar horripilante mesmo,
do nível de Carrie — A Estranha, porque os
nobres, os oficiais e os conselheiros levantaram-se
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prontamente e deixaram o salão sem dar um pio.


Ou, talvez, tenha sido meu jeito de falar, vai saber.
— Meu amor, o que aconteceu? —
questionou o rei, vindo correndo ao meu encontro,
mas antes que chegasse a mim, fiz um gesto para
que se detivesse.
— Não sei o que o Rei Amir lhe pediu, mas
vai ter que aceitar — assegurei, mais firme do que
achei ser possível.
— Não! Não tem acordo. Já ordenei que
expulsassem aqueles dois daqui — vociferou.
— Eu pedi a Ralifax que os segurasse aqui
mais um pouco — confessei, sendo sincera.
— E é claro que ele obedeceu a você e não a
mim — deduziu, meneando a cabeça.
— Só quando você não está pensando direito.
— Não preciso pensar. A resposta é não e
ponto final — decretou.
— Tá bem... Vamos do começo. O que eles
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querem assim de tão terrível?


Nesse ponto da conversa, Dáian sentou-se e
abaixou o olhar.
— Já não importa. A resposta é não —
pronunciou, após pensar um pouco.
— Me diz o que é — pedi, indo até ele, já
mais carinhosa, ao perceber que as tratativas com
Aldrean haviam sido mais duras do que eu
imaginara.
Dáian elevou o olhar em minha direção, e o
rosto não escondia a escolha criteriosa e apreensiva
das palavras. Meu coração disparou.
Será que pediram que fizesse algo que vai
contra seus princípios?
Ele me fitou sem desviar o rosto por alguns
instantes ainda ponderando se deveria contar.
— Eles querem a unificação dos dois países
— revelou, ainda fixo em mim.
Nossa, são ambiciosos mesmo!
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— Bom... — comecei cautelosa — talvez não


seja tão ruim... — prossegui, pensando em um jeito
de mostrar a situação por novo ângulo.
— Pelo casamento — Dáian finalizou,
interrompendo-me.
Meu corpo petrificou na mesma hora. A
sensação que veio a seguir foi a mesma de quando
os comissários do avião pediram para que
ficássemos em posição de impacto. Meus lábios se
moviam, mas o som não ecoava.
— E eu... o que vou ser? Sua concubina? —
disparei, assim que recobrei os sentidos, tentando
me apoiar em algum móvel, já que minhas pernas
estavam cedendo.
— Não, meu amor — Dáian disse,
levantando-se e me abraçando.
Desta vez, não consegui afastá-lo, apesar de
estar toda suja.
— Eu já disse que minha resposta é não. Pedi
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que Amir propusesse qualquer outra coisa, mas ele


está resoluto. Na verdade, é Nazik quem está
irredutível e Amir a apoiará cegamente, pelo que
vi. Eles querem a unificação de Yonah e Aldrean
pelo meu casamento com Nazik. Não aceitaram
outra condição.
Abracei Dáian com força. Ao ouvir aquilo, eu
não conseguia articular nenhuma palavra, nem
respirar nem pensar. Até manter o coração batendo
estava difícil.
— Meu amor, por que está tremendo assim?
Fique tranquila, jamais aceitarei isso — reafirmou,
beijando-me a testa.
Nesse momento, alguém bateu à porta.
— Meu senhor, trouxeram mais aldeões das
regiões fronteiriças. Já está ficando difícil alocar
todos os feridos. A não ser que comecemos a alojá-
los nas as alas afastadas — informou Ralifax, com
a voz embargada.
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— Aldeões? — exclamou o rei, voltando-se


para mim.
Encarei meu rei sem ter a menor ideia do que
dizer.
— O senhor esteve ocupado por tantas horas
que não pudemos informar-lhe de tudo —
esclareceu o servo.
— Nas alas afastadas, não. Isso dificultará o
trabalho dos curandeiros. Coloque o povo nos
corredores e onde puder, do modo mais confortável
possível. Peça, também, para trazerem curandeiros
das cidades e vilarejos vizinhos, por favor, Rali —
solicitei.
— Sim, minha senhora.
— Diga-lhes, também, que eu já estou indo.
— Sim — assentiu, o preceptor.
— Ralifax, chame os conselheiros de volta.
— Sim, meu senhor.
— Meu amor, cuide do povo, está bem?
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Balancei a cabeça afirmativamente, ainda


perplexa. Deixei o salão de reuniões
completamente atordoada. Troquei de roupa antes
de retornar ao meu trabalho, mas não adiantou
muito, pois, logo fiquei tingida de vermelho
novamente. O mais triste eram as crianças, e sedá-
las era a única maneira mais indolor de suportarem
as queimaduras.
Dáian permaneceu por todo o dia em
reuniões e mensagens. No entanto, era questão de
tempo até que ele viesse com a notícia de sua
partida para guerra. Num ato impensado, peguei
uma das crianças e saí pelos corredores até chegar
ao aposento do Rei Amir. Entrei sem bater,
praticamente chutando a porta.
— Majestade, por tudo o que lhe é mais
sagrado, veja o que Éfer está fazendo com o povo
de Yonah — supliquei, mostrando-lhe a pobre
criança em meus braços.
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O rei não suportou olhar para o pequenino e


acabou por desviar o rosto.
— O que Éfer deseja não está em Aldrean,
minha senhora — interpelou a Princesa Nazik, com
tanta frieza que suas íris azuis se assemelharam a
pedras de gelo.
— O que Éfer deseja vai dizimar esse mundo
inteiro — aleguei.
Nazik se aproximou lentamente, encarando-
me de cima como se diante de si estivesse um
verme e não uma mulher desesperada. O
sofrimento da criança em meu colo parecia nem
arranhar sua postura de ferro.
— Se a ameaça é tão grandiosa quanto diz, o
que está esperando para abrir mão de Dáian? —
indagou, lançando-me um olhar de serpente dez
vezes mais perverso do que aquele que outrora eu
havia recebido de Nahina.
Tudo o que pude fazer foi engolir em seco e
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encarar minha verdadeira inimiga, que não era lá


grande coisa. Contudo, era inegável que possuía
uma vantagem e tanto em suas mãos.
— E tire isso daqui — mandou, olhando para
o pequenino.
Eu queria mostrar o “isso” a ela, mas já
estávamos em guerra com Karur e não podia
provocar uma guerra com Aldrean também. Assim
que me virei, vi Dáian esperando à porta do
aposento.
Essa não!
Respirei fundo e prossegui para fora.
— Acho bom não demorar muito, senhora.
Meu pai e eu não vamos esperar para sempre —
destilou a peçonhenta.
Nem olhei, simplesmente prossegui o meu
caminho.
Enquanto percorríamos os corredores, senti
que o meu marido “postiço” queria censurar minha
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atitude, mas me preocupei em colocar o menino de


volta em seu leito. O pobrezinho já estava
padecendo demais, e eu, sem pensar, só aumentei o
seu sofrimento.
— Por que fez isso, Lin? — questionou o rei,
assim que coloquei o pequeno na cama.
— Não sei. Desespero, talvez. Só não
imaginei que ia encontrar duas rochas —
justifiquei, sentando-me.
— Vou expulsar os dois daqui, agora! —
declarou o rei, voltando-se para a porta.
Segurei a cauda do seu blazer, sem pensar.
— Everlin, eu vou expulsar os dois. Não há a
menor chance de eu aceitar o que estão propondo
— asseverou Dáian, e cada palavra saiu pausada e
firme.
Meus olhos ergueram-se lentamente na
direção dele. Em seguida, fiz um gesto afirmativo,
mas, eu não sabia bem o porquê, minha mão
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continuou agarrada ao tecido de seu traje, e as


lágrimas, que relutei tão corajosamente para conter,
extravasaram de uma só vez.
— Lin, meu amor, não chore — consolou-me
o rei, vindo até mim e acariciando meu rosto.
Cedi ao toque de sua mão, querendo-a cada
vez mais.
— Lin, por favor, não faça isso. Não me faça
acreditar, nem por um segundo, que você estaria
disposta a me convencer a aceitar esse acordo —
Dáian pediu ofegante, dando-me um beijo urgente.
Neguei, assim que terminamos o beijo.
— Estamos muito cansados, não é?
Trabalhando há horas e sem dormir. Talvez seja
isso que esteja fazendo você pensar que uma
loucura dessa seja a melhor solução. Mas não
alimente esses pensamentos, está bem? — pediu
enquanto arrumava meus cabelos atrás de minhas
orelhas.
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Peguei a mão dele e a trouxe para o meu


rosto, roçando a minha pele entre os seus dedos.
— Eu não posso viver sem você, então, não
pense bobagens — brincou.
— Tem razão — minha voz, enfim, saiu.
Dáian abriu um sorriso abatido.
— Amor, se estamos mesmo em guerra com
Karur, devíamos pensar num jeito de fechar o
templo. Jason é engenheiro. Talvez, se você lhe
oferecesse um bom incentivo...
— Uma boa quantia você quer dizer —
interrompeu-me dando um sorriso torto.
— Isso. Talvez ele possa fazer um projeto
para fechar o lugar, sem mexer na estrutura da
montanha.
— Amor, provavelmente não seja tão difícil
fechar.
— Daqui para lá, não, mas de lá para cá, sim.
Temos de fechar de um jeito que não abram de lá
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para cá, porque meu mundo tem muitos recursos.


