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Pierre Kaufmann
Cabe ainda dizer, em referência ao modelo do estádio do espelho de Lacan, que, tal
como a situação de captação do olhar pela forma especular, poderíamos imaginar um
mesmo efeito de captação pela voz, em relação ao qual caberia discernir o que
equivaleria à forma (Gestalt). As respostas especulares da ninfa Eco e a perigosa
sedução do canto das sereias ilustrariam bem o poder de fascinação da voz,
precisamente quando ela evoca, um pouco de perto demais, o vestígio sensorial da
primeira voz em que o sujeito, no estágio de infans, ficou como que suspenso. Eco,
excessivamente falastrona para o gosto de Juno, a quem manteve entretida com suas
palavras enquanto as ninfas deixavam-se abordar por Júpiter, incorreu na cólera da
deusa e foi condenada a repetir os sons emitidos por uma primeira voz. Duplo sonoro de
um Narciso especular, conhecemos a queixa melancólica de Eco e o lento ressecamento
mineral de seu corpo. Certamente poderíamos interpretar a história de Eco como o
retorno do sujeito a uma fase primitiva de seu desenvolvimento, na qual a voz ouvida
constituiu o único traço distintivo de seu universo, traço cujas primeiras modulações ele
já podia discernir nesse estágio de infans. Numa visão similar, Didier Anzieu atribui à
voz um papel na constituição do "si", que ele define, antes mesmo da constituição do eu,
como um "conjunto psíquico pré-individual, dotado de um esboço de unidade e
identidade". A voz torna-se então um "envoltório sonoro do eu" e entra na estruturação
posterior do eu, da mesma forma, diríamos, que a imagem especular. Por outro lado,
Lacan considera a voz como um dos cinco "objetos cedíveis" (o seio, as fezes, o pênis, o
olhar e a voz) que mantêm com o corpo uma relação de separação e, em virtude disso,
participam do processo de desenvolvimento do eu. "Essa função de objeto cedível",
escreve ele no seminário sobre a angústia, "como pedaço separável e que veicula, como
que primitivamente, alguma coisa da identidade do corpo que antecede o próprio corpo
quanto à constituição do sujeito..." Na esteira desse pensamento, Denis Vasse fala ainda
de uma "introdução na voz" como introdução no mundo, indicando com essa expressão,
ao mesmo tempo, o que é ouvido da voz materna e o que é ouvido da nomeação; e esta,
assimilada à voz simbólica do Pai, impediria que o "sentimento oceânico" trazido pelo
que é ouvido da voz tornasse a fazer o sujeito submergir sob a forma do eco.
A psicanálise interessa-se pela voz, portanto, por esses dois pontos de vista, que
concernem ao mesmo tempo ao universo sonoro primitivo, marcado pela voz materna, e
à ruptura simbólica, marcada pela voz do Pai, cujo choque com o banho sonoro original
estaria na base da autoridade do supereu, Assim, em "Sobre o narcisismo: uma
introdução" (1914), Freud adianta a natureza sonora do supereu: "O que incita o sujeito
a formar o ideal do eu, cuja guarda fica entrégue à consciência moral, é justamente a
influência crítica dos pais, tal como transmitida peia voz deles"; e ele retomaria a
mesma formulação em "O eu e o isso" (1923), esclarecendo que o supereu, composto
das representações de palavra pré-conscientes, extrai sua energia de investimento, no
entanto, de um "escutado" mais profundo, cuja origem situa-se no isso. Na voz
encontramos as duas polaridades em virtude das quais a música transcende o domínio
da expressão: a do aquém primitivo, que favorece o reencontro com um modo de prazer
fusional há muito abandonado, e a do além formal, que permite fixar o prazer sublimado
na elaboração de imagens cada vez mais conceituais. E a natureza do musical residiria,
precisamente, em essas duas polaridades, do aquém e do além da expressão, parecerem
indissociáveis, partes integrantes do próprio material sonoro, que, por conseguinte,
como mostra a musica contemporânea, pode prescindir inteiramente do recurso a um
objeto-representação externo.