Dependendo da maneira que for fechada, reabrir
não será problema para o meu povo, entende?
— A tecnologia do seu mundo é
surpreendente mesmo — concordou.
— Meu senhor, os generais o aguardam —
interrompeu um servo.
— Já estou indo — respondeu o rei.
Suspirei com pesar, depois de tudo aquilo, eu
não queria permanecer longe dele um minuto
sequer.
— Está bem, meu amor. Falaremos com seu
amigo. Dinheiro não é problema. Vai ficar mais
tranquila assim? — indagou acariciando meus
cabelos.
Assenti com um gesto, porque minha voz e
eu ainda estávamos em guerra.
— Droga! Não sei se fiz bem em te contar
sobre a proposta. Só não queria que pensasse que
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estou arriscando a vida de meu povo por pura


insensatez. Aldrean me pediu algo que não posso
oferecer. Por favor, meu amor. Não pense besteiras,
como me deixar, está bem? — discorreu,
depositando um beijo carinhoso em minha testa e
partindo com o servo, em seguida.
Deixá-lo? Deixar Dáian? Só de pensar nisso,
meus sentidos queriam desaparecer, talvez para
sempre.
Ocupei a minha mente com tudo que pude.
Não pensar era a prioridade. Prioridade absoluta. A
lógica tinha de permanecer a quilômetros de mim.
Nem sabia dizer ao certo quantas horas fiquei sem
comer direito, sem dormir e sem tomar banho, mas,
no mínimo, foram umas setenta duas. Cada vez
chegavam mais feridos.
E o mais estranho, Éfer não invadira o
território inimigo, pelo menos não se tinha notícia
disso. Ao que tudo indicava, sua estratégia se
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concentrou em mostrar o poderio de seu arsenal.


Provavelmente, pretendia a rendição de Yonah,
sem invasão. Isso era um péssimo sinal porque ou
possuía uma quantidade considerável de bombas ou
as estava produzindo. Se tivesse poucas em
estoque, o mais inteligente seria usá-las contra o
exército inimigo em batalha.
Pelo amor de Deus, não pense!
Reclinei-me em uma cadeira para descansar
um pouco quando ouvi o brado de um dos
curandeiros auxiliares:
— Mais feridos!
Saí para instruir os ajudantes quando me
deparei com Lui vindo pelo portão, com um dos
braços enfaixado.
— Minha senhora! — exclamou, correndo ao
meu encontro.
Lui me abraçou como se eu fosse seu único
alento no mundo e, naquele momento, não pude
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afastá-lo. Estava ferido e o horror de uma guerra


brutal estampado no semblante. Além disso, era um
amigo, então decidi corresponder ao abraço.
— Obrigado, a senhora nos salvou — ele
repetia.
— Eu?
Nem consegui perguntar o significado de
suas palavras. O comandante afrouxou o braço em
torno de mim lentamente, enquanto fixava a sua
atenção em um ponto do palácio. Segui o seu olhar,
Dáian nos encarava ao longe, rodeado por militares.
Everlin, quando é que você vai deixar de ser
a campeã das encrencas, hein?

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Salvação

L ui e eu nos sentamos
no primeiro degrau que
encontramos, onde comecei a retirar as ataduras do
seu braço. A queimadura estava bem feia e,
infelizmente, o unguento ministrado seria,
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simplesmente, um paliativo, até o corpo curar-se


por si mesmo.
— Eu tive sorte — desabafou, com pesar.
Ouvi atentamente, mas não soube o que
dizer.
— O que está fazendo aqui? Não devia estar
no comando na fronteira? — inquiriu o rei, assim
que se aproximou.
— O exército de Karur recuou assim que
espalhamos a notícia. Enviei mensagens aos outros
pontos de fronteira para que divulgassem a
informação, e logo soube que as tropas do Rei Éfer
bateram em retirada. Então, decidi enviar os feridos
e, como Vossa Majestade pode ver, também sou
um deles — respondeu.
— Que notícia? — Dáian quis saber.
Essa não!
Levei uma das mãos à testa.
— Ora, a notícia da aliança com Aldrean.
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Meu marido “postiço” fitou-me na mesma


hora. Desviei o olhar e Dáian bufou. Parecia querer
brigar comigo, mas não teve coragem.
— Por isso não quis me mostrar o bilhete? —
questionou.
— Pelo menos agora já sabemos o que Éfer
fará — aduzi com a voz quase inaudível.
— Pouco importa o que Éfer fará! — o rei
retrucou.
— O que isso quer dizer, senhora? —
indagou Lui.
— Quer dizer que não há aliança com
Aldrean — disse o rei, resoluto.
— Como assim? — desesperou-se o
comandante e, de imediato, sua respiração tornou-
se irregular.
Dáian não respondeu, somente o encarou
com uma firmeza obstinada. Ao perceber que a
resposta não viria do rei, o olhar do meu ex-
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professor procurou por mim, no entanto,


conhecendo bem o estado de seu braço, não
suportei encará-lo por muito tempo.
— Mas o Rei Amir ainda está no palácio, não
está? Pelos céus, o que falta para a celebração desse
acordo? — Lui reagiu, por fim.
— Não falta nada. Não tem acordo. E Amir
só não partiu ainda porque, com todos esses
acontecimentos, não tive tempo de ir até ele —
informou Dáian, sem abandonar a postura
inflexível.
— Não sabe o que está dizendo. Não viu o
que estamos enfrentando. Isso vem como uma
nuvem, disperso pelo ar. Não tem como correr, não
tem como se proteger nem para onde fugir. Sabe
quantas covas tivemos de cavar? E, pelo que vi
aqui, cavaremos muitas mais — exprimiu o
comandante, e cada palavra que pronunciou estava
carregada de pavor.
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Dáian suspirou, com nítido pesar.


— Lin, essa tecnologia é do seu mundo. Não
sabe um jeito de nos protegermos disso? —
perguntou o rei, voltando-se para mim.
— Inventaram máscaras e trajes, mas isso é
artefato militar, não se encontra em qualquer loja.
Também é material de uso individual, então,
mesmo que conseguíssemos, duvido que seria em
número suficiente — expliquei.
Queria dizer que, até no meu mundo, essa
arma matou muita gente, mas essa informação não
acrescentaria nada. Pelo contrário, traria apenas
mais apreensão num cenário já coberto por tamanha
escuridão.
— Majestade, firme o acordo — rogou o
comandante.
— Não — respondeu o rei, em tom austero.
— Está condenando o nosso povo! —
alardeou Lui.
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— Oferecerei até minha última gota de


sangue pelo nosso povo, mas isso eu não posso dar
— persistiu decidido.
— Minha senhora, por favor. A senhora sabe
como aquilo é terrível — Lui apelou para mim.
Apenas permaneci mirando aquele rosto
aflito e assombrado pelo horror da guerra, sentindo
lágrimas cáusticas minarem de mim. Tudo o que
pude fazer foi limpar o meu rosto em total silêncio.
— Senhora! — exclamou Lui e a inflexão da
voz era indagação e, sobretudo, de súplica.
Não consegui responder e, com certa
vergonha, tenho de confessar que não consegui
levar a conversa até o final. Deixei Lui e Dáian
sozinhos e corri, a princípio sem rumo e, depois,
para onde poderia ser útil. Uma coisa era clara: a
razão dizia, e com toda razão sem medo de soar
redundante, a aliança com Aldrean era a única
salvação de Yonah.
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Éfer ter recuado era a prova incontestável


disso. O problema era como eu ia convencer Dáian
a se casar com outra mulher? Isso ia além das
minhas forças e Dáian fora claro: daria até seu
último fôlego de vida pelo seu país. Então, o
casamento também era o único jeito de livrá-lo de
uma luta.
Mesmo assim... mesmo assim... ultrapassa o
meu limite.
Esse nem era o problema mor. A questão
crucial era: o que eu faria se ele decidisse aceitar?
Iria convencê-lo do contrário? Dar as costas para o
povo assim? Ou o deixaria casar?
Não, não, não. Tem de existir outra solução.
Caminhei entre os feridos sem saber direito
por onde começar ou para onde olhar quando senti
uma pequena mão puxar-me. Era um menino, cujo
rosto sofrera queimaduras terríveis, até mesmo os
pais não conseguiram reconhecê-lo. Ele era do
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vilarejo no qual estivéramos. Lembranças tão


felizes que se tornaram dolorosas.
— Senhora — murmurou com a voz fraca.
Aproximei-me para tentar compreender.
— Quando soltaremos pipa outra vez? —
indagou inocente, com a voz um pouco mais
audível.
Petrifiquei e minha mente se transformou
numa névoa cinzenta, incapaz de concatenar um
pensamento lógico sequer. Ainda assim, dei graças
a Deus por meu coração ter assumido o controle e
me feito capaz de depositar um beijo carinhoso na
mão do pequenino.
— Logo, logo. Você verá! — Lui respondeu
por mim.
O menino abriu um sorriso, apesar dos
ferimentos.
Meu corpo se moveu sozinho, levando-me
para longe da ala dos feridos e Lui me seguiu, até
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que não pude mais me sustentar e acabei


sucumbindo, sentando-me no chão frio mesmo.
— A senhora está bem? Há quantas horas
está acordada?
— Já nem sei — respondi aturdida.
— Precisa descansar.
— Ficarei aqui alguns minutinhos — falei,
recostando-me na parede e debruçando-me sobre
meus próprios joelhos.
— Isso não é descansar, senhora — insistiu.
— Eu devia ter matado Éfer quando tive
chance — desabafei.
— Não sairia viva de Karur. E outro déspota,
tão maligno quanto ele, teria assumido o trono.
Acredite, eu quero a cabeça de Éfer mais que
qualquer um, mas penso que a vingança pela
simples vingança não me trará paz. Quero garantir
que o que houve com Yuren não aconteça a mais
ninguém. Karur tem que cair, e não só Éfer —
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expôs, e sua expressão carregava uma serenidade


impressionante.
— Tem razão — concordei, rendendo-me.
— Precisa convencer o rei, senhora. Por
favor.
— Lui, acredite, eu não posso. Eu não
consigo — tentei explicar, entregando-me ao choro
novamente.
— Não sei por que, mas... tenho certeza de
que a senhora é a única que pode.
— Por favor, Lui, deixe-me sozinha — pedi.
— Está bem, minha senhora — assentiu, após
considerar por alguns minutos.
Não sei dizer por quanto tempo permaneci ali
sentada até ouvir a voz de Ralifax.
— Minha senhora, me perdoe por perturbá-la,
mas os curandeiros querem instruções.
Percebi, só pela entonação do servo, o que os
curandeiros queriam de mim. O gás mostarda é em
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uma das piores porcarias já inventadas pela


humanidade. Humanidade da Terra, melhor
dizendo. Eu não tinha um conhecimento tão
aprofundado do assunto, mas me lembro de ter feito
uma pesquisa razoável sobre as guerras mundiais
no colegial.
Em contato com a pele, provoca queimaduras
horríveis. Entretanto, o pior dele é o ataque ao
sistema respiratório. Qualquer pessoa que tenha
mais de trinta por cento do corpo queimado já corre
risco de morte, com o sistema respiratório
comprometido, então, nem preciso entrar em mais
detalhes.
O mais cruel desse gás, e o diferencial entre o
gás a base de cloro usado na Primeira Guerra
Mundial, é ter sido projetado para não matar
imediatamente. A morte é lenta, em maior ou
menor grau, e o propósito disso é forçar o exército
inimigo a carregar os feridos, tornando a
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desvantagem no campo de batalha muito maior.


Por que expliquei tudo isso? Porque, naquele
momento, para mim, ficou óbvio que Ralifax viera
perguntar o que fazer com os corpos.
Vou ser obrigada a concordar com a famosa
frase do personagem Cypher de Matrix porque, às
vezes, “a ignorância é mesmo uma benção”. Se eu
não soubesse de tudo isso, poderia estar tão
tranquila quanto aquele palito amarelo, a qual
insistem em chamar de princesa, simplesmente
deitada em minha cama de realeza, esperando e
dando ordens. Talvez não estivesse ali destroçada
por saber exatamente o que devia ser feito.
Às vezes, é fogo ser nerd tanto quanto é fogo
ser eu.
— Senhora, trouxeram mais feridos e os
curandeiros querem saber...
— Eu sei, Rali. Querem saber o que fazer
com os que morreram. Sei que não tem gente
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disponível para cuidar dos que se foram e dos


feridos ao mesmo tempo. Peça para colocarem os
que partiram no pátio aberto, e só começaremos a
cuidar do envio às famílias depois que os feridos já
tiverem recebido os primeiros socorros. Os vivos
são prioridade — estabeleci.
— Senhora, no pátio eles ficarão muito...
— Visíveis?
— Senhora, o rei está evitando ir à ala dos
feridos, se deixarmos o que estamos fazendo
assim... tão exposto...
— Você sabe por que o rei não aceitou a
aliança com Aldrean, Rali?
— Perdoe-me, sem querer, ouvi a conversa
entre a senhora e o rei.
— Não temos escolha. Como eu disse, os
vivos são prioridade — insisti.
— Quer mesmo que o rei veja? — inquiriu, e
o olhar de pena estava estampado, mesmo com toda
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a apreensão, luto e temor em sua feição.


— Claro que não. Mas vamos mostrar mesmo
assim — asseverei, e foi um verdadeiro milagre a
minha voz ter saído.
Uma coisa era não poder convencer Dáian a
aceitar a aliança, outra era esconder a verdade. Não
vou mentir, meu coração gritava com todas as
forças para vendar o meu rei, como naquele livro
Bird Box, para que não visse nada. Eu não tinha
bem certeza se o choque de realidade iria
convencê-lo. Conhecendo o amor de Dáian por seu
povo, a probabilidade era alta e, por isso, meu
coração sangrava tanto. Mas eu não era o sabugo de
milho que pensava ser princesa.
Para sofrer ou ser feliz, eu sou Everlin.
E se tem uma premissa que vale a pena seguir
na vida é: “nunca se perde por fazer a coisa certa”.
Se mesmo assim o rei resolvesse não aceitar a
aliança, morreríamos juntos no campo de batalha,
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disso eu não tinha a menor dúvida. E, por incrível


que pareça, essa solução, na minha ótica, era a
menos pior.
Meu Deus, a que ponto as coisas chegaram?
Ralifax fez exatamente como instruí e o pátio
ficou pior do que pensei. Naquele momento aprendi
uma lição importante: “você não sabe o quanto a
guerra é triste até estar no meio de uma”. Pelo
menos, não faz ideia de verdade.
Quando íamos dar um destino digno àqueles
que se foram, os conselheiros, nobres e oficiais do
exército começaram a deixar o salão de reuniões, e
eu sabia que o rei viria logo em seguida. A reação
foi instantânea. As altas autoridades de Yonah
pararam estupefatos diante do horror daquele
cenário funesto.
Dáian abriu caminho entre os presentes e,
assim que chegou ao pátio, ficou imóvel por alguns
momentos. Em seguida, prosseguiu lentamente pelo
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hall, mirando o mar de tecidos brancos a envolver


os mortos. Em dado momento, deteve-se em frente
ao grande número de lençóis pequenos,
permanecendo ali desolado por um tempo. Após
isso, seus joelhos cederam e o pranto veio a seguir.
— ÉFER VAI MORRER POR ISSO! —
bradou, e a promessa ressentida ecoou absoluta
pelas paredes de pedra e ouro.
Naquele momento, eu tive plena certeza de
que uma das piores coisas da minha vida é ver
Dáian chorar. Ao vislumbrar lágrimas tão amargas
da única pessoa de quem eu não suportava tal coisa,
meu corpo acabou se movendo por conta própria,
levando-me para longe dali, até desabar em uma
mureta, de onde se podia apreciar a paisagem
rústica e tranquila.
— Você fez isso, não fez? — ouvi o rei
indagar atrás de mim e sua voz estava sobremaneira
embargada.
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Respirei fundo. O dilema que nos circundava


não era só uma guerra contra uma nação, exército
contra exército e espada contra espada. Era uma
guerra entre a mente e o coração, entre o que eu
queria desesperadamente fazer e o que precisava
ser feito.
— Lin, nós podemos fazer isso. Nós não
precisamos...
— Se disser que podemos fazer isso, eu
acredito em você — interrompi — não estou
sugerindo nada, muito menos pressionando você a
tomar decisão alguma porque eu não posso e o
povo que me perdoe. Se quiser se manter firme na
decisão que tomou, eu te apoiarei. Estarei sempre
ao seu lado, e você me terá de todas as formas que
quiser. Mas precisará estar ciente de duas coisas. A
primeira é o que acabou de ver. A segunda é que
não existe a menor possibilidade de você partir para
guerra sem mim. Eu irei com você, mesmo contra
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sua vontade, e se a nossa hora chegar, a última


coisa que você verá serei eu, assim como meu
último suspiro será ao seu lado, como deve ser.
Esses são meus termos — discorri, reprimindo não
só as lágrimas, mas a vontade urgente de pressionar
meus lábios nos dele.
Dáian ouviu atentamente cada palavra, em
seguida, passou a mirar o horizonte com uma
expressão imersa em pensamentos, como outrora eu
já testemunhara. O mundo estava sobre seus
ombros, e eu não podia fazer absolutamente nada
para ajudá-lo. Queria abraçá-lo, aninhá-lo junto a
mim e acariciar seus cabelos, mas deixá-lo sozinho
para pensar com clareza era o melhor a ser feito.
Eu já não podia ajudar o povo, não podia
ajudar ninguém nem a mim mesma. Ordenei aos
líderes da ajuda humanitária que prosseguissem
com o sistema de trabalho e decidi tomar um
banho. Após, meus pés foram sozinhos para o meu
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quarto porque eu já previa o martírio até Dáian


decidir vir me ver. A seguir, passei um bom tempo
mirando o nada.
A razão, às vezes, pode ser definida como
“filha de uma égua”. Ela vem de súbito e nos faz
agir como deveríamos. Depois vai embora e nos
força a lidar com a emoção, a qual insiste em
atormentar com a ideia: “por que você fez isso?”.
No fim das contas, tentei dormir um pouco,
mais com a intenção de forçar meu cérebro a parar
de pensar, mas não consegui. Fiquei sentada perto
da janela admirando aquele planeta gigante e
pensando em como as coisas mudam. Quem você
odeia pode se tornar um amigão. Detestei tanto
aquele corpo celeste na primeira vez em que o vi e,
agora, ele me consolava, quase como se realmente
pudesse me ouvir. Ouvir meus pensamentos e
minhas preces.
Não queria que Dáian fosse para uma guerra,
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não queria que mais ninguém morresse, não queria