A música não se desenvolve como uma linguagem que narra, mas descreve um
tremor surdo, a oscilação que antecede a catástrofe, segundo o filósofo Daniel Charles;
e, para retomar os termos dele, a escrita musical não pertenceria ao signo, mas à cifra,
enquanto escrita que só presta contas de seus próprios movimentos. Em sua obra Le
temps de la voix, o autor compara a obra musical a uma "sismografia" em que a
subjetividade não teria nenhuma participação. "O abalo vem de mais longe. E deixa
vestígios; são esses vestígios que, como escrita, prestam-se à decifração." Como não
pensar, por esse ponto de vista, na própria dinâmica psíquica, tornada manifesta pela
música, assim como alguns sonhos tornam manifesta a pontualidade da percepção
endopsíquica? Não seria, como muitas vezes podemos ler na literatura psicanalítica, o
trabalho do inconsciente que aparece na e através da música, dela retirando suas
possibilidades de escrita, e, se algumas formas de escrita musical foram comparadas aos
processos de trabalho do sonho ou ao ritmo tensão/descarga do aparelho psíquico, nada
se deduziu disso, no entanto, quanto à essência do próprio fato musical. Antes, a atenção
voltada para as satisfações (Befriedigung) intrapsíquicas é que melhor explicaria o que
poderíamos chamar de essência musical, no sentido em que Freud evocou um
determinado tipo de satisfação, em O mal-estar na cultura, para caracterizar a técnica
da arte de viver, utilizando a propriedade de se deslocar de que a libido goza, sem por
isso desviar-se do mundo externo.
Cage, evocando uma aparente desordem contra um fundo de execução, leva ainda a
pensar que a execução não escapa à regra que a define como tal, ou, em outras palavras,
à forma. A pulsão de conformação (Gestaltung), tão bem descrita pelo psiquiatra E.
Prinzhorn a partir das obras de pacientes esquizofrênicos, e que ele generaliza para
todas as produções gráficas, inclusive as mais anódinas, pareceria aplicar-se igualmente
à música e transcender, necessariamente, as simples intenções do compositor. A partir
disso, um universo de sons totalmente aleatório, no sentido da não-redundância radical
de um Cage, parece difícil de conceber, se nos referirmos ao ouvinte que filtra e
organiza sua escuta. A música contemporânea renova, assim, o que se poderia chamar
de "problemática musical", na medida em que o trabalho do compositor passa a se
realizar respeitando a independência e a liberdade do som na combinação aleatória de
seus elementos. Por isso, essa problemática gera um novo questionamento quanto ao
tipo de comunicação que a música permite, ou, em outras palavras, quanto à finalidade
que ela se propõe, inclusive a de não se propor nenhuma.
A pequena "nota azul" de Chopin, portanto, não parará, através das mais diversas
músicas, de nos comover e nos envolver, sem que conheçamos bem suas causas. Sem
dúvida, é preciso fazer referência, segundo o psicanalista A. Didier-Weill, aos quatro
tempos lógicos da relação musical, a partir da seguinte pergunta: o melômano ouve
como sujeito ou como Outro? O primeiro tempo situaria o ouvinte melônamo no lugar
do Outro, que receberia do músico-sujeito a resposta a sua própria questão, até então
mantida inconsciente. Desprovida de angústia, como mostra o evidente prazer da escuta
musical, a resposta do músico repousaria no trabalho de assunção da castração, um
trabalho que tem em si a capacidade de introduzir o Outro-ouvinte no mesmo confronto.
O en-contro do melômano e do músico se efetuaria, então, com base num acordo
inconsciente, por trás do qual adivinhamos a presença do objeto a, objeto causa do
desejo, como se, para citar A. Didier-Weill, "... eles só pudessem encontrar-se ao
comemorar, no reconhecimento do dom do que não têm, a impossibilidade de qualquer
moeda de troca entre eles". (Reconhece-se aí a definição lacaniana do amor: dar o que
não se tem.) O segundo tempo da relação musical, portanto, vê o Outro-ouvinte colocar-
se na posição de sujeito, por ter como que recuperado sua questão e tê-la enunciado. E o
terceiro tempo permitiria ao melômano transformado em sujeito, por conseguinte,
identificar-se com o músico como o Outro do amor transferencial que sustenta a
demanda do sujeito, sem no entanto satisfazê-la. "O impacto desse ponto de báscula no
ouvinte", escreve Didier-Weill, "é realizar a improvável conjunção entre o que ele pode
ouvir e o que pode dizer: ponto de conjunção de onde a Fala do mundo que lhe fala
torna-se, ao mesmo tempo, sua fala de $" Por fim, o quarto tempo daria lugar à
emergência da "nota azul", ao introduzir a explosão temporal, aquela que, ao mesmo
tempo, surpreende o ouvinte e remata seu prazer, já que os quatro tempos assim
descritos são estritamente lógicos e se inscrevem numa pura instantaneidade.
http://br.geocities.com/jacqueslacan19011981/textos2/psicanaliseemusica.htm