ser obrigada a viver sem ele, não queria que ponte
de Einstein-Rosen caísse em mãos erradas e não
queria um apocalipse de jeito nenhum.
O grande problema é que nem sempre
podemos ter o que queremos ou não ter o que não
queremos. E, por mais difícil que fosse admitir, a
felicidade de duas pessoas contra a morte de
milhares inocentes era uma conta fácil de fazer.
Dolorosamente fácil.
Ainda assim uma pequena chama de
esperança insistia em acreditar que Dáian
apareceria a qualquer momento e diria que
lutaríamos juntos, para vencer ou morrer. Só não
me perguntem se eu faria isso no lugar dele. Aliás,
a ideia de estar no lugar de Dáian era uma tortura,
até na imaginação.
No fundo esse era o meu desejo, não me
separar dele até a morte, mesmo se ela viesse muito
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antes do esperado.
Mas se eu tivesse o poder de salvar a vida
dele, eu não o faria?
Muito provavelmente, não hesitaria um
instante sequer.
Nesse momento, ouvi alguém bater à porta.
Meu sangue gelou, alguma coisa dizia que a hora
da verdade havia chegado. Virei-me na direção da
porta e Ralifax entrou devagar. O olhar assustado, o
andar compassado e até a respiração entrecortada
revelavam o propósito de sua vinda.
Era evidente o que estava por vir. Meu
coração disparou e senti minha própria força esvair-
se de mim, abandonando-me para agarrar-se ao
vento e fugir, desertora, da maré de desventuras.
Mesmo que eu soubesse, mesmo que estivesse
estampado em seu rosto, eu tinha de ouvir dos seus
lábios.
— Minha senhora, o rei pediu para lhe dizer
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que...
Respire, respire... apenas respire...
— Que...
Não importa como, continue respirando.
— Que ele decidiu aceitar a aliança com a
nação de Aldrean.
Minhas pernas perderam a força na mesma
hora. Meu corpo entorpecido desabou, e nem senti
o impacto do chão contra os meus joelhos. A
seguir, as lágrimas vieram em profusão, num
desespero descontrolado. Inspirei profundamente,
mas o ar parecia ter deixado de existir. Minha visão
ficou turva, meus sentidos estavam me
abandonando.
— Não... não... não — comecei a repetir sem
parar e me sentindo completamente fora da
realidade.
— Minha senhora, por favor — suplicou
Ralifax, vindo ao meu encontro e segurando-me
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pelos ombros.
— Não... não... não... — continuei repetindo
entorpecida.
Senti como se o mundo físico estivesse se
desintegrando, como se meu corpo houvesse sido
empurrado para um abismo escuro e sem fim. E o
que me restava era apenas o vazio. Sombrio,
silencioso, interminável e, sobretudo, aterrorizante.
Ralifax me sacudiu, na tentativa de me trazer
de volta.
— Senhora, acredite em mim. Todos nós
dependemos mais da sua força do que da do mestre.
Se for até ele agora e disser que não é isso o que
quer, ele desistirá no mesmo instante, sem
pestanejar nem pensar duas vezes. Tenho quase
certeza de que só está disposto a aceitar o tratado
por medo de encontrá-la no campo de batalha. Por
isso eu lhe imploro, por tudo o que mais ama,
minha senhora, salve-nos! — rogou o servo,
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olhando bem dentro dos meus olhos.


Suas mãos tremiam, estava em agonia.
Quando Ralifax terminou, não sei bem o
porquê, mas a imagem de Joen veio a minha mente
e, na sequência, a de Jerrá e, depois, a dos dois
juntos naquela felicidade colorida e cheia de paz.
Também sobreveio a lembrança dos irmãos de Lui
e das plantações de Éden. Das pipas, das marmitas
e do festival.
No fim, surgiram as imagens das lanternas
subindo ao céu, como estrelas, numa magia
encantada e, ao mesmo tempo real, com um
significado tão profundo e capaz de emocionar o
mais poderoso dos homens. Eu queria que a Jo
visse aquilo algum dia. Queria que aquele
pequenino, embora desfigurado pela maldade de
um tirado, um dia, novamente, elevasse sua pipa, a
mais linda de todas, até o céu, mesmo não sendo eu
a lhe fazer companhia.
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Só então notei Carin, em pé, aguardando na


entrada.
— Digam ao rei... — respirei.
Tinha de sair.
Por favor, Deus. Dê-me força!
Vamos, diga!
— Digam ao rei — tentei prosseguir.
Diga!
— Digam ao rei... que eu vou embora — falei
enfim, ainda me forçando a respirar e suplicando à
minha alma para não desertar, do mesmo modo
como fizera a minha força infiel.
Com pesar, Ralifax fez um gesto e Carin
assentiu, não ocultando as próprias lágrimas. Em
seguida, o preceptor me abraçou, envolvendo-me
em um reconforto paternal aconchegante, mas
incapaz de fazer desaparecer aquele sentimento
amargo, o qual me feria sem a menor piedade.
Então, o pranto voltou. Violento, dolorido,
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sufocante, do tipo que eu conhecia muito bem. Tão


bem que me fazia ter calafrios, fazia-me querer
correr e correr, sem rumo e sem ter aonde chegar.
Dá outra vez já me despedaçou por completo, a
ponto de distorcer minha personalidade.
O que iria sobrar de mim agora?
Aquela era a terceira vez que eu chorava
como se o peso mundo inteiro estivesse sobre meus
ombros. E o mais curioso, em todas elas, Dáian
fora o motivo.
Entre lágrimas e soluços, uma canção surgiu
em minha memória. Tão nítida e vívida, como seu
eu quase pudesse ouvi-la tocando em meu celular
ao lado da minha cama, a canção Even Angels Fall
do filme Dez coisas que eu odeio em você.

And it's a secret that no one tells


One day it's heaven one day it's hell
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Its no fairy tale take it from me


Thats the way it's supposed to be
You will fly and you will crawl
God knows even angels fall

Nunca em minha vida um trecho de uma


canção fez tanto sentido.

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Tratado

A dormeci nos braços de


Ralifax e, quando
despertei, já era de manhã. Pela primeira vez
naquele planeta me senti compleamente perdida,
sem saber ao certo o que fazer nem aonde ir. Eu
tinha consciência de que podia ser útil retornando
ao trabalho como médica, mas, sinceramente, não

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tive coragem, muito menos ânimo. Estava,


literalmente, em frangalhos. E mais, se eu
encontrasse com o rei, não fazia a menor ideia do
que poderia acontecer. Então, resolvi permanecer
no quarto.
— Senhora, posso entrar? — ouvi Ralifax
chamar.
— Sim, Rali, entre.
— A senhora está bem? — perguntou o
servo, tão logo adentrou.
— Defina bem — devolvi.
O servo tentou sorrir.
— Rali, sei que ainda tem muito a ser feito
aqui no palácio, mas eu gostaria de... — respirei —
ir para casa de uma vez — pedi, segurando minha
alma porque, agora sim, ela queria escapulir e
nunca mais voltar.
— É claro, minha senhora. O mestre apenas
solicitou que permaneça até a assinatura do tratado
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— esclareceu Ralifax, tentando, bravamente,


segurar a nítida vontade de chorar.
Quando ele pronunciou a palavra “mestre”
foi como se alguém tivesse enterrado algo bem
afiado em meu peito.
— E quando vai ser isso? — perguntei,
tentando recobrar a noção das coisas.
— Hoje à tarde — disse já com a voz mais
firme.
Respirei, respirei com força.
— Tudo bem, vou arrumar minhas coisas.
— Vou preparar uma escolta para levá-la de
carruagem até o templo e, se a senhora me permitir,
gostaria de acompanhá-la pessoalmente.
— É claro, Rali — concordei, abraçando-o.
Ralifax secou rapidamente as lágrimas
fujonas.
— Não se preocupe com nada. Todo o resto,
os curandeiros, servos e soldados estão cuidando.
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— Que bom, tudo vai se ajeitar agora —


afirmei, engolindo o nó na garganta.
— Eu sinto muito, minha senhora —
compadeceu-se.
— Tudo bem, Rali. Essas coisas acontecem
— falei, entretanto o conformismo das palavras era
totalmente incompatível com o desespero da voz.
A quem eu queria enganar, o servo ou a mim
mesma?
— Obrigado, minha senhora. Por tudo! —
agradeceu o preceptor, e os olhos turvaram úmidos.
Também acabei me rendendo ao choro,
dando-lhe outro abraço.
Para que disfarçar a tristeza? Pessoas ficam
tristes o tempo todo. É como dizem, “faz parte”.
— Vou indo cuidar dos preparativos —
explicou o servo, secando os olhos.
— Espere, Rali.
Peguei o celular e, graças a Deus, a bateria
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ainda estava em noventa e cinco por cento.


— Diga “x” — pedi, apontando o aparelho
em nossa direção.
— Senhora, então, assim são feitas as
imagens?
— Você também viu minhas fotos?
— Claro. A senhora não pretende levar suas
coisas de volta, pretende? O mestre já se apegou e...
— tentou pedir o servo, sem conseguir completar o
pensamento.
Pensei por alguns instantes.
— Não, Rali. Claro que não. Vou levar só o
que tenho aqui no quarto mesmo — tranquilizei-o.
Apontei novamente o telefone para fazer o
registro, e Ralifax esboçou um sorriso triste. Minha
cara também não estava das melhores. Sem querer,
meus dedos correram pela tela e trouxeram à tona
as fotos do meu príncipe encantado. Meu corpo
todo começou a tremer e as lágrimas ressurgiram.
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— Não, minha senhora. Por favor — rogou o


servo, acolhendo-me nos braços.
Desliguei o aparelho correndo.
— Tudo bem, Rali. Eu vou ficar bem —
asseverei, sem saber ao certo a quem conseguiria
convencer com tamanha falsidade.
Logo que o tutor se retirou, passei a arrumar
as minhas coisas. Eu não levaria quase nada,
somente a roupa do corpo, minha “espada-
presente”, o caderninho, minha pulseira e o celular.
E, no fim, o aparelho seria muito útil, pois me
permitiria fazer uma ligação para casa. Isso se eu
não conseguisse entrar na casa de férias.
Em meio àquele nevoeiro de sofrimento e
apreensão, a lembrança de meus pais era
reconfortante. E a certeza de reencontrá-los, o meu
único consolo. No entanto, ainda assim, não
diminuía quase nada aquele vazio aterrorizante em
meu peito. O grande buraco negro do qual nada
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escapa, nem mesmo a luz.


Quem diria... Há pouco mais de um mês eu
só pensava em voltar para casa e agora...
A tarde demorou uma eternidade para chegar.
Queria procurar por Lui e me despedir, mas,
possivelmente, estava ocupado ajeitando a
confusão provocada pela hiena sádica. Além disso,
encontrar com meu “ex-não-namorado” era meu
maior pavor até o momento. Por isso, resolvi deixar
apenas um bilhetinho.

Achei melhor não me despedir nem escrever


nada para o rei, afinal, eu não iria conseguir de toda
forma. A tarde seguia, e Ralifax não viera anunciar

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a assinatura do tratado. Entretanto, eu sentia essa


hora se aproximando cada vez mais. A hora de
receber a notícia mais terrível de minha vida. A
notícia de que eu havia perdido para sempre o
grande amor da minha vida.
Eu posso sobreviver, já sobrevivi uma vez,
não é?
Apontei o celular para a janela e capturei uma
imagem daquele planeta gigante.
— Tchau, planeta — despedi-me já sentindo
saudade, por incrível que pareça.
Ao reparar melhor no aparelho, algo me veio
à mente.
Verdade! Esqueci do Jason.
Bom, de qualquer forma, esse assunto
passava a ser um problema do rei e não meu. Aliás,
nada ali era mais assunto meu. Era inacreditável,
mas passei de esposa a ex-namorada quase num
piscar de olhos. E a dor estava mais para divórcio
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que para fim de namoro.


Inadvertidamente, o grande nó ressurgiu em
minha garganta. Quem diria que até os problemas
podem ser uma dádiva quando se está com quem se
ama.
Em seguida, ao ouvir batidas à porta, só me
restou respirar fundo.
É agora! Meu Deus!
Aguente firme. Faça o que fizer, mantenha
essas pernas de pé.
— Minha senhora.
Meu peito gelou enquanto minhas pernas
davam sinais alarmantes de que desabariam a
qualquer momento.
Ah, Murphy. Um dia te pego!
— Eu já sei, Rali — falei, quase sussurrando.
— Não, minha senhora. Aconteceu uma
coisa.
— O quê?
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— O rei está solicitando sua presença na sala


onde estão assinando o tratado.
— E para quê? — indaguei, recostando-me
num móvel para não cambalear.
— O rei não disse.
Engoli em seco.
Vamos, você consegue! Força nessa peruca!
Acompanhei Ralifax até a sala, mas só eu
adentrei no recinto.
Faça o que fizer, olhe para baixo. Não olhe
para ele, pelo amor Deus!
Entrei com a cabeça abaixada. No entanto,
pude ver de relance a solenidade. Em pé de um lado
da mesa estava o palito amarelo com seu pai. A
guarda estava presente, e Lui a chefiava. E... e... o
rei, do outro lado da mesa. Não olhei para o rosto
de ninguém.
Respire, respire fundo. Não ouse desmaiar,
Everlin!
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Exalei o ar com calma, segurando minhas


mãos para não tremerem.
— Mandou me chamar, majestade? —
indaguei pausadamente.
— Sim. O tratado contém uma cláusula, a
qual não achei justo aceitar por você — explicou
com a voz tão trêmula e fraca, que tive de me
segurar para não correr até ele e abraçá-lo na hora.
Meu Deus, o que fizeram com o meu Dáian?
Encarei o sabugo de milho, e ela me apontou
os papéis sobre a mesa.
Aproximei-me.
— Posso pedir para um escriba ler para você
se quiser — ofereceu a entojada.
Eu não disse absolutamente nada, tão
somente a encarei com meus olhos castanhos de
Everlin, e ela recuou um passo. Não satisfeita, tive
de dizer alguma coisa, até porque eu já havia sido
convidada a me retirar do planeta mesmo, não é?
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— Escriba para ler para mim só se eu fosse a


sua mãe.
Ela me encarou raivosa, mas não ousou dar
um pio e, no fundo, foi porque não conseguiu
pensar numa resposta decente.
Trouxe o documento para perto e comecei a
correr meus olhos pelas malditas linhas.
No momento em que encontrei a cláusula, o
meu sangue ferveu de tal maneira que meu
raciocínio, meu corpo e minha alma sucumbiram à
ira quase instantaneamente. Talvez em minhas
veias corresse óleo de Éden em vez de sangue,
porque minha postura se inflamou e por pouco não
cuspi fogo. Meu cérebro só conseguiu processar
uma imagem, a de um punhal próximo ao tinteiro.
Como um raio, agarrei-o, desembainhei e o enterrei
na mesa, mas quem pagou o preço foi um pobre
livro, unicamente por estar entre a minha fúria e a
madeira do móvel.
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— VOCÊ VAI TIRAR O MEU MARIDO


DE MIM E AINDA QUER QUE EU FIQUE
AQUI PARA ASSISTIR?!!!!!! — rugi, tomada por
um furor, do qual nem mesmo eu sabia ser capaz.
Apenas senti os braços firmes do rei,
segurando-me enquanto meu corpo tremia num
frenesi incontrolável. O dele também parecia estar
a ponto de explodir, porque vibrava na mesma
sintonia indômita.
— Para que isso, Nazik? — Dáian estrondeou
e a voz repercutiu até em minha alma.
— São nossos termos — limitou-se a
responder — a assinatura real já está aí como pode
ver — a empertigada jogou na minha cara.
De fato, a chancela de Yonah já estava no
documento. Não sabia ao certo o motivo de minha
hesitação, afinal o que mais eu poderia perder? Eu
já estava no chão mesmo, dali não poderia passar.
Peguei a caneta a apus meu nome completo bem
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abaixo da assinatura real, para não deixar nenhuma


dúvida.
— Carter Kim? — ouvi o rei perguntar.
— É o nome da minha família — expliquei
atordoada.
— Ah... — expressou com a voz embargada,
como se a nova informação sobre mim fosse o
último pedacinho do seu doce predileto e tivesse a
mais plena certeza de que jamais voltaria a saboreá-
lo na vida.
A seguir, senti os braços do rei me
abandonando, mas não sem deixar em minha pele
sua última carícia furtiva. Estremeci. Em poucos
instantes, a raiva voltou a me atormentar, acabei
atirando a caneta na mesa com mais força do que o
momento permita.
Quem se importa?
Em seguida, dirigi-me para a porta batendo
os pés.
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— Não está esquecendo nada? — indagou o


palito.
Voltei-me para ver o que mais ela queria.
Nazik indicou a joia em meu pulso e,
imediatamente, senti a temperatura de meu corpo
despencar abruptamente. Segurei a minha pulseira
como se a estivesse escondendo e olhei para o rei,
suplicando, mesmo sabendo que, pelo que eu havia
acabado de ler, ele não podia fazer absolutamente
nada.
Só, então, percebi o quanto estava abatido.
Meu Deus, que olheiras profundas são essas?
Está pálido como um fantasma. Ralifax não o está
fazendo comer?
— Deixe-a ficar com a joia — impeliu o
soberano, exaltado.
— Não. Isso é o símbolo de um compromisso
que não existe mais — decretou, gesticulando para
que eu entregasse o meu tesouro.
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Caminhei de volta à mesa implorando a mim


mesma para aguentar firme mais um pouco, porque
se eu tivesse de desmoronar, seria longe dos olhos
daquela princesa presunçosa.
Devagar, coloquei a joia sobre a superfície
lisa e me afastei, sentindo que deixava ali um
pedaço do meu próprio coração. Virei para seguir
meu caminho, mas, após alguns passos, minhas
pernas traidoras cederam e eu cambaleei. Lui
correu e me apoiou, impedindo-me de cair.
— Você está bem, senho... — Lui iniciou a
pergunta, mas se deteve na metade da palavra final
e, após pensar um pouco, renovou a indagação —
você está bem, senhorita?
Quando o comandante terminou de
pronunciar a palavra “senhorita”, voltou-se
levemente na direção do rei e abriu um sorriso
discreto. Ao se deparar com a cena, o rei explodiu,
derrubando o móvel no qual se apoiava.
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Diante da tensão, que pairava sobre as nossas


cabeças como uma névoa sombria, preferi me
retirar dali o mais rápido possível, antes de tudo
aquilo se transformar em algo pior, se é que era
possível.
Usei o meu último fôlego de força para correr
pela porta e não parei até desmoronar sobre a
minha cama. Contudo, em menos de dez minutos, a
porta do meu quarto escancarou-se e a princesa
entojada entrou, rodeada por servos, e com ela
estava Ralifax. Levantei-me limpando as lágrimas
rapidamente.
— Quero redecoração total. Novas cortinas,
novos móveis, tudo novo. E quero que queimem
tudo o que estava aqui — ordenou.
— Sim, alteza — assentiu Ralifax, retirando-
se, provavelmente para atender os pedidos nada
econômicos.
— Servo — chamou o palito amarelo.
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— Sim, alteza — respondeu o preceptor.


— Mostre a nossa “hóspede” o novo quarto
dela. Esse aposento passa a ser meu de hoje em
diante. É o mais próximo do quarto do meu noivo e
facilitará caso ele queira escapulir para cá no meio
da noite — declarou sem a menor vergonha na
cara.
Entretanto, eu mal a ouvia. Só conseguia
prestar a atenção em uma coisa: na minha pulseira,
agarrada ao braço dela.
— Já pedi a Dáian um bracelete maior, esse
simplesinho serve por enquanto — completou,
quando percebeu o que eu mirava.
Balancei a cabeça. Se ela não tinha amor
próprio o suficiente e, por isso, desfilava com uma
joia feita para outra mulher, não seria eu a ter por
ela. Peguei as coisas que esperavam por mim na
cama, bem como as que eu havia guardado no
armário e saí, seguindo Ralifax.
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— Eu sinto muito, senhorita — expôs o


servo.
Nossa, nunca pensei que um dia doeria tanto
ser chamada de senhorita.
— Tudo bem, Rali. Não há mais nada que
ela possa tirar de mim, acredite.
Segui Ralifax pelos corredores e, depois, por
uma longa escadaria até um quarto minúsculo no
alto da torre. O novo aposento só tinha uma cama e
uma mesinha. O banheiro ficava lá em baixo, ao pé
da escada.
Que maravilha.
— Senhorita...
— Rali — comecei, sem saber ao certo se
devia perguntar — como está o... — não consegui
terminar, a palavra “rei”, simplesmente, não saiu.
— Trancou-se. Não deixa ninguém entrar,
nem mesmo eu.
Era impressionante como Ralifax tinha o dom
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de interpretar o não dito.


— Ah... — foi tudo o que consegui expressar.
— Senhorita, eu tenho ordens a cumprir e...
— Tudo bem, Rali. Vá lá. Eu me ajeito —
interrompi, tentando sorrir.
Para que eu iria segurá-lo? Até porque não
havia mais nada a dizer. Ralifax também tentou
sorrir e, na sequência, me deixou, sem disfarçar a
preocupação. Coloquei as minhas coisas sobre a
cama e sentei-me à beirada da janela. A vista era
incrível, alcançava muito, não só do palácio, como
também do horizonte distante. Pelo tratado, eu só
poderia ir embora depois de presenciar o
casamento. Portanto, um tempo no palácio com a
princesinha no meu pé estava no meu futuro mais
que imediato.
Nem vou lhe dar os parabéns desta vez
Everlin, porque, agora sim, você se superou.
Então, ajeite essa peruca e aperte esse salto
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porque, “essa”, você vai ter de encarar.

Caro leitor,
Nunca abandone a literatura. Saiba que a
leitura é a ponte de “Einstein-Rosen” que o
levará até os seus sonhos.
Obrigada pelo carinho!
Um beijo no seu coração,
M. Okuno

PARA UMA
SURPRESA, PROSSIGA.

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Capítulo Extra
Para Jojozinha, que
me fez acrescentar
esse capítulo. Tudo o
que quiser, ó
poderosa Beta.

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Além da compreensão

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Aos futuros soberanos e súditos de Yonah,


meus cumprimentos.

Peço permissão para um desabafo, embora


seja do conhecimento de todo servo preceptor o
dever de proceder aos registros da maneira mais
imparcial e fiel possível. Preocupo-me por nosso
atual soberano. De um modo geral, o amor faz parte
da vida da maioria dos homens, mas o amor do
mestre por essa garota terráquea vai muito além de
qualquer compreensão ou racionalidade. Bom, mas,
antes de despejar os infortúnios que me
atormentam, é melhor narrar os últimos
acontecimentos.

Mestre Dáian contou-me, com muito menos


detalhes do que eu gostaria, sobre sua viagem até a
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casa da Garça do Oeste, pai do comandante Lui,


discorrendo, também superficialmente, para o meu
desespero, acerca da doença na cidade de Epsen e
da perseguição ao bando de agentes de Karur,
infiltrados em nossa nação, na companhia da
senhora Everlin.
Pasmem, essa menina, mesmo com o
joalheiro do palácio ao seu dispor, foi tão longe
para recuperar um bracelete de noivado!
Diante da parca informação, em relação a
esses fatos, não terei muito a relatar. No entanto, o
rei retornou ferido da missão, não apenas no corpo,
mas na alma.
Pelo que entendi, a senhora Everlin recusa-se
terminantemente a aceitá-lo como marido e, por
isso, ele percebeu, um pouco tarde devo
acrescentar, que a melhor solução será lhe contar a
verdade. E, pela primeira vez em gerações, o rei
chancelou um decreto ordenando o retorno de todas
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as esposas às suas famílias. Deus nos ajude!


Bom, ao menos ninguém poderá dizer que o
rei Sete não foi inovador.
Já relatei isso em tantos registros, mas
acrescentarei mais uma vez que a mulher pela qual
meu mestre se apaixonou é extremamente
espirituosa. Nunca vi jovem mais determinada,
tampouco mais corajosa. A humildade da menina
também é uma de suas características mais
marcantes. Nunca vi uma esposa do rei tratar
criados como iguais.
Mesmo assim, o mestre teme em contar a ela
sobre o noivado deles. Cismou que a senhora
guarda mágoa do passado. Mas, se assim fosse, ela
não teria cavalgado sozinha por toda uma noite e
enfrentado mercenários de outra nação para
recuperar um presente dele.
Céus, essa menina arriscou a vida pelo
bracelete.
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Apesar de eu o ter aconselhado diversas


vezes para se sentar com ela, em um lugar
tranquilo, e lhe contar tudo numa conversa franca,
ele insistiu em levá-la ao templo.
Quando mestre Dáian enfia algo na cabeça...
Eu ajeitava algumas coisas no aposento da
senhora, quando ela adentrou no quarto, cabisbaixa.
— E aí, Rali? — lançou seu cumprimento
estranho de sempre.
Embora fosse extravagante para mim, eu não
podia negar o quanto meu coração ficava aquecido
ao ser chamado por esse apelido, ainda mais com
aquele jeitinho espontâneo e sincero.
Verdade seja dita, eu me afeiçoei àquela
garota estranha.
— Minha Senhora, acredito que o rei já tenha
lhe dito que vão sair — indaguei, mais para
constatar se o mestre não havia desistido desse
plano maluco.
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— Sim, ele disse que ia me levar a um lugar


antes de me liberar.
— Ele disse que iria libertar a senhora! —
questionei, deixando escapulir a minha surpresa.
— Disse. Por que Rali?
Ele parecia tão decidido a mantê-la aqui.
Talvez esteja amadurecendo. Tomara!
— Por nada, minha senhora. Começarei a
preparar as vossas coisas imediatamente.
— Rali, por que precisa arrumar minhas
coisas? Onde Sete vai me levar?
— É uma montanha, não fica muito longe do
palácio. Mas acredito que terão de acampar por
uma noite ou duas.
Deixei o quarto da senhora e passei a cuidar
dos preparativos para duas pernoites fora do
palácio. Mais tarde, quando as luas já reluziam há
um bom tempo e o silêncio começara a se espalhar
pelo palácio, fui até o quarto do mestre para ver
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como estava.
— Mestre, vai acabar abrindo um buraco
nesse chão se continuar andando assim.
— Como ela está, passou no quarto dela?
— Não, mestre. Vim direto para cá.
— Ela ficou enfurnada na biblioteca o dia
todo.
— Ela pensa que o senhor vai libertá-la, o
senhor vai?
Mestre Dáian exalou o ar com força, como
sempre fazia quando queria responder “não”, mas
sua consciência o censurava por saber do dever de
dizer “sim”.
— Ela vai me escolher — pronunciou por
fim, no entanto sua voz não demonstrava a mesma
convicção das palavras.
— O senhor precisa aprender a falar com ela.
Ela será capaz de entender se o senhor explicar.
— Ela não vai acreditar em mim, Ralifax.
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Terá de ver com seus próprios olhos.


— Senhor, se por acaso... Na remota
possibilidade dela...
— Ela não vai! — interrompeu-me.
Eu tinha sérias dúvidas se ele iria mesmo
libertá-la quando chegasse a hora.
— Ralifax — começou sentando-se na cama
— eu... eu... eu a amo tanto que, às vezes, nem
consigo respirar. Ela se transformou numa mulher
extraordinária. Nunca conheci uma garota assim.
Ela parece pertencer a outro nível, não se importa
com coisas banais nem com riquezas nem com a
própria aparência. Ela simplesmente se dedica ao
que acredita, persegue um objetivo como ninguém.
Ela vê as pessoas, tem compaixão. Ela parece
sempre saber de tudo, de tudo o que importa.
— Nisso preciso concordar com o senhor. A
senhora Everlin é muito peculiar.
— O jeito como enxerga o mundo é
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fascinante para mim. Ela tem uma maneira própria


de ver as coisas — divagou, enquanto sorria
sozinho.
Céus, que essa menina o aceite de vez!
— Bom... se ela rejeitou um rei, num palácio
como esse, porque se apaixonou um garoto
maltrapilho que conheceu no meio do mato, como o
senhor disse, ela é única, de fato.
O rei soltou uma gargalhada gostosa.
— Vou cuidar dos preparativos, tente dormir
um pouco, mestre.
— Não sei não, meu amigo. Ficar parado já
está me deixando nervoso — expressou, passando a
mão por baixo dos travesseiros e pegando seu
aparelho precioso.
— Durma bem, mestre — despedi-me,
sabendo bem que a noite ia ser longa para o rei.
No dia seguinte, partimos para o templo e a
aura de apreensão em torno do mestre estava,
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simplesmente, contagiosa. A senhora Everlin


seguia sem compreender as intenções do rei, e era
visível o quanto a tensão dele a incomodava.
— Montem acampamento — ordenou o
mestre, evitando aproximar-se dela como se fugisse
do fogo do próprio Tártaro.
Se o conheço bem, está tentando evitar
agarrá-la e não soltar mais.
Dei instruções para os servos armarem as
tendas e quando me preparava para dar um jeito do
estoque da comida, a senhora me parou.
— Rali, por que precisamos parar aqui se
vamos até a montanha?
— A localização do templo é um dos
segredos mais bem guardados de Yonah. A partir
daqui, só os soldados de extrema confiança irão
acompanhá-los.
— Ele vai me levar a um templo? E para
quê?
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— O Rei Sete lhe dirá no momento certo,


minha senhora — falei depressa e segui caminho,
antes que ela me enchesse de perguntas.
Mais tarde, quando a senhora já estava
instalada, o rei ordenou que eu a avisasse sobre a
partida. Queria ter sido forte o suficiente para
cumprir apenas o que me foi ordenado, mas não
resisti. Mestre Dáian estava apaixonado demais
para sofrer nova rejeição.
— Minha senhora, posso lhe pedir uma
coisa? — indaguei, apreensivo.
— Claro, Rali. Diga — ela assentiu com
aquela espontaneidade e bondade, as quais também
me faziam querê-la para meu garoto.
— Quando estiver no templo, tente não julgar
Sua Majestade tão apressadamente — pedi,
torcendo para ela não me lançar uma montanha de
questionamentos.
— E por que eu faria isso?
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— Apenas me prometa, minha senhora, por


favor — implorei, sentindo meu próprio
nervosismo congelar minhas mãos.
— O que tem lá, Rali? — perguntou
desconfiada.
— Algo terrível, minha senhora. É tudo o que
posso lhe dizer — informei, deixando a tenda
depressa antes de cometer uma indiscrição mais
grave.
Na hora marcada, partiram para o templo.
Fiz as servas rezarem comigo durante todo o
tempo, contudo, ao regressarem, notei a senhora
Everlin vindo escoltada pela guarda.
Ai, meu Deus! Ele a fez prisioneira.
Corri a até a tenda dele.
— Mestre, pelos céus, reconsidere —
supliquei.
— Não, Ralifax. Não me venha com sermões
nem lições de moral agora.
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O rei tremia e ofegava. Estava à beira de um


ataque de nervos.
— Mestre, se é o desejo dela, terá de deixá-la
ir.
— Não! — estrondeou, vindo a seguir a crise
de choro.
O ajudei a sentar-se na cama. Nesse instante,
algo me ocorreu. Conhecendo o rei como eu
conhecia, provavelmente não conversou com ela,
não lhe contou o que aconteceu. Talvez não tenha
lhe dito absolutamente nada.
Deixei a tenda do mestre, sem dar-lhe
maiores explicações e corri para da tenda da
senhora.
— Minha senhora, posso entrar?
— Sim, Rali. Entre.
Adentrei na tenda dando um passo de cada
vez, porque não sabia ao certo seu estado de
espírito.
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— Sou prisioneira agora? — disparou, sem


esconder que estava brava até a tampa.
Não é para menos, pobrezinha.
— Minha senhora, sou a última pessoa no
mundo com permissão para se intrometer, mas a
senhora permitiria que eu lhe contasse uma
história?
— Rali, sério, não estou no clima. Me perdoe
— ainda tentou não ser injusta comigo, culpando-
me pela atitude do mestre.
Uma garota como esta é tudo o que mestre
precisa. Se amam, talvez só lhes falte comunicação
mesmo.
— Por favor — pedi, olhando-a
carinhosamente.
Ela concordou, e eu me sentei depressa, antes
dela ter tempo de mudar de ideia.
— É uma história que a senhora precisa saber
— asseverei.
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Ela empertigou-se e passou a me ouvir com


mais atenção.
Respirei fundo, e contei-lhe tudo. Toda
história do mestre, sem omitir nenhum detalhe
sequer. Enquanto meu ouvia atentamente, seus
olhos encheram-se de lágrimas, as quais ela
represou com bravura.
Quando terminei, ela simplesmente me
olhava como se tivesse perdido a capacidade de
falar. Estava em choque. De fato, ela não sabia
absolutamente nada do que acontecera com o
mestre.
— Como você sabe de tudo isso, Rali? — a
pergunta demorou a sair dela, provavelmente, ainda
estivesse organizando as ideias.
— Porque eu fui o preceptor que o criou —
respondi com um sorriso.
— Então, você sabia sobre mim?
— É claro que sim. Não pode imaginar como
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o mestre Dáian ficou feliz ao vê-la no harém,


senhora. Embora o tenha deixado mancando aquele
dia — respondi, sem evitar lembrar da cena e rir.
Mesmo com meu humor repentino, a senhora
Everlin parecia continuar em choque.
Eu sabia que ela não iria reconhecê-lo. Deve
ter ficado estupefata quando o mestre lhe mostrou
o aparelho.
— E agora que a conheço, consigo
compreender por que o mestre Dáian ficou tão
apaixonado — finalizei, deixando evidentes os
sentimentos do meu mestre e torcendo para que o
amor em seu coração superasse uma possível
mágoa pelo abandono no passado.
— Obrigada por me contar, Rali —
agradeceu cheia de ternura.
— Vou deixá-la com seus pensamentos,
minha senhora. Acredito que tenha muito em que
pensar — afirmei, já sabendo que eu deveria
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retornar à tenda do mestre para tentar apaziguar o


outro lado agora.
Deixei a tenda da senhora e corri para a do
rei. Assim que entrei, hesitei por uns instantes. Ele
continuava chorando.
— Mas, meu senhor, se não ia suportar a
decisão dela, por que atestou desse jeito? —
questionei, com o coração apertado por vê-lo
daquela maneira.
— Deixe-me só, Ralifax — ele solicitou e
sua voz mal saiu.
No instante em que me virei, vi a senhora
Everlin parada na porta da tenda.
Graças a Deus!
Apressei-me para deixá-los a sós, contudo
não conseguir ir muito longe. Prossegui observando
a tenda e rezando para ela enfim aceitá-lo. Alguns
minutos depois, a senhora Everlin saiu correndo da
tenda.
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Meu Deus, não! Lá vamos nós de novo.


— Ralifax — o mestre chamou.
Universo, por favor, colabore!
— Sim, meu senhor — atendi, apreensivo.
Tão logo adentrei na tenda, o mestre me
abraçou, suspendendo-me no ar e seu sorriso era
maior que o próprio sol. Pensando bem, talvez nem
mil estrelas juntas pudessem se comparar em
tamanho.
— Ela me ama... ela me ama... — repetia sem
parar.
— É claro que ama, meu senhor. Mas o
senhor precisa aprender a se comunicar com ela —
exortei, aproveitando o momento.
— Obrigado, meu amigo — agradecia-me
emocionado.
Ele sabia que eu havia me metido onde não
devia.
— Vá até lá e diga que desejo me encontrar
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com ela. Esperarei próximo à árvore centenária.


— Agora mesmo, meu senhor.
A felicidade do mestre não cabia mais dentro
de si. Estava radiante.
Quem diria, há um minuto desfazia-se em
prantos!
Corri até minha tenda e peguei a surpresa que
eu havia guardado para esse momento. Em seguida,
convoquei as criadas e rumamos para a tenda da
senhora.
— Minha senhora, posso entrar? —
perguntei.
— Sim, Rali, entre.
Assim que a vi, não pude conter minha
própria emoção.
— O rei solicita a sua presença. Ele quer se
encontrar com a senhora, em um lugar especial.
Aquela menina era a luz do meu menino. Ela
era a única, em toda imensidão do espaço, capaz de
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fazê-lo feliz. Se ele não a tivesse conhecido,


provavelmente, teria se contentado em ter uma vida
tranquila.
No entanto, era óbvio que alguém lá em cima
iria presentear a bondade do mestre com felicidade
genuína. O mestre tinha toda razão, aquela garota
forte e humilde, decidida e misericordiosa, justa e
bela, amada e amorosa, só poderia ser comparada à
própria Yonah.
— Muito obrigado, minha senhora, por
devolver a vida ao meu rei — agradeci, ajoelhando-
me perante minha rainha.
— Rali, levanta daí, pelo amor de Deus! —
repreendeu-me carinhosamente, vindo e me dando
um abraço apertado.
— Eu é que agradeço, por você ter cuidado
dele — agradeceu, colocando uma de minhas mãos
sobre seu rosto — de nós dois — completou.
Eu não tinha mais só um menino. Agora tinha
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um menino e uma menina. A minha menina!


— Minha rainha! — exclamei, sorrindo e
tentando conter as lágrimas.
Ela me mostrou um sorriso tão lindo.
— Mas o que estamos esperando — convidei,
levantando-me — a senhora tem um encontro e eu
tenho uma surpresa.
Mostrei a ela os presentes, o vestido e a joia,
os quais só aguardavam ela dizer ao rei o tão
esperado “sim”. A humildade dela não a fez ficar
eufórica como qualquer garota da nobreza teria
ficado diante de uma joia como aquela.
— Você não está sugerindo que eu use isto,
não é, Rali?
— O rei encomendou especialmente para a
senhora quando ainda era um príncipe. Estava
guardado na sala de tesouros, juntamente com isto.
Apresentei-lhe um objeto da sala de tesouros
e, no mesmo instante, a senhora Everlin espantou-
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se sobremaneira.
— Meu CD do Backstreet Boys, Black &
Blue!
Ela pegou o objeto de minhas mãos.
— Como isso foi parar aqui? — indagou
assombrada.
— O rei guarda um monte dessas relíquias
em sua sala de tesouros.
— Ele pegou do meu quarto? — perguntou
emocionada.
— Tudo o que pode — afirmei —
provavelmente deixou o lugar quase vazio.
A senhora pareceu divagar por alguns
instantes, mas logo tudo pareceu lhe fazer sentido.
Era óbvio que ficaria mais feliz com o objeto
roubado pelo mestre, o qual, muito provavelmente,
não passava de uma quinquilharia, do que com a
joia de diamantes e rubis à sua frente. Se não fosse
assim, não seria a mulher a deixar o poderoso Rei
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Sete a seus pés.


— Não vamos deixar o rei esperando. Vamos
meninas, façam sua mágica — incentivei,
deixando-a a sós com as servas.
Um pouco mais tarde, retornei, e ela estava,
simplesmente, deslumbrante. Uma coisa eu não
podia negar, o mestre tinha muito bom gosto.
Acompanhei-a até a árvore centenária e acabei não
resistindo à vontade de espiá-los por alguns
minutinhos. Fiquei feliz por me intrometer mais
alguns segundos porque, o beijo que trocaram
ficou, e ficará para sempre, como uma das cenas
mais inesquecíveis da minha vida.
Eu tinha razão. É um tipo de amor que
ultrapassa a compreensão, a razão e o limite do
possível. Transcende o tempo e o espaço.
Deixei os dois em paz e retornei aos meus
afazeres, mas não sem levar comigo um pouco
daquela felicidade de duas almas destinadas uma a
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outra, sentimento que parecia cobrir o mundo todo,


de tão grandioso.

No início da madrugada, quando o arraial já


havia se aquietado há um bom tempo, despertei
com o barulho de cavalos. Tão logo levantei, ouvi
criadas clamarem por ajuda. Sai e me deparei com
um ataque ao nosso acampamento. A primeira
coisa em minha mente foi correr até o quarto do
mestre, mas os cavaleiros já nos haviam pegado de
surpresa e tudo parecia tomado por aqueles
homens.
Corri o quanto pude, mas fui cercado. Quem
veio em meu auxílio foi a senhora Everlin. Sozinha
conseguiu derrotá-los.
Que mulher é essa, meu Deus!
— Rali, onde está Dáian?
— Eu não o vi, minha senhora.
— Devem ter atacado o acampamento para
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matá-lo, temos de encontrá-lo — concluiu


desesperada.
— Não, minha senhora. Não é o mestre
Dáian que eles querem, e sim a localização do
templo.
— Não acredito — ela rosnou.
Infelizmente não havia nada que eu pudesse
lhe dizer.
— Então é isso o que tanto querem? Por isso
estavam deixando as pessoas doentes? Por causa
disso queriam invadir esse país? Pela passagem
para o meu mundo! — esbravejou, em pânico.
Prossegui em silêncio.
Aquele templo é terrível demais.
— Rali, você precisa me prometer, se alguma
coisa acontecer, vai dizer a Dáian que não podem,
em hipótese alguma, encontrar aquele templo, você
entendeu?
Na sequência, retirou o bracelete e me
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entregou.
— Minha senhora...
— Mostre isso para que ele entenda o quanto
isso é importante. Diga que ninguém pode passar.
Que meu mundo não pode descobrir a existência
dessa ponte, de jeito nenhum. Você está
compreendendo o que estou dizendo? Diga que se
tiver de escolher entre mim e o templo, ele precisa
escolher o templo. Pelo bem de tudo o que ele ama,
e o que eu amo.
Olhos dela reluziam uma determinação e um
pavor arrepiante. O mal que ela previa era de
proporções cataclísmicas.
— Eu prometo.
Mal acabei de pronunciar minha promessa e
um punhal já estava contra minha garganta.
— Largue a arma ou ele morre — disparou
aquele vil, o qual mantinha-me subjugado.
A senhora Everlin nem titubeou, largou os
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bastões na mesma hora.


— Não, minha senhora. Minha vida não vale
a sua.
— Nunca mais diga isso, Rali. O que seria de
nós sem você — sorriu carinhosa, porém estava
nitidamente tentando manter a calma.
Um soldado a agarrou pelo braço.
— É ela a curandeira que arruinou nossos
planos. A esposa de Sete.
— Vamos levá-la para Éfer.
Incontinente, os homens agarraram-na e a
levaram, trancando-a em uma carruagem de carga.
A seguir, mestre Dáian veio até nós e passou a
colocar os cretinos em seus devidos lugares. Já
registrei por várias vezes sobre a habilidade em
combate do Rei Sete, entretanto, naquele momento,
ao ver sua amada prestes a ser levada, ele parecia
um cavalo selvagem.
O seu espírito era de a tomar de volta, nem
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que para isso tivesse de enfrentar o exército todo de


Karur sozinho. No entanto, quanto mais o mestre
avançava para sua esposa, mais os soldados da
guarda, em número muito menor, padeciam nas
mãos dos mercenários de Éfer.
— Ralifax — ouvi a senhora bradar e, pelo
desespero, eu soube: ela queria que eu detivesse o
mestre.
Corri no meio da confusão e segurei seu
braço, mas ele não via nada além dela. Então me
joguei à sua frente.
— Mestre veja isto — vociferei.
Ao ver a pulseira, o mestre parou.
— A senhora me fez prometer que eu lhe
daria um recado. Ela quer que proteja o templo,
caso acontecesse alguma coisa a ela. O povo dela
não pode saber da existência da passagem, foi a
última coisa que senhora me disse.
— Saia da minha frente, Ralifax —
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estrondeou.
— Mestre — segurei seu rosto — eu juro! Eu
vi a profecia do fim nos olhos dela! — esbravejei,
olhando dentro de seus olhos.
Nesse instante, o rei voltou-se para a
montanha e viu a guarda em sérios apuros. A
seguir, voltou-se para a senhora e, quando viu a
carruagem afastando-se, uma feição de pavor
tomou conta dele. Um tipo de terror dolorido, o
qual eu nunca vira nele antes.
— Eu os ouvi dizer, vão levá-la até o rei Éfer.
Não vão machucá-la.
Mesmo com minhas palavras, ele não
abandonou o semblante apavorado. Nos breves
instantes de indecisão, a senhora ficou mais
distante.
— Eu vi, meu rei, acredite, se não proteger o
templo, a profecia dos antepassados se cumprirá,
será o fim de tudo.
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Mestre Dáian, então, mesmo se afundando


em dor, retornou em auxílio da guarda. Voltei-me
para onde estava a carruagem e vi a senhora Everlin
sentar-se no cárcere. Parecia aliviada. De fato, ela
se preocupava mais com o destino dos outros do
que com o próprio.
Que mulher extraordinária!
A guarda de Yonah lutou bravamente ao lado
de seu rei e, em pouco tempo, os mercenários
foram dominados. Quando luta se findou, o mestre
montou em seu cavalo.
— Ralifax, volte com os demais servos para
o palácio imediatamente — ordenou, já de cima de
sua montaria e tomado pelo desespero.
— Sim, meu rei.
Ao terminar de dar sua ordem, saiu ao
encalço da carruagem, acompanhado pelos guardas
de elite. De minha parte, levantei acampamento e
retornei ao palácio com os servos e poucos os
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soldados, que ficaram para nossa segurança. Ao


amanhecer, o rei retornou ao castelo.
— Preparem o animal e selem-no — ordenou
aos guardas.
— Agora mesmo, meu rei — respondeu o
líder do destacamento.
— Mestre, o senhor a encontrou.
— Não, outro bando daqueles malditos
encobriu os rastros! Miseráveis!
— O senhor ordenou a preparação de um
animal, não está se referindo a...
— É claro, a um Sairen.
— Mas ordenou que o preparassem com
sela? Pelos céus, meu Rei! O senhor sabe muito
bem o quanto Sairens são perigosos como
montaria. Seja razoável, mestre. A guarda de elite é
bem treinada e acaba de chegar uma mensagem
informando que o comandante Lui está na fronteira.
Envie um mensageiro, ele será capaz de trazê-la de
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volta.
— Não, eu vou pessoalmente atrás dela —
decretou, já separando as armas, as quais levaria
consigo.
— Meu rei, existem homens treinados para
isso. É perigoso o senhor deixar o palácio assim.
— Acha que depois de tudo vou perdê-la?
Nunca!
— Mas meu senhor...
— Não, Ralifax! — estrondeou.
A seguir, depois de armar-se até os dentes,
pegou um bolsa e a encheu com ouro.
— O Sairen está pronto, meu rei, como
ordenou — avisou o guarda.
— Ótimo.
— Meu rei, isso é muito perigoso — insisti.
— Cuide de tudo até eu voltar.
— Sim senhor. Cuide-se também, por favor
— pedi, até porque nada o faria mudar de ideia.
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Às vezes eu gostaria que ele fosse menos


cabeça dura.
Acompanhei o rei até a porta do palácio e o
vi montar no imenso animal, como se fosse um
simples cavalo. Embora eu não pudesse negar que
testemunhar o mestre no lombo de um animal, o
qual nem mesmo Dar, o magnífico, atreveu-se a
montar, fosse um momento quase histórico, aquele
tipo de réptil era tão veloz quanto imprevisível. Por
esse motivo, o próprio rei proibiu as corridas de
Sairens, logo no início de seu reinado.
Apesar de magnífico, era perigoso demais.
Ao terminar suas últimas instruções, meu garoto
partiu em busca de sua amada. Aqueles bichos
podiam ser conduzidos com segurança, e não
montados.
Céus, protejam meu rei e minha rainha. Que
retornem em segurança!

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Após esses acontecimentos, permaneci


angustiado por dias, rezando para não lhes
acontecer nada. O mestre enviou uma mensagem
do vilarejo de Jahar, anunciando seu retorno, mas
só descansarei quando chegarem aqui, quando
estiverem bem debaixo das minhas vistas.
— Senhor, Ralifax. Uma carruagem com
Sairens acaba de atravessar o passadiço e segue
para os portões do palácio.
— Glória a Deus nas alturas!

Registro de Ralifax,
preceptor de Dáian, sétimo
da dinastia de Dar. Ano
3.657 do pós-guerra.

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